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Semestral
ISSN: 1679-8503 (impressa) / 2179-6483 (eletrônica)
7 Apresentação
André Brasil e Clarisse Alvarenga
PEDAGOGIAS DO CINEMA II
16 Fazeres das imagens e saberes das lutas: A Revolta do Buzú e a dimensão pedagógica
dos filmes feitos com movimentos sociais
Vinícius Andrade
FOTOGRAMA COMENTADO
104 “Um desenho, várias emoções”: cinema e narrativas de trabalhadoras da educação
pública
Ana Paula Soares da Silva Gomes
FORA DE CAMPO
146 Corpos-ruínas em Conterrâneos velhos de guerra
Tatiana Hora Alves de Lima
Apresentação
REFERÊNCIAS
Vinícius A ndrade
Doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Figura 7: Primeiro jornal produzido e publicado pelo Movimento Passe Livre, em que constavam os
princípios de atuação do movimento recém-fundado.
FILMES
Douglas Resende
Documentarista e professor adjunto do Departamento de Cinema e Vídeo da UFF.
Abstract: In the daily life of an urban settlement known as Izidora remains a film
community formed by a radical plurality of individuals who film the political and
everyday life of that territory, while safeguarding their common memory. This article
reports on the experience of producing spaces for sharing this audiovisual memory
within the community, proposing to consider these shared spaces as a possibility for
a common space in the practice of documentary.
Keywords: Documentary film; Common space; Politics; Urban settlements.
Figura 6: Vilma da Silveira diante da projeção de uma montagem de seus vídeos (fotografia de
Douglas Resende).
Abstract: What is the place of cinema and audiovisual within the Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)? In the last decades, this language has
been appropriated by social movements in the countryside. Access to the means
of audiovisual production, resulting from the advancement of technology coupled
with the achievements of movements in the areas of communication and culture,
allowed this approach to making audiovisual, generating an audiovisual memory
of the struggle for land in Brazil, carried out through popular organization . In this
article, we want to bring this path of audiovisual in the MST from the history, the
organizational processes and the construction of a peasant and popular aesthetic.
Keywords: Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); Social
movements; Audiovisual Brigades; Land reform.
62 O audiovisual no MST / C. Eduardo Pereira, Luara Dal Chiavon, Maria Aparecida da Silva
Audiovisual e a luta pela terra
64 O audiovisual no MST / C. Eduardo Pereira, Luara Dal Chiavon, Maria Aparecida da Silva
A linguagem audiovisual esteve presente em boa parte
dos mais de 37 anos do Movimento servindo de material de
comunicação, formação e memória. Por meio da captação de
imagens e sons, foi possível registrar a luta pela terra, no detalhe
do romper da cerca e das correntes encadeadas pelo latifúndio,
tornando visível e audível a organização das agricultoras e
agricultores nos acampamentos e assentamentos, as crianças e a
juventude que brincam e estudam no campo.
As primeiras produções de cinema que retratam o MST
foram realizadas por cineastas parceiras(os) do Movimento
e, de certa forma, engajados nas lutas populares. Podemos
destacar a atuação de Tetê Moraes, Berenice Mendes, Aline
Sasahara, Maisa Mendonça, Silvio Tendler, Beto Novaes, entre
outras(os). Esses são nomes importantes que tiveram papel
fundamental na produção de uma memória audiovisual da luta
pela terra no Brasil.
No entanto, no presente artigo, vamos nos ater às produções
realizadas pela própria militância do MST, dando destaque para
a organização das brigadas e percorrendo o lugar da linguagem
audiovisual dentro do Movimento Sem Terra, na sua luta constante
pela democratização da terra e das telas.
66 O audiovisual no MST / C. Eduardo Pereira, Luara Dal Chiavon, Maria Aparecida da Silva
possui uma intencionalidade política clara. “A educação não formal
não é nativa, no sentido de herança natural; ela é construída
por escolhas, sob certas condições; há intencionalidades em seu
desenvolvimento, não sendo o aprendizado espontâneo, natural
nem naturalizado” (GOHN, 2015, p.16).
