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devires, belo horizonte, v. 15, n. 2, p.

01-173, jul/dez 2018


periodicidade semestral – issn: 1679-8503 (impressa) / 2179-6483 (eletrônica)
ORGANIZAÇÃO DOSSIÊ Cristina Melo Teixeira (UFPE)
PEDAGOGIAS DO CINEMA II Denilson Lopes (UFRJ)
André Brasil Eduardo de Jesus (​PUC-MG​)​
Clarisse Alvarenga Eduardo Morettin ​(​USP​)
Eduardo Vargas (UFMG)
EDITORES Erick Felinto (​UERJ​)​
Anna Karina Bartolomeu Erly Vieira Júnior (​UFES​)
André Brasil Fernando Resende​(UFF)​
Clarisse Alvarenga Henri Gervaiseau​(USP)​
Cláudia Mesquita Ismail Xavier (USP)
César Guimarães Jair Tadeu da Fonseca (UFSC)
Eduardo de Jesus Jean-Louis Comolli (Paris VIII)
Mateus Araújo João Luiz Vieira (UFF)
Roberta Veiga José Benjamin Picado (UFBA)
Ruben Caixeta de Queiroz Leandro Saraiva (UFSCAR)
Márcio Serelle (PUC/MG)
DIAGRAMAÇÃO Marcius Freire (Unicamp)
Leonardo Câmara Mariana Balta​r (UFF)
Maurício Lissovsky (UFRJ)
PRODUÇÃO EDITORIAL Maurício Vasconcelos (USP)
André Brasil Osmar Gonçalves​ (​​UFC)​
Carla Italiano Patrícia Franca (UFMG)
Clarisse Alvarenga Paulo Maia (​UFMG)
Leonardo Câmara Phillippe Dubois (Paris III)
Phillipe Lourdou (Paris X)
REVISÃO GRÁFICA Ramayana Lira​(UNISUL)​
André Brasil Réda Bensmaïa (Brown University)
Bernard Belisário Regina Helena da Silva (UFMG)
Carla Italiano Renato Athias (UFPE)
Clarisse Alvarenga Ronaldo Noronha (UFMG)
Fábio de Carvalho Sabrina Sedlmayer (UFMG)
Júlia Fagioli Silvina Rodrigues Lopes (Universidade Nova de Lisboa)
Leandro Lopes Stella Senra
Pedro Rena Susana Dobal (UnB)
Suzana Reck Miranda (UFSCar)
CONSELHO EDITORIAL Sylvia Novaes (USP)
Alessandra Brandão​(UNISUL)​
Amaranta César​(UFRB)​ CAPA E PROJETO GRÁFICO
Ana Luíza Carvalho (UFRGS) Bruno Martins
Andréa França​(PUC-Rio)​ Carlos M. Camargos Mendonça
​Ângela Prysthon​ (UFPE)​
Anita Leandro​(UFRJ) APOIO
Beatriz Furtado​(UFC)​ Grupo de Pesquisa Poéticas da Experiência
Cezar Migliorin​(UFF)​ FAFICH – UFMG
Consuelo Lins (UFRJ) Filmes de Quintal
Cornélia Eckert (UFRGS)

Publicação da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH)


Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG
Programa de Pós-Graduação em Comunicação / Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Avenida Antônio Carlos, 6627 – Pampulha 31270-901 – Belo Horizonte – MG Fone: (31) 3409-5050
Lançamento: novembro de 2021.

D 495 DEVIRES – cinema e humanidades / Universidade Federal de Minas


Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
(Fafich) – v.15 n.2 (2018) –

Semestral
ISSN: 1679-8503 (impressa) / 2179-6483 (eletrônica)

1. Antropologia. 2. Cinema. 3. Comunicação. 4. Filosofia. 5.


Fotografia. 6. História. 7. Letras. I. Universidade Federal de
Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
Sumário

7 Apresentação
André Brasil e Clarisse Alvarenga

PEDAGOGIAS DO CINEMA II
16 Fazeres das imagens e saberes das lutas: A Revolta do Buzú e a dimensão pedagógica
dos filmes feitos com movimentos sociais
Vinícius Andrade

40 O espaço comum na prática do documentário: memórias de uma comunidade de


cinema
Douglas Resende

60 O audiovisual no MST: histórias, processos e estéticas


Carlos Eduardo de Souza Pereira, Luara Dal Chiavon e Maria Aparecida da Silva

76 Cartografando pedagogias e territórios sensíveis com o cinema no hospital


Fernanda Omelczuk e Tatiane Mendes

FOTOGRAMA COMENTADO
104 “Um desenho, várias emoções”: cinema e narrativas de trabalhadoras da educação
pública
Ana Paula Soares da Silva Gomes

118 Cinema e mídias no Abecedário Janela da Memória


Inés Dussel e Adriana Fresquet

FORA DE CAMPO
146 Corpos-ruínas em Conterrâneos velhos de guerra
Tatiana Hora Alves de Lima
Apresentação

Eis o segundo número do Dossiê Pedagogias do Cinema.


Os escritos aqui reunidos, assim como ocorre no primeiro
volume, apresentam-se engajados em uma experiência com
o cinema e com a educação que é da ordem da emancipação
política, realizada seja por meio do fazer das imagens, seja da
experiência de vê-las juntos. Se o primeiro número (v.15, n.1) se
voltava principalmente, mas não só, à produção de cinema por
realizadores e coletivos indígenas, este segundo número do dossiê
(v. 15, n.2) atenta-se ao entrelaçamento entre o cinema (ou,
mais amplamente o audiovisual) e as demandas dos movimentos
sociais, em suas lutas históricas por terra e moradia.
Aqui, novamente, os trabalhos esboçam uma pedagogia
do sensível cujos termos não estão determinados a priori, mas
surgem das relações entre as pessoas, as imagens e os espaços,
envolvendo transformações nas formas de perceber, de ver, de
escutar e de atuar. Nessa direção, cada um dos textos apresenta
a conformação singular e, por vezes, circunstancial de uma
pedagogia que nos sinaliza a impossibilidade de controle sobre os
efeitos que o encontro com as imagens pode produzir.
Seria preciso notar, em contrapartida, que as ocorrências
dessa pedagogia aqui caracterizadas e analisadas evidenciam
a inegável importância das intervenções, tendo o audiovisual
como aliado, não apenas em seus espaços mais próximos, mas
também em zonas de contato e vizinhança entre experiências
várias e irredutíveis. Um primeiro aspecto que se ressalta diz
respeito à dimensão processual do cinema – abordado em sua
relação com as experiências de formação e de partilha do tempo
e do espaço. Em meio aos processos, produz-se o entrelaçamento
entre saberes e fazeres cinematográficos e saberes e fazeres
de cada um dos grupos sociais em suas específicas trajetórias
históricas. Entre as lutas que se indicam e se elaboram nos textos
aqui apresentados, estão aquela pelo direito à terra, no caso dos
trabalhadores do campo; por moradia, no caso dos trabalhadores
dos centros urbanos; por transporte urbano, no caso dos jovens
e trabalhadores urbanos; por educação pública de qualidade, no
caso de estudantes e trabalhadores da educação; mas também
pela melhoria das condições de tratamento nos hospitais, com

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atenção à produção subjetiva e sensível; e pela presença da arte
e, especificamente, do cinema e do audiovisual na educação.
Todas essas disputas alteram tanto os processos políticos, quanto
as formas cinematográficas; tanto os processos cinematográficos,
quanto as formas da política.
A experiência compartilhada do cinema, em cada um dos
espaços e tempos em que ele é praticado, sugere as muitas
transformações nas relações, possíveis de serem estabelecidas
internamente nos grupos historicamente silenciados, apagados e
empurrados para fora das cidades e de suas terras. O interesse
desses trabalhos não se limita, portanto, à análise dos filmes,
mas se estende às maneiras complexas como a experiência vivida
e os filmes se relacionam. Não há uma direção única, como se
um processo sempre levasse a um filme, tendo este como seu
fim último: em muitos casos, os filmes instauram processos e
os processos levam a filmes, sempre de maneiras singulares e
contingentes, sem prescrições metodológicas ou formais.
Um segundo ponto que se ressalta nos trabalhos aqui
apresentados diz respeito à memória dos processos históricos
de emancipação envolvendo grupos sociais e suas lutas. Nesse
sentido é como se as experiências descritas atualizassem, em seus
próprios termos, um legado de atuação social que será convocado
no presente e reenviado ao futuro, sob a forma de memórias
disponíveis por meio das experiências audiovisuais.
Esse movimento fica bastante evidente desde o artigo Fazeres
das imagens, saberes das lutas: A Revolta do Buzú e a dimensão
pedagógica dos filmes feitos em aliança com movimentos sociais,
de Vinícius Andrade, em torno do processo que originou o filme
A Revolta do Buzú, de Carlos Pronzato. O autor demonstra que,
ao canalizar os anseios da juventude mobilizada em torno do
preço da passagem do transporte público em Salvador, em 2003,
o filme torna-se portador e transmissor de aprendizados sobre
modos de organização e estratégias de ação. Foi por isso que o
documentário acabou por funcionar como agente da gênese do
Movimento Passe Livre (MPL) no Brasil.
Nesse sentido, para além das contribuições pontuais que o
documentário ofereceu aos debates à época, o artigo reconhece
no trabalho de Carlos Pronzato uma notável incidência sobre o
curso histórico da luta por transporte urbano no país, explorando

8 Apresentação / André Brasil e Clarisse Alvarenga


seus desdobramentos nos processos de organização e elaboração
de formas de ação do MPL. Para Vinícius Andrade, ao absorver
e expressar de modo singular os saberes tramados pelos jovens
engajados nas lutas por transporte, partilhando de suas referências
e vibrações, o documentário revelou-se agente decisivo na
própria materialidade de tais processos históricos. “Nos parece
que a constituição e trajetória do movimento, em sua identidade,
organização e estratégias, não podem ser desvinculadas do modo
como A Revolta do Buzú, enquanto filme, elaborou aprendizados,
descortinando um caso notável de aliança entre documentaristas e
movimentos sociais na história recente das lutas urbanas no Brasil.”
O segundo artigo – O espaço comum na prática do
documentário: memórias de uma comunidade de cinema, de Douglas
Resende – também investe fortemente em pensar os processos,
nesse caso, o próprio documentarista a elaborar uma reflexão em
primeira pessoa sobre aquilo que, inspirado em conceito de César
Guimarães, ele chamou de comunidade de cinema na Ocupação
Izidora, entre 2014 e 2016, em Belo Horizonte. Como narrado
no texto, à medida em que o autor participa de visionagens
compartilhadas, novas imagens surgem vindas dos moradores,
muitas delas nunca antes vistas coletivamente, multiplicando os
registros exibidos em espaços de convivência da ocupação.
Com isso, o dispositivo do cinema compartilhado passou a
contemplar a pesquisa da memória audiovisual da comunidade, a
partir da qual os habitantes do território, além de estarem em vias
de constituir uma comunidade política e de moradia, acabaram
por criar também e simultaneamente uma comunidade de cinema.
Como reunir as imagens e sons de uma coletividade de um modo
tal que se possa dizer um “nós”?, nos pergunta Douglas Resende.
É no curso de algumas tentativas de responder à pergunta que
se encontra este trabalho, que mostra como experiências de ver
juntos as imagens produzem memórias e potencializam relações
de colaboração indispensáveis para manutenção dos sentidos do
comum entre os coabitantes do território ocupado.
De alguma forma, essa experiência do cinema como
constituição do comum entre grupos mostra-se presente na
maneira como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST)
elabora sua relação com o audiovisual. No artigo O audiovisual
no MST: histórias, processos e estéticas, escrito coletivamente por
Carlos Eduardo de Souza Pereira, Luara Dal Chiavon e Maria

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 7-12, JUL/DEZ 2018 9


Aparecida da Silva, o audiovisual se evidencia como ferramenta
pedagógica nos mais diversos cursos e atividades desenvolvidos
pelo Movimento. Ficamos sabendo como praticamente toda a
militância do MST, desde os anos 1990, assistiu e debateu, em
algum espaço, o filme Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo
Coutinho (1984). Aos poucos, com o investimento em sua
produção interna, o Movimento passou a debater criações de
cineastas parceiros e então realizar e debater seus próprios filmes.
Se os artigos anteriores se dedicam aos processos de criação
e formação audiovisual junto a movimentos sociais urbanos
e rurais, aqui, o cinema (sempre pensado em sua amplitude)
ocupa o espaço do hospital, experiência que será cartografada
por Fernanda Omelczuk e Tatiane Mendes. Neste contexto, o
cinema potencializa-se por sua sonoridade que, para além
dos olhos, abre espaço para o afeto e a memória. As autoras
ressaltam ainda como, ao transcorrerem em um espaço público,
experiências sensíveis podem se tornar coletivas. “O que temos
acompanhado e tentamos cartografar é a suspeita de que o
cinema, ao compor-se território sensível junto aos sujeitos, pode
contribuir para transformar o período de internação nessas
experiências de aprendizagem, construção de conhecimento e
reinvenção de significados, compartilhamento sensível de sons,
imagens e afetos, que se tornam narrativas coletivas.”
Guardadas as suas diferenças, a escola também se torna
um espaço onde memórias individuais e coletivas dialogam
como nos mostra o Fotograma comentado “Um desenho, várias
emoções”: narrativas de sonhos, lutas e afetos pelas vozes de
trabalhadoras da educação de uma escola pública do município de
Belo Horizonte, da educadora Ana Paula Soares da Silva Gomes.
No ano de 2019, ela convida três mulheres, que participaram
da construção da Escola Municipal Rui da Costa Val, para uma
conversa em torno de um quadro – um antigo desenho da escola
recém restaurado e agora exibido na biblioteca –, dispositivo
para a realização de um filme. Cada uma das participantes irá
falar tanto sobre sua experiência pessoal quanto sobre a história
da escola e do bairro, entrelaçando dimensões individuais e
subjetivas àquelas coletivas e históricas.
Ao mostrar o filme que realizou a uma turma do 8º ano, a
autora observa que os estudantes não reconheciam, até então, as
habilidades artísticas de Selma, uma das entrevistadas. “Eu não

10 Apresentação / André Brasil e Clarisse Alvarenga


sabia que Selma era artista, para mim ela só cuidava da limpeza
da escola”, diz uma das alunas. A “cena” de exibição do filme
evidencia a imagem como forma de redistribuir as identidades e
posições que as pessoas ocupam nos espaços.
Não há como esquecer que Paulo Freire (1975) nos ensina
que a educação libertadora é dialógica e, portanto o educador,
enquanto educa, é educado e o educando, enquanto é educado,
educa. Diferente do que acontece na educação bancária, que
transforma o conhecimento em recurso mensurável e passível
de ser administrado e que considera os sujeitos como objetos,
como “depósitos” de um conhecimento formulado por outros em
outros lugares, Freire irá traçar e firmar um caminho em direção
à emancipação. “Ambos [educadores e educandos] assim, se
tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que
os ‘argumentos de autoridade’ já não valem” (FREIRE, 1975,
p. 78). É justamente por isso, que Freire vai dizer que ninguém
educa ninguém, como tampouco ninguém educa a si mesmo. Os
sujeitos se educam mediatizados pelo mundo, sendo o mundo
mesmo considerado como “uma realidade em transformação,
em processo” (1975, p. 82).
Atentas às transformações que as imagens promovem na
vida das pessoas e, por consequência, no campo da educação,
seja ela escolar ou não escolar, Adriana Fresquet e Inés Dussel
elaboram o Abecedário Janela da Memória, nos permitindo
acompanhar o diálogo que ambas estabelecem entre si sobre
temas contemporâneos como a Atenção, o Cinema, as Mídias
Digitais, a Wikipédia e o YouTube. Trata-se de pensar, nesse
abcedário-conversa-cartografia, como a presença das imagens
técnicas e mídias digitas impactam fortemente a educação, em
elaborações potencializadas pela aproximação a autores como
Jonathan Crary, Alain Bergala, Byung-Chul Han. Diante das
alterações provocadas pelas imagens em processos de produção
de conhecimento, colocam-se a urgência e a necessidade
“de desaprender algo das visualidades que carregamos”:
desacelerar os processos, focar a atenção e suspender modos
habituais de reagir aos dispositivos. “Personalizar tempos
de resposta e protocolos de comunicação em tempos de
hiperconectividade e informação infindável parece se tornar
cada vez mais uma questão da educação escolar, nem sempre
claramente assumida.”

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 7-12, JUL/DEZ 2018 11


Há assim outra luta em curso, que, de alguma forma, se
relaciona com as demais: ela reivindica a inclusão do cinema
e da arte dentro das escolas sejam elas de educação básica ou
ensino superior, como experiências reconhecidas não apenas em
sua instrumentalização para outros campos de conhecimento,
mas como parte constituinte de experiências sensíveis e
emancipadoras, atentas ao presente histórico em que vivemos:
à educação e às escolas demanda-se que se posicionem sobre
a relação dos sujeitos com as imagens e sobre os processos de
produção de conhecimento envolvendo o audiovisual.
O artigo da seção Fora de Campo retoma um momento da
história dessa relação entre o cinema e os processos emancipatórios,
com o artigo Corpos-ruínas em Conterrâneos velhos de guerra, de
Tatiana Hora. A autora mostra como o documentário de Wladimir
Carvalho se coloca “ao lado” dos candangos, ao narrar a história
por meio da relação com os sujeitos filmados, trabalhadores
que atuaram na construção de Brasília e que foram empurrados
para fora da cidade que construíram. No filme, os discursos do
progresso e do desenvolvimento são contestados por meio de
testemunhos dos trabalhadores, de imagens de arquivo e também
pelo posicionamento, em cena, do cineasta, que questiona as
autoridades acerca dos acontecimentos que insistem em idealizar
ou ocultar. “Conterrâneos encontra na condição de corpos
restantes dos candangos não só a expressão da exclusão que
vivem atualmente na cidade, como também a potência histórica
que carregam.” O documentário desvia a história e a arquitetura
por meio de corpos-ruínas – aqueles que restam, ejetados ou
soterrados na cidade, mas também corpos que carregam as
memórias dos vencidos, e que emergem como sujeito coletivo.
As histórias que narram é o que resta entre eles, o que promove a
abertura para possibilidades utópicas latentes.

André Brasil e Clarisse Alvarenga

REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.

12 Apresentação / André Brasil e Clarisse Alvarenga


DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 7-12, JUL/DEZ 2018 13
PEDAGOGIAS
DO CINEMA II
Fazeres das imagens, saberes
das lutas: A Revolta do Buzú
e a dimensão pedagógica dos
filmes feitos em aliança com
movimentos sociais

Vinícius A ndrade
Doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 16-39, JUL/DEZ 2018


Resumo: Uma das modalidades de participação de filmes em lutas urbanas se
refere à sua capacidade de transmitir um conjunto de saberes apreendidos pelos
movimentos sociais no embate com os poderes instituídos. Buscamos demonstrar
no presente artigo como tal dimensão pedagógica é engendrada no filme A Revolta
do Buzú (2003), de Carlos Pronzato, fazendo dele, num primeiro momento, um
agente da gênese do Movimento Passe Livre no Brasil e, anos depois, um valioso
material didático nas atividades de base do movimento.
Palavras-chave: Documentário; Lutas sociais; Pedagogia; Carlos Pronzato;
Movimento Passe Livre.

Abstract: One of the highlighted modalities of participation of films in urban


struggles refers to their ability to transmit a set of knowledge learned by the social
movements in the struggle with the instituted powers. We seek to demonstrate in
this article how this pedagogical dimension is engendered in the film A Revolta do
Buzú (2003), by Carlos Pronzato, making it, at first, an agent of the genesis of the
Passe Livre Movement in Brazil and, years later, in a valuable didactic material in the
movement’s basic activities.
Keywords: Documentary films; Social Struggles; Pedagogy; Carlos Pronzato; Passe
Livre Movement.

18 Fazeres das imagens, saberes das lutas / Vinícius Andrade


Introdução

Nos derradeiros meses de 2003, o documentarista Carlos


Pronzato recebe o convite para participar, no Rio Grande do Sul,
do “Fórum Gaúcho de Juventudes”. Tratava-se de um encontro
organizado por uma militância jovem ligada a diferentes
movimentos emergentes na região, que ali interessavam-se em
escutar a respeito do cinema dedicado à intervenção social. Saído
da efervescência de lutas que marcaram Salvador na segunda
metade daquele ano, o documentarista decide apresentar trechos
do material gravado em meio àquela que veio a ser conhecida,
popularmente, como a “Revolta do Buzú”. O impacto das imagens
nos jovens é de tal magnitude que Pronzato se apressa em montá-
las, solicitando, para essa tarefa, o apoio da prefeitura de Três de
Maio, município onde o evento se desenrolava.
A recepção entusiasmada do público do “Fórum Gaúcho de
Juventudes” ao material que comporia o documentário A Revolta
do Buzú (2003) é exemplar do forte apelo que o filme revelaria
adiante, em círculos militantes envolvidos no debate sobre
o tema do transporte e da tarifa zero no país. Não apenas em
Salvador e em cidades do Sul, como Porto Alegre e Florianópolis,
mas também em Brasília e São Paulo, o documentário foi visto
e discutido intensamente por jovens em processo de formação
política preocupados com os rumos da questão da mobilidade
nas cidades brasileiras. Demonstrando, ao canalizar os anseios
dessa juventude, uma notável capacidade de se fazer portador
e transmissor de aprendizados sobre modos de organização e
estratégias de ação possíveis, A Revolta do Buzú, de Carlos Pronzato,
tornou-se um verdadeiro agente da gênese do Movimento Passe
Livre no Brasil.
Tal capacidade – objeto de reflexão neste texto e doravante
tratada como uma dimensão pedagógica potencialmente
engendrada em alguns filmes realizados em aliança com
movimentos sociais – constitui uma das modalidades destacadas
de intervenção de documentários em processos de luta social.
1. Uso a primeira pessoa
Chegamos a ela1 através da tese “Intervir na história: modos do plural como forma
de participação das imagens documentais em lutas urbanas no de agradecer a parceria
decisiva na escrita da tese da
Brasil”, apresentada em 2019 ao Programa de Pós-Graduação
minha então orientadora, a
em Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais. Nela, professora Cláudia Mesquita.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 16-39, JUL/DEZ 2018 19


partíamos das seguintes indagações: de que formas as imagens
e filmes feitos em colaboração com documentaristas intervêm
sobre o curso histórico dos acontecimentos e lutas travadas pelos
movimentos sociais? Como participam das lutas e alteram seus
destinos? De que modos impulsionam as ações desses coletivos?
O problema de como essas imagens e filmes intervêm sobre o
curso histórico das lutas nos levou a envolvê-los numa trama mais
ampla de fenômenos, que sugerem uma mútua afetação entre
o trabalho dos documentaristas e a atuação dos movimentos,
dirigindo nosso olhar para os modos como processos fílmicos e
2. Tomamos algumas processos de luta se relacionam, em intersecção2 com processos
expressões emprestadas históricos mais abrangentes. Reivindicamos que, para falar das
dos estudos dos chamados
“filmes processuais” ou do formas pelas quais as imagens incidem sobre as lutas urbanas,
“cinema-processo”. Nesse é preciso falar das formas pelas quais essas lutas incidem sobre
caso, o termo “intersecção”
foi extraído do texto “A as imagens. Partimos então de um olhar que considera tanto os
família de Elizabeth Teixeira: agenciamentos e “mundos simbólicos” forjados pelos movimentos
a história reaberta”, de
Cláudia Mesquita (2014). quanto os constrangimentos por eles enfrentados, propondo um
equilíbrio entre o que Edér Sader (1988) chamou de “estruturas”
e “experiências”.

Pedagogias dos filmes engajados em lutas sociais

Em uma pesquisa na qual imagens e filmes desempenham


um papel fundamental, essa abordagem se operacionaliza em
dois níveis complementares que são tramados, cada um, por meio
de dois gestos metodológicos. No primeiro nível, tomamos como
premissa as formulações de Nicole Brenez (2011), para quem os
filmes engajados, na atualidade, devem ser analisados não apenas
como textos ou corpus, mas também como um conjunto de atos,
iniciativas, práticas, representações simbólicas e das relações
mútuas entretecidas entre esses aspectos.
A partir dessa perspectiva, em um primeiro momento,
olhamos para as operações de mise-en-scène documentária
(COMOLLI, 2008) – notadamente, as relações entre quem filma
e quem é filmado – e de montagem (DIDI-HUBERMAN, 2011) –
associações entre as cenas, arquivos, informações, testemunhos.
Nossa atenção se volta para as maneiras pelas quais os recursos
expressivos empregados revelam uma “permeabilidade” em
relação às lutas. Num segundo momento, observamos como o

20 Fazeres das imagens, saberes das lutas / Vinícius Andrade


encontro singular entre documentarista e movimento se traduz
em processos de realização específicos, arranjos de produção
particulares, possibilitando certos atos de engajamento nos
acontecimentos filmados.
No segundo nível de análise, as experiências de realização
são vistas não tanto sob a ótica da construção e atribuição de
significados, mas enquanto processos históricos que definem
possibilidades e limites concretos às lutas e à fabricação de
imagens, já que envolvem iniciativas que não visam única ou
exclusivamente à produção de filmes, embora sejam por ela
afetados. São processos que incluem os fazeres das imagens e
dos filmes, e que sobre eles intervêm. Se deslancham processos
fílmicos, também oferecem limites ao que é possível registrar. Esse
duplo caráter sugere que a forma mais proveitosa de investigá-
los se daria não só numa chave histórica, mas tratando-os ainda
como o terreno onde se desenvolve uma “pragmática” de uso e
circulação das imagens produzidas em contextos de luta.
As imagens produzidas no bojo de lutas sociais podem se
revestir de diferentes motivações, de acordo com as exigências
dessas lutas – caso do uso relacionado ao esforço de constituição
ou preservação da memória de um movimento, ou da função de
denúncia de violência policial, que pode atuar na defesa de um
militante em um processo jurídico, ou ainda da modalidade de
produção de contra-informação em uma disputa narrativa frente
à mídia corporativa. Um filme pode surgir de uma proposta
preconcebida e/ou a partir da retomada de imagens feitas com
alguns dos propósitos anteriores. Por isso, os possíveis usos da
imagem nos obrigam a pensar em seus percursos no mundo, seus
caminhos de circulação, pois estes podem investi-las de novas
significações. É a partir dessa pragmática que se torna possível
identificar os modos de intervenção das imagens nas lutas.
Como já indicado, no presente texto trabalharemos com a
dimensão pedagógica dos filmes de luta urbana. Tal dimensão se
descortina quando os filmes, ao se abrirem a uma documentação
solidária aos movimentos e mostrarem-se permeáveis aos
acontecimentos filmados, são capazes de transmitir um conjunto
de saberes forjados e/ou apreendidos por tais movimentos no
embate com os poderes instituídos. São documentários bem-
sucedidos em engendrar aquilo que Luciana Tatagiba, Stela
Paterniani e Thiago Trindade – na esteira de autores como

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 16-39, JUL/DEZ 2018 21


Charles Tilly e Sidney Tarrow – chamaram de “repertórios de
ação”: práticas e discursos (fazeres e saberes) constituídos
coletivamente pelos atores envolvidos em um determinado
conflito, resultantes da conjuntura que opõe sua “capacidade
de agência” aos “constrangimentos do cenário no qual atuam”
(2012, p. 401-402).
A pedagogia portada e potencialmente transmitida pelos
filmes está articulada à capacidade singular de cada obra de
tramar suas imagens em uma relação de “permeabilidade” às
cenas e conflitos políticos protagonizadas pelos sujeitos ligados
ao movimento social em questão. Encontra-se, nesse sentido, na
dependência dos modos específicos pelos quais um filme forja
sua tessitura no contato com um repertório específico: uma certa
maneira de organizar a narrativa em diálogo com as estratégias
de ação empregadas pelos militantes, os recursos peculiares
mobilizados para aderir a slogans, pautas e cânticos, a abertura
para tomadas de palavra dos sujeitos, um ritmo para acompanhar
o desenvolvimento da luta, deixando-se atravessar, em maior ou
menor medida, por suas vibrações e energias.

A Revolta do Buzú (2003)

Acreditamos que os processos históricos e fílmicos que


emergem, se imbricam e se desdobram a partir de A Revolta do
Buzú, de Carlos Pronzato, são elucidativos dessa pedagogia atrelada
aos saberes produzidos em meio às lutas. Pronzato havia chegado
a Salvador depois de uma extensa viagem pela América Latina, a
partir da qual começa estabelecer as bases de leitura da realidade
sobre as quais irá assentar o seu trabalho por vir no campo do
cinema documentário. Nas suas andanças pelo continente, retorna
duas vezes ao seu país natal, a Argentina, de onde pega novamente
a estrada para outros lugares. É numa segunda passagem pelo
Brasil, em 1989, que toma contato com a história de Canudos, na
Bahia, pequeno arraial localizado no Polígono das Secas, e decide
estabelecer moradia no Estado.
A luta popular travada na Guerra de Canudos vai influenciar
decisivamente o percurso de Pronzato, tornando-se mote daquele
que consta como seu primeiro filme, um curta que combina
procedimentos ficcionais e documentais intitulado Canudos, numa

22 Fazeres das imagens, saberes das lutas / Vinícius Andrade


longa curva (2001). No mesmo ano, produz também seu primeiro
trabalho essencialmente documental, Maio Baiano (2001), sobre
as manifestações que tomaram as ruas de Salvador na época em
que o então senador Antônio Carlos Magalhães fora flagrado num
esquema de manipulação do painel de votação do Senado Federal.
O filme ensaia o encontro do realizador com uma juventude
estudantil soteropolitana que iria protagonizar com ainda mais
vigor o que viriam a ser os eventos da “Revolta do Buzú”. Saída de
uma década de “desertificação neoliberal” (BRAGA, 2015, p. 116),
essa juventude mostrava sua insatisfação diante do escândalo
que envolvia o chefe do principal grupo de poder do Estado, cuja
carreira política havia despontado ainda sob a ditadura militar.
Mas, se nas primeiras cenas de Maio baiano a participação
desses jovens é destacada, aos poucos ela vai perdendo espaço.
Duas modalidades principais de registro se alternam na composição
narrativa – imagens das ruas em protesto e entrevistas colhidas
no seu decorrer. Na primeira, a atuação de jovens e trabalhadores
anônimos, animando e provocando momentos mais combativos,
divide lugar com uma forte presença de entidades organizadas.
Já nas entrevistas colhidas pelo realizador, as figuras ligadas à
política institucional recebem maior espaço. Mas, a despeito de
não se constituir em torno do protagonismo juvenil, em momentos
significativos Maio baiano se concentra na participação do público
jovem, como na cena em que uma multidão grita contra a equipe de
reportagem da filial soteropolitana da Rede Globo de Televisão, ou
na cena em que os manifestantes “conduzem” a polícia militar para
fora do campus da Universidade Federal da Bahia (figuras 1 e 2).

Figuras 1 e 2: Estudantes gritam contra a equipe de reportagem da TV Bahia e “expulsam” policiais


do campus da UFBA.

As causas (e efeitos sociais) da “Revolta do Buzú”, no


entanto, não estiveram “apenas” na dependência da inquietação
dessa juventude, cuja visibilidade ainda oscilante em Maio

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Baiano é sintomática de um processo de gradual fortalecimento
como ator político/sujeito coletivo. Fizeram parte de uma
complexa combinação de condições históricas, descritas por
Manoel Nascimento (o “Manolo”) no único texto (tornado
público) a respeito da “Revolta do Buzú” escrito da perspectiva
de um participante dos protestos. Do ponto de vista da política
nacional, tratava-se de um momento turbulento do ano de
2003 (uma das primeiras ações do Partido dos Trabalhadores à
frente do executivo federal consistia numa proposta de reforma
da previdência social). Da perspectiva da conjuntura sócio-
econômica local, delineava-se um quadro adverso: diminuição
substancial das vendas no comércio no mês de julho, combinada
à alta do dólar, queda da cidade no ranking das condições de
trabalho e no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).
Em seu texto “Teses sobre a Revolta do Buzú”, Manoel
Nascimento salienta que não é possível relacionar de maneira
causal e direta tal cenário com as movimentações populares
que começaram a proliferar na cidade, mas que, sem dúvida,
elas ajudaram a constituir o estado de ânimo que desembocou
nos protestos contra o aumento da tarifa de ônibus. Entre esses
processos estão a fundação do Movimento dos Sem-Teto de
Salvador (MSTS), a ocupação da antiga sede da União Municipal
e Metropolitana de Estudantes Secundaristas (UMES) para
torná-la Casa do Estudante, o protesto de servidores públicos
do Estado e da união contra a reforma proposta pelo Governo
Federal e a ocupação da reitoria da UFBA pelo Comitê Pró-
Cotas, com o intuito de antecipar a implementação dessa
política pública.
É diante dessas condições históricas que, inflamados pelo
aumento da tarifa de ônibus municipal de R$ 1,30 para R$ 1,50,
a partir do dia 14 de agosto de 2003 até meados de setembro
do mesmo ano, estudantes, especialmente de escolas públicas,
ocuparam massivamente as ruas de Salvador com intensos
protestos. Carlos Pronzato não dá início à produção de seu
documentário no momento de emergência das manifestações,
mas, quando toma conhecimento dos protestos através dos
meios de comunicação da cidade, decide acompanhar de
perto a movimentação estudantil, como havia feito em Maio
Baiano. Haveria tempo para registrar o recrudescimento e os
acontecimentos decisivos no transcurso das manifestações.

24 Fazeres das imagens, saberes das lutas / Vinícius Andrade


O documentário A Revolta do Buzú mostra protestos
concentrados diante de órgãos públicos, passeatas e atos de rua
realizados em locais de destaque simbólico na vida cultural da
cidade, bloqueios feitos em importantes vias de trânsito e estações
de passageiros, palavras de ordem, depoimentos (não apenas dos
estudantes, mas também de apoiadores de sua luta), cartazes,
faixas, bandeiras, assembleias organizadas e até reuniões em
ambientes institucionais. Documenta esses acontecimentos dia após
dia, oferecendo uma dimensão do crescimento e da intensidade
alcançada pelos protestos. Num estilo direto, combinado a momentos
de interação por meio de entrevistas, a câmera de Pronzato toma
uma posição atenta e aberta às ações e palavras dos estudantes,
devotando-se, sobretudo, ao registro das situações protagonizadas
por eles, procedimento articulado por uma montagem com ritmo
afinado à agitação que tomara conta das ruas.
Nos dias de protesto retratados em A Revolta do Buzú, as
manifestações já haviam conquistado uma adesão mais ampla
e afetavam, por vezes simultaneamente, diferentes pontos de
circulação da cidade. Tratava-se de um momento em que adquiriam
uma proporção imprevista e despertavam a expectativa, por parte
de entidades estudantis, de que fosse efetuada uma “organização”
mais “tradicional”: o estabelecimento de uma direção, a definição
de representantes, o encaminhamento de propostas à Prefeitura. A
primeira parte do filme se atenta para essas disputas, tendo como
marco narrativo, a partir do qual testemunhamos importantes
transformações nos protestos, a cena da reunião na Prefeitura de
Salvador, entre líderes dos movimentos estudantis organizados e
representantes do poder municipal.
A reunião e seus desdobramentos vão escancarar, no
documentário, a divergência que até então aparecia indiretamente,
como efeito dos diferentes depoimentos e visões apresentados nas
sequências transcorridas nas ruas. Depois da assinatura de acordos,
representantes do poder municipal, membros da UBES, ABES, UNE
e de partidos políticos da oposição sentam-se à mesa de conversa e
deliberam sobre os sentidos e impactos das resoluções seladas. Ao
final da reunião, o prefeito Antônio Imbassahy faz um apelo aos
representantes das entidades – que “passem a palavra” aos outros
estudantes “para desmobilizar” os protestos (figura 3). Mostra-se
“exausto”, tal como, do lado de fora da Prefeitura, os policiais já
haviam se mostrado.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 16-39, JUL/DEZ 2018 25


Figuras 3 e 4: “Apelo” feito pelo prefeito Antônio Imbassahy pelo fim das manifestações, ao final
da reunião na Prefeitura de Salvador, e assembleia no Sindicato dos Bancários que escancarou a
divergência entre entidades organizadas e massa de estudantes.

O fato dos estudantes seguirem mobilizados na Praça


Municipal, no momento em que se desenrolava a reunião,
prenuncia o modo como reagiriam às decisões tomadas do lado
de dentro do palácio da Prefeitura. O documentário de Carlos
Pronzato expõe, a partir daí, que a “Revolta do Buzú” seguiria
em frente, “apesar” das lideranças e das decisões que tomaram
sem o consentimento da massa de estudantes. Vemos, em planos
de conjunto, os estudantes darem continuidade, nas ruas, às
mobilizações. Recusam o fim do movimento e explicam o motivo:
a pauta principal, a redução da tarifa, não havia sido conquistada.
Afirmam (exemplo do que acontece na assembleia no sindicato
dos bancários, representada na figura 4) que, em consequência
disso, não se sentiam representados por aqueles que aceitaram os
acordos propostos pela Prefeitura.
Se a primeira parte de A Revolta do Buzú pode ser vista
como uma explicitação das divergências entre os participantes
dos protestos e do consequente “triunfo” da força da multidão,
já no início da segunda metade o foco se volta às estratégias de
ação acionadas pela maioria de estudantes que decide seguir
mobilizada. A abordagem das estratégias de ação se destaca no
registro dos bloqueios, passeatas, piquetes, atos e outras iniciativas
semelhantes. No bairro do Costa Azul, na ligação entre as avenidas
Otávio Mangabeiras e Magalhães Neto (figura 5); na Avenida
Bonocô; no Iguatemi, centro “novo” da cidade; no Campo Grande,
próximo ao Forte de São Pedro, na Avenida Sete de Setembro; na
Cidade Baixa; no túnel Américo Simas; na Estação da Lapa (figura
6), entre outros espaços, a câmera de Pronzato se instala ao rés da
rua, entre os estudantes, captando suas formas de agir no interior
dos protestos, suas conversas, opiniões e decisões.

