Você está na página 1de 331

Série

A escrita literária: teorias, histórias e poéticas - nº 8

Ficções
pós-apocalípticas
nas vertentes do fantástico
David Roas
Flavio García
Marisa Martins Gama-Khalil
(Organizadores)
Série
A escrita literária: teorias, histórias e poéticas - nº 8

Ficções
pós-apocalípticas
nas vertentes do fantástico
David Roas
Flavio García
Marisa Martins Gama-Khalil
(Organizadores)

2021
Universidade do Estado do Universidade Federal
Rio de Janeiro de Uberlândia
Reitor Reitor
Ricardo Lodi Ribeiro Valder Steffen Junior
Vice-Reitor Vice-Reitor
Mario Sergio Alves Carneiro Carlos Henrique Martins da Silva

Coordenação Dialogarts Direção EDUFU


Flavio García Alexandre Guimarães Tadeu de Soares
Darcilia Simões
Dialogarts EDUFU
Rua São Francisco Xavier, 524, sala 11007D Av. João Naves de Ávila, 2121, bl. 1S, térreo
Maracanã – Rio de Janeiro – RJ Santa Mônica – Uberlândia – MG
CEP 20550-900 CEP 38400-902
dialogarts@uerj.br edufu@ufu.br
http://www.dialogarts.uerj.br/ http://www.edufu.ufu.br/

Produção:
Unidade de Desenvolvimento Tecnológico Laboratório Multidisciplinar de Semiótica (UDT LABSEM)

Realização:
Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (PPLET) – mestrado e doutorado – da Universi-
dade Federal de Uberlândia (UFU)
Conselho Editorial
Estudos de Língua Estudos de Literatura
Darcilia Simões (Presidente) Flavio García (Presidente)
Claudia Moura da Rocha (UERJ) Júlio França (UERJ)
Denise Salim Santos (UERJ) Norma Sueli Rosa Lima (UERJ)
Maria Aparecida Cardoso Santos (UERJ) Regina Michelli (UERJ)
Renato Venâncio Henrique de Souza (UERJ) Tania Camara (UERJ)
Claudio Manoel de Carvalho Correia (UFS) Ana Crélia Dias (UFRJ)
Eleone Ferraz de Assis (UEG) André Cardoso (UFF)
Kanavillil Rajagopalan (UNICAMP) Claudio Zanini (UFRGS)
Kleber Aparecido da Silva (UNB) Daniel Serravalle de Sá (UFSC)
Lucia Santaella (PUCSP) Diógenes Buenos Aires (UESPI)
Maria Carlota Rosa (UFRJ) Enéias Tavares (UFSM)
Maria do Socorro Aragão (UFPB; UFCE) Jane Fraga Tutikian (UFRGS)
Maria Jussara Abraçado (UFF) José Nicolau Gregorin Filho (USP)
Maria Luísa Ortiz Alvarez (UNB) Marisa Martins Gama-Khalil (UFU)
Nataniel dos Santos Gomes (UEMS) Rita de Cássia Silva Dionísio Santos (UNIMONTES)
Paolo Torresan (UFF) Teresa López Pellisa (UAH, ES)
Rita de Cássia Souto Maior (UFAL) Ana Mafalda Leite (ULisboa, PT)
Simone Rezende (EBAC, SP) Ana Margarida Ramos (UA, PT)
Vânia Casseb Galvão (UFG) Dale Knickerbocker (ECU, EUA)
Dora Riestra (Universidade do Rio Negro, AR) David Roas (UAB, ES)
Paulo Osório (UBI, PT) Inocência Mata (ULisboa, PT)
Maria João Marçalo (UÉvora, PT) Maria João Simões (UC, PT)
Massimo Leone (UNITO, IT; Universidade de Xangai, CH) Xavier Aldana Reyes (MMU, EN)

Comissão Editorial Conselho Editorial


Ivonise Fernandes da Motta (USP) Amon Santos Pinho (UFU)
João Luiz Leitão Paravidini (UFU/ Clínica Freudiana) Arlindo José de Souza Junior (UFU)
Laszlo A. Ávila (FMSJRP) Carla Vieira Nunes Tavares (UFU)
Leda Herrmann (SBPSP/ Cetec) Mical de Melo Marcelino (UFU)
Leda Maria Codeço Barone (SBPSP/ UFU) Sertório de Amorim e Silva Neto (UFU)
Marina Ramalho Miranda (SBPSP) Wedisson Oliveira Santos (UFU)
Rita de Cássia Cardoso da Silva Mendes (UFU)
Theodor S. Lowekron (SBPSP/ UFRJ)

Pareceristas ad hoc
Christiano Mendes Lima (Escola Brasileira de Psicanálise/ AMP)
Ricardo Gomide Santos (Instituto Sedes Sapientiae)
Copyright© 2021 David Roas; Flavio García; Marisa Martins Gama-Khalil (Orgs.)
Imagem de Capa:
Ahasuerus at the End of the World - Adolph Hiremy-Hirschl
Tratamento Técnico:
Cinthia Hellen Martiniano Teixeira
Dauro Silveira Moura
Janaína Monteiro da Silva (Coordenadora)
Luana Ferreira Gonçalves
Karen Paula Quintarelli (Coordenadora)
Luana Ferreira Gonçalves
Pedro Henrique Tenório
Tatiane Ludegards dos Santos Magalhães

CATALOGAÇÃO NA FONTE

Ficções pós-apocalípticas nas vertentes do fantástico


R628 Organização: David Roas
G216 Flavio García
G185 Marisa Martins Gama-Khalil
Edição: Flavio García
Capa: Raphael Fernandes
Diagramação: Raphael Fernandes
Rio de Janeiro: Dialogarts
2021, 1a ed.
800 – Literatura
ISBN 978-65-5683-034-6
Ficção; Fantástico; Insólito; Distópico; Pós-apocalíptico
Sumário
APRESENTAÇÃO 08
Bárbara Maia das Neves (UERJ)

A BATALHA DO APOCALIPSE: A APROPRIAÇÃO DO MITO


BÍBLICO NA CRIAÇÃO DE UMA NARRATIVA DE FICÇÃO 16
Zênia de Faria (UFG)
Rebeca Tipple (UFG)

NA MIRA D’A ESPINGARDA, DE ANDRÉ CARNEIRO 39


Ramiro Giroldo (USP)

EPIDEMIA E A TEMPORALIDADE PÓS-APOCALÍPTICA:


UMA LEITURA DA FICÇÃO MULTIAUTORAL CORPOS SECOS 49
Marcio Markendorf (UFSC)

REALIDADES APOCALÍPTICAS, DISTÓPICAS E


PÓS-APOCALÍPTICAS NA FICÇÃO DE MIA COUTO 77
Flavio García (UERJ)

MULHERES QUE NARRAM O FIM DO MUNDO 93


Marisa Martins Gama-Khalil (UFU)
Léa Evangelista Persicano (UFU)

A FICÇÃO PÓS-APOCALÍPTICA WEIRD DE


A TERRA DA NOITE, DE WILLIAM HOPE HODGSON 124
Alexander Meireles da Silva (UFG)

PRENÚNCIO DO FIM: O APOCALIPSE EM


“O CHAMADO DE CTHULHU”, DE H. P. LOVECRAFT 140
Cido Rossi (UNESP)
POSAPOCALIPSIS, HISTORIA Y ESPACIO EN LA SERIE
LA VALLA 163
Alfons Gregori (AMU)

APOCALIPSIS ZOMBI. LA REINVENCIÓN TELEVISIVA


DEL FIN DE LOS TIEMPOS 184
Ariel Gómez Ponce (UNC)

LA FICCIÓN AUDIOVISUAL FANTÁSTICA ESPAÑOLA


BAJO LA SOMBRA DEL COLAPSO (2007-2020) 204
Ruben Sanchez Trigos (URJC)

FUTUROS POST-APOCALÍPTICOS EN
EL TEATRO LATINOAMERICANO: HUGO BOLÓN Y CAIO
FERNANDO ABREU 222
Elton Honores (UNMSM)

ATISBOS DE ESPERANZA EN UNA FLOR:


ANÁLISIS DE LOS CUENTOS “REPOSIÇAO” DE
ISA PROSPERO Y “LA FLOR DEL ESPÍRITU SANTO”
DE JACINTA ESCUDOS 242
Lucía Leandro Hernández (UB)

VISIONES TRAS LOS APOCALIPSIS: LAS RUINAS EN LA


FANTASÍA ÉPICA Y FABULOSA DE LA EUROPA LATINA EN
LA ERA DE LA DECADENCIA (1871-1914) 263
Mariano Martín Rodríguez (UCM)

LA APERTURA DEL ESPACIO POSAPOCALÍPTICO EN EL


FIN DE SIGLO ESPAÑOL 289
Juan Herrero-Senés (University of Colorado Boulder)
LAS MÁQUINAS VIVIENTES Y OTRAS
INCERTIDUMBRES DEL FUTURO: SINFÍN 306
Pampa Arán (UNC)

AUTORES 323
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

APRESENTAÇÃO
Bárbara Maia das Neves

É um tanto quanto irônico que, ainda que muito se consuma ficção


científica (FC) em plataformas de streaming, principalmente sob a forma
de seriados e filmes, esse gênero continue sendo relegado a um patamar
inferior, como se fosse um mero entretenimento para quem não deseja
“gastar muitos neurônios”. Se pararmos para pensar, o mesmo ocorre com
os outros gêneros que buscam abrigo na casa dessa acolhedora mãe, a
Senhora Literatura Fantástica.
A ironia persiste mesmo quando obras que vão desde a trilogia
O Senhor dos Anéis (2001-2003) até o seriado The Handmaid’s Tale
(2017-) alcançam sucesso de público e de crítica, mas poucas delas são
efetivamente levadas a sério pela academia, seja no universo das artes
visuais ou da literatura.
Enfim, este prefácio não é espaço para lamúrias, mas para comemorar
a resistência! Mesmo com os revezes, é gratificante ver que a ficção
científica, que é o centro deste texto, está encontrando seus lugares nos
corações de um público que, como disse, em sua maioria pode ainda vê-
la só como entretenimento, mas já desenvolve uma apreciação. Percebo
tal evento com bons olhos, pois eu mesma não comecei a apreciar FC já
lendo Wells ou Asimov. Meus primeiros passos foram com vários filmes
de gosto mais que duvidoso dos anos 1980, com (d)efeitos especiais de
quinta categoria, mesmo para a época, e histórias que fariam qualquer
autor decente ficar vermelho de vergonha. Como exemplo, posso citar A
Coisa (The Stuff, 1985, dir. Larry Cohen).

8
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Sendo assim, seguindo por esta vertente mais otimista, percebo que
vários autores ao redor do mundo estão se dedicando à FC. No Brasil não
é diferente. Existem canais em redes sociais dedicados a levar ao público
leigo explicações acessíveis e a apresentar-lhes novos nomes, novas
correntes, audaciosamente indo aonde quase ninguém quer ir. Com isso,
percebo também um aumento na produção autoral aqui no país. Vejo
novos escritores surgindo com boas ideias, jogando-se no mar da internet
para divulgar seu trabalho, e alguns com bons resultados, como foi o caso
da série brasileira transmitida pela plataforma Netflix® 3% (2016-2020).
Com isso, a academia também passou a dar espaço estudos voltados
para FC. Trabalhos de conclusão de cursos de graduação, dissertações
e teses abordando a temática começaram a se tornar mais visíveis, e
compêndios, antologias e coletâneas de contos ou de artigos, como este,
passaram a ter um maior destaque dentro do mundo literário.
Todavia, antes de apresentar as queridas pessoas que vieram dar
sua contribuição para este bebê tão cuidadosamente gerado por Marisa
Martins Gama-Khalil, Flavio García e David Roas, ao estilo de família de
três pais de Marge Piercy, no seu Woman on the Edge of Time (1976),
algumas considerações de ordem mais técnica se fazem necessárias.
A primeira delas seria levar a pensar a questão sobre o que é ficção
pós-apocalíptica. Richard K. Emmerson debate como a noção de fim de
mundo já fazia parte de várias religiões, mas foi com aquelas de vertentes
judaico-cristã e islâmica que adquiriu seu valor mais sombrio. Mais tarde
o mundo secular/científico se apodera do termo ao levantar o ponto da
entropia, que pode levar o universo a uma paralisia final da qual não se
poderá escapar. Mas são a literatura e, posteriormente, o cinema que
vão dar o toque final ao trazerem para o fim do mundo vários outros
motivos, como guerras, epidemias, ambição humana, crises ambientais,
entre outros.

9
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

No entanto, este fim de mundo não pode ser total, senão não haveria
as narrativas pós-apocalípticas. Segundo Diletta de Cristofaro (2013), o
que ocorre é o fim de um mundo, com o subsequente geralmente sendo
bem pior para os que ficaram para trás, tendo que lutar para garantir a
sobrevivência. Em geral, o que se vê é que a Humanidade vai ter que lidar
com os restos e refugos de uma vida que, aparentemente, não tem mais
como retornar. Ainda que existam, poucas narrativas pós-apocalípticas
chegam a trazer uma promessa de um mundo melhor. Por exemplo, no
primeiro episódio da série Jornada nas Estrelas: a Nova Geração (1987-
1994), ao serem julgados pela entidade intergaláctica conhecida como
Q, o Capitão Picard lembra seus amigos de que a humanidade passou
por um apocalipse sim, e viveu de modo bárbaro durante muito tempo,
mas que conseguiram emergir das cinzas e se unirem em prol de uma
sociedade melhor, mais justa e solidária. Porém, isto está mais para
exceção do que para a regra.
Outro ponto que merece atenção é a própria questão da distopia.
É muito comum que as pessoas achem que distopias são histórias
necessariamente pós-apocalíticas. Mas isso não é bem verdade, histórias
pós-apocalípticas podem ser distópicas ou não. Raffaella Baccolini e
Tom Moylan (2003) discorrem sobre o caráter profético e desastroso
das sociedades distópicas na sua obra Dark Horizons, mas nem sempre
elas são obrigatoriamente sociedades pós-apocalípticas. Para John Clute
e Peter Nicholls (1992), a principal característica da distopia é ser uma
sociedade estruturada na opressão de um grupo tomado por “inferior”
por outro tudo considerado “elite”. Por exemplo, em Fahrenheit 451
(1953), de Ray Bradbury, não se tem notícia de nenhuma grande guerra ou
destruição cataclísmica que fizesse com que a sociedade ficasse daquele
modo, apenas a acomodação das pessoas já foi o suficiente.
Ainda assim, o que tanto a narrativa pós-apocalíptica quanto a
distopia claramente compartilham é esta visão de alerta e preocupação

10
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

com o futuro. Seja pelo fundamentalismo religioso de The Handmaid’s


Tale, de Margaret Atwood; pela crise epidemiológica de Eu Sou a Lenda, de
Richard Matheson; ou pela devastadora guerra de proporções mundiais
de O Livro de Eli (The Book of Eli, 2010, dir. Albert e Allen Hughes), sempre
fica o tom de alerta para que, se nada for feito agora, o futuro não será
tão idílico quanto se desejaria.
Apenas por uma questão de organização, este livro foi dividido
em dois blocos: um com as contribuições de autores brasileiros e outr
com nossos amigos de língua espanhola. Apesar disso, é interessante
perceber como cada grupo parece se dedicar mais a determinados
temas do que o outro. Enquanto os escritores brasileiros parecem
mais preocupados em investigar como a própria cultura lusófona (em
especial a brasileira) lida com a questão do apocalipse, eles também não
esquecem de abordar os mestres, como H.P. Lovecraft; por outro lado,
os companheiros de língua espanhola debatem bastante esta forma de
narrativa dentro do mundo hispânico, dos dois lados do oceano, mas
fazendo correlações com autores de língua portuguesa, como Caio
Fernando Abreu e Isa Prospero.
O primeiro capítulo, de Zênia Faria e Rebecca Tipple, trata do
apocalipse à brasileira. Ao abordar a visão de Eduardo Spohr em seu A
Batalha do Apocalipse, as duas autoras mostram uma ampliação do texto
bíblico, com Spohr se utilizando do fim do mundo como uma paródia para
problemas da atualidade. A batalha entre Ablon e Miguel revela facetas
que destoam dos estereótipos atribuídos a anjos e arcanjos.
O segundo texto é de Ramiro Giroldo. Ao trazer à luz o maravilhoso
conto de André Carneiro, “Na mira da espingarda”, Giroldo nos faz
perceber a luta pela sobrevivência daquele que, até então, se julgava o
último ser humano na face da Terra. Ao ser confrontado com o que parece
ser mais um sobrevivente, Carneiro e Giroldo nos levam a confrontar a
condição humana, com suas necessidades básicas e grandes medos.

11
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

O próximo ensaio nos mostra a figura folclórica do “corpo seco”.


Marcio Markendorf aborda Umberto Eco e o que este chama de “tempo de
trepidação”, ou seja, o desenrolar das coisas, retardando o fim absoluto ao
máximo. Ao se prender mais ao que acontece antes e depois, Markendorf
também aproxima o apocalipse de nós ao abordar questões voltadas à
pandemia da covid-19.
A seguir, vamos atravessar o oceano com Flavio García e ver o
apocalipse na companhia de Mia Couto. Com seu olhar sagaz, Couto
denuncia mazelas não só de Moçambique como da África em geral. Mais
uma vez, a ficção se aproxima de nós, pois o conto abordado por García,
“O gentil ladrão”, foi publicado em abril de 2020, ou seja, com a pandemia
da covid-19 fazendo parte da ficção. Além disso, Couto não se utiliza de
elementos sobrenaturais ou alienígenas, tornando a situação ainda mais
próxima do leitor.
Marisa Martins Gama-Khalil e Léa Evangelista Persicano lançam
outro olhar para a ficção pós-apocalíptica: o feminino. As autoras dão
voz às mulheres que escreveram/escrevem obras sobre o fim do mundo,
reconhecendo uma participação que começou a aumentar já na segunda
metade do século XIX. Na visão de Gama-Khalil e Persicano, se o apocalipse
provoca, de modo geral, uma sensação de vazio, as vertentes da narrativa
feminina revelam um desejo de criação e de preenchimento desse vazio.
Alexander Meireles da Silva aborda a ficção pós-apocalíptica weird de
William H. Hodgson em seu A Terra da Noite. Aqui temos um reflexo do
decadentismo fin de siècle vitoriano, com seu interesse pelo sobrenatural,
pelo oculto e por monstros; e a destruição dentro da narrativa extrapola
o corpo físico, causando inclusive a destruição do espírito e trazendo
desespero aos poucos sobreviventes humanos.
Cido Rossi encerra o grupo de autores nacionais e nos brinda com um
mestre: H. P. Lovecraft e uma de suas obras mais conhecidas: “O Chamado de

12
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Cthulhu”. Rossi trabalha a visão possível do apocalipse, não tanto o evento em


si. Afinal, como o próprio conceito de “verdade”, o de “fim do mundo” não
apresenta uma existência plena, delineada e fechada; mas sim o fato de que
ela acaba sendo validade pelo que se passa antes ou depois dela.
O primeiro de nossos amigos de língua espanhola é Alfons
Gregori, envolvendo outras mídias na conversa, ao abordar o seriado
La Valla, disponível também para o público brasileiro em plataformas
de streaming. Trata-se de um seriado que fala da Madri do futuro,
que Gregori nos apresenta como a narrativa do apocalipse, com suas
implicações ideológicas, espaciais e histórias, além do consumo desse
tipo de material audiovisual.
Ariel Gómez Ponce segue falando de representações audiovisuais
do apocalipse. Só que neste caso o texto se concentra mais na figura
do zumbi e de sua participação no final dos tempos. Ao se debruçar
especificamente sobre a série americana The Walking Dead, ele fala de
como o programa expõe um cenário desesperador da condição humana
utilizando-se de toques de gore e de horror.
Já Ruben Sanches Trigos vai se envolver mais com o cinema e a
evolução nos estudos cinematográficos. Se, antes, o filme era analisado
por si só, agora ele também recebe influências de onde foi feito e de
quando. Ao abordar obras cinematográficas mais recentes que seguem
a temática de fim do mundo, o autor aborda pontos como colapsos de
sistemas econômicos e morais e como eles afetam as populações.
Os próximos dois artigos promovem diálogos com autores brasileiros.
O primeiro, de Elton Honores, articula o autor uruguaio Hugo Bolón
com Caio Fernando Abreu. Seu texto observa como os dois escritores
apresentam ambientes extremamente contaminados. Eles se servem
de figuras para representar as reais ameaças que vivemos no mundo
contemporâneo, as quais podem concretizar o fim das estabilidades
social e planetária.

13
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Lucía Leandro Hernández também nos agracia com uma combinação


ao fazer uma análise da obra da brasileira Isa Prospero com a da
salvadorenha Jacinta Escudos. Tal qual Gama-Khalil e Persicano no bloco
brasileiro, Leando Hernández fala de como a escrita feminina foi, durante
muito tempo, relegada a segundo plano. Sendo que, aqui, Prospero e
Escudos são lembradas pela produção de narrativas pós-apocalípticas que
denunciam o abuso de recursos naturais e humanos e como isso pode vir
a afetar o planeta.
O próximo texto, de Mariano Martín Rodríguez, começa com termos
como high fantasy e subcreation, citando J.R.R. Tolkien como exemplo,
e segue o como estes cpodem ser trazidos para o imaginário do final do
século XIX e suas histórias sobre o fim dos tempos. Martín Rodríguez
relata a importância de ruínas para demonstração do final de qualquer
tempo histórico, seja ele real, seja ficcional.
Juan Herrero-Senés tem a intenção de investigar o que seria o chamado
espaço pós-apocalíptico, espaço-tempo, que começa com o “início do
fim”, e como prováveis sobreviventes lidam com essa nova configuração
social, que se trata de algo totalmente novo para quem o habita. Herrero-
Senés fala de um belo sinal de esperança ao mostrar como esse novo
tempo pode ser uma chance de recomeço, de desatar nós. Tudo depende
do que os sobreviventes fazem com o que lhes foi passado.
Para encerrar, temos Pampa Arán. A autora nos apresenta a obra
satírica Sinfín, de Martín Caparrós, que pode, a princípio, parecer um
mero entretenimento. Contudo, é justamente analisando o caráter
despretensioso da obra que Arán pretende defender a ideia de que
Caparrós mostra como o futuro nada mais é do que o resultado do que
se faz hoje.
Espero que a leitura desses textos seja bastante agradável e que
permita conhecer, aprender, divertir-se e, principalmente, refletir com
este material de tão boa qualidade.

14
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Referências
ATWOOD, Margaret. A história da aia. Tradução de Márcia Serra. São Paulo:
Marco Zero, 1987.
BACCOLINI, R., MOYLAN, T. (Ed.). Dark Horizons: Science Fiction and the
Dystopian Imagination. London: Routledge, 2003.
BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. Tradução de Cid Knipel. São Paulo: Globo, 2003.
CLUTE, John & NICHOLLS, Peter. The Encyclopedia of Science Fiction. Nova
Iorque: St. Martin’s Griffin, 1992.
CRISTOFARO, Dilleta de. The representational impasse of post-apocalyptic fiction:
The Pesthouse by Jim Grace. Saggi/Ensayos/Essais/Essays, n. 9, p. 66- 80, 2013.
EMMERSON, Richard K. Apocalypse Illuminated: The visual exegesis in medieval
illuminated manuscripts. Pennsylvania: Pennsylvania State University Press, 2018.
MATHESON, Richard. Eu Sou a Lenda. Tradução de Delfin. São Paulo: Aleph, 2015.
PIERCY, Marge. Woman on the Edge of Time. Nova Iorque: Fawcett Columbine,
1997.

15
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

A BATALHA DO APOCALIPSE: A APROPRIAÇÃO DO


MITO BÍBLICO NA CRIAÇÃO DE UMA
NARRATIVA DE FICÇÃO
Zênia de Faria
Rebeca Tipple

A Bíblia é, sem dúvida alguma, uma obra de grande relevância para o


nosso imaginário, independentemente do que pensemos ou acreditemos
a respeito dela. Uma das provas disso é o fato de artistas de diferentes
domínios terem utilizado diversos aspectos de tais escrituras como ponto
de partida para suas criações artísticas. Este é o caso do romance A Batalha
do Apocalipse: da queda dos anjos ao crepúsculo do mundo de Eduardo
Spohr (2007), que examinaremos neste estudo, que tem como objeto a
maneira como Spohr se apropria do mito bíblico do fim do mundo – isto
é, o Apocalipse – para a criação de sua própria narrativa, como veremos
neste artigo.
De acordo com o Dicionário Digital do Insólito Ficcional, no verbete de
autoria de Ariel Gómez Ponce (2019), ficções pós-apocalípticas referem-
se “ao conjunto de narrativas dedicadas a imaginar as consequências
de cataclismos mundiais”. Ponce explica que para alguns mitólogos,
como Viacheslav Ivanov (2002), o interesse pela literatura apocalíptica
geralmente cresce em tempos de crise. Percebemos como isso ocorreu
após a Primeira Guerra Mundial e tem ocorrido agora, devido às inúmeras
crises sociopolíticas, econômicas e religiosas que estamos vivendo. Isso
acontece porque permite que as culturas tornem inteligíveis ansiedades
e medos que circulam em seu imaginário. Outro motivo para este

16
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

crescimento é a intensificação do tema nas diversas fontes de inspiração


e de divulgação que temos na atualidade: o cinema, os quadrinhos, os
jogos de videogame, e, como é o caso do romance em estudo, segundo
declaração do próprio autor, os jogos de RPG1.
A esse respeito, achamos oportuno lembrar que a obra em questão
foi publicada, inicialmente, no site Jovem Nerd, em 2007, onde teve
uma enorme quantidade de visualizações e pedidos para que ela fosse
impressa. Atualmente, o livro se encontra em sua 67ª edição, tendo
sido um sucesso absoluto de vendas desde os primeiros anos de seu
lançamento, tornando-se um best-seller durante os cinco primeiros anos
de venda. Até o presente momento, já foram vendidos mais de 260 mil
exemplares do romance.
Embora Spohr se baseie em textos bíblicos para a criação de sua
narrativa, um dos seus diferenciais, e que talvez explique a grande recepção
de sua obra por jovens leitores, é o fato de ele transformar o universo
bíblico no qual se apoia em uma grande aventura, em que personagens
bíblicas são transformadas em heróis, anti-heróis, vilões e seres fantásticos
que se confrontam e vivem ao longo dos séculos. Para isso, ele conecta
tanto passagens bíblicas entre si, como expande tais passagens criando um
futuro que antecede o fim do mundo e o fim dos tempos.
Resumidamente, A Batalha do Apocalipse: da queda dos anjos ao
crepúsculo do mundo tem como protagonista um anjo renegado, Ablon,
que foi expulso do paraíso e aprisionado na terra, na condição de homem,
por ter se revoltado contra o Arcanjo Miguel – o Príncipe dos Anjos que
governa o mundo –, enquanto Deus (Yahweh) descansava durante o
Sétimo Dia após a criação do Universo. Pelo fato de os anjos terem inveja
dos homens por seu livre arbítrio, pela capacidade de sentirem o que eles

1 Na entrevista concedida a nós em 12 de junho de 2018 via Skype. A entrevista


completa encontra-se anexada à nossa Dissertação de Mestrado, onde analisamos a
apropriação de diversos mitos bíblicos presentes no romance de Spohr.

17
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

não conseguem e, principalmente por possuírem alma, Miguel sentencia


o fim da raça humana através de um dilúvio, por não concordar com o
que os humanos haviam se tornado e por ciúmes do amor de Deus por
“criaturas feitas de barro”. Por discordar da decisão de Miguel, Ablon,
anteriormente seu braço direito, e também um querubim – casta de
anjos inferior à dos arcanjos junta-se ao irmão de Miguel, o arcanjo
Lúcifer para tentar salvar a raça humana. Contudo, Lúcifer trai Ablon,
e este, juntamente com mais dezessete anjos são expulsos do paraíso
e aprisionados em seus avatares terrestres. Miguel, então, ordena que
cada um dos dezoito anjos renegados seja caçado e morto. Um por
um, todos os companheiros de Ablon perecem, e ele torna-se o único
renegado sobrevivente. Assim, o livro relata a jornada de Ablon na
Terra, por meio de uma narrativa anacrônica contada em flashbacks –
seja por um narrador heterodiegético omnisciente, seja pelo próprio
protagonista, através de suas memórias. Em tal jornada, acompanhamos
o protagonista vivendo desde as ruínas da Babilônia até o Rio de Janeiro
nos dias atuais, passando pelo Império Romano, pelas planícies da China
e pelos castelos da Inglaterra medieval. No fim do Sétimo Dia, Yahweh
despertará de seu sono e trará sobre a terra o Juízo Final, consolidando
assim o Apocalipse e o fim dos tempos.
Uma vez que a obra em questão é não apenas protagonizada por
seres celestiais bíblicos, mas também foi desenvolvida a partir de diversos
mitos presentes ao longo de todas as Sagradas Escrituras, a nosso ver,
é possível categorizá-la, de acordo com os pressupostos de David Roas
(2014), como parte do maravilhoso cristão, que, por sua vez, faz parte do
modo fantástico.
Em oposição à abordagem do fantástico como gênero – aspecto
teorizado por Tzvetan Todorov (2014) –, Marisa Gama-Khalil explica
no Dicionário Digital do Insólito Ficcional que a abordagem modal “é
defendida por teóricos que compreendem a ficção fantástica por uma

18
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

visão que privilegia não somente as diferenças mas as similitudes” (2019,


online). O português Filipe Furtado afirma que a noção do fantástico como
modo já havia sido apontada por certos teóricos, inclusive alguns cujos
estudos foram fundamentais como apoio teórico para este artigo, como
Gérard Genette e Northrop Frye, embora com outras denominações.
Segundo Furtado, no E-dicionário de Termos Literários,
o modo fantástico [...] abrange pelo menos a maioria
do imenso domínio literário e artístico que, longe
de se pretender realista, recusa atribuir qualquer
prioridade a uma representação rigorosamente
‘mimética’ do mundo objectivo. Recobre, portanto,
uma vasta área a muitos títulos coincidente com a
esfera genológica usualmente designada em inglês
por fantasy. (2011, online)

O modo fantástico, portanto, abrange diversas áreas literárias


tais como: a ficção científica, o maravilhoso, o estranho e o fantástico
propriamente dito teorizado Todorov. Mas também engloba áreas
menos conhecidas, que, como já dissemos, é o caso do maravilhoso
cristão. De acordo com o teórico David Roas (2014), o maravilhoso
cristão é caracterizado por ser uma forma híbrida entre o fantástico e o
maravilhoso. Para ele,
[n]esse tipo de narrativa, o aparentemente fantástico
deixaria de ser percebido como tal uma vez que se refere
a uma ordem já codificada (neste caso, o cristianismo),
o que elimina toda a possibilidade de transgressão
(os fenômenos sobrenaturais entram no domínio da
fé como acontecimentos extraordinários, mas não
impossíveis). Isso explica outra das características
fundamentais desse tipo de narrativa: a ausência de
espanto no narrador e nos personagens. (2014, p. 37-38)

Isto posto, passaremos agora a desenvolver a temática do presente


artigo: primeiramente faz-se necessária a justificativa da escolha do

19
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

termo “mito” usado para nos referirmos ao Apocalipse. Em seguida,


apresentaremos alguns procedimentos transformacionais propostos por
Genette (1982), que identificamos na obra de Spohr, a fim de justificar de
que forma o autor se apropria do mito do Fim dos Tempos para a criação
de sua própria narrativa. Por fim, demonstraremos a maneira como o
autor o fez.
Contrariamente às definições de mito encontradas em alguns
dicionários, Northrop Frye em The Great Code afirma que associar a
palavra mito a algo não verídico, embora seja comum, é um vulgarismo,
pois afirmar isso presume que somos capazes de julgar o que é fato e o
que não é (1984, p. 32). Em sua posição de crítico literário, ele afirma que
um mito é, primeiramente, uma narrativa, ou uma sequência ordenada
de palavras. Em uma definição mais restrita, ele declara que mitos são
histórias que contam a uma sociedade o que é importante que ela saiba,
sejam elas acerca de seus deuses, de sua história, de suas leis ou de suas
estruturas de classe social (1984, p. 33). De acordo com ele, afirmar que a
Bíblia conta uma história é o mesmo que afirmar que a Bíblia é um mito.
Por esta razão, para tratar do mito bíblico do Fim dos Tempos presente no
romance de Eduardo Spohr, nos ateremos à concepção de mito proposta
por esse teórico.
Frye (1971), em seu artigo “Littérature et mythe”, afirma que
todas as sociedades possuem mitos próprios, e é raro que elas tenham
consciência disso, pois, muitas vezes, um mito é entendido como algo
“recebido”, dito por alguma divindade em um tempo longínquo e
desconhecido. No que tange à função de um mito, o autor, no mesmo
artigo, afirma que “um mito tem a função social de racionalizar o status
quo: não só explica por que estamos agindo de certo modo, mas por que
devemos continuar a agir assim” (FRYE, 1971, p. 490, tradução nossa).
O mito tem fundamentalmente uma função social: a comunicação
verbal de uma sociedade numa vasta gama de histórias; algumas delas

20
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

afetando a sociedade mais do que outras, por carregarem um maior


significado funcional para ela. Algumas dessas histórias tornam-se
“sagradas” e são separadas das histórias “profanas” e, segundo Frye, essa
distinção pode não acontecer em sociedades primitivas, mas elas são
estabelecidas mais cedo ou mais tarde e podem persistir por séculos. O
autor enfatiza que:
[n]a Europa Ocidental, as histórias bíblicas tinham um
significado mítico central desse tipo até pelo menos
o século XVIII. Mítico, neste sentido secundário,
significa o oposto de “não verdadeiro”: significa ser
carregado de uma seriedade e importância especiais.
Histórias sagradas ilustram uma preocupação social
específica; histórias profanas estão relacionadas a
uma preocupação social muito mais distante: às vezes,
pelo menos em sua origem, elas não têm preocupação
social alguma. (1984, p. 33, tradução nossa)

No caso das histórias bíblicas, grande parte delas carrega um grande


significado social, cultural e muitas vezes ideológico, principalmente
nas parábolas de Jesus. Essas são, segundo Frye, exemplos clássicos de
situações que encontramos de mitos dentro de outros mitos. O referido
autor explica que, após o surgimento da linguagem metonímica, mitos
são frequentemente usados como ilustrações de argumentos abstratos,
ou, em outras palavras, alegorias, como fazia Platão. Segundo ele, “uma
mitologia enraizada em uma sociedade específica transmite o patrimônio
da alusão compartilhada e da experiência verbal no tempo e, portanto, a
mitologia ajuda a criar uma história cultural” (FRYE, 1984, p. 34).
Como verificamos a presença de diversos mitos bíblicos na obra de
Spohr, dos quais o autor se apropria, veremos de que maneira ele os
modifica. Isso será estudado a partir de proposições teóricas propostas
por Affonso Romano de Sant’Anna (1985) e principalmente por Gérard
Genette (1982), como veremos a seguir.

21
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

O teórico Affonso Romano de Sant’Anna (1985), em seu ensaio


Paródia, paráfrase e cia, explica que os conceitos de paródia, paráfrase e
estilização são relativos ao leitor, ou seja, dependem do receptor. Se o leitor
não reconhece a obra original – o hipotexto –, a obra dele gerada pode
parecer apenas uma série de disparates. Em outras palavras, a estilização, a
paráfrase, a paródia e a apropriação são recursos percebidos por um leitor
mais informado: “É preciso um repertório ou memória cultural e literária
para decodificar os textos superpostos”, afirma Sant’Anna (1985, p. 26).
Das derivações da paródia que nos dizem respeito, a mais importante
para o estudo intertextual da Bíblia com A Batalha do Apocalipse, é a
apropriação. Esta seria, de acordo com Sant’Anna, uma paródia levada ao
extremo, ao exagero máximo. O artista que utiliza a apropriação parte de
um material já produzido por outro, extornando-lhe o significado. O que
caracteriza a apropriação, de acordo com Sant’Anna, é a “dessacralização”
(1985, p. 46), que é justamente o que Spohr faz em seu romance. O teórico,
assim, exemplifica a noção de apropriação:
[h]á uma reificação da obra: um modo de transformar
a obra do outro em simples objeto e material para
que eu realize a minha. Por exemplo, quando Salvador
Dali toma a famosa Mona Lisa de Leonardo da Vinci e
pinta-lhe uns bigodes, está se apropriando de um signo
cultural e invertendo-lhe satiricamente o significado.
(SANT’ANNA, 1985, p. 47)

No caso de Spohr, a dessacralização se dá pela retomada de elementos


da Bíblia, aparentemente, sem nenhuma intenção dogmática. Aliás, o
autor, na entrevista que nos concedeu, explica que a religião em si nunca
foi o foco de seu interesse, e sim a trajetória das personagens bíblicas,
que, muitas vezes, refletem o nosso próprio percurso. Por isso, o autor
retira elementos de um texto considerado sagrado e se apropria deles,
transferindo-os para uma nova história de sua autoria.

22
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Isto posto, trataremos agora de um exame de alguns procedimentos


transformacionais propostos por Genette (1982) em Palimpsestes. Em
primeiro lugar, o teórico apresenta a transposição, que pode se aplicar
a obras de vastas dimensões – o autor cita Fausto e Ulisses como exemplo
– cuja amplitude textual e ambição estética e/ou ideológica chegam
a mascarar seu caráter hipertextual (GENETTE, 1982, p. 237). Obras
transposicionais são obras carregadas de operações e procedimentos
transformacionais. Entre tais procedimentos, estão as transformações
quantitativas. Uma obra hipertextual pode apresentar dois tipos de
transformações quantitativas: ela pode tanto reduzir a obra original,
quanto ampliá-la. No caso dos mitos bíblicos presentes em A Batalha
do Apocalipse, Spohr utiliza técnicas tanto de redução quanto de
ampliação, embora a segunda seja usada numa escala imensamente
maior do que a primeira.
Entre as formas de ampliação, Genette elucida as definições de
extensão, de expansão e de ampliação. O primeiro tipo de ampliação
proposto pelo teórico, – a extensão – corresponde ao aumento por adição
maciça, ou seja, adição de episódios, cenas e personagens (GENETTE,
1982, p. 298). O segundo tipo é a expansão, onde o aumento não se
dá por meio de uma adição maciça, mas sim por uma adição estilística.
Genette explica que “este procedimento consiste em dobrar ou triplicar
a extensão de cada frase do hipotexto” (1982, p. 304, tradução nossa).
As extensões feitas na expansão são exploração de detalhes por meio
de descrições e animações. Dentre as transformações quantitativas
teorizadas por Genette em Palimpsestes, a mais relevante utilizada por
Spohr é a ampliação, que inclui as duas anteriores, ou seja, a extensão
e a expansão.
Estabelecidas as proposições teóricas necessárias para a análise do
mito do Apocalipse no romance de Spohr, veremos agora de que maneira
o autor as usa para a criação de sua narrativa.

23
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

O termo Apokalypsis, do grego, significa “revelação” ou “desvelamento”.


Sendo assim, o livro é uma revelação que diz respeito ao objetivo final
da história do universo. Usando imagens visuais, além de promessas e
advertências verbais, entrelaça temas de toda a Escritura. Um dos aspectos
mais proeminentes do livro é a apresentação das farsas satânicas que se
opõem a Deus numa guerra espiritual de proporções cósmicas.
De acordo com Frank Kermode e Robert Alter no Guia literário da Bíblia,
[o] Apocalipse é sempre uma literatura de crise;
o passado conhecido se encaminha para um fim
catastrófico, o futuro desconhecido está sobre nós;
estamos situados, como ninguém antes, precisamente
no momento do tempo em que o passado pode ser
visto como um padrão, e o futuro, amplamente previsto
nos números e imagens do texto, começa a assumir
contornos exatos. É difícil ver como se pode estudar
tal livro sem considerar as interpretações que ele
provocou; é incompleto sem elas, uma coleção estranha
de interpretações e, por ser literalmente inspirado,
oferece sempre não apenas mistérios, mas também a
possibilidade de finalmente fazer sentido. (1997, p. 414)

Os intérpretes da Bíblia discordam com relação ao período de tempo


e à maneira em que as visões presentes no livro são cumpridas. Os
“preteristas” pensam que o cumprimento ocorreu na queda de Jerusalém,
na queda do Império Romano, ou em ambos. Os “futuristas” acham que
tal cumprimento ocorrerá num período final, pouco antes da segunda
vinda de Cristo. Os “idealistas” pensam que as cenas do Apocalipse não
descrevem eventos específicos, mas princípios de guerra espiritual.
No romance de Spohr, a principal parte da narrativa se desenvolve
em um “futuro próximo”, nas iminências da guerra final, isto é, da guerra
que destruirá o mundo e concretizará o fim dos tempos. No trecho que
veremos a seguir, o narrador contextualiza o leitor dando um panorama

24
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

geral da situação política do mundo no momento que antecede o


Apocalipse. Apesar de longa, entendemos que esta citação é fundamental
para a compreensão do contexto do fim do mundo no romance:
[o] guerreiro [Ablon] estivera, por semanas, analisando
os periódicos e buscando ligações entre os fatos recentes
e as velhas profecias. Infelizmente, reconhecera os
paralelos e notara os sinais. Os sinais do Apocalipse.
[...] Foi assim que, pela primeira vez, percebeu os sinais,
os indícios que confirmavam os últimos dias da terra.
Começou com aquilo que os profetas chamaram de
“cavaleiros do Apocalipse”. Não houve cavaleiro de
fato nem entidades montadas que personificassem a
previsão. Mas o renegado podia percebê-los nas guerras
no Oriente Médio, nas crianças famintas da África, nas
epidemias, nos falsos videntes e em todo lugar onde a
morte arrastava seu manto. Depois, a situação mundial
se degradou, e isso nada teve a ver com as forças infernais
ou celestes. No início do século XXI, a crise econômica
mundial voltou a fomentar o expansionismo das grandes
potências, a exemplo do que acontecera em fins do
século XIX. Os Estados Unidos da América, abalados
por problemas políticos e financeiros, buscavam
expandir seus territórios de influência, invadindo e
ocupando dezenas de países menores. Após a invasão
do Afeganistão, os americanos avançaram para o Iraque
e depois continuaram a operação, ocupando a Síria,
O Irã e a Líbia, sempre sob o pretexto de autodefesa.
Acusavam levianamente seus inimigos de deter arsenais
de armas químicas, biológicas e nucleares, argumentos
que quase sempre eram refutados pelos inspetores das
Nações Unidas. Fixando o domínio sobre esses países,
os estadunidenses fecharam o cerco ao Oriente Médio,
estabelecendo bases sólidas para suas operações na
Ásia. Para assegurar o contingente de tropas nas regiões
ocupadas, os EUA selaram um pacto de cooperação com
os principais países da Europa, encabeçados pela Grã-

25
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Bretanha, Itália e Alemanha. Assim criou-se a chamada


Liga de Berlim, em alusão ao nome da capital que
abrigou os chefes de Estado durante a conferência que
formalizou o acordo. Surgia, porém, a necessidade de
implantar um posto de operações no Oriente, e o marco
escolhido foi Taiwan, cujo governo aceitou de bom
grado o capital investido pelos patronos ocidentais.
Mas a aliança com a ilha não passou despercebida
aos olhos da China e da Coreia do Norte, nações que,
assim como os Estados Unidos, desejavam expandir
suas áreas de influência e dominar mercados. Os dois
países exigiram a evacuação das empresas ocidentais de
Taiwan, e a recusa levou ao primeiro grande conflito do
século XXI, a Guerra dos Trezentos Dias, que vitimou em
apenas um ano cerca de três milhões de pessoas, entre
militares e civis, e terminou com a vitória do Oriente.
A Liga de Berlim foi obrigada a deixar a ilha, e desde
então os dois blocos trocam hostilidades, como uma
panela de pressão prestes a explodir. A China e a Coreia
do Norte entenderam que eram os principais alvos da
Liga e decidiram pela expansão. Em uma campanha
sem precedentes na história da humanidade, os dois
exércitos invadiram o Japão sem disparar um só tiro e
ocuparam todo o arquipélago, na chamada Ofensiva
dos Dois Exércitos. Fecharam acordos de cooperação
com a índia, Mongólia, Tailândia, Malásia, Indonésia
e Filipinas, mas o golpe final ainda estava por vir.
Descontentes com a miséria crescente após o fim do
comunismo, os russos abraçaram com todas as forças
a causa chinesa, e o país se uniu ao bloco do leste,
formando a Aliança Oriental, que recebeu, em poucos
meses, adesões de algumas ex-repúblicas soviéticas.
Preocupados com a perda de soberania, os americanos
conseguiram, depois de inúmeras conversações, o
apoio do Canadá e da preciosa Oceania, e continuaram
sua política expansionista, invadindo Cuba e Panamá.
Um novo confronto entre os dois blocos estourou

26
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

na Turquia, único país muçulmano aliado à Otan, a já


desfeita Organização do Tratado do Atlântico Norte.
O governo turco se dividiu, dando origem a dois
partidos que pegaram em armas e transformaram
Ancara em um mar de sangue, afundando a nação
em uma guerra civil. Cada uma das potências enviou
armas e tropas. Para a Liga de Berlim, era imperativo
deter o controle da Turquia, para que pudesse fazer
uma ponte com os países ocupados do Oriente Médio.
A Aliança Oriental, por sua vez, sabia que, se os
inimigos tomassem a capital, se abriria uma frente de
invasão pelo sul. Estava, então, armado o palco para
um conflito mundial. De um lado, a Liga de Berlim,
formada pelos Estados Unidos e a Europa; de outro, a
Aliança Oriental, liderada pela China, Coreia do Norte
e Rússia. E no meio desses dois blocos conservavam-se
neutros os países pobres da África e da América Latina,
agora mais preocupados em defender as próprias
fronteiras. Foi nesse contexto calamitoso que os sinais
se tornaram mais claros. Ablon sabia que um embate
dessas proporções culminaria em um confronto
atômico, e não via salvação para a humanidade caso
isso acontecesse. (SPOHR, 2014, p. 41-42)

Percebemos de que modo o autor justifica o fim dos tempos partindo


de problemas presentes no panorama político real do mundo em que
vivíamos quando a obra foi escrita. Algumas das situações reais citadas
no romance são: as guerras no Oriente Médio; as crianças famintas da
África; as epidemias; a ocupação dos Estados Unidos nos países menores,
principalmente no Oriente Médio com a alegação de que eles estariam
fabricando armas químicas, biológicas e bombas nucleares, sob o pretexto
de autodefesa. A partir deste ponto, Spohr, ao ultrapassar o tempo no
qual nós, os leitores, estamos situados, amplia este cenário e cria um
futuro que seria resultado da situação política atual. A aliança com a Grã-
Bretanha, Itália e Alemanha, chamada Liga de Berlim, e a ocupação da

27
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

ilha de Taiwan, fizeram com que países do oriente que também estavam
em processo de expansão respondessem criando a Liga Oriental, formada
pela China e pela Coreia do Norte. Desta forma, Spohr prevê o que seria
uma Terceira Guerra Mundial e com ela, o fim do mundo.
É interessante ressaltar que o romance de Spohr foi escrito há quase
quinze anos, quando ainda não éramos aterrorizados por ameaças como
é o caso da atual pandemia do COVID-19, que até o presente momento
já aniquilou mais de 2 milhões de vidas no mundo. Ainda assim, o autor
prevê epidemias, que sempre estiveram presentes não apenas na
história da humanidade como no nosso imaginário como uma grande
ansiedade coletiva.
Na obra de Spohr, no entanto, não apenas os homens entrariam em
guerra, mas também os seres celestiais, pois, de acordo a última citação,
“os eventos espirituais encontram reflexos no plano físico”. O mundo
espiritual e os seres celestiais também estão, nesse momento da narrativa,
nas iminências da Batalha Final.
O profeta João, no livro de Apocalipse narra que o Cordeiro abrirá
sete selos, e, a partir da abertura destes selos, sete anjos tocarão sete
trombetas. Cada selo representa uma parte dos eventos do fim do
mundo. As interpretações do que cada selo e cada trombeta representam
são inúmeras, e não temos a intenção de analisar os textos bíblicos
propriamente ditos neste artigo. Para nós, é necessário apenas que
saibamos que, tanto os termos “sete selos” e “sete trombetas”, quanto seu
significado, ou seja, a destruição gradual do mundo, foram empregados e
expandidos por Spohr.
No caso dos sete selos, sua existência é apenas mencionada no romance
como precursores das sete trombetas, assim como no livro de Apocalipse:
[q]uando o Cordeiro abriu o sétimo selo, houve silêncio
no céu cerca de meia hora. Então, vi os sete anjos que
se acham em pé diante de Deus, e lhes foram dadas

28
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

sete trombetas. [...] E houve trovões, vozes, relâmpagos


e terremotos. Então, os sete anjos que tinham as sete
trombetas prepararam-se para tocar. (Ap. 8:3-6)

Na narrativa bíblica, ao soar de cada trombeta, uma parte do mundo


é destruída. De acordo com o livro de Apocalipse, na visão de João: “O
primeiro anjo tocou a trombeta, e houve saraiva e fogo de mistura com
sangue, e foram atirados à terra. Foi, então, queimada a terça parte da
terra, e das árvores, e também toda erva verde” (Ap. 8:7).
Enquanto na Bíblia o soar da primeira trombeta é narrado em
pouquíssimas linhas, Spohr utiliza tanto a adição maciça de episódios e
personagens quanto a adição estilística dada pela animação e descrição –
ou seja, tanto pela extensão quanto pela expansão – para criar um cenário
trágico muito mais amplo de acordo com as condições do mundo atual.
Spohr associa o soar de cada trombeta a um acontecimento trágico
causado pela guerra. A Primeira Trombeta é tocada no momento em
que a primeira bomba nuclear atinge a China e devasta toda a área
metropolitana de Pequim:
— Aconteceu há meia hora – informou a jornalista. –
O míssil que atingiu Pequim levava uma ogiva de cem
megatons e devastou toda a área metropolitana. [...]
Pelo menos outras trinta localidades foram afetadas,
e a radiação já chegou à Mongólia – a apresentadora
tremia, visivelmente abalada. — Os prejuízos são
incalculáveis. A tela mostrou imagens de Washington, e
a voz seguiu em off: — Os chefes de Estado americanos
e europeus ainda não se manifestaram a respeito, mas
a Aliança Oriental afirmou ter provas de que o ataque
partiu de uma das bases da Liga de Berlim no oceano
Pacífico, e prometeu uma resposta violenta. O ministro
das Relações Exteriores... [...] A Primeira Trombeta!
– deduziu o general. [...] Os Sete Selos já haviam sido
abertos. Os sinais se esgotavam a cada instante e
levavam consigo a vitalidade do sétimo dia. Como Lúcifer

29
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

sugerira anteriormente, as Sete Trombetas, assim como


os Selos do Apocalipse, nada mais eram do que sinais,
indícios que indicavam o fim dos tempos e a proximidade
do Armagedon. A Estrela da Manhã havia comentado
sobre essas armas nucleares, mas o Anjo Renegado não
esperava que fossem usadas tão de repente, nem que a
guerra mundial dos humanos estourasse em tão poucos
dias. Ele detestava admitir, mas o Arcanjo Sombrio era
um visionário. Sua percepção das coisas, mundanas e
espirituais, era realmente incrível. Parte do mistério se
esclarecera. O barulho que o guerreiro ouvira minutos
atrás, ao tentar atacar o Anjo Negro, fora de fato o ruído
da Primeira Trombeta, uma designação antiga utilizada
por um profeta igualmente antigo para classificar o
evento. “O primeiro anjo tocou a trombeta. Granizo e
fogo, em mistura de sangue, caíram sobre a terra”, diz
a Bíblia em Apocalipse 8,7. Não fora um sopro apenas,
mas o reflexo de um rasgo permanente no tecido da
realidade, produzido quando centenas de milhares
de almas, vitimadas pela explosão, atravessaram a
membrana ao mesmo tempo. O abalo foi tamanho que
sacudiu toda a extensão da fronteira espiritual e quase
a destruiu. (2014, p. 181)

O autor do romance se apropria de um texto metafórico bíblico e


o amplia substancialmente. As personagens envolvidas em ambas as
narrativas – tanto na Bíblia como no romance – são anjos. No entanto,
tudo o que sabemos sobre eles nas passagens sobre as Sete Trombetas
no livro de Apocalipse é que serão responsáveis por tocá-las. Não
sabemos seus nomes e tampouco temos descrições ou qualquer tipo de
aprofundamento sobre tais seres. Apropriando-se dos anjos bíblicos e
utilizando a ampliação, Spohr adiciona em sua obra não apenas diversas
personagens celestiais de diferentes castas angélicas como também
introduz descrições minuciosas deles ao longo de toda a narrativa, dando
vida à sua obra.

30
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

A “Estrela da manhã”, por exemplo, é um termo que foi retirado da


Bíblia e associado à figura do diabo, devido a uma passagem no livro de
Isaías (Is. 14:12-15). Spohr se apropria desta figura associando assim o
diabo a Lúcifer – como é comum no imaginário ocidental – que, por sua
vez, é uma das principais personagens do romance.
A Segunda Trombeta, na Bíblia, é descrita da seguinte forma:
O segundo anjo tocou a trombeta, e uma como que
grande montanha ardendo em chamas foi atirada ao
mar, cuja terça parte se tornou em sangue, e morreu a
terça parte da criação que tinha vida, existente no mar,
e foi destruída a terça parte das embarcações (Ap. 8:8)

Vejamos como esta passagem é narrada no romance:


[m]esmo atrasados para seus compromissos, muitos
[homens] não conseguiam prosseguir sem antes
dar uma olhadela na primeira página dos jornais
pendurados. As manchetes de todos eles, sem
exceção, falavam sobre o ataque nuclear a Pequim
na noite anterior. A guerra mundial ainda não fora
oficialmente declarada, mas todos acreditavam
que seria em breve, com uma sangrenta resposta
oriental à ofensiva que, supostamente, partira de
um dos postos militares da Liga de Berlim no oceano
Pacífico. Os periódicos sensacionalistas alertavam
para proximidade do “fim do mundo”, enquanto os
mais moderados indicavam que certos países, os
chamados países neutros, como o Brasil, estavam fora
do eixo de combate. As páginas principais também
mostravam entrevistas com cientistas, que afirmavam
que a capacidade de destruição destas novas armas
era muitíssimo superior àquelas que devastaram
Hiroshima e Nagazaki, na Segunda Guerra Mundial.
Um só míssil seria capaz, segundo ele, de aniquilar um
país inteiro. (2014, p. 194)

31
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

A Segunda Trombeta, assim como a primeira, é sentida pelas


personagens celestiais devido ao estrondoso barulho da ruptura do
tecido da realidade:
[o]s três anjos já se preparavam para levantar, quando
uma dor terrível os acometeu. Não sabiam de onde
vinha, e diante dela ficaram inúteis. Chegou sob a forma
de um barulho estrondoso, um eco estridente que os
perfurava e os paralisava. [...] A Segunda Trombeta – os
anjos ouviram Ablon dizer, enquanto se recuperavam.
O renegado já tinha ouvido o silvo da primeira, por
isso não ficara tão impressionado. — No Primeiro
Céu, onde estávamos, o sopro não foi tão agudo –
resmungou Sieme. — O que acabamos de sentir foi
um rasgo permanente no tecido – explicou o general,
pondo algumas moedas na mesa. — A Haled está toda
permeada por ele, e é natural que o ruído seja mais forte
no mundo físico. O que vocês ouviram no Primeiro Céu
foi apenas um eco do que aconteceu aqui – concluiu,
dirigindo-se à saída. Aziel e Sieme o seguiram. — A
guerra dos humanos acaba de ser declarada. O mundo
está sendo atacado. (2014, p. 203)

— O barulho da Segunda Trombeta que ouvimos mais


cedo foi mesmo provocado por um novo bombardeio
– revelou Ablon, ao escutar a transmissão de uma
pequena TV instalada na barraca de um vendedor
ambulante. — A guerra foi oficialmente declarada. —
O que aconteceu? – quis saber Aziel. — A reportagem
diz que a Aliança Oriental respondeu à ofensiva nuclear
a Pequim lançando uma bomba sobre Nova York – a
Chama Sagrada conhecia a cidade, mas Sieme nunca
ouvira falar dela. – O segundo anjo tocou a trombeta,
e uma grande montanha abrasada foi lançada ao mar
– murmurou o general, recordando-se das palavras
de João no livro bíblico. — Não entendi a ligação –
confessou a Mestre da Mente. — Nova York é uma ilha –

32
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

esclareceu Aziel. A mulher-anjo entendeu o comentário,


mas não tinha certeza se preferia ter entendido ou não.
(2014, p. 346)

Spohr desenvolve a metáfora bíblica da montanha de fogo


lançada ao mar, no momento em que o segundo anjo toca a Segunda
Trombeta, e faz com que a imersão desta montanha, no romance, seja
referente à completa devastação da cidade de Nova York, que é uma
ilha, em virtude da bomba lançada pela Aliança Oriental. Novamente,
aqui, o protagonista se lembra dos dizeres bíblicos referentes àquele
exato momento, profetizado por João. O narrador apresenta o fim do
mundo pela perspectiva de personagens através de um diálogo entre
eles, enquanto, na narrativa bíblica, pelo fato de ser João narrando suas
próprias visões, temos um narrador autodiegético.
A Terceira Trombeta, no livro de Apocalipse, é referente à
contaminação das águas e à morte dos homens através dela:
[o] terceiro anjo tocou a sua trombeta, e caiu do céu
uma grande estrela, ardendo como uma tocha, e caiu
sobre a terça parte dos rios, e sobre as fontes das águas.
O nome da estrela era Absinto; e a terça parte das águas
tornou-se em absinto, e muitos homens morreram das
águas, porque se tornaram amargas. (Ap. 8:10-11)

No romance, o narrador, antes do soar da Terceira Trombeta, também


menciona a poluição das águas e da atmosfera, que resultam na chuva
ácida, como vemos no trecho a seguir:
— Isto não é água pura – percebeu Aziel, tocando
a roupa branca, ainda encharcada pelas gotas de
chuva. — Está misturada a vários compostos químicos
– esclareceu Ablon. A Chama Sagrada espantou-
se. — Mas a água da chuva deveria ser a substância
mais intocada de todas. — A atmosfera está tomada
pela poluição. Quando as indústrias queimam
combustíveis fósseis para produzir eletricidade, os

33
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

dejetos são lançados ao ar e se fundem às moléculas


de água. Depois, voltam à superfície da terra por
meio de precipitações, que podem ser carregadas a
grandes distâncias. Os cientistas humanos chamam
esse fenômeno de “chuva ácida”. [...] — Então, não
há regresso para a guerra dos homens, general, e
para a destruição do planeta? — No ponto a que
chegamos, não vejo mais volta – pausou e encarou,
através da janela, o horizonte azul acima das nuvens.
— Recordo-me do dia em que vi a primeira explosão
nuclear. Aquele brilho sinistro copiando os raios
do sol, o calor radioativo, e depois a fumaça negra
encobrindo a abóbada celeste. — Isso me lembra a
destruição de Sodoma. — Até agora só ouvimos o soar
de duas trombetas. Mas seu poder aumentará. Cada
vez os terrenos usarão armas mais potentes. Sabe-
se da existência de uma bomba tão forte que sua
explosão queimará a atmosfera, lançando o planeta
na escuridão nuclear. (2014, p. 363)

Assim como na Bíblia, o narrador aborda a questão ambiental da


poluição da água e da atmosfera como uma das causas do aniquilamento
da raça humana. No entanto, o que acarreta o soar da Terceira Trombeta
no romance é o lançamento de um míssil por parte da Liga de Berlim em
direção à Rússia, e, consequentemente, a destruição de grande parte dela.
Longe dali, sob as águas geladas do mar de Barens, ao
norte da Rússia, um submarino americano navegava.
Conseguira enganar o radar inimigo e agora se
aproximava da costa. A embarcação estadunidense,
com as insígnias da Liga de Berlim, já estava preparada
havia dias para uma situação como essa. Com a ofensiva
nuclear a Nova York, não seria seguro utilizar bases
fixas, daí a importância do transporte marinho. A
equipe sabia o que fazer, e o almirante ordenou que o
torpedo fosse posto a ponto de tiro. Quando disparou,
o projétil saiu do mar e voou como um míssil em direção

34
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

a Moscou. Pequim já fora arrasada, e com ela parte da


China. Agora, a Rússia era o segundo alvo prioritário.
Pouco depois, do solo, os moscovitas viram a morte
chegar, à semelhança de “uma estrela ardente a cair do
céu, como uma tocha”. A explosão abateu-se sobre a
capital, e seu raio de extensão arrasou também países
vizinhos. A oeste, partes da Bielorrússia, Ucrânia e
Letônia foram destroçadas; a leste, a devastação varreu
o Cazaquistão e sacudiu o mar Cáspio. No avião, sobre
o Atlântico Sul, Ablon, Aziel e Sieme puderam ouvir o
barulho estridente da Terceira Trombeta. (2014, p. 366)

Como vimos, o soar das três primeiras trombetas nas duas narrativas
têm alguns aspectos em comum, embora sejam poucos. Não resta dúvida
que o texto de Spohr é excessivamente mais ilustrativo que a narrativa
do livro de Apocalipse, além de não abrir espaço para interpretações, ao
contrário do texto que o originou. A partir deste ponto, Spohr afasta
sua narrativa da narrativa bíblica. Assim como as três primeiras, a
quarta, quinta e sexta trombetas, no romance, são referentes a bombas
nucleares e, portanto, à destruição de uma imensa parte da população
mundial. Ao soar de cada trombeta, Spohr se afasta mais da descrição
das trombetas do livro de Apocalipse. Nota-se, portanto, que o autor
se baseia na ideia geral de que cada trombeta corresponde a um tipo
de destruição e, a partir disso, continua a desenvolver sua história de
acordo com a sua própria imaginação.
Na Bíblia, as trombetas são metafóricas e não há uma conclusão sobre
o que cada uma das figuras associadas a elas significam. Seria necessário
uma maior compreensão desta parte do texto bíblico para uma comparação
entre as duas narrativas. No entanto, não temos a intenção de analisar os
mitos bíblicos propriamente ditos. Assim, considerando que o próprio autor
do romance se afasta do texto bíblico e, a partir de certo ponto, apenas
associa o soar de cada uma das trombetas à destruição de uma parte do
mundo, não vamos nos ocupar com a análise individual de cada uma delas.

35
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

A destruição do mundo, embora ocorra de forma gradual, é o


acontecimento máximo do romance, como sugere o próprio título da
obra. Grande parte da narrativa se desenvolve nas iminências deste
evento e é permeada por episódios trágicos resultantes da guerra
final. O soar das trombetas é encaixado em diferentes momentos da
história, e tudo o que sabemos a respeito delas é através da experiência
e percepção do protagonista Ablon, enquanto no livro de Apocalipse
tomamos conhecimento delas apenas por poucas visões enigmáticas e
evasivas de João.
Finalmente, no romance, a sétima trombeta concretiza o fim do mundo:
[a]ssim deu-se a grande explosão. O coração pulsante
da besta rasgou, lançando um oceano de fogo e
fulgor sobre o mundo. No campo, os três exércitos
enfrentaram, atônitos, o espetáculo, à medida que
o calor cósmico desintegrava seus corpos. Ruíram as
fundações do planeta, e por toda a terra começaram
os cataclismos. Rios transbordaram, continentes se
dividiram, montanhas desabaram. O solo foi castigado
e suas gretas sugaram os mares às entranhas do globo.
Sobre os escombros de Meggido subiu uma coluna
negra de fumaça, como se aberto o poço do abismo
– uma passagem aos nefastos confins do universo. O
ardor queimou todo o céu, obscurecendo o firmamento
e apagando o brilho dos astros. (2014, p. 560)

A desintegração do universo se dá com um duelo final entre o anjo


Ablon e o demônio Apollyon, da mesma forma que, em todos os livros
bíblicos, há uma constante batalha do bem contra o mal, do povo de Deus
contra o pecado, e de Deus contra o diabo. Acreditamos que a citação
anterior ilustra perfeitamente a magnitude e a grandeza das ações e dos
cenários do universo de Spohr.
Através do discurso, a literatura expõe os anseios que já habitavam o
imaginário coletivo. Como esperamos ter demonstrado ao longo de nosso

36
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

estudo, verificamos no livro de Spohr a constante presença de adjetivos de


grandeza, a especificação das ações das personagens, o desenvolvimento
das relações entre elas, a riqueza de detalhes, o fato de o destino do
universo estar em jogo, as sangrentas batalhas entre anjos e demônios, a
história de amor entre um anjo e uma humana, a diversidade de elementos
fantásticos inseridos na narrativa, e, principalmente a tensão de tudo isso
se passar nas iminências do fim do mundo. A nosso ver, todos estes fatores
contribuíram para a criação de uma aventura épica e grandiosa que é A
Batalha do Apocalipse: da queda dos anjos ao crepúsculo do mundo.

Referências
ALTER, Robert; KERMODE, Frank. Guia literário da Bíblia. Tradução de Raul Fiker.
São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.
BÍBLIA. A Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Barueri:
Sociedade Bíblica do Brasil, 1988.
CESERANI, Remo. O fantástico. Tradução de Nilton Tripadalli. Curitiba: Ed. UFPR,
2006.
FRYE, Northrop. The Great Code: The Bible and Literature. New York: Houghton
Mifflin Harcourt Publishing Company, 1982.
FRYE, Northrop. Littérature et Mythe. Poétique, v. 8, p. 489-503, 1971.
FURTADO, Filipe. Fantástico: modo. In: E-dicionário de termos literários.
Disponível em: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/fantastico-modo/. Acesso
em: fev. 2021.
GAMA-KHALIL, Marisa. Fantástico: modo. In: Dicionário Digital do Insólito
Ficcional. Disponível em: http://www.insolitoficcional.uerj.br/site/f/fantastico-
modo/. Acesso em: jan. 2021.
GENETTE, Gérard. Palimpsestes: La littétature au second degré. Paris: Éditions
du Seuil, 1982.
GÓMEZ PONCE, Ariel. Ficção pós-apocalíptica. In: Dicionário Digital do Insólito
Ficcional. Disponível em: http://www.insolitoficcional.uerj.br/site/f/ficcao-pos-
apocaliptica/. Acesso em: jan. 2021.

37
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

IVANOV, Viacheslav. Mitos escatológicos. In: ACOSTA, Rinaldo (Ed.). El árbol del
mundo. Diccionario de imágenes, símbolos y términos mitológicos. La Habana:
Casa de las América/Criterios, p. 321-323, 2002.
ROAS, David. A ameaça do fantástico: aproximações teóricas. Tradução de
Julián Fuks. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
SANT’ANNA, Affonso Romano. Paródia, paráfrase e cia. São Paulo: Ática, 1985.
SPOHR, Eduardo. A Batalha do Apocalipse: da queda dos anjos ao crepúsculo do
mundo. 58. ed. Campinas, São Paulo: Verus, 2014.
TIPPLE, Rebeca. A Batalha do Apocalipse: A apropriação de mitos bíblicos para
a criação de uma narrativa de ficção. 2018. Dissertação (Mestrado em Letras e
Linguística) – Programa de Pós-graduação em Letras e Linguística, Faculdade de
Letras, Universidade Federal de Goiás, Goiás, 2018.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara
Correa Castello. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2014.

38
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

NA MIRA D’A ESPINGARDA, DE ANDRÉ CARNEIRO


Ramiro Giroldo

“O último homem da terra estava sentado sozinho


em uma sala. Soou uma batida na porta”
Fredric Brown, “The knock”

Primeiro, a solidão absoluta: o último homem da terra não possui


mais a companhia de seus pares. Se os prazeres e os benefícios advindos
do contato com o outro não têm mais a menor possibilidade de existir,
também não o têm os desprazeres e os malefícios. Diante de tão
irreversível solidão, não é oferecido ao último homem o contato com a
alteridade, e suas funções sociais não mais possuem chance de se realizar. É
um homem que não tem mais o que fazer no mundo além de contemplar sua
solitária existência em meio ao nada insondável.
Depois, a inesperada aparição de um outro que não poderia existir:
embora ninguém mais reste no mundo, surge um inequívoco sinal de que
a solidão foi quebrada. Se, como quer Lovecraft, a “emoção mais forte e
mais antiga do homem é o medo, e a espécie mais forte e mais antiga de
medo é o medo do desconhecido” (LOVECRAFT, 1987, p. 1), a aparição de
alguém, tratando-se de um evento incompreensível, acaba por produzir
um efeito ominoso.
A batida na porta foi produzida por algo humano? Tudo indica que
não, já que quem a ouve é o último homem da terra. Se é humano e quem
a ouve não está de fato sozinho na terra, também pode haver motivo para
o medo. Coloca-se, nesse caso, outra questão: seriam boas as intenções
desse outro? Sabemos, e certamente também o sabe o último homem,

39
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

que muitas vezes são nocivas as intenções dos homens. Desprazeres e


malefícios, afinal, também podem infelizmente ser o resultado do
contato com o outro.
Embora Fredric Brown posteriormente tenha expandido o
microconto em um texto mais longo, “Knock”, as duas sentenças que
servem de epígrafe a este ensaio melhor alcançam seu efeito isoladas. O
mistério de sinistras implicações que a brevidade do texto sugere é mais
eficiente quando não se vê esclarecido. O final em aberto, quando tão
sugestivo, serve muito a narrativas de horror: o leitor é deixado sozinho
para lidar com o desconhecido que permanece como tal.
A expansão da história envolve a visita de alienígenas ao planeta,
vinculando-a à ficção científica de maneira mais explícita do que na
primeira versão de duas sentenças. Esta, contudo, já produz o efeito
típico da ficção científica, o distanciamento cognitivo – ao lado, é claro,
do efeito próprio da narrativa de horror. Quer dizer: por meio de uma
representação simultaneamente reconhecível e distanciada da realidade,
é promovido no leitor um olhar cognitivo acerca de nós mesmos, em
nossa relação com o outro e com o mundo.
Em tais considerações, seguimos os passos de Darko Suvin no
inescapável Metamorphosis of science fiction, no qual é proposto que
a ficção científica é “um gênero literário cuja condição necessária e
suficiente é a presença e a interação do distanciamento e da cognição,
e cujo principal dispositivo formal é um quadro imaginário alternativo ao
mundo empírico do autor”1.
Temos, no breve microconto de Brown, um quadro imaginário
diferente do mundo empiricamente experimentado pelo autor (e

1 Tradução nossa de “a literary genre whose necessary and sufficient conditions are
the presence and interaction of estrangement and cognition, and whose main formal
device is an imaginative framework alternative to the author’s empirical environment”
(SUVIN, 2016, p. 20).

40
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

por nós), bem como uma abertura cognitiva para a própria condição
humana. Como tal abertura é um efeito produzido pelo texto, trata-se
de um potencial que habita o texto e que pode ou não se realizar na
circunstância real de leitura. O distanciamento cognitivo é, mais do que
um procedimento poético, uma potencialidade estética.
O potencial de ser lida como ficção científica, de ter o distanciamento
cognitivo plenamente realizado na leitura, habita em maior ou menor
medida as narrativas pós-apocalípticas de maneira geral. O curto
exemplo de Brown trata de uma variante muito presente desse tipo
de narrativa, as histórias de “último homem sobre a terra”. Numerosos
são os possíveis exemplos, como o romance I am legend, de Richard
Matheson, o filme Last woman on Earth, de Roger Corman, e a série
em quadrinhos Y, the last man2, com roteiros de Brian K. Vaughan e
desenhos de Pia Guerra, Goran Sudzuka e Paul Chadwick.
O microconto de Brown é modelar justamente por sintetizar em
apenas duas sentenças elementos básicos constituintes de todas essas
narrativas: o paradoxal medo de estar sozinho... e de não estar; a ambígua
simultaneidade de um desejo pelo contato com o outro e de um temor de
que esse contato de fato aconteça.
O conto “A espingarda”, de André Carneiro, é uma narrativa desse
tipo. Foi publicado pela primeira vez na segunda coletânea de contos
do autor, O homem que adivinhava, e posteriormente incluído na
antologia Os melhores contos brasileiros de ficção científica, organizada
por Roberto de Sousa Causo. Como é recorrente, estamos diante de
uma situação tensa que se institui quando o protagonista, que se crê o
último de sua espécie, é surpreendido pela presença de um semelhante

2 Na série, apenas os homens foram dizimados com exceção de um; as mulheres não
foram afetadas. Como há a abordagem da solidão em um mundo apocalíptico e a presença
de um último homem, cremos que em determinada medida a série pode ser enquadrada
na categoria em pauta.

41
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

– ou, melhor dizendo, um outro. A solidão que o atinge é trágica porque


a frágil esperança de dela escapar se revela enganosa, e a tragicidade
inerente ao enfrentamento de uma força de descomunalmente superior
se apresenta desde as primeiras sentenças:
Silêncio. Até onde sua vista alcançava, centenas de
carros parados, na avenida. Esgueirava-se por entre
êles, a mão roçando carroçarias cobertas de poeira.
Pneus murchos, manchas de óleo feitas gôta a gôta, no
chão de barro ressequido. Pequenas folhas cresceram
ali, as raízes descobertas se esgueirando entre a
ferrugem que avançava. Continuou a andar para a
frente, parando de vez em quando. A paisagem era a
mesma, de um tempo muito diferente. Estava ao lado
de um carro conversível, a chave da partida no lugar,
porta aberta, o estofamento se estragando ao vento,
vidros sujos e opacos. Encostou-se em sua frente, a
carcaça fêz um ruído de juntas enferrujadas. Em ambos
os lados, casas de luxo, com jardins isolados. O mato
invadia as passagens, verde misturado com folhas
secas, transformando as construções em ilhas tristes e
esquecidas. (CARNEIRO, 1966, p. 79)

Trata-se de um estado de coisas que o protagonista não parece ter


chances de combater; ele não tem meios ou forças para tanto. O que o
move, nas primeiras páginas do conto, parece ser apenas a necessidade
de precariamente sobreviver quando o suporte de toda a sociedade ruiu.
As razões para o ocaso civilizatório não são expostas; há menções
passageiras a uma infecção ou contaminação, à guerra e a inimigos vindos
de outro lugar. Infere-se, a partir dessas informações pontuais, que uma
guerra teve seu fim com o uso de alguma arma biológica de destruição em
massa. Como acontece em outros textos de Carneiro, como “A escuridão”,
as razões factuais que levaram ao estado de coisas distanciado não são
importantes – os efeitos no homem e na civilização, sim.

42
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Manter-se vivo e mentalmente são é uma tarefa difícil, mas logo se


percebe que o personagem não apenas sobrevive. Ele tem um propósito
enquanto se mantém caminhando:
Ajeitou-se como pôde, fechou os olhos. Era o
momento mais difícil. Enquanto havia luz e tinha de
cuidar de si, procurar água e comida, os pensamentos
se dispersavam, a situação parecia-lhe um intervalo
absurdo, que logo terminaria. [...] Conservar a saúde
mental, descansar, dormir. Ser prático, objetivo,
controlado. Continuar procurando, frio, implacável,
paciente. (CARNEIRO, 1966, p. 83-84)

As sentenças breves, sem coordenação formal umas com as outras,


reforçam a continuidade do esforço de sobreviver para realizar seu
propósito. Ele está comprometido com um esforço pontual, disciplinado.
Seu esforço não é condicional e ignora o adverso: a rotina autoimposta
continua a mesma a despeito das forças que a ela se opõem.
Seu propósito, sua busca, é encontrar outro sobrevivente. Além do
desprazer físico advindo do cansaço, da fome, da sede e da carência de
cuidados médicos especializados, muito maior é o desprazer provocado
pela solidão. Ela é hostil, nociva. Assim, mesmo diante de um estado
de coisas que não pode ser revertido, já que não é possível retornar ao
mundo que existia antes do estranho cataclismo, o protagonista nutre a
esperança. E, havendo esperança, há a utopia no horizonte – no caso, a
utopia de ter junto de si o outro e não apenas o mesmo.
Esperança, no olhar de Ernst Bloch, é válida quando nasce do contato
com as próprias deficiências do real. Agir para realizar o objeto da
esperança é o que pode conduzir à utopia:
A esperança sabedora e concreta, portanto, é a que
irrompe subjetivamente com mais força contra o
medo, a que objetivamente leva com mais habilidade
à interrupção causal dos conteúdos do medo, junto

43
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

com a insatisfação manifesta que faz parte da


esperança, porque ambas brotam do não à carência.
(BLOCH, 2005, p. 15-16)

Reduzido ao mínimo, submetido a uma circunstância precária, o


protagonista caminha para combater sua carência. Sem o produtivo
contato com a alteridade, ele na verdade não pode ser chamado de
“último homem” – porque sem o outro ele não pode sequer continuar a
se enxergar como humano. Sua utopia é, portanto, recuperar a própria
humanidade, recuperar a si próprio. Sozinho, sua sobrevivência não é
real; só sobreviverá quando encontrar outra pessoa.
Quando a busca enfim parece se encerrar, sente-se frustrado quando
a reação do tão desejado outro é violenta:
Um estrondo como de um trovão deixou-o surdo. O
susto fê-lo tombar para trás, o coração disparado. Num
gesto instintivo, cobriu a cabeça com o braço. Olhou para
cima. Perto da porta principal, surgindo acima do muro,
viu um vulto com uma espingarda apontada para êle.
Aparecia em silhueta contra o clarão do céu da tarde.
Parecia apoiado em uma escada. Não se distinguiam
suas feições, nem o mover dos lábios, quando disse:
“Desapareça daqui, senão eu mato”. Com a sacola ainda
nas costas, barba comprida, roupa suja, lá de baixo, êle
tentou argumentar, perguntar “por que”? Um segundo
tiro atroou pelas ruas desertas, o eco trazendo de
volta num reboar surdo. Pareceu-lhe ouvir o silvo do
chumbo perto da cabeça. Correu até a esquina próxima,
esperando que uma bala lhe perfurasse o corpo e
ficasse estendido, a esvair-se em sangue. Em um canto
onde não poderia ser atingido, olhou novamente. O
outro desaparecera. (CARNEIRO, 1966, p. 87-88)

A falta de sentido da violência é denunciada por meio de uma situação


extrema, a solidão pós-apocalíptica, que não pode ser encontrada no “mundo
empírico do autor”. Por meio da representação distanciada, a violência do

44
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

nosso mundo, do nosso próprio contexto sócio-histórico, é posta em análise.


Como Adam Roberts observa, em sua leitura do distanciamento cognitivo
de Darko Suvin, “não é a ‘verdade’ da ciência que é importante para a
ficção científica; é o método científico, o manejo lógico de uma premissa
particular”3. É o que encontramos no conto: uma circunstância extrapolada
que, trabalhada de maneira lógica, consistente, verossímil, permite que
coloquemos em xeque o aspecto em análise – especificamente, a alteridade
e seu potencial de nos revelar não apenas o outro, mas nós mesmos.
Ainda assim, mesmo diante da irracional violência, o protagonista
não pode deixar de nutrir sua esperança e de enxergar a utopia no
horizonte longínquo. Afinal, ainda que o outro tenha reagido de maneira
inesperada, a busca atingiu seu objetivo:
Lá se escondia um homem. Olhos abertos, na ausência
que precede o sono, esquecia-se do tiro. Conversaria
com o outro, no dia seguinte Teria paciência, quem
sabe o sofrimento que passara. Juntos, seriam
mais eficientes, arrumariam um trator que saísse
das estradas, avançasse pelos campos... Levariam
mantimentos, remédios, haveriam de descobrir outros
homens... (CARNEIRO, 1966, p. 88)

Ele nutre a ideia de que a cooperação, a postura contrária à


responsável pelo fim da sociedade humana, pode tornar tudo melhor.
Não é concebível para ele que alguém de fato possa escolher o
isolamento à comunhão. Seguir sozinho em seu caminho não passa pela
sua cabeça; depois de vislumbrar a utopia logo em frente, atrás de um
muro, não pode desistir. No dia seguinte, tenta apelar à razão do outro:
“Andei centenas de quilômetros para achar uma pessoa
viva. Não quero nado do que você tem, só ajudá-lo,
conversar, procurarmos juntos os que estão vivos.

3 Tradução nossa de “it is not the ‘truth’ of science that is important to SF; it is the scientific
method, the logical working through aof a particular premise” (ROBERTS, 2006, p. 9).

