Você está na página 1de 300

ISSN XXXX-XXXX

RIDH | publicação semestral | Bauru | v. 10, n. 1 | p. 1-297 | jan. /jun., 2022 (18)
EXPEDIENTE EQUIPE EDITORIAL
Contato Editores
Prof. Dr. Clodoaldo Meneguello Cardoso Clodoaldo Meneguello Cardoso (Unesp-Bauru)
OEDH - OBSERVATÓRIO DE EDUCAÇÃO Ari Fernando Maia (Unesp-Bauru)
EM DIREITOS HUMANOS / Unesp
Av. Luiz Edmundo Carrijo Coube, 14-01 - (sala 69) Comitê Editorial Executivo
Vargem Limpa - CEP 17033-360 - Bauru, SP - Brasil Ana Maria Klein (Unesp-São José do Rio Preto)
Tels. 55 (14) 3103 6172 / 3103 6064 Arlete Maria Francisco (Unesp-Pres. Prudente)
E-mail: clodoaldo.cardoso@unesp.br Débora Cristina Fonseca (Unesp-Rio Claro)
Eli Vagner Francisco Rodrigues (Unesp-Bauru)
Revisão José Carlos Marques (Unesp-Bauru)
Editoria Juarez Tadeu de Paula Xavier (Unesp-Bauru)
Nilma Renildes da Silva (Unesp-Bauru)
Capa
Cristina de Souza Corat Conselho Editorial
Inky Design - Unesp Aida Monteiro (UFPE)
Alberto Damasceno (UFPA)
Diagramação Ana Maria Rodino (IIDDHH- San José de Costa Rica)
Érika Woelke Artur Stamford (UFPE)
Leonardo Lucas de Oliveira Neves Bethania Assy (PUC-RJ)
Dagoberto José Fonseca (Unesp-Araraquara)
Produção Gráfica Edson Teles (Unifesp)
Canal6 Projetos Editoriais
Enoque Feitosa (UFPB)
www.canal6.com.br
Fábio Barbosa de Freitas (UFCG)
Fernanda Bragato (Unisinos)
Giancarla Brunetto (UFRGS)
Giuseppe Tosi (UFPB)
José Sérgio (USP)
José Luiz Sanfelice (Unicamp)
João Ricardo Dornelles (PUC-RJ)
Julio C. Llanan Nogueira (UNR-Rosário/Argentina)
Helena Esser (UFG)
Lúcia de Fátima Guerra (UFPB)
Versão on-line da RIDH - ISSN: 2357-7738 Márcia dos Santos Macêdo (UFBA)
www2.faac.unesp.br/ridh3 Maria Nazaré Tavares (UFPB)
Mariana Blengio Valdés (UdelaR/Uruguai)
Marco Mondaini (UFPE)
Marlise Miriam de Matos Almeida (UFMG)
Maria das Graças de P. Britto (UFPel)
Miriam Pillar Grossi (UFSC)
Nair Heloisa Bicalho de Souza (UnB) Iraíde Marques de Freitas Barreiro (Unesp-Assis)
Naldson Ramos da Costa(UFMT) Itamar Nunes Silva (UFPB)
Paulo Carbonari (IFIBE) Ivo Pons (Mackenzie)
Ricardo Barbosa de Lima (UFG) Jair Pinheiro (Unesp-Marília)
Rosa Maria Godoy (UFPB) João Carlos Jarochinski Silva ( UFRR)
Sandra Unbehaum (Fund. Carlos Chagas) José Brás Barreto de Oliveira (Unesp-Bauru)
Sheila Stolz (FURG) José Luiz Guimarães (Unesp-Assis)
Sólon Viola (Unisinos) José Renê Trentim (Unicamp)
Zilda Márcia Gricoli Iokoi (USP) Juarez Tadeu de Paula Xavier (Unesp-Bauru)
Luana Rosário (UESC)
Conselho Consultivo Lúcia de F. Guerra Ferreira (UFPB)
Adalberto da Silva Retto Júnior (Unesp-Bauru) Julio C. Llanan Nogueira (UNR-Rosário/Argentina)
Abraham Magdenzo (Cátedra da Unesco em DH-Chile) Laércio Fidelis Dias (Unesp-Marília)
Agnaldo dos Santos (Unesp-Marília) Larissa Maués Pelúcio Silva (Unesp-Bauru)
Alberto Damasceno (UFPA) Leonardo Lemos de Souza (Unesp-Assis)
Aline da Silva Nicolino (UFG) Luciana de Oliveira Dias (UFG)
Alonso Bezerra de Carvalho (Unesp-Assis) Luís Antônio Francisco de Souza (Unesp-Marília)
Ana Maria Klein (Unesp-São José do Rio Preto) Magno Luiz Medeiros da Silva (UFG)
André Varella (UFF-RJ) Maria Goretti Dal Bosco (UFG)
Antônio Euzébios Filho (USP) Maria Ribeiro do Valle (Unesp-Araraquara)
Antônio Hilário Aguilera Urquiza (UFMS) Maria Salete Kern Machado (UnB)
Antônio Mendes da Costa Braga (Unesp-Marília) Mariana Blengio Valdés (UdelaR-Montevidéu)
Antônio Roberto Espinosa (Unifesp) Maximiliano Martin Vicente (Unesp-Bauru)
Ari Fernando Maia (Unesp-Bauru) Nilma Silva (Unesp-Bauru)
Arlete Maria Francisco (Unesp-Pres. Prudente) Paula Ariane Freire (IBEJ - Uberaba)
Brunela Vieira de Vincenzi (UFES) Paulo Ribeiro Rodrigues da Cunha (Unesp-Marília)
Carlo Napolitano (Unesp-Bauru) Petrônio de Tílio Neto (Mackenzie)
Carlos Ugo Santander (UFG) Raul Aragão Martins (Unesp- S. J. do Rio Preto)
Cássia Letícia Carrara Domiciano (Unesp-Bauru) Ricardo Barbosa de Lima (UFG)
Célia Maria Rodrigues da Costa Pereira (UFPE) Rodolfo Puttini (Unesp-Botucatu)
Celma Tavares (UFPE) Rodrigo Alves Correia (Fac. AVEC de Vilhena -RO)
Cerise de Castro Campos (UFG) Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos (Unesp-Marília)
César Augusto Silva da Silva (UFGD-PB) Rosângela de Lima Vieira (Unesp-Marília)
Cláudio Roberto Y Goya (Unesp-Bauru) Sandra Eli Sartoreto de O. Martins (Unesp-Marília)
Cristiane Famer Rocha (UFRGS) Sílvia Ap. de Sousa Fernandes (Unesp-Marília)
Cristina Grobério Pazó (Fac. de Direito de Vitória) Solange Ramires Daher (Unesp-Botucatu)
Dagoberto José Fonseca (Unesp-Araraquara) Suzana Sacavino (Novamerica-RJ)
Danilo Rothberg (Unesp-Bauru) Telma Regina de Paula Sousa (Unimep-Piracicaba)
Douglas Antônio Rocha Pinheiro (UnB) Raquel Cabral (Unesp-Bauru)
Edinilson Donisete Machado (Univem-Marília) Roberto Goulart Menezes (UnB)
Edmundo Antonio Peggion ( Unesp/FCL-Araraquara) Teófilo Marcelo de Arêa Leão Jr. (Univem-Marília)
Emina Márcia Nery dos Santos (UFPA) Vera Lúcia Messias Fialho Capellini (Unesp-Bauru)
Evandro Fiorin (Unesp-P. Prudente) Washington Cesar Shoiti Nozu (UFGD)
Fábio Metzger (FMC/UNIESP-Caieiras/SP) Wellington Lourenço de Almeida (UnB)
Fernanda Bragato (Unisinos)
Fernanda Henriques (Unesp-Bauru)
Flávia Queiroga Aranha de Almeida (Unesp/Botucatu)
Flávia Roberta Benevenuto de Souza (UFAL)
Gustavo José de Toledo Pedroso (Unesp-Franca) Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos
Guilherme de Almeida (USP) Av Eng Luiz Edmundo Carrijo Coube, nº 14-01 (sala 69)
Helena Esser (UFG) Vargem Limpa - CEP 17.033-360 - Bauru-SP
Tel.: (14) 3103-6172 / 6064
Heloísa Pait (Unesp-Marília)
• e-mail: ridh@unesp.br
Henrique Sartori de Almeida Prado (UFGD-PB)
ESTA REVISTA FOI PATROCINADA PELA

Os artigos são de responsabilidade exclusiva dos autores. É permitida sua


reprodução, total ou parcial, desde que seja citada a fonte.

323.4 Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos / Observatório de


R349 Educação em Direitos Humanos/UNESP. – Vol. 1, n. 1 (2013)
– São Paulo : OEDH/UNESP, 2013–

Semestral

ISSN - 2318-9568

1. Direitos Humanos – Periódico. I. Brasil, Observatório de


Educação em Direitos Humanos. II. Universidade Estadual Pau-
lista “Júlio de Mesquita Filho”.

Copyright© OEDH/UNESP, 2022


Sumário

000
Editorial
7 Clodoaldo Meneguello Cardoso
É um tempo de guerra; é um tempo sem sol

DOSSIÊ:
11 Fábio Santos de Andrade; Reginaldo Santos Pereira
Apresentação: Pessoas em situação de rua: a luta pelo direito de viver

17 João Clemente de Souza Neto; Orlando Coelho Barbosa, Leandro


Alves Lopes
População em situação de rua, expressão da desigualdade social

41 Thalita Catarina Decome Poker; Stephanie Caroline Ferreira de Lima


Marcas da precariedade da pandemia de COVID-19 na vida de mulheres
em situação de rua

65 Maria Izabel Sanches Costa; Fabiana Santos Lucena


Cidadania e o direito à saúde da população em situação de rua: um olhar sobre a
estratégia do Consultório na Rua

85 Rodrigo Pedro Casteleira


Pandemia, racialidade e homens negros em situação de rua

97 Rodrigo Alvarenga; Isabele Cristine Gulisz


As violações de direitos humanos da população em situação de rua na cidade de
Curitiba

115 Fábio Santos de Andrade; Reginaldo Santos Pereira; Armelinda Borges da Silva
Crianças e adolescentes em situação de rua: relações entre a rua, o trabalho e a
escola

129 Márcia Astrês Fernandes; Amanda Alves de Alencar Ribeiro


População em situação de rua e o direito de acesso aos serviços de saúde
Artigos diversos
Relações internacionais
141 Danilo Garnica Simini
A proteção das pessoas com deficiência no Sistema Interamericano
de Direitos Humanos

163 Teresa Cristina Schneider Marques


Educação e engajamento pelos direitos humanos: potencialidades
e limites dos cursos livres online de direitos humanos, da Anistia
Internacional

191 Fábio Bacila Sahd


O apartheid na Palestina/Israel: revisão crítica e comparativa das
considerações da Yesh Din, B’Tselem e Human Rights Watch

217 Pedro Teixeira Pinos Greco; Jorge Rubem Folena


Seletividade e Utilitarismo nas Imigrações Internacionais para o
Brasil

Educação tecnológica
235 Ana Carolina Corrêa Salvio; Helder Antonio da Silva
Aproximações conceituais entre educação em direitos humanos e
as bases teóricas da educação profissional e tecnológica

Comunicação
255 Janaina Soares Gallo e Anderson Vinicius Romanini
‘Direitos humanos para humanos direitos’: como um conceito
distorcido de Direitos Humanos se dissemina como meme

Saúde pública
273 Thais Janaina Wenczenovicz; Noelen Alexandra Weise da Maia
COVID-19 e as mulheres brasileiras: direitos sexuais e direitos
reprodutivos entre a crise política e a crise sanitária

293 NORMAS PARA PUBLICAÇÃO NA RIDH

297 OBSERVATÓRIO DE EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS


CLODOALDO MENEGUELLO CARDOSO
Editorial

Editorial

É um tempo de guerra; é um tempo sem sol.

Eu vivo em tempos sombrios.


Uma linguagem sem malícia é sinal de
estupidez,
uma testa sem rugas é sinal de indiferença.
Aquele que ainda ri é porque ainda não
recebeu a terrível notícia.
.................................
Bertolt Brecht

A RIDH, edição 18, sai em tempos sombrios.


Não há como não pensar, nós universitários dos anos de chumbo, na
canção Tempo de Guerra, de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri (inspirada
em poema de Brecht), um dos momentos mais fortes do musical Arena Con-
ta Zumbi (1965), dirigido por Augusto Boal. Lutávamos contra a ditadura, so-
nhando com um outro mundo – de liberdade, de igualdade e de solidarieda-
de – para aqueles que viriam depois de nós.
Lutávamos e continuamos lutando; hoje contra uma mentalidade re-
acionária que insiste retroagir ao pensamento dualista, que separa a física da
metafísica e a ciência da ética; que opõe razão e sensibilidade; que difere o ser
humano da natureza; que propõe soluções pela força; que julga moralmente
apenas pelo parâmetro de bem e mal, de céu e inferno; que veste o menino
de azul e a menina de rosa; enfim, um pensamento que vê o mundo a partir
do nós contra eles, do branco sobre as outras cores.
E hoje, deixaremos, para as gerações futuras, aquele mundo do Ima-
gine de John Lennon? Onde está aquele novo paradigma de civilização fun-
dado na superação do machismo e do racismo; na igualdade de direitos, na
inclusão, na solidariedade e na justiça socioambiental? Talvez alguns passos
já tenham sido dados nesta direção, principalmente pela luta dos movimen-
tos sociais, porém o establishment mundial ainda se encontra enraizado em
valores conservadores e em princípios da modernidade; e mais ainda, agora
surgem propostas morais dogmáticas pré-modernas.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 7-9, jan./jun., 2022. (18) 7


CLODOALDO MENEGUELLO CARDOSO
Editorial

O mundo atual está vivendo uma guerra entre duas visões imperialis-
tas, dissimuladas em ataques localizados e batendo na eterna tecla dos pode-
rosos para justificar a violência: a legítima defesa. Na realidade o que os move
é a expansão de seu campo de influência econômica. Não aprendemos que
não há paz entre vencedores e vencidos.
O mundo passou (ainda passa?) por uma pandemia que já dizimou milhões
de vidas e fez alastrar ainda mais a extrema pobreza, numa verdadeira pandemia
das desigualdades. Mesmo assim não aprendemos que não há paz com fome.
O planeta está dando sinais claros de uma crise climática pela não
superação do extrativismo, pela destruição das florestas e pela poluição da
água, terra e ar. Não aprendemos ainda que o planeta não nos pertence, mas
que nós a ele pertencemos.
No Brasil também vivemos em meio de uma guerra, com bombardeios
diários à dignidade humana. Vivemos sob um autoritarismo institucionalizado,
que nega o valor da cultura e das ciências; promove o desmonte das políticas
públicas e dos conselhos de participação social; incentiva preconceitos; é coni-
vente com a devastação das florestas e do genocídio de indígenas; e alimenta,
pelas redes sociais, a cultura da violência e violação dos direitos humanos.
Aqui, nossas escolas também sofrem massacres ideológicos, quando a
gestão democrática é invadida pela administração autoritária disciplinadora;
quando o docente é amordaçado ao discutir questões de gênero e quando o
ensino domiciliar tira do aluno seu direito de formação na convivência social
escolar. Esse é um ataque ao nosso futuro.
E mais. A face mais cruel da realidade brasileira está escancarada nas ruas
em que tentam sobreviver milhares de pessoas; nas filas intermináveis de desem-
pregados; na imensidão de nossas favelas e na violência que tortura e mata a céu
aberto. Fascismo e miséria seriam, hoje, a terrível notícia de que fala Brecht?
Não aprendemos muito, enquanto nação, o que é a democracia, em
que todos possam ter efetivamente garantidos seus direitos. A crise da demo-
cracia se enfrenta com mais democracia; com uma democracia social partici-
pativa, socialmente justa, culturalmente livre e solidária com a humanidade
de hoje e a do futuro.

***

Nesse tempo sombrio, RIDH 18 vem trazer sua contribuição para dis-
sipar as nuvens escuras, com estudos e pesquisas que mostram causas con-
junturais e estruturais de violações dos direitos humanos e apontam possíveis
caminhos de sua superação.

8 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 7-9, jan./jun., 2022. (18)


CLODOALDO MENEGUELLO CARDOSO
Editorial

Em sua 1ª seção, a RIDH traz um dossiê sobre um dos grandes proble-


mas sociais do Brasil: Pessoas em situação de rua: a luta pelo direito de viver. Os
artigos serão apresentados pelos coordenadores Fábio Santos de Andrade e
Reginaldo Santos Pereira.
Na seção de Artigos diversos há sete contribuições com estudos sobre
direitos humanos a partir quatro áreas específicas de pesquisa:
Relações internacionais. - Danilo Simini analisa a atuação do Sistema
Interamericano de Direitos Humanos com a incorporação da temática dos di-
reitos das pessoas com deficiência. - Teresa Marques traz um estudo sobre as
potencialidades e limites dos cursos de direitos humanos oferecidos pela Anis-
tia Internacional. - Fábio Sahd retoma a Questão Palestina com uma revisão
crítica e comparativa dos comentários de duas ONGs, com posicionamentos
divergentes quanto aos direitos humanos. - Pedro Greco e Jorge Folena ar-
gumentam que há um tratamento seletivo e utilitarista, dado pelo Brasil, aos
imigrantes internacionais.
Educação Tecnológica: - Ana Carolina Salvio e Helder da Silva discutem
os fundamentos teóricos que justificam as possíveis aproximações entre a
Educação em Direitos Humanos e a Educação Profissional e Tecnológica.
Comunicação: - Janaina Gallo e Anderson Romanini trazem uma inves-
tigação sobre como as mídias sociais contribuíram para a disseminação da
frase ‘Direitos humanos para humanos direitos’, como um meme.
Saúde pública: - Thais Wenczenovicz e Noelen da Maia refletem sobre a
crise sanitária em relação aos direitos sexuais e direitos reprodutivos nas mulhe-
res brasileiras, tendo em vista o avanço do conservadorismo na política nacio-
nal e o período da pandemia da COVID-19.
Boa leitura!

***

Os posicionamentos, contidos nos artigos publicados, são de respon-


sabilidade dos/as autores/as.

Bauru-SP, junho de 2022


Clodoaldo Meneguello Cardoso
Editor

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 7-9, jan./jun., 2022. (18) 9


Dossiê

Pessoas em situação de rua: a


luta pelo direito de viver
FÁBIO SANTOS DE ANDRADE; REGINALDO SANTOS PEREIRA
Apresentação

Apresentação
Pessoas em situação de rua: a luta pelo direito de viver
A rua sempre foi um lugar de passagem que nos conduz aos destinos.
Um lugar de trabalho, de luta e de festa. Na rua, direitos foram conquistados
e censurados; líderes foram eleitos e depostos. A rua sempre foi um lugar de
movimento, de ação, de liberdade e de vida.
A rua também é o não-lugar dos que tiveram seus direitos básicos nega-
dos e dela e nela sobrevivem. São crianças, adolescentes, adultos e idosos, que
desenvolvem táticas lícitas ou ilícitas, para garantir a vida individual ou coletiva.
Essas são as pessoas que, por motivos diversos, deixaram suas casas de forma
temporária ou definitiva e estão nas ruas lutando pela sobrevivência.
O fenômeno da população em situação de rua no Brasil é histórico e
seus primeiros registros datam do século XVI. Com o passar dos anos as pes-
soas em situação de rua foram se adaptando ao tempo e espaço, tornando-se
cena comum em todo o território brasileiro no século XX. No decorrer da his-
tória, essas pessoas ganharam diversos nomes como “mendigo”, “maltrapilho”,
“marginal”, “esmoler”, “indigente”, “mendicante”, “pedinte”, dentre muitos ou-
tros, mas é a negação de direitos, a violência e a pobreza extrema que sempre
as fizeram buscar a rua como espaço de moradia e/ou sobrevivência. Cabe
destacar que as pessoas em situação de rua não são um grupo homogêneo;
elas se dividem em diversos grupos com características distintas e o que os
iguala é a busca pela sobrevivência na rua.
Cotidianamente as pessoas em situação de rua são percebidas por
toda a parte: nos bancos de praça, calçadas, semáforos, porta de lojas. São
quase cena fixa da paisagem urbana de muitas cidades, perdendo suas iden-
tidades, passando a ser parte do local onde são visualizadas.
Nos últimos anos o número de pessoas em situação de rua tem cres-
cido principalmente nos grandes centros urbanos, passando a ser notícia fre-
quente nos meios de comunicação. Esse número ganhou mais notoriedade
no atual contexto político, com agravantes causados pela Covid-19 e pela fal-
ta de políticas públicas de qualidades capazes de garantir direitos de forma
efetiva e promover a justiça social. O que marca o tempo atual é o cresci-
mento da violência gratuita sofrida por pelas pessoas em situação de rua por
parte do Estado ou da sociedade, em contraste com as ações de solidariedade
promovidas por grupos sociais, que tentam minimizar o problema.
Na tentativa de compreender um pouco mais os fenômenos que en-
volvem o estar em situação de rua, propomos o dossiê Pessoas em situação

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 13-15, jan./jun., 2022 (18) 13


FÁBIO SANTOS DE ANDRADE; REGINALDO SANTOS PEREIRA
Apresentação

de rua: a luta pelo direito de viver. Nessa trilha, buscamos provocar pesqui-
sadores e pesquisadores a pensar as pessoas situações de rua, seus lugares e
não-lugares, seu mundo visível e invisível, estabelecendo um diálogo com os
direitos humanos, principalmente sobre a negação dos mesmos. Para tanto,
o dossiê foi construído com sete artigos que apresentam as causas e motivos
de ser e estar em situação de rua, evidenciando os significantes e significados
que nela são construídos.
O primeiro artigo, “População em situação de rua, expressão da desi-
gualdade social”, apresentado pelos autores João Clemente de Souza Neto,
Orlando Coelho Barbosa e Leandro Alves Lopes, buscou compreender a di-
nâmica das pessoas em situação de rua e as vinculações com a desigualdade
social. Partem da percepção do fenômeno e da análise do modo pelo qual as
políticas públicas atuam na cidade de São Paulo. Nessa trilha, o texto eviden-
cia que as políticas locais continuam a reproduzir a desigualdade e a negar
direitos básicos aos que estão em situação de rua.
O segundo artigo, intitulado “Marcas da precariedade da pandemia de
COVID-19 na vida de mulheres em situação de rua”, das autoras Thalita Catarina
Decome Poker e Stephanie Caroline Ferreira de Lima, reflete sobre o contex-
to atual das mulheres em situação de rua diante da pandemia do COVID-19.
O texto traz um importante debate sobre a promoção e garantia dos direitos
das mulheres em situação de rua e uma análise crítica da violência estrutural e
estruturante naturalizada pelo Estado, que reconhece os corpos femininos em
situação de rua como inteligíveis no campo das políticas públicas.
O terceiro, “Cidadania e o direito à saúde da população em situação
de rua: um olhar sobre a estratégia do Consultório na Rua” escrito por Maria
Izabel Sanches Costa e Fabiana Santos Lucena, trata de um ensaio que traz
uma reflexão sobre o status de cidadania da população em situação de rua
frente ao acesso à política de saúde brasileira. Nesse contexto, ganha desta-
que a atuação dos profissionais da saúde que estão inseridos na estratégia do
Consultório na Rua.
O artigo, “Pandemia, racialidade e homens negros em situação de
rua”, de Rodrigo Pedro Casteleira, problematiza o entrecruzamento de raça/
cor, masculinidade e pessoas em situação de rua, durante a pandemia do Co-
vid-19. O texto reflete sobre as relações de branquitude vinculadas à raciali-
dade da pele, tanto de pessoas negras como de pessoas brancas, implicando
em alterações nas subjetividades que buscam construir padronizações que
firmam o lugar comum para pessoas negras, em destaque as que estão em
situação de rua.
Em “As violações de direitos humanos da população em situação de
rua na cidade de Curitiba”, Rodrigo Alvarenga e Isabele Cristine Gulisz descre-

14 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 13-15, jan./jun., 2022 (18)


FÁBIO SANTOS DE ANDRADE; REGINALDO SANTOS PEREIRA
Apresentação

vem o processo de abandono e de violação de direitos humanos pelo qual


tem passado as pessoas em situação de rua na cidade de Curitiba (PR) duran-
te a pandemia. Os autores destacam as medidas que foram tomadas pelos
movimentos sociais, sociedade civil e universidades no enfrentamento desse
processo necropolítico.
O artigo, intitulado “Crianças e adolescentes em situação de rua: rela-
ções entre a rua, o trabalho e a escola”, de Fábio Santos de Andrada, Reginaldo
Santos Pereira e Armelinda Borges da Silva, traz a reflexão sobre o cotidiano
das crianças e adolescentes em situação de rua, sobre as relações de sociabi-
lidade estabelecidas com seus pares e sobre ações de inclusão na escola. O
estudo aponta que a mudança de cenário, em que as crianças e adolescentes
deixam as ruas, retornam ao convívio familiar e são inseridas na escola, deve
considerar diversos fatores sociais, culturais e econômicos, que envolvem
principalmente as situações de pobreza.
No último artigo do dossiê, “População em situação de rua e o direito
de acesso aos serviços de saúde”, Márcia Astrês Fernandes e Amanda Alves de
Alencar Ribeiro fazem uma investigação analítica dos direitos de acesso aos
serviços de saúde pelas pessoas em situação de rua no Brasil, construída a
partir da leitura crítica sobre a Política Nacional para a População em Situação
de Rua e de investigações relacionadas à temática.
Agradecemos às pesquisadoras e pesquisadores que contribuíram
com esse dossiê e desejamos a todas e a todos uma boa leitura!
Boa leitura!

Coordenadores
Prof. Dr. Fábio Santos de Andrade
Universidade Federal de Rondônia – UNIR

Prof. Dr. Reginaldo Santos Pereira


Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 13-15, jan./jun., 2022 (18) 15


População em situação de rua,
expressão da desigualdade
social1
§ Población en situación de calle, expresión de la
desigualdad social

§ Street population, expression of social inequality

João Clemente de Souza Neto2


Orlando Coelho Barbosa3
Leandro Alves Lopes4

Resumo: A população em situação de rua é um fenômeno urbano multifa-


cetário, heterogêneo, geralmente constituído por pessoas abaixo da linha da
pobreza, resultante das condições sociais, culturais, educacionais, religiosas,
de gênero e saúde, e produzido pelo modelo político e econômico vigen-
te. É um grupo social caracterizado por múltiplas privações de direitos que,

1 Este artigo é resultado de pesquisas que os autores desenvolvem no Grupo de Estudo e Pesquisa em Pedagogia So-
cial (GEPPS), que tem como foco compreender as formas de apropriação e as estratégias de sobrevivência utilizadas
pela pessoa em situação de vulnerabilidades, bem como as práticas de atendimento.
2 Pós-Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP, professor e pesquisador no Programa de Pós-Graduação EAHC e
do Curso de Pedagogia. Líder do GEPPS; membro do Socius, da Universidade Técnica de Lisboa, do Instituto Ca-
tequético Secular São José, da Associação Civil Gaudium et Spes, da Pastoral do Menor e da rede internacional de
Pedagogia Social. j.clemente@uol.com.br
3 Doutorando em Psicologia Educacional, no Programa de Psicologia do UNIFIEO e membro do GEPPS. ohaicai@
gmail.com
4 Doutorando do Programa de Pós-graduação em Educação, Arte, História da Cultura, da Universidade Presbite-
riana Mackenzie, membro do GEPPS. Atua como Orientador Pedagógico do Centro Social Nossa Senhora do Bom
Parto, Assessor nacional das Escolas de Cidadania e da Pastoral do Menor. leandro.alps1@gmail.com

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 17-39, jan./jun., 2022. (18) 17


JOÃO CLEMENTE DE S. NETO; ORLANDO C. BARBOSA; LEANDRO A. LOPES
População em situação de rua, expressão da desigualdade social

de modo geral, as políticas públicas ainda são insuficientes para atender. Os


dados estatísticos apontam que o número da população em situação de rua
aumenta à medida que a desigualdade social cresce. O objetivo deste artigo
é compreender a dinâmica dessa população e sua vinculação com a desigual-
dade social. Para a percepção do fenômeno e análise do modo pelo qual as
políticas públicas atuam na cidade de São Paulo, bem como sobre quais são
as necessidades efetivas das pessoas em situação de rua, a metodologia ado-
tada foi exploratória descritiva, tendo como base documentos e entrevistas.
Foram entrevistadas duas pessoas que viveram na rua e hoje atuam no servi-
ço Consultório na Rua do Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto. O que
nos pareceu evidente é que as políticas locais mais reproduzem a desigual-
dade social do que promovem a garantia dos direitos. Os poucos acessos de
dignidade advêm de ações solidárias de práticas da teologia, da filosofia e da
pedagogia da libertação.

Palavras-chave: Pessoa em situação de rua. Desigualdade Social. Solidarie-


dade. Consultório na Rua. BOMPAR.

Resumen: La población en situación de calle es un fenómeno urbano multifa-


cético, heterogéneo, generalmente constituido por personas por debajo de la
línea de la pobreza, resultante de las condiciones sociales, culturales, educa-
tivas, religiosas, de género y salud, y producido por el modelo político y eco-
nómico vigente. Es un grupo social caracterizado por múltiples privaciones
de derechos que, en general, las políticas públicas todavía son insuficientes
para atender. Las estadísticas indican que el número de personas en situación
de calle aumenta a medida que aumenta la desigualdad social. El objetivo de
este artículo es comprender la dinámica de esta población y su vinculación
con la desigualdad social. Para la percepción del fenómeno y el análisis del
modo en que las políticas públicas actúan en la ciudad de São Paulo, así como
sobre cuáles son las necesidades efectivas de las personas en situación de
calle, la metodología adoptada fue exploratoria descriptiva, teniendo como
base documentos y entrevistas. Fueron entrevistadas dos personas que vivie-
ron en la calle y hoy actúan en el servicio Consultorio en la Calle del Centro
Social Nossa Senhora do Bom Parto. Lo que nos ha parecido evidente es que
las políticas locales reproducen más la desigualdad social que la garantía de
los derechos. Los pocos accesos de dignidad provienen de acciones solidarias
de prácticas de la teología, de la filosofía y de la pedagogía de la liberación.
Palabras clave: Persona en situación de calle. Desigualdad Social. Solidari-
dad. Consultorio en la Calle. BOMPAR.

18 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 17-39, jan./jun., 2022. (18)


JOÃO CLEMENTE DE S. NETO; ORLANDO C. BARBOSA; LEANDRO A. LOPES
População em situação de rua, expressão da desigualdade social

Abstract: The homeless population is a multifaceted, heterogeneous urban


phenomenon, usually composed of people below the poverty line, resulting
from social, cultural, educational, religious, gender and health conditions, and
produced by the current political and economic model. It is a social group
characterized by multiple deprivations of rights that, in general, public poli-
cies are still insufficient to meet. Statistics show that the number of homeless
people increases as social inequality increases. The aim of this article is to un-
derstand the dynamics of this population and its link with social inequality. For
the perception of the phenomenon and analysis of the way in which public
policies operate in the city of São Paulo, as well as about what are the effective
needs of people in street situations, the methodology adopted was descrip-
tive exploratory, based on documents and interviews. Two people who lived
on the street and today work in the service Office on the Street Centro Social
Nossa Senhora do Bom Parto were interviewed. What we have seemed clear
to us is that local policies reproduce social inequality more than they promote
the guarantee of rights. The few accesses of dignity come from solidarity ac-
tions of theology, philosophy and pedagogy of liberation practices.