26 Fazeres das imagens, saberes das lutas / Vinícius Andrade


Figuras 5 e 6: Bloqueio e passeata feitos na orla de Salvador e na região da Estação da Lapa, uma
das principais da cidade.

Além dos bloqueios, passeatas, pixações, ações lúdicas,


também são registradas assembleias improvisadas, deliberações
e reflexões feitas no calor dos acontecimentos. Em uma delas,
vemos um bate-papo entre três jovens, em que falam sobre a
intervenção do movimento no desfile de 7 de setembro. Mais uma
vez próxima dos seus corpos, a câmera de Pronzato documenta
com atenção o teor da conversa. Um deles diz: “Porque muita
gente tá querendo a mesma coisa, mas de modos diferentes. Por
exemplo, tão querendo impossibilitar a parada militar. Eu acho
que a liberdade de expressão tem que ser tanto pra civil quanto
pra militar”. O outro afirma: “Não é porque eles têm uma opinião
contra a gente que a gente não vai deixar eles se manifestar”. E o
terceiro: “Mas eles também proíbem nosso direito de se expressar.
Quando a política tá reprimindo a gente nas ruas e outras coisas,
eles também deixam a gente se expressar tranquilamente?”. E
seguem conversando, fazendo na sequência uma reflexão sobre a
atuação da mídia na cobertura aos protestos.
A Revolta do Buzú torna sensíveis as formas de organização e
estratégias de ação do movimento então insurgente, conseguindo
captar (nuance decisiva) a controvérsia entre estudantes
mobilizados nas ruas e lideranças estudantis (atuantes nos
gabinetes institucionais). O documentário demonstra como as
formas de organização dos estudantes, marcadas por autonomia
e horizontalidade, ultrapassaram as hierarquias vigentes nos
movimentos estudantis e nas estruturas partidárias que sobre
esses movimentos mantinham influência, mostrando também
em que medida suas estratégias, voltadas à ação e à participação
diretas, foram determinantes nessa ultrapassagem e na força que
os protestos adquiriram.

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A Revolta do Buzú, agente da gênese do Movimento Passe Livre no
Brasil

A propósito da importância e dos sentidos para as lutas


sociais futuras das formas de organização e estratégias de ação
documentadas por Carlos Pronzato no contexto da “Revolta do
Buzú”, Manoel Nascimento observa em suas teses:

Os mecanismos de participação no movimento estudantil


definiram-se na Revolta do Buzu de uma forma ad hoc e
improvisada, no sentido de evitar a formação de uma nova
burocracia estudantil nas ruas: as múltiplas assembleias
nos bloqueios, o localismo de algumas reuniões, a recusa às
entidades gerais, a deslegitimação de comissões formadas
pelos aparelhadores do movimento, são sinais do que poderia
acontecer nas próximas oportunidades (2016, p. 39).

A recepção das imagens feitas por Pronzato no “Fórum


Gaúcho de Junventudes”, emblemática do impacto que seu
filme começaria a demonstrar, acontece pouco tempo depois
do espraiamento dos protestos em Salvador. Podemos falar
em três matrizes de experiência (por vezes sobrepostas) às
quais se vinculavam esses jovens envolvidos nos debates sobre
transporte, que comporiam os comitês pelo passe livre no
início da década de 2000: juventudes dissidentes de partidos
políticos, militantes influenciados pelos movimentos anti-
globalização ocorridos na década de 1990 fora do Brasil, e
sujeitos ligados ao Centro de Mídia Independente (CMI),
braço nacional do portal de comunicação alternativo criado,
justamente, na corrente dos movimentos altermundistas.
É no interior desses grupos militantes e dos coletivos a
que dão origem que o documentário A Revolta do Buzú passa
a ser amplamente visto e discutido. Alguns acontecimentos
ajudam a dar materialidade a algo expresso em diferentes
ocasiões por militantes do MPL: o filme A Revolta do Buzú foi
determinante na criação do Movimento Passe Livre no Brasil,
participando como um agente decisivo do processo de gênese
do movimento. Para além das contribuições pontuais que o
documentário já vinha oferecendo aos debates, o tomamos
aqui como uma intervenção fundamental do trabalho de Carlos

28 Fazeres das imagens, saberes das lutas / Vinícius Andrade


Pronzato sobre o curso histórico da luta por transporte urbano
no país, explorando os desdobramentos disso nos processos de
organização e elaboração de formas de ação do MPL.
O filme demonstra incidência, primeiramente, na eclosão de
outra intensa insurgência, a “Revolta da Catraca” ou “Guerra da
Tarifa”, ocorrida em Florianópolis em 2004. Um valioso texto de
Carolina Cruz dá conta de uma das numerosas ocasiões em que
integrantes da Campanha pelo Passe Livre suscitaram exibições
seguidas de debates, num esforço de divulgação e disseminação
das ideias e práticas realizadas em Salvador. Ela relata que, em
meio à organização de uma semana crítica à ditadura militar,
os membros do grêmio estudantil do Colégio de Aplicação se
depararam com a notícia sobre o aumento da tarifa de ônibus, o
que deflagrou a decisão de entrar em contato com participantes
da Campanha pelo Passe Livre. Por coincidência, um deles bate
à porta do grêmio no mesmo dia, propondo aos secundaristas,
justamente, a realização de uma sessão de A Revolta do Buzú.
O filme teve então exibição programada para o
encerramento da semana de crítica ao golpe militar de 1964:

Foi incrível como todos ficaram até o horário normal


de término das aulas. E mesmo depois do sinal bater, o
auditório continuou cheio durante o debate. Acredito que
ter assistido ao filme no contexto daquela semana, na qual
falamos muito sobre a resistência à ditadura e inclusive
conversamos com militantes que haviam participado da
Novembrada fez toda a diferença. Estávamos muito sensíveis
ao tema das lutas sociais, e ver que elas continuavam
pulsando nas ruas, feitas por estudantes como nós, foi
emocionante. Eu me lembro até hoje do frio na barriga e
dos pelos do braço arrepiados ao ver no telão milhares de
secundaristas tomando as ruas de Salvador e parando a
cidade. A vontade era de sair do auditório naquele instante
e fazer o mesmo (CRUZ, 2014, p. 52).

Ainda de acordo com a estudante, o debate foi também


intenso, sendo dele extraído o aprendizado a respeito da
necessidade de uma organização que evitasse a apropriação
de um movimento autônomo por entidades representativas ou
partidos políticos. Marcados por essa sessão e pelas discussões
provocadas, os secundaristas fundam imediatamente uma
espécie de comitê da Campanha do Passe Livre no Colégio

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 16-39, JUL/DEZ 2018 29


de Aplicação, mas A Revolta do Buzú ajudaria a impulsionar
na cidade revoltas não apenas no interior dos círculos
secundaristas: o início da Campanha pelo Passe Livre em
2004 teve como marco inicial a exibição do filme. De acordo
com o relato de Leo Vinícius, militante que se integraria ao
MPL mais tarde, o documentário era a “atração principal” do
evento de lançamento da campanha. No debate, a discussão
se concentraria nas razões do movimento soteropolitano não
ter conseguido alcançar sua principal meta, a revogação do
aumento da tarifa de ônibus.
A partir daí A Revolta do Buzu seria exibido “(...) em escolas
de toda Florianópolis e a JRI/Campanha pelo Passe Livre se
esforçaria como nunca para organizar e criar esse movimento”
(VINICIUS, 2004, p. 26). Trata- se do momento em que o filme
alcança expressivamente o público estudantil, incluídos os
secundaristas do Colégio de Aplicação. As sucessivas exibições
e debates do documentário de Carlos Pronzato ajudaram a
contaminar os jovens de Florianópolis com o mesmo espírito ou
estado de ânimo rebelde nutrido pelos jovens de Salvador um
ano antes, auxiliando também na tomada de consciência acerca
da importância da ação direta (uso de bloqueios, barricadas e
outras intervenções urbanas), bem como no amadurecimento
da defesa de uma organização horizontal, autônoma, sem
lideranças e sem dependência de entidades representativas ou
partidos. Além disso, permitiram a discussão de questões mais
amplas relacionadas ao transporte urbano no Brasil.
Partiu do comitê catarinense a iniciativa de convocar um
encontro nacional para articular as lutas por transporte, evento
que contaria com a participação de militantes de diversos estados
– sua resolução final institui, inclusive, uma campanha nacional.
Tais processos, seus desdobramentos e os modos como o filme
realizado por Carlos Pronzato deles participa, alterando o curso dos
acontecimentos, desembocam na fundação oficial do Movimento
Passe Livre no Brasil, em 2005. O Comitê de Florianópolis convoca
uma plenária para o Fórum Social Mundial de Porto Alegre, na
qual a experiência de Salvador se torna central, como lembra Lucas
Monteiro (o “Legume”), integrante do MPL-SP: “Foram três dias
(...) discutindo princípios e contando experiências, até chegar a
uma plenária final na qual se decidiu os princípios [organizativos]
do movimento” (CARLOTTO, 2013, p. 3).

30 Fazeres das imagens, saberes das lutas / Vinícius Andrade


A publicação do primeiro Jornal do MPL, em outubro
de 2005, sistematizava esses princípios apresentando as
pautas, formas de organização, estratégias de ação, objetivos,
canais de comunicação, entre outros pontos fundamentais de
funcionamento do movimento ora criado. O MPL se declara
então “autônomo, independente e não partidário”, mas não
apartidário, aceitando a composição com outros movimentos em
eventuais frentes de luta, desde que tal composição se desse em
função de pautas comuns; declara-se também um “movimento
social horizontal”, “sem direções centralizadas”, organizado
através de “apoio mútuo e um pacto federativo”, o que dava
liberdade deliberativa e decisória para os diferentes MPLs
espalhados pelo Brasil. Além disso, apresentava a luta pelo
passe livre estudantil como uma luta “sem fim em si mesma”,
tomando-a como ponte para uma luta mais ampla por transporte
“verdadeiramente público”.

Figura 7: Primeiro jornal produzido e publicado pelo Movimento Passe Livre, em que constavam os
princípios de atuação do movimento recém-fundado.

Também nas Campanhas pelo Passe Livre organizadas em


Brasília, onde diversos movimentos autônomos, anarquistas e
novos militantes que nunca haviam se inserido em coletivos
se articularam (por exemplo, no Encontro de Grupos
Autônomos de 2003 e 2004), A Revolta do Buzú teve um papel
fundamental. Carlos Pronzato chegou a participar de uma das
atividades desenvolvidas ao longo da campanha de 2005 (o que
acabaria resultando no filme O distúrbio está só começando).

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 16-39, JUL/DEZ 2018 31


A reverberação do documentário filmado em Salvador havia
sido igualmente intensa na cidade, como revela Leila Saraiva:
“Além dos contatos e histórias que escutamos de quem havia
participado da revolta, a forma como contamos e entendemos
essa revolta foi significativamente moldada junto ao filme de
mesmo nome, de Carlos Pronzato” (PANTOJA, 2017, p. 70).

Movimento Passe Livre-SP: uso pedagógico do audiovisual,


processos e resultados

Na atuação do Movimento Passe Livre de São Paulo também


verificamos um trabalho constante com as imagens produzidas
pelo cineasta. Mas no caso do núcleo paulista, destaca-se o
manejo do audiovisual para disparar processos assumidamente
formativos, possibilidade explorada, sobretudo, em atividades
desenvolvidas em escolas. É, entre outros fatores, como
desdobramento dessa ênfase na dimensão processual da luta
que são impulsionadas as Jornadas de Junho de 2013, iniciadas
exatamente em São Paulo. Em entrevista sobre os fatores que
favoreceram a emergência dos protestos ao documentário Por
uma vida sem catracas (realizado por Carlos Pronzato logo após
as jornadas), Lucas Monteiro afirma ter sido A Revolta do Buzú
responsável por possibilitar aos militantes o desenvolvimento
prático de trabalhos de base. Ele explica: “(...) eu acho que isso
foi muito bem documentado no seu vídeo, Pronzato, que é o
Revolta do Buzú. E a gente usou muito esse vídeo (...) fazendo
atividade em escola”.
No dossiê da Revista Urbânia sobre a participação de
estudantes secundaristas em movimentos políticos, do qual
extraímos alguns trechos do relato de Carolina Cruz (militante
do MPL-Florianópolis), encontramos um precioso documento:
o modelo pedagógico de atividades construído pelo movimento
para ser executado junto aos estudantes. Intitulado “Atividade
geradora do MPL São Paulo nas escolas”, formulado e discutido
ainda no primeiro semestre de 2006 por uma comissão (SPINA,
2016), esse modelo pedagógico foi compartilhado com a
recomendação de que não se tratava de um roteiro finalizado
e deveria ser adaptado de acordo com as necessidades de cada
contexto e situação.

32 Fazeres das imagens, saberes das lutas / Vinícius Andrade


Figura 8: Imagem do modelo pedagógico usado nas atividades de base do MPL-SP.

Se continha etapas de pré-produção, era no trecho


batizado de “atividade propriamente dita” que o modelo previa
o uso de material audiovisual – e esse uso estava planejado
logo para a primeira etapa da atividade. Ela é denominada
etapa de apresentação e inclui a exibição de um vídeo ou trecho
de vídeo considerado didático, oferecendo ponto de partida
para as outras três etapas, que abordam, respectivamente,
3. No site do MPL-SP, o
a discussão sobre as dinâmicas de uso dos serviços públicos movimento apresenta uma
na cidade, o debate sobre o passe livre e a proposta do MPL lista com esses filmes.
Além de A Revolta do
enquanto movimento. Um estudante secundarista participante Buzú, O distúrbio está só
de uma dessas atividades lembraria, por exemplo, a exibição começando e O distúrbio já
começou, fazem parte dela
de “(...) um vídeo de uma manifestação que teve em Floripa
os documentários Amanhã
em 2005 mais ou menos” (KUNSCH, 2014, p. 55).3 vai ser maior (sarcástico.com.
br, 2005), sobre a segunda
O audiovisual foi assim apropriado dentro de uma “Revolta da Catraca” em
Floripa, Saída de emergência
perspectiva pedagógica, inserido entre outras práticas
(MPL Joinville, 2007),
empenhadas em apresentar didaticamente informações discutindo o sistema de
sobre a questão do transporte e despertar a sensibilidade transporte da cidade com
usuários e empresários,
dos estudantes para a necessidade de enfrentamento desses Impasse (Doc Dois, 2010),
problemas. Mais precisamente, para permitir um diálogo entre sobre os protestos contra o
aumento da tarifa em Floripa
a experiência cotidiana dos estudantes de escolas públicas no ano de 2010, Dias de
no que diz respeito aos problemas de transporte e a vivência dissídio (Lucas Flinkler, 2013),
sobre as manifestações contra
dos militantes, possibilitando pontes, trocas e aprendizados o aumento da tarifa em Porto
entre eles. Em um movimento social cujas bases estão fincadas Alegre em 2013, e Primeiras
Chamas (Secundaristas de
em ideias de autonomia, independência e horizontalidade, São Paulo, 2013), sobre os
essa partilha revela-se fundamental, pois abre uma via de protestos que antecederam
e colaboraram para a eclosão
aprendizado de mão dupla, constituinte do próprio processo das Jornadas de Junho de
de luta do movimento. 2013.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 16-39, JUL/DEZ 2018 33


Ainda no dossiê da Revista Urbânia, no texto intitulado “O
que o MPL aprende”, o movimento detalha esse aprendizado.
A partir de uma “identificação” dos estudantes com a condição
de “mão de obra não remunerada” e dos militantes com a
condição dos estudantes, as atividades visam situá-los num
plano comum, marcado pela busca da abolição de hierarquias
e relações de autoridade. Se todos sofrem igualmente com os
problemas do transporte público e da cidade, defende o texto,
todos se tornam sujeitos qualificados para “se posicionar” e
“construir conhecimento acerca das lutas”, e, assim, o processo
aparece como “(...) troca, aprendizagem de ambos os lados,
de solidarização (...)”. O MPL adentra um caminho no qual
procura formar e ser formado permanentemente – entendido
como indissociável da luta. No último parágrafo do texto, o
coletivo defende:

A experiência de via dupla de aprendizagem tem seu maior


valor não apenas pelo acúmulo de conhecimento que
promove em estudantes e militantes, mas principalmente
por seu processo. A horizontalidade, tão cara ao Movimento
Passe Livre, é tanto um fim como um meio, e a experiência
de desconstrução da formalidade, da normatividade, do
condicionamento, da hierarquização e do autoritarismo da
escola, além do debate de problemas sociais que atingem
a todas e todos, é um dos maiores frutos que poderíamos
receber destes encontros. Nós precisamos tanto imaginar
uma cidade onde todas e todos possam se movimentar
com liberdade como nos auto-organizar. O que as alunas e
alunos em todas as oficinas nos ensinam, através de uma
postura anti-autoritária, é que a luta já acontece, na prática,
de forma tão cotidiana quanto o próprio sofrimento. Nosso
trabalho, por fim, será apenas reafirmar: tamo junto. (MPL-
SP, 2014, p. 61).

Já salientada na declaração de princípios do MPL,


em que se lê que a luta pelo passe livre estudantil acontece
“sem fim em si mesma”, a ênfase na dimensão processual se
destaca na passagem acima e é também debatida num texto
de Pablo Ortellado escrito após as manifestações de Junho
de 2013. Segundo o autor, a sua predominância é comum em
diversos movimentos surgidos nas últimas décadas, sobretudo
naqueles pautados em princípios de horizontalidade e
autonomia. Neles, a “processualidade” inerente às práticas e

34 Fazeres das imagens, saberes das lutas / Vinícius Andrade


experiências, não raro, é sobrevalorizada e até contraposta aos
resultados concretos das ações políticas. A sobrevalorização do
processo, no entanto, pode não ter a ver unicamente com um
aprendizado pela luta, ou um legado mais amplo que ela pode
deixar. Ela expressaria seu valor, antes, em situações e práticas
específicas, como as assembleias, nas quais decisões, ainda que
capazes de contemplar uma pluralidade de pontos de vista,
não restariam, em nível de importância, acima da experiência
coletiva de deliberar. Nesse sentido, a tomada de palavra não
buscaria apenas “(...) contribuir para aprimorar a decisão”,
mas, especialmente, “a autoexpressão e a participação”
(ORTELLADO, 2013, p. 228).
As reflexões de Ortellado se dirigem ao conjunto de
movimentos autonomistas surgidos na última década no Brasil,
sem endereçar uma crítica ao MPL, movimento ao qual o autor
credita uma capacidade de combinação singular entre processo
e resultado. Mas no capítulo inicial do mesmo livro em que
encontramos o texto de Ortellado, Marcelo Pomar reflete sobre
as ambiguidades presentes na atuação do MPL na virada da
década de 2000 para os anos 2010. Para ele, a característica
comum que os movimentos por passe livre adquiriram, de
“aversão” aos meios institucionais, apresenta consequências
positivas e negativas, funcionando “para o bem e para o mal”
do movimento. Os MPLs

são, assim, ao mesmo tempo, menos suscetíveis à corrupção


moral das formas tradicionais de jogo político, mas também
muitas vezes não dão a devida importância ao processo
histórico (...) (POMAR, 2013, p. 14-15).

Pomar explica que, na segunda metade da década de 2000,


como consequência desse equilíbrio tênue entre processos e
resultados, o MPL vive um paradoxo: encontra dificuldades
em sua organização, mas vê sua luta se espalhar pelo Brasil.
Os diversos núcleos se aproximam de maneiras diferentes de
bandeiras maiores e menores, as discussões se ampliam em
alguns deles para alcançar a condição dos trabalhadores e, além
disso, o debate sobre a tarifa zero, a partir do aprendizado com
experimentos feitos em prefeituras populares nos anos 1990,
é amadurecido. Se a questão processo/resultado desponta

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 16-39, JUL/DEZ 2018 35


como uma tensão permanente, as atividades realizadas pelo
movimento e as lutas desenvolvidas ao longo dos anos foram
possibilitando uma consciência maior sobre os efeitos concretos
de suas ações.
Nesse sentido, o trabalho de base – no qual os filmes
assumiram um papel primordial – combinado à formulação
de estratégias atentas à horizontalidade, transforma a ênfase
na dimensão processual num dos fatores determinantes para
o MPL atravessar a segunda metade dos anos 2000 mantendo
uma intensa atividade. Para permanecer no exemplo de
São Paulo, lutas intensas contra aumentos de passagem são
travadas no final de 2006, 2010 e 2011 (algumas delas,
lembremos, retratadas nos filmes exibidos em salas de aula),
além da importante ocupação da Secretaria de Transportes da
cidade, em 2009. Em 2013, antes da explosão das Jornadas de
Junho, as lutas do movimento já haviam conseguido barrar o
aumento da passagem em lugares como Taboão da Serra, na
região metropolitana da capital, em Teresina, e conquistador
passe livre estudantil em Brasília, em julho de 2009.
Notamos que os resultados colhidos pelo movimento
a partir de suas ações se apresentam como indissociáveis da
dimensão processual de funcionamento coletivo estabelecida.
Essa dimensão processual, por sua vez, desenvolveu-se tendo
nas imagens dos filmes – destacadamente, A Revolta do Buzú
– uma de suas bases principais. O documentário de Carlos
Pronzato, ao absorver e expressar de modo singular os saberes
tramados pelos jovens engajados nas lutas por transporte,
partilhando de suas referências e vibrações, revelou-se agente
decisivo na própria materialidade de tais processos históricos.
Nos parece que a constituição e trajetória do movimento, em
sua identidade, organização e estratégias, não podem ser
desvinculadas do modo como A Revolta do Buzú, enquanto
filme, elaborou aprendizados, descortinando um caso notável
de aliança entre documentaristas e movimentos sociais na
história recente das lutas urbanas no Brasil.

36 Fazeres das imagens, saberes das lutas / Vinícius Andrade


REFERÊNCIAS

BRAGA, Ruy. A pulsão plebeia: trabalho, precariedade e rebeliões sociais. São


Paulo: Alameda, 2015.
BRENEZ, Nicole. Political cinema today: the new exigences – For a Republic of the
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MAIO Baiano. 20’, 2001. Direção: Carlos Pronzato. Salvador, 2001.
O DISTÚRBIO está só começando. 20’, 2005. Direção: Carlos Pronzato e CMI-DF.
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Direção: Carlos Pronzato.

38 Fazeres das imagens, saberes das lutas / Vinícius Andrade


DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 16-39, JUL/DEZ 2018 39
O espaço comum na prática do
documentário: memórias de uma
comunidade de cinema

Douglas Resende
Documentarista e professor adjunto do Departamento de Cinema e Vídeo da UFF.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 40-59, JUL/DEZ 2018


Resumo: No cotidiano de uma ocupação urbana conhecida como Izidora subsiste
uma comunidade de cinema formada por uma pluralidade radical de sujeitos que
filmam a vida política e cotidiana do território, salvaguardando sua memória coletiva.
Este artigo faz um relato da experiência de produção de espaços de visionagem
coletiva dessa memória audiovisual dentro da comunidade, propondo considerar
esse espaço de partilha para um ver juntos como possibilidade para um espaço
comum na prática do documentário.
Palavras-chave: Cinema documentário; Espaço comum; Política; Ocupação urbana.

Abstract: In the daily life of an urban settlement known as Izidora remains a film
community formed by a radical plurality of individuals who film the political and
everyday life of that territory, while safeguarding their common memory. This article
reports on the experience of producing spaces for sharing this audiovisual memory
within the community, proposing to consider these shared spaces as a possibility for
a common space in the practice of documentary.
Keywords: Documentary film; Common space; Politics; Urban settlements.

42 O espaço comum na prática do documentário / Douglas Resende


Figura 1: Frame do filme Memórias de Izidora, de Vilma da Silveira, João Victor Silveira de Paula,
Kadu de Freitas, Edinho Vieira e Douglas Resende (2016/2020).

Eu vinha convivendo, ao longo de cerca de dois anos (entre


2014 e 2016), com uma série de pequenas montagens e registros
audiovisuais realizados em momentos e situações diversas na
Izidora – um conjunto de ocupações urbanas espontâneas1 1. O que significa dizer sem
autoconstruídas numa das bordas da cidade de Belo Horizonte a articulação prévia com
movimentos político-sociais
– quando propus a um jovem morador de lá, Edinho Vieira, uma organizados.
série de projeções desses registros nas comunidades, de modo a
criar um espaço para vermos juntos as imagens e conversarmos
sobre elas. Mais imagens seriam criadas a partir dessa experiência
de visionagem compartilhada, o que poderia possibilitar
uma nova montagem articulando essa memória audiovisual.2 2. Disponível na plataforma
da Mostra Lona: http://
Basicamente, uma experiência praticada de inúmeras maneiras
mostra-lona.com.br/acervo/
ao longo da história do documentário, desde Robert Flaherty e memorias-de-izidora.html.
Jean Rouch, até Eduardo Coutinho e o conjunto de realizadores
contemporâneos do Vídeo nas Aldeias, e o que parece ser – eis
aqui uma hipótese – a tradução mais literal, da teoria para a
prática fílmica, da possibilidade de um espaço comum para um ver
e um fazer compartilhados.
São vários os sentidos e as escalas de “espaço” que
proponho pensar aqui. Estamos situados nos limites de um
território específico, e isso é algo significativo da perspectiva
do documentário se pudermos crer que “a história e a memória
ganham uma outra substância quando se parte de uma geografia
específica; irrompem ligadas à terra, às pessoas, a suas falas, aos
encontros, misturadas ao cotidiano”, como escreveu Consuelo
Lins (2004, p. 67) sobre o cinema de Coutinho. Esse espaço
delimitado, no caso particular aqui, está inserido no contexto

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 40-59, JUL/DEZ 2018 43


urbano, numa outra escala espacial, a da cidade, esta que é
ao mesmo tempo fábrica de tensões político-sociais e terreno
privilegiado de experimentação de outras formas de estar juntos
que buscam corresponder à necessidade de emergência de novas
subjetividades a contemplar as demandas e desejos das condições
político-sociais do presente. Mas é ainda este outro – o de um ver
juntos – o sentido de espaço ao qual me refiro especialmente e ao
qual o “comum” vem qualificar: esse espaço que se cria entre os
sujeitos e suas imagens com a visionagem compartilhada, espaço-
tempo do comparecimento de uma comunidade diante de suas
próprias imagens (BRASIL, 2016).
Produzidas por várias pessoas, de diferentes lugares e entre
as quais alguns moradores das comunidades, aquelas imagens e
sons que eu trazia comigo haviam servido a campanhas realizadas
por uma rede de ativismo – essa “forma social” baseada “na
comunicação, na colaboração e nas relações afetivas” (HARDT;
NEGRI, 2005, p. 101) – que se constituiu autônoma e muito
amplamente na cidade para compor com as comunidades a
3. Vou pelo menos mencionar resistência diante de intensas ofensivas do Estado. Este insistia na
duas contradições tão básicas
quanto insustentáveis das tentativa de remoção das quase oito mil famílias que ocupavam
grandes cidades do Brasil o terreno como uma forma de ação direta, em resposta à
que remontam às causas
do grave déficit de moradia necessidade de moradia digna, já que as políticas públicas para
que elas invariavelmente essa área se mostram histórica e insistentemente ineficazes a
apresentam: a primeira é
que o salário mínimo nunca despeito de, em teoria, se tratar de um “direito fundamental”.3 Até
incluiu no seu cálculo nem o então as montagens dos registros haviam se dado, portanto, em
dinheiro do aluguel, nem o
da prestação, é um salário
breves e fragmentados cortes realizados em função das situações
de subsistência, o que coloca de urgência e das exigências imediatas dessa militância que se
uma grande quantidade
vê constantemente sob ataque – midiático, jurídico, policial. Por
de pessoas num limbo; a
isso se soma – a segunda isso, o tempo da militância tende a não colaborar com o trabalho
contradição – a questão demorado. Há o apelo de uma urgência diante do estado de
hitórica do acesso à terra
urbana, legitimado por um exceção que produz a necessidade da resistência contínua, da
sistema radicalmente desigual publicização constante, instantânea, em rede, o que faz com que
no qual há uma longa tradição
de reserva de terra apenas a produção situada nesses contextos venha, no mais das vezes,
para ricos e classe média redundar na velha “concepção instrumentalista” – o “fardo do
(MAGALHÃES; RESENDE,
2011, p. 14-19). Segundo dados cinema ‘militante’”, lembrando uma vez mais a crítica de Serge
da Fundação João Pinheiro, Daney (2007, p. 72) nos anos 1970, endereçada a um cinema
na Região Metropolitana de
Belo Horizonte, o número de visto como “um transmissor sem potencialidade da popularização
famílias sem casa é de cerca de ideias elaboradas em outro lugar” – com seus fins demasiado
de 115.000 e, no Estado de
Minas Gerais, de mais de
efêmeros e circunscritos. Em algum momento desses processos
450.000 (FREITAS, 2015, p. 13). é preciso, portanto, resistir também à urgência e sua demanda

44 O espaço comum na prática do documentário / Douglas Resende


por instantaneidade. O que não seria um abandono do aqui-agora
específico, mas uma dobra temporal sobre esses espaços. Demorar
é voltar, devolver, conviver com as imagens. Se a produção
audiovisual militante é vista quase sempre como esse instrumento
a trabalhar em favor de uma denúncia, de uma maior adesão
social à luta ou de uma salvaguarda, de forma bastante instintiva,
da memória do que se passa no presente da vida política da
cidade, parece valer a pena também que se demore mais em suas
imagens, que se retorne a elas, que se lhes dêem outros tempos,
de modo a recolocar o passado em perspectiva e permitir outros
desdobramentos, novos registros, novas memórias, novas ações.
Esta é então a matéria-prima a partir da qual se desenvolve
a dimensão prática desta pesquisa:4 imagens de arquivo, 4. Que se dá menos como
um tipo de “campo” e mais
reminiscências de momentos de perigo situadas no passado
como um processo de
contemporâneo de uma comunidade, e que a ela retornam intervenção no cotidiano da
no presente, no mesmo contexto territorial em que foram comunidade ou então de uma
“participação implicada”,
feitas, produzindo uma dobra temporal sobre esse território. na qual o pesquisador está
Realizados em meio a esse contexto de urgência, os registros implicado nos objetivos
políticos dos sujeitos com os
se situavam sempre num mesmo movimento de dentro para quais está pesquisando.
fora da comunidade. Ao trazer a proposta das projeções desse
material audiovisual nas ocupações, o que estávamos por
fazer era uma inversão de tal movimento: as imagens antes
endereçadas à cidade, ao mundo, retornariam à comunidade, ou
seja, ao próprio contexto onde elas foram geradas, num gesto de
devolução. Trata-se simplesmente de reunir aquela comunidade
em torno de suas próprias imagens. Pois, se individualmente ou
em pequenos grupos um tanto isolados já se faziam notar dentro
daquele território práticas que reapropriam e articulam de um
modo singular as possibilidades do audiovisual, subvertendo suas
preconfigurações – tecnológicas, estéticas, culturais, algo próximo
daqueles procedimentos “‘minúsculos” e “cotidianos” que “jogam
com os mecanismos da disciplina e não se conformam com ela
a não ser para alterá-los” (CERTEAU, 1998, p. 41) –, parecia se
fazer necessário ainda um movimento no sentido de um esforço
coletivo para se produzir espaços onde essas práticas pudessem se
associar, se complementar, expressar seus sentidos comuns e dar
conta ao mesmo tempo da pluralidade de perspectivas que faz
um território e do que ele tem de singular. Ou, noutras palavras,
trazer para o cotidiano de uma coletividade, para um plano local,
a produção de sentido a partir das imagens dessa coletividade,

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 40-59, JUL/DEZ 2018 45


e então produzir memória, recontá-la junto com as imagens, de
maneira a ajudar não só a ver e articular entre si aspectos da vida
e dos acontecimentos que não se deixam notar normalmente,
mas também a construir um modo ao mesmo tempo singular e
coletivo de vê-los.
De um modo geral, as ocupações urbanas produzem
espaços-tempos que carregam consigo um engajamento e síntese
entre vida e política, trabalho e criação, e que são criados por
sujeitos que assumem a vanguarda – no sentido mesmo de
dianteira em relação à posição do próprio corpo – de uma das
lutas políticas mais intensas na cidade e que, com isso, acabam
apontando questões de dimensões históricas no campo da justiça
socioespacial, da distribuição da terra e de formas de política
do nosso presente. Ao provocar dentro da cidade uma produção
de espaço autônoma e singular, as ocupações urbanas se fazem
territórios-laboratório do comum, de experimentos de modos de
viver outros, baseados na autoconstrução, na cooperação mútua
e, pelo menos em sua constituição, com total autonomia em
relação ao Estado e ao capital imobiliário (o que designa uma
definição elementar de comum: o que se encontra aquém e para
além dos domínios do público e do privado). Mais do que isso,
são ações diretas que os confrontam. Por isso, elas se mostram
não só uma solução para o enorme problema da moradia nas
grandes cidades, como também uma alternativa, em vários
aspectos, ao domínio da cidade neoliberal, esta que quer fazer
do espaço mercadoria e do discurso uma voz única, totalizante
e pretensamente autossuficiente. Como propõe Jean-Luc Nancy
(2003, p. 169), para se pensar a política é preciso abandonar
toda a ideia de autossuficiência tanto do sujeito como da própria
cidade – é preciso não só reconhecer a legitimidade da existência
de outros modos de vida e, portanto, de discurso, de expressão,
como se faz também necessária a coexistência das diferenças,
um “nós” “singularmente plural” (NANCY, 2000), sem o qual não
seria possível vislumbrar novas subjetividades coletivas.
Destas necessidades compartilha o próprio cinema
documentário. À luz da sua história, podemos dizer que é mesmo
parte do seu caráter o interesse pela diferença, para algo além
de um cerrado ensimesmamento. O documentário que se faz da
busca recíproca de um pelo outro, por se dizer num outro. Porque
para eu poder ver o mundo necessito de um outro, do mundo

46 O espaço comum na prática do documentário / Douglas Resende


que reflete na sua pupila quando me olha e do qual não posso
ter acesso a não ser por esse reflexo. Os atributos de um outro
percebidos no meu olhar exterior sobre ele, mas inacessíveis a
ele no lugar que se encontra fora de mim, “completam o outro
justamente naqueles elementos em que ele não pode completar-
se”. Bakhtin chamou isso de “excedente da visão”.5 5. “Esse excedente da minha
visão, do meu conhecimento,
Ver juntos – o outro, com o outro, ver-me pelo outro – é situar da minha posse – excedente
sempre presente em
o olhar lá fora, faz-se num espaço exterior aos seres engajados no face de qualquer outro
ato de olhar, donde o espaço fora é fundamentalmente espaço indivíduo – é condicionado
pela singularidade e pela
entre. Ao levantar o olhar para o exterior, o documentário se lança
insubstituibilidade do meu
num movimento de encontro com o mundo, e tem de assumir a lugar no mundo: porque
tarefa de criar um modo de se relacionar e de se confrontar com nesse momento e nesse lugar,
em que sou o único a estar
as vicissitudes da multiplicidade e da diferença, de outros olhares, situado em dado conjunto
de como olham – ou de como devolvem um olhar – os sujeitos que de circunstâncias, todos os
outros estão fora de mim”
são filmados; tem de criar um modo de abrigar as relações e os (BAKHTIN, 2011, p. 21-23).
sentidos que ganham os territórios sobre os quais se investe uma
câmera. É uma exigência – ética e política – do documentário a
postura aberta para o espaço exterior que se situa entre câmera
e mundo, entre quem filma e quem é filmado, na presença de
um diante do outro. Presença pressupõe ao mesmo tempo
comparecimento, aproximação e partilha, separação – troca sem
outro fim que o de manter a relação. Para Nancy (2000, p. 2),
não chega sequer a haver sentido se este não é partilhado, “não
porque existiria uma última ou primeira significação que todos
os seres teriam em comum, mas porque o sentido é ele mesmo a
partilha do Ser”, “é um tensor de multiplicidade” (NANCY, 2003,
p. 137). Assim, o mundo não teria outro sentido senão aquele
que é criado entre os seres que o coabitam quando partilham o
sentido de estar no mundo.
O “comum” que qualifica aí politicamente o “espaço”
significa, então, a horizontalidade nos processos de produção
e a possibilidade de construção de um enunciado multivocal,
plurissubjetivo – de modo a se buscar escapar às formas totalizantes
(e totalitárias) tão constantes nas “verdades” autossuficientes dos
modelos de representação tradicionais. Se não existe presença
sem comparecimento de uns diante dos outros, se só existe
então co-presença e se o propósito ou a condição da existência é
a coexistência, se não existe nem mesmo sentido no em-si-mesmo
(NANCY, 2000), a tarefa que se impõe é saber como coabitar o
mundo. Como produzir um espaço capaz de abrigar as diferenças