45
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Aceito qualquer condição, não pretendo modificar


sua vida. Tenho prática dessa desgraça. Sei arrumar
mantimentos, água. Conheço aqui perto um lugar
com um trator...” O outro mudou de posição no muro,
interrompendo: “Não, não quero você aqui nem
que fique na cidade. Se não partir logo eu vou atirar.
(CARNEIRO, 1966, p. 90)

Insiste até ser forçado a ceder: o outro dispara duas vezes e uma
bala provoca “um talho no ombro” (CARNEIRO, 1966, p. 92). Tomado
pela fúria e pela frustração de ver sua busca terminar dessa maneira,
ele revela enfim que também possui um potencial destrutivo. De dentro
de um armário, retira a espingarda que dá título ao conto. Ele é capaz
de perpetrar a violência, de participar de um encontro negativo com o
outro. Não a cooperação, mas a mútua vontade de exterminar o que não é
o mesmo:
Abriu o armário, pegou a espingarda carregada, saiu
para a rua, sem se deter. O peito arfava, como se
tivesse arma repetia “maldito”, “maldito”, o caminho
de volta como um pesadelo, seu controle tombando em
frangalhos. Não sabia se pensava ou estava gritando.
Sôbre o muro, o vulto odiado. Foi correndo em sua
direção com a espingarda levantada, o dedo puxando o
gatilho. (CARNEIRO, 1966, p. 91)

Ele mata o outro e, quando os tiros cessam, retorna o silêncio – a primeira


palavra do conto. O estado final é como o inicial: o protagonista novamente
está sozinho, talvez o último homem do mundo. Forçado a isso ou não, a
solidão é sua própria culpa: foi ele quem puxou o gatilho e matou.
Sua busca não teve o fim desejado, mas ele está pronto para reiniciá-la. O
conto se encerra com o protagonista tomando a estrada mais uma vez:
Atravessou ruas e quarteirões, sem olhar para os lados.
Estava no fim da cidade. Havia uma estrada em direção
às montanhas. Parou alguns instantes, olhando, depois

46
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

seguiu com passos cansados. A estrada levava para o


norte. Para lá o homem partiu, com mantimentos e uma
espingarda. (CARNEIRO, 1966, p. 93)

Se não deu por encerrada a busca, é porque o blochiano princípio


esperança ainda o move. O horizonte utópico, que por algum tempo
pareceu estar a apenas um passo de distância, voltou a se distanciar.
Embora tão longe como quando encontramos o protagonista no
princípio do conto, tal horizonte está à frente. Movido pela esperança,
o protagonista retoma a busca e, sem pestanejar, fica de novo sujeito
às intempéries do tempo, à fome, à sede, à loucura. Ele não pestaneja
porque não é capaz de se conceber sozinho, sem o outro; vale a pena
passar pelo desprazer no caminho para a utopia.
Sim, ainda é a esperança que motiva a caminhada, mas a inocência
foi irremediavelmente perdida. Ele agora sabe que, quando alcançada,
a utopia tem o indesejável costume de se converter em seu reverso, a
odiosa distopia que põe a claro o medo e conduz à violência.
O princípio esperança, contudo, prevalece: é o próprio ímpeto que não
se conforma com o estado vigente, que crê que as coisas podem – e um
dia vão – ser diferentes. Aceitar a solidão que se impõe não é, repetimos,
uma opção para o protagonista: a busca pelo outro tão semelhante e tão
diferente dele é o que o caracteriza. São seus sonhos diurnos.
Como alerta Bloch,
[a] concepção e as ideias da intenção futura [...]
são utópicas, mas não no sentido estreito dessa
palavra, definido apenas pelo que é ruim (fantasia
emotivamente irrefletida, elucubração abstrata e
gratuita, mas justamente no novo sentido sustentado
do sonho para a frente, da antecipação. Assim,
portanto, a categoria do utópico possui, além do
sentido habitual, justificadamente depreciativo,
também um outro que de modo algum é

47
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

necessariamente abstrato ou alheio ao mundo, mas


sim inteiramente voltado para o mundo: o sentido
de ultrapassar o curso natural dos acontecimentos.
(2005, p. 22)

A esperança concreta que é responsável pela busca utópica, dessa


forma, nasce do contato com as próprias deficiências do mundo, com
o que ele tem de nocivo. Depois do confronto, o protagonista do conto
conhece a ameaça distópica. Segue em sua busca, mas agora o narrador
explicita que a espingarda vai junto.

Referências
BLOCH, Ernst. O princípio esperança vol. I. Tradução de Nélio Schneider. Rio de
Janeiro: EdUERJ/Contraponto, 2005.
BROWN, Fredric. Knock. In: BROWN, Fredric. The Fredric Brown Megapack: 33
Classic Science Fiction Stories. Rockville: Wildside Press, 2013.
CARNEIRO, André. A espingarda. In: CARNEIRO, André. O homem que
adivinhava. São Paulo: Edart, 1966.
CAUSO, Roberto de Sousa (Org.). Os melhores contos brasileiros de ficção
científica. São Paulo: Devir, 2007.
LAST Woman on Earth. Direção: Roger Corman. AIP, 1960. Filme (71 min).
LOVECRAFT, Howard Phillips. O horror sobrenatural na literatura. Tradução de
João Guilherme Linke. São Paulo: Francisco Alves, 1987.
MATHESON, Richard. I am legend. London: Gollancz/Orion, 2001.
ROBERTS, Adam. Science Fiction. London: Routledge, 2006.
SUVIN, Darko. Metamorphoses of Science Fiction: on the poetics and history of a
literary genre. Bern: Peter Lang Press, 2016.
VAUGHAN, Brian K.; GUERRA, Pia; SUDZUKA, Goran; CHADWICK, Paul. Y: the last
man. Califórnia: DC Comics, 2002-2005.

48
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

EPIDEMIA E A TEMPORALIDADE PÓS-APOCALÍPTICA:


UMA LEITURA DA FICÇÃO MULTIAUTORAL
CORPOS SECOS
Marcio Markendorf

As ficções já anteciparam diversas vezes o fim do mundo,


encenando-o e reencenando-o em perspectivas variadas, das insólitas
às realistas. Pode-se afirmar sem risco que o ocaso da humanidade
é uma constante antropológica nos discursos ficcionais. Em uma
primeira mirada da crítica, o foco recai na trivialidade da narratologia,
frequentemente desenhada em enredo simples, permeada por clichês,
comandada por personagens rasos. Não se pode negar que ao refletir
sobre as ideias que envolvem catástrofes extensivas algumas cenas
estejam particularmente presentes em nosso imaginário – tais como a
destruição de grandes centros urbanos e, muito especialmente de seus
símbolos arquitetônicos mais conhecidos (Empire State Building, Casa
Branca, Casa Rosada, Taj Majal, Torre Eiffel, Cristo Redentor etc). Em
certo sentido, aderindo à provocação de Susan Sontag (2003) de que,
em uma civilização da imagem, a noção de inconsciente coletivo – longe
de uma perspectiva junguiana – teria mais a ver com um aprendizado
de mesmas imagens, do qual também faria parte esse conjunto de
sequências visuais descrito acima. Sendo assim, em uma época na qual o
audiovisual substituiu o romance na função formatadora do imaginário,
é de se esperar que muitas de nossas visões sobre fim do mundo sejam
provenientes de filmes catástrofe e/ou de obras de ficção científica –
quando não o são de um imaginário religioso.

49
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Há de se considerar que, embora a narração do fim do mundo seja


bastante sedutora, dramaticamente não é interessante que a vida no
planeta, de fato, se encerre de imediato, sem percalços e surpresas.
Na perspectiva de Rafael Argullol (2002), os relatos apocalípticos de
perspectiva bíblica endossam o desígnio final como uma “narrativa de
suspense”, permeada de agonia e comoção sublime. É esse “tempo de
trepidação”, para usar um conceito de Umberto Eco (2009), o que estimula
o interesse vívido do leitor/espectador, uma vez que a narrativa tende
a retardar deleitosamente o final dramático. No cinema, por exemplo,
são raros os filmes que culminam rapidamente com a destruição total –
em geral, o que se oferece nos roteiros é uma mobilização prolongada
contra um evento de extinção em massa (classificada como uma história
pré-apocalíptica) ou a luta pela sobrevivência em um mundo devastado
(mote da história pós-apocalíptica). Frequentemente tal distinção
também lança as histórias para um gênero narrativo distinto, sendo o
pré-apocalíptico associado aos filmes-catástrofe e o pós-apocalíptico
mais comumente à ficção científica (e sua interface com o horror).
Seja como for, ambos os gêneros narrativos estão associados a um prazer
simbólico pela destruição em massa, um tipo específico de catarse centrada
no sentimento de liberação das normas sociais da metrópole (SONTAG, 1987).
Em outras interpretações, haveria alguma contemplação sublime cósmica
frente à devastação, definida pelo crítico de cinema André Bazin (2014) como
“complexo de Nero”. A dramaticidade de grandes centros urbanos sendo
engolidos pela força incontrolável da Natureza remete, ainda, a fantasias
traumáticas de aniquilação, reais ou alegóricas. Dentre alguns exemplos
de um quadro de referência histórico figuram a extinção dos dinossauros,
a Grande Peste, as Grandes Guerras Mundiais (especialmente o ataque
atômico a Hiroshima e Nagazaki); no âmbito alegórico e/ou mítico despontam
precedentes teológicos como o bíblico dilúvio, a destruição das cidades de
Sodoma e Gomorra e a sequência de cataclismos do Livro de João de Patmos.

50
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Como argumenta Otto Friedrich (2000), muito embora o apocalipse


seja uma fantasia essencialmente religiosa, as expectativas sobre um
evento de tal envergadura assumem formas diversas ao longo do tempo.
Possivelmente por conta dessa proximidade com a mitologia judaico-
cristã muitas vezes uma catástrofe seja interpretada ao modo de um
evento purificador. Assim, em uma equação que incorpora um fator
moral (e mortal), para que a sociedade possa ser restaurada, o mal e a
iniquidade humana devem ser eliminados. No âmbito das catástrofes –
dos terremotos às epidemias – há uma tendência à personificação da
Natureza, como se esta fosse dotada de vontade – e vingança – e pudesse
representar a mão punitiva de Deus1. Ora, “A queda de um raio pode ser
um sinal da ira divina, mas ele também pode cair ao acaso”, argumenta
Friedrich, “ao passo que os homens pegam em armas contra alguém miram
especificamente esse alguém, e seu objetivo é destruí-lo” (2000, p. 14). Em
um sentido amplo, eventos como um “dilúvio místico” não assinalam – em
sua explicação mitológica – o fim dos pecadores, mas tendem a expressar
o encerramento de uma “era de ouro” (FRIEDRICH, 2000, p. 23).
De um ponto de vista antropológico, a morte de uma sociedade
capitalista pós-industrial evoca frequentemente o retorno a uma forma
de primitivismo social. Trata-se, pois, do fim do mundo como conhecido,
não exatamente do fim da raça humana. O espaço pós-apocalíptico, por
isso, costuma ser apresentado como as ruínas e os restos de antigos
costumes – animais habitam as ruas, a flora eclode de dentro dos
prédios, os sobreviventes vivem nas periferias dos antigos centros
urbanos, em formas de existência mais integradas à natureza2. Não se

1 Como argumenta Yi-fu Tuan (2005, p. 149): “Quando uma doença ataca repentinamente,
como em uma epidemia, é como se os deuses ou um deus justo estivesse zangado e as pessoas
sendo castigadas pelas suas transgressões. Unir doença com pecado e castigo é, de fato, um traço
importante da fé judaico-cristã. As dez pragas do Egito são um exemplo bem conhecido da Bíblia”.
2 O mesmo imaginário também está presente fora das narrativas-catástrofe, como
demostra a perspectiva anárquica do romance Clube da Luta, de Chuck Palahniuk,

51
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

pode negar que há certa mensagem ecológica difusa em histórias pós-


apocalípticas recentes – o que poderia corresponder a uma visão laica
do pecado, convertido em desrespeito ambiental. Afinal, sob esse ponto
de foco, a sociedade colapsaria em função da exploração desenfreada
e do esgotamento dos recursos naturais ou, de outra sorte, em razão
do uso de armas atômicas ou biológicas. Para Otto Friedrich, as formas
contemporâneas de apocalipse envolvem catástrofes naturais, desastres
ecológicos e a atividade humana:
[...] uma nuvem sufocante de ar poluído, um terremoto
sob uma usina atômica, o derretimento das calotas
polares – que hoje inspira livros e filmes, previsões
astrológicas e jornais clandestinos. Em certo sentido,
essas catástrofes previsíveis são idênticas a uma guerra
nuclear. Por um lado, uma guerra dessa ordem seria o
extremo da poluição, o supremo desastre ecológico,
pois muitas das vítimas não morreriam, provavelmente,
do ataque direto, como nas guerras do passado, mas
do veneno da precipitação radioativa. Por outro lado,
muitas das catástrofes naturais que parecem ameaçar-
nos não são de fato naturais, mas sim agressões
produzidas pelo homem, distorções e perversões do
equilíbrio da natureza. (FRIEDRICH, 2000, p. 12-13)

Dentre os temas recorrentes das fantasias do fim está a da


propagação de uma doença em larga escala. Epidemias e pandemias, no
entanto, não oferecem uma exploração dramática e deslumbrante da
magnitude do caos, como costuma ocorrer com outros eventos naturais

e a vontade de Tyler Durden em atingir a “era glacial da cultura”, voltada contra o


capitalismo: “imagine você plantando rabanetes e semeando batatas no décimo quinto
gramado de um campo de golfe abandonado. pelas ruínas do Rockfeller Center, colhendo
marisco perto do esqueleto do Space Needle, numa inclinação de 45 graus. Pintaremos
os arranha-céus com imensas carrancas totêmicas, e todas as noites o que sobrou da
humanidade será recolhido nos zoológicos vazios e trancados em jaulas para se proteger
dos ursos, dos grandes felinos e dos lobos que nos rondam do lado de fora das grades
durante a noite” (PALAHNIUK, 2000, p. 133).

52
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

(meteoros, erupções vulcânicas, terremotos, tsunamis, tempestades,


furacões etc), por se tratar de um inimigo invisível. Se um vulcão oferece a
visão tanto do dispositivo de destruição em si quanto das consequências
de sua explosão, a paisagem da doença remete mais a outro aspecto
gráfico, metonímico de uma presença-ausente: “membros deformados,
cadáveres, hospitais e cemitérios cheios e os incansáveis esforços das
autoridades para combater uma epidemia” (TUAN, 2005, p. 13). Em
meio a uma pandemia, vemos os vestígios e os efeitos da doença. Logo,
o que parece vigorar com maior acento no imaginário das catástrofes
epidêmicas é a luta do ser humano com relação ao próximo – e por
extensão de sentido, o doente é a figura que representa, em primeiro
plano, a própria doença, isto é, o agente destrutivo.
A ficção literária costuma evocar o perigo biológico em suas tramas,
concebendo, inclusive, cenários pós-apocalípticos. Merecem destaque
obras como o romance O último homem, de Mary Shelley, publicado em
1826, no qual uma praga arrasa toda a humanidade (exceto o narrador-
protagonista), e Eu sou a lenda, de Richard Matheson, de 19543, cuja
temática evoca uma pandemia vampírica após ataques bélicos entre
nações, o que evoca o contexto da Guerra Fria. No cinema, vale
mencionar a busca idílica pelo último refúgio não contaminado da Terra
em Vírus (Carriers, Àlex e David Pastor, 2009), a visão poética (ainda que
pessimista) do filme Sentidos do amor (Perfect Sense, David Mackenzie,
2011) em a humanidade encontra o ocaso na cegueira total, e Os últimos
dias (Los últimos dias, Àlex e David Pastor, 2013), no qual a população
vivencia uma epidemia mortal de agorafobia e colapsa – encontrando
esperança nos filhos dos sobreviventes, uma geração de caçadores e

3 O romance de Richard Matheson conta com três adaptações cinematográficas: Mortos


que matam (The Last Man on Earth, 1964, Ubaldo Ragona e Sidney Salkow), A última
esperança da Terra (The Omega Man, 1971, Boris Sagal) e Eu sou a lenda (I am legend,
2007, Francis Lawrence).

53
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

coletores. A despeito desses poucos filmes de desfecho global trágico, a


tônica das narrativas, tanto na literatura quanto no cinema, é explorar
os conflitos sociais, a luta pela sobrevivência e a descoberta da cura. É
o cenário vivenciado, talvez de forma assustadoramente mimética, na
pandemia de covid-19 (2019 - ?), contexto importante para refletir sobre
o romance multiautoral Corpos secos.
***
Quando o novo coronavírus, surgiu na cidade de Wuhan, na China,
não se esperava que atingisse a atual dimensão pandêmica, tampouco
que uma crise econômica global derivasse dele. A partir de março de
2020, no Brasil, o cenário confundia-se pouco a pouco com o dos filmes-
catástrofe: carros de som nas ruas orientavam as pessoas a ficarem em
suas casas; rondas policiais eram realizadas para garantir o fechamento
de lojas e serviços não essenciais; praias eram monitoradas pelo corpo
de bombeiros para que não fossem frequentadas; até segunda ordem
escolas e universidades encontravam-se com as atividades suspensas;
dos supermercados, as pessoas procuravam estocar comida, água e
itens de higiene; as farmácias tiveram os estoques de luvas de silicone,
máscaras cirúrgicas e álcool gel rapidamente esgotados; pessoas eram
presas por violarem os decretos de isolamento social; a economia
encolhia com o fechamento de serviços; autônomos e desempregados
esperavam ansiosos pela liberação do auxílio emergencial destinado
oferecido pelo governo; manifestantes de rua negavam a existência de
uma pandemia e posicionam-se contrários à quarentena. Cenário que
pouco se alterou passado um ano de pandemia.
Em vista do impacto produzido por uma crise sanitária tão duradoura,
há estudos em diferentes campos científicos sendo realizados. Nas áreas
biológicas, os esforços concentram-se em desvendar a natureza e o

54
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

funcionamento da enfermidade, a fim de desintegrar o seu mistério4 e,


sobretudo, encontrar formas de imunização e tratamento da covid-19.
No início de 2020, a falta de informações aprofundadas sobre formas
de contágio e contaminação havia levado ao recrutamento de uma
série de medidas profiláticas e de proteção – tais como isolamento
e distanciamento social, álcool gel, máscaras cirúrgicas, face shield,
termômetro infravermelho, higienização constante de superfícies.
Embora muitas delas sejam, hoje, interpretadas como dispensável em
vista do risco baixíssimo de contaminação, a ponto de receber a alcunha
de “teatro da higiene”5, foram fundamentais para um momento em que
pouco se sabia sobre o novo coronavírus (ALEGRETTI, 2021).
Certamente a pandemia provocada pelo Sars-CoV-2 deixará marcas
profundas na sociedade global, pois, com o isolamento social forçado,
o imaginário da quarentena afetou os afetos: a vontade de maior
proximidade dos mais queridos; a vontade de maior distanciamento dos
desconhecidos. A princípio, pensadores conjecturaram, frente a este
cenário, que o momento poderia inaugurar uma era pós-social, marcada
pelo aprofundamento do distanciamento empático e pela radicalização
da sociedade de estranhos. Há quem avente, ainda, o perigo da síndrome
da cabana, caracterizada pela aquisição de um tipo de sensação de
perigo e medo em espaços abertos, no pós-isolamento social. Embora
seja impossível mensurar os danos – sociais, econômicos, psicológicos,
culturais, políticos – produzidos pela circulação viral de fake news pelas

4 Susan Sontag (2007) argumenta que qualquer doença sobre a qual não se tenha muitas
informações é construída em volta de um sentimento de mistério, aspecto que acentua o
medo acerca das possibilidades de contágio e contaminação.
5 A expressão “teatro da higiene” (em inglês: hygiene theater) foi empregada pela primeira
vez pelo jornalista Derek Thompson, em julho de 2020, na revista The Atlantic, para fazer
referência a medidas insuficientes ou ineficazes na prevenção à covid-19, práticas que
apenas dariam uma falsa sensação de segurança. Nesse sentido, a desinfecção de compras
de supermercado seriam menos eficientes, posto que o risco de contágio em superfícies é
mínimo, que o uso de máscaras e de álcool gel para higienizar as mãos (ALEGRETTI, 2021).

55
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

redes sociais e aplicativos de comunicação, é inegável que o sentimento


generalizado ainda é de suspeição6. No início da pandemia, alertas de
secretarias municipais de saúde sobre casos identificados de infectados
por covid-19, situados em um raio de 200 metros da residência do
morador notificado, ou malas diretas de planos de saúde sobre o próximo
período de pico de contaminação, para ficar em alguns exemplos,
produziram respostas exageradas por parte da população. Ainda que
essas mensagens reforçassem a necessidade de isolamento social ou de
cuidados redobrados com a higienização, acabaram por tratar a doença e
o doente em si como formas metafóricas de monstruosidade, produzindo
instâncias de segregação e preconceito (MARKENDORF, 2016, p. 6-7).
Os não infectados, nesse âmbito, eram considerados vítimas passíveis
de agressão por agentes desconhecidos (as pessoas infectadas) ou por
patógenos invisíveis (o vírus per se) – uma mudança significativa que torna
as vítimas da covid-19, os infectados, em agressores potenciais e possíveis
contaminadores irresponsáveis. Iniciou-se um processo, então, de mútua
desconfiança e de constante agressividade no corpo social. Afinal, qualquer
um, sobretudo os sem máscara (uma das metáforas atuais), poderia ser
um inimigo do contrato social pelo bem coletivo.
Houve quem apostasse, em outra perspectiva, na possibilidade
de uma mudança mais acelerada na geopolítica global, resultante da
aceleração de um deslocamento político e econômico que já estava
em curso. Como opinou Oliver Stuenkel (2020), a catástrofe biológica
enfraqueceria a soberania estadunidense a ponto de transferir o
equilíbrio de poder para um momento pós-ocidental, tendo a China como

6 Yi-fu Tuan dá um panorama interessante sobre a peste negra de 1348 e que parece
análogo ao momento inicial da pandemia de covid-19: “A peste transformava todos, ao
mesmo tempo, em desconfiados e suspeitos – vizinhos muitos amigos e parentes próximos
podiam ser portadores da morte. O medo da infecção era tanto que os que tinham de
andar pelas ruas ziguezagueavam, cruzando de um lado para outro a fim de evitar contato
com outros pedestres” (2005, p. 158).

56
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

nova referência. A crise da reputação de autoridade de Washington, sob


o governo Trump, colocaria em xeque sua liderança mundial, sobretudo
com a resposta incoerente frente à pandemia, na qual são acrescentadas
denúncias de desvio de material protetivo já comprado por outros países
(BBC, 2020). Não é o que parece estar acontecendo, pelo contrário, a
animosidade mundial contra China foi radicalizada (e no Brasil inclui-se,
ainda, o preconceito xenofóbico com a “vachina”) e o espaço asiático
tornou-se uma zona de perigo. O que o cenário sugere é que, a partir de
uma perspectiva cultural e simbólica, um contexto de epidemia pode ser
interpretado como a extensão de um corpo-Estado doente. Por esse viés,
proliferam debates acerca da necessidade de repensar o capitalismo e a
busca por um novo modelo político-econômico, menos individualista e
destrutivo, tão forte é o impacto social da nova pandemia. Assim como
repensar as relações hostis e assimétricas entre Ocidente e Oriente.
Os conceitos de biopolítica e o de necropolítica receberam grande
visibilidade nos últimos meses em diversos debates, pois a função estatal
do controle do viver e do morrer tornaram-se mais do que evidentes. Em
Manaus, frente ao colapso do sistema de saúde, chegaram notícias da
orientação de que idosos voltassem para as próprias casas para morrer
(MAISONNAVE, 2020). Nos Estados Unidos, especialmente em Nova
Iorque, uma gigantesca vala comum havia sido aberta para enterrar
corpos não reclamados, frequentemente de moradores de rua (LOBO,
2020), algo não incomum em outros países, como Equador e Irã. Negros
e pardos, de acordo com dados do Ministério da Saúde do Brasil, são os
grupos considerados mais vulneráveis à covid-19, expondo ainda mais as
questões de desigualdade social, racismo estrutural e relações de classe.
Para o filósofo Roberto Esposito (2020), a atual pandemia radicalizou a
relação entre vida biológica e intervenções políticas a ponto de tornar
a biopolítica uma forma inegável de operação do poder. No contexto
epidemiológico em curso pode-se observar que:

57
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

São muitas as camadas da população que necessitam de


práticas profiláticas, e ao mesmo tempo são protegidas
e mantidas à distância, consideradas em risco, mas
também portadoras de risco de contágio. Isso é também
o resultado da verdadeira síndrome imunitária que há
muito tempo caracteriza o novo regime biopolítico. O que
se teme, mais ainda que o mal em si, é a sua circulação
descontrolada num corpo social exposto a processos de
contaminação generalizados. (ESPOSITO, 2020)

Embora em alguns lugares, como na Itália, o primeiro epicentro


da covid-19 na Europa, tanto em decorrência do número de infectados
quanto pelo número de mortos a curva de contágio tenha sido achatada
e a instituição do isolamento tenha chegado ao limite suportável –
segundo a lógica capitalista – a convivência social não voltou a ser a
mesma de antes da pandemia, ainda que com uma reabertura gradual
(VERDÚ, 2020). Conforme adverte Walter Ricciardi, membro do comitê
executivo da Organização Mundial da Saúde (OMS), a retomada de
um senso de normalidade somente poderá advir da existência de uma
vacina, da imunização em massa e de uma terapia eficiente contra a
doença. Em uma pandemia prolongada como essa, o isolamento social
e o lockdown atingiram um ponto-limítrofe porque alguns setores
precisavam continuar a funcionar, rompendo a normativa de isolamento
social para, ironicamente, sustentar o próprio isolamento de alguns
outros. Na linha de frente, obviamente, estão pessoas de classes menos
favorecidas – grande parte da classe média e da classe alta puderam
adaptar suas rotinas ao trabalho remoto. Esse contexto acaba por sugerir
metáforas bélicas no combate ao inimigo, uma luta pela sobrevivência,
favoráveis à abertura para o literário e para investigações biopolíticas e
necropolíticas de relatos de epidemias.
Conforme destacado por Susan Sontag (2007), a descrição de
patologias e a referência ao tratamento de doenças utilizam, muitas

58
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

vezes, vocábulos ligados à terminologia militar: invasão, colonização,


intervenção cirúrgica, rastreamento, combate, etc. Por isso, não é à
toa que epopeias, relatos de viagem, tratados filosóficos, romances e
inúmeras outras formas de escrita evidenciem as enfermidades como
um constante do inimigo da saúde pública, sempre à espreita. É nesse
cenário, no qual ficção e realidade se tocam é que foi lançado o romance
multiautoral Corpos secos.
A obra, publicada pela Alfaguara em abril de 2020, conta com a
participação de Natália Borges Polesso, Luisa Geisler, Marcelo Ferroni
e Samir Machado de Machado na redação dos capítulos. Embora tenha
sido escrito a oito mãos, na prática cada autor ficou responsável por
desenvolver um único personagem da massa de história, dando ao
romance uma característica multiprotagonista7. Cada um dos capítulos
carrega o nome do personagem ponto de foco – Mateus, Murilo, Regina
e Constância – e o enredo alterna cada trilha narrativa até o desfecho. No
total, cada personagem possui 6 capítulos no romance – a única variação
é a trilha dos irmãos gêmeos, Constância e Conrado, na qual optou-se por
um dos capítulos assumir como epônimo o gêmeo masculino. No site da
editora, a trama é apresentada do seguinte modo:
Primeiro, o uso de novos agrotóxicos sem os devidos
testes. Depois, a reação inesperada com as larvas que
eles deveriam dizimar. Não se sabe quem foi o primeiro
infectado, apenas que o surto começou no Mato Grosso
do Sul. São os chamados corpos secos: espectros
humanos que não possuem mais atividade cerebral. Mas
seus corpos ainda funcionam e anseiam por sangue.

7 Como não há nenhuma declaração “oficial” da editora sobre a divisão dos capítulos,
exceto comentários dos/as autores/as escapados em entrevistas, optei por manter a
ideia multiautoral perpassando o livro como um todo, sem vínculo personagem-autor/a.
Não oficialmente, tem-se: Mateus (trama de Samir Machado de Machado), Murilo (Luisa
Geisler), Regina (Marcelo Ferroni) e Constância (Natália Borges Polesso).

59
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Seis meses depois, há poucos sobreviventes. Um jovem


aparentemente imune à doença está sendo estudado
por uma equipe médica e precisa ser protegido a
qualquer custo; uma dona de casa vive em uma
fazenda no interior do Brasil e se encontra sozinha
precisando reagir para sair de seu isolamento; uma
criança vê a mãe tentar de tudo para salvar a família
e fugir do contágio; uma engenheira de alimentos
percebe que seus conhecimentos técnicos talvez não
sejam suficientes para explicar o terror que assola o
país. Juntos, eles vão narrar suas jornadas, em busca
do último refúgio ao sul do país. Escrito em conjunto
por quatro autores, Corpos secos não é só um thriller,
nem um romance-catástrofe. É uma narrativa sobre os
limites da maldade humana, e as chances de redenção
em meio ao caos. (COMPANHIA DAS LETRAS, 2020)

Considerando o uso de uma figura folclórica brasileira, o corpo


seco, e sua fusão com o imaginário zumbi, pretendo fazer uma leitura
do romance destacando alguns elementos, envolvendo pandemia e
temporalidade pós-apocalíptica, desdobrados nas seções seguintes.
A argumentação busca pensar nas ressonâncias do cenário brasileiro
atual – e seu governo doente – para refletir sobre a ideia do que, para
alguns, é uma combinação de infecção letal, distopia e carga profética
(MOREIRA, 2020), e para outros, um “cenário apocalíptico da espécie
humana transtornada por suas próprias escolhas” (MACIEL, 2020).

Corpo seco, zumbi, agronegócio


A figura do zumbi é umas das formas de monstruosidades mais
modernas do imaginário de horror, tendo construído sua mitologia por
meio do cinema, ao contrário de outras lendas como a do vampiro e a do
lobisomem, cuja longevidade na tradição oral rendeu um grande manancial
de narrativas. Em suas primeiras aparições na literatura e no cinema, o

60
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

zumbi foi associado a um espaço geográfico específico, o Haiti, por força


do relato de William B. Seabrook, A ilha da magia, de 1928, e construído
como uma fantasia fóbica sobre o medo de uma vida de trabalho perpétuo
como escravo (MARKENDORF, 2018). Frequentemente atribui-se a George
Romero a invenção do zumbi em sua forma moderna – em títulos como
A noite dos mortos-vivos (The night of the living dead, 1968), Despertar
dos mortos (Dawn of the dead, 1978), Dia dos mortos (Day of the dead,
1985), Terra dos mortos (Land of the dead, 2005), Diário dos mortos (Diary
of the dead, 2007) e A ilha dos mortos (Island of the dead, 2009) –, por
inserir elementos como o canibalismo e a perspectiva de uma origem
biológica (contágio e contaminação) da monstruosidade, assim como dar
ênfase no aspecto coletivo e no uso político da metáfora zumbi. Não se
pode esquecer, também, que tais narrativas frequentemente evocam a
ideia de um apocalipse zumbi, o que obviamente remete a traços pós-
apocalípticos na trama.
O cenário da literatura brasileira, a despeito da abertura para o
insólito, o horror e o fantástico, ainda é hegemonicamente realista,
o que parece sintomaticamente apontar para a premissa de que os
problemas sociais são maiores que qualquer manifestação de horror
artístico. Igualmente é preciso notar que o arcabouço folclórico do país,
ainda que seja bastante rico e variado, parece ter sido condenado a uma
existência ligada aos ambientes rurais, quando não é infantilizada ou
higienizada dos efeitos de horror como em histórias de Monteiro Lobato.
A aposta do romance multiautoral foi ao encontro de uma perspectiva
de resgate de um elemento do folclore brasileiro e a imbricação dessa
figura com o imaginário zumbi: o corpo seco. Curiosamente, ao modo
de um folklore revenge, o movimento de destruição do Brasil por parte
dessas criaturas se irradia de ambientes rurais e segue para os espaços
urbanos, produzindo um cenário de destruição em massa. Criatura rural,
mas não inofensiva.

61
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Ao que tudo indica, a origem do corpo seco seria europeia, mas foi
apropriada pelo imaginário local e encontrou uma forma indigenizada,
sobretudo, nas regiões sul e sudeste do país. Conforme argumenta o
historiador Daniel Neves Silva (2021), trata-se de um sujeito amaldiçoado
em função dos crimes, maldades e pecados cometidos8 – punição que nos
remete a uma narrativa instrutiva de conduta moral (ou seja: faça o bem,
senão verá no que se transforma). Rejeitado tanto por deus quanto pelo
diabo, o corpo seco estaria destinado a errar – ao modo do Judeu Errante
– pela Terra, não sendo possível morrer. Na condição de um morto-vivo,
uma figura de natureza intersticial, não apodrece como um morto e nem
se alimenta como um vivo, razão para que a pele resseque e o corpo
emagreça – condição de onde a criatura retira sua alcunha –, podendo os
cabelos e unhas crescer sem fim. O errante proscrito – misto de zumbi e
alma penada – teria como função aterrorizar as pessoas e sugar o sangue
dos incautos.
A proposta do romance Corpos secos distancia-se do mote original
da lenda ao recusar o caráter mágico-religioso da transformação
e propor uma motivação química (agrotóxicos não testados) e de
propagação viral (a partir da mordida)9. Ainda persiste certo aspecto
moral, mas o tema não incorre no mau comportamento individual, sendo
este deslocado para uma prática coletiva – no caso, as implicações da
liberação de defensivos agrícolas não regulamentados. Nesse sentido,
o zumbi é o resultado de uma maldade política, perpetrada pelo Estado

8 Em variações da lenda, as maldades do corpo seco teriam sido cometidas em vida


contra a própria mãe. O aspecto “educativo” das lendas para que pecados não fossem
cometidos, encontra lugar em outras narrativas como a da Mula sem cabeça (punição para
aquela que se torna mulher do padre) ou a do Cabeça de cuia (destino do filho que comete
maldade contra a mãe).
9 As principais figuras do imaginário ocidental moderno – vampiro, lobisomem e zumbi
– podem contaminar outros corpos, produzindo a transformação de uma nova criatura,
a partir da mordida, da saliva infectada, do sangue. A monstruosidade, portanto, é
transmitida como uma doença.

62
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

e em benefício do agronegócio10. Vale lembrar que o primeiro filme de


Romero, A noite dos mortos-vivos, aludia ao contexto da Guerra Fria e
da corrida espacial, informando que os mortos levantaram das tumbas
após o retorno de um satélite espacial com uma estranha radiação. A
combinação entre radioatividade e monstros encontrou bastante lugar
no pós-Segunda Guerra Mundial, especialmente nos anos 1950-1960
(SONTAG, 1987), mas em geral concentravam-se em monstros únicos –
o zumbi, como uma desordem coletiva, era uma ideia inovadora para
a época. Já no contexto contemporâneo de zumbis, já se explorou a
possibilidade de que alimentos transgênicos pudessem provocar uma
epidemia infecciosa ao menos em um filme: Maggie – a transformação
(Maggie, Henry Hobson, 2015)11. Agronegócio, transgênicos e
agrotóxicos soam como uma poderosa ferramenta crítica especialmente
em uma época que se questiona a fusão da Bayer (originalmente, grupo
farmacêutico e de produtos químicos) com a Monsanto (grupo de
herbicidas, inseticidas e sementes transgênicas), negociação comercial
ocorrida em 2016. A revisitação do mito zumbi via corpo seco, como
proposta no romance multiautoral, sugere uma confluência entre
monstros e catástrofe ecológica.
Por muitos anos a empresa Monsanto foi alvo de ativistas ambientais,
sobretudo pelo questionamento das consequências a longo prazo do
uso de alimentos transgênicos (milho e soja) e dos efeitos nocivos de
herbicidas e inseticidas aplicados em plantações. A companhia norte-
americana, ao longo de sua história (1901-2016), não operava apenas com

10 Em certo sentido, parece bastante irônico que uma lenda de origem rural expresse,
em sua releitura moderna, os malefícios do agronegócio. Parece, mais uma vez, que o
espaço rural é visto como inferior e monstruoso em oposição ao espaço urbano.
11 No roteiro do filme, há uma crise de saúde pública a partir do vírus necroambulis,
proveniente de lavouras infectadas, sugestivamente por sementes transgênicas, não
havendo nem cura nem vacina. A única medida governamental posta em prática é a queima
das plantações. A história tem como centro o ambiente rural.

63
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

foco em produtos agrícolas, pois teve ramificações na indústria química,


produzindo ácido sulfúrico, aspartame, ácido acetilsalicílico e até mesmo
o “agente laranja” (empregado pelos EUA na Guerra do Vietnã). Para
muitos defensores do meio ambiente, o uso de transgênico pode não
apenas produzir desequilíbrio ecológico e estimular novas pragas, mas
também levar ao desenvolvimento de doenças nos seres humanos. A
Monsanto era considerada líder mundial na venda de glifosato, um dos
herbicidas mais comercializados do agronegócio, produto acusado de
portar propriedades mutagênicas e/ou carcinogênicas e que tem sido
alvo de inúmeros estudos científicos, alguns deles demonstrando não
caracterizar um químico exatamente seguro12 como propagandeado
– afinal, investiga-se que pode ser responsável pela morte de
abelhas (MORI, 2019). O agronegócio tem sido um grande campo de
embate científico e ético, no qual pressões econômicas e o lobby de
multinacionais consegue por liberar registros e patentes e, inclusive,
pressionar o governo para criação de novas leis – favoráveis à indústria
e ao capital, sempre em busca de maior produtividade e rentabilidade.
Atualmente o uso de glifosato é considerado legal, embora países como
a França considerem torná-lo proibido em 2022 (DOMINGUES, 2019).
A fim de ilustrar como os interesses do capital encontram
representantes na política, deve-se sublinhar que, no Brasil, a frente
parlamentar que defende os interesses dos (grandes) proprietários
rurais é a bancada ruralista. Uma grande polêmica nacional surgiu após
a proposição do Projeto de Lei 6299/2002, mais conhecido como “PL

12 O princípio ativo do glifosato surgiu na indústria farmacêutica e, mais tarde, foi


emprego om outros fins. Curiosamente, o glifosato teve um estouro de vendas quando a
Monsanto produziu em 1990 sementes transgênicas resistentes ao herbicida, inventado
pela mesma empresa na década de 1970. A quebra da patente caiu em 2000 e outras
empresas do ramo puderam produzir agrotóxicos com glifosato. (DOMINGUES, 2019). Vale
lembrar que uma das principais críticas à fusão Monsanto e Bayer é a da empresa que
produz o veneno e oferece o remédio.

64
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

do Veneno”, e que pretendia, segundo a proposição do então Ministro


da Agricultura, Blairo Maggi, atualizar13 e flexibilizar a legislação do
país acerca dos agrotóxicos, especialmente no uso, controle e registro
de produtos químicos empregados no meio rural. Uma das mudanças
previstas seria a suavização de nomenclatura – a substituição do termo
“agrotóxico” (com carga moral negativa) por “defensivos fitossanitários”
(com carga moral neutra). O Projeto de Lei foi aprovado em 2018 por
uma Comissão Especial da Câmara e a proposta permitia a redesignação
de agrotóxico para pesticida, a centralização do registro no Ministério
da Agricultura, a aceleração do processo de registro e a autorização do
registro temporário (VIVAS; MODZELESKI, 2018). Mesmo que ainda não
tenha sido realizada a votação definitiva na Câmara dos Deputados,
o cenário é bastante preocupante para o Brasil, especialmente porque
o país, já em 2008, havia sido considerado o líder mundial de uso de
agrotóxicos, e o avanço hoje de uma legislação que viola a segurança
alimentar, o direito à saúde, a proteção ao meio ambiente demonstra que
a crise experienciada atualmente é também civilizatória (PORTO, 2018).
Em fins de 2019, o governo brasileiro, acabou por liberar o registro de 57
agrotóxicos, chegando a 439 produtos liberados naquele ano – o ritmo
crescente de aprovações nos últimos anos parece já colocar em marcha a
proposta da “PL do Veneno”: em 2016 foram 277 registros; em 2017, 405;
em 2018, 449 (TOOGE, 2019).
No âmbito de Corpos secos, a pandemia do Baculovirus anticarsia,
responsável pela síndrome Matheson-França, foi provocada pelo
uso de agrotóxicos da marca TechBrazil, dentre os quais estavam o
Gliforan, Tricosato e Temerctina14. O contato com esporos liberados

13 A necessidade de atualizar ou de modernizar, realizada em nome do capital, só tem


produzido ainda mais problemas na sociedade a despeito dos lucros das grandes empresas.
14 O nome do primeiro pesticida alude diretamente ao glifosato; o último parece
remeter ao Michel Temer, que assumiu a presidência após o golpe contra Dilma Rousseff.

65
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

no ar15 provocariam a chamada corpo-secagem, processo no qual se


dá a transformação em zumbi. O percurso é descrito parcialmente da
seguinte forma:
Dizem que o processo pode variar de acordo com o
metabolismo da pessoa e a quantidade de esporos com
que entra em contato. Em média, vai de dores e inchaços
à trombose e dela para a morte cerebral em pouco
mais de quarenta e oito horas, quando chega ao dito
“estado feral”. Alguns demoram mais, outros menos:
uma pessoa atacada diretamente pelos corpos secos,
a quantidade de esporos em contato com o sangue é
tanta que a secagem começa quase no instante do óbito.
Clinicamente, estão mortos, mesmo que continuem
se movendo. Mesmo que seus corpos estejam secos.
(GEISLER; FERRONI; POLESSO; MACHADO, 2019, p. 40)

Apesar de o agente causador da epidemia tenha sido os agrotóxicos,


o processo pelo qual um corpo sadio transformava-se em um corpo seco
contribuía para outras formas de contágio (de cadáver para pessoa, por
meio de esporos) e de contaminação (mordida de uma pessoa infectada).
Como é descrito no romance, pessoas em estado de corpo seco tinha
um ciclo de vida relativamente célere e quando tombavam imóveis,
“estouravam em bolsas de esporos de vida curta em contato com o ar,
mas que eram um risco a qualquer um que aspirasse num raio de vinte
metros” (GEISLER; FERRONI; POLESSO; MACHADO, 2019, p. 11). Não é
por acaso que o Mato Grosso do Sul tenha sido o espaço geográfico de
onde surgiu o surto, pois é onde se concentram os maiores produtores

Ao longo do livro também há críticas indiretas a Jair Bolsonaro, o “mito”. Além disso, no
apocalipse zumbi previsto pela trama, os políticos – os mesmos que teriam levado adiante
liberação de pesticidas – teriam sido os primeiros a evacuarem do país em seus jatinhos.
15 Cabe recordar que uma das medidas de controle da pandemia de covid-19 é o
distanciamento social recomendado de 1,5 a 2 metros de outra pessoa. Novos estudos já
demonstram que o raio que uma pessoa pode ser atingida é de 8 metros. Por isso, uma
doença ficcional como essa possui bastante ressonância com o momento atual.

66
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

de soja do país (e como vimos, a sojas transgênicas e herbicidas podem


ser uma combinação perigosa) – o município de Maracaju chegou a um
volume de produção maior que a soma total de toneladas colhidas no
Brasil em 2019 (VIEGAS, 2019).
Quando a ideia do romance foi concebida, não se esperava que o
lançamento da obra ocorresse em meio a uma crise sanitária mundial, a
de covid-19, fator externo que colaborou para que a narrativa parecesse
assustadoramente realista. Pode-se dizer que há momentos na obra que
ecoam o cenário de pandemia no Brasil, como o trecho a seguir, coletado
da história de Murilo:
Perguntei pra mãe o que tinha acontecido com a
professora Sônia. Ela disse que muita gente estava
em pânico, numa histeria coletiva, e ia fugir. Na
escola, diziam que mais de dez mil pessoas já tinham
morrido. Depois alguém dizia que mil pessoas morrem
de gripe todo ano no Brasil e ninguém fica surtando
por isso. Por que ninguém fala disso na Argentina,
hein?, perguntavam nos comentários. Isso é doença
de brasileiro, culpa do governo, culpa do PT, culpa do
FHC, culpa do Lula, culpa do Foro de São Paulo. Isso
era evolução da aids, atrás dos gays também. Isso era
culpa dos agrotóxicos, diziam outros. Isso era culpa do
aspartame. Quando perguntei pra minha mãe sobre
essas pessoas, ela me sentou na frente dela e disse que
eu não devia ficar ouvindo as bobagens dos meninos
da rua. Eu perguntei:
— Vai ficar tudo bem?
— Tu não te lembra, mas tudo sempre fica bem. Teve
o H1N1, o ebola, as pessoas têm medo. As pessoas
se movem por medo. (GEISLER; FERRONI; POLESSO;
MACHADO, 2019, p. 40)

O geógrafo Yi-fu Tuan (2005) define o medo de doenças como


uma das paisagens do medo, expressão que se refere tanto ao estado

67
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

psicológico acerca de algo ameaçador quanto ao meio ambiente em


si mesmo. Importante frisar que a doença é uma força hostil invisível,
mas que produz muito signos de seus efeitos, isto é, de sua atuação
sobre o mundo. Pandemias frequentemente evocam o temor de um
colapso da civilização, o que remete ao temor da extinção em massa.
Para Tuan, as ameaças frequentemente evocam duas sensações
diferentes no coletivo:
Uma é o medo de um colapso iminente do seu mundo
e a aproximação da morte – a rendição final da
integridade ao caos. A outra é uma sensação de que
a desgraça é personificada, a sensação de que a força
hostil, qualquer que seja sua manifestação específica,
possui vontade. (TUAN, 2005, p. 14)

Em contextos históricos de epidemias, era comum atribuição dos


males à ira de alguma divindade, e a população, por conta de suas faltas,
enfrentava “forças que exprimiam caos, dissolução e morte” (TUAN,
2005, p. 15). Logo, a escolha por um sujeito convertido em monstro em
função do mau comportamento, como o corpo seco, faz eco não apenas
com o contexto religioso – de uma praga purificadora – mas também com
as metáforas de um governo enfermo. É como se os ideais da civilização
tivessem acordado forças destrutivas em função da fantasia capitalista
de progresso e desenvolvimento, cujo efeito controverso costuma ser
o desequilíbrio ambiental e as catástrofes ambientais – eventos dentre
os quais estão acidentes nucleares, o buraco na camada de ozônio, o
aquecimento global e as epidemias. Do ponto de vista ecológico, novos
patógenos ou contaminantes podem atingir os seres humanos quando
ecossistemas são depredados – ou explorados até a exaustão – em nome
do avanço civilizatório. No Japão, são bastante conhecidos os efeitos
mutagênicos da radioatividade após os ataques nucleares a Hiroshima e
Nagazaki, assim como a contaminação de mercúrio na baía de Minamata
que, por meio da cadeia trófica, atingiu o ser humano e provocou a “doença

68
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

de Minamata”. Estudos recentes identificam que o HIV tenha circulado


entre seres humanos muito antes dos anos 1980 e localiza a corrida pela
extração da borracha e a destruição das florestas Congo pelo colonialismo
belga, ainda no início do século XX, (JARDIM, 2019) como estação zero de
uma viagem continental (África-Haiti-Estados Unidos). O surto de Ebola,
em 2013, igualmente teria relação com a exploração desenfreada do meio
ambiente, especialmente o agronegócio e a produção de azeite de dendê
(WALLACE; WALLACE, 2019). A pandemia de H1N, em 2019, mantém forte
relação com a suinocultura, assim como o HN1 está associado aos grandes
criadouros de aves, e a Encefalopatia Espongiforme Bovina, popularmente
conhecida como “doença da vaca louca”, tem relação com a criação de
gado. Não parece, portanto, sem razão que Corpos secos acabe evocando
questões recentes de surto/epidemia/pandemia como a febre chikungunya
(em 2014, no Brasil), o zika vírus (em 2015), o HIV e o H1N1. Em um sentido
amplo, o medo de doença evoca um pós-apocalipse ecológico.
O romance multiautoral faz referência a outras obras ficcionais16 que
lidaram com o tema da destruição em massa por conta de um vírus, sendo
a principal delas o romance Eu sou a lenda, de Richard Matheson. Publicada
em 1954, a história trata de uma pandemia ocorrida após a Segunda Guerra
Mundial e que teria liberado no ar o bacilo vampiris, responsável pela praga
de extinção em massa. Ecoando o medo paranoico da tensão polarizada
entre EUA e URSS durante a Guerra Fria, o mundo devastado de Matheson
constrói uma metáfora política, pois a doença é resultado de operações
militares, isto é, foi produzida por artefatos tecnológicos do progresso
(MARKENDORF, JUNIOR, 2020). O único ser humano não infectado da Terra
seria Robert Neville, imune à pandemia vampírica que engoliu o mundo.

16 Há outras referências menos importantes: Romero, um dos policiais que garante a


segurança de Mateus e seu atual amante, é uma homenagem ao diretor George Romero.
Em outro momento da narrativa, em uma passagem por Paraty, cidade conhecida por
abrigar a FLIP – Feira Literária Internacional de Paraty, uma das personagens folheia
brevemente o livro O enigma de Andrômeda, de autoria de Michael Crichton.

69
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Em Corpo secos, um dos personagens protagonistas, Mateus, é o único


imune17 à síndrome Matheson-França – e ambos os nomes, do personagem
(Mateus) e da doença (Matheson), remetem ao autor de Eu sou a lenda.
Analogamente à Eu sou a lenda, o Pastor dos Mortos convoca Mateus a
deixar as instalações militares e juntar-se aos corpos secos, imitando o
gesto de Ben Cortman que todas as noites convoca Robert Neville para fora
de sua casa-fortaleza, a fim de torná-lo, também, um vampiro. O romance
multiautoral, no entanto, nada revela sobre a identidade ou intenções do
Pastor dos Mortos, de modo que o leitor não é apresentado, como na história
de Matheson, a uma nova sociedade corpo-secante. Em comum entre as
duas obras está a transformação de doentes em monstros bestializados:
como ocorre nas narrativas zumbis, os seres humanos infectados perdem
completamente a humanidade e são referidos como animais – razão para
que, dentre os sintomas, destaque-se o “estado feral” e a movimentação
em grupo seja descrita como “matilha” ou “manada”18. Ademais, ambas
exploram o modo como a civilização desliza para a barbárie – estado sem
lei da temporalidade pós-apocalíptica.

Considerações finais
Desagregação social, perda de governo central, formação de
milícias para sobrevivência, criação de cidadelas em pontos propícios.

17 Pode ser visto com ironia o fato de o protagonista gay da trama ser o único
sujeito imune ao vírus. Afinal, durante a pandemia de HIV nos anos 1980, os gays foram
circunscritos a um grupo de risco e a AIDS foi construída nos discursos como um câncer gay.
À comunidade gay, desde então, atribui-se uma característica de abjeção, sendo os corpos
caracterizados como naturalmente “portadores” de uma doença.
18 Aqui parece haver uma contradição no interior da própria história, mesmo a escrita
por Samir Machado de Machado. A mudança da terminologia “matilha” surgida no
primeiro capítulo dedicado a Mateus para “manada” no segundo pode ser motivada
pela crítica política. Como a história carrega críticas ao atual governo de Jair Bolsonaro, a
referência aos infectados pelo coletivo de bovinos parece se referir ao “gado”, modo como
a esquerda alcunha os seguidores e defensores das ideias do presidente.

70
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Surgimento de grandes cidades-fantasmas, inquietantes em seu horror


vacui se forem metrópoles. Carros abandonados em rodovias, pontes,
avenidas – sugerindo uma fuga às pressas, a pé. Supermercados e
lojas aparecem vandalizados, e em geral o que sobrou do estoque de
enlatados ainda é disputado por sobreviventes em fuga, deslocando-se
para sabe lá onde. Animais silvestres circulam em meio à urbe, dando
a entender que a natureza poderá tomar seu espaço de volta e reinar
novamente, imperadora.
Se as narrativas-catástrofe de algum modo antecipam problemas
futuros e demonstram ser possível gerenciá-los de forma ativa, as
narrativas pós-apocalípticas seguem por um caminho pessimista,
explorando o que acontecerá quando um limite for ultrapassado. Os
personagens dessa ficção experimentam uma jornada por uma terra
arrasada, trajetória carregada de imagens catastróficas, de atmosfera
emocional sufocante e na qual as identidades encontram-se fraturadas
frente à devastação do capitalismo industrial. Se a narrativa-catástrofe
poderia funcionar como um lenitivo, aplacando ansiedades sobre a vida
moderna (o freudiano mal estar da civilização), permeada de contratos
sociais e uma rede complexa de relações humanas, o imaginário da
ficção pós-apocalíptica oferece outra temporalidade: o mal estar do fim
da civilização. Em Corpos secos, Mateus e Regina conseguem escapar
com os últimos sobreviventes em uma fragata da marinha e a narração
registra: “Os dois observam a nuvem espessa de pássaros sobrevoando
a cidade feito uma praga bíblica e o Cristo [Redentor] decapitado no
horizonte19. [...] Conforme o país ao redor vai morrendo, tudo o que
há pela frente é o passado” (GEISLER; FERRONI; POLESSO; MACHADO,
2019, p. 169, grifo nosso). O pós-apocalíptico carrega, portanto uma
ambiguidade, não é algo desejado, muito embora seja fantasiado,

19 Vale lembrar que é uma imagem forte, remetendo a uma terra sem proteção de Deus,
mas que recai nos clichês dos filmes-catástrofe.

71
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

ao modo de uma profecia laica – são os seres humanos que podem


se destruir, não estamos à mercê de deus ou do diabo, ambos estão
mortos. A mensagem moralista não passa ao largo das histórias, pois
é bem possível ver no correr do romance multiautoral certa defesa
por uma forma de manejo agroecológico e sustentável, radicalmente
contra sementes transgênicas, fertilizantes químicos e pesticidas.
Ora, a pandemia ficcional do corpo seco grassou por seis meses no
tempo diegético do romance e fez um teto político entrar em colapso,
desabando sobre todos e deixando apenas escombros. A Natureza
possui resiliência, nós não, constatação que levou Constância, uma das
protagonistas, a registrar:
O ser humano é muito idiota mesmo. Sempre pensei
que o mundo fosse acabar. Sempre acreditei naquelas
profecias, em grandes catástrofes, calendário Maia,
Nostradamus, até no Hercólubus eu botei fé, aquelas
merdas me assombravam de verdade. Mas nunca me
ocorreu que o que acabaria seria a humanidade, essa
praga. Era tão óbvio. O planeta continua. O planeta é
maravilhoso, inteligente, vai se recuperar muito bem. A
gente se mata. Caralho como a gente pode ser tão podre?
(GEISLER; FERRONI; POLESSO; MACHADO, 2019, p. 35)

Embora o Iluminismo tenha insuflado a história do ser humano com


uma série de promessas para o futuro, ao longo do tempo as utopias
foram destruídas (vide as duas Grandes Guerras Mundiais e a queda do
Muro de Berlim) e decretou-se a morte de deus, gerando um profundo
pessimismo na sociedade. Colocado no centro do mundo, ao modo de um
deus, o ser humano só pôde demonstrar que é uma força com voracidade
para o acúmulo e a exploração e cuja ferocidade volta-se contra os seus
próprios pares – afinal, é monumento de carne com pés de barro. Ou,
nas palavras de Otto Friedrich, o homem é como um “Fausto [que] está
novamente à solta, sob a forma de um cientista que espera demais do

72
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

universo de Deus” (2000, p. 13). O pós-apocalíptico, por fim, talvez seja


uma temporalidade reflexiva, vivenciada após uma grande aventura pela
experimentação desenfreada, um modo de dotar de significado e valor os
restos do que existiu – um tipo de propósito divino, compreendido apenas
diante da ruína:
O fim do mundo, de certo modo, é um trocadilho. Esse
fim pode significar não apenas a conclusão, mas também
a finalidade do mundo. Assim como já se disse que a
vida de um homem só pode ser compreendida na hora
de sua morte, também o fim do mundo, a destruição do
mundo, parece implicar que há uma finalidade superior
na existência dele. Portanto, o fim do mundo evidencia
a finalidade do mundo. (FRIEDRICH, 2000, p. 13)

Referências
ALEGRETTI, Laís. Covid: por que ventilar ambientes é mais importante do que
limpar compras. BBC Brasil. Caderno Geral. 13 abr. 2021. Disponível em: https://
www.bbc.com/portuguese/geral-56723635. Acesso em: 14 abr. 2021.
ARGULLOL, Rafael. O fim do mundo como obra de arte – um relato da cultura
ocidental. Tradução de Ebréia de Castro Alves. Rio de janeiro: Rocco, 2002.
BAZIN, André. Sobre Why We Fight. In: BAZIN, André. O que é cinema? Tradução
de Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Cosac Naify, p. 41-46, 2014.
BBC Brasil. Coronavírus: EUA são acusados de “pirataria” e “desvio” de
equipamentos que iriam para Alemanha, França e Brasil. BBC Brasil. Seção
Internacional. 4 abr. 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/
internacional-52166245. Acesso em: 8 abr. 2020.
DOMINGUES, Filipe. Entenda o que é o glifosato, o agrotóxico mais vendido do
mundo. G1. Caderno Natureza. 26 maio 2019. Disponível em: https://g1.globo.
com/natureza/noticia/2019/05/26/entenda-o-que-e-o-glifosato-o-agrotoxico-
mais-vendido-do-mundo.ghtml. Acesso em: 9 abr. 2021.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução de Hildegard
Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

73
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

ESPOSITO, Roberto. Os partidos e o vírus: a biopolítica no poder. Literatura


traduzida no Brasil. Disponível em: http://literatura-italiana.blogspot.
com/2020/04/os-partidos-e-o-virus-biopolitica-no.html?m=1. Acesso em: 14
abr. 2020.
FRIEDRICH, Otto. O fim do mundo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Record, 2000.
GEISLER, Luisa; FERRONI, Marcelo; POLESSO, Natalia Borges; MACHADO, Samir
Machado de. Corpos secos. Rio de janeiro: Alfaguara, 2020.
JARDIM, Eduardo. A doença e o tempo – aids, uma história de todos nós. Rio de
Janeiro: Bazar do tempo, 2019.
LOBO, Paula. Como Nova Iorque se fechou para resistir à covid-19. Globo.
Mundo. 12 abr. 2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/como-
nova-york-se-fechou-para-resistir-covid-19-24366343. Acesso em: 12 abr.
2020.
MACIEL, Nahima. Pandemia é cenário para ficção de autores brasileiros.
Correio Braziliense. Blog Leio de Tudo. 4 maio 2020. Disponível em: https://
blogs.correiobraziliense.com.br/leiodetudo/pandemia-zumbi-ficcao-autores-
brasileiros/. Acesso em: 4 abr. 2021.
MAISONNAVE, Fabiano. Hospital referência de coronavírus do AM colapsou,
diz funcionário de plantão. Folha online. Cotidiano. 10 abr. 2020. Disponível
em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/hospital-referencia-
de-coronavirus-do-am-colapsou-diz-funcionario-de-plantao.shtml?origin=uol.
Acesso em: 10 abr. 2020.
MARKENDORF, Marcio; JUNIOR, Helvecio Ferreira Furtado. Apocalipse vampiro:
a monstruosidade pandêmica em The Omega Man. In: MARKENDORF, Marcio;
ROSSI, Aparecido Donizete; ZANINI, Claudio Vescia. Monstars – monstruosidade
e horror audiovisual. Rio de Janeiro: Dialogarts, p. 77-95, 2020.
MARKENDORF, Marcio. Os zumbis negros, monstros da escravidão haitiana.
In: MAGGIO, Sandra Sirangelo; ZANINI, Claudio Vescia (Orgs.). Transposições
fílmicas – as literaturas de língua inglesa no cinema. Rio de Janeiro: Bonecker,
p. 138-155, 2018.
MARKENDORF, Marcio. O preconceito sem nome – representações da
soropositividade e horror às doenças sexualmente transmissíveis. Revista
Subtrópicos, Florianópolis: Edufsc, n. 24, p. 6-7, abril/2016.

74
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

MATHESON, Richard. Eu sou a lenda. Tradução Delfin. São Paulo: Aleph, 2015.
MOREIRA, Carlos André. Romance escrito a oito mãos narra distopia sobre
uma infecção letal que coloca o mundo em colapso. GZH. GZH Livros. 9 abr.
2020. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/livros/
noticia/2020/04/romance-escrito-a-oito-maos-narra-distopia-sobre-uma-
infeccao-letal-que-coloca-o-mundo-em-colapso-ck8rl0y62010201qw7aop7oxp.
html. Acesso em: 5 abr. 2021.
MORI, Leticia. Glifosato: mitos e verdades sobre um dos agrotóxicos mais usados
do mundo. BBC Brasil. Caderno geral. 23 fev. 2019. Disponível em: https://www.
bbc.com/portuguese/geral-47320332. Acesso em: 5 abr. 2021.
PALAHNIUK, Chuck. Clube da luta. Tradução de Vera Caputo. Nova Alexandria:
São Paulo: 2000.
SILVA, Daniel Neves. Corpo-seco. Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.
uol.com.br/folclore/corpo-seco.html. Acesso em: 9 abr. 2021.
SONTAG, Susan. A imaginação da catástrofe. In: SONTAG, Susan. Contra a
interpretação. Tradução de Ana Maria Capovilla. Porto Alegre: L&PM, p. 243-262,
1987.
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. Tradução de Rubens Figueiredo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
STUENKEL, Oliver. A pandemia revela que mundo pós-ocidental já chegou. El País.
Seção de Opinião. 6 abr. 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/
opiniao/2020-04-06/pandemia-revela-que-mundo-pos-ocidental-ja-chegou.
html. Acesso em: 8 abr. 2020.
TOOGE, Rikardy. Governo libera mais 2 agrotóxicos inéditos e 55 genéricos. G1.
Caderno Agro. 27 nov. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/
agronegocios/noticia/2019/11/27/governo-autoriza-mais-57-agrotoxicos-sendo-
2-ineditos-total-de-registros-em-2019-chega-a-439.ghtml. Acesso em: 6 abr.
2021.
TUAN, Yi-Fu. Paisagens do medo. Tradução de Lívia Oliveira. São Paulo: Editora
Unesp, 2005.
VERDÚ, Daniel. Itália se prepara para conviver com o coronavírus. El País.
Internacional. Ciência. 6 abr. 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/
ciencia/2020-04-05/italia-se-prepara-para-conviver-com-o-virus.html. Acesso
em: 8 abr. 2020.

75
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

VIEGAS, Anderson. Se fosse país, município que produz mais soja em MS seria
o 14º maior produtor mundial do grão. G1. Caderno Mato Grosso do Sul.
11 abr. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/ms/mato-grosso-do-sul/
noticia/2019/04/11/se-fosse-pais-municipio-que-produz-mais-soja-em-ms-seria-
o-14o-maior-produtor-mundial-do-grao.ghtml. Acesso em: 7 abr. 2021.
VIVAS, Fernanda Vivas; Modzeleski, Alessandra. Comissão especial da Câmara
aprova projeto que flexibiliza o uso de agrotóxico. G1. Caderno Política. 25 jun.
2018. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/comissao-especial-
da-camara-aprova-texto-base-de-projeto-que-flexibiliza-uso-de-agrotoxico.
ghtml. Acesso em: 9 abr. 2021.
WALLACE, Rob; WALLACE, Rodrick. Ebola, doença do colonialismo. Jornal
Outras Palavras. Caderno Descolonizações. 7 ago. 2019. Disponível em: https://
outraspalavras.net/descolonizacoes/ebola-doenca-do-colonialismo/. Acesso
em: 9 abr. 2021.

76
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

REALIDADES APOCALÍPTICAS, DISTÓPICAS E


PÓS-APOCALÍPTICAS NA FICÇÃO DE MIA COUTO
Flavio García

Mia Couto é um escritor cuja obra veio à tona no período que


alguns estudiosos da literatura moçambicana chamam de Consolidação
(MIAMBO), o qual abrange cerca de dezessete anos, indo desde
1975, quando terminou a guerra colonial, até 1992, momento de
apaziguamento entre a RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana) e
a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), com o fim da guerra
de desestabilização.
Esses dois grupos bélico-políticos representa(va)m forças étnicas
que luta(ra)m entre si pela hegemonia de poder após a independência
nacional. Uma coalização em torno da FRELIMO assumiu o governo, e
os militantes da RENAMO levaram o país à guerra civil, que durou quase
duas décadas, instaurando o caos por toda parte e provocando a morte
de muitos civis.
Mia Couto enveredou, em sua trajetória de escritor, tanto pela
diversidade de gêneros e subgêneros da literatura, quanto pela ensaística,
arriscando-se em artigos de opinião. Biólogo e jornalista, antes de ser
ficcionista, ele nunca abandonou, a despeito de seu crescente sucesso
e dos variados prêmios com os quais vem sendo agraciado pelo mundo
afora, nem as agruras que circundam o exercício da biologia de campo nas
savanas longínquas de sua terra natal, nem a tenacidade da investigação
e a coragem do noticiário que envolvem o mister do jornalista. Por isso,
sua obra compõe-se de imaginários advindos de realidades diversas

77
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

e multifacetadas que ficcionaliza, com um olhar imiscuído de múltiplos


referenciais buscados no quotidiano.
A veia ficcional de Mia Couto despontou, nos alvoreceres da década
de 1980, em meio aos movimentos de afirmação da independência,
soberania e identidade nacionais, logo, foi natural que escrevesse sobre
valores telúricos, bem como sobre as guerras pelos quais o país passou.
Com os constantes ataques de grupos armados em diferentes localidades,
continua sendo natural que ainda escreva sobre aquelas guerras e suas
consequências, mas, também, incorpore a mortandade e os desastres
provocados por esses grupos terroristas.
No entanto, como ele admite em muitos de seus artigos de opinião,
perpassou o momento iniciático, no qual era necessário afirmar-se
moçambicano – e africano, de uma maneira mais abrangente – frente ao
estrangeiro, e assumiu-se homem de um mundo global(izado) – para além
de Moçambique e, mesmo, da África –, assimilando, consequentemente,
a inevitável diversidade cultural para aqueles que não se queriam
relegados ao gueto – como ele nunca o quis. Ele passa, assim, a ser um
sujeito do mundo.
Mia Couto deixou-se ir em direção às vertentes maravilhosa,
fantástica, fantasista da literatura, encharcado das crenças locais, e
despiu-se dos pudores policialescos que vigiavam os artistas e intelectuais
de seu tempo, os quais o obrigavam ao compromisso com vertentes
sumamente realistas, de fundo político e socializante, sem primar pela
qualidade estética.
A obra de Mia Coutos reflete, portanto, olhares argutos e ecoa
vozes aguerridas, denunciando mazelas tanto de Moçambique, em
particular, quanto da África, como um todo, ou do mundo, em geral, com
especial atenção para o Brasil, onde sempre costuma estar, seja física,
seja mentalmente. Questões sociais, econômicas, políticas, culturais,

78
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

religiosas, humanitárias afligem-no, e ele as tematiza e problematiza em


sua escrita ou em suas intervenções orais. Nesse cenário, as pandemias
pelas quais a humanidade vem passando nunca puderam ficar de fora de
seu imaginário1. Elas surgem em seus textos ficcionais e não ficcionais.
Admitindo-se que as guerras pelas quais Moçambique passou e os
percalços bélicos por que ainda passa, ou, mesmo, que as intempéries
da natureza que se abatem sobre aquele recanto do Índico configuram
cataclismos2, movidos ou não pelas mãos do homem3, há muitos
exemplos de narrativas apocalíticas 4, distópicas5 e pós-apocalíticas6 na
obra de Mia Couto.
O objeto desta leitura é a crônica “O gentil ladrão” (COUTO, 2020a),
publicada por Mia Couto na revista portuguesa Visão, em abril de 2020, logo
no início da assunção da pandemia da covid-19, envolvendo cataclismos
de ordem variada, com referências a narrativas apocalípticas, distópicas

1 O termo imaginário está sendo empregado para designar o conjunto de imagens textuais,
compostas pelo autor de um texto, a partir do recurso aos referentes extratextuais. Subjaz
a essa questão, a teoria dos mundos possíveis e a estrutura dos signos, em que se têm o
significante, correlacionado às imagens, e o significado, aos referentes.
2 Cataclismo, significa, em sentido lato, desastre, e é o móvel das narrativas apocalípticas
distópicas ou pós-apocalíticas.
3 Guerras, revoluções, matanças são exemplos de cataclismos movidos pelas mãos do
homem; erupções vulcânicas, terremotos, maremotos, furações, pandemias são exemplos
de cataclismos naturais, cuja ocorrência raramente depende da ação humana, ainda que o
homem os possa deflagrar ou agravar.
4 A narrativa apocalíptica estrutura-se em um mundo possível cujo tempo presente
(narrado no passado) é ruim, tendo sido produto de referentes de um tempo passado que se
supunha melhor, prenunciando um tempo futuro quer se imagina inaceitável (RAMOS, 2002).
5 O mundo possível da narrativa distópica é a imagem do tempo presente (narrado no
passado), com espaço, personagens e ações compostos a partir dos referentes de barbárie
que nele se manifestam (HILÁRIO, 2013).
6 A narrativa pós-apocalíptica encena, narrando no passado, um tempo presente, de
natureza distópica, que foi produto de um tempo passado apocalíptico. Em geral, essas três
vertentes discursivo-textuais se imbricam, e a narrativa apocalíptica é igualmente distópica,
ou a narrativa distópica também o é pós-apocalíptica.

79
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

e pós-apocalípticas. Nesse texto, assevera-se o caos vivido pela gente


desassistida, nos lugares mais distantes dos centros urbanos; o desprezo a
que foram relegados os anciões, esquecidos de sua importância ancestral;
as rememorações de cataclismos passados, que deixaram rastros; as
insólitas situações trazidas pela nova pandemia que se instalava.
Ariel Gómez Ponce defende que “ficções pós-apocalípticas é [um]
a categoria utilizada para englobar o conjunto de narrativas dedicadas
a imaginar as consequências de cataclismos mundiais” (PONCE, online,
tradução nossa)7. Caso ele esteja empregando o verbo imaginar para
se referir aos processos composicionais das imagens que integram os
mundos de ficção8, compostas pelo escritor – universo intratextual –, a
partir do acesso aos referentes buscados no mundo objetivo – universo
extratextual –, conforme a teoria dos mundos possíveis9, tal assertiva
dispensa quaisquer reparos. Todavia, se ele estiver empregando o verbo
no sentido de conjecturar, presumir, pressupor a afirmação necessita de
muitos retoques que delimitem seu entorno semântico, determinando,
consequentemente, o escopo teórico-conceitual que abarca.
Parte da ficção que se adjetiva pós-apocalíptica, notadamente
aquela que não adere de todo ao sistema semionarrativo dos discursos
do metaempírico10, não encena as consequências dos cataclismos como

7 “Ficciones pos-apocalípticas es la categoría utilizada para englobar el conjunto de


narrativas dedicadas a imaginar las consecuencias de cataclismos mundiales” (texto original
em espanhol).
8 “Num mundo ficcional, manifestam-se [...] os chamados sistemas epistémicos, correspondendo
às crenças e às pressuposições das personagens (ideologias, atitudes ético-morais, opções
axiológicas, convicções religiosas, etc.). [...] [N]a relação de cooperação interpretativa o leitor projeta
sobre a história, através de mecanismos de interferência e de previsão, as suas próprias atitudes
epistémicas e a sua radicação no mundo real” (REIS, 2018, p. 276).
9 O “mundo possível é um construto abstrato, funcionando como modelo alternativo ao
mundo real; mundo ficcional é uma entidade ‘povoada’ por elementos com feição concreta
(personagens, objetos, lugares, etc.) [...]” (REIS, 2018, p. 274).
10 Conforme Filipe Furtado, trata-se de termo cuja “formulação visa[...] constituir mais
um sinônimo do que tradicionalmente se denomina sobrenatural, elemento indissociável

80
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

produto insólito. Uma parcela dessa ficção não apresenta mundos


possíveis cuja cronotopia11 marque-se por tempo ou espaço posterior(es)
à(s) catástrofe(s). Esses textos trazem à cena tanto o próprio cataclismo em
si – em seus tempo e espaço presentes –, quanto as suas consequências
– nos tempo e espaço posteriores –, aproximando o mundo narrado – em
tempo e espaço passados – de cenários distópicos, marcados por valores
negativos, seja do que se deu, seja do que se dá, e do que poderá a vir a
ser – em jogos cíclicos de causas e consequências.
Ponce enumera, como exemplos de cataclismos comuns à ficção
pós-apocalíptica:
Desastres naturais (terremotos, maremotos,
meteoritos, pestes), as invasões de outras formas de
vida (alienígena ou espécies primitivas como grandes
dinossauros), a irrupção massiva da monstruosidade
(zumbis, vampiros), ou as imprudências do homem
(guerras nucleares, armas biológicas) são exemplos
dos cenários que o pós-apocalíptico elabora,
mobilizado por um impulso distópico que expõe como
as sociedades poderiam conviver com as sequelas
de grandes catástrofes e sobreviver a sua extinção.
(PONCE, online, tradução nossa)12

da esfera semântica do género fantástico”, prestando a “designar a grande diversidade de


figuras, acções, objectos, cenários e ideias susceptíveis de surgir quer no fantástico quer em
géneros próximos como o maravilhoso, o estranho ou a ficção científica”. (Disponível em:
http://www.insolitoficcional.uerj.br/m/metaempirico/. Acesso em: 27 abr. 2021).
11 A opção pelo termo cronotopia, reunindo, em um único vocábulo, “crono” (tempo) e
“topos” (lugar), decorreu da admissão de que, no universo intratextual da ficção apocalíptica,
distópica ou pós-apocalíptica, tempo e espaço apresentam implicações em um mesmo nível
quando se quer referir ao cenário em que se desenrolam as ações narradas, especialmente
no que tange às causas e às consequências que determinam as alterações da realidade.
12 “Los desastres naturales (terremotos, maremotos, meteoritos, pestes), las invasiones
de otras formas de vida (alienígena o especies primitivas como grandes saurios), la
irrupción masiva de la monstruosidad (zombies, vampiros), o bien las imprudencias de lo
humano (guerras nucleares, armas biológicas) son ejemplos de aquellos escenarios que
lo pos-apocalíptico elabora, movilizado por un impulso distópico que exhibe cómo las

81
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Mia Couto estreou como cronista no “Caderno Opinião”, da


revista Visão, do grupo editorial SAPO, publicando a cada quatro
semanas, em novembro de 2019, pouco antes de emergiram as notícias
acerca do SARS-CoV-2 (em inglês, Severe Acute Respiratory Syndrome
Coronavirus 2). Suas crônicas nesse periódico, como outras que escreveu
anteriormente, constroem-se recorrendo a diferentes estratégias de
composição ficcional e versam sobre temas variados. Parte desses
temas, como as guerras e seus rescaldos, os idosos e a ancestralidade,
a mulher e as opressões que sofre, as crenças telúricas e as práticas
religiosas são recorrentes em toda a sua obra.
Em abril de 2020, ele publicou a crônica “O gentil ladrão” (COUTO,
2020a), na qual o tema da pandemia da covid-19, reconhecida pela OMS
(Organização de Mundial de Saúde) em março daquele ano, é o tema
central. A seguir, em maio, com o intervalo de uma crônica entre ambas,
ele publicaria “A quarentena infernal” (COUTO, 2020b), voltando ao
mesmo tema.
A ação da primeira dessas crônicas dá-se no campo, longe do centro
urbano, envolvendo um ancião desassistido e isolado, que foi personagem
de outros cataclismos anteriores à pandemia da covid-19, os quais deixaram
marcas em seu quotidiano hodierno, conforme rememora, na função de
personagem-narrador. A ação da segunda delas desenrola-se no quarto de
um escritor, no apartamento em que ele mora, localizado no centro urbano,
e não lhe vêm quaisquer memórias de cataclismos anteriores.
O título “O gentil ladrão”, por sua combinação sintagmática, prenuncia
o inaudito13. Contudo, muito embora o texto tenha a sua centralidade no

sociedades podrían convivir con las secuelas de grandes catastrofismos y sobrevivir a su


extinción” (texto original em espanhol).
13 Esse processo correlacional de tema e composição de personagem que se pode
verificar em “O gentil ladrão” é reincidente na obra de Mia Couto. A respeito, vale conferir
García, 2020.

82
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

distópico – o momento ruim que vive – e no pós-apocalíptico – momento


que resulta de cataclismos anteriores –, trazendo, em sua emolduração,
o apocalítico – o prenúncio da distopia –, ele não incorpora, em seu
mundo ficcional, alienígenas, dinossauros, zumbis, vampiros ou outras
monstruosidades de natureza metaempírica. Nenhuma de suas categorias
narrativas é composta de maneira incongruente: o espaço físico é demarcado
com referências a locais reconhecíveis como próprios do quotidiano; o
tempo cronológico refere ao passado com informações confiáveis e aponta
para um futuro possível e, de certa maneira, esperado; as personagens
são figuradas em conformidade com os seres da realidade extratextual; as
ações não excedem às expectativas da plausibilidade humana.
A história começa por um acontecimento aparentemente previsível:
“Batem à porta” (COUTO, 2020a, online). Entretanto, em sua primeira
intervenção, a personagem-narrador denuncia a estranheza diante desse
fato que lhe deveria ser corriqueiro: “Bater é uma maneira de dizer. Moro
longe de tudo, só a fome e a guerra me vêm visitar” (COUTO, 2020a, online).
Tem-se, então, a informação de que não vem sendo comum baterem-lhe
à porta, porque mora afastado, e se sabe que tem passado fome, além de
estar convivendo com reveses da guerra. Instituem-se, dessa maneira, as
primeiras referências ao espaço – morar longe –, ao tempo – o período
da guerra – e à ação – um ser isolado –, com todas essas referências
intervindo na figuração da personagem14.
Insistem batendo-lhe à porta, e ele vai atender. Passa-se, então, a
saber um pouco mais de sua figuração, pois ele diz que vai correndo, mas
“[c]orrer é uma maneira de dizer. Arrasto os pés, os chinelos rangendo no
soalho. Com a minha idade, é tudo o que posso. A gente começa a ficar

14 “A figuração designa um processo ou um conjunto de processos discursivos e


metaficcionais que individualizam figuras antropomórficas, localizadas em universos
diegéticos específicos, com cujos integrantes aquelas figuras interagem, enquanto
personagens” (REIS, 2018, p. 165).

83
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

velho quando olha o chão e vê um abismo” (COUTO, 2020a, online). Trata-


se de um ancião, que se encontra sozinho em casa onde mora, afastado
dos centros urbanos, em um tempo de guerra.
Ele abre a porta e vê “um homem mascarado” que “[a]o notar a [...]
[sua] presença, [...] grita – Três metros, fique a três metros!” (COUTO,
2020a, online). A solidão do local – espaço –, as circunstâncias belicosas
do momento – tempo – e o inusitado da situação – ação – fazem-no crer
que o outro seja um assaltante – por estar mascarado – e que esteja
com medo – por mandar-lhe ficar a três metros. Aquele suposto temor
o inquieta, porque ele sabe que os “[l]adrões medrosos são os mais
perigosos” (COUTO, 2020a, online).
O texto resvala, enganosamente, no metaempírico, sem, apesar
disso, ter quaisquer contornos sobrenaturais ou extraordinários, mas
aproxima-se, entrementes, do grotesco moderno que, para David Roas,
“distorce e exagera a superfície da realidade para mostrar a deslocação
da realidade quotidiana, o caos e o sem sentido do mundo. E o faz,
evidentemente, combinando o humor e o terrível” (ROAS, 2008, p. 205,
tradução nossa)15. Aquele mascarado “[r]etira da bolsa uma pistola”
(COUTO, 2020a, online), aponta-a na direção do senhor, que a acha
estranha. É uma arma “de plástico branco, emitindo um raio de luz
verde” (COUTO, 2020a, online). Aponta a pistola para o rosto do idoso,
que fecha os olhos, obediente. Sente “quase uma carícia [com] aquele
raio de luz sobre o [...] rosto” (COUTO, 2020a, online) e pensa que “[m]
orrer assim é um sinal [de] que Deus respondeu às [...] [suas] preces”
(COUTO, 2020a, online).
Determinados aspectos começam a ser deslindados. “O mascarado
tem uma voz doce, um olhar delicado” (COUTO, 2020a, online), e esses

15 “distorsiona y exagera la superficie de la realidad para mostrar la dislocación de


la realidad cotidiana, el caos y sinsentido del mundo. Pero lo hace, evidentemente,
combinando el humor y lo terrible” (texto original em espanhol).