Keywords: Homeless person. Social inequality. Solidarity. Office on the Street.


BOMPAR.

Introdução
Este artigo visa evidenciar as correlações entre a desigualdade social
e o aumento de pessoas em situação de rua, assim como as estratégias de
sobrevivência dessa população na cidade de São Paulo. No Brasil e no mun-
do, a desigualdade social corrói a coesão social e a democracia. Sob a socie-
dade globalizada e moderna recai o peso de não efetivar o almejado estado
de bem-estar social, com os agravantes da fome, violência, intolerância e da
conivência com a perda de dignidade, invisibilidade, coisificação de pessoas,
fortalecendo a cultura do descarte social, que persiste com diferentes rou-
pagens, desintegra e potencializa paradoxalmente a confiança, a cooperação
e a esperança. Entre as consequências inevitáveis, estão a perda do sentido
existencial, as dificuldades de concretização dos sonhos, a reificação da espe-
rança e dos desejos. Numa realidade, em que são

[...] cada vez mais numerosas as pessoas descartadas, privadas dos


direitos humanos fundamentais, o princípio do bem comum tor-
na-se, imediatamente, [...] um apelo à solidariedade e uma opção

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 17-39, jan./jun., 2022. (18) 19


JOÃO CLEMENTE DE S. NETO; ORLANDO C. BARBOSA; LEANDRO A. LOPES
População em situação de rua, expressão da desigualdade social

preferencial pelos mais pobres. [...]. Basta observar a realidade para


compreender que, hoje, esta opção é uma exigência ética funda-
mental para a efetiva realização do bem comum. (FRANCISCO, 2015,
p. 95).

Os discursos do Papa Francisco e as teorias de uma pedagogia social hu-


manizadora, articulados com os movimentos e comunidades comprometidas com
a libertação, ecoam e exigem mudanças radicais das estruturas sociais e culturais.
Neste contexto, múltiplas práticas de justiça e solidariedade se alastram pelo país.

O efeito cruzado dos desejos de garantir a solidariedade em um am-


biente de insegurança econômica é a brutal simplificação da vida
social: nós-contra-eles associado a você-entregue-a-si-mesmo. [...]
Os brutais simplificadores da modernidade podem reprimir ou dis-
torcer nossa capacidade de viver juntos, mas não eliminam nem po-
dem eliminar essa capacidade. (SENNETT, 2012, p. 336).

As experiências comunitárias e as políticas sociais ainda se apresen-


tam como uma importante estratégia de enfrentamento das iniquidades his-
tóricas nas questões de saúde da população brasileira. Elas podem ajudar a
fortalecer os mecanismos de cooperação e solidariedade, a desconstruir os
mecanismos de opressão. A Constituição Federal de 1988 reconhece os diver-
sos grupos excluídos dos espaços decisórios, do acesso aos bens, da condição
de cidadão, entre os quais estão as pessoas em situação de rua, um grupo
heterogêneo complexo e privado de direitos.
Neste artigo, analisamos as práticas do Consultório na Rua, CRN, um
serviço de políticas de atendimento de caráter transversal, desenvolvido pelo
Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto, BOMPAR5, em colaboração com
a Secretaria Municipal de Saúde da cidade de São Paulo. O CRN faz interfa-
ces prioritariamente com a saúde e a assistência social. “Visto pelo seu caráter
pioneiro, contrata para o cargo de agente comunitário de saúde pessoas que
se encontram em situação de rua ou dela tiveram experiência e vivência.” (LO-
PES, 2020, p. 63).
Na metodologia deste trabalho, examinamos documentos, atas e rela-
tórios do CNR e realizamos entrevistas semiestruturadas com duas profissio-
nais do CRN BOMPAR que partilharam suas experiências na rua até se torna-
rem profissionais da saúde e assistência social junto as pessoas em situação
de rua.
As entrevistadas se declaram transexuais, militantes dos direitos LGB-
TQIA+ e das pessoas em situação de rua. Optaram neste trabalho por serem

5 Fundado em 1946, atende mais de 10.000 pessoas por dia, entre crianças, adolescentes, jovens, idosos, famílias e
pessoas em situação de rua, dado disponível em: https://bompar.org.br/. Acesso em: 1 fev. 2022.

20 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 17-39, jan./jun., 2022. (18)


JOÃO CLEMENTE DE S. NETO; ORLANDO C. BARBOSA; LEANDRO A. LOPES
População em situação de rua, expressão da desigualdade social

identificadas por seus nomes sociais, Samira e Susy, ambas buscaram São Pau-
lo como opção para melhoria das condições de vida. Susy é do Nordeste do
país está na cidade há nove anos, passou cerca de dois meses na rua e seis
anos em centros de acolhida. Com o trabalho, que iniciou há três anos, Susy
conseguiu morar de aluguel e concluir o ensino médio. Diz não ter feito uso
de álcool ou outras drogas. Samira é da Região Norte do país e está na cidade
há 22 anos, mas vivia na rua desde os 14 anos de idade. Teve que se prostituir
para sobreviver, sofreu diversas violências, fez uso de álcool e outros tipos de
droga. Há nove anos trabalhando no BOMPAR, retomou os estudos e concluiu
a graduação em serviço social.
A entrevista seguiu o formato de ‘vídeo-chamada’ pelo aplicativo goo-
gle meet, com duração de uma hora cada, sendo previamente autorizada a
gravação. Os dados coletados foram processados e analisados. Durante a en-
trevista, foram abordados os seguintes itens: Fale um pouco sobre sua traje-
tória de rua. Por que você veio para São Paulo? Sobre a questão de gênero,
nos serviços que acolhem a população de rua existem diferenças? Hoje, na
condição de trabalhadora, como você lida com os conflitos e as violências
de gênero? Quais são as maiores dificuldades da situação de estar na rua?
Quais são suas críticas e o que você mudaria nesta política pública? Como foi
a transição da rua para o trabalho? O que você acha do aumento do número
de pessoas em situação de rua?
Na análise dos depoimentos e documentos, foi possível evidenciar os
múltiplos rostos da pessoa em situação de rua e os limites e possibilidades
das políticas e dos serviços.

Exclusão e desigualdade social


As políticas de direitos humanos podem ser estratégias para a
redução da desigualdade social e o amortecimento do impacto do mercado
sobre o indivíduo. Contudo, também podem ser, às vezes, mais instrumentos
de reprodução do que de redução da desigualdade. O que está em jogo nesse
movimento são os processos de produção e distribuição dos bens materiais e
simbólicos. As políticas públicas visam amortecer o embate entre o capital e
o trabalho. A nosso juízo, para diminuir ou reduzir a desigualdade e garantir
o bem-estar social, é necessário repensar as políticas públicas e sociais, longe
das formas de reproduzir ou escamotear a desigualdade.
No cerne da desigualdade social, está implícita a injustiça cuja finalida-
de é de proteger os interesses de um determinado grupo dominante que tem
a seu serviço a regulação das políticas e do conhecimento. Neste contexto, já
não importam as práticas da verdade e da justiça. O que vale é a manutenção

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 17-39, jan./jun., 2022. (18) 21


JOÃO CLEMENTE DE S. NETO; ORLANDO C. BARBOSA; LEANDRO A. LOPES
População em situação de rua, expressão da desigualdade social

do que é útil para o capital. O que importa é

[...] saber o que, para o capital, era útil ou prejudicial, conveniente


ou inconveniente, o que contrariava ou não a ordenação policial.
Os pesquisadores, desinteressados, foram substituídos por espada-
chins, mercenários, a investigação científica imparcial cedeu lugar
à consciência deformada e às intenções perversas da apologéticas.
(MARX, apud FERNANDES, 1989, p. 425).

A argumentação de Marx nos permite fazer uma avaliação crítica da


política de direitos humanos perante a desigualdade social. Não que sejamos
contrários, apenas mostramos sua feição dúbia, que joga a favor e contra os
trabalhadores, simultaneamente, conforme os interesses do governo de plan-
tão. O desafio das políticas sociais é superar a burocratização e o autoritaris-
mo, construir um diálogo que interfira na gestão, no conteúdo e no método
das políticas sociais. Ao contrário, “[...] a democracia fica sem estofo e a política
social torna-se segmentada, enquanto o sistema econômico excludente e o
mercado de trabalho restrito [...].” (POCHMANN, 2004, p. 11).
O problema brasileiro é a concentração das riquezas nas mãos de pou-
cos, uma situação favorável à expansão do trabalho informal, da pobreza, da
exclusão, da indigência, da miséria, e, por outro lado, da riqueza, do prestígio
e do poder. Devemos acrescentar a essas variáveis o monopólio do conheci-
mento e da comunicação pelo detentor do capital. A diminuição da pobreza e
da exclusão social não reduz, necessariamente, a desigualdade social.
A exclusão social pode ser definida como um processo que, sistema-
ticamente, impede pessoas ou grupos de terem acesso ao trabalho, à educa-
ção, aos serviços sociais e públicos, a outros bens produzidos pela sociedade
(CASTELLS, 1999). O atual sistema econômico vem provocando a exclusão de
quase dois terços da humanidade. Seus efeitos são no crescimento do núme-
ro de pessoas e famílias em situação de rua.
A desigualdade social tem o rosto e a cor dos pobres, das mulheres,
dos negros, dos idosos, dos desfiliados, dos jovens, das crianças, indígenas,
entre outras. Ela carrega em si uma ruptura do indivíduo com o sistema, fun-
dada em preconceitos e no desrespeito aos direitos de cidadania e à dignida-
de humana. Essa ruptura conduz à degradação dos valores éticos e dificulta o
processo de socialização (DUPAS, 2001).
Se observarmos a realidade da desigualdade social, teremos melhores
condições de compreender a população em situação de rua e afirmar que no
Brasil este é um dado multissecular. De vários modos, a população em situa-
ção de rua é encarada como objeto de confinamento, polícia e religião, muito
pouco de políticas sociais. Não é suficiente elaborar propostas socioassisten-
ciais pautadas na inclusão, quando as estruturas sociais, de fato, continuam a

22 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 17-39, jan./jun., 2022. (18)


JOÃO CLEMENTE DE S. NETO; ORLANDO C. BARBOSA; LEANDRO A. LOPES
População em situação de rua, expressão da desigualdade social

reproduzir a desigualdade social. Nesse meandro, propostas e projetos que se


propõem a inserir essa população no centro do processo de libertação têm
contra si a cultura da servidão voluntária.

As novas formas de capitalismo enfatizam o trabalho de curto prazo


e a fragmentação institucional; o efeito desse sistema econômico
tem sido a impossibilidade para os trabalhadores de sustentar as re-
lações sociais de apoio entre eles. [...] Em tais condições, [...] a solida-
riedade destrutiva do nós-contra-eles é feita sob medida. (SENNET,
2012, p. 335).

A solidariedade libertadora é aquela na qual as pessoas se articulam


para resistir e buscar a libertação do seu coletivo. O desafio é romper com as
práticas de solidariedade destrutiva que penetraram as políticas de direitos hu-
manos, como uma doença que destrói um corpo sadio. Por isso, a pergunta de
La Boétie: - “Por que um só é o rei?” Um rei que impede nossa capacidade de
viver juntos, que tudo converte em mercadoria, até a solidariedade e a ética?
As práticas de solidariedade, quando capturadas por uma cultura da
servidão voluntária, no interior da desigualdade social, são perversas. Quan-
do enveredam pela lógica do controle, à luz de pseudodireitos humanos e de
uma pseudodemocracia, típicos da manutenção de um mal-estar social, po-
dem se transformar em mecanismos de sujeição dos corpos, da subjetividade,
do amor, da liberdade e da felicidade. Esta dinâmica reforça a sociedade em
que abundam os direitos.

É uma sociedade democrática; é uma sociedade de controle; [...] a


mesma tirania do Um, como disse [...] La Boétie, no século XVI. É a era
de outras guerras, [...] que [...] se aparenta cada vez mais com a políti-
ca, atuando nas invisibilidades. A política é guerra por outros meios,
de vida de alguns, mortes de muitos por tecnologias diferenciadas.
(PASSETI, 2003, p. 254).

Por este olhar, acreditamos que coexistam nas políticas de direitos hu-
manos um controle que oprime tanto quanto liberta. A democracia e as práti-
cas de solidariedade não visam somente à melhoria das condições de vida das
pessoas, elas permitem, reproduzir a desigualdade, manter o processo de ex-
clusão social, aumentar a produção e a riqueza (SOUZA NETO, 2003), já que “[...]
a sociedade do controle busca criar inúmeros mecanismos de eliminação das
subversões [...]” (HARDT, 2000, p. 372). As políticas de atendimento não podem
servir a isso, transformando a assistência em instrumento de exploração.
Na sociedade capitalista, o sujeito é estimulado, simultaneamente,
a ser agente da biofilia pela promoção da vida, e da necrofilia, movido pela
morte e destruição, preso ao fracasso e ao luto. A necrofilia característica dos
espíritos tirânicos, como o de Hitler, impregna, de certo modo, os políticos

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 17-39, jan./jun., 2022. (18) 23


JOÃO CLEMENTE DE S. NETO; ORLANDO C. BARBOSA; LEANDRO A. LOPES
População em situação de rua, expressão da desigualdade social

corruptos que desviam os recursos dos fundos públicos para interesses pri-
vados. Em direção oposta, a biofilia traz, na sua essência o amor, a alegria de
viver e a tendência a preservar a vida e a lutar contra sua destruição. É neces-
sário compreender estas questões na perspectiva das políticas sociais brasi-
leiras voltadas à população em situação de rua.

Políticas sociais para a pessoa em situação de rua


No período colonial, a assistência no Brasil estava fundada na relação
senhor-escravo. Sem ter onde trabalhar, o vadio era “o indivíduo não inserido
na estrutura de produção colonial, e que podia, de um momento para outro,
ser aproveitado por ela [...]” (SOUZA, 1986, p. 64). Destituído de terras, era uti-
lizado pelos fazendeiros, quando lhes convinha. “Livre e pobre”, permanecia
geralmente ocioso, a vagar pelas praças e ruas das cidades, ou seguia os ban-
deirantes em tarefas de expansão do território nacional ou, ainda, era enviado
aos presídios como preso ou trabalhador.
Nesse contexto, os vadios praticavam a violência como uma forma de
virtude, eram “[...] despojados e destruídos enquanto seres que podiam fruir
de uma liberdade que não tinha razão de ser: a honra não se transformava
em rebeldia, nem a violência se metamorfoseava em revolta [...]” (KOWARICK,
1987, p. 33). Entre 1760 e 1770, todos os governantes adotaram essa medida
(SOUZA, 1986). Outro meio de controle da pobreza era o trabalho em obras
públicas e a organização de tropas para combater quilombos. Hoje, podemos
dizer que mecanismo semelhante é empregado por alguns empresários e po-
líticos para ampliação do próprio capital ou manutenção no poder.
Como mostra a história, em cada época, a pessoa em situação de rua é
conceituada pela sociedade e pelo poder público, ora como vadia, ora como
inválida, louca, ladra, desviante e outros codinomes. A ideologia do século
XVIII, que concebia o pobre como “objeto privado de direitos e desejos”, con-
denado ao extermínio, sem legislação que o protegesse, permitia compreen-
der a relação entre o genocídio e a ausência de políticas sociais bem estabe-
lecidas e articuladas. Cuidavam dessa população, como um ato de filantropia,
as Confrarias ou Irmandades de Misericórdia.
Somente após a formação do Estado Novo em 1930, é que os pobres e
as pessoas em situação de rua começaram a ser vistas como uma questão so-
cial e apareceram as primeiras legislações protetivas. Algumas organizações,
vinculadas à Igreja Católica sob inspiração da práxis da teologia, filosofia e
pedagogia da libertação, engrossaram a mobilização por mudanças na forma
de conceber a assistência social como direito, preconizada pela Constituição

24 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 17-39, jan./jun., 2022. (18)


JOÃO CLEMENTE DE S. NETO; ORLANDO C. BARBOSA; LEANDRO A. LOPES
População em situação de rua, expressão da desigualdade social

Federal de 1988, entre elas o BOMPAR. Os serviços e programas de atendi-


mento à pessoa em situação de rua, pela perspectiva dos direitos humanos
e de uma pedagogia humanizadora, ganharam força no início do século XXI.
Por uma perspectiva de tempo, lembramos que 500 anos se passaram
até que o Estado reconhecesse a população em situação de rua como sujeito
de direitos, no âmbito legal. O Decreto Presidencial nº. 7.053, de 23 de dezem-
bro de 2009, define a população em situação de rua como um grupo hetero-
gêneo de pobreza extrema, vínculos familiares interrompidos ou fragilizados,
que, sem moradia convencional regular, faz uso dos logradouros públicos e
áreas degradadas da cidade como espaços de moradia, de forma temporá-
ria ou permanente, e que utiliza as unidades de acolhimento para pernoite
temporário ou como moradia provisória. “Foram igualmente considerados
moradores de rua aquelas pessoas ou famílias que, também sem moradia,
pernoitam em albergues ou abrigos, sejam eles mantidos pelo poder público
ou privados.” (SÃO PAULO; FIPE, 2000, p. 5).
Com a tecitura das lutas dos movimentos sociais e populares, o governo
federal fez um desenho das políticas de atendimento, que repercutiu na cidade
de São Paulo. No Quadro 1, aparecem as ações da Prefeitura de São Paulo e dos
órgãos de pesquisa para capturar a dinâmica da população em situação de rua.

Quadro 1 - Iniciativas da Prefeitura de São Paulo à população em situação de rua.

ANO AÇÃO
1989 Criação dos centros de serviços para a população em situação de rua.

1990 Reconhecimento pela Prefeitura do trabalho dos catadores de papel das ruas pelo Decreto
Municipal nº 28.649/89.

1991 Primeiro levantamento da população em situação de rua da área central da cidade de São
Paulo, uma parceria entre a Prefeitura de São Paulo e ONGs da cidade, sob a coordenação da
Secretaria Municipal de Bem-Estar Social.

1992 Encontro Internacional paralelo à Cúpula Mundial do Meio Ambiente, marco do debate
sobre a população em situação de rua no Brasil, sob a coordenação da Secretaria Municipal
de Bem-Estar Social.

2000 Primeiro Censo da população em situação de rua realizado pela Fundação Instituto de
Pesquisas Econômicas - FIPE, sob contrato da Secretaria Municipal de Assistência Social da
Prefeitura.

2003 Contagem da população em situação de rua da cidade de São Paulo, realizada pela
Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas - FIPE, sob contrato da Secretaria Municipal de
Assistência Social da Prefeitura.

2004 Assinatura do Primeiro Protocolo de Intenções Intersecretarial entre as Secretarias de As-


sistência Social, Saúde, Habitação e Trabalho, sendo previstas ações para o atendimento das
pessoas em situação de rua. Criação do Projeto “A gente na rua”, da Secretaria da Saúde, no
qual pessoas em situação de rua são capacitadas e contratadas como agentes comunitários
de saúde para atuarem nas ruas.

2009 Segundo Censo da População em Situação de Rua, realizado pela Fundação Instituto de
Pesquisas Econômicas - FIPE, sob contrato da Secretaria Municipal de Assistência Social
Prefeitura.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 17-39, jan./jun., 2022. (18) 25


JOÃO CLEMENTE DE S. NETO; ORLANDO C. BARBOSA; LEANDRO A. LOPES
População em situação de rua, expressão da desigualdade social

2009 - 20010 Pesquisa Socioantropológica Trajetória de Vida da População atendida nos serviços de ac-
olhimento para adultos em situação de rua no município de São Paulo, realizada pelo CERU
- Centro de Estudos Rurais e Urbanos da USP e Secretaria de Assistência e Desenvolvimento
Social da Prefeitura de São Paulo.

Fonte: Quadro elaborado pelos autores a partir dos dados de Silva, 2012, p. 30.

Este quadro de ações e a implantação dos equipamentos públicos fo-


ram insuficientes para estancar a evolução do número de pessoas em situa-
ção de rua. Como podemos observar no Quadro 2, abaixo, essa população
cresceu de forma contínua, o que coloca em primeiro plano a força motora da
desigualdade que supera as políticas de inclusão.

Quadro 2 - Quantidade de pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo, série histórica

Ano do Censo Total de pessoas Acolhido em Em situação de


equipamento Rua
2000 8.706 3.693 5.013
2009 13.666 7.079 6.587
2011 14.478 7.713 6.765
2015 15.905 8.570 7.335
2019 24.344 11.693 12.651
2021 31.884 12.675 19.209
Fonte: Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social da cidade São Paulo,
Censo 20216.

Quando observamos os dados relativos ao censo de 2021 sobre a po-


pulação em situação de rua na cidade de São Paulo, identificamos 31.884 pes-
soas nessa condição, sendo que 39,75% são pessoas que acessam os centros
de acolhida da prefeitura municipal e 60,25% são pessoas que não acessam
os centros de acolhida e vivem diretamente nas ruas. Portanto, os serviços de
acolhimento são insuficientes e ou não atendem as demandas dos grupos
heterógenos de forma a contemplar seu acesso. Este dado nos faz questionar
quais os motivos que essas pessoas não acessam os serviços. A inexistência de
vagas suficientes? Uma acolhida que respeite a heterogeneidade deste grupo
social? O que leva uma pessoa a dormir na rua ao invés de aceitar um serviço
público? A perplexidade que nos atinge ao ver uma pessoa em situação de
rua e a ambiguidade e a dubiedade das políticas públicas, para nos ajudar a
elucidar essas e outras questões é que buscamos nas práticas do CNR BOMPAR
e nos relatos das entrevistadas, sendo possível fazer algumas considerações.

6 Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyjrijoizwe4mte5mgitzjrmmi00ztcyltgxotmtmjc3mdawmd-


m0ngi5iiwidci6ime0zta2mdvjlwuzotutndzlys1imme4lthlnje1ngm5mguwnyj9. Acesso em: 12 mar. 2022.

26 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 17-39, jan./jun., 2022. (18)


JOÃO CLEMENTE DE S. NETO; ORLANDO C. BARBOSA; LEANDRO A. LOPES
População em situação de rua, expressão da desigualdade social

A tecitura de uma solidariedade libertadora


O BOMPAR tem a missão de atender pessoas em situação de privação
de direitos na cidade de São Paulo. Em 2004, criou o projeto “A gente na rua”,
para atender as demandas de cuidado básico e questões de saúde das pes-
soas em situação de rua. Esta iniciativa foi pioneira no Brasil, hoje, denomina
Consultório na Rua, CRN, conveniado com a Secretaria Municipal de Saúde de
São Paulo, desde 2012, tornando-se referência no cuidado à saúde integral
das pessoas em situação de rua, com foco na garantia dos direitos junto ao
SUS e às demais políticas.
O formato inicial deste projeto contou com a contratação de onze agen-
tes comunitários de saúde provenientes da situação de rua, para atender, acom-
panhar e ajudar as pessoas em situação de rua a resolverem suas demandas e
necessidades sociais e em saúde. O CNR do BOMPAR continua com a perspecti-
va organizacional de contratação de pessoas oriundas da situação de vulnerabi-
lidade, importante elo para facilitar o vínculo com essa população.
O CNR do BOMPAR conta com 5 equipes fixas de saúde bucal, 13 equi-
pes odontológicas móveis e 25 equipes multiprofissionais, alocadas nas seis re-
giões do município, para atender, de forma continuada, cerca de 13 mil pessoas
no município de São Paulo. Este serviço gera 617 empregos, destes 221 são pes-
soas oriundas da situação de rua, sendo 15 profissionais transgênero (homens
e mulheres trans), 11 idosos e 16 imigrantes/refugiados. (BOMPAR, 2021a, p. 9).
Ao longo de 17 anos, 90% dos agentes comunitários do CNR BOMPAR
saíram das ruas/barracas/abrigos improvisados de rua, passando a morar de
aluguel ou com familiar, 18% vivem em casa própria, 18% estão cursando a
universidade, 15% já estão atuando na área, 87% retomaram o contato com
a família, 70% voltaram a fazer algum tipo de curso. Enfim, a maioria formou
ou retomou um projeto de vida. (BOMPAR, 2021b, p. 9). Este panorama ajuda
a compreender a dubiedade do serviço socioassistencial. Neste sentido, reite-
ramos nossa visão da coexistência de uma solidariedade criativa.
O que observamos no BOMPAR é a busca permanente de consolidar
uma solidariedade criativa e libertadora. Além de oportunidade de emprego,
mantém o programa Projeto de Vida, de acompanhamento individual, com
vistas para o desenvolvimento acadêmico e profissional dos trabalhadores.
Retoma perspectivas para o futuro, trabalha as possibilidades de retomada
dos estudos, de reaproximação familiar, reorganização de espaços de mora-
dia e tratamento químico, entre outras orientações.
As equipes do CNR assumem as seguintes atribuições: - promover

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 17-39, jan./jun., 2022. (18) 27


ações estratégicas de educação, esporte, lazer e cultura; - fortalecer a auto-
nomia e o convívio; - melhorar a qualidade de vida e contribuir no processo
de reabilitação psicossocial;-fortalecer os vínculos e facilitar o acesso à saúde
pela atenção básica; - identificar agravos que possam comprometer as con-
dições de saúde; - sensibilizar, promover e participar dos cuidados comparti-
lhados com a rede; - promover a saúde mental e a redução de riscos e danos
associados ao uso de drogas; - reduzir o estigma social associado às pessoas
que estão em situação de rua, por meio da convivência comunitária, e parti-
cipativa; - promover encontros em espaços públicos e culturais de forma sau-
dável, buscando garantir o acesso responsável e a cidadania; - contribuir para
restaurar; - preservar a integridade da gestante e dos filhos em situação de
vulnerabilidade e risco social, fortalecendo sua autonomia e estabelecendo
relações personalizadas e em pequenos grupos; promover ações lúdicas, cul-
turais e terapêuticas.
Tais práticas segundo o Projeto Político Pedagógico do BOMPAR pau-
tam-se nas teorias “[...] histórico-cultural e sociocultural, adotando três técnicas
metodológicas: a participativa, a dialética e a pastoral, sob o paradigma da prá-
xis [...]” (LOPES, 2020, p. 147), pois concebem essas suas contribuições à transfor-
mação das condições de desumanização que permeiam a realidade dos atendi-
dos. Esses referencias encontram sintonia com a Pedagogia Social que
[...] surgir como uma nova concepção pedagógica, numa perspecti-
va da ontologia do ser social, tem por objetivo a formação para uma
convivência humana a partir da doutrina de proteção integral, onde
o fazer do educador social, emerge da necessidade de promoção de
processos educativos interligados a cidadania, justiça social, e lutas
contra-hegemônica. (LOPES, 2020, p. 92).

Acrescenta-se que a prática do CNR do BOMPAR, está em consonância


com a política nacional de atenção básica, como aponta, por exemplo, as por-
tarias n°. 122 e 123, de 2012, criou as equipes do CNR como uma estratégia
de cuidado integral para essa população. As equipes lidam com diferentes
problemas e necessidades de saúde e desenvolvem ações compartilhadas e
integradas com as equipes dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), dos
serviços de urgência e emergência e de outros pontos de atenção à saúde e
da rede do território, de acordo com a necessidade do usuário (BRASIL, 2012).
Vale ressaltar que nas atividades das equipes está incluído o rol de cuidados
primários, com ênfase na busca ativa aos usuários de álcool e outras drogas e
na lógica da redução de danos (BRASIL, 2011).
O CRN tem como objetivos ser porta de entrada da pessoa em situ-
ação de rua no SUS, ampliar o acesso às redes de atenção à saúde, à rede
intersetorial de atendimento, e buscar a integralidade no cuidado, a partir da
JOÃO CLEMENTE DE S. NETO; ORLANDO C. BARBOSA; LEANDRO A. LOPES
População em situação de rua, expressão da desigualdade social

escuta qualificada e do acolhimento das demandas trazidas pelas pessoas. A


proposta do trabalho vai ao encontro à saúde integral da população atendida,
com olhar atento às questões relacionadas à saúde mental, atendimento à
gestante de rua, tratamento de patologias pulmonares (a tuberculose é fre-
quente), de doenças sexualmente transmissíveis, de doenças de pele (úlceras
de membros inferiores), problemas ortopédicos decorrentes de situação de
violência e atropelamento, diabetes, hipertensão, e outras situações que fi-
cam sob a responsabilidade da estratégia da saúde da família na atual política
de atenção básica.
Partindo dessas urgências, o CNR do BOMPAR desenvolveu os proje-
tos extramuros, ações planejadas que consistem num conjunto de atividades
interrelacionadas, com o propósito de alcançar objetivos específicos, dentro
de limites de tempo e orçamento, com o foco na presença, escuta assertiva e
acolhimento das demandas trazidas pelas pessoas em situação de rua. Com-
preendem reuniões em pequenos grupos, encontros de cuidado, formação,
lazer, atividades lúdicas, culturais e outras atividades.
Na análise dos documentos institucionais podemos identificar que o
CNR do BOMPAR está comprometido com os objetivos de desenvolvimento
sustentável (ODS), da ONU. Este serviço alinha-se, prioritariamente, com as
ações ODS 3 e 5, A primeira, referente à saúde e bem-estar, considera que o
“estar” em situação de rua é uma questão de extrema vulnerabilidade social.
No caso da mulher gestante, o cuidado do ponto de vista do bem-estar biop-
sicossocial desafia as equipes de CNR. A segunda visa alcançar a igualdade de
gênero e emponderar todas as mulheres e meninas, especialmente as mu-
lheres em situação de rua, que se tornam objeto de violações de direitos, de
forma visceral, afetando proporcionalmente sua autoestima e autoimagem.
Nos relatórios do CNR BOMPAR, observamos certa quantidade de pes-
soas em situação de rua trans atendidas. Segundo nossa perspectiva, os de-
poimentos assinalam que ainda não atingimos um processo civilizatório hu-
manizador. Para compreender como uma pessoa em situação de rua se sente
e se apropria das oportunidades para mudar sua vida e a de seus companhei-
ros, buscamos escutar Susy e Samira, que fizeram essa trajetória e continuam
na luta para melhorar sua qualidade de vida.

[...] com 14 anos, com minha sexualidade predefinida e a minha religião


que era da umbanda, sofria, minha família toda evangélica, os conflitos
eram muitos, vivia apanhando [...]. Eu comecei a sofrer perseguição por
conta da minha sexualidade, aí fui pra rua. Comecei aos 16 anos minha
transição. Tomava hormônio por conta, e na época travesti era coisa
de outro mundo. Fui parar na prostituição, até que vim para São Paulo,
caí na mão de cafetão, aí outra história, não aguentei, fui pra rua fazer
programa na rua, dormia na casa de um, no quarto do outro, nos cen-
tros de acolhida, bebia, usava droga, isso porque era bom, dava prazer,

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 17-39, jan./jun., 2022. (18) 29


JOÃO CLEMENTE DE S. NETO; ORLANDO C. BARBOSA; LEANDRO A. LOPES
População em situação de rua, expressão da desigualdade social

tem todo um contexto o uso disso, quem é da rua sabe do porquê [...].
(Depoimento da Samira).