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 40-59, JUL/DEZ 2018 47


e lugares múltiplos que, juntos, possam produzir sentido? Isso
significaria portanto pensar os meios, os processos, os modos de
fazer, pensar antes da ideia de “obra” – como coabitar o mundo,
pois o mundo não é algo que demanda ser produzido, fundado,
6. Como foi elaborado numa mas que é feito para ser habitado.6 Então se o cinema pode
discussão em torno do Ver
mesmo ser criação de mundos, o mundo no documentário só é
juntos (2003: p. 54), de Jean-
Toussaint Desanti, na qual se criado porque soube antes ser coabitado, se faz antes de tudo pela
apontava para os sentidos de partilha da presença.
horizontalidade nesse texto.
Há uma correlação entre essa exigência ética e política do
documentário e o modo como, em geral, se dão as ocupações
urbanas espontâneas – elas só podem acontecer na partilha de
um sentido comum entre sujeitos que comparecem uns diante dos
outros; sentido que deverá ser construído a partir desse encontro
aberto e indeterminado, que não se dá na “interioridade de
uma identificação” (SILVA, 2011, p. 23-24), nem conta com as
regulações e predeterminações de laços familiais ou da relação
contratualista em uma estrutura jurídica, mas na experiência
de uma política do “face-a-face” que só pode acontecer entre
aquelas pessoas específicas e naquele aqui-agora específico, ou
7. “O comum que seja, na produção de um comum desconhecido, a se construir.7
compartilhamos, na As ocupações urbanas espontâneas partem de uma origem e
realidade, é menos
descoberto do que uma necessidade muito concretas e determinadas – a moradia,
produzido”, escreveram motivo do encontro de sujeitos múltiplos vindos de fluxos da
Hardt e Negri (2005, p. 14).
metrópole os mais diversos –, mas seu caráter singular, o caminho
e as narrativas de cada uma vão se desenvolver entre aqueles
que partilham a presença e o sentido naquele território específico,
jamais fora dele. Essa origem manifesta e o destino aberto,
indeterminado, aproximam a produção do espaço nas ocupações
de uma forma de criação – os sujeitos que se engajam nessa
produção estão nesse movimento entre uma origem determinada
e um percurso desconhecido.
No caso particular da Izidora, a produção de sentido e de
sua subjetividade coletiva devem consideravelmente à prática
do filme. À medida que as visionagens compartilhadas foram
acontecendo, mais imagens surgiam vindas dos moradores, muitas
delas nunca antes vistas coletivamente, multiplicando as naturezas
dos registros exibidos naquelas projeções improvisadas em espaços
de convivência das ocupações. Com isso, o dispositivo do cinema
compartilhado praticado ali se desdobrou no que passei a chamar
de pesquisa da memória audiovisual da comunidade, a partir da qual

48 O espaço comum na prática do documentário / Douglas Resende


pude afirmar aos habitantes daquele território que, além de estarem
em vias de constituir uma comunidade política e de moradia,
eles estavam criando também uma comunidade de cinema.8 Essa 8. Comunidade da qual
comunidade de cinema subsiste ali no cotidiano daquele território surgiram filmes como o
notável Na missão com Kadu
de forma surpreendente – subjaz em grande parte sob a esfera (Aiano Bemfica, Kadu Freitas,
pública das visibilidades, mas está mais próxima do chão, da terra Pedro Maia de Brito, 2016).

e da vida cotidiana e política ali. É feita de uma pluralidade radical


de sujeitos que filmam. Os seus registros audiovisuais, por mais que
expressem de forma muito evidente a singularidade de cada um que
investe a câmera (às vezes um celular ou uma pequena cybershot)
sobre o mundo ao redor, são todos voltados para uma coletividade
– da própria comunidade das ocupações ou da cidade. Ora falam
entre si, numa espécie de comunicação intraterritorial (o que
fortalece ali a ideia de uma comunidade de cinema), ora se dirigem
ao macroespaço da cidade, quando assumem o espírito militante
– mas nunca, em nenhum momento da pesquisa dessa memória
audiovisual, foram trazidos às projeções registros narcísicos ou de
futilidades da vida cotidiana nos moldes do que vemos diariamente
nas redes sociais. Se, como propôs pensar Guattari, a vida de cada
um é única, cada trajetória, radicalmente singular, é preciso religar
essa sua dimensão individual à coletiva.9 É precisamente esse 9. “Não se trata mais aqui
de uma ‘Jerusalém celeste’,
vínculo entre os níveis mais singulares e os mais coletivos de uma
como a do Apocalipse,
pessoa o que apresentam os registros, nos quais parece não haver mas da restauração de
fronteira entre o político e o privado. Mais do que isso, são pessoas uma ‘Cidade subjetiva’ que
engaja tanto os níveis mais
que filmam porque percebem esse gesto como parte possível da singulares da pessoa quanto
produção de espaço comum na qual engajam seus corpos – esse os níveis mais coletivos”
(GUATTARI, 2006, p. 170).
primeiro microespaço da cidade, como coloca o geógrafo David
Harvey10 – e suas vidas pessoais. Filmam ao assumir o lugar de 10. Segundo também ele, “há
sujeitos da história da cidade, ora como forma de denúncia e de uma hierarquia de escalas
espaciais” contra a qual é
resistência contra as forças políticas, econômicas e sociais mais “preciso encontrar formas de
poderosas e violentas, ora como celebração do convívio que se ligar o microespaço do corpo
ao macroespaço daquilo
consuma em condições que muitas vezes parecem impossíveis –
que hoje recebe o nome de
e o fazem dentro do mesmo processo prático de autoconstrução ‘globalização’” (HARVEY,
e de constituição de uma coletividade dos que “se incluem pela 2000, p. 74).

exclusão” (GUIMARÃES, 2015, p. 46) para se autodeclararem


fundadoras de um bairro, de um grande bairro autônomo em ato
de construção.
O jovem morador da Izidora a quem primeiro propus a
produção das visionagens compartilhadas era Edinho Vieira, que
se formava como fotógrafo e cineasta a partir do engajamento

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 40-59, JUL/DEZ 2018 49


político que as circunstâncias e a experiência de vida ali lhe
convidavam e da produção de imagens da resistência e do
cotidiano do território onde vive. Dentre os seus trabalhos, ele
havia realizado um curta-metragem filmado na comunidade
e criado um cineclube dedicado a exibir filmes que se
relacionam de algum modo com a luta política experienciada
pelas ocupações urbanas. Mas o seu curta ou mesmo qualquer
outro filme feito dentro das próprias ocupações da Izidora
jamais haviam sido projetados no cineclube, e decidimos
então começar a fazê-lo, seguindo aquela mesma inversão do
movimento no qual as imagens passariam a retornar ao seu
contexto de origem.

Figura 2: Registro da comunidade da Izidora (Fotografia de Edinho Vieira).

Figura 3: Projeção da “memória audiovisual” da comunidade da Izidora.

50 O espaço comum na prática do documentário / Douglas Resende


Projetamos o curta e também uma montagem de fragmentos
que eu trazia da memória audiovisual da comunidade durante a
assembleia semanal de uma das ocupações da Izidora. Finda a
sessão, um debate reflexivo se desencadeou entre os moradores,
que perceberam que a prática de ver juntos as imagens poderia
potencializar as conversas durante a própria assembleia e estimular
a participação dos coabitantes, já que a dispersão dos sentidos que
mantém reunida aquela coletividade é um dos maiores riscos
ao comum. Um dos moradores que assumia na ocasião o papel
de mediar a assembleia argumentou que muitas das pessoas ali
presentes haviam chegado depois dos processos de resistência
mais intensos e, portanto, não vivenciaram todo o engajamento,
o trabalho e a coragem que foram precisos para ainda estarem
ali sobre aquelas terras. A projeção da memória em imagens e
sons era uma forma de rememorar o passado aos que o viveram
e, ao mesmo tempo, de mostrar algo daquela experiência aos
que não a vivenciaram, explicitando de um modo específico
para aquele território um papel mediador do cinema. Ver juntos
aquelas imagens e tê-las não como um fim (ou como um “filme”)
mas como um processo, um meio de potencializar as relações,
de colaborar para que se mantenha um sentido comum entre os
coabitantes de um território cuja unidade se mantém com muito
custo em meio aos desafios de uma autogestão. Era uma maneira
de lembrar, de reativar uma memória, de colocá-la em perspectiva
– naqueles momentos, o sentido do trabalho em comum que fora
necessário para a constituição daquele pedaço de cidade em germe
parecia pousar de novo sobre as pessoas, entre elas. “O ato de
criação”, escreveu Maurizio Lazzarato (2006, p. 91), “não se refere
essencialmente a uma obra, a um produto terminado, ele mediatiza
uma operação coletiva, ele permite a um grupo, a uma singularidade
existir”. Há nessa dimensão processual da prática do cinema
compartilhado, que faz reunir uma comunidade, uma experiência
de troca e de “aprendizado mútuo” – como muitas vezes ressaltou
Rouch em suas reflexões sobre esse dispositivo que ele chamou de
“feedback” ou ainda “eco criador” (ROUCH, 2003, p. 122). E pode
haver ainda, e sobretudo, uma produção de subjetividade coletiva
que ajude a manter reunida uma comunidade, que a ajude a existir.
Ao final logo da segunda projeção improvisada em
meio à assembleia semanal da comunidade, uma senhora de
aproximadamente 70 anos se levantou e disse: “Eu também faço

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filmação. Tenho muitos filmes em casa.” Tão franzina quanto
valente, Vilma da Silveira cultivava o hábito de filmar a vida na
ocupação e empunhava sua pequena cybershot sempre que havia
algum ato político, repressão policial, uma cerimônia de batismo
coletivo de crianças ou qualquer encontro que significasse
algo importante para a comunidade. De repente, mais do que
em nenhum outro momento, os lugares predeterminados se
desestabilizavam – uma moradora da ocupação, insuspeita
senhora e sujeito mesmo daquela história, se revelava fazedora de
imagens, e guardava em suas gavetas uma memória audiovisual
bruta em DVDs contendo fragmentos vários da memória daquele
território. É como se aquelas imagens estivessem lá à espera de
um olhar. E assim, numa redistribuição dos lugares, o material
audiovisual militante que eu mesmo havia produzido num passado
recente passava a um segundo plano, e a atenção se voltava
definitivamente para as imagens que os próprios moradores da
comunidade produziam ao mesmo tempo em que produziam o
território, de mutirão em mutirão.

Figura 4: Vilma da Silveira filmando encontro na comunidade (fotografia de Edinho Vieira).

No dia seguinte à sessão do cineclube, fomos até sua


casa buscar os arquivos para preparar a próxima projeção e
realizamos mais registros desse nosso encontro, no qual ela
contava de seu trabalho, de sua relação com as imagens,
enquanto expressava sua religiosidade afro-cristã e evocava
– por mais que eu insistisse em manter o foco da conversa
nos registros audiovisuais – essa outra sorte de imagens, a
dos santos e as dos estandartes que produzia para os ritos

52 O espaço comum na prática do documentário / Douglas Resende


e as festas do congado. Diante de minhas perguntas sobre
os vídeos que realizava, era às imagens dos santos que ela
recorria para se expressar, numa singular auto-mise-en-scène
voltada diretamente para a câmera. Ali, na sua disposição em
performar diante da câmera, se manifestava abertamente um
seu “desejo de filme”, lembrando a expressão de Jean-Louis
Comolli (2012, p. 175) quando propunha: “Deixar o outro
tomar lugar, ocupar o terreno, formar sua mise-en-scène, se
investir no seu desejo de filme”, e então “filmar esse trabalho
do outro”. Só na montagem desses registros, entre suas
“filmações” documentais e a performance em meio às imagens
religiosas, que fui finalmente entender as relações que tecia –
tratava-se de uma crença sobretudo nas imagens, justamente
estas que se colocavam entre nós, que mediavam e sustentavam
nosso encontro e que nos situavam numa relação de igualdade,
mesmo com nossas muitas diferenças e sem que precisássemos
abandoná-las. Poder das imagens: criar um comum que nos liga,
aos diferentes, sem preencher a distância entre nós, lembrando
agora a bela formulação de César Guimarães (2015, p. 5) em
torno de uma possível noção de “comunidade de cinema”.

Figura 5: Vilma da Silveira com um de seus trabalhos de estandartista (fotografia de Douglas


Resende).

Depois de realizada mais uma sessão do cineclube, agora


com a montagem dos registros de Vilma da Silveira – e de outros
moradores da comunidade, a saber Kadu de Freitas e João Vitor
Teixeira –, mais filmagens foram feitas por ela, alimentando
e prolongando nosso processo de visionagem compartilhada,
que provocava assim novas ações, novas imagens. Ao final

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 40-59, JUL/DEZ 2018 53


de mais uma dessas projeções, ela me disse: “Agora eu quero
filmar é o prefeito.” E, uma semana depois, nos trazia um
plano-sequência em que a vemos passando a câmera às mãos
de uma outra pessoa enquanto se transportava do antecampo
ao quadro do vídeo para abordar, de um modo irônico, a então
autoridade municipal, que às vezes frequentava uma mesma
guarda de congado que ela, embora nunca, em oito anos à
frente do governo, tivesse se disposto a sentar à mesa com
os moradores da comunidade para tentar negociar uma saída
para aquele conflito de terra que envolvia milhares de famílias
ou mesmo sequer para escutá-los. Na semana seguinte, o novo
plano-sequência de Vilma era incorporado à montagem que
projetamos na assembleia.

Figura 6: Vilma da Silveira diante da projeção de uma montagem de seus vídeos (fotografia de
Douglas Resende).

Figura 7: Sessão de “cinema compartilhado” na comunidade da Izidora (fotografia de Douglas


Resende).

54 O espaço comum na prática do documentário / Douglas Resende


Há nos relatos em torno dessa dobra temporal sobre o território
provocada pela experiência do cinema compartilhado ao longo
da história do documentário uma questão que é constantemente
enfatizada: essas experiências costumam desencadear uma ação
no presente atual. Quando, numa noite de 1954, Rouch prendeu
um lençol branco num muro de Ayoru, no Níger, e projetou sobre
ele Batalha no grande rio (Jean Rouch, 1951), Damoré Zika e
Illo Goudel’ize, ao se verem pela primeira vez projetados nas
imagens em movimento, propuseram ao cineasta fazerem juntos
um filme sobre a migração de jovens nigerianos à Costa do Ouro,
atual Gana, movimento que refletia a própria trajetória deles
dois. E conceberam ali, a partir daquela experiência de ver juntos
o filme do qual haviam participado, a ideia de filmar Jaguar
(Jean Rouch, 1954-67), das primeiras realizações do que Rouch
chamou depois de “etnoficção”. Mas podemos lembrar também de
todos os bastante conhecidos desdobramentos ocasionados pelo
retorno, quase vinte anos depois, das imagens que restaram do
primeiro Cabra marcado para morrer (Eduardo Coutinho, 1964-
1984). Ou ainda a furação dos lábios e narizes, esquecida pelos
Nambiquara há mais de duas décadas, e que é por eles retomada
diante das imagens em processo de produção no documentário A
festa da moça (Vincent Carelli, 1987). Há muito o que se pensar
sobre os fenômenos desencadeados dentro das experiências de
cinema compartilhado desde Nanook, o esquimó (Robert Flaherty,
1922), mas uma observação que parece fundamental é que, no
comparecimento de uma comunidade diante das imagens de si,
há um encontro também entre dois tempos, o presente (atual) da
projeção e o presente (virtual) das imagens projetadas, que é ao
mesmo tempo o “passado contemporâneo” do primeiro. É assim
que passado e presente são “postos em perspectiva a visar um
ao outro” (BRASIL, 2016, p. 84). E é desse encontro de tempos
11. Segundo Deleuze (1990, p.
que é gerada uma terceira imagem (e que poderia se desdobrar 99), há uma “coalescência”
em outras, infinitamente), surgindo do intervalo entre o presente entre temporalidades
distintas dentro de uma
atual e o virtual, uma “imagem mútua”. Pois, como escreveu mesma imagem, o que
Deleuze, “o passado não sucede ao presente que ele não é mais, chamou também de
“imagem-cristal”, essa ao
ele coexiste com o presente que foi”.11 mesmo tempo presente e
passada e que “consiste
Num texto intitulado Rever, retorcer, reverter e retomar as na unidade indivisível
imagens: comunidades de cinema e cosmopolítica, André Brasil de uma imagem atual e
de ‘sua’ imagem virtual”,
aponta ainda outras questões especialmente pertinentes aqui ao ou seja, o seu “passado
defender a condição de dispositivo desse movimento de retorno contemporâneo”.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 40-59, JUL/DEZ 2018 55


das imagens a sua comunidade, desse modo de uma coletividade
se relacionar com suas próprias imagens, a começar pelo que
nomeia como uma “defasagem” que “instaura processos de
identificação e de diferenciação, em mútuo imbricamento”.

Ele [o dispositivo] guarda uma dimensão cinematográfica, na


medida em que dobra o cinema sobre si mesmo, permitindo
a construção de intrincadas mise-en-abymes; guarda também
uma dimensão antropológica – cosmopolítica –, na medida em
que reúne a comunidade diante de seu aparecer ou reaparecer:
frente às imagens, a comunidade assume certa distância e,
ao mesmo tempo, se implica com aquilo que lhe aparece no
presente de sua experiência. (BRASIL, 2016, p. 79-80)

Esse movimento entre distanciamento e aproximação (ou


implicação, como coloca o autor) produz um saber que age sobre
a subjetividade da comunidade gerando as ações no presente.
Convém então notar que, na sua etimologia, implicação remete
à dobra – o latim plicare significa precisamente “dobrar”, donde
“implicar” designa um dobrar em ou junto a algo – e se coloca como
uma ação que, no caso aqui, se desencadeia da situação do filmar
e do ver juntos. Na leitura que faz Georges Didi-Huberman (2009,
p. 12) dos diários de Brecht enquanto no exílio, o historiador
diz que para saber é preciso se envolver, se aproximar, mas tão
importante quanto isso é se distanciar – pois “não sabemos nada na
imersão pura, no em-si, no terreno do tão-perto”, assim como não
saberemos nada na “pura abstração, na soberba transcendência,
no céu do tão-longe”, escreveu, acrescentando:

Para saber é preciso tomar posição, o que supõe se


movimentar e constantemente assumir a responsabilidade de
tal movimento. Esse movimento é de aproximação ao mesmo
tempo que de distanciamento: aproximação com reserva,
distância com desejo.

Enquanto os coabitantes da Izidora se miravam e se


reconheciam diante daquele espelho das imagens de si mesmos, eu
encontrava ali, naquele processo, o meu lugar (ainda que provisório)
na comunidade, entre as imagens produzidas pelos outros, na
partilha delas. É verdade que eu apareço diante da comunidade
como quem traz um conhecimento técnico, fazendo do meu lugar
um lugar de poder, mas no método do cinema compartilhado

56 O espaço comum na prática do documentário / Douglas Resende


se trata sempre de esvaziar esse poder para poder redispô-lo,
redistribuí-lo. Com esse esvaziamento eu não poderia ocupar uma
centralidade no processo, nem tentar organizar o mundo ao meu
gosto, de acordo com minhas expectativas. Nessa redisposição, eu
precisava forjar para mim um lugar, que não era exatamente nem
o “meu” nem poderia ser o do “outro”, mas um lugar em algum
ponto no meio – ou seja, entre as imagens, nas imagens enquanto
mediação. Mediação não só entre coisa e mundo, mas das relações
dos coabitantes do território entre si e também entre os habitantes
e eu, um morador provisório. Diante dessas imagens produzidas
pelos outros, ao reuni-las para as visionagens compartilhadas, eu
me situava, ainda que indeterminadamente: eu não estou nem na
origem delas (pois, em sua maioria, são outros a fazê-las) nem no
seu destino (que deve ser primeiramente a própria comunidade,
princípio do cinema compartilhado), mas justamente... no meio,
ou seja, na montagem, na reunião de fragmentos colocados em
relação, num espaço de conexão entre passado e presente, entre
os sujeitos realizadores daquelas imagens e que agora comparecem
diante delas.
Ainda assim, se é mesmo certo que eu possa considerar ter
“encontrado um lugar” nesse processo, isso não se confirma em
relação aos outros. Nos espaços que se criaram com as visionagens
compartilhadas, e nos que se desdobraram dele, fica evidente o
quanto a noção de lugar pode ser relativa, nunca se estabiliza.
Vivenciamos, é certo, uma experiência de cinema, mas quem é
cineasta? Quem é sujeito filmado? Quem vê, quem é visto, quem se
vê? Provisórios, esses lugares se alternam, se confundem, esvaziados
e ocupados ora por um, ora por outro... Até que, numa mesma
imagem registrada, se pode ver ao mesmo tempo um sujeito se vendo
filmar na imagem projetada, numa situação de mise-en-abyme que
reflete essas dobras desencadeadas pelo retorno dos registros ao
contexto onde foram feitos. Trata-se, enfim, premissa fundamental
do comum, de dessubstancializar os lugares, as identidades, para
que estejam abertos à troca, à construção (no sentido da ação, do
verbo) de um enunciado coletivo, uma expressão em comum que
vai tecendo sentidos através da pluralidade e das diferenças das
quais se faz uma coletividade. Como reunir as imagens e sons de
uma coletividade de um modo tal que possa se dizer um “nós”? É
no curso de algumas tentativas de responder a essa pergunta que
se encontra este trabalho.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 40-59, JUL/DEZ 2018 57


REFERÊNCIAS

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58 O espaço comum na prática do documentário / Douglas Resende


DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 40-59, JUL/DEZ 2018 59
O audiovisual no MST: histórias,
processos e estéticas

Carlos Eduardo de Souza Pereira


Mestrando em Educação do Campo (UFRB), militante do Coletivo de Comunicação
do MST na Bahia e integrante da Brigada de Audiovisual Eduardo Coutinho.

Luara Dal Chiavon


Mestranda em Meios e Processos Audiovisuais (ECA-USP), militante do Setor de
Comunicação do MST e integrante da Brigada de Audiovisual Eduardo Coutinho.

Maria Aparecida da S ilva


Formada em Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará, militante do Setor de
Comunicação do MST e integrante da Brigada de Audiovisual Eduardo Coutinho.

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Resumo: Qual é o lugar do cinema e do audiovisual dentro do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)? Nas últimas décadas, essa linguagem vem
sendo apropriada pelos movimentos sociais do campo. O acesso aos meios de
produção audiovisual, decorrente do avanço da tecnologia somada às conquistas
dos movimentos nas áreas da comunicação e da cultura, permitiram essa
aproximação do fazer audiovisual, gerando uma memória audiovisual da luta pela
terra no Brasil, realizada por meio da organização popular. No presente artigo,
queremos trazer esse percurso do audiovisual no MST a partir da história, dos
processos organizativos e da construção de uma estética camponesa e popular.
Palavras-chave: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); Movimentos
Sociais; Brigada de Audiovisual; Reforma agrária.

Abstract: What is the place of cinema and audiovisual within the Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)? In the last decades, this language has
been appropriated by social movements in the countryside. Access to the means
of audiovisual production, resulting from the advancement of technology coupled
with the achievements of movements in the areas of communication and culture,
allowed this approach to making audiovisual, generating an audiovisual memory
of the struggle for land in Brazil, carried out through popular organization . In this
article, we want to bring this path of audiovisual in the MST from the history, the
organizational processes and the construction of a peasant and popular aesthetic.
Keywords: Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); Social
movements; Audiovisual Brigades; Land reform.

62 O audiovisual no MST / C. Eduardo Pereira, Luara Dal Chiavon, Maria Aparecida da Silva
Audiovisual e a luta pela terra

O audiovisual constitui uma ferramenta fundamental na


disputa política e no fortalecimento de padrões hegemônicos de
representação da realidade. A imagem sempre teve relação direta
com o poder. bell hooks reforça que “da escravidão em diante, os
supremacistas brancos reconheceram que controlar as imagens é
central para a manutenção de qualquer sistema de dominação racial”,
de classe e gênero. (hooks, 2019, p. 33). A linguagem audiovisual
como meio de expressão e comunicação participa da luta de classes,
nesta sociedade marcada pela divisão entre aqueles que detém os
meios de produção - a burguesia - e aqueles que dispõem apenas
da sua força de trabalho, que são as trabalhadoras e trabalhadores,
muitas vezes excluídas e marginalizadas da sociedade.
No decorrer da história, movimentos populares se
apropriaram dos equipamentos, da técnica, da linguagem
audiovisual, do cinema e passaram a produzir suas próprias
narrativas, contando sua história e construindo sua estética:
a condição material possibilita criar a situação de reinventar
a linguagem. Hernani Heffner1 reforça que, historicamente, 1. Hernani Heffner,
pesquisador e conservador-
o cinema nasce no Brasil ligado principalmente às classes
chefe na Cinemateca do
populares. Durante o período silencioso, de uma maneira geral, Museu de Arte Moderna
os filmes, sejam eles de ficção ou cinejornais, eram realizados (MAM), no Rio de Janeiro.
Entrevista realizada pela
por entusiastas do cinema que tinham sua origem social quase BAEC em 14 de agosto de
sempre periférica. Maria Rita Eliezer Galvão no livro Crônicas do 2020.

cinema paulistano afirma que esses realizadores eram pintores de


parede, carpinteiros, trabalhadores da construção civil etc.
A luta dos movimentos camponeses se dá na formação
e conscientização dos sujeitos voltados para a construção dos
meios para viver e se manter no campo. Para se organizar, os
camponeses se utilizam de todas as ferramentas possíveis,
incluindo o audiovisual com sua capacidade de informar,
formar, criar memória, expor formas de viver e produzir no
campo. O audiovisual, além de viabilizar a denúncia com som
e imagem, possibilita ainda contrapor o modelo exploratório de
desenvolvimento no campo, o agronegócio.
Esse modelo traz consigo sua herança colonial da concentração
de terra e da monocultura, e, desde sua gênese com a Revolução
Verde, carrega toda a problemática do seu pacote tecnológico,

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 60-75, JUL/DEZ 2018 63


como as sementes transgênicas, os agrotóxicos, a exploração das
pessoas, da biodiversidade e da água, o que gera concentração de
renda, de terras e pobreza. Em síntese, o que se vê é que o processo
de expansão do agronegócio ameaça diretamente a agricultura
camponesa e comunidades tradicionais. Segundo Leite e Medeiros,
no Dicionário da Educação do Campo, ao “modelo do agronegócio
passa a ser contraposto o modelo agroecológico, pautado na
valorização da agricultura camponesa e nos princípios da
policultura, dos cuidados ambientais e do controle dos agricultores
sobre a produção das suas sementes” (2012, p.85).
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
surge em 1984, desde então se expande no território nacional,
intensificando a luta pela terra e pela reforma agrária no Brasil.
Com o passar dos anos e a partir de uma leitura histórica,
econômica e social da questão agrária do país, o Movimento
avança na compreensão da realidade concreta e propõe um
novo modelo para a agricultura e para a sociedade: a Reforma
Agrária Popular, tendo como referência as Reformas Agrárias
Socialistas, originadas nas revoluções populares, que conspiraram
para superar as formas organizativas do capitalismo. Mesmo
entendendo que as condições objetivas e subjetivas não estavam à
disposição nesse ou em qualquer período histórico de sua criação
e desenvolvimento, o MST se inspira e tem como horizonte a
perspectiva de “construir uma sociedade com formas superiores
de socialização da produção, dos bens da natureza e das relações
sociais na sociedade brasileira” (MST, 2014).
Sendo assim, compreende-se que, para se alcançar esse
modelo, é necessário ter como alicerce a democratização da
propriedade da terra, um Estado socialista que promova o
fortalecimento e implementação de políticas públicas, que será
resultado de um processo de muita organização, politização e
transformações culturais junto à toda a sociedade, ou seja, uma
revolução social e superação dos domínios do capitalismo. Como
aponta Adriana Gomes Silva:

“o termo Reforma Agrária Popular foi defendido no VI Congresso


Nacional do MST em meados de fevereiro de 2014, com o lema
‘Lutar, construir Reforma Agrária Popular’, com mais de 15 mil
dirigentes nacionais dos setores organizativos do movimento,
na ocasião em que comemorava-se os 30 anos de luta pela terra
e o diálogo com a sociedade”. (SILVA, 2016, p. 43)

64 O audiovisual no MST / C. Eduardo Pereira, Luara Dal Chiavon, Maria Aparecida da Silva
A linguagem audiovisual esteve presente em boa parte
dos mais de 37 anos do Movimento servindo de material de
comunicação, formação e memória. Por meio da captação de
imagens e sons, foi possível registrar a luta pela terra, no detalhe
do romper da cerca e das correntes encadeadas pelo latifúndio,
tornando visível e audível a organização das agricultoras e
agricultores nos acampamentos e assentamentos, as crianças e a
juventude que brincam e estudam no campo.
As primeiras produções de cinema que retratam o MST
foram realizadas por cineastas parceiras(os) do Movimento
e, de certa forma, engajados nas lutas populares. Podemos
destacar a atuação de Tetê Moraes, Berenice Mendes, Aline
Sasahara, Maisa Mendonça, Silvio Tendler, Beto Novaes, entre
outras(os). Esses são nomes importantes que tiveram papel
fundamental na produção de uma memória audiovisual da luta
pela terra no Brasil.
No entanto, no presente artigo, vamos nos ater às produções
realizadas pela própria militância do MST, dando destaque para
a organização das brigadas e percorrendo o lugar da linguagem
audiovisual dentro do Movimento Sem Terra, na sua luta constante
pela democratização da terra e das telas.

A formação da comunicação do MST

No embrião de sua organização, o Movimento criou em


1981 o Boletim Sem Terra, um boletim informativo que mais tarde
viria a se tornar o Jornal Sem Terra, instrumento fundamental
para a construção da organicidade e unidade do Movimento
que estava nascendo em todo o Brasil. Como é que um país com
dimensões continentais e imensa diversidade regional, construiria
um movimento de camponeses que atuassem sob os mesmos
princípios e ação coletiva? Várias foram as estratégias de atuação
nesse sentido e a comunicação foi uma delas.
Com a criação oficial do MST, em 1984, o Boletim então
se consolida como Jornal Sem Terra, assumindo um caráter
mais interno e se tornando um dos principais instrumentos
de articulação, motivação da luta e formação política. Nas
páginas do Jornal, o próprio Movimento poderia conhecer mais
de si mesmo em outros estados e regiões e assim fortalecer

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 60-75, JUL/DEZ 2018 65


suas bases. Essa publicação foi, portanto, um instrumento
de agitação e propaganda que contribuiu diretamente para a
organicidade do MST.
Dezesseis anos depois de sua fundação, no marco do IV
Congresso Nacional, em 2000, embora a comunicação já estivesse
presente no todo do Movimento desde sua gênese, nasce o Setor
de Comunicação do MST. A partir daí se amplia e se estrutura,
buscando a inserção em todas as instâncias organizativas do
Movimento, desde os Núcleos de Base, como as famílias se
organizam nos acampamentos e assentamentos, até a Direção
Nacional. É também no IV Congresso que temos o primeiro
registro em vídeo de uma atividade desse porte, feito a partir da
formação de cineastas parceiras com militantes do Movimento.
Esse processo de construção conjunta entre a organização e
cineastas parceiras foi muito importante, pois, nesse processo,
estava o germe da apropriação audiovisual pela organização.
No Congresso seguinte, em 2007, em consequência das
formações e discussões ao longo dos anos anteriores de apropriação
da ferramenta, surge a primeira Brigada de Audiovisual do MST,
que chamamos de Brigada de Audiovisual da Via Campesina,
já que, além dos militantes do MST, dois outros movimentos a
compunham: o Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB) e
a Comissão Pastoral da Terra (CPT).
A comunicação, como toda prática política do MST, é composta
através de um viés pedagógico e massivo. Ainda que seja necessário
especializar militantes para as diversas tarefas, há o entendimento
de que todo Sem Terra é, ou deve ser, um comunicador popular.
Alguns cursos formais e não formais específicos foram criados para
a formação de comunicadores populares dentro do Movimento, mas
sempre com a compreensão de que o todo da organização precisava
se apropriar do debate da comunicação. Assim, inúmeros cursos
de formação política nas mais diversas áreas, que não versavam
exatamente sobre o tema, foram, gradualmente, incluindo em suas
ementas a comunicação, tanto o debate acerca de seu papel, como
espaços práticos dentro dos cursos.
Com essa inserção nas práticas cotidianas dos espaços
formais e não formais, o Movimento passou a compreender a
comunicação não só como uma ferramenta, mas também como
um espaço de debate que atravessa o todo da organização e que

66 O audiovisual no MST / C. Eduardo Pereira, Luara Dal Chiavon, Maria Aparecida da Silva
possui uma intencionalidade política clara. “A educação não formal
não é nativa, no sentido de herança natural; ela é construída
por escolhas, sob certas condições; há intencionalidades em seu
desenvolvimento, não sendo o aprendizado espontâneo, natural
nem naturalizado” (GOHN, 2015, p.16).
Para além da importância da construção de seus próprios
meios de comunicação como o Jornal Sem Terra, a Revista Sem Terra
e a página do MST na internet, todos esses canais foram resultados
de processos pedagógicos do Movimento, que possibilitaram que os
camponeses se apropriassem das ferramentas. Mas também, esses
materiais produzidos, muitas vezes pela base do Movimento, para
ela voltavam. Não era raro encontrar rodas de leitura do Jornal e
Revista Sem Terra nos acampamentos e assentamentos, nas quais
o grupo que lia não apenas se informava, mas se formava a partir
do debate realizado ali. A maneira coletiva como liam e debatiam
contribuía para a organização.
Anos mais tarde, o lema do Setor de Comunicação viria a ser:
informar, formar e organizar. O lema é, ao mesmo tempo, uma síntese
de suas práticas e um enunciado sobre seus objetivos enquanto setor.
Nesse processo, o audiovisual também aparecia como
ferramenta pedagógica nos mais diversos cursos e atividades.
Praticamente toda a militância do Movimento desde os anos 1990
assistiu e/ou debateu, em algum espaço, o filme Cabra Marcado
para Morrer (COUTINHO, 1984). Aos poucos, com sua produção
interna, o MST passou a debater seus próprios filmes, como
veremos mais adiante.
Podemos observar que “os processos de aprendizagem na
educação não formal ocorrem a partir da produção de saberes
gerados pela vivência” (GOHN, 2015, p.17), ou seja, as vivências
dos militantes nesse caso se dão a partir de oficinas audiovisuais
nos assentamentos, acampamentos e escolas do Movimento. Além 2. Whatsapp é o aplicativo
mais popular e de fácil
disso, de uma cultura audiovisual que permitiu ao MST construir o acesso por não necessitar
projeto Cinema na Terra, composto de debates a partir dos filmes de conexão extra com a
internet, já que a maioria
nos cursos e formações, sendo que, hoje, toda semana, vídeos do das operadoras disponibiliza
próprio Movimento são distribuídos para a base, principalmente dados móveis para o uso
deste incluídos em seus
por meio do WhatsApp.2 Todas essas ações constituem uma planos básicos. A partir de
ampla prática pedagógica do audiovisual. Nos muitos cursos de seu uso também podemos
compreender melhor os
agroecologia, saúde, questão agrária, cultura sempre são incluídos limites do acesso à internet
na ementa espaços de estudo da comunicação. A formação para a população do campo.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 60-75, JUL/DEZ 2018 67


audiovisual se dá tanto por essa vivência nos cursos e projetos
formativos quanto pela prática cotidiana de recepção e produção
de conteúdos nos mais diversos formatos.