84
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

traços de sua figuração justificam a adjetivação presente no título: “gentil


ladrão” (COUTO, 2020a, online). O velho não se deixa enganar com a
doçura da voz e a delicada do olhar, uma vez que, como revela, explicando
sua inquietude, “os mais cruéis soldados surgiram-[...][lhe] com modos de
anjo” (COUTO, 2020a, online): ele é uma vítima da guerra.
As guerras, sejam elas de qualquer tipo (nucleares, biológicas...,
dizimam pessoas, destroem espaços, alteram realidades, e aqueles que
por elas passam vivem outra realidade no tempo posterior. Para os
vencedores, essa realidade costuma ser a consecução, ainda que parcial,
de uma utopia desejada; para os perdedores, ela sempre é uma realidade
distópica. Seja como for, para uns e para outros, as guerras configuram-se
como narrativas apocalípticas, em que há mortes – extermínio de seres
– e destruição – destruição de espaços e tempos imemoriais. Portanto, a
narrativa da guerra, em seu passado, é apocalíptica, em seu presente, é
distópica, e em seu futuro, pós-apocalítica. A personagem-narrador vive
um passado continuado no presente, antevendo um (des)futuro.
Seduzido pela presença do mascarado, posto que, há tempo,
ninguém lhe fazia companhia, o ancião acabou entrando no que, pela
vestimenta e falas de sua visita, pensava ser um jogo, com o fingimento
de um e de outro. Ficção e realidade permutam-se, ludicamente,
implicando a composição de espaço, tempo e personagens, bem como
incidindo sobre a ação, conforme teorizado por Umberto Eco (1994) e
poetizado Fernando Pessoa:
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente. (1932)

Ele dá início à peleja e pede “ao visitante que baixe a pistola e tome
lugar na única cadeira que [...] [lhe] resta[va]” (COUTO, 2020a, online).
Tal informação reforça a pobreza e a solidão antes prenunciadas. Quase

85
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

tudo o que pudesse ter se lhe foi ou pilhado pelos soldados que por ali
passavam ou consumido pelo tempo, restando-lhe apenas uma cadeira,
e mais não havia de precisar, pois vivia solitário naquela casa, e ninguém
o ia visitar.
Tornando aos meandros do grotesco moderno, em que se combinam,
como destaca Roas (2008), o humor e o terrível para constatar o absurdo
e o horror do mundo, o velho repara que o mascarado está com os
sapatos envoltos por sacos de plástico e conclui que pretendia não deixar
marcas de suas pegadas no chão. Obviamente, tratava-se de um ladrão.
Sem abandonar o jogo, pede-lhe para baixar a máscara, diz-lhe que pode
ter toda a confiança. Todavia, “[o] homem sorri com tristeza e murmura
– Nestes dias não se pode confiar, as pessoas não sabem o que trazem
dentro delas” (COUTO, 2020a, online). O idoso acredita que a fala do
inesperado visitante fosse uma “enigmática mensagem” (COUTO, 2020a,
online), ele estaria pensando que “sob [...] [aquela] aparência desvalida, se
esconde um valioso tesouro” (COUTO, 2020a, online).
O homem olhou ao redor, e o velho pensou que ele o fizera em busca
do que pudesse roubar. Depois de observar o entorno, “[d]iz que vem dos
serviços de saúde” (COUTO, 2020a, online), mas o ancião não crê e ri. Para
ele, é “um jovem ladrão, [que] não sabe mentir” (COUTO, 2020a, online).
O mascarado continua e “[d]iz que os seus chefes estão preocupados com
uma doença grave que se espalha rapidamente” (COUTO, 2020a, online).
Mantendo o fingimento, o senhor faz de conta que acredita.
Nesse momento, anuncia-se o acontecimento apocalíptico – uma
doença grave que se espalha rapidamente, a covid-19 –, em um cenário
distópico – devastado pela guerra –, que se configura como pós-apocalíptico
– resultando em isolamento e pobreza. A personagem-narrador enumera,
então, uma sequência de cataclismos – epidemias, endemias, pandemias –
que se abateram sobre a gente do lugar, que fazem parte de sua memória,
levando-o àquela existência solitária e desassistida:

86
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Há sessenta anos atrás quase morri de varíola.


Alguém me veio visitar? A minha esposa morreu de
tuberculose, alguém nos veio ver? A malária roubou-
me o meu único filho, fui eu que o enterrei sozinho.
Os meus vizinhos morreram de sida, nunca ninguém
quis saber. (COUTO, 2020a, online)

Primeiro, ele se referiu à varíola, doença infectocontagiosa,


causada pelo vírus Orthopoxvirus Variolae, da família Poxiviridae, que,
considerando apenas dados relativos ao século XX, teria levado a
óbito mais de trezentos milhões de pessoas16. A seguir, à tuberculose,
outra doença infectocontagiosa, causada pela bactéria Mycobacterium
Tuberculosis, que, ao longo de todos os tempos, se acredita tenha
vitimado letalmente mais de um bilhão de pessoas17. Adiante, à malária,
doença infecciosa aguda ou crônica, causada pela picada do mosquito
Anopheles, transmitida às pessoas por protozoários parasitas do gênero
Plasmodium, cujo quantitativo de mortes não é estimado. Por fim, à
SIDA, Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS, em inglês, Acquired
Immunodeficiency Syndrome), doença resultante de complicações
provocadas pelo VIH, vírus da imunodeficiência humana (HIV, em
inglês, human immunodeficiency virus), que, entre 1981, quando de sua
descoberta, até a segunda década do século, teria levado à morte mais
de trinta e cinco milhões de pessoas, havendo, ainda no século XXI, nos
países africanos, cerca de um terço de todos os infectados no mundo18.
Trata-se de “cenários que o pós-apocalíptico engendra, mobilizado por
um impulso distópico que exibe como as sociedades poderiam conviver

16 Disponível em: https://sbim.org.br/noticias/1200-organizacao-mundial-da-saude-


oms-celebra-40-anos-da-erradicacao-da-variola. Acesso em: 30 abr. 2021.
17 Disponível em: https://diariodamanha.com/noticias/conheca-as-maiores-pandemias-
da-historia-do-coronavirus-a-gripe-espanhola/. Acesso em: 30 abr. 2021.
18 Disponível em: https://www.msf.org.br/o-que-fazemos/atividades-medicas/hivaids.
Acesso em: 1 mai. 2021.

87
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

com as sequelas de grandes catástrofes” (PONCE, online, tradução


nossa)19. Sessenta anos (?)daquele momento em que o mascarado
anuncia um novo cataclismo, e ainda tendo vizinhos à sua volta, mulher
e filho, ele sofreu de varíola – e sobreviveu a ela –, mas, já naquele
tempo, ninguém o foi ver, porque morava longe dos centros. À frente,
sua mulher foi acometida de tuberculose, não havendo, novamente,
socorro externo, e ela morreu, ficando a família reduzida a ele e o filho.
Este foi tomado pela malária, também morreu, e, sozinho, ele o teve que
enterrar. Sozinho em casa, perdeu os vizinhos para a AIDS, sem que eles
tivessem tido socorro médico. Suas rememorações são de endemias,
epidemias e pandemias que, emolduradas pelas guerras, foram se
abatendo sobre si, sua família e o lugar.
O agente de saúde – com máscara no rosto e sapatos recobertos por
plástico –, que o idoso pensa ser um “mentiroso assaltante[,] não desiste”
(COUTO, 2020a, online). Na visão do velho, “[a]pura os métodos, sempre de
modo tosco” (COUTO, 2020a, online). Justifica-se, dizendo que “a pistola que
[...] apontou era para medir a febre” (COUTO, 2020a, online) e conclui que
o ancião está bem. Este finge “respirar de alívio” (COUTO, 2020a, online). O
visitante quer saber se tem tosse, e ele sorri, condescendente.
Vem-lhe a lembrança de outro cataclismo. Tosse “foi coisa que quase
[...] [o] levou à cova, depois de ter vindo das minhas há vinte anos. Desde
então, as [...] costelas quase não se movem, o [...] peito é feito apenas
de poeira e pedra. No dia que voltar a tossir, será para pedir licença nas
portas de São Pedro” (COUTO, 2020a, online). Somam-se, aos dissabores
já referidos das guerras, da varíola, da tuberculose, da malária, da AIDS e
da covid-19 – anunciada subliminarmente pelo visitante mascarado –, os

19 “escenarios que lo pos-apocalíptico elabora, movilizado por un impulso distópico que


exhibe cómo las sociedades podrían convivir con las secuelas de grandes catastrofismos
[…]” (texto original em espanhol).

88
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

sofrimentos do trabalho na exploração mineira20, que, semelhantemente


àquelas doenças, matou muitos africanos.
Face ao verificado, o sujeito – que o idoso visitado continua
identificando como sendo um impostor –, chega à conclusão de que
ele “não [...] [lhe] parece estar doente”, mas observa que “pode ser um
portador assintomático” (COUTO, 2020a, online). A narrativa incide, mais
uma vez, no grotesco e revela o caos, o fim do mundo e do ser humano,
como são admitidos na realidade quotidiana (ROAS, 2021). Assustado, o
ancião pergunta “[p]ortador de quê?” (COUTO, 2020a, online), e, invocando
Deus, diz que o mascarado pode revistar a casa, ele é um homem sério,
quase nunca sai de casa.
“O visitante sorri e pergunta se [...] [ele sabe] ler” (COUTO, 2020a,
online). Em resposta, encolhe os ombros. Assim, “ele coloca sobre a mesa
um documento com instruções de higiene e uma caixa com barras de
sabão, um frasco com aquilo a que ele chama de ‘uma solução alcoólica’”
(COUTO, 2020a, online). O velho pensa tratar-se de um coitado, “deve
imaginar que, como todos os velhos solitários, [ele anda] [...] metido na
bebida. À despedida, o intruso diz – Daqui a uma semana passo por aqui a
visitá-lo” (COUTO, 2020a, online).
O início do desfecho narrativo reúne, em uma única situação
disfórica, todos os cataclismos até então relatados. “[V]em à cabeça
[do idoso] o nome da doença de que fala o visitante” (COUTO, 2020a,
online). Ele conhece “bem essa doença. Chama-se indiferença. Era
preciso um hospital do tamanho do mundo para tratar essa epidemia”
(COUTO, 2020a, online).

20 As primeiras leis que tratam da exploração mineira, que envolveu a prospecção


pedras de e metais preciosos e uma ampla diversidade de carvão mineral, atendendo a
interesses estrangeiros, sem cuidados para com a população local, datam de 1905 e 1906,
vindo, até o século XXI, sofrendo alterações que não repõem, na totalidade, a harmonia
primeva dos povos da/com a terra (MATOS; MEDEIROS, 2017).

89
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

“Contrariando as [...] instruções” (COUTO, 2020a, online), ele avança


sobre o agente de saúde e o abraça. “O homem resiste com vigor e
escapa[...]dos braços. No carro, despe-se apressadamente. Livra-se da
roupa como se despisse as vestes da própria peste. Dessa peste chamada
miséria” (COUTO, 2020a, online).
A máscara cobrindo o rosto, o calçado recoberto por plástico, as
roupas de cima descartadas, o distanciamento social, o sabão, a solução
alcoólica, as instruções de higiene contornam o cenário apocalíptico
da covid-19.
O final do enredo coroa o discurso grotesco, ratifica o processo
composicional da personagem, do tempo e do espaço, bem como
circunstancializa a propriedade das ações. O ancião visitado acena,
sorridente, para o agente de saúde, já não mais mascarado, que se
vai, e pensa que, “[d]epois de anos de tormento, reconcilio-me com a
humanidade: um ladrão tão desajeitado só pode ser um homem bom.
Para a semana, quando ele voltar, vou deixar que roube a velha televisão
que tenho no quarto” (COUTO, 2020a, online).
Ponce observa que:
Essas ficções [pós-apocalípticas] manifestam uma
revisão de nossa história: dos erros que a sociedade
cometeu, dos acontecimentos que estariam certificando
o fim da nossa existência, e do trágico que nós mesmos
temos forjado. Nesse sentido, o pós-apocalípticos
parece, melhor, funcionar como advertência que nos
previne dos males que podem acontecer a um mundo
sobrecarregado, hoje, pelas crises que o capitalismo
instaura, pelas cruéis formas da violência e da guerra, e
por um meio ambiente que dá, cada vez mais, sinais de
esgotamento. (PONCE, online, tradução nossa)21

21 “[...] estas ficciones también ponen de manifiesto una revisión de nuestra historia:
de los errores que la sociedad ha cometido, de los eventos que estarían signando el

90
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

E o que fica de todo este percurso até aqui, nesta leitura de “O


gentil ladrão”? Que as narrativas apocalípticas, distópicas ou pós-
apocalípticas não necessitam, obrigatoriamente, dos elementos
discursivos próprios do metaempírico, podendo ser, mesmo sem
eles, serem observadas como tal pela crítica. A crônica de Mia Couto,
desprovida desses elementos, perpassa uma revisão da história;
denuncia erros que a sociedade cometeu – e continua cometendo –;
encena a existência trágica de um ancião abandonado em um lugar
ermo, desvalido de sua importância ancestral; é uma advertência
face aos males que podem acontecer a um mundo cada vez mais
globalizado, subserviente aos valores capitalistas; tematiza cruéis
formas de violência e guerras; perpassa o esgotamento do meio
ambiente ao mencionar a exploração mineira. Seu mundo ficcional se
compõe de imagens acessadas em realidades apocalípticas, distópicas e
pós-apocalípticas que se sucederam não somente em Moçambique e
não apenas à sua personagem-narrador, mas que, circunscritas àquele
isolamento, demarcam uma cronotopia singular.

Referências
COUTO, Mia. O gentil ladrão. Revista Visão, Portugal, 24 abr. 2020a. Disponível
em: https://visao.sapo.pt/opiniao/a/mapeador-de-ilhas/2020-04-24-um-gentil-
ladrao. Acesso em: 27 abr. 2021.
COUTO, Mia. A quarentena infernal. Revista Visão, Portugal, 22 mai. 2020b.
Disponível em: https://visao.sapo.pt/opiniao/a/mapeador-de-ilhas/2020-05-22-
a-imortal-quarentena. Acesso em: 27 abr. 2021.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.

fin de nuestra existencia, y del destino trágico que nosotros mismos hemos forjado. En
tal sentido, lo pos-apocalíptico parece, más bien, funcionar como advertencia que nos
previene de los males que pueden acaecer a un mundo, hoy agobiado por las crisis que
instaura el capitalismo, por las cruentas formas de la violencia y de la guerra, y por un
medioambiente que cada vez da más signos de agotamiento” (texto original em espanhol).

91
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

FURTADO, Felipe. Metaempírico. In: REIS, Carlos; ROAS, David; FURTADO, Filipe;
GARCÍA, Flavio; FRANÇA, Júlio (Editores). Dicionário Digital do Insólito Ficcional
(e-DDIF). Rio de Janeiro: Dialogarts. Disponível em: http://www.insolitoficcional.
uerj.br/m/metaempirico. Acesso em: 27 abr. 2021.
GARCÍA, Flavio. “O assalto”, de Mia Couto: ficção insólita de crime e mistério.
Abusões, Rio de Janeiro, n. 13, p. 71-90, 2020. Disponível em: https://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/abusoes/article/view/52459/34830. Acesso em:
21 abr. 2021.
HILÁRIO, Leomir Cardoso. Teoria crítica e literatura: a distopia como
ferramenta de análise radical da modernidade. Anuário de Literatura,
Florianópolis, v. 18, n. 2, p. 201-215, 2013.
MATOS, Elmer Agostinho Carlos de; MEDEIROS, Rosa Maria Vieira. Exploração
mineira em Moçambique: uma análise do quadro legislativo. Nera, Presidente
Prudente, n. 38, p. 280-315, 2017.
MIAMBO, Eliso. Periodização da literatura moçambicana. Rectasletras,
29 abr. 2012. Disponível em: https://rectasletras.blogspot.com/2012/04/
periodizacaoda-literatura-mocambicana.html. Acesso em: 27 abr. 2021.
PESSOA, Fernando. Autopsicografia. Presença, Coimbra, n. 36, nov., 1932.
PONCE, Ariel Gómez. Ficção pós-apocalíptica. In: REIS, Carlos; ROAS, David;
FURTADO, Filipe; GARCÍA, Flavio; FRANÇA, Júlio (Editores). Dicionário Digital do
Insólito Ficcional (e-DDIF). Rio de Janeiro: Dialogarts. Disponível em: http://www.
insolitoficcional.uerj.br/f/ficcao-pos-apocaliptica. Acesso em: 27 abr. 2021.
RAMOS, José Augusto M. A literatura apocalíptica e a ideia de ordem e de fim.
Revista portuguesa de Ciência das Religiões, Lisboa, n. 1, p. 43-53, 2002.
REIS, Carlos. Dicionário de estudos narrativos. Coimbra: Almedina, 2018.
ROAS, David. Grotesco. In: REIS, Carlos; ROAS, David; FURTADO, Filipe; GARCÍA,
Flavio; FRANÇA, Júlio (Eds.). Dicionário Digital do Insólito Ficcional (e-DDIF).
Rio de Janeiro: Dialogarts. Disponível em: http://www.insolitoficcional.uerj.
br/g/grotesco/. Acesso em: 27 abr. 2021.
ROAS, David. En los límites de lo fantástico: el cuento grotesco a finales del siglo
XIX. In: AMORES, Monteserrat; MARTÍN, Rebeca (Eds.). Estudios sobre el cuento
español del siglo XIX. Vigo: Editorial Academia del Hispanismo, p. 203-222, 2008.

92
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

MULHERES QUE NARRAM O FIM DO MUNDO


Marisa Martins Gama-Khalil
Léa Evangelista Persicano

“É no e do espelho da folha branca do texto


que surge esta figura de mulher que circula no
imaginário literário e social. [...] Como construção
imaginária, ela é sintoma e fantasma masculino,
e o maior fascínio da ficção reside justamente em
fazer coincidir, ilusoriamente, a realidade com uma
miragem. [...] masculino torna-se feminino, e o
desejo do impossível torna-se o possível do desejo.”
(BRANDÃO, 2004, p. 13)
A proposta para este ensaio é dar ênfase a algumas autoras que
escreve(ra)m textos literários com o tema direcionado para o fim do
mundo e/ou o pós-apocalipse, deixando de ser “passageiras da voz
alheia” (BRANDÃO, 2004, p. 11) para assumirem a própria voz, até
então silenciada e apagada. Essa voz vem se materializando, rompendo
barreiras, não só por meio de narradoras e personagens protagonistas
femininas, mas também por narradores e personagens masculinas, as/os
quais reapresentam valores de vida pela ótica das mulheres e não mais dos
homens que as ficcionalizavam e as idealizavam, valores esses forjados em
contextos históricos, sociais, culturais e políticos.
Elegemos seis contos de ficção científica de escritoras de profissão,
na maioria reconhecidas e premiadas, ou seja, mulheres que saíram
ou foram tiradas do anonimato em um universo predominantemente

93
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

masculino. São elas: Octavia E. Butler (afro-americana), Nancy Kress,


Mary Rickert, Catherine Wells (norte-americanas), Andréa del Fuego e
Lady Sybylla (brasileiras). Os contos – “Sons da fala”, “Inércia”, “Os Anjos
de Artie”, “Pão e Bombas”, “Aníbal” e “Cão 1 está desaparecido” – foram
publicados inicialmente entre os anos de 1984 e 2015 – em suportes como
antologias, revistas, livros de contos – e recentemente republicados em
duas antologias, Mundos apocalípticos: histórias do fim dos tempos (2019)
e Fractais Tropicais: o melhor da ficção científica brasileira (2018).
A produção desses contos com características distópicas comprovam
uma constatação presente em “Porque Mulheres também Escrevem
Ficção Científica”, oitavo capítulo do livro Fantástico brasileiro (2019),
de autoria de Bruno Anselmi Matangrano e Enéias Tavares: ao longo do
século XX, a produção de autoria feminina foi expressiva e, na segunda
metade desse mesmo século, houve considerável “aumento do número
de escritoras em meio aos produtores de ficção científica, com especial
enfoque na produção de distopias e algumas presenças de utopias, em
oposição visível ao grande número de utopias publicadas no começo do
século por autores homens” (MATANGRANO; TAVARES, 2019, p. 103).
Na ficção científica brasileira em geral, conforme esses pesquisadores,
se destacam: Adalzira Bittencourt (1904-1976) e o romance Sua Excia: A
Presidente da República no ano de 2500 (1929), Dinah Silveira de Queiroz
(1911-1982) e a coletânea de contos Eles Herdarão a Terra (1969), Rachel
de Queiroz (1910-2003) e o conto “Ma-Hôre” (1961), Zora Seljan (1914-
1998) e Contos do Amanhã (1979), Lúcia Benedetti (1914-1998) e o conto
“Correio Sideral” (1961). Quanto às utopias e distopias, o realce é para
Stella Car (1932-2008) e o romance Sambaqui: Uma História da Pré-
História (1975), Cassandra Rios (1932-2002) e o romance As Mulheres dos
Cabelos de Metal (1976), Ruth Bueno (1925-1985) e o romance Asilo nas
Torres (1978), Maria Alice Barroso (1926-2012) e o romance Um Dia Vamos
Rir de Tudo Isso (1973).

94
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

O século XXI, em nosso entendimento, já se inicia marcado por ficções


científicas escritas por mulheres. Além dos contos a serem analisados neste
ensaio, trazemos rápidos exemplos de autoras e seus romances distópicos,
tais como: Lois Lowry (1937) e a quadrilogia O doador de memórias (1993-
2012), que apresenta um futuro distópico de pós-guerra, com vários espaços
interligados nos quais os acontecimentos se desenrolam, a partir da ação
de protagonistas do gênero masculino e feminino (Jonas, Kira, Matty,
Claire) que estabelecem relações uns com outros ao longo da trama tendo
suas vidas alteradas e narradores oniscientes que nos contam em detalhes
os fatos. Suzanne Collins (1962) e a trilogia Jogos Vorazes (2008-2010), cuja
história ocorre em um futuro pós-apocalíptico onde se tem treze distritos e a
capital Panem, sendo narrada em primeira pessoa pela protagonista Katniss
Everdeen, uma jovem que se oferece como tributo no lugar da irmã para
a temporada anual dos jogos. Veronica Roth (1982) e a trilogia Divergente
(2011-2013), em que a história é narrada pela jovem protagonista Beatrice
Prior e situada numa Chicago pós-apocalíptica, dividida em cinco facções que
mantêm entre si rivalidades.
Antes de conhecermos um pouco da trajetória das autoras em foco e
adentrarmos nos contos propriamente ditos, consideramos fundamental
trazer à tona o que a britânica Virgínia Woolf (1882-1941) enfatiza, no
artigo “Mulheres e ficção”, publicado pela primeira vez em 1929 em
Nova York: pensar acerca da escrita feminina leva a também considerar
aspectos não necessariamente artísticos, dentre os quais se destacam
o apagamento e o silenciamento das mulheres na história, as leis, os
costumes, as práticas sociais, as experiências de vida. “De nossos pais
sempre sabemos alguma coisa, um fato, uma distinção [...]. Mas de nossas
mães, de nossas avós, de nossas bisavós, o que resta? Nada além de uma
tradição [...] seus nomes, as datas de seus casamentos e o número de filhos
que tiveram” (WOOLF, 2019, p. 10), o que afeta em larga medida a criação
literária, teórica e crítica. Não podemos nos esquecer de que a autora

95
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

enuncia por experiência própria, pois foi ensaísta, escritora (de romances
e contos), revisora, editora e proeminente figura do modernismo, além de
ter estudado em casa (ao contrário dos irmãos) e sido influenciada pelo
pai (escritor e crítico literário).
Ressaltamos que, apesar de Woolf referir-se predominantemente
à história da Inglaterra do fim do século XVIII ao início do século XX,
bem como a mulheres inglesas romancistas de relevo da época – Jane
Austen, Emily Brontë, Charlotte Brontë e George Eliot –, sua discussão
continua atual e se aplica à história de outros países, outras escritoras
e suas produções literárias e/ou teórico-críticas. Os textos ficcionais
de autoria feminina, segundo Woolf, deixam de ter características
com predominância autobiográfica, assuntos voltados para o interior
doméstico, protestos com efeito de distração contra tratamentos
recebidos pelo gênero feminino, para ainda explorar a sexualidade da
mulher, as personagens na ótica das próprias escritoras, o anonimato
de algumas vidas em contraposição ao empoderamento de outras
pela abertura ao mundo exterior (mercado de trabalho, política), com
relações familiares e sociais marcadas pelo emocional, intelectual e
político. “O velho sistema, que a condenava a olhar de esguelha para
as coisas, pelos olhos ou pelos interesses do marido ou do irmão, deu
lugar aos interesses diretos e práticos de alguém que tem de agir por
si mesma, e não somente influenciar ações dos outros” (WOOLF, 2019,
p. 17). Avultam, como também veremos no tópico a seguir, reflexões
sobre mazelas sociais, questões sobre o destino humano e do planeta, o
sentido da vida e das guerras, conflitos pessoais e grupais, dentre outras.
No livro A mulher escrita – cuja primeira edição é de 1989 e pode
ser considerado como dois livros em um por estar divido em duas partes
interrelacionadas: “A mulher escrita” e “A escrita mulher” –, a carioca
Lucia Castello Branco e a mineira Ruth Silviano Brandão, com uma incursão
pela literatura e psicanálise, apresentam a mulher sob dois enfoques,

96
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

“como representação literária, ficção masculina, ou, ao contrário, sujeito


de sua própria escrita. Escrita que questiona sua possível especificidade.
Feminina? [...] Fim de um longo silêncio, tempo em que a palavra feminina
é possível” (BRANCO; BRANDÃO, 2004, p. 7). Nos ensaios sobre a mulher
na ótica da escrita masculina, a temática do silenciamento feminino ecoa,
assim como a construção imaginária da mulher como fantasma masculino,
passageira da voz alheia, simulacro, não correspondente muitas vezes
com o que elas pensam de si mesmas. O que se diferencia da sua própria
projeção, “nos textos femininos, nos quais os fantasmas e sonhos se
fazem encenar na superfície em que ganham forma, a qual se reveste de
novas e inéditas aparências, nem sempre confortáveis; às vezes plenas de
um inquietante sentido gerador de novas significações” (BRANDÃO, 2004,
p. 14). Os contos – “Sons da fala”, “Inércia”, “Os Anjos de Artie”, “Pão e
Bombas”, “Aníbal” e “Cão 1 está desaparecido” – nos causam inquietações
múltiplas, questionamentos profundos, interpretações variadas; são
construídos na maioria com narradoras e/ou personagens femininas,
ao mesmo tempo com expressividade, sutileza, inteligência, força, ao
contrário “de uma percepção romântica do universo” com fundamento
“em antigos preconceitos, tentativas de afastar o trabalho ou a atuação
femininos dos territórios da seriedade” (BRANCO, 2004, p. 105).
Em todos os contos, temos de modo marcado e evidente por
diversos recursos a imagem do vazio associada à dialética que põe
em cena a humanização/desumanização. Branco (2004), com base na
psicanálise lacaniana, trata da presença do vazio na escrita feminina
porque, de certo modo, seria uma projeção do seu sexo, caracterizado
pelo buraco, pelo vazio. A partir dessas considerações, entendemos
que tal condição lacunar parece ser uma das marcas da condição
histórica da mulher ao longo dos séculos, uma vez que o homem é
construído equivocadamente ao longo da história como o ser completo;
contudo essa é uma falsa ideia, o ser humano, seja homem ou mulher,

97
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

caracteriza-se pela incompletude, ou seja, todo e qualquer ser humano


é um ser constitutivamente incompleto. “Na verdade, o inacabamento
do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital. Onde há vida,
há inacabamento” (FREIRE, 1996, p. 50). Mas, no curso da história é a
mulher que assume essa incompletude, fazendo dela não um defeito,
porém uma condição positiva e geradora de práticas subjetivadoras e
dessubjetivadoras. A assunção dessa condição torna a mulher aberta a
novas experiências. Os contos que figuram como objeto de estudo deste
ensaio trazem o vazio como tema fundamental, como veremos ao longo
de nossas análises.
Fazendo alusão ao conto “A princesa real”, por Hans Christian
Andersen, Branco define “uma metáfora do feminino e da escrita feminina:
imperceptível, sutil, forrada por vinte colchões de pena, mas nitidamente
inquietante, estranhamente incômoda para quem se atreve a adormecer
sobre sua aparente maciez” (2004, p. 130). Desafio de compreensão
ao qual nos dedicamos neste ensaio aliado a narrativas sobre o fim do
fundo. Enfatizamos que nosso interesse recai sobre essa escrita feminina,
demonstrando o quanto ela é plural e inquietante e, para tanto, não
iremos neutralizar as diferentes condições de possibilidades históricas
e sociais das autoras (às quais não nos detemos, porém indicamos nas
minibiografias); nem tampouco colocá-las numa categoria “abstrata”
denominada mulheres, já que
[n]ão existe nada no fato de “ser mulher” que
naturalmente una as mulheres. Não existe nem
mesmo [...] “ser” mulher. Trata-se [...] de uma
categoria altamente complexa, construída por meio
de discursos científicos sexuais e outras práticas
sociais questionáveis. (HARAWAY, 2009, p. 47)

São autoras que cria(ra)m em condições diferentes, motivadas por


fatores os mais diversos, enfrentando menor ou maior grau de

98
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

silenciamento, entretanto, suas narrativas se encontram em vários


aspectos. Adentremos, então, numa instigante aventura ficcional inter-
espaços, inter-tempos, inter-visões acerca do fim do mundo.

As autoras em foco e seus contos pós-apocalípticos


Octavia Butler, afro-americana, nascida em 1947 na cidade de
Pasadena, na Califórnia, e falecida em 2006, é renomada autora de
ficção científica e a primeira escritora a receber uma Bolsa MacArthur
para “gênios”. Fez faculdade comunitária durante o movimento Black
Power (“Poder Negro”, entre 1960 e 1970), participou de oficinas para
escritores/as e também as ministrou. Ganhou vários prêmios, incluindo
o Prêmio Hugo em 1984 para o conto “Sons da fala” (1984), um dos
objetos de estudo deste ensaio. O conto é narrado em terceira pessoa
por um narrador heterodiegético, porque não é co-referencial com
nenhuma personagem da narrativa, e, assim, não participa da história
narrada (GENETTE, 1979). Contudo, esse narrador, numa posição externa
à história, narra por intermédio da ótica de uma personagem, a de uma
mulher chamada Valerie Rye, inserida numa posição interna à história,
possibilitando que, com isso, ocorra uma certa conjunção entre o externo
e o interno, na medida em que vai ser o olhar feminino, de dentro da
história, que permitirá ao narrador realizar uma narrativa menos neutra,
consentindo que ele narre a experiência vivida pela personagem. Trata-se
da técnica do narrador refletor cunhada por Henry James, a qual tende
a conferir à narrativa um grau maior de aproximação com o leitor, como
se a narrativa estivesse sendo narrada sozinha, sem a mediação de um
narrador externo. É a percepção da personagem que passa a dirigir o foco
narrativo. No prefácio de Os embaixadores, Henry James esclarece:
a percepção de Strether sobre essas coisas, e apenas
a dele, serviria para mostrá-las; eu deveria conhecê-
las apenas através do conhecimento mais ou menos

99
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

tateante que Strether tinha delas, já que esses


mesmos tateares figurariam entre seus movimentos
mais interessantes. (2003, p. 209)

Cabe atentarmos um pouco mais sobre essa técnica, porque ela


se encontra em dois contos que figuram neste ensaio como objetos
de estudo, o de Butler e o de Lady Sybylla, e esse uso implica um
destaque ao foco feminino impresso ao ato de narrar, ainda que
indiretamente, porque, nos dois casos, o que se tem é um narrador
neutro que adota esse olhar refletor de personagens mulheres para
orientar sua narração. Tal orientação, em nosso ponto de vista, imprime
uma subjetividade feminina que delineia não apenas a visão, mas o
tom da voz da enunciação, na medida em que a personagem refletora
torna-se o “centro organizador da percepção” da narrativa, centro que
funciona como uma “rica sensibilidade, uma inteligência penetrante,
para a expressão da qual têm de ser trabalhados coerentemente os
outros elementos da narrativa: da linguagem ao ambiente em que se
movimentam as personagens”, como explica Lígia Chiappini Moraes
Leite (1999, p. 13) ao explanar sobre a referida técnica de James. O fato
de o narrador tomar como refletora a visão de uma mulher deflagra
efeitos de sentido muito importantes para um conto que desvela uma
escrita feminina.
Além de funcionar como uma captura de mundo por olhos de
uma mulher, a técnica contribui com a qualidade cênica da trama.
A protagonista Valerie Rye é escritora freelance e ex-professora
universitária, uma mulher que perdeu a todos (filhos, marido, irmã, pais)
e se desmantela por causa de uma doença que assola o mundo em seu
entorno, doença essa similar a um derrame e responsável pela perda da
linguagem verbal. É por meio das experiências e da visão dessa mulher
que o narrador relata as cenas pós-apocalípticas. Ela se abala com o
caos provocado pela situação, porque, sem o uso efetivo da linguagem

100
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

verbal, as pessoas parecem retornar a um estado selvagem; contudo


reage perante isso, especialmente depois de ser tocada sexualmente.
O tempo cronológico de ocorrência da história não chega a
um dia completo, ainda que a intensidade psicológica das emoções
e experiências pareçam dobrar os minutos. O macro-espaço dos
acontecimentos é a cidade de Los Angeles com destino a Pasadena,
curiosamente onde nasceu a autora. Os micro-espaços são: o interior
de um ônibus, desestruturado por uma sangrenta briga; o interior de
um carro, no qual Rye faz amor com um estranho (um “policial” armado
e barbado) que ela denomina de Obsidiana, capaz de lhe dar prazer e
esquecimento do “que estava evitando: colocar a arma [uma pistola] na
boca e puxar o gatilho” (BUTLER, 2019, p. 382); e também a rua onde
eles deparam com a briga de um casal, e uma sequência catastrófica
ocorre (a mulher é assassinada pelo homem, este mata Obsidiana e Rye
mata o homem). Rye é surpreendida pelo aparecimento de um menino
e uma menina bem novinhos, saídos da casa da mulher morta, agora
órfãos por violência doméstica; além do fato de essas crianças falarem
fluentemente. Rye não consegue partir sem levá-las consigo, junto
com o corpo da mãe e de Obsidiana; estes seriam enterrados com os
familiares de Rye.
Seguindo as experiências dessa personagem protagonista, o leitor
tem, no início, uma visão de apatia diante do caos, dos restos de um
mundo sem voz; entretanto, após a experiência corporal com o sexo, Rye
modifica seu enfrentamento perante o mundo. Parece que o seu corpo e
as sensações que dele advêm com o sexo lhe devolvem a coragem para
o enfrentamento do mundo. O prazer, naquele contexto apocalíptico,
afigura-se como um elixir mágico que lhe devolve a vontade de viver:
Ele colocou a mão sobre o ombro dela, e ela se virou
subitamente, procurando a pequena caixa dele, depois
pedindo que ele fizesse amor com ela novamente.

101
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Ele podia dar a ela esquecimento e prazer. Até então,


nada tinha feito Rye esquecer. Até então, a cada dia
ela tinha ficado mais perto do momento em que faria o
que estava evitando: colocar a arma na boca e puxar o
gatilho. (BUTLER, 2019, p. 382)

O seu corpo em contato com outro corpo faz com que a imagem de
vida sobrepuje à de morte. No final de O corpo utópico, Michel Foucault
fala-nos sobre essa rica experiência do nosso corpo, que é o ato sexual:
“fazer amor é sentir o corpo refluir sobre si, é existir, enfim, fora de toda
utopia, com toda densidade, [...] amamos tanto fazer amor, é porque
no amor o corpo está aqui” (2013, p. 16). É, pois, o sexo que permite
a Rye a sensação extrema de seu corpo e a coloca de volta à vida,
naquele lugar real, porque, mesmo estando o mundo dizimado, é neste
mundo que seu corpo encontra seu lugar e dá sentido à sua existência.
Não interpretamos essa cena sexual como um simples entrega de
um corpo feminino que, submisso, se entrega a um corpo masculino,
perspectiva essa muito associada a uma leitura dirigida por uma visão
masculina do mundo; nossa interpretação dirige-se a uma outra linha
de entendimento, que coloca o corpo de Rye como protagonista desse
processo, um corpo que goza, um corpo que sente o mundo de volta
a partir desse acontecimento; logo, um corpo que experimenta um
empoderamento por intermédio da assunção do orgasmo, assunção
essa tão negada às mulheres ao longo da história.
A fala do narrador, guiada pelos olhos e pelas sensações de Rye,
aparecem carregadas de experiência, uma experiência corporal, cênica e
dramática. James (2003) explica que o narrador refletor contribui para a
intensidade dramática da trama, porque se trata de uma visão que vem
acompanhada por uma experiência, por uma ação, ou seja, o mundo
diegético é narrado em movimento. No conto de Butler, o leitor é levado a
aderir a ações, afetividades, repulsas, prazeres, gozos, medos e curiosidades

102
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

de uma personagem que sente o mundo ao seu redor com toda a força
erótica do seu corpo, com toda a rede de sensações que lhe são possíveis
em um mundo onde a linguagem foi quase totalmente aniquilada.
É um conto que trata, pois, da falta de comunicação humana,
porque a doença a atinge, assim como mata diversas pessoas e silencia
as demais. Uns não conseguem mais falar nem entender o que os outros
dizem; e outros, como a protagonista, não conseguem ler e escrever.
Não há, como nos outros contos analisados a seguir, uma separação
entre os infectados e os não infectados. Rye, a protagonista, consegue
expressar-se falando e ouvindo, mas perde a capacidade de ler e
escrever, justamente ela, que tinha uma casa cheia de livros. Agora eles
ficaram à deriva, sem a função originária. Os livros, depois do vírus,
têm a única finalidade de servir de combustível, isto é, o que sobra do
valor do livro é sua destruição. Um mundo sem fala é um lugar sem
livros. Neste conto, o vazio se apresenta a partir da imagem do vazio
da linguagem, da palavra, o qual estará vinculado, como enfatizaremos
adiante, a práticas dessubjetivadoras e desumanizadoras.
A falta de linguagem é associada à falta de civilidade, ao crescimento
da violência. Em seu livro Tremores: escritos sobre a experiência, Jorge
Larrosa (2014, s.p.) esclarece que “as palavras produzem sentido,
criam realidades e, às vezes, funcionam como potentes mecanismos de
subjetivação”; elas determinam nosso pensamento, na medida em que
não pensamos por meio de pensamentos, mas através de palavras, que
nos atravessam e nos constituem. Vivemos em uma tradição que reforça
o ensinamento de que pensar é raciocinar, mas pensar é “sobretudo dar
sentido ao que somos e ao que nos acontece. E isto, o sentido ou o sem-
sentido, é algo que tem a ver com as palavras” (LARROSA, 2014, s.p.). O
conto de Butler relata o esfacelamento do ser em decorrência da perda
da linguagem exatamente em função de ser esta a base para a formação
de subjetividade dos sujeitos; por isso, destituídos de linguagem, eles se

103
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

dessubjetivam, perdendo a ancoragem linguística, perdem a ancoragem


identitária, subjetiva e, enfim, humana.
Michel Foucault cunha a noção de dessubjetivação pensando em um
processo que “tem por função arrancar o sujeito de si próprio, de fazer com
que não seja mais ele próprio ou que seja levado a seu aniquilamento ou à sua
dissolução” (2010, p. 291). A dissolução do sujeito fica muito clara em cenas
que demonstram as personagens humanas cometendo atos desumanizados e
desumanizadores. Assim, a figuração das personagens incorpora movimentos
de completa zoomorfização. O pesquisador Nilton Milanez explica que “a
dessubjetivação faz parte do processo de apagamento da obra da existência
do sujeito, fazendo com que seus acontecimentos vividos, sentidos, aprendidos,
coagidos, forçados se tornassem uma experiência que chega ao seu fracasso e
é colocada por terra” (2013, p. 384).
Nesse sentido, Butler, com uma escrita tecida por meio de sensibilidades,
nos convida a pensar na dicotomia entre humano e desumano a partir de
acontecimentos que ocorrem num contexto pós-apocalíptico; todavia, se
atentamos bem nas imagens que ela nos propicia, podemos entender que
já vivemos esse pós-apocalipse. Em primeiro lugar, porque guerras e brigas
que não têm sentido ocorrem com muita frequência em nosso mundo
empírico. Só para citar exemplos bem concretos e muito próximos de
uma das cenas do conto – uma briga em um ônibus –, em uma busca pela
internet, vimos as seguintes notícias muito recentes: “Briga de passageiro
com motorista provoca acidente de ônibus com 12 mortos na Indonésia”
(Estado de Minas, 2019)1; “Vídeo: homem é esfaqueado em ônibus no DF
em briga” (Jornal de Brasília, 2020)2; “Rio: Motorista e passageiro brigam

1 Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2019/06/17/


interna_internacional,1062453/briga-de-passageiro-e-motorista-acidente-com-12-mortos-
indonesia.shtml. Acesso em: 23 fev. 2021.
2 Disponível em: https://jornaldebrasilia.com.br/nahorah/video-homem-e-esfaqueado-
em-onibus-no-df-durante-briga/. Acesso em: 23 fev. 2021.

104
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

trocam socos dentro de ônibus” (UOL, 2021)3. Parece-nos que essas cenas
e a cena da briga no ônibus do conto assemelham-se bastante, uma vez
que nelas percebemos seres supostamente humanos em um descontrole
total, o qual desencadeia uma agressividade que coloca em suspensão a
humanidade dos humanos. Averiguando mais a fundo, podemos também
chegar à conclusão de que essas cenas agressivas e desumanas acontecem
em função de um motivo: a falta de diálogo. Assim, a afasia, que gera
descontroles e figurações zoomórficas, conecta igualmente o conto com
nossos tempos. Hoje, experimentada em vários contextos (orais, escritos,
virtuais, digitais), a palavra parece perder-se, sendo muitas vezes ineficaz e
incapaz de expressar quem somos. Butler parece sugerir isso a cada linha do
seu conto, entretanto, ao final, ela abre uma lacuna que pode figurar como
uma possibilidade de saída da afasia: primeiro, o sexo, que restitui a vida de
Rye; segundo, o fato de ela levar as crianças órfãs e traumatizadas com ela
para sua casa. Um recomeço (do apocalipse à gênese)?
O conto termina com a instauração dessa lacuna. Wolfgang Iser
afirma que o processo de comunicação literária se elabora “através
da dialética movida e regulada pelo que se mostra e se cala” (1979, p.
90). O não-dito instiga a instauração de um vazio e o decorrente ato de
ideação do leitor, pois o “calado” adquire vida apenas por intermédio da
atualização do leitor. Pairam, no fim do conto, algumas dúvidas, dentre
elas se a doença acabou ou não – com a descoberta das duas crianças
de 3 anos que falam: “E as crianças... elas deviam ter nascido depois do
silêncio. Será que a doença tinha chegado ao fim, então? Ou essas crianças
eram simplesmente imunes? [...] E se elas só estivessem precisando de
professores? Professores e protetores” (BUTLER, 2019, p. 387). O que traz
uma esperança para Rye, que se considera uma boa professora e também

3 Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/01/27/


motorista-e-passageiro-trocam-socos-dentro-de-onibus-no-rio-video.htm. Acesso em: 23
fev. 2021.

105
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

se auto protegeu. Ao terminar o conto com a abertura de uma rede de


vazios textuais, Butler nos incita a escrever com ela o final de sua história:
próximo ao contexto disfórico em que vivemos e ao que é ambientado no
conto, ou abrindo-se para uma outra realidade, utópica e eufórica?
Nancy Kress, estadunidense, nascida em 1948 na cidade de Buffalo,
em Nova York, é escritora e professora. Com bacharelado e mestrado em
Educação, e outro em Literatura Inglesa, começou a escrever durante a
segunda gravidez. Sua obra é vasta, incluindo romances, contos, novelas,
livros sobre escrita; suas narrativas tratam de ficção científica, engenharia
genética, fantasia, suspense e ganharam inúmeros prêmios, como, por
exemplo, o Prêmio Theodore Sturgeon Memorial, o Prêmio Hugo e o Prêmio
Memorial John Campbell, tendo sido premiada também em várias edições
do Nebula Awards. Seu conto “Inércia” (1990) é narrado em primeira
pessoa pela narradora-personagem senhora Sarah Pratt, mulher idosa, ex-
contadora e historiadora, acometida por uma forte artrite (cuja inflamação
nas articulações gera sintomas como dor, deformidade e dificuldades
nos movimentos) e sobretudo por uma doença viral transmissível e
desfiguradora (que afeta a pele – tornando-a em alguns pontos mais
espessa, viscosa e grosseira –, o cérebro e os neurônios – com resultados
emocionais, comportamentais, mas não intelectuais, tornando as pessoas
inertes). Pratt é avó da adolescente Rachel de 16 anos, que tem o lado
esquerdo do rosto afetado por essa doença viral que as mantém isoladas,
junto com outras pessoas, em uma das “colônias da doença” (KRESS, 2019,
p. 315) no estado da Califórnia-EUA.
As colônias figuram como um dos macro-espaços dos acontecimentos
(os quais se dão em poucos dias), o outro macro-espaço constitui-se
pelo “fora” das colônias, espaço apenas referido mas não representado
efetivamente. Sabemos dele por intermédio do discurso das personagens.
É, pois, um espaço de discurso e não de ação. Essa divisão é nomeada
na narrativa como o Dentro e o Fora, fortemente demarcados por uma

106
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Divisa – com extensa e larga faixa vazia de terra, minas eletrificadas,


arame farpado, processos de desinfecção e envenenamento preventivo
por produtos químicos, patrulhada por soldados que não gostam de estar
ali. Nesse caso, há uma delimitação que nos permite pensar na oposição/
distinção entre limites e fronteiras, a partir dos acontecimentos enredados
na diegese. Na visão de Iúri Lotman (2016), o conceito de fronteira aloja-
se em torno de uma ambiguidade, porque se por um lado ela separa, por
outro ela une. Ela configura-se como uma membrana, já que separa dois
espaços, o externo e o interno, porém, por ser porosa, permite que haja
certa troca entre esses ambientes. Os limites são o contrário da fronteira,
porque se voltam para o espaço interno e, por isso, para o fechamento; já
as fronteiras compreendem também o “fora” sugerindo o contato. Cássio
Hissa entende que “[o] limite almeja a precisão e se insinua como muro”
(2002, p. 35), ao passo que a fronteira concebe a transição, é porosa, abre-
se para a interpenetração, por isso estrutura-se de modo movente. O
que temos nas colônias no conto é uma separação que se estrutura como
um limite, representado concretamente por minas eletrificadas, arames
farpados, soldados armados impedindo o trânsito. Mas, ao final do conto,
veremos que esse limite pode tornar-se fronteira em algum momento.
Dentro das colônias, há uma divisão do espaço em blocos, com hortas,
depósito (de comida, mobília, utensílios, doados na maioria por asiáticos
chineses), saguão comunitário dotado de computadores também doados
e conectados em rede, pelos quais se acompanha notícias lá de Fora; esses
blocos são divididos em alas com dois quartos, cozinha, banheiro, sendo
de um micro-espaço desse que acompanhamos a narrativa. Ocorre a visita
inesperada de um saudável médico, Tom McHabe, que sem trajes especiais
ou sanitários procura algumas famílias na tentativa de levar para o lado
de Fora jovens pouco afetados pela doença. E o estranho é ele transita
entre o Dentro e o Fora desafiando todas as regras estabelecidas até então,
uma vez que há um jogo de forças, uma hostilidade, que não chega a ser

107
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

guerra, entre esses lados. O mais interessante aqui é o fato de as pessoas


não infectadas, as de Fora, serem violentas e gerarem o caos; já, por
ironia, as infectadas, as de Dentro, serem pacíficas. Nesse sentido é que a
experiência do médico pretende levar infectados para infectar os sãos com
sua pacificidade, com sua inércia, pois se há, então, uma falta de violência
como sintoma da doença – ao contrário do que se passa em “Sons da fala”,
conto no qual a doença provoca a violência e a ausência de comunicação
falada e escrita.
Em “Inércia”, há uma intertextualidade explícita com O Senhor das
Moscas (1954), de William Golding (1911-1993), que narra a história de uns
garotos perdidos, numa ilha deserta em plena Segunda Guerra Mundial,
os quais, em disputa pelo poder, entram em um estado de selvageria. Há
nessa mesma passagem uma referência intertextual ao filósofo Thomas
Hobbes (1588-1679), que acreditava que “O homem é o lobo do homem”.
Tais referências reforçam a violência a que estão sujeitas as pessoas, e
o mal que podem causar umas às outras e a si mesmas, especialmente
quando isoladas em determinado espaço delimitado.
Tudo na cultura dizia isso. Periferias pobres. O Senhor
das Moscas. Os condomínios populares de Chicago.
Faroeste. Autobiografias de prisioneiros. O Bronx.
A zona leste de Los Angeles. Thomas Hobbes. Os
sociólogos sabiam.
Só que não aconteceu. (KRESS, 2019, p. 320)

As duas analogias intertextuais são realizadas num momento em


que se fala, no conto, da previsão que as classes mais abastadas, os
não-infectados e os sociólogos tinham sobre o futuro das colônias, das
pessoas que ficariam isoladas no Dentro, previsões essas que falharam
radicalmente, porque não ocorre um desastroso desgoverno como em O
senhor das moscas por parte daqueles que são deslocados e separados,
enjaulados nas colônias, pelo contrário, as pessoas encarceradas no

108
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

espaço pestilento do Dentro conseguiram governar seu espaço e suas


vidas. Elas organizaram o espaço, sua produção, suas divisões, seu
cotidiano; aprenderam a plantar, criar galinhas, aproveitar as doações
que chegavam do Fora, e, em função dessa organização, redimensionam
suas vidas, readequando as profissões que tinham antes da doença para a
realidade restrita daquele espaço.
Entretanto, para os de Fora, os de Dentro seriam seres abjetos, que
deveriam mesmo sofrer o processo de marginalização; enfim, seriam
seres do “sul”. Em A cruel pedagogia do vírus, Boaventura de Sousa Santos
explana sobre o que seriam os seres do “sul”:
Eles têm em comum alguma vulnerabilidade especial
que precede a quarentena e se agrava com ela. Tais
grupos compõem o que chamo de sul. Na minha
concepção, o sul não designa um espaço geográfico.
Designa um espaço-tempo político, social e cultural. É
a metáfora do sofrimento humano injusto causado pela
exploração capitalista, pela discriminação racial e pela
discriminação sexual. (2020, s.p.)

Essa noção de “sul” é cunhada pelo supracitado autor no livro


intitulado Epistemologias do sul (2010), especialmente no seu ensaio
“Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia
dos saberes”, no qual argumenta que o pensamento moderno ocidental
é um pensamento abissal, na medida em que decompõe o mundo em
linhas que produzem um sistema de diferenciações visíveis e invisíveis.
Dessa forma, essas linhas geram dois universos distintos – “deste lado”
e “do outro lado” –, que não devem se misturar, com o risco de provocar
a derrocada da armação estável instituída pela divisão das linhas.
Boaventura entende que a consequência mais imediata dessa separação
do mundo pelas linhas abissais é o apagamento de quem fica “do outro
lado da linha”, seu desaparecimento enquanto realidade, sua inexistência,
sua consequente invisibilidade. Podemos entender, voltando o olhar

109
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

para o conto de Kress, que os de Dentro situam-se desse “outro lado da


linha” e, ainda que tenham conseguido governar seu espaço e sobreviver
pacificamente com regras que lhes permitiam uma vida estável, aqueles
que estão no Fora os consideram invisíveis e os apagam socialmente. A
grande ironia é que os invisíveis, que se situam no outro lado da linha, são
mais humanos do que aqueles que se consideram visíveis, que, por serem
agressivos, aproximam-se dos animais irracionais. Também neste conto,
a exemplo do conto de Butler, temos um enfoque sobre a dicotomia
humano/desumano, temática essa que, como atestamos, relaciona-se à
condição humana no apocalipse ou após ele.
Ainda no campo das intertextualidades, no conto de Kress, temos a
citação de algumas músicas, como: “High Hopes” (1990), de Frank Sinatra
(1915-1998), que suscita imagens do passado da narradora – como a
“madeleine de Proust” associada à memória involuntária – que advém
pelos cheiros, gostos, sons ou outras sensações que remetam à infância;
“Yesterday” (1965), dos Beatles (1960-1970), que propicia um saudosismo
em relação ao dia de ontem, no qual os problemas eram menores. Ao
tratar da memória involuntária na obra de Marcel Proust, Maria Arminda
de Souza-Aguiar considera que:
o prazer provocado por tais sensações não depende
diretamente delas, mas se deve ao fato de que,
pertencendo simultaneamente ao presente e ao
passado, provocam uma momentânea libertação do
tempo e da contingência pela projeção do sujeito que
as experimenta num plano intemporal e situado fora do
espaço limitador. (1984, p. 25)

Por isso as músicas, em “Inércia”, são tão caras aos moradores


do Dentro; por meio delas que eles conseguem se deslocar no espaço
e no tempo sem sair do lugar. Estando ali, naquele espaço pestilento,
conseguem sentir-se em um plano no qual o presente recupera do passado
sensações que lhes propiciam a liberdade.

110
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Catherine Wells, estadunidense, nascida em 1952 na cidade de


Robinson, em Dakota do Norte, formada em Teatro, começou a escrever
em meio à criação das filhas e ao curso de mestrado, período em que
iniciou sua carreira profissional. Sua produção inclui romances, peças
de teatro, contos, novelas. Seu conto “Os Anjos de Artie” (2001) se
desenrola em um espaço denominado escudo de radiação, em um prédio
bastante danificado no HabKansas. Para se ter acesso a ele, é necessário
dinheiro, um talento especial ou uma migração dos abastados que lá
estavam para o além-mundo por meio de uma nave de transporte –
uma espécie de barca de Caronte, pois só embarca nela quem compra
sua passagem. Possui uma narradora-testemunha, Morgana (Faye), que
conta a história do protagonista Artie, de como ela o imortalizou. É uma
moça de queixo comprido, olhos juntos, perna manca, cabelos sem cor,
dentes tortos, corpo ossudo, seios minúsculos – características que a mãe
atribui à radiação. Pelo tempo da narrativa, acompanhamos sua vida,
de Artie, assim como de outros jovens, da infância à fase adulta, todos
influenciados pelo lendário menino/rapaz/homem. O relato é construído
numa referência extensiva ao Rei Arthur, à sua irmã Morgana Le Fay e aos
Cavaleiros da Távola Redonda, ou melhor, “Cavaleiros da Roda Redonda”
(WELLS, 2019, p. 255, grifo nosso), em uma atualização discursiva onde
se têm Arthur como Artie, Morgana Le Fay como Faye/Morgana e os
cavaleiros medievais como jovens sobre rodas de bicicleta.
Esse objeto desempenha papéis centrais na narrativa: é usado para
fugir, pegar mantimentos, prevenir assaltos, tirar um amigo da encrenca
e evitar de “entrar em uma”; a bicicleta, inclusive, muda o status dos
membros do grupo de “ladrões” para “empresa legítima”, pois Artie se
torna engenheiro pela Academia Spark e passa a projetar e a construir
bicicletas. Um Código direciona a vida de todos do bando: “Cuide da
sua bike e dos seus amigos; nunca brigue quando puder fugir; estude e
aprenda; melhore as coisas para todo mundo, não só para você.” (WELLS,

111
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

2019, p. 258), código pelo qual observamos o tipo de influência de Artie


na vida dos seus anjos e da comunidade. Ele acredita que a bicicleta “é a
resposta” para os problemas, crê na força da amizade, prefere a paz às
desavenças, vê o estudo como possibilidade de ascensão social e o grupo
como destinatário das ações pessoais, além de enfatizar que as variantes
linguísticas da rua e da Academia têm o seu próprio lugar de manifestação
a fim de o indivíduo ser aceito.
O conto ainda apresenta uma discussão bastante frutífera, pela qual
ele tem seu início e fim: um jogo entre as invenções de mentir e a escrita
de verdades, a ficção e a construção de um/a mito/lenda. A narradora
ressalta, porém, que a radiação pelo sol é tão intensa que é bem provável
que não sobrará ninguém para ler e/ou acreditar no que ela escreve – o
que nos leva a estabelecer relações com “Inércia”, seja pela deformidade
dos corpos expostos à radiação, pela perspectiva do espaço fechado e
do isolamento social, pela violência humana ou pela falta de interação
pessoa-livro. Depois de uma vida memorável, Artie é baleado com a
carabina de um Ceifador – aquele que vive fora do escudo e antecipa a
morte de outro/a pelo estado de condenação da Terra e seus habitantes.
Como último desejo, Artie pede a Morgana que o leve para Avalon (uma
ilha lendária arturiana); ela divulga a versão que ele foi colocado em uma
câmara criogênica (onde se mantém o corpo congelado) e enviado para
se tratar em outro mundo, tendo, porém, morrido em seus braços e sido
colocado em uma câmara ali mesmo no subsolo do escudo de radiação.
Há, em todo o enredo do conto de Wells, o desvelamento de uma
dicotomia incidente no campo dos estudos literários: realidade/ficção. No
final do conto, o mito Artie é criado e perdurará para além da existência de
sua criadora, a companheira inseparável, Morgana. Esse mito se constrói
com base na articulação entre os polos da referida dicotomia. Para o
entendimento da relação entre realidade e ficção e sua relação com a
constituição do mito é necessário trazer à discussão também a noção

112
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

de imaginário, uma vez que a configuração ficcional, que parte do real,


realiza-se por meio de conexões com o imaginário. Quando a realidade
reproduzida e desdobrada no fingir, por meio do imaginário, se transforma
em signo, acontece uma transgressão de limites e o resultado de todo esse
processo é a composição da ficção. Trata-se sempre de uma transgressão,
porque o fingimento extrapola a verdade e a obra literária transpõe a
realidade. Travessias de fronteiras. “No ato de fingir, o imaginário ganha
uma determinação que não lhe é própria e adquire, desse modo, um
atributo de realidade” (ISER, 2013, p. 33). É, pois, o imaginário que libera
e constrói a irrupção de “reais”, de mundos possíveis ou possibilitados,
enfim, por esse encontro entre o imaginário e o fictício.
Sabemos que o fictício e o imaginário habitam e definem os mundos
construídos pela literatura, entretanto ambos existem em nossas
experiências cotidianas de variadas formas: “seja quando se expressam
na mentira e na ilusão que nos conduzem além dos limites da situação em
que nos achamos ou além dos limites do que somos, seja quando vivemos
uma vida imaginária em sonhos, devaneios ou alucinações” (ISER, 1999,
p. 66). No conto, a morte de Artie sofre um processo de transfiguração
por Morgana, porque ela não aceita o vazio deixado por aquela morte e
decide, por meio de uma fricção entre realidade, ficção e imaginário, dar
uma nova vida a Artie, uma vida nova na qual ele assume a posição mítica
que já estava anunciada pelas suas posições e atitudes em vida, já que
Artie sempre foi o modelo a ser seguido, influenciando os meninos (os
anjos) ao seu redor, dando-lhes ensinamentos, determinando direções.
De acordo com André Jolles (1976), o ponto caracterizador do
mito, sua disposição mental, é a capacidade de predição, na medida em
que o mito explica os fatos e aponta permanentemente para o futuro,
respondendo aquilo que é posto de forma lacunar, preenchendo os vazios
com saberes inerentes àquela construção mítica. E é exatamente isso que
Morgana realiza com a reinvenção mítica de Artie, pois no lugar do vazio

113
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

da morte provocada pelas desumanidades pós-apocalípticas, ela cria um


Artie mítico. Para essa criação do mito ela usa especialmente a faculdade
de humanização de Artie, sua constituição demasiadamente humana.
Paradoxal: mítico e humano? Todo paradoxo tem a sua lógica. Fato é
que os anjos de Artie e toda a comunidade colocará no lugar do vazio
planteado pela ausência do líder a presença do líder em cada um deles:
uma parcela em cada um.
Mary Rickert, escritora estadunidense, nascida em 1959, em
Washington, é formada em Artes, produz textos de ficção científica,
fantasia e terror que ganharam ou foram indicados a vários prêmios
importantes. Seus contos foram publicados em revistas, antologias
e coletâneas de melhores do ano. O conto “Pão e Bombas” (2006) é
narrado em primeira pessoa (um “eu” parte de um “nós”, grupo) e a
narradora-personagem é Weyers, uma mulher de 36 anos, escritora,
que narra predominantemente sobre sua vida aos 11 anos e sobre a
vida de outras crianças, em um contexto de guerra. Esse momento,
entretanto, é propiciador de boas lembranças: das mudanças advindas
com a adolescência, da vida escolar, das férias, do cheiro das flores
e das frutas. Os protagonistas são a mocinha Weyers (filha de pais
separados, mora com a preconceituosa mãe e perdeu o irmão para a
neve), Bobby (o garoto que faz a ponte entre todas as crianças e vive
aos cuidados do avô), Trina (a garota que chupa o dedo da mão) e as
duas meninas refugiadas Manmensvitzender (a mais nova chora o
tempo todo, devido à guerra e ao sofrimento causado por ela). Vale
destacar que essas últimas, com cabelos esfumaçados e olhos negros,
não frequentavam a escola e moravam na casa velha da colina, um
lugar abandonado e afastado.
Essas crianças são influenciadas pelos adultos responsáveis por elas,
mas conseguem em certa medida anular o efeito deles sobre as próprias
vidas, pois mais ou menos convivem entre si e vibram “com aquele

114
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

período da nossa inocência, aquele despertar para o mundo com toda


a sua incandescência, antes que suas sombras nos dominassem e nos
transformassem” (RICKERT, 2019, p. 97). É como se houvesse dois mundos
paralelos, que em alguns pontos se tocam e em outros se distanciam: o
das crianças e o dos adultos. Esses são fortemente demarcados por temas
como: divisão entre famílias, em conflitos de guerra, na perspectiva dos
mais velhos; o preconceito com os refugiados – xenofobia. A mãe da
narradora é a que mais estimula esse preconceito, tendo voz ativa junto
à sua comunidade. Há uma relação entre pacotes de comida e pacotes de
bombas nas mesmas cores – metáfora essa que intitula o conto –, mas que
não é do conhecimento de todos (a narradora, por exemplo, não sabia o
que significava até que Bobby lhe explicou), e também uma forte reflexão
sobre a validade ou não das guerras, de um ponto de vista complementar
ao que ocorre em “Cão 1 está desaparecido”, conforme ainda veremos.
O conto de Rickert deixa entrever um potente trabalho com a memória
– como em “Inércia” –, só que aqui é associada a flores (as memórias da
narradora) e faz referências a um espaço-tempo utópico, antes da guerra,
pelas memórias do pai da narradora, por meio de diálogos com ela; além
da doença que chega com a neve e faz-nos questionar sobre o frio – frio
da temperatura ou frieza humana? –, uma associação de ambos em que
o último parece predominar. O vazio da humanidade fica impresso a cada
linha do conto, é o que o fim do mundo, ou quase-fim, legou aos homens:
Na verdade, não tem a ver com bolos, nem com
catálogos que chegavam pelo correio, nem com as
viagens aéreas que eles faziam. Mesmo que ele use
essas coisas para descrever, não é disso que ele está
falando. Em algum momento do passado havia uma
emoção diferente. As pessoas no mundo tinham
um jeito de sentir e de ser que não existe mais, que
foi destruído de modo tão completo que só o que
herdamos dele foi a sua ausência. (RICKERT, 2019, p. 104)

115
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Essa experiência fraturante figura como a base do conto. A narradora


relembra, pelo gesto memorial do pai, um passado no qual havia um
jeito especial, afetivo e humano, de sentir as coisas, contudo o cenário
apocalíptico elidiu as possibilidades de humanidade. Fica evidente, desde
o título metafórico, que as coisas boas ou ruins (pães e bombas) não estão
no fim do mundo especificamente, mas em cada gesto desumano de lidar
com o outro. São as desumanidades que transformam pães em bombas e
que planteiam o vazio no lugar onde havia o afeto, a humanidade.
Andréa del Fuego é o pseudônimo da brasileira paulistana Andréa
Fátima dos Santos, nascida em 1975, autora de crônicas, romances,
novelas, contos e livros infantis e juvenis; recebeu os Prêmios Literatura
Para Todos (com a novela Sofia, o cobrador e o motorista) e José
Saramago (2011, com o romance Os Malaquias). Graduada em Filosofia,
com formação técnica em Publicidade, trabalhou como colunista da TV
Cultura escrevendo matérias sobre diversos/as autores/as da literatura;
mantém sites e blogs literários. Em seu conto “Aníbal” (2009), predomina
a narração em primeira pessoa, sendo dois narradores-protagonistas: um
anibalês, que conduz quase toda a narração e um terráqueo, que a conduz
na parte 4 (das seis partes em que o conto é dividido); há também uma
narração em segunda pessoa (dirige o discurso a um “tu”), que é muito
incomum, intercalada à de primeira pessoa.
Esse último tipo de focalização, além de estabelecer a encenação
de um diálogo possível entre sujeitos que queiram aderir ao mesmo
(narrador e leitor?/ personagem/personagem/leitor?), tende a gerar
uma indefinição quanto à identidade dos sujeitos envolvidos. Desvela-
se, nesse caso, um vazio de posições actanciais. Tal oscilação entre
as narrações de primeira, segunda e terceira pessoas harmoniza-se
com maestria à temática desenvolvida pelo enredo do conto, que é a
junção de dois seres diferentes, de posições e vozes diferentes, junção
possibilitada pelo esfumaçamento de fronteiras. É um texto que nos

116
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

incita, então, a pensar sobre transgressão de fronteiras, acoplamentos


variados, fusões potentes e possibilidades perigosas – o que, para Donna
Haraway (2009), está na base do seu “mito do ciborgue”, de amplo
alcance social, político, tecnológico.
O espaço onde os acontecimentos se dão é o planeta Aníbal, entre
a extinta Terra e o evoluído Polherã. A Terra se extinguiu depois de os
homens injetarem na corrente sanguínea de macacos bactérias humanas
(bactérias-homens). O assunto central do conto é uma experiência
genética/de maternidade unindo duas raças distintas: anibalês (polvo,
composto de carne animal e bits de água) e humano (nanohumano),
para se chegar a uma raça melhorada (anibreste) – uma raça híbrida, em
constante mutação e fluidez, que habitará um universo pós-gênero, o
qual implica mudança de “perspectiva [que] pode nos capacitar, de uma
força melhor, para a luta por outros significados, bem como para outras
formas de poder e prazer em sociedades tecnologicamente mediadas”
(HARAWAY, 2009, p. 45).
O conto mostra imagens de uma Terra que foi devastada pelas brigas
por territórios: homens querendo dominar homens, homens injetando
bactérias-homens em outros homens: “Com tantos interesses díspares e
opostos, o tecido social necrosou. Quem amputou os membros, cidades
inteiras, foi a própria Terra” (FUEGO, 2018, p. 133). No lugar da Terra, o
vazio, no lugar do vazio, o fim da humanidade. Na passagem “somos irmãos
de carbono” (FUEGO, 2018, p. 135), que representa a integração entre o
anibalês e o nanohomem, notamos uma intertextualidade do conto com
o verso “Eu, filho do carbono e do amoníaco”, do poema Psicologia de um
vencido, do poeta paraibano Augusto dos Anjos (1884-1914), como uma
referência à constituição química desses seres. Todos feitos com a mesma
matéria, mas só os fortes sobrevivem. No final do conto, o nanohomem
desaparece e com ele ressoa o vazio representado pela extinção da Terra,
a extinção de toda e qualquer possibilidade humana.

117
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

A brasileira Lady Sybylla, nascida em 1980 na cidade de Curitiba, é


escritora de ficção científica, geógrafa, professora, capitã da Frota Estelar
(fanfiction). Publica contos de maneira independente em seu blog pessoal
e, posteriormente, em outras plataformas/ suportes textuais; organizou,
em parceria com a escritora Aline Valek, as coletâneas de ficção científica
feminista Universo Desconstruído (volumes 1 e 2) gratuitas para download.
O conto “Cão 1 está desaparecido” (2015), de sua autoria, possui um
narrador em terceira pessoa, onisciente, que descreve com detalhes o
que acontece com a protagonista Sashi.
Ela é uma órfã que serve ao exército, é a soldada especialista
responsável por escoltar, no chão, o Cão 1 – um meca, robô de combate
mais avançado que existe na cidade de Becah I, com setenta metros de
altura e um ponto de fragilidade, os joelhos (que remete ao ponto frágil
do herói e semideus Aquiles, o calcanhar) – e resgatar o operador dele.
Ela traja uma roupa especial de tecido inteligente, porta um biochip
interno que aguça seus sentidos, possui um pesado rifle com visão de
longo alcance (apesar de o visor estar danificado pela explosão), seu
codinome é Águia I. Como em “Sons da fala”, nesse conto, temos o
recurso do narrador refletor, porque há um narrador neutro que conta a
história guiado pelo olhar e pelas experiências de Sashi, logo, pelo olhar
de uma mulher.
No conto de Sybylla, a questão do ciborgue é mais explícita do que
em “Aníbal” – neste, é mais metafórica –, pois a própria Sashi possui
características de mulher-máquina e os mecas de máquinas-homens.
Percebemos “[d]e um lado, a mecanização e a eletrificação do humano;
de outro, a humanização e a subjetivação da máquina. É da combinação
desses processos que nasce essa criatura pós-humana a que chamamos
‘ciborgue’” (TADEU, 2009, p. 12), que desestabiliza qualquer ilusão de
controle ou certezas. Enquanto Sashi procura pelo Cão 1 e pelo operador
Aodh, por um período que nos parece de uma noite e um amanhecer,

118
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

num cenário em ruínas devastado pela explosão de bomba(s) nuclear(es),


acontece uma reflexão sobre a validade ou não das guerras – o que
nos remete a “Pão e Bombas” –, e sobre as mentiras inventadas para o
recrutamento de homens e mulheres para as frentes de batalha. “Guerras,
só um meio para continuar a politicagem e matar inocentes, transformando
cidadãos em párias.” (SYBYLLA, 2018, p. 69). Ironicamente, quem desperta
essas reflexões e lágrimas em Sashi é um combatente inimigo. E a visão de
patriotismo que ela tinha fica deveras abalada.
As guerras constroem inimigos, as guerras mostram ao homem
que, nelas, quase não há chances de cultivar-se a humanidade; elas
são o lugar do vazio. O conto começa com uma consequência material
e evidente da guerra: o esfacelamento do mundo, seu apocalipse: “O
mundo à sua volta tinha desaparecido com a explosão nuclear, seguida
por um flash e uma forte onda de calor” (SYBYLLA, 2018, p. 55). Como
soldada, Sashi é treinada para matar e cumprir outras funções muito
bem determinadas e adestradas; contudo, em sua procura pelo Cão 1,
sua humanidade parece ir voltando àquele corpo quase-máquina. As
cenas de destruição lhe dão a exata dimensão dos atos hediondos que
cometera em função da guerra e, em contato com os “inimigos”, vê
neles corpos humanos ou quase-humanos. Como em “Sons da fala”, o
final do conto de Sybylla deixa uma abertura que pode conduzir à ideia
de uma possível reumanização de Sashi e porventura de outros homens
e mulheres que sofreram o vazio da guerra.

Recolhendo e atando fragmentos do fim de mundo


Para atar alguns fios dessas narrativas que efabulam imagens (d)
e histórias do fim do mundo, recuperamos do belo e sapiente ensaio
de Walter Benjamin sobre o narrador a situação de quem narra
acontecimentos inenarráveis. Benjamin recorda que, no fim da guerra, os

119
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

homens que “voltavam mudos dos campos de batalhas não mais ricos,
e sim mais pobres em experiência comunicável” (1987, p. 198). A razão
desse aniquilamento de experiências após a guerra acontece, em nosso
ponto de vista, em função de serem essas experiências exercícios de
desumanidade, tais como as experiências narradas nessas seis histórias
que são objeto de estudo deste ensaio, histórias que têm a peculiaridade
de serem escritas por mulheres.
Perguntamo-nos a cada movimento de leitura e de análise quais
seriam os traços literários, formais ou temáticos, que eram desvelados
por essas histórias, além do fato de todas terem como voz condutora
– direta ou indiretamente – a de uma mulher. Ademais, uma tendência
pareceu ganhar relevo a cada página: o tratamento estético-filosófico
sobre a humanidade – sobre a fragilidade ou ausência dela, sobre a
necessidade de seu retorno, sobre sua construção ilusória ou real;
enfim, em todos os contos dessas escritoras, seja por meio de metáforas
muito bem urdidas, seja através dos discursos das personagens, o leitor
encontra os processos de humanização e desumanização das mulheres
e homens que experimentam o acontecimento do apocalipse. Essas
imagens estético-filosóficas vêm sempre perpassadas e construídas por
um discurso da ausência, de um vazio constitutivo, um vazio existencial
e sensível, atravessador e avassalador, que está relacionado àquilo que
constitui nossa humanidade.
O vazio de cada história parece figurar como metáfora da mulher,
que tem em si a marca de um vazio (BRANCO, 2004), mas de um vazio
gerador de vida. Se os contos trazem o vazio provocado por paisagens pós-
apocalípticas desoladoras, por outro lado, a figuração das personagens
femininas tende a desvelar a possibilidade de uma recriação desse vazio.
Assim, no e pelo espelhamento de folhas tão bem redigidas, com seus
vazios constitutivos, somos convocadas a realçar a reconfiguração da
figura mulher e suas criações no imaginário literário e social, a força de

120
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

vozes que confluem em um espaço que não é mais sintoma e fantasma


masculino (BRANDÃO, 2004), mas sobretudo potência mobilizada pelo
desejo, desejo de ser, estar e transformar continuamente.

Referências
BENJAMIN, Walter. O narrador. In: BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, arte e
política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo
Rouanet. São Paulo: Brasiliense, p. 197-221, 1987.
BRANCO, Lucia Castello; BRANDÃO, Ruth Silviano. Uma porta, duas entradas.
In: BRANCO, Lucia Castello; BRANDÃO, Ruth Silviano. A mulher escrita. Rio de
Janeiro: Lamparina, p. 7-8, 2004.
BRANCO, Lucia Castello. A escrita mulher. In: BRANCO, Lucia Castello; BRANDÃO,
Ruth Silviano. A mulher escrita. Rio de Janeiro: Lamparina, p. 11-94, 2004.
BRANDÃO, Ruth Silviano. A mulher escrita. In: BRANCO, Lucia Castello; BRANDÃO,
Ruth Silviano. A mulher escrita. Rio de Janeiro: Lamparina, p. 97-215, 2004.
BUTLER, Octavia E. Sons da fala. In: ADAMS, John Joseph (Org.). Mundos
apocalípticos: histórias do fim dos tempos. Tradução de Rogério Galindo;
Rosiane Correia de Freitas. São Paulo: Planeta, p. 373-387, 2019.
FOUCAULT, Michel. Conversa com Michel Foucault. In: FOUCAULT, Michel. Ditos
e escritos – volume VI: Repensar a política. Organização, seleção de textos e
revisão técnica Manoel de Barros da Motta. Tradução de Ana Lúcia Paranhos
Pessoa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 289-347, 2010.
FOUCAULT, Michel. O corpo utópico. As heterotopias. Tradução de Salma Tannus
Muchail. São Paulo: n-1 Edições, 2013.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática
educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FUEGO, Andréa del. Aníbal. In: OLIVEIRA, Nelson de (Org.). Fractais Tropicais:
o melhor da ficção científica brasileira. São Paulo: SESI-SP Editora, p. 130-141, 2018.
GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Tradução de Fernando Cabral Martins.
Lisboa: Vega, 1979.
HARAWAY, Donna J. Manifesto ciborgue Ciência, tecnologia e feminismo-
socialista no final do século XX. In: TADEU, Tomaz (Org. e trad.). Antropologia do

121
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

ciborgue: as vertigens do pós-humano. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora,


p. 33-118, 2009.
HISSA, Cássio Eduardo Viana. A mobilidade das fronteiras: inserções da
geografia na crise da modernidade. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.
ISER, Wolfgang. A interação do texto com o leitor. In: LIMA, Luiz Costa (Org. e
trad.). A literatura e o leitor: textos de Estética da Recepção. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, p. 83-132, 1979.
JAMES, Henry. A arte do romance: antologia de prefácios. Tradução de Marcelo
Pen. São Paulo: Globo, 2003.
JOLLES, André. Formas simples. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix,
1976.
KRESS, Nancy. Inércia. In: ADAMS, John Joseph (Org.). Mundos apocalípticos:
histórias do fim dos tempos. Tradução de Rogério Galindo; Rosiane Correia de
Freitas. São Paulo: Planeta, p. 313-346, 2019.
LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Tradução de Cristina
Antunes e João Wanderley Geraldi. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. versão Kindle.
LEITE, Lígia Chiappini Moraes. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1999.
LOTMAN, Iúri. O conceito de fronteira. In: BORGES FILHO, Ozíris (Org.). O espaço
literário. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo. Uberaba: Ribeirão Gráfica e
Editora, p. 243-258, 2016.
MATANGRANO, Bruno Anselmi; TAVARES, Enéias. Porque Mulheres também
Escrevem Ficção Científica. In: MATANGRANO, Bruno Anselmi; TAVARES,
Enéias. Fantástico brasileiro: o insólito literário do romantismo ao fantasismo.
Ilustrações de Karl Felippe. Curitiba: Arte & Letra, p. 103-110, 2019.
MILANEZ, Nilton. A dessubjetivação de Dolores – escrita de discursos e misérias
do corpo-espaço. Linguagem: estudos e pesquisas. Catalão, v. 17, n. 2, p. 367-
390, julho/dezembro, 2013.
RICKERT, Mary. Pão e Bombas. In: ADAMS, John Joseph (Org.). Mundos
apocalípticos: histórias do fim dos tempos. Tradução de Rogério Galindo;
Rosiane Correia de Freitas. São Paulo: Planeta, p. 91-105, 2019.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas
globais a uma ecologia dos saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa;
MENESES, Maria Paula. Epistemologias do sul. São Paulo: Cortez, p. 31-83, 2010.

122
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. São Paulo: Boitempo


Editorial, 2020. versão Kindle.
SOUSA-AGUIAR, Maria Arminda de. Introdução a Proust. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro; Aliança Francesa, 1984.
SYBYLLA, Lady. Cão 1 está desaparecido. In: OLIVEIRA, Nelson de (Org.). Fractais
Tropicais: o melhor da ficção científica brasileira. São Paulo: SESI-SP editora, p.
54-69, 2018.
TADEU, Tomaz. Nós, ciborgues: O corpo elétrico e a dissolução do humano. In:
TADEU, Tomaz (Org. e trad.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-
humano. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, p. 7-17, 2009.
WELLS, Catherine. Os Anjos de Artie. In: ADAMS, John Joseph (Org.). Mundos
apocalípticos: histórias do fim dos tempos. Tradução de Rogério Galindo e
Rosiane Correia de Freitas. São Paulo: Planeta, p. 249-265, 2019.
WOOLF, Virgínia. Mulheres e ficção. In: WOOLF, Virgínia. Mulheres e ficção. São Paulo:
Penguin Classics-Companhia das Letras, p. 9-19, 2019. (Coleção Grandes Ideias).