Entrei na situação de vulnerabilidade há nove anos [...]. Eu cheguei a


morar na rua, por um mês e meio, mais ou menos, depois acessei os
centros de acolhida, tendo um lugar para dormir, por mais que pare-
ce que esse lugar não tenha o conforto necessário, é diferente. Eu vim
do Maranhão pra cá, e não conhecia ninguém, não tinha recurso e já
fiquei em situação de vulnerabilidade. Eu vim para São Paulo, porque
na minha cidade eu não me encontrava, vivia uma depressão profun-
da. Minha transição aconteceu em São Paulo, pois sabemos que aqui
tem muitas oportunidades, já que é uma megalópole, então vim, sem
eira nem beira. Eu falo que tenho uma relação de amor e ódio por São
Paulo, porque as mazelas daqui te deixam triste, mas foi aqui que con-
segui me encontrar enquanto ser humano, mulher trans, militante. O
primeiro lugar que fui e me acolheu foi [serviço B] [...]. Saí do [serviço
B], fui para o [serviço Z] e depois para o [serviço F] [...]. (Depoimento
da Susy).

A luta por direitos humanos perpassa questões existenciais e relacio-


nais como gênero e sexualidade, como observamos nesses depoimentos. A
formação da identidade trans, no bojo da desigualdade social e da luta pelo
reconhecimento, vem ganhando destaque nos debates acadêmicos, na dinâ-
mica social, nas políticas públicas e na mídia. A comunidade LGBTQIA+ envol-
ve pessoas de identidade de gênero e orientação sexual não binárias, que não
seguem o padrão heteronormativo multissecular, com seu protagonismo pe-
culiar. Esta condição é objeto de uma violência tríplice, a desigualdade social,
a situação de rua e o preconceito relativo à orientação sexual. Esta violência
pode ser explicada do ponto de vista sociológico ou filosófico, mas quem so-
fre com a violência tem seu jeito próprio, subjetivo e objetivo, de descrevê-la.

[...] nos sofríamos muito, em 2008 sofri uma violência na rua de três ra-
pazes me agrediram tanto que deformaram meu rosto uma outra trans,
Alcione, que já era do movimento LGBT, foi quem me ajudou, eu nem
queria saber de movimento, porque o que eu queria era comer e dor-
mir em lugar seguro. Quando sofri essa violência não quis mais fazer
programa com medo [...] eu fiquei de 2009 a 2013 procurando emprego
e não consegui pelo meu nome, porque na época não tinha o nome so-
cial, a polícia parava a gente, batia na gente e se a gente falasse o nome
social aí que apanhávamos [...]. (Depoimento da Samira).

Sobre a questão de gênero, eu fico muito chocada até hoje, como os


preconceitos pesam, até mesmo com as pessoas em vulnerabilidade. A
gente sabia que tem alguns centros de acolhida que não podemos ir,
não éramos bem-vindas. Alguns espaços não podemos adentrar, por-
que as pessoas em vulnerabilidade não queriam pessoas trans lá, [...]
para almoçar era difícil, pois para chegar até o almoço tínhamos que
passar por diversas violências, não valia a pena, as vezes tínhamos que
tentar outras maneiras e formas pra se alimentar. Eu não conhecia nada
em São Paulo, dependia de amizade, e essas amizades em sua maioria
eram mulheres trans, e elas estavam cansadas de sofrer, então para elas
não compensava ir para esses lugares. (Depoimento da Susy).

30 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 17-39, jan./jun., 2022. (18)


JOÃO CLEMENTE DE S. NETO; ORLANDO C. BARBOSA; LEANDRO A. LOPES
População em situação de rua, expressão da desigualdade social

Susy e Samira mostram que a violência de gênero destrói e corrói a


existência humana, compromete a capacidade de dialogar e reproduz o pre-
conceito estrutural. A tensão relacional gerada pela negação do outro tem
gerado violências, discriminação, sofrimento e genocídio. De acordo com a
Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais, cer-
ca de 10% da população se identifica como LGBTQIA+ e cerca de 92,5% dessas
pessoas relatam o aumento da violência contra elas, desde 2018. O Relatório
Mundial da Transgender Europe evidencia que nos anos de 2016 e 2017 ocor-
reram 325 assassinatos de transgêneros em 71 países, 171 deles no Brasil.
Ao relacionarmos pessoas LGBTQIA+ com as questões de vulnerabi-
lidade social que condicionam a situação de rua, adentramos num campo
complexo de sofrimento ético-político estruturante em nossa sociedade. Esta-
mos dentro de um processo dialético de inclusão/exclusão social, que impõe
a subalternidade e a inferiorização do ser como resposta aos cerceamentos
colocados pela sociedade (SAWAIA, 2007). Uma das possibilidades de resistir
e lutar contra essa situação de inferiorização, violência é a conscientização
gradativa no trabalho.
Ser trabalhadora trans, olha é bem complicado, existe ainda transfo-
bia, mas eu não sei o porquê e como identificar, mas quando eu estou
de farda, profissional do CNR, existe um respeito, eles ficam receosos,
tem um breque, inclusive quando há alguns que desrespeitam, os de-
mais pegam as dores e nos protegem. Então, tem muita diferença eu ser
usuária trans e eu ser trabalhadora trans, sim. [...] Eu trabalhei antes do
CNR nos Direitos Humanos. Pra quem está na vulnerabilidade é com-
plicado, as pessoas trans, mais ainda. E o BOMPAR é um tapa na cara
da sociedade, no mercado financeiro. O número de pessoas trans que
o BOMPAR empregou e emprega você não encontra em outro lugar. Eu
fiz inúmeras entrevistas, minha maior preocupação é quando eu tran-
sacionasse, pois diziam que eu não ia conseguir mais emprego, e elas
estavam certas, pois todas as minhas amigas trans diziam: esquece o
trabalho, só terá a prostituição. [...] O processo de empregabilidade de
pessoas em rua e pessoas trans é muito difícil. E as que aceitam também
começam a te destransacionar. Aos poucos, vão pedindo para amarrar
o cabelo, usar roupas mais longas e folgadas, não usar maquiagem,
usar banheiro masculino, até que um dia começam a chamar ela de
ele. Então, temos ainda esse tipo de empresa que diz ser “inclusiva”, mas
o que quer é nos mudar. E temos poucas instituições que abraçam a
causa, como o BOMPAR, que viu minhas peculiaridades e me abraçou.
(Depoimento da Susy).

[...] a assistente social Alice me encaminhou para o processo seletivo


no BOMPAR em 2013. Passei no processo como agente de saúde, como
agente social no projeto pacto pela vida. Em 2015, comecei a gradua-
ção em serviço social e em 2019 me formei, tudo devido ao apoio da
Mônica que nos orienta quanto ao nosso projeto de vida. Em 2020, pas-
sei no processo seletivo para assistente social. Trabalho atualmente na
equipe da Sé. [...] sou a primeira trans a trabalhar no BOMPAR. Falo isso
com muito orgulho, pois abri as portas para as outras [...]. (Depoimen-
to da Samira).

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 17-39, jan./jun., 2022. (18) 31


JOÃO CLEMENTE DE S. NETO; ORLANDO C. BARBOSA; LEANDRO A. LOPES
População em situação de rua, expressão da desigualdade social

Os depoimentos deixam entrever a importância do fator trabalho e seu


sentido para a inserção social e a promoção da independência das pessoas em
situação de rua, fomentando a capacidade do que é possível escolher e fazer
isso de forma consciente, valorizando a saúde e a vida. A subjetividade das pes-
soas em situação de rua está ligada diretamente às condições em que vivem
e onde estão inseridas, bem como às oportunidades para o desenvolvimento.
Com base nesses princípios, consegue-se notar como as pessoas co-
meçam a se empoderar e a participar das decisões sobre o próprio cuidado.
Situações limite de sentimentos que produzem confusões e doenças mentais,
depressão, ansiedade, automutilação, toques, síndromes, desconfiança gene-
ralizada, angústia e medo escamoteiam e inibem o autoconhecimento. Essas
condições fortalecem a desesperança, comprometem o desenvolvimento hu-
mano e a perspectiva de futuro, tendem a provocar na pessoa revolta e atitu-
des de violência frente a determinadas situações da vida.
As práticas de solidariedade não podem ser concebidas como uma via de
mão única. Para serem libertadoras, têm que seguir uma lógica de mão dupla, dar
e receber. Como constata Sennett (2012), estão mais próximas de uma cooperação
.
A gente não precisa de olhar de dó, e sim de dignidade, somos seres huma-
nos. Não olhar a Samira travesti, mas a Samira ser humano, ser pensante,
capaz, que faz, e até onde ela pode chegar. Nisso, o Consultório de Rua do
BOMPAR nos ajuda muito, não atende só a pessoa na rua, mas os traba-
lhadores também. Eu estava cansada de procurar emprego, tinha ajuda
de custo dos cursos, mas era muito pouco pra sobreviver, era R$ 400,00,
eu queria mais. Quando eu cheguei no BOMPAR, vi 300 pessoas, uma
ONG católica. Falei, meu Deus o que eu estou fazendo aqui, eu não vou
trabalhar aqui nunca. Aí, a Laís do RH estava já me esperando, viu minha
angústia, fui falar com ela, aí ela disse: Oi você é trans, não se preocupe,
eu sei, já estou com seu nome social, é Samira né? Pode ficar tranquila. Aí,
fiquei aliviada, já fui acolhida e respeitada no processo seletivo. Eu esta-
va procurando em quantas línguas temos a palavras gratidão, pois fiquei
sabendo que a Ir. Judith está doente, e a gente da rua é gato escaldado,
sabemos quando a pessoa é sincera ou metendo o louco. Quando a Ir. Ju-
dith pegou na minha mão, aquela mão fininha e disse que bom minha
filha, que você está com a gente, desculpa minha emoção, é que com ela
vi um afeto que não via com ninguém, nem com minha família que dizia
ser cristã. Eu tinha pavor de cristãos, eu dizia para meu pai eu não entendo
como o senhor é tão cristão e não consegue amar seu próprio filho. E a
resposta era um tapa na minha cara [...]. Mas aqui no Consultório na Rua,
sempre fui respeitada, tratada como ser humano, me animavam e fui me
empoderando. (Depoimento da Samira).

De acordo com o depoimento de Samira, a concepção pedagógica do


CNR é de atuar nas potencialidades, de ver o outro como ser humano. Ela
afirma que não se apresenta como a voz da população de rua, dos trans, mas
como um bom exemplo de que, quando oportunizamos as coisas e temos

32 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 17-39, jan./jun., 2022. (18)


JOÃO CLEMENTE DE S. NETO; ORLANDO C. BARBOSA; LEANDRO A. LOPES
População em situação de rua, expressão da desigualdade social

apoio, é possível encontrar um jeito libertador de se colocar no mundo. “Não


é porque moramos na rua que não choramos, não sorrimos, não comemora-
mos aniversário, então, olhar pra gente como ser humano” (Depoimento da
Samira). O pilar do Consultório na Rua no BOMPAR é seguir de encontro em
encontro, sem prejulgar e condenar, pois, sua prática encontra aporte, nos
domínios sociopedagógico, sociopolítico, sociocultural e sociopastoral (cf.
Lopes, 2020). O agente comunitário vem da rua e vai para a rua, aproveita as
biografias para trabalhar a história e ressignificar a vida.

[...] a sensação que tenho é que preciso fazer o máximo pelas pessoas,
como fizeram comigo. Foi difícil, mas tive algumas pessoas que me aju-
daram. A meritocracia não existe, esse discurso que se consegue só não
é verdadeiro. Precisamos do outro, as pessoas nos atravessam, nem que
seja com uma palavra, elas motivam, e isso me atravessou que tento
retribuir da melhor forma possível. Tive profissionais que me atenderam
de forma diferente e me atravessaram, me acalentaram, me ouviram, e
isso me auxiliou muito. São pequenos detalhes que contribuem para a
mudança. Quando você tem uma pessoa que acredita em você, você
passa a começar a acreditar em si mesma. Quando a pessoa vê você fa-
zendo um desenho e diz nossa que bonito, você tem talento, já pensou
em fazer um curso, nossa isso não custa nada, mas coloca a autoesti-
ma da pessoa lá em cima e isso atravessa a pessoa. Era muito difícil as
pessoas não te tratar como ser humano e a arte me ajudou a retomar
minha identidade, protestar, militar, me engajar. A gente, quando está
na extrema vulnerabilidade, não tem sonhos. Se se perguntar para al-
guém qual o seu sonho para daqui a um mês, a pessoa não sabe dizer.
Quando comecei a participar dos coletivos de arte, comecei a sonhar
novamente, a ter possibilidade de me expressar, a acessar determinado
espaços que nem imaginava, a ganhar um dinheiro com meu trabalho.
Isso vai fazendo você crescer e me imaginar fora da vulnerabilidade. Ja-
mais imaginaria entrar no teatro municipal expressando minha arte.
Trabalhava com a poesia, mas fazíamos performances, um conjunto de
coisas. Mas o importante era estar com pessoas e criar com elas, estar
trocando, com gente que me enxergava, era muito gostoso. Então, eu
queria estar e participar, pois era vista como Susy, não era mais a 122.
Isso fazia muito diferença pra mim. (Depoimento da Susy.)

Os depoimentos de Samira e Susy tendem a evidenciar que o CNR do


BOMPAR tem o pressuposto de que toda experiência de vida pode se traduzir
em conteúdo pedagógico. Cada biografia traz uma “expertise” que, quando
refletida pelo próprio sujeito, torna-se um jeito de se colocar no mundo do
trabalho. Este é o caso da pessoa em situação de rua que assume, nesse servi-
ço, a função de agente de saúde. Esta é uma discussão que encontra eco nos
textos de Freire, Certeau, Souza Neto e Lopes.
As entrevistadas Susy e Samira deixam evidente como a desigualdade as
expuseram a todo tipo de violência. Os conceitos de pobreza e desigualdade so-
cial vêm sendo recriados e, às vezes, substituídos pelo conceito de exclusão. Essa
perspectiva é utilizada para definir as diferentes formas de privações e carências
do ser humano no contexto social e no plano afetivo, bem como as várias moda-

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 17-39, jan./jun., 2022. (18) 33


JOÃO CLEMENTE DE S. NETO; ORLANDO C. BARBOSA; LEANDRO A. LOPES
População em situação de rua, expressão da desigualdade social

lidades de miséria do mundo, desde os aspectos econômicos até as questões de


etnia, gênero, idade, necessidades especiais, culturais, religiosas e educacionais.
Embora muitos contestem a abrangência do conceito de exclusão,
ele nos permite compreender melhor o contexto brasileiro (CASTEL, 1997, p.
130). As formas de exclusão são recriadas não só pela perspectiva econômica,
mas também a partir da educação, de etnias, religiões ou outras variáveis. A
violência aparece aqui de forma complexa, constituída por fatores de ordem
social, moral e subjetiva, caracterizada como ação de agentes que têm em
vista destruir o indivíduo e o coletivo. Geralmente, o agente da violência bus-
ca escamotear sua prática por meio de estrutura sociais, morais, psicológicas,
ideológicas e físicas, que justifiquem a destruição. Compreender a chamada
exclusão social desvinculada da desigualdade social é explicá-la apenas pela
ótica ideológica. O depoimento de Samira e Susy desvela o impacto da desi-
gualdade e das políticas sociais no cotidiano das pessoas em situação de rua.

Minha percepção é de que as questões que fazem, ano após ano, a po-
pulação de rua aumentar é que realmente, e falo da questão social e
jogo a responsabilidade ao poder público, eles não querem resolver
essas questões. As pessoas correm pra São Paulo, pois ela dá oportuni-
dade que outros lugares não têm. É muito mais fácil sobreviver em São
Paulo. Aqui se você aprender a se virar não passa fome. Agora, outra
questão que levou muita gente para a vulnerabilidade é que ao mesmo
tempo que São Paulo tem essas oportunidades, São Paulo é um lugar
impossível de se viver, pois ela é muito cara, se manter está quase im-
possível, São Paulo não é feita pra quem não tem dinheiro, o aluguel é
muito caro, quem ganha o salário-mínimo não vive, sobrevive. Para vir
para São Paulo, tem que ter recurso, caso contrário não consegue sair
da vulnerabilidade. São Paulo, como é gerida, ela torna-se fermentado-
ra de pessoas vulneráveis. Você passa nas praças e vê barracas, famílias
morando na rua. Se não mudarmos a economia, porque São Paulo é
rica, mas se continuarmos sendo permissivos a esse tipo de política e
economia, nada mudará. Na minha concepção, não existe de fato um
projeto para mudar a situação de vulnerabilidade. (Depoimento da
Susy).

As políticas de direitos humanos e as políticas públicas do jeito que


estão planejadas são insuficientes para amortecer o impacto da desigualdade
social na vida dos sujeitos e na proteção do planeta. Enquanto as políticas
sociais, os programas e serviços forem desarticulados e setoriais, continuarão
a reproduzir a exclusão. O modelo econômico e político, e as estruturas sociais
são fábricas de produção da desigualdade social (SOUZA NETO, 2002).

[...] quando nos esbarramos na vulnerabilidade e achamos que a única


a resolver isso é a área da assistência social, fracassamos, porque temos
questões de saúde, trabalho, educação, moradia e assistência, [...] exis-
tem diversos motivos de vulnerabilidade, álcool, droga, gênero, empre-
go, saúde mental. Tem muitas especificidades e não conseguimos ter
profissionais que lidem com toda essa complexidade, por isso ter um

34 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 17-39, jan./jun., 2022. (18)


JOÃO CLEMENTE DE S. NETO; ORLANDO C. BARBOSA; LEANDRO A. LOPES
População em situação de rua, expressão da desigualdade social

conjunto de profissionais de diversas áreas. [...] No centro de acolhida


para pessoas trans, a gente encontrou também muita dificuldade. [...]
Mesmo entre as pessoas de vulnerabilidade existe transfobia e agressão
a LGBT. O que eu percebo é que os órgãos públicos não conseguem lidar
com as individualidades [...]. Tem pessoas que conheço há 10 anos, pas-
sam de centro em centro de acolhida e que nunca foram escutadas ou
tiveram suas demandas atendidas. Nos centros de acolhida, [...] éramos
identificadas por número, [...] você não se sentia cidadã de fato, era ob-
jeto, coisa. [...] as pessoas até brincavam dizendo: aqui é uma fábrica da
pobreza, era o que eu sentia, não tinha a mínima sensação para além
dessa de uma fábrica de pessoas vulneráveis. Você tinha que entrar x
horas, tomar banho, comer, dormir e sair para a rua, depois voltar para
o galpão. Você não sentia que ia para um centro de acolhida, pois falta-
va justamente a acolhida, isso era uma sensação geral. Me parece que
os centros de acolhida não são feitos para sanar as questões sociais das
pessoas, para auxiliar você a sair dessa situação, era para manter você
minimamente vivo. (Depoimento da Susy).

O depoimento de Susi nos ajuda a compreender uma solidariedade ou


uma política pública reificadora, que acaba por reproduzir a desigualdade e
abafar o protagonismo, desvalorizar e desacreditar a pessoa. É esta a lógica da
fábrica da desigualdade, financiada pelo poder público, O exercício da solidarie-
dade libertadora não se limita à ampliação de oportunidades e possibilidades,
mas opera no sentido de articular as exigências do indivíduo, da sociedade e do
mercado e, sobretudo, insiste na produção de esperança e oportunidades de
vida. Acreditamos que a solidariedade tende a conjugar as forças econômicas,
políticas, culturais, sociais e a subjetividade, para além da simples reprodução
da vida. Nesse sentido, cada indivíduo, movimento e grupo podem assumir o
comando de sua história. Quando se articulam a ciência e a caridade, quando
a prática da solidariedade se impõe como uma exigência ética e pedagógica, a
sabedoria se manifesta e rompem-se os aspectos sombrios da vida.
Diante da experiência do CNR BOMPAR, o que fazer para melhorar o
atendimento à pessoa em situação de rua? Susy responde pela perspectiva de
uma solidariedade libertadora.

O que mudaria é de fato a palavra acolher, compreender as questões da


pessoa, ajudá-la no processo de construção do seu projeto, apoio no ca-
minhar e resolução das suas questões, atendimento frequente qualitati-
vo, ver de forma individualizada. Sei que isso é difícil, pois a assistência
social é sucateada, é a que tem menos verba, equipamentos, número
de funcionários reduzidos, profissionais atendendo centenas de pesso-
as. Às vezes, parece até utópico achar que uma pessoa, um assistente
social, vai conseguir atender 300 conviventes e ajudá-los a resolver seus
problemas. (Depoimento da Susy).

A elucidação de Susy está em sintonia com a concepção pedagógica


do CNR do BOMPAR, o qual está circunscrito na Doutrina Social da Igreja Ca-
tólica e na Doutrina de Proteção Integral, que espelham uma pedagogia hu-

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 17-39, jan./jun., 2022. (18) 35


JOÃO CLEMENTE DE S. NETO; ORLANDO C. BARBOSA; LEANDRO A. LOPES
População em situação de rua, expressão da desigualdade social

manizadora, no sentido de criar as condições para que cada sujeito descubra


o caminho da sua libertação e a de seus companheiros. A nosso juízo, esta é
uma perspectiva da ontologia freiriana ou de uma certa fenomenologia do
ser que concebem e evidenciam práticas éticos-solidarias (cf. Dussel, 2000).

Práticas de solidariedade, um aceno de libertação


No decorrer deste artigo, buscamos evidenciar os acenos de libertação
existentes nas práticas de solidariedade. Uma tomada de consciência aqui,
uma tomada de consciência ali, no sentido de resistir às práticas de explora-
ção. Nas trajetórias de Susy e Samira, enquanto pessoas trans em situação de
rua, e no CNR do BOMPAR, as práticas de solidariedade aparecem como uma
possibilidade de viver humanamente, numa luta constante contra o viver de-
sumanamente. A vida não tem sentido fora da experiência de solidariedade.
As ideologias, preconceitos e desigualdades sociais destroem as con-
dições existenciais de realização. Nas entrelinhas deste artigo, discutimos o
sentido da vida e nos perguntamos em que consiste a humanização. De um
jeito ou de outro, levantamos critérios para o discernimento do que é huma-
no e do que é desumano. O processo socioassistencial aberto ao exercício da
experiência solidária estabelece uma dinâmica de convivência saudável entre
as diferenças, ajuda a perceber a importância da inserção social e da interde-
pendência entre os indivíduos, o planeta e a sociedade.
A solidariedade não é alguma coisa que alguém faça pelo simples de-
sejo de atender o outro. É uma experiência humana que transforma as pesso-
as envolvidas e que percorre um movimento interligado de doação, recepção
e compromisso recíproco de propor algo para o agir humano. Diante da reali-
dade de violência e de agressão ao planeta, a missão do serviço socioassisten-
cial é despertar os seres humanos para a prática consciente da solidariedade.
A lógica aí presente não é a de saber quem perde e quem ganha, e sim a
certeza de que todos ganham, de diferentes formas. As práticas de solidarieda-
de do BOMPAR, por meio do serviço CNR, destinado a pessoas em situação de
rua, expressam o compromisso ético de despertar, no corpo técnico-adminis-
trativo e nos usuários do serviço o sentimento da interdependência. Este modo
de agir e de pensar exige uma articulação e um envolvimento de um conjunto
de pessoas, de grupos e instituições comprometidas com a libertação de todos,
no campo da justiça e do engajamento. Em pesquisas anteriores, demonstra-
mos que as práticas de solidariedade social são estratégias acessíveis aos po-
bres para conquistar a cidadania e melhorar sua qualidade de vida.
No CNR do BOMPAR, as práticas de solidariedade buscam a poten-

36 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 17-39, jan./jun., 2022. (18)


JOÃO CLEMENTE DE S. NETO; ORLANDO C. BARBOSA; LEANDRO A. LOPES
População em situação de rua, expressão da desigualdade social

cialização dos indivíduos para a descoberta de possibilidades e a elaboração


de projetos de vida, e não apenas formas de integrá-los ou de inclui-los. Elas
criam condições para que todos possam ser protagonistas da paz, compro-
metidos com a não destruição do outro e com o despertar de sentidos para
a vida. O CNR do BOMPAR é uma expressão da solidariedade, importante na
redução da desigualdade social e das práticas da violência, que repercutem
no cotidiano pelos desafios e questionamentos que provoca. As práticas de
solidariedade apontam para a necessidade de se produzir ciência com consci-
ência, sem a qual a ciência é cega e se volta contra o homem.
Entretanto, apesar de melhorarem a vida de uma parcela da popula-
ção pobre, tais práticas nem sempre impedem que a desigualdade social per-
maneça ou se amplie. Neste conjunto de reflexões, ganha sentido a indicação
da Declaração do Milênio, que preconiza como “chave do êxito” a solidarieda-
de praticada nas comunidades locais, nas organizações e nos Estados, como
um todo e entre si. A solidariedade poderá propiciar aos mais desfavorecidos
a oportunidade de melhorar a qualidade de vida. Estados, organizações e pes-
soas mais afortunados têm a responsabilidade ética de ajudar a sobreviver
aqueles a quem falta o essencial. Governantes e líderes políticos de todo o
mundo devem dar prioridade à proteção dos grupos mais vulneráveis, devem
promover as estratégias de solidariedade, fomentar as instituições de direitos
humanos e ampliar os canais de participação. Os programas desenvolvidos
pelo BOMPAR também se circunscrevem na Declaração do Milênio.
A proposta socioassistencial, socioeducacionais, sociopastorais e so-
ciopolíticas prevê ações que insira o excluído no centro do processo de liber-
tação. Tal estratégia é crucial para as políticas sociais (DEMO, 2002, p. 279) e
o desenvolvimento humano, como observamos nos depoimentos e nas prá-
ticas do CNR do BOMPAR. Somente dessa forma o sujeito de direito poderá
exercer e ser cidadão, com o apoio da política constituir seu projeto de vida e
com seu grupo constituir um projeto de sociedade.

Referências
BRASIL. Casa Civil. Decreto Presidencial nº. 7.053, de 23 de dezembro de
2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu
Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras
providências. Legislação. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/
fed/decret/2009/decreto-7053-23-dezembro-2009-599156-publicacaoorigi-
nal-121538-pe.html.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 17-39, jan./jun., 2022. (18) 37


JOÃO CLEMENTE DE S. NETO; ORLANDO C. BARBOSA; LEANDRO A. LOPES
População em situação de rua, expressão da desigualdade social

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 122, de 25 de janeiro de 2011. Define


as diretrizes de organização e funcionamento das Equipes de Consultório na
Rua. Saúde Legis - Sistema de Legislação da Saúde. Disponível em: bvsms-
-saude-gov-br-bvs-saudelegis-gm-2012-prt0122_25_01_2012-html.pdf.

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 123, de 25 de janeiro de 2012. Define


os critérios de cálculo do número máximo de equipes de Consultório na Rua
(eCR) por Município. Saúde Legis - Sistema de Legislação da Saúde. Dispo-
nível em: bvsms-saude-gov-br-bvs-saudelegis-gm-2012-prt0123_25_01_
2012-html.pdf.

BOMPAR. Relatório Social 2021. São Paulo: BOMPAR, 2021a.

BOMPAR. Relatório de atividades anual Consultório na Rua. São Paulo: BOM-


PAR, 2021b.

CASTEL, Robert et al. Desigualdade e a questão social, São Paulo: Educ.1997.

CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede, São Paulo: Paz e Terra, 1999.

DEMO, Pedro. Solidariedade como efeito do poder. São Paulo: Cortez, 2002.
DUPAS, Gilberto. Economia global e exclusão social. São Paulo: Paz e Terra,
2001.

DUSSEL, Enrique. Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão.


Petrópolis: Vozes, 2000.

FRANCISCO, Papa. Laudato si. Roma: Libreria Editrice Vaticana, 2015.

FERNANDES, Florestan (org.). Marx e Engels. São Paulo: Ática, Coleção Gran-
des Cientistas Sociais, 1989.

FREIRE, Paulo. Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em Proces-


so. 2. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.

HARDT, Michael. A sociedade mundial de controle. In: ALLIEZ, Éric (org.). Gil-
les Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2000, p. 357-372.

KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem. São Paulo: Brasiliense, 1987.

38 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 17-39, jan./jun., 2022. (18)


JOÃO CLEMENTE DE S. NETO; ORLANDO C. BARBOSA; LEANDRO A. LOPES
População em situação de rua, expressão da desigualdade social

LA BOÉTIE, Etienne de. Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Brasilien-


se, 1986.

LOPES, Leandro Alves. Uma narrativa sobre a formação dos educadores sociais
no Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto: percepções sobre a práxis e o
desenvolvimento profissional. Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e
História da Cultura) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2020.
PASSETI, Edson. Anarquismos e sociedade de controle. São Paulo: Cortez, 2003.

POCHMANN, Márcio (org.). Políticas de inclusão social. São Paulo: Cortez,


2004.

SAWAIA, B. B. O sofrimento ético-político como categoria de análise da dialé-


tica exclusão/inclusão. In: SAWAIA, B. B. (org.) As artimanhas da exclusão: uma
análise ético psicossocial da desigualdade. 7. ed., p. 97-119. Petrópolis, RJ:
Vozes. 2007.

SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Assistência Social; FIPE - Fundação Insti-


tuto de Pesquisas Econômicas. Censo dos moradores de rua da cidade de São
Paulo: relatório executivo. São Paulo, 2000.

SENNETT, Richard. Juntos: os rituais, os prazeres e a política da cooperação.


São Paulo: Editora Record, 2012.

SILVA, Cláudia Lucia da. Estudos sobre população adulta em situação de rua:
campo para uma comunidade epistêmica? Dissertação (Mestrado – Programa
de Estudos em Serviço Social). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
2012.

SOUZA, Laura de Mello. Desclassificados do ouro. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

SOUZA NETO, João Clemente de. A trajetória do menor a cidadão: filantropia,


genocídio, políticas assistenciais. São Paulo: Expressão & Arte, 2003.

SOUZA NETO, João Clemente de. Crianças e adolescentes abandonados, estra-


tégias de sobrevivência. São Paulo: Expressão & Arte, 2002

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 17-39, jan./jun., 2022. (18) 39


Marcas da precariedade da
pandemia de COVID-19 na vida
de mulheres em situação de rua

§ Marcas de la precariedad de la pandemia de COVID-19


en la vida de las mujeres en situación de calle

§ Marks of the precariousness of the COVID-19 pandemic


in the lives of homeless women

Thalita Catarina Decome Poker1

Stephanie Caroline Ferreira de Lima2

Resumo: Este artigo tem como objetivo refletir sobre o contexto atual das
mulheres em situação de rua diante da pandemia do COVID-19. Para lidar
com a questão apresentada, trabalhamos com perspectivas teóricas como
os aforismos sobre vidas precárias e corpos de enquadramento no contexto
de vulnerabilidade, como proposto por Butler (2015; 2019; 2020). Junto com
a crítica à ausência de uma rede de apoio efetiva e políticas de assistência
social que reconheçam a cidadania dessa população. Assim, realizamos uma
análise crítica da literatura científica, de relatórios e dados oficiais que tratam
das políticas públicas utilizadas neste período de crise sanitária. Os principais
temas encontrados foram: classe social, raça e trabalho como marcadores de

1 Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, Instituto de Psi-
cologia da Universidade de São Paulo – IP/USP. Mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo – PUC/SP. Professora na graduação em Psicologia no Centro Universitário Salesiano de São Paulo –
UNISAL. catarinadecome@gmail.com
2 Professora de Sociologia da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Doutoranda e mestra em Psicologia pela Uni-
versidade Federal do Ceará (UFC) e bacharela em Ciências Sociais pela mesma instituição. tecarolima@gmail.com

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 41-63, jan./jun., 2022. (18) 41


THALITA C. DECOME POKER; STEPHANIE CAROLINE F. DE LIMA
Marcas da precariedade da pandemia de COVID-19 na vida de mulheres em situação de rua

precariedade; e os fatores de risco em saúde por falta de garantia de direitos


e discriminação. Com estas exposições esperamos contribuir para o debate
sobre a promoção e garantia dos direitos das mulheres em situação de rua; e,
com isso, poder, a partir desses escritos, realizar uma análise crítica da violên-
cia estrutural e estruturante naturalizada pelo Estado, ao não reconhecer os
corpos femininos em situação de rua, como inteligíveis no campo das políti-
cas públicas.