3. Está em andamento a O audiovisual no MST: trajetos e brigadas3


construção de uma nova
cartilha de formação da
Brigada de Audiovisual
Eduardo Coutinho (BAEC).
Como abordado anteriormente, o audiovisual do MST foi
Um dos textos, sistematiza construído a partir de relações com cineastas parceiras(os),
e organiza o histórico do
e posteriormente a partir de uma intencionalidade política,
audiovisual no MST, que
usaremos como referência definida por meio de inúmeras formações em comunicação e
para esse trajeto, escrito cultura. Ao longo de muitos anos e acompanhando o crescimento
por Maria Silva e Wellington
Lenon. das possibilidades de apropriação dos meios de produção, com
o acesso a câmeras, computadores, gravadores, esse processo
foi tomando forma organizativa dentro do Movimento. A seguir,
esboçamos parte desse trajeto.
Uma das primeiras produções realizadas por militantes do
MST, foi em parceria com a cineasta Berenice Mendes, no ano de
2000, com a participação do MST no Festival Internacional de
Londrina (FILO). O evento levava o nome de Festival de Todas
as Artes, agrupando, na mesma atividade, apresentações de
variadas linguagens artísticas. A cineasta organizou uma oficina
em que participaram 30 jovens Sem Terra de diferentes estados
do país. O resultado da oficina gerou o filme Uma Luta de
4. No dia 2 de maio, Todos (2000),4 contando a organização e luta do Assentamento
enquanto acontecia a
oficina, em uma mobilização
Dorcelina Folador, no Paraná.
realizada pelo MST no Paraná
que resultou no conflito da
Outra experiência, no mesmo ano, se deu na construção
BR 277 e no assassinato de do vídeo IV Congresso Nacional do MST (2000). Os militantes
Antonio Tavares pela polícia
tiveram maior participação na captação das imagens e na
militar. Os participantes da
oficina colocaram no filme edição apenas alguns se juntaram às cineastas parceiras Aline
um relato sobre a situação do Sasahara e Maisa Mendonça.
conflito e do assassinato.
No ano de 2003, através do Coletivo de Direitos Humanos,
5. Organização internacional o MST realizou uma parceria com a ONG Witness,5 que
sem fins lucrativos que possibilitou a doação de uma câmera e oficina de audiovisual
capacita e ajuda pessoas a
usarem o vídeo na luta por que resultou no vídeo Escola é mais que escola (2003). De
direitos humanos. 2003 a 2009, o MST efetivou outra parceria, dessa vez com a
organização sueca SAL (Solidariedade Suécia - América Latina)
que permitiu a aquisição de novos equipamentos, como câmeras
e notebooks. Através de intercâmbios nas áreas do MST, os
suecos realizaram oficinas de vídeo com alguns militantes e, a

68 O audiovisual no MST / C. Eduardo Pereira, Luara Dal Chiavon, Maria Aparecida da Silva
cada ano, deixavam equipamentos para os coletivos organizados
nos estados, proporcionando a continuidade na produção de
materiais audiovisuais nas regiões.
Um projeto que merece destaque é o Cinema na Terra,6 iniciado 6. Organizado no texto A
experiência do Cinema na
em 2005, quando da preparação da Marcha Nacional pela Reforma Terra (2015), por Miguel
Agrária, caracterizado pela criação de espaços de exibição e debates Stedile.
nas áreas de assentamento e acampamento da Reforma Agrária
de todo país. O projeto possibilitou acesso aos meios de produção
e reprodução de diversos materiais audiovisuais, contemplando
mais de 75 mil pessoas nas áreas rurais de 126 municípios. Uma
grande mobilização, em que os militantes envolvidos carregavam
o projetor e a caixa de som para diferentes locais, organizando,
exibindo e discutindo sobre esses territórios.
Com a formação da Brigada de Audiovisual da Via
Campesina em 2007, composta por militantes do MST e de
outros movimentos sociais, foram produzidos diversos materiais,
como o vídeo Lutar Sempre! V Congresso Nacional do MST (2007),
Nem um minuto de silêncio - Fora Syngenta do Brasil (2008), os
vídeos elaborados em 2012 para o trabalho de base preparatório
do VI Congresso Nacional do MST, entre outros. Nesse contexto,
conforme apresentado na Cartilha Lutar Sempre! Estudos sobre
audiovisual e a construção da realidade, a Brigada de Audiovisual
da Via Campesina já estava avançando técnica e politicamente
para produzir materiais feitos pelo próprio Movimento.
Em 2014, nos preparativos para o VI Congresso Nacional, a
Brigada já não contava com outros movimentos em sua composição,
se descaracterizando nominalmente enquanto Brigada da Via
Campesina e durante o VI Congresso mudou seu nome para Brigada
de Audiovisual Eduardo Coutinho (BAEC), em homenagem ao
cineasta assassinado dias antes do início do Congresso. A homenagem
a Coutinho se dá principalmente por conta do documentário Cabra
Marcado para Morrer, que retrata a luta das Ligas Camponesas e
a discussão histórica da luta pela terra no Brasil. O filme foi um
importante documento imagético não só para a história do cinema
nacional e a história brasileira, contribuindo também para a
construção da identidade do próprio MST.
Nas mobilizações para o Dia Internacional de Lutas das
Mulheres (8 de março), em 2015, as imagens captadas pela BAEC
foram utilizadas por alguns veículos de comunicação nacionais.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 60-75, JUL/DEZ 2018 69


Mas, antes disso, nas mobilizações realizadas contra as empresas
Votorantim e Monsanto, em 2010, a Brigada da Via Campesina já
havia conseguido furar o bloqueio da imprensa e enviado materiais
que pautaram alguns telejornais, o que retomou a discussão sobre
a importância de nós mesmos produzirmos as imagens que serão
exibidas por esses veículos. Nesses casos, entende-se que a imagem
é um componente estratégico, que deve ser usada de forma
intencional como ferramenta de denúncia, e sem expor as pessoas
envolvidas ou individualizar a ação.
É nesse período que a BAEC consolida a relação com o
Setor de Comunicação do MST, já que o audiovisual esteve
anteriormente vinculado ao Coletivo de Cultura. Nesse mesmo
período, cresce quantitativa e qualitativamente a produção de
materiais de vídeo para as redes sociais, além da produção de
um a dois documentários por ano, todos baseados nas atividades
7. A exemplo os vídeos dos do MST.7 Essa transição entre o Coletivo de Cultura e o Setor de
congressos nacionais: Lutar,
Comunicação foi ocorrendo aos poucos e durante certo tempo
sempre!; Lutar, construir
Reforma Agrária Popular!. a Brigada respondia a ambos os setores. A percepção de que
Vídeos de demais atividades: a comunicação, a produção audiovisual e o mundo foram se
Sem Terrinha em Movimento:
brincar, sorrir e lutar; Ocupar, transformando tecnologicamente, exigia a discussão de produções
resistir e produzir – As Feiras audiovisuais para a internet, que então se tornava um importante
do MST; O MST e a Cultura;
VI Congresso da Cloc. canal de diálogo com a sociedade e com a base do MST.
Na construção do seu trabalho, a BAEC dialoga com outros
setores e coletivos do MST: exemplo disso é a vídeo-crônica Sô isso
não, Dona (2017), realizada em parceria com o Setor de Gênero, para
contribuir no debate da Campanha de Combate à Violência Contra
as Mulheres, tendo como base a crônica construída pela Frente de
Literatura Palavras Rebeldes, do Coletivo de Cultura do MST.
Outras parcerias com outros setores do MST garantiu a
produção e realização de diversos vídeos com temas variados, como
a série Agroecologia e Educação (2018, 2019 e 2020), que apresenta
como as escolas do campo na Bahia constroem a agroecologia em
seus territórios. O filme LGBT Sem Terra - O amor faz revolução
(2020), realizado em parceria com o coletivo LGBT Sem Terra e
que apresenta discussões referentes à diversidade sexual dentro
do MST. E o vídeo Café com Sabor de Resistência (2019) sobre a
produção do café nas áreas de reforma agrária no sul de Minas
Gerais, entre outros. Além da produção recente de filmes ficcionais,
como Um fantasma ronda o acampamento (2020), baseado em um
livro infantil, e Mutirão em novo sol (2021), filme inspirado na peça

70 O audiovisual no MST / C. Eduardo Pereira, Luara Dal Chiavon, Maria Aparecida da Silva
de nome homônimo, marco do teatro brasileiro, como a primeira
peça onde o camponês é protagonista de sua luta, escrita por Nelson
Xavier e Augusto Boal.

Fig 1: Registro das filmagens de Mutirão em Novo Sol - A Retomada primeiro longa-metragem
da Brigada Audiovisual Eduardo Coutinho do MST (Acampamento Noelton, DF, agosto de 2019).
Crédito: Luara Dal Chiavon

As atividades nacionais e estaduais do MST (congressos,


feiras, encontros, festivais, jornadas e marchas) também são
importantes para dinamizar as produções desenvolvidas pela
Brigada de Audiovisual, pois são momentos de formação e
organização do coletivo e envolvem o audiovisual. Ao longo
dos últimos anos, várias experiências foram desenvolvidas
nas atividades nacionais e estaduais, propiciando a discussão
organizativa e estética da Brigada, de uma forma geral, e das
produções audiovisuais, em específico.

Estética camponesa e popular

Durante toda a trajetória da construção do audiovisual


dentro do MST, muitos elementos da identidade Sem Terra foram
debatidos no caminho. O audiovisual que queremos construir
também está intimamente ligado a que imagem o Movimento
quer construir para a sociedade e que tipo de memórias deseja
consolidar. Sabemos que a memória tem valor fundamental para
que um movimento como esse consiga permanecer tanto tempo
em atuação em nossa frágil democracia.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 60-75, JUL/DEZ 2018 71


Os movimentos de esquerda no mundo sabem que a
memória é espaço de disputa, sendo estruturante das ações
políticas, ou seja, cuidar da nossa memória significa cuidar
de nosso futuro e do futuro de nossas organizações. Não há
transformação sem cuidado com a memória. Ela é também
responsável por construir uma tradição que ajude a manter
vivos os princípios da organização.
Assim, a estética do movimento é construída a partir dos
princípios do MST: popular, de base, massivo, assim como
também é construída sua comunicação. É possível, nesse sentido,
notar diferenças quando o trabalho é feito por militantes ou
pela base do movimento e quando é feito por equipes de fora
da organização. Mais ainda quando é a mídia a representar o
Movimento, geralmente de forma desumanizadora, no intuito de
criminalizar os militantes.
Quando falamos da estética dos vídeos e filmes do MST estamos
nos referindo não apenas à forma como as imagens são captadas,
mas também aos outros domínios que compõem as produções,
eles também carregados de questões que fazem parte do todo da
organização: desde a forma da montagem, como são encadeados
8. A mística praticada no MST
os discursos e as ideias, até a forte presença das músicas, muitas
é o conjunto de motivações vezes compostas pelo Movimento, e das poesias declamadas. Muito
que sentimos no dia-a-dia,
no trabalho organizativo, que
da construção das místicas,8 que são parte cotidiana e fundante do
impulsiona nossa luta para MST, estão presentes nos vídeos, pois esse exercício de representar e
a frente. É uma espécie de
fabular já está presente desde o início da história do MST.
celebração, de expressão da
leitura sobre a construção da
realidade ou sobre a realidade
Assim, por outro lado, o conjunto da organização, na
vivida, a partir da poesia, da vivência das escolas do campo, acampamentos, assentamentos
música, do teatro, das artes e outros, acaba se fazendo perceber no audiovisual, que é mais
plásticas e do audiovisual.
Ela é responsável por reduzir uma das formas de representação do Movimento, com objetivo
a distância entre o presente de documentar e comunicar. Diante disso, alguns apontamentos
e o futuro, fazendo-nos viver
antecipadamente os objetivos feitos pela Brigada no texto Estética e organicidade na Brigada de
que definimos e queremos Audiovisual Eduardo Coutinho9 indicam que o avanço estético nas
alcançar (MST – Coleção
Saber e Fazer Nº 2. A Questão produções audiovisuais do MST está relacionado diretamente
da Mística no MST. p. 4.). à organicidade da Brigada, tanto nos estados quanto em nível
nacional, levando em conta os processos de sistematização e
9. Texto escrito pela formação técnica e política. Uma elaboração estética camponesa
Brigada de Audiovisual
Eduardo Coutinho Estética e popular deve fazer oposição à linguagem comercial, publicitária
e organicidade na Brigada e corporativa, e deve trazer consigo traços que valorizem a luta
de Audiovisual Eduardo
Coutinho. Cartilha de
popular, que possibilitem a formação, educação e desenvolvimento
formação (2021). de processos coletivos.

72 O audiovisual no MST / C. Eduardo Pereira, Luara Dal Chiavon, Maria Aparecida da Silva
Conclusão

Nesse sentido, discutir, construir, refletir o audiovisual no


Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra é compreendê-
lo como uma importante ferramenta de comunicação na luta
pela Reforma Agrária. Se usada intencionalmente nos processos
coletivos, essa ferramenta têm a capacidade de atingir muitas
pessoas em locais diferentes e impactar com imagens e vozes,
possibilitando a troca de experiências, vivências, desafios e
perspectivas, além de contribuir na sistematização dos debates
e de sua história, na disputa pela memória, na agitação e
propaganda junto às camponesas e aos camponeses.
Lembrando Ailton Krenak,10 “para o Brasil se tornar uma 10. Conferência de abertura
da 15ª CineOP - Mostra de
grande nação é necessário a democratização da terra e das Cinema de Ouro Preto, em
telas”. Segue, portanto, o desafio de continuar organizando em 2020.
cada região, estado, acampamento e assentamento, brigadas de
audiovisual, para que possamos apresentar as nossas próprias
narrativas na luta pela democratização da terra, das telas e de
todos os latifúndios. Isso passa necessariamente pela construção
de uma linguagem que todas(os) as(os) trabalhadoras(es) possam
acessar, entender, identificar-se, como sendo uma linguagem da
própria classe trabalhadora.

REFERÊNCIAS

Cartilha de Formação Audiovisual do MST. Brigada de Audiovisual Eduardo


Coutinho. Histórico do Audiovisual no MST, p. 20, 2021
GALVÃO, Maria Rita Eliezer. Crônicas do Cinema Paulistano. São Paulo: Ática,
1975.
GOMES, T.; GONÇALVES, F. C.; STEDILE, M. E.; CHÃ, A. M. Audiovisual e
transformação Social – a Experiência da Brigada de Audiovisual da Via
Campesina. In: BASTOS M.D.; GONÇALVES, F. C (Org.). Comunicação e disputa
da hegemonia: A indústria cultural e a reconfiguração do bloco histórico.
Residência Agrária da UNB. Caderno 3.São Paulo: Outras Expressões. 2015.
p 27-39. p. 181-196.
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Programa Agrário do MST.
São Paulo: Secretaria Nacional do MST, 2014.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 60-75, JUL/DEZ 2018 73


GOHN, Maria da Glória (org). Educação não formal no campo das artes. São Paulo:
Cortez, 2015.
HOOKS, B., Olhares negros: raça e representação / bell hooks; tradução de
Sthepanie Borges. São Paulo: Elefante, 2019. 356 p.
LEITE. S, P,. MEDEIROS. L. S., Agronegócio. P. 79. In. CALDART, R. S., PEREIRA, I.
B., ALETEJANO, P., FRIGOTTO, G. (ORGS). Dicionário de Educação do Campo.
Rio de Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio,
Expressão Popular, 2012.
SILVA, Adriana Gomes. Vídeo Popular: Contra-Hegemonia, Formação Política e
Reforma Agrária. Universidade de Brasília, 2016.
STEDILE, Miguel. A experiência do Cinema na Terra. In: VILLAS BÔAS, Rafael
Litvin e PEREIRA, Paola Masiero. Cultura, Arte e Comunicação. 1ª edição. São
Paulo: Outras Expressões, 2015.

74 O audiovisual no MST / C. Eduardo Pereira, Luara Dal Chiavon, Maria Aparecida da Silva
DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 60-75, JUL/DEZ 2018 75
Cartografando pedagogias e
territórios sensíveis com o cinema
no hospital

Fernanda Omelczuk
Professora do Departamento de Ciências da Educação da Universidade Federal de
São João del-Rei (UFSJ). Integrante do Grupo de Pesquisa em Educação, Filosofia
e Imagem.

Tatiane M endes
Professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Estácio de
Sá. Integrante do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Arte e Cidade da UERJ e
do Laboratório de Investigação em Publicidade Social e Comunicação Comunitária
da UFF.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 76-101, JUL/DEZ 2018


Resumo: Pensar o cinema em hospitais desloca o que entendemos de antemão
sobre essas duas experiências e sobre essa aproximação. A imagem possui sua
própria pedagogia. O hospital também. Desse encontro, emerge uma territorialidade
sensível – não por sua fragilidade, mas pela potência de vida que o risco e os
limites nos permitem experimentar. No texto, buscamos cartografar ressonâncias do
encontro com o cinema nesse território.
Palavras-chave: Cinema e educação; Cinema no hospital; Pedagogias do cinema;
Cartografia; Territórios sensíveis.

Abstract: Thinking about the cinema in hospitals displaces what we understand


about these two experiences and about this approach. The image has its own
pedagogy. The hospital too. From this encounter emerges a sensitive territoriality
– not for its fragility but for the potency of life that the risk and limits allow us to
experience. In the text, we seek to map resonances of the encounter with the cinema
in this territory.
Keywords: Cinema and education; Cinema at hospital; Hospital Pedagogy;
Cartography. Sensitive territories.

78 Cartografando pedagogias / Fernanda Omelczuk e Tatiane Mendes


Neste artigo, escrevemos sobre o percurso e as contribuições
de duas pesquisas1 que versam sobre ações com o cinema junto 1. O que se aprende quando
se aprende cinema no
ao público hospitalizado, seus acompanhantes e equipe médica.
hospital?, tese de doutorado
Para tanto, viemos convivendo semanalmente com experiências em Educação, de Fernanda
de cinema que acontecem, na condição de projetos de extensão, Omelczuk, defendida,
em 2016, na UFRJ, e
desde 2011, em um hospital pediátrico e, desde 2015, na ala ABRACADABRA: O cinema
geriátrica de uma Universidade Federal. Infância e velhice, na rua ENTRE Bordas e
Brechas na cidade do Rio de
dor e cura, limite e vida, cinema e território e a emergência Janeiro, tese de doutorado
de correlações para pensarmos o cinema e suas pedagogias. em Comunicação, de Tatiane
Mendes, defendida em 2020,
Contrastes que se somam, não se anulam. na UERJ.

Cinema no hospital nos sugere uma linha de fuga. Concebido


como um lugar para estar fora do enquadramento – “o hospital
era um morredouro, um lugar onde morrer” (FOUCAULT, 2014,
p. 175) –, em que ficava tudo o que não se queria ver, por
representar algum tipo de perigo: o pobre, o doente, a morte, o
fim e os restos. O que acontece ao estarmos com o cinema, arte
que tenciona e inventa vida, dentro desse espaço?
Em sessões semanais, câmeras, projetores e caixas de
som adentram enfermarias para trazer filmes, conversas e
experiências com o cinema. Em contraponto ao prontuário
médico, que analisa as condições biológicas de um paciente
destituído de seu território existencial, o diário de campo será
nosso dispositivo de pesquisa: notas, rabiscos, ações, ideias,
sensações, imagens, sons, relações, dores, traços, passos e
rotas. Conduzidos pelo exercício cartográfico de investigação,
buscaremos compreender e problematizar a ideia de cinema
para além dos dispositivos técnicos de projeção, como uma
experiência sensível que, pressupomos, configura uma relação/
invenção com o ambiente, com a experiência de hospitalização;
ou seja, uma proposta de territorialização. Território não apenas
em sua acepção física, mas como uma dimensão que não está
dada sem a multiplicidade de trajetórias sempre em curso
(SANTOS; SILVEIRA, 2001; HAESBAERT, 2006). Tomamos,
portanto, o espaço para além de sua superfície e o território
como campo existencial; como coexistência subjetiva.
O que experimentamos em cada encontro é, então, um
processo a um só tempo sensível, auditivo, sonoro, comunicacional
e relacional. O cinema que acompanhamos não é outro senão
aquele passível de compor relações entre os sujeitos que dele

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 76-101, JUL/DEZ 2018 79


tomam parte, a tal ponto que possibilita a ressignificação de
espaços e lugares ocupados, o que se configura como a própria
criação cartográfica que viemos tecendo na escritura desses
2. Disponível em: http:// diários2 e que compartilharemos nas linhas a seguir.
territoriossensiveis.
blogspot.com/. Acesso em:
07/09/2020.
De prontuários a diários I – preparando a composição de um
território sensível

1. O encontro da situação cinema com a situação hospitalar


produz algo sobre o qual não temos controle. As condições
de arquitetura da sala, a qualidade da projeção, a ‘sujeira’ do
áudio, as interferências, as interrupções, a atenção e o desejo
dos espectadores são flutuantes, instáveis, imprevisíveis. Há
dias que sinto uma ‘desordem’ emergir com a chegada do
cinema nas enfermarias. A sombra de mãos, cabeças, cadeiras e
pés dificulta a visualização. Os profissionais de saúde falam alto
ao celular. Essas condições me causam angústia.

Nos primeiros meses de acompanhamento do campo,


identificamos anotações recorrentes em nossos diários, que
expressam uma sensação de desconforto nas enfermarias. Ao
que parece, interpretávamos algumas atitudes e comportamentos
dos profissionais de saúde como de indiferente interrupção das
atividades de cinema: bombas de medicação, televisões ligadas,
ares-condicionados barulhentos, adultos falando ao celular,
profissionais que chegam para aplicar medicação, o paciente
que sente dores e solicita ajuda, a equipe de limpeza que entra
para lavar o piso, o funcionário da manutenção que chega com
a escada para consertar uma lâmpada... O ambiente hospitalar
apresenta uma agitação de sons e imagens. Como reproduzir o
silêncio e a imersão da sala escura nessa situação? Como controlar
os movimentos na sala da enfermaria para garantir aos pacientes
o que tradicionalmente entendemos como “forma” cinema? Como
experimentamos o cinema no hospital?
Motivados pela busca de nos sentir mais confortáveis e
confiantes, fomos cultivando disponibilidade e respeito ao tempo
do hospital, seu ritmo e seus acontecimentos, a fim de entendê-
lo com mais afeto, menos distância e menor julgamento. Fomos
conhecendo um por um os enfermeiros, os médicos, os pacientes
que estavam lá há mais tempo e seus acompanhantes, e eles

80 Cartografando pedagogias / Fernanda Omelczuk e Tatiane Mendes


também foram reconhecendo quem éramos. Assim, rompemos,
aos poucos, nosso fluxo subjetivo de que o cinema “atrapalhava”
a rotina hospitalar e de que não era bem-vindo ali. Eirado e Passos
(2012) comentam que, na prática da cartografia, é necessária a
dissolução do ponto de vista de um observador, que materializa a
ideia de um sujeito e um objeto externo a ser conhecido. Isso não
significa abrir mão da observação, mas sim abrir-se para os diversos
pontos de vista que habitam o campo: “Se recusamos responder
prontamente e de forma estereotipada à experiência e não nos
identificamos com ela, nosso eu identitário enfraquece e dá lugar
a uma liberdade mais ampla de atuação/incorporação, levando a
experiência para outras searas” (EIRADO; PASSOS, 2012, p. 128).
Quando convertemos algumas interpretações de queixas
e posturas que antes “ofendiam” o trabalho em um sinal de
acolhimento das experiências de cinema, de reconhecimento do
projeto como pertencente a eles, nossa experiência existencial nesse
território se modificou. Começamos, então, a habitar o espaço com
mais familiaridade, em um movimento de “estar com” a experiência
do cinema no hospital (ou simplesmente com a experiência de
estar num hospital), e não de falar “sobre essa” experiência. Nesse
processo, fomos nos desarmando, nos desencarnando de um único
ponto de vista e nos sentindo parte das relações que ali aconteciam,
entendendo a singularidade desse território existencial e abrindo
terreno para a ocupação de outros territórios possíveis.
Fomos compreendendo que havia naquele ambiente certa
informalidade das relações, que permitia a espontaneidade
de opiniões, desejos e insatisfações, sem que isso significasse
necessariamente rejeição ao outro. O próprio caráter de limite e
risco que a condição humana vive nesse espaço e um desnudar
de nossa fragilidade e finitude contribuíam para que as relações
fossem intensas, autênticas e diretas como se não houvesse tempo
a perder ou para se dissimular.
Desse modo, fomos nos deixando impregnar afetivamente
pelo ethos que circulava no hospital, para nos misturar e compor
com o campo, levantando novas hipóteses sobre ele, seus atores
e sobre nós mesmos enquanto pesquisadores. Nossa presença
semanal foi transformando o modo de perceber e atribuir sentido
a esse universo, e uma outra percepção da relação com as ações
começou a ser construída.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 76-101, JUL/DEZ 2018 81


O que fomos percebendo e aprendendo com a rotina hospitalar,
os pacientes, seus acompanhantes e equipe é que reproduzir as
condições “perfeitas” do cinema no hospital seria uma tarefa inócua,
que, além do mais, não acolhia as subjetividades desse território.
Ao tentar “adequar” o cinema ao hospital, esquecíamos de acolher
uma qualidade de bagunça, no caso de um hospital pediátrico,
que é própria da infância (na escola, em casa, na rua, no hospital),
necessária para construir outra pedagogia. Afinal, “como pensar o
mundo infantil, o mundo escolar ou os processos inventivos sem
uma bagunça e sem uma certa desordem?”, assim nos pergunta
Cézar Migliorin (2015, p. 195), que nos provoca com a ideia de uma
pedagogia, a se engendrar a partir de um “mafuá”, ajudando-nos a
pensar a aprendizagem e os processos criativos no hospital.
Fomos nos dando conta, então, que, para o cinema “acontecer”
nesse espaço, teríamos que contar com seus dispositivos,
apropriarmo-nos deles, agenciar com eles, integrá-los às experiências,
acompanhar seus ritmos, sem buscar controlá-los. Fomos nos dando
conta, como destacam Alvarez e Passos (2012, p. 147), “que não há
outro caminho para o processo de habitação de um território senão
aquele que se encontra encarnado nas situações”.
Dessa forma, para que o cinema desencadeie uma “pedagogia
sensível” dentro do hospital, precisamos estar abertos às
experiências do território que vai se configurando. Por pedagogia
sensível, entendemos um “mafuá” que se oferece a experimentações
outras, convocando sentidos e afetando os sujeitos inseridos nas
atividades com o cinema. Atitude que implica a dissolução de um
ponto de vista exterior sobre a realidade hospitalar e um mergulho
aberto aos modos de habitar e viver o dia-a-dia do hospital como
um território de constante produção de subjetividade.
Se nas primeiras vezes ficávamos incomodados com a
enfermeira que parava em frente à tela interrompendo a visualização
do filme (no interior de uma “situação cinema” que queríamos
controlar), com o tempo, passamos a ver que seu próprio jaleco
branco funcionaria como um anteparo. Imagens em movimento sobre
corpos em movimento eram uma expansão da tela, que perdia seus
contornos e criava uma outra experiência de cinema. O jaleco branco
de médico deixou de ser um anteparo que impedia a visualização da
tela para se transformar numa atração mágica: o corpo era o veículo
das imagens em movimento. A sombra de mãos, cabeças, cadeiras e
pés que obstruía a projeção (Figuras 1 e 2) tornava-se pretexto para
brincarmos com a luz e aprender sobre a história do cinema.

82 Cartografando pedagogias / Fernanda Omelczuk e Tatiane Mendes


Assim, o cinema e suas derivações do passado e do futuro
começaram a se enredar em meio à enfermaria e a confundir-
se com os próprios objetos, numa mistura orgânica com sua
arquitetura e utensílios, causando um impacto visual e imagético
pelo contraste do colorido com a monocromia hospitalar. Esse modo
outro de habitar o hospital foi sugerindo, mais do que um cinema
convencional, um cinema de instalação, que não se fixava na tela
como estrutura preestabelecida, mas se apropriava do espaço ao
redor, como se, ao entrar na sala, mergulhássemos nas imagens.
A instalação artística, ou o cinema de instalação,
configuram uma modalidade de criação com as imagens em
movimento que responde ao que Maciel (2009, p. 17) chama
de transcinemas: “formas híbridas entre as experiências das
artes visuais e do cinema na criação de um espaço para o
envolvimento sensorial do espectador”. Trata-se de variações
no modo de organizar as imagens em movimento, que rompem
com a situação cinema convencional.
O cinema está no hospital de um modo singular. Pode parecer
meio torto, incompleto, por pedaços, passageiro e fugaz, mas
com beleza e força, deformando objetos, ritmos, texturas, cores
e sonoridades para além da tela e dos limites de uma projeção.
Os pacientes relacionam-se com o cinema desse jeito atravessado,
inacabado, fragmentado. Assim também o cinema relaciona-
se com o hospital. E devemos afirmar essa diferença. Se é torto,
incompleto, por pedaços, é esse um modo de o cinema habitar e
começar a construir sua territorialidade sensível.

Figura 1: Cinema no biombo.


Fonte: Acervo das autoras.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 76-101, JUL/DEZ 2018 83


Figura 2: Cinema no jaleco.
Fonte: Acervo das autoras.

De prontuários a diários II – cartografando territórios sonoros,


afetivos, coletivos

2. Entre os profissionais de saúde, a expectativa é grande


e muitas moças se acumulam na parede da enfermaria
movendo leitos e retirando cadeiras do caminho para que
o projetor possa ser montado. Foram necessários apenas os
primeiros acordes de bossa nova para que os semblantes,
como mágica, se suavizassem. Enquanto Sara acompanhava
atenta as músicas que iam se desenrolando na parede, Eva,
que dormia inicialmente e chegara a resmungar quando se
começou a falar sobre cinema, abriu levemente os olhos e
se pôs a escutar. Em dado momento, enquanto a voz de Gal
Costa entoava ‘Se todos fossem iguais a você’, a senhora
começou a cantar. Do outro lado da enfermaria, uma
residente cantava e dançava discretamente. As imagens
de um Rio de Janeiro mais poético e infinitamente mais
3. O filme em questão era A belo dialogavam com os sons de Tom e Vinicius.3 Era quase
música segundo Tom Jobim como se a música irrompesse pelos corredores do hospital,
(Nelson Pereira dos Santos, quase sempre cheio de dores e espera, convocando os
2011). olhares de todos que passavam por aquela enfermaria. E
um silêncio profundo fez-se, quase como se a música, como
linguagem universal, criasse um imaginário de memória
coletiva, sensível, tocando a todos, sem diferença de idade
ou estado de saúde.

3. O filme escolhido para hoje foi Cartola (FERREIRA,


2007). Incrível como ele cria uma ambiência musical que
vai, aos poucos, sendo incorporada à enfermaria. Como
oferecer resistência diante das primeiras notas de Moinho?,

84 Cartografando pedagogias / Fernanda Omelczuk e Tatiane Mendes


composição do artista mangueirense. Ainda que a contragosto,
as pacientes se acomodam nas macas, viram o rosto para a
projeção, que, diga-se de passagem, está bem deteriorada
devido à claridade da enfermaria. Mas, diante da música,
parece que a imagem se torna supérflua, desnecessária. Ao
passo que o filme se desenrola, algumas falas de entrevistados
denotam a relação de Cartola com religiões afro, gerando
uma ruga de desagrado em duas acompanhantes, o que
não as impede de virar o pescoço em direção ao filme, a
cada vez que uma música é iniciada. Uma paciente mais
próxima de mim, ao final da exibição, me perguntara se era
de ‘graça’. Ela acompanhara cada cena do filme com muito
interesse. Ao final, quando suas visitas chegam, ela comenta
que vira um filme de Cartola e que gostara muito. Em geral,
quem chega se surpreende e sorri com o cinema projetado
na parede. Funcionários e acompanhantes se surpreendem,
alguns perguntando se era som de televisão ou se havia rádio
ligado até enxergarem o projetor. Mas hoje, com a proposição
de Cartola, o protagonista do dia foi definitivamente a caixa
de som. Nos intervalos da dor e da espera, as musicalidades
foram sendo tecidas, de pacientes e funcionários, filme e
realidade. E eu, que sempre me preocupara com a qualidade
da imagem, acabara de confirmar uma outra territorialidade
possível, do cinema no hospital, tão representativa quanto a
imagem, o som.

4. Filme a postos, iniciou-se a exibição de Cantando na chuva


(KELLY, 1952) e, nos primeiros minutos, parece impossível
que consigamos vivenciar a experiência fílmica. Faz calor e
há uma excessiva luminosidade. Para piorar, tubos, desgastes
de tintas, sombras da maca na parede dificultam a leitura da
legenda. Sobrava aos profissionais de saúde o encantamento
com o filme, entrando na sala, fotografando e pedindo que
voltássemos para fazer uma sessão em uma sala melhor. Foi
na cena de dança entre Gene Kelly e Debbie Reynolds que
captamos de vez a atenção dos pacientes até as acompanhantes
arrastarem as cadeiras para ver o filme e inclusive deixarem de
lado o celular. Enquanto o filme se desenrola, ouço um ruído
num canto da enfermaria e vejo que a paciente que dormia,
embora tivesse dificuldades motoras, ergue as mãos até
acionar os botões do leito e vai devagarzinho posicionando-se
mais sentada para ver melhor a tela.

O cinema se expande e também alarga a experiência da


internação; uma invasão de sons distintos dos rotineiros, para
além dos bipes dos controladores de pressão e remédios, das
falas sobre diagnósticos, prontuários e procedimentos, quase
sempre dolorosos. O corpo do paciente que se afasta e que se

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 76-101, JUL/DEZ 2018 85


isola em sua enfermidade, ao ser confrontado com o som, parece
se reaproximar de si e ampliar sua sensibilidade de escuta,
trazendo para a enfermaria um pouco de suas emoções mais sutis.

Figura 3: Cinema no Hospital Universitário.


Fonte: Acervo das autoras.

Figura 4: Projeção no Hospital Universitário.


Fonte: Acervo das autoras.

Temos a impressão de que no hospital o cinema torna-se


mais do que uma imagem, potencializa-se por sua instância
musical, que convoca os olhos e abre espaço para o afetivo e
a memória. Não se trata somente de uma experiência que
interrompe a passagem do tempo, mas a ressignifica, torna-a
sensível, posto que sai da imagem projetada na parede (Figuras
3 e 4) e vai, um a um, chegando até os rostos que contemplam
o filme. Em cada expressão, uma teia da rede de afetos, que
constrói um pertencimento simbólico, território sensível, feito

86 Cartografando pedagogias / Fernanda Omelczuk e Tatiane Mendes


de música e de sonhos, que afeta a todos que estão ali mesmo
que por alguns minutos. Por alguns momentos, ante os corpos
que dançam e as vozes que cantam, estamos irremediavelmente
em comunhão.
Entendemos que a construção de territórios sonoros, sendo
permeada de subjetividade, é uma via de mão dupla: demanda
sons que são produzidos e igualmente ouvidos e ressignificados
pelos sujeitos inseridos nas práticas. Aqui, dialogamos com
Menezes (2008), para quem a condição de escuta se dá como
parte da cultura do ouvir, que permite compreender os processos
comunicativos que nos enredam.
O exercício de escuta seria assim parte da construção
simbólica do sujeito e, sugerimos, também da forma como
ele compreende o lugar onde se encontra. Qual o impacto
sensível em um profissional de saúde que entra para realizar
um procedimento de rotina e a primeira coisa que expressa ao
entrar na enfermaria é uma outra experiência sonora impactada
pela expressão de encantamento e beleza? Suspeitamos que, no
encontro com o cinema no hospital, acontece um deslocamento
sensível e perceptivo do lugar que o profissional ocupa em seu
fazer e um relaxamento da tensão típica desse espaço e da
urgência do trabalho.
Do mesmo modo, um acompanhante que chega com a
expectativa de encontrar o familiar em determinado estado
emocional e físico pode perceber nas imagens projetadas um
agenciamento que o ajuda a encaminhar aquele instante para
conversas mais leves e olhares menos estigmatizados sobre o
hospital e o paciente. O cinema nos parece, portanto, atuar
como um elo de comunicação do paciente com o profissional
de saúde e seus acompanhantes a partir de outro elemento que
não a doença.
Em canções lembradas e em narrativas resgatadas pela
memória, o sujeito se aproxima do outro, seja profissional
de saúde, paciente ou acompanhante, convidando-o a
mergulhar, ele também, em suas emoções. O ouvido torna-
se fundamental “na constituição da subjetividade e da
sociabilidade” (WULF apud MENEZES, 2008, p. 463) e faz o
corpo ir além da visão, sentindo sua vibração diante dos corpos
dos outros, tocado pelas ondas de outros corpos, pelas palavras

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 76-101, JUL/DEZ 2018 87


que reverberam, pela canção que excita, pelas vozes que vão
além dos lugares comuns, criando territórios, musicalidades,
experiências compartilhadas e – por que não – mundos mais
permeados de sensibilidade e compreensão.

5. Para esta sessão, o filme escolhido obedecia a um


padrão pensado no início das atividades: mesclar memória,
história do cinema e música. A ideia era unir sensibilização,
entretenimento e reflexão em uma mesma atividade. Para isso,
a sessão teria em cartaz Carnaval Atlântida (BURLE, 1952),
feito pela Atlântida, produtora brasileira que funcionou entre
os anos 1950 e 1960. A enfermaria escolhida tinha cinco
pacientes mulheres e um senhor de 90 anos, que dormia
profundamente. E fomos recebidos com alegria por pacientes
e acompanhantes, pois todos disseram que seria ótimo ver
um filme. Início da projeção, olhares na tela/parede e logo
percebo que a presença do cinema começa a transformar o
ambiente. Uma das pacientes se ajeita no leito, outra acorda
e começa a acompanhar o filme e uma das acompanhantes
chega a se acomodar na poltrona. Contudo, ainda estamos em
uma enfermaria e as peripécias de Grande Otelo e Oscarito
não impedem que todas as práticas técnicas ocorram, nem
que o sofrimento aconteça. Logo, chega o horário de terminar
o filme devido ao adiantado da hora e das visitas. Desligo
o projetor e comunico ao ‘público’ que precisamos parar
e continuaremos na semana que vem. Reclamação geral.
Pacientes, acompanhantes e visitantes dizem que o filme
estava ótimo e até mesmo a acompanhante do senhor em
estado grave pede que, se possível, a exibição continue.