123
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

A FICÇÃO PÓS-APOCALÍPTICA WEIRD DE


A TERRA DA NOITE, DE WILLIAM HOPE HODGSON
Alexander Meireles da Silva

Na história da literatura fantástica, a ficção pós-apocalíptica


surgiu com O último homem (1826) (SAWYER, 2009, p. 489), segundo
romance de Mary Shelley após sua estreia literária com Frankenstein
(1818). Na obra, uma praga vinda do Oriente Médio dizima a população
europeia restando apenas um sobrevivente em Roma. Décadas depois,
também em decorrência da ação da natureza, o escritor Herrmann Lang
descreveu em The Air Battle (1859) o fim da civilização europeia por
conta de enchentes e terremotos. Neste caso, porém, a ordem social
consegue ser reestabelecida em outros termos devido ao auxílio de uma
federação norte-africana.
Todavia, foi em After London (1885), de Richard Jefferie, que a
ficção pós-apocalíptica ganhou sua forma moderna ao trazer uma
história localizada milhares de anos no futuro, após o fim da civilização.
Esta escolha cronológica permitiu que o autor instalasse um senso de
alienação dos personagens em relação ao modo de vida e estrutura social
vigentes no mundo antes da queda que se tornou recorrente em obras
pós-apocalípticas posteriores. Dentro deste cenário, o protagonista Felix
Aquila empreende uma jornada pelos territórios da antiga Inglaterra,
agora transformada em uma enorme terra verde alagada, enquanto
observa como as pessoas se tornaram bárbaras.
A relevância de After London para a ficção pós-apocalíptica se reflete
no alinhamento da obra com o zeitgeist do século 19 para o século

124
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

20, marcado por especulações e extrapolações quanto aos rumos da


Revolução industrial, pela marginalização da população urbana e pelo
impacto do Darwinismo e do Marxismo na cultura. De fato, assim como
observado em A máquina do tempo (1895), de H. G. Wells, que também
possui elementos de ficção pós-apocalíptica, foram estas considerações
que promoveram a conexão do romance de Richard Jefferie com a ficção
científica. Como observa Peter Nicholls quanto a essa ligação (1995, p.
581), a ficção pós-apocalíptica atravessa diferentes temáticas da ficção
científica ao estabelecer pontos de conexão com expressões diversas do
pensamento e do saber humano. No diálogo com o mito, como explica
Nicholls, vemos nesta ficção a abordagem de uma segunda gênesis da
humanidade após o ocaso da civilização. Em plano antropológico, temos
a reflexão sobre a forma como os indivíduos sobreviventes passam a
se organizar e se relacionar socialmente em espaços hostis. Já dentro
do campo da biologia, ainda segundo Peter Nicholls, as histórias pós-
apocalípticas promovem especulações sobre a evolução, involução ou
mutação das espécies em decorrência de eventos catastróficos, sejam
eles ligados a hecatombe nuclear, ecológica ou biológica.
Contudo, como será abordado neste capítulo, algumas obras da virada
do século 19 para o 20 subverteram essa vinculação apontada por Peter
Nicholls entre a ficção pós-apocalíptica e a ficção científica. Este é o caso
de A terra da noite (The Night Land [1912]), de William Hope Hodgson, em
que se observa o maior diálogo desse romance com outra expressão da
literatura fantástica de fin de siècle, evidenciando o lugar deste romance
como um representante weird da ficção pós-apocalíptica.
Partindo da estrutura de encaixe, em que uma história se torna
prolongamento da outra (TODOROV, 1969, p. 132), A terra da noite
é ambientada inicialmente em um passado indefinido que apresenta
elementos do século 17 (LOVECRAFT, 2007, p. 98). O primeiro capítulo
aborda o gradual envolvimento de um personagem anônimo com a jovem

125
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

de nome Mirdath. Após idas e vindas no relacionamento o casal se casa,


mas Mirdath morre na sequência em consequência do parto. Esta morte
lança o protagonista em profundo sofrimento e agonia, mas ele passa a
encontrar alento para a sua situação em sonhos:
Recentemente, uma esperança maravilhosa voltou a
crescer dentro de mim, pois tenho vivido à noite, em
meus sonhos, em um distante futuro deste mundo, visto
coisas estranhas e maravilhas tais que me permitiram
ver, outra vez, as alegrias da vida, pois aprendi a
promessa do futuro e visitei, em meus sonhos, esses
lugares no útero do Tempo, onde estaremos juntos de
novo – rompendo através da mais terrível dor e de novo
reunidos, depois de estranhas eras, em uma grande e
poderosa felicidade. (HODGSON, 2018, p. 31)

Chama a atenção a forma como William Hope Hodgson promove


a introdução do cenário pós-apocalíptico futurista em A terra da noite.
Sobre esse ponto, já na década seguinte a sua publicação, o escritor H.
P. Lovecraft destacou em O horror sobrenatural em literatura (1927) o
que ele considerou como sendo uma falha da obra: “Ela é contada de
maneira muito canhestra, como os sonhos de um homem no século
XVII cuja mente se funde com sua própria encarnação futura” (2007, p.
98). Todavia, ao analisarmos o contexto cultural de criação do romance,
podemos observar a utilização por parte de William Hope Hodgson do
mesmo recurso imaginativo que o escritor Edgar Rice Burroughs usou
ao descrever a forma como o capitão confederado John Carter foi
transportado ao planeta Marte na edição de fevereiro de 1912 da revista
pulp All-Story, no primeiro capítulo de A princesa de Marte. Assim sendo,
é possível especular que tanto no caso de John Carter quanto no caso
do protagonista de A terra da noite o que temos é a representação de
Burroughs e de Hodgson da crença na projeção astral além do espaço e
tempo e a subsequente reencarnação em outros corpos. Essa estratégica

126
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

estava alinhada com o revival do interesse na magia e no oculto nos


Estados Unidos e na Inglaterra de final de século 19. Como explica Alison
Butler sobre este quadro:
Todos os homens e mulheres respeitáveis estavam se
entretendo com passatempos duvidosos tais como
rituais mágicos e tentativas de comunicação com os
mortos. Médicos trajavam vestimentas cerimoniais e
manejavam varinhas em rituais mágicos; um contador
e uma herdeira da indústria do chá projetavam suas
formas astrais para outros planetas; atores e poetas
se reuniam para transmutar maldade em bondade.
(2011, p. 1, tradução do autor)

O interesse vitoriano pelo oculto e o sobrenatural, ainda vigente na


primeira década do século 20 e expresso na projeção da consciência do
personagem, não se manifestou em A terra da noite apenas como artificio
para a passagem do tempo passado para o tempo futuro. Ele também se faz
sentir na composição dos pesadelos vivos e dos terrores além da compreensão
humana que habitam o mundo devastado de William Hope Hodgson.
A desolação pós-apocalíptica da Terra e a colossal construção que
serve como refúgio para os humanos sobreviventes neste futuro sombrio
são apresentadas aos leitores e leitoras a partir do segundo capítulo do
romance. Neste ponto é perceptível a influência do conceito de entropia
proposto pelo físico irlandês Sir William Thomson (Lorde Kelvin), cujo
ensaio “On a Universal Tendency in Nature to the Dissipation of Mechanical
Energy” (1852) concluía que a Terra iria se tornar inabitável em um futuro
distante por conta da entropia (STABLEFORD, 2007, p. 78).
Por meio de informações espaçadas ao longo da narrativa, o leitor e a
leitora descobrem que diferentes eventos causaram o apocalipse do mundo.
Primeiramente, milhares de anos antes do sol começar a esfriar, refletindo
na obra a influência na época das ideias kelvinescas, um cataclismo sem
causa explicada dentro do romance alterou a geografia do planeta:

127
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Houve um momento – um passado monstruosamente


recuado em relação àquela era, mas ainda um distante
futuro em relação à nossa era de hoje – em que o mundo
se partiu, após um vasto terremoto que rasgou a terra
por mais de mil e seiscentos quilômetros. Ali surgiu
um abismo imenso. [...] Para dentro dele escorreu um
oceano e a terra estourou outra vez, com um som que
sacudiu todas as cidades do mundo, e uma forte neblina
desceu sobre a terra por muitos e muitos dias, e houve
uma grande chuva. (HODGSON, 2018, p. 88-89)

Na sequência a este desastre natural, e já nos dias em que o sol havia


começado a apagar, acontece a derrocada final da humanidade quando,
por meio de experimentos científicos, pesquisadores provocaram a
entrada em nossa realidade de seres de outras dimensões:
Haviam [sic] os registros vagos de antigas ciências (mas
ainda no remoto futuro em relação a nós) que, perturbando
os incomensuráveis Poderes Exteriores, permitiram que
alguns dos Monstros e criaturas ab-humanas, que, no
presente normal, estão extraordinariamente separados de
nós, cruzassem a Fronteira da Vida. Assim se materializaram
e, noutros casos se desenvolveram, grotescas e horríveis
Criaturas que sitiaram os humanos deste mundo. Para as
que não podiam tomar forma material, permitiu-se que
certas horríveis Forças pudessem afetar a vida do espírito
humano. (HODGSON, 2018, p. 37-38)

Neste sentido, cabe destacar o pioneirismo de A terra da noite


enquanto obra pós-apocalíptica que, no início do século 20 e quase
duas décadas antes dos contos e novelas cosmicistas de H. P. Lovecraft,
contemplou a existência e ameaça de seres extradimensionais. Assim
sendo, o romance de William Hope Hodgson pode ser lido pela perspectiva
weird do horror cósmico nos termos colocados por Brian Stableford:
Na época em que Hodgson publicou A casa no limiar do
mundo ele já havia escrito a primeira versão de sua obra

128
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

prima, A terra da noite (1912), em que um sonhador


devastado pela perda transforma a sua experiência de
sofrimento em uma visão de fim de mundo kelvinista,
quando as barreiras que separam o mundo fenomenal
e numérico começam a cair e a superfície da Terra é
invadida por toda sorte de entidades monstruosas
cuja totalidade forma a opressão do horror cósmico.
(2007, p. 79, tradução do autor)

Tem-se aqui a percepção da potência imaginativa do romance de


Hodgson que levou H. P. Lovecraft a afirmar que, “[a]bstraindo todos os
seus defeitos, [A terra da noite] ainda é uma das peças mais vigorosas
jamais escritas da imaginação macabra” (2007, p. 98). De fato, tomando
os contos e novelas do Cavaleiro de Providence como exemplo de horror
cósmico, vemos que o elemento de horror está localizado em um espaço
específico em que as personagens adentram em busca de conhecimento
ou como resultado de uma sequência de eventos e, a partir deste ponto,
uma realidade insólita é descortinada para elas. Tem-se assim o padrão
observado por Filipe Furtado sobre a arquitetura ficcional de H. P. Lovecraft:
No essencial, a sua arquitetura pode ser dividida em
dois planos básicos: o “realista” e o alucinado. [...]
Nas narrativas de Lovecraft, os cenários “realistas”
mantém um evidente predomínio sobre os outros, o
que não se verifica de forma tão acentuada na maioria
dos textos fantásticos. (2017, p. 167-168)

Em A terra da noite, todavia, o horror é a realidade do planeta habitado


pelos humanos. Um horror multifacetado, opressor e onipresente que
influencia os comportamentos e crenças dos sobreviventes. Nesta leitura
de um mundo de horrores com suas próprias leis temos a aproximação
do romance com a estrutura da fantasia imersiva. Conforme explica
Farah Mendlesohn sobre esta expressão da fantasia: “A fantasia imersiva
é aquela que é mais próxima da ficção científica; [...] Nós não entramos
na fantasia imersiva, nós consideramos que somos parte dela: nosso

129
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

estranhamento cognitivo é tanto contemplado quanto negado” (2008, p. XX,


tradução do autor). É este atravessamento de A terra da noite pela
ficção científica, horror e fantasia que evidencia a vinculação da obra à
ficção weird:
A Ficção Weird é concebida de forma geral, e grosseira,
como uma ficção macabra de tirar o fôlego e de forma
escorregadia, uma ficção sombria (“horror” mais
“fantasia”) geralmente apresentando monstros
alienígenas não tradicionais (portanto, mais “ficção
científica”). (MIÉVILE, 2009, p. 510, tradução do autor)

Nesta ficção pós-apocalíptica weird os humanos remanescentes


construíram, ao longo de anos, uma gigantesca pirâmide metálica com “mil
trezentos e vinte níveis e a altura variava de acordo com a finalidade de
sua construção. A altura total excedia onze quilômetros, chegando a quase
doze” (HODGSON, 2018, p. 38). Dividida em níveis de habitação, produção de
alimentos, pesquisa e outras atividades, a construção foi erguida no fundo de
um vale profundo e mantém a segurança da população contra os ataques dos
terrores exteriores por meio da chamada “Corrente da Terra” (HODGSON,
2018, p. 38). Além de formar um perímetro de segurança ao redor da
pirâmide, essa corrente elétrica, proveniente do núcleo do planeta, mantém
a iluminação, energiza as máquinas do local e mantém o aquecimento do
lugar. Enquanto a Corrente da Terra existir, a vida humana também existirá.
Chama a atenção o fato de que as ameaças de A terra da noite não
são apenas advindas de bestas monstruosas. O maior perigo vem de
forças de inteligência maligna, de natureza sobrenatural, que buscam
vítimas humanas para propósitos de destruição não apenas do corpo, mas
também da alma. Uma morte completa no plano físico e espiritual. Os
estudiosos da pirâmide, entretanto, não possuem informações suficientes
para compreender esses seres, pois o conhecimento antigo há muito se
perdeu ao longo de eras passadas.

130
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

A rotina milenar da pirâmide descrita pelo narrador é interrompida pela


primeira vez quando chegam informações de que, em outra parte da Terra
da Noite, existe uma outra pirâmide, menor que a principal, habitada por
milhares de pessoas. O contato entre as duas construções ocorre tanto por
meio de um maquinário assemelhado ao rádio quanto por meio dos poderes
mentais desenvolvidos por alguns dos indivíduos da grande pirâmide.
Dentre eles, o protagonista se destaca de seus pares a ponto de ser capaz
de estabelecer comunicação mental com a outra pirâmide sem o auxílio de
equipamento. Por conta dessa habilidade, ele é a pessoa que escuta a voz de
Mirdath, sua amada da vida passada: “Estava lá, ouvindo e comungando com
meus pensamentos, quando estremeci subitamente, como se agredido, pois,
de dentro da noite eterna, veio um sussurro, despertando, cada vez mais, a
minha sutil audição” (HODGSON, 2018, p. 44).
Posteriormente, o narrador descobre que a voz que ele ouve em
sua mente, oriunda da outra pirâmide, é a de Naani, uma jovem que é
a reencarnação de sua amada Mirdath. Esse contato inicial é seguido
por outros e o protagonista é informado de que a corrente da terra que
sustenta a vida na pirâmide menor está se extinguindo. Com o fim da
corrente, as entidades malignas da Terra da Noite serão finalmente capazes
de invadir o local e exterminar toda a população. Algum tempo depois,
a grande pirâmide eventualmente recebe mensagens desesperadas da
outra localidade e as comunicações são abruptamente interrompidas.
Se até então A terra da noite tinha como espaço da narrativa
a grande pirâmide de metal dos humanos, a partir do pedido de
socorro de seus irmãos e irmãs na outra construção humana o público
leitor é apresentado ao mundo exterior. Impelidos pela bravura e a
inconsequência, um grupo com dez mil jovens sai da pirâmide sem ter
a autorização e o preparo adequado visando o resgate dos habitantes
em perigo. No entanto, a iniciativa termina em tragédia quando o
grupo tem seu número reduzido pelo ataque de criaturas como os Cães

131
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

“grandes como cavalos” (HODGSON, 2018, p. 70). Aqui também somos


apresentados às entidades malignas que percorrem a Terra da Noite e que
desafiam a compreensão humana:
Pela Grande Luneta, vi que se movia pela terra um
grande Volume, vindo da Planície do Fogo Azul, a uma
velocidade prestigiosa, e parecia com uma Neblina
Negra. [...] Meu coração estremeceu de medo e terror
absoluto daquele Monstro, que eu tinha certeza de
ser uma das Grandes Forças do Mal da Terra, e de ter,
dúvida, o poder de destruir o espírito. (HODGSON,
2018, p. 70)

Apesar do fracasso do grupo, que consegue voltar para o grande


reduto com milhares de baixas, o protagonista mantém firme a decisão
de ir ao encontro de Naani. É no sétimo capítulo, com o apropriado título
de “A Terra da Noite”, que acompanhamos o herói em sua jornada pelas
terras de escuridão eterna. Para ter sucesso nesta missão, ele decide ir
sozinho, vestindo sua armadura, treinamento adequado, e portando
como arma uma potente lâmina rotativa de mão.
A partir da partida do protagonista da grande pirâmide rumo
ao resgate de sua amada vemos o romance A terra da noite assumir a
estrutura comumente encontrada em obras da fantasia com a abordagem
da busca. Dentro desta leitura, a obra de William Hope Hodgson obedece
ao padrão observado por John Clute:
Aqui o protagonista, cujo propósito é (geralmente)
o autoconhecimento, embarca em uma busca [...]
– por algo importante para sua sobrevivência ou a
sobrevivência da terra que ele é ou será responsável,
viaja através dos campos que conhecemos até o lugar
onde ele vai ser testado e se perceber merecedor de
vencer, alcançar este objetivo, retornar para casa com
o objeto desejado, ou parceiro, ou conhecimento.
(1997, p. 796, tradução do autor)

132
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Nesta jornada, que traz a mente romances medievais como Sir Gaiwan
e o cavaleiro verde (século 14) ao apresentar um herói trajado em armadura
enfrentando criaturas fantásticas no caminho de sua missão, o narrador
passa meses atravessando centenas de quilômetros da Terra da Noite. Este
é o momento em que o leitor e a leitora têm contato direto, juntamente
com o narrador, com os horrores deste mundo pós-apocalíptico. O primeiro
deles é o Grande Homem Cinzento que farejava o protagonista na escuridão.
Após se esconder em moitas de musgos, o herói vê a criatura: “Era grande,
rastejava e não tinha outra cor: era todo cinzento” (HODGSON, 2018, p.
97). Na sequência, o herói se aproxima da região conhecida como Lugar da
Destruição e encontra misteriosas criaturas conhecidas como os Silenciosos:
Observei com muita atenção e distingui uma grande
fila de figuras silenciosas e esguias, cobertas até os pés,
que não se moviam nem produziam qualquer som, mas
permaneciam lá, no cinza, parecendo manter vigília
constante sobre mim, de tal forma que meu coração
enfraqueceu e senti que as moitas de musgos não
podiam me esconder. (HODGSON, 2018, p. 105-106)

Após conseguir pegar outro caminho e desviar desses estranhos


seres, o protagonista ouve vozes em alto som próximo a ele e descobre
que elas vêm de homens gigantescos,
grandes como elefantes e que não tinham nenhuma
gentileza em seus pensamentos, mas eram totalmente
monstruosos. [...] com um pelo duro e horroroso que
parecia avermelhado. Tinham grandes verrugas e calos,
como se suas peles fossem endurecidas por nunca
conhecerem vestes. (HODGSON, 2018, p. 107)

Tanto no caso do Grande Homem Cinzento quanto na visão dos


“homens elefantes” podemos ver representada a abordagem de William
Hope Hodgson das ansiedades da sociedade europeia finissecular com a
ideia da decadência de seu tempo.

133
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

A percepção de fim de tempos por parte de artistas e do público


em geral das últimas duas décadas do século 19 e primeiros anos do
século 20 foi fomentada, no plano interno, pela degradação das grandes
cidades europeias em decorrência do crescimento urbano desorganizado,
aumento da pobreza e disseminação de doenças. Já no plano externo, as
preocupações se originaram nas crescentes revoltas e contestações de
colônias nas Américas, África e Ásia controladas por países europeus.
Esta conjuntura nos ajuda a compreender o processo de surgimento/
revitalização e disseminação de posturas artísticas e formas literárias
como o decadentismo, o romance gótico e o weird na cena literária
europeia da época. Este foi o quadro gerado pela Revolução Industrial
e pelo Imperialismo europeu que proporcionou na Inglaterra, por exemplo,
o desenvolvimento do gótico urbano (SNODGRASS, 2005, p. 343) e
do gótico colonial (PARAVISINI-GEBERT, 2008, p. 229), exemplificado,
respectivamente, em obras como O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr.
Hyde (1886), de Robert Louis Stevenson e Drácula (1897), de Bram
Stoker; a manifestação do decadentismo de O retrato de Dorian Gray
(1891), de Oscar Wilde e o horror cósmico de O grande deus Pã (1894),
de Arthur Machen.
O debate sobre os rumos do Império britânico ganhou força no
final do século 19 com a publicação em 1895 da versão inglesa da obra
alemã Degeneration (1892), de Max Nordau, em que o médico húngaro
defendeu a teoria de que as tendências estéticas de fim de século, como
o Impressionismo, o Simbolismo e o Decadentismo mostravam todos os
sintomas de patologia mental mórbida que caracterizava a decadência da
sociedade vitoriana. Logo, a obra provocou debates que reverberaram em
outros campos literários:
Cada escritor representa o declínio sendo tanto o produto
quanto a reversão do processo evolucionário e se ampara
nos debates científicos recentes para sustentar sua visão

134
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

sombria. Ambos, também, consideram a degeneração da


humanidade como o resultado da civilização moderna.
(TAYLOR, 2007, p. 14, tradução do autor)

Nesta leitura, o Decadentismo foi considerado como um agente de


patologias mentais, como a histeria e o narcisismo (TAYLOR, 2007, p.
14). Enquanto causa e sintoma da decadência da sociedade finissecular
vitoriana o Decadentismo influenciou o desenvolvimento na Literatura de
espaços e indivíduos que subvertiam fronteiras normativas, resultando
em um entre lugar e um entre ser weird.
As criaturas monstruosas de A terra da noite são produtos dessa visão
sombria extrapolada de William Hope Hodgson sobre os rumos da civilização
em um planeta Terra pós-apocalíptico. Como salienta Kelly Hurley em The
Gothic Body (2004): “As narrativas entrópicas são do seu jeito próprio
muito diretas, elas estabelecem uma reversão direta das narrativas de
‘progresso’” (HURLEY, 2004, p. 89, tradução do autor). De fato, “Progresso”
e “Modernidade” são palavras chaves na compreensão da disseminação
da ficção weird enquanto reação às complexas e profundas mudanças em
curso na virada de século.
Em um mundo percebido com em permanente desintegração,
o indivíduo se vê incapacitado de localizar o agente que ameaça a sua
integridade física. Se no romance gótico e no conto de fantasma podemos
identificar, respectivamente, a presença do vampiro e do espectro, na
ficção weird esta ameaça se encontra de forma não identificável, refletindo
a influência da percepção da Modernidade pelo ser humano: “Os grandes
escritores de Ficção Weird estão reagindo à entrada da modernidade
capitalista em fins do século dezenove e início de século vinte, um período
de crise em que as ideias [...] da racionalidade burguesa progressiva são
estilhaçadas” (MIÉVILE, 2009, p. 513, tradução do autor).
Dentro de A terra da noite, enquanto ficção pós-apocalíptica weird,
essa inquietude diante do inominável se traduz na passagem do herói pela

135
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

temida região das Portas na Noite, local marcado pela presença de um


estranho som impossível de ser localizado e que já havia levado outras
pessoas que se aventuraram pela Terra da Noite à destruição: “Os Registros
sempre diziam que encontraram a Destruição, não apenas a Morte, por
um estranho e Invisível Poder do Mal saído da Noite” (HODGSON, 2018,
p. 110). Neste ponto do romance, mais uma vez o horror cósmico se
manifesta de forma mais visível ao sermos informados da origem desse
mal que espreita humanos na Terra da Noite:
Depois foi escrito um tratado, apropriado e
minucioso, explicando que havia rupturas do Éter que
criavam as portas, como foram chamadas pelos mais
impressionáveis, e por estas gretas, comparáveis
a passagens, por falta de nome melhor, chegavam
a esta Condição Particular da Vida as Monstruosas
Forças do Mal, que dominavam a Noite, e que muitos
diziam ter ingressado impropriamente devido à
ciência tola e temerária dos antigos sábios, que se
meteram em assuntos além do seu entendimento.
(HODGSON, 2018, p. 110)

Encontra-se neste trecho, um exemplo das “formas e entidades de


uma espécie absolutamente não-humana e inconcebível – os predadores
do mundo escuro, inexplorado e interdito” (LOVECRAFT, 2007, p. 98) que
H. P. Lovecraft comentou no ensaio O horror sobrenatural em literatura
como sendo um dos pontos fortes da obra de Hodgson enquanto
expressão do horror cósmico. Na história, contudo, o protagonista
consegue sobreviver por pouco a mais esse perigo da terra desolada e
prossegue em sua jornada. Perigos diversos surgem e são superados ou
evitados pelo herói até que, finalmente, ele chega ao local da pirâmide
menor e encontra a sua amada ainda viva.
Na visão de H. P. Lovecraft, este encontro do protagonista com
Naani amplia os problemas estruturais de A terra da noite para além da

136
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

verbosidade, repetitividade e experimentação com linguagem arcaica


que marca a obra (2007, p. 98). A partir deste encontro e até o final do
romance, quando o casal consegue retornar à grande pirâmide em meio a
diferentes perigos e a aparente morte de Naani, para o autor de “Dagon”
(1917) a obra de William Hope Hodgson se arruína por características
como “sentimentalismo artificial, enjoativo e pegajosamente romântico”
(LOVECRAFT, 2007, p. 98). Uma vez seguros no grande refúgio, o herói
colhe os frutos de sua bravura nos braços da mulher amada e conquista o
reconhecimento de todos e todas por ter sobrevivido físico e mentalmente
ao mundo de horrores diversos da Terra da Noite.
Em “Weird Fiction” (2009) o escritor China Miéville, representante
do new weird no atual contexto finissecular dos séculos 20 e 21, afirma
que no weird, “O foco está no assombro, e sua subversão do cotidiano.
Esta obsessão com a numinosidade sob o dia a dia está no coração da
Ficção Weird” (MIÉVILE, 2009, p. 510, tradução do autor). De fato, como
foi demonstrado ao longo da análise de A terra da noite como ficção
científica pós-apocalíptica weird, a despeito dos graves problemas
estruturais na execução de sua história, situada em um futuro distante
do planeta Terra quando o Sol se apagou e eventos catastróficos diversos
reduziram a humanidade a poucos milhões, William Hope Hodgson
foi capaz de criar a poderosa visão de um mundo inteiro regido pelo
assombro. Neste cenário, em que os indivíduos se encontram envoltos
em uma realidade numinosa de diversos terrores desconhecidos, temos
a visão extrapolada do zeitgeist finissecular em que o escritor engendrou
a sua obra, corroborando a afirmação de Ariel Gómez Ponce no verbete
“Ficção pós-apocalíptica”, do Dicionário Digital do Insólito Ficcional, com
base em Ignacio Padilla, de que as ficções pós-apocalípticas funcionam
como instigadoras da deflagração dos medos sociais.

137
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Referências
BUTLER, Alison. Victorian occultism and the making of modern magic: invoking
tradition. New York: Palgrave Macmillan, 2011.
CLUTE, John; NICHOLLS, Peter. Quests. In: CLUTE, John; NICHOLLS, Peter. The
encyclopedia of fantasy. New York: St. Martin’s Griffin, p. 796, 1997.
DODD, Kerry. From the Inevitable to the Inexplicable: Investigating the Literary
and Linguistic Roots of the Weird. FANTASTIKA Journal. volume 1, issue 1, p.
36-53, april, 2017. Available at: https://fantastikajournal.com/publications/.
Accessed on: Feb. 10, 2021
FURTADO, Filipe. O fantástico: procedimentos de construção narrativa em H. P.
Lovecraft. Rio de Janeiro: Dialogarts Publicações, 2017.
GÓMEZ PONCE, Ariel. Ficção Pós-Apocalíptica. In: REIS, Carlos et al (Eds.). Dicionário
Digital do Insólito (e-DDIF). Rio de Janeiro: Dialogarts. Disponível em: http://www.
insolitoficcional.uerj.br/site/f/ficcao-pos-apocaliptica/. Acesso em: 13 mar. 2021.
HODGSON, William Hope. A terra da noite. Tradução de José Geraldo Gouvêa;
Ilustração de Leander Moura. Jundiaí: Editora Clock Tower, 2018.
HURLEY, Kelly. The Gothic Body: sexuality, materialism, and degeneration at the
fin de siècle. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.
LOVECRAFT, H. P. O horror sobrenatural em literatura. Tradução de Celso M.
Paciornik. São Paulo: Iluminuras, 2007.
MENDLESOHN, Farah. Rhetorics of Fantasy. Middletown, Connecticut: Wesleyan
University Press, 2008.
MIÉVILLE, China. Weird Fiction. In: BOULD, Mark; BUTLER, Andrew M.;
ROBERTS, Adam; VINT, Sherryl. The Routledge companion to science fiction.
New York: Routledge, p. 510-515, 2009.
NICHOLLS, Peter. Holocaust and After. In: CLUTE, John; NICHOLLS, Peter (Eds.). The
encyclopedia of science fiction. New York: St. Martin’s Griffin, p. 581-584, 1995.
PARAVISINI-GEBERT, Lizabeth. Colonial and post-colonial Gothic: the Caribbean.
In: HOGLE, Jerrold E. (Ed.). Gothic Fiction. New York: Cambridge University
Press, p. 229-258, 2008.
SAWYER, Andy. Future history. In: BOULD, Mark; BUTLER, Andrew M.; ROBERTS,
Adam; VINT, Sherryl. The Routledge companion to science fiction. New York:
Routledge, p. 489-493, 2009.

138
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

SNODGRASS, Mary Ellen. Urban gothic. In: SNODGRASS, Mary Ellen.


Encyclopedia of gothic literature. New York: Facts on File, Inc., p. 342-344, 2005.
STABLEFORD, Brian. Far Future. In: CLUTE, John; NICHOLLS, Peter (Eds.). The
encyclopedia of science fiction. New York: St. Martin’s Griffin, p. 415-416, 1995.
STABLEFORD, Brian. The Cosmic Horror. In: JOSHI, S. T. (Ed.). Icons of Horror
and the Supernatural: An Encyclopedia of Our Worst Nightmares. V. 1 & 2.
Westport, Connecticut: Greenwood Press, p. 65-96, 2007.
TAYLOR, Jenny Bourne. Psychology at the fin de siècle. In: MARSHALL, Gail. (Ed.).
The fin de siècle. New York: Cambridge University Press, p. 13-30, 2007.
TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Tradução de Moysés Baumstein.
São Paulo: Perspectiva, 1969.

139
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

PRENÚNCIO DO FIM: O APOCALIPSE EM


“O CHAMADO DE CTHULHU”, DE H. P. LOVECRAFT
Cido Rossi

Todos os povos e culturas do mundo, por meio de suas mitologias e


religiões, têm uma história de como será o fim de sua existência, história
que permanece viva em seus inconscientes coletivos, já que, a partir do
século XVIII, com a ascensão do pensamento científico-materialista, a
experiência mágica do mundo foi relegada aos mitos, aos contos de fadas,
às narrativas tradicionais passadas de geração em geração à beira do fogo,
na cozinha ou em torno da mesa à hora do jantar, e à ficção (TOLKIEN,
2006; CESERANI, 2006). Ainda assim, nos dias atuais, persiste entre os
nórdicos a consciência da finitude que é traduzida pela ideia de Ragnarök;
do mesmo modo que a concepção de Juízo Final pauta a vida dos cristãos
e a busca pelo Nirvana, a libertação do Ciclo de Samsara, a dos budistas.
Os gregos antigos já detinham, de modo semiconsciente, a ideia de ciclos
existenciais com começo, meio e fim, haja vista a representação dessas
eras em sua própria mitologia/religião: os deuses primordiais são vencidos
pelos titãs, que por sua vez são derrotados pelos olímpicos; Zeus, o líder
desse último grupo, mesmo não tendo sido amaldiçoado pelas Erínias
como o foi seu pai, sabe, em seu íntimo, que um dia poderá ser subjugado
por seu filho mais novo no que seria a terceira repetição de um paradigma
que não parece querer se quebrar.
Na cultura e no imaginário populares, particularmente no contexto
ocidental, a ideia, consciência ou arquétipo do fim da existência se
sedimentou por meio da consolidação de um sentido enviesado atribuído

140
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

a uma única palavra: apocalipse. O apocalipse é o fim dos tempos, o fim dos
ciclos de encarnação, o necessário retorno às cinzas para que delas surja
algo novo, o julgamento que separa o joio do trigo e permite a emergência
de uma nova Jerusalém, um mundo renovado. Guerra, destruição e morte
são o seu modus operandi, e disso deve emergir a paradoxal esperança
de que, após sua ocorrência, tudo será melhor. O apocalipse é, nesse
entendimento, um mal necessário para se atingir um estado existencial
utópico pautado por um bem-estar imutável. Esse é o sentido corrente
do termo e, por consequência, de pós-apocalipse, disseminado ao longo
do tempo e impresso no inconsciente coletivo ocidental por meio da
interpretação católica do último livro da Bíblia. A ficção contemporânea
– de zumbi, mas também a que ficou conhecida e se sedimentou entre o
público leitor/consumidor e entre os acadêmicos como pós-apocalíptica –
tem, no entanto, minado essa conotação salvífico-religiosa da palavra e a
tornado sinônimo de resiliência e luta pela sobrevivência em um mundo
em ruínas, abandonado pelos deuses.
Todavia, independente da acepção conferida ao termo pela cultura
e imaginário populares e pela ficção atual, tal ideia de apocalipse está
incorreta, pois não se coaduna com o significado da palavra na língua que
a originou. Em grego, apocalipse (αποκάλυψις), vocábulo formada por
apo, “tirado de”, e kalumna, “véu” – literalmente, “tirar o véu” –, guarda
o sentido de revelação, a qual se dá no momento em que as divindades
retiram o véu que encobre e condiciona a temporalidade da existência a
uma percepção linear (cronológica) e concedem a alguém ou a um grupo
o dom profético da Visão, a qual possibilita o vislumbre sincrônico, não-
linear, do presente, do passado e do futuro. Tomado pelo dom, causa, lei e
efeito deixam de existir para o vidente – entendido vidente como qualquer
um, indivíduo ou grupo, podendo ser o mesmo ou outro, que se permita
tomar pela Visão, a qual não requer engajamento religioso, crença ou fé
para se manifestar, já que dom inerente à fenomenologia do Ser –, que

141
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

experiencia a Verdade do Ser e do Existir sem nenhum tipo de interface


ou mediação, sem as limitações impostas pelo sensível e pelo psíquico.
Essa Verdade é indizível e inenarrável, pois transcende as possibilidades
de quaisquer sistemas linguísticos, e a única maneira de compartilhá-
la com outrem é por meio das artes, da ficção e da poesia, que por
natureza e definição já transgridem limites e trabalham com o possível
– o verossímil, e não o real enquanto materialidade empírica – dentro
das dimensões do subjetivo.
O apocalipse é, assim, a visão ilimitada do possível – o procedimento
da visualização, e não a sua factualidade; o modo como a Visão se
manifesta, e não o seu conteúdo. Dentro desse entendimento, pós-
apocalipse e pré-apocalipse, ideias caras àqueles que concebem
apocalipse como final dos tempos, não fazem sentido, pois um pós ou
um pré só são concebíveis dentro de uma compreensão linear e causal
do tempo, o que é invalidado pelo sentido prístino do lexema apocalipse.
No entanto, uma revelação, assim como a essência da Verdade, nunca é
plena, pois para sê-lo necessitaria de continuidade infinita, de maneira
que o vidente precisaria permanecer tomado pela Visão, nela vivendo
por toda a sua existência e não a distinguindo da realidade empírica, algo
que se aproxima à ideia clássica de esquizofrenia ou ao conceito de Matrix
conforme desenvolvido pelo filme homônimo. A exemplo do mecanismo
de manifestação da Verdade segundo Heidegger (1979 e 1990), no qual
esta se desvela para, em seguida, se velar – a Verdade como alethéia –, a
revelação ou apocalipse se mostra no momento profético da Visão para,
ato contínuo, se encobrir, se fechar, até que haja nova predisposição
do vidente. A cada vez que a Visão o toma, seja ele o mesmo ou outro,
novos sentidos e possibilidades se adicionam às revelações anteriores
e posteriores, complementando-as, ressignificando-as, excedendo-
as. Apenas sob essa perspectiva se pode pensar em pós-apocalipse e
pré-apocalipse dentro do entendimento que aqui se delineia, os quais

142
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

seriam, desse modo, o conjunto das revelações posteriores e anteriores


a uma primeira – primeira que é tão somente um ponto de referência,
nunca uma origem –, conjunto esse que a complementa, excede e altera.
Há ainda uma segunda possibilidade de compreensão do pós-
apocalipse e do pré-apocalipse, que se coaduna à já mencionada e
confere sobrevida a esses conceitos dentro dos estudos de ficção: se,
como já dito acima, o apocalipse é procedimento, profecia e visão
ilimitada do possível, pós-apocalipse e pré-apocalipse são a factualidade,
o conteúdo manifesto desse proceder-profetizar-ver, o seu vir a ser, a
sua concretização nas múltiplas realidades imaginadas e/ou na realidade
empírica. Todavia, é evidente que as coisas não são tão estanques como
parecem. Seria muito simples – para não dizer simplista – se apocalipse
fosse mero sinônimo para estrutura e forma, e pós-apocalipse e pré-
apocalipse também sinônimos para tema e conteúdo. Ocorre, no
entanto, que há uma espacialidade entre estrutura e tema e entre
forma e conteúdo, a qual permite a conexão entre ambos, a existência
do ficcional e, por certo, a própria realidade empírica entendida como
materialização do imaginário. Essa espacialidade é khōra (DERRIDA,
1995), um lugar não-lugar, um espaço só-trânsito, nem lá e nem cá mas
só-entre, má-formação congênita sem a qual forma/conteúdo, estrutura/
tema não seriam possíveis e se obliterariam mutualmente.
Tal espacialidade também se projeta, enquanto teratologia, entre
apocalipse, pós-apocalipse e pré-apocalipse, pois em meio à revelação e
seus suplementos, ressignificações, excessos/exceções e realizações há
o mistério irredutível, a impossibilidade de acesso ao todo da Verdade
revelada que, não por acaso, coloca sob suspeita a existência de um todo.
Em outras palavras, a visão ilimitada do possível se manifesta (apocalipse);
as manifestações que a precederam (pré-apocalipse) e sucederam (pós-
apocalipse) a suplementam, excedem, ressignificam, se concretizam; mas
ao se juntar a primeira manifestação com o conjunto de suas ocorrências

143
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

anteriores e posteriores e com seu conteúdo manifesto (nos reais


ficcionais e/ou no real empírico), o resultado não é um todo sistêmico,
completo e fechado, e sim algo transiente, mutável, múltiplo, aberto,
sempre-já significante, refratário e replicante. Tentar organizar esse algo
por meio de padrões lógico-racionais – sistematizá-lo – só vai lançar quem
tenta fazê-lo novamente diante do mistério irredutível, não importando
o método que se utilize. O único modo de lidar com ele é aceitá-lo como ele
é: um excipiente que, ao permitir que substâncias/forças/entendimentos
imiscíveis se tornem miscíveis, possibilita também a geração e subversão
infinitas de sentidos resultantes do ato de misturar.
Apocalipse/pós-apocalipse/pré-apocalipse – apocalipse daqui por diante
–, assim como forma/conteúdo e estrutura/tema, pertencem à dinâmica do
phármakon, “sempre uma questão de vida [e] de morte” (DERRIDA, 2005,
p. 52). É dentro desse entendimento que passo a explorar analiticamente
o conto “O chamado de Cthulhu” (“The Call of Cthulhu”, 1928), do norte-
americano H. P. Lovecraft, com o intuito de investigar como o apocalipse se
manifesta na composição de uma narrativa cujo enredo se volta não ao fim
da existência, mas à visão ilimitada da possibilidade desse fim. Diferente dos
mitos, do imaginário popular pautado pelo inconsciente coletivo e da ficção
contemporânea sobre a finitude, o conto que é considerado a obra-prima
de Lovecraft não narra o fim – como o faz, em forma de poesia, Lord Byron
em “Darkness” (1816) –, nem o depois do fim – Frank Herbert em Duna
(Dune, 1965), William Gibson em Neuromancer (1984), dentre tantos outros
–, tampouco o antes do fim – Nelson Magrini em Anjo: a face do mal (2004),
Eduardo Spohr em A batalha do Apocalipse (2007), entre outros –, mas o
prenúncio do fim, o suspense gerador e subversor de sentidos que constitui
a iminência da finitude, iminência que nunca se efetiva, nunca se transforma
em fato, nunca ocorre.
Bom herdeiro de Poe que era, a Lovecraft interessa, em “O chamado
de Cthulhu”, o processo, o trajeto que leva ao fim da existência, e não

144
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

a concretização, a factualidade, a materialização desse fim, já que o


poderoso Cthulhu acaba por ser contido, na conclusão do enredo, em sua
tentativa de se manifestar na realidade empírica representada no conto.
Nessa obra, Lovecraft nos lança (a mim, a você e ao narrador) diante do
apocalipse para entretecer todos os envolvidos nas perigosas malhas
teratológicas do entre, a espacialidade unheimlich que ao mesmo tempo
permite a conexão, a infinita significação e o suplemento trazidos pela
visão ilimitada do possível. Como se observará no que segue, é por essa
razão que o chamado presente no título da obra, o qual entendo como
a textualidade criada por Lovecraft para trazer à tona a mais famosa
das monstruosidades que habitam seu universo ficcional, é muito mais
poderoso e assustador do que o próprio Cthulhu.
No procedimento de composição desse chamado, que arrisco
denominar apocalíptico e que ocorre, de modos diferentes, em todos os
principais contos que constituem seu legado, o autor cria uma narrativa
fragmentária e metatextual que exige do leitor uma fusão com o narrador
para que se possa acompanhar e efetivamente participar da montagem
de um intrincado quebra-cabeça textual composto por manuscritos,
transcrições de relatos, recortes de jornais e interpretações. Esse quebra-
cabeça é, a um só tempo, estrutura e tema do enredo, e conduzirá o
leitor, uma vez fundido com o narrador, ao apocalipse enquanto o serze
à teratologia do entre. Sem que o perceba, o leitor vai pouco a pouco
adquirindo os mesmos conhecimentos ocultos e proibidos encontrados
pelo narrador; quando a narrativa se conclui, ambos, por estarem em
igual patamar, têm suas vidas colocadas em risco em razão do que sabem
– “I do not think my life will be long. As my uncle went, as poor Johansen
went, so I shall go. I know too much, and the cult still lives”1 (LOVECRAFT,

1 Não me agrada nenhuma das traduções de “O chamado de Cthulhu” existentes em


português, e também não me atrevo a propor traduções das citações que fiz do conto, pois
a textualidade de Lovecraft, como a de Derrida, demanda tradutores especializados em sua
obra. Opto, assim, por manter no original as passagens a que recorro.

145
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

2011, p. 379). Melancolia e medo são os sentimentos do narrador; prazer


estético, o prazer do texto, “jubilação contínua, o momento em que por
seu excesso o prazer verbal sufoca e oscila na fruição” (BARTHES, 2006, p.
14), é o erótico e perverso sentimento do leitor.
O recurso do quebra-cabeça textual, com sua estrutura de encaixe
(mise en abyme), engendra também uma atmosfera de terror por meio
do crescendo do suspense – quanto mais narrador e leitor sabem, mais
querem saber, visto que cada nova informação se agrega, amplia e
reconfigura os sentidos de tudo que a antecede ou sucede por meio do
apocalipse, e a ansiedade os toma por completo; quando se apercebem
do que se envolveram, é muito tarde: voltar ou desistir não são mais
opções; continuar é a única escolha, e o custo dessa escolha é a vida dos
envolvidos – o narrador sabe que vai morrer e que isso é uma questão
de tempo; o leitor sacia sua pulsão de morte por meio da textualidade
do conto. Construída a atmosfera de terror – e Lovecraft é minucioso
nessa construção –, o grafismo do horror vem à tona com toda virulência
na cena da ascensão da cidade-necrópole de R’lyeh, de geometria não-
euclidiana, das profundezas oceânicas, a qual, ao ter uma de suas portas
aberta por acidente, permite a aparição de Cthulhu, monstruosidade
cósmica e aberrante que, uma vez liberta, “the world would by now be
screaming with fright and frenzy” (LOVECRAFT, 2011, p. 379). A maneira
como Lovecraft articula a atmosfera de terror com o grafismo do horror,
de modo que um leve e resulte no outro e dele não possa ser separado,
faz do conto em questão um marco da narrativa gótica do século XX e um
divisor de águas em relação à narrativa gótica tradicional dos séculos XVIII
e XIX, estabelecendo os padrões temático-estruturais para toda a ficção
conhecida como Weird e Terror Cósmico na atualidade.
Em termos de enredo, “O chamado de Cthulhu” traz um frame
relativamente simples: um renomado e já bastante idoso professor

146
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

universitário e pesquisador de línguas semíticas da Brown University2


chamado George Gammel Angell falece em circunstâncias suspeitas. Seu
legado vai parar nas mãos de um sobrinho, seu único herdeiro, o qual
é o não nomeado narrador do conto e também seu autor, visto que
Lovecraft se utiliza da clássica convenção do manuscrito – e, em menor
grau, do editor – na composição de sua obra-prima. Ao se familiarizar
com os muitos arquivos de pesquisa do professor, o narrador-autor – que
logo se torna também narrador-leitor sob duas perspectivas: na fusão
demandada pelo enredo entre a figura do narrador e a pessoa do leitor; e
por ser o narrador também o leitor de diversos outros manuscritos que se
agregam ao seu relato – se depara com “one box which I found exceedingly
puzzling, and which I felt much averse from shewing to other eyes”, pois
continha um “queer bas-relief” e “disjointed jottings, ramblings, and
cuttings” (LOVECRAFT, 2011, p. 356). Surpreso com o achado, e bastante
desconfiado de que se trate de “superficial impostures” (LOVECRAFT,
2011, p. 356), ou seja, charlatanismo, o narrador-autor se detém primeiro
no baixo-relevo:
It seemed to be a sort of monster, or symbol
representing a monster, of a form which only a diseased
fancy could conceive. If I say that my somewhat
extravagant imagination yielded simultaneous pictures
of an octopus, a dragon, and a human caricature, I shall

2 Observe-se que Lovecraft opta, em “O chamado de Cthulhu”, por referenciar locais


factualmente existentes ao invés de recorrer à sua própria e famosa geografia ficcional. A
personagem que lega as primeiras pistas do Culto de Cthulhu ao narrador era professor
da Brown University, uma das famosas universidades estadunidenses da Ivy League, e não
da Miskatonic University, a universidade fictícia criada por Lovecraft. Ao longo do texto
do conto menciona-se, ainda, a Princeton University; as cidades de Providence, Boston,
St. Louis, Dunedin, Auckland, Sydney, Londres e Oslo; Groenlândia e Islândia; bem como
coordenadas geográficas precisas de localidades no oceano Pacífico. O objetivo dessas
menções não me parece outro senão o de esmaecer as fronteiras entre ficção e realidade,
algo que é uma recorrência estilística na obra de Lovecraft e que encontra seu máximo
aperfeiçoamento e efeito em “O chamado de Cthulhu”.

147
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

not be unfaithful to the spirit of the thing. A pulpy,


tentacled head surmounted a grotesque and scaly body
with rudimentary wings; but it was the general outline
of the whole which made it most shockingly frightful.
Behind the figure was a vague suggestion of a Cyclopean
architectural background. (LOVECRAFT, 2011, p. 357)

Em seguida, se volta aos papéis e documentos que acompanhavam a


escultura:
The writing accompanying this oddity was, aside from
a stack of press cuttings, in Professor Angell’s most
recent hand; and made no pretence to literary style.
What seemed to be the main document was headed
“CTHULHU CULT” in characters painstakingly printed
to avoid the erroneous reading of a word so unheard-
of. The manuscript was divided into two sections, the
first of which was headed “1925 – Dream and Dream
Work of H. A. Wilcox, 7 Thomas St., Providence, R.
I.,” and the second, “Narrative of Inspector John R.
Legrasse, 121 Bienville St., New Orleans, La., at 1908
A. A. S. Mtg. – Notes on Same, & Prof. Webb’s Acct.”
The other manuscript papers were all brief notes, some
of them accounts of the queer dreams of different
persons, some of them citations from theosophical
books and magazines (notably W. Scott-Elliot’s Atlantis
and the Lost Lemuria), and the rest comments on
long-surviving secret societies and hidden cults, with
references to passages in such mythological and
anthropological source-books as Frazer’s Golden Bough
and Miss Murray’s Witch-Cult in Western Europe. The
cuttings largely alluded to outré, mental illnesses and
outbreaks of group folly or mania in the spring of 1925.
(LOVECRAFT, 2011, p. 357)

A partir desse ponto, o narrador-autor veste a máscara de narrador-


leitor e inicia a leitura do que encontrara – o leitor do conto o acompanha,
por certo, em todo esse percurso por pura curiosidade, a qual, nas mãos

148
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

de Lovecraft, causa a suspensão da descrença. O primeiro texto em que


se detém é a primeira parte do documento intitulado “Culto de Cthulhu”,
na qual se encontra o relato do professor Angell sobre seu contato com
um escultor iniciante chamado Henry Anthony Wilcox. Wilcox é o autor do
baixo-relevo mencionado, o qual fora feito pelo artista depois deste ser
acometido por um sonho e que se descobre, ao longo da trama, retratar
Cthulhu. A seguir, o agora narrador-leitor se volta aos relatos de outros
artistas e recortes de jornal recolhidos pelo professor Angell, textos que
trazem histórias de sonhos, perturbações do sono e loucura. Sua conclusão
frente a esses escritos se mostrará fundamental para o entendimento
de quem é Cthulhu, quem são os Grandes Antigos e como esses seres se
comunicam com a humanidade – por meio de cultos religiosos, sonhos,
poesia e demais artes –, mas ele só se dará conta dessa importância em
momento avançado do enredo: “It was from the artists and poets that the
pertinent answers came” (LOVECRAFT, 2011, p. 360).
Dando prosseguimento, o narrador-leitor se volta à leitura da segunda
parte de “Culto de Cthulhu”, na qual se encontra a narrativa do professor
Angell sobre seu encontro, à época de uma conferência de Arqueologia
ocorrida em St. Louis, com o inspetor John Raymond Legrasse, que
procurou os especialistas reunidos no evento com um pedido de ajuda
sobre um caso em que estava trabalhando e que envolvia vítimas de um
culto diabólico existente nos pântanos da Louisiana. Legrasse trouxe
consigo a estatueta idolatrada pelos cultistas e a submeteu ao escrutínio
dos especialistas com a esperança de que pudessem lhe dizer o que era e
do que se tratava.
Assombrados com a aparência da escultura, nenhum dos presentes
conseguiu ajudá-lo por não deter nenhum conhecimento sobre um objeto
como aquele – o qual, como se descobre em outro momento do enredo,
é uma das imagens originais de Cthulhu existentes na Terra e trazidas
“in dim aeras from dark stars” (LOVECRAFT, 2011, p. 367) pelo próprio

149
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

ser, que as espalhou pelo globo para que seu culto se disseminasse entre
os humanos. Entretanto, um certo William Channing Webb, professor
de Antropologia da Princeton University e ex-explorador, contou aos
presentes que, em uma de suas viagens à Groenlândia e à Islândia para
pesquisar inscrições rúnicas, se deparara com uma tribo muito específica
de esquimós que mantinha um culto demoníaco e de sangue em torno
de um ídolo muito parecido com o representado na estatueta trazida por
Legrasse. Diante desse dado, o inspetor e o professor trabalharam juntos
e conseguiram estabelecer um ponto de conexão entre os cultistas dos
pântanos da Louisiana do caso investigado por Legrasse e os cultistas
esquimós da Groenlândia com os quais o professor Webb teve contato:
ambos os grupos entoavam, em seus cânticos rituais, o verso “Ph’nglui
mglw’nafh Cthulhu R’lyeh wgah’nagl fhtagn”, que Legrasse descobriu,
ao interrogar os cultistas que prendeu, significar “In his house at R’lyeh
dead Cthulhu waits dreaming” (LOVECRAFT, 2011, p. 363). Tomados pela
curiosidade e pelo assombro, os especialistas quiseram saber do detetive
como ele havia feito aquela descoberta, ao que Legrasse lhes relata o
ocorrido nos pântanos da Louisiana e suas conversas com um homem
chamado Castro, cuja narrativa traz uma grande quantidade de detalhes
sobre o Culto de Cthulhu.
Finalizada sua leitura do longo manuscrito do professor Angell – o
qual, como se pode notar, é composto pelo encaixe de vários outros
relatos –, o narrador-leitor ainda não se mostra convencido de que não
está diante de charlatanismo – “My attitude was still one of absolute
materialism, as I wish it still were” (LOVECRAFT, 2011, p. 370); em
suma, ele resiste às evidências – e desiste de dar prosseguimento às
investigações demandadas pela sua curiosidade científica sobre o
assunto até que, ao visitar um amigo, curador de um museu, e apreciar
os objetos de uma de suas estantes, as quais eram forradas com jornais,
teve sua atenção chamada por “an odd picture in one of the old papers

150
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

spread beneath the stones. It was the Sydney Bulletin […]; and the
picture was a half-tone cut of a hideous stone image almost identical
with that which Legrasse had found in the swamp” (LOVECRAFT, 2011,
p. 371). De pronto, o narrador-leitor retira a folha de jornal da estante
e a lê. Para seu espanto, o relato ali publicado constitui “new treasuries
of data on the Cthulhu Cult” (LOVECRAFT, 2011, p. 373), o que reacende
sua curiosidade e espírito investigativo ao ponto de, naquela mesma
tarde, partir para a Nova Zelândia para confirmar os dados publicados
no jornal e tentar encontrar um marinheiro norueguês chamado Gustaf
Johansen, que vivenciara situações envolvendo o culto e certamente
detinha novas informações sobre o assunto.
Após perambular sem sucesso por Dunedin e Auckland na Nova
Zelândia e Sydney na Austrália, o narrador-leitor acaba descobrindo que
Johansen havia retornado a Oslo, sua cidade-natal, e decide ir ao seu
encontro. Ao chegar a esse destino, recebe a notícia de que o marinheiro
havia morrido – em circunstâncias bastante suspeitas e muito similares
às da morte de seu tio. Resolve então procurar a esposa do falecido, de
quem recebe um manuscrito no qual Johansen relata em detalhes sua
experiência com as ascensão da cidade-necrópole de R’lyeh e com a
manifestação factual de Cthulhu, bem como a maneira com que, ao atirar
o barco que navegava contra a criatura, de algum modo a fez retornar ao
sono de éons em que se encontrava, postergando assim, por mais algum
tempo, o final da existência humana.
He must have been trapped by the sinking whilst within
his black abyss, or else the world would by now be
screaming with fright and frenzy. Who knows the end?
What has risen may sink, and what has sunk may rise.
Loathsomeness waits and dreams in the deep, and
decay spreads over the tottering cities of men. A time
will come – but I must not and cannot think! Let me pray
that, if I do not survive this manuscript, my executors

151
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

may put caution before audacity and see that it meets


no other eye. (LOVECRAFT, 2011, p. 379)

Delineado o frame do enredo de “O chamado de Cthulhu”, chama


a atenção o que ele emoldura, ou seja, o chamado, pois é nele que se
encontra o apocalipse e a consequente tessitura teratológica do entre:
trata-se de uma narrativa de investigação – inspirada, por certo, pelo
Poe de “A carta roubada” (“The Purloined Letter”, 1844), e que remete
a narrativas bastante específicas do gênero, como O nome da rosa (Il nome
della rosa, 1980), de Umberto Eco. Como tal, o que interessa é o processo
investigativo, as pistas encontradas pelo investigador (que é o narrador-
leitor) e como elas se articulam de modo a revelar a existência de um
Culto de Cthulhu ao longo das eras, culturas e povos da humanidade; a
factualidade de Cthulhu e de quem ele representa, uma vez que esse
ser, que tem o status de deus, é o sacerdote dos Grandes Antigos – “the
Great Old One” (LOVECRAFT, 2011, p. 366) –, poderosos e antiquíssimos
deuses alienígenas e transdimensionais que, na mitologia desenvolvida
por Lovecraft, os assim chamados Cthulhu Mythos, transitam pelo cosmo
de maneira randômica espalhando o caos, o horror e a destruição; e que
o fim da existência humana não é uma questão de “se” e “como”, mas
“quando”, já que Cthulhu e os Grandes Antigos não são, na representação
verossimilhante da realidade criada pela textualidade do conto, seres
imaginários, lendas ou mitos, nem uma promessa de algo que vai chegar,
mas estão aqui – sempre estiveram, desde antes da geração de qualquer
forma de vida, e sempre estarão –, são existentes e reais, estando apenas
adormecidos nas profundezas oceânicas até que chegue o momento
apropriado e despertem para reinstaurar seu reino caótico e medonho.
O processo investigativo estabelecido pelo narrador-autor e
desenvolvido pelo narrador-leitor compõe-se de uma metodologia
científica pautada pelo que denominarei, utilizando-me da terminologia
cunhada por Carlo Ginzburg (1989), de paradigma indiciário: cético e,

152
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

ao que tudo indica, aspirante a antropólogo – a cientista, portanto –,


submete as pistas que têm – os relatos presentes no manuscrito de seu
tio (as narrativas de Wilcox, Legrasse, do professor Webb e de Castro), os
recortes de jornal, o artigo publicado no Sydney Bulletin e o manuscrito
de Johansen – à verificação empírica: interpela Wilcox para averiguar se
seu relato é verídico; visita o inspetor Legrasse em New Orleans; viaja a
Dunedin, a Auckland, a Sydney e a Oslo; conversa pessoalmente com a
esposa do falecido Johansen, de quem adquire o último manuscrito que
integra a sua investigação, o qual se mostra fundamental para a trama ao
conter o relato da manifestação de Cthulhu na realidade verossimilhante
do conto. Com isso, persegue caminho idêntico ao trilhado por seu tio
e, a partir do artigo publicado no jornal Sydney Bulletin, dá o próximo
passo que o professor Angell fora impedido de dar: comprova não só a
existência do Culto de Cthulhu, mas a existência do próprio Cthulhu e,
por consequência, dos Grandes Antigos. Ao mesmo tempo, o narrador-
autor espalha, ao longo de sua própria narrativa – é importante sempre
ter em mente que o texto de “O chamado de Cthulhu” é um manuscrito de
autoria de seu narrador, como já mencionado outrora –, dados empíricos,
datados inclusive, sobre terremotos, tempestades, naufrágios e momentos
em que pessoas foram acometidas por sonhos, distúrbios psicológicos e
loucura. A maneira com que dispõe e organiza os relatos contidos nos
manuscritos que tem à mão e esses dados empíricos ao longo de sua
narrativa-manuscrito se dá por meio do paradigma indiciário,
a capacidade de, a partir de dados aparentemente
negligenciáveis, remontar a uma realidade complexa
não experimentável diretamente. Pode-se acrescentar
que esses dados são sempre dispostos pelo observador
[o narrador, no presente caso] de modo tal a dar lugar a
uma seqüência narrativa. (GINZBURG, 1989, p. 152)

O uso organizador-direcionador do paradigma indiciário por parte do


narrador-autor, bem como sua execução quando este se torna narrador-

153
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

leitor, demonstra, para além da habilidade de investigador e cientista, a


“experiência da decifração das pistas”, a qual nasceu pela primeira vez
numa “sociedade de caçadores” (GINZBURG, 1989, p. 152). “O caçador
teria sido o primeiro a ‘narrar uma história’ porque era o único capaz de
ler, nas pistas mudas (se não imperceptíveis) deixadas pelas presas, uma
série coerente de eventos” (GINZBURG, 1989, p. 152, grifo nosso). Essa
experiência da decifração, a capacidade de ler pistas mudas e com elas
construir uma narrativa coerente, implica necessariamente uma vivência
do mistério – que é também uma vivência no mistério e o chamado do
mistério. Para ler e escrever (organizar, narrar) as pistas, para interpretá-
las de modo adequado, o caçador, primeiro narrador, deve atender ao
chamado e se lançar no mistério imposto pelo seu enigma – toda pista
é, por definição, um enigma em si mesmo e parte de outro enigma. Só
aceitando o chamado, lançando-se no mistério e o vivenciando enquanto
tal é que ao caçador-narrador será permitido revelar – desvelar e velar – o
texto escondido nas pistas, nos sinais, nos símbolos, e com isso acessar
a visão de uma das possibilidades da Verdade. É nesse momento, nesse
instante consagrado (PAZ, 2012), só traduzível por meio do poético, que
o caçador-narrador, mas também o narrador-autor e o narrador-leitor,
experienciam o profético. E o apocalipse aí se dá.
Em “O chamado de Cthulhu” são, a meu ver, dois os momentos em que
o frame do enredo emoldura o apocalipse, momentos estes nos quais o
narrador-leitor experiencia a revelação, qual Verdade alethéia, ao colocar
em movimento o paradigma indiciário e, com isso, predispor-se a ser
tomado pela visão ilimitada do possível: o relato de Castro, no qual se tem
a revelação (apocalipse) do Culto de Cthulhu como verdadeiro – todas as
pistas espalhadas ao longo da narrativa só adquirem sentido, organizadas
pelo paradigma indiciário, nesse relato –, e o relato de Johansen, no qual é
narrada a manifestação do próprio Cthulhu – o que não apenas comprova
o que fora dito por Castro ou a veracidade do culto, mas também que o fim

154
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

da existência é uma possibilidade concreta na realidade verossimilhante


criada no conto (e nós sabemos, você e eu, caro/a leitor/a, que essa
possibilidade é igualmente concreta onde vivemos, na realidade que
chamamos de empírica, ainda que ela nos seja insuportável).
Mistério irredutível, o relato de Castro está dentro do relato do
inspetor Legrasse, que por sua vez está dentro do manuscrito do professor
Angell, o qual está dentro do manuscrito do narrador; em outras palavras,
está protegido pelos poderes da textualidade e pelos sortilégios da mise
en abyme, clara sinalização do perigo representado por seu conteúdo – do
contrário, não haveria razão para circunscrevê-lo em um jogo metatextual
tão intrincado. Leiamo-lo:
What the police did extract, came mainly from an
immensely aged mestizo named Castro, who claimed
to have sailed to strange ports and talked with undying
leaders of the cult in the mountains of China.
Old Castro remembered bits of hideous legend that
paled the speculations of theosophists and made man
and the world seem recent and transient indeed. There
had been aeons when other Things ruled on the earth,
and They had had great cities. Remains of Them, he said
the deathless Chinamen had told him, were still to be
found as Cyclopean stones on islands in the Pacific. They
all died vast epochs of time before men came, but there
were arts which could revive Them when the stars had
come round again to the right positions in the cycle of
eternity. They had, indeed, come themselves from the
stars, and brought Their images with Them.
These Great Old Ones, Castro continued, were not
composed altogether of flesh and blood. They had
shape – for did not this star-fashioned image prove it?
– but that shape was not made of matter. When the
stars were right, They could plunge from world to world
through the sky; but when the stars were wrong, They
could not live. But although They no longer lived, They

155
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

would never really die. They all lay in stone houses in


Their great city of R’lyeh, preserved by the spells of
mighty Cthulhu for a glorious resurrection when the
stars and the earth might once more be ready for Them.
But at that time some force from outside must serve to
liberate Their bodies. The spells that preserved Them
intact likewise prevented Them from making an initial
move, and They could only lie awake in the dark and
think whilst uncounted millions of years rolled by. They
knew all that was occurring in the universe, but Their
mode of speech was transmitted thought. Even now
They talked in Their tombs. When, after infinities of
chaos, the first men came, the Great Old Ones spoke to
the sensitive among them by moulding their dreams; for
only thus could Their language reach the fleshly minds
of mammals.
Then, whispered Castro, those first men formed the cult
around small idols which the Great Ones shewed them;
idols brought in dim aeras from dark stars. That cult
would never die till the stars came right again, and the
secret priests would take great Cthulhu from His tomb
to revive His subjects and resume His rule of earth. The
time would be easy to know, for then mankind would
have become as the Great Old Ones; free and wild and
beyond good and evil, with laws and morals thrown
aside and all men shouting and killing and revelling in
joy. Then the liberated Old Ones would teach them new
ways to shout and kill and revel and enjoy themselves,
and all the earth would flame with a holocaust of ecstasy
and freedom. Meanwhile the cult, by appropriate rites,
must keep alive the memory of those ancient ways and
shadow forth the prophecy of their return.
In the elder time chosen men had talked with the
entombed Old Ones in dreams, but then something
had happened. The great stone city R’lyeh, with its
monoliths and sepulchres, had sunk beneath the waves;
and the deep waters, full of the one primal mystery

156
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

through which not even thought can pass, had cut off the
spectral intercourse. But memory never died, and high-
priests said that the city would rise again when the stars
were right. Then came out of the earth the black spirits
of earth, mouldy and shadowy, and full of dim rumours
picked up in caverns beneath forgotten sea-bottoms.
But of them old Castro dared not speak much. He cut
himself off hurriedly, and no amount of persuasion or
subtlety could elicit more in this direction. The size of
the Old Ones, too, he curiously declined to mention.
Of the cult, he said that he thought the centre lay amid
the pathless deserts of Arabia, where Irem, the City of
Pillars, dreams hidden and untouched. It was not allied
to the European witch-cult, and was virtually unknown
beyond its members. No book had ever really hinted of
it, though the deathless Chinamen said that there were
double meanings in the Necronomicon of the mad Arab
Abdul Alhazred which the initiated might read as they
chose, especially the much-discussed couplet:
“That is not dead which can eternal lie,
And with strange aeons even death may die.”
Legrasse, deeply impressed and not a little bewildered,
had inquired in vain concerning the historic affiliations
of the cult. Castro, apparently, had told the truth when
he said that it was wholly secret. (LOVECRAFT, 2011,
p. 367-368)

Já o relato de Johansen, muito mais impactante do que o de Castro,


foi, de certa forma, “roubado” da mulher do falecido pelo narrador-leitor
– “Persuading the widow that my connexion with her husband’s ‘technical
matters’ was sufficient to entitle me to his manuscript, I bore the document
away and began to read it on the London boat” (LOVECRAFT, 2011, p.
375). Ocorre, no entanto, que ao invés de prendê-lo nas masmorras da
textualidade com os grilhões da narrativa encaixada, o narrador-leitor,
talvez sem o perceber, ou talvez de propósito, o lê conosco, os leitores
de carne e osso da obra, de modo que participamos do tremendum da

157
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

manifestação de Cthulhu em sua companhia. Esse recurso, essa armadilha


narrativa do (caçador-)narrador, torna o apocalipse uma experiência
também vivenciada por nós no momento da leitura. A principal implicação
disso é que o fim da existência se mostra, nos instantes consagrados da
curiosidade causadora da suspensão da descrença, uma possibilidade real
não apenas para o narrador-leitor, mas para nós, habitantes da realidade
empírica. Experienciemo-la:
Without knowing what futurism is like, Johansen achieved
something very close to it when he spoke of the city; for
instead of describing any definite structure or building,
he dwells only on broad impressions of vast angles and
stone surfaces – surfaces too great to belong to any thing
right or proper for this earth, and impious with horrible
images and hieroglyphs. I mention his talk about angles
because it suggests something Wilcox had told me of
his awful dreams. He had said that the geometry of the
dream-place he saw was abnormal, non-Euclidean, and
loathsomely redolent of spheres and dimensions apart
from ours. Now an unlettered seaman felt the same thing
whilst gazing at the terrible reality.
Johansen and his men landed at a sloping mud-bank on
this monstrous Acropolis, and clambered slipperily up
over titan oozy blocks which could have been no mortal
staircase. The very sun of heaven seemed distorted
when viewed through the polarising miasma welling out
from this sea-soaked perversion, and twisted menace
and suspense lurked leeringly in those crazily elusive
angles of carven rock where a second glance shewed
concavity after the first shewed convexity.
Something very like fright had come over all the
explorers before anything more definite than rock and
ooze and weed was seen. Each would have fled had he
not feared the scorn of the others, and it was only half-
heartedly that they searched – vainly, as it proved – for
some portable souvenir to bear away.

158
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

It was Rodriguez the Portuguese who climbed up


the foot of the monolith and shouted of what he had
found. The rest followed him, and looked curiously at
the immense carved door with the now familiar squid-
dragon bas-relief. It was, Johansen said, like a great
barn-door; and they all felt that it was a door because of
the ornate lintel, threshold, and jambs around it, though
they could not decide whether it lay flat like a trap-door
or slantwise like an outside cellar-door. As Wilcox would
have said, the geometry of the place was all wrong. One
could not be sure that the sea and the ground were
horizontal, hence the relative position of everything
else seemed phantasmally variable.
Briden pushed at the stone in several places without
result. Then Donovan felt over it delicately around
the edge, pressing each point separately as he went.
He climbed interminably along the grotesque stone
moulding – that is, one would call it climbing if the thing
was not after all horizontal – and the men wondered
how any door in the universe could be so vast. Then,
very softly and slowly, the acre-great panel began to give
inward at the top; and they saw that it was balanced.
Donovan slid or somehow propelled himself down or
along the jamb and rejoined his fellows, and everyone
watched the queer recession of the monstrously carven
portal. In this phantasy of prismatic distortion it moved
anomalously in a diagonal way, so that all the rules of
matter and perspective seemed upset.
The aperture was black with a darkness almost material.
That tenebrousness was indeed a positive quality; for it
obscured such parts of the inner walls as ought to have
been revealed, and actually burst forth like smoke from
its aeon-long imprisonment, visibly darkening the sun
as it slunk away into the shrunken and gibbous sky on
flapping membraneous wings. The odour arising from the
newly opened depths was intolerable, and at length the
quick-eared Hawkins thought he heard a nasty, slopping

159
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

sound down there. Everyone listened, and everyone was


listening still when It lumbered slobberingly into sight
and gropingly squeezed Its gelatinous green immensity
through the black doorway into the tainted outside air
of that poison city of madness.
Poor Johansen’s handwriting almost gave out when
he wrote of this. Of the six men who never reached
the ship, he thinks two perished of pure fright in that
accursed instant. The Thing cannot be described –
there is no language for such abysms of shrieking and
immemorial lunacy, such eldritch contradictions of all
matter, force, and cosmic order. A mountain walked or
stumbled. God! What wonder that across the earth a
great architect went mad, and poor Wilcox raved with
fever in that telepathic instant? The Thing of the idols,
the green, sticky spawn of the stars, had awaked to claim
his own. The stars were right again, and what an age-
old cult had failed to do by design, a band of innocent
sailors had done by accident. After vigintillions of years
great Cthulhu was loose again, and ravening for delight.
(LOVECRAFT, 2011, p. 376-377)

Note-se que Lovecraft colocou toda a ação do enredo no relato


de Johansen. Interessantemente, dentro do que venho argumentando,
essa ação borra as fronteiras entre representação verossimilhante
da realidade (ficção) e realidade material (vida). O resultado disso,
em termos cognitivos tanto em relação ao narrador-leitor quanto em
relação ao leitor de carne e osso, é receio e hesitação, reinstauradores
do suspense na narrativa – identifico dois finais em “O chamado de
Cthulhu”, ambos abertos, mas isso é assunto para outras reflexões – e
portas de entrada para o medo, que vem com a consciência de que o
fim da existência não é mais uma questão de “se” e “como”, mas de
“quando”. É esse “quando” que, ao mesmo tempo, renova o suspense
instaurado pela visão ilimitada do possível e urde tanto narrador quanto
leitor naquela espacialidade unheimlich que, teratológica, (não)existe

160
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

entre apocalipse, pós-apocalipse e pré-apocalipse; forma e conteúdo,


estrutura e tema; realidade e ficção, vida e morte.
E “O chamado de Cthulhu” permanece significando, chamando,
sempre-já apocalíptico, mantendo o fim eterna possibilidade, eterno
suspense, encaixado em uma narrativa que se regozija com as
perversidades formais (a mise en abyme, o paradigma indiciário) e
conteudísticas (a angústia da eterna iminência do fim, o chamado,
Cthulhu) que impõe ao seu narrador e aos seus leitores. “Who knows the
end?”, pergunta-se, sádica, encenando suas perversões na superfície de
sua textualidade. “What has risen may sink, and what has sunk may rise”,
continua, arrebatada pela sua própria indecidibilidade. “Loathsomeness
waits and dreams in the deep, and decay spreads over the tottering cities
of men”, constata, em êxtase. “A time will come –” (LOVECRAFT, 2011, p.
379), prenuncia, e em seu incessante prenunciar reacende aquele erótico
prazer do texto que nos invade, perversos que (também) somos, quando
nos deparamos com textualidades desse tipo.

Referências
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2006.
CESERANI, Remo. As raízes históricas do fantástico. In: CESERANI, Remo.
O fantástico. Curitiba: Editora da UFPR, p. 89-104, 2006.
DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 2005.
DERRIDA, Jacques. Khōra. In: DERRIDA, Jacques. On the Name. Stanford:
Stanford University Press, p. 87-127, 1995.
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: GINZBURG,
Carlo. Mitos, emblemas, sinais. São Paulo: Companhia das Letras, p. 143-179,
1989.
HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Lisboa: Edições 70, 1990.
HEIDEGGER, Martin. Sobre a essência da verdade. In: HEIDEGGER, Martin.
Heidegger. São Paulo: Abril Cultural, p. 127-145, 1979. (Os pensadores).

161
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

LOVECRAFT, H. P. The Call of Cthulhu. In: LOVECRAFT, H. P. The Complete Fiction.


New York: Barnes & Noble, p. 355-379, 2011.
PAZ, Octavio. A consagração do instante. In: PAZ, Octavio. O arco e a lira. São
Paulo: Cosac Naify, p. 191-203, 2012.
TOLKIEN, J. R. R. Sobre histórias de fadas. In: TOLKIEN, J. R. R. Sobre histórias de
fadas. São Paulo: Conrad, p. 9-89, 2006.

162
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

POSAPOCALIPSIS, HISTORIA Y ESPACIO EN


LA SERIE LA VALLA1
Alfons Gregori

La insólita situación pandémica que se ha vivido en los últimos tiempos


a nivel mundial ha favorecido el consumo de producciones audiovisuales,
tanto en las cadenas televisivas convencionales como, sobre todo, en las
plataformas digitales de pago por suscripción2. En especial, ha habido un
incremento notable de este tipo de ocio en los períodos más duros del
confinamiento, apareciendo incluso en modos de folclore contemporáneo
como los memes. Uno de los géneros más cultivados en estas obras no
miméticas es la distopía, y en concreto el relato posapocalíptico. Sin
embargo, en el cine español en general se ha prescindido de postular
sociedades futuras o presentes alternativas (SÁNCHEZ TRIGOS, 2018, p.
317)3. El objetivo de este trabajo es examinar una de las excepciones a esta
tendencia en el marco del consumo descrito más arriba: la serie La valla
(2020), relato inscrito en la narrativa posapocalíptica que será analizado
teniendo en cuenta sus implicaciones ideológicas, principalmente la
cuestión nacional en su dimensión espacial e histórica. Además, se

1 El presente artículo se ha beneficiado de la ayuda del proyecto de investigación del


Ministerio de Economía, Industria y Competitividad FFI2017-84402-P titulado Lo fantástico en
la cultura española contemporánea (1955-2017): narrativa, teatro, cine, tv, cómic y radio.
2 Quisiera dedicar este trabajo a Ana Luengo, por los caminos trenzados de la vida.
3 Según Sánchez Trigos esta tendencia empezó a cambiar a finales de la primera
década del s. XXI, al disponer ya de “un verdadero repertorio de escenarios terminales y
sociedades que se derrumban” (2018, p. 318), en el cual destacan los siguientes títulos: Al
final todos mueren (catástrofe apocalíptica), Vulcania (sociedad distópica), Los últimos días
y Segundo origen (sociedades posapocalípticas) (2018, p. 324).

163
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

determinarán los mecanismos que entroncan su trama con lo fantástico4 y


con otras muestras no miméticas de creación audiovisual, tanto españolas
como del ámbito internacional.

Presentación
La valla constituye un ejemplo reciente de producción audiovisual
seriada de carácter distópico, cuya primera (y única) temporada cuenta
con 13 episodios en total. Fue preestrenada en enero de 2020, estrenada
después en septiembre de ese mismo año en la cadena española Antena
3 y, posteriormente, ofertada en Netflix, en que se optó por emitir
un episodio nuevo cada semana, un formato poco habitual en esta
plataforma. De esta manera, la mayoría de espectadores pudieron ver
el final de la serie a principios de diciembre de 2020. En el reparto se
hallan algunas figuras emblemáticas de las producciones audiovisuales
de las últimas décadas en España. Así, la protagonizan dos de las caras
más conocidas de las series comerciales, como son Olivia Molina5 y Unax
Ugalde, a la vez que tienen un papel muy importante en ella dos actores
de larga carrera en el mundo del cine y el teatro, pasándose después
al trabajo en producciones televisivas: la madrileña Ángela Molina y el
catalán Abel Folk6. Otro de los personajes principales de la serie no está
encarnado por una estrella del panorama español, sino que se trata de
la actriz argentina Eleonora Wexler, con una larga carrera en el ámbito
de las telenovelas.

4 Como constata Quinn, “[…] lo fantástico no deja de ser un género poroso, híbrido, que
puede hermanarse con modalidades tales como la ciencia ficción o el terror” (2017, p. 291).
5 Este es el nombre artístico por el que es conocida Olivia Tirmarche Molina.
6 También es reconocido por su voz al haber participado en el doblaje de numerosas
producciones audiovisuales extranjeras emitidas en el Estado español tanto en catalán
como en castellano.

164
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

La serie es una producción de Atresmedia7 en colaboración con


Good Mood Productions. El fundador de Good Mood y creador de La
valla es Daniel Écija, reconocido creador, showrunner de largometrajes y
producciones seriadas. En el marco de Good Mood ha creado y coproducido
algunas series en que el componente de género resulta eje principal: Estoy
vivo (2017-2021), que combina lo policíaco y lo fantástico; el drama de
suspense El accidente (2017-2018), con Inés París; y la comedia de humor
negro Deudas (2021). Ahora bien, la extensa trayectoria de Écija se inicia
en la década de los 90 con producciones en la órbita de la comedia de
situación que alcanzaron gran éxito en el Estado español, como Médico
de familia, Periodistas o 7 vidas, y se desarrolló posteriormente también
con series inscritas en otro tipo de géneros, como la policíaca Los hombres
de Paco (iniciada como sitcom), la legal de abogados LEX, las aventuras de
inspiración histórica de Águila Roja, y ya dentro de lo fantástico El internado
y Luna, el misterio de Calenda.
La España de un futuro próximo se ha convertido en un estado
totalitario llamado Nueva España en que reina la pandemia de una
misteriosa enfermedad contagiosa. Los dirigentes controlan los
movimientos de la población mediante grupos de militares dedicados a
esta labor, al tiempo que disfrutan de privilegios muy lejos del alcance de
la mayoría de la población, que vive en las zonas empobrecidas con muy
pocos recursos y bajo el riesgo continuo de contraer la enfermedad. Los
héroes de la serie son Hugo, que ha perdido recientemente a su mujer
Sara, la hermana gemela de esta, Julia, y la madre de ambas, Emilia. Tras

7 Atresmedia Corporación de Medios de Comunicación es un grupo de comunicación


español que tiene como tronco inicial el Grupo Antena 3. Este surgió a raíz de una de las
primeras cadenas privadas generalistas de televisión del Estado español, Antena 3, que
empezó sus emisiones en 1990, siendo posiblemente la que apostó de forma más decidida
por la producción propia de ficción seriada con cierta ambición. A través del canal exclusivo
Atreseries de Atresmedia, lanzado en 2015, han vuelto a la emisión series históricas de
los canales españoles Antena 3 y La Sexta, entre otras algunas de carácter no mimético
originalmente en lengua castellana como El barco, Los protegidos o El internado.

165
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

la muerte de Sara, Hugo, su hija Marta y su hermano Álex se desplazan


desde Asturias hasta Madrid en busca de una mejor calidad de vida,
instalándose en casa de Emilia. Julia se hace pasar por su hermana
Sara para conseguir un buen trabajo junto con Hugo como matrimonio,
que les garantice disponer de un salvoconducto para tener libertad de
movimiento. Sin embargo, en unas dependencias sanitarias Marta es
retenida y conducida a paradero desconocido, por lo que sus familiares
inician una búsqueda desesperada de la pequeña. La responsable
del secuestro es Alma López-Durán, mujer del ministro de Sanidad y
responsable de un programa secreto de investigación para encontrar
la cura a la mencionada enfermedad. En él usan como cobayas a niños
seleccionados por inciertas características biológicas. López-Durán no
duda a proseguir la experimentación aún a sabiendas del riesgo mortal
que corren los pequeños durante las pruebas. Entretanto, Hugo y Julia
logran trabajo como personal de servicio en casa del ministro de Sanidad,
Luis Covarrubias, esposo de Alma y antiguo compañero de Emilia en el
compromiso político. El hecho de haber estado (o estar) enamorado
de ella le llevará a cambiar de bando, pasando a la clandestinidad para
integrarse en la resistencia. Los esfuerzos de todos estos personajes
positivos sirven para liberar a muchos pequeños antes de que mueran
como conejillo de indias. Al final de la serie el presidente del gobierno
contrae la misteriosa enfermedad, aunque muere a raíz de la revuelta
ciudadana. En ese escenario de transición hacia la democracia Alma
consigue ser nombrada nueva presidenta de España.
A pesar de tratar (casualmente) sobre un tema tan cercano a la
población mundial como es la pandemia, la serie no consiguió elevados
índices de audiencia, manteniéndose en un modesto segundo plano
dentro de las ficciones distópicas del 2020 8. Si bien es una serie que,

8 Sin disponer de los datos que Netflix se guarda para sí, la afirmación se basa en la
repercusión de la serie en las redes. Por lo que respecta a la audiencia concreta durante su

166
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

de acuerdo con los planteamientos de Jameson, podría calificarse


de “distopía crítica”9 (2007, p. 198-199) y, por tanto, forma parte de
la ficción prospectiva (MORENO, 2010, p. 248), no aparecen en ella
aquellas muestras de avance tecnológico que la hermanarían con esas
modalidades de la ciencia ficción en que este destaca. Al contrario,
la Nueva España parece sufrir una regresión tecnológica importante,
que padecen menos o nada los poderosos, pero que otorga un toque
vintage a la realidad presentada. Eso sí, la tecnología se ha mantenido
en los aspectos relativos al control y vigilancia de la población. Por
consiguiente, el fondo epistemológico en que se desarrolla la historia
resulta casi realista, en el sentido que lo podemos concebir como el
potencial paradigma de realidad posterior a una Tercera Guerra Mundial,
sin novedades tecnológicas revolucionarias ni elementos preternaturales
identificables10. Ahora bien, algunos elementos de la trama apuntan a un
juego ficcional con la modalidad de lo fantástico11, aunque sin incorporar

emisión en el Estado español, cayó progresivamente de los 2 millones de espectadores en


su estreno en septiembre de 2020 hasta el millón en los últimos episodios, emitidos entre
noviembre y diciembre de ese mismo año. Cabe añadir que puede resultar sorprendente
un escenario pandémico como el presentado en la serie: sin mascarillas.
9 Jameson distingue entre distopía crítica, vinculada al feminismo, la ecología y las
políticas de izquierdas, y las antiutopías, que fundamentalmente están orientadas a la
denuncia de los programas utopistas en el ámbito político, encuadrando en dicha categoría
las famosas obras de Orwell (2007, p. 198-199).
10 Obviamente hay un nóvum alrededor del cual gira la trama del relato, que son
obviamente las enfermedades víricas desconocidas que amenazan la población mundial en
la serie, así como la cura que finalmente se logra, pero las implicaciones (tecnológicas) de
esta no van más allá de garantizar la protección frente a los mencionados virus. Acerca de la
noción de nóvum, Moreno (2010, p. 40-41).
11 Cabe advertir que aquí se entiende por fantástico lo concebido argumentadamente
por David Roas en su propuesta teórica, que goza de un amplio reconocimiento en el mundo
académico hispánico: “[el relato fantástico] nos sitúa inicialmente en un mundo cotidiano,
normal (el nuestro), que inmediatamente es asaltado por un fenómeno imposible –y, como
tal, incomprensible– que subvierte los códigos –las certezas– que hemos diseñado para
percibir y comprender la realidad. En definitiva, destruye nuestra concepción de lo real y nos
instala en la inestabilidad, y, por ello, en la absoluta inquietud” (2011, p. 14).