Para além da importância da construção de seus próprios
meios de comunicação como o Jornal Sem Terra, a Revista Sem Terra
e a página do MST na internet, todos esses canais foram resultados
de processos pedagógicos do Movimento, que possibilitaram que os
camponeses se apropriassem das ferramentas. Mas também, esses
materiais produzidos, muitas vezes pela base do Movimento, para
ela voltavam. Não era raro encontrar rodas de leitura do Jornal e
Revista Sem Terra nos acampamentos e assentamentos, nas quais
o grupo que lia não apenas se informava, mas se formava a partir
do debate realizado ali. A maneira coletiva como liam e debatiam
contribuía para a organização.
Anos mais tarde, o lema do Setor de Comunicação viria a ser:
informar, formar e organizar. O lema é, ao mesmo tempo, uma síntese
de suas práticas e um enunciado sobre seus objetivos enquanto setor.
Nesse processo, o audiovisual também aparecia como
ferramenta pedagógica nos mais diversos cursos e atividades.
Praticamente toda a militância do Movimento desde os anos 1990
assistiu e/ou debateu, em algum espaço, o filme Cabra Marcado
para Morrer (COUTINHO, 1984). Aos poucos, com sua produção
interna, o MST passou a debater seus próprios filmes, como
veremos mais adiante.
Podemos observar que “os processos de aprendizagem na
educação não formal ocorrem a partir da produção de saberes
gerados pela vivência” (GOHN, 2015, p.17), ou seja, as vivências
dos militantes nesse caso se dão a partir de oficinas audiovisuais
nos assentamentos, acampamentos e escolas do Movimento. Além 2. Whatsapp é o aplicativo
mais popular e de fácil
disso, de uma cultura audiovisual que permitiu ao MST construir o acesso por não necessitar
projeto Cinema na Terra, composto de debates a partir dos filmes de conexão extra com a
internet, já que a maioria
nos cursos e formações, sendo que, hoje, toda semana, vídeos do das operadoras disponibiliza
próprio Movimento são distribuídos para a base, principalmente dados móveis para o uso
deste incluídos em seus
por meio do WhatsApp.2 Todas essas ações constituem uma planos básicos. A partir de
ampla prática pedagógica do audiovisual. Nos muitos cursos de seu uso também podemos
compreender melhor os
agroecologia, saúde, questão agrária, cultura sempre são incluídos limites do acesso à internet
na ementa espaços de estudo da comunicação. A formação para a população do campo.
68 O audiovisual no MST / C. Eduardo Pereira, Luara Dal Chiavon, Maria Aparecida da Silva
cada ano, deixavam equipamentos para os coletivos organizados
nos estados, proporcionando a continuidade na produção de
materiais audiovisuais nas regiões.
Um projeto que merece destaque é o Cinema na Terra,6 iniciado 6. Organizado no texto A
experiência do Cinema na
em 2005, quando da preparação da Marcha Nacional pela Reforma Terra (2015), por Miguel
Agrária, caracterizado pela criação de espaços de exibição e debates Stedile.
nas áreas de assentamento e acampamento da Reforma Agrária
de todo país. O projeto possibilitou acesso aos meios de produção
e reprodução de diversos materiais audiovisuais, contemplando
mais de 75 mil pessoas nas áreas rurais de 126 municípios. Uma
grande mobilização, em que os militantes envolvidos carregavam
o projetor e a caixa de som para diferentes locais, organizando,
exibindo e discutindo sobre esses territórios.
Com a formação da Brigada de Audiovisual da Via
Campesina em 2007, composta por militantes do MST e de
outros movimentos sociais, foram produzidos diversos materiais,
como o vídeo Lutar Sempre! V Congresso Nacional do MST (2007),
Nem um minuto de silêncio - Fora Syngenta do Brasil (2008), os
vídeos elaborados em 2012 para o trabalho de base preparatório
do VI Congresso Nacional do MST, entre outros. Nesse contexto,
conforme apresentado na Cartilha Lutar Sempre! Estudos sobre
audiovisual e a construção da realidade, a Brigada de Audiovisual
da Via Campesina já estava avançando técnica e politicamente
para produzir materiais feitos pelo próprio Movimento.