O que dizer quando pacientes internados, alguns em estado


grave, e seus acompanhantes, desejam que o filme continue?
Assistimos juntos ao desempenho de Oscarito e Grande Otelo
e, ao final, pude perceber o quanto fora importante continuar
a exibição. Com sua dança, música e humor, Carnaval Atlântida
atravessara o cotidiano da enfermaria não para fingir que a dor e o
sofrimento não existiam, mas para encontrar a potência saudável
que pulsa em todos nós como elo de igualdade.
Temos a impressão de que o “cinema no hospital” opera
um tipo de fruição nas enfermarias, que é da ordem do coletivo,
o que ressalta a importância que essa experiência guarda como
criação de uma cena de igualdade. As atividades oferecidas
aos pacientes, sejam crianças, adultos ou idosos, costumam
ser só para elas: uma contação de histórias, brincadeiras,
jogos, serviços religiosos, presentes de voluntários, a sala de

88 Cartografando pedagogias / Fernanda Omelczuk e Tatiane Mendes


recreação. De algum modo, há uma demarcação e reafirmação
dos lugares ocupados. O médico e o enfermeiro continuam
como tais. Eles não brincam, não ouvem a história. No máximo,
os acompanhantes podem se aproximar e participar.
O cinema, ao contrário, constitui uma experiência de
alteridade na enfermaria. Em geral, as enfermarias possuem
uma televisão, que está sempre ligada para todos, ao mesmo
tempo em que muitas crianças têm ainda sua própria televisão,
por meio da qual assistem à sua programação ou filme. Nesse
sentido, a projeção dentro das salas da enfermaria, com os filmes
sobre as cortinas fechadas, é uma interrupção que instaura um
deslocamento de foco no ambiente audiovisual e nos lugares
de cada sujeito. Mesmo se tratando de mais uma imagem
em movimento, seu dispositivo de projeção altera a relação
convencional com as imagens, com os sons e a disposição dos
corpos, do espaço e do tempo na ambiência hospitalar.
Sua projeção de cores e sons contamina toda a ambiência.
Não há como não ser afetado por ele. Ver um filme na televisão
é uma atividade individualizante, que apenas reitera a situação
da criança como espectadora. Todavia, quando os filmes são
projetados nas janelas, nas paredes, nos tetos, nas roupas brancas
dos enfermeiros que atravessam a projeção, médicos deixam de
ser médicos, enfermeiros deixam de ser enfermeiros, pacientes
deixam de ser pacientes, o hospital deixa de ser o hospital tal
como o conhecemos, e todos se tornam espectadores.

De prontuários a diários III – cartografando pedagogias sensíveis

6. Exibimos para Kauã um pequeno filme feito no hospital por


outra criança e o convidamos a criar o seu a partir de alguns
exercícios anteriores que vínhamos realizando.4 Kauã não 4. Mais detalhes desse
hesitou em dizer entusiasmado que queria contar a história de processo podem
quando esteve no CTI, e defendeu sua ideia até o fim, mesmo ser encontrados na
diante das oposições dos adultos. ‘Tem outra história melhor, pesquisa completa citada
anteriormente: “O que se
não?’, perguntou a mãe. ‘No CTI? Mas isso já foi há muito
aprende quando se aprende
tempo. Isso não é verdade’, comentou a avó. ‘Você não sabe cinema no hospital?”
do que está falando. Isso não foi brincadeira.’, completou ela.
‘Não tinha outra história pra contar?’, perguntou a enfermeira.
O menino então explicou com sua simplicidade infantil:
‘– Vó, isso aí não é de verdade. Um filme é só brincadeira’.
E observando que ela continuava contrariada defendeu-se:
‘– Pô! Deixa eu contar a minha história!’ O cinema deixa. Foi
nossa reflexão em silêncio.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 76-101, JUL/DEZ 2018 89


Enquanto sua avó e a enfermeira pareciam ver naquele desejo
do menino uma “blasfêmia”, Kauã (Figura 5) não demonstrava
dúvida de que habitava o entre lugar do real e da fantasia, para
onde se vai e se volta como condição da própria sobrevivência
humana. Uma divisão estava sendo colocada. Sob o ponto de vista
da avó e da enfermeira, brincadeira e coisa séria não podiam estar
juntas. O real já havia sido duro demais para ser representado.
E Kauã insistia em desorganizar o que podia ser dito, mostrado
e ficcionalizado sobre o assunto. Talvez, para ele, aquela “dura”
realidade do CTI não fosse suficiente e precisava ser rememorada,
reinventada e compartilhada.

Figura 5: Kauã em ação.


Fonte: Acervo das autoras.

Pensamos que, ao contar sua história, Kauã colocou em


circulação traços de diferentes “regimes” da imagem dentro do
hospital. Não estamos falando de obras de arte, apenas de um
exercício iniciático de criação, mas nos parece que as reflexões de
Rancière (2009) fornecem uma leitura interessante sobre o que
acontecia no encontro dos adultos com o curta Kauã no CTI.
Ao refletir sobre essa situação, podemos pensar junto com
o autor, que define três regimes de imagem: o regime ético, o
regime representativo e o regime estético. No regime ético, o
que está em jogo é a legitimidade do que pode ou não circular
na sociedade com a arte. Por exemplo, algumas vezes, os filmes
tratam de assuntos que são tabus na vida em sociedade e são
julgados por esse aspecto, por tratarem de um tema tenso, de
uma questão de que não se deve falar; questão que é delicada,
quiçá, constrangedora.

90 Cartografando pedagogias / Fernanda Omelczuk e Tatiane Mendes


As advertências de sua mãe, avó e enfermeira tangenciavam
esse aspecto. Não parecia correto representar aquele
acontecimento. Havia coisas que não podiam ser abrigadas pelo
enquadramento e Kauã estava fazendo exatamente isso: trazendo
o proibido para dentro do quadro. Será que estávamos (o cinema
estava) fazendo algo que não deveria ser feito dentro do hospital?
Além do regime ético, podemos pensar essas reações como
respostas de um regime representativo. No regime representativo,
o critério para julgar uma obra está em dizer se a imagem é ou
não uma boa representação do real. Quando um acontecimento
é maior que o representável, ele é julgado irrepresentável e sem
verossimilhança. Quando sua avó o questionou dizendo que “ele
não sabia do que estava falando”, ela ampliou o acontecimento
para além do que Kauã seria capaz de apreender como se o
evento não fosse possível de ser assimilado.
A esses dois regimes de arte, Rancière (2009) acrescenta
então um terceiro: o regime estético. Nesse caso, a arte está
fora da ideia de adequação moral à comunidade e fora dos
parâmetros da representação. No regime estético, a arte causa
problemas em formas sensíveis do coletivo pelo qual circula,
pois coloca em xeque modos de percepção do real. E esse nos
parece um impacto importante do filme Kauã no CTI.
As censuras que Kauã recebeu por filmar a si mesmo em
uma condição humana que, segundo alguns adultos, deveria
ser escondida nos recordaram, tangencialmente, a polêmica
causada pelo filme Di5 (1976) de Glauber Rocha, no qual o 5. O nome original do filme
era Ninguém Assistirá
cineasta filmou (profanando, tal como as crianças) o velório e
ao Enterro da tua Última
o enterro do artista plástico Di Cavalcanti, seu grande amigo. Quimera, Somente a
Ainda que neste caso não se trate do sujeito filmando a si mesmo, Ingratidão, Aquela Pantera,
foi sua Companheira
a questão do desrespeito pela cena filmada também foi colocada Inseparável!- Di Cavalcanti di
pela família, especialmente, pela filha de Di Cavalcanti, que Glauber, que depois passou a
ser chamado Di Cavalcanti di
conseguiu proibir a circulação comercial do filme no Brasil, logo Glauber, até ficar conhecido
após a sua estreia na Cinemateca do Rio de Janeiro em 1977. apenas como Di.

O interessante é que a justificativa de Glauber para filmar


o amigo morto encontra sustentação na arte e na brincadeira
infantil como gesto de libertação: “Filmar meu amigo Di morto
é um ato de humor modernista-surrealista que se permite entre
artistas renascentes: Fênix/Di nunca morreu. No caso o filme
é uma celebração que liberta o morto de sua hipócrita-trágica

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 76-101, JUL/DEZ 2018 91


6. Di (Das) Mortes, Glauber condição”.6 Guardadas as diferenças entre uma e outra situação,
Rocha, texto mimeografado,
não seria disso também que as crianças estariam se libertando
distribuído na sessão do
filme em 11 de março de 1977 ao filmarem suas próprias “tragédias”?
na Cinemateca do MAM.
Disponível em: https:// Kauã insistiu em abrir espaço para suas imagens. No fazer
acervo.oglobo.globo.com/
cinema, ele incorporou a doença, a hospitalização e os procedimentos
em-destaque/filme-de-
glauber-rocha-sobre-enterro- médicos como elementos de criação audiovisual, fatos sobre os quais
do-pintor-di-cavalcanti-foi- se pode falar, mostrar,7 conversar e brincar. Nesse gesto, expôs (ou
censurado-10539863#.
Acesso em: 8 de setembro revelou?) que a infância transita com mais fluidez do que os adultos
de 2020. pelas fronteiras da crença e da dúvida, capacidade fundamental para
uma relação criativa com as imagens do cinema (COMOLLI, 2008).
7. Vale lembrar de um filme
recente, Bixa Travesty (2018)
dirigido por Claudia Priscilla
e Kiko Goifman, que conta 7. ‘Há quanto tempo você está aqui?’, perguntamos. ‘Faz um mês
a trajetória da cantora e 11 dias’. ‘Então, você já deve ter visto muitas coisas...’. ‘Sim,
Linn da Quebrada, em que teve a primeira vez em que a enfermeira veio tirar sangue’. A
vemos cenas da própria mãe do menino, que observava atenta e participativa, comentou:
Linn desafiando modos de ‘Tem a história do dia...’. E Reidys completou: ‘Hoje, foi meu
estar hospitalizada. Durante primeiro dia de radiação’. [...]. ‘Esperei na fila desde 9 horas até
o período em que esteve
as 11...’ Depois veio o médico e disse: ‘Espera, espera sua vez que
internada ela fez registros
de si mesma em diferentes
daqui a pouco já vai ter terminado’. ‘Entramos e me cortaram
situações e performances a máscara, eu tinha uma máscara e cortaram para que pión
no ambiente hospitalar. São [...]’ [ele fez um som e um gesto apontando para o nariz, onde
imagens bastante incomuns tinha um curativo, mostrando que tinham cortado a máscara
para o espaço e para o modo nessa região, para que o curativo ficasse de fora]. Prestávamos
como habitualmente vemos atenção em silêncio tentando imaginar o que ele falava quando,
as pessoas na condição de repente, sua mãe tirou de um saco uma máscara de plástico.
de paciente, na relação
Reidys a pegou e vestiu. ‘Você coloca ela assim’. Sua mãe o
com suas enfermidas e
na publicização dessa
ajudou a vestir explicando como fechava atrás. ‘Aí, você fica
experiência. 20 minutos assim’, Reidys reproduziu a postura com a cabeça
levemente para cima tal como precisou ficar durante a radiação.
E começou ‘ion, ion, ion’ (imitando os sons). Resolvemos propor:
‘Percebe que aqui você pode inventar o que quiser?! Uma coisa
foi o que você viveu hoje. Agora, pensa no que você gostaria que
pudesse se passar nessa situação. Inventa algo! É sua história.
Você entrou numa sala, recebeu uma radiação, te colocaram
uma máscara. O que você gostaria de inventar em seu filme que
pudesse acontecer contigo?’

O resultado foi um curta, intitulado Meu primeiro dia


8. Disponível em: https:// de radiação,8 no qual Reidys (Figuras 6 e 7) reinventou as
vimeo.com/158777048
consequências da radiação convertendo-se em um palhaço, tendo
o nariz vermelho como um efeito da terapêutica.
Ao filmarem a si mesmos, refletimos que os meninos subvertem
a função dos tratamentos e brincam de faz de conta na invenção de
um triunfo sobre a doença e os procedimentos médicos (triunfos não

92 Cartografando pedagogias / Fernanda Omelczuk e Tatiane Mendes


só de si, mas de um coletivo). Concordamos com a avó de Kauã
de que estar no CTI não é uma brincadeira, é coisa “séria”, mas
ficcionalizar essa situação altera a própria realidade de dor individual
para transformá-la numa criação que confunde a singularidade do
sofrimento em gesto inventivo, lúdico, impregnado do outro, que
provoca estranhamento, porque abre espaço para o riso.
Segundo Achca (2009), a história da cultura mostra que o riso
é uma capacidade exclusivamente humana e surge nos momentos
mais dramáticos, tendo sido utilizado por nossos antepassados
como ritual para espantar o medo, especialmente o da morte.
O riso questiona os hábitos e os lugares comuns da linguagem,
suspeitando da solidificação das verdades e introduzindo a dúvida.
A figura do Bobo da Corte é constantemente lembrada como
emblemática desse poder de subversão pelo riso. O Bobo da Corte
era o único que podia caçoar do rei e criticar a ordem vigente sem
que ninguém o perseguisse, porque via o mundo a partir do riso e
da ironia, culturalmente atrelados à mentira (ou à invenção), ao
passo que a seriedade costuma ser associada à verdade.
Podemos pensar que o hospital tem um compromisso com o
real tomado como verdade, como algo determinado. Os adultos
recordavam-nos disso durante a realização do curta Kauã no CTI
reafirmando o limite do que já havia sido vivido. Kauã, entretanto,
revisitava esses acontecimentos solidificados com o cinema sem
afirmar um compromisso com a realidade, mas com sua experiência
e invenção. Ele parecia ter clareza do espaço em que transitava e
tentou explicar: “É só uma brincadeira”. Vale apontar que a mãe
de Reidys, por sua vez, incentivou o filho a rir de si mesmo, não
demonstrando desconforto em transitar por esse espaço.
O que observamos é que o cinema compartilha da função
do riso mostrando a realidade a partir de outros pontos de vista,
subvertendo a “verdade” com a “mentira”, tal quando Kauã e Reidys
inseriram, nos curtas, acontecimentos que não tinham acontecido
em suas histórias pessoais. Na relação com a educação, o cinema,
como o riso, provoca o caráter moralista e inquestionável do discurso
pedagógico convencional e sério, em que rir parece ser proibido –
reiteramos que falamos do riso como uma postura inventiva diante
da vida, que pode ser um ritual de resistência à dor, e não de um riso
que expresse indiferença ou insensibilidade por parte daquele que ri
em momento inoportuno (LARROSA, 2010).

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Figura 6: Reidys filma a enfermeira.
Fonte: Acervo das autoras.

Figura 7: Filma a si mesmo.


Fonte: Acervo das autoras.

De diagnóstico a mapa sensorial

As experiências de cinema que promovemos nas enfermarias


nos permitem imaginar e, consequentemente, conhecer algo, um
compasso apenas, sobre a vida, o olhar, as relações e os pontos
de vistas dos pacientes (Figuras 8, 9, 10 e 11). As atividades de
criação nos colocam em suas macas, nos dão a perspectiva de
suas alturas na vista pela janela, nos vestem com suas máscaras
e nos aproximam de suas bombas de medicação – a câmera nos
empresta seus olhos.

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Figura 8: O que só eu vejo.
Fonte: Acervo das autoras.

Figura 9: A bomba.
Fonte: Acervo das autoras.

Figura 10: O barco.


Fonte: Acervo das autoras.

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Figura 11: Da janela.
Fonte: Acervo das autoras.

Com as experiências de cinema, podemos vislumbrar um


pouco o invisível, pensar o impensado e ouvir o inaudível, que
atravessa o dia a dia no hospital.
Refletimos que, talvez, os pacientes aprendam algo novo
sobre como enquadrar. Ou aprendam melhor como manipular
uma câmera. Quiçá, compreendam a função de um travelling.
Provavelmente, no futuro, ainda lembrarão quem foram os irmãos
Louis e Auguste Lumière. Mas o que pareceram mostrar é que, ao
aprenderem a filmar, enquadrar e escutar, outras aprendizagens
podem ser mobilizadas e novas subjetividades podem ser
produzidas, impregnadas pelo fluxo das vivências do coletivo.
Que reconfigurações acontecem na relação com a própria
doença e aparelhagens médicas quando uma máscara de
radiação se transforma, por alguns minutos, numa máscara de
produzir palhaços? Quais são os deslocamentos na experiência
de hospitalização e na subjetividade de paciente quando uma
criança decide filmar, mesmo em meio à resistência dos adultos,
suas lembranças de quando esteve no CTI?
Imaginamos que, ao olharem para a enfermaria
inventando uma história, podem ter aprendido que as histórias
vividas nesse espaço estão abertas a múltiplas percepções e
desvios. Ao mergulharem em algumas experiências de cinema,
expressaram um sentir que não era facilmente verbalizado ou
compreendido. No contato com filmes que não se pareciam

96 Cartografando pedagogias / Fernanda Omelczuk e Tatiane Mendes


com os que costumavam ver, podem ter aprendido a gostar de
outras obras, desaprendido critérios para definir preferências e
reaprendido outros.
Pensamos que essas e outras aprendizagens “colaterais”
com o cinema no hospital afirmam uma narrativa distinta
sobre o tempo da internação, que afasta a criança da escola e
o idoso da vida social e cultural. As experiências de cinema no
hospital parecem ampliar os territórios do aprender, colocando
adultos e crianças, saudáveis ou enfermos, no mesmo lugar de
compartilhamento. Com isso, o cinema no hospital democratiza
a própria aprendizagem, a fruição estética e as condições para
esses acontecimentos.
Assim, as experiências que realizamos parecem indicar uma
oportunidade de reflexão e ampliação dos modos convencionais
de educação. Isso porque criamos, com o cinema, a oportunidade
de uma educação sensível, cujas aprendizagens mais significativas
se referem ao cotidiano imediato, imprevisível por princípio
– como é a própria vida e o fazer cinema. O território sonoro,
afetivo e coletivo a que viemos aludindo permite-nos, então, uma
compreensão ampliada das ressonâncias pedagógicas dentro da
concepção da Pedagogia Hospitalar.
Para ela, a prática pedagógica nesses ambientes deve se
inspirar nas características próprias do tempo, espaço e rotina
hospitalares, pois as aprendizagens que contribuem para o
bem-estar físico, psíquico e emocional dos pacientes não são
necessariamente aquelas do currículo formal. A atitude de
descoberta dessa realidade rompe com fantasmas, medos e
ansiedades e ajuda a criança a se sentir integrada e familiarizada
com uma experiência até então desconhecida. Essa aprendizagem
permitirá à criança se apropriar do espaço hospitalar, ressignificá-
lo e reinventá-lo (FONTES, 2008). O que temos acompanhado e
tentamos cartografar é a suspeita de que o cinema, ao compor-
se território sensível junto aos sujeitos, pode contribuir para
transformar o período de internação nessas experiências de
aprendizagem, construção de conhecimento e reinvenção de
significados, compartilhamento sensível de sons, imagens e
afetos, que se tornam narrativas coletivas. Ao levar o sujeito ao
centro da questão cinematográfica, olhos e corpos ocupando e
ressignificando espaços e emoções, construindo pontes, suas
mãos podem ser estendidas em busca do outro.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 76-101, JUL/DEZ 2018 97


(En)caminhamentos finais de uma cartografia

Viemos entendendo que o território hospitalar não é apenas


um território físico demarcado pelos seus muros, elevadores
ou escadas, quartos, refeitório e aparelhos de televisão (muitas
vezes, as únicas telas a adornar as paredes), que regulamentam
comportamentos fixos do que significa ser um enfermo nessa
situação. Lugares são redes de relações, espaços de encontro,
adornados por dispositivos de afetos, comportamentos,
subjetividades, sempre provisórios.
Observamos que cada uma das interferências necessárias
para que o cinema possa acontecer nesse lugar cria outro lugar,
promove novos afetos, inspira novas atitudes. Nossa chegada,
portanto, “perturba”’ o ambiente, reconfigura a cena, desloca e
abre processos subjetivos ainda não codificados para crianças,
idosos, equipe de saúde, familiares e visitantes.
À parte todas as discussões que possam ser engendradas
para tentar compreender se o cinema feito no hospital constitui
de fato a narrativa cinematográfica, se há o predomínio da
técnica ou apenas entretenimento, se o filme é uma arte maior
ou se apenas uma forma de reproduzir a vida, se é linguagem
ou não, ou se seria coletivo ou individual, no hospital parece se
ressaltar a pedagogia sensível, que reside no interstício de toda
prática artística. Cinema no hospital é experiência múltipla
dos sentidos, podendo ser vivenciado com profunda entrega e,
preferencialmente, sem mapas de orientação.
Ao penetrar em uma sala de exibição, esteja ela dentro
de uma enfermaria ou não, podemos abandonar do lado de
fora ideias preconcebidas e visões de mundo e deixar-se levar
pela experiência que irá se desenrolar. Especificamente no que
tange às experiências sonoras, a presença da música, direta ou
indiretamente, convoca os olhares, a captura e a atenção dos
presentes. Via de regra, a música e os sons se impõem frente
aos ruídos costumeiros do hospital. Bipes e ruídos de macas,
conversas abafadas e diagnósticos frios compõem com os efeitos
sonoros mais despropositados.
Um dos desenhos dessa cartografia não é somente a
observação do interesse pela música, mas a forma como, seja
qual for o procedimento, enfermidade ou gravidade do paciente,

98 Cartografando pedagogias / Fernanda Omelczuk e Tatiane Mendes


em alguma medida, o sujeito será afetado pela sonoridade,
vai compor com ela, a ponto de mergulhar em uma outra
experiência, permeada de memória e afeto, ainda que a dor
permaneça presente. Além disso, quando um paciente sai de
seu lugar de imobilidade e começa a narrar suas experiências
com determinado filme, constrói narrativas que o movem do
lugar onde está e reinventa a percepção de espaço e de histórias
vividas naquele intervalo. Ele reconstrói relações com os
demais pacientes, consigo mesmo e com a própria enfermaria.
Visualizamos aí gestos que expõem uma pedagogia sensível que,
de algum modo, potencializa com o cinema.
Suspeitamos que, ao vivenciarem uma mesma experiência, na
composição de um território comum, pacientes, acompanhantes e
profissionais de saúde rompem seus costumeiros lugares de fala,
acirrando duas formas de escuta: a de si mesmos, nas narrativas
que evocam; e a do outro, ao ouvirem os relatos alheios. Assim,
aproximam-se da construção de sociabilidades distintas das
cotidianas em um hospital, onde médicos e pacientes geralmente
têm suas falas divididas pelo espaço de quem fala e de quem
ouve. Com o cinema, todos podem ser sujeitos de suas emoções,
possibilitando-lhes expandir o sensível para além dos muros, em
uma realidade, quiçá, mais bela, ainda que efêmera.
Por isso, não é apenas o excesso de luz que é filtrado no
fechar das cortinas, não é só a televisão que dá lugar à projeção
colorida ou em preto e branco, não é só o diálogo da telenovela
que é substituído por caixas de som, não é só uma parede branca
que ganha texturas, contornos, profundidade e cores. A repetição
semanal desses gestos na ambiência hospitalar cria um ritmo para
a chegada do cinema e cria também expectativa nos presentes,
instaurando um outro ritmo no ambiente físico e subjetivo.
O desafio é estar com os idosos e as crianças, com os
pacientes, equipe e acompanhantes, nesse “tempo-lugar” outro
que habitam ao invés de querer convocá-los a integrar o nosso.
Essa postura também aponta uma pedagogia sensível. Se o
cinema se insere no tempo das práticas sociais desde sua origem,
ele o faz pela materialidade da vida e do real, pela intenção de
preservação da vida em imagem, caminho de experiência sensível
que invariavelmente é. Sob esse aspecto, é um exercício de
debruçar-se sobre a realidade (plural e multifacetada, provisória e
efêmera) e estabelecer recortes (por meio da montagem), um meio

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 76-101, JUL/DEZ 2018 99


de mergulhar no mundo, em suas engrenagens, sensibilizando-se
pelo visto, mas também por aquilo que não se vê e não se pode
ouvir, que é elemento para criação de realidade e vida.
Entre uma imagem e outra, há um mundo a ser criado, posto
que há um real que extrapola as margens da tela, demandando
reflexão, crítica e afetação. O filme não é maior do que o sujeito,
do que a dor, do que os limites. Ele não o ultrapassa, mas o
convida a compor com ele realidades, tal como fizeram os idosos
ao recordarem (ou criarem) memórias a partir de alguns filmes
vistos, ou as crianças, que ficcionalizaram suas experiências nesse
território. Se a entrada num hospital representa para muitos o
fim de uma vida, é também, paradoxalmente, o início de outra se
entendemos que a vida se estende em sucessões de mortes parciais.
Talvez, em territórios sensíveis, como o que acompanhamos aqui,
o cinema aconteça neste intervalo entre um passado vivido e um
presente por vir, que faz força para atualizar-se.

REFERÊNCIAS

ACHCA, A. Palhaço de hospital: proposta metodológica de formação. 2007. Tese


(Doutorado em Teatro). Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
ALVAREZ, J.; PASSOS, E. Cartografar é habitar um território existencial. In:
ESCÓSSIA, L.; KASTRUP, V.; PASSOS, E. Pistas do método da cartografia:
pesquisa, intervenção e produção da subjetividade. Porto Alegre: Sulina, p.
131-149, 2012.
COMOLLI, J. Ver e poder. Cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte:
UFMG, 2008.
EIRADO, P.; PASSOS, E. Cartografia como dissolução do ponto de vista do
observador. In: ESCÓSSIA, L.; KASTRUP, V.; PASSOS, E. Pistas do método da
cartografia: pesquisa intervenção e produção da subjetividade. Porto Alegre:
Sulina, p. 109-130, 2012.
FONTES, R. Da classe à pedagogia hospitalar: a educação para além da
escolarização. Linhas, Florianópolis, v. 9, n. 1, p. 72-92, jan./jun. 2008.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.
HAESBAERT, R. Territórios Alternativos. São Paulo: Contexto, 2006.
LARROSA, J. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte:
Autêntica, 2010.
MACIEL, K. (Org.). Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009.

100 Cartografando pedagogias / Fernanda Omelczuk e Tatiane Mendes


MENDES, T. O pequeno cineasta e outras histórias: por uma cartografia de sons,
imagens e afetos em experiências de cinema na cidade. Tese de doutorado
defendida junto ao Programa de Pós-graduação em Comunicação Social,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.
MENEZES, J. Cultura do ouvir: os vínculos sonoros na contemporeaneidade.
Libero, v. 11, n. 21, p. 111-118, 2008.
MIGLIORIN, C. Inevitavelmente cinema: educação, política e mafuá. Rio de Janeiro:
Beco do Azougue, 2015.
OMELCZUK, F. O que se aprende quando se aprende cinema no hospital? Pós-
graduação em Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2016.
RANCIÈRE, J. A partilha do Sensível: estética e política. São Paulo: EXO
experimental org; Editora 34, 2009.
SANTOS, M; SILVEIRA, M.L. Brasil. Território e Sociedade no início do século 21.
Rio de Janeiro: Record, 2001.

FILMES

A MÚSICA segundo Tom Jobim. 88’, 2012. Direção: Nelson Pereira dos Santos.
BIXA travesty. 75’, 2018. Direção: Claudia Priscilla e Kiko Goifman.
CANTANDO na chuva. 103’, 1952. Direção: Gene Kelly e Stanley Donen.
CARNAVAL Atlântida. 92, 1952. Direção: José Carlos Burle, Carlos Manga.
CARTOLA – música para os olhos. 88’, 2007. Direção: Lírio Ferreira e Hilton Lacerda.
DI-GLAUBER (Ninguém Assistirá Ao Formidável Enterro Da Tua Última Quimera,
Somente A Ingratidão, Aquela Pantera, Foi Sua Companheira Inseparável! - Di
Cavalcanti di Glauber). 18’, 1976. Direção: Glauber Rocha.
KAUÃ no CTI. 2’, 2015. Direção: Kauã Pereira.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 76-101, JUL/DEZ 2018 101


FOTOGRAMA
COMENTADO
FOTOGRAMA COMENTADO

“Um desenho, várias emoções”:


cinema e narrativas de
trabalhadoras da educação
pública

Ana Paula S oares da S ilva Gomes


Educadora, graduada em Biblioteconomia e Mestranda em Educação e Docência
na Faculdade de Educação da UFMG.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 104-117, JUL/DEZ 2018 105


106 “Um desenho, várias emoções” / Ana Paula Soares da Silva Gomes
Este fotograma apresenta o desenho que deu origem ao
documentário Um desenho, várias emoções, realizado por mim junto
ao Laboratório de Práticas Audiovisuais (Lapa)1 da Faculdade de 1. Projeto de pesquisa
contemplado no Edital
Educação da UFMG, entre os meses de setembro de 2019 e janeiro Anos Finais do Ensino
de 2020. No filme, um desenho da Escola Municipal Rui da Costa Fundamental: adolescências,
Val (EMRCV), feito em giz de cera por professoras e estudantes qualidade e equidade na
escola pública promovido
na ocasião do aniversário de nove anos da escola, é o mote para pela Fundação Carlos
que nós, trabalhadoras da educação pública, reativemos nossas Chagas/Itaú Social.

memórias e tragamos à tona relatos de lutas, força e esperança


no dia a dia do chão de uma escola localizada em um bairro da
periferia de Belo Horizonte.
O desenho é assinado por estudantes e professoras das salas
03 e 04 do primeiro turno do ano de 2001. Depois de feito, o
trabalho ficou emoldurado em um quadro que sempre esteve
em uma das paredes da biblioteca. Os traços, de simplicidade
e precisão, retratam a escola àquela época, ainda sem a
infraestrutura existente atualmente. Quando cheguei à escola, em
2009, ele já estava lá. Durante um período de obras, o desenho foi
retirado da biblioteca e sofreu danos. Nas comemorações de 25
anos da EMRCV, por volta de 2017, a então diretora solicitou sua
restauração. Na ocasião da realização do documentário, todos os
envolvidos na feitura do desenho já haviam saído da escola.
O argumento do filme propunha a volta ao passado da escola
por meio dos olhares de três educadoras que, provocadas pela
observação do desenho, seriam motivadas a recontar a história
da instituição na qual trabalharam. O primeiro passo foi criar

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 104-117, JUL/DEZ 2018 107


uma cena em que pudéssemos conversar em torno do quadro
que representa a escola. Para isso retirei o quadro da parede e o
trouxe ao alcance das mãos e dos olhos das educadoras reunidas
na biblioteca da escola. A partir da aproximação ao desenho, as
memórias das mulheres foram ganhando corpo em suas palavras
e vozes. Essa ideia partiu da minha experiência como educadora
que trabalha na biblioteca da escola há mais de onze anos, e
foi amadurecida durante as reflexões e trocas sobre Cinema e
Educação com os integrantes do Lapa.
Desde a escolha das mulheres que participariam do
documentário até o processo de edição das imagens, minha
intenção era fazer uma singela homenagem à escola como um
espaço em que é possível potencializar habilidades e reflexões
que nos tornam mais criativos, mais sensíveis no convívio e nas
trocas cotidianas. Naquele momento, percebi a oportunidade
de lançar meu próprio olhar sobre a escola e, na relação com
minhas colegas, modificar a maneira como em geral esse espaço
é representado dentro da sociedade.
O curta-metragem possui diversas marcas da aprendizagem
da linguagem audiovisual e a opção por manter alguns
“desajustes” técnicos oriundos desse processo torna esse filme
ainda mais próximo da experiência vivida na escola durante
as filmagens. Imagens de câmera profissional e de smartphone
mesclam-se para criar uma narrativa contra hegemônica na
medida em que vozes de mulheres da classe trabalhadora,
historicamente subalternizadas pelo sistema capitalista,
machista e racista, unem-se para contar a história de uma
escola e as suas próprias vivências como agentes ativas naquele
espaço compartilhado onde produziram, ao longo de suas vidas,
conhecimento, arte, laços afetivos e memórias.
Durante o processo de realização do filme, Maísa Alves de
Oliveira, Maria das Graças Ribeiro, Selma Fátima da Cruz e eu
nos deixamos afetar pelo desenho, revelamos sonhos, desafios e
alegrias ao mesmo tempo em que contamos a história de uma
escola por meio de nossas lembranças afetivas e de um processo
de realização audiovisual que se pretendia pautado na escuta
sensível, dialógica e de valorização das experiências e memórias
dos sujeitos. Procuramos inventar um modo decolonial de
fazer cinema, aprendido junto a cineastas negros, indígenas,

108 “Um desenho, várias emoções” / Ana Paula Soares da Silva Gomes
educadores e por outros grupos subalternizados historicamente
e que passaram a contar suas próprias histórias criando outros
modos de fazer filmes mais próximos às suas experiências.
A força das narrativas dessas personagens da vida real se
une à delicadeza do desenho, colocando em evidência o potencial
de histórias de vida que, apesar das dificuldades que sempre
enfrentaram no decorrer de suas caminhadas, veem na escola
pública uma possibilidade de abrir portas e ampliar horizontes
tanto para si mesmas quanto para crianças, jovens e adultos que
por ali passam.
Maísa, apesar de ter atuado por pouco tempo como
professora de Arte na escola, foi quem assumiu a tarefa de
restaurar o desenho. Ela expressa no filme toda sua resistência
como professora de uma disciplina constantemente rechaçada
por um projeto político e social que visa afastar cada vez mais
as artes da classe trabalhadora e começa por não valorizar seu
ensino nas escolas. “[...] o professor de Arte, chega uma hora
que ele... não é que desiste de brigar, mas ele aceita que as
pessoas não valorizam tanto a Arte. A sociedade, o governo,
tudo. E aí chegar aqui e ter esse espaço pra Arte foi muito
bom”, conta Maísa.

Já a trajetória de Graça como professora está profundamente


vinculada com os primeiros anos de luta para implantação
da escola, pois trabalhou na escola desde a sua criação e lá
permaneceu até a aposentadoria. Ela expressa em sua fala a
satisfação de ter vivido toda sua vida profissional na escola e
de ter atuado como professora alfabetizadora, seja nas turmas

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 104-117, JUL/DEZ 2018 109


regulares do Ensino Fundamental, seja nas turmas de Educação
de Jovens e Adultos (EJA). O retorno que Graça alcança na
alfabetização, ao perceber a emancipação dos estudantes, foi uma
fonte de inspiração constante em seu percurso.

E, finalmente, Selma é uma mulher que luta para afirmar sua


experiência sensível como artista que trabalha em um emprego
comum, histórica e socialmente desvalorizado: os serviços gerais.
Enxergo Selma como uma mulher transgressora por não se render
aos desmandos de uma sociedade que dificulta de todas as formas
o acesso das pessoas negras ao conhecimento.

Como afirma Grada Kilomba, “no racismo, corpos negros são


construídos como corpos impróprios, como corpos que estão ‘fora
do lugar’ e, por essa razão, corpos que não podem pertencer.”
(2019, p. 56) Ao recitar seu poema O cantinho da felicidade,
Selma revela toda a energia criativa, beleza e subjetividade da

110 “Um desenho, várias emoções” / Ana Paula Soares da Silva Gomes
arte produzida por mulheres da classe trabalhadora e aponta para
sua legitimidade como criadora de arte, na medida em que ela
mesma se autoriza a criar.
O encontro com as educadoras não constituiu uma
entrevista protocolar para realização de um documentário.
Tratou-se antes de uma imersão no universo das entrevistadas
e em sua relação com o ambiente escolar e o mundo. A
realização do documentário, além da criação do filme em
si, proporcionou uma abertura para conversas que eu nunca
havia tido com nenhuma delas e que naquele momento fluíram
de uma forma especialmente acolhedora, de modo que, por
diversas vezes, encontrei-me refletida em seus sentimentos e
angústias.
Ao final do processo, na montagem do filme, decidi gravar
novamente uma sequência que não estava prevista, na qual me
coloco em cena e entrelaço minha trajetória pessoal – como
mulher negra, moradora de periferia e profissional da educação
– ao desenho e às falas das três mulheres que participam do
filme, minhas companheiras de trabalho e de lutas, no constante
exercício de pensar o cinema, a educação e a vida.
Essa experiência me faz pensar sobre como o uso do cinema
naquele cotidiano tornou possível que uma outra conversa
surgisse entre nós, uma forma de relação que é cotidiana e ao
mesmo tempo extraordinária. Em função da forma como nos
aproximamos umas das outras em torno do desenho e com a
presença da câmera, cada uma das mulheres que participa
do filme teve o espaço necessário para narrar a si mesma
enquanto narrava a história da escola. Essas narrativas, quando
compartilhadas, fortalecem as presenças de cada uma de nós e
nos indicam caminhos a serem trilhados a partir dali.
Sobre a potência das narrativas de si, bell hooks salienta
que recontar histórias de nossas vidas para outras pessoas que
vivenciam mudanças afins torna mais claros os estágios de
conscientização.

Quando escrevemos ou falamos sobre essas mudanças,


estabelecemos nossas experiências como válidas e reais,
começamos a analisar e essa análise nos dá a perspectiva
necessária para pôr nossas vidas em um contexto em que
sabemos o que fazer em seguida. (HOOKS, 2019, p. 46)

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 104-117, JUL/DEZ 2018 111


As três mulheres, cada uma fundamentada em suas
subjetividades e experiências pessoais, trouxeram relatos que
nos convidam a pensar sobre as enormes desigualdades existentes
em nossa sociedade e de que modo a presença do audiovisual,
compromissado com o rompimento do status quo na escola, pode
contribuir para fazer ecoar vozes, ampliar olhares e fazer com que
produções realizadas em contexto escolar sejam emancipadoras.
Nesse sentido, torna-se possível, mesmo que circunstancialmente,
estabelecer um contraponto à passividade que toda a
comunidade escolar experimenta na sociedade do espetáculo e
na megalomania da indústria cinematográfica hegemônica que
opera com grandes cifras e possui alto poder de difusão, fazendo
chegar obras cinematográficas para um imenso público às custas
de homogeneizá-lo.
É preciso deixar claro que a experiência com o cinema
na escola que propusemos estava comprometida com a
descolonização de imagens instituídas na sociedade e também
apresenta não apenas uma outra forma fílmica, mas também um
outro modo de fazer, em que o engajamento dos sujeitos nesse
processo muitas vezes aponta para o passado ao mesmo tempo
em que se abre para o futuro, como ensina ainda bell hooks.