167
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

una incursión de lo imposible como tal en el relato. De este modo, el


trasfondo básicamente realista (en el marco lógico y espaciotemporal)
de la obra permite resaltar una serie de aspectos que acercarían la serie
a lo fantástico, pero sin cruzar el límite de lo irreal. En primer lugar,
Julia personifica la figura del doble al ser la hermana gemela que debe
sustituir a Sara en su función de esposa putativa, creando confusión
en las emociones y sentimientos de Hugo hacia ella, pero sobre todo
fomentando un cierto efecto de inquietud por esa “ausencia presente”
que ella representa a medida que avanza la trama12. Además, el hecho
de que las actrices que personifican a Emilia y Julia/Sara sean también
madre e hija en la vida real (Ángela Molina y Olivia Tirmarche Molina,
respectivamente), con un parecido físico extraordinario, aumenta el
efecto de realidad que se pretende transmitir en la cotidianidad de un
Madrid posapocalíptico y, a la vez, ese leve ominosidad en relación con
el personaje de Julia13. Por otro lado, el vampirismo es evocado en la
obra por medio de la extracción masiva de sangre a Marta, que se realiza
con el fin de conseguir el máximo material posible para la elaboración
de la cura, dejando exangüe y al límite de sus pulsiones vitales a la figura
más frágil del conjunto de protagonistas, en consonancia por tanto con
la tradición de este motivo en lo fantástico clásico.

El espacio distópico
La valla se desarrolla en una España ficcionalizada ubicada en el año
2045, aunque la serie se inicia en lo que parece ser la época coetánea a la
filmación de la misma (2020). Según el lacónico relato que ofrece el nuevo

12 Herrero Cecilia afirma que la gemelidad presenta cierto paralelismo con el motivo
del doble cuando se trata de un personaje que hace dudar de las leyes del mundo en que
vivimos (2011, p. 31).
13 Por falta de espacio no se puede tratar con detenimiento la cuestión de género: el
entramado matrilineal femenino que se establece entre los personajes positivos de la serie
y la antagonista, Alma López-Durán.

168
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

presidente del gobierno y que sirve para contextualizar al espectador al


principio del primer episodio, una Tercera Guerra Mundial (cuyo desarrollo
es completamente omitido en la filmación) ha comportado la destrucción
del entorno natural tal y como se conocía, incluso con la radiación
nuclear, provocando una caída drástica de la economía y una catástrofe
a nivel mundial en forma de escasez de recursos naturales y de carencia
de combustible y energía. Además, una ola pandémica provocada por
virus desconocidos enfrenta la población y el gobierno a enfermedades
altamente contagiosas14. El presidente anuncia una serie de medidas
que apuntan a la instauración de un sistema autoritario: la creación
de un gobierno de concentración nacional formado por tecnócratas, la
declaración del estado de excepción y la suspensión de la monarquía
parlamentaria. Además, lleva un distintivo en la solapa que recuerda a una
esvástica de tres brazos estilizados y que en la serie aparecerá incorporado
como emblema en la bandera española del nuevo régimen.
En esas pocas escenas iniciales, se focaliza en una pareja y sus dos
hijas gemelas, unas niñas a las cuales su propio padre les implanta un
misterioso dispositivo en la nuca. Después de la elipsis que supone la
consolidación del despiadado régimen dictatorial, se dan pocas analepsis a
esa situación inicial y al efecto o efectos de los dispositivos mencionados,
activando la sensación de misterio, que crece al saber que el de Sara
fue reimplantado a su hija Marta. En cualquier caso, los importantes
cambios en el panorama socioeconómico que encontramos en la España
ficcionalizada de 2045 permiten suponer que el conflicto omitido ha
tenido una dimensión apocalíptica que ha dejado a la población a merced
de los intereses de unos pocos (muy pocos) poderosos. Así, el Madrid
cotidiano de bellas calles con bares, restaurantes, tiendas y vehículos
circulando que conocemos como una de las muestras del capitalismo

14 Según explica Hugo a su hija en el primer episodio, surgieron de la gran cantidad de


muertes provocadas por la Tercera Guerra Mundial.

169
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

avanzado actual se transforma en la serie en un lugar de miseria,


polvoriento, gris, sin apenas comercio ni coches como los de nuestra
época. Ese es el llamado Sector 2. Ahora bien, no toda la realidad fílmica
presenta este tinte posapocalíptico, puesto que la nueva distribución
del espacio otorga a unos pocos privilegiados amplias áreas verdes,
vehículos de alta gama y grandes residencias, donde no solo gozan de
todas las comodidades y del bienestar que esto conlleva, sino que se
sienten seguros del riesgo de contraer la dolencia que continúa asolando
la humanidad. Ese es el Sector 115. A fin de garantizar el mantenimiento
de esta desigual división de espacios se ha construido un inmenso muro
que en la serie es denominado “valla”, aunque no tiene la forma de este
tipo de construcción.
La acción sucede fundamentalmente en un Madrid que, a pesar
de todo lo sucedido, sigue siendo la capital del país. Se trata, pues,
de la sede del poder y un polo de atracción de inmigrantes de otros
puntos de la geografía peninsular. El título de la serie aquí analizada
puede interpretarse como una alusión a las vallas que separan en África
continental los territorios del Reino de España y del Reino de Marruecos,
la construcción de las cuales se inició en los últimos años del siglo XX
a instancias del ejecutivo del ejecutivo de José María Aznar. Al tratarse
de la única frontera terrestre de un estado de la Unión Europea en
ese continente, supone una importante vía de entrada de inmigrantes
procedentes de países del África Occidental y Oriente Próximo, cuyo
estatus legal en España – al saltar la valla – no es admitido ni por el
Estado ni por las autoridades comunitarias, dando origen a múltiples

15 No se trata de una solución demasiado original. Sin ir más lejos, en Incorporated


(2016), una serie creada por los catalanes Àlex y David Pastor, aunque en lengua
inglesa y emitida por SyFy, se desarrolla una distopía tecnológica en que “la sociedad
se había separado entre la Zona Verde, donde vivían los privilegiados, y la Zona Roja,
donde se encontraba el resto de una empobrecida población a merced del hambre y las
enfermedades” (CASCAJOSA VIRINO, 2018, p. 379).

170
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

controversias de tipo ético, jurídico y diplomático. Como señala Acosta


Sánchez haciendo especial hincapié en el caso de Melilla:
Los recientes acontecimientos provocados por los
flujos de inmigrantes irregulares que han pretendido
entrar en el territorio de estas dos ciudades autónomas
españolas, y las dudas sobre la aplicación o no de la
legislación de extranjería sobre los mismos, ha llevado
a formularse la cuestión de dónde se hallan los límites
fronterizos nacionales, o lo que es lo mismo, ¿dónde
empieza España?
Centrándonos en el caso de Melilla, el actual perímetro
de doble vallado, entendido como unidad fronteriza,
y que data de 1998, parece haberse tomado en
consideración como frontera política entre el Reino de
España y el Reino de Marruecos. (2014, p. 2)

El hecho de “saltar la valla”, en referencia tanto a la alzada en Ceuta


como a la de Melilla, se ha consolidado como una demostración física
de la posibilidad de romper el status quo jurídico-legal que establece
la jerarquía fronteriza16 entre ambos territorios estatales. Las vallas
que separan ambos territorios, pues, constituyen la encarnación de un
símbolo de dominación y desigualdad que emana de los fatales efectos
que tuvo la colonización europea para la economía y demografía de los
países africanos. Las vallas de Ceuta y Melilla serían, pues, el referente
real de La valla que da nombre a la producción audiovisual aquí analizada.
Un argumento a favor de esta afirmación es justamente la falta de
correspondencia entre el referente y el significante: si se trata un gran
muro ¿por qué no lo denominan así en la serie? Este término evocaría
rápidamente la Guerra Fría y el conflicto entre el totalitarismo soviético
frente a las democracias occidentales, mientras que “la valla” ancla la
problemática en un espacio territorialmente propio, identificando por

16 Los eventuales intentos de saltar la frontera para pasar de Marruecos a España, si los
hay, no tienen repercusión pública.

171
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

analogía a los personajes de la serie que buscan cruzar ese muro –pese
a las barreras legales que lo dificultan o impiden – con los inmigrantes
que llegan a España para sobrevivir o prosperar. De esta manera, la serie
se construye un relato alegórico paralelo cercano ideológicamente a la
izquierda más progresista del país.
Naturalmente, el establecimiento de marcos espaciales
compartimentados constituye uno de los recursos más habituales en las
obras de cariz distópico, puesto que remiten al temor sociopolítico más
profundo que subyace en este tipo de creaciones. En primer lugar, este
temor puede corresponderse con la tensión existente con el modelo de
explotación actual, el modelo del capitalismo avanzado que nos aísla y nos
hace dependientes de la tecnología, tensión cuyo rendimiento distópico
se observa en la película de Àlex y David Pastor Los últimos días (2013),
una creación fantástica en que una enigmática dolencia agorafóbica
impide a las personas salir al exterior (fuera de las construcciones hechas
por el ser humano), perdiendo por lo tanto la capacidad de convivir con la
Naturaleza y llegando a morir si se hallan al aire libre17; otro ejemplo de ello
sería la serie El barco (2011-2013), en la cual mientras un grupo de jóvenes
pretende gozar de una experiencia iniciática en el buque escuela Estrella
Polar, tiene lugar una catástrofe natural que cubre de agua la mayor parte
de la Tierra, convirtiendo esa experiencia en una pesadilla de aislamiento
y monotonía que duró tres temporadas18. En segundo lugar, la distopía
puede remitir al temor a la regresión hacia modelos socioeconómicos

17 Aunque sucede en una Barcelona ficcional, como afirma Sánchez Trigos (2017, p. 283)
se atenúan sus elementos más distintivos, representando por lo tanto una problemática
que incide en una época (la del capitalismo avanzado) y no tanto en una realidad política
inscrita espaciotemporalmente, como La valla. Para una interesante lectura poliédrica de
Los últimos días, Gallardo Torrano (2018).
18 De hecho, esta monotonía acabó afectando al género mismo de la serie, como
expresa su cocreador, Iván Escobar: “Hay que decir que el concepto que yo ideé y que vendí
en un principio era una serie de suspense y ciencia ficción. Después, el mercado lo convirtió
en una serie costumbrista” (CASCAJOSA VIRINO, 2018, p. 367).

172
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

basados en el poder absoluto propios de la antigüedad, la Edad Media y


el Antiguo Régimen. Una vez la idea de democracia representativa caló
en una parte importante de la sociedad en un largo recorrido iniciado
explícitamente con la Ilustración, en paralelo con la consolidación de la
idea del yo y del sujeto en el sentido moderno del término, lo distópico
se presentaba muy a menudo como un retroceso hacia estadios de
la humanidad en que el individuo perdía esos espacios de expresión,
libertad y de convivencia en los cuales se habrían abierto determinados
compartimentos estanco dentro de la estratificación social. Este proceso,
notablemente resumido en pocas líneas dada la naturaleza del presente
trabajo, no significa que esas abstracciones se trasladaran a la realidad más
tangible y experimentable de los modos de producción y de socialización,
puesto que compartimentos estancos en los social continúa habiendo en
las democracias que se consideran más avanzadas. Se trata de procesos
que se encuadran dentro de la construcción social de la realidad, basada
en la concreción espaciotemporal de una red de valores que se conforman
como ideologías, permitiéndonos creer en determinadas posibilidades
de realización colectiva y personal (el ascensor social para cualquier
ciudadano, la libertad plena de expresión y movimiento etc.), aunque la
realidad visible rebata ampliamente tales posibilidades.
Por lo tanto, aunque se basen en esos temores de regresión, en
bastantes ocasiones las distopías no presentan en realidad nuevas
amenazas en la distribución social del espacio, sino que más bien recurren
a la transformación de antiguas amenazas o de situaciones todavía
presentes de discriminación o exclusión. De hecho, dos ejemplos de
esto último se encuentran en producciones audiovisuales recientes. Por
un lado, la estricta separación de determinadas minorías sociales por
medio de un inmenso muro como en el caso de La valla, creando espacios
aislados y seguros que disponen de una presencia de la naturaleza más
amplia y cuidada, así como de espléndidas edificaciones, se observa en la

173
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

serie india Leila (2019), basada en una novela homónima y distribuida por
Netflix, que presenta una zona inconcreta del país asiático bajo el nombre
de Aryavarta, un nuevo estado dictatorial en la década de los años 40
del siglo XXI, es decir, en un momento próximo al de La valla. Igual que
en la producción española aquí tratada, la separación surge a raíz de una
limitación de los recursos naturales, en este caso el aire puro y el agua no
contaminada (potente símbolo de pureza y vida en la tradición védica),
aunque no aparece la cuestión de la pandemia mundial19. En este caso,
la discriminación de grupos sociales bajo el poder totalitario en que se
fundamenta la serie evoca el sistema de castas todavía presente en la
sociedad india, sometiéndola a una estricta compartimentación social.
Por otro lado, pasamos a un ejemplo bastante más conocido: la película
de producción estadounidense Elysium (2013), que combina lo distópico
con la ficción prospectiva. El argumento gira alrededor del hecho de que
a mediados del siglo XXII la Tierra ha quedado convertida en el espacio
baldío de reclusión de una mayoría pobre que lleva una vida miserable,
mientras que los poderosos disfrutan de una existencia placentera en
una nave espacial homónima de la película, gracias también a ingentes
avances científicos en el campo de la medicina y la salud. Esta distribución
tan poco equitativa, donde el espacio es el nuevo muro fronterizo, evoca
singularmente la lacerante desigualdad de recursos entre los billonarios
estadounidenses y el resto de ciudadanos, así como la extrema dificultad
de estos para pasar a formar parte de las élites oligárquicas que han
dirigido durante largo tiempo el país20.

19 Además, otra coincidencia argumental entre ambas producciones es que el motivo


que mueve una buena parte de la trama es el intento de recuperar a una niña separada por
la fuerza de su familia. Sin embargo, en la serie india ese esfuerzo titánico lo lleva a cabo su
madre, y no un grupo familiar, subrayando el aislamiento y las dificultades en una sociedad
tan patriarcal como la que encontramos en la India. Cabe recordar que la creadora de la
serie es la cineasta Urmi Juvekar.
20 Esto se puede ampliar fácilmente a otras democracias representativas de la actualidad
si seguimos los razonamientos de Rancière, que en su libro La Haine de la démocratie

174
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Distopía e Historia
En este sentido, ¿no podría ser La valla una transformación de
antiguas amenazas o de situaciones todavía presentes de exclusión,
como se ha visto más arriba? Una serie de factores parecen señalar
en la primera dirección, y vamos a detallarlos en este apartado. El
relato está focalizado en la situación distópica en el Estado español,
ignorando la suerte concreta que han corrido otros países en ese
escenario posapocalíptico21. Se ha consolidado un régimen dictatorial
que defiende el aislamiento y la jerarquía por encima de cualquier
valor como la solidaridad, la libertad de expresión o la participación de
ciudadanía en la toma de decisiones. Siendo España un país en que el
nacionalcatolicismo – acompañado de elementos propios del fascismo
– fue el eje ideológico central del franquismo y una fórmula que no
desentonaba con el régimen anterior de Primo de Rivera (sumados, casi
la mitad del siglo XX), no sorprende encontrar en la serie elementos
ideológicos paralelos: un nacionalismo22 presente a través de las
banderas y los discursos políticos, o en el himno patriótico que cantan
los niños retenidos como cobayas en el primer episodio, himno que

denuncia “l’accaparement de la chose publique par une solide alliance de l’oligarchie


étatique et de l’oligarchie économique” (2005, p. 81).
21 Con todo, se sabe que existen espacios de relativa libertad fuera de las fronteras
ficcionales españolas de la serie, ya que se organizan huidas a esos territorios para las
personas más amenazadas por el régimen. Sin embargo, se mantiene el misterio sobre las
condiciones reales que se dan en dichos espacios, al no darse explicaciones sobre lo que
sucede en ellos y hasta qué punto son seguros. En cualquier caso, otros países occidentales
también se han convertido en dictaduras.
22 El mismo inicio – “volveremos a escuchar el nombre / de la patria en todo su esplendor
/ pues la historia que nos ha forjado / hoy nos brinda un camino junto al sol” – contiene
elementos como el sol y el retorno victorioso tan emblemáticos del cántico franquista:
“Volverán banderas victoriosas / al paso alegre de la paz”. No deja de ser interesante, sin
embargo, la cara de espanto que pone el padre de Sara y Julia cuando, al empezar la serie,
escucha el himno nacional que emiten en la televisión antes de las declaraciones del nuevo
presidente del gobierno, con el reflejo oscuro de la pantalla en la cara.

175
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

tiene ciertas concomitancias con el “Cara al sol” falangista23. Siendo un


totalitarismo basado en un alto grado de militarización y entregado a
una brutal tarea represiva, promete la seguridad a cambio de la libertad.
En este sentido, La valla enlaza con la producción polaco-
estadounidense (también para Netflix) 1983, creada por Joshua Long y
con la participación como directora en los dos primeros episodios de
la cineasta Agnieszka Holland24. De este modo, durante el año que da
nombre a esta serie de política ficción el régimen comunista polaco habría
sufrido una serie de atentados terroristas que habrían conducido a una
transformación de los postulados de la dictadura: dejaría de repente de ser
un paradigma del “socialismo real” para convertirse en un mero sistema
totalitario en que no habría un adoctrinamiento marxista y la Iglesia ya
no estaría perseguida (sino que formaría parte de las fuerzas vivas). De
esta forma, la serie no constituiría una recreación de la existencia bajo el
totalitarismo teledirigido desde Moscú, el cual de todos modos acabaría
cayendo en 1989 junto con todo el carcomido armazón soviético, sino
que se perfila justamente como una contundente crítica al creciente
autoritarismo del actual gobierno conservador polaco, bajo la batuta de
Jarosław Kaczyński, líder del partido Ley y Justicia.
Sin embargo, no es este enfoque hacia el presente del Estado español
el que surge razonablemente del análisis crítico de La valla. A pesar de las
similitudes con el sistema de poder en que se basa el desarrollo distópico
de otras producciones audiovisuales, La valla mantiene una tensión
alusiva constante con el pasado, más que con el presente o el futuro; en
concreto, con un episodio de la historia española no resuelto como es la

23 Lo religioso sí que parece haber pasado a la historia. En ese mismo episodio vemos
cómo Hugo lanza al mar la cruz de madera que había puesto junto con su hija en la
sepultura improvisada de su difunta esposa.
24 De la Torre advierte que tener un cineasta de renombre detrás de las cámaras de
un piloto (en este caso los dos primeros episodios) sirve para dar “categoría” a la ficción
televisiva (2016, p. 587).

176
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

dictadura de Franco25. En efecto, pese a la aparente desideologización del


régimen que vemos en el inicio de la serie, algunos elementos del relato
hacen emerger el recuerdo de los duros tiempos de represión que se
iniciaron ya en diversas zonas del Estado desde el estallido de la Guerra
Civil. El nombre mismo de Nueva España evoca el Estado Novo portugués
de Salazar, coetánea del franquismo y con una ideología casi pareja. La
cerrazón misma de la Nueva España, ese enroque de todo un país sin
contacto con el exterior, acarrea un ambiente de miseria e injusticia social
que recuerda sin duda los terribles años de autarquía y autosuficiencia
de la inmediata posguerra española, es decir, las dos primeras décadas
de franquismo. En el primer episodio, Emilia intenta explicar a su nieta
los sucesos que llevaron a la situación de regresión y pobreza que
estaban viviendo, y lo hace asegurando que las dictaduras (“gobiernos
muy fuertes”) instauradas en muchos países tuvieron el apoyo de una
parte considerable de la ciudadanía (“las personas”), en nombre de la
seguridad, aunque fueron esos gobiernos los que iniciaron la guerra total,
mientras que recuerda a la niña que el valor más importante es la libertad
(en genérico). Así, este relato encaja con el hecho de que una parte
considerable de la población española apoyó en 1936 a los sublevados,
lo que iniciaron la guerra, al ver peligrar su seguridad ante las crecientes
demandas de los sectores progresistas de la sociedad (o eso es como
mínimo lo que consiguió hacer creer la propaganda conservadora de la
época), al tiempo que la oposición democrática, avanzado el régimen,
tomó la bandera de la libertad como lema principal en su enfrentamiento
al mismo26. Paralelamente, cabe añadir que la escena del primer episodio

25 Resulta muy acertado el lema del régimen dictatorial que aparece en la propaganda
del paisaje urbano de ese Madrid ficcional: “El futuro nos pertenece”, es decir, desde
el pasado se apropian del futuro y no ocultan que lo están haciendo, puesto que el
pronombre “nos” tendría como referente la oligarquía gobernante (y no la ciudadanía).
26 Recordemos, por ejemplo, que el encabezamiento de muchas protestas en el
tardofranquismo fue “Libertad y amnistía” o “Libertad, amnistía y estatuto de autonomía”,

177
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

en que Julia salva a una menor en un burdel madrileño asesinando a un


comandante que la estaba agrediendo sexualmente, remite a la doble
moral imperante en el franquismo. Si bien es cierto que se trata de
algo también propio de otros regímenes dictatoriales, la denuncia de la
doble moral fue una de las evidencias que más debilitaron el engranaje
interior del franquismo, ya que apuntaba a uno de los pilares del mismo:
la moralina católica.
Otro aspecto que resulta significativo en la relación entre franquismo
y relato fílmico es el paralelismo entre la desaparición de niños para la
experimentación (para “salvar la humanidad”) y el caso de los llamados
“niños robados”, niños separados de sus padres durante el franquismo
por parte de las autoridades mismas del régimen, a menudo con la
complicidad de miembros de la Iglesia católica, y bajo los auspicios
ideológicos del psiquiatra filonazi Antoni Vallejo-Nájera (que pretendía
salvar a España del marxismo)27. No es de extrañar que en la revuelta
popular contra el régimen que tiene lugar frente a la valla en el último
episodio de la serie haya dos reivindicaciones principales: la libertad y
el retorno de los hijos “robados”. Justamente en esa escena el ministro
Covarrubias dirige un parlamento a los soldados que protegen la valla en
que se explicita el trasfondo histórico del conflicto: “En este país se ha
librado una guerra soterrada, una segunda Guerra Civil entre españoles.
Este régimen se ha sostenido haciendo desaparecer, asesinando, a los
que querían reclamar la vuelta de la democracia” (2020).
Otros elementos a tener en cuenta son de carácter estético. Los
vestidos y la ropa de ambas clases sociales traslucen en general una
estética previa a los años 70, mientras que la vestimenta que lleva el

y “Libertad sin ira” de Jarcha quedó la canción más representativa de la Transición.


27 Uno de los niños captados en la serie, Sergio, es adoptado por una de las familias de
poderosos, la del propio ministro, siguiendo los cánones de entrega de niños robados a
“gente de bien” que tenía lugar durante el franquismo.

178
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

personal de servicio en la casa del ministro nos traslada a la época en


que criadas, mayordomos, sirvientas, niñeras debían uniformarse de
una manera que mostrara su menor estatus. De esta manera, la ropa de
la serie resulta idéntica a la usada mediados del siglo XX, justo en ese
inmediato franquismo en que la distinción social se revestía de gestualidad
fascistoide y se compartimentaba de tal manera que era extremadamente
difícil el contacto entre la masa trabajadora y los sectores dirigentes28.
Por otro lado, la bandera oficial con el emblema de los tres brazos o aspas
sobre fondo negro crea un doble vínculo con la bandera nazi y con la
bandera de la España franquista (con el águila de San Juan en el centro de
la misma). En cuanto a los uniformes de los oficiales del ejército (o policía
militar), son de color negro y parecen una réplica de los que llevaban los
jerarcas nazis de las SS. Si nos fijamos en la decoración de la mansión
del ministro Covarrubias, presenta una estética anclada en el pasado,
con obras vanguardistas y otras en que se rinde culto al cuerpo atlético,
evocando el arte de la propaganda nacionalsocialista y, quizás también,
una determinada pintura impulsada por el estalinismo.
Al mismo tiempo, el personaje que interpreta Eleonora Wexler
evoca fácilmente la política argentina Eva Duarte de Perón, emblema del
populismo y figura pública internacional que mostró su apoyo explícito
al régimen franquista y su cercanía con la esposa del dictador, Carmen
Polo29. Con todo, aquí vale la pena advertir que se trata de una forma
de extranjerización del Mal, algo que no es un caso único en la ficción

28 La permisividad con la que los protagonistas de la serie acceden al contacto personal


directo con esos sectores en la casa donde trabajan constituye uno de los puntos débiles
del entramado argumental de la serie, aunque obviamente es necesaria para incrementar
la tensión de la trama y hacerla avanzar en su formato de relato de suspense.
29 Curiosamente, esta misma actriz argentina la encarnó en el primer episodio de la
producción audiovisual argentina de ficción seriada Historia clínica (2012), titulado “Eva
Duarte de Perón: actriz de reparto de su propio drama”, que focalizaba en el cáncer de
cuello de útero que comportó la muerte de la esposa del presidente Juan Domingo Perón.

179
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

audiovisual distópica producida en España, puesto que en la serie El barco


el principal antagonista es el profesor colombiano de supervivencia de
los jóvenes que navegan en el Estrella Polar, que parece tener un pasado
oscuro criminal30. En ambos casos, los malvados proceden además de
países hispanoamericanos, es decir, de antiguas colonias de la monarquía
hispánica, elemento denotado por la variedad dialectal usada por los
personajes mismos, que se corresponde con la del origen respectivo de
los actores.31 Su maldad se basa en estrategias dirigidas a lograr el poder
máximo en el ámbito en que se circunscribe la serie, siendo el control del
Estrella Polar y lo que contiene en el caso de Gamboa, y la presidencia del
gobierno en el caso de Alma López-Durán32.

Conclusiones
Una serie de elementos de La valla contribuyen a la formación de
una atmósfera de misterio y suspense, como lo incierto de los dispositivos
implantados en las gemelas y posteriormente a Marta. Lo inexplicado tantea
aquí lo inexplicable, aunque entre en realidad en el campo de lo científico,
igual que en el caso de los motivos analizados del doble y la vampirización.
Todo ello enlaza, pues, con un fantástico que, sin darse explícitamente,
conforma una de las fronteras de esta serie posapocalíptica. Además,
el espacio distópico que se presenta, focalizado alrededor de un muro
símbolo de desigualdad e injusticia, resulta un terreno perturbadoramente

30 Se llama Ernesto Gamboa y estaba interpretado por Juan Pablo Shuk. Otras
dos curiosas coincidencias con la actriz argentina: ambos trabajaron previamente en
telenovelas de sus respectivos países más bien como antagonistas y ninguno de los dos
lleva apellidos de procedencia románica; esto último cabe tratarlo simplemente como una
mera casualidad del destino.
31 El personaje positivo de Manuela, criada en la mansión del ministro que mantiene
una relación con el hijo de este, merecería un capítulo aparte que las limitaciones de
espacio no permiten desarrollar.
32 Para un análisis en la misma línea sobre distopía e historia, pero en un relato literario,
la novela de Manuel de Pedrolo Mecanoscrit del segon origen, Gregori (2019).

180
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

ominoso. No obstante, existe un aspecto más –esta vez relacionado con


lo ideológico– que contribuye a esa fantasticidad latente, si acaso con más
intensidad que los mencionados: la copresencia de un pasado histórico
que regresa a modo de revenant y realza la sensación de inquietud
y desasosiego ante lo que está sucediendo en el plano ficcional. Los
horribles sucesos de la Guerra Civil y la durísima represión del franquismo
se manifiestan de modo fantasmagórico, como proyecciones que luchan
por encajar en un futuro utópico que no es el suyo, pero al que tratan de
someter. El personaje de Alma López-Durán parece hacer lo propio como
desquite desde las antiguas colonias españolas, entroncando además con
la figura populista de Evita, aliada del franquismo.
Al mismo tiempo, el final de la serie nos brinda un desenlace distinto
al conocido en el caso del régimen de Franco. El presidente ficcional que
ha dirigido el país con brazo de hierro no muere en la cama como Franco,
sino del disparo de una histórica líder opositora, Emilia. El camino para
llegar a la democracia, por tanto, no es la desaparición biológica del
jefe del Estado. Esta disconformidad entre el relato fílmico y el histórico
responde a la sublimación de esa revuelta popular contra el poder
autocrático que nunca tuvo lugar: el derrocamiento del Caudillo por la
fuerza del pueblo en acción. Sin embargo, que la malévola Alma López-
Durán consiga la presidencia del país no puede sino significar que en esa
España ficcional se conserva latente el germen de un régimen despótico,
reflejando de manera sobrecogedora aquello que denuncian numerosas
voces en la España del presente: la permanencia del legado franquista
y de sus mecanismos de poder. ¿Es “Alma”, en este sentido, un nombre
terriblemente irónico, la esencia de un país que no puede dejar de ser
bastión de inequidad y autoritarismo? Sea cual sea la respuesta, La valla
forma parte de un conjunto de producciones audiovisuales filmadas
recientemente en España cuyo sentido narrativo principal constituye la
sublimación de aspiraciones sociopolíticas no logradas en el mundo real,

181
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

episodios fallidos de la realidad histórica española. Entre ellas cabría


mencionar La casa de papel, El Ministerio del Tiempo o La octava víctima,
que serán debidamente examinadas en futuros trabajos de investigación.

Referencias
ACOSTA SÁNCHEZ, Miguel Ángel. Las fronteras terrestres de España en Melilla:
delimitación, vallas fronterizas y “tierra de nadie”. Revista Electrónica de Estudios
Internacionales (REEI), Madrid, n. 28, p, 1-34, 2014. Disponible en: http://www.
reei.org/index.php/revista/num28/articulos/fronteras-terrestres-espana-melilla-
delimitacion-vallas-fronterizas-tierra-nadie. Acceso en: 2 ene. 2021.
CASCAJOSA VIRINO, Concepción. Televisión 2000-2015. In: LÓPEZ-PELLISA,
Teresa (Ed.). Historia de la ciencia ficción en la cultura española. Madrid/
Frankfurt am Main: Iberoamericana/ Vervuert, p. 357-379, 2018.
DE LA TORRE, Toni. Historia de las series. Barcelona: Roca Editorial de Libros, 2016.
GALLARDO TORRANO, Pere. Les bones intencions contra el futur incert: el
Mecanoscrit de Manuel de Pedrolo i Los últimos días d’Àlex i David Pastor. In:
MARTÍN ALEGRE, Sara (Ed.). Explorant Mecanoscrit del segon origen: noves
lectures. Tarragona: Orciny Press, 2018.
GREGORI, Alfons. ¿Hacia una renovación de la Historia? Post-apocalipsis,
ideología y lengua en Mecanoscrito del segundo origen de Manuel de Pedrolo.
Studia Romanica Posnaniensia, Poznan, v. 47, n. 1, p. 19-29, 2019.
HERRERO CECILIA, Juan. Figuras y significaciones del mito del doble en la literatura:
teorías explicativas. La Laguna, n. 2, p. 15-48, 2011. Disponible en: https://www.ull.
es/revistas/index.php/cedille/issue/view/78. Acceso en: 19 dic. 2020.
JAMESON, Fredric. Archaeologies of the Future. The Desire Called Utopia and
Other Science Fictions. 2. ed. Londres/ Nueva York: Verso, 2007.
LA valla. Dirección de David Molina Encinas et al. España: Atresmedia/ Good
Mood Productions, 2020.
MORENO, Fernando Ángel. Teoría de la literatura de ciencia ficción. Poética y
retórica de lo prospectivo. Vitoria: Portal Editions, 2010.
QUINN, Paul Patrick. Televisión 1990-2015. In: ROAS, David (Dir.). Historia
de lo fantástico en la cultura española contemporánea (1900-2015). Madrid/
Frankfurt am Main: Iberoamericana/ Vervuert, p. 289-309, 2017.

182
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

RANCIÈRE, Jacques. La Haine de la démocratie. París: La Fabrique, 2005.


ROAS, David. Tras los límites de lo real: una definición de lo fantástico. Madrid:
Páginas de Espuma, 2011.
SÁNCHEZ TRIGOS, Rubén. Cine 1990-2015. In: ROAS, David (Dir.). Historia de
lo fantástico en la cultura española contemporánea (1900-2015). Madrid/
Frankfurt am Main: Iberoamericana/ Vervuert, p. 265-287, 2017.
SÁNCHEZ TRIGOS, Rubén. Cine 1980-2015. In: LÓPEZ-PELLISA, Teresa (Ed.).
Historia de la ciencia ficción en la cultura española. Madrid/ Frankfurt am Main:
Iberoamericana/ Vervuert, p. 301-326, 2018.

183
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

APOCALIPSIS ZOMBI. LA REINVENCIÓN TELEVISIVA


DEL FIN DE LOS TIEMPOS
Ariel Gómez Ponce

“¿Acaso no sabéis vosotros que, a consecuencia de la


perversidad de esta temporada, los jueces han dejado los
tribunales; las leyes, así las divinas como las humanas, callan; y
todos gozan de la más amplia licencia para conservar la vida?”
Boccaccio. El Decamerón (1351-1353)

Las series en tiempos de pandemia


Si algún motivo ha alimentado una y otra vez los temores más intensos
en las culturas, ese ha sido el fin de los tiempos. A él, se han referido en
competencia los relatos mesiánicos, los antiguos oráculos, las teorías del
milenarismo y un sinfín de profecías que anunciaron el destino, comúnmente
funesto, de la humanidad. También la literatura, espacio privilegiado para
la condensación simbólica de los miedos colectivos, ha hecho lo propio.
En 1898, la invasión alienígena de The War of the Worlds (1898) de Wells
planteó los problemas que esperaríamos encontrar cuando el fin de los
tiempos arribe y nos enfrente a ese escenario que hoy definimos como post-
apocalíptico1: la extinción total o parcial del planeta y sus formas de vida, el
colapso de las instituciones sociales y el empeño humano por sobrevivir en

1 Acerca de estos relatos reconocidos como “pos-apocalípticos” (GÓMEZ PONCE, 2019).


En dicha entrada del Dicionário Digital do Insólito Ficcional, me ocupo de describir esta
forma cultural en la cual resuena una vasta mitopoética escatológica que, en desmedro de
la secularización de los imaginarios occidentales, parece intensificarse como un tono de
época desde mediados del siglo XX.

184
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

un mundo devastado, esquema que el cine hollywoodense replicó hasta la


parodia, cuando no hasta el agotamiento.
El fin de los tiempos requiere de un terreno para renovarse y
hoy parece encontrarlo, claro está, en esas verdaderas usinas de la
cultura actual: las series televisivas. Durante los últimos años, estos
relatos parecen haber tratado un sinfín de expectativas escatológicas,
desde desastres ambientales (The Rain, Snowpiecer), colonizaciones
extraterrestres (Falling Skies, Colony) y rebeliones maquínicas
(Westworld), hasta la reinvención de antiguas profecías (Here and Now).
Para sorpresa de muchos, algunas de ellas alcanzaron un éxito inusitado
durante el confinamiento por COVID19, dato que aparentemente no
asombra a los especialistas: por su capacidad de retratar o, si se quiere,
de exorcizar los miedos colectivos, estas narrativas parecen prepararnos
mejor para enfrentar los tiempos de pandemia (RACIONERO, 2021).
Intuyo, sin embargo, que ninguna serie ha calado tan profundo en
nuestra percepción del fin del mundo como The Walking Dead (2010-
2021). Con su invasión zombi y ejerciendo una turbia fascinación en el
público, la estrella de AMC lleva una década adiestrándonos sobre posibles
situaciones catastróficas, impulsando incluso al Centers for Disease Control
and Prevention de Atlanta, una de las agencias más destacadas en salud
pública, a comprometerse que, “si los zombis comienzan a vagar por las
calles, el CDC emprenderá una investigación como con cualquier otro brote
de enfermedad”2. Promesa de pronto ominosa, cuando el aislamiento por
COVID19 transforma en realidad aquel escenario apocalíptico que la serie
inventara años atrás.

2 Remito al sitio web del CDC, especialmente a su apartado “Preparación Zombi”, en donde
se aprovechó el éxito cultivado por The Walking Dead para explicar, a través del monstruo
reviniente, cómo se debe proceder ante una emergencia sanitaria de alcance masivo. La
información se encuentra disponible en: https://blogs.cdc.gov/publichealthmatters/2011/05/
preparedness-101-zombie-apocalypse/. Acceso en: 12 abr. 2021.

185
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Figura 1 – A la izquierda, poster promocional de The Walking Dead, retratando en 2010


el ingreso a Atlanta (AMC/Valhalla Entertainment, 2010). A la derecha, fotografía de la
misma ruta, tomada por un aficionado durante el confinamiento obligatorio por COVID19
en mayo de 2020.

Tiempo atrás, Umberto Eco (1996) sugirió que el concepto de fin de


los tiempos, tal como el que prometen estas ficciones pos-apocalípticas,
debe su existencia más al mundo laico que al cristiano. No todo es tan
claro, sin embargo. En este trabajo, avanzaré sobre la hipótesis de que
el Apocalipsis bíblico debe considerarse como un pilar fundamental en
relatos como The Walking Dead, especialmente a la hora de interrogar
el modo en que problematizan una concepción del futuro. A este debate
estará dedicado el primer apartado, en donde desplegaré algunos
argumentos para dirimir como lo pos-apocalíptico promete el porvenir
como una mera restitución de tiempos pretéritos, tonalidad afectiva que
los estudiosos definen como una nostalgia del futuro.
En un segundo momento, y con renovado interés, vuelvo a ocuparme
del zombi, figura que hace un tiempo llamara mi atención (GÓMEZ PONCE,
2013). Pero aquí pretendo leer su resurrección cultural en diálogo con los

186
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

temores más apremiantes de nuestra época. Si, junto a Mónica Müller


(2020), aceptamos la hipótesis de que vivimos una “Era epidémica”
con acta de nacimiento en 1918, no es casual que el zombi termine
entrelazándose con el contagio virósico, motivo que The Walking Dead
elige trabajar por las vías del gore y el horror corporal para componer,
finalmente, un escenario desesperanzador y repleto de incertidumbres.
En esta apropiación particular del Apocalipsis, dicha serie televisiva
pone en relieve una particular lectura de la naturaleza humana, que
no puede pensarse exenta del imaginario cultural estadounidense. La
peste zombi, en tal sentido, parecería estar al servicio de una posición
enunciativa sobre la sociedad y sobre su carencia de utopías, cuestión
que las ficciones masivas presentan como la imposibilidad de proponer
una renovación del mundo.

Pervivencia del Apocalipsis. Lecturas teóricas


Quizá ningún texto haya sido tan prolífico a la hora de incitar
los miedos y las paranoias colectivas como el Apocalipsis de San
Juan. Sintético como toda profecía que se precie de tal, el capítulo
conclusivo de la Biblia condensa, al mismo tiempo, toda una iconografía
fatídica que ha dominado durante veinte siglos nuestra idea de “fin
del mundo”. Porque el pasaje bíblico – conocido también como Libro
de la Revelaciones – cristalizó, en la memoria cultural, el escenario
catastrófico de una humanidad asediada por años de tribulación y el
acoso de bestias, dragones y jinetes funestos que acarrearán guerras,
hambrunas y un sinfín de pestes, concluyendo con el combate definitivo
entre las fuerzas del Bien y el Mal (DELUMEAU, 1999, p. 84-85).
El críptico simbolismo con que se describen los augurios
(comprendidos solo por esos contemporáneos que reconocían allí el
lenguaje de las escrituras y las tradiciones litúrgicas, CUVILIER, 2002)

187
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

contiene un carácter cinematográfico que la industria hollywoodense bien


supo aprovechar. Precisamente, a él deben su nombre estas narrativas
recientes que dramatizan el fin de los tiempos, reescribiendo muchas
veces esos pasajes cuya canonicidad es todavía debatida por los exégetas,
pero que, sin duda, son “auténticos para los efectos, las pasiones, los
terrores y los movimientos que ha suscitado” (ECO, 1996, p. 15). Sin
embargo, la permanencia del Apocalipsis parece ir más allá de la mera
revitalización artística del repertorio de calamidades, por cuanto este
texto desencadena, en ciertos estadios históricos, un tipo particular de
finalismo histórico, premisa sobre la cual quisiera detenerme.
Sabido es que el Apocalipsis está unido a una concepción del tiempo.
Pertenece al extenso repertorio de mitos escatológicos que advertían
sobre el carácter provisional del orden instaurado por las fuerzas del
cosmos, pues el “retorno del caos” era inminente para las culturas, al
menos occidentales. No obstante, la mitología judeocristiana innova,
introduciendo aquello que Meletinski (2001) llama “carácter finalista”: en
desmedro de otros mitos con un esquema de extinción/renovación y una
organización cíclica del tiempo (por ejemplo, el Ragnarök escandinavo),
la escatología bíblica somete la temporalidad a un devenir lineal, con
principio en el Génesis y final en la Parusía (ello es, el esperado retorno de
Cristo resucitado para el juicio a los vivos y a los muertos). Esta apropiación
del tiempo presenta, empero, ciertas contradicciones.
Cabe recordar que, con insistencia, se ha defendido la hipótesis de
que el Apocalipsis debe interpretarse como un texto político en el cual
leer la denuncia hacia el culto idolátrico de los soberanos romanos y
las persecuciones sistemáticas a las comunidades cristianas durante el
imperio de Domiciano (CUVILIER, 2002). Desde el exilio, su autor habría
alegorizado los infortunios del cristianismo en un intento por exhortar a
los fieles a mantenerse en pie porque, eventualmente, llegaría esa Nueva
Jerusalén para el resguardo de los creyentes. Aquí, yacería la principal

188
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

motivación del Apocalipsis, como también la explicación de por qué la


metáfora que mejor sintetiza el concepto de vida en las tradiciones de
herencia hebrea es la del peregrinaje (DELUMEAU, 1999). En definitiva, lo
que es instrumento de resistencia ante un sistema totalitario encierra, al
mismo tiempo, la promesa de un nuevo Paraíso terrenal.
Ahora bien, en esta búsqueda permanente de “una tierra exonerada
del mal”, el historiador Jean Delumeau halla un conflicto que elige definir
con el oxímoron de una nostalgia del futuro (1999, p. 97). Ocurre que el
anhelo de la Nueva Jerusalén esconde el afán por regresar a ese Paraíso
arrebatado, motivo por lo demás común en muchas mitologías que
auguran la restitución de una Edad de Oro, estadio ideal de abundancia
y pureza. Es verdad que el Apocalipsis introduce cierta corrección: el
final no es, propiamente, un retorno a ese primigenio Edén, sino antes
bien a una ciudad celestial, que es creación del propio Dios y de cuyo
modelo derivarán, en gran medida, las ciudades utópicas de Occidente
(ECO, 2013). No obstante, en el imaginario judeocristiano, permanece
“la esperanza duradera de hallar en el porvenir el paraíso terrenal de los
orígenes” como una necesidad de seguridad que, incluso, parecería aún
gobernar nuestras culturas occidentales y seculares (DELUMEAU, 1999, p. 97).
Lo que me propongo estudiar seguidamente se relaciona con estas
observaciones. Avanzaré sobre la hipótesis de que la nostalgia del futuro
da la tonalidad afectiva a las ficciones pos-apocalípticas, relatos que optan
por situarnos no en los procesos catastróficos, sino en sus resultados más o
menos inmediatos. Del texto bíblico fundacional, estas narrativas parecen
retener la memoria de una experiencia en tres tiempos: resignación
del presente, carga utópica y añoranza del pasado. Algo de ello puede
percibirse cuando se ausculta la línea estética que populariza Mad Max
(1979) con su retorno a un tribalismo de pandillas, pero que éxitos
recientes como A Quiet Place (2018) revitalizan al instalar la sociedad en
un estadio pre-civilizatorio, privándola incluso de lenguaje. Leídos con

189
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

atención, estas historias ponen a la humanidad en un peregrinaje errático


sin porvenir de un mundo-otro, e insinúan, por el contrario, que las
formas del pasado bien pueden funcionar como resguardo ante lo que se
ha vuelto intolerable cuando las estructuras del presente se desbaratan.
Dicho esto, creo pertinente recuperar una precisión de Meletinski, y
es que la nostalgia de un tiempo idílico representa un sueño evasivo, pues
este tipo de proyección del pasado hacia el futuro solo emerge cuando
las culturas carecen de “una idea de una renovación del mundo” (2001,
p. 212). No en vano la Edad Media resucitó con estridencia la mitología
del Apocalipsis, luego de ciclos ininterrumpidos de pestes, guerras
monumentales y miedos milenaristas, que culminan con el brote histérico
e inquisitorio de la Caza de Brujas. Si algo la historia nos ha enseñado
es que, a medida que las calamidades se acrecientan, los imaginarios
populares reviven con estridencia el fin de los tiempos. Y nada más
significativo que observar la pugna de las ficciones pos-apocalípticas en
nuestra escena cultural llamada posmoderna, en donde impera el fin de
los grandes relatos y de las utopías de la modernidad y, en palabras de
Fredric Jameson, “una Historia que no podemos imaginar más que como
final y cuyo futuro no parece ser sino una repetición monótona de lo que
ya está entre nosotros” (2003, p. 103).
De hecho, si se sigue la lectura jamesoniana, lo pos-apocalíptico
sirve para caracterizar relatos que se apropian de uno de los “métodos
secretos” de la ciencia ficción: “que, a falta de un futuro, se centra en
una sola tendencia funesta, que dilata y dilata hasta que la propia
tendencia se vuelve apocalíptica” (2009, p. 103). Pero lo que Jameson
realmente avizora aquí es que el fracaso del futuro es constitutivo de ese
capitalismo tardío que fija la tónica aciaga de nuestra época, incapaz de
imaginar otro sistema ante el cierre total del horizonte de lo pensable.
No ha de extrañar que la resignación apocalíptica sea hoy tan recurrente:
en esta coartada de lo estético, el capitalismo muestra su inevitabilidad,

190
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

presentando un repertorio fijo y estereotipado de desenlaces, solo para


exorcizar, a fuerza de repetición y dentro del espacio controlado de la
ficción, los temores colectivos. Precisamente, algo de ello sugirió Jameson
en una de sus frases más invocadas: “parece que hoy día resulta más fácil
imaginar el total deterioro de la tierra y de la naturaleza que el derrumbe
del capitalismo” (2001, p. 11).
Me interesa, por el momento, interrogar estos derroteros teóricos en
una serie que, por su repercusión y originalidad, ha marcado tendencias
en los años recientes. El recorrido que a continuación presento, pretende
explorar el modo en que The Walking Dead elabora una nostalgia del futuro
para afrontar las vicisitudes de su propio presente, y lo hace entrelazando
creativamente la pandemia virósica y el Apocalipsis zombi, ello sin perder
de vista algunos avatares que parecen signar la cultura estadounidense.

The Walking Dead, o el Apocalipsis en clave zombi


The Walking Dead elige las llanuras de Georgia para el desarrollo de
su Apocalipsis. Allí vive Rick Grimes, protagonista y sheriff del condado,
quien ha permanecido en coma en un hospital desolado, mientras afuera
irrumpía la catástrofe. A su despertar, Atlanta es ya una ciudad sitiada,
destruida por los bombardeos de las fuerzas militares e invadida por
hordas de muertos vivientes que caminan por las calles. Ajeno a lo que
ocurre, Rick emprende la búsqueda frenética de su familia, convencido
de que aún permanece con vida. Otros supervivientes se sumarán a este
viaje errático, odisea que se prolongará durante casi una década, tiempo
que, de hecho, la serie ha permanecido en el aire con una audiencia
relativamente estable. En torno a esta travesía, se compondrá un relato
aciago, de vidas desgarradas porque de pronto la mera existencia se ha
vuelto amenazante e invadida por una violencia brutal. Cuerpos mutilados
en las calles, hogares abandonados y destruidos por saqueos, y una

191
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

vegetación que a paso raudo todo lo cubre dan forma a un escenario


perturbador, pero sobre todo incierto, puesto que la serie se atiene de
explicar el origen de la plaga zombi.
A simple vista, The Walking Dead es un relato simple y se explaya
sobre un escenario hoy bien conocible: el Apocalipsis zombi3. Con Night of
the Living Dead en 1968, George Romero funda las reglas de este género,
marcando una distancia con aquellos filmes donde los muertos eran
deliberadamente reanimados por las artes vudú. Romero trastoca el mito
haitiano del zombi-esclavo e introduce, por las vías del gore más visceral, la
supervivencia de pequeños grupos humanos acorralados ante la aparición
de una masa irracional de muertos vivientes. Desde entonces, poco se
ha innovado, con excepción de algunos relatos creativos en cuanto a sus
hipótesis sobre el despertar de los muertos, y que por cierto dieron cierta
batalla ante el reinado mercantil del vampiro. Pero, con la llegada de The
Walking Dead, el zombi vuelve a adquirir una relevancia inusitada en la
cultura popular, y lo hace de la mano de una de las series más vistas de
la historia, basada en el ya exitoso cómic homónimo de Robert Kirkman.
Se comprenderá inmediatamente que, en el Apocalipsis zombi, late
el motivo de la resurrección de los muertos, que es de hecho uno de
los vaticinios del Libro de las Revelaciones, pasaje que la serie retiene
sutilmente como su intertexto. No por casualidad el relato despliega, como
telón de fondo, un caudal de personajes que insistentemente adjudican
la catástrofe a la ira de Dios, y que dejan mensajes expiatorios que, con
sangre, escriben junto a sus cuerpos antes del suicidio. En la escatología
cristiana, se halla la explicación más rápida para la hecatombe y, por ello,
este Apocalipsis parece no sorprender a quienes creían en un plan divino,

3 En este párrafo, recupero la lectura que propone el documental Eli Roth’s: History
of Horror, emitido por AMC en 2018. El primer episodio, dedicado a la figura del zombi,
incluye la voz de Greg Nicotero, productor de The Walking Dead y director de efectos
especiales en los filmes tardíos de Romero.

192
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

como lo es Hershel, otro de los supervivientes que, con pesadumbre,


recuerda que “Cristo prometió la resurrección de los muertos, solo que él
tenía otra cosa en mente” (ROTH, 2019, T2, E13)4.
Sin embargo, diría que esa mitopoética está solo para desviar la
atención. Algo similar ocurre con el discurso científico que la serie hace
intervenir fugazmente para insinuar que la causa del Apocalipsis estaría
en algo “microbiano, viral, parasitario o micótico”, que ha invadido
el cerebro como una suerte de meningitis, y que reinicia la actividad
del tronco encefálico haciendo que los difuntos cobren movimiento
(THE WALKING DEAD, 2010, T1, E6). Del resto, sabremos más por la
enciclopedia cultural del zombi que por el propio relato: los muertos se
despiertan, buscan alimentarse de carne fresca y su eliminación solo es
posible con un disparo en la cabeza. Hay, en tal sentido, una intención
deliberada de callar, de no ofrecer más datos a ese espectador que
lleva una década barajando hipótesis y que sospecha sobre el carácter
global del Apocalipsis, aunque nada se narre sobre el resto del mundo e,
incluso, fuera de las fronteras estadounidenses.
Pese a este silencio, el Apocalipsis esbozado por The Walking Dead
está captando e interpretando signos de su contemporaneidad en los
cuales palpitan los temores más evidentes de la historia reciente. La
respuesta está en el contexto de su creación: la serie vio la luz poco
después de que la Gripe H1N1 pusiera el mundo en alerta por su rauda
e imprevisible extensión geográfica, algo que el relato se esfuerza en
subrayar cuando rememora el carácter periódico e inevitable de todas
las pandemias:
Helshel: Cuando el SIDA apareció, todos entraron en
pánico. Un chico del pueblo se infectó y algunos padres
sacaron a sus hijos de la escuela para que no se sentaran
en el mismo salón.

4 Todas las traducciones de lengua inglesa me pertenecen.

193
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Rick: Esto es otra cosa.


Hershel: Eso es lo que siempre decimos: “esto es
diferente”. La humanidad ha enfrentado plagas desde
el comienzo. Nos dan una paliza por un tiempo, y luego
nos recuperamos. Es la naturaleza, corrigiéndose a sí
misma. Restaurando cierto balance. (THE WALKING
DEAD, 2011, T2, E2)

Cuestión nada menor esta apelación: aquella influenza que azotó


el planeta entre 2009 y 2010, debió su origen – como también lo hará
el reciente COVID19 – a la degradación sistemática del ambiente y la
destrucción de los entornos naturales y la vida silvestre, motivos por los
cuales el siglo XX ha incrementado exponencialmente los virus zoonóticos
emergentes con impacto directo en el humano (MÜLLER, 2020).
Se sabe incluso que, por mutación u obra del azar y la contingencia,
lo que ha desencadenado las pandemias más insospechables fue el
contacto estrecho con animales como aves (influenzas), roedores
(hantavirus), primates (HIV), cerdos (gripes porcinas), o murciélagos
(ébola, coronavirus). De hecho, la combinación y el encubrimiento en un
registro genético de otra especie permite que estos agentes transiten
siniestramente nuestro organismo, sin ser percibidos por el sistema
inmune hasta su colapso. Con otros virus como el herpes o el HIV, “hemos
hecho un pacto de convivencia en un equilibrio inestable” (MÜLLER,
2020, p. 41), pero, en muchos casos, la naturaleza nos ha puesto a su
merced, demostrando que es el arma bioterrorista más poderosa.
No seguiré aquí esta línea de lectura, pero me detengo en estos
datos solo para fundamentar, como lo hiciera Donna Haraway, por qué
algunas de las fantasías apocalípticas más perturbadoras hoy provienen
de nuestro propio sistema inmunitario, campo de batalla asediado por
“virus mortales en los confines del espacio interior” (2019[1992], p. 96).
Precisamente, con esta materia trabaja The Walking Dead, y lo hace por
las vías viscerales de la estética del horror corporal, allí donde lo biológico

194
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

y las espeluznantes profundidades de nuestro cuerpo son huéspedes de


lo repugnante (ROTH, 2019), manifestaciones cuyo referente más obvio es
el cine de David Cronenberg, pero que finalmente dan continuidad a una
extensa línea estética fundada por el grotesco.

Figura 2 – Fotograma de los zombis en The Walking Dead (AMC/Valhalla Entertainment, 2010).

En efecto, este es el sistema de cualidades que proyecta el zombi,


ser reviniente en estado permanente putrefacción que desarticula la
distinción entre lo vivo y lo muerto. Pero lo verdaderamente inquietante
del horror corporal en The Walking Dead yace en su extensión silenciosa:
la humanidad es portadora de este virus capaz de reanimar los cuerpos.
Independientemente de cómo se produzca el deceso, todo sujeto es un
potencial zombi, lo que propone un enfoque distinto en relación a otros
relatos tradicionales en los cuales la mordida provoca el contagio. Con
agudeza, Fernández Gonzalo apunta que lo singular aquí es que la muerte
se vive indefinidamente y, por ello, “el Apocalipsis que nos propone la
serie es bastante peculiar: se trata de un final que no acaba de acontecer,
que está interrumpido en su propio desarrollo” (2012, p. 67).

195
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Algo se logra en esta narrativa que está ausente en otras ficciones


con aire de familia. Pues da la impresión que, en esta atmósfera
desesperanzadora donde impera “una vida corta y brutal, y una muerte
agonizante” (THEWALKING DEAD, 2010, T1, E6), el Apocalipsis debe
permanecer inconcluso e irreductible porque cualquier explicación certera
ameniza aquello que The Walking Dead está interesada en mostrar: ello
es, la dinámica frenética de esos personajes que persiguen una suerte
de tierra prometida donde sobrevivir, y donde todo valor se organiza en
relación a ese único objetivo, el de conservar la vida.

El lugar de la peste y la búsqueda de un lugar


A una pregunta que atraviesa la serie, ¿cómo son las sociedades
cuando se enfrentan al fin de los tiempos?, se responde con un retorno
al estado de naturaleza que, incluso, sigue el ritmo de las temporadas.
De la vida en pequeños asentamientos a bosque abierto (temporada 1)
y en las granjas sureñas tradicionales (temporada 2), al establecimiento
en edificios apenas habitables (temporada 3 y 4) o pequeños poblados
custodiados por muros precarios (temporada 5 y siguientes), The Walking
Dead brinda un repaso por nuestra propia evolución civilizatoria, y lo hace
a escala de ficción.
Los zombis, con sus cuerpos en estado de hibernación e invadidos
por la flora regional, son el signo más evidente para registrar el paso de
un tiempo que se prolonga, dije antes, por más de una década, y que
delinea un estado de vida pre-capitalista, conforme a un principio: el de la
satisfacción de necesidades. Aprender a cazar, a cultivar, y a reapropiarse
de esas tecnologías que, como la carrera, devinieron obsoletas, pero que
la carencia de combustible vuelve imprescindibles: todo en The Walking
Dead es anacrónico. También lo es su protagonista, montado a caballo en
medio de la ciudad e incapaz de desprenderse de su sombrero cowboy,

196
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

como si fuese necesario aferrarse a un último símbolo de autoridad dentro


de este “western con un Apocalipsis zombi puesto de fondo”, como bien
define el productor Greg Nicotero (ROTH, 2018).

Figura 3 – Imagen promocional de Rick Grimes (Andrew Lincoln), el protagonista cowboy de


la serie The Walking Dead (AMC/Valhalla Entertainment, 2010).

No creo equivocarme si digo que la serie dista de prometer una


renovación del mundo: aquí, el fin de los tiempos es, ciertamente, un
camino hacia los inicios. Jameson supo captar esta tendencia, viéndose
en la necesidad de enmendar aquella frase suya que se volviera canónica:
cuando de textos pos-apocalípticos se trata, tal vez es necesario “corregir
esta afirmación y asistir al intento de imaginar el capitalismo a través de la
imaginación del fin del mundo” (2003, p. 103). Pero, en The Walking Dead,
esta ausencia de un futuro no solo conlleva la restitución de modos de
producción; también la serie va sometiendo sus personajes a un creciente
individualismo, al amparo de una concepción atomística de la sociedad
que no deja de exaltar la subjetividad capitalista.
Conviene recordar que, por la invasión zombi, las instituciones han
caído, mientras las jerarquías sociales y las reglas que daban orden a la

197
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

comunidad se desploman a cada paso. Aquí solo prevalecen los que se


adaptan a este entorno hostil, lo cual nos reenvía también a una de las
líneas fundantes del darwinismo social, aquella que se vincula con la
selección natural. Precisamente, esos tres interrogantes con los que Rick
interpela a los nuevos miembros (cuántos zombis has matado, cuántas
personas has asesinado y por qué lo has hecho) pretenden hallar alguna
justificación moral a esta relectura apocalíptica de la supervivencia del
más fuerte. Por el contrario, quienes como Dale reprochan que “el mundo
que conocemos desapareció, pero conservar nuestra humanidad es
todavía una elección”, no tendrán cabida en este mundo (THE WALKING
DEAD, 2011, T2, E11). En efecto, el espectador bien puede vaticinar que,
cuando los indicios de altruismo asoman en un personaje, su continuidad
en la trama será más breve de lo esperado.
Ocurre que la serie plantea conflictos que no pueden resolverse sino
por la violencia o el abandono del otro. La lucha por los recursos, por
los espacios de refugio y por el control de las armas obtura toda posible
convivencia armónica con otros grupos también organizados, pero más
virolentos, amenazantes y que, incluso, caen en el canibalismo. Como
sea, no se trata aquí de mostrar que la civilización ha corrompido lo
humano; antes bien, la narrativa aboga por una lectura hobbesiana,
allí donde nuestra especie muestra su verdadera “naturaleza” ante la
ausencia de poder.
Queda claro, entonces, por qué Eli Roth (2018) considera que la figura
del zombi es un experimento social aplicado en un muestrario de la sociedad,
ensayo a través del cual vigilar y examinar en detalle el comportamiento
social en tiempos de crisis. Pero lo que aquí puede leerse entre líneas
son, asimismo, reminiscencias del motivo apocalíptico del Juicio Final, aún
más cuando se recuerda que la resurrección de los muertos es antesala
de ese enjuiciamiento divino, “especie de recapitulación general en que
la humanidad entera haría su balance” (DELUMEAU, 1999, p. 85). Como

198
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

audiencia, somos esos testigos que toman distancia crítica para diputar a
los personajes por sus obras y por aquello que la serie nos propone como
una “esencia” de lo humano.
Como fuere, es la presencia del zombi lo que genera las condiciones
de posibilidad para esta lectura. Pero la estrategia diste de ser nueva.
Bakhtin lo percibió años atrás: la peste fue siempre marco privilegiado
para explorar la naturaleza humana, porque “las desgracias liberan al
individuo de las relaciones habituales, sociales y jerárquicas, y descubren a
la persona en la persona” (2019[1961], p. 655). Cierto rasgo carnavalesco
aflora, en el sentido de un momento de liberación transitoria con extensa
tradición literaria, pero cuyo germen Bakhtin, sin dudarlo, localiza en
El Decamerón. Se dirá que no puede buscarse en The Walking Dead la
celebración carnavalesca de la vida en un marco funesto como hiciera
Boccaccio, ni tampoco la ambivalencia bufonesca que Rabelais le da a
la muerte. Sin embargo, la peste aquí sigue siendo condición necesaria
de aquello a lo que alude la cita que abre mi escrito: si algo enseñó
Boccaccio, es que la plaga parece estar al servicio de mostrar el verdadero
rostro de una sociedad, y lo hace al “relajar los vínculos de las leyes, de
las costumbres, de las convenciones, es decir, al instaurar un régimen de
libertad, propicio para el desahogo de los instintos […] la peste es una
coartada para la anarquía” (PAPINI, 2005, p. 29).
Para ir concluyendo, habría que agregar que la peste zombi motiva
también un ideal de grupo, porque el peligro lleva a delimitar una identidad
colectiva, la establece frente a otras, y refuerza los vínculos entre sujetos
que han sido unidos solo por la contingencia de la catástrofe. Cuando
Hershel afirma que “quizá la naturaleza nos juegue una mala pasada, pero
esa ley sigue siendo invariable” (THE WALKING DEAD, 2011, T2, E13), refiere
precisamente a este mandato social de proteger a los propios, deriva de
una idea de “familia” que deja de privilegiar los lazos consanguíneos para
articular, más bien, un concepto de comunidad. Es esto lo que Fernández

199
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

González define como una elipsis prosaica, como “las coordenadas de lo


cotidiano abriéndose sobre el horror de la catástrofe” (2012, p. 68): el
mundo puede acabar, pero la familia prevalece, cualquiera sea su forma.
Rick lo sabe desde el inicio y, por ello, la búsqueda de un lugar estable se
transforma en una errancia incesante, en un movimiento nómada nunca
posible de concluir, que pretende restituir el hogar perdido, aún a riesgo
de un confinamiento obligado en esos mismos barrios suburbiales, ahora
cercados por el ataque zombi.
Tal vez por eso, si el virus pandémico de 2009 reactiva los engranajes
del horror corporal, tampoco sea un detalle menor que The Walking
Dead, poco después de que la Crisis Hipotecaria de 2008 deje a millones
de personas en la calle (ROTH, 2018), conciba el desamparo como su
obsesión temática. Pero no debe olvidarse que, como es habitual en las
series (GÓMEZ PONCE, 2021), cuando se discurre sobre el concepto de
“hogar”, se lo hace para convertirlo en metonimia de esos valores que
rigen el imaginario estadounidense. Acaso esto es también la prueba de
que este relato reinventa el Apocalipsis zombi, solo para recordarnos la
fragilidad del Sueño Americano, fractura que es presentada aquí como
una salida forzada de los suburbios, escenario por lo demás idílico que la
serie rememora con cierta nostalgia de un futuro. Llegado el final de los
tiempos, la imaginación cultural, como bien pensara Jameson, muestra
sus limitaciones: todo porvenir parece tropezar con los orígenes mismos.

El fin de los tiempos, una última vez


Cierro esta lectura, recordando que he afrontado el Apocalipsis como
una interrogación abierta, para nada colmada, y con la intención de captar
al menos una tendencia que abra nuevos recorridos para estudiar estos
relatos dedicados al después de las catástrofes. Se trata de ficciones que,
a fin de cuentas, esquivan toda explicación y silencian las causas de la

200
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

tragedia, pero en cuyo punto de sutura se manifiesta el sentido etimológico


de la palabra Apocalipsis en todo su esplendor: des-velar, retirar el velo
y, con ello, poner en evidencia un estado dado de la sociedad y de sus
temores más nerviosos. En una latencia permanente, reminiscencias
del texto bíblico original aparentan regir aún nuestros imaginarios que
se pretenden laicos, racionales y seculares, terreno fértil que la cultura
popular encuentra para explorar y reinventarse.
Tal es el caso de esta pervivencia de una nostalgia del futuro: imposibilidad
cultural de imaginar un porvenir que admite múltiples lecturas, pero que se
torna palpable en estas ficciones pos-apocalípticas que, como bien pensara
Fredric Jameson (2009), se adaptan mejor al término anti-utopía, que a otras
variantes que encierran la promesa de cierta renovación, como son la utopía
o la distopía. Al colocarse en esta tradición, The Walking Dead daría cuenta
de una de las razones de su éxito: en un mundo amenazante y repleto de
incertidumbres, cuando las condiciones históricas y culturales se ha vuelto
insoportables, las imágenes del pasado y la esperanza de que el desenlace
puede resultar en un retorno a los idílicos principios, ofrece una perspectiva, al
menos tranquilizadora.

Referências
BAKHTIN, Mikhail (1961). La novela. Respuesta a V.V. Koshinov. In: La novela como
género literario. Zaragoza: Prensas de la Universidad de Zaragoza, p. 655-661, 2019.
CUVILIER, Elian. Los apocalipsis del Nuevo Testamento. Navarra: Verbo Divino,
2002.
DELUMEAU, Jean. El apocalipsis recreado. In: ECO, Umberto; DELUMEAU, Jean;
CARRIÉRE, Jean-Claude; JAY GOULD, Stephen. El fin de los tiempos. Barcelona:
Anagrama, p. 69-213, 1999.
ECO, Umberto. Historia de las tierras y los lugares legendarios. Barcelona:
Lumen, 2013.
ECO, Umberto; MARTINI, Carlo María. ¿En qué creen los que no creen? Un diálogo
sobre la ética en el fin del mundo. Buenos Aires: Arte Gráfico Editorial, 1996.

201
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

FERNÁNDEZ GONZALO, Jorge. ¿Apocalipsis o Apoca-e-lipsis? Pantalla y


emociones en The Walking Dead. In: GREELEY, Stephen; PASTOR, Marc; GARCÍA,
Santiago et al. The Walking Dead. Apocalipsis zombi ya. Barcelona: Errata
Naturae, p. 83-110, 2012.
GÓMEZ PONCE, Ariel. Los despojos de lo humano. Zombies y desgracias
naturales desde la perspectiva ecosemiótica. In: Actas III Jornadas
Internacionales sobre Medio Ambiente y Lenguajes. Córdoba: Editorial
Universidad Nacional de Córdoba, 2013.
GÓMEZ PONCE, Ariel. Ficção Pós-apocalítica. In: REIS, Carlos; ROAS, David; FURTADO,
Filipe; GARCÍA, Flavio; FRANÇA, Júlio (Eds.). Dicionário Digital do Insólito Ficcional
(e-DDIF). Rio de Janeiro: Dialogarts, 2019. Disponible en: http://www.insolitoficcional.
uerj.br/site/f/ficcao-pos-apocaliptica/. Acceso en: 20 dic. 2020.
GÓMEZ PONCE, Ariel. Las series y el Sueño Americano. Nostalgia y pervivencia
de un imaginario suburbial. Intexto. n. 52, enero/diciembre, 2021. En prensa.
HARAWAY, Donna (1992). La promesa de los monstruos: una política
regenerativa para los inadaptados/ables otros. In: HARAWAY, Donna. La
promesa de los monstruos. Ensayos sobre Ciencia, Naturaleza y Otros
inadaptables. Salamanca: Holobionte, p. 27-124, 2019.
JAMESON, Fredric. Las semillas del tiempo. Madrid: Editorial Trotta, 2001.
JAMESON, Fredric. La ciudad futura. New Left Review, n. 21, p. 91-106, 2003.
JAMESON, Fredric. Arqueologías del futuro. El deseo llamado utopía y otras
aproximaciones de ciencia ficción. Madrid: Akal, 2009.
MELETINSKI, Eleazar. El mito. Literatura y folclore. Madrid: Akal, 2001.
MÜLLER, Mónica. Pandemia: virus y miedo. Una historia desde la gripe
española hasta el coronavirus Covid-19. Buenos Aires: Paidós, 2020.
PAPINI, Giovanni. Introducción. In: BOCACCIO. El Decamerón. Buenos Aires:
Editorial Losada, p. 7-42, 2005.
RACIONERO, Alexis. Resiliencia zombi o cómo el cine apocalíptico fortalece
ante la pandemia. In: Diario La Vanguardia, 2021. Disponible en: https://www.
lavanguardia.com/vivo/psicologia/20210122/6185187/resiliencia-zombi-cine-
apocaliptico-fortalece-pandemia.html. Acesso en: febrero 12 de 2021.
ROTH, Eli (Productor Ejecutivo). Zombies. In: Eli Roth’s: History of Horror (Documental
seriado). Temporada 1. Estados Unidos: AMC/ Asylum Entertainment, 2018.

202
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

ROTH, Eli (Productor Ejecutivo). Body Horror. In: Eli Roth’s: History of
Horror (Documental seriado). Temporada 2. Estados Unidos: AMC/ Asylum
Entertainment, 2019.
THE Walking Dead. Frank Darabont (Creador). Estados Unidos: AMC/ Valhalla
Entertainment, 2010-2021.

203
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

LA FICCIÓN AUDIOVISUAL FANTÁSTICA ESPAÑOLA


BAJO LA SOMBRA DEL COLAPSO (2007-2020)
Ruben Sanchez Trigos

Introducción
A lo largo de las últimas seis décadas, el estudio del cine fantástico
ha reservado un espacio específico para examinar una hipotética relación
entre los picos de producción de películas inscritas en esta forma narrativa
y las distintas crisis que han tenido lugar en el siglo XX y en lo que llevamos
del XXI, ya sean estas de alcance local o global, de carácter económico,
social o bélico. Un claro precursor de esta vertiente es, por supuesto,
Kracacuer (1947) y su fundacional revisión crítica de la historia del cine
alemán pre-régimen nazi (donde, si aceptamos la corriente expresionista
como una expresión de lo fantástico, se incide en esta hipótesis). No
obstante, fue entre los años 50 y 60 cuando estudios como los de Pirie
(1973) o Esiner (1952) abrieron el camino a analizar el cine de terror en
relación a las épocas, la cultura específica de cada país y los ciclos de
producción concretos, al contrario que lo propuesto previamente por
Clarens (1967), que estudia cada película como un sistema autónomo. Este
enfoque prefiguró gran parte del léxico teórico de la mayoría de trabajos
sobre el género producidos desde entonces.
En lo que respecta al cine español, la recién clausurada década de
2010 ha deparado la significativa confluencia de dos fenómenos decisivos,
y hasta cierto punto inéditos, en el orden social y cinematográfico: por un
lado, una crisis geo-económica (la más profunda en el mundo occidental

204
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

desde la acaecida en EEUU a finales de los años veinte) que, además


de propiciar un catálogo de efectos directos concentrados en su mayor
parte en devorar las estructuras del denominado estado del bienestar
democrático hasta alcanzar, cómo se verá, estampas hasta entonces solo
previstas por la ficción apocalíptica, encuentra también su eco en aspectos
mucho más imprecisos y, de algún modo, ya descritos en el transcurso de
crisis precedentes, como es el cuestionamiento de aquellas certezas socio-
culturales consideradas inamovibles en el reciente mundo moderno: la
cultura del trabajo, el papel de la función pública, el cuestionamiento y la
crisis del orden político vigente hasta ahora, así como de la red cultural
que, aparentemente, lo ha sostenido (la denominada por ciertos sectores
Cultura de la transición); en definitiva, un desmoronamiento del status quo
social, económico, moral y político, pero también, debido a ello, un nuevo
espacio de discusión. En palabras de Fernández-Savater, la democracia de
nuevo “como una pregunta abierta” (FERNÁNDEZ-SAVATER, 2013).
Por otro lado, tenemos la constatación de que el cine fantástico
producido en España durante esta década experimenta lo que podríamos
calificar una nueva edad de oro, tanto en términos de mercado (sobre
todo en lo que se refiere a su proyección internacional), como en el
espacio que, progresivamente, ha ido ocupando en la comunidad
cinematográfica en general. Aunque desde la renovación generacional
operada en la industria cinematográfica española durante los años 90
(con la irrupción de cineastas jóvenes especializados en lo fantástico
capaces de conciliar público, crítica e incluso Academia, como Álex de
la Iglesia, Alejandro Amenábar o Jaume Balagueró), no son pocos los
títulos que han encontrado el favor de un público no necesariamente
especializado, ha sido durante el siglo XXI cuando se han concentrado
algunas de las películas de mayor impacto popular en la historia del
género español. Impacto no sólo en términos de mercado, sino también
entre un hipotético canon crítico. Ya los trabajos que autores como

205
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Antonio Lázaro-Reboll (2008, 2012), Andrew Willis (2004) o Javier Pulido


(2012) le han dedicado a la cinematografía fantástica española en los
últimos años han puesto de relieve la necesidad de emplear los estudios
culturales como un medio más adecuado para acercarse a este fenómeno.
Estos estudios, por ejemplo, han llevado a cabo una importante labor
de reasignación de las películas producidas bajo el denominado boom
fanta-terrorífico (localizado entre finales de los años 60 y mediados de
la década siguiente), aplicando las nociones que autores como Olney
(2013) han preescrito para el cine exploitation (véase en este sentido
SÁNCHEZ TRIGOS, 2015).
Mi intención en las líneas que siguen es demostrar que, aunque el
cine español fantástico producido bajo la sombra de la crisis ha deparado
un puñado (escaso pero significativo) de ejemplos encuadrables en el
subgénero pos-apocalíptico, su representación de las tensiones globales
y nacionales contemporáneas va mucho más allá de aquellas películas
que escenifican abierta y literalmente un posible fin del mundo, como
Fin (Jorge Torregrossa, 2012), adaptación de la novela apocalíptica de
David Monteagudo, Extinction (Miguel Ángel Vivas, 2015), adaptación
de la novela pos-apocalíptica de Juan de Dios Garduño, Los últimos
días (Álex y David Pastor, 2013), El año de la plaga (Carlos Martín
Ferrera, 2018), adaptada de la novela homónima de Marc Pastor, o
Segundo origen (Carles Porta, 2015), adaptación del clásico catalán pos-
apocalíptico Mecanoscrito del segundo origen de Manuel de Pedrolo
(publicado en 1974): también deben considerarse aquellas ficciones que,
sin adentrarse completamente en las convenciones de este subgénero,
abordan el colapso social, económico y moral de un sistema incapaz
de ofrecer al ciudadano ninguna certeza acerca de su presente o su
futuro inmediato. Unas y otras conforman lo que podríamos llamar una
narrativa audiovisual del fin.

206
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Un fantástico “glocal”
La idea de un cine fantástico español permeable a las fricciones
socio-económicas contemporáneas a su contexto de producción no es
inédita. Sin embargo, el caso actual presenta una especificidad: se trata
del carácter “glocal” que tanto los efectos de la crisis como la producción
que nos ocupa comparten como parte de un paisaje sociológico que,
cada vez en mayor medida, difumina las fronteras entre las distintas
identidades culturales y aboca a los agentes interesados en este conflicto
a resolver aquellas tensiones subyacentes entre las inercias globales y la
preservación de aquellos marcadores locales que se perciben amenazados
por estas. Como Fasenfest recuerda, el término “glocal” tiene unos
orígenes eminentemente económicos:
Some may worry that glocalization runs the risk of
generalizing the global into the local to defuse local
cultural differences, and indeed the increased migration
flows between more and less developed countries, the
ever expanding internationalization and standardization
of consumption, and the uniformity of cultural symbols
that threatens local variation and undermines the
intergeneration transmission of social practices and
norms are a threat. (FASENFEST, 2010, p. 263)

Sin embargo, en el transcurso de la presente coyuntura lo “glocal” ha


terminado por invadir también otras esferas como la activista, la política
o la cultural: de los indignados que tomaron la Plaza de Sol en Madrid el
15 de mayo de 2011 al movimiento Occupy Wall Street en septiembre de
ese mismo año (fenómeno que llegó a extenderse por 52 ciudades), del
desmoronamiento del gigante financiero Lehman Brothers (septiembre de
2008) a la crisis de la burbuja hipotecaria en países como España. Así, el
alcance de la crisis toma la estructura de una serie de ecos imposibles de
codificar localmente, una compleja red de relatos condenados a cruzarse sin
que no siempre quede del todo claro cuales fueron antes y cuales después.

207
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Del mismo modo, el cine fantástico español moderno ya no se


concibe como un producto cultural estrictamente interno. Esta es una
característica que, por supuesto, vertebraba también la producción del
boom fantaterrorífico operado durante los últimos años del franquismo;
la diferencia con la producción contemporánea estriba, entre otras
cuestiones, en la manera en que, por un lado, los nuevos cineastas
españoles mantienen una movilidad natural para con la industria foránea
(Rodrigo Cortés, Juan Carlos Fresnadillo, Alex y David Pastor, Luiso
Berdejo, Paco Cabezas o Juan Antonio Bayona, por poner sólo unos
ejemplos, filman indistintamente aquí y allá); por otro lado, es importante
señalar cómo desde la recepción (y por ende, desde la creación) se ha
confrontado el peso de aquellos valores tradicionalmente asociados a la
noción de “cultura española” con las inercias impuestas por un modelo de
producción audiovisual sometido a las características de la globalización.
Mientras que películas como Luces rojas (Rodrigo Cortés, 2012), Intruders
(Juan Carlos Fresnadillo, 2011) o Cosmética del enemigo (Kike Maíllo, 2021)
mantienen rasgos de producción que podríamos calificar de globales
(adopción de fórmulas narrativas heredadas de un imaginario común
nutrido fundamentalmente de los grandes éxitos del género durante
los años 70 y 80, deslocalización geográfica de sus tramas, siquiera de
forma virtual -ciudades como Madrid o Barcelona pueden ser filmadas de
forma que se atenúen sus elementos más distintivos-, rodajes en inglés,
empleo de estrellas extranjeras, y un tratamiento del efecto fantástico
por lo general clarificador), otras películas, por el contrario, explotan la
especificidad cultural española como marcador distintivo: es el caso de la
serie Rec o de aquellos títulos que, por primera vez en la Historia, vehiculan
un episodio como la guerra civil española a través de tropos asociados a
la narrativa fantástica: El espinazo del diablo (Guillermo del Toro, 2001),
El laberinto del fauno (Guillermo del Toro, 2006), NO-DO (Elio Quiroga,
2009) Insensibles (Juan Carlos Medina, 2012) o El bosque (Óscar Aibar,

208
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

2012). Este escenario ha adquirido una nueva dimensión con la irrupción


de las plataformas streaming, cuyo modelo de visionado (y producción) ha
difuminado definitivamente las fronteras entre lo local y lo global. En los
siguientes epígrafes analizaré, pues, cómo el fantástico español moderno
aborda, a través de lo “glocal”, dos obsesiones temáticas dominantes
durante el progresivo y seudo-apocalíptico desmoronamiento del estado
del bienestar español que ha tenido lugar en la última década: por un
lado, el tratamiento del espacio, y en especial del espacio doméstico y
privado (el hogar), en tanto amenaza o refugio, y por otro el tratamiento/
cuestionamiento de aquellos valores tradicionales que, desde una
perspectiva popular, política y social conforman el “viejo orden” y que
ahora se perciben en proceso de desintegración.