Em 2014, nos preparativos para o VI Congresso Nacional, a
Brigada já não contava com outros movimentos em sua composição,
se descaracterizando nominalmente enquanto Brigada da Via
Campesina e durante o VI Congresso mudou seu nome para Brigada
de Audiovisual Eduardo Coutinho (BAEC), em homenagem ao
cineasta assassinado dias antes do início do Congresso. A homenagem
a Coutinho se dá principalmente por conta do documentário Cabra
Marcado para Morrer, que retrata a luta das Ligas Camponesas e
a discussão histórica da luta pela terra no Brasil. O filme foi um
importante documento imagético não só para a história do cinema
nacional e a história brasileira, contribuindo também para a
construção da identidade do próprio MST.
Nas mobilizações para o Dia Internacional de Lutas das
Mulheres (8 de março), em 2015, as imagens captadas pela BAEC
foram utilizadas por alguns veículos de comunicação nacionais.
70 O audiovisual no MST / C. Eduardo Pereira, Luara Dal Chiavon, Maria Aparecida da Silva
de nome homônimo, marco do teatro brasileiro, como a primeira
peça onde o camponês é protagonista de sua luta, escrita por Nelson
Xavier e Augusto Boal.
Fig 1: Registro das filmagens de Mutirão em Novo Sol - A Retomada primeiro longa-metragem
da Brigada Audiovisual Eduardo Coutinho do MST (Acampamento Noelton, DF, agosto de 2019).
Crédito: Luara Dal Chiavon
72 O audiovisual no MST / C. Eduardo Pereira, Luara Dal Chiavon, Maria Aparecida da Silva
Conclusão
REFERÊNCIAS
74 O audiovisual no MST / C. Eduardo Pereira, Luara Dal Chiavon, Maria Aparecida da Silva
DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 60-75, JUL/DEZ 2018 75
Cartografando pedagogias e
territórios sensíveis com o cinema
no hospital
Fernanda Omelczuk
Professora do Departamento de Ciências da Educação da Universidade Federal de
São João del-Rei (UFSJ). Integrante do Grupo de Pesquisa em Educação, Filosofia
e Imagem.
Tatiane M endes
Professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Estácio de
Sá. Integrante do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Arte e Cidade da UERJ e
do Laboratório de Investigação em Publicidade Social e Comunicação Comunitária
da UFF.
Figura 9: A bomba.
Fonte: Acervo das autoras.
REFERÊNCIAS
FILMES
A MÚSICA segundo Tom Jobim. 88’, 2012. Direção: Nelson Pereira dos Santos.
BIXA travesty. 75’, 2018. Direção: Claudia Priscilla e Kiko Goifman.
CANTANDO na chuva. 103’, 1952. Direção: Gene Kelly e Stanley Donen.
CARNAVAL Atlântida. 92, 1952. Direção: José Carlos Burle, Carlos Manga.
CARTOLA – música para os olhos. 88’, 2007. Direção: Lírio Ferreira e Hilton Lacerda.
DI-GLAUBER (Ninguém Assistirá Ao Formidável Enterro Da Tua Última Quimera,
Somente A Ingratidão, Aquela Pantera, Foi Sua Companheira Inseparável! - Di
Cavalcanti di Glauber). 18’, 1976. Direção: Glauber Rocha.
KAUÃ no CTI. 2’, 2015. Direção: Kauã Pereira.
108 “Um desenho, várias emoções” / Ana Paula Soares da Silva Gomes
educadores e por outros grupos subalternizados historicamente
e que passaram a contar suas próprias histórias criando outros
modos de fazer filmes mais próximos às suas experiências.
A força das narrativas dessas personagens da vida real se
une à delicadeza do desenho, colocando em evidência o potencial
de histórias de vida que, apesar das dificuldades que sempre
enfrentaram no decorrer de suas caminhadas, veem na escola
pública uma possibilidade de abrir portas e ampliar horizontes
tanto para si mesmas quanto para crianças, jovens e adultos que
por ali passam.