Palavras-chave: Mulheres em situação de rua. Direitos humanos. COVID-19.

Resumen: Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre el contexto ac-
tual de las mujeres en situación de calle frente a la pandemia del COVID-19.
Para abordar la cuestión planteada, trabajamos con perspectivas teóricas
como los aforismos sobre las vidas precarias y el encuadre de los cuerpos en el
contexto de la vulnerabilidad,como propone Butler (2015; 2019; 2020). Junto
con las críticas a la ausencia de una red de apoyo efectiva y políticas de asis-
tencia social que reconozcan la ciudadanía de esta población. Así, realizamos
un análisis crítico de la literatura científica y de los informes y datos oficiales
que abordan las políticas públicas utilizadas en este período de crisis sani-
taria. Los principales temas encontrados fueron: clase social, raza y trabajo
como marcadores de precariedad; y, los factores de riesgo en salud por falta
de garantía de derechos y discriminación. Con estas exposiciones esperamos
contribuir al debate sobre la promoción y garantía de los derechos de las mu-
jeres en situación de calle; y, con ello, poder, a partir de estos escritos, realizar
un análisis crítico de la violencia estructural y estructurante naturalizada por
el Estado, al no reconocer los cuerpos femeninos en situación de calle, como
inteligibles en el campo de las políticas públicas.

Palabras clave: Mujeres en situación de calle. Derechos humanos. COVID-19

Abstract: This article aims to reflect on the current context of homeless wo-
men in the face of the COVID-19 pandemic. To deal with the presented issue,
we work with theoretical perspectives such as the aphorisms about preca-
rious lives and framing bodies in the context of vulnerability, as proposed by
Butler (2015; 2019; 2020). Along with the criticism of the absence of an effec-
tive supportive network and social assistance policies that recognize the citi-
zenship of this population. Thus, we carried out a critical analysis: of the scien-
tific literature and of official reports and data that deal with the public policies

42 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 41-63, jan./jun., 2022. (18)


THALITA C. DECOME POKER; STEPHANIE CAROLINE F. DE LIMA
Marcas da precariedade da pandemia de COVID-19 na vida de mulheres em situação de rua

used in this period of health crisis. The main themes found were: social class,
race and work as markers of precariousness; and, the risk factors in health for
lack of guarantee of rights and discrimination. With these exhibitions we hope
to contribute to the debate on the promotion and guarantee of the rights of
women living on the streets; and, with that, to be able, from these writings,
to carry out a critical analysis of the structural and structuring violence natu-
ralized by the State, by not recognizing female bodies in street situations, as
intelligible in the field of public policies.

Keywords: Homeless woman. Human rights. COVID-19.

A moradia, enquanto direito social e base para o reconhecimento hu-


mano, está prevista no art. XXV na Declaração Universal dos Direitos Huma-
nos - DUDH (ONU, 1948). Como documento epistemologicamente embasa-
do pela DUDH, a Constituição Federal, no art. 6, assegura dentre os direitos
básicos e fundamentais o direito à moradia junto aos demais: “a educação, a
saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança,
a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados” (BRASIL, 1988, p.6).
Todavia, embora o direito à moradia seja previsto pelo âmbito jurídico
enquanto conceito base para o reconhecimento da humanidade dos sujeitos,
em tempos de crise e dificuldades, os direitos sociais nem sempre são cumpri-
dos. Esta afirmação pode ser embasada posto o alto contingente de pessoas
em situação de rua. De acordo com o último levantamento feito pelo Cadas-
tro Único para Programas Sociais do Governo Federal do Governo Federal,
estima-se o total de 119.636 pessoas em situação de rua (CORTIZO; SANTORO,
2019) – condição esta que versa sobre o não cumprimento em sua totalidade
do direito e acesso à moradia e outros direitos fundamentais.
De acordo com o parágrafo único do art. 1 do decreto 7.059/09 (BRA-
SIL, 2009) considera-se como população em situação de rua:
[...] o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a po-
breza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados
e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os lo-
gradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia
e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as
unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como mora-
dia provisória.

Estar em situação de rua no Brasil, é fazer parte de um grupo classifica-


do como excedente do Capital, decorrente de uma herança histórica profun-

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 41-63, jan./jun., 2022. (18) 43


THALITA C. DECOME POKER; STEPHANIE CAROLINE F. DE LIMA
Marcas da precariedade da pandemia de COVID-19 na vida de mulheres em situação de rua

damente arraigada, escravocrata e colonizadora, na qual a lógica neoliberal


não pode agir de modo reparativo quanto ao acesso às oportunidades em
relação ao período anterior (SANTOS, 2020). Assim, mesmo a questão da mo-
radia sendo prevista como um direito fundamental, a população em situação
de rua representa, de modo explícito, as contradições de um Estado moderno
neoliberal, em que os direitos sociais não chegam a todos os grupos (PAIVA et
al., 2016).
Vemos estas contradições postas no último levantamento feito sobre
o perfil da população em situação de rua demonstrou que as pessoas do gê-
nero masculino são numericamente mais expressivas: 82% formada por ho-
mens, em sua maioria, negros, com idade entre 25 à 44 anos e com atividade
ocupacional remunerada (BRASIL, 2009). Por sua vez, o perfil do gênero femi-
nino representa o total de 18% da população em situação de rua, sendo na
maioria, mulheres negras e de baixa escolaridade – no máximo até o ensino
fundamental (NUNES; SOUSA, 2020).
Encontramos essa premissa alinhada com os disparadores que levam
essas mulheres a estarem em situação de rua; na maioria dos casos de acor-
do com a literatura, são: a violência intrafamiliar, o desemprego, a perda do
poder sobre seus/as filhos/as e o abuso de substâncias ilícitas (MARQUES et
al., 2021; SILVA; MACIEL; SOUZA, 2021). Embora o percentual de mulheres em
situação de rua seja menor em relação aos homens, pode-se considerar que
elas sejam consideradas um grupo mais vulnerável, tanto por questões es-
truturais do patriarcado, com o risco de violência física e sexual, quanto pela
maior incidência de problemas de saúde e exposição ao uso de substâncias
ilícitas (NUNES; SOUSA, 2020; GRAMMATIKOPOULOU et al., 2021).
Posto este cenário de segregação social para mulheres em situação de
rua junto à atual crise sanitária mundial da pandemia de COVID-19 (OPA, 2020),
a necessidade de isolamento social tem se tornado um privilégio destinado so-
mente a alguns grupos estabelecidos pela lógica do Capital. Em consonância
com a leitura de Boaventura de Souza Santos (2020), a atual pandemia repre-
senta muito mais do que uma crise sanitária; é um realçador da crise social e
política posta na lógica de sociedades neoliberais altamente administradas – de
modo a agravar as situações de desigualdades e violações de direitos.
A pandemia tem seus alvos privilegiados, isto é, os grupos que são
socialmente marginalizados por meio da ação política que, ao racionalizar e
justificar a economia acima dos direitos sociais, os governantes demitem-se
da função de serem mediadores entre as situações de crise e as aspirações das
pessoas cidadãs (SANTOS, 2020). Vemos a factibilidade desta asserção quan-
do, desde o início da pandemia de COVID-19, as desigualdades socioeconô-
micas têm se agravado no Brasil, tornando o número de pessoas em situação

44 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 41-63, jan./jun., 2022. (18)


THALITA C. DECOME POKER; STEPHANIE CAROLINE F. DE LIMA
Marcas da precariedade da pandemia de COVID-19 na vida de mulheres em situação de rua

de rua, dentre elas as mulheres, ainda maior (FIOCRUZ, 2021).


Posto isso, com base nestas exposições, pretende-se realizar uma aná-
lise crítico-reflexiva de modo narrativo da literatura científica sobre contex-
to de mulheres em situação de rua diante da pandemia de COVID-19. Temos
como objetivos, por meio das exposições a seguir, o aprofundamento e a pro-
blematização desta temática, lançando nosso olhar sobre os atuais desafios
na garantia de direitos e efetividade de políticas públicas para mulheres em
situação de rua frente a atual crise sanitária e seu estado da arte até o presen-
te momento.
O processo da coleta de dados foi realizado de forma não sistemática
no período de dezembro de 2021 a março de 2022. Foram realizadas pesqui-
sas nas bases de dados científicas, tais como: Scielo, Medline, Lilacs, Pubmed
e Psycinfo e Elsevier Public Health Emergency Collection. Pelo fato de a crise
sanitária ser um fenômeno novo, trabalhamos como base para a busca da li-
teratura nos anos 2020-2021.
Utilizamos as seguintes palavras-chave: “mulheres”; e/ou “situação de
rua”; e/ou “COVID-19”. Durante a fase de busca, foram descartados todos os
artigos anteriores a 2020 ou que não estivessem disponíveis para leitura na
íntegra, sendo selecionadas apenas publicações em língua portuguesa ou in-
glesa. Dentre elas, foi realizada a leitura dos resumos de 18 artigos para fazer
a triagem antes da análise. Restaram por fim, 4 artigos considerados pertinen-
tes ao estudo para esta revisão, utilizando os seguintes critérios de análise:
a) palavras-chave, b) objetivo, c) participantes, d) método, e) resultados. Por
fim, estes materiais foram lidos na íntegra, categorizados e analisados critica-
mente. Após a seleção e leitura, os artigos foram analisados de acordo com
suas temáticas em comum, contendo informações e discussões amplas que
explicitam a heterogeneidade de experiências das mulheres em situação de
rua durante a pandemia de COVID-19.
Com base nos artigos encontrados foram delineados dois eixos temá-
ticos. O primeiro versa sobre as interseccionalidades nas relações de gênero
como classe social, raça e trabalho – enquanto marcadores das precariedades
das mulheres em situação de rua, de modo a enunciar os disparadores da de-
sigualdade e manutenção do status quo desta população. E o segundo tema
irá versar sobre os fatores de risco em saúde por ausência de garantia de di-
reitos e discriminação, desvelando o quanto para as mulheres, em especial, a
ausência de assistência e politicas que garantam o direito à saúde podem ser
um fator de extrema vulnerabilidade.
Junto à análise crítica da literatura, utilizamos também o estudo do-
cumental de dados primários (LAKATOS; MARCONI, 1991), que se caracteriza
como a coleta de fontes escritas ou em outros formatos para retratar o fe-

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 41-63, jan./jun., 2022. (18) 45


THALITA C. DECOME POKER; STEPHANIE CAROLINE F. DE LIMA
Marcas da precariedade da pandemia de COVID-19 na vida de mulheres em situação de rua

nômeno no momento do acontecimento, ou posteriormente. Nessa pesqui-


sa, nossas referências foram documentos oficiais que serviram de base para
políticas públicas implementadas a nível federal quanto à população em si-
tuação de rua durante a pandemia. Tais publicações foram selecionadas por
expressarem concretamente a realidade de mulheres em situação de rua na
COVID-19, sendo elas “o testemunho de atividades particulares ocorridas em
um passado recente” (LIMA JUNIOR et al, 2021, p. 39) e também uma forma
de valorizar a atividade humana e seus significados sociais (CRESWELL, 2007).
Para o tratamento dos dados, foi realizada uma pré-análise, que con-
siste em averiguar a confiabilidade do texto e seus conceitos-chave. No se-
gundo momento, analisamos o conteúdo das publicações selecionadas, com
base em informações significativas para a elucidação do objetivo proposto.
Foram encontrados poucos estudos empíricos que contemplassem a tríade:
“mulheres”, “situação de rua” e “COVID-19”. Nesse sentido, as publicações des-
tacam-se em termos de levantamento bibliográfico e profundidade analítica.
Uma das consequências disso foi que três dos quatro estudos não possuem
desigualdades de gênero como enfoque direto, resultando que as experiên-
cias das mulheres em situação de rua foram tratadas enquanto amostra geral,
junto a outros grupos que são socialmente minorizados.
Esses temas foram analisados criticamente, em especial pelas propo-
sições de BUTLER (2015; 2019; 2020), por seus aforismas elegerem como pon-
to principal o questionamento ético em relação à gestão dos corpos frente
à racionalidade neoliberal e de situações de conflito e crise como guerras e
estados de exceção no ordenamento das vidas. Recorremos, também, aos
apontamentos d’A cruel pedagogia do vírus de SANTOS (2020) que, por meio
de suas assertivas, discute a intensificação da dinâmica de segregação social,
a partir dos desdobramentos da pandemia de COVID-19. A principal contri-
buição deste estudo, na ausência de artigos que envolvam este tema, está na
possibilidade de se pensar na emergência de políticas públicas que atendam
especificamente o contingente feminino em situação de rua, junto às peculia-
ridades apresentadas.

Classe social, raça e trabalho como marcadores da pre-


cariedade
Desde a modernidade, o espaço público tem sido inteligível como ma-
joritariamente ocupado pelos corpos masculinos, brancos e de classe média.
Embora considerado como um lugar comum de todos para viver em socie-
dade, percebe-se que há uma demarcação política do espaço público a ser

46 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 41-63, jan./jun., 2022. (18)


THALITA C. DECOME POKER; STEPHANIE CAROLINE F. DE LIMA
Marcas da precariedade da pandemia de COVID-19 na vida de mulheres em situação de rua

considerada, devido ao risco que pode acometer à presença de determinadas


pessoas, como mulheres e crianças. Do ponto de vista hegemônico e histó-
rico, às mulheres e crianças cabem os espaços de clausura, como a vida do-
méstica e a escola, sob o pretenso argumento de que estes grupos estariam
protegidos do mal que outros lugares podem lhes expôr (DECOME-POKER,
2020). De modo que estar em situação de rua, para o gênero feminino pode
ser considerado um fator de maior risco em comparação às pessoas do gêne-
ro masculino (GRAMMATIKOPOULOU et al., 2021).
De acordo com a literatura encontrada para esta pesquisa (MARQUES et
al. 2021; NUNES; SOUSA, 2020; SILVA, MACIEL; SOUZA, 2021), além de desigual-
dades de gênero atribuídas às mulheres, as que se encontram em situação de
rua, muitas vezes, carregam outros enunciados políticos e marcas da discrimi-
nação como a raça, a sexualidade e a classe social. Segundo dados informados
na nota técnica n. 05/2020 (BRASIL, 2020), estima-se que a amostra nacional
da população em situação de rua seja em torno de 146.802 pessoas. Não obs-
tante, de acordo com os últimos dados do censo da prefeitura do Município de
São Paulo (SMADS, 2021) houve um aumento de 31% nos últimos dois anos, no
contingente da população em situação de rua, sendo que parte do percentual
desta amostra (16,6%) ocorreu no período inicial da pandemia, sinalizando um
crescimento e uma aceleração do processo em relação ao ano de 2019, que era
de 14,8%. Em 2020, havia 31.884 pessoas vivendo em situação de rua na cidade,
sendo que anteriormente, em 2019, eram em torno de 24.000 pessoas.
Essas categorias estão socialmente equacionadas como marcadores
da diferença e potencializadoras da violência motivada pela questão de gê-
nero (NUNES; SOUSA, 2020). Diante disto, é indispensável entender esta po-
pulação pelo viés da interseccionalidade, pois é por ela que se pode pensar
no modo específico como o poder é articulado para esta população; e, conse-
quentemente, como as vulnerabilidades se anunciam. Podemos entender o
campo da interseccionalidade por meio de uma investigação-crítica feminista
não-ortodoxa associada aos fenômenos adjacentes (HENNING, 2015), como o
de raça e de classe social, conforme posto neste estudo.
Em consonância, de acordo com MARQUES et al. (2021, p. 3):

Embora se reconheça que as desigualdades de classe social são


decisivas para determinar os impactos da Covid-19, é fundamental
notar que, na intersecção entre este e outros marcadores sociais da
diferença – como gênero, raça/cor, geração e sexualidade –, visibili-
zam-se contextos, circunscritos a determinados segmentos sociais e
a reprodução de desigualdades, opressões e impactos específicos.

Em última análise, como mostrado pela literatura, junto ao estigma


de estar em situação de rua, devemos levar em consideração gênero, raça e

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 41-63, jan./jun., 2022. (18) 47


THALITA C. DECOME POKER; STEPHANIE CAROLINE F. DE LIMA
Marcas da precariedade da pandemia de COVID-19 na vida de mulheres em situação de rua

classe, uma vez que estes são fatores que podem ter um impacto significativo
na identidade, na autonomia e nas experiências dessas mulheres. Outro pon-
to relacionado às especificidades das mulheres em situação de rua, é a perda
do poder familiar e da tutela de seus(as) filhos(as), passando o Estado a ser o
principal responsável por eles (NUNES; SOUSA, 2020).
Junto à perda da tutela de sua prole, as pesquisas consultadas de-
monstram que, em muitos casos, enquanto fenômeno de uma sociedade
estruturalmente patriarcal, mulheres em situação de rua relatam ter sofrido
violências intrafamiliares, seja física ou sexual (GRAMMATIKOPOULOU et al.,
2021; NUNES; SOUSA, 2020). Esses apontamentos corroboram com o último
relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2020), publicado no perí-
odo da pandemia de COVID-19, em que apontam para o aumento de 47% nas
denúncias de tais violências de gênero, quando comparadas ao ano anterior,
constando como principais vítimas desse fenômeno mulheres e crianças.
Para grupos socialmente minorizados como o de mulheres, estar em
situação de rua pode representar, portanto, o rompimento de laços com os
grupos sociais da vida doméstica e da vida no trabalho, sendo uma forma de
(sobre)viver em um mundo em que o individualismo falocêntrico predomina
(SILVA; MACIEL; SOUZA, 2021). Estar em situação de rua, para as mulheres,
pode representar uma exposição maior às situações de violência e opressão,
abruptamente ressaltada junto a outras mazelas estruturais como o patriarca-
do, o racismo e a miséria. Assim, quando mulheres estão em situação de rua,
devido a um processo social que pressiona os grupos mais vulneráveis a viver
esta condição, ocorre um emparelhamento das heranças escravistas e colo-
niais, intensificada pelos tempos de pandemia (NUNES; SOUSA, 2020)
A literatura mostra que um dos principais disparadores para as mulhe-
res estarem em situação de rua é a violência intrafamiliar. Com a pandemia,
pode-se perceber que as tensões intrafamiliar recaíram de modo mais con-
tundente sob os corpos femininos (SANTOS, 2020). Este fenômeno pode ser
interpretado desta maneira, ao recorrermos a premissa de (BEAUVOIR, 1949,
p. 29), de que “basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os
direitos das mulheres sejam questionados”. Vemos o quanto os direitos das
mulheres são facilmente barganhados no cenário de pandemia, uma vez que,
passaram a ser de várias maneiras, na hierarquia das opressões sociais as pri-
meiras a sofrerem com os impactos da dinâmica do vírus pelos ordenamentos
dos corpos na estrutural social.
Posto isso, no cenário da pandemia de COVID-19, as desigualdades
sociais foram abruptamente escancaradas pela ausência de políticas públicas
para lidar com a crise sanitária, em decorrência disso, um dos marcadores so-
ciais foi o aumento do desemprego - em especial de mulheres negras de baixa

48 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 41-63, jan./jun., 2022. (18)


THALITA C. DECOME POKER; STEPHANIE CAROLINE F. DE LIMA
Marcas da precariedade da pandemia de COVID-19 na vida de mulheres em situação de rua

renda (IBGE, 2020). Com isso, o aumento do desemprego colocou as famílias


de baixa renda em situação de rua, ou simultaneamente, sem condições de
atender às suas necessidades básicas e de seus dependentes; ou, quando ne-
cessitam se locomover para algum emprego precário acabam por utilizar o
transporte público, aumentando a chance de se colocar em risco para contrair
a síndrome respiratória aguda grave coronavírus 2 (SARS-CoV-2) (MARQUES et
al., 2021; SILVA, MACIEL; SOUZA, 2021).
Sendo que, anteriormente à pandemia de COVID-19, as mulheres de
baixa renda representavam uma parcela significativa do contingente de pes-
soas na extrema pobreza (GRAMMATIKOPOULOU et al., 2021). Estas mulheres
que representam parte da população em situação de rua eram diaristas, cozi-
nheiras ou donas de casa, isto é, tinham ocupações com menor possibilidade
de ser reconhecidas formalmente com carteira assinada – habitando assim,
os degraus mais baixos da escala das desigualdades sociais (NUNES; SOUSA,
2020).
Vemos com os apontamentos de literatura, que antes mesmo da crise
sanitária, a divisão sexual pelo trabalho para as mulheres se mostrava como
uma realidade latente e opressora, sobretudo, no tipo de tarefa e remunera-
ção baixa atribuída às ocupações significadas como feminizadas (BRUSCHINI,
2007). As mulheres, que antes da crise sanitária permaneciam em sub-empre-
gos, agora passam a estar em situação de rua. Por sobrevivência, os corpos
femininos em situação de rua utilizam o espaço público para garantir a sua
renda por meio de serviços como: cuidar de carros (quando acompanhadas
pelo marido) e a prostituição (SILVA; MACIEL; SOUZA, 2021; MARQUES et al.,
2021) tendo ampliado significativamente o quadro de opressão pelo trabalho
desta população.
Com a crise sanitária, muitas mulheres que atuavam como trabalha-
doras sexuais precisaram lidar com o fechamento dos locais onde ofereciam
estes serviços, e, consequentemente, acabaram por ficar em situação de rua
e ceder a pressões de realizar programas em parques e praças. Tal contexto,
de desabrigamento do local que anteriormente era de trabalho, obrigou as
trabalhadoras sexuais a se exporem ao vírus e à todas as outras formas de
violência e discriminação (MARQUES et al., 2021).
Dentro do cenário das trabalhadoras sexuais que passaram a estar em
situação de rua, há outros dois marcadores interseccionais como o de idade
– para as trabalhadoras idosas; e, o de mulheres trans que devida à concor-
rência de oferta passaram a concorrer com outras mulheres recém-chegadas
a este contexto, promovendo a alta da miséria (MARQUES et al., 2021). Neste
ponto, destaca-se que o trabalho sexual é também um produto do patriarca-
do, sendo a atual crise sanitária e o desemprego decorrente o estopim para

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 41-63, jan./jun., 2022. (18) 49


THALITA C. DECOME POKER; STEPHANIE CAROLINE F. DE LIMA
Marcas da precariedade da pandemia de COVID-19 na vida de mulheres em situação de rua

colocar estas mulheres em uma dupla opressão.


Considerando, as políticas patriarcais de gênero envoltas dentro do
campo da interseccionalidade com a categoria raça, a questão da exploração
sexual ou do risco de violência sexual em corpos femininos negros é fruto das
imagens historizamente arraigadas dos esteriótipos da senzala da hipersexu-
alização (KILOMBA, 2019). Sendo estes estereótipos a porta de entrada para
conferir à mulher negra a condição de corpo-objeto, destituindo-a de toda a
possibilidade de humanização a partir de outras formas de reconhecimento.
Esta política de hipersexualização dos corpos negros-femininos pelo esterió-
tipo da negra-sensual é fruto de um processo de racionalização liberal para
se justificar o enquadramento dado as pessoas que são enquadradas como
excedente a imposição da deshumanização.
Ainda quanto às questões relacionadas ao subemprego, no contin-
gente populacional de mulheres em situação de rua, a formação educacional
não é oferecida em condições razoáveis e muitas chegam a não ultrapassar
o ensino fundamental (NUNES; SOUSA, 2020), de modo a cercear as possibi-
lidades de ascensão social, ou, de auto gerir as suas vidas. Vemos como estes
achados na literatura se aproximam com as asserções de PATTO (1978) quanto
a tese do fracasso escolar no Brasil, sendo a principal população vítima da dis-
criminação promovida pelo sistema público de ensino são as crianças negras
de classe social desvaforecidas econômicamente.
Na visão de PATTO (1978), os discursos e políticas na educação de pes-
soas negras e pobres acabam por promover um verdadeiro apartheid social
– de modo a promover a manutenção da miséria no Brasil. Assim, vemos que
em populações socialmente vulnerabilizadas, parte da ausência de reconhe-
cimento de sua cidadania plena vem também do processo de escolarização
precário e segregatório. Em intersecção com a questão de gênero e baixa
escolarização, outro marcador é a raça, pois de modo geral, pessoas negras,
dentre elas, as mulheres, são substancialmente maiores na população em si-
tuação de rua (NUNES; SOUSA, 2020).
Diante do exposto, entendemos que desvelar as particularidades dos
marcadores políticos do grupo de mulheres em situação de rua é uma emer-
gência no sentido de compreender sob quais dinâmicas de poder elas estão
inseridas – evitando com isso, generalizações equivalentes a uma universali-
dade abstrata. Portanto, se faz pertinente apontar que o enfrentamento des-
sas mazelas sociais tem como emergência um olhar plural. As categorias raça
e classe social fazem intersecção com o corpo feminino em situação de rua,
e como a referida literatura o elenca, percebemos que a sua posição ocupa o
lugar de abjeto (BUTLER, 2020), isto é, o corpo feminino-negro-pobre é um
excedente do capital e com isso, ao estar em situação de rua, ocupa as formas

50 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 41-63, jan./jun., 2022. (18)


THALITA C. DECOME POKER; STEPHANIE CAROLINE F. DE LIMA
Marcas da precariedade da pandemia de COVID-19 na vida de mulheres em situação de rua

mais sombrias nos códigos de inteligibilidade de ser reconhecido.


Na leitura de BUTLER (2019) os corpos são políticos e estão em cena
para refletirmos acerca das formas que acontece a hierarquização do poder.
Posto isso, a abjeção dos corpos se manifesta por meio das políticas discur-
sivas que visam não se importar com eles pois não são inteligíveis, ou ainda,
com a sua forma de expressão entendida como ilegítima para determinada
estrutura social, em consequência, sua materialização e formas de expressão
são tolhidas - e até mesmo interrompidas à depender do contexto (PRINS;
MEIJER, 2002). Assim a depender das condições sociais de reconhecimen-
to um corpo é passível de políticas de vida ou de morte de acordo com seu
enquadramento (BUTLER, 2018) como reconhecível de sua humanidade ou
abjeto – elemento que decorrerá o quanto de políticas públicas e ações de
cuidado irão ser dimensionadas (ou não) sobre ele.
Assim, o corpo feminino, negro e pobre em situação de rua provoca
o estranhamento no modo como as relações são ordenadas socialmente nos
mecanismos de adequação da realidade, pois incide nos outros aquilo que
não sabemos lidar – a sua extrema vulnerabilidade e o fracasso do Estado
quanto a garantia dos direitos básicos e fundamentais. Essa vulnerabilidade
que citamos enuncia o aprisionamento dos paradigmas escravagistas e colo-
niais historicamente construídos na sociedade brasileira.
Vemos, sobretudo, que o delineamento do perfil interseccional das
mulheres em situação de rua, desvela quais corpos femininos são aceitos so-
cialmente; e, portanto, quem merece ter políticas pensadas para a garantia da
vida. Embora todas as pessoas sejam consideradas vulneráveis diante da sua
existência, há corpos que estão na linha da precariedade, isto é, não há ações
que visam o resguardo de suas vidas, ou, uma ética do cuidado para que elas
sejam preservadas (BUTLER 2018; 2019). Os corpos, ininteligíveis pela lógica
do capital, ocupam este lugar de extrema precariedade e no caso das mu-
lheres em situação de rua no cenário da pandemia de COVID-19, estar nesta
condição é o resultado de outras violações de direitos sociais como o direito à
educação, e ao trabalho; e, especialmente à saúde - tema que iremos desdo-
brar melhor no próximo tópico.