El horror interior
No hay duda de que uno de los puntos de presión más importantes
sobre los que la crisis española ha pivotado es la vivienda; de hecho, si el
relato de los últimos tiempos necesitase de una imagen de portada esa
bien podría ser la de una geografía de edificios y chalets abandonados a
medio construir, grúas que languidecen en las calles desiertas y cárteles
que anuncian las promociones inmobiliarias interrumpidas a la entrada de
las urbanizaciones vacías. En el año 2006, con los precios creciendo a un
17% y una inflación reducida, llegó a construirse una media de 762.540
casas, más que Alemania, Italia, Francia y Reino Unido juntos (datos del
Ministerio de Fomento cit. en López Letón, 2005). A su vez, la cultura de la
construcción instauró una serie de inercias indisociables del (por entonces
seguro) denominado milagro económico español: empleo de baja
cualificación, devaluación de la educación con el consiguiente aumento
del abandono escolar, cultura hipotecaria (la cantidad hipotecada en estos
años pasa del 50% al 70%, es decir, si en el año 2002 se conceden 800.000
hipotecas, en 2007 este número aumenta hasta los 1,06 millones).

209
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Apenas dos años después, el pinchazo de la burbuja inmobiliaria española


(precedida por la crisis de las hipotecas americanas de baja calidad,
las llamadas subprime) revierte estos y otros números con resultados
catastróficos para el tejido social. El desplome en la construcción y en la
venta de casas constituye sólo el aspecto cuantitativo de la coyuntura: el
aspecto humano se traduce en una verdadera oleada de desahucios (se
estiman en más de 600.000 los desalojos hipotecarios desde el inicio de
la crisis [MUÑOZ, 2015]): un co-relato que las televisiones y los medios
de comunicación han traducido en una imagen-tipo, casi un icono visual
del desmoronamiento social de los últimos años: familias desalojadas de
sus hogares, en muchos casos a la fuerza, por los agentes del orden en
principio designados para velar por la seguridad de ciudadanos como ellos.
Como Yalman Onaran explica en el capítulo dedicado al caso español de su
relevante Zombie Banks (PUEYO, 2013), esto ha provocado una simbólica
paradoja: el déficit real de los bancos obliga no sólo a dejar a miles de
familias sin acceso a la vivienda, sino también a miles de viviendas vacías
(3,4 millones de casas [MUÑOZ, 2015]).
Esta contradicción (gente sin casas, casas sin gente) constituye uno
de los ejes temáticos sobre los que ha pivotado y sigue pivotando el cine
fantástico español moderno. Ya dos importantes películas pre-crisis como
Los otros (Alejandro Amenábar, 2001) o Darkness (Jaume Balagueró, 2002)
escenificaban la dialéctica espacio interior/espacio privado como un
binomio con el que el individuo debía negociar. El cine fantástico español
contemporáneo ha ido aún más lejos que Amenábar o Balagueró a la hora
de re-visualizar el espacio doméstico como un paradigma negativo de
privacidad y seguridad. Así ocurre en la serie Rec, en particular en sus
dos primeras entregas, donde se configura un edificio de renta antigua
del eixample barcelonés como un espacio hostil del que los protagonistas
no pueden salir, pues las fuerzas del orden atrincheradas en el exterior
se lo impiden. En este sentido, Rec invierte la estructura dramática que

210
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Richard Matheson implantara en su novela Soy leyenda (1954) y que


Romero convirtiera en fórmula en la fundacional La noche de los muertos
vivientes (Night of the living dead, 1968). Como Víctor Pueyo advierte,
ya no se trata de que los zombis no puedan invadir el espacio (interior)
de los personajes, sino de que estos puedan escapar del mismo (Pueyo,
2013, p. 38). Una película como El año de la plaga, en la que tiene lugar
una invasión alienígena consistente en llenar el mundo de dobles de
sus víctimas (un homenaje posmoderno al clásico literario La invasión
de los ladrones de cuerpos), reproduce inevitablemente esta situación:
personajes que deben abandonar su hogar para huir de sus propios seres
queridos clonados.
El subgénero de la home invasión no es, por supuesto, exclusivo
del corpus que nos ocupa. Como ya he advertido, una parte importante
del cine fantástico español moderno reviste una naturaleza global que,
en términos de mercado, lo lleva a mantener línea directa con aquellas
fórmulas narrativas de mayor proyección internacional en el momento de su
producción. Aunque esto es susceptible de ser criticado desde posiciones
digamos culturales (véase por ejemplo HIGUERAS FLORES, 2013, donde
se llega a hablar del “borrado identitario como garantía de exportación),
en lo que se refiere a una hipotética visualización de los efectos de la
crisis y de lo que llamamos una narrativa del fin, lo “glocal” se revela
una herramienta natural para estos propósitos: del mismo modo que las
políticas activistas unidas contra la causa neo-capitalista han encontrado
eco en las distintas ciudades del mundo (en acciones como acampadas
que parecen replicarse unas a otras), el cine fantástico y de terror
occidental ha desplegado un discurso en común en el que también caben
las especificidades culturales. En su tesis doctoral dedicada precisamente
a analizar la influencia de la crisis financiera de 2008 sobre el cine de
terror estadounidense, Pérez Ochando afirma que las consecuencias del
colapso hipotecario habían entrado tarde en el imaginario del horror

211
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

norteamericano moderno debido a dos factores: “el arraigo de los valores


y mitos neoliberales” en su sociedad y “la dificultad para comprender y
representar ese capitalismo financiero” (PÉREZ OCHANDO, 2013, p. 542-
543). No obstante, es posible rastrear algunas de estas consecuencias
en lo que se refiere a la representación del hogar y el espacio privado.
Películas como Insidious (James Wan, 2010), The purgue: La noche de las
bestias (The purgue, James deMonaco, 2013), Tú eres el siguiente (You’re
Next, Adam Wingard, 2011), It Follows (David Robert Mitchell, 2014)
o Paranormal activity (Oren Peli, 2009) y sus secuelas reconfiguran la
relación del individuo con su hogar. La casa ya no es el foco de terror que
amenaza y/o contagia a quienes se han atrevido a habitarla, sino que es
el individuo quien porta el problema consigo, contamina su propio hogar
y lo transforma en un espacio hostil para sí mismo y los suyos. Como bien
explica Pueyo:
Después de la crisis sub-prime, el espectador
comprende que en el supuesto de la casa encantada
lo fantástico no era esa presencia extraña que
interrumpía las vidas de sus propietarios (el fantasma);
por el contrario, esa presencia era lo real y la fantasía
venía a ser, precisamente, aquella que hasta entonces
había venido regulando su “realidad cotidiana”: esa
ilusión según la cual el “propietario” que pagaba
religiosamente su hipoteca vivía como si la casa fuera
suya (y no de la entidad crediticia). Una ilusión que sólo
había podido mantenerse en base a una serie de actos
que la apuntalaban pero que eran, al mismo tiempo,
traumáticos, intangibles e irrepresentables: cada uno
de los pagos mensuales que permitían seguir diciendo
“esta casa es mía. (2013, p. 38)

Dada la especificidad del caso español (una política bancaria que, en


la mayoría de las ocasiones, obliga al propietario desahuciado a seguir
cargando con la deuda incluso después de perder la casa), es razonable

212
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

pensar que el cine fantástico producido en este país va a aportar su propia


variante temática. En este sentido, en los últimos años encontramos un
importante y sorprendente déficit de películas españolas sobre casas
encantadas – Emergo (Carles Torrens, 2011), Purgatorio (Pau Teixidor,
2014) o Faraday (Norberto Ramos del Val, 2013) serían tres interesantes
ejemplos de bajo presupuesto en los que, una vez más, no es el hogar lo
que se encuentra infectado, sino los propios personajes – , mientras que
Verónica (Paco Plaza, 2017) y Malasaña 32 (Albert Pintó, 2020) se revelan,
precisamente, como excepciones de éxito cuya influencia todavía está por
ver; antes bien, el cine fantástico español parece mucho más interesado
en retratar el después, es decir, el relato que sigue a aquellas personas
obligadas a abandonar sus hogares, un auténtico tropo del subgénero
apocalíptico. Este es el leit-motiv que sustenta títulos dónde se narra
abiertamente el fin de nuestra civilización como los ya mencionados Fin,
Los últimos días, Segundo origen o Extinction.
Aunque sólo el último de ellos está filmado en inglés y presenta
un reparto internacional con vistas a su explotación extranjera, todos
forman parte de lo que he denominado una “narrativa del fin de los
tiempos” (en las tres películas tiene lugar una catástrofe que aboca a sus
personajes a la supervivencia individual). Mucho más importante aún,
todos evocan un imaginario común de casas vacías, barrios fantasmas y
espacios domésticos reconfigurados como amenazantes. Un eco visual
que parece alimentarse de aquellas imágenes, reproducidas por los
medios de comunicación, en las que miles de familias son despertadas
bruscamente del sueño de poseer un hogar. En concreto, Los últimos días
y Extinction parten del individualismo reaccionario inherente a cualquier
relato pos-apocaliptico para, finalmente, recuperar el hogar, el espacio
privado, como un sueño residual de una era en que todavía esto era
posible. Así, los protagonistas de Los últimos días se abren paso por una
Barcelona cuya estructura social se ha desmoronado a fin de regresar a

213
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

sus antiguos hogares (que han abandonado por culpa de una epidemia
global de agorafobia), mientras que los de Extinction se aferran a las que
fueran sus casas y se niegan a abandonarlas a pesar (o precisamente por
culpa de) las criaturas mutantes que acechan en algún lugar del exterior.
Frente a la problemática de lo común que, como bien plantea Pueyo,
subyacía como discurso anti-capitalista en las acampadas de Tahir, Sol
o Zuccoti (PUEYO, 2013, p. 35), estas películas se esfuerzan por erigir un
simulacro de normalidad en torno al antiguo concepto inmobiliario de
“propiedad privada”: curiosamente, ambos títulos eluden la posibilidad
de un nuevo orden social que enmiende los errores del anterior.
Entre los personajes no hay, en rigor, discusión de orden político que
procese en la ficción aquellas tensiones que la agenda social española
parece haber “re-descubierto” en los últimos años. Sólo Fin, que
narra la estupefacción de un grupo de antiguos amigos ante la súbita
desaparición del resto del mundo, se atreve a proponer un imaginario
de casas deshabitadas en el que la fantasía de lo común planteada por
los indignados se hace tangible (no sólo la acampada de Sol, también los
muchos mercadillos populares que han ido floreciendo en los años de la
crisis por la geografía española constituyen una práctica de indudable
valor catártico). Compárese, por ejemplo, las muchas escenas en que
los protagonistas de esta película penetran en las viviendas desiertas
y toman acopio de todo lo que necesitan con la escena del asalto y
posterior batalla que tiene lugar en el supermercado de Los últimos
días, donde los supervivientes se atrincheran para defender sus víveres
de otros supervivientes dispuestos a arrebatárselos. Ambas suponen la
cara y la cruz del modo en que la población española ha enfrentado
la crisis: proponiendo una nueva reconfiguración del binomio público/
privado por un lado (reivindicando lo común) y aferrándose a los restos
del naufragio neo-liberal por otro. También El año de la plaga incide en
esta paradoja: la película está plagada de escenas en las que ciudadanos

214
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

aparentemente normales se ven obligados a organizarse en guerrillas


callejeras para hacer frente a la amenaza alienígena. Estas imágenes,
que reproducen los contenedores ardiendo y las cargas policiales tantas
veces emitidos por los informativos, sugieren que la única posibilidad
del pueblo ante la amenaza neo-capitalista no es la revolución como
tal, sino una reorganización popular y asamblearia que recupere la calle
como patrimonio común y el sentido de lo colectivo.

Viejo y ¿nuevo? Orden


Como ya se ha advertido, el desmoronamiento de la cultura
hipotecaria que se invoca en estas películas en realidad forma parte de
un proceso mucho más grande en el que, a decir de diversas fuerzas, una
parte importante de la opinión pública española comienza a cuestionarse
los valores del ahora denominado régimen del 78. La también llamada
Cultura de la Transición, defiende Fernández-Savater,
es una fábrica de la percepción donde trabajan a
diario periodistas, políticos, historiadores, artistas,
creadores, intelectuales, expertos, etc. Lo que allí
se produce desde hace más de tres décadas son
distintas variantes de lo mismo: el relato que hace
del consenso en torno a una idea de la democracia
(“representativa, liberal, moderada y laica”) el único
antídoto posible contra el veneno de la polarización
ideológica y social que devastó España durante el siglo
XX. Ese consenso funda un “espacio de convivencia y
libertad” que se presenta a sí mismo como algo frágil
y constantemente amenazado por la posibilidad del
terror (golpe militar, ETA, ruptura de España, etc.).
(2013)

Lo cierto es que los años de la crisis han propiciado un escenario


continuo de protesta social que se vehicula a través de la oposición entre
quienes denuncian el desmoronamiento del estado del bienestar y esa

215
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

entidad intangible, monstruosa en el sentido ontológico de la palabra,


percibida como el “sistema”. Desde el Nunca Máis al “no a la guerra”,
pasando por las mareas contra los recortes (Educación, Sanidad etc), el
movimiento contra los desahucios o las reacciones a la denominada “Ley
Mordaza”, el relato social y mediático de la crisis ha legado una serie de
hitos que parecen girar obsesivamente en torno a la desintegración de un
estado seguro de las cosas. Es importante distinguir esto de la narrativa
apocalíptica a la que apelan títulos como Los últimos días, Fin o Extinction.
Lo que la actualidad española parece haber escenificado desde 2008 no
es tanto la constatación de un estado de caos como la percepción de que,
a lo largo de esta crisis, se ha clausurado un periodo histórico (ratificado
por la irrupción de nuevas fuerzas políticas en el congreso por primera vez
desde los años 80, tanto de signo conservador como progresistas, léase
Unidas Podemos y Vox).
Una vez más, también en este aspecto el cine fantástico español
moderno mantiene línea directa con su homólogo internacional (si es que
tales categorías todavía están vigentes). Así, la década de 2010 ha entregado
una serie de películas en las que no es difícil detectar una obsesión en
común: convertir al sistema en el verdadero monstruo que irrumpe en las
vidas de los protagonistas, los despoja de lo que el mismo sistema les ha
convencido de poseer y cuestiona las categorías culturales percibidas como
seguras hasta ese momento. No se trata ya de abolir las fronteras entre
el bien y el mal, o entre lo legal y lo ilegal, como viene haciendo la ficción
zombi moderna (donde los personajes pueden disparar contra un policía,
un juez o un niño sin la menor consecuencia ética), sino que estos títulos
atribuyen a la propia maquinaria estatal los rasgos de un ente abstracto
capaz de anular y devorar al ciudadano. Los monstruos, parecen decirnos
estas historias, ya no pueden verse ni tocarse, pues forman parte de la
misma estructura social que los alimenta. Así ocurre, por ejemplo, en El
hombre de las sombras (The tall man, Pascal Laugier, 2013).

216
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Ante esto, el fantástico español ha respondido con relatos en los que


no sólo se expresa la desconfianza ante el sistema, sino que se amplia
el discurso a aquellos valores percibidos como tradicionales (ahora en
crisis) a fin de expresar el colapso político y social del contexto en que se
inscriben estas películas: esa sensación de clausurar un periodo histórico
a la que aludíamos antes, esa narrativa del fin. En este sentido, véase, en
tanto tropo simbólico, el tratamiento que se le ha dado al papel de las
fuerzas del orden. Con probabilidad, la escalada de desafección ciudadana
para con estos agentes (policías, bomberos, cuerpos especiales como
los antidisturbios) encuentra su eco en las muchas imágenes difundidas
por los medios de comunicación (y amplificadas después por las redes
sociales) en las que dichas fuerzas aparecen ejecutando alguna actividad
percibida como anti-ciudadana (colaborar con un desahucio, disolver
una acampada etc); sin embargo, existen dos importantes puntos de
inflexión a este respecto: el papel, polémico, que dichas fuerzas llevan a
cabo en acampadas emblemáticas como Sol en Madrid y Plaza Cataluña
en Barcelona, así como en acciones como la denominada “Rodea el
Congreso”, y la manera en que estas fuerzas son instrumentalizadas por la
clase política en la promulgación de la llamada “Ley Mordaza”, donde son
investidas de nuevos poderes a la hora de reprimir la oposición ciudadana.
No es de extrañar que una saga como Rec otorgue, casi por primera
vez en la historia del cine español, un papel cuasi protagonista a un
cuerpo de las fuerzas especiales de asalto, en este caso catalanas. Así,
en la primera película dichas fuerzas son representadas como una
amenaza, tan poderosa, inhumana y sistemática como la que encarnan
los propios zombis (atrincherados en el exterior, los agentes llegan a
disparar contra los protagonistas para impedir que salgan del edificio; de
hecho, Balagueró y Plaza filman a los agentes de forma que desdibujan
sus rostros); por su parte, en la segunda y cuarta entrega dichas fuerzas
se revelan ineficientes a la hora de contener la amenaza, hasta el punto

217
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

de que los mismos agentes, ya contagiados, llegan a formar parte de ella.


Rec mantiene así un vínculo con la narrativa de horror moderno donde la
desconfianza en las instituciones y en los agentes encargados del control y
el orden constituye la regla, no la excepción, como apunta la saga iniciada
por 28 días después (28 Days Later, Danny Boyle, 2002). De acuerdo con
Jordan S. Carroll:
Estas representaciones reflejan el colapso de un
régimen en el que los peligros potenciales están
regulados y asumidos colectivamente por el Estado.
Sin embargo, 28 días después se asentó firmemente
en una sociedad de riesgo en la que las instituciones
públicas son incapaces, cada vez más, de predecir o
asegurarse contra los desastres a los que la película
alude, incluyendo la rápida propagación de la
encefalopatía espongiforme bovina o la pandemia del
SIDA. (CARROLL, 2012)

Retornados es otra película que enfrenta a sus personajes (y a los


espectadores) con un sistema despiadado representado en una fuerzas del
orden filmadas (y despersonalizadas) siempre desde el punto de vista de
sus perseguidores, ciudadanos de a pie. Ficciones seriadas no fantásticas
recientes como Antidisturbios (Rodrigo Sorogoyen, Isabel Peña, 2020) o
Los favoritos de Midas (Mateo Gil, Miguel Barros, 2020), en las que las
fuerzas policiales resultan indistinguibles de las terroristas, apuntalan
esta percepción.
La degradación del sistema expresada por el cine español de género
alcanza también, por supuesto, otros estamentos e instituciones, pero
mantiene siempre en la sombra la idea de España como un Estado
inoperante e incluso cómplice para con las amenazas que se ciernen sobre
la población. De este modo, dos películas de terror que, sin embargo,
prescinden del efecto fantástico como Secuestrados (Miguel Ángel
Vivas, 2010) y Sweet Home (Rafa Martínez, 2015) retratan, por un lado,

218
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

el incremento de la inseguridad ciudadana y la necesidad que tiene esta


de apelar a recursos propios del individualismo más reaccionario para
confrontar esta carencia, y por otro la voracidad con tintes psicopáticos
del mercado inmobiliario español en tanto expresión de la crisis neo-
liberal en la que el país aún sigue inmerso (la película de Martínez narra
el enfrentamiento de una joven pareja con unos matones (a)legales
contratados por una inmobiliaria a fin de desalojar a un anciano de su
casa). De hecho, y a modo de conclusión visual, si tuviéramos que escoger
una imagen que sintetizase el modo en que el moderno cine fantástico
y de terror español ha representado la crisis económica, política y social
en curso esa podría ser la secuencia final de Rec 3: Génesis (Paco Plaza,
2012): en ella, una joven pareja de novios (infestada por un virus zombi
pero todavía en estado humano) es abatida en el día de su boda por las
fuerzas de asalto apostadas a la entrada de los salones donde se celebrara
la ceremonia. Dicho de otra manera: el futuro, encarnado por dos jóvenes
tradicionales a punto de integrarse en un nuevo ciclo vital, es aniquilado
por las mismas fuerzas estatales en principio encargadas de salvaguardar
su seguridad. El Apocalipsis, como nos ha demostrado la reciente crisis
del COVID-19, es un virus que ya operaba en nuestras vidas en forma
metafórica antes de hacerlo en forma real.

Referencias
CARROLL, Jordan. The Aesthetics of Risk and Dawn of the Dead and 28
Days Later, Journal of the Fantastic in the Arts. Disponible en: http://www.
readperiodicals.com/201201/2730413241.html. Acceso en: 20 ene. 2021.
CARROLL, Noël. Filosofía del terror o paradojas del corazón. Madrid: A. Machado
libros, 2005.
CLARENS, Carlos. An Illustrated History of Horror and Science-Fiction Films. New
York: G. P. Putnam’s Sons, 1967.
EISNER, LOTTE. L’écran démoniaque: influence de Max Reinhardt et de
l’expressionisme. Paris: A. Bonne, 1952.

219
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

FASENFEST, David. The Global Crisis and the Politics of Change. Critical
Sociology, v. 36, n. 3, p. 363-368, 2010.
FERNÁNDEZ-SAVATER, Amador. La Cultura de la transición y el nuevo sentido
común. elDiario.es, 14 jun. 2013. Disponible en: http://www.eldiario.es/
interferencias/Cultura_de_la_Transicion-segunda_transicion_6_113798632.
html. Acceso en: 8 ene. 2021.
HIGUERAS FLORES, Rubén. El cine de terror español contemporáneo o el
borrado identitario como garantía de exportación. In: BERTHIER, Nancy; DEL
REY-REGUILLO, Antonia. (Eds.). Cine iberoamericano contemporáneo y géneros
cinematográficos, Valencia: Tirant Humanidades, p. 103-122, 2013.
KEISNER, Jody. Do you want to watch? A study of the visual rhetoric of the
postmodern horror film. Women’s Studies: An inter-disciplinary journal, v. 37,
Issue 4, 2008.
KRACACUER, Siegfried. From Caligari to Hitler: A Psychological History of the
German Film. Princeton: Princeton, 1947.
LÁZARO-REBOLL, Antonio. Spanish horror film. Edinburgh: Edinburgh University
Press, 2012.
LÁZARO-REBOLL, Antonio. Now Playing Everywhere: Spanish Horror Film
in the Marketplace. In: BECK, Jay; RODRÍGUEZ ORTEGA, Vicente (Eds.).
Contemporany Spanish Cinema and Genre. Manchester: Manchester
University Press, p. 65-87, 2008.
LÓPEZ LETÓN, Sandra. La burbuja que embriagó a España. Elpais, 24 oct.
2015. Disponible en: http://economia.elpais.com/economia/2015/10/20/
actualidad/1445359564_057964.html. Acceso en: 3 ene. 2021.
MUÑOZ, Alberto. 100.000 familias perdieron su vivienda habitual en los dos
últimos años. Elmundo. Madrid, 23 jun. 2015. Disponible en: http://www.
elmundo.es/espana/2015/06/23/5588055fe2704e960b8b457a.html. Acceso en:
3 ene. 2021.
MUNTEAN, Nick; PAYNE, Matthew. Attack of the Livid Dead: Recalibrating Terror
in the Post-September 11 Zombie Film. In: SCHOPP, Andrew; HILL, Matthew
B. (Eds.). The War on Terror and American Popular Culture: September 11 and
Beyond. Madison, WI: Fairleigh Dickinson University Press, p. 239-258, 2009.
OLNEY, Ian. Eurohorror. Indiana: Indiana University Press, 2013.

220
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

PÉREZ OCHANDO, Luis. La ideología del miedo: el cine de terror estadounidense,


2001-2011. 2014. Tesis (Doctorado en Història de l’Art) – Facultat de Geografia
i Història, Universitat de València, 2014. Disponible en: https://core.ac.uk/
download/pdf/71019409.pdf. Acceso en: 18 feb. 2021.
PINEDO, Isabel. Recreational Terror: Postmodern elements of the contemporany
horror films. Journal of Film and Video, v. 48, n. ½ (Spring-Summer), p. 17-31,
1996.
PIRIE, David. A Heritage of Horror: The English Gothic Cinema 1946-1972.
London: Gordon Fraser, 1973.
PUEYO, Víctor. Después del fin de la historia: estados de excepción y escenarios
de emergencia en el cine de terror español contemporáneo (2002-2013).
Arizona Journal of Hispanic Cultural Studies, v. 17, p. 29-46, 2013.
PULIDO, Javier. La década de oro del cine de terror español (1967-1976). Madrid:
T&B Editores, 2012.
SÁNCHEZ TRIGOS, Rubén. Lo viejo y lo Nuevo: expresiones de lo gótico en la
tetralogía de los templarios de Amando de Ossorio. Herejía y belleza. Revista de
estudios culturales sobre el movimiento gótico, n. 3, p. 91-108, 2015.
TUDOR, Andrew. From Paranoia to Postmodernism; The horror Movie in Late
Modern Society. In: NEALE, Steve (Ed.). Genre and Contemporary Hollywood.
London: British Film Institute, 2002.
TUDOR, Andrew. Monsters and Mad Scientists: A cultural history of the horror
film. Oxford: Blackwell, 1989.
WILLIS, Andrew. From the margins to the mainstream: trends in recent Spanish
horror Cinema. In: WILLIS, Andrew; LÁZARO-REBOLL, Antonio (Eds.). Spanish
Popular Cinema, Manchester: Manchester University Press, p. 237-249, 2004.
WOOD, Robin. Hollywood from Vietnam to Reagan and Beyond. New York:
Columbia University Press, 2003.

221
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

FUTUROS POST-APOCALÍPTICOS EN EL TEATRO


LATINOAMERICANO: HUGO BOLÓN Y
CAIO FERNANDO ABREU
Elton Honores

El teatro de ciencia ficción sigue siendo un campo muy poco explorado


por los estudios humanísticos, cuya dramaturgia se bifurca entre la
posibilidad de lo utópico y lo distópico. En esta última línea dominante
irrumpen obras de temática apocalíptica (aquellas que tratan el momento
previo al fin del mundo) y las post-apocalípticas, narradas y representadas
desde un lugar posterior al fin del mundo, a la catástrofe global, y supone
la sobrevivencia humana como una práctica imperativa. Este fin de la
humanidad puede ser provocado por diversos factores: a) humanos (III
Guerra Mundial, contaminación industrial, ataque bacteriológico etc.);
b) naturales (terremotos, caída de un meteorito, calentamiento global,
desastres ecológicos; pero también cabe la posibilidad de ser provocados
como consecuencia colateral de la agencia humana); c) no-humanos
(invasión alienígena); o d) bíblico (el Armagedón). Los tres primeros han
sido dominantes dentro de la distopía. En la dramaturgia latinoamericana
y en el teatro, el futuro porvenir ha sido representado como amenaza
inminente, de allí su condición apocalíptica o post-apocalíptica. Entre
fines de los años 50 y mediados de los 60 se dan dos casos pioneros en
el Rio de la Plata, y en particular en Uruguay con Luis Novas Terra y su
M.M.Q.H (1958), una alegoría humorística que remite a la catástrofe
nuclear y la fundación de un nuevo mundo de claras connotaciones
bíblicas; y sobre todo Hugo Bolón con Water 2000 (1966), propiamente de

222
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

tema post-apocalíptico. Conforme se instalen las dictaduras militares en


Latinoamérica en los años 60 y 70, el teatro distópico y post-apocalíptico
será más frecuente, como es el caso de Zona contaminada (1997) del
brasileño Caio Fernando Abreu.

Water 2000 (1966) de Hugo Bolón


Hugo Bolón (Montevideo, 1926-2006) fue un dramaturgo vinculado
al Teatro El Galpón, del que fue fundador. Entre sus obras se destacan
Historia de dos ladrones (1955), Ramon’s Bar (1964), Montevideo desde un
satélite (1965), Una isla chiquita y lejana llamada Australia (1966), El puerto
(1966), Water 2000 (1966), Acuario (1967). Water 2000 se estrenó el 16 de
julio en la Institución Teatral El Galpón. En una nota de la revista Marcha
del 15 de julio se menciona que esta pieza fue discutida en el “Seminario
de Autores”, lo que le da una dimensión dialéctica y de trabajo escritural
brechtiano. Para el propio Bolón se trata de “una farsa violenta, casi un
guiñol, que destierra los elementos naturalistas y distorsiona la realidad
[y realiza] una crítica al capitalismo, a través de un grupo de personajes
enfrentados al fin del mundo” (1966, p. 26). Como agrega el autor de la
nota la paradoja es clara: “el apocalipsis de marras [viene] provocado
por la escasez de agua y el que sus personajes, grandes industriales, se
dediquen a la fabricación de artefactos para cuartos de baño” (1966,
p. 2). Una semana después, Gerardo Fernández en “Los caminos de la
dramaturg[i]a nacional” realiza una crítica sobre su puesta en escena
[t]écnica y dramáticamente, Water 2000 acusa una
pobreza de recursos que no casa con sus ambiciones.
La crítica al capitalismo que propone, oscila entre el
simbolismo de trazo grueso (la clase dominante decrépita
y maloliente que encarna Hugo el Embalsamado), lo
ingenuo y lo abstruso […] carece, respectivamente de
un humor que trascienda el estremecimiento, entre
divertido y nervioso de la platea ante el uso frecuente

223
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

de “malas” palabras. Y de una cualidad de grotesquería


a la vez deleitosa y repulsiva que distingue a Goya o a
Valle Inclán. (1966, p. 26)

A pesar de cierto carácter “ininteligible” según el crítico, concluye que


es posible que Water 2000, con su competente dirección y ambientación
plástica se convierta en referente obligatorio para el nuevo teatro
uruguayo, que va apartándose del realismo costumbrista.
En una ficha de trabajo sobre Water 2000 que forma parte del archivo
“Critical Index of Uruguayan Theater” elaborado por Graciela Míguez y
Abril Trigo (1976-1980), disponible en línea en The Ohio State University,
se lee sobre los aspectos formales, que la obra está
[…] impregnada de surrealismo que deviene
directamente del teatro del absurdo (Jarry), y
estructuralmente se aproxima a Brecht. A diferencia
de Heroica de Buenos Aires del argentino Dragún,
predomina más el absurdo que la nota brechtiana.
La idea central, la temática y el argumento son
interesantes, pero su ubicación en un clima de seudo
ciencia-ficción le quita fuerza, si bien plásticamente
posibilita una puesta interesante. Pero la obra es floja,
porque la sátira no es suficiente.

Y en cuanto al contenido de Water 2000 se sostiene que


[e]l punto de vista es el de un pequeñoburgués, que
hace una gran sátira mostrativa de prácticamente toda
la estructura de la sociedad capitalista y los mecanismos
que la mueven, sin profundizar en nada, vomitando
esquemón tras esquemón. Lógicamente, no era esta
problemática la que importaba al pueblo en general,
sino tan solo a ciertos sectores de pequeño burgueses:
estudiantes, intelectuales, etc.1 (énfasis nuestra)

1 Disponible en: https://kb.osu.edu/bitstream/handle/1811/36396/Bolon_Hugo.html.


Acceso en: 9 mar. 2021.

224
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Llama la atención que ambos lectores resten potencia per se al


carácter cienciaficcional o anticipatorio de la pieza, y que duden que el
develamiento “simbólico” de las estructuras del capitalismo sea solo de
interés a ciertos sectores minoritarios e ilustrados de la sociedad. En
otras palabras, demandan una obra más anclada en el realismo social
costumbrista como paradigma estético dominante.
Claudio Paolini ofrece una lectura más moderna de la obra2
vinculándola tanto al absurdo como al grotesco, dentro del contexto
sociopolítico del país, que se hallaba
bajo los efectos de la precariedad y transitoriedad de las
relaciones humanas, y por la desregulación y liberalización
de los mercados. Un ambiente, entonces desfigurado por
prácticas relacionadas con la decadencia de los valores,
y como consecuencia de esta, con el consumismo y el
autoritarismo: acciones que la obra se propone denunciar
a través de su parodización (2014, p. 85)

Dividida en 8 escenas, Water 2000 puede considerarse como parte


de la vanguardia artística de los años 60 al sugerir una música incidental
disonante y ambientación “op art”3. En esa línea, dentro del campo
artístico local destacó Óscar Jorge Caraballo (1941-2014), pionero del art
óptico cinético, cuyas primeras muestras colectivas empezarán en 1968 4
y a Teresa Vila (1931-2009), quien trabajó también como escenógrafa
(1958-1960), además de pionera del happening como la presentada en
el Club de Teatro de Montevideo, en julio de 19665.

2 Paolini registra otras reseñas a Water 2000 de Tabaré J Freire, las firmadas con las
iniciales C. T. y J. C. C. y una cuarta sin firma, a las que no hemos podido acceder.
3 Los encargados de la escenografía fueron Carmen Prieto (arquitecta, escenógrafa y
vestuarista), Jorge Carrozzino (pintor, diseñador gráfico y escenógrafo) – ambos contraerán
matrimonio en 1966 – y el escenógrafo Mario Galup. Para la música lo hizo Leonel Hainintz,
seudónimo de Coriún Aharonián.
4 Disponible en: http://mnav.gub.uy/m.php?a=564. Acceso en: 16 mar. 2021.
5 Disponible en: https://graffica.info/montevideo-arte-conceptual/. Acceso en: 16 mar. 2021.

225
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Las acotaciones del autor de una decoración “op art” – término


popularizado por la revista Time en 1964 – permite ubicar a Water 2000
dentro de las obras más modernas y de experimentación presentadas
en Montevideo. La ambientación sonora recuerda los experimentos de
vanguardia de John Cage. Las acotaciones indican:
Un amplificador emite boletines bursátiles acompañados
por una música extraña, compuesta por sonidos
deshilvanados, entre los que se identifican saxo, timbal,
maullidos de gato, tambor, truenos, agua que corre,
alaridos de persona aterrorizada, etc. (1966, p. 15)

Es decir, sonidos producidos por instrumentos convencionales, por


sonidos de la naturaleza animal y por máquinas disonantes. Si bien
mantiene la estructura teatral convencional hay cierto aire provocador
hacia el espectador, tanto por el uso de “malas palabras” (o los
constantes insultos de Hugo hacia su junta de directores llamándolos
“eunucos”) como por el develamiento de la clase social dominante con
gran poder económico.
La obra está ambientada en el año 2,000 y propone un escenario
distópico en el que el planeta se encuentra al borde del colapso global
debido al aumento de la sequía universal, la contaminación del agua
provocado por el “estroncio flora” y a una mayor escasez de agua potable.
En ese contexto, el personaje central es Hugo el embalsamado, dueño
de la empresa “Consola”, que fabrica inodoros. Él es una especie de
transhumano ya que a través de diversas prótesis (silla rodante que le
permite movilidad, un aparato auditivo para oír mejor, tubos que permiten
ingerir el suero fisiológico ya que carece de estómago, cable rojos y azules
conectados a una pila eléctrica, y necesita de inyecciones “imperiales”)
estas han prolongado su vida sexual y empresarial, y por ende la de su
clase social. Su único objeto es llenar el cofre de la plusvalía, es decir el
excedente monetario de la fuerza laboral de sus empleados. El poder de

226
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Hugo es equiparable al del propio Presidente de la República ya que en


los momentos de mayor crisis social exige la presencia de los ministros de
Estado e incluso da un mensaje a la nación a través de las ondas de radio.
En términos políticos Hugo estará asociado al Partido Colorado fundado
en 1836, de corte conservador y de derecha. En la escena III se produce
este diálogo clave:
Dervy: […] Ahora las pastillas de goma, las gotas
cuadradas y el remedio colorado.
Hugo: No quiero el remedio colorado; me da pesadillas.
Sueño que no tengo brazos y que me faltan las piernas.
Sueño que soy un tronco.
Dervy: Pero jefe, si no toma el remedio colorado le
viene la Epilepsia sin retorno […] (p. 27)

Así como Hugo se alimenta de “gelatinas con un bichito vivo que


patalea adentro” (p. 32) acepta al final el remedio colorado para evitar
la inyección imperial. En 1966 se realizó en Uruguay una reforma
constitucional que entraría en vigencia al año siguiente, que dejaba de lado
el anterior Consejo Nacional de Gobierno por la figura del jefe de Estado.
Así esta formación de poder político se extrapola a la figura de Hugo y
su junta de directores, de allí las alusiones a su poder como “Presidente”
empresario –una fórmula bastante común en América Latina que parte de
la idea que el manejo del Estado es semejante al de una empresa – y las
prebendas que obtiene del propio aparato estatal en periodos de crisis,
al obtener un préstamo a las “Industrias de Salvación Nacional” (p. 41),
lo que resulta una ridiculez entendiendo que una empresa dedicada a la
fabricación de inodoros no podría ser una industria que genere, a corto o
mediano plazo, el desarrollo de la economía local. Los contubernios con
el Estado permiten también derogar la Constitución y decretar el Estado
de Sitio (p. 42).
Ese mundo del futuro ha sido absorbido por la publicidad. Como
sostiene Rolando el fotogénico: “la propaganda ha hecho al mundo a su

227
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

imagen y semejanza” (p. 21), es decir, la función del publicista se asemeja


a la del propio Dios. El discurso publicitario será criticado a través de
la ironía. En diversas escenas los murales de la empresa cambian. En la
escena I se lee en las acotaciones “un mural de grandes proporciones, con
un gigantesco water closet del que surge delicadamente una flor” (p. 15),
en la escena II “una elegante y estilizada modelo envuelta en pieles que
posa junto a una consola” (p. 20), en la escena III “una pareja de simpáticos
novios que se besan con sano optimismo como cruzando sus bocas sobre
una consola” (p. 26), en la escena IV, “una partida de ajedrez. Un jugador
le da jaque mate a su compañero. El tablero está colocado sobre un
consola” (p. 33), en la escena V, “una serie de botellas de bebidas muy
finas, cigarrillos, etc. junto a todo eso, un consola” (p. 43). Los conceptos
que proponen serán, respectivamente, delicadeza, distinción, intimidad,
superioridad y buen gusto. Si bien es clara la artificialidad de las imágenes
propuestas (por ejemplo, ¿qué mujer posaría en pieles junto a un water,
o quién jugaría ajedrez sobre este?, aunque con los actuales influencers
o youtubers es más que posible) la idea de poner al inodoro como objeto
central de la acción dramática tiene parentesco con el urinario “La fuente”
(1917) de Marcel Duchamp que descoloca al espectador al resemantizar
el objeto ordinario y darle una nueva función artística, o Psycho (1960) de
Hitchcock, que como sabemos fue la primera película en la que un inodoro
apareció en el cine y cuya presencia anómala en la pantalla anuncia ya el
entorno siniestro de lo que acontecerá en la mítica escena del asesinato
en la ducha.
Para tener una idea del discurso publicitario en la vida cotidiana, se
inserta una especie de jingle cantado por Margarita la mimosa, amante
de Hugo, quien canta y baila: “La vida era muy triste – aunque nada me
faltaba – el mundo sin razón giraba –sin decirme porqué existe. Ahora
sé que soy feliz – y la vida se acrisola –o porque ya en todo el país – ¡Hay
Consola, hay Consola! – Consola. (Dirigiéndose al público) Hola, hola…

228
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

¿usted no tiene consola?” (p. 33). La ruptura de la cuarta pared permite


interpelar al espectador sobre aquello que acontece sobre el escenario6.
Para Hugo el embalsamado, el contexto de la crisis es ideal para
aumentar las ventas de su producto. Alberto el vicioso, quien tiene
como tic personal la frase “Tome Coca Cola”, sostiene: “El mercado está
saturado, la gente no tiene plata. Hay crisis, hambre, enfermedades,
desocupación… Según la School of World Management, es la situación
ideal para largar un producto de los llamados suntuarios y superfluos”
(p. 22). La crisis social será una oportunidad para ampliar el negocio, una
“industria vital para el subdesarrollo del país” (p. 24). Así es necesario
“explotar el sentimiento patriótico y la solidaridad humana” (p. 32).
La crisis se va extendiendo más,
la lista de muertos en todo el mundo, crece y crece
[…] Muertos de sed, muertos de hambre, muertos
en avalanchas, muertos por gangrena y peste negra,
muertos de tos… […] Los boletines dicen que la gente
que tiene la mala suerte de seguir con vida, enloquece,
se vuelve agresiva, peligrosa (p. 33-34)

dice Dervy el caprichoso. La turba asalta y roba el agua del río Santa Lucía,
que había sido comprado por Hugo en ese contexto. Frente a este caos
el argumento del personaje central será el de “defender el patrimonio
nacional, la economía del país, las instituciones democráticas…” (p. 35).
Llama la atención la lucidez temprana del autor en criticar el capitalismo
(como sostienen los primeros reseñadores), pero sobre todo a la
democracia. En su mensaje radial vuelve a aparecer esta misma idea:

6 De otro lado, hay que considerar que la publicidad real de la época en torno a los
objetos de baño construye la imagen de una mujer sensual en posición manierista para
la mirada masculina, y el narcisismo femenino que se mira a sí misma como bella joven
y perfecta, tal como se puede apreciar en la gráfica de empresa española Roca de 1936
o 1969. Disponible en: https://antiguosanunciosdeantes.blogspot.com/2019/10/roca-
calefaccion-52-anuncios.html.

229
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Alberto: Diga que estamos defendiendo la democracia


Hugo: Alberto el Vicioso dice que estamos defendiendo
la democracia (p. 44)

En realidad Hugo solo defiende sus propios intereses, sobre la


base de un sistema político que les permite enriquecerse ad infinitum.
Entonces la verdadera distopía no es tanto la escasez de agua sino, en
última instancia, el capitalismo y la democracia, acaso el peor de los
escenarios posibles. La crisis se agrava más, lo que lleva a una revolución
popular “¡La gente está enloquecida, es una revolución! […] ¡Las turbas
están en las calles incendiando todo!” dice Alberto. Hugo solo pide
que llamen a los ministros, a los marines. La injerencia de los Estados
Unidos es clara, ya que se menciona también la importancia de las
recomendaciones de la School (p. 54), o las capuchas del Ku Klux Klan
recién recibidas de USA (p. 56).
La alienación se propaga también mediante la televisión. La escena
VI es el caos apocalíptico. Las acotaciones sostienen “De noche. Una
calle iluminada por el resplandor de los incendios. Gritos de gentes y
animales que tratan de abrirse paso por todas las direcciones” (p. 50).
Frente a Rolando y Alberto, directores de la empresa que han logrado
huir de la fábrica caminan sobre una multitud de sapos, como una nueva
plaga, mientras en una TV se anuncian el horóscopo y dos vendedores de
salchichas Frankfurters los reconocen y quieren comprar el “plan familiar”
de la empresa. “Somos consolistas” (p. 51), afirman, como si fuera una
especie de partido político. De otro lado esta modernidad deshumanizante
va apropiándose de todo, deja la tradición para dar paso a lo moderno:
“Aparece un compadrito con una guitarra […] y canta algunas estrofas de
tango. Enseguida es desplazado por un jovencito que se menea y entona
un twist” (p. 55).
La escena VII transcurre en un cementerio. Hugo y Dervy han logrado
escapar de la turba revolucionaria gracias a que han logrado ocultar sus

230
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

identidades. Hugo lleva una peluca de mujer y Dervy va vestido de Pierrot.


Este ejercicio de travestismo es también político, mientras “¡Montevideo
arde por los cinco costados!” (p. 57). Pero hay un punto ambiguo sobre si
acaso el colapso es solo en la parte occidental y capitalista:
Dervy: No hay cifras de muertos. Sin noticias de treinta
y cuatro países, ciento setenta ciudades en llamas. Toda
la gente que emigró al Polo Norte y al Polo Sur, murió de
frío y de Estroncio Flora.
Hugo: ¿Y los rusos? ¿Qué hacen esos hijos de puta que
están tan callados?
Dervy: No se sabe. Lo único que hay es un mensaje del
Papa desde Moscú (p. 64)

¿Sobreviven los rusos? ¿Qué hace el Papa en Moscú? En ese momento


no queda claro de si están vivos. En el cementerio se encuentra también
una empleada, Josefina la Bruja, responsable de la fabricación de “cañitos
traseros en ese”, ahora convertida en cocinera. Tras alimentarse los
personajes dialogan
Alberto […] Tome Coca Cola.
Dervy (Quitándose la servilleta): Muy buena comida,
realmente muy buena. Pero… ¿dónde consiguió carne
aquí en el cementerio? (p. 65)

Queda claro el componente grotesco de la escena: Hugo es mezcla


de dos órdenes entre lo humano y lo tecnológico, está travestido;
mientras es claro que se ha producido un acto de canibalismo, en el
que se ha roto el límite de lo humano y de lo ético. La escena concluye
con el cementerio invadido por la turba que viene cantando el jingle de
Consola, son “los que vienen a enterrase solos”, añade Josefina. Ese es el
momento de declive y ocaso de toda la civilización terrestre.
En la última escena, la VIII, la situación es propiamente post-
apocalíptica y ocurre en la Isla de Flores. Si bien la isla – como lugar
cerrado y aislado – está asociada a lo utópico, en este caso es el último

231
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

reducto humano (del capitalismo) a los que han llegado Dervy, Alberto
y Josefina y visten harapos y llevan tres días sin beber agua. También
tienen la computadora electrónica. Josefina asume momentáneamente
el liderazgo para repartirse el dinero del cofre y de refundar la empresa
con dinero del Estado “usaremos mano de obra barata. Sobrará carne
de cañón después de la Sequía Universal” (p. 69). Ella piensa que en
algún lugar del planeta todavía hay sobrevivientes a quienes seguirán
explotando. Pero la voz de la computadora anuncia la catástrofe: “Sin
señales de vida en todo el planeta. Información verificada por todas las
computadoras en circuito espacial. ¡Atención! Información verificada por
todas las computadoras en circuito espacial. Sin señales de vida en todo
el planeta” (p. 71). Luego se escucha un ruido y como un sobreviviente
más aparece Hugo, quien mata a Josefina inyectándole ácido de baterías
y luego a Dervy y Alberto al darles de beber agua con estroncio flora. Al
final Hugo viene a ser el último humano vivo que cumple con tener su
objeto de deseo: el cofre, pero le sobreviene la Epilepsia sin Retorno y
muere abrazado al cofre. Luego de un silencio la máquina –como único
testigo del fin de la humanidad- anuncia:
¡Atención! ¡Atención! Habla la computadora electrónica.
Información verificada por todas las estaciones
espaciales. ¡Atención a la información! Llueve en todo
el planeta. Llueve en todo el planeta. Lloverá por mucho
tiempo, por mucho tiempo, por mucho tiempo… (p. 77).

La ironía no puede ser mayor cuando lo último que suena en el


planeta ya sin habitantes es una canción titulada “No me digas nunca
que es tarde” en el que se canta “[…] Adán y Eva/ tú y yo muy solos/
volveremos a empezar/ Aunque todo se haya muerto […]” (p. 77). Es
decir, la idea final de Water 2000 es la de un tiempo cíclico y mítico por
la presencia de la pareja primordial que volverá a habitar el planeta,
para construir una civilización que progresará nuevamente hacia un final
previsible y apocalíptico.

232
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Zona contaminada (1997) de Caio Fernando Abreu


Caio Fernando Abreu (Rio Grande do Sul, 1948-Porto Alegre, 1996) fue un
periodista, narrador y dramaturgo brasileño. Su obra se ubica principalmente
entre la década de los años 70 y 80, periodo en el que el autor se autoexilió
en Europa. Zona Contaminada7 se publicó en el compilatorio póstumo Teatro
Completo, pero la fecha de escritura de la primera versión data de 1978 y la
última en 19938. Es decir, fue un texto que el autor reescribió con especial
interés9. La pieza final está compuesta por un solo acto y veinte escenas. Si bien
es considerada por Abreu como comedia negra, da espacio al director para
construirla también como un espectáculo alucinado.
La obra presenta un mundo post-apocalíptico en el que el planeta ha
sido destruido por una catástrofe atómica que provoca luego una gran
peste. Trece años después de la hecatombe, en ese mundo lleno de nubes
radiactivas y en ruinas, sobreviven Vera y Carmem, denominadas como
las “Sisters salvadoras”, y únicas mujeres sobre el planeta que pueden
aún procrear. Ellas serán perseguidas por la Comisaría del Poder Central,
una especie de fuerza fascista y totalitaria que busca repoblar el planeta
y requiere de ambas para que cumplan la función de nuevas madres de
la humanidad, de nuevas “Evas”. Tanto Vera como Carmem huyen porque
se niegan a ser parte de ese nuevo orden social y menos aún engendrar a
los nuevos hombres. La amenaza es que estos sean una nueva especie de
mutantes o monstruos. Los sobrevivientes poseen un número de identidad,
al modo de la distopía Nosotros (1924) de Yevgueni Zamiatin. Si bien la obra
hace mención a la amenaza nuclear propia de la Guerra Fría, este “Poder
Central” refiere, además, a la dictadura militar por la que atravesó Brasil
desde 1964 a 1985.

7 Todas las citas aluden a la edición epub del libro.


8 Al respecto puede consultarse el trabajo de Mara Lúcia Barbosa Da Silva (2009).
9 En 2007 hubo una puesta en escena de la obra, con la adaptación y dirección de
Antonio Marques con el Grupo de Teatro Arte Sintonia.

233
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

La obra – según las acotaciones – se divide en varios planos de


realidad, al modo de las experimentaciones de Nelson Rodrigues en
Vestido de Noiva (1943). En el caso de la pieza de Abreu hay cuatro
planos: el plano real (o de la realidad) en el que acontecen las acciones
en tiempo real; el plano de medios (en alusión a los mass media) que
alude a la voz del D. J. Nostradamus Pereira (acompañado de su “coro
de contaminados”), que trasmite por radio las acciones de búsqueda
de las “Sisters salvadoras” por parte del Poder Central; el plano de la
nostalgia (que alude al pasado, en relación a Carmem y Mr. Nostálgico,
principalmente); y el plano alfa (con alusión a lo sexual, en relación a Vera
y el hombre de Calmaritá). En ese punto, la obra es compleja en cuanto a
lo largo de la obra los planos se activan con el objeto de representar
una realidad humana múltiple, que incluye tanto las acciones concretas
como los pensamientos, recuerdos y fantasías.
Las hermanas encarnan valores contrapuestos. Vera, es descrita por
Abreu como guerrillera – una especie de Tamara Bunke10 – de cabello
corto, con fusil y de estilo cowboy. Carmem, en cambio, lleva ropa de tul
y seda, visualmente de estilo prerrafaelita y gótica, en sentido de muerta-
viva, con cabello largo y suelto. Ambas son fuerzas contrapuestas: Vera es
la materia y la fuerza, mientras que Carmem es el espíritu y el idealismo.
En términos simbólicos, Vera es también metáfora de la fuerza militar
que se resiste a subyugarse frente a un Poder Central fascista, mientras
que Carmem puede metaforizar el miedo de la religión frente al ateísmo.
Conforme avance la trama Vera recuperará la fe y la esperanza y Carmem
se volverá pesimista y suicida.
El escenario es también gótico en cuanto a que la acción principal
transcurre en una tienda funeraria, que contiene todos los elementos
propios de ese servicio. Las acotaciones también abren la posibilidad de

10 Estuvo en Bolivia con el Ejército de Liberación Nacional (1966-1967) liderado por


Ernesto “Che” Guevara.

234
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

ofrecer una puesta en la cual, las escenas de cada plano ocurran de modo
simultáneo (dependiendo del tipo de teatro), en el que el espectador
estaría “cercado” por estos planos. De otro lado, para el plano de medios
sugiere Abreu como posible decorado
un telón, exhibiendo eventualmente escenas de Grandes
Catástrofes o calles desiertas, montañas de basura. El
director queda libre para enloquecer, de los horrores
de los campos de concentración nazis, pasando por
la Talidomida, explosiones nucleares (un buen hongo
atómico), los virus ampliados (como el VIH), las flores
carnívoras, etc. (p. 31, traducción nuestra)

Quizás los referentes inmediatos para el espacio cerrado asediado –


del plano real – por el Poder Central sean Assault on Precinct 13 (1976)
de John Carpenter y sobre todo Dawn of the Dead (1978) de George
A. Romero: una comisaria y un centro comercial, respectivamente. Y
no deja de ser simbólico que el último reducto de lo humano sea una
funeraria, un espacio de muerte, porque en el fondo, a eso ha sido
reducida la vida cotidiana.
Las dos primeras escenas presentan a Vera y al hombre de Calmaritá
– en el plano alfa – y su primer encuentro, que no deja de tener claros
visos de violencia sexual, a la vez de cierta impunidad, cuando el hombre
– mientras Vera grita y lucha por librarse de él – toma unos guantes de
goma y comienza a lubricarlos. Se trata del anuncio de la lujuria y de los
fluidos corporales, pero también de una asepsia (para evitar cualquier tipo
de contaminación) y un acto de no dejar huellas ni rastros. En la escena
tres, Vera despierta como si todo lo anterior hubiese sido una fantasía.
Vera encarna el realismo pesimista, odia estar viva en el aquí y ahora,
y Carmem el optimismo desbordado – a pesar de dormir en un cajón de
muerto, para habituarse a la idea de la muerte. Dado que saben que son
perseguidas por el Poder Central, Vera reafirma que “si ellos me atrapasen

235
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

yo no diré nada. Pueden matarme o contaminar, o algo peor, pero yo no


digo nada” (p. 32, traducción nuestra). Esta mención es importante para
confirmar el valor y la ética de Vera, que como veremos está por encima del
de los hombres. En ese punto Vera agrega que los contaminados “ninguno
resiste mucho tiempo. La última vez solo vi unos dos o tres escondidos en
un callejón. Amontonados en el suelo, enredados en trapos, hediondos,
llenos de pus. Parecían unos perros sarnosos” (p. 32, traducción nuetra).
Son imágenes de pobreza y de miseria humana sin solución inmediata.
Para Vera la única luz sobre el planeta es aquella “diabólica que mata a las
malditas criaturas que insisten en continuar vivas, inclusive nosotras” (p.
33, traducción nuestra).
La relación entre Vera y el hombre de Calmaritá carece de futuro.
Se inicia, como decíamos, con un encuentro entre lujurioso y cercano
a la violación para luego centrarse en lo puramente sexual. Frente a la
inminente extinción de la raza humana solo queda el goce. Si bien Vera
tiene un amante real, ello no ocurre con Carmem, quien está acompañada
por un hombre imaginario. En la escena 10, Carmem, en una operación
brechtiana, rompe la cuarta pared con el objeto de interpelar al público
sobre su condición:
Carmen: (saliendo del cajón) ¿No había una fiesta? ¿A
dónde se fue todo el mundo? Todos siempre me dejan
sola, hasta Vera. Ella tiene una vida fuera de aquí, ve las
cosas de la calle. Yo no tengo nada. (Mirando al propio
escenario, los spots, la audiencia.) Sólo esta caja negra.
Estoy encerrada dentro de esta caja negra, rodeada
por ojos fosforescentes que observan cada uno de mis
movimientos desde el fondo de la oscuridad. Observan,
juzgan, critican. Y esperan. (A la audiencia.) ¿Qué esperan
de mí? Yo no tengo ninguna sugerencia que hacer para
mejorar tu vida. No tengo nada. (En otro tono.) No es
justo. Ellos saben todo sobre mí, vigilan cada uno de mis
pasos. Y no sé nada de ellos. No conozco sus caras, nunca

236
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

vi sus cuerpos. Apenas sé que sus ojos siempre están


allí, siempre aquí, a mi alrededor. Sina, hado, destino,
Karma. ¡Ay de mí, mortal y salvaje! (Busca algo dentro
del ataúd.) Tal vez sin ellos yo ni existo. Ni siquiera esta
existencia de mierda. Pero lo mejor que puedes hacer
es cantar mientras el tiempo no pasa. Canta y danzar,
esa es la única forma de vencer al fin del mundo. ¿Quién
realmente dijo eso? Oh, no importa, lo olvidé, lo olvidé
todo […]. (p. 37-38, traducción nuestra)

Esta sensación de ser observado cumple dos funciones. Por un lado,


interpela al público inmediato que asiste a la representación obre lo
que acontece; de otro lado, alude al acoso y persecución que sufre un
individuo por parte de un sistema opresor, fascista e invisible, al modo del
“Big Brother” de 1984 escrito por Orwell.
Frente a ello, la única posibilidad de salir del Poder Central es llegar hacia
un lugar utópico, en este caso se trata de “Calmaritá”, tal como le dice el
hombre a Vera, respecto a si existe un lugar más allá de la zona contaminada:
Esto es lo que ellos dicen. Lo que ellos quieren que la
gente crea, porque no le interesa al Poder Central que
todos salgan en busca de otra cosa. Quieren que todos
piensen que todo comienza, pasa y termina aquí. Solo
aquí, dentro de la Zona Contaminada. (Pausa.) Pero
conozco otro sitio. (p. 38, traducción nuestra)

Si pensamos en el contexto de producción queda claro que el Poder


Central (la dictadura militar) niega cualquier espacio o posibilidad de lo
utópico, quiere recluir el libre pensamiento de los ciudadanos para que no
puedan imaginar la posibilidad de sociedad futura, porque esta distopía
(y sus otras formas como el capitalismo tardío, o la democracia) será el
único lugar posible. El hombre continúa con sus alegatos respecto de la
existencia de este locus utópico, que no está contaminado y que más bien
“Está prohibido de hablar de ese lugar, más este existe” (p. 38, traducción
nuestra). Ese lugar

237
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Está al norte de aquí, no lejos, en las tierras altas.


Y un valle al borde del último río de aguas limpias.
Está un poco escondido, nadie lo ve desde lejos, sólo
aquellos que saben que existe pueden encontrarlo.
Quien no sabe, aun acercándose no ve cosa alguna,
solo un agujero oscuro. Y se pierde en medio del
camino, es destruido por los contaminados, devorado
por los animales mutantes, las plantas caníbales. No
hay mucha gente ahí. Una treintena de personas, pero
casi todos los días llega gente nueva, traída por uno de
nosotros. Gente como tú, como yo, gente que alguna
razón logró escapar de las mutaciones. ¿O piensas
que tú y tu hermana son las únicas sobrevivientes de
la Gran Catástrofe? No, no son. Hay otros, además
de ustedes, además de mí. Nosotros necesitamos
unirnos, necesitamos reproducirnos y fortalecernos
para el futuro por venir. Un mundo nuevo, Vera. Un
mundo mucho mejor que el que conocíamos antes de
la Gran Catástrofe. Venga, ven conmigo a las Tierras de
Calmaritá. Trae a tu hermana. Si nosotros salimos justo
después del atardecer, alrededor de la medianoche
llegaremos allí. (p. 40-41, traducción nuestra)

Este lugar se convierte en el objeto de deseo de Vera, más aún


porque como adelanta después a Carmem, está embarazada del hombre.
Esta nueva condición promueve un cambio radical en Vera, quien busca
seguir sobreviviendo
VERA: Sé lo que dije: si dependía de mí, la humanidad
puede terminar, ¿no fue eso? Pues cambié de idea.
(Acariciando el vientre.) Desde que empecé a sentir la
presencia de otra cosa más aquí, en ese mismo lugar
donde antes solo había lujuria y hambre. Una tercera
cosa, diferente a las otras dos. Ahora ya no es solo un
agujero voraz, furioso, insaciable. No sé explicar. Esta
cosa nueva dentro de mí me da como una especie de...
¿qué era esa cosa antigua que la gente sentía cuando
creía en alguna cosa?

238
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

CARMEM: ¿Fe? Dios mío, Vera, ¿tú estás sintiendo fe?


VERA: Podría ser. Fe. Eso es. (p. 41, traducción nuestra)

Así, se irá invirtiendo los valores, Vera pasa a creer, mientras que
Carmem entra en un pesimismo sin retorno, ya que como le dice Carmem,
ella no tiene a nadie. Esto se agrava aún más cuando el hombre sea
capturado y confiese la ubicación de las “Sisters salvadoras” en la tienda
funeraria. El D. J. Nostradamus Pereira anuncia por la radio la inminente
captura de las hermanas:
Batallones armados hasta los dientes sobrantes ya
rodean el lugar. Si es verdad lo que afirma el semental,
no habrá fuga posible para las Hermanas. Y si no, se
rascarán las heridas allí, que un día será. Mientras la
funeraria está rodeada, mantén la voz de la tía Jagger,
muerta en el Gran Catástrofe, en el hit más expresivo
del siglo pasado: ¡Sa-tis-fa-ti-on! Hoy más que nunca,
aunque muerta, la tía tenía razón: ¡nadie consigue
estar satisfecho! (La voz de Mick Jagger, y el Coro
de Acompaña contaminado, muy animado). (p. 43,
traducción nuestra)

La alusión a la canción de los Rolling Stone es clave si establecemos


la relación con el capitalismo, que ofrece productos para el consumo
inagotables, así como diferentes estilos de vida, pero que en ningún caso
se llega a establecer una correlación de felicidad frente a estos bienes
materiales o formas de vida. Ya sea en pleno auge del capitalismo o en
un estado postapocalíptico, para los que gobiernan y tienen poder, la
felicidad debe de ser siempre incompleta para los ciudadanos.
En la última escena, Carmem decide quedarse en la tienda funeraria,
en donde buscará la purificación a través del fuego, es decir, se prenderá
fuego a sí misma, descartando huir junto a Vera hacia Calmaritá, “mi lugar
es aquí” (p. 44), afirma. Vera en cambio, decidida ya en huir sola hacia
la utopía. El hombre que las ha delatado permanece crucificado con una

239
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

corona de espinas en la cabeza, como una forma clara y directa de aludir


a la imagen de Jesucristo en la cruz, incluso se dirige hacia sus padres
ausentes preguntándose porqué le han abandonado, mientras termina
por bendecir a Vera. Esta nuevamente rompe con la ilusión de realidad de
la representación e interpela al público:
VERA (Mientras Carmem habla, sale gritando por la
platea, desvariada, sacudiendo a los espectadores.):
¡La salida, yo sé que hay una salida! Él me dio el mapa,
tengo el mapa. Yo tengo que llegar allá. Necesito salvar
a mi hijo. Sé que hay otro lugar. La salida, Dios mío,
¿dónde está la salida? Dime ¡dónde está la salida! (p. 45,
traducción nuestra)

Nuevamente el recurso brechtiano sirve para confrontar y para


agudizar la situación de crisis. La última imagen de la obra se presenta
a través de la voz de Nostradamus Pereira, quien ordena perseguir a Vera.
Carmen, sentada en posición de loto con una vela encendida es rodeada
por el coro de los contaminados. Previamente ha derramado gasolina
por todo el piso. Mientras a lo lejos las voces de Vera huyendo y de
Nostradamus que la persigue se van haciendo más distantes, mientras
la vela finalmente se apaga. Es decir, podemos deducir la muerte de
Carmem, autoinmolada y sin aparente alternativa de escape frente al
escenario postapocalíptico; y el de Vera que seguirá siendo perseguida
por el Poder Central. El final abierto permite pensar tanto en que será
finalmente atrapada, como en lograr la huida hacia la utopía. Abreu
construye así alegorías de una situación política que vivió Brasil. A esta
se suma Nostradamus como metáfora de los medios de comunicación
que apoyaron a la dictadura militar y el hombre de Calmaritá, que
encarna al pueblo torturado y asesinado por toda fuerza fascista (y
que también reproduce parcialmente otras formas de violencia, por
ejemplo con Vera).

240
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Conclusiones
Las piezas de Bolón y Abreu confrontan su realidad político-social
y logran representarla en el plano de la ficción teatral. Ambas utilizan el
recurso brechtiano de la ruptura de la cuarta pared con el fin de que el
espectador tome conciencia en términos políticos, de aquello que acontece
en escena, interpelando desde la realidad ficcional hacia la historia concreta
y compartida, vinculada a inestabilidades en el orden político. De otro lado
imaginan futuros postapocalípticos que si bien se enmarcan en la Guerra Fría
(como la amenaza nuclear), también recogen los ansiedades del momento –
hoy más actuales- como la escasez del agua o el totalitarismo de la dictadura
militar. Ambas piezas comparten esta noción de lo contaminado (el agua en
Bolón; el planeta en Abreu) como metonimias de un estado de cosas distópico
que amenaza la estabilidad social y planetaria, cuyo colapso permite que se
mantengan en las sombras formas de poder opresivo (la empresa en Bolón;
el Poder Central en Abreu). En última instancia, ambos autores critican
principalmente al capitalismo como sistema económico (que en Bolón se
amplía a la democracia como sistema político) al presentar escenas de
pobreza que aliena constantemente al sujeto, cosificándolo o reduciéndolo a
simple consumidor, con la inevitable pérdida de la condición humana.

Referencias
ABREU, Caio Fernando. Teatro completo. Porto Alegre: Instituto Estadual do
Livro, 1997.
BARBOSA DA SILVA, Mara Lúcia. Zona contaminada: o processo de criação
dramatúrgica em Caio Fernando Abreu. 2009. Tese (Doutorado em Letras) –
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
BOLÓN, Hugo. Water 2000. Montevideo: Círculo editorial, 1966.
FERNÁNDEZ, Gerardo. Los caminos de la dramaturga nacional. Marcha,
Montevideo, p. 26, 22 jul. 1966.
Apocalipsis en El Galpón. Marcha. Montevideo, p. 2, 15 jul. 1966.

241
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

ATISBOS DE ESPERANZA EN UNA FLOR:


ANÁLISIS DE LOS CUENTOS “REPOSIÇAO” DE ISA
PROSPERO Y “LA FLOR DEL ESPÍRITU SANTO”
DE JACINTA ESCUDOS
Lucía Leandro Hernández

Introducción
Al hablar de la ficción postapocalíptica se debe realizar un recorrido
a sus orígenes para rastrear las formas en las que se ha concebido la
vida en la Tierra y cómo sobrevivir en lo que queda de ella después de
una crisis mundial. Al pensar en este género literario, es indispensable
remitirse a la obra que la inaugura: The Last Man (1826), escrita por Mary
Shelley (1797-1851). Durante el desarrollo de la ficción postapocalíptica se
pueden encontrar otras escritoras pioneras que se inclinaron por concebir
el mundo después del fin o posterior a un gran cambio de paradigma
social durante el siglo XX1. Sin embargo, la ficción postapocalíptica ha sido
catalogada en el imaginario colectivo como un espacio literario creado
por hombres que conciben un fin del mundo donde los sobrevivientes
y héroes solamente son masculinos. Las ficciones postapocalípticas
escritas por mujeres anteriores al éxito de obras adaptadas al cine o a la

1 Es el caso de las autoras Rokeya Sakhawat Hossain y su novela Sultana’s Dream (1905),
Charlotte Perkins-Gilman y su novela Herland (1915), Jacquetta Hawkes y su cuento “The
Unites” incluido en A Woman as Great as the World and Other Fables (1953), Margot
Bennett y su novela The Long Way Back (1957), Anna Kavan y su novela Ice (1967), Angela
Carter y su novela Heroes and Villains (1969) y Doris Lessing y sus novelas The Memoirs of a
Survivor (1974) y Mara and Dann (1999).

242
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

televisión ‒ como es el caso de The Handmaid’s Tale (1985) de Margaret


Atwood, la tetralogía iniciada con The Hunger Games (2008) de Suzanne
Collins o la trilogía iniciada con Divergent (2011) de Veronica Roth ‒, han
sido relegadas por obras escritas por hombres. Al analizar el tema, la
investigadora Susan Watkins destaca:
[...] conventional apocalyptic fiction (usually male-
authored) tends towards conservatism. In such
narratives, traditional patriarchal and imperialist
definitions of what civilisation is arecentral and the
momentum after the imagined disaster is either
towards the restoration of what has been lost during
the apocalypse, or focuses on nostalgic mourning for
the past. In popular cultural treatments of apocalypse,
there are also few viable alternatives to this masculinist
narrative. [...] Why do so many texts that are set in a
post-apocalyptic future focus on men who are trying to
survive, trying to protect women and trying to rebuild
things the way they were before? Why is there so much
emphasis on men’s nostalgia for the world before things
changed? It is urgent that we engage with the work of
those contemporary women writers who do present
alternatives to this way of imagining a post-apocalyptic
environment. This is because they focus on analysing
the ways in which patriarchy and neo-colonialism are
intrinsically implicated in the disasters they envision.
Rather than nostalgia and restoration after such a
disaster, they successfully transform and rewrite the
apocalyptic genre to imagine different possible futures
for humanity post-apocalypse. (WATKINS, 2020, p. 1)

Lo anteriormente señalado se circunscribe a la literatura anglosajona.


¿Qué pasa con la ficción postapocalíptica escrita en Abya Yala2? ¿Se

2 “Abya Yala, que significa Tierra Madura, Tierra Viva o Tierra en Florecimiento, fue el
término utilizado por los Kuna, pueblo originario que habita en Colombia y Panamá, para
designar al territorio comprendido por el Continente Americano” (Carrera Maldonado y

243
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

puede hablar de características propias para las ficciones de después de


los días del fin en esta heterogénea geografía? Para hablar de ficciones
postapocalípticas, primero se debe analizar cómo se ha concebido el
apocalipsis en esta región que, para Amanda Salvioni, se puede percibir
desde dos puntos de vista:
Por un lado, se lo puede ver como consecuencia de
las tensiones simbólicas de la posmodernidad que
los escritores americanos del fin del milenio han
tenido que soportar. [...] Por el otro lado, se puede
ver la narrativa apocalíptica latinoamericana como
manifestación de una crítica social que apunta
al fracaso del modelo de desarrollo capitalista
e industrial, implementado con empeño por las
sociedades americanas, y radicalizado por las políticas
neoliberales de los años ‘90. (2013, p. 304-305)

Con respecto al lugar de las escritoras de Abya Yala dentro de la


ficción postapocalíptica, ha ocurrido algo similar al caso anglosajón. Sin
embargo, existen varias escritoras que han trabajado desde el terreno de
la ficción postapocalíptica. Es el caso de Anacristina Rossi y sus cuentos
“Abel” en Lunas en vez de sombras y otros relatos de ciencia ficción
(2013), “La incompleta” en Te voy a recordar: Relatos de ciencia ficción
(2015) y “La esperada” en Protocolo Roslin y otros relatos de ciencia
ficción (2019)3, Claudia Aboaf y la trilogía del agua ‒ Pichonas (2014), El

Ruiz Romero, 2016, p. 12). Algunas organizaciones y comunidades indígenas prefieren este
apelativo para referirse al continente americano como una postura ideológica en contra
de la designación de origen europeo fruto de la Conquista. Este trabajo prefiere su uso ya
que considera que es un término que incluye las literaturas del continente americano y
sus diferentes tradiciones, como es el caso de la latinoamericana y la lusófona, de las que
forman parte las dos escritoras aquí analizadas.
3 Los tres cuentos entretejen la historia de Lalia, una mujer que sobrevive el apocalipsis
por desarrollar una mutación. Acerca del primer cuento consultar: https://452f.com/de-
ficciones-climaticas-centroamericanas-abel-de-la-escritora-costarricense-anacristina-rossi-
lucia-leandro-hernandez/. Acceso en: 18 feb. 2021.

244
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

rey del agua (2016) y El ojo y la flor (2019)4 ‒, Ariadna Castellarnau y su


novela Quema (2015)5 y Elaine Vilar Madruga y su cuento “Amarás a tu
madre por encima de todas las cosas”6 parte de la antología Alucinadas
IV (2018), por citar algunas.
Dentro de esta cartografía de escritoras que se han decantado por
la ficción postapocalíptica se incluyen Isa Prospero y Jacinta Escudos. Isa
Prospero (Piracicaba, São Paulo, 1990) es graduada en Comunicación Social.
Además, se desempeña como traductora. Entre sus obras destacan las
novelas The Book of the Living (2018) y As sete vidas do capitão Hernandez
(2020). Entre sus cuentos se pueden mencionar “Noventa e nove” (2018)
publicado en la revista Superinteressante, “Nabu” (2019) publicado en la
revista Trasgo, “Replacement” (Septiembre 2019)7 publicado en la revista
Strange Horizons y “Predador” publicado en la antología Crônicas da
Unifenda (2020), entre otras.
Jacinta Escudos (San Salvador, 1961) es escritora, traductora y
periodista. Entre sus obras se incluyen las colecciones de relatos Cuentos
Sucios (1997), Felicidad doméstica y otras cosas aterradoras (2002), El

4 Para saber más de la trilogía de Aboaf consultar: http://proyectosynco.com/la-trilogia-


del-agua/. Acceso en: 18 feb. 2021.
5 La escritora es de origen catlán, sin embargo, radicó por varios años en Argentina,
país del cual se siente heredera de su tradición literaria y donde publicó por primera vez la
novela. Teresa López-Pellisa realizó una reseña para la revista Ínsula que se puede adquirir
en el siguiente enlace: https://www.insula.es/revista/miscelaneo-mayo-2019. Acceso en:
18 feb. 2021.
6 Para leer el cuento completo entrar aquí: https://escritorasdeurras.blogspot.com/2020/02/
capitulo-04-amaras-tu-madre-por-encima.html#more. Acceso en: 18 feb. 2021.
7 “Reposição” fue publicado en la revista Trasgo en marzo de 2020. Sin embargo, fue
publicado primero en inglés. La traducción al portugués fue realizada por Isa Prospero.
También existe una traducción al castellano realizada a partir de las versiones en inglés y
portugués por Sofía Barker que se puede consultar aquí: https://escritorasdeurras.blogspot.
com/2020/01/capitulo-02-recambio-de-isa-prospero.html?m=1.
La autora de este trabajo agradece al podcast Las escritoras de Urras, creado por Maielis
González y Sofía Barker, sin el cual esta investigación no hubiera sido posible.

245
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Diablo sabe mi nombre (2008)8 y Crónicas para sentimentales (2010),


entre otras. En el género de novela ha publicado A-B-Sudario (2003) y en
el de crónicas de viaje Maletas perdidas (2018). Su cuento “Yo, Cocodrilo”,
parte de El Diablo sabe mi nombre (2008), ha sido incluido en las antologías
Puntos de fuga, prosa salvadoreña contemporánea (2017), editada por
Tania Pleitez Vela, Alexandra Lytton Regalado y Lucía de Sola y en Insólitas.
Narradoras de lo fantástico en Latinoamérica y España (2019), editada por
Teresa López-Pellisa y Ricard Ruiz Garzón.

La esperanza a través de una flor: sobreviviendo en Junk City


Los cuentos “Reposiçao” de Isa Prospero y “La flor del Espíritu
Santo” de Jacinta Escudos, se presentan en escenarios postapocalípticos
producto de un cambio de paradigma social debido al control militar-
estatal, la segregación social, la contaminación y sus consecuencias en los
ecosistemas. La visión de ambas autoras se alimenta de la realidad de sus
países. En el caso de Prospero, Brasil y sus favelas que albergan entre 13 y
14 millones de habitantes producto de una desigualdad que ubica al país
como uno de los que poseen una mayor brecha social en América. En el
caso de Escudos, El Salvador, que sufrió una guerra civil de doce años que
acabó el 16 de enero de 1992, y que actualmente presenta el problema del
crimen organizado denominado ‘las maras’, con una migración producto
de la violencia y la pobreza en el país que, durante el 2019, rondaba un
24% de su población.
Ambas sociedades contemporáneas se hiperbolizan en los textos
de Prospero y Escudos para generar un escenario futuro donde los
personajes deben sobrevivir después de una crisis social, económica
y ecológica. Esta situación obliga a estos individuos ‒ marginales-

8 La primera edición de este libro se realizó en Costa Rica por Uruk Editores en 2008. Sin
embargo, para este trabajo se utilizará la edición realizada en España por Editorial consonni en
2019. “La flor del Espíritu Santo” se publicó originalmente en el libro Contra-corriente (1994).

246
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

marginados ‒ a convivir con el desastre y la inminencia del fin, lo que


genera en ellos lógicas otras para enfrentarse a esa realidad. Según
Christopher Palmer:
Postapocalyptic fiction throws both the everyday
and the anomalous into uncertainty, but in this
uncertainty new ways of controlling or even defeating
the fear of apocalypse become available. Apocalypse
is by definition exceptional and fearful, yet imagining
apocalypse is a pervasive cultural habit; often through
its valuing ordinary decency, contemporary post-
apocalyptic fiction interrogates the nature of “the
ordinary’’ in a situation in which the ordinary is itself
in question and ordinary decency often turns out to be
itself anomalous. What is everyday, what is ordinary or
normal, is thrown into doubt after the apocalypse, when
social forms all have to be reestablished or reimagined.
(2014, p. 158-159)

Además, la ficción postapocalíptica escrita por mujeres genera un


espacio que denuncia el modelo actual de producción-consumo de (bio)
tecnologías y el ritmo acelerado de explotación humano/animal/ambiental
de nuestras sociedades contemporáneas. Es importante visibilizar estas
situaciones, ya que ponen en peligro a los individuos de clases sociales
menos favorecidas y/o habitantes del Sur global, a las especies no humanas
y a la naturaleza. Según Watkins:
In much of contemporary women’s post-apocalyptic
fiction it is unchecked techno-scientific developments
that lead to the apocalypse, including genetic
experimentation, bioterrorism, an increasingly
globalized and corporatized technocratic culture, and
inadequate responses to climate change. (2020, p. 41)

En “Reposiçao” de Isa Prospero y “La flor del Espíritu Santo” se


muestra cómo los individuos asumen vivir en los detritus de una sociedad

247
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

pasada, asumiendo estos residuos y planteándose la pregunta ¿Y ahora


qué? Para responder a esta interrogante, las ficciones postapocalípticas
pueden tomar dos modelos:
[...] el modelo catastrofista, que se concentra en las
modalidades del Apocalipsis dejando sólo vislumbrar
un después, por más irónico o provocativo que sea, y el
modelo anticipatorio, que dibuja el escenario póstumo de
la actual civilización, como amplificación de los rasgos de
un presente desahuciado. (SALVIONI, 2013, p. 309)

Ambos textos evocan una añoranza del mundo antes del apocalipsis:
en Escudos, de quien lo vivió, en Prospero de quien lo desea sin haberlo
conocido. Es así que se puede decir, según lo planteado por Salvioni,
que Prospero se ubica más dentro del modelo catastrofista, ya que sus
personajes viven después del cambio de paradigma social/ambiental y
solo saben del mundo anterior a través de lo que leen o de los restos del
mismo que se mantienen artificialmente en la ciudad interior. Mientras
que Escudos está más cercana al modelo anticipatorio, mostrando un
personaje que vivió antes del cataclismo y que lo describe a partir de su
experiencia personal.
En “Reposiçao”, se presenta una sociedad altamente segregada donde
sus personajes principales ‒ Jô y Marcos ‒, viven en una de las favelas de
São Paulo, ahora llamadas ciudad exterior, donde sus habitantes sobreviven
a partir de recambiar partes de su cuerpo por partes artificiales para vender
sus órganos o miembros a personas que puedan pagarlos. Según comenta
Jô, “[e] os padres diziam que você precisava ser inteiro pra entrar no céu.
Outra piada. Era fácil para os desgraçados ricos que compravam as partes
de gente como ele, sempre se renovando. Mas se sua única fonte de
renda era seu corpo, não havia muita escolha” (PROSPERO, 2020, p. 33).
La ciudad de São Paulo concebida por Prospero se muestra como una Junk
City, que Samuel R. Delany define de la siguiente manera:

248
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Junk City begins, of course, as a working-class suburban


phenomenon: think of the car with half its motor and
three wheels gone which has been sitting out in the yard
beside that doorless refrigerator for the last four years.
[...] But Junk City really comes into its own at the high-
tech moment, when all this invades the home or your
own neighborhood: the coffee table with the missing
leg propped up by the stack of video-game cartridges,
or the drawer full of miscellaneous walkman earphones,
or the burned out building of the inner city, outside of
which last year’s $5,000 computer-units are set out on
the street corner for the garbage man (or whoever gets
there first), because the office struggling on here for
the cheap rent is replacing them with this year’s model
that does five times more and costs a third as much [...].
(1990, p. 304)

Este tecno-caos definido por Delany se plasma en el cuento de


Prospero en el lugar donde habitan sus personajes principales, cerca de
un desguace, en condiciones precarias, junto a los despojos que la ciudad
interior deja a su alrededor y donde vender partes del cuerpo es algo
posible-necesario. Esta realidad se presenta en el texto así:
Ele prometeu que manteria o coração, mas as
circunstâncias mudaram. E é só superstição, no fim das
contas, toda aquela história de o-coração-é-o-lar-da-
alma, você não precisava ter estudado pra saber que
era o cérebro que dava as ordens – se não, qualquer
um com um coração brilhante seria um imbecil sem
sentido ou um robô sem emoções, e Jô conhecia gente
que tinha feito o serviço. Era igual a vender uma perna
ou fígado, só mais complicado por causa do sangue que
bombeava através dele. Mas tente dizer isso à sua mãe.
Então ele não tenta. Só sai da caixa de aço que eles
chamam de casa sem dizer nada e, quando ela grita:
“Aonde vai?”, mente fácil: “Ao ferro-velho”.