Maísa, apesar de ter atuado por pouco tempo como
professora de Arte na escola, foi quem assumiu a tarefa de
restaurar o desenho. Ela expressa no filme toda sua resistência
como professora de uma disciplina constantemente rechaçada
por um projeto político e social que visa afastar cada vez mais
as artes da classe trabalhadora e começa por não valorizar seu
ensino nas escolas. “[...] o professor de Arte, chega uma hora
que ele... não é que desiste de brigar, mas ele aceita que as
pessoas não valorizam tanto a Arte. A sociedade, o governo,
tudo. E aí chegar aqui e ter esse espaço pra Arte foi muito
bom”, conta Maísa.
110 “Um desenho, várias emoções” / Ana Paula Soares da Silva Gomes
arte produzida por mulheres da classe trabalhadora e aponta para
sua legitimidade como criadora de arte, na medida em que ela
mesma se autoriza a criar.
O encontro com as educadoras não constituiu uma
entrevista protocolar para realização de um documentário.
Tratou-se antes de uma imersão no universo das entrevistadas
e em sua relação com o ambiente escolar e o mundo. A
realização do documentário, além da criação do filme em
si, proporcionou uma abertura para conversas que eu nunca
havia tido com nenhuma delas e que naquele momento fluíram
de uma forma especialmente acolhedora, de modo que, por
diversas vezes, encontrei-me refletida em seus sentimentos e
angústias.
Ao final do processo, na montagem do filme, decidi gravar
novamente uma sequência que não estava prevista, na qual me
coloco em cena e entrelaço minha trajetória pessoal – como
mulher negra, moradora de periferia e profissional da educação
– ao desenho e às falas das três mulheres que participam do
filme, minhas companheiras de trabalho e de lutas, no constante
exercício de pensar o cinema, a educação e a vida.
Essa experiência me faz pensar sobre como o uso do cinema
naquele cotidiano tornou possível que uma outra conversa
surgisse entre nós, uma forma de relação que é cotidiana e ao
mesmo tempo extraordinária. Em função da forma como nos
aproximamos umas das outras em torno do desenho e com a
presença da câmera, cada uma das mulheres que participa
do filme teve o espaço necessário para narrar a si mesma
enquanto narrava a história da escola. Essas narrativas, quando
compartilhadas, fortalecem as presenças de cada uma de nós e
nos indicam caminhos a serem trilhados a partir dali.
Sobre a potência das narrativas de si, bell hooks salienta
que recontar histórias de nossas vidas para outras pessoas que
vivenciam mudanças afins torna mais claros os estágios de
conscientização.
Fora do quadro
112 “Um desenho, várias emoções” / Ana Paula Soares da Silva Gomes
representada no desenho. A escola fica localizada no Bairro
Jardim Felicidade, na periferia de Belo Horizonte, foi inaugurada
e municipalizada no dia 24 de março de 1992.
114 “Um desenho, várias emoções” / Ana Paula Soares da Silva Gomes
e é avó de alguns estudantes. Interessante perceber que todos os
estudantes já haviam reparado no desenho, em algum momento,
sem entretanto ter parado para pensar sobre ele.
Entre os estudantes dessa turma do 8º ano, poucos sabiam
ou não reconheciam as habilidades artísticas de Selma. Uma das
estudantes disse após a exibição: “Eu não sabia que Selma era
artista, para mim ela só cuidava da limpeza da escola”. Talvez
haja na concepção dessa afirmação um conceito de artista que
não é compatível com o espaço escolar ou com uma pessoa que
execute as funções de limpeza, como se a Arte não pudesse
florescer no coração dos humildes ou como se o indivíduo
estivesse limitado a sua profissão e não pudesse dar vazão a sua
criatividade de outras maneiras.
A própria Selma, em sua narrativa, afirma ficar “acanhada”
quando a chamam de “artista”. Ao se retirar desse lugar de artista,
ela se define como uma “curiosa”, que experimenta várias facetas
da arte, como o desenho, a pintura e a escrita literária, o que
nos leva a refletir sobre a supressão das nossas subjetividades
enquanto pessoas negras da classe trabalhadora.