Fatores de risco em saúde por ausência de garantia de


direitos e discriminação

Como citado na apresentação deste estudo, além da violação do di-


reito básico e fundamental à moradia conforme prevê o art. 6 da CF (BRASIL,
1988), outro direito social violado na vida de mulheres em situação de rua

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 41-63, jan./jun., 2022. (18) 51


é, especialmente, o acesso à saúde. Vemos nos estudos supracitados, que as
categorias políticas gênero, raça e status socioeconômico são os principais
marcadores que delineiam o contexto das mulheres em situação de rua, so-
bretudo, em cenário de pandemia de COVID-19. Esses marcadores também
representam aspectos relacionais importantes que tornam os corpos dessas
mulheres mais expostos ao risco de prevalência e gravidade de contrair algu-
mas doenças. Junto a isso, com base na literatura consultada, entendemos a
ausência de oportunidades de acesso à saúde enquanto condições concretas
de deslegitimação da cidadania de mulheres como parte do processo da des-
filiação social de alguns corpos, sobretudo, o feminino.
Por ter maior propensão de fatores de risco em saúde física e mental, as
mulheres são mais vulneráveis aos efeitos da ausência de garantia da moradia
enquanto um direito social (GRAMMATIKOPOULOU et al., 2021). É comum, entre
o contingente de mulheres em situação de rua, vivenciar cotidianamente nas
Unidades de Pronto Atendimento, Unidades Básicas de Saúde e hospitais os
estereótipos negativos e preconceitos atribuídos a esta população, dentre eles,
a predicação de que seriam “vagabundas” e “bêbadas” (SILVA; MACIEL; SOUZA,
2021). Com isso, essa população acaba por não ter acesso pleno aos cuidados
médicos básicos e específicos, como à ginecologia ou ao clínico geral, entre ou-
tras especialidades (GRAMMATIKOPOULOU et al., 2021). Outro dado apontado
pelo IBGE (2020) é que a população de mulheres, negros e pobres tem maior
propensão a ser afetado pela COVID-19, sendo assim, este dado também pode
ter relação com os corpos femininos em situação de rua, uma vez que há ausên-
cia de condições para isolamento e itens de proteção - considerando especial-
mente que boa parte deste contigente são mulheres negras ex-periféricas.
Em meio a isso, utilizamos dois conceitos para analisar as condições
nas quais mulheres em situação de rua vivem: necropolítica (MBEMBE, 2017)
e precariedade (BUTLER, 2018). O conceito de necropolítica refere-se à pro-
dução de vidas para a morte como parte do projeto político do Estado e re-
forçado pelas mídias, que nos conduziu à reflexão sobre a existência de vidas
não passíveis de luto, cuja precariedade sobressai quando estudamos as con-
dições de existência deste grupo mais a fundo. Para entender a necropolíti-
ca, acreditamos ser imprescindível mencionar a pesquisa de Cecília Coimbra
(2001) acerca do mito das classes perigosas. Desde a década de 80, a produ-
ção midiática brasileira vem reforçando o olhar social de menosprezo com
relação à população localizada nas periferias urbanas e na área rural, naturali-
zando as violências e desigualdades que vários grupos vivenciam por meio de
produções escritas e audiovisuais que os retratam como “classes perigosas”.
Uma dessas desigualdades refere-se ao acesso a serviços de saúde,
pois estas mulheres acabam por serem destituídas deste direito ou, até mes-
THALITA C. DECOME POKER; STEPHANIE CAROLINE F. DE LIMA
Marcas da precariedade da pandemia de COVID-19 na vida de mulheres em situação de rua

mo, ser maltratadas nesses espaços, de modo a reviverem duplamente a vio-


lência ao qual são acometidas. No estudo de Grammatikopoulou et al. (2021)
foram elencados como principais fatores de risco associados à saúde coletiva
dessa população: distúrbios mentais, distúrbios do sono, distúrbios dentários,
abuso, violência, álcool, drogas, doenças parasitárias, doenças transmissíveis,
ISTs, HIV, AIDS, coronavírus, SARS-CoV-2, COVID-19, doenças cardiovasculares,
diabetes mellitus causada pelos efeitos do excesso de álcool, intolerância à
glicose, atividade física, estado nutricional, desnutrição, deficiências nutricio-
nais, deficiências de nutrientes, fome, falta de saneamento básico, distúrbios
menstruais, menopausa, saúde reprodutiva, gravidez precoce, problemas car-
diovasculares, alta exposição à poluentes do ar e envelhecimento precoce.
Não obstante, quando se trata do recorte de mulheres negras em si-
tuação de rua, há maior probabilidade em relação à mulheres caucasianas de
ter o histórico de abusos de substâncias, Diabetes mellitus, hipertensão e a
maioria das doenças não transmissíveis (GRAMMATIKOPOULOU et al., 2021;
MARQUES et al, 2021). Além disso, em situações de disparidades de gênero é
comum existir a soroprevalência, sendo maior a taxa de HIV, quando compa-
rativamente associada com os homens.
Diante destas exposições, a literatura consultada neste artigo tem
como consenso um alto índice de uso de substâncias psicoativas, em especial,
o álcool, o tabagismo e o crack, pelas mulheres em situação de rua, enquanto
escapatória para ficarem acordadas, para lidar com o estresse e com a fissura e
não serem abusadas, até mesmo, entre outras formas de tentarem lidar com o
fato de terem os seus direitos básicos e fundamentais negados ou cerceados.
Neste ponto, se faz necessário entender que o uso de substâncias, sem-
pre teve um viés político demarcado por classes sociais. A questão das drogas
é associada, desde a década de 20, com a criminalidade, de forma que, ao pas-
sar essa pauta para o campo da segurança pública (MACHADO; BOARINI, 2013),
surge na sociedade uma visão discriminatória para com os toxicômanos,
perpetuando assim o ciclo de exclusão para os usuários de substâncias, mais
acessíveis financeiramente, e o estigma que anteriormente pertencia ao “maco-
nheiro” no período escravista da história do Brasil passa para o “crackeiro” para a
atual população em situação de rua, como afirma o (CFP, 2013, p. 24):
O “crackeiro” seria apenas o sucessor, na linha evolutiva das substân-
cias vitimadoras, do “cachaceiro” e do “maconheiro” que lhe ante-
cederam nesta história de violência e dominação, na qual a miséria
econômica associada à marca de raça e de classe, antecipa o risco
do desenvolvimento da miséria moral, condição de uma desqualifi-
cação plena daqueles indivíduos que não foram “fortes o bastante”,
“resilientes” e “sucumbiram ao mal”.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 41-63, jan./jun., 2022. (18) 53


THALITA C. DECOME POKER; STEPHANIE CAROLINE F. DE LIMA
Marcas da precariedade da pandemia de COVID-19 na vida de mulheres em situação de rua

É comum, quanto o uso de álcool e drogas haver um forte apelo de


políticas higienistas para instituições fechadas por meio de internações
compulsórias exclusivamente para a população em situação de rua, conse-
quentemente, realçando o sofrimento ético, político e psíquico deste grupo
(MARQUES et al, 2021). A literatura ainda ressalta a emergência de se criar
abordagens que de fato assistam as mulheres em situação de rua usuárias de
substâncias psicoativas, tendo dimensão de especificidade desse público e de
suas necessidades – esta perspectiva seria uma forma de defender o respeito
e a dignidade humana (GRAMMATIKOPOULOU et al., 2021; MARQUES et al,
2021).
A questão do uso de álcool e drogas, também é tida como forma de
não obter atendimento ao Sistema Único de Saúde (SUS), uma vez que no
olhar dos/as profissionais técnicos o atendimento a pessoas embriagadas ou
drogadictas não é considerado da alçada da saúde, mas dos órgãos ligados
à população em situação de rua (HONORATO; OLIVEIRA, 2020). Percebemos
com esses apontamentos o quanto a questão do alcoolismo e da drogadição,
embora seja um problema de saúde o modo de interpretá-lo por algumas
políticas de Estado e da sociedade civil é também um problema psicossocial .
Enquanto correlação ao abuso de substância, na pesquisa de GRAMMA-
TIKOPOULOU et al. (2021) consta como fator de risco os distúrbios do sono,
sobretudo, o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Este quadro é
especialmente enunciado pela literatura, no caso de mulheres, pelo medo e
risco de serem vítimas de abuso sexual. Por isso, muitas mulheres passam a
microgerenciar por insônia, na medida do possível, o seu sono, na expectati-
va de não sofrer violência física ou sexual – por vezes, isso irá ocorrer com a
ingestão de drogas.
Além do receio de ser vítima de violência sexual, o mesmo estudo re-
vela enquanto outro fator que potencialmente pode ser considerado como
algo ceifa a vida de mulheres em situação de rua são as ISTs decorrentes de
atividades sexuais desprotegidas – por abuso sexual, ou, trabalho com sexo.
Esse fator de risco se torna mais preocupante especialmente no caso de mu-
lheres lésbicas, bissexuais ou transgêneros (GRAMMATIKOPOULOU et al.,
2021). Mesmo havendo o art.15 inciso I do decreto 7.053/09 (BRASIL, 2009)
que tem enquanto finalidade: “[...] incentivar a criação de serviços, programas
e canais de comunicação para denúncias de maus tratos e para o recebimento
de sugestões para políticas voltadas à população em situação de rua garan-
tido o anonimato dos denunciantes”, vemos que o receio e as situações de
violência sexual e maus tratos de mulheres em situação de rua parece ser uma
constante na literatura consultada.
Neste cenário, muitas mulheres em situação de rua também alegam

54 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 41-63, jan./jun., 2022. (18)


THALITA C. DECOME POKER; STEPHANIE CAROLINE F. DE LIMA
Marcas da precariedade da pandemia de COVID-19 na vida de mulheres em situação de rua

ter problemas ginecológicos e de gravidez indesejada. Na mesma seara de


discussão, a situação acaba por se agravar pela ausência de privacidade e
acesso aos banheiros públicos, locais em que possivelmente poderiam fazer
a sua higiene íntima, este item aparece tanto no contingente de mulheres
quanto na população em situação de rua em geral (GRAMMATIKOPOULOU
et al., 2021; POKER; SILVA, 2022). Todavia, com base na literatura exposta, per-
cebemos que no caso das mulheres, este fenômeno pode ser um elemento
desencadeador de problemas ginecológicos.
Esses problemas estão associados à parcela de 26% da população
feminina, dentre elas, as mulheres em situação de rua, que sofrem com o
impacto da pobreza menstrual. Não obstante, a falta de absorventes ou ou-
tros itens necessários para o período menstrual e o uso de papel higiênico,
sacolas plásticas, meias e jornais podem ter impacto direto no surgimento
de vulvovaginites, infecções do trato urinário e outras complicações (VIEIRA;
LOPES; CARVALHO, 2021). Com base nisso, pode-se correlacionar o problema
de pobreza menstrual ao cerceamento de oportunidades para possibilidade
de busca por empregabilidade ou de acesso aos estudos, considerando que,
sem itens de higiene básica essa população acaba por ficar sem condições de
articulação para outros campos de sua vida; e, assim, com menos chances de
sair da situação que se encontra.
Estes apontamentos citados pela literatura estão em consonância
com o que BUTLER (2020) irá postular sobre os processos de generificação; e,
consequentemente, de reconhecimento dos corpos - ou melhor, dos proces-
sos de codificação social que eles recebem. Na visão da autora há uma gestão
dos corpos, isto é, aqueles que servem melhor à lógica neoliberal, patriarcal e
branca, terão melhor disposição no processo de garantia de direitos e prote-
ção de sua vulnerabilidade. Vemos, a partir disso, que o corpo feminino, negro
e em situação de rua é posto em uma condição abjeta - que designa as zonas
inóspitas da vida social habitando o sigo do “exacrável”, “excludente” e “inabi-
tável”.
Ao relacionarmos essa discussão, entendemos que no processo de
normatização via generificação dos corpos femininos e negros em situação
de rua, a suspensão do direito e acesso a saúde ocorre por um duplo enun-
ciado. Sendo o primeiro, o ideário normativo de que o único corpo feminino
que demanda algum cuidado relativo é o branco de classe média - visto a sua
função social de reprodutor da prole para dar continuidade à formação regu-
lativa da família heteronormativa (MIRANDA; POKER, 2020). O segundo ad-
vém das políticas de quais corpos são passíveis de vida ou de morte (BUTLER,
2015), isto é, corpos femininos, negros em situação de rua não contemplam
nenhum projeto político para a lógica neoliberal, por isso, recebem adjeti-

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 41-63, jan./jun., 2022. (18) 55


THALITA C. DECOME POKER; STEPHANIE CAROLINE F. DE LIMA
Marcas da precariedade da pandemia de COVID-19 na vida de mulheres em situação de rua

vações negativas - portanto, a banalização de suas vidas e a ausência de um


serviço de sáude especializado as suas necessidades não se faz acessível.
Interligado à ausência de políticas e recursos que promovem ou pos-
sibilitam a maior garantia de saúde das mulheres em situação de rua está a
ausência de saneamento básico, isto é, o acesso limitado a água de qualidade
aceitável, colocando-se em maior risco de desidratação e doenças relaciona-
das com o calor (GRAMMATIKOPOULOU et al., 2021). O acesso à água potável
é também considerado um direito social fundamental de acordo com a lei
14.026 (BRASIL, 2020) em que se pode interpretar como serviços básicos: (a)
abastecimento de água potável; (b) esgotamento sanitário; (c) limpeza urba-
na e manejo de resíduos sólidos; e (d) drenagem e manejo de águas pluviais
urbanas (art. 3º, inciso I). Todavia, vemos que esse direito não é cumprido em
sua totalidade para a população em situação de rua.
Estes achados do estudo de GRAMMATIKOPOULOU et al. (2021) estão
em consonância com os apontamentos feitos por SANTOS (2020) acerca da
cruel pedagogia do vírus. Sobretudo, quando o autor postula a despeito da
ausência de condições de higiene para que alguns grupos socialmente margi-
nalizados possam seguir as recomendações da Organização Mundial da Saú-
de, especialmente, porque não tem sabão ou água disponível. Desta forma,
vemos na ausência do acesso ao saneamento básico, a face mais implacável
das políticas destinadas aos corpos que são despidos de sua matriz de inteli-
gibilidade, a suspensão dos princípios de cidadania e dos direitos humanos.
Na mesma esteira de discussão, estão as deficiências nutricionais que
demonstram baixa qualidade na alimentação ou até mesmo a ausência de
nutrição em maior probabilidade para as mulheres. A fome, enquanto fenô-
meno associado à miséria, pode afetar a capacidade de funcionamento glo-
bal das mulheres e iniciar o ciclo de desnutrição. Não obstante, o uso abusivo
de álcool, o desemprego e a falta de padrões de higiene corroboram para o
aumento da prevalência de problemas de saúde bucal entre as pessoas em
situação de rua (GRAMMATIKOPOULOU et al., 2021); e, consequentemente,
um propiciador do envelhecimento precoce e da queda de estimativa de vida.
Vemos com estes apontamentos que não se trata apenas do direito à
saúde, questão essa que seria suficiente para justificar este tópico, mas a rela-
ção de violação e política de morte na vida dos corpos femininos que diante
de uma crise sanitária são tratados como excedentes do capital. Com o pre-
conceito de se viver em situação de rua, cria-se na vida dessas mulheres, con-
sequentemente, o estigma de higiene, que passa a ser também uma barreira
importante para a empregabilidade fazendo a manutenção da miséria. Sobre-
tudo, o olhar preconceituoso pelo viés da saúde sob estas mulheres acaba por
ser um facilitador da infecção com o vírus SARS-COV-2 pela ausência de polí-

56 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 41-63, jan./jun., 2022. (18)


THALITA C. DECOME POKER; STEPHANIE CAROLINE F. DE LIMA
Marcas da precariedade da pandemia de COVID-19 na vida de mulheres em situação de rua

ticas na saúde para a distribuição de máscaras para a população em situação


de rua, ampliando a probabilidade infecção (SILVA; MACIEL; SOUZA, 2021).
Posta estas exposições, percebemos que a literatura demonstra que as
expectativas das mulheres em situação de rua quanto ao cuidado à sua saúde
são mais baixas, uma vez que esse direito lhes é negado por um sistema falho
que constantemente as trata com preconceito. Essa demonstração revela a
distância entre o que é previsto no art. 7, inciso I do decreto 7.053/09 (BRA-
SIL, 2009) que tem como objetivo: assegurar o acesso amplo, simplificado e
seguro aos serviços e programas que integram as políticas públicas de saúde,
educação, previdência, assistência social, moradia, segurança, cultura, espor-
te, lazer, trabalho e renda. Vemos com isto, que mesmo havendo políticas pú-
blicas que preconizam o direito às esferas básicas da cidadania, a mesma em
muitos casos não é cumprida em sua totalidade.

A cama de Procusto da cidadania de mulheres em situ-


ação de rua: sínteses possíveis

Considerando a natureza dos Direitos Humanos traduzida pelas po-


líticas públicas e o cenário de pandemia de COVID-19, este estudo teve por
finalidade refletir sobre o atual contexto de mulheres em situação de rua por
meio da literatura e dos documentos oficiais. Tendo como pretensão por meio
do olhar alinhado às assertivas críticas de BUTLER (2015; 2019; 2020), lançar
alguns enunciados sobre as especificidades das condições de vida da popula-
ção feminina em situação de rua.
Diante das exposições feitas, foi possível reivindicar o olhar sensível
sobre as particularidades dos marcadores políticos no campo da interseccio-
nalidade das mulheres em situação de rua. De acordo com a literatura ana-
lisada e interpretações construídas, podemos entender a condição de estar
em situação de rua para algumas mulheres enquanto síntese possível para se
continuar a viver diante de outros fenômenos que cerceiam, ou ainda, podem
interrompem abruptamente as suas trajetórias de vida como a violência intra-
familiar, o feminicídio e o desemprego, decorrente de um subemprego. Estar
em situação de rua é a última tentativa, dessas mulheres na escala de violên-
cia contra o corpo feminino, negro e pobre para manterem algum fragmento
de sua humanidade.
Como postulado por BUTLER (2020) existem codificações socialmente
e historicamente construídas que atribuem valores aos corpos. Frente à onto-

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 41-63, jan./jun., 2022. (18) 57


THALITA C. DECOME POKER; STEPHANIE CAROLINE F. DE LIMA
Marcas da precariedade da pandemia de COVID-19 na vida de mulheres em situação de rua

logia do corpo, proposta pela autora, mesmo o gênero traduzido pela norma
enquanto elemento biologizante, estar em situação de rua no caso das refe-
ridas mulheres deste estudo é a última forma de reivindicação de sua exis-
tência pela não conformidade dos quadros que a materialidade insiste em
enquadrá-las.
Com os achados, vemos que os corpos femininos, negros e que se en-
contram na linha de corte da miséria, em situação de rua, são fruto de um
processo histórico longitudinal em que pesam os estereótipos e preconcei-
tos escravistas e coloniais a serviço da lógica neoliberal. Percebe-se, de modo
desnudo, a extrema sujeição dos corpos femininos, uma vez que estar em si-
tuação de rua pode ser considerado como última opção para garantir o míni-
mo da vida que restou a esta população. Sendo a situação de rua uma forma
de pseudo-cidadania na vida destas mulheres, como uma alternativa perver-
sa para não se sujeitar a violência intrafamiliar e se auto-gerir diante do de-
semprego frente a ausência de garantia de seus direitos básicos. Todavia, em
troca disso, correm outros riscos igualmente ameaçadores à sua humanidade
e existência – dentre eles, a violência física e/ou sexual e o preconceito no
modo de ser enquadrada pelos serviços da saúde.
Estas particularidades dos corpos femininos em situação de rua, no
campo da interseccionalidade com as categorias raça e classe social no cená-
rio de pandemia, em que, a vulnerabilidade da vida humana tornou-se mais
explícita, fez com que na gestão política das vidas os processos segregatórios
fossem realçados enquanto realidade de países em desvantagem econômica.
Uma limitação, tanto deste estudo, quanto da literatura consultada,
abordando o tripé mulheres, situação de rua e COVID-19 é a ausência de es-
tudos que contemplem a mulher trans – não sabemos se por já serem consi-
deradas no contingente geral de mulheres, ou, pela literatura não promover
a visibilidade e reconhecer este fenômeno. Ainda em alguns artigos, quando
a questão de gênero era abordada, a mesma estava entre uma lógica binária
dentro de inteligibilidade corpos generificados – masculino e feminino.
Podemos entender, com o exposto, que a pandemia foi uma incuba-
dora abrupta das mazelas sociais para quem se encontrava na ponta da escala
de opressão/discriminação. Esta afirmação se torna legítima a somar pelo au-
mento da população feminina em situação de rua e a ausência de projetos e
políticas públicas específicas, ou ainda, pela omissão de planos para resguar-
do e cuidado da saúde para essas mulheres. Estes achados, portanto, demons-
traram que o constructo da cidadania em um Estado moderno razoavelmente
democrático assemelha-se a alegoria da cama de Procusto na mitologia grega
- só cabe na cama de modo imperfeito quem é mutilado de algum modo pela
serventia que seu corpo, porventura poderá ter para o Capital.

58 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 41-63, jan./jun., 2022. (18)


THALITA C. DECOME POKER; STEPHANIE CAROLINE F. DE LIMA
Marcas da precariedade da pandemia de COVID-19 na vida de mulheres em situação de rua

Referências

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2. ed. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2009.

BRASIL. Constituição de 1988. Constituição da República Federativa do


Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília, DF: Senado Federal:
Centro Gráfico, 1988.

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Rua apren-


dendo a contar: pesquisa nacional sobre população em situação de rua. Brasí-
lia, DF, Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação: Secretaria Nacional
de Assistência Social, 2009. Disponível em: https://www.mds.gov.br/webar-
quivos/publicacao/assistencia_social/Livros/Rua_aprendendo_a_contar.pdf.
Acesso em: 7 abr. 2022.

BRASIL. Decreto nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política


Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de
Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Brasília, DF:
Presidência da República, 2009. Disponível em: https://legislacao.presiden-
cia.gov.br/atos/?tipo=DEC&numero=7053&ano=2009&ato=b99MzZE5Ue-
VpWT33d#:~:text=INSTITUI%20A%20POL%C3%8DTICA%20NACIONAL%20
PARA,MONITORAMENTO%2C%20E%20D%C3%81%20OUTRAS%20PROVI-
D%C3%8ANCIAS. Acesso em: 9 abr. 2022.

BRASIL. Nota Técnica n° 5/2020/CHRIS/DEPTH/SNPG/MMFD. Orientações


gerais sobre atendimento e acolhimento emergencial à população em situação
de rua no contexto da pandemia do Covid-19. Brasília, DF: Secretaria Nacional
de Proteção Global: Secretário Nacional dos Direitos da Criança e do Adoles-
cente, 2020a. Disponível em: http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-
-54-de-1-de-abril- de-2020-250849730 Acesso em: 28 fev. 2022.

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Regional. Plano Nacional de Sane-


amento Básico PLANSAB, mais saúde, qualidade de vida e cidadania. dispõe
sobre a lei lei 14.026/20. Disponível em: https://antigo.mdr.gov.br/sanea-
mento/plansab. Acesso em: 2 fev. 2020.

BRUSCHINI, Maria Cristina Aranha. Trabalho e gênero no Brasil nos últimos


dez anos. Cadernos de pesquisa, São Paulo, v. 37, p. 537-572, 2007. Disponível

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 41-63, jan./jun., 2022. (18) 59


THALITA C. DECOME POKER; STEPHANIE CAROLINE F. DE LIMA
Marcas da precariedade da pandemia de COVID-19 na vida de mulheres em situação de rua

em: https://www.scielo.br/j/cp/a/KybtYCJQvGnnFWWjcyWKQrc/abstrac-
t/?lang=pt. Acesso em: 9 abr. 2022.

BUTLER, Judith. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo: N-1, 2020.

BUTLER, Judith. Vida Precária: Os poderes do luto e da violência. Belo Hori-


zonte: Autêntica, 2019.

BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

COIMBRA, Cecília. Operação Rio: o mito das classes perigosas: um estudo so-
bre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública.
Rio de Janeiro: Oficina do Autor; Niterói: Intertexto, 2001.

CRESWELL, J. W. Projeto de pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e mis-


to. Porto Alegre, RS: Artmed, 2007.

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Referências técnicas para a atuação de


psicólogas (os) em políticas públicas de álcool e outras drogas. Brasília, fev.
2013. Disponível em: https://site.cfp.org.br/publicacao/referencias-tecnicas-
-para-atuacao-de-psicologasos-em-politicas-publicas-de-alcool-e-outras-
-drogas/ Acesso em: 9 abr.2022.

CORTIZO, R. M.; SANTORO, André. População em situação de rua no Brasil: o


que os dados revelam. Brasília, DF: Ministério da Cidadania, 2019. Dispo-
nível em: http://blog.mds.gov.br/redesuas/wp-content/uploads/2019/09/
Popula%C3%A7%C3%A3o-em-Situa%C3%A7%C3%A3o-de-Rua-no-Brasil-
-O-que-os-dados-revelam.pdf Acesso em: 9 abr.2022.

VIEIRA, Lorena M. H. de Piau; LOPES, Luíza Pereira; CARVALHO, Maria Gabriela


Ferreira. Pobreza menstrual: uma questão de saúde pública. RAHIS-Revista de
Administração Hospitalar e Inovação em Saúde, Belo Horizonte, v. 18, n. 4, p.
161-161, 2021. Disponível em: https://revistas.face.ufmg.br/index.php/rahis/
article/view/7327. Acesso em: 9 abr. 2022.

GAMEIRO, Nathallia. População em situação de rua aumentou durante a


pandemia. Fiocruz [online], 8 jun. 2021. Disponível em: https://portal.fiocruz.
br/noticia/populacao-em-situacao-de-rua-aumentou-durante-pandemia.
Acesso em 28 fev. 2022.

60 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 41-63, jan./jun., 2022. (18)


THALITA C. DECOME POKER; STEPHANIE CAROLINE F. DE LIMA
Marcas da precariedade da pandemia de COVID-19 na vida de mulheres em situação de rua

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA - FBSP. Violência Doméstica


Durante a Pandemia de COVID-19. Nota técnica. São Paulo, 2020. Disponível
em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2018/05/violencia-
-domestica-covid-19-v3.pdf. Acesso em: 13 jan. 2022.

GRAMMATIKOPOULOU, Maria G. et al. Health status of women affected by


homelessness: A cluster of in concreto human rights violations and a time for
action. Maturitas, Amsterdam, v. 154, p. 31-45, 2021.

HENNING, Carlos Eduardo. Interseccionalidade e pensamento feminista: as


contribuições históricas e os debates contemporâneos acerca do entrelaça-
mento de marcadores sociais da diferença. Mediações, Londrina, v. 20, n. 2, p.
97-128, jul./dez. 2015. Disponível em: https://repositorio.bc.ufg.br/bitstream/
ri/18588/5/Artigo%20-%20Carlos%20Eduardo%20Henning%20%20%20
-%202015.pdf. Acesso em: 9 abr. 2022

HONORATO, Bruno E. Freitas; OLIVEIRA, Ana Carolina S. População em situa-


ção de rua e COVID-19. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 54,
p. 1064-1078, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rap/a/6f3zjNgGv-
dyqV4Sxx3K74Gz/?format=html&lang=pt. Acesso em: 4 abr. 2022.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE. Trabalho - PNAD


Covid19 [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2020. Disponível em: https://biblio-
teca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101755.pdf. Acesso em: 20 fev. 2022.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano.
Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019.

LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. A. Técnicas de pesquisa. In: LAKATOS, E. M;


MARCONI, M. A. Fundamentos de Metodologia Científica. 3. ed. São Paulo:
Atlas; 1991. p. 195-200.
LIMA JUNIOR, Eduardo Brandão et al. Análise documental como percurso
metodológico na pesquisa qualitativa. Cadernos da FUCAMP, Monte Carmelo,
v. 20, n. 44, 2021. Disponível em: http://fucamp.edu.br/editora/index.php/
cadernos/article/view/2356. Acesso em: 4 abr. 2022.

MACHADO, Letícia Vier; BOARINI, Maria Lúcia. Políticas sobre drogas no Bra-
sil: a estratégia de redução de danos. Psicologia: ciência e profissão, Brasília, v.
33, p. 580-595, 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pcp/a/xvTC3vV-
CqjDNYw7XsPhFkFR/?lang=pt&format=html. Acesso em: 7 abr. de 2022.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 41-63, jan./jun., 2022. (18) 61


THALITA C. DECOME POKER; STEPHANIE CAROLINE F. DE LIMA
Marcas da precariedade da pandemia de COVID-19 na vida de mulheres em situação de rua

MARQUES, Ana Lucia Marinho et al. O impacto da Covid-19 em grupos mar-


ginalizados: contribuições da interseccionalidade como perspectiva teórico-
política. Interface-Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 25, n .25, p.
1-18, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/WJD7d5jCKC3GtsJ-
tbpRnNjy/?format=html&lang=pt. Acesso em: 9 abr. 2022.

MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona, 2017.

MIRANDA, Sheila Ferreira; POKER, Thalita Catarina Decome. Gênero e sexua-


lidades na vida de mulheres negras brasileiras: Contribuições decoloniais à
Psicologia Social crítica. In: RAMOS, Mozer de Miranda; CERQUEIRA-SANTOS,
Elder (org.). Psicologia & Sexualidade: diversidade sexual. Belo Horizonte:
Dialética, 2021. p. 227-250.

NUNES, Nilza Rogeria de Andrade; SOUSA, Patricia Cristina Santana de. Para
ficar em casa é preciso ter casa: Desafios para as mulheres em situação de
rua em tempos de pandemia. Revista Augustus, Rio de Janeiro, v. 25, n. 51,
p. 97-112, 2020. Disponível em: https://revistas.unisuam.edu.br/index.php/
revistaaugustus/article/view/545. Acesso em: 9 abr.2022.

ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE. A OMS afirma que COVID-19 é agora ca-


racterizado como pandemia. OPAS, 11 mar. 2020. Disponível em: https://www.paho.
org/pt/news/11-3-2020-who-characterizes-covid-19-pandemic#:~:text=OMS%20
afirma%20que%20COVID%2D19%20%C3%A9%20agora%20caracterizada%20
como%20pandemia,-11%20Mar%202020&text=11%20de%20mar%C3%A7o%20
de%202020,agora%20caracterizada%20como%20uma%20pandemia. Acesso em:
7 abr. 2022.

ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em: ht-
tps://www.oas.org/dil/port/1948%20Declara%C3%A7%C3%A3o%20Univer-
sal%20dos%20Direitos%20Humanos.pdf. Acesso em: 4 abr. 2022.

PAIVA, Irismar Karla Sarmento de et al. Direito à saúde da população em


situação de rua: reflexões sobre a problemática. Ciência & Saúde Coletiva, Rio
de Janeiro, v. 21, n. 21, p. 2595- 2606, 2016. Disponível em: https://www.scie-
losp.org/article/csc/2016.v21n8/2595-2606/pt/. Acesso em: 9 abr. 2022

PATTO, Maria Helena. Souza. A produção do fracasso escolar: história de sub-


missão e rebeldia. Tese de Livre-docência – Instituto de Psicologia da Univer-

62 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 41-63, jan./jun., 2022. (18)


THALITA C. DECOME POKER; STEPHANIE CAROLINE F. DE LIMA
Marcas da precariedade da pandemia de COVID-19 na vida de mulheres em situação de rua

sidade São Paulo, São Paulo, 1978.

POKER, Thalita Catarina Decome. Quem somos nós, criança sujeito de direitos? A
constituição da identidade de adolescentes no cenário de participação política.
Tese (Doutorado em Psicologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020.

POKER; Thalita Catarina Decome; SILVA, Maria da Conceição Gomes da. São
Paulo é uma selva de pedras onde o lar é a rua: A história de Esão: entre a
precariedade e a luta por cidadania. In: ANDRADE, Fábio Santos et al. (org.).
Invisíveis: pessoas em situação de rua no Brasil – significantes e significados.
São Carlos - SP: Pedro e João: 2022 (no prelo).

PRINS, Baukje; MEIJER, Irene Costera. Como os corpos se tornam matéria:


entrevista com Judith Butler. Revista estudos feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1,
p. 155-167, 2002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ref/a/vy83qbL5HHNK-
dzQj7PXDdJt/?format=pdf&lang=pt . Acesso em: 9 abr. 2022.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Edições


Almedina, S.A., 2020.

SILVA, Marília Goulart; MACIEL, Lidiane M.; SOUZA, Adriane Ap. Moreira de.
Ressignificando o não-lugar durante a pandemia covid-19: homens, mulhe-
res e crianças em situação de rua em São José dos Campos/SP, Brasil. Geogra-
fares, Vitória, n. 33, p. 1-22, 2021. Disponível em: https://journals.openedi-
tion.org/geografares/2854. Acesso em: 9 abr. 2022.

SMADS – Secretária Municipal de Assitência e Desenvolvimento Social.


Pesquisa censitária da população em situação de rua, caracterização socioeco-
nômica da população adulta em situação de rua e relatório temático de identi-
ficação das necessidades desta população na cidade de São Paulo - 2021, São
Paulo: Prefeitura de São Paulo, 2021. Disponível em: https://www.prefeitura.
sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/OBSERVATORIO/Produto%2013%20
-%20Entrega%2029042020%20corrigido.pdf?msclkid=503030ecc1bc11e-
c8b333cc233ffacdb. Acesso em: 21 abr. 2022.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 41-63, jan./jun., 2022. (18) 63


Cidadania e o direito à saúde
da população em situação de
rua: um olhar sobre a estratégia
do Consultório na Rua
§ Ciudadanía y derecho a la salud de la población
en situación de calle: una mirada a la estrategia del
Consultorio en la Calle

§ Citizenship and the right to health of the homeless


population: a look at the strategy of the Street Clinic

Maria Izabel Sanches Costa1

Fabiana Santos Lucena2

Resumo: A saúde, como direito humano fundamental, foi ampliada a toda


população em 1988, a partir da promulgação da Constituição Federal Brasilei-
ra, que determinou que todo e qualquer cidadão tem direito a acessar os ser-
viços de saúde. A Política Nacional da População em Situação de Rua (PNPSR),
instituída em 2009, reforçou a necessidade de políticas que garantem a esta

1 Doutora em Saúde Pública na Universidade de São Paulo (USP), graduada e mestre em Ciências Políticas pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Pós-doutora em Administração Pública na FGV-
EAESP. Pesquisadora do Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. belcost@gmail.com
2 Graduação em Enfermagem pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo e mestrado em
Enfermagem Psiquiátrica pela Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Instituto de Saúde da Secretaria de
Estado da Saúde de São Paulo. fabiana.lucena@isaude.sp.gov.br

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 65-84, jan./jun., 2022. (18) 65


MARIA IZABEL SANCHES COSTA; FABIANA SANTOS LUCENA
Cidadania e o direito à saúde da população em situação de rua: um olhar sobre a estratégia do Consultório na Rua

população o acesso aos serviços públicos, incluindo a saúde. Devido a ne-


cessidade de efetivar o direito à saúde da PSR, surgiu em 2011 a estratégia
do Consultório na Rua (CnR). Este artigo trata de um ensaio que tem como
objetivo refletir sobre o status de cidadania da população em situação de rua
(PSR), frente ao acesso à política de saúde brasileira. Para a fundamentação
desse ensaio, adotaram-se autores que vêm trabalhando com o tema de ci-
dadania, exclusão social, vulnerabilidade e população em situação de rua. Ao
categorizar a PSR como cidadãos isolados, argumenta-se que os estigmas e a
exclusão social vivida por tais indivíduos fazem com que sejam privados de
praticamente todos os direitos de cidadania e não sejam reconhecidos pela
sociedade como tal. Evidencia-se que fato de os profissionais da saúde esta-
rem inseridos na rua na estratégia do CnR, potencializa a construção de vín-
culos, permite identificar problemas e priorizar intervenções, individualizar as
necessidades e promover cuidados equitativos. Entretanto, muitos têm sido
os desafios que vão desde a dificuldade do trabalho em rede, da garantia do
cuidado na rede especializada até a persistência de estigmas. Argumenta-se
que ainda é preciso avançar no reconhecimento do status de cidadania des-
sa população para que então tenham seus direitos garantidos. Por fim, argu-
menta-se que, apesar da sua relevância, o direito à saúde é tão somente um
dos necessários para a efetivação da cidadania plena da PSR. É necessário a
estruturação de um arranjo institucional intersetorial, que articule a política
de saúde, a seguridade social, o trabalho, a moradia, a educação etc.