249
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

“Não vá perto da fronteira”, ela diz na voz de alguém


que espera ser desobedecida mas está cansada demais
pra fazer algo a respeito disso.
“Não vou”, ele mente de novo. (PROSPERO, 2020, p. 32)

La tecnología que se posee para recambiar partes orgánicas del cuerpo


por piezas artificiales con fines económicos en las clínicas clandestinas
de pseudo doctores ponen en riesgo la vida del vendedor, pero ofrecen
un mejor precio por el órgano o el miembro extraído, obligando a las
personas a recurrir a ellas aún con el riesgo de morir por el proceso9. Al
respecto se lee lo siguiente:
As pessoas relutavam em vender membros porque era
óbvio demais – você não conseguia um emprego decente
se era todo reposto – mas interessava aos ricos então
vendiam alto. Além disso, era muito mais seguro trocar
um braço ou perna – mais fácil de instalar, menos jeitos de
dar errado. Órgãos apresentavam todo tipo de problemas
com o tempo, especialmente se você os arranjava com um
médico dos fundos e não um de verdade. Mas médicos de
verdade ficavam com uma porcentagem tão grande que
mal valia a visita. Suas reposições eram melhores, mas Jô
conhecia lugares que conseguiam órgãos mais baratos de
países distantes, de modo que a parcela do doador era
maior. (PROSPERO, 2020, p. 33)

El texto problematiza el lugar del cuerpo en una sociedad de seres


transhumanos, cuerpos cyborgs10 que se implantan en un futuro distópico

9 En relación con las clínicas clandestinas se presenta este fragmento: “Não está
iluminado agora, apesar do sol que o fustiga e reflete o aço ao seu redor. A casa da doutora
é uma Caixa como todas as outras, mas seu cheiro é inconfundível, uma mistura de sangue
e antisséptico. Ela não é uma doutora de verdade, claro, não como os inteiros com seus
diplomas – o apelido é um meio deboche, do jeito que as coisas funcionam por ali. De
vez em quando ela é presa, mas sempre a soltam no fim, porque alguém precisa fazer o
serviço” (PROSPERO, 2020, p. 35).
10 “[…] un organismo cibernético, un híbrido de máquina y organismo, una criatura de
realidad social y también de ficción” (HARAWAY, 1995, p. 253).

250
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

con total naturalidad como parte de un capitalismo de barbarie exacerbado.


El cuento presenta constantemente esa diferencia entre ser orgánico
y orgánico/artificial, estigmatizando no la compra y venta de partes
del cuerpo, sino aquellos sujetos “incompletos” que el sistema obliga
a recambiar con partes artificiales ya que es su fuente de subsistencia.
Con esto, Prospero no solo pone en evidencia al otro transhumano como
una “vida precaria” (BUTLER, 2006), sino que delata que su cuerpo es la
mercancía dentro de un sistema de poder necropolítico.11 Al respecto del
lugar del cuerpo, Mabel Moraña indica que:
Como «casa del ser», el cuerpo ocupa el intersticio
entre voz y silencio, de ahí que la literatura lo
explore principalmente por su carácter transicional,
coyuntural y perecedero. La idea de corporeidad
permite así abordar temas tan variados como los de
la identidad, la relación entre afecto y capitalismo,
individualidad y comunidad, zoe y bios, materia y
espíritu, sujeto/objeto, racionalidad e intuición, vida
y muerte. Temporalidad, origen, presencia/ausencia,
posidentidad y poshumanismo, categorías ligadas a
una concepción moderna, occidental y cristiana del
cuerpo individual y colectivo – del cuerpo cognitivo,
sensorial, del cuerpo del saber y del cuerpo social – se
potencian y redefinen en el contexto de los cambios
que acompañan el nuevo milenio. (2016, p. 95)12

En ambos textos se problematiza el cuerpo y su relación con la identidad


de los individuos. Prospero ahonda en el tema de su mercantilización:

11 Achille Mbembe define la necropolítica de la siguiente manera: “[h]acer morir o


dejar vivir constituye, por tanto, los límites de Ia soberanía, sus principales atributos.
La soberanía consiste en ejercer un control sobre Ia mortalidad y definir Ia vida como el
despliegue y Ia manifestación del poder” (2011, p. 19-20).
12 Al respecto de la problematización del cuerpo y su relación con el poder adquisitivo,
también se pueden consultar las novelas La novela del cuerpo (2015) de Rafael Courtoisie y
Los cuerpos del verano (2016) de Martín Felipe Castagnet.

251
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Jô no tiene inconvenientes en vender incluso el corazón y usar uno de


recambio, ya que para él el individuo va más allá de su corporalidad13.
Aunque indica que es una situación que solo padecen los habitantes de
la ciudad exterior, relacionando el hecho de los cuerpos recambiados con
una condición económica y de clase fruto de un sistema que usufructúa
con los cuerpos de las clases más vulnerables. En el cuento se indica esta
relación de dependencia de la ciudad interior y la ciudad exterior por el
intercambio mercantil de vidas y cuerpos que se da entre ellas:
O pensamento não diminui seu passo enquanto
ele percorre os becos estreitos até seu destino. A
doutora mora perto da fronteira, próximo da cidade
de fora que precisa vender e da cidade de dentro que
quer comprar. Há uma cerca ali, com um portão largo
e guardas com metralhadoras gigantes. Atrás dela, a
cidade se ergue infinita e vertiginosa, arranha-céus
cinza arranhando um céu da mesma cor. O portão fica
aberto durante o dia, mas você não consegue entrar
se eles não gostam da sua cara ou da sua cor. Marcos
costumava ter que mostrar os documentos pra
passar, provando que ia para o trabalho? (PROSPERO,
2020, p. 34)

Marcos tenía una posición un poco mejor que Jô: su papá poseía un
empleo y sus padres lo mandaron a estudiar cuando aún las escuelas
estaban abiertas. Además, casi no había recambiado partes de su cuerpo.
Jô vive solo con su mamá y ya ha sufrido bastantes recambios, lo que a
ella le asusta porque en la iglesia promueven la idea de que se debe ir
“entero” al cielo, sin partes recambiadas: “[a] mãe chorava toda vez,
dizendo que ele nunca entraria no céu, mas Marcos dizia que isso era

13 Es importante destacar que la novela Brown Girl in the Ring (1998) de Nalo Hopkinson
problematiza desde el afrofuturismo la venta de órganos clandestina en una Toronto
escindida entre ricos y pobres. Lo que potencia su trama es la compra-venta de un corazón
para mantener con vida a la primera ministra canadiense.

252
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

bobagem. Se havia um Deus, ele argumentava, ele tem que saber que a
gente não teve escolha. Senão, pra que serve?” (PROSPERO, 2020, p. 34).
Sin embargo, también se presenta la pérdida de partes del cuerpo
como algo determinante en la subjetividad. Marcos fue acusado de ladrón
por tocar una flor a la que se le cayó un pétalo por el contacto y el castigo
fue extraerle sus manos y ponerle unas de recambio. Como consecuencia,
Marcos se puso muy triste y se dio cuenta de que con esas manos no
le quedaría más fuente de ingresos que comenzar a recambiar partes de
su cuerpo. Sin embargo, parece que algo salió mal en el procedimiento,
porque Marcos fallece. Jô recuerda lo sucedido cuando indica que: “[n]ão
é culpa da doutora, ele pensa ao entrar [no cemitério]. Ela é boa. As vidas
só são curtas ali fora” (PROSPERO, 2020, p. 37).
En el cuento “La flor del Espíritu Santo” una mujer indica que fue
despedida de su lugar de trabajo en un invernadero, dado que al gobierno
no le interesa invertir en esa empresa ya que no le encuentra “[...] utilidad
práctica, material, exportable o comerciable [...]” (ESCUDOS, 2019, p.
106). En este escenario, también se puede ver la relación sujeto/objeto,
identidad/cuerpo dentro de una Junk City en la personaje principal: “[m]
e condenaron por inconforme a perder el pulgar derecho, cuando en
una asamblea del Sindicato, argumenté que a las mujeres embarazadas
debería proporcionárseles un vaso adicional de agua, tomando en cuenta
su estado” (ESCUDOS, 2019, p. 106). A partir de este hecho, la mujer
decide no volver a hablar.
Un día decide caminar sin rumbo por la ciudad en ruinas, donde
encuentra un local que le llama la atención porque tiene hojas de papel
en su vitrina. En la tienda, hay un hombre chino que le enseña caracteres
en su idioma y ella comienza a recordar la sensación de escribir su nombre
en un papel: Doramar. La mujer continúa yendo asiduamente donde el
hombre, hasta que un día lo encuentra fallecido. A partir de esta pérdida, la
mujer se sorprende porque se da cuenta de que aún puede albergar cariño

253
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

por una persona y dolor ante su pérdida. Es entonces cuando menciona la


muerte de su marido en la guerra: “[é]l no volvió. Esperé varios aviones,
todos. Esperé de ocho a cinco, todos los días. Pero él no volvió. Todas las
noches, todo el tiempo, esperé una notificación oficial sobre su status:
muerto o desaparecido en acción” (ESCUDOS, 2019, p. 116).
Al traer todos esos recuerdos de su vida antes del escenario devastado
en que vive ahora, la mujer decide volver al invernadero a ver si encuentra
alguna planta con vida. Al llegar lo encuentra abandonado y se ve triste
entre tanto gris, cuando ella lo recordaba como un lugar lleno de color. En
medio de aquel abandono, la mujer encuentra una orquídea llamada Flor
del Espíritu Santo, originaria de El Salvador, antes de que América Central
se hundiera. Decide llevarla a su casa y cuidarla, esperando que algún día
florezca: “[c]uidaría de la orquídea. Algún día florecería. Me imaginé a mí
misma ante una flor viva de nuevo. Por supuesto que pintaría un cuadro.
El retrato inolvidable de la flor de un país que ya no existe” (ESCUDOS,
2019, p. 118).
Es importante destacar que la mujer habla desde un espacio
que no es El Salvador. Sin embargo, se muestra interpelada por el
país centroamericano. Se podría pensar que es una hija de migrantes
salvadoreños en EEUU, que en el año de 2019 recibió alrededor del 89%
de la migración de este país. Con esto, Escudos también problematiza la
experiencia migrante fruto de la guerra y las crisis socioeconómicas que
ha sufrido El Salvador. Se lee en el texto:
En aquellos días, el Señor Presidente aún creía que era
importante preservar las pocas rarezas que se conocían
de la naturaleza. Mientras el mar se tragaba los países,
cientos de helicópteros sacaron plantas y animales para
los museos de mi país. Dejaron a la gente. Hispanos
teníamos suficientes, en especial salvadoreños que no
cabían ni en su propio país de tan pequeño que era.
(ESCUDOS, 2019, p. 118)

254
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Tanto el cuento de Prospero como el de Escudos presentan un


escenario devastado, pero con un final esperanzador: la idea de que la
empatía, las relaciones humanas y el amor son posibles aún después
del apocalipsis. También es particular que ambos escenarios ‒grises y
desolados‒ conciban esa posibilidad de cambio a través de la naturaleza:
una flor, que en su debilidad y transitoriedad contiene la potencia de hacer
surgir la esperanza en el corazón de un personaje. Este último, periférico
y marginal en su contexto social, representa la disidencia, una respuesta
contestataria al sistema opresivo que tiene a los ciudadanos viviendo
entre escombros y catástrofes ambientales.
En relación con lo anterior, las Junk Cities “[...] in which the
polluted, poisonous landscape becomes a place of extraordinarily
delicate and decadent beauty, among the ‘culture of the afternoon.’”
(DELANY, 1990, p. 304), en donde “[...] the flip side of the ruined
countryside, its positive charge, is the unexpectedly sublime vision of
decadent beauty” (CANAVAN, 2014, p. 3). Esto se demuestra en el final
del cuento de Prospero:
A única placa é aço com o nome dele gravado, a primeira
palavra que Jô aprendeu a ler, pedindo por ela em vez
do próprio nome, desenhando-a na poeira quando
estava sozinho. Ele a lê agora, murmurando os sons para
si mesmo como uma prece. E na frente dele, o único
túmulo do lugar com tal honraria, ele deixa uma flor que
custou um coração. (2020, p. 37)

Los dos textos recalcan la importancia del vínculo entre seres


humanos como aquello que propicia la pulsión de cambio de paradigma
en los personajes. Jô vende su corazón para poner una flor en la lápida de
su amigo Marcos por el amor que le tiene; la mujer del cuento de Escudos
logra trascender el escenario desolador de su contexto inspirada por el
lugar que el hombre que le enseña a pintar se gana en su corazón, lo que
le permite recordar su vida anterior y el amor que le tuvo a su marido

255
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

desaparecido en la guerra. Además, reflexionan sobre el dolor ante la


pérdida de un ser querido y de cómo el vínculo entre personas puede
transformar sus vidas: “[r]ecordé al chino. Nunca había sido amiga de un
chino en toda mi vida. Ahora mi amigo estaba muerto. Y, sin embargo,
cada vez que miraba un cuadro lo recordaba. Él me enseñó a hacer algo
que ya nadie hace. Pintar mis recuerdos” (ESCUDOS, 2019, p. 114).
En “Reposiçao” y “La flor del Espíritu Santo” puede verse cómo
personajes marginales-marginados como homosexuales, mujeres,
adolescentes, viejos y/o pobres son los que poseen una “débil fuerza
mesiánica” (BENJAMIN, 2002, p. 55). Estos personajes representan la
potencia de revertir el curso de la historia. A pesar de su vulnerabilidad,
son los que sobreviven ante el colapso, los que se apropian de su pasado
y su presente para conseguir un cambio.
Esa potencia se manifiesta en la mujer del cuento de Escudos cuando
realiza que, a pesar de sufrir los estragos de las guerras, todavía su
imaginación y su memoria trascienden su realidad, lo que significa que no
todo está perdido: “[m]i memoria estaba intacta. Limpia. Las bombas no
me habían destruido” (ESCUDOS, 2019, p.114). En el cuento de Prospero,
a pesar de que los personajes se encuentran en un contexto desolado,
sin recursos y sin naturaleza, son capaces de sentir ilusión ante una flor.
Además, Jô no teme a que su madre se oponga a vender su corazón, ni
a que esté en contra de su amor por Marcos: “[e]sta é outra coisa que
sua mãe não aprovaria – que ele está apaixonado por um garoto. Talvez
aprovasse menos do que ele vender o coração. E definitivamente não
aprovaria o motivo para ele fazer isso” (PROSPERO, 2020, p. 34).
El otro aspecto trascendental de ambos cuentos es la importancia de
la naturaleza, la preocupación ecológica ante un mundo desolado donde
las plantas, el azul del cielo y/o el mar son solo recuerdos de una vida
pasada o privilegios que posee la clase dominante. Los personajes sienten
un fuerte vínculo con la naturaleza, que representa el mundo que se

256
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

perdió, pero también la esperanza del cambio. Prospero denuncia la crisis


ecológica en su texto de la siguiente manera:
Ali, perto de onde o antigo rio corria antes de ser
cimentado, nada nascia nos trechos de poeira entre
as faixas de asfalto. Não que fosse muito melhor em
qualquer outro lugar. Uma cidade com nome de santo –
que piada. Você só precisava passar um tempo em São
Paulo pra deixar de acreditar em Deus. Na igreja, quando
a mãe o arrastava, eles falavam sobre recompensas,
campos verdejantes e abundância, mas tudo que ele
conhecia era cinza, sangue e fumaça. (2020, p. 33)

Los dos textos describen el colapso ambiental en escenas de lo


cotidiano. Para Brent Bellamy e Imre Szeman
[...] the trauma of ecological crisis never arrives as a
determinate event but remains a relatively abstract
component of a quotidian reality in which (for example)
even the most extreme meteorological events are read
simply as evidence of the usual vagaries of weather in
any given year. (2014, p. 200)

La mujer del cuento de Escudos relata un entorno donde solo hay ciudades
en ruinas:
No sentía gozo ni ánimo por los humanos. Donde hay
personas siempre hay destrucción. Ahora la naturaleza
está muerta. El sol lo guardo en mis recuerdos porque
casi no puede verse. Al mediodía, los vehículos
encienden sus luces porque todavía no terminan de
pasar las nubes negras de la última guerra que terminó
hace dos años. A veces, según la dirección del viento,
no puede verse nada, y aunque no haya alarma de crisis
ambiental, es necesario ponerse máscara porque no se
puede respirar. (2019, p. 111)

Estos escenarios contaminados parecieran ser una alegoría de los


personajes principales. El hombre chino que conoce Doramar hace

257
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

referencia a la imaginación como metáfora de un jardín: “[b]onito es lo


que somos por dentro cuando caminamos por jardines floridos, aunque
esos jardines florezcan solo en nuestra imaginación” (ESCUDOS, 2019, p.
112). En Prospero, se representa recordando el origen del primer nombre
del lugar donde viven los personajes:
Então sai pela porta e está na favela. Não é assim que
a chamam hoje em dia – a cidade de fora, dizem no
noticiário –, mas antigamente, de acordo com Marcos,
seu nome era esse. Marcos estudou por um tempo, antes
das escolas fecharem de vez, depois voltava e contava
a Jô o que tinha aprendido. Muita coisa ele esqueceu,
mas isso ficou grudado na cabeça: que favela era uma
planta que se tornou o nome para uma comunidade, um
arbusto espinhoso com florzinhas brancas que crescia
nas colinas onde as pessoas começaram a construir
barracos. Isso surpreendeu Jô por dois motivos:
primeiro por algo feio receber o nome de algo belo,
segundo porque ele nunca vira uma flor e não conseguia
imaginar uma crescendo onde vivia. (2020, p. 32-33)

Se puede ver cómo los personajes principales de Prospero y Escudos –


fragmentados y perturbados por su contexto y su pasado –, pese a sufrir la
muerte de sus seres queridos, son capaces de hacer florecer aún la esperanza
en su interior, cultivando el deseo utópico14 de que se puede producir un
cambio, nuevas formas de imaginar su contexto a través de un conocimiento
con responsabilidad social y ecológica dentro de un escenario devastado.
Para Adeline Johns-Putra, analizando algunas novelas sobre catástrofes
ambientales que dialogan con los cuentos aquí analizados:
I will take as a critical given the idea that novels constitute
spaces in which to explore inner life as it relates to

14 Fredric Jameson define al deseo utópico como “[…] algo parecido a un impulso
utópico detectable en la vida cotidiana y en sus prácticas mediante una hermenéutica
especializada o un método interpretativo” (2009, p. 15).

258
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

the outer world of social appearance and action. The


specific case of the climate change dystopian novel is
no different. These dystopian visions consider the lived
experience of climate change, and attempt to refract
through the personal the almost incomprehensible
scale of this global ecological crisis. (2014, p. 127)

En el cuento de Prospero, Jô confía y ama a Marcos por su conocimiento,


porque le enseña a ver la belleza del mundo: “[n]unca conheceu alguém mais
inteligente. Desde que eram crianças, morando um ao lado do outro, Jô o
ouvia o dia todo, falando sobre coisas que não entendia completamente,
explicando conceitos com imagens e letras na poeira” (2020, p. 34). En el
cuento de Escudos, el vínculo con el hombre chino hace a Doramar salir de su
cotidianidad desolada a través de las acciones de escribir, leer, pintar, que en
su contexto, son formas de resistencia perseguidas y penadas por el Estado:
“[e]ncontrar a alguien escribiendo a mano puede significar una pena menor,
unos cinco años de cárcel. Escribir equivale a pensar. Y el Estado considera
que pensar es peligroso cuando esos pensamiento están fuera de control”
(2019, p.110-111).
Ambos cuentos rescatan la relación intrínseca entre seres humanos
y naturaleza. Para recordar esta unión es necesario un conocimiento
que involucre y respete los ecosistemas. Reconocer esta relación es
trascendental en ambos cuentos, que interpelan al lector con respecto a
la crisis ecológica que sufre el planeta y conciben intersticios desde donde
es posible buscar maneras de revertir un paradigma social que lo tiene al
borde del colapso.

Conclusiones
“Reposiçao” y “La flor del Espíritu Santo” se presentan en
escenarios postapocalípticos que denuncian la crisis ecológica que
padece actualmente el planeta. Además, problematizan cómo el

259
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

sistema neoliberal monetiza a los seres humanos de clases menos


favorecidas o del Sur global al igual que lo hace con la naturaleza. Sin
embargo, presentan formas para revertir este entorno catastrófico: la
empatía entre seres humanos, su relación con el planeta y el poder del
conocimiento, de la palabra y de la escritura para hacer esto posible.
Es así como el conocimiento se presenta como la clave para la
resistencia. Es un saber que busca un vínculo entre los seres humanos
y el planeta, que se produce en espacios periféricos y entre individuos
marginales. Este proceso de enseñanza-aprendizaje genera relaciones
a partir de la horizontalidad entre los sujetos y del respeto por los
ecosistemas. Se puede ver como, tanto Prospero y Escudos, conciben la
disidencia a través de actos cotidianos: en una muestra de afecto entre
dos personas o en reivindicar la unión del ser humano con su entorno
natural. Se concibe así un cambio de paradigma social desde algo tan
frágil y tan sublime como un vínculo entre dos seres humanos y entre
estos con una flor.

Referencias
BELLAMY, Brent; SZEMAN, Imre. Life after People: Science Faction and
Ecological Futures. In: CANAVAN, Gerry; ROBINSON, Kim Stanley. Green Planets:
Ecology and Science Fiction. Connecticut: Wesleyan University Press, p. 192-
205, 2014.
BENJAMIN, Walter. Tesis II. In: LÖWY, Michael. Walter Benjamin: Aviso de incendio.
Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina, p. 54-55, 2002.
BUTLER, Judith. Vida precaria: El poder del duelo y la violencia. Buenos Aires:
Paidós, 2006.
CANAVAN, Gerry. Introduction: If This Goes On. In: CANAVAN, Gerry;
ROBINSON, Kim Stanley. Green Planets: Ecology and Science Fiction.
Connecticut: Wesleyan University Press, p. 1-21, 2014.
CARRERA MALDONADO, Beatriz; RUIZ ROMERO, Zara. Prólogo. In: CARRERA
MALDONADO, Beatriz; RUIZ ROMERO, Zara. Abya Yala Wawgeykuna. Artes,

260
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

saberes y vivencias de indígenas americanos. Sevilla: Enredars Publicaciones,


2016, p. 12-17. Disponible en: https://rio.upo.es/xmlui/handle/10433/5226.
Acceso en: 3 feb. 2021.
DELANY, Samuel R.; R.M.P. On “Triton” and Other Matters: An Interview with Samuel R.
Delany. Science Fiction Studies, v. 17, n. 3, p. 295-324. Disponible en: https://www.jstor.org/
stable/4240009?refreqid=excelsior%3A4919a278deb5d5f3564624567fb5911f&seq=1.
Acceso en: 27 ene. 2021.
ESCUDOS, Jacinta. La flor del Espíritu Santo. In: ESCUDOS, Jacinta. El diablo sabe
mi nombre. Bilbao: Edición consonni, p. 105-118, 2019.
HARAWAY, Donna. Manifiesto para cyborgs: ciencia, tecnología y feminismo
socialista a finales del siglo xx. In: HARAWAY, Donna. Ciencia, cyborgs y mujeres:
La reinvención de la naturaleza. Madrid: Ediciones Cátedra/Universitat de
València, p. 251-311, 1995.
JAMESON, Fredic. Las variedades de lo utópico. In: JAMESON, Fredic.
Arqueologías del futuro: El deseo llamado utopía y otras aproximaciones de
ciencia ficción. Madrid: Akal, p. 15-24, 2009.
JOHNS-PUTRA, Adeline. Care, Gender, and the Climate-Changed Future:
Maggie Gee’s The Ice People. In: CANAVAN, Gerry; ROBINSON, Kim Stanley.
Green Planets: Ecology and Science Fiction. Connecticut: Wesleyan University
Press, p. 127-142, 2014.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Santa Cruz de Tenerife: Editorial Melusina, 2011.
MORAÑA, Mabel. El cuerpo de la novela y el paraíso de la mercancía: a
propósito de La novela del cuerpo, de Rafael Courtoisie. Revista de la Casa de
las Américas, n. 283, 2016, p. 93-104. Disponible en: http://www.casa.co.cu/
publicaciones/revistacasa/283/Notas.pdf. Acceso en: 25 ene. 2021.
PALMER, Christopher. Ordinary Catastrophes: Paradoxes and Problems in Some
Recent Post-Apocalypse Fictions. In: CANAVAN, Gerry; ROBINSON, Kim Stanley.
Green Planets: Ecology and Science Fiction. Connecticut: Wesleyan University
Press, p. 158-175, 2014.
PROSPERO. Reposição. In: Trasgo – Ficção Científica e Fantasia. Brasil, 2020.
p. 32-38. Disponible en: https://trasgo.com.br/wp-content/uploads/2020/03/
Trasgo-Strange-Horizons.pdf. Acceso en: 2 ene. 2021.
SALVIONI, Amanda. Lo peor ya ocurrió. Categorías del Postapocalipsis
hispanoamericano: Alejandro Morales y Marcelo Cohen. Altre Modernità:

261
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Rivista di studi letterari e culturali, n. Extra 1, 2013, p. 304-316. Disponible en:


https://riviste.unimi.it/index.php/AMonline/article/view/3095. Acceso en: 19
ene. 2021.
WATKINS, Susan. Contemporary Women’s Post-Apocalyptic Fiction. Londres:
Palgrave Macmillan, 2020. Disponible en: https://link.springer.com/book/10.105
7%2F978-1-137-48650-9. Acceso en: 11 ene. 2021.

262
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

VISIONES TRAS LOS APOCALIPSIS: LAS RUINAS EN


LA FANTASÍA ÉPICA Y FABULOSA DE LA EUROPA
LATINA EN LA ERA DE LA DECADENCIA (1871-1914)
Mariano Martín Rodríguez

Según el mitógrafo LACARRIÈRE, “[i]l n’existe pas de mythologie, il


n’existe pas non plus de religion qui n’ait envisagé d’un façon ou d’une
autre la fin de l’univers où nous vivons”1 (2004, p. 325). Si abandonamos
el terreno del mito y prescindimos también de las visiones apocalípticas
inspiradas por la ciencia (cataclismos cósmicos, entropía etc.) para volver
nuestra mirada hacia la historia de la humanidad, el fin del mundo,
completo o no, puede dejar de ser un acontecimiento único de categoría
mítica, situado en un pasado ahistórico o en un futuro también fuera de
la historia, para convertirse en una sucesión geográfica y cronológica
de catástrofes apocalípticas localizadas. Cada uno de ellas entraña la
desaparición de una civilización, a menudo con gran parte de sus habitantes
o de todos ellos. Para estas personas, el fin de su mundo ha tenido lugar
efectivamente, aunque algunas de ellas sobrevivan en un marco cultural
esencialmente alterado, mientras que otras, en un futuro más o menos
distante, contemplarán los vestigios de aquel mundo e indagarán sobre la
historia de la civilización muerta, de manera que hay tanto un antes como
un después de la destrucción.
La historia humana abunda en este tipo de catástrofes étnicas y
culturales. La ficción literaria también ha imaginado apocalipsis de carácter

1 “No hay mitología ni religión que no haya previsto de alguna manera el fin del universo
en el que vivimos”. Salvo indicación contraria, todas las traducciones de citas son nuestras.

263
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

especulativo, esto es, sin un vínculo directo con sucesos históricos reales. La
leyenda platónica de la Atlántida es tal vez el ejemplo más famoso de esta
clase de apocalipsis ficticio localizado en un tiempo pretérito legendario
y presentado con todas las características de la “imaginación razonada”
y sus subsiguientes exigencias de verosimilitud y coherencia interna, con
tanta eficacia que muchos han creído en la existencia real de aquella isla-
continente hundida por los dioses y han buscado por todo nuestro planeta
su ubicación, e incluso sus ruinas. Ninguna de estas exploraciones ha
tenido éxito, por el simple motivo de que la Atlántida es un territorio tan
ficticio como la Hyboria donde el personaje de Conan, creado por Robert
E. Howard, se abre camino entre ciudades y civilizaciones tan imaginarias
como la Atlántida platónica.
La comparación no está tan desencaminada como se podría creer a
primera vista. Aunque Platón utiliza el discurso historiográfico y Howard
el novelístico, sus universos ficticios presentan características similares.
En ambos casos, se trata de mundos secundarios distintos del mundo
primario o fenoménico en el que vivimos y en el que se desarrollan
asimismo las ficciones miméticas o realistas, incluidas las ambientadas
en cualquier período histórico que haya existido. En cambio, los mundos
secundarios de Platón y Howard son el resultado de un proceso que
J. R. R. Tolkien llamaba subcreation, subcreación mediante la cual se
generan en la ficción universos que guardan plena autonomía respecto al
primario, pero que reclaman un pacto de lectura basado en lo que Tolkien
denominaba secondary belief, esto es, la creencia secundaria por la que
se admite voluntaria y ficticiamente la existencia real de esos universos.
Los mundos secundarios subcreados a la manera tolkieniana tienen sus
propios parámetros espaciales y temporales, su propio orden social,
cultural y ontológico, y su propia causalidad, que puede ajustarse o no a
las leyes naturales de nuestro universo primario, pero que es coherente y
lógica dentro de sus universos especulativos. A diferencia de los mundos

264
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

de la ciencia ficción, los subcreados a que se refería Tolkien tienen


carácter legendario o fabuloso. Además, a diferencia de los de la ficción
maravillosa de los cuentos de hadas, se construyen de manera realista,
procurando que parezcan racionalmente verosímiles de acuerdo con sus
propias premisas. Según Trębicki:
The basic structure of SWF [secondary world fantasy] is
[…] placing the plot in a world whose technological level
is rather low and spatial parameters closed, and which
is presented as a reality not connected with the mimetic
universe either spatially or temporally.2 (2011, p. 45)

Esta caracterización, que atribuimos a la high fantasy o fantasía


épica, se puede aplicar a las historias de Howard protagonizadas por
Conan, aunque en ellas aparecen a veces alusiones a pueblos históricos.
Sin embargo, cada uno de ellos evoluciona en un contexto ajeno al suyo
real, por lo que se puede afirmar que el vínculo entre esos pueblos
de la ficción y los de la historia reviste un carácter casi únicamente
onomástico. Análogamente, la Atenas legendaria que lucha contra la
Atlántida invasora y consigue sobrevivir a esta tampoco es la Atenas
de la historia, ni tampoco la del mito, sino una Atenas subcreada por
Platón siguiendo un procedimiento afín al épico-fantástico que no sería
emulado hasta el surgimiento de la fantasía épica moderna en el siglo xix,
a raíz de los continuos descubrimientos arqueológicos que sacaron a la
luz civilizaciones antiguas antes desconocidas, al mismo tiempo que los
filólogos descifraban nuevas lenguas muertas y, con ellas, nuevos mitos
y acervos épicos también desconocidos antes en Europa y América. En
un contexto cultural en el que pueblos mencionados vagamente por los
autores bíblicos o clásicos estaban empezando a hablar por sí mismos a

2 “La estructura básica de la fantasía de un mundo secundario es [...] situar la trama


en un mundo cuyo nivel tecnológico es más bien bajo y con los parámetros espaciales
cerrados, y que se presenta como una realidad no conectada con el universo mimético ni
espacial ni temporalmente”.

265
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

través de sus escritos o sus vestigios materiales, no solo no era extraño


que se buscara la Atlántida en algún sitio, sino también que se imaginara
la existencia de pueblos, mitos y leyendas antiguos exclusivamente como
ejercicio ficcional, para generar mundos secundarios del tipo arriba
descrito, por ser la literatura épico-fantástica “une pseudo-morphose,
modelée par l’esprit positiviste et réaliste, par la sensibilité et le goût
contemporain, de la littérature magique et féerique traditionnelle”3
(BRAGA, 2018, p. 44). Por ejemplo, Howard se inspiró ampliamente en los
descubrimientos y teorías de la Arqueología, como habían hecho antes de
él George Sand (Évenor et Leucippe, 1856), Gabriele D’Annunzio (“Il sangue
delle vergini”, 1894 en su versión definitiva publicada en Intermezzo) o
Luis Valera (“Dyusandir y Ganitriya”, de la colección de 1903 titulada Visto
y soñado), entre otros.
En esta clase de fantasías épicas de raíz arqueológica abundan
las tramas apocalípticas. Además del modelo de la Atlántida, los
cultivadores de este género de ficción contaban con otros muchos en la
historia de nuestro planeta. Por ejemplo, ¿qué queda de pueblos como
los lusitanos, salvo un puñado de inscripciones y raros testimonios de
geógrafos e historiadores clásicos de Grecia y Roma? Más presente
en la cosmovisión europea, la Roma antigua también sufrió un final
apocalíptico, durante el cual se perdió gran parte de su literatura y de
sus artes, a la vez que su religión nacional. Por muy impresionantes que
fueran, sus ruinas eran un recordatorio constante de que también las
civilizaciones son mortales, de que el apocalipsis histórico acecha incluso
a las construcciones sociopolíticas y socio culturales aparentemente
más sólidas, especialmente si están debilitadas por una decadencia
interna que facilite los ataques externos. La decadencia de Roma había
preparado su apocalipsis político y cultural.

3 “una seudomorfosis, modelada por el espíritu positivista y realista, por la sensibilidad y


el gusto contemporáneos, de la literatura mágica y de cuentos de hadas tradicional”.

266
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

La semejanza entre el declive y la caída del imperio romano y la


situación percibida en varios países de la Europa latina en la segunda
mitad del siglo xix no solo dio lugar a un auge de las ficciones históricas
sobre la antigua Roma perversa y decadente (DAVID, 2001) que los
bárbaros castigarían como los dioses castigaron la Atlántida. También
confirió nueva actualidad a las ruinas como objeto de especulación,
especialmente tras las destrucciones del patrimonio monumental
durante la Comuna de París en el contexto de la guerra franco-prusiana
que se saldó con la derrota francesa en 1871, la primera de una serie de
humillaciones sufridas por las naciones latinoeuropeas ante las pujantes
potencias imperiales de lenguas germánicas. La subsiguiente creencia
generalizada de que aquella era una época de declive o decadencia
confiere cierta unidad a la producción cultural de este período, llamado
retrospectivamente la Belle Époque, la hermosa época que se disfrutó
en la Europa latina por comparación con la historia de violencia bélica
y revolucionaria/reaccionaria vivida a partir de 1914. Esa decadencia
neolatina encontró su manifestación más característica en la literatura
y las bellas artes, en las que la riqueza decorativa y retórica expresaba
una estética que anteponía la belleza a cualquier otra consideración.
Los escritores decadentistas trabajaron en pro de la plena autonomía
de la obra de arte, lo que comprendió a veces la creación de universos
ficticios alejados del europeo real. Ante una realidad dominada por lo
crematístico como valor social supremo y que, por tanto, parecía haber
rebajado la dignidad del artista, numerosos escritores no comerciales
dieron la espalda a su mundo primario, entre otras cosas, “par l’exotisme
imaginaire et la reconstitution historique de civilisations disparues”4
(PIERROT, 2007, p. 295), tanto de las documentadas históricamente (la
antigua Roma en primer lugar) como otras inventadas, y de ahí el auge
de la fantasía épica de estética y cosmovisión decadentistas en aquel

4 “por el exotismo imaginario y la reconstitución histórica de civilizaciones desaparecidas”.

267
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

período, sobre todo en Francia, cuya influencia es patente en el estilo de


los primeros maestros de la high fantasy en lengua inglesa, desde Lord
Dunsany hasta Clark Ashton Smith.
Entre los mundos épico-fantásticos influidos por el espíritu decadente
destacan por su plena coherencia con ese espíritu aquellos que ya figuran
en ruinas en la ficción. Los vestigios materiales contemplados ofrecen ahí
su consistencia a las conjeturas sobre el curso de civilizaciones imaginarias
hasta su desaparición lenta o súbita, de acuerdo con una concepción
decadentista de la historia que se puede ejemplificar en libros tan
influyentes como Der Untergang des Abendlandes (1918-1922), de Oswald
Spengler. Esas conjeturas constituyen la materia de una especulación que
sigue el modelo arqueológico, pero que se ofrece como ficción con fines
sobre todo emocionales y estéticos. Aunque no falte la reflexión sobre
las posibles causas y consecuencias del apocalipsis étnico y cultural del
mundo subcreado, se trata sobre todo de explotar los efectos emocionales
de la visión de las ruinas y de expresar literariamente el placer estético
que suscitan:
La ruine émeut précisément parce qu’elle a un sens que
n’a plus le simple débris, parce qu’elle renvoie à un avant,
et parfois à un après. Elle rend tangible le mouvement
de l’histoire, la notion d’un écoulement irréversible,
et elle leur confère une signification douloureusement
prémonitoire.5 (MORTIER, 1974, p. 224-225)

Las ruinas imaginadas por los escritores de la Decadencia no solo


corresponden a un estado de ánimo generalizado, sino también al
acusado esteticismo del período. Su subcreación literaria persigue
ajustarse a la propia belleza intrínseca de aquellos vestigios artísticos

5 “La ruina emociona precisamente porque tiene un significado que han dejado
de tener los meros vestigios, porque remite a un antes y, a veces, a un después. Hace
tangible el movimiento de la historia, la noción de un flujo irreversible, y le da un sentido
dolorosamente premonitorio”.

268
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

que demostraban, aun arruinados, la perfección estética alcanzada por


las civilizaciones objeto tanto de la ficción histórico-arqueológica como
de la invención especulativa épico-fantástica. De hecho, el acusado
esteticismo de la mentalidad decadente se traduce en la predilección
por las ruinas monumentales, razón por la cual las ruinas ficticias
del decadentismo se caracterizan por su grandiosa sublimidad. Para
expresar este carácter sublime, se suele recurrir ampliamente a ricas y
variadas técnicas retóricas, tanto si las ruinas se describen en poemas en
verso de estética parnasiana como si constituyen el centro de ficciones
en prosa que explotan la sugestión simbolista. Ambas tendencias, que
se combinan a veces en diversos grados, acertaron a renovar un tema
ya tradicional.
En la poesía renacentista y barroca (Joachim du Bellay, Rodrigo
Caro etc.), la visión de las ruinas monumentales de la capital y otras
ciudades del imperio romano servía sobre todo para glosar lo efímero de
las cosas terrenales, a modo de ubi sunt arquitectónico con un mensaje
moral y, a menudo, religioso, hasta convertirse en un verdadero topos
de la cultura europea. En el siglo xix hubo varias tentativas de renovar
un tema tan manido, entre otras cosas mediante su recuperación
imaginativa e innovadora en dos nuevos géneros de ficción, a saber: la
ficción de anticipación laica, matriz de la futura ciencia ficción, y la ficción
arqueológica, matriz de la fantasía épica. En el primer caso, las ruinas son
las de la modernidad industrial vistas desde la perspectiva de un visitante
futuro. El esplendor contemporáneo de Londres, París y otras capitales
se veía rebajado mediante la conciencia de lo poco que subsistiría de
ellas al paso destructor del tiempo. Sin embargo, el espectáculo de sus
ruinas anticipadas no solía inspirar morales meditaciones sobre la vanidad
de lo mundano, sino más bien visiones irónicas, ya que la transferencia
imaginaria al futuro suele dar lugar a un distanciamiento cognitivo que
invita a relativizar los logros de la Modernidad.

269
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

La otra gran renovación ficcional del tema de las ruinas conserva el


tradicional lirismo melancólico, pero lo vacía de referentes concretos.
Puesto que la fantasía épica se opone a la ficción histórica de tema
antiguo por la sustitución de un referente del mundo primario por otro
inventado, la ficción épico-fantástica centrada en las ruinas de una
civilización confiere universalidad a su objeto mediante la desaparición
de un referente explícito, aunque este se pueda adivinar. Si el París de
la Comuna constituye el punto de partida de la extrapolación realizada,
entre otros, por Alfred Franklin en Les Ruines de Paris en 4875 (1875),
también parece haberlo sido del poema “La Vision des ruines” (Les
Poëmes dorés, 1873), en el que Anatole France prescindió de toda
narración. France presenta las ruinas de una ciudad ignota como una
visión objetiva gracias al empleo casi exclusivo del discurso descriptivo al
efecto de dar cumplida idea de los grandiosos vestigios monumentales de
una antigua ciudad deshabitada en el momento en el que la voz poética
los contempla. Las ruinas podrían pertenecer a un París abandonado y
destruido, tal y como pueden indicar la topografía de la ciudad, con su
ríos que “presse en ses bras une longue île”6 (FRANCE, 1873, p. 41) y la
presencia en esa isla de un edificio que evoca la catedral de Nuestra
Señora de la capital francesa, situada en un islote fluvial. También sirve de
indicio de ello el pasaje en el que poeta abandona su actitud parnasiana
de rechazo de toda función literaria que no sea la propiamente estética
al sugerir que la ruina de la ciudad se debe a sus vicios7, sobre todo

6 “que estrecha entre sus brazos una larga isla” (FRANCE, 2021, p. 169).
7 Esta convicción subyace a un poema aún más decadente que el de France escrito en
catalán por Jeroni Zanné y titulado “L’urbs ignota” (Imatges i melodies, 1906). En este
abundan los “detalles desrealizadores y marcadamente simbólicos, como la imagen de
la ciudad en ruinas bajo la púrpura o que en ella sean permanentes el otoño y una luz
fantasmal de crepúsculo. La arquitectura pagana y bizantina, además del repaso en los
vicios de unos habitantes físicamente refinados, recalcan el aire decadente de la urbe”
(MARTÍN RODRÍGUEZ, 2019-2020, p. 197), cuya atmósfera no corresponde a la de un
misterioso mundo secundario épico-fantástico en el que impera el vicio. No se trata,

270
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

sexuales, de acuerdo con el vínculo entonces estereotipado entre lo


que se tenía por costumbres depravadas y la supuesta decadencia de la
civilización contemporánea, sobre todo de Francia, cuya capital lo era
también del ocio y la vida nocturna. Desde este punto de vista, no es
inocente que sea las palabras “siècle impie” las que cierren el poema,
ligadas a la imagen escultórica de alta carga erótica de su última estrofa:
C’est un corps de femme accroupie,
Un corps lascif, jeune et lassé,
Qui fut sans doute caressé
Par le regard d’un siècle impie.8 (p. 46)

Por fortuna, France evita un moralismo claramente didáctico. Su


poema mantiene la vaguedad suficiente como para no perder su interés
como especulación de amplio alcance, al tiempo que el eclecticismo de los
vestigios de esta ciudad sin nombre, en la que hay templos con figuras de
ninfas danzantes y también imágenes de “[a]nges et rois, vierges et mages”9
(p. 42), ofrece una visión en que se combinan rasgos de distintas culturas y
religiones de forma en gran medida ajena a la historia de nuestro mundo
primario. En consecuencia, cabe considerar que se trata de un mundo
secundario inventado, parecido a un París postapocalíptico, pero que es
más bien una ciudad inexistente fuera de la fantasía, a cuyas ruinas se
confía la misión de representar simbólicamente el final de una civilización

empero, de un universo postapocalíptico indudable, porque entre las ruinas de esa urbe
ignota sigue habiendo habitantes que, a diferencia de las sombras humanas de un cuento
simbolista francés de Bernard Lazare que comentaremos más adelante, no parecen
haber sido víctimas de otra catástrofe que no sea su propia degradación moral. De esta
se desprende la posible explicación de unas deficiencias cívicas que parecen impedirles
poner remedio a la decadencia de una ciudad en la que “[s]’aguanten per miracle les
trèmules ruïnes / de vells bocins cobertes de porpra imperial” (ZANNÉ, 2019, p. 274),
frase traducida al castellano como sigue: “Aguantan por milagro las trémulas ruinas de
viejos pedazos cubiertos de púrpura imperial” (ZANNÉ, 2019-2020, p. 208).
8 “Es el cuerpo de una mujer en cuclillas, un cuerpo lascivo, joven y cansado que acarició
sin duda la mirada de un siglo impío” (FRANCE, 2021, p. 169).
9 “ángeles y reyes, vírgenes y magos” (FRANCE, 2021, p. 169).

271
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

impresionante desde el punto de vista de sus creaciones artísticas y, a la


vez, impía. Este valor simbólico de las ruinas invita a relativizar la neta
oposición entre estética parnasiana y simbolista que aún domina en la
historiografía literaria francesa. El estilo de nuestro autor es claramente
parnasiano en esta obra, tal y como indica su empleo de una retórica
de la visualidad suntuosa y voluntariamente externa, a diferencia del
planteamiento metafórico típico de la poesía simbolista. Por otra parte,
al ocultar su probable referente parisino, France consigue que las ruinas
salgan de la historia para acceder al universo fantástico del símbolo. Las
ruinas pertenecen en realidad a una urbe que encarna imaginariamente el
proceso histórico del declive hasta su consumación, a raíz de la cual solo
quedan los tristes restos evocados.
Albert Samain siguió un procedimiento similar al de France, pero
avanzó en el camino de la fantasía épica, gracias al carácter ya claramente
legendario e imaginario de la urbe destruida, en “Ville morte”, un soneto
publicado primero en 1894 y, en su versión definitiva, en el libro Au jardin
de l’enfante (1897). Se trata de una perfecta descripción parnasiana
de una ciudad asiática antes dominadora y capaz de hacer frente a sus
numerosos enemigos, pero que ahora agoniza vacía y arruinada entre las
arenas, junto a su río ahora seco, sin más vida ni fuerza que el eterno afán
de un elefante de bronce que “[l]ève tragiquement sa trompe vers les
astres”10 (SAMAIN, 215, p. 162). Así reza la imagen que cierra el soneto
y que sugiere la indiferencia cósmica frente al sucederse de la historia
humana, pues “el hecho de menciona a los astros, en el último verso,
hace aún más desoladora la impresión producida por el poema” (GARCÍA
PÉREZ, 2008, p. 126), esto es, la impresión de una ciudad que no solo
está muerta en el sentido que se daba en la época de la Decadencia a
ciudades sin apenas animación moderna como Venecia, Toledo o Brujas,

10 “alza trágicamente a los astros su trompa” (SAMAIN, 1993, p. 229).

272
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

sino que se trata de un cadáver convertido en “imagen de la falta total de


vida, de la nada” (p. 126) y, en otras palabras, en signo de un apocalipsis
determinado por la entropía universal, frente a la cual se alza impotente
la figura simbólica del elefante.
El simbolismo así conjugado con una poesía descriptiva y estática al
estilo parnasiano tiende a un lirismo más subjetivo en “Ruínas”, soneto del
poeta portugués António Feijó publicado póstumamente en 1981, aunque
probablemente escrito a principios del siglo xx. Esas ruinas son las de una
fortaleza batida por el mar y de cuyas heroicas glorias militares no quedan
más que torres que se derrumban. No se declara en ningún momento
ni su ubicación ni su época. Tan solo se sugiere que pertenecen a unos
tiempos de pasado esplendor. Sin embargo, su función no es tanto la de
dar idea de lo pasajero de la civilización como la de servir de símbolo de
un estado emocional presentado en términos universales. En el último
terceto, los restos caídos se comparan a un corazón que sigue latiendo
pese a la frustración de sus ilusiones. Las de la fortaleza son realmente “as
ruínas do Sonho”11 (FEIJÓ, 1981, p. 142), con una significativa mayúscula
inicial en “Sonho” que sirve para designar un concepto general más
que un sentimiento estrictamente subjetivo. En cambio, la perspectiva
adoptada es muy individual en “Cetatea moartă”, un poema en verso libre
de Alexandru Petroff también obediente a la cosmovisión decadentista
y también escrito probablemente antes de la Gran Guerra, aunque se
publicara póstumo en 1943 en una antología de la poesía decadentista
rumana. La voz poética se dirige líricamente en él a la anónima ciudad
muerta del título, comunicándole la tristeza y el pesar suscitados por
la visión de sus ruinas, entre cuyas piedras crecen hierbas raquíticas y
anidan tan solo las salamandras. También dice revivir en su mente el
pretérito de aquella ciudad portuaria fenecida, con toda la animación

11 “las ruinas del Sueño” (FEIJÓ, 2021, p. 176).

273
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

anterior de los navíos que solían fondear en sus muelles. La visión adopta
entonces la forma de viaje mental a aquel tiempo al modo de las fantasías
del ciclo onírico de H. P. Lovecraft, pero se trata solo de una ilusión que
acaba resultando, más que el recuerdo que aparenta ser, una engañosa
ensoñación personal, tal y como señala el yo poético en el último verso:
“[u]n vis amăgitor, pierdut – in mine”12 (PETROFF, 1987, p. 128).
Pese al evidente subjetivismo de estos poemas de Feijó y Petroff, las
ruinas imponen en ellos su propia presencia. Su materialidad se resalta
mediante unas imágenes sensoriales que les confieren notable visualidad,
a veces muy sugestiva, por ejemplo, en el pasaje en el que Petroff describe
unos islotes sedimentarios petrificados “[î]n tragica pustietate / a apelor
opace”13 (p. 127). De este modo, la visión fantástica de unas ruinas sin
referentes reales directos genera unos universos ficticios ambientados
en un legendario pasado preapocalíptico que sustenta la perspectiva
lírica. Por otra parte, al igual que los de France y Samain, esos universos
podrían considerarse no estrictamente épico-fantásticos, ya que la
correspondencia ontológica es casi total en ellos entre el mundo primario y
el secundario. Aunque este aparezca delimitado y separado en el espacio y
el tiempo, carece en todos estos poemas de “its own social and ontological
order, and its own causality, unusual from the point of view of mimetic
reality but perfectly coherent and logical within the fictional universe”14
(TRĘBICKI, 2014, p. 488). En otras palabras, la construcción de tales
universos ficticios no incluye la invención y el funcionamiento coherentes
de mecanismos imposibles en el mundo primario, pero normales en el
secundario, a diferencia de lo que nos tiene acostumbrados la fantasía

12 “un sueño engañoso, perdido – en mí” (PETROFF, 2021, p. 175).


13 “en la trágica desolación de las aguas opacas” (PETROFF, 2021, p. 175).
14 “su propio orden social y ontológico, y su propia causalidad, inusual desde el
punto de vista de la realidad mimética pero perfectamente coherente y lógica dentro
del universo ficticio”.

274
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

épica canónica15. Las ruinas objeto de las visiones de France, Samain,


Feijó y Petroff son posibles en el mundo primario al no eludir las leyes
naturales de nuestro universo o, al menos, de la historia humana conocida
o conjeturada gracias a los avances coetáneos de la Paleontología y la
Arqueología. Desde este punto de vista, aún menos fabulosa parece la
ciudad arruinada que da título a “La Ville ruinée”, de Auguste Angellier,
uno de los últimos “épisodes” [episodios] de la serie Dans la lumière
antique (1908-1909). Se trata de un poema narrativo que cuenta con
detalle la progresiva pérdida de actividad económica de una imaginaria
ciudad costera independiente, el consiguiente empobrecimiento de sus
habitantes y la dolorosa emigración de estos a otras regiones, de manera
que queda abandonada a los elementos hasta su completa ruina. La
ciudad tenía su propia civilización, incluidos sus propios dioses, y había
tenido los altibajos bélicos habituales en las ciudades-estado antiguas,
pero su destrucción se había debido simplemente a la inercia y la
entropía, hasta caer en un olvido tal que ni su nombre había pervivido.
De este modo, podía servir de buen ejemplo del “cycle de décadence et
de décrépitudes”16 (ANGELLIER, 1909, p. 94), que el poema ilustra con un
alto grado de verosimilitud arqueológica, ateniéndose a las leyes de la
naturaleza y siguiendo procesos conocidos de civilizaciones similares de la
historia de la humanidad.

15 Esta definición, que creemos precisa y correcta, excluiría de la fantasía épica varios de
las ficciones sobre ruinas consideradas en el presente ensayo. Para superar esta limitación
perfectamente justificada desde el punto de vista de la teoría literaria, podríamos proponer
una categoría más amplia de fantasía fabulosa. Esta abarcaría la fantasía épica y los demás
mundos secundarios de cualquier clase, esto es, todo lo que en inglés se denomina fantasy
en general, incluidos aquellos a los que se accede desde el mundo primario (portal fantasies
o fantasías liminares). Se trataría entonces de lo que los antiguos llamaban la fábula como
modalidad literaria opuesta a la historia, que se supone ser real y fiel a los sucesos del mundo
primario. La literatura mimética funciona como la historia, pues su búsqueda de la ilusión o el
efecto de realidad implica que, a efectos semióticos y narratológicos, una ficción mimética o
realista equivalga a un reportaje, como bien advirtió Stéphane Mallarmé.
16 “ciclo de la decadencia y de las decrepitudes” (ANGELLIER, 2021, p. 171).

275
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Aun aprovechando los conocimientos aportados por las ciencias


históricas, hubo otros textos decadentistas en los que las ruinas remiten a
unas épocas fabulosas, cuando lo sobrenatural se manifestaba realmente.
Así ocurre, por ejemplo, en dos poemas sobre un tipo de edificios que,
por ser morada de la divinidad, podían hacer admitir mejor la existencia
y actuación de entes más allá de lo humano. En el soneto de Arturo Graf
“Tempio distrutto”, publicado en su libro Le Danaidi (1897, con versión
ampliada en 1905), unas pobres piedras dispersas en una altura es lo
único que queda del templo destruido indicado en el título. Allí se rendía
culto a un numen en una época pretérita y lejana, “quando Natura / [i]
voti udiva della umana gente” (GRAF, 1905, p. 14)17, cosa que rara vez
ha hecho la Naturaleza (con mayúscula inicial que la diviniza) después,
en los tiempos históricos. Más claramente extraordinario es el templo
cuyos restos gigantescos se describen en el poema de Léon Dierx titulado
“La Ruine” y recogido en la edición de 1879 de su obra Les Lèvres closes.
Ese templo arruinado, que se contempla en una visión onírica, es el
testimonio material de un tiempo legendario “bien avant Babel, bien
avant l’Atlantide”18 (DIERX, 1925, p. 173), esto es, anterior incluso a las
urbes legendarias de los mitos mejor conocidos en Europa, lo que lo
sitúa en una antigüedad prehumana. A eso se suma que el tamaño de
los vestigios es tan desmesurado que sus dimensiones parecen asimismo
incluso imposibles en una construcción fabricada por los hombres:
C’était, au centre et hors des épaisseurs du sable,
Un temple ruiné, mais colossal encor
Mille fois plus que ceux de Karnak et d’Angkor.
Des escaliers sans fin, portant des avenues
De monstres, s’étageaient, s’écroulaient dans les nues
Dont ils semblaient former le lit torrentiel.19 (p. 173)

17 “cuando Natura / oía los votos de la humana estirpe” (GRAF, 2021, p. 170).
18 “mucho antes que Babel y la Atlántida” (DIERX, 2020, p. 20).
19 “era un templo que emergía de las espesuras de arena, en ruinas, aunque todavía

276
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

El edificio es monstruoso no solo por su arquitectura, sino también


por las representaciones igualmente colosales de gran número de
dioses, todos ellos abrumadores y tan horribles que espantan incluso a
los cielos. El templo es el vestigio grandioso y temible de una civilización
sangrienta y opresora anterior a todas las demás, pero cuyo poder no le
sirvió para salvarse ni del Silencio ni del Olvido, los dioses simbólicos que,
con significativa mayúscula inicial resultan ser los últimos, aquellos “en
qui tout se confond”20 (p. 174). Ni siquiera una civilización sobrehumana
se pudo salvar, pues, del apocalipsis histórico. La descripción del
templo, hecha en un estilo soberbio que hace palpable la sublime
fascinación de sus ruinas como reliquia de una realidad pasada aún más
sobrecogedora, añade a lo meramente visual una reflexión pesimista
acorde con el decadentismo, pero que se adelanta a su época al aportar
un modelo, consciente o no, para futuras descripciones de territorios
épico-fantásticos constituidos por ruinas en las que parecen perdurar
misteriosamente los monstruosos númenes del pasado, de una manera
que anuncia las atmósferas weird de Lovecraft.
El templo en ruinas de Dierx transporta la imaginación a aquel
lejano período habitado por dioses y gigantes, con quienes contrasta la
pequeñez de las obras de la humanidad actual, que se antojan ridículas
frente al poderío supremo de la civilización creadora de aquel edificio,
cuyo aspecto mismo sustenta la estética de lo sublime adoptada. La
comparación ahí implícita entre una civilización legendaria y grandiosa
del pasado y otra posterior incapaz de emulara constituye el fundamento
temático de un breve poema narrativo de Arturo Graf titulado “La città dei
titani” y publicado en el citado libro Le Danaidi. La influencia parnasiana

colosal, mil veces más grande que los de Karnak y Angkor. Escaleras sin fin, que sostenían
avenidas de monstruos, se superponían y caían entre las nubes, a las que parecían servir de
torrentera” (DIERX, 2020, p. 20).
20 “en los que todo se confunde” (DIERX, 2020, p. 20).

277
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

se manifiesta sobre todo en su escritura marmórea, con imágenes que


no alteran la esencia de las cosas, sino que las dignifican mediante la
perfección del ornato retórico, pese a que la lengua áulica de Graf aún
sigue, tanto en “La città dei titani” como en “Tempio distrutto”, las
convenciones lingüísticas del toscano literario neoclásico, aunque sea con
bastante menos artificiosidad que en la poesía del vate nacional Giosuè
Carducci. En cambio, el compromiso cívico de este último lo asume
también Graf en “La città dei titani”, que cabe considerar un logrado
ejemplo de fantasía fabulosa satírica en la medida en que se trata de una
parábola de la mediocridad moderna frente a la potente energía, en el
arte y en la vida, de los predecesores antiguos, cuyas construcciones, aun
en ruinas, se perciben como insuperables.
La ciudad del poema, que no tiene nombre, es la obra inacabada de
unos titanes que se identifican con los de la mitología griega, de modo que
se podría pensar que nos encontramos ante una muestra de mitografía
épica en torno a un mito de nueva creación, inventado por Graf. Según
este, los titanes se pusieron a construir una ciudad en la que “a sovrumana
possa, a divo ingegno / appar congiunta inimitabil arte”21 (GRAF, 1905,
p. 16) a fin de demostrar que su perfección no precisaba el concurso
de las divinidades, a las que no se rendiría culto en la nueva urbe. Por
desgracia para esta suerte de utopía artística y laica, la victoria de Zeus y
los dioses olímpicos en su mítica guerra con los titanes impidió dar cabo
al proyecto. Las bellas y enormes construcciones inacabadas con aspecto
de ruinas permanecen como testimonio de una desmesura inigualable
para los hombres en un tiempo posterior, que no es ni el de la mitología
patrimonial griega ni el histórico del mundo primario. Entre los titanes y
la humanidad actual se intercala el tiempo intermedio y cerrado de un
mundo secundario en el que se oponen la ciudad titánica y un pueblo

21 “un arte inimitable aparece unido a una fuerza sobrehumana, a un ingenio divino”
(GRAF, 2018, p. 112).

278
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

nómada de enanos mediocres que no cabe identificar con los pigmeos


africanos, sino que sería otra raza desconocida de la historia y la biología,
esto es, una estirpe fabulosa. Aquellos enanos se esfuerzan por rivalizar
con sus predecesores acabando la ciudad, pero la grandiosidad de esta es
tal que, una vez marchados los titanes, nadie más podrá darle término, ni
tampoco destruirla, como intentan por despecho los enanos, antes de que
renuncien y la abandonen, abrumados por lo sublime de la construcción
y por su propio fracaso. Esta peripecia apunta al carácter simbólico del
enfrentamiento: los petulantes pigmeos del presente ni pueden crear
obras comparables a las ruinas troncas que han quedado de la Antigüedad,
ni tampoco podrán condenarlas al olvido, por mucho que intenten
destruirlas y anularlas a través de propuestas estéticas alternativas. Este
fracaso sugiere el carácter irreversible de la decadencia, considerada esta
desde el punto de vista estético, aunque también moral, pues a la libertad y
el valor de los titanes se contrapone la esclavitud religiosa y la palabrería
modernas. De este modo, la mitografía, por un lado, y su ampliación a los
terrenos de la fantasía épica, por otro, sostienen un mundo ficticio que, sin
importar la escritura parnasiana del poema, funciona mediante símbolos.
La explotación por Graf del acervo mitológico patrimonial se enriquece
así mediante la creación de lugares imaginarios en los que evolucionan
sociedades igualmente inventadas como signos de determinados
conceptos y actitudes. Al significado general de las ruinas como testimonio
material de que se ha producido el lento o rápido final catastrófico de una
civilización se suma una interpretación moral y filosófica que introduce
variados matices en la explicación del apocalipsis. Desde este punto de
vista, “La città dei titani” presenta similitudes con un par de tratamientos
simbolistas del motivo de la ciudad en ruinas.
Aunque estas se presenten como un enigma en varias de los poemas
parnasianos arriba evocados, los autores de estos suelen prescindir de la
especulación directa sobre el apocalipsis sucedido, prefiriendo en su lugar

279
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

recrearse sensorial y estéticamente en la propia belleza de los restos.


Por su parte, Graf procede a una mitopoiesis que, al explicar claramente
el origen de la ciudad de los titanes, orienta la atención hacia la sátira,
despejándose mediante este procedimiento el misterio que plantea
intrínsecamente un mundo secundario, cuyo orden ontológico propio se
desconoce en principio por ser independiente del histórico. En cambio,
y de acuerdo con la atracción simbolista por la sugerencia poética de
otras realidades más allá de la consensuada como real, otros escritores
optaron por explotar más bien las posibilidades éticas y estéticas que
podía aportar la ambientación de sus ficciones en universos imaginarios
dotados de connotaciones simbólicas. Las ruinas en estos espacios
constituyen escenarios cargados de sentido tendentes a una suerte de
alegoría moral. No obstante, el planteamiento simbolista procura evitar
las correspondencias nítidas entre los conceptos abstractos y las figuras
que los encarnan. La geografía del mundo secundario sirve al propósito
de parábola, correspondiendo a los lectores el cometido de ejercer su
imaginación, su creatividad y su intelecto para reconstruir mentalmente el
tenor de ese mundo, incluidos los mecanismos de su funcionamiento y su
significado. Aunque este último pueda revelarse al final, el desarrollo de la
trama incide en el misterio del sitio inventado y de lo que ocurre en él, con
miras a una configuración intuitiva del sentido del mundo secundario y de
las ruinas que lo llenan. Por otra parte, su descripción suele ser estática,
sino que se inscribe en un marco narrativo por el que se recrea la historia
de la comprensión creciente de ese mundo por parte de un personaje
ajeno a él y que acompaña a los lectores que se adentran virtualmente en
las enigmáticas construcciones y ciudades arruinadas.
El misterio de las ruinas no es solo histórico, puesto que no se miran
tan solo como un testimonio de un pasado muerto, esto es, como algo
externo al observador. Al adoptar el esquema del viaje imaginario, el
protagonista del marco narrativo accede a un mundo secundario en el que

280
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

las ruinas sirven de metáfora de unos acontecimientos apocalípticos que


han dejado como legado la atmósfera ominosa de muerte y destrucción
que aún flota entre ellas. A diferencia de narraciones épico-fantásticas de
espada y brujería como “Black Colossus” (1933), de Howard, en las que
las ruinas imponentes de antiguas capitales imperiales albergan fuerzas
demoníacas supervivientes a la propia destrucción de la civilización que
las había producido y a las que se enfrenta violentamente el héroe para
poder sobrevivir venciéndolas, el viajero de la fantasía fabulosa simbolista
no lucha contra otro enemigo que no sea la imposibilidad aparente de
entender el mundo secundario, cuya extrañeza es un escándalo para la
integridad de la razón. El horror de la locura acecha entre unas ruinas
difícilmente descifrables. Así ocurre, por ejemplo, en “La Ville sans effroi”,
cuento de Bernard Lazare de 1891 recogido en su libro Le Miroir des
légendes (1892). En ese relato, un buscador de tesoros innominado de una
época indeterminada llega a una ciudad antigua en ruinas en la que sus
habitantes vagan como sombras, sin hablar ni dar señales de vida humana
e inteligente, de forma similar a “Los inmortales” del cuento de 1947
de Jorge Luis Borges luego titulado “El inmortal” en El Aleph (1949). De
hecho, Borges sigue el mismo el procedimiento que emplea Lazare para
comunicar el terror de la incomprensión frente a un mundo secundario
ajeno a la razón y las leyes humanas y naturales del mundo primario:
L’inquiétante étrangeté de ce qui s’apparente alors
à un récit de cauchemar aiguise un mystère dont la
tension croit jusqu’au paroxysme. Point de menace
physique à l’encontre du voyageur, mais, comme une
épreuve beaucoup plus insoutenable, le regard et
les questions sans réponse qu’il adresse à des êtres
privés de voix et de regard – partant privés de leur
humanité. 22 (VIBERT, 2009 p. 203)

22 “La inquietante extrañeza de lo que entonces parece un relato de pesadilla agudiza un


misterio cuya tensión crece hasta el paroxismo. El viajero no se enfrenta a amenaza alguna,

281
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

El viajero de “La Vie sans effroi” siente al inicio la armonía entre su


tristeza de buscador frustrado y la propia frustración que sugieren los
“débris des arcs triomphaux, frustrés des gloires antiques”23 (LAZARE,
2009, p. 208), las estatuas derribadas que conmemoran antiguas gestas
heroicas o dioses olvidados, las columnas truncadas “dont les cannelures
suintaient des larmes, évocatrices de deuils prodigieux”24 (p. 208). El
sentimiento melancólico de pérdida se torna, empero, en espanto cuando,
adentrándose en la ciudad en ruinas y aparentemente abandonada, nota
la presencia vagamente hostil de personas que vagan a su alrededor
por las calles, pero que no parecen advertir su presencia ni responden
a sus preguntas, como si fueran autómatas. Tal espectáculo le hace huir
horrorizado y medio demente hasta una plaza donde encuentra un viejo
ermitaño que se había instalado allí para gustar de la calma entre las
“ombres prisonnières, retenues aux lieux qu’elles aimèrent jadis”25 (p.
209). El anciano reprocha al viajero que haya roto la soñante inconsciencia
de la ciudad, pero le explica por fin que esta había sido próspera, pero
que sus habitantes se entregaban a los placeres del cuerpo y desdeñaban
tanto la fe como el arte. Como castigo, un hombre santo los había
maldecido en nombre de los dioses diciéndoles que no conocerían el
miedo. Por desgracia, a la vez que el temor desaparecieron la curiosidad,
las tentaciones y las emociones todas, de manera que la ciudad cayó en
un estado de indiferencia perpetua e insensible, quedando reducidos sus
pobladores a meros cuerpos en movimiento, sin pasiones ni espíritu. Para
el eremita narrador de esta catástrofe, se trataba de un destino merecido

sino, como un calvario mucho más insoportable, a la mirada y las preguntas sin respuesta
que dirige a seres privados de voz y de mirada, es decir, privados de su humanidad”.
23 “restos de los arcos de triunfo, desposeídos de las antiguas glorias” (LAZARE, 2018, p. 112).
24 “cuyas acanaladuras rezumaban lágrimas evocadoras de duelos prodigiosos” (LAZARE,
2018, p. 112).
25 “sombras prisioneras, retenidas en los lugares que otrora habían amado” (LAZARE,
2018, p. 115).

282
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

a un modo de vida hedonista y descreído, que cabe comparar al de la Belle


Époque en la medida en que la mentalidad burguesa de entonces parecía
exaltar los meros valores materiales del beneficio y del bienestar material
típicos de un filisteísmo ampliamente criticado en la literatura esteticista
del período. No obstante, esta posible enseñanza que se extrae del
suceso apocalíptico puede entenderse como una conjetura interesada de
un religioso, que el viajero protagonista, el cual representa el verdadero
punto focal de la narración, ni confirma ni desmiente. Al final, solo queda
como realidad fuera de toda duda en la ficción la visión de la ciudad llena
de ruinas de piedra y de ruinas de carne, cuya expresión confía Lazare
a un estilo extremadamente ornado y exuberantemente sensual en su
registro decadentista. Los particulares muy pormenorizados contribuyen
a generar un espacio que es, a la vez, muy concreto y, paradójicamente,
enigmático. La ciudad sin temor y sin nombre constituye así un mundo
secundario perfectamente caracterizado, pero cuya fuerza sugestiva no
queda rebajada ni siquiera por la explicación propuesta, una explicación
que, además, no es racional. El efecto catastrófico de la maldición se
debe a una intervención sobrenatural de carácter mágico y, como tal,
inexplicable racionalmente, aunque verosímil si aceptamos el pacto de
lectura de la fantasía épica y fabulosa.
La clasificación como ficción épico-fantástica es quizá menos clara
en otra fantasía simbolista que cabe considerar asimismo precedente
de “El inmortal” de Borges. En “La Ciudad Eterna” (1902), de Francisco
Navarro Ledesma, se narra un viaje imaginario a una simbólica ciudad en
ruinas debido a una decadencia de orden moral, pero su marco es distinto
al empleado por Lazare y Borges, ya que no se trata de la introducción
descriptiva y narrativa de un mundo secundario dentro de otra narración
ambientada en el mundo primario. El marco de la parábola de “La Ciudad
Eterna” es un diálogo de los muertos que parece tener lugar en el Parnaso,
a juzgar por el hecho de que todos los interlocutores sean famosos

283
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

escritores e intelectuales antiguos y modernos. Uno de ellos es Dante


Alighieri y es él quien cuenta su viaje a una ciudad terrenal, pero situada
en un espacio que cabe leer también como simbólico, tal y como hace
pensar que su narración empiece de forma parecida a como lo hace su
divina Commedia. De hecho, la ciudad visitada se encuentra en un claro de
una selva oscura y temible, donde hasta las plantas parecen estar muertas.
Tampoco hay vida animal en la urbe visitada, llamada Azanatópolis, esto
es, “la ciudad donde no se muere” (NAVARRO LEDESMA, 2020, p. 125).
En ella solo se ven ruinas monumentales. Los elementos arquitectónicos
derrumbados, las estatuas desfiguradas por los elementos, la falta de vida
y el ominoso silencio generan una atmósfera sobrecogedora y sublime a
la par. La Ciudad Eterna parece la imagen sensible del poder imperioso
del tiempo. Sus ruinas ni siquiera parecen algo posible en nuestro
mundo primario debido a la falta de animación incluso animal, aunque
su aspecto corresponde al grandioso inspirado en las ruinas clásicas
y orientales que ya hemos visto era habitual en esta clase de fantasías
decadentes, con sus “plazas grandiosas adornadas con pesados arcos
triunfales cuyas leyendas se habían borrado, o por estatuas broncíneas
cuyas facciones había carcomido el verdín” (p. 126). Tal visión no tarda
en inquietar a Dante, cuyas reacciones coinciden en gran parte, tanto
por sus motivos como por su expresión emotiva, con las de los viajeros
buscadores de “La Ville sans effroi” y “El inmortal”. El de Navarro Ledesma
se diferencia de ambos relatos, entre otras cosas, por el hecho de que su
ciudad carece de habitantes, excepto un arquetípico judío que transcurre
su avara existencia reuniendo obsesivamente monedas de todas las
épocas y lugares. Es él quien narra en griego a Dante la manera en que
los virtuosos pobladores de la ciudad que sería Azanatópolis recibieron
del Demiurgo la inmortalidad como premio. Tras la alegría primera, tal
don acabó revelándose un regalo envenenado. La imposibilidad de morir
restaba todo interés al amor y a la vida, al haber desaparecido cualquier

284
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

consecuencia definitiva de las buenas o malas acciones. Por unos u


otros motivos, los habitantes acabaron renunciando a su inmortalidad
mediante la huida de la ciudad, temerosos de la vida apática que se cernía
eternamente sobre ellos, una vida eterna que entrañaba el riesgo real de
acabar convirtiéndose en seres tan despojados de humanidad genuina
como los descritos por Lazare y, décadas después, por Borges, con cuyo
cuento el de Navarro Ledesma guarda no pocas similitudes. Aparte de las
coincidencias de detalle, existe en ambos “el sentimiento de lo sublime
que se desprende de las ruinas de piedra, así como del atroz destino de
una ciudad que pone de relieve los límites existenciales de la idea de
inmortalidad” (MARTÍN RODRÍGUEZ, 2020, p. 50). Lo que parecía una
bendición se torna en lo opuesto, de modo que de las dos civilizaciones
urbanas inmortales no quedan más que restos pétreos y unos habitantes
igualmente degradados desde un glorioso estado anterior. En definitiva,
este destino es el mismo que el que se explica por una maldición en “La
Ville sans effroi”, de modo que las ruinas reafirman su simbólico valor
admonitorio. Como afirma Hegel en el cierre del marco de “La Ciudad
Eterna” en forma de diálogo mortuorio, “la Muerte es el último resorte
de la vida” (NAVARRO LEDESMA, 2020, p. 131).
Este horizonte mortal espera tanto a los individuos como a
las civilizaciones tanto en el mundo primario como en los mundos
secundarios de la fantasía épica y fabulosa, al menos en aquellos cuyos
subcreadores, conscientes del curso natural de la vida individual y
colectiva, niegan todo fácil consuelo mediante la ficción y presentan, en
forma de estampas parnasianas o de parábolas simbolistas, la certeza de
la decadencia universal tras cualquier auge. El tiempo de la historia, igual
que el de la fábula, es una sucesión de catástrofes ineludibles, de los que
solo quedan huesos y ruinas que contemplamos, entre sobrecogidos por
lo que anuncian y admirados por su sublimidad misteriosa y terrible,
a través de estas visiones decadentistas inspiradas por los continuos

285
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

apocalipsis que se han sucedido trágica e ineludiblemente a lo largo de


la historia, anunciando desde su pasado real (la antigua Roma y mundos
primarios similares) o fabuloso (la Atlántida y mundos secundarios
similares) el futuro apocalíptico que acecha también a las civilizaciones
del presente. Las ruinas, reales o ficticias, son el espejo en el que se
refleja nuestro porvenir.

Referencias
ANGELLIER, Auguste. La ville ruinée. In: ANGELLIER, Auguste. Dans la lumière
antique: Les Épisodes (seconde partie). Paris: Hachette et Cie, p. 94-104, 1909.
ANGELLIER, Auguste. La ciudad arruinada. Hélice: Reflexiones Críticas sobre
Ficción Especulativa, v. 7, n. 1, p. 171-174, 2021. Disponible en: https://www.
revistahelice.com/revista_textos/n_30/H%C3%A9lice%2030%202021%20
Primavera-Verano%20VISIONES%20TRAS%20LOS%20APOCALIPSIS.pdf. Acceso
en: 15 jun. 2021.
BRAGA, Corin. La littérature “fantasy”. In: BRAGA, Corin. Pour une morphologie
du genre utopique. Paris: Classiques Garnier, p. 39-44, 2018.
DAVID, Marie-France. Antiquité latine et décadence. Paris: Honoré Champion,
2001.
DIERX, Léon. La Ruine. In: DIERX, Léon. Œuvres poétiques complètes. Poèmes et
poésies. Les Lèvres closes. 7. ed. Paris: Alphonse Lemerre, p. 172-174, 1925.
DIERX, Léon. La ruina. Delirio, n. 27, p. 20, 2020.
FEIJÓ, António. Ruínas. In: FEIJÓ, António. Sol de Inverno: seguido de Vinte
Poesias Inéditas. Lisboa: Imprensa Nacional Casa de Moeda, p. 142, 1981.
FEIJÓ, António. Ruinas. Hélice: Reflexiones Críticas sobre Ficción Especulativa,
v. 7, n. 1, p. 176, 2021. Disponible en: https://www.revistahelice.com/
revista_textos/n_30/H%C3%A9lice%2030%202021%20Primavera-Verano%20
VISIONES%20TRAS%20LOS%20APOCALIPSIS.pdf. Acceso en: 15 jun. 2021.
FRANCE, Anatole. La Vision des ruines. In: FRANCE, Anatole. Les Poëmes dorés.
Paris: Alphonse Lemerre, p. 41-46, 1873.
FRANCE, Anatole. La visión de las ruinas. Hélice: Reflexiones Críticas sobre
Ficción Especulativa, v. 7, n. 1, p. 169, 2021. Disponible en: https://www.

286
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

revistahelice.com/revista_textos/n_30/H%C3%A9lice%2030%202021%20
Primavera-Verano%20VISIONES%20TRAS%20LOS%20APOCALIPSIS.pdf. Acceso
en: 15 jun. 2021.
GARCÍA PÉREZ, Rafael. Interpretaciones de la ciudad muerta en la poesía francesa
y española. Çédille: Revista de Estudios Franceses, n. 4, p. 119-130, 2008.
GRAF, Arturo. Tempio distrutto. In: GRAF, Arturo. Le Danaidi. 2. ed. Torino:
Ermanno Loescher, p. 14, 1905.
GRAF, Arturo. Templo destruido. Hélice: Reflexiones Críticas sobre Ficción
Especulativa, v. 7, n. 1, p. 170, 2021. Disponible en: https://www.revistahelice.
com/revista_textos/n_30/H%C3%A9lice%2030%202021%20Primavera-
Verano%20VISIONES%20TRAS%20LOS%20APOCALIPSIS.pdf. Acceso en: 15 jun.
2021.
GRAF, Arturo. La città dei titani. In: GRAF, Arturo. Le Danaidi. 2. ed. Torino:
Ermanno Loescher, p. 15-18, 1905.
GRAF, Arturo. La ciudad de los titanes. Hélice: Reflexiones Críticas sobre Ficción
Especulativa, v. iv, n. 10, p. 112, 2018. Disponible en: https://revistahelice.com/
revista_textos/n_24_sup/Suelto%20La%20ciudad%20de%20los%20titanes.pdf.
Acceso en: 15 jun. 2021.
LACARRIÈRE, Jacques. La Fin du monde. In: LACARRIÈRE, Jacques. Au cœur des
mythologies: En suivant les Dieux. Paris: Oxus, p. 325-339, 2004.
LAZARE, Bernard. La Vie sans effroi. In: VIBERT, Bertrand (Ed.). Contes
symbolistes. Vol. I. Grenoble: Ellug, p. 205-212, 2009.
LAZARE, Bernard. La vida sin temor. Hélice: Reflexiones Críticas sobre Ficción
Especulativa, v. 4, n. 10, p. 113-116, 2018. Disponible en: https://www.
revistahelice.com/revista_textos/n_24_sup/Suelto%20La%20vida%20sin%20
temor.pdf. Acceso en: 15 jun. 2021.
MARTÍN RODRÍGUEZ, Mariano. Fantasía épica panlatina: lugares simbólicos.
Hélice: Reflexiones Críticas sobre Ficción Especulativa, v. 5, n. 2, p. 194-205,
2019-2020. Disponible en: https://www.revistahelice.com/revista_textos/n_27/
Helice%2027%202019%20Oto%c3%b1o-Invierno%20FANTASIA%20EPICA%20
PANLATINA.pdf. Acceso en: 15 jun. 2021.
MARTÍN RODRÍGUEZ, Mariano. Originalidad y representatividad de un erudito
escritor toledano: Francisco Navarro Ledesma y la literatura finisecular. In: NAVARRO
LEDESMA, Francisco. Los nidos de antaño. Toledo: Ledoria, p. 11-99, 2020.