REFERÊNCIAS
HOOKS, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo:
Elefante, 2019, 380 p.
HOOKS, bell. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019,
356 p.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de
Janeiro: Cobogó, 2019, 248 p.
SILVA, Janice Anterio da Rocha; GOMES, Maria do Carmo (Orgs.). Jardim
Felicidade: várias histórias em uma história. Belo Horizonte: O Lutador, 2013.
128 p.
116 “Um desenho, várias emoções” / Ana Paula Soares da Silva Gomes
DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 104-117, JUL/DEZ 2018 117
Cinema e mídias no Abecedário
Janela da Memória
Inés Dussel
Professora e pesquisadora no Departamento de Investigações Educativas (DIE
-CINVESTAV - México).
Adriana Fresquet
Professora na Faculdade de Educação da UFRJ. Pós-doutoranda no Departamento
de Investigações Educativas (DIE CINVESTAV - México).
120 Cinema e mídia no Abecedário Janela da Memória / Inés Dussel e Adriana Fresquet
[…] Na questão da amizade, há uma espécie de mistério. Isso diz respeito direto à
Filosofia. Porque na palavra “filosofia” existe a palavra “amigo”. Quero dizer que
o filósofo não é um sábio. Do contrário, seria cômico. Ao pé da letra, é o “amigo
da sabedoria”. O que os gregos inventaram não foi a sabedoria, mas a estranha
ideia de “amigo da sabedoria”. Afinal, o que quer dizer “amigo da sabedoria”? Esse
é que é o problema. O que é a filosofia e o que pode ser amigo da sabedoria? Quer
dizer que o amigo da sabedoria não é sábio. Há uma interpretação óbvia que é: “Ele
tende à sabedoria”. Não é por aí. O que inscreve a amizade na filosofia e que tipo
de amizade? Há alguma relação com um amigo? O que era para os gregos? O que
quer dizer “amigo de”? Se interpretamos “amigo” como aquele que “tende a”, amigo
é aquele que pretende ser sábio sem ser sábio. Mas o que quer dizer “pretender
ser sábio”? Quer dizer que há outro. Nunca se é o único pretendente. Se há um
pretendente, é porque há outros, quer dizer que a moça tem vários pretendentes.
Fragmento do Abecedário de Gilles Deleuze, letra F de Filosofia.1 1. Disponível em: http://
escolanomade.org/wp-
content/downloads/deleuze-
O abecedário audiovisual Janela da Memória (2019) o-abecedario.pdf. Acessado
em: Jan. 2020.
gravado com Inés Dussel faz parte de uma coleção de
abecedários2 realizados por Adriana Fresquet desde 2012. 2. Disponível em: https://
Sua produção surgiu sob o espírito desse tipo de amizade cinead.org/abecedarios/.
Acessado em: Jan. 2020.
mencionado por Gilles Deleuze na epígrafe, no sentido de
pretender uma aproximação inicial, entre tantas outras
possíveis, ao conhecimento. A intenção consiste em divulgar
saberes em formato acessível e introdutório aos principais
conceitos dos autores e autoras entrevistados. Algumas vezes,
como foi o caso desse abecedário, acontece de encontrarmos uma
situação privilegiada pelo fato de poder dialogar com alguém
que temos lido durante anos, em um encontro pessoal, único,
quase fortuito. Mas além do encontro entre entrevistado(a) e
entrevistador(a), trata-se de um encontro entre quem realiza o
abecedário e seus próprios conceitos. Poderíamos dizer que, se,
por um lado, uma janela viva se abre na memória, por outro,
se gera uma sorte de confronto com a vigência e mudanças dos
significados e sentidos de cada palavra escolhida no momento
presente. Muitos entrevistados expressam um entusiasmo que
lembra o gesto de brincar. Há algo de lúdico que se mistura
com o compromisso de escovar a contrapelo, uma e outra vez,
ideias que os acompanham por toda uma vida.