Uma vez que a descolonização como um processo político é


sempre uma luta para nos definir internamente, e que vai além
do ato de resistência à dominação, estamos sempre no processo
de recordar o passado, mesmo enquanto criamos novas formas
de imaginar e construir o futuro. (HOOKS, 2019, p. 37)

Justamente por isso, notamos que, ao contar a história da


escola, motivadas pelo desenho realizado pelos estudantes, as
mulheres reunidas nesse trabalho falam de si ao mesmo tempo
em que falam da escola, falam do passado ao mesmo tempo em
que alcançam um futuro.

Fora do quadro

Nesse enquadramento, vê-se o pátio, a rampa de acesso


ao segundo andar e, ao fundo, algumas casas do bairro Jardim
Felicidade. O fotograma revela a última sequência do documentário
mostrando a escola atualmente, bem diferente daquela de 2001,

112 “Um desenho, várias emoções” / Ana Paula Soares da Silva Gomes
representada no desenho. A escola fica localizada no Bairro
Jardim Felicidade, na periferia de Belo Horizonte, foi inaugurada
e municipalizada no dia 24 de março de 1992.

O bairro Jardim Felicidade teve suas origens por volta do


ano de 1985, por meio das reivindicações por moradia própria de
pessoas que viviam de aluguel em Belo Horizonte. A comunidade
possui um forte potencial criativo e notam-se inúmeras expressões
artísticas e culturais, realizadas pelos próprios moradores,
representadas especialmente pela dança, música, cinema e
artesanato. Há talentos que transcendem as fronteiras do bairro e
já fazem parte da cena cultural de Belo Horizonte, como cantores
de música pop e funk, que trazem em suas letras muito de sua
relação com as experiências vividas na comunidade.
Em seu livro Memórias da plantação: episódios de racismo
cotidiano, Grada Kilomba atenta para a capacidade de reflexão e
ação das populações periféricas, apesar do constante silenciamento
e imposição de formas de submissão:

Nesse espaço crítico podemos fazer perguntas que desafiam


a autoridade colonial do centro e os discursos hegemônicos
dentro dele. Assim a margem é um local que nutre
nossa capacidade de resistir à opressão, de transformar
e de imaginar mundos alternativos e novos discursos.
(KILOMBA, 2019, p. 68)

Esse potencial criativo no Jardim Felicidade, que emerge


também em outros bairros periféricos e comunidades à margem
da estrutura social de Belo Horizonte, surge apesar das

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 104-117, JUL/DEZ 2018 113


condições adversas e como resistência a essas condições, como
ressalta ainda Kilomba: “é aqui que as fronteiras opressivas
estabelecidas por categorias como “raça”, gênero, sexualidade
e dominação de classe são questionadas, desafiadas e
descontruídas (2019, p. 68)
A Escola Municipal Rui da Costa Val, como qualquer outra
instituição, é atravessada pelas questões sociais, políticas e
econômicas da comunidade da qual faz parte. No entanto, a
despeito dos desafios, a EMRCV é uma escola muito respeitada
pela comunidade escolar e não apresenta sinais de descuido
ou vandalismo. Boa parte do muro da escola é coberto por
desenhos grafitados por moradores, que enchem de cores e
alegria tanto a parte interna da escola, quanto a parte externa.
Em um contexto midiático em que as escolas públicas, sob o
pretexto da denúncia, são representadas em documentários,
séries televisivas e reportagens como espaços educacionais
entregues ao abandono e desvalorizados pelos moradores de
periferia, a EMRCV afirma-se como uma instituição que lida
com as dificuldades, trazidas pelo impacto das questões sociais,
ambientais, políticas e econômicas, sendo um campo de novas
possibilidades para os moradores.
Em 2001, à época da feitura do desenho, a escola era
bem diferente do que é hoje. Melhorias de infraestrutura e
acessibilidade foram acrescentadas ao espaço escolar, como
recordam as narrativas das três personagens do documentário.
O espaço físico da escola atualmente é estruturado em dois
pavimentos, conta com quinze salas de aula, duas quadras
de esportes, uma biblioteca, sala para coordenação, sala para
direção, sala de professores, secretaria, banheiros, cantina, sala
de vídeo, laboratório de informática e um grande pátio.
Um desenho, várias emoções foi finalizado em fevereiro de
2020. Devido ao adiamento do início do ano letivo ocasionado
pelas fortes chuvas que atingiram Belo Horizonte naquele
verão, somente no dia 16 de março de 2020, consegui exibir
o filme para uma turma de dezessete estudantes do oitavo ano
do ensino fundamental, junto à professora de Matemática. Boa
parte dessa turma conhecia as protagonistas do filme: Maísa
e Graça foram professoras da maioria deles, e Selma, além de
trabalhar na escola, foi uma das primeiras moradoras do bairro

114 “Um desenho, várias emoções” / Ana Paula Soares da Silva Gomes
e é avó de alguns estudantes. Interessante perceber que todos os
estudantes já haviam reparado no desenho, em algum momento,
sem entretanto ter parado para pensar sobre ele.
Entre os estudantes dessa turma do 8º ano, poucos sabiam
ou não reconheciam as habilidades artísticas de Selma. Uma das
estudantes disse após a exibição: “Eu não sabia que Selma era
artista, para mim ela só cuidava da limpeza da escola”. Talvez
haja na concepção dessa afirmação um conceito de artista que
não é compatível com o espaço escolar ou com uma pessoa que
execute as funções de limpeza, como se a Arte não pudesse
florescer no coração dos humildes ou como se o indivíduo
estivesse limitado a sua profissão e não pudesse dar vazão a sua
criatividade de outras maneiras.
A própria Selma, em sua narrativa, afirma ficar “acanhada”
quando a chamam de “artista”. Ao se retirar desse lugar de artista,
ela se define como uma “curiosa”, que experimenta várias facetas
da arte, como o desenho, a pintura e a escrita literária, o que
nos leva a refletir sobre a supressão das nossas subjetividades
enquanto pessoas negras da classe trabalhadora.

(...) De fato, para muitas pessoas exploradas e oprimidas, a


luta para criar uma identidade e nomear a própria realidade
é um ato de resistência, pois o processo de dominação – seja
a colonização imperialista, o racismo ou a opressão machista
– tem nos esvaziado de nossa identidade, desvalorizando
nossa linguagem, nossa cultura, nossa aparência. (HOOKS,
2019, p. 226)

Boa parte dos estudantes e dos trabalhadores e trabalhadoras


da Escola Municipal Rui da Costa Val atualmente conhecem o
prédio antigo da escola pelo desenho emoldurado na parede da
biblioteca. Foi muito gratificante perceber nessa exibição coletiva
na escola que a imagem, aliada às narrativas das mulheres,
provocou neles uma volta ao passado da escola com a singeleza
de relatos tão fortes e sensíveis ao mesmo tempo.
No dia 18 de março de 2020, um dia antes do fechamento da
escola devido à pandemia da COVID-19, promovi uma segunda
exibição de Um desenho, várias emoções, desta vez para o grupo
de professores da Educação de Jovens e Adultos (EJA). O grupo
é formado por apenas seis professoras, duas delas prestes a se

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 104-117, JUL/DEZ 2018 115


aposentar, tendo vivido muitos momentos ao lado de Graça nos
primeiros anos da Escola. Uma dessas professoras chegou ao Rui
por influência da mãe, amiga de Graça e ex-professora da EMRCV.
Após a exibição, essa docente se lembrou de vários relatos da
própria mãe sobre a escola, motivada pelos depoimentos da
Graça. A mãe dela e Graça chegaram à escola quando o bairro
ainda estava em seu início, com pouca infraestrutura e muitas
dificuldades de acesso. Dois dos professores da EJA têm menos de
dois anos na EMRCV. Eles conviveram e trabalharam com Graça
nesses últimos dois anos, não conheceram Maísa e conheciam
Selma, porém não sabiam de suas habilidades artísticas e não
sabiam que o hino da escola era de sua autoria.
Os professores da EJA, e eu mesma, ficamos muito
emocionados por assistir ao documentário. Sem saber ainda dos
impactos da pandemia sobre as atividades da escola e ainda na
expectativa de informações mais detalhadas sobre a paralisação
das aulas, traçamos propostas de trabalho para os estudantes
da EJA em 2020 e, a partir da exibição do filme, pensamos em
propor aos estudantes da Educação de Jovens e Adultos criações
literárias baseadas nas escritas de si. Os professores entenderam
a importância tanto da aproximação dos alunos e alunas dessas
formas de narrar – sejam elas audiovisuais ou literárias – quanto
de estimulá-los a produzir, eles próprios, as suas narrativas.

REFERÊNCIAS

HOOKS, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo:
Elefante, 2019, 380 p.
HOOKS, bell. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019,
356 p.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de
Janeiro: Cobogó, 2019, 248 p.
SILVA, Janice Anterio da Rocha; GOMES, Maria do Carmo (Orgs.). Jardim
Felicidade: várias histórias em uma história. Belo Horizonte: O Lutador, 2013.
128 p.

116 “Um desenho, várias emoções” / Ana Paula Soares da Silva Gomes
DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 104-117, JUL/DEZ 2018 117
Cinema e mídias no Abecedário
Janela da Memória

Inés Dussel
Professora e pesquisadora no Departamento de Investigações Educativas (DIE
-CINVESTAV - México).

Adriana Fresquet
Professora na Faculdade de Educação da UFRJ. Pós-doutoranda no Departamento
de Investigações Educativas (DIE CINVESTAV - México).

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 118-143, JUL/DEZ 2018


Resumo: O Abecedário Janela da Memória resultou de uma entrevista guiada pelo
aleatório caminho da ordem alfabética trilhado por uma lista de palavras sugeridas
pela entrevistadora, Adriana Fresquet, revisadas e ajustadas pela entrevistada, Inés
Dussel. A proposta consiste em produzir um material audiovisual de iniciação ao
pensamento de Dussel sobre a educação, as imagens técnicas e as mídias digitais. É
um exercício de escovar a contrapelo palavras de uso habitual, sua relação com elas
e a vigência dos seus significados e sentidos.
Palavras-chave: Abecedário; Audiovisual; Educação; Mídias; Digital.

Abstract: The “Abecedário” Janela da Memória emerged out of an interview guided


by the random path of alphabetical order in which the participants followed a list
of words suggested by the interviewer, Adriana Fresquet, reviewed and adjusted
by the interviewee, Inés Dussel. The Abecedário produced an audiovisual material
to introduce Dussel’s thought on education, technical images and digital media,
and that intends to work as an exercise of brushing words against the grain,
understanding our relationship with them and the currency of their meanings and
senses.
Keywords: Alphabet; Audiovisual; Education; Media; Digital.

120 Cinema e mídia no Abecedário Janela da Memória / Inés Dussel e Adriana Fresquet
[…] Na questão da amizade, há uma espécie de mistério. Isso diz respeito direto à
Filosofia. Porque na palavra “filosofia” existe a palavra “amigo”. Quero dizer que
o filósofo não é um sábio. Do contrário, seria cômico. Ao pé da letra, é o “amigo
da sabedoria”. O que os gregos inventaram não foi a sabedoria, mas a estranha
ideia de “amigo da sabedoria”. Afinal, o que quer dizer “amigo da sabedoria”? Esse
é que é o problema. O que é a filosofia e o que pode ser amigo da sabedoria? Quer
dizer que o amigo da sabedoria não é sábio. Há uma interpretação óbvia que é: “Ele
tende à sabedoria”. Não é por aí. O que inscreve a amizade na filosofia e que tipo
de amizade? Há alguma relação com um amigo? O que era para os gregos? O que
quer dizer “amigo de”? Se interpretamos “amigo” como aquele que “tende a”, amigo
é aquele que pretende ser sábio sem ser sábio. Mas o que quer dizer “pretender
ser sábio”? Quer dizer que há outro. Nunca se é o único pretendente. Se há um
pretendente, é porque há outros, quer dizer que a moça tem vários pretendentes.
Fragmento do Abecedário de Gilles Deleuze, letra F de Filosofia.1 1. Disponível em: http://
escolanomade.org/wp-
content/downloads/deleuze-
O abecedário audiovisual Janela da Memória (2019) o-abecedario.pdf. Acessado
em: Jan. 2020.
gravado com Inés Dussel faz parte de uma coleção de
abecedários2 realizados por Adriana Fresquet desde 2012. 2. Disponível em: https://
Sua produção surgiu sob o espírito desse tipo de amizade cinead.org/abecedarios/.
Acessado em: Jan. 2020.
mencionado por Gilles Deleuze na epígrafe, no sentido de
pretender uma aproximação inicial, entre tantas outras
possíveis, ao conhecimento. A intenção consiste em divulgar
saberes em formato acessível e introdutório aos principais
conceitos dos autores e autoras entrevistados. Algumas vezes,
como foi o caso desse abecedário, acontece de encontrarmos uma
situação privilegiada pelo fato de poder dialogar com alguém
que temos lido durante anos, em um encontro pessoal, único,
quase fortuito. Mas além do encontro entre entrevistado(a) e
entrevistador(a), trata-se de um encontro entre quem realiza o
abecedário e seus próprios conceitos. Poderíamos dizer que, se,
por um lado, uma janela viva se abre na memória, por outro,
se gera uma sorte de confronto com a vigência e mudanças dos
significados e sentidos de cada palavra escolhida no momento
presente. Muitos entrevistados expressam um entusiasmo que
lembra o gesto de brincar. Há algo de lúdico que se mistura
com o compromisso de escovar a contrapelo, uma e outra vez,
ideias que os acompanham por toda uma vida.
Todo abecedário sugere uma iniciação, espécie de bê-á-bá
no aprendizado de alguma língua. Neste caso, significa também
acompanhar passo a passo o pensamento de alguém, o que
constitui quase uma cartografia. À diferença do dicionário, por
exemplo, não há no abecedário o propósito de definir verbetes.
Nos ABCs estão presentes os movimentos de titubear, apalpar,

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 118-143, JUL/DEZ 2018 121


olhar de novo para conceitos suficientemente conhecidos até
estranhá-los. Isto é, a aproximação à ideia, a tentativa, a dúvida,
o gesto de revisar, voltar atrás e dizer algo novo fazem parte do
espírito desse confronto vivo da memória com o pensamento
presente a partir de determinado termo.
Entre os antecedentes que inspiraram esta produção o
principal deles é o abecedário de Gilles Deleuze, produzido
por Claire Parnet. É possível encontrar aspectos comuns entre
nossa proposta e esse abecedário. Seguramente eles coincidem
na admiração, em certa cumplicidade e no registro audiovisual
privado que será depois socializado abertamente. Porém, o
contexto e as condições são bem diferentes. A discípula do
professor francês gravou as conversas durante várias tardes,
o que rendeu 453 minutos de filmagem, quase 8 horas. Neste
abecedário gravamos apenas em uma manhã de setembro de
2019, e de todo o registro retiramos apenas um fragmento inicial
da letra F, de fracasso, no qual o celular despencou do pequeno
tripé e não conseguimos conter as gargalhadas.
Existem também outros tipos de abecedários, vocabulários e
fundamentalmente dicionários em formato de livro sobre autores
como o Vocabulário de Michel Foucault (CASTRO, 2009), ou o
Dicionário Paulo Freire (STRECK; REDIN; ZITKOSKI, 2010); sobre
temáticas como Abecedário: educação da diferença (CORAZZA;
AQUINO, 2009), o Abecedário de criação filosófica (KOHAN;
XAVIER, 2009), o Diccionario de conceptos y términos audiovisuales
(GÓMEZ-TARÍN; FELICI, 2015); além de dissertações e teses
(SABINO, 2015; REZENDE, 2016; D’ANDREA, 2019). Dentre as
múltiplas edições e propostas antecedentes possíveis queremos
3. Disponível parcialmente destacar dois especialmente: O ABC An Alphabet,3 de Georgina
em: https://www.
artbookspublishing.co.uk/
Evelyn Cave Gaskin, e War Primer, de Bertold Brecht.
abc/. Acessado em: Jan.
2020.
ABC An Alphabet foi escrito por Georgina, conhecida como
Geórgia, designer inglesa de joalharia e metais. Com o marido
Arthur, ela era um dos membros principais do Birmingham Group
of Artist-Craftsmen e uma figura importante do movimento
em prol das Artes e Trabalhos Manuais que floresceu na Grã-
Bretanha e nos Estados Unidos no final do século XIX. Georgia
escreveu e ilustrou uma série de livros sob seu nome que, a partir
da publicação do ABC An Alphabet em 1895, um ano depois de
casada, receberam a assinatura de Senhora de Arthur Gaskin.
O livro logo se tornou um sucesso, sendo reeditado diversas

122 Cinema e mídia no Abecedário Janela da Memória / Inés Dussel e Adriana Fresquet
vezes até o final da década de 1890, incluindo uma versão de
luxo pintada à mão, impressa em velino, com apenas algumas
cópias. O ABC é uma espécie de cartilha clássica direcionada a
crianças vitorianas e foi criado no mesmo ano da invenção do
cinematógrafo. As ilustrações que ocupam boa parte das páginas
vêm acompanhadas por textos breves na página direita, enquanto
a página esquerda traz no centro uma imagem menor, com a letra
da vez em destaque e a ilustração de uma criança brincando de
alguma maneira com essa letra.
Embora não siga uma estrutura alfabética, Abecedário da
Guerra,4 de Brecht, apresenta uma série aterrorizante de pequenos 4. Disponível parcialmente
em: https://www.youtube.
poemas acompanhada por imagens da guerra. O livro foi escrito
com/watch?v=-HyZhw2eN1U.
durante a Segunda Guerra Mundial e, com esse trabalho, Bertolt Acessado em: Jan. 2020.
Brecht apresenta um devastador ataque visual e lírico contra o
capitalismo moderno. A publicação inclui fotografias de jornais e
revistas populares retiradas das publicações da época, adicionando
pequenos versos de profunda dureza, numa tentativa poética de
compreender e compartilhar algo da realidade da guerra com o
uso de fragmentos da mídia de massa.
Trazemos esses dois exemplos específicos por motivos
diferentes. No caso do primeiro livro, encontramos a forte marca
da iniciação, da dedicação de uma mulher5 que educa crianças 5. Revolta ler na capa do livro
sua autoria como “Senhora
nas primeiras letras e palavras, cuidando dos textos e das imagens de Arthur Gaskin”. Só temos
como quem cuida do alimento, do gosto e da experiência sensível. conhecimento do nome
dela, Georgina Evelyn Cave
O segundo exemplo, que não é propriamente um abecedário,
Gaskin pela gentileza do
introduz duas novidades essenciais: a presença da montagem editor desta versão recente,
entre imagens e poesia. Trata-se de uma desobediência poética que a apresenta na primeira
página.
ao alfabeto vinculada ao propósito de sua circulação como mídia
de massa. Abecedário da Guerra foi produzido quando o autor
estava exilado na Suécia e surpreende o estilo, a forma como
se pergunta a cada página: “como isso pôde acontecer?” Como
repete Goya, por exemplo, em Os Desastres da Guerra visando
sacudir, indignar, ferir o espectador, ao se perguntar como isso foi
possível (SONTAG, 2003). Ambos os livros, embora impressos,
resumem as características do espírito dos abecedários que
abordamos nesse texto: de um lado, o caráter de iniciação e, por
outro, o uso das imagens e da poesia.
Retomando nossa caracterização, a metodologia dos
abecedários audiovisuais implica vários passos e é bastante
flexível, em função das preferências dos(as) entrevistados(as).

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 118-143, JUL/DEZ 2018 123


Primeiramente, convidam-se autores ou autoras para comentar
sobre alguns conceitos e, com esse objetivo, sugerimos uma
lista de palavras ou expressões organizados pelas letras do
alfabeto, por exemplo: A de aula, B de biblioteca, C de cinema etc.
A pessoa entrevistada pode escolher uma ou mais palavras das
sugeridas por letra para gravar, pode simplesmente ignorá-las,
ou ainda substituí-las por outras que sejam de sua preferência.
É importante consultar se os autores ou autoras desejam
receber a lista de palavras por letra com antecedência, ou sabê-
las apenas no momento da gravação. A maioria tem preferido
recebê-las antes, o que permite a eles fazer alguns apontamentos
sobre cada tópico. Embora a versão última da lista de verbetes
apresente uma organização aparentemente aleatória, regida pela
ordem alfabética, ao editar o material gravado, surpreende a
organicidade que se estabelece entre os conceitos e as diferentes
linhas de relação que emergem entre eles. O título dos abecedários
tem surgido sempre durante o processo de montagem.
Em meio a esses processos e encontros, foi traçado o
abecedário Janela da memória com Inés Dussel. A expectativa ao
realizá-lo consiste em reunir fragmentos das reflexões de uma
professora latino-americana da educação, que articula diálogos
com a história da educação e com o domínio das imagens técnicas
e das mídias digitais, desenvolvendo diversas pesquisas em vários
países do mundo (Argentina, México, Inglaterra, Alemanha,
Austrália, França entre outros). Inés pediu a lista de verbetes
e se apropriou dela, aceitando várias das palavras sugeridas,
substituindo e acrescentando outras. Em várias letras foram
produzidos mais de um verbete, como na letra A, com abecedário
e atenção; na C, com cinema e currículo; na F, fotografia e fracasso;
e na T, tatilidade e tradução.
Para este artigo escolhemos convocar e comentar
brevemente seis verbetes do abecedário Janela da Memória:
atenção, cinema, mídias digitais, 24/7, YouTube, Wikipedia. Para
a autora, a palavra “abecedário” nos incita pensar na linguagem.
Logo se pergunta o que acontece com essas letras que reúnem
tantas palavras interessantes, e fundamentalmente, como se
tornam linguagens da educação. Para Inés, quando falamos em
abecedário, não estamos à procura de uma definição única dos
significados. Buscamos na verdade “problematizar os termos,
mostrar a ambiguidade muitas vezes existente nesses termos.

124 Cinema e mídia no Abecedário Janela da Memória / Inés Dussel e Adriana Fresquet
Também não se trata de uma definição do tipo Wikipédia, da
Real Academia Espanhola ou Portuguesa, nada do tipo, mas
de uma tentativa, na verdade, de ponderar a ambivalência e a
disputa pelo sentido que existe por trás de muitos termos. Essa é
a ideia”. Juntas, a seguir, apresentamos e contextualizamos cada
um dos verbetes selecionados para este texto em coautoria.

Atenção

A atenção é hoje uma qualidade bastante escassa... e acho


que é por isso que ela está voltando como uma palavra
importante. Na pedagogia, a questão da atenção é muito
antiga. Herbart falava da atenção, muitos pedagogos no
século XIX também já falavam, provavelmente no século
XVIII também. Você poderia dizer que é quase consubstancial
à escola moderna. A escola cria certo dispositivo da atenção
e os alunos se distraem. E temos aí tensão, atenção,
distração muito presentes desde muito tempo atrás. Mas
o que acontece hoje? Acho que, com a forte presença de
dispositivos digitais, a atenção se torna uma “atenção”
diferente; uma atenção que não descansa ou não se retém
por muito tempo. Sempre estamos muito estimulados, muito
convocados por diferentes suportes ou telas. E hoje em dia
se fala de uma nova economia da atenção. Uma economia
da atenção significa que a atenção se transformou em uma
mercadoria; os anúncios vendem as plataformas digitais.
Antes era a televisão, mas hoje muitas outras plataformas
digitais e redes sociais fazem isso: redes que a princípio
são gratuitas, mas que ganham muito dinheiro ao vender
nossa atenção. Nesse sentido, a captura de nossa atenção se
torna cada vez mais crítica. Um autor que eu gosto muito é
Jonathan Crary. Ele escreveu uma história sobre a atenção
desde o século XIX, e a suspensão da percepção em um
sentido de atender fortemente. Crary caracteriza um mundo
que não consegue se desconectar, um mundo 24/7: 24h por
dia e sete dias na semana; um mundo que tenta capitalizar,
transformar em mercadoria o sono e os resquícios que
sobravam de atenção. Acho que a partir daí a atenção se
torna um problema urgente para se pensar nas pedagogias e
temos que trazê-la ao nosso abecedário de novo.

O verbete está atravessado pelo espírito do livro de


Jonathan Crary, publicado em inglês em 1999 e traduzido
para o português com o nome de Suspensões da percepção:
atenção, espetáculo e cultura moderna, em 2008. Nesta obra,
o autor estuda as tecnologias e os discursos que permitiram
educar a percepção, para que houvesse um esforço conjunto

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 118-143, JUL/DEZ 2018 125


e a vontade de atender a certas coisas e não outras; deixar
para trás distrações periféricas e concentrar a observação
em um foco, tal apregoavam J. H. Pestalozzi e J. F. Herbart.
É interessante ressaltar que essa educação da atenção era
contrária às primeiras ‘instituições disciplinares’, inclusive as
educacionais do início do século XIX, projetadas para tornar os
sujeitos - alunos e professores - objeto de atenção e vigilância,
sob o modo do panoptismo. Pelo contrário, ao final do século
XIX, a escola, e também o cinema e a publicidade, propuseram
algo diferente: os sujeitos deveriam regular sua atenção, tornar
seu uso rentável e eficiente em várias situações sociais. Este é
o momento de maior ascensão da corrente neo-herbartiana nas
escolas normais, que foi fundamental para formar professores
encarregados de educar a atenção de seus alunos. Crary não
acredita que os artefatos determinem as formas de percepção,
mas que são resultado de conjuntos complexos de regimes,
epistêmicos e políticos, com formas tecnológicas (por exemplo,
o cinema) que favorecem certas disposições e interações.
Com o surgimento dos dispositivos móveis de
comunicação, acentua-se a pergunta sobre os modos de ver
e atender, assim como os processos de subjetivação regidos
por redes materiais e virtuais de poder, que nos reduzem à
condição de espectadores remotos interconectados no universo
on-line. Justamente depois desse livro, Crary escreve outro,
que diminui as esperanças de alguma forma de autonomia nos
fluxos de hiperconectividade. Estamos falando de seu livro
24/7: capitalismo tardio e os fins do sono, de 2014, ao qual
iremos nos referir adiante.
Cabe destacar ainda a sintonia com o conceito de atenção
que Masschelein e Simons (2015) defendem ao pensar a escola
e o conceito de suspensão. Para eles é necessário suspender ou
interromper a atenção ao mercado, à família, às notícias, para
se concentrar no que é disposto com generosidade “em cima
da mesa”, na sala de aula. Conseguir colocar em suspensão
inclusive o próprio eu (de docentes e discentes), para poder
concentrar a atenção no mundo; ou melhor dizendo, naquela
coleção de “miniaturas do mundo” que os pedagogos e pedagogas
recortam dele, e transformam em conteúdos escolares. Nesse
sentido, o cinema emerge como uma possibilidade singular de
atenção amorosa dirigida ao mundo.

126 Cinema e mídia no Abecedário Janela da Memória / Inés Dussel e Adriana Fresquet
Cinema

Eu vejo o cinema como uma possibilidade impressionante,


poderosa de contar o mundo, de contá-lo de uma forma que os
humanos até esse momento não tinham conseguido. Eu venho
estudando bastante sobre a história dos meios, das tecnologias
visuais, e o que o cinema traz, diferente da fotografia, é uma
grande ruptura. Tem quem chame de meios baseados no tempo.
Meios que capturam o tempo: pela primeira vez na história
humana se pôde guardar, arquivar uma porção de tempo e
mandá-la ao futuro em um sentido e trazê-la ao presente.
A fotografia é que instala isso e depois o cinema lhe traz
movimento, lhe traz velocidade. Isso foi algo impressionante
em termos da experiência humana. Então, quando você volta
às origens do cinema, e como as pessoas se sentiam frente
àquela máquina do trem que avançava; poder ver gente que
se mexia e que parecia estar ali. Recuperar algo dessa surpresa
inicial é algo que me conecta com uma dimensão do cinema
que acho fantástica. Acho que podemos pensar o cinema
como muitas coisas: como linguagem, como experiência; em
um sentido mais amplo, isso tudo também é uma arte. Eu não
pensaria tanto no cinema como arte, mas nisso que o cinema
possibilita como ampliação da nossa experiência, e ampliação
de nossas linguagens. Me interessa muito a temporalidade que
o cinema traz: o cinema complexifica muito o nosso presente
porque estamos vendo algo de um outro tempo, um tempo
que não é aquele em que estamos, aqui. Em algum sentido,
tem uma presença espectral, porque vemos um movimento,
uma presença de uma qualidade diferente; e nosso presente
está cheio de coisas que não são totalmente do presente. Essa
possibilidade de nos conectarmos com esses espectros, que
nos contam de outras experiências, é um encontro fantástico
com a alteridade. Claro que o cinema comercial planifica
grande parte dessa experiência. […] O que acontece comigo é
que, quando vou ao cinema, por mais que o filme seja muito
ruim, ele me produz alguma coisa. Gosto de alguma coisa. E
acho que tem muito a ver com essa mídia, com essa proposta
ou com esse dispositivo que se forma, quando estou em uma
sala escura, quando não vejo mais nada e isso me comove.
Acho que tem um monte de possibilidades educativas muito
interessantes, mas o principal seria esse do encontro com a
alteridade e a ampliação de nossas linguagens expressivas.

A reflexão inspirada pelo verbete explicita a magia do


cinema ao prolongar um fragmento do tempo, dos acontecimentos
durante determinado tempo, de um outro presente, que assim
estabelece um diálogo temporal com o nosso, projetando ainda
essa possibilidade no porvir. Embora a fotografia já fizesse
isso, a inscrição do movimento acrescenta vida à imagem. Essa

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 118-143, JUL/DEZ 2018 127


reflexão lembra o diálogo da História do plano, material didático
produzido por Alain Bergala, em relação à vista de Lumière
6. Disponível em: https:// Attelage d´un camion,6 Paris, 1896. O formato consiste em exibir
www.youtube.com/
watch?v=K4-Ju0lmVg8.
três vezes o mesmo plano de um filme. Na primeira e terceira
Acessado em: Jan 2020. vez, o plano é exibido em seu ritmo normal. Mas na segunda vez,
o plano é exibido como se estivesse na tela de um computador,
em um programa de edição. As imagens avançam, retrocedem e
são frisadas uma e outra vez, enquanto ouvimos um diálogo que,
hipoteticamente, duas pessoas (diretora e montador) estabelecem
sobre a cena, focando nossa atenção nas possibilidades da edição.
O texto, escrito por Bergala, é pronunciado pelas vozes de Fanny
Ardant (FA) e Michel Piccoli (MP), que possuem forte ligação
afetiva com o público francês, o que, segundo o autor, contribui
para boa escuta do espectador. Diz o diálogo:

MP: Quando vemos esse plano filmado, há 100 anos, sabemos


que as pessoas que moravam nesse pequeno pedaço de mundo
estão mortas. Os velhos, os jovens, os cavalos e agora os vemos
atravessar essa intersecção no presente, andando até um futuro
em aberto que eles não conhecem. Antes do cinema nenhuma
arte tinha conseguido dar esse sentimento aos homens.
FA: Pareces bem pessimista hoje…
MP: Claro que não. Não tem nada de triste, pelo contrário.
Eu acho formidável que o cinema tenha me proporcionado
isso. O sentimento vivo de um presente que não tem nenhum
testemunho direto. Não existe mais ninguém que pôde assistir
a esse tempo. E existe nesse plano, com o frescor do dia, onde
o acaso fez se encontrar todas essas pessoas em um minuto,
nessa praça. Talvez seja isso a essência do cinema.
FA: Nos damos conta de tudo que dá pra saber, em alguns
segundos, sobre a França de um século atrás. É como uma
mostra. E por acaso conseguimos uma amostra perfeita de
todas as classes da população, de todos os meios de transporte.
Temos tanto a impressão de que há tudo aí, que parece uma
mise-en-scene. […]
(Fragmento de Histoire des plans cinématographiques, Lumière,
Attelage d´un camion, Paris, 1896)

O verbete destaca a aposta de Bergala ao afirmar o cinema


como hipótese de alteridade e, ao mesmo tempo, problematiza
a intransigência do seu princípio da qualidade do que se dá a
ver, ao valorizar o efeito pessoal produzido pela experiência de
cinema, ponderando-se, como diz Dussel, que o cinema comercial

128 Cinema e mídia no Abecedário Janela da Memória / Inés Dussel e Adriana Fresquet
também pode planificar parte dessa experiência. No espírito do
conjunto das reflexões produzidas no abecedário, nas entrevistas
e publicações da autora, não podemos depreender que todo
filme seja pedagógico, mas que seja possível aprender, inclusive
com aqueles filmes que não possuem a qualidade que desejamos
habitando as escolas. Nesse sentido, a autora enfatiza a importância
da presença do cinema como linguagem no currículo escolar. Há
vastas investigações, fundamentalmente na Inglaterra, França e
Austrália, que apontam para a inclusão do cinema e de outros
saberes como linguagens capazes de ampliar as possibilidades de
conhecimento e expressão (DESBARATS, 2001; QUIN EDITH,
2003, BENASAYAG, 2020; NUNN, 2020).

Mídias digitais

Os “meios digitais” são um termo que eu prefiro a outros como


“tecnologias”, as famosas “TICs”, Tecnologias da Informação e
da Comunicação, ou “novas tecnologias”, porque acho, junto
com outros estudiosos da cultura digital, que essa referência
a meios permite juntar as tecnologias aos usos, aos usuários,
aos protocolos de usos etc. E os meios digitais introduzem
mudanças muito importantes em nossa relação com os meios.
Poderíamos dizer que nossa vida está sempre mediatizada, no
sentido de que nos vinculamos a outros através dos meios. Os
meios seriam a infraestrutura da cultura, as formas de registrar,
de arquivar, de transmitir a cultura. Um meio poderia ser o
livro, o quadro negro, a biblioteca, e hoje os meios digitais
respondem à tecnologia da digitalização que se baseia muito
fortemente nos dados, na produção de dados e na transmissão
desses registros da cultura em bits, em dados que unificam.
Isso, assim como a fotografia, foi uma grande revolução
na história humana, porém para alguns é parte da mesma
revolução tecno-cultural. Os meios digitais implicam várias
revoluções, mas uma que é muito grande é permitir juntar em
um mesmo suporte, que é o bit, o áudio, a imagem, o texto.
Tudo isso faz com que seja muito mais fácil produzir textos
audiovisuais do que antes. […] Mas o que os meios digitais
implantaram? Além dessa revolução, algo muito importante é
a portabilidade. Algo que aconteceu junto com a digitalização
foi que eles começaram a ser portáteis, os levamos conosco
a todos os lugares. Esta também é uma mudança fortíssima,
porque, antes, até o computador era algo fixo em um escritório,
na rua, ou onde fosse. Hoje, podemos tê-los até dormindo
com a gente. Nesse sentido mediatizam a nossa habilidade de
uma maneira muito mais forte. Há autores que falam de uma
humanidade que está sendo transformada, e isso não significa
que os robôs tecnológicos nos estejam governando. Significa

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 118-143, JUL/DEZ 2018 129


que nós, cada vez mais, estamos nos “robotizando”. Vamos nos
adaptando e replicando os usos protocolizados pelos meios, e
somos isso que o Facebook nos pede que sejamos, ou somos
isso que hoje muitos meios digitais nos pedem que sejamos.
Acho que essa é uma transformação muito importante. Temos
que estar bem atentos porque há muitíssimas consequências
na vida cotidiana e na vida política das nossas sociedades.

Efetivamente, tanto o cinema, a educação, como as


políticas e pedagogias que os vinculam, têm sido atravessados
estruturalmente pela revolução das mídias digitais. O cinema
rapidamente se hibridiza com outras mídias, multiplicando seu
alcance e suas possibilidades técnicas e expressivas. A educação
acalentou uma ilusão e uma promessa de facilidades de acesso
à informação e à cultura. O compartilhamento, a recepção e a
produção de conteúdos que carregavam os projetos pedagógicos
e audiovisuais das vanguardas e dos movimentos do século XX
vêm desfazendo sua euforia, e hoje assistimos um panorama
menos promissor. A esperança parece ter deixado seu lugar
para um cenário menos feliz e bastante mais assustador pela
própria precarização das gerações nascidas em contextos digitais,
altamente conectadas. Gerações obedientes aos modos de habitar
as redes sociais, assim como a novos modos de ser, pensar, agir,
que nem sempre são conscientes. Sobre isso, se aprofunda com
agudo pessimismo Jonathan Crary no livro 24/7 Capitalismo
tardio e os fins do sono, conceito que é tema do próximo verbete.