287
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

MORTIER, Roland. La Poétique des ruines en France: Ses origines, ses variations
de la Renaissance à Victor Hugo. Genève: Droz, 1974.
NAVARRO LEDESMA, Francisco. La Ciudad Eterna. In: NAVARRO LEDESMA,
Francisco. Los nidos de antaño. Toledo: Ledoria, p. 124-131, 2020.
PETROFF, Alexandru. Cetatea moartă. In: SCARLAT, Mircea (Ed.). Climat poetic
simbolist. București: Minerva, p. 127-128, 1987.
PETROFF, Alexandru. La ciudad muerta. Hélice: Reflexiones Críticas sobre
Ficción Especulativa, v. 7, n. 1, p. 175, 2021. Disponible en: https://www.
revistahelice.com/revista_textos/n_30/H%C3%A9lice%2030%202021%20
Primavera-Verano%20VISIONES%20TRAS%20LOS%20APOCALIPSIS.pdf. Acceso
en: 15 jun. 2021.
PIERROT, Jean. L’Imaginaire décadent (1880-1900). 2. ed. Mont-Saint-Aignan:
Publications des Universités de Rouen et du Havre, 2007.
SAMAIN, Albert. Ciudad muerta. In: SAMAIN, Albert. El jardín de la infanta.
Granada: Comares, p. 229, 1993.
SAMAIN, Albert. Ville morte. In: SAMAIN, Albert. Œuvres poétiques complètes.
Paris: Classiques Garnier, p. 162, 2015.
TRĘBICKI, Grzegorz. Mythic Elements in Secondary World Fantasy and
Exomimetic Literature. In: RATAJCZAK, Tomasz; TROCHA, Bogdan (Eds.).
Mityczne scenariusze. Od mitu do fikcji, od fikcji do mitu. Zielona Góra: Oficyna
Wydawnicza Uniwersytetu Zielonogórskiego, p. 41-52, 2011.
TRĘBICKI, Grzegorz. Supragenological Types of Fiction versus Contemporary
Non-Mimetic Literature. Science Fiction Studies, v. 41, n. 3, p. 481-501, 2014.
VIBERT, Bertrand. La Vie sans effroi. In: VIBERT, Bertrand (Ed.). Contes
symbolistes. Vol. i. Grenoble: Ellug, p. 203-205, 2009.
ZANNÉ, Jeroni. L’urbs ignota. In: ZANNÉ, Jeroni. Poesia original completa.
Barcelona: Trípode, p. 274, 2019.
ZANNÉ, Jeroni. La urbe ignota. Hélice: Reflexiones Críticas sobre Ficción
Especulativa, v. 5, n. 2, p. 208, 2019-2020. Disponible en: https://www.
revistahelice.com/revista_textos/n_27/Helice%2027%202019%20Oto%c3%b1o-
Invierno%20FANTASIA%20EPICA%20PANLATINA.pdf. Acceso en: 15 jun. 2021.

288
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

LA APERTURA DEL ESPACIO POSAPOCALÍPTICO


EN EL FIN DE SIGLO ESPAÑOL
Juan Herrero-Senés

El objetivo del presente artículo es investigar una particular


configuración de lo que podría denominarse el espacio posapocalíptico,
esto es, el lugar – como configuración espacio-temporal – que se abre
una vez concluye un evento apocalíptico. Este espacio, naturalmente,
estaría reservado para los supervivientes de la destrucción, en el caso de
haberlos, y ellos serían los encargados de constituir sus coordenadas.
Este espacio posapocaliptico posee varias características: en
principio, es inédito para aquellos que lo habitan, aunque pueden
encontrarse ejemplos en un pasado mítico (por ejemplo, en el momento
posterior al diluvio universal). El apocalipsis puede venir sin desearlo
el hombre – así en eventos de origen religioso, o bien producidos por
un desastre natural, o bien provocados sin intención por el hombre, así
merced a un error o similar – o puede haber sido producido a propósito
por alguien con determinadas intenciones. En el primer sentido tenemos
un espacio encontrado, lo que aumenta su aspecto sorpresivo y radical.
En el segundo sentido el espacio posapocalíptico se ofrecería inicialmente
a la manera de una utopía negativa. Veremos luego qué supone una
elección autoral u otra. En cualquier caso, de entrada, se presenta como
un espacio de recomienzo, oportunidad histórica, anulación de la historia
y libertad absoluta. Tiene carácter de provisionalidad y urgencia, y a la
vez anularía la noción de obligación. Desde ese punto de vista, poseería
características que lo acercan a la heterotopía foucaultiana.

289
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

El espacio utópico se presenta como una ocasión única para la


renovación o refundación de la humanidad, y se aprovecha el hecho de
que el desastre funciona automáticamente como un nivelador social,
porque en principio borra las diferencias de clase y permite construir una
sociedad ab ovo. Es aquí cuando cabe preguntarse qué grado de borrado
se ofrece, esto es, en qué medida lo humano se presenta como susceptible
al cambio.
Las obras que contienen espacios posapocalípticos plantean un
interrogante a la vez individual y colectivo y cumplen varias funciones:
comentan y enjuician la sociedad del presente; avisan de peligros; dibujan
una dirección – o carencia de esta – en los acontecimientos históricos,
a partir de una clausura automática de la idea de progreso indefinido;
señalan patrones de desarrollo futuro, y en ese sentido apuntan a dónde
se ubicarían las claves de posibles modificaciones en la sociedad (¿en
la estructura política? ¿en la economía? ¿en los avances tecnológicos?).
Sirven para testar en qué medida la historia se repite y cómo, y si puede
servir de guía. Y en último extremo permiten cuestionar lo humano,
en qué medida la naturaleza humana es maleable, y cómo se asume la
transformación, tanto la interno como la externa.
Con estos parámetros, propongo analizar el espacio posapocalíptico a
partir de un caso de estudio: tal y como se presenta en la narrativa española
en el tránsito entre los siglos XIX y XX. Para ello voy a centrarme en tres
textos: “Cuento futuro” (1886) de Leopoldo Alas (Clarín), “Eva redentora”
(1901) de Alfredo Calderón y “Cuento absurdo” (1907) de Ángeles Vicente.
Me decido por estos tres porque permiten observar distintas versiones,
a partir de premisas disímiles, del mismo fenómeno. En su conjunto creo
que constituyen una buena muestra, a la que podrían sin duda unirse
otros textos (pienso por ejemplo en “El fin de un mundo” de Azorín o “Las
ruinas de Granada”, de Angel Ganivet), pues el apocalipticismo estuvo de
moda en el fin de siglo en todo occidente, y también en España, merced

290
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

a la convergencia de milenarismo, crisis identitaria nacional, cansancio


civilizatorio, decadentismo, utopismo, ambiente de revolución social y
hartazgo de la clase política, nihilismo y crisis de los valores, afianzamiento
de la perspectiva entrópica en la ciencia y percepción de aceleramiento del
tiempo histórico. En estas ficciones pueden palparse las tensiones entre el
individuo y la colectividad, entre el egoísmo y la solidaridad, la obsesión
por definir de una vez por todas una manera de conducir la propia vida
(eso que Andrés Hurtado busca en El árbol de la ciencia obsesivamente),
y la necesidad de creer en algo para eludir el fantasma del escepticismo
extremo, el pesimismo y la abulia.
Analizo los cuentos en orden cronológico. “Cuento futuro” de Clarín
está situado en un futuro infechado – donde Gran Bretaña ya no existe
– pero que recuerda poderosamente a la sociedad tardodecimonónica.
Encontramos una humanidad decadente, ultracivilizada, que muestra
crecientes señales de hartazgo de sí misma. Lo que inicialmente se
plasma como hastío terráqueo de la dependencia del sol alrededor del
cual se gira eternamente es convertido por el científico Judas Adambis
en una oportunidad para proponer el suicido colectivo como modo de
eliminar el tedio creciente de una humanidad ahíta de sus realizaciones
y que simultáneamente ha dejado de creer en la quimera del progreso
indefinido. Las reticencias de algunas minorías, del Papa, así como de
varios reyes e intelectuales a este paso definitivo son acalladas mediante
una votación donde la mayoría de la población mundial refrenda llevar a
cabo la idea.
Finalmente llega el día señalado en el que Adambis pulsa el botón que
matará sin dolor a todos los hombres. Descubrimos entonces que él y su
compañera Evelyn, a exigencias de esta, se salvan gracias a un antídoto,
y así se encuentran de repente solos y dueños del mundo. Aterrorizados
ante el panorama de la superficie terrestre cubierta de cadáveres, Judas
y Evelyn se montan en un globo desde el que se hacen conscientes de las

291
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

consecuencias de su decisión y de la inanidad a la que se enfrentan, pues


han perdido completamente su sentido y su valor el dinero y las posesiones,
y además están condenados a la absoluta soledad. A partir de ahí la
historia se convierte en un tira y afloja entre las exigencias caprichosas
de la mujer, dispuesta a reinar sobre un mundo vacío de alicientes, y los
remordimientos del científico por haber traicionado a la humanidad.
Carcomido por sus acciones y por la obcecación materialista de Evelyn
– incapaz de aceptar un mundo sin diversiones –, Adambis finalmente
dirige su aeróstato hacia Asia, con el objetivo de localizar el enclave
donde podría haberse situado el paraíso terrenal, el único lugar que se
mantendría virgen de destrucción y muerte. Finalmente lo encuentran, y
para su sorpresa en él está Dios de paseo. Un Dios comprensivo y afable
que no solo los perdona por sus acciones previas, sino que les invita a
recuperar el paraíso perdido tras la salida adánica, imponiéndoles una
condición similar: no comer cierta manzana. Evelyn rompe la prohibición
y cuando Dios decide echar a la pareja, Adambis replica que su expulsión
es injusta porque él no ha mordido – lo que provoca que Evelyn le prohíba
acercársele. Judas prefiere quedarse solo ahí que acompañar a su todavía
novia, con lo que la humanidad queda condenada a no perpetuarse.
Clarín buscaba burlarse de la difusión de lo que entendía como
pensamientos desmoralizadores puestos en boga por escritores aburridos
y necesitados de épater le bourgeois y desestimar de manera amable
las ideas apocalípticas recordando la situación más que decente de su
presente, que precisamente por haber alcanzado un estadio civilizatorio
avanzado se permitía matar el aburrimiento soñando con un holocausto
autoinflinjido que se olvidaba – como le pasa a Evelyn – de todo lo
que perdía. Clarín denunciaba así el grado de absurdidad al que podía
llegar cierto pensamiento con ínfulas metafísicas y cómo, por medio de
la persuasión, este podía alcanzar a la opinión pública. Bajo el manto
humorístico, el cuento consigue captar en la primera parte el ambiente

292
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

derrotista y sombrío, y en último extremo el tedio vital – tanto real


como el de mera pose – que cundió entre cierta intelectualidad europea
en el último tercio del XIX, aquel ante el cual se rebeló Nietzsche. Más
específicamente, Clarín se hace aquí eco no solo de las teorías sobre el
cansancio civilizatorio, sino particularmente de la propuesta de suicidio
universal que el filósofo alemán Eduard von Hartmann (1842-1906) había
promovido en su obra Filosofía del inconsciente (1869) a partir de las tesis
de Arthur Schopenhauer sobre la eliminación del dolor en el mundo.
Judas Adambis es un ejemplo más de una larga lista de médicos
y científicos, apadrinados por Victor Frankenstein, que llevan sus
experimentos al límite y en cierto momento se erigen como representantes
de la humanidad, cuando no sus salvadores. Su protagonismo confirma
el reconocimiento del papel cada vez más decisivo – y prominente – que
la investigación científica y tecnológica estaba adquiriendo en Occidente,
y a la vez plasma los recelos ante esta de un sector de la sociedad – y
del propio autor. Pero los remordimientos de Adambis también nos hacen
ver los problemas de consciencia a los que los científicos podían verse
enfrentados en sus arriesgados experimentos, un tema que solo haría que
adquirir predominancia con el paso del tiempo.
El catedrático y periodista republicano Alfredo Calderón (1850-1907)
publicó centenares de artículos en la prensa española exponiendo sus
ideas. En algunos de ellos puso en práctica el formato ficcional, siempre
supeditado al mensaje ideológico. El breve apólogo “Eva redentora” es un
buen ejemplo de ello. Apareció en junio de 1901 en el periódico La región
extremeña, en el que Calderón colaboraba con frecuencia.
“Eva redentora” se inicia explicando cómo se produjo el fin del
mundo. La causa no es ningún desastre o evento de grandes proporciones,
ni provocado por el hombre, sino una pandemia que fulmina de forma
silenciosa a toda la población mundial, con excepción de una pareja.

293
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Desde el primer momento los dos protagonistas tienen estatus


arquetípico, lo que dota a su historia de un sesgo universal, a lo que se une
la carencia de referencias espacio temporales. Son dos prometidos que se
reencuentran y empiezan a pensar qué hacer ahora que se han convertido
en los últimos humanos sobre la Tierra. El resto del cuento transcribe
su diálogo, que en realidad no es tal sino dos discursos del varón y la
mujer, provocados por las requisitorias del primero a procrear y poblar
la Tierra. La negativa de Eva provocará un intercambio de argumentos y
reproches. Para Adán, la decepcionante decisión de su compañera solo
puede ser fruto del trauma del apocalipsis recién vivido. A su parecer, la
continuación de la especie no es un deseo, sino un deber, que sigue la
tendencia de la naturaleza a ampliar el número de seres sobre la Tierra y a
proseguir el eterno ciclo de vida y muerte. Además, Eva no puede tener la
decisión última de acabar con la especie humana, pues esta corresponde
a Dios. Adán apela entonces, como último argumento, a la providencia: la
salvación de ambos tras la debacle es la señal de la voluntad de Dios de
continuar la especie humana.
Eva decide entonces responder. Considera que Adán actúa movido
por el sentimiento –que se ha sumado al instinto –, y que el uso de la razón
demanda suprimir el impulso reproductivo, porque precisamente por el
holocausto ha surgido la oportunidad, que solo depende de la voluntad de
la mujer, de dar fin a la especie humana. Para Eva, la decisión es evidente,
porque la historia de la raza humana sobre la Tierra es una “eterna tradición
de lágrimas e infortunios”. A lo largo de los siglos, los hombres han sido en
su gran mayoría desgraciados, y como no podemos suponer que eso va a
cambiar en el futuro, la mejor decisión es librar a la especie en su conjunto de
tantos males, impidiendo que la humanidad prosiga.
Ambos personajes mueren, primero el varón, incapaz de convencer
a Eva, y probablemente herido por la solidez de la argumentación y
luego Eva, dolorida y desamparada por su soledad. Pero en su última

294
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

exhalación siente que su decisión es la correcta por ahorrar a toda


humanidad futura “la abominación del vivir”. Con estas muertes, la
humanidad perece definitivamente.
Este cuento puede ser leído como la confirmación de un cambio
de tono en las narrativas apocalípticas españolas que ratifica la
incardinación de modos secularizados, a partir de la sustitución de
las ideas de Adán por las de Eva. En esta breve historia, La naturaleza
aparece como totalmente indiferente ante el destino de los hombres,
y Dios no tiene ningún lugar aquí – ni en tanto que justiciero antes o
después del evento apocalíptico, ni como razón suficiente –, ni como
soporte de la fe. La racionalidad, capaz de sobreponerse al deseo y a
los afectos, prescribe que la última Eva redima a la primera y frene la
creación de más seres que sufren. Calderón se alinea claramente con
la heroína que es la portavoz de sus ideas; no solo es esta una mujer
fuerte que contradice la visión tradicional de la fémina como movida
por las facultades inferiores frente a la racionalidad masculina, sino
que Eva niega a Dios, pero mantiene uno de los valores centrales del
cristianismo: el sacrificio, la compasión, en este caso ante la humanidad
futura. Todo esto implica, naturalmente, una visión sumamente
pesimista de la historia, la impugnación de una perspectiva donde el
progreso tenga algún tipo de juego, el rechazo de cualquier idea de
futuro, y el reemplazo de distintas formas de voluntarismo tradicional
por un realismo a la par pragmático sin renunciar al idealismo, por
sentirse portador de un sentir colectivo.
Soy consciente de la cierta injusticia que supone comparar un cuento
con propósitos humorísticos como el de Clarín con la ceñuda y agria
catilinaria de Calderón. Pero el uso por parte de ambos autores del relato
bíblico de la primera pareja abre la puerta a tal movimiento, y más si cabe
teniendo en cuenta que ambos explican el fin de la humanidad a partir
de la negativa de la última mujer sobre la tierra a ser fecundada. Pero ahí

295
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

terminan las similitudes. La caprichosa, volátil, e insustancial Evelyn se


contrapone a la profunda Eva que se erige en portavoz de los débiles de
la historia y hace precisamente lo opuesto: dejar de lado sus preferencias
personales. Clarín siente que tiene que disculparse por hacer de Dios un
personaje y por transcribir palabras suyas en el diálogo que mantiene
con los supervivientes, y confirma su respeto por la fe católica, pero no
muestra ningún pudor en incorporar la misoginia ampliamente presente
en esas mismas creencias, retirando las debilidades y vicios asociados a
la feminidad: curiosidad, ligereza, superficialidad, inconsistencia… ello sin
contar que Evelyn es a lo largo de todo el relato la culpable de los eventos
fatídicos, entre los que destacan la doble muerte de la humanidad (el
suicidio y el rechazo a la descendencia). Esta negativa, que en Evelyn
nace del despecho, en la Eva de Calderón es decisión meditada y no poco
dolorosa, pues no en vano le provoca la muerte.
Paso al último de los relatos. De Ángeles Vicente (1878-?) no sabemos
mucho, más allá de que pasó buena parte de su juventud en la Argentina
hasta que, ya de vuelta en Madrid, publicó entre 1906 y 1910 una novela
y dos recopilaciones de cuentos, Los buitres y Sombras, cuya característica
común es el alejamiento temático del realismo y el costumbrismo en favor
de asuntos fantásticos, ocultistas, psíquicos, espiristas y científicos. De
entre ellos aquí nos interesa la narración titulada “Cuento absurdo”.
En ella se explica la historia de Arides, un científico de ideas
libertarias que ha conseguido desarrollar un arma capaz de acabar con
toda forma de vida. Tras reunir en su laboratorio a un grupo de fieles
con los que pretende refundar la Tierra, pone en marcha su artefacto. La
salida confronta a los que se han salvado con un mundo detenido en el
tiempo y cubierto de cadáveres del que pronto deciden tomar posesión.
Rápidamente comenzaran a producirse conflictos entre los miembros del
grupo de supervivientes y a repetirse los comportamientos y actitudes
posesivas, egoístas y malvadas que caracterizaban a la sociedad previa a

296
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

la destrucción, por lo que finalmente Arides, abatido y frustrado ante el


fracaso de su experimento de reinicio de la humanidad, vuelve a accionar
la palanca de la máquina y acaba con todos, él incluido.
El texto puede leerse como reacción a la sensación de estar viviendo
un momento sociopolítico convulso y donde distintos actores sociales
plantearon reciamente un horizonte de transformación. En el caso de
Vicente, el contexto específico vendría dado por el pulso entre gobierno
y sociedad civil encapsulado en los acontecimientos de la Semana Trágica
de Barcelona y el auge de movimientos sociales basados en propuestas
políticas de signo radical como el anarquismo que propugnaban la
necesidad de reescribir el contrato social frente a la maldad del poder y
la opresión económica para ofrecer al individuo el mayor espacio posible
de libertad.
Las posibilidades de una alternativa tal impulsaron a esta autora
– como a otros – a fabular las circunstancias de ese cambio y cuáles
serían sus posibles consecuencias. Y decidió ir a por el órdago y plantear
un escenario de transformación súbita que comportaba la anulación
de todas las convenciones y regulaciones sociales, bajo la égida de un
simple credo que el científico Arides verbaliza así: “no tendremos más
leyes que nuestros instintos” (CALDERÓN, 1907, p. 342). Su invento
mortífero proporciona la oportunidad única de testar una idea que una
nutrida cantidad de autores habían presentado con tonos utópicos,
asumiendo los presupuestos de la bondad innata del hombre y su
capacidad para generar un orden de convivencia natural no opresivo.
Para ello, nuevamente, Ángeles Vicente recurre al tópico del agente
destructor humano – un científico – que utiliza su invento para acabar
con la humanidad, salvándose él y unos pocos escogidos.
“Cuento absurdo” asume como punto de partida implícito la noción
de utopía en la promesa que Arides presenta a sus acólitos, para luego
proporcionar un desenlace en sintonía con el desarrollo de este subgénero

297
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

en las primeras décadas del siglo XX: su desvelamiento como distopía. Eso
significa abrazar, por una parte, el impulso latente de las sociedades y de
sus intérpretes hacia un mundo mejor y que se contempla como posible
– frente a la posmodernidad y nuestro presente donde la utopía se ha
convertido en impensable, esto es, parece no poder ser pensada – y, por
otra parte, patentiza un doble reconocimiento: el del lado oscuro y perverso
que puede contener de todo proyecto ambicioso de experimentación
radical con los fundamentos sociales; y las dificultades efectivas para la
realización. Y eso patentiza falta de confianza ante las transformaciones
sociales extremistas – y los discursos que las sostienen – que explica, claro,
el pesimismo del texto. Este no se basa en las dificultades de ejecución
de un proyecto de reconstrucción posapocalíptico, en su temporalidad,
o en su carencia de medios, sino que el fracaso anida más adentro: en la
naturaleza humana, agresiva, egoísta y posesiva. A diferencia de Clarín,
que parecía situar el (primer) fracaso (pre-apocalíptico) en el estadio
civilizatorio alcanzado, que había provocado el surgimiento de tipos
humanos ‘cansados’ e ineficaces (esos de los que Ganivet proporcionaba
una taxonomía al final de “Las ruinas”), o de Calderón, que plantea un
conflicto de conciencia entre racionalidad e instinto, o entre deber y
querer, aquí se entiende que es la esencia humana invariable la que
impide la construcción en un espacio sin reglas ni autoridad.
“Cuento absurdo” quiere proporcionar una fábula moral o
“cautionary tale” que prevenía, primero, ante los intentos de imposición
revolucionaria de una ideología en la sociedad, y por tanto preconizaba
una transformación gradual. Además, servía de recordatorio de las
enormes dificultades – de orden económico, político, material, de gestión,
de implantación – que afrontaría cualquier intento de transformación.
Previa a esta era necesario todo un trabajo de aclimatación de la sociedad,
de apertura, de aculturación, y de disolución del tradicionalismo y la
cerrazón. Ni las buenas intenciones ni la bondad de los planteamientos

298
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

teóricos eran suficientes. Cualquier constructo mental con propósitos


maximalistas de transformación social se encontraría con la dura
prueba de la práctica y de la facticidad. Además, por si eso no fuera
suficiente, toparía con el componente humano, demasiado humano:
el individualismo, los celos, la ambición, el pánico, el cansancio y la
fragilidad de la persona.
Como hemos podido ver, en todas estas ficciones se frustra la idea de
una continuación de la humanidad a pesar de haber superado el duro escollo
del apocalipsis. Y los supervivientes son los responsables de este fracaso.
Su decisión se presenta, en distintas formas, como una manera de frenar
que se instale una situación que se considera peor que la que se vivía antes
del apocalipsis o que perpetúe esta. No hay ganancia, por tanto no vale la
pena el esfuerzo de continuar. La perspectiva de una mera continuación no
es suficiente ni en el terreno de una pervivencia individual ni en el de una
colectiva de la humanidad que los supervivientes representan.
Los fracasos posapocalípticos aquí retratados parecerían por tanto
contener varios mensajes que en gran medida tienen valor – como
Fredric Jameson argumenta a propósito de las utopías – en tanto que
interrogantes sobre el presente histórico en el que se escribieron las
ficciones, ya que es ahí donde puede (y debe) plantearse la pregunta
sobre el futuro, que es en realidad múltiple: ¿qué cambios son necesarios
para que el futuro valga la pena? ¿Son factibles? ¿Cuál es su temporalidad
y su procesualidad? ¿quiénes son sus agentes y a quiénes implica? En ese
sentido, la apelación a la necesidad de un cambio profundo que debería
producirse en la naturaleza humana no tiene sentido si esta – como ocurre
de una manera u otra en estas historias – se interpreta como invariable.
Esto significa: el cambio posible que un apocalipsis representa – y que se
encarna en el espacio posapocalíptico ofrecido a los supervivientes – solo
se convierte en oportunidad si junto a la asunción del cambio de coyuntura
– la destrucción del mundo, la desaparición del resto de la población

299
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

mundial etc. – se asume la mutabilidad de la naturaleza humana, lo que


en último extremo significa comprender al hombre como un animal con
historia y no con esencia, y que por tanto tiene capacidad para cambiar
(o para ser cambiado) incluso en aquellos rasgos que se asumen como
inalterables. Ni siquiera hace falta asumir la voluntad de cambio, a menos
que el escenario posapocalíptico se quiera presentar como algún tipo
de utopía, ni siquiera el empuje de llevar a cabo cierto tipo de acciones.
Las decisiones (¿por parte de quién?) y los actos provocarán (¿con qué
temporalidad?) el cambio, o eso es lo que hay que suponer.
El fracaso del espacio apocalíptico retratado en estas historias es en
última instancia el reconocimiento de la incapacidad – o de la desgana
– para pensar el futuro en términos de cambio, porque el cambio se
interpreta como súbito y por tanto como radical – y se equipara con
alguna forma de revolución, que parece temerse –, sin tener en cuenta
que existen otras formas de pensar el cambio. Esto significa: la apertura
radical que significa el ‘claro’ del espacio apocalíptico solo contiene
utilidad histórica – es decir, para sus receptores en cada momento del
tiempo – en la medida que está dispuesta a ofrecer una crítica sustancial
del ser humano que no reifica a este sino que historiza su acontecer, que
lo percibe en su coyuntura y en su posibilidad de evolución. Solo de este
modo evitará la inutilidad de aquello que parece prima facie su mensaje
más claro: aventurar cómo podría ser el futuro. El poder de estas ficciones
reside en la explicación que ofrecen sobre las condiciones y eventos que
produjeron el apocalipsis, en la crítica de aquello que los humanos hicieron
(no de lo que son) que condujo al apocalipsis; es decir, en su historia, y en su
comprensión en tanto que historia, y no en tanto que destino (teleología)
o en tanto que confirmación (de un paradigma humano inalterable). Por
eso puede decirse que tenemos un primer paso en ese sentido con el
tránsito hacia la secularización del apocalipsis (es decir, donde el hombre
deja de estar afectado y acompañado de cualquier forma de providencia

300
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

o maldición), que para ser completa debe también abandonar cualquier


tipo de causalidad por el apocalipsis fuera de la humanidad, y otorgarle
a este en tanto que sujeto histórico (y no en tanto que especie) toda la
responsabilidad – y por tanto todo crédito para el éxito o el fracaso – en
la gestión del espacio que se abre.
Los textos aquí analizados presentan, de forma negativa – esto es,
en su quedarse corto – ese camino, en la medida en que la apertura
del espacio posapocalíptico se vincula a una coyuntura histórica
determinada, aunque al final sea la esencia humana la que dicta el
resultado. El comportamiento de los sujetos recibe una doble crítica en
la medida en que en la mayoría de casos son estos los culpables de la
terminación del mundo y del fracaso de la oportunidad que supone el
espacio apocalíptico. Además, este comportamiento se hace depender
de la naturaleza humana – y no de las circunstancias, de la coyuntura
histórica – y esta se asume como negativa, fija e inalterable.
En el caso de Calderón no hay vituperio a la naturaleza humana per
se, sino que en realidad es el único caso donde observamos a humanos
capaces de poner por delante el bien colectivo – aunque este consiste
en la nulificación – que el individual. En el caso de Clarín y Vicente
también encontramos la impugnación de la segunda oportunidad para la
humanidad, y el paso a un nuevo apocalipsis en este caso definitivo. Pero
aquí viene provocado por el fracaso de la primera tentativa impulsada
por los científicos Adambis y Arides, que confirmaba el egoísmo humano
rayano al solipsismo – que solo atiende a sus necesidades –, y cómo los
intentos por eliminar cualquier cercenamiento a la libertad individual
conducían a la postre a una lucha desgarrada por satisfacer los propios
impulsos que no respetaba, precisamente, esa misma libertad, sino que
acababa imponiendo la ley del más fuerte.
En estos textos, el fracaso de la reconstrucción en el espacio
posapocalíptico no solo acaba produciendo una crítica de la naturaleza

301
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

humana, sino que pone en acto en sí mismo una crítica implícita del
momento histórico. Para finales del XIX, después del éxito de los textos de
Edward Bellamy (Looking Backward, 1888) y William Morris (News from
Nowhere, 1890), se habían implantado con claridad dos tendencias frente
al progreso generalizado: la de aquellos que deseaban más desarrollo
industrial y tecnológico, y la de los que reclamaban que el mundo volviera
a un tipo de vida más simple y cercana a la naturaleza. Los tres textos
aquí analizados se alinean con la segunda posición. Comparten con otros
muchos una lógica contra el progreso, en el que este es entendido como
supresión (de lo ineficaz, de lo superfluo), especialización, rutinización,
sustitución, simplificación, deshumanización, ultrarracionalización,
automatización, progresión (in crescendo), estandarización (eliminación
de diferencias y alcance global y para toda la población, i.e. igualación),
asepsia y desigualdad. Esta sería una razón más junto a lo dicho hasta
ahora por la cual estos cuentos pueden leerse como ficcionalizaciones
de inadaptación al medio, ante el cual se produce un doble intento de
huida, el primero en la causación del desastre, y el segundo una vez que
la duración indiferenciada, percibida como pesadilla anterior al evento
apocalíptico, retorna tras él en la forma de carencia de cambio efectivo.
Como hemos visto, estas narraciones constituyen visiones
escatológicas donde los cataclismos adquieren suprema importancia,
pues se entienden como rupturas en el orden de la historia. Los textos
presentan el relato del fin del mundo y sus secuelas como el acto
creativo de una imaginación secular, que además está narrado como
produciéndose bajo circunstancias racionalmente concebibles, con lo que
así se rechazan visiones fantásticas, así como el apocalipticismo ingenuo
basado en la noción de que el futuro puede ser predicho. Como hemos
visto, eso no impide que en este apocalipticismo secular se presenten
reinterpretaciones de motivos pertenecientes a religiones antiguas, entre
los que sobresalen por razones evidentes los motivos bíblicos.

302
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

En la literatura apocalíptica asistimos a la destrucción metafórica del


mundo ‘real’ en el proceso de lectura. Para acentuar lo extraño – pero
también lo inédito – de ese movimiento discursivo, varios de los autores
decidieron explicitar el carácter ficcional de sus textos, a pesar de que
por sí mismos ya muestran ese estatus al contener una narrativa con
personajes imaginarios. Y al hacerlo ratifican su carácter distintivo frente
al realismo imperante, y su vinculación con formas de narrar – y de fabular
– separadas de la racionalidad corriente. Clarín titula su historia “Cuento
futuro” y Vicente “Cuento absurdo”, remarcando su carácter ficticio,
proyectivo y problemático; el adjetivo puede ser leído a la vez como una
descripción de lo inverosímil de su narrativa, de lo frustrado de su final
y como una forma de rebajar el alcance de su empeño discursivo, que
prefiere la fábula a la argumentación.
Parecería entonces que los autores aquí estudiados son conscientes
en cierta medida de las posibilidades discursivas que la literatura
especulativa, y en concreto la posapocalíptica, podía ofrecer. Su misma
forma experimental invitaba precisamente al experimento, esto es, al
“¿qué pasaría si...?”, y permitía simultáneamente ofrecer una crítica
negativa sobre el presente – en la forma de un contraste implícito –,
y una descripción de los deseos, miedos, ilusiones y sospechas sobre
el porvenir. Si algo tiene la ciencia ficción modernista, más allá de
algunos textos humorísticos, es precisamente que constituye lo opuesto
no solo al escapismo – ya que siempre aspira a discurso crítico sobre
las condiciones actuales de la producción del texto –, sino también
a la ligereza u objetivo de entretenimiento que en ocasiones se ha
asociado con el género. Las obras fictocientíficos modernistas, de Wells
a Zamiatin y a Aldous Huxley son fuertes y ceñudos, y contienen un
pensamiento denso sobre la especie humana y el destino del planeta.
La inmensa mayoría de estos pensamientos son, como es bien sabido,
de corte pesimista.

303
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Los textos analizados aquí tienen un general un escaso desarrollo


narrativo, pues predomina la descripción y abundan las estructuras
dialogadas. En cuanto a la primera, las narraciones gustan de detenerse
durante varias páginas en la panorámica espectacular (en el sentido
de Susan Sontag) de la destrucción, aludiendo a las pilas de muertos,
a la privación de movimiento, al silencio y a la esterilidad del paisaje
posapocalíptico, buscando provocar en el lector la emoción de sublimidad
ante lo consumido. En cuanto a las segundas, son el vehículo ideal para
presentar puntos de vista distintos, pues es central la argumentación de
ideas y el debate de los pros y contras de las acciones. Pero es precisamente
en las conversaciones, previas a los hechos, donde se patentiza el
fracaso de la comunicación y la incapacidad de llegar a acuerdos, paso
necesario para la convivencia. Los cuentos sitúan los acontecimientos de
manera difusa, sin precisiones geográficas y temporales, con un narrador
omnisciente que relata en pretérito; su intención es comunicar que lo
narrado podría ocurrir en cualquier lugar del globo.
Para concluir: estas ficciones adaptan tres topoi centrales de la
ciencia ficción de tema apocalíptico: el uso de fórmulas de la narrativa de
extinción, la apelación al rol del último hombre o superviviente, aquel que
es capaz de narrar el después, y el impulso palingenético que se plantea la
posibilidad de reanudación de la vida. La manera en que estas narrativas
se despliegan en la diégesis sigue precisamente ese orden, para concluir
en la frustración del cierre y de hecho confirmar la extinción que había
sido salvada en primer término. En este último sentido, los tres cuentos
concluyen en inicios truncados, porque la renovación de la humanidad
prometida al lector en las primeras páginas – la posibilidad misma de
un futuro para la especie humana – es decapitada de forma voluntaria
por los supervivientes, lacrando ficcionalmente la insuficiencia autoral a
pensar un futuro, esto es, a ir más allá del apocalipsis y pensar el espacio
que le sigue.

304
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Referencias
ALAS, Leopoldo. Cuento futuro. In: MOLINA PORRAS, Juan (Ed.). Cuentos
fantásticos en la España del realismo. Madrid: Cátedra, p. 227-254, 2006.
FOUCAULT, Michel. Los espacios otros. Disponible en: http://textosenlinea.
blogspot.com/2008/05/michel-foucault-los-espacios-otros.html. Acceso en: 17
mar. 2021.
JAMESON, Fredric. Progress versus Utopia; or, Can We Imagine the Future?.
In: LATCHAM, Rob (Ed.). Science Fiction Criticism: An Anthology of Essential
Writings, Londres: Bloomsbury, p. 211-224, 2017.
SONTAG, Susan. The Imagination of Disaster. In: LATCHAM, Rob (Ed.). Science Fiction
Criticism: An Anthology of Essential Writings, Londres: Bloomsbury, p. 188-199,
2017.
VICENTE, Ángeles. Cuento absurdo. In: HERRERO SENÉS, Juan (Ed.). Mundos
al descubierto. Antología de la ciencia ficción de la Edad de Plata (1898-1936).
Sevilla: Renacimiento, p. 339-350, 2021.

305
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

LAS MÁQUINAS VIVIENTES Y OTRAS


INCERTIDUMBRES DEL FUTURO: SINFÍN
Pampa Arán

Las imágenes no podrán ver a los hombres, y los hombres, si


no escuchan a Malthus, necesitarán algún día del más exiguo
paraíso y destruirán a sus indefensos ocupantes o los recluirán
en la posibilidad inútil de sus máquinas desconectadas. (Bioy
Casares, La invención de Morel)

La novela Sinfín de Martín Caparrós (2020) es una obra maestra, en


tono satírico, de las ambigüedades e incertidumbres sobre el destino
de la humanidad, que atraviesan el tejido de la cultura contemporánea.
Dentro de esa vasta problemática, la cuestión del género en tanto modo
consciente de refracción creativa de la realidad, constituye un buen punto
de partida para su lectura interpretativa.
Los géneros literarios son unidades de anclaje que permiten una
organización artísticamente productiva del proceso vivo de intercambio
discursivo, bajo el estímulo de ciertas condiciones culturales. Y como
sucede siempre que me encuentro con novelas que exploran los límites
del conocimiento del mundo visible, creando una nueva legalidad que por
extraordinaria o insólita que parezca es verosímil en sus propios términos,
entiendo que estoy en el amplio dominio del fantástico literario dentro
del que debo considerar alguna de sus variantes cronotópicas. Escenarios
en diferentes espacios y tiempos que tienden a resquebrajar la solidez de lo
empírico, de lo conocido, lo sabido y lo aceptado como norma en el universo
de las realia, generando un malestar que se expresa a través del lenguaje. En

306
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

el caso de la novela que me ocupa, el escenario se instala en el futuro cercano


de la humanidad y en las consecuencias no previstas del dominio tecnológico
en una cultura global en la que máquinas (presuntamente) vivientes que
alojan cerebros vivos, se ha expandido de modo considerable, cubriendo
casi toda la población mundial.
Si me remonto a la etimología de apocalipsis veo que remite al anuncio
de algo oculto que todavía no ha sucedido, bajo forma de relato profético
intrincado que en el culto cristiano se asocia con el fin del mundo. El prefijo
“post” lo acercó a nuestra historia contemporánea de modo negativo
(quizás a partir de Hiroshima), si bien también puede ser asumido como
forma de crisis y de cambio en otra dirección. Puede imponer miedo y ser
relato de devastación y tragedia después de una catástrofe, pero también
generar nuevas utopías, nuevos mundos alternativos. Lo cierto es que
siempre condensa una idea del tiempo humano, del tiempo planetario y de
la historia en clave de futuro posible. Siendo un concepto profundamente
antropológico, cada época contiene sus modos de engendrar, anunciar o
producir (post)apocalipsis y también resurgimientos o salvaciones con la
posibilidad abierta de otra conciencia planetaria, de formas impensadas
para imaginar la supervivencia. Fin y principio pueden ser resignificados
según la perspectiva de la temporalidad humana que se adopte. Como
sugiere el título Sinfín, la reversibilidad de los opuestos es solo aparente,
una banda de Moebius en una sola figura, en una sola palabra que afirma
y niega al mismo tiempo.
Esa dialéctica, esa reversibilidad de lo mismo, está en el magma de la
novela de Caparrós: “Uno de ellos que dice, en una holo [por holograma]
de esos días: “Estamos cambiando el mundo para siempre”. Y uno más
viejo le contesta: “No seas tonto” (CAPARRÓS, 2020, p. 141). Asegurada
para muchos la realización de las antiguas y míticas promesas de lograr
la inmortalidad, para otros sus resultados solo refuerzan el poder de los
Estados totalitarios y acentúan las enormes brechas sociales.

307
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Añado también, obviando las taxonomías con sus cargas valorativas,


que (post)apocalipsis y anticipación se dan la mano casi necesariamente1 y
que utopía o distopía son mundos posibles que en definitiva forman parte
de las entropías sociales que las condiciones de producción discursiva,
enmarcadas por la realidad socio histórica, actualizan, cuando son
captadas valorativamente (ideológicamente) por la literatura y dotadas
de una nueva lengua y dimensión artística.
La novela que me ocupa hace de la tensión genérica y del cruce entre
esos géneros una cuestión significativa.2 Desde el epígrafe del primer
capítulo con la cita de Verne “Todo lo que un hombre pueda imaginar,
otros podrán hacerlo”, no cesa de tender puentes y hacer multiplicidad
de guiños intertextuales hacia ficciones de mundos utópicos y
distópicos, entre los que se cuenta (al menos eso creo reconocer) La
ciudad ausente 3 de Ricardo Piglia (1992), quien a su vez rinde homenaje
a Macedonio Fernández en dicha obra. En el núcleo de la novela de
Piglia late su concepto de que los géneros narrativos son resultado de
los grandes relatos sociales que, en el caso de LCA son reprimidos por el
Estado (japonés) que quiere imponer el suyo como ejercicio de control
de la memoria colectiva. Y ese vínculo entre relatos sociales y novela
es recogido por Sinfín, a partir de la reflexión de nuestra enorme crisis
cultural (que la pandemia mundial aceleró): “En el siglo XX, cuando
las religiones dejaron de ser un refugio eficaz contra la muerte y, al
mismo tiempo, la ciencia primitiva no conseguía casi nada contra ella, la
humanidad vivió una de sus épocas más duras” (CAPARRÓS, 2020, p. 33).

1 Profecías y (post)apocalipsis tecnocientíficos son relatos sobre futuros terribles


que caerán sobre los hombres ya sea por desobediencia a los mandatos divinos o por
soberbia y desafío de las leyes naturales.
2 La selección de ciertos géneros a los fines de este trabajo, no me hace perder de
vista la riqueza y variedades genéricas empleadas en la novela, tanto en el dominio de los
géneros escritos como los de la oralidad.
3 En adelante LCA.

308
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

El hilo argumental es presentado como una laboriosa investigación


cuasi detectivesca de una periodista (como el Renzi de Piglia, pero
actualizado, resultado de un mestizaje cultural) quien reconstruye, en
base a documentos en soportes variados y entrevistas, polifónicamente,
el origen y evolución de una práctica tecno científica inventada en 2020
la cual en el 2072, fecha en que escribe, se ha universalizado sin que haya
alcanzado (por motivos políticos) la lírica utopía4 inicial de que los hombres
máquina sigan comunicados con el mundo de los vivos, con-viviendo.
La idea originaria consistió en alojar el cerebro humano previamente
ordenado en zonas, en una máquina inteligente o red neuronal para que
siga viviendo eternamente, hasta que se comprendió que: “La opción
es otra: no volvernos máquinas, sino usar las máquinas. Humanizar las
máquinas, convertirlas en nosotros mismos: usar las máquinas para vivir
vidas eternas” (CAPARRÓS, 2020, p. 51).
La situación, cuando transcurría el 2020, era el derrumbe de
Europa y de la civilización occidental (descripto como apocalipsis), que
había acentuado la brecha entre los hombres ricos, muy ricos, y los que
sufrían extrema pobreza; las Corporaciones adquirieron mayor peso,
los Estados se debilitaron, el trabajo iba desapareciendo sustituido por
robots, los alimentos escaseaban y los éxodos se volvían masivos (extraigo
un fragmento de la extensa y magnífica descripción que alterna la voz
narrativa con las voces de los entrevistados):
Lo sabemos: a partir de 2030 el derrumbe se precipitó. Es
cierto que el salto de calidad de la inteligencia artificial
fue una de las razones. Pero también influyó el abandono
de la producción tradicional de alimentos […] y, sobre
todo, esa tendencia hacia un mundo cada vez más
virtual, que hacía innecesarios muchos de los productos

4 Dado que no sucede en otro mundo sino en otro tiempo podemos también considerar
esta novela como ucronía.

309
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

materiales que hasta entonces daban trabajo […] Más y


más personas, millones de personas en la calle.
Conocemos la historia, somos su resultado […]
¿Para qué me pregunta estas cosas señorita, si ya todos
lo saben? […] Seguro que sabe, señorita, nadie se quedó
afuera, muy poquitos. Y esos poquitos no vienen por acá,
son más vivos que eso. […] (CAPARRÓS, 2020, p.116-117)

Fue por entonces que surge, casi por casualidad, una invención,5 un
proyecto científico que consistía en lograr la inmortalidad de la mente humana,
convirtiéndola en una mente virtual con memoria y sensaciones. Tal proyecto
retoma antiguas utopías religiosas que gobiernan las vidas con la promesa
de eternidad y de felicidad ilimitada, pero fundada ahora en la ciencia que
recuperaba un deseo profundo del inconsciente humano. Así sucede siempre
que se descubre algo: el deseo estaba allí pero nadie lo había visto.
La crónica de los cambios y accidentes que sufrió el descubrimiento
(con su costado idealista) y el producto comercial que gracias a la
tecnología (como siempre y cada vez más) originó su aplicación, conforma
el contenido de la narración que transcurre a lo largo del siglo XXI, dándole
carácter de novela anticipatoria sobre un futuro que es la proyección de
lo que vivimos en este presente y de una utopía realizada que al mismo
tiempo es también una distopía.
Y tal como afirmaba Piglia (1990), los géneros utópicos forman
parte de una política de la literatura que indaga en el tejido de ficciones

5 Con el tema de la invención técnica, la novela Sinfín se inscribe en una larga tradición
de la narrativa argentina de ficción fantástica asociada a lo científico, que hace su aparición
con Holmberg y Lugones, continúa con Quiroga y Arlt y la hallamos en Bioy Casares (La
invención de Morel, 1940), que la convierte también en metáfora de la creación artística
y como parte del programa antirrealista que los ocupaba con Borges a la cabeza. En cada
caso los conflictos que devienen de los descubrimientos de la ciencia son resueltos según
la época y la perspectiva ideológica. En Piglia la Máquina inventada por Macedonio es,
entre otras significaciones, una imagen de la novela concebida como resultado del tejido de
ficciones sociales que la alimentan, pero también, imagen de una psiquis sin cuerpo y modo
de vencer a la muerte (ARÁN, 2003).

310
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

y versiones (multiplicadas hoy por las redes en espacios virtuales) que


alimentan las formas materiales de la vida en todos los ámbitos y que en
la novela Sinfín se conocen como “la Trama”.
No es difícil reconocer actualmente algunas de las ficciones
sociales imaginadas, escuchadas o leídas acerca de los avances médicos
en la prolongación de la vida humana o tratamientos de cuidado y
rejuvenecimiento del cuerpo y de la mente, propagadas con la irrupción
de los medios digitales, que gobiernan en buena medida las opiniones y
rutinas cotidianas, unidas a los avances de la robótica que ha ingresado
también en los hogares. Universos de posibilidades de dominio y
trascendencia (que esconden su reversibilidad), constituyen el punto de
partida del relato de aquel experimento científico que había comenzado
en 2020 en un pueblo de la Patagonia argentina y que una periodista
(anacrónica, de los tiempos en que “los relatores intentaban hacer algo
más que contar los eventos” CAPARRÓS, 2020, p. 123) logra armar como
un patchwork, desde el 2069 hasta 2072, en que medita sobre el destino
que dará al material arduamente reunido:
No sé qué hacer. No solo dentro de unos años, cuando
me toque el turno; ahora, con todo este trabajo que
debo terminar, que debería mostrar. Se me ocurre, una
vez más, la solución cobarde: convertir la holo que estaba
preparando en un registro escrito, algo así como aquello
que llamaban libro. Será una forma de no callar ni hablar.
Al fin y al cabo, si lo hago lo habré dicho pero nadie o casi
nadie lo sabrá. […]. (CAPARRÓS, 2020, p. 479)

El relato periodístico “a la antigua”, adopta en su desarrollo la


forma de una crónica fechada cuyo origen remoto es el presente del
lector y del libro, y desarrolla una hipótesis anticipatoria de un futuro
no tan lejano, de cerebros humanos que funcionan como máquinas con
vidas propias. El imaginario de la novela capta ciertas líneas de fuga de
fantasías y deseos, de visiones de mundo, que pueden observarse en la

311
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

realidad (¿o ya debemos llamarla virtualidad?) del presente. Suscribo lo


que dice Cueto:
Lo que el escritor dice cumple la función de enunciación
colectiva, y por eso es inmediatamente político. No es
que el escritor “represente” a la comunidad; si dicha
comunidad existiera no se haría representar por nadie.
Lo que hace es aprehender las fuerzas virtuales de una
comunidad posible, y funda de ese modo los medios
de otra conciencia y otra sensibilidad en las que ella se
anuncia. (CUETO, 1993, p. 10)

Y aquí hago una breve disquisición que tendrá sus consecuencias,


puesto que el género crónica es presuntamente no ficcional y su autora es
una periodista que trabaja seriamente y de modo tradicional reuniendo
informes y reportajes en viajes a diferentes lugares. Narradora ficticia,
resulta ser personaje a su vez de la constelación enorme que habla, opina
y actúa, resultado de la estrategia meta narrativa que contribuye a crear
dualidades sospechosas en apariencia intercambiables: quién narra y
quién escribe. No podían faltar dobles fantasmales en un texto fantástico…
La arquitectónica novelesca (BAJTÍN, 1989) en tanto forma artística
de producción del sentido atañe a la composición, procedimientos y estilo
de la novela. Sinfín sostiene un diseño minimalista (pensado como forma
despojada de ornato), muy dinámico, que juega con el espacio de la página,
como suelen hacer los poemas. Los siete grandes capítulos se fragmentan
en varios apartados y la historia va progresando con sutiles detalles cuyas
transformaciones dialécticas producen más dudas que certezas:
Ily Badul se murió una semana después: la noticia no
apareció en la Trama. Para el mundo ya llevaba mucho
tiempo muerto: extraña, tozudamente muerto.
(Pero no muerto: él, de quien el mundo cree que fue
quien derrotó a la muerte, no podía morirse, así que
para el mundo no murió.)

312
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Ily Badul me condenó: aquí, entonces, se cuentan cosas


que nadie quiere saber. Pero aun así creo, igual que
él, que debo contarlas para que quede algún registro.
Porque yo creo –todavía creo, pese a todo- que el origen
de las cosas las define. (CAPARRÓS, 2020, p. 90)

Lo distintivo desde el comienzo es el uso intenso y diferenciado


del colectivo hablante, el micromundo de la palabra ajena citada en
forma directa, con todo su bagaje de modalidades, interpretaciones y
parcialidades, interrumpida por el discurso del narrador(a) desde su lugar
enunciativo, lacónico, salpicado de apotegmas y de dudas, en discusión
consigo mismo(a). Mezcla de lenguajes sociales como signos, fronteras,
imagen de hombres y mujeres que reflejan el contexto cultural en el
que están inmersos, lo que define una estética del género de la novela y
configura una política de la representación con fuerte acento ideológico
y valorativo.
Tejida de informaciones contradictorias que ponen bajo sospecha todo
lo narrado, el lector encuentra, sin embargo, un cierto encadenamiento de
circunstancias (respetando el género de las crónicas) que en sucesivas etapas
muestran cómo el descubrimiento científico se va convirtiendo en un negocio
tecnológico primero y en un resorte político, finalmente. Pero con sutileza
la voz (¿qué voz?) recuerda (¿performativamente?) que ““Nunca se sabe si
lo que decide son los hechos o las palabras que los cuentan. Tampoco suele
estar claro cuál es la diferencia”“ (CAPARRÓS, 2020, p. 179).
Desde el comienzo, las dos versiones de los orígenes del experimento
juegan contrapunto: la versión heroica, confortable, y la versión brutal,
verdadera. La cronista descubre que se oculta aquello que no es
políticamente conveniente, y se maquilla al héroe, como sucede en los
grandes mitos. Por eso hay siempre una historia oficial y otra no dicha,
una BellaHistoria y una masacre oculta: “Fueron ellos (los pobres) los
que pusieron el cuerpo para que los cuerpos dejaran de importarnos”

313
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

(CAPARRÓS, 2020, p. 21). Porque eso fue lo horrible: era necesaria la


decisión de abandonar el cuerpo en vida para no morir nunca y los
experimentos necesitaron cobayos humanos. El cuerpo se convirtió en un
problema, en una limitación. Paradojas de la historia: de pedir libertades
para el cuerpo y de plantear el cuidado y esplendor del cuerpo, a medida
que el siglo XXI avanzaba, el cuerpo humano iba siendo reemplazado por
máquinas en los medios de transporte, de trabajo, de relaciones sexuales,
de comunicación. Las máquinas no sufren, no se cansan, su uso es más
seguro, más fácil, más indoloro. ¿Por qué las máquinas no podían ser
nuevos cuerpos vivos para los cerebros de hombres? Una biopolítica
tecnológica destinada a ser administrada desde un espacio de poder.
Al descubrimiento científico que tiene sus propios héroes, maestros
y mártires, le sigue la transformación comercial del producto a cargo de
una extraordinaria mujer, ignorante pero muy astuta, tanto, que adopta
todas las estrategias de marketing, ofreciendo un producto deseable y
necesario, e incluso crea un símbolo ideográfico (₳ o algo parecido).
Esa voz dual o semioculta hace un guiño a la historia argentina con las
interpretaciones que pueda sugerir: la primera Eternidad o tsian se logra
el 17 de octubre de 2045 (a 100 años de la llegada de Perón al poder).
Sucede luego la adquisición del negocio por un comerciante chino
que lo va perfeccionando en Torino, de modo que el cliente pase a
una eternidad que le asegure una vida placentera. Decide resolver
cómo mejorar ese estadio primitivo del invento armando una biografía
con archivos o registros para que puedan vivir de nuevo los mejores
momentos de su vida real: “Esto anotó Liao en 2050 ‘Nos acercamos
a la Eternidad, la vamos entendiendo… tenemos todo el tiempo’”
(CAPARRÓS, 2020, p. 231). Un miembro del equipo que proviene de una
California decadente comprende que las eternidades que consiguen son
solo la repetición incesante de momentos agradables ya vividos, pero
no otra vida verdadera. Idea revolucionaria y catarata de consecuencias.

314
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Y así, hacia 2050 acontece la Edad de Oro de ₳ (Inmortalidad, Paraíso,


Eternidad o como se la quiera llamar), un estallido global de demanda
mundial con proyectos de tener otra vida alternativa eterna tan disparatada
que se parezca a un video juego o necesite un avatar, llamada ₳Fic. Es
decir, la planificación de la vida eterna toma la forma de una ficción en
la que uno puede seguir siendo el mismo, u otro. Cambiar las miserias de
cada vida por la vida imaginada y tenerla para siempre se convierte en el
deseo de quienes pueden pagarla (los pobres siguen usando drogas para
escapar de la realidad). Como hongos venenosos crecen clínicas y lugares
dedicados a la práctica extraordinaria y paradojal de convertir un ser vivo
en un ser virtualmente vivo que, según asegura la ingeniería cibernética,
sigue disfrutando sus placeres o fantasías, quizás como Otro, en un mundo
diseñado a la medida de sus deseos. Aislados en sus mundos, dedicados
a esperarlos o a pensar en ellos, va desapareciendo la vida colectiva en
las grandes urbes. Parece innecesaria la palabra muerte, reemplazada por
“abandono del cuerpo” y “transferencia”.
Esta nueva población de cerebros vivos encerrados en máquinas,
cuyo mantenimiento se convierte en materia de discusión, crea un mundo
posible utópico, habitado por… ¿quiénes?: no son fantasmas incorpóreos
porque técnicamente nunca murieron; no son zombies, porque ya no
tienen cuerpo; son tal vez, una variedad incompleta de ciborgs, porque
su sistema no les permite la comunicación y por lo tanto, no dan
cuenta de sus andanzas y de su felicidad. Configuran, según mi parecer,
representaciones metonímicas de la sociedad en un mundo tecnológico
paralelo al real, transhumano, fantástico, individualista:
Algunos dijeron que la fuga a la virtualidad empezó
después del Desastre, pero está claro que venía
de antes. […] la división empezó a principios de
siglo, cuando una parte del mundo empezó a
vivir hiperconectada; cuando los viejos teléfonos
inteligentes y los ordenadores hicieron que las

315
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

distancias, la presencia y la ausencia fueran cada vez


más aleatorias. […] (CAPARRÓS, 2020, p. 275)

La historia toma aquí un giro inesperado: cuando está en la cresta


de la ola, el negocio empieza a perder credibilidad, especialmente por
las cuotas a futuro que deberán sostener los herederos y los peligros de
pérdida o destrucción de los pequeños equipos (“quanti”) que contienen
cada proyecto individual de eternidad con su usuario, esa mente viva
habitando otro mundo preparado según sus instrucciones (los “TruVi”).
Viendo los peligros, el dueño chino del negocio, lo traslada de Italia
a una ciudad de su país y descubre que allí la demanda es colosal, lo
cual ha llamado la atención del gobierno, que observa con preocupación
que la mayoría que lo desea no tiene capacidad económica y que esa
situación se convertirá en un polvorín. Tal sospecha la ratifica una
campaña rebelde (la “Morvida”) tendiente a convencer a la gente y al
Partido que el lema es “Todo para todos” y que por lo tanto, quienes lo
quieran tienen derecho a elegir su forma de eternidad y no solo los ricos.
Por lo tanto, pensar en otra vida después de la vida a la que todos tengan
acceso es una demanda legítima.
Estratégicamente la presidenta china (la Dama Ding) concede el
pedido de Eternidad para Todos creando un nuevo símbolo identificatorio
estatal (que no puedo reproducir). Numerosas hipótesis acerca de las
razones por las que el Partido había adoptado esa medida popular, que
van desde el inconformismo colectivo peligroso hasta una estrategia
de oposición inventada desde el principio para elevar el prestigio de la
presidenta. Entre la multitud de argumentos secretos que explican la
decisión presidencial (recomiendo su lectura págs. 351 a 353), destaco el
que constituye un guiño hacia la pandemia que aun sufrimos:
– que, subsidiariamente, el descenso de población
podría servir también para mejorar las chances de que
no se concretara el mayor temor del gobierno chino:

316
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

una epidemia tipo Desastre –por fallo masivo de los


antibióticos- pero ya no en países alejados sino en
pleno territorio nacional. Y que, incluso si no pudiera
detenerse, ₳ le daría una salida apetecible a sus posibles
víctimas. (CAPARRÓS, 2020, p. 352)

Lo interesante del caso es que el chino Liao sigue en secreto su


investigación con lo que había sido el proyecto inicial, la verdadera
utopía científica: transferir los cerebros en entornos abiertos para que
estuvieran comunicados. Su desobediencia al Partido sufre un fuerte
castigo y según rumores es condenado una eternidad desdichada, del tipo
de un Purgatorio, digamos, esperando la dignidad de una ₳ verdadera. El
Estado (como en LCA) no puede permitir que sigan interfiriendo en una
organización social planificada y controlada.
Mientras tanto, en otra parte del mundo, un incidente, el hundimiento
de un barco petrolero y unas declaraciones del Papa (yanqui), tornan
abierta la guerra entre católicos y musulmanes, guerra que aunque
siempre había estado latente no había llegado a ese enfrentamiento cruel
y abierto en forma de Cruzada. Mientras tanto, los chinos consolidan su
Eternidad para Todos y después de resolver qué hacer con tantos cuerpos
muertos (reviviendo una vieja tradición antropófaga), fijan la edad para
ser transferido (como quien se va de viaje) y decretan un menú de cinco
posibles modos de planificar su futuro en el más allá, o formas de vivir en
la eternidad: “[…] todos los ciudadanos tenían la posibilidad de elegir las
Cinco Maravillas” (CAPARRÓS, 2020, p. 375).
Ya en 2061 “catolos” y musulmanes llegan a un acuerdo y forman
la “Alianza”, para recuperar la fe verdadera de la promesa del más allá,
puesto que, según acuerdan los bandos religiosos, la Nueva Eternidad
era una estrategia del Demonio para acabar con la Fe verdadera. Con
inteligencia, la presidenta china cita a una gran convención internacional
y demuestra los beneficios que para la población mundial tiene el proyecto

317
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

estatal. Su discurso argumentativo los convence de la necesidad de


acabar con la tradición de morir según la naturaleza y empezar a morir
planificadamente o mejor dicho, pasar a otro estado de Eternidad que
sea accesible a todo el planeta porque de ese modo evitaría una serie de
males, fundamentalmente de superpoblación, de alimentos y de recursos
energéticos. Termina aclamada por la asamblea.
El penúltimo capítulo se titula “Un mundo feliz” (homenaje y recuerdo
de la distopía de Huxley, 1932) En apariencia, la Eternidad había traído
muchos beneficios a un planeta que estaba superpoblado y amenazado.
Entre ellas lo innecesario de la guerra y la disminución drástica de la
cantidad de población. Gran parte del mundo, según las estadísticas,
está feliz: todos esperan la Eternidad como si fuera una jubilación y
mientras tanto ensayan diferentes opciones para saber cómo querrán
vivirla: “Vivimos –viven – como quien se prepara” (p. 446). Los jóvenes de
clases acomodadas, en tanto, se han vuelto punks baratos que viven en el
descontrol porque ya no les importa morir jóvenes.
No obstante otra mirada descubre que ya hay grupos de jóvenes
rebeldes que sostienen clandestinamente que todo es un engaño del
Estado para mantener silencio y obediencia, que hay medios para que los
cerebros se comuniquen con el exterior pero no se los podría controlar.
Finalmente la periodista aquejada por las dudas, revisando sus
apuntes y documentos, llega a un punto límite y en su soliloquio (en la
misma soledad de la Máquina de la novela de Piglia) se da cuenta tarde (y
el lector se da cuenta tarde) de lo que debió sospechar:
¿Puedo saber
-saber realmente-
que todo esto sucedió, que yo
soy la que cuento, la que cuenta?
¿Quién sabe dónde, cómo, quién
sabe quién

318
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

es cuando es quien es, quién


sabe si uno es una? (CAPARRÓS, 2020, p. 481)

Insisto una vez más en que el tono de la novela no opta por el


dramatismo del genocidio inducido con la promesa del paraíso artificial,
sino por el sarcasmo, paródico y provocativo, de la voz autoral (siempre
en la frontera semiótica con el autor) que se enmascara en una narradora
documentalista y perseverante, llena de asombros y de dudas que,
finalmente, cierra la novela sin estar segura si ella no está también en
ese otro mundo. La narradora intenta crear objetividad acudiendo a
los testimonios orales y fechados, lo cual hace de la novela un enorme
concierto polifónico de relatores y de microrrelatos intercalados. Pero es
la voz autoral que impregna con un sentido indirecto todo el relato, la voz
que genera ese contrapunto sarcástico, paródico que, a mi juicio, coloca
esta novela en el abolengo de la cronotopía del modo fantasy que Bajtín
hace partir de la sátira menipea (cómica-seria), destruyendo “la integridad
épica y trágica del mundo” (Jackson, 1986, p. 13) El carnaval produce la
inversión de los opuestos y especialmente, el pensamiento de la muerte
que engendra la vida en sucesión interminable, con lo cual celebra la
ilusión de que en la naturaleza la muerte no existe.
El lenguaje de los múltiples narradores queda así sometido a
reinterpretación produciendo una carnavalización casi grotesca del futuro
que hace posible una crítica feroz a las condiciones económicas y geopolíticas
en las que hoy transcurre el capitalismo naturalizado. Explícitamente el
autor real afirma en una entrevista: “Nos resulta más fácil imaginar el final
del mundo que el final del capitalismo” (DIEGO, 2020)6.
No quiero concluir sin llamar la atención sobre la invención del
lenguaje en la novela Sinfín, que me recuerda las aventuras lingüísticas
de Marcelo Cohen. El vocabulario de la novela que analizo acompasa el

6 Caparrós utiliza una frase muy conocida: “es más fácil imaginar el fin del mundo que el fin del
capitalismo, y posiblemente ello se deba a una falta de nuestra imaginación” (JAMESON, 2000).

319
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

imaginario fantástico de la cultura de la futuridad, deconstruyendo en


alguna medida el vocabulario tecnocientífico de la posmodernidad.
Como un demiurgo, entre lúdico y realista, genera el nombre
de una serie de objetos a los que vamos interpretando (sin ninguna
certeza de su polisemia) por las descripciones de su funcionamiento:
la Trama, que podría ser Internet o el lugar donde aparecen todas las
noticias que circulan, falsas y verdaderas; hombres, mujeres y fluides,
alude a la diversidad sexual; laMasBellaHistoria, que podría ser el mito
o el relato oficial; los maquinistas (científicos neurocognitivos) kwasis o
robots; quantis que apunta a los cerebros o mentes transferidas; truVí,
la máquina viviente en que se transforma tu humanidad y que te haría
vivir según el diseño acordado con los técnicos o programadores; BtB,
diamante falso de colores pinchado en la oreja que permite saber lo
que el otro piensa sin que hable: los países lógicos o países del Primer
Mundo… y podríamos seguir.
Y lo más interesante: apelar al signo ideográfico y a su universalidad
para describir el Paraíso, Eternidad o Vida Futura artificial, a partir de
un signo básico ⼈ (que significa persona) (ideograma en Wikipedia)
atravesado por dos barras transversales. En épocas de polución de
memes, emojis y toda clase de grafismos que sintetizan la comunicación
personal en las redes, me parece que el ideograma de la novela describe
con ingenio un dato de nuestra vida cultural.
Carnavalizada, satírica, poblada de guiños intertextuales y de
alusiones, de ambivalencias y ambigüedades, de cementerios de
máquinas vivientes a los que accede confiada la mayor parte de
la población con recursos, no podemos menos que reconocer que
tejiendo un aparente divertimento, la novela nos produce un extraño
estremecimiento, una latencia de malestar que reconocemos a diario, de
una realidad en metamorfosis implacable, que nos atraviesa y nos deja
pensando que si el futuro es hoy, estamos ante la posibilidad de evitar

320
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

apocalipsis anunciados y hallar la oportunidad de construir una nueva


sociedad ecológica, nuevas biopolíticas para los cuerpos vulnerables y
otras alternativas de transformaciones culturales que supongan un salto
cualitativo de la especie:
Ahora, a mediados de 2072 […] en una década, mil
millones de ₳ retozando como pajaritos, mil millones de
cuerpos desechados produciendo energía. En el resto
del mundo – Africa, Latinia, los agujeros asiáticos-, 3800
millones siguen teniendo dificultades para conseguir
una ₳ decente – y por eso la mortalidad se mantiene
constante. (CAPARRÓS, 2020, p. 442)

Tendríamos que recordar lo que un escritor casi ciego anunció,


también sonriendo con ironía:
Entonces desaparecerán del planeta el inglés y el
francés y el mero español. El mundo será Tlön. Yo no
hago caso, yo sigo revisando en los quietos días del hotel
de Adrogué una indecisa traducción quevediana (que
no pienso dar a la imprenta) del Urn Burial de Browne.
(BORGES, 1974, p. 443)

Referencias
ARÁN, Pampa. Voces y fantasmas en la narrativa argentina. In: ARÁN, Pampa
et al. Umbrales y catástrofes: literatura argentina de los ‘90. Córdoba: Epoké
ediciones, 2003.
BAJTÍN, Mijail. El problema del contenido, del material y de la forma en la
creación artística verbal. In: BAJTÍN, Mijail. Teoría y estética de la novela.
Madrid:Taurus, p. 13-75, 1989.
BORGES, Jorge L. Ficciones. In: BORGES, Jorge L. Obras completas. Buenos Aires:
Emecé editores, 1974.
CAPARRÓS, Martín. Sinfín. Bs.As.: Random House Grupo editorial, 2020.
CUETO, Sergio. Notas para una política de la literatura. Boletín/3, Rosario: UNR,
p. 1-10, setembro, 1993.

321
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

DIEGO, Matías de. Martín Caparrós: “Nos resulta más fácil imaginar el final
del mundo que el fin del capitalismo”. elDiario.es. 9 mar. 2020. Disponible
en: https://www.eldiario.es/cultura/martin-caparros-imaginarnos-fin-
capitalismo_128_1042390.html. Acceso en: 7 de feb. de 2021.
JACKSON, Rosemary. Fantasy: literatura y subversión. Buenos Aires: Catálogos
Editora, 1986.
JAMESON, Fredric. Las semillas del tiempo. Madrid: Trotta, 2000.
PIGLIA Ricardo. Crítica y ficción. Buenos Aires: Siglo XX, 1990.
PIGLIA Ricardo. La ciudad ausente. Buenos Aires: Sudamericana, 1992.

322
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

AUTORES

Alexander Meireles da Silva – Professor associado da Universidade


Federal de Goiás, onde atua na Graduação dos cursos de Letras e no
Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da mesma
instituição. É doutor em Literatura Comparada pela UFRJ (2008) e
mestre em Literaturas de Língua Inglesa pela UERJ (2003). É membro
fundador dos Grupos de Pesquisa “Estudos do Gótico” (CNPq) e “Nós do
insólito: Vertentes da Ficção, da Teoria e da Crítica” (CNPq) que reúnem
pesquisadores e pesquisadoras de diversas universidades do Brasil. Desde
2016 é produtor de conteúdo do canal do YouTube Fantasticursos, onde
ajuda quem escreve, pesquisa e leciona a usar a fantasia, o gótico, a ficção
científica e ficção weird em suas atividades diversas.

Alfons Gregori – Profesor titular de la Universidad Adam Mickiewicz de


Poznan (Polonia). Es autor del libro La dimensión política de lo irreal: el
componente ideológico en la narrativa fantástica española y catalana
(2015) y de numerosos trabajos académicos sobre literatura fantástica,
estudios de género, música popular contemporánea y traducción literaria.
Es miembro del Grupo de Estudios de lo Fantástico (GEF) y coordinador
del Centro de Estudios Catalanes de la UAM de Poznan.

Ariel Gómez Ponce – Doctor en Semiótica por la Universidad Nacional de


Córdoba, Argentina, y se desempeña como docente e investigador en el
Centro de Estudios Avanzados (Facultad de Ciencias Sociales, Universidad
Nacional de Córdoba). Ha publicado el libro Depredadores. Fronteras de
lo humano y series de TV (Babel, 2017) y, junto a Pampa Arán, ha editado

323
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

el libro Fredric Jameson: una poética de las formas sociales. Claves


conceptuales (Edicea, 2020). En reuniones científicas y en artículos de
investigación, se dedica al análisis de series televisivas desde la perspectiva
de la semiótica soviética (Lotman, Bakhtin) y de los estudios críticos de la
cultura (Jameson), problematizando el modo en que estas ficciones ponen
en cuestión las identidades y los modos culturales del sentir.

Bárbara Maia das Neves – Mestra em Literaturas de Língua Inglesa pela


Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Doutora em Letras pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo como principal pesquisa
as representações de pestes, epidemias e armas biológicas dentro
de literaturas de ficção científica contemporâneas. Atualmente atua
como professora da Graduação em Pedagogia da Fundação de Apoio à
Escola Técnica, Itaperuna-RJ; local onde trabalha principalmente com a
literatura fantástica voltada para o universo infantojuvenil e teorias de
aquisição de L1, em particular português e Libras, e de aprendizagem de
inglês como L2. Em paralelo, segue também atuando como tradutora e
revisora para editoras.

Cido Rossi – Professor assistente de Literatura Inglesa na UNESP –


Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, SP, onde também realizou
sua graduação, mestrado e doutorado e, atualmente, desenvolve
pesquisas e orientações sobre o Gótico, o Fantástico e a Fantasia. É líder
do grupo de pesquisa Vertentes do Fantástico na Literatura (UNESP/CNPq)
e membro dos grupos de pesquisa Estudos do Gótico (UERJ/CNPq) e Nós
do Insólito (UERJ/CNPq).

Elton Honores (Lima, 1976) – Doctor en Literatura Peruana y


Latinoamericana por la Universidad Nacional Mayor de San Marcos. Ha
publicado los libros: Mundos imposibles. Lo fantástico en la narrativa

324
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

peruana (2010); La civilización del horror. El relato de terror en el Perú


(2014); La división del laberinto. Estudios sobre la narrativa fantástica
peruana contemporánea (1980-2015) y La racionalidad deshumanizante. El
teatro político y la ciencia ficción (1886-1989), ambos en 2017; Fantasmas
del futuro. Teoría e historia de la ciencia ficción (1821-1980) en 2018; los
volúmenes I y II de las antologías Más allá de lo real (2018) y Noticias del
futuro (2019); entre otros. Es profesor del Departamento de Arte de la
Facultad de Letras y Ciencias Humanas de la UNMSM e investigador del
Instituto Raúl Porras Barrenechea.

Flavio García – Professor titular da UERJ; bolsista PROCIÊNCIA (UERJ-


FAPERJ); orienta iniciação científica, mestrado e doutorado e supervisiona
pós-doutorado; é pós-doutor (Universidade de Lisboa, 2021; Universidade
de Coimbra, 2016; UFRGS, 2012; UFRJ, 2008) com projetos de pesquisa
sobre o insólito ficcional ou sobre a ficção de Mia Couto; é líder do grupo
de pesquisa “Nós do Insólito: vertentes da ficção, da teoria e da crítica” e
pesquisador dos grupos de pesquisa “Vertente do Fantástico na Literatura”
e “EnLIJ – Encontros com a Literatura Infantil/Juvenil: ficção, teorias
e práticas”; é membro do GT ANPOLL Vertentes do Insólito Ficcional;
coordena o Seminário Permanente de Estudos Literários – SePEL.UERJ
(www.sepel.uer.br); é um dos editores do Dicionário Digital do Insólito
Ficcional (www.insolitoficcional.uerj.br) e das revistas Abusões (www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/abusoes) e Caderno Seminal (www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/cadernoseminal); é coordenador editorial
do Dialogarts Publicações (www.dialogarts.uerj.br).

Juan Herrero Senés – Profesor titular de literatura española en la


University of Colorado at Boulder. Sus principales áreas de investigación
son la literatura de vanguardia, la historia intelectual del modernismo
europeo y la ciencia ficción temprana. Ha editado obras Benjamín Jarnés,

325
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Miguel de Unamuno, Edgar Neville y Miguel Pérez Ferrero, entre otros,


y así como la reciente antología de ciencia ficción de la Edad de Plata
Mundos al descubierto (Renacimiento, 2020).

Léa Persicano – Doutoranda em Estudos Literários (Universidade Federal


de Uberlândia – UFU) com pesquisa financiada pela CAPES (Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior); mestre em Estudos da
Linguagem (Universidade Federal de Goiás, campus Avançado de Catalão –
UFG/CAC), com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
de Goiás (FAPEG). Membro do “Grupo de Pesquisas em Espacialidades
Artísticas (GPEA)”.

Lucía Leandro Hernández – Estudiante del doctorado en Estudios


Lingüísticos y Culturales de la Universitat de Barcelona, donde realiza
una tesis sobre literatura fantástica y de CF de escritoras de América
Central. Entre sus publicaciones se encuentran: “La ciencia ficción en
Puerto Rico (1872-1960) y República Dominicana (1967-1984)”, en Historia
de la ciencia ficción en la narrativa latinoamericana I: Desde los orígenes
hasta la modernidad, editada por Teresa López-Pellisa y Silvia Kurlat Ares
(2020); “De anomalías y rarezas: análisis del cuento ‘Habitaciones’ de
Claudia Hernández”, en Revista Orillas, núm. 9 (2020) y “Entre el cyborg,
el monstruo y la quimera: producción-reproducción en ‘Cyber-proletaria’
de Claudia Salazar Jiménez”, en 452ºF. Revista de Teoría de la Literatura y
Literatura Comparada, núm. 24 (2021).

Marcio Markendorf – Professor associado da Universidade Federal de


Santa Catarina, com atuação no curso de Cinema e na Pós-graduação
em Literatura. Possui graduação em Letras (UFMS, 2003) e doutorado
em Teoria da Literatura (UFSC, 2009). É membro dos Grupos de Pesquisa
Estudos do Gótico, Literatual e Artes e Mestiçagens Poéticas.

326
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Mariano Martín Rodríguez – Doctor en Filología por la Universidad


Complutense de Madrid, especializado en las literaturas en lenguas
románicas. Codirige la revista de estudios sobre literatura especulativa
Hélice (www.revistahelice.com). Ha publicado libros y numerosos
artículos en revistas científicas en humanidades, en España y en otros
países, sobre ficción utópica y especulativa internacional y otros aspectos
de las literaturas románicas modernas. También ha traducido al castellano
numerosos textos de ficción especulativa.

Marisa Martins Gama-Khalil – Professora titular da Universidade Federal


de Uberlândia (UFU). Doutora em Estudos Literários (Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP-Araraquara).
Pesquisadora de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); líder do “Grupo de
Pesquisas em Espacialidades Artísticas (GPEA)”. Pesquisadora dos Grupos
de Pesquisa “Laboratório de Estudos do Discurso e do Corpo (LABEDISCO)”
e “Encontros com a Literatura Infantil/Juvenil: ficção, teorias e práticas
(EnLIJ)”. Líder do Grupo de Trabalho Vertentes do Insólito Ficcional (2021-
2023), junto à Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Letras e
Linguística (ANPOLL).

Pampa Arán – Profesora e investigadora en la Universidad Nacional de


Córdoba. Dedicada al estudio de problemas teóricos y metodológicos
en perspectiva sociosemiótica, ha privilegiado el campo literario en
interacción con los discursos sociales. Algunos libros: El fantástico
literario (1999), Nuevo diccionario de la teoría de M. Bajtín (2006), Texto/
memoria/cultura: el pensamiento de Juri Lotman (con S. Barei, 2002),
Interpelaciones (2010), La herencia de Bajtín (2016), y Fredric Jameson.
Una poética de las formas sociales (con A. Gómez Ponce), 2020.
Actualmente, cumple actividades en programas y proyectos del Centro
de Estudios Avanzados (FCS- UNC).

327
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Ramiro Giroldo – Mestre em Estudos de Linguagens pela UFMS e


doutor em Literatura pela USP, Ramiro Giroldo é professor adjunto na
UFMS, onde também pesquisa literatura de gênero e representações
artísticas da violência. Ramiro Giroldo é roteirista e produtor na Astaroth
Produções, companhia que conduz com sua esposa Larissa Anzoategui e
cujos curtas e longas já circularam em festivais de cinema fantástico em
países como Brasil, EUA, México, Argentina, Uruguai e outros, além de
serem distribuídos comercialmente dentro e fora do território nacional. É
autor de diversos ensaios acadêmicos, do livro de não-ficção “Ditadura do
Prazer” e do romance “Red Hookers”.

Rebeca Tipple – Graduada em Letras pela Universidade Federal de Goiás


(2014) e mestre em Estudos Literários pelo Programa de Pós-Graduação
de Letras e Linguística da Faculdade de Letras da Universidade Federal de
Goiás (2018), onde estudou a apropriação de mitos bíblicos para a criação
de uma narrativa de ficção. Atualmente cursa o doutorado no Programa de
Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Uberlândia.

Rubén Sánchez Trigos – Se doctoró con una tesis sobre el cine de zombis
español. Imparte clases de guion y literatura en U-Tad y en el Máster de
Guión y Series de Televisión de la URJC. Ha publicado artículos en revistas
como Brumal, Pasavento o Science Fiction Studies y en libros como Historia
de lo fantástico en la cultura española o Historia de la ciencia ficción en
la cultura española. Es autor del ensayo La orgía de los muertos. Historia
del cine de zombis español (Shangrilá, 2019). Ha publicado las novelas Los
huéspedes (Finalista del Premio Drakul, 2009) y Bajo el barro (Planeta,
2020). Es co-guionista de los cortos Cambio de turno (2006), La luz (2021)
y El intruso (2005), nominado al Goya al Mejor Cortometraje de Ficción.
Entre otros proyectos audiovisuales, ha trabajado en el guion de Verónica
(Paco Plaza, 2017).

328
FICÇÕES PÓS-APOCALÍPTICAS NAS VERTENTES DO FANTÁSTICO

Zênia de Faria – Professora titular de Literatura Francesa (aposentada) da


Universidade Federal de Goiás/Brasil, onde ainda atua como docente do
Curso de Pós-Graduação em Letras e Linguística, nas áreas de Teoria Literária
e Literatura Comparada. Mestre em Letras Modernas/Francês (Univ. de
Limoges-França); doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada
(Univ. de São Paulo), com a tese “Mallarmé e o Universo da leitura”; pós-
doutora pelo Centre d’Études et de Recherches Comparatistes, da Univ.
de Paris III/Sorbonne Nouvelle, onde também foi professora convidada no
Instituto de Estudos Portugueses e Brasileiros. Publicações, em particular,
sobre: tradução, intertextualidade, metaficção, Mallarmé, João Cabral de
Melo Neto e Osman Lins.

329
Ficções
pós-apocalípticas
nas vertentes do fantástico
Série
A escrita literária: teorias, histórias e poéticas - nº 8

A série A escrita literária: teorias, histórias e poéticas teve início em


2007, sempre organizada por docentes do Programa de Pós-Graduação
em Estudos Literários (PPLET) dos cursos de mestrado e doutorado
da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), contemplando temas e
discussões em torno dos interesses de suas linhas de pesquisa: Literatura,
Memória e Identidades; Literatura, Representação e Cultura; e Literatura,
Outras Artes e Mídias.
O presente volume, intitulado Ficções pós-apocalípticas nas vertentes
do fantástico reúne ensaios que possuem como foco as ficções pós-
apocalípticas, relacionando-as especialmente aos estudos da literatura
fantástica. As ficções pós-apocalípticas são compreendidas como
narrativas que têm por objeto de representação um mundo em colapso,
destruído, devastado por uma catástrofe natural ou artificial, com
personagens que procuram reinventar a existência. Por açambarcarem
frequentemente em sua trama o terror, essas ficções funcionam como
espaços de projeção e de reflexão dos medos sociais vinculados
especialmente às concepções de humanidade e progresso. Ao reunir
ensaios que tratem desse imaginário escatológico, o livro oferece ao
leitor a compreensão de como as vertentes da literatura fantástica vêm
projetando ficcionalmente as imagens de fim de mundo e reelaborando as
experiências humanas.

Você também pode gostar