Todo abecedário sugere uma iniciação, espécie de bê-á-bá
no aprendizado de alguma língua. Neste caso, significa também
acompanhar passo a passo o pensamento de alguém, o que
constitui quase uma cartografia. À diferença do dicionário, por
exemplo, não há no abecedário o propósito de definir verbetes.
Nos ABCs estão presentes os movimentos de titubear, apalpar,
122 Cinema e mídia no Abecedário Janela da Memória / Inés Dussel e Adriana Fresquet
vezes até o final da década de 1890, incluindo uma versão de
luxo pintada à mão, impressa em velino, com apenas algumas
cópias. O ABC é uma espécie de cartilha clássica direcionada a
crianças vitorianas e foi criado no mesmo ano da invenção do
cinematógrafo. As ilustrações que ocupam boa parte das páginas
vêm acompanhadas por textos breves na página direita, enquanto
a página esquerda traz no centro uma imagem menor, com a letra
da vez em destaque e a ilustração de uma criança brincando de
alguma maneira com essa letra.
Embora não siga uma estrutura alfabética, Abecedário da
Guerra,4 de Brecht, apresenta uma série aterrorizante de pequenos 4. Disponível parcialmente
em: https://www.youtube.
poemas acompanhada por imagens da guerra. O livro foi escrito
com/watch?v=-HyZhw2eN1U.
durante a Segunda Guerra Mundial e, com esse trabalho, Bertolt Acessado em: Jan. 2020.
Brecht apresenta um devastador ataque visual e lírico contra o
capitalismo moderno. A publicação inclui fotografias de jornais e
revistas populares retiradas das publicações da época, adicionando
pequenos versos de profunda dureza, numa tentativa poética de
compreender e compartilhar algo da realidade da guerra com o
uso de fragmentos da mídia de massa.
Trazemos esses dois exemplos específicos por motivos
diferentes. No caso do primeiro livro, encontramos a forte marca
da iniciação, da dedicação de uma mulher5 que educa crianças 5. Revolta ler na capa do livro
sua autoria como “Senhora
nas primeiras letras e palavras, cuidando dos textos e das imagens de Arthur Gaskin”. Só temos
como quem cuida do alimento, do gosto e da experiência sensível. conhecimento do nome
dela, Georgina Evelyn Cave
O segundo exemplo, que não é propriamente um abecedário,
Gaskin pela gentileza do
introduz duas novidades essenciais: a presença da montagem editor desta versão recente,
entre imagens e poesia. Trata-se de uma desobediência poética que a apresenta na primeira
página.
ao alfabeto vinculada ao propósito de sua circulação como mídia
de massa. Abecedário da Guerra foi produzido quando o autor
estava exilado na Suécia e surpreende o estilo, a forma como
se pergunta a cada página: “como isso pôde acontecer?” Como
repete Goya, por exemplo, em Os Desastres da Guerra visando
sacudir, indignar, ferir o espectador, ao se perguntar como isso foi
possível (SONTAG, 2003). Ambos os livros, embora impressos,
resumem as características do espírito dos abecedários que
abordamos nesse texto: de um lado, o caráter de iniciação e, por
outro, o uso das imagens e da poesia.
Retomando nossa caracterização, a metodologia dos
abecedários audiovisuais implica vários passos e é bastante
flexível, em função das preferências dos(as) entrevistados(as).
124 Cinema e mídia no Abecedário Janela da Memória / Inés Dussel e Adriana Fresquet
Também não se trata de uma definição do tipo Wikipédia, da
Real Academia Espanhola ou Portuguesa, nada do tipo, mas
de uma tentativa, na verdade, de ponderar a ambivalência e a
disputa pelo sentido que existe por trás de muitos termos. Essa é
a ideia”. Juntas, a seguir, apresentamos e contextualizamos cada
um dos verbetes selecionados para este texto em coautoria.