24/7

A ideia parte por um lado da propaganda de muitos lugares


que estão abertos 24/7, que estão disponíveis 24/7. Mas eu
também me reconheço muito no que diz Jonathan Crary,
que é um crítico cultural norte-americano, sobre a questão
das condições vitais no mundo contemporâneo; de perpétua
conexão, disponibilidade; que traz aspectos um pouco
“assustadores”. Digo em portunhol: aterradores. Porque há
um avanço muito forte das tecnologias e dos meios digitais
sobre aspectos que antes estavam mais preservados da
mediatização. Aspectos vinculados à intimidade, por exemplo,
a sexualidade ou a amizade, às eleições mais privadas, o
sono. Isto como questões centrais, que vão sendo cada vez
mais mercantilizadas, convertidas em espaços onde entram as
corporações farmacêuticas, tecnológicas, de entretenimento,
para nos vender coisas. Nesse sentido, o mundo 24/7 coloca

130 Cinema e mídia no Abecedário Janela da Memória / Inés Dussel e Adriana Fresquet
vários problemas pelos quais a ponderação de desconexão
não é como pensávamos a um tempo atrás. “Ah, são
conservadores, tradicionalistas... querem ficar para trás”, mas
na verdade existem questões sobre para onde vão avançando
as grandes corporações tecnológicas, que acho que colocam
desafios muito fortes à democracia. Uma das questões de
Crary, que também me interessa muito, é esta perda ou atrofia
da paciência: estamos cada vez mais impacientes, cada vez
queremos respostas mais imediatas. Todos temos que estar
disponíveis o tempo todo. Se te mandam um e-mail ou um
WhatsApp e você não responde imediatamente, te dizem: “O
que está acontecendo?” Por favor, me dá um minuto! me dá
um tempo! me deixe pensar! As tecnologias hoje não ajudam
para que possamos tomar esse tempo, ou possamos graduar,
qualificar, ver como responder. Há uma paciência e uma escuta
atrofiadas, porque o que mais vale é falar, mostrar-se, exibir-
se, e não tanto ver o que é visto como passivo, ou escutar, ou
ficar sentado, porque é preciso estar em movimento o tempo
todo. Então esse mundo 24/7... penso que é o mundo em que
vivemos. Não é que isso vá acontecer, isso já é nosso presente,
mas o habitamos de maneira diferente. Nisso eu admiro muito
algumas das brigas provocadas pelos sindicatos em Europa
para não ter que responder ao chefe fora do horário de
trabalho, por mais que tenham o celular. “Olha, se já passou
das 17h, não te respondo”, ou os finais de semana em que não
me conecto, ou me conecto pouco, me conecto se quero, mas
não estou obrigada a me conectar. O problema é que hoje,
muitas vezes, somos nós mesmos que nos obrigamos, e aí é
preciso aprender a se disciplinar em um sentido de resistir a
este mundo 24/7 muito mais conscientemente. É toda uma
operação de resistência, é mais fácil seguir o fluxo das coisas,
mas resistir custa. Penso que é preciso fazê-lo e ensinar a fazê-
lo, porque também estamos vendo, desde questões psicológicas
preocupantes nas crianças, cada vez mais transtornos de
ansiedade nos mais pequenos, depressões, que em parte têm a
ver com isso que está acontecendo. Inclusive com os adultos:
parece que estamos sempre cansados, estamos sempre
sentindo que não damos conta, que não damos resposta, uma
relação com o vital muito atrofiada, como diz Crary. Há um
outro autor muito em voga, o coreano-alemão, Byung-Chul
Han, e ele diz que essa agonia do Eros também é um problema
sério. O 24/7 leva a essa agonia do erótico, porque se está
sempre exausto, correndo atrás... Considero que resistir a
algo disso é fundamental, preservar espaços eróticos próprios,
resguardados dessa pressão de “tudo, tudo, tudo, já, já, já”.

Este verbete nos apresenta um panorama pouco otimista.


Segundo Crary, 24 horas durante 7 dias é “um tempo de
indiferença ao qual a fragilidade da vida humana é cada
vez mais inadequada, e onde o sono não é necessário nem

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 118-143, JUL/DEZ 2018 131


inevitável” (CRARY, 2014, p. 19). É uma filosofia de vida que
coloca o trabalho em um regime de não interrupção, assim como
a disponibilidade para o consumo. Nossos corpos e identidades
assimilam uma superabundância de procedimentos, serviços,
imagens, que alcançam níveis tóxicos quando não fatais. Uma
lógica que colide com a preservação do ambiente, produto do
consumo exacerbado e do desperdício sem fim. A maior parte
das necessidades especificamente humanas (fome, sede, desejo
sexual, amizade, etc.) se transformou em mercadoria. O sono
pode ser definido como aquele intervalo de tempo que, além
de ser uma necessidade humana, não pode ser colonizado pela
lógica do capital. De fato, além do sono ser desvinculado como
necessidade humana (até os aparelhos incluem o sleep mode),
pesquisas mostram que cada vez mais as pessoas acordam
durante a noite para verificar seus dispositivos móveis de
comunicação, para conferir a presença de mensagens ou seus
status nas redes sociais. 24/7 é um tempo sem tempo e celebra
uma presença inalterável de operações automáticas da vida
cotidiana.
Por outro lado, a referência ao autor Byung-Chul Han, na
mesma direção, nos alerta para a falta de repouso. Em seu livro
Sociedade do Cansaço, Han reconhece uma pedagogia do ver.
Citando Nietzsche, convida-nos a pensar três tarefas em vista
das quais precisamos de educadores: “devemos aprender a
ler, devemos aprender a pensar, devemos aprender a falar e a
escrever” (HAN, 2015, p. 51). Para o filósofo, aprender a ver
significa habituar o olho ao descanso, à paciência e a um olhar
demorado e lento. Ao não reagir de imediato aos estímulos, esse
tipo de reação é sintoma de doença e esgotamento. “Em vez
de expor o olhar aos impulsos exteriores, ela [a vida] os dirige
soberanamente. Enquanto um fazer soberano, que sabe dizer
não, é mais ativa que qualquer hiperatividade” (HAN, 2015, p.
52). Existiria uma contradição entre a atividade e a liberdade. Os
esforços exagerados por maximizar o desempenho nos afastam
da condição de resistência aos processos de aceleração de todas
essas ações: ler, pensar, falar e escrever.
Na mesma direção, o filósofo sul-coreano nos faz refletir
sobre o discurso da transparência, que para além de legitimar
iniciativas anticorrupção e divulgar informação nos faz mergulhar
em sistemas rígidos de hipercontrole e vigilância. Esse discurso

132 Cinema e mídia no Abecedário Janela da Memória / Inés Dussel e Adriana Fresquet
obedece muito mais a um imperativo econômico do que moral
ou biopolítico, ao reduzir tudo ao valor comercial e destituí-
lo de qualquer singularidade (HAN, 2016). Em relação a essa
transparência, também há o desaparecimento do outro enquanto
outro. Isto é, para Byung-Chul Han, já foi o tempo em que existia
o outro como amigo, como mistério, como desejo, agora só parece
haver lugar para o igual. O que faz adoecer as sociedades atuais é
fundamentalmente a hipercomunicação, o excesso de informação
e sobreprodução, e o hiperconsumo (HAN, 2019). Esses termos
dialogam estreitamente com o conceito de “biopolítica” em
Foucault, que diz respeito à relação entre política e vida, assim
como ao controle que o estado e a sociedade exercem sobre os
indivíduos. E com essa expressão também se relaciona cada vez
mais o conceito de “biomercado”, que designa o comando absoluto
do mercado sobe os corpos, em que os mecanismos simbólicos de
regulação se tornam debilitados e incapazes de regular o poder
do mercado e seus fluxos financeiros (MERLIN, 2017).

Wikipédia

Wikipédia é uma palavra que temos aprendido a incorporar na


linguagem pedagógica. Eu escrevi algo em 2010 sobre Wikipédia
como recurso pedagógico,7 e acho que sigo pensando o mesmo. 7. Disponível em: http://
Considero que é uma enciclopédia interessante, que em muitos wikipediaenelaula.educ.ar/
sentidos supera as enciclopédias tradicionais, porque tem uma cultura-participativa.html.
curadoria coletiva, porque tem muito mais vocábulos, porque Acessado em: Jan. 2020.
dá lugar a um monte de saberes, de termos, e referências do
mundo contemporâneo, da cultura popular, que enriquece
muito e para mim é o mais interessante. E o que talvez seja
o menos usado, que é essa possibilidade de ver a história
da definição. Na enciclopédia impressa tínhamos somente
a definição acordada, realizada por um especialista. Agora
podemos continuar, se temos tempo e o olhar treinado para
isso: quais são os debates entre a comunidade de especialistas
e de amadores a respeito de como se definem certas coisas?
Assim, esta história do termo, da edição, epistemologicamente
e politicamente, é muito rica. Mas aí penso que o trabalho
que deveríamos fazer nas escolas é o de educar para ver isso,
porque isso não se vê. Digamos, hoje usa-se muito a Wikipédia
como a definição mais rápida, a primeira que encontramos, e aí
vamos de novo numa definição única de significados, quando
a vantagem da Wikipédia é que ela mostra que não há uma
definição unívoca; que muitas vezes não há um consenso
sobre os termos, e que há quem interprete em um sentido, há
quem interprete em outros. Acho que é uma boa ferramenta
pedagógica se soubermos como usar, se aprendermos a olhá-

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 118-143, JUL/DEZ 2018 133


la em tudo que se visibiliza na produção do significado, de
significados, se podemos colocar discussões sobre quem tem
a autoridade para definir os significados, as palavras, os
termos; e também entender que é um processo que não acaba
nunca, porque sempre estamos revisando e “consensuando”
outras definições, ampliando-as, reduzindo-as. Nesse sentido
ela é uma ferramenta interessante e expressa um momento
diferente do conhecimento. Um livro muito interessante de
Peter Burke que se chama Uma história social do conhecimento
da enciclopédia à Wikipédia é um pouco sobre esse trajeto. Das
formas de guardar, de registrar, de circular dos conhecimentos,
claramente é outro momento de produção do conhecimento,
que coloca as perguntas sobre quem faz os conhecimentos,
como faz, para que faz. Mas, de novo, acho que o uso menos
rico de todos é ir para buscar a definição, quando podemos dar
muitos outros usos, o que não fazemos.

O que resulta de mais admirável no pensamento de Inés


Dussel é seu gesto livre de preconceitos e medos para abordar temas
que habitualmente crescem à sombra de certa crítica pedagógica.
Uma sorte de ideias preconcebidas que evita se aprofundar em
temas complexos, desvalorizando-os a priori. Wikipedia poderia
ser um exemplo deles. Alguns autores caracterizam a plataforma
como “cultura participativa”, pelo fato dos consumidores serem
convocados a participar de maneira ativa na produção e difusão
de novos conteúdos (JENKINKS, 2008; p. 277). No verbete, a
autora resgata essa forma de inteligência coletiva, em que toda
contribuição tem um valor, para além da autoria unívoca. Desse
modo surge uma oportunidade inédita até esse momento acerca da
possibilidade de combinação desses conhecimentos mais eruditos
com as definições mais populares, amadoras e contemporâneas.
Wikipédia resulta de uma crítica radical ao conhecimento produzido
exclusivamente por especialistas. Trata-se de uma plataforma que
aposta num processo permanente de construção dos processos de
significação e incorpora definições plurais, que desconhecem a
autoria individual e a propriedade privada, mas que se considera
dentro das licenças compartilhadas de propriedade da informação
(Creative Commons). O gesto democrático da concepção também
contrasta com o perigo que resulta da possibilidade da edição
permanente, que pode levar as pessoas a alterar maliciosamente os
conteúdos, vandalizá-los ou apagá-los simplesmente. Mas resulta
também de algo muito interessante, que é a possibilidade de
acompanhar o processo de produção desses conhecimentos, suas
edições, revisões, redefinições e conflitos.

134 Cinema e mídia no Abecedário Janela da Memória / Inés Dussel e Adriana Fresquet
Em relação à referência a Burke (2012), esse segundo
exemplar sobre a história do conhecimento aborda questões tais
como a explosão do conhecimento e informação como efeitos
da internet. Por um lado, a obra destaca os diversos modos de
produção e circulação do conhecimento, a possibilidade de se
pensar sobre isso de maneira mais plural, material e historicamente.
Em outro ponto, valoriza-se o acesso cada vez mais democrático
que as mídias digitais permitem, como o progressivo aumento de
livros e artigos disponíveis na rede, com a característica erudição
e ampliação da visão do assunto, retomando a relação entre
conhecimento e poder.

YouTube

YouTube é uma das plataformas mais usadas da atualidade,


talvez a mais usada. Eu fico muito surpresa quando vejo
que meus alunos de mestrado, de doutorado estudam com
o YouTube. Não o pensava dessa forma... estudam com
conferências, estudam... às vezes aproveitam quando estão
nos transportes públicos para ver vídeos que servem para as
aulas. E, por outro lado, temos um uso muito mais popular,
que é outro, e aí está o fenômeno dos YouTubers, que acho
que é um fenômeno interessante, problemático, e é o mais
popular. Mas antes disso, eu diria que o YouTube nasce
com a ideia, como a maioria das primeiras plataformas em
internet, de democratizar a cultura. De que todos possam
compartilhar suas produções, de que todos sejam artistas.
Um ideal do século XX: todos podemos ser artistas, todos
podemos ser intelectuais, podemos criar a cultura. A
cultura é isso que todos criamos. E essa promessa inicial
é logo em seguida cooptada pelas grandes corporações. O
YouTube dura muito pouco como plataforma independente.
Rapidamente é comprada pelo Google e se começa um outro
tipo de negociação. No começo, as grandes companhias,
por exemplo a indústria do cinema, perseguiam muito o
YouTube, porque eles postavam coisas que contradiziam
seus direitos comerciais. Depois perceberam que era um
lugar de propaganda fantástico e deixaram de persegui-lo;
continuam controlando para que não sejam postados filmes
completos etc., mas o identificaram como ferramenta de
propaganda e, efetivamente, opera desse modo. Isso fica
muito claro com os vídeos musicais. Então, temos que vê-
lo como uma plataforma que nasce com certas promessas,
evolui em outros sentidos, implica uma participação de
vídeos amadores muito forte. Agora podemos ver quais
vídeos são os mais vistos e fazer algumas leituras. De fato,
existem pesquisadores que trabalham com isso; como vai
mudando, quais são os mais vistos e isso é uma porta de

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 118-143, JUL/DEZ 2018 135


entrada privilegiada à cultura contemporânea. Nos últimos
tempos, os vídeos que são mais vistos são os dos youtubers,
que têm muito peso, principalmente entre o público juvenil,
infantil. Entre os youtubers temos de tudo. Em geral, são
os influencers, esses novos personagens midiáticos que
democratizaram esta participação. Muitas vezes são jovens
que provêm de setores sociais e com capital cultural muito
diferentes. Mas, por outro lado, o formato estético, político e
cultural é muito similar. E é assim: uma série de comentários
irônicos, paródicos; uma apresentação do “eu” muito
cuidada, como personagens, e muitas vezes essa construção
de personagens engole as pessoas, traz problemas psíquicos
muito fortes nestas personalidades. Mas não me interessa
dar atenção a esse fenômeno, e sim ao que estão produzindo
esses youtubers, como um lugar de comentário sobre a vida
contemporânea. Aconteceu em algumas eleições recentes,
por exemplo na Alemanha, um dos youtubers mais populares,
um moço jovem, fez um vídeo de uma hora, algo inabitual
porque são todos muito curtos, contra a onda da extrema
direita, e isso teve suas repercussões. Ou seja, nem tudo é
ruim, eu diria. Há também esse fenômeno no Brasil. Mas,
por outro lado, o que mais se vê é isso de venda de coisas,
construir personagens, piadistas engraçados, porém muito
banais e muito cínicos em sua relação com o mundo. Então,
a partir daí, se pode discutir, interrogar e problematizar,
desde os espaços educativos, o que é que o YouTube está
produzindo como ideais formativos, linguagens privilegiadas;
como estéticas, como experiências. E a verdade é que os
que mais viralizam são os menos interessantes. Então aí
o nosso lugar como educador e a nossa responsabilidade
seria ir ensinando, no sentido de apontar: “olha, isso pode
ser interessante... isso também... isso vale a pena que
você veja...”. Acho que aí temos muito para fazer que não
fazemos. O que me preocupa é que, às vezes, vejo os vídeos
que os educadores pedem aos jovens no ensino médio que
façam para o ensino da história e das ciências, e percebo
que seguem a mesma linha que os youtubers. Penso que
temos que problematizá-la, que discuti-la. E não por sermos
velhos rabugentos, mas porque, se o mundo é somente esse
dos youtubers, se perde algo em qualidade da experiência
do mundo, que é importante sustentar. Acho que tem que
haver sim na escola um critério de qualidade, podemos
discutir muito “o que é qualidade?” mas eu diria que tem a
ver com uma riqueza semântica. Com um cuidado em termos
éticos, políticos, culturais, que tem a ver com as perguntas:
“o que você está dizendo? Você tem cuidado com as palavras
dos outros? Você está pensando sobre o mundo, se abrindo
para o mundo? Está se perguntando algo novo ou não? Está
simplesmente repetindo muito automaticamente algo que
não é interessante e que é, inclusive, muito problemático?”.
Então eu acho que o YouTube é um espaço educativo muito
forte que temos que olhar. Existem muito poucas teses

136 Cinema e mídia no Abecedário Janela da Memória / Inés Dussel e Adriana Fresquet
sobre isso, lamentavelmente. Algumas estão se iniciando na
Colômbia, algumas aqui (México), com certeza na Europa,
mas como experiência educativa não há muito, e acho que
seria muito bom que se fizessem mais.

Embora seja frequente identificar o perigo e a necessidade de


controle de crianças e jovens em um uso pedagógico do YouTube,
hoje não podemos negar sua função como um dos principais
espaços de compartilhamento da produção audiovisual amadora
e profissional. É na plataforma que encontramos verdadeiras jóias
da história do cinema mundial, junto aos vídeos que realizaram
nossos estudantes na semana passada. Dussel e Trujillo Reyes
(2018) identificam que cada nova tecnologia foi acompanhada
de promessas e garantias de mudança educacional (processos de
aprendizado personalizados, aumento da motivação docente e
discente e ainda métodos mais relevantes e atualizados), tendo
inclusive alimentado a imaginação e as utopias pedagógicas de
projetar ambientes que não exigem esforço ou estudo, ajustáveis
às necessidades de cada aluno. Um exemplo desse tipo seria
a “profecia educacional” de David W. Griffith, diretor de O
nascimento de uma nação (1915), na qual se anunciava que o
cinema mudaria completamente a maneira de acessar a cultura.

Imagine uma biblioteca em um futuro próximo ... Haverá


longas filas de caixas ou pilares, devidamente classificados e
indexados. Em cada caixa, um botão para pressionar e, antes
de cada caixa, um assento. Suponha que você queira “ler” um
determinado episódio da vida de Napoleão. Em vez de ter
que consultar todas as autoridades, se perder em uma pilha
de livros e acabar confuso sem ter uma ideia clara do que
aconteceu, ele poderá simplesmente sentar-se na frente de uma
janela adequada às suas necessidades em uma sala preparada
cientificamente, pressionar o botão e ver o que realmente
aconteceu ... Nenhuma opinião será expressa. Simplesmente
estará presente durante o acontecimento (GRIFFITH, 1915
apud FRIEDBERG, 2005, pp 242-243. Grifos das autoras).

Impossível negar as semelhanças entre a tela, ou caixa


com botões de Griffith, e o YouTube. Ambas compartilham
a expectativa de que as tecnologias iriam acabar com as
mediações: “a simultaneidade permitirá a viagem no tempo, não
mais com uma ‘máquina do tempo’, mas retornando ao passado
contemporâneo com o presente do espectador para que eu possa

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 118-143, JUL/DEZ 2018 137


finalmente ‘estar lá’, sem depender das mediações dos livros,
das opiniões de outras pessoas ou das autoridades existentes”.
(DUSSEL; TRUJILLO REYES, 2018, p. 144)
Para as colegas, diante das dicotomias entre leituras
celebrativas e pessimistas, que vislumbram o fim da cultura
letrada e do protagonismo docente, é preciso destacar as
ambiguidades e contradições dessas transformações tecnológicas,
e buscar entender melhor os efeitos produzidos pela mídia
digital nas pedagogias escolares, assumindo uma perspectiva
teórica próxima aos estudos da mídia digital e da Teoria do
Ator-Rede (TAR). Segundo elas, nessas redes, a conectividade
e a infraestrutura de artefatos é um fator a ser considerado em
pé de igualdade com os atores humanos. Desse modo, o que as
tecnologias digitais estão oferecendo às escolas são possibilidades
em conflito marcadas por tensões. Essas tensões têm a ver
com as adaptações realizadas em diferentes contextos, com os
discursos pedagógicos disponíveis, com a história e o presente das
instituições e políticas educacionais, e também com as permissões
técnicas e formas culturais das mídias digitais, que são mais
heterogêneas e complexas do que geralmente se supõe. Outro
aspecto interessante tem a ver com os conceitos de conexão e
conectividade automatizada:

As redes sociais não envolvem apenas conexão, mas,


sobretudo, conectividade automatizada, canalizada por
grandes empresas e conglomerados de mídia digital como
Facebook, Google, Twitter e YouTube. Nas mídias sociais,
a conectividade é organizada em torno de botões como
“Curtir”. Essas invenções têm o talento de sintetizar, em um
ícone simples, algoritmos complexos que quantificam uma
imensa quantidade de dados sobre gostos, preferências e
afetos. Se os dados soltos não revelam ou valem muito, os
dados maciços e agregados adquirem um valor incomum;
portanto, essas empresas são hoje mais poderosas e ricas
do que muitos estados-nação. (DUSSEL; TRUJILLO REYES,
2018, p. 150)

Para finalizar, um último tópico da reflexão das professoras, que


faz parte de um estudo mais amplo sobre as novas formas de ensinar
e aprender, focado nas possibilidades em conflito das tecnologias
digitais na escola, aponta para a capacidade dessas tecnologias em
modificar as coordenadas tempo-espaço. Segundo as autoras, a
mídia “viaja” no tempo, conserva registros de diferentes épocas e,

138 Cinema e mídia no Abecedário Janela da Memória / Inés Dussel e Adriana Fresquet
ao mesmo tempo, muda algo nessa relação com a temporalidade.
Na fotografia e no cinema, por exemplo, a experiência humana
inclui registros que “trazem à vida” eventos do passado. Também a
modificação do espaço está dada porque, enquanto são criados novos
artefatos que mantêm esses registros e expandem as possibilidades
de coexistência simultânea com elementos distantes, eles se
aproximam, sejam impressos, na tela ou como realidade em 3D.
Sem dúvidas, a dimensão e versatilidade do YouTube fazem dessa
plataforma um espaço rico, complexo, que precisa cada vez mais de
engajamento dos projetos de pesquisa, para poder investigar com o
aprofundamento e a seriedade proporcional ao impacto, tanto para o
cinema como para a educação, inclusive para o cotidiano das nossas
vidas. (DUSSEL; TRUJILLO REYES, 2018).

Considerações Finais

Em 1908, Franz Kafka escrevia numa carta: “o único que


posso dizer com certeza é que ainda teremos que ir juntos durante
muito tempo ao cinema […] até compreender o que significará
esse assunto não apenas para nós, mas também para o mundo”
(CAMPORESI 2014, p. 17). Acreditamos que essa pergunta ainda
habita todas e cada uma das respostas que já foram dadas a ela.
Se concebermos o cinema como o resultado da combinação entre
filmes, autores, produtores, atores, espectadores e espaços de
exibição, é possível identificarmos alguma forma de continuidade
entre as exibições do cinema sem som nos grandes teatros e
feiras de novidades dos primórdios e os filmes que assistimos
hoje nas grandes telas de projeção digital ou nas pequenas
telas dos dispositivos móveis de comunicação. Ao mesmo
tempo, essa continuidade revela um percurso de permanentes
mudanças nos modos de ver e produzir imagens em movimento.
O cinema oferece, como afirma Camporesi (2014), uma memória
audiovisual enquanto grande repositório global de invenções
visuais, relatos e emoções desde seu nascimento até o presente.
Este diálogo de amizade estabelecido a partir dos verbetes
escolhidos no abecedário Janela da Memória pretendeu, retomando
Deleuze, nos aproximar de alguns saberes, nos deslocando do
lugar de onde partimos inicialmente. Se de fato, como afirma
Paul Valéry, com a invenção da fotografia foi inaugurada uma
nova relação entre palavra, escrita, história e imagem, que, tal

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 118-143, JUL/DEZ 2018 139


como na leitura, resulta da combinação de caracteres alfabéticos
da escrita, permitindo inventar novos significados, novos alfabetos
de letras, sempre renovados, e assim examinar o silêncio do
tempo guardado pela imagem, este abecedário audiovisual, que
retornou em texto, nos devolve novas imagens.
A relação do tempo, perpetuado nas imagens e seu
deslocamento ao presente do cinema, atravessa também todos os
outros verbetes, nos quais identificamos processos de aceleração
e condicionamentos dos modos de ver, ser e estar com outros;
de nos comunicar, aprender e ensinar em espaços presenciais
ou virtuais. Se a função do poeta e do fotógrafo coincidem
ao eternizar o momento que passa, conforme o poeta Mário
Quintana, as imagens em movimento prolongam esses instantes
com uma intensidade particular.
Ao percorrer os conceitos do ABC, sentimos como o cinema, o
audiovisual de um modo geral, e a educação têm sido atravessados por
essas mudanças com uma força e velocidade inimagináveis. Isto coloca
a urgência – e a necessidade – de desaprender algo das visualidades
que carregamos, desacelerando os processos, focando a atenção
e suspendendo um certo modo default de reagir aos dispositivos.
Personalizar tempos de resposta e protocolos de comunicação em
tempos de hiperconectividade e informação infindável parece se
tornar cada vez mais uma questão da educação escolar, nem sempre
claramente assumida. A mudança na organização da sala de aula,
da ideia de cultura e do conhecimento, as formas cada vez mais
plurais e anônimas de produzir e compartilhar, constituem desafios
de pesquisa que as universidades precisam refletir conjuntamente
com os atores da Educação Básica.
Temos pretendido fugir de expressões celebratórias,
desqualificadoras ou que, prematuramente, postulem a
irrelevância dos dispositivos, repositórios, sites e plataformas.
Pretendemos que estas reflexões abram caminhos para continuar
a pensar os processos de ensino-aprendizagem inclusivos e
responsáveis, atentos à justiça social e rigorosos academicamente.
Os regimes visuais vigentes resultam da reorganização de saberes
e poderes que modificam as nossas capacidades de aprender e
ensinar. De modo privilegiado, a visão e os registros do que vemos
integram práticas sociais e instituições que, historicamente,
acabam produzindo certos modos de subjetivação e novas
economias da atenção.

140 Cinema e mídia no Abecedário Janela da Memória / Inés Dussel e Adriana Fresquet
Esses desafios nos levam a propor, com ênfase, que as
imagens, e as imagens em movimento, sejam cada vez mais
constitutivas dos processos de produção de conhecimento nos
espaços educativos em todos os níveis de ensino. Em consequência,
gostaríamos de fazer um chamado a pesquisadores, educadores,
estudantes, responsáveis pelas políticas públicas educativas acerca
da relevância de incorporar saberes e práticas dessas linguagens
específicas, com todas suas possibilidades expressivas, como parte
de uma cultura pública, comum, numa sociedade democrática,
que precisa de um novo alfabeto pedagógico onde as imagens e
as mídias têm que estar presentes.

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FORA DE
E CAMPO
Corpos-ruínas em Conterrâneos
velhos de guerra

Tatiana Hora A lves de Lima


Doutora em Comunicação Social pela UFMG.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 146-171, JUL/DEZ 2018 147


Resumo: O artigo investiga o desvio da história oficial e da arquitetura elaborado
por meio da presença de corpos-ruínas no documentário Conterrâneos velhos de
guerra (1991), de Vladimir Carvalho. Os cadáveres sob os escombros de Brasília,
os candangos mutilados, errantes, caminhando por entre lixo e excrementos são
os expelidos do corpo da cidade. Através da mise-en-scène e da montagem, o filme
desvia o tempo do progresso e o corpo unificado da cidade meta-síntese da nação
para atentar à permanência da catástrofe e apontar para utopias outras.
Palavras-chave: Corpo-ruína; Desvio; Tempo histórico.
Abstract: The article investigates the deviation from the official history and
architecture elaborated through the presence of bodies-ruins in the documentary
Conterrâneos velhos de guerra (1991), by Vladimir Carvalho. The corpses under the
rubble of Brasilia, the mutilated, wandering candangos, walking through rubbish
and excrement are expelled from the body of the city. Through mise-en-scène and
editing, the film diverts time from progress and the unified body of the nation’s meta-
synthesis city to pay attention to the permanence of catastrophe and point to other
utopias.
Keywords: Bodies-ruins; Deviation; Historic time.

148 Corpos-ruínas em Conterrâneos velhos de guerra / Tatiana Hora Alves de Lima


Introdução

Ao longo de 20 anos foram capturadas imagens para


Conterrâneos velhos de guerra (1991), de Vladimir Carvalho: as
filmagens foram iniciadas em 1968 e a montagem realizada a partir
de 1988. Conterrâneos é um documentário feito “no decorrer da
história”: seu material, vasto e heterogêneo, foi posteriormente
reunido numa montagem fragmentária e numa narrativa épica,
que organizam e complexificam o tempo histórico. O massacre
dos operários da construtora Pacheco Fernandes sob as mãos da
Guarda Especial de Brasília (GEB), famosa pela truculência dos
seus soldados, após terem protestado contra o oferecimento de
comida estragada, é o acontecimento a partir do qual o filme tece
as relações entre a barbárie vivida pelos trabalhadores explorados
durante a construção de Brasília no governo de Juscelino
Kubitschek e a repressão aos movimentos operários praticada
pela ditadura militar (o mote do filme sendo semelhante ao de
O encouraçado Potemkin (1925), de Sergei Eisenstein, que narra
a repressão contra a rebelião dos marinheiros em razão da carne
podre, e a emergência de um sujeito coletivo formado pelos
operários).
Conterrâneos foi lançado poucos anos após a
redemocratização do país, processo no qual os movimentos de
trabalhadores tiveram participação essencial – caso emblemático
das greves do ABC paulista, que motivaram a realização de vários
documentários militantes, entre eles Greve (1979), de João Batista
de Andrade, e Linha de montagem (1982), de Renato Tapajós. O
filme de Vladimir Carvalho não perde de vista os problemas do
presente, notadamente os conflitos na recente democracia (é o
caso do Badernaço) e as remoções violentas de moradores das
invasões situadas em áreas próximas ao Plano Piloto, estimuladas
e posteriormente reprimidas, de acordo com os interesses da
especulação imobiliária.
Nas palavras de Vladimir Carvalho, Conterrâneos velhos de
guerra é a continuação do seu filme “mais nordestino”, O país
de São Saruê (1971). Se no primeiro filme o cineasta mostrava
a epopeia da luta pela sobrevivência dos pobres no sertão, em
Conterrâneos “foi a vez de acompanhar o nordestino fora de seu
habitat, longe de seu meio natural e cultural, fugindo da pobreza
e da miséria, tentando desesperadamente se fixar numa Terra

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 146-171, JUL/DEZ 2018 149


Prometida dos poderosos” (CARVALHO, 1997, p. 142). São Saruê
é um país imaginário, criado por um poeta popular, onde reina a
abundância. Já o documentário realiza a ligação entre os espaços
do Nordeste, de onde vieram o diretor paraibano e a maior parte
daqueles que trabalharam na construção da capital (a quem o
cineasta chama de “conterrâneos”), e a periferia de Brasília, para
onde foram expelidos os que a ergueram. Esta ligação é arquitetada
pela presença dos corpos em cena, pela montagem e pela trilha
musical composta por aboio, repente e ritmos improvisados nas
ruas pelos excluídos, aqueles que “sobraram”, que restaram na
cidade que abriga os poderes.
As ruínas são muito presentes em Conterrâneos velhos de
guerra: tal como abordados no filme, os candangos são verdadeiros
“corpos-ruínas”. Corpos que desviam o tempo histórico linear,
voltado para o futuro e fundamentado no progresso. Corpos que
cristalizam, assim, a barbárie sofrida pelos operários durante
a construção de Brasília, bem como em suas condições de vida
atuais, dando a ver a catástrofe permanente vivida pelos pobres
que ergueram a cidade e dela foram expelidos.
A ruína é uma alegoria que promove a ruptura com o tempo
histórico ancorado na noção de progresso, descrita na tese de
Walter Benjamin (1987) criada a partir do quadro Angelus Novus
(1920), de Paul Klee. A imagem do historiador, em Benjamin,
sendo semelhante à do anjo cujo olhar fixa o passado e vê um
amontoado de ruínas, uma catástrofe única em vez de uma cadeia
de acontecimentos. Uma tempestade, o progresso, tenta arrastá-
lo para o futuro, mas ele lhe vira as costas e se detém diante das
ruínas sob os seus pés. Essa recusa em ver a história como uma
marcha para o progresso marca Conterrâneos velhos de guerra.
Como afirma Michael Löwy (2005), na nona das teses
benjaminianas de Sobre o conceito de história, há uma relação
entre a tempestade que sopra do Paraíso e a expulsão do Jardim
do Éden. Segundo Löwy, vários textos de Benjamin sugerem uma
correspondência entre a modernidade e a condenação ao inferno,
onde o passado e a catástrofe se repetem infinitamente. Löwy
afirma que Benjamin se inspira em Hegel, para quem a história
seria um imenso campo de ruínas onde ressoam as lamentações
anônimas dos indivíduos. Mas, diferente de Hegel, que lamenta
pela decadência dos impérios e as cidades destruídas pelas

150 Corpos-ruínas em Conterrâneos velhos de guerra / Tatiana Hora Alves de Lima


guerras, Benjamin se interessa pelos massacres da história e pelo
ponto de vista dos vencidos. Assim, o “paraíso perdido” seria, a
um só tempo, a origem, mas também a projeção utópica para
o futuro. Em Conterrâneos velhos de guerra, os condenados ao
inferno na periferia da cidade, expulsos do “paraíso” do Plano
Piloto, ecoam as vozes silenciadas daqueles que tombaram na
construção da capital e tiveram seus corpos lançados em valas na
calada da noite. Brasília surge como o “paraíso perdido”, numa
dialética entre passado e presente, entre construção e destruição,
entre o fracasso da utopia e utopias outras. Na esteira da história
benjaminiana, Conterrâneos apresenta uma história construída a
partir da memória dos sobreviventes, que “(...) testemunha tanto
os sonhos não realizados e as promessas não-cumpridas, como
também as insatisfações do presente” (SELIGMANN-SILVA, 2003,
p. 389). A ruína explode o continuum da história como narrativa
das conquistas dos líderes, sendo uma “síntese paradigmática entre
tempo e espaço; a ruína é uma imagem-tempo” (SELIGMANN-
SILVA, 2003, p. 391).
Os corpos-ruínas surgem em Conterrâneos para nos lembrar
que há cadáveres sob o concreto dos edifícios de Brasília; que
há miseráveis nos entornos da capital moderna. Esses corpos
realizam o desvio ao nos fazer atentar para a barbárie sob os
monumentos, ao elaborar relações entre os corpos e o espaço que
divergem daquelas apresentadas nos cinejornais de propaganda
da Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), mas
também ao tecer uma história que recupera a memória dos
vencidos e abre-se para outra utopia. Vejamos adiante como o
desvio é produzido no filme.