Palavras-chave: População em situação de rua. Cidadania. Consultório na


rua. Direito à saúde.

Resumen: La salud como derecho humano fundamental fue instituida para


toda la población en 1988 tras la promulgación de la Constitución Federal
brasileña, que determinó que todo ciudadano tiene derecho a acceder a los
servicios de salud. La Política Nacional de Población en Situación de Calle, es-
tablecida en 2009, reforzó la necesidad de políticas que garanticen el acceso
de esta población a los servicios públicos, incluida la salud. La estrategia de la
Consultorio en la Calle surgió en 2011 debido a la necesidad de implementar
el derecho a la salud de la población sin hogar. Este artículo es un ensayo que
tiene como objetivo reflexionar sobre el estatus de ciudadanía de la población
sin hogar en relación con el acceso a la política de salud brasileña. Al catalogar
a la población sin hogar como un ciudadano aislado, se argumenta que los
estigmas y la exclusión social que experimentan estos individuos los privan
de prácticamente todos los derechos de ciudadanía y no son reconocidos por

66 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 65-84, jan./jun., 2022. (18)


MARIA IZABEL SANCHES COSTA; FABIANA SANTOS LUCENA
Cidadania e o direito à saúde da população em situação de rua: um olhar sobre a estratégia do Consultório na Rua

la sociedad como tales. Para la base de este ensayo, se adoptaron autores que
vienen trabajando con el tema de la ciudadanía, la exclusión social, la vulnera-
bilidad y la población sin hogar. Este artículo muestra que el el hecho de que
los profesionales de la saçud se inserten en la calle, potencia la construcción
de vínculos, permite identificar problemas y priorizar intervenciones, indivi-
dualizando necesidades y promoviendo un cuidado equitativo. Sin embargo,
ha habido muchos desafíos, que van desde la dificultad de trabajar en red,
garantizando la atención en la red especializada, hasta la persistencia de los
estigmas. Se argumenta que aún es necesario avanzar en el reconocimiento
de la ciudadanía de esta población para que se garanticen sus derechos. Fi-
nalmente, se argumenta que, a pesar de su relevancia, el derecho a la salud es
sólo uno de los necesarios para la realización de la ciudadanía plena de la PSR.
Es fundamental estructurar un arreglo institucional intersectorial que articule
la política de salud, seguridad social, trabajo, vivienda, educación, etc.

Palabras clave: Población sin hogar. Ciudadanía. Oficina en la calle. Derecho


a la salud.

Abstract: Health, as a fundamental human right, was expanded to the entire


population in 1988, after the promulgation of the Brazilian Federal Constitu-
tion, which determined that every citizen has the right to access health servi-
ces. The National Policy of the Homeless Population, established in 2009, rein-
forced the need for policies that guarantee this population access to public
services, including health. The Street Clinic strategy emerged in 2011 due the
need to assure the right to health of the homeless population. This article is
an essay that aims to reflect on the citizenship status of the homeless popula-
tion, regarding the access to Brazilian health policy. This essay is based in au-
thors who have been working with the theme of citizenship, social exclusion,
vulnerability and homeless population. By categorizing the homeless popu-
lation as isolated citizens, it is argued that the stigmas and social exclusion ex-
perienced by such individuals make them deprived of virtually all citizenship
rights and are not recognized by society as such. It is evident that the fact that
health professionals are working in the street, enhances the construction of
bonds, allows identifying problems and prioritizing interventions, individu-
alizing needs, and promoting equitable care. However, there still have many
challenges ranging from the difficulty of networking, from ensuring care in
the specialized network to the persistence of stigmas. It is argued that it is still
necessary to advance in the recognition of the citizenship status of this popu-
lation so that their rights are guaranteed. Finally, it is argued that, despite its

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 65-84, jan./jun., 2022. (18) 67


MARIA IZABEL SANCHES COSTA; FABIANA SANTOS LUCENA
Cidadania e o direito à saúde da população em situação de rua: um olhar sobre a estratégia do Consultório na Rua

relevance, the right to health is only one of the necessary for the realization
of full citizenship of the homeless population. It is essential to structure an
intersectoral institutional arrangement that articulates health policy, social
security, work, housing, education and others.

Keywords: Homeless population. Citizenship. Office on the street. Right to


health.

1. Introdução
Este artigo trata de um ensaio que tem como objetivo refletir sobre o
status de cidadania da população em situação de rua (PSR) frente ao acesso à
política de saúde brasileira. Fundamenta-se na premissa que a cidadania não
é algo estático e universal, mas sim, uma noção construída socialmente e que
ganha sentido nas experiências sociais e individuais (COSTA; IANNI, 2018). De
fato; vulnerabilidades, desigualdades e iniquidades produzem categorias de
cidadania e interferem nas garantias de direitos. Assim, é indiscutível que o
contexto em que o indivíduo está inserido impacta na sua experiência en-
quanto cidadão.
Argumenta-se que os estigmas e a exclusão social vivida pela Popula-
ção em Situação de Rua (PSR) fazem com que tais indivíduos sejam privados
de, praticamente, todos os direitos de cidadania e não sejam reconhecidos
pela sociedade como tal.
A Constituição de 1988 determinou que todo e qualquer cidadão tem
direito a acessar os serviços de saúde, independente do gênero, classe, raça,
idade etc. Entretanto, a PSR ainda encontra barreiras para a garantia de tais
direitos. A implementação da estratégia da equipe do Consultório na Rua
(CnaR) tem buscado alterar esta situação, mas ainda são muitos os desafios. A
proposta desse ensaio é trazer algumas reflexões sobre o alcance desse direi-
to à PSR e o reconhecimento do seu status de cidadão.
Adotou-se, para fundamentação desse ensaio, autores que vêm traba-
lhando com o tema de cidadania, exclusão social, vulnerabilidade e popula-
ção em situação de rua. Também foi realizada uma revisão narrativa de arti-
gos científicos sobre a atenção à saúde da PSR com enfoque na estratégia do
Consultório na Rua.
O artigo está estruturado em duas seções, além desta Introdução e
das Considerações finais. Na segunda seção debatemos a definição do con-
ceito de cidadania para a PSR, bem como os encaixes e desencaixes do acesso
ao direito à saúde por parte de tais indivíduos. Na terceira seção são proble-

68 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 65-84, jan./jun., 2022. (18)


MARIA IZABEL SANCHES COSTA; FABIANA SANTOS LUCENA
Cidadania e o direito à saúde da população em situação de rua: um olhar sobre a estratégia do Consultório na Rua

matizadas as ações da estratégia da equipe do CnaR, considerando o acesso


aos serviços de saúde e o reconhecimento do status de cidadania. Em sua
última parte, têm-se as considerações finais.

2. A população em situação de rua: o cidadão isolado


Parte-se da concepção, de Costa e Ianni (2018), de que a cidadania é
uma noção construída socialmente e ganha sentido nas experiências sociais e
individuais e, por isso, é compreendida como uma identidade sócio-política.
É uma identidade porque ela precisa ser reconhecida pelo próprio indivíduo
e validada pela comunidade. É social e política, pois faz parte da relação entre
o Estado e a sociedade. A partir dessa identidade, o cidadão passa a ter um
conjunto de direitos e deveres diante da sociedade da qual faz parte. Essa so-
ciedade é delimitada territorialmente e, portanto, vinculada a uma comunida-
de política, formada por um Estado-nação que tem um conjunto de práticas
políticas, econômicas, jurídicas e culturais.
Dessa perspectiva, Costa e Ianni (2018) concebem a cidadania como
identidade social política constituída por três elementos: o primeiro elemento
garante o pertencimento, o segundo garante o exercício político da cidadania
e o terceiro garante os direitos e os deveres do cidadão, isto é, sua proteção
social, civil e política. Segundo as autoras, apesar da identidade social polí-
tica ideal ser constituída pelos três elementos, essa composição não é rígi-
da. Ela pode ser composta de um, dois ou três elementos. O único elemento
essencial para sua constituição é o de pertencimento a uma comunidade. A
combinação desses elementos forma três grupos de cidadãos: cidadão pleno,
cidadão politicamente passivo e cidadão isolado.
O primeiro grupo é composto pelas três dimensões e é caracteriza-
do por ser politicamente ativo, com consciência de seus deveres, e que luta
pela garantia e ampliação dos direitos. Do segundo, fazem parte os elemen-
tos: pertencimento e detentor de direitos e deveres. É caracterizado por não
participar da vida política, seja por apatia ou descrença em relação à polí-
tica ou por se encontrarem impossibilitados para tal exercício. Apesar de
não ser ativo politicamente, tem conhecimento de seu pertencimento e de
como usufruir e garantir seus direitos. O terceiro é constituído apenas pelo
elemento de pertencimento e caracterizado por não conseguir exercer seus
direitos políticos e por não ter garantidos seus direitos como cidadãos. Al-
guns são indivíduos considerados inimputáveis, isto é, não responsáveis por
seus atos e, então, tutelados pelo Estado ou por outro indivíduo responsável
por eles. Outros são indivíduos em situação de extrema vulnerabilidade e

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 65-84, jan./jun., 2022. (18) 69


MARIA IZABEL SANCHES COSTA; FABIANA SANTOS LUCENA
Cidadania e o direito à saúde da população em situação de rua: um olhar sobre a estratégia do Consultório na Rua

que vivem em situação de invisibilidade tanto pela sociedade quanto pelo


Estado.
O cidadão isolado pertence ao terceiro grupo e vive cotidianamente
os efeitos do processo de exclusão social. É nesta categoria de cidadão isolado
que se encaixa grande parte das pessoas em situação de rua, encontrando
fragilidades nas dimensões da participação política/coletiva e da dimensão
de garantias de direitos e deveres, tendo apenas resguardada a dimensão de
pertencimento ao Estado-nação.
Apesar da situação de extrema vulnerabilidade e exclusão a que essas
pessoas estão submetidas, ainda assim é possível encontrar algumas delas
mobilizadas, apresentando consciência de seus direitos e na luta por sua ga-
rantia e ampliação. Esse é o caso daqueles que se organizam no Movimento
Nacional de Moradores de Rua. O movimento teve início em 2005, após o as-
sassinato de sete pessoas na região da Praça da Sé em São Paulo, tendo sido
organizado por “ex-moradores de rua” e pessoas que ainda se encontram em
situação de rua.
Indivíduos vivendo em situação de rua constituem-se um fenôme-
no antigo e mundial inerente às grandes metrópoles contemporâneas.
Ao longo das últimas décadas e, em especial, nos dois últimos anos, em
decorrência da crise econômica deflagrada pela pandemia da Covid-19,
houve um aumento dessa população no Brasil, de acordo com o Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Em março de 2020, último perí-
odo pesquisado, no Brasil havia 221.869 PSR. Se levarmos em conta que
este dado não contempla todo o período acirrado da pandemia, prova-
velmente, o número de pessoas em situação de rua em 2021 aumentou
de forma significativa. Esta hipótese tem como justificativa os dados do
último Censo da População em Situação de Rua da Cidade de São Paulo,
desenvolvido pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimen-
to Social (SMADS), realizado no final de 2021. A pesquisa identificou que
o número passou de 24.344 para 31.884, representando um aumento de
31% nos últimos dois anos (SÃO PAULO, 2021).
Enquanto uma parte da literatura brasileira aponta que este fenôme-
no acirrou-se nas últimas décadas com o processo de industrialização e de-
senvolvimento do capitalismo (ROSA, 1999; SILVA, 2009), outros estudiosos o
relacionam a causas estruturais da história da sociedade brasileira, complexas
e associadas a fatores econômicos, sociais e culturais que culminaram em situ-
ações de extrema pobreza e “apartações sociais” (VARANDA; ADORNO, 2004;
ANDRADE, 2019; ESCOREL, 2009, PAIVA et al., 2015). Independentemente da
abordagem, é indiscutível o fato que este fenômeno está vinculado a um pro-
cesso de exclusão social.

70 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 65-84, jan./jun., 2022. (18)


MARIA IZABEL SANCHES COSTA; FABIANA SANTOS LUCENA
Cidadania e o direito à saúde da população em situação de rua: um olhar sobre a estratégia do Consultório na Rua

Vera (2011) ressalta que a exclusão social configura-se como marca


inquestionável do desenvolvimento capitalista brasileiro e que os processos
sociais excludentes estão presentes desde os tempos. A literatura, frequente-
mente, define que a exclusão social é composta por três dimensões: a econô-
mica, a social e a simbólica (ESCOREL, 2009; WANDERLEY, 2001; DÉCHAMPS,
1998, In: ESTIVILL, 2003). Sposati (1999) ratifica tais dimensões ao afirmar que
pobreza absoluta ou relativa – dimensão econômica – pode ser somada a
questões de discriminação e estigma – dimensão social. Isto significa afirmar
que a exclusão social pode somar a privação econômica à discriminação e à
fragilidade de vínculos sociais.
Desta forma, partimos aqui da concepção que a exclusão social é
um processo pluridimensional que segrega e inferioriza um indivíduo ou
um grupo perante a sociedade a qual pertence. Este processo é composto
por três fatores que aferem graus de vulnerabilidade social: precarização do
trabalho, precarização da sociabilidade primária e estigma (COSTA; IANNI,
2018). A primeira está relacionada às fragilidades na inserção do mundo do
trabalho e, portanto, nas formas de sobrevivência no mundo capitalista. A
segunda é regida pelos vínculos com família, vizinhança, amigos etc. Tais
vínculos proporcionam o sentimento de pertencimento e integração a uma
rede, a uma comunidade que lhe confere suporte (CASTEL, 1998). A terceira
se refere a um atributo que torna o indivíduo diferente do que é conside-
rado padrão pela sociedade e, portanto, lhe confere um descrédito (GOF-
FMAN, 1978).
Apesar de comumente ouvirmos referências à população em situa-
ção de rua como um grupo homogêneo, o Censo de Moradores de Rua da
Cidade de São Paulo (NATALINO, 2016) e outras pesquisas mais detalhadas
demonstram a existência de uma gama de diversidade vão desde idade,
escolaridade, vínculo familiar, tempo em que está em situação de rua, etc.
(VIEIRA et al., 1992; ROSA, 1999; VARANDA; ADORNO, 2004). É nesse sentido
que Rosa, Cavicchioli e Brêtas (2005) afirmam ser difícil a definição de PSR,
visto às múltiplas condições individuais e fatores que os levaram a tal situa-
ção, bem como a diversidade de soluções para a garantia da sobrevivência
nas ruas. Apesar da diversidade deste grupo, podemos afirmar que é quase
unânime a presença das três dimensões – precarização do trabalho, preca-
rização da sociabilidade primária e estigma (COSTA; IANNI, 2018) – o que
afere a esta população um alto grau de vulnerabilidade social.
Esta concepção está em consonância com a Política Nacional da
População em Situação de Rua (Brasil, 2009) que define que PSR como um

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 65-84, jan./jun., 2022. (18) 71


MARIA IZABEL SANCHES COSTA; FABIANA SANTOS LUCENA
Cidadania e o direito à saúde da população em situação de rua: um olhar sobre a estratégia do Consultório na Rua

[...] grupo populacional heterogêneo que possui em comum a po-


breza extrema, bem como, vínculos familiares interrompidos ou
fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular. Uti-
lizam logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de
moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente. Ade-
mais, usam as unidades de acolhimento para pernoite temporário
ou como moradia provisória (Brasil, 2009, p. 1).

O preconceito e a discriminação estão relacionados a diversos estig-


mas que circundam a PSR, pois há uma ideia geral de que são pessoas peri-
gosas, preguiçosas e que fazem uso abusivo de álcool e substâncias psicoati-
vas. Fortemente associada à dificuldade de manutenção da higiene pessoal,
há também à discriminação física em decorrência da aparência. “Um corpo
marginalizado, sujo e exalando fortes odores não condiz com o ideal de uma
sociedade limpa” (VALLE; FARAH, 2020, p. 185) e organizada. A própria apa-
rência impossibilita a inclusão do mercado de trabalho formal, forçando-os
a trabalhar na informalidade e excluindo-os da proteção social garantida por
um registro em carteira de trabalho. Ademais, a internalização do preconceito
sofrido dia após dia cria uma identificação do sujeito com as representações
sociais a ele atribuídas, criando um sentimento de fracasso e baixa autoesti-
ma. “Fruto de um contexto sócio-histórico, a representação é sentida como
atributo individual, produzindo sentimentos de fracasso e de incompetência
social” (CAMPOS; SOUZA, 2013). É um ciclo difícil de romper sem suporte.
Muitas pesquisas têm demonstrado tanto as fragilidades quanto o
rompimento dos vínculos familiares das PSR (FRANGELLA, 2009; VALLE; FA-
RAH, 2020; ROSA, 2005; VARANDA; ADORNO, 2004). O rompimento pode
ser tanto a causa para esta situação – casos de violência e abuso doméstico,
brigas e desentendimentos – quanto uma consequência pela atual situação.
Para além das relações familiares, a própria dinâmica de sobrevivência na rua
torna mais complexa a criação de laços e confiança (FRANGELLA, 2009). De
qualquer forma, esse é um forte indicador para a existência da precarização
da sociabilidade primária e, portanto, falta de suporte social no enfrentamen-
to de vulnerabilidades.
Apesar de a literatura ratificar fortemente a existência da dimensão da
precarização da sociabilidade primária, último censo da Cidade de São Paulo
(SÃO PAULO, 2021) demonstra que houve uma mudança no perfil da PSR da
capital que impacta nesta dimensão. De acordo com o levantamento, houve
um aumento significativo de moradias improvisadas nas vias públicas – bar-
racas de camping e barracos de madeira – com famílias que foram morar re-
centemente na rua. São famílias principalmente constituídas por mulheres,
crianças e idosos que perderam sua moradia em decorrência da dimensão
da precariedade do trabalho e, por estarem em situação de rua, adquiriram a

72 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 65-84, jan./jun., 2022. (18)


MARIA IZABEL SANCHES COSTA; FABIANA SANTOS LUCENA
Cidadania e o direito à saúde da população em situação de rua: um olhar sobre a estratégia do Consultório na Rua

dimensão do estigma.
Em consonância à concepção de Varanda e Adorno (2004), partimos
do pressuposto da necessidade de reconhecer as particularidades das experi-
ências de cada pessoa; entretanto, reforçamos a necessidade de não restringir
este fenômeno a tal universo de análise, tendo em vista que se pode facil-
mente cair no discurso da culpabilização do indivíduo por sua trajetória, visto
que este fenômeno merece análises sociais macro estruturais. É neste sentido
que aqui ratificamos que, ao se falar do processo de exclusão social, não se
pode deixar de lado questões macro como o desemprego, a precarização do
trabalho, a valorização especulativa do capital, a tecnologização do processo
produtivo, o racismo estrutural, iniquidade e a extrema desigualdade social.
Tais variáveis produzem tanto efeitos sociais quanto individuais, são proces-
sos imbricados que se retroalimentam.
Viver na rua provoca uma ruptura com as formas aceitas de sobrevi-
vência legitimadas pelo modo de produção capitalista. O contexto em que
essas pessoas vivem as mantém em uma posição de exclusão, de invisibili-
dade e, portanto, destituídas das duas dimensões de cidadania de direitos
e deveres e de participação política. Isto as tornam cidadãos isolados. A sua
própria condição de exclusão social torna a sua cidadania invisível para os de-
mais cidadãos. Quando são visualizadas, são tratadas como “objeto de tutela
estatal” sendo alvo de filantropia e caridade (ROSA et al, 2005).
O viver na rua, ser cidadão isolado, privado de direitos e não visuali-
zado pela sociedade traz marcas físicas e psíquicas. A marginalização em que
essas pessoas vivem é produtora de necessidades de cuidados em saúde, po-
rém essa condição também é fator de exclusão para o acesso aos serviços de
saúde apesar deste se constituir em um direito universal.

3. O direito à saúde

A saúde como direito humano fundamental foi instituída a toda popu-


lação em 1988 a partir da promulgação da Constituição Federal Brasileira, que
determinou que todo e qualquer cidadão tem direito a acessar os serviços
de saúde, independente do gênero, classe, idade, sem sofrer qualquer pre-
conceito. A saúde foi considerada um direito universal no Brasil e este direito
ganhou forma com a instituição do Sistema Único de Saúde (SUS), que foi
regulamentado a partir de 1990, pautado nos princípios de universalidade,
igualdade e equidade.
Após quase 35 anos da promulgação do SUS, muitos foram os avan-
ços da efetivação do direito à saúde, mas muitas têm sido as dificuldades na

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 65-84, jan./jun., 2022. (18) 73


MARIA IZABEL SANCHES COSTA; FABIANA SANTOS LUCENA
Cidadania e o direito à saúde da população em situação de rua: um olhar sobre a estratégia do Consultório na Rua

garantia de seus princípios. Isto se vê, sobretudo, na garantia de acesso aos


serviços de saúde para as populações marginalizadas, como a constituída por
PSR.
A Política Nacional da População em Situação de Rua (PNPSR), institu-
ída em 2009, reforçou a necessidade de políticas que garantam a esta popu-
lação o acesso aos serviços públicos, incluindo a saúde. Em 2011, a partir da
portaria 122, foram definidas as diretrizes de organização e funcionamento
das Equipes de Consultório na Rua (CnaR), que são vinculadas a Atenção Bási-
ca (AB), e que realizam atendimento à população em situação de rua (BRASIL,
2011). Importante destacar que o cuidado à população em situação de rua
é anterior a essa portaria, porém é a partir da Política Nacional da Atenção
Básica (PNAB) de 2011 que se estabelece nacionalmente que a Atenção Bási-
ca deve ter equipes específicas para garantir um atendimento integral a essa
população.
Essa política se justifica por dois motivos. Apesar da portaria nº
940/2011 garantir que “ciganos nômades e os moradores de rua” não neces-
sitem de comprovante de endereço para solicitar o Cartão SUS, ainda assim
muitas vezes exige-se documentação pessoal (RG) e comprovante de residên-
cia para o cadastro nas Unidades Básicas de Saúde, o que é um obstáculo para
muitas pessoas em situação de rua. Cabe ressaltar que a falta de documen-
tação reflete no acesso aos diversos direitos, entre eles o acesso a serviços
hospitalares, já que essa população não procura esse nível de assistência por
não ter garantia de atendimento em caso de falta de documentação. Desta
forma, a exigência de documentação para acesso aos serviços de saúde confi-
gura-se como mais uma forma de violência e negação de mais um direito que
deveria ser garantido pelo Estado (SANTOS, 2021). O segundo motivo está
relacionado ao fato de que a maior parte da população em situação de rua
procura serviços de emergências por demandas que poderiam ser resolvidas
pela Atenção Básica (SANTOS; ALMEIDA, 2021), que também teria a promoção
da saúde como serviço prestado a essa população.
No SUS temos a AB como porta de entrada preferencial para o sistema
de saúde, sendo a responsável pelo acompanhamento e encaminhamento
aos demais serviços especializados a fim de garantir acesso às diferentes de-
mandas e necessidades em saúde dos usuários. Tais fatos demonstram que a
lógica da territorialidade, do cadastramento da população adscrita do SUS e
da AB como porta de entrada estão em dissonância com a PSR. A imposição
da AB de cadastrar moradores de um território adstrito para atendimento, traz
a vinculação do acesso à saúde à posse de um domicílio. Ou seja, a falta de
acesso ao direito à moradia acarreta na impossibilidade do direito à saúde
(RODRIGUES, 2016; VALLE; FARAH, 2020).

74 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 65-84, jan./jun., 2022. (18)


MARIA IZABEL SANCHES COSTA; FABIANA SANTOS LUCENA
Cidadania e o direito à saúde da população em situação de rua: um olhar sobre a estratégia do Consultório na Rua

Visando superar tais barreiras e garantir o acesso da PSR à saúde, o


CnaR tem como proposta ser a porta de entrada ao SUS para essa população.
Tem como princípio norteador o respeito às diferenças, a promoção dos direi-
tos humanos, o enfrentamento do estigma, a redução de danos e a (re)inclu-
são social da população atendida (Brasil, 2009). O CnaR parte da lógica que
a política pública precisa se adequar ao público-alvo e não o contrário, visto
que, desde que o desenho da política é dissonante da especificidade do seu
público - que neste caso é o acesso universal à saúde -, a sua implementação
reforça desigualdades pré-existentes (LOTTA; COSTA, 2020). Essa adequação
demonstra a tensão entre a universalidade e as particularidades (2018) que se
resolvem ao garantirmos o princípio da equidade.
Os Consultórios na Rua são formados por equipes multiprofissionais,
podendo fazer parte delas as seguintes profissões: enfermeiro, médico, psi-
cólogo, assistente social ou terapeuta ocupacional, agente social, técnico ou
auxiliar de enfermagem, técnico em saúde bucal, cirurgião-dentista, profis-
sional/professor de educação física ou profissional com formação em arte e
educação. As equipes de CnaR realizam suas atividades de forma itinerante
compartilhando suas ações com as Unidades Básicas de saúde e, quando ne-
cessário, com as equipes dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) - res-
ponsáveis por casos complexos de cuidado em saúde mental-, serviços de
urgência e emergência e os demais pontos de atenção a depender das neces-
sidades dos usuários (Brasil, 2011).
É fato que a Política Nacional da População em Situação de Rua,
a Política Nacional de Atenção Básica (2011) e a constituição das Equipes de
Consultório na Rua representam grande avanço no que tange ao acesso aos
direitos dessa população. Mas há também que se considerar que essa legisla-
ção foi formulada de modo a buscar reparar direitos negados a essa popula-
ção e que as transformações acontecem de forma complexa, pois diversos são
os interesses que fazem pano de fundo, dentre eles, econômicos, políticos e
sociais.
Estamos vivendo uma conjuntura de desmonte das políticas
públicas sociais, com ações e políticas focadas e deterministas, através de
ações higienistas. Assistimos nos últimos anos, na cidade de São Paulo, ao
desmonte do projeto “De Braços Abertos”, criado em 2015, o qual tinha uma
proposta de articulação intersetorial junto às equipes de CnaR. Esse é um dos
exemplos de ameaça à implementação de uma política de defesa dos direitos
da população em situação de rua (DUARTE, 2019).
Além do processo de desmonte, as equipes de CnaR têm o desafio de
prestar uma assistência na contramão do imaginário hegemônico do que é
ser uma pessoa em situação de rua e também garantir acesso a uma assistên-

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 65-84, jan./jun., 2022. (18) 75


cia até então negada a essa população, não só a Atenção Básica, mas a toda a
rede do SUS.
Uma das dificuldades que a população em situação de rua possui re-
fere-se ao porte e manutenção de documentos pessoais (SÃO PAULO, 2021).
Tal questão se justificava pelo fato de não terem um local fixo e adequado
para guardar seus pertences, bem como pelas próprias ações do Estado que
resultam na retirada dos bens dessa população com a justificativa da neces-
sidade de limpeza das vias urbanas (SANTOS, 2021). Essas ações podem ser
lidas como mais uma forma de apagamento da cidadania dessa população.
Esse é um exemplo das contradições e disputas que se tem na imple-
mentação de políticas públicas. O mesmo Estado, que garante direitos, pro-
move ações que retiram direitos da população. A PSR está distante do que é
concebido aqui enquanto cidadão pleno. As condições de vida a que são sub-
metidos os impede até mesmo de serem reconhecidos enquanto indivíduos.
São privados de uma participação política e coletiva, e em última instância
são impedidos, inclusive, da efetivação de sua participação política individual
através do voto.
A participação e mobilização política é um ato importante do exer-
cício da cidadania, da autonomia e da busca por reconhecimento de suas
causas, mas é difícil esperar tais atitudes de indivíduos que estão cotidiana-
mente em extrema vulnerabilidade e preocupados se conseguirão comer, se
sentirão frio a noite, onde conseguirão se proteger da chuva, onde farão suas
necessidades fisiológicas etc.
Para que seja possível um cuidado em saúde dessa população é impor-
tante compreender todas essas formas de sobrevivência, as relações sociais
estabelecidas, suas necessidades e a complexidade do processo saúde-doen-
ça das pessoas inseridas nesse contexto. A partir desse olhar, consideramos
que o campo do direito à saúde, em especial da estratégia do CnaR, tem a
potencialidade de ser uma das portas de entrada para a expansão da cidada-
nia desta população a partir do seu reconhecimento enquanto detentor de
direitos e enquanto profissionais capazes de trabalhar com ações que promo-
vam a saúde.
A promoção da saúde visa à melhoria das condições de vida de forma a
potencializar a saúde, reduzir vulnerabilidades e riscos a partir dos determinan-
tes sociais, econômicos, culturais e políticos. Sendo suas ações pautadas segun-
do o princípio da equidade, “a promoção e defesa da saúde e da vida propõe
reduzir as desigualdades sistemáticas, injustas e evitáveis, com respeito às di-
ferenças em todas as dimensões para o direito universal à saúde” (VIEGAS et al,
2021, p. 2). É possível afirmar que tal perspectiva de saúde está em consonância
com os direitos humanos e o status de cidadania utilizado nesta reflexão.
MARIA IZABEL SANCHES COSTA; FABIANA SANTOS LUCENA
Cidadania e o direito à saúde da população em situação de rua: um olhar sobre a estratégia do Consultório na Rua

As estratégias para a redução das iniquidades na garantia do direi-


to à saúde, como direito humano fundamental. Fazem parte dos
princípios e valores de universalidade, acessibilidade, integralidade,
qualidade e inclusão em saúde de uma maneira coesa e integrada,
de forma a alcançar a promoção da saúde. (VIEGAS et al, 2021, p. 2)

É indiscutível, entretanto, a necessidade de profissionais que atuem


na linha de frente com sensibilidade e empatia para lidar com a PSR. A litera-
tura sobre profissionais da linha de frente tem evidenciado que os valores e
crenças individuais interferem na implementação na política por afetarem a
relação do usuário/população alvo da política (LOTTA; COSTA, 2020). No que
se refere a política de saúde, a forma com que um enfermeiro, médico, agente
comunitário de saúde, técnico, dentre outros, tratam o usuário terá impacto
na criação do vínculo e, portanto, na sua adesão ao tratamento. Isto é, o trata-
mento recebido pelo profissional pode se tornar um obstáculo ao seu direito
de acesso à saúde.
É neste sentido que Rosa, Cavicchioli e Brêtas (2005) afirmam que o
atendimento da PSR passa necessariamente pela compreensão da “cultura na
rua”, na qual o profissional precisa considerar alguns fatores: Quem é esta pes-
soa? Como vive? Como sobrevive física, psicológica e socialmente?
Alguns estudos discutem como se dá esse trabalho de acesso à saú-
de a partir do CnaR. Entre as ações realizadas, a busca ativa caracteriza-se
como dispositivo essencial para garantia de acesso ao cuidado em saúde,
configurando-se como porta de entrada para o SUS. Algumas das atividades
realizadas descritas são: marcação de consulta; curativos; escuta qualificada;
atendimentos individuais e em equipe; pactuações com usuários; marcação
de exames e testes rápidos; pré-natal; distribuição de água e insumos; e tra-
tamento de doenças infecciosas. A redução de danos apareceu como uma
estratégia importante de cuidado adotada por algumas equipes. (SANTOS,
2021; TIMÓTEO et al., 2020; ENGSTROM, 2019).
Vale e Vecchia (2019) em seu estudo de revisão de literatura demons-
trou que além do acesso aos serviços de saúde, a principal potencialidade do
trabalho do CnaR está no estabelecimento de vínculo e disponibilidade de
escuta qualificada da PSR.
Apesar do acesso por si só ser um grande avanço, é importante ana-
lisar a qualidade da assistência prestada a essa população. Segundo Bombo-
natti et al. (2021), a prática da enfermagem no consultório da rua contribui
para que a população em situação de rua tenha acesso a uma assistência à
saúde qualificada. As autoras apontam também que a partir do trabalho des-
ses profissionais é possível contribuir com uma melhora da qualidade de vida
da população em situação de rua.
O estudo acima citado aponta um aspecto importante, que é a equipe

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 65-84, jan./jun., 2022. (18) 77


MARIA IZABEL SANCHES COSTA; FABIANA SANTOS LUCENA
Cidadania e o direito à saúde da população em situação de rua: um olhar sobre a estratégia do Consultório na Rua

que presta assistência à PSR compartilhar de um objetivo de trabalho comum.