Atenção
126 Cinema e mídia no Abecedário Janela da Memória / Inés Dussel e Adriana Fresquet
Cinema
128 Cinema e mídia no Abecedário Janela da Memória / Inés Dussel e Adriana Fresquet
também pode planificar parte dessa experiência. No espírito do
conjunto das reflexões produzidas no abecedário, nas entrevistas
e publicações da autora, não podemos depreender que todo
filme seja pedagógico, mas que seja possível aprender, inclusive
com aqueles filmes que não possuem a qualidade que desejamos
habitando as escolas. Nesse sentido, a autora enfatiza a importância
da presença do cinema como linguagem no currículo escolar. Há
vastas investigações, fundamentalmente na Inglaterra, França e
Austrália, que apontam para a inclusão do cinema e de outros
saberes como linguagens capazes de ampliar as possibilidades de
conhecimento e expressão (DESBARATS, 2001; QUIN EDITH,
2003, BENASAYAG, 2020; NUNN, 2020).
Mídias digitais
24/7
130 Cinema e mídia no Abecedário Janela da Memória / Inés Dussel e Adriana Fresquet
vários problemas pelos quais a ponderação de desconexão
não é como pensávamos a um tempo atrás. “Ah, são
conservadores, tradicionalistas... querem ficar para trás”, mas
na verdade existem questões sobre para onde vão avançando
as grandes corporações tecnológicas, que acho que colocam
desafios muito fortes à democracia. Uma das questões de
Crary, que também me interessa muito, é esta perda ou atrofia
da paciência: estamos cada vez mais impacientes, cada vez
queremos respostas mais imediatas. Todos temos que estar
disponíveis o tempo todo. Se te mandam um e-mail ou um
WhatsApp e você não responde imediatamente, te dizem: “O
que está acontecendo?” Por favor, me dá um minuto! me dá
um tempo! me deixe pensar! As tecnologias hoje não ajudam
para que possamos tomar esse tempo, ou possamos graduar,
qualificar, ver como responder. Há uma paciência e uma escuta
atrofiadas, porque o que mais vale é falar, mostrar-se, exibir-
se, e não tanto ver o que é visto como passivo, ou escutar, ou
ficar sentado, porque é preciso estar em movimento o tempo
todo. Então esse mundo 24/7... penso que é o mundo em que
vivemos. Não é que isso vá acontecer, isso já é nosso presente,
mas o habitamos de maneira diferente. Nisso eu admiro muito
algumas das brigas provocadas pelos sindicatos em Europa
para não ter que responder ao chefe fora do horário de
trabalho, por mais que tenham o celular. “Olha, se já passou
das 17h, não te respondo”, ou os finais de semana em que não
me conecto, ou me conecto pouco, me conecto se quero, mas
não estou obrigada a me conectar. O problema é que hoje,
muitas vezes, somos nós mesmos que nos obrigamos, e aí é
preciso aprender a se disciplinar em um sentido de resistir a
este mundo 24/7 muito mais conscientemente. É toda uma
operação de resistência, é mais fácil seguir o fluxo das coisas,
mas resistir custa. Penso que é preciso fazê-lo e ensinar a fazê-
lo, porque também estamos vendo, desde questões psicológicas
preocupantes nas crianças, cada vez mais transtornos de
ansiedade nos mais pequenos, depressões, que em parte têm a
ver com isso que está acontecendo. Inclusive com os adultos:
parece que estamos sempre cansados, estamos sempre
sentindo que não damos conta, que não damos resposta, uma
relação com o vital muito atrofiada, como diz Crary. Há um
outro autor muito em voga, o coreano-alemão, Byung-Chul
Han, e ele diz que essa agonia do Eros também é um problema
sério. O 24/7 leva a essa agonia do erótico, porque se está
sempre exausto, correndo atrás... Considero que resistir a
algo disso é fundamental, preservar espaços eróticos próprios,
resguardados dessa pressão de “tudo, tudo, tudo, já, já, já”.