O documentário épico e os candangos

Conterrâneos velhos de guerra inicia-se com letreiros


apresentando trechos de um célebre poema de Bertolt Brecht,
Perguntas a um operário que lê: “Quem construiu a Tebas de sete
portas?/ Nos livros estão os nomes dos reis”. Em seguida, o prólogo
do filme apresenta a música Conterrâneos, cantada pelo compositor
Zé Ramalho, sobre as imagens da mata sendo incendiada na noite,
trazendo o nome do filme escrito tal como “letra feita à mão”. A voz
entoa versos como “e pesam nos ombros largos cidade e fadiga”.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 146-171, JUL/DEZ 2018 151


As labaredas avançando pela mata na noite dão lugar ao
fogo crepitando sobre as cinzas no dia que nasce. São imagens
que aludem ao processo de construção de Brasília, que se deu a
partir do aniquilamento de vastas porções do cerrado para que
uma capital federal fosse erguida em pleno Planalto Central,
numa dialética entre construção e destruição – nota-se a
atenção às ruínas desde os primeiros planos do documentário.
Um pássaro sobrevoa os restos da mata, pássaro que migra, tal
como os candangos. Eis que surge a silhueta do ator Emmanuel
Cavalcanti, que caminha pelo cerrado sob a aurora, avançando na
direção da câmera, enquanto recita os versos de Conterrâneos, “eu
venho vindo de longe...”. A montagem vincula a sua aparição aos
depoimentos fragmentários de candangos que iniciam o filme, a
exemplo do homem que veio para Brasília com a esperança de
“mudar de vida”, e agora mora com a família embaixo da ponte.
Assim, o ator aparece em cena como o Candango, poeta que
narra, de forma lírica, as desventuras vividas por tantos pioneiros,
corpo no lugar de tantos corpos excluídos da cidade.
A fala empostada e o olhar dirigido para a câmera,
discursando diretamente para o espectador, compõem uma
“teatralização da história” que promove rupturas no decorrer da
narrativa documental. O diálogo com Brecht não se dá apenas
na citação do poema no início do filme, mas está impregnado
na própria forma do documentário: a encenação do Candango
produz efeitos de distanciamento.
Brecht (1978) explica que, enquanto no teatro dramático o
espectador seria inserido nas ações, a essência do humano sendo
universal e imutável, e uma cena surgindo em função da outra,
no teatro épico o espectador é transformado em testemunha,
colocado diante do argumento, o humano sendo objeto de análise
e passível de transformação histórica. Como afirma Cláudia
Mesquita (2011), diferente do drama, o modo épico pressupõe
a exterioridade de quem narra em relação ao que é narrado: “eis
o pressuposto, o trunfo e o limite deste modo de relato: a sua
exterioridade, tornada possivelmente distância crítica, mesmo
quanto está clara a proposta de falar ‘em nome dos prejudicados’,
como escreveu Brecht” (2011, p. 64).
Ao som da música do boiadeiro, o Candango perambula por
entre os barracos de uma invasão, seguindo-se imagens em preto e
branco de um homem descendo a escada rolante da Rodoviária de

152 Corpos-ruínas em Conterrâneos velhos de guerra / Tatiana Hora Alves de Lima


Brasília – a montagem traça a correspondência entre a migração do
Nordeste para Brasília e a retirada dos moradores das imediações
do Plano Piloto para a periferia, num plano bastante semelhante
a outro de Brasília, contradições de uma cidade nova (1967), de
Joaquim Pedro de Andrade (os dois filmes contribuindo para a
produção de uma “iconografia do êxodo” pelo cinema brasileiro).
O boiadeiro, de nome Inácio, fala, no meio de um capinzal, que
“hoje dentro de Brasília, hoje eu tô tranquilo” – o quadro abre-se
e mostra o personagem próximo a um cão vira lata, rodeado de
sucata. O que parecia ser um cenário campestre é, na verdade, um
quadro da miséria urbana. Vinculado a personagens como esse,
o Candango é multifacetado e atravessa os tempos e os espaços:
ele não encarna apenas uma espécie de “fantasma” dos pioneiros
mortos na construção da cidade, como também interpreta aqueles
que moram nas invasões situadas na periferia do Plano Piloto,
produzindo e reforçando relações entre o passado e o presente,
entre o Nordeste e as cidades satélites.
Outro ator, B. de Paiva, ao som da música Cavalgada das
Valquírias (1851), de Richard Wagner, recita o poema A grade, de
Carl Sandburg, num cais às margens do Lago Paranoá, olhando
para a câmera e apontando para as mansões situadas do outro
lado da margem. Um zoom destaca a presença de um soldado ao
lado de uma guarita de segurança, e um close enfatiza uma placa
onde está escrito PARE, em alusão à hostilidade e ao fechamento
dos espaços onde os ricos vivem em casarões. Tal como no
método do distanciamento brechtiano, “é pelos olhos do ator que
o espectador vê, pelos olhos de alguém que observa; deste modo
se desenvolve no público uma atitude de observação, expectante”
(BRECHT, 1978, p. 93). Não se trata de colocar o espectador na
pele do personagem ficcional interpretado por B. de Paiva: o
ator o estimula a observar e refletir sobre uma situação em sua
complexidade social.
Já o ator Othon Bastos não chega a aparecer em cena,
apresentando por meio da voz over uma narração grandiloquente,
repleta de exageros expressivos. Ele narra a história de Sebastião
Ferreira da Silva, que prefere ser chamado de Tião Provisório,
homem que “com rudes ferramentas desmata sozinho trecho
devoluto do cerrado, projetando em sua fantasia uma nova Cidade-
Estado”. Tião Provisório, como afirma Stella Senra (1997), expressa
precisamente a condição daqueles que vagam pela terra, sem lar.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 146-171, JUL/DEZ 2018 153


Não por acaso, a sequência sobre Sebastião Ferreira é
apresentada pela montagem logo após as imagens de arquivo que
mostram a inauguração da nova capital: imagens como as de JK e
sua esposa, Sarah Kubitschek, cercados pela entusiasmada multidão
celebrando em volta do Congresso Nacional, ao som da música
Peixe vivo, de Carlos Mendes e Neurisvan Rocha, a canção favorita
de Juscelino. Em seguida, Lúcio Costa define a construção de
Brasília como uma “insensatez”, devido à grandiosidade e rapidez
da execução do projeto. É como se Tião Provisório encarnasse a
insensatez da utopia de Brasília e a sua loucura expressasse em
cena a ilusão que inebriou as massas que saudaram a construção
da capital como a concretização do país do futuro.
Sebastião Ferreira afirma que resolveu construir o aeroporto a
pedido “do povo local e de alguns também do sul de Goiás”, ao que
o cineasta pergunta: “por que o povo escolheu o senhor?”, acedendo
ao seu delírio numa abordagem sensacionalista com a presença da
equipe de filmagem em cena. Tião Provisório afirma que chegou a
ser da tesouraria do Ministério da Aeronáutica, e que ao retornar ao
território havia encontrado a revolta do estado de “Goianorte”.

Figura 1: Tião Provisório, a cruz e o aeroporto imaginário em Conterrâneos velhos de guerra (1991).

Nesta cena (Figura 1) são marcantes a presença da cruz


e a referência ao aeroporto imaginário que Sebastião Ferreira
afirma estar construindo, o que remete a diversos cinejornais
de propaganda realizados na época da construção de Brasília
e encomendados pela Novacap. Nos cinejornais da Novacap
era frequente a aparição da cruz (especialmente a da Praça
do Cruzeiro) em cinejornais como O bandeirante (1957), de
Jean Mazon, Brasília (1957), de Sálvio Silva, Brasília n°10
(1958) e Brasília n°17 (1960), ambos de José Silva (Figura 2),
em alusões ao mito fundador que reivindicava a refundação
de um novo país através da construção da capital no Planalto

154 Corpos-ruínas em Conterrâneos velhos de guerra / Tatiana Hora Alves de Lima


Central. O Aeroporto de Brasília também foi bastante filmado
em cinejornais como Brasília, profecia de Dom Bosco (1957), de
Romeu Paschoaline, (Figura 3) As primeiras imagens de Brasília
(1957), de Jean Manzon, Brasília n° 4 (1957), de Sálvio Silva, em
que é apresentado como a concretização do início da aventura de
conquista do centro do território brasileiro, assim como o milagre
da técnica que possibilitaria o domínio do tempo e do espaço. Em
Conterrâneos velhos de guerra, todo esse imaginário é apontado
como quimera e farsa através da relação com a loucura de “Tião
Provisório”, personagem que sintetiza as falácias do discurso
oficial propagadas entre os candangos, bem como o sofrimento
real que lhes foi imposto.

Figura 2: A presença da cruz em Brasília n°10 (1958) e Brasília n°17 (1960).

Figura 3: Aeroporto de Brasília em Brasília, profecia de Dom Bosco (1957).

Vemos uma mulher grávida, crianças e um cachorro


percorrendo uma paisagem desértica, quase arrastados pela
poeira levantada pelo vento. Logo atrás deles há os edifícios da
Esplanada dos Ministérios. Estas imagens figuram o reverso da

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 146-171, JUL/DEZ 2018 155


“marcha para o oeste”. No cinejornal As primeiras imagens de
Brasília, (Figura 4) os pioneiros avançavam na direção oeste do
quadro encenando a conquista do território. Já em Conterrâneos
velhos de guerra, é apresentado o desterro dos candangos expulsos
do Plano Piloto, em planos que assinalam os contrastes entre as
“vidas secas” e a paisagem moderna que eles vão deixando para
trás, pois nela não há lugar para eles.

Figura 4: A marcha para o oeste em As primeiras imagens de Brasília (1957).

A contestação do discurso oficial encontra nos ritmos e


versos da cultura popular nordestina a sua plena expressão.
Numa sequência, Conterrâneos apresenta a seleção brasileira
sendo recebida pela população e oferecendo a taça do mundo
ao general Médici após a conquista do tricampeonato na Copa
do Mundo de 1970, ao som de Pra frente, Brasil. Em seguida,
Otacílio Batista toca um repente sob o azul do céu, cujos últimos
versos são: “Em cada prédio desse/ há um nordestino no meio”.
De um lado, as imagens da celebração oficial conclamam à
vitória e à unidade do povo na capital “ícone da Nação”, é o
Brasil que vai “pra frente”; de outro, o repente rememora
a derrota e a morte, fazendo um movimento “para trás” ao
lembrar dos mortos que foram esquecidos, demarcando a cesura
na ideia de nação. Tal como afirma Luiz da Câmara Cascudo
acerca do cantador nordestino, ele “é o registro, a memória viva,
o Olám dos etruscos, a voz da multidão silenciosa, a presença
do passado, o vestígio das emoções anteriores, a História
sonora e humilde dos que não têm história. É o testemunho, o
depoimento” (CASCUDO, 1994, p. 94).
Numa outra sequência, Lúcio Costa menciona o Programa
de Metas de JK, que deveria fazer o país avançar “50 anos em 5”,
e cujo ápice seria a construção de Brasília. Em seguida, ao som de
Va, pensiero (1842), de Giuseppe Verdi, o documentário apresenta
uma família que mora sob a Ponte do Bragueto. Ceará conta sua

156 Corpos-ruínas em Conterrâneos velhos de guerra / Tatiana Hora Alves de Lima


história improvisando versos para a câmera, e eis que puxa sua
mulher para dançar: “O Brasil tá construindo/ mais uma grande
cidade/ antigamente foi um sonho/ hoje é uma realidade”. O
personagem Ceará é o cantador nordestino da grande cidade;
sobre ele também se poderia dizer: é “paupérrimo, andrajoso,
semi faminto, errante, ostenta, num diapasão de constante
prestígio, os valores da inteligência inculta e brava, mas senhora
de si, reverenciada e dominadora” (CASCUDO, 1994, p. 95).
Com seus repentes e aboios, em Conterrâneos velhos de guerra,
como defende Eduardo Leone, montador do filme, “essa textura
épica/operística resgataria mais um elemento distanciador, pois
a música não se apresentava como mero acessório ou incidente
na estrutura narrativa; fazia parte do discurso, cristalizando-se
como substância ativa desse discurso documental” (LEONE,
1995, p. 78). Na definição de Brecht (1978), se na ópera
dramática a música intensifica o texto, servindo para ilustrá-lo,
na ópera épica a música interpreta o texto e assume uma posição.
Em Conterrâneos, a música dos cantadores nordestinos adquire
contornos épicos, posto que se inscreve numa crítica da história,
numa reflexão sobre os acontecimentos narrados e numa tomada
de posição em favor dos candangos.

A contrapelo

O documentário Conterrâneos velhos de guerra se coloca


“ao lado” dos candangos, ao narrar a história também através
da relação com os sujeitos filmados, construída nas cenas de
entrevista. Há personagens que encarnam, em cena, a ilusão da
utopia e a farsa da história que o filme almeja combater. Eles
dão corpo a discursos que são contestados por meio de outros
testemunhos, por imagens de arquivo e também pela postura
do cineasta, que os questiona acerca dos acontecimentos que
insistem em idealizar ou esconder.
O historiador e oficial do Exército Ernesto Silva, que foi
diretor da Novacap durante os anos da construção, afirma
que “praticamente todas as pessoas que vieram para Brasília
melhoraram de vida”. Todavia, a montagem paralela une o
testemunho de Ernesto Silva sobre o “Eldorado de possibilidades”
à imagem de um homem segurando muletas e soprando uma flauta

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 146-171, JUL/DEZ 2018 157


numa rua sob a Rodoviária. Assim, o filme trabalha as contradições
entre as falsas promessas (que fizeram afluir os migrantes para
Brasília) e o corpo “à deriva” e mutilado do candango: um corpo
sem lar e sem membro de um desvalido é um corpo sem nenhuma
plenitude possível, avesso àquilo que a identificação com a Nação
e com os valores do progresso demandaria.
Noutra cena, Ernesto Silva afirma que os candangos estavam
muito empenhados nos trabalhos da construção, e exalta o fato
de que trabalhavam cerca de 16 horas por dia (paralelamente,
surgem imagens de dois candangos se arriscando numa obra,
içados por um guindaste). Vladimir Carvalho pergunta se havia
muitos acidentes, e Ernesto Silva responde que “não tinha muito
acidente, absolutamente” – a câmera faz um travelling e um close
na capa do livro escrito por ele, História de Brasília. A articulação
entre o livro, o personagem e o quadro faz com que Ernesto Silva
encarne o uso do esquecimento pela história oficial. Como afirma
Enrique Padrós (2001), há a possibilidade de instrumentalizar o
esquecimento, pois esquecer pode representar uma conveniência
(para os poderosos), no lugar da falta de memória; se a memória
envolve uma relação natural entre esquecer e lembrar, por
outro lado, “ela é perpassada, veladamente, por mediações que
expressam relações de poder que hierarquizam, segundo os
interesses dominantes, aspectos de classe, políticos, culturais,
etc.” (PADRÓS, 2001, p. 81). A nostalgia de Ernesto Silva, que
exalta as jornadas de trabalho exaustivas dos operários, diz
muito sobre uma história que fixa um conformismo diante do
passado; afinal, “num presente marcado por complexidades
tão indecifráveis, a profusão da nostalgia sugere não só uma
sensação de perda de um tempo sem problemas, como expressa,
também, a alienação em relação ao próprio presente” (PADRÓS,
2001, p. 85). Os cinejornais da Novacap, a exemplo de Brasília
(1957), de Sálvio Silva, Brasília, profecia de Dom Bosco (1957),
de Romeu Paschoaline, e As primeiras imagens de Brasília (1957),
de Jean Manzon, elogiavam a rotina de trabalho extenuante
dos candangos, verdadeiros corpos-máquinas empenhados
em trabalhar incansavelmente e aceleradamente para colocar
em prática o Brasil que avançaria “50 anos em 5”. No filme
Conterrâneos velhos de guerra, em vez dos corpos-máquinas
engajados na aceleração do tempo, vemos os corpos explorados
de operários envolvidos em condições subumanas de trabalho.

158 Corpos-ruínas em Conterrâneos velhos de guerra / Tatiana Hora Alves de Lima


A montagem contesta o discurso do ex-diretor da Novacap
ao confrontar a sua declaração com o testemunho de Heraldo
(“Ah! Teve muito acidente!” é a afirmação justaposta à de
Ernesto Silva). Heraldo relata que, certa vez, ele viu um operário
exausto ceder ao peso de uma marreta e cair do décimo primeiro
andar. A montagem paralela mostra imagens de arquivo de um
trabalhador aparando um rebite, criando, junto ao testemunho,
uma cena que sugere uma reencenação. Heraldo, num cenário
com vários instrumentos de trabalho de carpinteiro, pega um
bastão de madeira e simula o movimento que o operário teria
feito com a marreta. Ele conta que, logo após o operário cair, o
corpo sumiu, pois era comum que os cadáveres fossem recolhidos
rapidamente para não assustar os trabalhadores nem atrasar o
andamento das obras. A testemunha narra o evento não apenas
através da sua voz, mas engaja o seu corpo para encenar a morte
do candango. Seu corpo encena uma dessubjetivação, posto
que encarna a morte do outro: como diria Giorgio Agamben
(2008), todo testemunho é testemunho de uma dialética entre
dessubjetivação e subjetivação,58 pois o sujeito fala “no lugar
de”, já que os submersos “não têm ‘história’, nem ‘rosto’, e,
menos ainda, ‘pensamento’” (AGAMBEN, 2008, p. 43).
Já Oscar Niemeyer, em um primeiro momento, relembra os
anos da construção descrevendo-os como um período em que todos
moravam em casas populares, comiam nos mesmos restaurantes
e usavam a mesma indumentária. Após a inauguração da cidade,
segundo o arquiteto, um “muro de discriminação” teria se erguido
entre eles e os operários. Vladimir Carvalho questiona-o sobre o
massacre dos operários da Pacheco Fernandes, ao que Niemeyer
afirma que jamais soube do ocorrido. Em cena, Niemeyer encarna
o fracasso da utopia socialista por trás da construção da cidade
(como notado por James Holston (1993), Brasília foi projetada
por um arquiteto socialista, um urbanista liberal de centro-
esquerda, construída durante um governo desenvolvimentista, e
se estabeleceu sob uma ditadura).
A câmera faz então um zoom sobre o rosto de Niemeyer
e o microfone se aproxima de sua boca. Uma imagem mostra
um jornal com retratos de operários e o título: “Vinte mil
escravos constroem a aventura da Nova Babilônia”. Câmera,
som, montagem, luz, todo o aparato cinematográfico parece
convergir contra o sujeito filmado. Niemeyer pede para que a

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 146-171, JUL/DEZ 2018 159


filmagem seja interrompida. O som é cortado e nós o vemos, mas
não sabemos o que ele diz. Depois é a imagem que desaparece,
e ouvimos o entrevistado perguntar quando isso aconteceu.
Vladimir responde que foi no ano de 1959, e Niemeyer comenta
que “é um regime de merda, matam tanto operário”, então
a imagem reaparece e a câmera novamente dá zoom em seu
rosto. O personagem permanece negando que saiba algo sobre
o massacre, até que a claquete interrompe a cena. As luzes se
acendem, e Niemeyer pede “apaguem esta merda, senão eu não
faço mais”. A entrevista corre o risco de não prosseguir, numa
cena em que a hostilidade entre cineasta e sujeito filmado
implica na possibilidade de ruptura de uma relação.
Como afirma Comolli no ensaio Como filmar o inimigo,
“aqui, a mise-en-scène comanda o sentido. Os corpos filmados
sabem que são filmados e se expõem com ódio ao dispositivo
que os afirma – desvelamento – tais como são” (2008, p. 126).
A cena é marcada pela duração, e os cortes são falsos cortes
feitos para ludibriar o sujeito filmado; toda a ação permanece
sendo filmada, com imagem e sem som, ou com som e sem
imagem. É através da sincronia entre tempo e duração com
a ação filmada que “o cinema pode registrar a passagem de
um estado de enunciação a outro, a ruptura de uma conduta,
o ponto de desequilíbrio de um corpo em torno de uma
denegação” (COMOLLI, 2008, p. 127). A mise-en-scène do
enfrentamento coloca a si mesma em evidência – o aparato
cinematográfico acaba por se enfatizar para realizar a crítica
ao discurso de Niemeyer, a opacidade contra a transparência, o
cineasta contra o sujeito filmado.
A vergonha que Niemeyer manifesta na cena do
enfrentamento revela o sentimento de uma inelutável presença
de si mesmo diante da câmera. Para Agamben (2008), na
esteira de Emmanuel Levinas, a vergonha não expressa o
julgamento de uma imperfeição da qual não compartilhamos,
mas, ao contrário, é fruto de uma impossibilidade de fugir
de si mesmo, e “esse duplo movimento, de subjetivação
e dessubjetivação, é a vergonha” (2008, p. 110). Para se
defender, o arquiteto conta que, quando três operários foram
mortos em Volta Redonda, ele fez um monumento, tendo sido
aconselhado a usar a expressão “mortos”, mas teria insistido na
palavra “assassinados”, recusando-se ao lugar de cúmplice da

160 Corpos-ruínas em Conterrâneos velhos de guerra / Tatiana Hora Alves de Lima


violência e do esquecimento. Há uma posição contraditória do
personagem em cena: “filmado como inimigo”, ele busca, por
outro lado, mostrar-se do mesmo lado que o cineasta, como
alguém que recupera as memórias dos vencidos. Vladimir
Carvalho acaba encampando este embate sob a forma de “fogo
amigo” com Oscar Niemeyer, de modo que o personagem não
assume uma face única, mas encarna contradições.

Monumento de barbárie

A palavra testemunha em grego é martis, que quer dizer


mártir: “a doutrina do martírio nasce, portanto, para justificar o
escândalo de uma morte insensata, de uma carnificina que não
podia deixar de parecer absurda” (AGAMBEN, 2008, p. 37). Na
contramão do esquecimento e do silêncio oficial encarnados nos
personagens de Ernesto Silva, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, os
candangos escavam o espaço das memórias subterrâneas, “que
surgem e se mantêm nos interstícios dos espaços compreendidos
entre o esquecimento e a memória social. Elas expressam as
memórias dos excluídos, dos esquecidos da memória oficial”
(PADRÓS, 2001, p. 85). Trata-se das memórias soterradas sob
os monumentos, que falsificam uma história gloriosa do país
do futuro construído no passado. A memória subterrânea é
clandestina, perpassada oralmente, “(...) ela acentua o caráter
destruidor, uniformizador e opressor da memória coletiva
nacional” (POLLAK, 1989, p. 4). Mais além, como afirma
Padrós (2001), a elaboração da memória social é intrínseca
à constituição de sujeitos coletivos, e no ato de questionar a
história, ao recolher os cacos das memórias subterrâneas,
é possível pensar em outros futuros – não se trata apenas de
lembrar, mas de transformar o presente.
Dona Suzana, única mulher que testemunha em
Conterrâneos velhos de guerra, dá a sua versão da história numa
cena que oscila entre o cotidiano e o passado. A lavadeira
caminha pela terra de chão batido carregando uma bacia cheia
de roupas, tendo dois cabos logo atrás dela. Dona Suzana conta
que estava levando roupas de cabos para lavar naquele dia, “como
estou fazendo agora”, mas foi impedida de chegar ao lugar onde
trabalhava porque foi avisada de que tinham ocorrido muitas
mortes ali, inclusive vários conhecidos morreram no massacre

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 146-171, JUL/DEZ 2018 161


da Pacheco Fernandes. Nessa cena, a catástrofe e a banalidade
cotidiana se imbricam e o testemunho transforma-se numa
reencenação trivial em que não vemos o momento essencial da
narrativa (o massacre), mas uma ação cotidiana realizada por
uma terceira pessoa, uma testemunha que não estava presente
no acontecimento. A aproximação entre o cotidiano e a cena
do massacre promove uma perenidade da catástrofe, ou seja,
a encenação de um passado que insiste em permanecer no
transcorrer do presente de quem narra.
Noutra cena, Vladimir Carvalho segue com Gegê para o
cinema da construtora Rabelo (o primeiro de Brasília, segundo o
operário), lugar onde a testemunha estava na noite do massacre.
Gegê senta ao lado do cineasta num dos degraus da improvisada
plateia, então conta que ouviu os disparos – a câmera assume o
ponto de vista de Gegê, voltado para onde antes estaria a tela,
trazendo o espectador para perto das imagens da memória da
testemunha. Ele conta que chegou a ir até o acampamento e viu
os mortos. Nas cenas em que Gegê retorna ao lugar do massacre
e ao local onde ele se encontrava quando a tragédia ocorreu, o
documentário apresenta o espaço da catástrofe, palco da barbárie
e propulsor das memórias subterrâneas, em contraposição ao
espaço do progresso que caracterizou a construção de Brasília,
cidade erigida com o propósito de materializar um novo tempo,
sendo palco do “país do futuro”.
Numa sequência de Conterrâneos, planos em preto e
branco mostram operários e bombeiros desenterrando corpos
de trabalhadores mortos sob o concreto do Banco Central
em construção (o prédio foi inaugurado em 1981). Vladimir
Carvalho pergunta a Teodoro, candango que aparece em cena
cercado de artefatos relacionados ao bumba-meu-boi, se ele
conhece o Túmulo do Candango Desconhecido, enquanto
surgem imagens de um túmulo rodeado de pessoas de luto, e
Teodoro compara os soldados sem nome mortos na Segunda
Guerra Mundial aos operários de Brasília. Ao perscrutar os
cadáveres dos “candangos desconhecidos” sob o Banco Central,
Conterrâneos velhos de guerra revela os corpos-ruínas, os
corpos vítimas da barbárie produzida pelo progresso, os corpos
daqueles que foram relegados ao esquecimento, lançados na
lata de lixo da história.

162 Corpos-ruínas em Conterrâneos velhos de guerra / Tatiana Hora Alves de Lima


Os expelidos de Brasília

Em Conterrâneos velhos de guerra, há os corpos dos


candangos sob o concreto dos monumentos da barbárie, e
há também os corpos dos expelidos de Brasília: são corpos
que sobram, tratados como restos sem valor, remanescentes
descartáveis. A palavra candango deriva do termo kundungu,
“(...) expressão usada pelos africanos escravizados para se
referir a algo ruim, ordinário, vil, abjeto e consequentemente
para designar os traficantes de navios negreiros e senhores de
escravos” (SAMPAIO, 2016, p. 63). Segundo Juliana Sampaio
(2016), a palavra foi usada durante a construção de Brasília
para se referir aos homens “sem qualidades”, migrantes pobres
que trabalharam para erguer a capital, sendo mais tarde
ressignificada pelo discurso desenvolvimentista para atribuir
sentidos positivos ao engajamento no projeto de Brasília; porém,
após a inauguração, o termo voltou a carregar um significado
negativo, pois o candango era o trabalhador que morava nas
cidades satélites, enquanto o brasiliense era aquele que fazia
parte do Plano Piloto. Conterrâneos encontra na condição de
corpos restantes dos candangos não só a expressão da exclusão
que vivem atualmente na cidade, como também a potência
histórica que carregam.
Um dos expelidos é Elísio, que perdeu quase a totalidade da
visão após ter sido atropelado por um caminhão “da companhia”
(provavelmente a Novacap). A câmera destaca a presença de um
cartaz em sua miserável residência, onde se lê: “Cristo salva”.
Elísio lê com dificuldade a Bíblia, que ele ergue para muito
próximo dos olhos. Certamente, o filme ironiza a mensagem no
cartaz e mostra a vida de Elísio sob a perspectiva da miséria e
da alienação, em vez da salvação. Elísio afirma que é crente em
Jesus e que espera que seja aprovado um decreto que conceda
aposentadoria aos inválidos. O termo inválido aqui parece
indicar não apenas aqueles que são incapazes de desempenhar
determinadas atividades, mas a própria condição dos candangos
“sem valor”. São cadáveres, corpos mutilados, deficientes,
moribundos, explorados e violentados, que aparecem em cena
como o reverso daqueles homens incansáveis que atravessavam
a noite e o dia construindo um novo país.

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Há uma simbiose em Conterrâneos velhos de guerra entre
os corpos dos candangos e os resíduos, até mesmo os dejetos da
cidade. Em uma sequência, mulheres, homens e crianças reviram
o lixo que acabara de ser depositado num descampado por um
caminhão, ao som da música triunfal Cavalgada das Valquírias,
de Richard Wagner, em uma montagem irônica que aponta a
decadência onde se supunha o progresso; a câmera perscruta-os
de perto, depois sobrevoa o lixão onde os restos e os homens
se confundem (Figura 5). Em seguida, o médico Gustavo
comenta sobre a época em que trabalhou no Hospital de Base,
quando houve a epidemia de meningite que assolou as invasões
que existiam no início da formação da Ceilândia; seguem-se
imagens de uma mulher com crianças comendo alimentos sujos,
operários almoçando um prato repulsivo, filas na frente do
Hospital de Base, e um homem convalescente sendo levantado
do chão por um profissional de saúde. Gustavo conta que, certa
vez, um enfermeiro suíço relatou que, quando esteve no Brasil,
ficou surpreso ao perguntar sobre a epidemia de meningite e
pedir para ser vacinado, obtendo como resposta de um médico
que “nesse país não há, não houve e jamais haverá meningite”,
expressão da mentalidade característica de um tempo em que
a ditadura propagava: “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Transcorrem
imagens de pedaços de carne de boi podre rodeada por moscas,
ao som da música Coro dos escravos hebreus, de Giuseppe Verdi
(Figura 6). A montagem fabrica uma associação entre a carne de
boi podre e o massacre social colocado em prática pela ditadura
militar, que aprofundou as desigualdades no país, ao passo
que criava ilusões sobre as condições sociais em que o Brasil
se encontrava (metáfora que poderíamos aproximar da relação
entre o massacre dos operários e o abate de bois na montagem
de A greve (1925), de Sergei Eisenstein).
Enquanto crianças brincam num esgoto a céu aberto em
Ceilândia (Figura 7), um homem conta sobre a trágica morte de
três crianças – uma teria caído numa vala de esgoto, as outras
duas pularam em seguida na tentativa de salvá-la, porém as três
morreram ao final. A imagem das crianças entre os excrementos
revela a sua condição: excremento deriva não apenas daquilo que
é repelido por aparelhos excretores, mas também a qualidade do
que é desprezível. São vidas tidas como desprezíveis, excretadas
pelo corpo da cidade.

164 Corpos-ruínas em Conterrâneos velhos de guerra / Tatiana Hora Alves de Lima


Figura 5: Restos e homens em Conterrâneos velhos de guerra (1991).

Figura 6: Pedaços de carne e mosca em Conterrâneos velhos de guerra (1991).

Figura 7: Esgoto a céu aberto em Ceilândia em Conterrâneos velhos de guerra


(1991).

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Uma cena em particular sintetiza as contradições do
desenvolvimentismo através de metáforas encontradas na
situação da tomada. Vladimir Carvalho entrevista Anísio, o
pedreiro que trabalhou na construção de Brasília, foi removido de
uma invasão e enviado para Ceilândia, e não consegue concluir
as obras da própria casa. A sequência mostra imagens em preto e
branco de quando Anísio trabalhava para construir a casa havia
seis meses, quando ele acreditava que iria finalizar a obra após
cinco anos – coincidentemente, o mesmo tempo que levou para
construir a capital. A câmera mostra um cartaz na parede em que
está escrito “Construindo o Brasil”, espaço metonímico vinculado
diretamente a Brasília e ao Brasil, metáfora dos “50 anos em 5”.
A cena termina com a câmera perscrutando o reboco no teto,
mostrando o operário sentado no sofá, olhando com desalento
para a planta da casa, enquanto toca a música Pedreiro Waldemar,
de Wilson Batista, sobre o pedreiro que “faz tanta casa e não tem
casa pra morar”. A casa incompleta do pedreiro que ajudou a
construir Brasília é o anti-monumento, metáfora do reverso da
utopia: não o monumental, mas o inacabado; não a aceleração do
tempo em direção ao país desenvolvido, mas a permanência das
condições precárias.
Numa cena, a câmera faz um zoom out e uma panorâmica
para a esquerda saindo do Palácio da Alvorada, lar dos poderosos
e seguindo em direção aos barracos dos miseráveis numa invasão
na Vila Paranoá. Se o projeto de Brasília constrói fossos sociais
entre os mais ricos e os mais pobres, o quadro faz convergir num
mesmo espaço as contradições e assimetrias da cidade.
As imagens aéreas mostram uma grande quantidade de
barracos em outra invasão, localizada na Superquadra 110 Norte,
enquanto Othon Bastos explica que as próprias construtoras
estimularam esse tipo de ocupação, “interessadas em se livrarem
dos investimentos em transporte e alojamento”, contando com a
cumplicidade dos políticos. Uma mulher amamenta uma criança
enquanto os barracos são derrubados. As imagens, filmadas no calor
da hora, são de um cinema que registra a história acontecendo no
presente, com planos que captam no próprio cenário da situação
filmada, elementos para elaborar uma crítica ao Estado opressor,
à polícia violenta e à especulação imobiliária (através do trabalho
de mise-en-scène). Os policiais avançam sobre a população ao som
da grandiloquente Cavalgada das Valquírias, tendo uma mulher

166 Corpos-ruínas em Conterrâneos velhos de guerra / Tatiana Hora Alves de Lima


com uma criança de colo e um guarda sol ao fundo do quadro
– numa cena que dialoga com a famosa cena da escadaria de
Odessa, em O encouraçado Potemkin, quando soldados descem
as escadas e derrubam um carrinho de bebê, para desespero de
uma senhora que o carregava. Os tratores colocam os barracos
abaixo, os candangos aparecem entre os destroços, corpos-ruínas
da cidade. Um velho senhor junta suas coisas, a câmera mostra a
presença de uma bandeira do Brasil sobre o barraco, uma ironia
contra o lema ordem e progresso, onde se vê o caos e as ruínas
(Figura 8). Por fim, um travelling segue em direção a um outdoor
sobre os escombros, em que está escrito: “A arte de morar. Le grand
style. Excelentes apartamentos 2, 3 e 4 quartos com suíte. Vendas
aqui, 225830, 2749033, Encol S.A.” (Figura 9). A cena desvia o
sentido da linguagem publicitária, colocando no mesmo quadro
os destroços dos barracos daqueles que não têm onde morar e
“a arte de morar”, fazendo conviver no mesmo espaço o sonho
da felicidade difundido pelo capitalismo e a violência contra os
miseráveis promovida em nome da especulação imobiliária.

Figura 8: Ordem, progresso e ruínas em Conterrâneos velhos de guerra (1991).

Figura 9: Arte de morar em Conterrâneos velhos de guerra (1991).

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Na última sequência do filme, o jornalista Pompeu de
Sousa afirma, olhando e apontando diretamente para a câmera,
discursando para o espectador, que “a utopia da capital da
esperança se transformou na utopia da capital do desespero
nacional” e que “a conscientização do desespero nacional
pode se tornar esperança novamente”. Vemos imagens de uma
multidão revirando e incendiando viaturas e ônibus próximos à
Torre de Televisão perante os olhares atônitos de testemunhas
oculares numa passarela sobre a Plataforma Rodoviária,
enquanto ouvimos a sinfonia Cavalgada das Valquírias (presente
em diversas cenas do filme, a música funciona como a trilha
da dialética entre construção e destruição elaborada em
Conterrâneos ao retratar Brasília). As imagens de arquivo do
tumulto utilizadas no filme são feitas por uma câmera que treme,
que fica suja, marcadas pelo improviso no caos da situação.
Um plano destaca a imagem de uma cerca tendo o Congresso
Nacional ao fundo, junto a uma placa em que consta a palavra
“Perigo”. É o Badernaço, um motim na Esplanada dos Ministérios
ocorrido em novembro de 1986, durante um protesto contra o
Plano Cruzado II, no governo do presidente José Sarney, plano
que levava o nome da moeda que substituiu o cruzeiro e que,
de início, registrou a diminuição da inflação acachapante, para
depois retornar ao seu aumento. Mais tarde, haveria uma série
de suspeitas em torno das manifestações, que podem ter sido
impulsionadas por agentes infiltrados inconformados com o fim
da ditadura militar. O caos na Esplanada dos Ministérios é a
conclusão do filme, num final aberto que pode aludir tanto a um
horizonte utópico, revolucionário, como a um horizonte de crise
e constante desesperança.

Considerações finais

Conterrâneos velhos de guerra desvia a história e a


arquitetura através de corpos-ruínas – aqueles que restam,
ejetados ou soterrados na cidade, mas também corpos que
carregam as memórias dos vencidos, e que emergem como
sujeito coletivo, os candangos. As histórias que narram é o
que resta entre eles, é o que promove a abertura para outras
possibilidades utópicas latentes.

168 Corpos-ruínas em Conterrâneos velhos de guerra / Tatiana Hora Alves de Lima


Os corpos-ruínas desviam a imagem dos corpos-máquinas
dos operários, trabalhando infatigavelmente na construção
de Brasília, tal como vemos nos cinejornais da Novacap. Os
corpos dos candangos, tal como abordados no filme de Vladimir
Carvalho, desviam a imagem dos pioneiros que refundariam o
país na marcha para Oeste; eles são as ruínas de um passado
que insiste em permanecer, trazendo algo que resta entre os
mortos nas construções e os expelidos da cidade. São corpos, em
suma, que cristalizam a barbárie. Em seu conjunto, Conterrâneos
velhos de guerra promove importantes desvios: na epicidade
do documentário, estimulando o espectador a refletir sobre o
presente, e não apenas a conhecer o passado; no enquadramento,
reunindo centro e periferia (que deveriam permanecer apartados
através das distâncias entre Plano Piloto e cidades satélites). E,
sobretudo, desvio da história oficial, de múltiplas formas: ao
promover relações conflituosas entre as imagens de arquivo, os
depoimentos dos vencedores e os testemunhos dos vencidos; no
embate, em cena, contra os personagens que encarnam a história
oficial. Em sua montagem, Conterrâneos tece associações entre a
violência da GEB e o autoritarismo da ditadura, abrindo-se para
outros futuros possíveis a partir das ruínas do motim na Praça
dos Três Poderes.

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IMAGENS

Capa: Edinho Vieira e Douglas Resende (Acervo Izidora)


A Revolta do Buzú (Carlos Pronzato, 2003) (p. 16, 26 e 27)
Maio Baiano (Carlos Pronzato, 2001) (p. 23)
Reprodução do primeiro jornal do Movimento Passe Livre (p. 31)
Reprodução do modelo pedagógico usado pelo MPL-SP (p. 33)
Edinho Vieira (Acervo Izidora) (p. 40, 50a, 52)
Memórias de Izidora (Vilma da Silveira, João Victor Silveira de Paula, Kadu de
Freitas, Edinho Vieira e Douglas Resende, 2016-2020) (p. 43)
Douglas Resende (Acervo Izidora) (p. 50b, 53, 54)
Foto de produção de Cabra Marcado para morrer (Eduardo Coutinho, 1984) (p. 60)
Luara Dal Chiavon (p. 71)
Acervo Fernanda Omelczuk e Tatiane Mendes (p. 76, 83, 84, 86, 90, 94, 95, 96)
Um desenho, várias emoções (Ana Paula Soares da Silva Gomes, 2020) (p. 104,
107, 109, 110, 113)
Bruno Munari, Capa do livro Alfabetiere – Facciamo assieme um libro da leggere,
Corraini Editore – Mantova (p. 118)
Conterrâneos velhos de guerra (Vladimir Carvalho, 1991) (p. 147, 154, 155, 156,
165, 167)
Brasília, profecia de Dom Bosco (Romeu Paschoaline, 1957) (p. 155)
Brasília No. 10 e Brasília No. 17 (José Silva, 1960) (p. 155)
As primeiras imagens de Brasília (Jean Manzon, 1957) (p. 156)

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