Bombonatti et al. (2021) apontam como objetivos comuns encontrados em
seu estudo: o estímulo à autonomia e cidadania e a oferta de um cuidado que
possibilite a participação dos usuários nas tomadas de decisão relacionadas
ao exercício do direito à saúde.
Engstrom (2019) aponta as equipes de CnaR como uma política im-
portante para acesso ao SUS. Os autores também observaram estratégias po-
tentes de cuidado na perspectiva de ampliação de acesso à saúde e aos de-
mais direitos sociais. Observam também o fortalecimento de autonomia dos
usuários atendidos, ancorado em uma dimensão ético-política do cuidado,
comprometida com a defesa da vida e da cidadania.
Outro aspecto importante do trabalho no consultório da rua
refere-se ao trabalho de articulação de rede intersetorial. Devido às necessi-
dades dessa população, o trabalho intersetorial é imperativo e um elemento
essencial para melhoria da assistência e enfrentamento das vulnerabilidades
das pessoas que vivem a situação de rua. Porém o trabalho intersetorial tam-
bém aparece como um grande desafio, já que é preciso lidar com insuficiên-
cias institucionais, como uma rede de atendimento restrita, além de diferen-
tes objetivos de trabalho (BOMBONATTI et al, 2021; MACEDO, 2020; TIMÓTEO,
2020; ENGSTROM, 2019
Vale e Vecchia (2019) relatam que há poucos estudos que re-
latem uma interface do setor saúde com o setor de educação e de trabalho.
Considerando que o processo saúde-doença tem uma determinação na for-
ma como os cidadãos se inserem na sociedade, ações que favoreçam acesso
à educação e geração de renda, podem ter um papel importante no acesso e
garantia de direitos dessa população. Vale questionar como se dá a efetivação
do direito à educação e ao trabalho da PSR, conforme objetivo da PNPSR.
Macedo (2020) e Friedrich et al (2019) demonstram em seu estudo que
alguns profissionais entendem o trabalho do consultório na rua como “uma
ponte” e não um fim em si mesmo, já que a resolutividade de seu trabalho está
relacionada ao acesso a outros serviços, não necessariamente sendo serviços
de saúde.
Para que a população em situação de rua consiga acessar os demais
níveis de atenção dispostos no SUS, as equipes de consultório na rua se or-
ganizam para acompanhar esses usuários para que seja garantido o acesso
(SANTOS, 2021). Em muitas situações, equipes e usuários relatam que a PSR é
maltratada nos serviços de saúde e que quando comparecem a serviços sem
acompanhamento da equipe de CnaR correm risco de não serem atendidas
(TIMÓTEO, 2020; VALLE; FARAH, 2020).
O acompanhante que poderia ser entendido como direito do usuário,

78 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 65-84, jan./jun., 2022. (18)


MARIA IZABEL SANCHES COSTA; FABIANA SANTOS LUCENA
Cidadania e o direito à saúde da população em situação de rua: um olhar sobre a estratégia do Consultório na Rua

passa a ser um dever que os impede de acessar serviços (MACEDO, 2020). A


assistência a essa população é muitas vezes negligenciada e necessita que
tenham profissionais de referência que garantam que essa pessoa tenha aces-
so. Essa população é vista e entendida como uma população à margem dos
direitos e da cidadania, precisando estar acompanhada por alguém, que é vis-
to como um cidadão pleno e que consiga garantir o direito ao acesso dessa
população. É quase como que se necessitassem de um “empréstimo de cida-
dania”
Trazer representantes de outros serviços da rede para dentro do ser-
viço especializado para PSR, ao mesmo tempo, que facilita o acesso,
segrega o usuário ao espaço do serviço especializado. Ao não favo-
recer seu livre acesso pela cidade e seus equipamentos, opera com
uma inclusão excludente, com pouca potência de mobilização e
participação social. O desafio reside em favorecer que o exercício da
cidadania não se restrinja aos muros e espaços protegidos dos ser-
viços especializados, mas que a população atendida também possa
ter acesso e participação no controle social das políticas voltadas
para as suas necessidades. (MACEDO, 2020, p. 2020).

Os estudos evidenciam algumas fragilidades relacionadas à assistên-


cia à população em situação de rua, tais como: desarticulação com as demais
equipes de consultório na rua e outras equipes da atenção primária; dificul-
dade em estabelecer fluxos formais entre os diferentes equipamentos que
atendem a essa população; ações intersetoriais insipientes e centralizadas em
alguns profissionais da equipe, como assistente social e psicóloga; alta rotati-
vidade de profissionais devido à fragilidade do vínculo empregatício, promo-
vendo uma descontinuidade na assistência (SANTOS, 2021).
O que se vê a partir da literatura acadêmica é um desafio imenso para
a consolidação da saúde como direito, em especial quando se entende que
a saúde é um processo decorrente da forma com que a pessoa se insere na
sociedade, de suas condições de vida e da que forma acessa os seus direitos
de forma ampla. A partir dessa concepção é possível inferir que a saúde da
população em situação de rua encontra-se fragilizada pela sua forma de vida,
imposta por sua condição de sobrevivência.
Há que se destacar a importância de uma Política Nacional para a
População em Situação de Rua e também das estratégias de cuidado dessa
população como é o caso do Consultório na Rua. Porém, é necessário reco-
nhecer as limitações de cuidado em saúde dessa população, já que a Política
Nacional tem limitações em sua implementação.
Apesar de a política ter como objetivo assegurar a PSR acesso à mora-
dia, segurança, trabalho, renda, esporte, lazer, entre outros, o que se presencia
é uma escassez de recursos e insuficiências institucionais, tanto no setor saú-
de como no setor da assistência social, relacionadas a uma rede restrita, com

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 65-84, jan./jun., 2022. (18) 79


MARIA IZABEL SANCHES COSTA; FABIANA SANTOS LUCENA
Cidadania e o direito à saúde da população em situação de rua: um olhar sobre a estratégia do Consultório na Rua

um menor número de vagas do que a necessidade dos usuários. Soma-se a


isso um número restrito de equipes de consultório na rua com funcionamen-
to apenas em horário vespertino (MACEDO, 2020; TIMÓTEO, 2020).
Outro desafio relacionado à assistência à saúde da população em situ-
ação de rua refere-se à garantia de acesso a procedimentos e consultas com
especialistas. Esses agendamentos demandam um tempo de espera até que
sejam realizados, e devido à população em situação de rua transitar nos diver-
sos territórios da cidade, os longos períodos de espera por agendamento são
incompatíveis com a forma de viver dessa população. Esse fato limita o acesso
e a garantia do direito à saúde dessa população (SANTOS, 2021; FRIEDRICH et
al., 2019).
Desta forma, é preciso que as equipes estejam atentas a situações de
negligência, desassistência ou até mesmo omissão de socorro que sofrem a
PSR por parte dos serviços. Muitas vezes os profissionais dos serviços especia-
lizados acabam tendo de ameaçar que vão oferecer denúncia ou orientar os
usuários que o façam. Para resgatar a cidadania dessa população, Paiva et al.
(2015) discutem a necessidade de retirar o manto da invisibilidade, rompendo
com os estigmas sofridos por tais indivíduos.

4. Considerações finais
É inegável o avanço da criação da estratégia do CnaR, tendo em vista que
é uma política formulada segundo as necessidades da PSR. O fato de os profis-
sionais estarem inseridos na rua potencializa a construção de vínculos, permite
identificar problemas e priorizar intervenções, individualizar as necessidades e
promover cuidados equitativos. Em contrapartida, ainda muito tem sido os de-
safios, visto que persistem os problemas de acesso principalmente aos serviços
especializados, estigmas, preconceitos, despreparo por parte dos profissionais
da ponta, desarticulação entre os setores e ações assistencialistas. O acesso não
pode estar atrelado a uma “equipe especializada em PSR”. É preciso avançar para
que essa população tenha o status cidadão com reconhecimento de seus direitos.
Apesar da importância da garantia do direito à saúde, cabe frisar que este
é insuficiente para o alcance da cidadania plena ou até mesmo do cidadão poli-
ticamente passivo. Para tal, é essencial ampliar as políticas intersetoriais que ga-
rantam acesso aos diversos direitos dessa população. Em casos complexos como
esse, políticas focais são importantes para resolverem demandas pontuais, mas
não são efetivas para o alcance da cidadania plena a partir da reintegração social
com autonomia.

80 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 65-84, jan./jun., 2022. (18)


MARIA IZABEL SANCHES COSTA; FABIANA SANTOS LUCENA
Cidadania e o direito à saúde da população em situação de rua: um olhar sobre a estratégia do Consultório na Rua

Referências
VIEIRA, Maria Antonieta da Costa; BEZERRA, Eneida Maria Ramos; ROSA, Clei-
sa Moreno Maffei(org.). População de rua: quem é, como vive, como é vista.
21. ed. São Paulo: Hucitec, 19924.

ANDRADE, Fabio. Santos. Crianças e adolescentes em situação de rua no Brasil:


táticas de sobrevivência e ocupação do espaço público urbano. Paco Edito-
rial: Jundiaí, 2019

BOMBONATTI, Giulia Romano et al. Enfermagem do Consultório na Rua para


o enfrentamento das vulnerabilidades. Rev. Rene, Fortaleza, v. 22, n. e67967,
p.1-9, 2021. Disponível em: http://www.revenf.bvs.br/scielo.php?script=s-
ci_arttext&pid=S1517-38522021000100344&lng=pt&nrm=iso. Acesso em:
10 mar. 2022.

BRASIL. Constituição de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil:


promulgada em5 de outubro de 1988. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfi-
co, 1988. 292 p.

BRASIL. Decreto nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política


Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de
Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Diário Oficial
da União, Brasília, DF, 24 dez. 2009a. Seção 1. p. 16.

BRASIL. Portaria 2.488, de 21 de Outubro de 2011. Diário Oficial da União.


Brasília, DF, 2011. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/
gm/2011/prt2488_21_10_2011.html. Acesso em: 13 jan. 2021.

BURSZTYN, Mareei; ARAÚJO, Carlos Henrique. Da utopia à exclusão: vivendo


nas ruas em Brasília. Rio de Janeiro: Garamond, 1997.

CAMPOS, Ariane Graças de; SOUZA, Maria Paula Freitas de. Violência muda e
preconceito: estratégias de uma equipe de saúde em defesa da cidadania da
população de rua. BIS Bol Inst Saúde, São Paulo, v. 14, n.3, p. 344-351, 2013.
Disponível em https://docs.bvsalud.org/biblioref/2019/12/1047132/bis-v-
14n3-enfrentamento-344-351.pdf Acesso em: 10 mar. 2022.

CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário.


Petrópolis, RJ: Vozes, 1998

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 65-84, jan./jun., 2022. (18) 81


MARIA IZABEL SANCHES COSTA; FABIANA SANTOS LUCENA
Cidadania e o direito à saúde da população em situação de rua: um olhar sobre a estratégia do Consultório na Rua

CERVIERI, Nayelen Brambila et al. O acesso aos serviços de saúde na pers-


pectiva de pessoas em situação de rua. SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental
Álcool Drog. (Ed. port.), São Paulo, 2019, v. 15, n. 4, p. 1-8, 2019. Disponível
em: https://www.revistas.usp.br/smad/article/view/164014. Acesso em: 04
abr. 2022.

COSTA, Maria Izabel Sanches; IANNI, Aurea Maria Zoller. Individualização,


cidadania e inclusão social na sociedade contemporânea. Uma análise teórica.
São Bernardo do Campo: EdUFABC, 2018.

DUARTE, Afrânnia Hemanuelly Castanho. O acolhimento em saúde no espa-


ço da rua: estratégias de cuidado do Consultório na Rua. Textos e Contextos.
Porto Alegre, 2019; v,18, n. 2, p. 1-14. 2019. Disponível em: https://revistase-
letronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fass/article/view/34306. Acesso em: 7 mar.
2022

ENGSTROM, Elyne Montenegro et al. A dimensão do cuidado pelas equi-


pes de Consultório na Rua: desafios da clínica em defesa da vida. Saúde em
Debate. Rio de janeiro, v. 43, n. 7, p. 50-61, 2019. Disponível em: https://www.
scielo.br/j/sdeb/a/RNRHQqBXwryZv9JVR5mCKHy/?format=pdf&lang=pt
Acesso em: 10 mar. 2022.

ESCOREL, Sarah. Exclusão social. Dicionário da Educação Profissional em Saú-


de. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2009.

ESTIVILL, J. Panorama da luta contra a exclusão social. Conceitos e estratégias.


Genebra, Bureau Internacional do Trabalho, Programa Estratégias e Técnicas
contra a Exclusão Social e a Pobreza, 2003.

FRANGELLA, Simone Miziara. Corpos Urbanos Errantes. Uma etnografia da corpo-


ralidade de moradores de rua em São Paulo. São Paulo: Anablume, Fapesp, 2009.

FRIEDRICH, Melina et al. Barreiras de acesso à saúde pelos usuários de dro-


gas do consultório na rua. Journal of Nursing and Health, São Paulo, v. 9, n. 2,
e199202, 2019. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.
php/enfermagem/article/view/13443/10889. Acesso em: 25 fev. 2022

GOFFMAN, Erving. Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade deterio-


rada. Ed. Zahar, Rio de Janeiro, 1978.

82 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 65-84, jan./jun., 2022. (18)


MARIA IZABEL SANCHES COSTA; FABIANA SANTOS LUCENA
Cidadania e o direito à saúde da população em situação de rua: um olhar sobre a estratégia do Consultório na Rua

LOTTA, Gabriela; COSTA, Maria Izabel Sanches. Uso de categorizações polí-


ticas e sociais na implementação de políticas: contribuições teóricas e ana-
líticas. Revista de Sociologia e Política. Curitiba -PR, v. 28, n. 76, p.1-20, 2020.
Disponível em: https://doi.org/10.1590/1678-987320287604. Acesso em: 9
mar. 2022.

MACEDO, João Paulo; SOUSA, Adrielly Pereira de; CARVALHO, Andressa


Veras de. População em situação de rua: trabalho em equipe e interse-
torial. Rev. Psicol. Saúde, Campo Grande, v. 12, n. 4, p. 159-174, 2020. Dis-
ponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S2177-093X2020000400013&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 10 mar. 2022.

PAIVA, Irismar Karla Sarmento de et al. Direito à saúde da população em


situação de rua: reflexões sobre a problemática. Ciência & Saúde Coletiva, Rio
de Janeiro, v. 21, n. 8, p. 2595-2606, 2016. Disponível em: http: https://www.
scielo.br/j/csc/a/knWgXfP7fKXpsW84f6gxM8r/?format=pdf&lang=pt. Acesso
em: 25 fev. 2022.

RODRIGUES, Igor. A construção social do morador de rua: derrubando mitos.


Curitiba: CRV, 2016. 98p.

ROSA, Anderson da Silva; CAVICCHIOLI, Maria Gabriela Secco; BRÊTAS, Ana


Cristina Passarella. Processo saúde-doença-cuidado e a população em situa-
ção de rua. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, jul-ago,
2005. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v13n4/v13n4a17.pdf.
Acesso em: 27 jan. 2021.

ROSA, Cleisa Moreno Maffei. Vidas de rua, destino de muitos. São Paulo: Edito-
ra Instituto de Estudos Especiais da PUC/SP, 1999.

SANTOS, Amanda Rodrigues dos; ALMEIDA, Patty Fidelis de. Coordenação


do cuidado no Consultório na Rua no município do Rio de Janeiro: romper
barreiras e construir redes. Saúde em Debate. Rio de Janeiro, v. 45, n. 129, p.
327-339, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-1104202112906.
Acesso em: 25 fev. 2022.

SÃO PAULO. Pesquisa censitária da população em situação de rua, caracterização


socioeconômica da população adulta em situação de rua e relatório temático de iden-
tificação das necessidades desta população na cidade de São Paulo - 2021. Produto V
- Relatório Completo do Censo. Prefeitura Municipal de São Paulo, 2021.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 65-84, jan./jun., 2022. (18) 83


MARIA IZABEL SANCHES COSTA; FABIANA SANTOS LUCENA
Cidadania e o direito à saúde da população em situação de rua: um olhar sobre a estratégia do Consultório na Rua

SILVA, Maria Lucia Lopes. Trabalho e população em situação de rua no Brasil.


São Paulo: Cortez, 2009.

TIMÓTEO, Aryanna Vanessa Gomes et al. Caracterização do trabalho e ações


desenvolvidas pelas equipes do Consultório na Rua de Maceió - AL. Enfermagem
em Foco, [S. l.], v. 11, n. 1, p. 1126-130, 2020. Disponível em: http://revista.cofen.
gov.br/index.php/enfermagem/article/view/2757. Acesso em: 10 mar. 2022.

Vale A. R.; Vecchia M. D. O cuidado à saúde de pessoas em situação de rua:


possibilidades e desafios. Estud. Psicol., Natal, n. 24 (1): p. 42-51, 2019. Dis-
ponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S-
1413-294X2019000100005 Acesso em: 25 fev. 2022.

VALE, Aléxa Rodrigues do; VECCHIA, Marcelo Dalla. O cuidado à saúde de


pessoas em situação de rua: possibilidades e desafios. Estud. Psicol., Natal,
v. 24, n.1, p. 42-51, 2019. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S1413-294X2019000100005&lng=pt&nrm=iso.
Acesso em: 10 mar. 2022.

VALLE, Fabiana Ap. A. Lawall; FARAH, Beatriz Francisco. A saúde de quem está
em situação de rua: (in)visibilidades no acesso ao Sistema Único de Saúde.
Physis: Revista de Saúde Coletiva, Paraná, v. 30, n. 2, p.1-21, 2020. Disponível em:
https://doi.org/10.1590/S0103-73312020300226. Acesso em: 3 mar. 2022.

VARANDA, Walter; ADORNO, Rubens de Camargo Ferreira. Descartáveis


urbanos: discutindo a complexidade da população de rua e o desafio para
políticas de saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 56-69, 2004.
Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/CPFwkZBjHZXSS6YX4djj-
Q4B/?format=pdf&lang=pt Acesso em: 25 fev. 2022.

VIEGAS, Selma Maria da Fonseca et al. Quotidiano de equipes de consultório


na rua: tecendo redes para a promoção da saúde. Escola Anna Nery. Rio de
Janeiro (UFRJ), v. 25, n. 3, p. 1-9, 2021. Disponível em: https://www.scielo.
br/j/ean/a/qfJYwnLCgmtCVdndNhnVz7x/?format=pdf&lang=pt Acesso em:
2 mar. 2022.

WANDERLEY, Mariangela Belfiore. Refletindo sobre a noção de exclusão. In:


SAWAIA, Bader. (org.). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética
da desigualdade social. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 19-23.

84 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 65-84, jan./jun., 2022. (18)


Pandemia, racialidade e homens
negros em situação de rua
§ Pandemia, racialidad y negros en situación de calle

§ Pandemic, racialization and black men experiencing


homelessness

Rodrigo Pedro Casteleira1

Resumo: A presente proposta trata-se de uma problematização do entrecru-


zamento de raça/cor, masculinidade e pessoas em situação de rua, durante
a pandemia da Covid-19. De modo a realizar algumas análises desses cru-
zamentos, a interseccionalidade fora escolhida como método analítico por
dar condições de articular tais categorias junto da reflexão sobre os Direitos
Humanos. O objetivo foi o de suscitar as relações da branquitude, herdadas
do colonialismo, ao elaborarem a racialidade da pele e, junto dela, alterações
das subjetividades tanto de pessoas negras como de pessoas brancas. Essas
subjetividades, decantadas no tecido social brasileiro, foram e são capazes
de construir padronizações racializadas, a ponto de firmar o lugar esperado
e comum para pessoas negras como, por exemplo, estar em situação de rua.
O marcador de negritude e masculinidade parece reiterar essa situação, agra-
vada mais ainda em momentos de distanciamento social e da necessidade de
acesso a serviços sanitários.

Palavras-chave: Pandemia. População em situação de rua. Homens negros.

1 Possui graduação em Filosofia, mestrado em Ciências Sociais e doutorado em Educação pela Universidade Estadual
de Maringá. É professor da Universidade Federal de Rondônia, no Departamento Acadêmico de Ciências da Edu-
cação, campus de Vilhena, RO. pccasteleira@gmail.com

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 85-95, jan./jun., 2022. (18) 85


RODRIGO PEDRO CASTELEIRA
Pandemia, racialidade e homens negros em situação de rua

Resumen: La presente propuesta es una problematización de la intersec-


ción de raza/color, masculinidad y personas sin hogar durante la pandemia
de Covid-19. Para llevar a cabo un análisis de estas intersecciones, se optó
por la interseccionalidad como método de análisis para dar las condiciones
para articular tales categorías junto con la reflexión sobre los Derechos Hu-
manos. El objetivo era plantear las relaciones de blanquitud, heredadas del
colonialismo, elaborando la racialidad de la piel y, con ella, los cambios en las
subjetividades tanto de los negros como de los blancos. Esas subjetividades,
decantadas en el tejido social brasileño, fueron y son capaces de construir
estandarizaciones racializadas, hasta el punto de establecer el lugar esperado
y común para los negros, como el estar en la calle. El marcador de negritud y
masculinidad parece reiterar esta situación, que es aún peor en tiempos de
distanciamiento social y necesidad de acceder a los servicios de salud.

Palabras clave: Pandemia. Población sin hogar. Hombres negros.

Abstract: This proposal problematizes the intersection of race and color, mas-
culinity and people experiencing homelessness during the Covid-19 pande-
mic. In order to carry out some analysis of these intersections, intersectionali-
ty was chosen as an analytical method for giving conditions to articulate such
categories together with the reflection on Human Rights. The aim here was
to raise questions on the whitness relationships, a colonialism heritage, while
thinking how racialized skin can be and, along with it, how black people and
white people subjectivities may differ between them. These subjectivities su-
cked up in the brazilian social knots are capable of building racialized patterns
to the point of establishing a common and antecipated place for black people
such as, for instance, experiencing homelessness. Blackness and masculinity
seem to emphasize this situation, worsened even more in times of social dis-
tancing and the need to access health services.

Keywords: Pandemic. Population experiencing homelessness. Afro-brazilian


Men.

A presente provocação enuncia-se sob uma população considerada


invisível e errante pelos espaços urbanos no Brasil; a saber, a população em si-
tuação de rua. A tarefa, aqui, não é a conceituar essa população ou estabelecer
um recorte histórico de sua existência, mas suscitar debates à luz do método
interseccional, objetivando articular estudos de gênero e negritude, sobretu-
do apoiado em bell hooks (2017), Joice Berth (In: CASA VOGUE, 2018), Melina
Cassal e Talita Fernandes (2020), Patrícia Collins (2009) e Sueli Carneiro (2003).

86 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 85-95, jan./jun., 2022. (18)


RODRIGO PEDRO CASTELEIRA
Pandemia, racialidade e homens negros em situação de rua

Além disso, o debate de gênero articula-se às discussões sobre masculinida-


des (ACÁCIO; SANTANA, 2019) para problematizar duas categorias presentes
nos dados sobre a população em situação de rua, capturados por Tatiana Dias
Silva, Marco Natalino e Marina Brito Pinheiro (2020): gênero e racialidade.
A ideia de tencionar a racialidade junto ao gênero, especificamente ao
masculino, justifica-se pelo que Sueli Carneiro (2003) discute quanto à produ-
ção de gêneros inferiorizados com relação às construções de masculinidades
e feminilidades informadas pela raça considerada dominante. Assim, conside-
rar múltiplas categorias amalgamadas nos sujeitos auxilia, em certa medida,
na problematização de existências e vivências acumuladas histórica e social-
mente, aqui discutidas junto à interseccionalidade.

Interseccionalidade se refere [também] a formas particulares de


opressões em intersecção, por exemplo, intersecções de raça e gê-
nero ou de sexualidade e nação. O paradigma de intersecção nos
lembra que a opressão não pode ser reduzida a um tipo funda-
mental e que opressões trabalham juntas na produção de injustiças
(COLLINS, 2009, p. 21).

Essa ferramenta metodológica auxilia pensar opressões vividas por


homens negros em situação de rua, capaz, talvez, de identificar a existência
de um projeto ideológico calibrado desde corporeidades brancas. Não que
estas não sejam encontradas em situação de rua; mas, conforme suscito com
um caso específico, o demarcador da branquitude atenua a repulsa e o medo
social, diferente do que ocorre com corporeidades negras (FAUSTINO, 2017).
Assim, articulo mais em vias de denuncismos do que de soluções pontuais a
problemática, ora aventada nestas linhas, sem ignorar o papel dos direitos
humanos:
Desde as últimas décadas do século XX as ideias e ideais que con-
formam os direitos humanos têm representado um dos grandes
consensos sociais: embora tenhamos muito ainda por realizar, a fim
de transformarmos o mundo em um lugar mais justo e igualitário,
não há dúvida de que os marcos legislativos e políticos inaugurados
pelos direitos humanos continuam a informar e articular as mais di-
versificadas lutas por dignidade (SILVA; COSTA, 2015, p. 128).

Desse modo, impera afirmar que eles criam um tensionamento capaz


também de inaugurar marcos legais para que a condição de equidade e jus-
tiça seja propícia, como no caso do Decreto nº 7.053 de 23 de dezembro de
2009 (BRASIL, 2009) ao instituir uma política nacional para as pessoas em si-
tuação de rua, além de estabelecer um comitê intersetorial para monitorar e
acompanhar o “sujeito coletivo de direitos” (SILVA; COSTA, 2015, p. 119). Esses
autores enfatizam – ao pensarem os cinco anos do decreto em 2014, o não

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 85-95, jan./jun., 2022. (18) 87


RODRIGO PEDRO CASTELEIRA
Pandemia, racialidade e homens negros em situação de rua

cumprimento da maioria dos objetivos elencados no artigo 7º – como asse-


gurar o amplo acesso a programas e serviços ofertados pelas políticas públi-
cas: educação, saúde moradia, segurança, esporte, lazer, cultura etc. (BRASIL,
2009). Com o advento do período pandêmico no início de 2020, conjecturo
a precarização do atendimento a esse decreto, entremeando, subsídios racia-
lizados para problematizar a interseccionalidade do trânsito e acesso a esses
direitos.

Invisível, mas tangível (?)

A atual pandemia da Covid-19 provocou alterações significativas no


contexto mundial das relações políticas, culturais e econômicas, acentuando
ainda mais “de uma maneira crua e sem disfarces, o abismo brutal entre clas-
se social e raça no Brasil” (CASSAL; FERNANDES, 2020, p. 99). As orientações
sanitárias da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam isolamento social
como recurso minimização da circulação do vírus, lavar as mãos e usar más-
caras, para listar algumas delas. Tais recursos, contudo, inexistem facilmente
para a população em situação de rua; isso somado ao cuidado redobrado da
manutenção da vida negra ao utilizar máscaras em uma sociedade demarca-
damente racista (CASSAL; FERNANDES, 2020).
O contexto pandêmico, para além de provocar questionamentos teó-
ricos ou de experiências empíricas em contexto de rua, como as de Cassal e
Fernandes (2020), por exemplo, suscitaram uma nota técnica a esse respeito,
intitulada de População em situação de rua em tempos de pandemia: um le-
vantamento de medidas municipais emergenciais (SILVA; NATALINO; PINHEI-
RO, 2020). A tríade raça/cor, gênero e pandemia revela a obviedade invisível,
mas tangível, no alijamento dos homens negros em situação de rua, agravado
mais ainda em decorrência de uma política orquestrada no que Achille Mbem-
be (2020) conceitua como políticas de inimizade. É possível observarmos esse
exemplo na pesquisa realizada por Silva, Natalino e Pinheiro (2020, p. 8):
No último censo da cidade de São Paulo, realizado em 2019, foram
identificadas 24.344 pessoas em situação de rua, onde 52% vivem
nas ruas e os demais em abrigamento. A grande maioria é formada
por homens (85%). Se declararam [sic] como travestis 386 pessoas.
Entre o total dos identificados, 69% são pretos e pardos, em pro-
porção muito superior à representação desses grupos na popula-
ção total no país (55,8%) ou na capital específica (37,4%). A média de
idade é de 41,6 anos, mas é possível identificar 13% de idosos. Nesta
cidade, a população em situação de rua era de 8.706 indivíduos no
ano 2000, apresentando um aumento de 179% nesse interstício. O

88 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 85-95, jan./jun., 2022. (18)


RODRIGO PEDRO CASTELEIRA
Pandemia, racialidade e homens negros em situação de rua

rompimento de vínculos familiares (incluindo falecimentos) é apon-


tado por 50% como causa da situação de rua. O uso de álcool e ou-
tras drogas é apontado como causa para 33% (IBGE, 2019; Instituto
Qualiest, 2019). Apesar da magnitude, os dados podem ser ainda
maiores. Este é o questionamento do MNPR, que denuncia ter havi-
do subnotificação na contagem.