132 Cinema e mídia no Abecedário Janela da Memória / Inés Dussel e Adriana Fresquet
obedece muito mais a um imperativo econômico do que moral
ou biopolítico, ao reduzir tudo ao valor comercial e destituí-
lo de qualquer singularidade (HAN, 2016). Em relação a essa
transparência, também há o desaparecimento do outro enquanto
outro. Isto é, para Byung-Chul Han, já foi o tempo em que existia
o outro como amigo, como mistério, como desejo, agora só parece
haver lugar para o igual. O que faz adoecer as sociedades atuais é
fundamentalmente a hipercomunicação, o excesso de informação
e sobreprodução, e o hiperconsumo (HAN, 2019). Esses termos
dialogam estreitamente com o conceito de “biopolítica” em
Foucault, que diz respeito à relação entre política e vida, assim
como ao controle que o estado e a sociedade exercem sobre os
indivíduos. E com essa expressão também se relaciona cada vez
mais o conceito de “biomercado”, que designa o comando absoluto
do mercado sobe os corpos, em que os mecanismos simbólicos de
regulação se tornam debilitados e incapazes de regular o poder
do mercado e seus fluxos financeiros (MERLIN, 2017).
Wikipédia
134 Cinema e mídia no Abecedário Janela da Memória / Inés Dussel e Adriana Fresquet
Em relação à referência a Burke (2012), esse segundo
exemplar sobre a história do conhecimento aborda questões tais
como a explosão do conhecimento e informação como efeitos
da internet. Por um lado, a obra destaca os diversos modos de
produção e circulação do conhecimento, a possibilidade de se
pensar sobre isso de maneira mais plural, material e historicamente.
Em outro ponto, valoriza-se o acesso cada vez mais democrático
que as mídias digitais permitem, como o progressivo aumento de
livros e artigos disponíveis na rede, com a característica erudição
e ampliação da visão do assunto, retomando a relação entre
conhecimento e poder.
YouTube
136 Cinema e mídia no Abecedário Janela da Memória / Inés Dussel e Adriana Fresquet
sobre isso, lamentavelmente. Algumas estão se iniciando na
Colômbia, algumas aqui (México), com certeza na Europa,
mas como experiência educativa não há muito, e acho que
seria muito bom que se fizessem mais.
138 Cinema e mídia no Abecedário Janela da Memória / Inés Dussel e Adriana Fresquet
ao mesmo tempo, muda algo nessa relação com a temporalidade.
Na fotografia e no cinema, por exemplo, a experiência humana
inclui registros que “trazem à vida” eventos do passado. Também a
modificação do espaço está dada porque, enquanto são criados novos
artefatos que mantêm esses registros e expandem as possibilidades
de coexistência simultânea com elementos distantes, eles se
aproximam, sejam impressos, na tela ou como realidade em 3D.
Sem dúvidas, a dimensão e versatilidade do YouTube fazem dessa
plataforma um espaço rico, complexo, que precisa cada vez mais de
engajamento dos projetos de pesquisa, para poder investigar com o
aprofundamento e a seriedade proporcional ao impacto, tanto para o
cinema como para a educação, inclusive para o cotidiano das nossas
vidas. (DUSSEL; TRUJILLO REYES, 2018).
Considerações Finais
140 Cinema e mídia no Abecedário Janela da Memória / Inés Dussel e Adriana Fresquet
Esses desafios nos levam a propor, com ênfase, que as
imagens, e as imagens em movimento, sejam cada vez mais
constitutivas dos processos de produção de conhecimento nos
espaços educativos em todos os níveis de ensino. Em consequência,
gostaríamos de fazer um chamado a pesquisadores, educadores,
estudantes, responsáveis pelas políticas públicas educativas acerca
da relevância de incorporar saberes e práticas dessas linguagens
específicas, com todas suas possibilidades expressivas, como parte
de uma cultura pública, comum, numa sociedade democrática,
que precisa de um novo alfabeto pedagógico onde as imagens e
as mídias têm que estar presentes.
REFERÊNCIAS
142 Cinema e mídia no Abecedário Janela da Memória / Inés Dussel e Adriana Fresquet
DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 15, N. 2, P. 118-143, JUL/DEZ 2018 143
FORA DE
E CAMPO
Corpos-ruínas em Conterrâneos
velhos de guerra
Figura 1: Tião Provisório, a cruz e o aeroporto imaginário em Conterrâneos velhos de guerra (1991).
A contrapelo
Monumento de barbárie
Considerações finais
REFERÊNCIAS
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio – uma leitura das teses “Sobre
o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005.