Conforme a citação anuncia, a maioria é composta pelo público mas-


culino, sobretudo por negros. Ainda que não exista um dado absoluto dos
números dessa população, como apontam os autores quanto à subnotifica-
ção, é notória a dinâmica de não respeito aos direitos humanos, sobretudo no
que diz respeito ao processo cultural brasileiro no campo da masculinidade
negra. No que tange aos significados dessas masculinidades negras, andantes
pelas ruas, concordo com Stuart Hall (2003, p. 33) para quem os “significados
são posicionais e relacionais, sempre em deslize ao longo de um espectro sem
começo nem fim”.
Ao pensar na noção de cultura proposta junto da definição de Hall
(2003), entendo que os significados são errantes, moventes, cambiantes e es-
tão em circulação conforme um tempo ou tempos sem um início ou fim prag-
mático. Somo a isso aos estudos da branquitude (SILVA, 2017) a fim de repen-
sar também essas tramas culturais citadinas junto a informações capturadas
por pesquisadoras/res da população em situação de rua. É lugar comum a rua
para a negritude, sobretudo em cidades embranquecidas.

Em dados de pesquisas como a realizada pela Universidade Federal


do Rio Grande do Sul (UFRGS) em conjunto com a Fundação de As-
sistência Social e Cidadania (FASC) na cidade de Porto Alegre/RS no
ano de 2016, observa-se a predominância de pessoas negras no uni-
verso da população em situação de rua com um total de 36,9% que
se autodeclararam pretos (24,5%) e pardos (12,4%), em contraponto
ao número de autodeclarados brancos 34,3%. Em cidades como Ma-
ringá/PR, pesquisas apontam uma predominância de homens ne-
gros vivendo nas ruas, e o mesmo se dá na cidade de São Paulo/SP,
onde é estimado que 70% da população em situação de rua é negra
(CASSAL; FERNANDES, 2020, p. 100-101)

Os significados culturais – produzidos e ficcionados, sobretudo pela


branquitude ocidental – alocaram determinados homens como negros, redu-
zindo-os a uma categoria hegemônica de masculinidade negra. A geografia
urbana, nessa estrutura de significados, parece embebida sistematicamente
da categoria de masculinidade desenhada pela branquitude; tanto que, cida-
des como Maringá (PR), vertem seus desejos necropolíticos, segundo as auto-
ras supracitadas, para pensar quem morre e quem vive.
A absorção dessa categoria de masculinidade negra acaba também
por nos formatar como cúmplices desse modelo de masculinidade negativa

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 85-95, jan./jun., 2022. (18) 89


RODRIGO PEDRO CASTELEIRA
Pandemia, racialidade e homens negros em situação de rua

em oposição à branca, conforme provoca bell hooks (2019), vinculado aos ví-
cios, à maldade e presa ao ethos tanto em brancos como em negros, já diria
Guerreiro Ramos (1995). Esses padrões somam-se ao processo de alocação da
categoria de homem negro e na produção/manutenção do capital simbólico.
Segundo Miranda (2017, p. 63), “É dentro dessa engrenagem normatizada e
normatizadora que padrões sociais são criados e constantemente reforçados
e reproduzidos. Nela, as identidades que estão em posição de poder se mo-
vimentam principalmente pela aquisição/manutenção do capital simbólico.”
A posição de poder estruturada por e para corpos brancos junto da
normatização de padrões sociais do que é aceitável entremeiam-se às po-
líticas públicas de saúde, por exemplo. No caso do acesso a essas políticas,
não raro, existem solicitações inadequadas, como exigir comprovante de re-
sidência a quem está em situação de rua, ou mesmo o preconceito para com
esse público (SILVA; NATALINO; PINHEIRO, 2020). Talvez esse preconceito seja
potencializado pela questão da racialidade e masculinidade do sujeito que
procura o atendimento de saúde.
O homem branco já se encontra no corolário de uma hegemonia
normatizada e normatizadora (MIRANDA, 2007), ainda que a branquitude
também seja um fenômeno complexo e de articulações múltiplas, segundo
Priscila Elisabete Silva (2017, p. 26), de difícil conceituação, mas de inegável
presença como “constructo ideológico de poder que nasceu no contexto do
projeto moderno de colonização europeia”. Esse constructo aloca a branqui-
tude no próprio centro de seu projeto, angariando “vantagens materiais e
simbólicas aos brancos em detrimento dos não brancos” (SILVA, 2017, p. 26-
27). Essas afirmações parecem corroborar a ideia de potencialização do pre-
conceito vivenciado por um homem negro em situação de rua, uma vez que
ele está fora das vantagens simbólicas, mais uma vez.
Um caso, antes do período pandêmico, talvez ajude a compreender
um pouco dessa dimensão de vantagens simbólicas descritas por Priscila Eli-
sabete Silva (2017). Rafael Nunes, um homem vivendo pelas ruas de Curitiba,
foi fotografado e o caso ganha repercussão:

Há cerca de quatro anos, o G1 acompanha a história do paranaense Ra-


fael Nunes. Então viciado em crack, ele morava nas ruas de Curitiba –
até que uma fotografia mudou a vida dele. Divulgada numa rede social,
a imagem circulou pelo país e lhe rendeu a alcunha de “Mendigo Gato”.
A repercussão do caso, porém, foi mais recompensadora que o apelido.
Rafael ganhou tratamento e a chance de uma vida digna (G1, 2017).

Rafael, embora um caso pontual, ilustra essa estrutura racializada das


vantagens simbólicas e de ethos propagados historicamente enquanto uma
economia e psicologia coletivas provenientes de critérios heteronômicos or-

90 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 85-95, jan./jun., 2022. (18)


RODRIGO PEDRO CASTELEIRA
Pandemia, racialidade e homens negros em situação de rua

questrados por um sistema colonial (GUERREIRO RAMOS, 1995). Rafael, ainda


que naquele momento em situação de rua por diversos fatores, em decor-
rência de sua brancura não fora chancelado como violento, temeroso, mas
“Mendigo Gato”, capaz até de receber atenção por anos pelo G1. O homem
branco parece carecer de mais atenção e cuidados do que qualquer outro
homem, sobretudo se for jovem, sobretudo se for do sul, sobretudo se tiver
olhos claros, sobretudo se não for trans.
A dinâmica narcísica branca, herdada do colonialismo, cria a raciali-
zação epidérmica junto das noções de localidade e posições sociais das pes-
soas, especificamente, nas palavras de Faustino (2017, p. 129), “aquilo que se
entende por raça passa a definir as oportunidades e barreiras pelos diferentes
indivíduos ao longo de sua vida”. Ainda segundo autor, utilizando análises fa-
nonianas2, outra característica herdada é a absorção e interiorização da rela-
ção epidérmica, capaz de modificar o processo de subjetivação dos sujeitos
nas duas pontas dessa relação racista e racializada ou, pensando em termos
colonialistas, quem coloniza e quem sobre a colonização.
Esse movimento ajuda a compreender o ‘olhar calibrado’ em direção
à população em situação de rua junto da noção decantada como natural de
que determinados corpos (negros) estejam nesse contingente, ao passo que
outros (brancos como o “Mendigo Gato”) despertam a atenção exatamente
por não ser um espaço pensado e destinado a eles.

Intersecções em trânsito

Os significados em circulação acerca de homens negros, ainda pen-


sando nas provocações anteriores, estão interseccionadas junto às materiali-
zações de injustiças na/pela urbe, ainda mais quando pensamos nos pactos
narcísicos da branquitude e nas políticas de inimizades (MBEMBE, 2021). Es-
ses pactos, não previstos por cartas e pactos internacionais, também podem
ser observados nos planejamentos urbanos e seus desdobramentos quanto
a seus usos. Joice Berth, urbanista negra, em entrevista à revista Casa Vogue
(2018, s. p.) aponta assertivamente como os projetos urbanos brasileiros são
desdobramentos do sistema colonial:

2 Faustino (2017) é um pesquisador enveredado no campo da educação das relações étnico-raciais, sobretudo, interes-
sado na produção de Frantz Fanon. Fanon, a grosso modo, foi um psiquiatra marxista de vertente anti-colonialista em
defesa de uma tese de psicopatologia da colonização, ou seja, existe uma introjeção colonialista presa à subjetividade
da pessoa colonizada e seu rompimento seria possível apenas com mudanças radicais da estrutura social.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 85-95, jan./jun., 2022. (18) 91


RODRIGO PEDRO CASTELEIRA
Pandemia, racialidade e homens negros em situação de rua

As cidades não foram projetadas para a diversidade, para a plurali-


dade. nosso espaço foi uma consequência da divisão colonial que já
existia. a lógica casa grande/senzala foi reproduzida no desenho das
cidades, onde há alta concentração de pessoas brancas num deter-
minado lugar e negros em outro.

As cidades brasileiras parecem emular um centro gravitacional branco


cristão em seu desenho: o marco de uma igreja católica no centro da cidade,
símbolo da expurgação e purificação da branquitude, e o entorno dela em
zonas cada vez mais distante alocando os corpos da classe trabalhadora, so-
bretudo negra. Assim, os espaços citadinos burgueses configuram-se como
apenas passagem para os corpos negros, nunca parada ou morada. Precisam
estar em movimento, não lânguido demais, para não ser o preguiçoso, o me-
liante, nem rápido demais, para não ser confundido com um ‘ladrão’ em fuga.
Esse projeto ideológico ficciona a imagem hegemônica do homem
negro veiculada socialmente nos campos: ora do fetiche, ora da repulsa pelo
medo, conforme Faustino (2017), sobretudo, esteada primeiramente na he-
gemonia masculina branca e depois na hegemonia masculina negra. Esses
corpos masculinos negros, em diferentes contextos de sexualidade, corporei-
dade, localidade, idade..., estão e são interseccionados. Se as dimensões ga-
nham contornos outros na conjuntura pandêmica vivenciada pelas pessoas
em situação de rua com

[...] a necessidade de isolamento social e higiene para quem não tem


sequer moradia (ou dispõe de residências provisórias coletivas) e a
limitação repentina e severa dos já precários meios de sobrevivên-
cia (doações e pequenos serviços), aprofundam o abismo social que
esse grupo vivencia (SILVA; NATALINO; PINHEIRO, 2020, p. 8).

Ao aproximarmos mais as lentes focaremos em situações específicas


dentro dessa categoria pensada, muitas das vezes, como hegemônica.
A nota desses autores sintetiza os trabalhos sistematizados pelos go-
vernos municipais quanto ao acolhimento, alimentação e atenção ao público
em questão, especificamente nas capitais dos estados sudestinos e nordesti-
nos por causa do contingente ser maior. Os estudos por eles realizados mape-
aram as ações emergenciais propostas pelos municípios no sentido de iden-
tificar hiatos e possibilidades de aperfeiçoamento do poder público junto às
pessoas em situação de rua. Nessa esteira, os dados são mais do que fáceis
de interpretação e mesmo de articulação para pensar especificidades dentro
desses grupos a serem assistidos.
Retomando as provocações de Joice Berth (CAU/RS, 2017, s. p.), uma
possibilidade de solução seria a de “abarcar a diversidade entre os profissio-
nais que atuam no planejamento das cidades para que sejam pessoas mais

92 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 85-95, jan./jun., 2022. (18)


RODRIGO PEDRO CASTELEIRA
Pandemia, racialidade e homens negros em situação de rua

periféricas que tragam essa visão a partir das suas próprias vivências.” Parece
positiva a conduta exatamente por abrir a possibilidade de escuta atenciosa,
no sentido de produzir condições derivadas dela, como, por exemplo, rees-
truturar o acesso da população em situação de rua a fim de que os acordos
das agendas dos direitos humanos minimamente se cumpram, bem como
provocar o poder público no que tange os pactos silenciosos e históricos da
branquitude.

Considerações finais

No atual cenário pandêmico, aparentemente, a questão não é tan-


to reprimir e disciplinar, conforme uma concepção foucaultiana; mas matar,
seja em massa ou em pequenas doses, em uma relação mais próxima do que
Mbembe (2020) orquestra como políticas de inimizades. Essas políticas, este-
adas no colonialismo, deificaram a branquitude sob o corolário do homem
branco, o seu oposto (construído), por sua vez, seria a negritude, configurada
no homem negro.
A sinfonia da branquitude constrói o ritmo de como os corpos negros
devem trafegar pelos espaços e leis construídas por e para ela. Ao direcio-
narmos as problematizações contemporâneas para pensar a pandemia de
Covid-19 e a população em situação de rua, é patente a verificação das inter-
seccionalidades materializadas objetivamente: homens e negros. As demais
categorias também são encontradas no universo dessa população, porém,
parece esperada a noção entrecruzada de masculinidade e negritude em trá-
fego pelas ruas, dormindo pelas praças e com a alcunha de violenta.
A precariedade da vida, guiada pela estrutura de um estado copar-
ticipe na reiteração das violências, agrava-se neste tempo pandêmico, mas
sem qualquer novidade na estrutura colonialista, muito menos na redistribui-
ção das violências racializadas. Nesse jogo, as masculinidades negras ganham
mais contornos de sofrimento, do não acesso à saúde, de mais violências e
menos garantias de direitos. A existência da prerrogativa dos direitos huma-
nos não garante a dissolução dos pactos colonialistas absorvidos e manifes-
tados nas subjetividades dos corpos em trânsito, seja em situação de rua ou
não. Há que se provocarem essas absorções na tentativa de barrar o status
quo racista na tentativa de fortalecer as proteções garantidas e ampliar mais
as possibilidades para que as condições dignas de vida se efetivem.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 85-95, jan./jun., 2022. (18) 93


RODRIGO PEDRO CASTELEIRA
Pandemia, racialidade e homens negros em situação de rua

Referências:

ACÁCIO, Davi Carlos; SANTANA, Wedencley Alves. Masculinidades negras e


discurso: subjetivações compartilhadas por homens negros no Twitter. In:
CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 42, INTERCOM
– Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, Anais
[...]. Belém: INTERCOM, 2019, p. 1-15.

BRASIL, Casa Civil da Presidência da República. Subchefia para Assuntos Jurídi-


cos, Decreto no 7.053/2009. Institui a Política Nacional para a População em Situ-
ação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento,
2009.

CASA VOGUE. “As cidades brasileiras não foram projetadas para a diversidade”,
disse a arquiteta Joice Berth. 2018. Disponível em: https://casavogue.globo.
com/Casa-Vogue-Experience/noticia/2018/11/cidades-brasileiras-nao-fo-
ram-projetadas-para-diversidade-disse-arquiteta-joice-berth.html. Acesso
em: 23 out. 2021.

CASSAL, Milena; FERNANDES, Talita. A população negra em situação de rua


e a covid-19: vidas negras importam? In: Tessituras - Revista de Antropologia e
Arqueologia, Pelotas, v. 8, s. 1, jan-jun, p. 97-104, 2020.

CAU/RS. CONSELHO DE ARQUITETURA E URBANISMO. Cidade e desigualda-


des: uma perspectiva de raça e gênero. 2017. Disponível em: https://www.
caurs.gov.br/cidade-e-desigualdades-uma-perspectiva-de-raca-e-genero/.
Acesso em: 23 out. 2021.

COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciên-


cia e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019.

FAUSTINO, Deivison Mendes. Frantz Fanon, a branquitude e a racialização:


aportes introdutórios a uma agenda de pesquisas. In: CARDOSO, L.; MÜLLER,
T. (org.) Branquitude: estudos sobre a identidade branca no Brasil. Curitiba:
Appris, 2017, p. 125-140.

G1. Das ruas à recuperação, ‘Mendigo Gato’ relembra a luta para deixar o
crack. G1, 03 de jul. 2017. Disponível em: https://g1.globo.com/pr/parana/
noticia/das-ruas-a-recuperacao-mendigo-gato-relembra-a-luta-para-deixar-

94 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 85-95, jan./jun., 2022. (18)


RODRIGO PEDRO CASTELEIRA
Pandemia, racialidade e homens negros em situação de rua

-o-crack.ghtml. Acesso em 12 de jan. 2022.

GUERREIRO RAMOS, Alberto. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de


Janeiro: Editora UFRJ, 1995.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte:


UFMG, 2003.

HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação com prática da liberdade.


São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017.

MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. São Paulo: N-1 edições, 2020.

MIRANDA, Jorge Hilton de Assis. Branquitude invisível – pessoas brancas


e a não percepção dos privilégios: verdade ou hipocrisia. In: CARDOSO, L.;
MÜLLER, T. (org.) Branquitude: estudos sobre a identidade branca no Brasil.
Curitiba: Appris, 2017, p. 53-68.

SILVA, Rosimeire Barbosa da; COSTA, Alderon Pereira da. Direitos humanos
da população em situação de rua? Paradoxos e aproximações a uma vida
digna. Revista Direitos Humanos e Democracia, Ijuí, ano 3, n. 6, jul./dez., p.
117-135, 2015.

SILVA, Priscila Elizabete. O conceito de branquitude: Reflexões para o campo


de estudo. In: MULLER, T; CARDOSO, L. Branquitude: estudos sobre a identida-
de branca no Brasil. 1 ed. Curitiba: Appris, 2017, p. 19-32.

SILVA, Tatiana Dias; NATALINO, Marco; PINHEIRO, Marina Brito Pinheiro.


População em situação de rua em tempos de pandemia: um levantamento de
medidas municipais emergenciais. Ministério da Economia. Brasília: IPEA.
Nota Técnica, junho, número 74, 2020.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 85-95, jan./jun., 2022. (18) 95


As violações de direitos
humanos da população em
situação de rua na cidade de
Curitiba
§ Las violaciones de los derechos humanos de población
sin hogar en la ciudad de Curitiba

§ The human rights violations of homeless population in


the city of Curitiba

Rodrigo Alvarenga1
Isabele Cristine Gulisz2

Resumo: Diante da pandemia da Covid-19 e de suas consequências, um gru-


po populacional específico já tão vitimado pela violência cotidiana teve sua
sobrevivência ainda mais ameaçada. As medidas de segurança que tinham
por objetivo proteger o conjunto da população da contaminação em massa
deixou a população em situação de rua em uma condição generalizada de
insegurança. Esse artigo tem por objetivo descrever o processo de abandono
e de violação de direitos humanos pelo qual tem passado a população em si-
tuação de rua na cidade de Curitiba durante a pandemia, bem como destacar
as medidas que foram tomadas pelos movimentos sociais, sociedade civil e

1 Doutor em Filosofia. Docente do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Políticas Públicas da PUC-
-PR. alvarenga.rodrigo@pucpr.br
2 Graduada em Psicologia e mestranda em Direitos Humanos e Políticas Públicas no Programa de Pós-Graduação em
Direitos Humanos e Políticas Públicas da PUC-PR isabele.gulisz@pucpr.edu.br

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 97-114, jan./jun., 2022. (18) 97


RODRIGO ALVARENGA; ISABELE CRISTINE GULISZ
As violações de direitos humanos da população em situação de rua na cidade de Curitiba

universidades no enfrentamento desse processo necropolítico. Para esse fim,


será realizada análise da Ação civil pública perpetrada pela Defensoria Pública
do Estado do Paraná contra a Prefeitura Municipal de Curitiba, e as respostas
que foram dadas pelo poder público ao Agravo referente às medidas exigidas
e não cumpridas pelo poder público durante a pandemia. Além disso, será
apresentada parte da estratégia de atuação do Movimento Nacional da Po-
pulação em Situação de Rua, na criação de uma cozinha solidária, bem como
será descrito o processo de criação do Observatório Estadual de Direitos Hu-
manos da População em Situação de Rua do Paraná. Como forma de refletir e
analisar tal situação, será proposta uma discussão a partir do referencial teóri-
co de Achille Mbembe, especificamente por meio dos conceitos de necropo-
lítica e brutalismo.

Palavras-chave: Direitos humanos. Pandemia. Poder público. População em


situação de rua.

Resumen: Ante la pandemia del Covid-19 y sus consecuencias, un grupo de


población específico ya tan victimizado por la violencia cotidiana vio su su-
pervivencia aún más amenazada. Las medidas de seguridad destinadas a pro-
teger a la población en su conjunto de la contaminación masiva dejaron a la
población sin hogar en una situación de inseguridad generalizada. Este artí-
culo tiene como objetivo describir el proceso de abandono y violación de los
derechos humanos que la población sin hogar de la ciudad de Curitiba viene
atravesando durante la pandemia, así como destacar las medidas que fueron
tomadas por los movimientos sociales, la sociedad civil sociedad y Universida-
des frente a este proceso necropolítico. Para ello, se realizará un análisis de la
acción civil pública perpetrada por la Defensoría Pública del Estado de Paraná
contra el Municipio de Curitiba, y las respuestas que dieron las autoridades
públicas al Recurso en cuanto a las medidas requeridas y no cumplidas por
las autoridades públicas durante la pandemia. Además, se presentará parte
de la estrategia de acción del Movimiento Nacional de la Población Sin Hogar,
en la creación de un comedor solidario, así como se presentará el proceso de
creación del Observatorio Estatal de Derechos Humanos de la Población Sin
Hogar de Paraná. descrito. Como forma de reflexionar y analizar esta situaci-
ón, se propondrá una discusión a partir del marco teórico de Achille Mbembe,
específicamente a través del concepto de Necropolítica y Brutalismo.

Palabras clave: Derechos Humanos. Pandemia. Poder público. Población sin


hogar.

98 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 97-144, jan./jun., 2022. (18)


RODRIGO ALVARENGA; ISABELE CRISTINE GULISZ
As violações de direitos humanos da população em situação de rua na cidade de Curitiba

Abstract: Faced with the Covid-19 pandemic and its consequences, a specific
population group already so victimized by daily violence had its survival even
more threatened. The security measures aimed at protecting the population
as a whole from mass contamination left the homeless population in a ge-
neralized condition of insecurity. This article aims to describe the process of
abandonment and violation of human rights that the homeless population
in the city of Curitiba has been going through during the pandemic, as well
as highlighting the measures that were taken by social movements, society
civil society and Universities in facing this necropolitical process. To this end,
an analysis will be carried out of the public civil action perpetrated by the
Public Defender’s Office of the State of Paraná against the Municipality of
Curitiba, and the responses that were given by the public authorities to the
Appeal regarding the measures required and not complied with by the public
authorities during the pandemic. In addition, part of the action strategy of
the National Movement of the Homeless Population will be presented, in the
creation of a solidarity kitchen, as well as the process of creation of the State
Observatory of Human Rights of the Homeless Population of Paraná will be
described. As a way of reflecting and analyzing this situation, a discussion will
be proposed based on Achille Mbembe’s theoretical framework, specifically
through the concept of Necropolitics and Brutalism.]

Keywords: Human Rights. Pandemic. Public Power. Homeless population.

Introdução
A população em situação de rua em todo o país tem seus direitos hu-
manos sistematicamente violados e sofrem um processo de marginalização e
exclusão por parte da sociedade em geral. Percebidas de forma extremamen-
te negativa, consideradas potencialmente criminosas, vagabundas e depen-
dentes químicos perigosas, na realidade são as pessoas submetidas a situação
de sobrevivência sem moradia quem realmente se encontra em situação de
perigo, risco e vulnerabilidade.
Os discursos e narrativas as culpabilizam por sua condição de vulnera-
bilidade gerando processos cada vez mais graves de invisibilidade, exclusão e,
por consequência, de violência. O próprio fato de estar em situação de rua já
é uma grande violação de direitos humanos por parte tanto do poder público
e do sistema de justiça, como da sociedade civil em geral.
A violência contra essa população se manifesta de diferentes modos,

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 97-114, jan./jun., 2022. (18) 99


RODRIGO ALVARENGA; ISABELE CRISTINE GULISZ
As violações de direitos humanos da população em situação de rua na cidade de Curitiba

sendo física, sexual, psicológica, patrimonial, entre diversas outras. A despro-


teção física caracterizada pela ausência de moradia expõe seus corpos nas
ruas como se fossem públicos, fazendo com que tais pessoas se tornem o alvo
de múltiplas violências. Além disso, a ausência de políticas públicas e de opor-
tunidades reais para sair de sua situação agrava de forma mais profunda o
contexto de violação e de sofrimento pelo qual passam as pessoas em situa-
ção de rua (MARTINS, 2018).
Com a necessidade de isolamento social durante a pandemia, esse gru-
po populacional específico já tão vitimado pela violência cotidiana, teve sua
sobrevivência ainda mais ameaçada. As medidas de segurança que tinham
por objetivo proteger o conjunto da população da contaminação em massa
deixaram a população em situação de rua em uma condição generalizada de
insegurança. Sem água e banheiros públicos para realização de sua higiene
pessoal e hidratação, com restaurantes populares e comércios fechados, sem
itens de segurança como máscaras, luvas ou álcool gel, a vida de quem se en-
contra em situação de rua tornou-se rapidamente sacrificável. Expostos à con-
taminação, sede, fome e abandono do poder público, a vulnerabilidade em
face da repressão e violência policial se intensificaram. Muitas vezes o sistema
de justiça precisou ser acionado para que a prefeitura garantisse condições
mínimas de sobrevivência dessa população.
Diante desse quadro, esse artigo tem por objetivo descrever o proces-
so de abandono e de violação de direitos humanos pelo qual tem passado
a população em situação de rua na cidade de Curitiba durante a pandemia,
bem como destacar as medidas que foram tomadas pelos movimentos so-
ciais, sociedade civil e universidades no enfrentamento desse processo necro-
político. Para esse fim, será realizada análise da Ação civil pública perpetrada
pela Defensoria Pública do Estado do Paraná contra a Prefeitura Municipal
de Curitiba, e das respostas que foram dadas pelo poder público ao Agravo
referente às medidas exigidas e não cumpridas pelo poder público durante a
pandemia. Além disso, será apresentado algumas estratégias de atuação do
Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR), na criação de
uma cozinha solidária, bem como será descrito o processo de criação do Ob-
servatório Estadual de Direitos Humanos da População em Situação de Rua
do Paraná (ODH). Como forma de refletir e analisar tal situação, será proposta
uma discussão a partir do referencial teórico de Achille Mbembe, especifica-
mente por meio dos conceitos de necropolítica e brutalismo.

100 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 97-144, jan./jun., 2022. (18)


RODRIGO ALVARENGA; ISABELE CRISTINE GULISZ
As violações de direitos humanos da população em situação de rua na cidade de Curitiba

A violência contra a população em situação de rua e os


direitos humanos
As inúmeras formas de violência contra a população em situação de
rua fazem parte de uma realidade muito presente tanto no Brasil como em
outras partes do mundo, sendo um problema que apresenta uma urgência
de intervenção. As estatísticas apontam para um expressivo aumento de pes-
soas em situação de rua em todo o país, como também para um alto nível de
violência sofrida.
De acordo com o Observatório das Metrópoles (2019), o problema dos
indivíduos que chegam à situação de rua é multifacetado, pois concentra, si-
multaneamente em um único sujeito, um conjunto de vulnerabilidades so-
ciais, psicológicas, físicas, emocionais e econômicas. Assim, múltiplas também
deveriam ser as ações que responderão ao conjunto de necessidades desses
indivíduos. Segundo Cabral Júnior e Costa (2017), várias formas de violência
atingem indivíduos da sociedade em geral, porém, a violência contra a po-
pulação em situação de rua se torna mais alarmante, visto que se tratam de
vítimas de processos socioeconômicos excludentes e da falência das políticas
públicas de habitação, saúde e assistência social.
De acordo com Natalino (2020), durante o período de setembro de
2012 a março de 2020 foi possível observar um grande aumento da popula-
ção em situação de rua no Brasil, chegando a um crescimento de 140%. Se-
gundo o autor, em março de 2020, o número estimado de pessoas em situa-
ção de rua no país era de 221.869. Além desse expressivo aumento ao longo
dos anos também foi possível observar uma aceleração recente desse cresci-
mento em todas as regiões do país.
Embora os dados sobre violência sejam sempre subestimados. Segun-
do o Boletim Epidemiológico n° 14, da Secretária de Vigilância em Saúde e
do Ministério da Saúde, que considerou o período entre 2015 e 2017, foram
registrados no país 17.386 casos de violência direta contra a população em
situação de rua. (BRASIL, 2019). As mulheres e as pessoas negras foram as
principais vítimas da violência, alcançando 50,8% casos de violência contra
a mulher e 54,8% contra pessoas negras. Em relação às formas de violência, a
de maior predominância nos registros foi a física, com 92,9%. Posteriormente
se encontram a violência psicológica e moral com 23,2% e a violência sexual
com 3,9%. Sobre os autores da violência desconhecidos são 34,9%, seguido
de amigos e/ou conhecidos, com 31,5% dos casos (BRASIL, 2019).
Essa violência contra as pessoas em situação de rua é naturalizada
pela sociedade, contribuindo para a reprodução e manutenção desse fenô-
meno. O Estado omisso ou praticamente nulo na intervenção sobre a segu-

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 97-114, jan./jun., 2022. (18) 101


RODRIGO ALVARENGA; ISABELE CRISTINE GULISZ
As violações de direitos humanos da população em situação de rua na cidade de Curitiba

rança dessa população, contribui de forma direta e indireta na manutenção


da insegurança desses indivíduos (CABRAL JÚNIOR; COSTA, 2017). De acordo
com Pimentel et al. (2015), a invisibilidade dos indivíduos em situação de rua
e a indiferença da sociedade para com eles está diretamente relacionada aos
processos de violência, tanto simbólicos quanto reais e vivenciados.
Segundo Melo (2016), a violência contra essa população vem de dife-
rentes autores, como agentes de segurança pública, policiais e guardas mu-
nicipais, principalmente em ações decorrentes do recolhimento de pertences
pessoais e remoções forçadas. A violência pode vir também da sociedade ci-
vil, com agressões verbais ou físicas e até mesmo casos de homicídios e ten-
tativas de homicídios contra essas pessoas. Ressalta-se também a violência
de caráter higienista, praticada por policiais, comerciantes ou pessoas que se
sentem prejudicadas com a presença dessa população nas calçadas da cidade
e em frente aos seus estabelecimentos (ROSA; BRÊTAS, 2015).
A indiferença, o ódio ou a omissão da sociedade por vezes terminam
em formas indiretas de extermínio dessa população, fato que vem acontecen-
do de forma frequente na capital do Paraná e por todo o Brasil. Além disso,
destacam-se práticas diretas de extermínio com crueldade, em que a tortura
e a morte violenta são comuns. Apesar dos altos índices de assassinatos em
todo o país, taxa essa que vem crescendo cada vez mais, não existem investi-
gações mais profundas sobre os culpados e muito menos punição na forma
de lei (ALVARENGA, 2018).
Martins (2018) afirma que os dados não apontam para a totalidade de
violências sofridas por esses indivíduos, considerando-se a dificuldade de se
realizarem as denúncias e a subnotificação desses casos, especialmente quan-
do executadas por agentes do Estado. Assim, muitas vítimas optam por não
levarem adiante os registros de denúncia, por se sentirem desprotegidos ou
até mesmo por medo de retaliações de seus violentadores, bem como dos
agentes de órgãos públicos, ou da realização de detenções indevidas. Esse
quadro revela que apesar de terem a garantia constitucional de seus direitos,
as violações de direitos humanos ocorrem de forma sistemática.
A Constituição Federal de 1988 é considerada como um marco jurídi-
co do processo de transição democrática e da institucionalização de direitos
humanos no Brasil, propondo a defesa da dignidade humana e a afirmação
da democracia participativa. Ela introduz o avanço na consolidação legislativa
das garantias e direitos fundamentais e na proteção de setores vulneráveis na
sociedade brasileira. Percebe-se, pois, que a Carta Constitucional visa a cons-
trução de um Estado Democrático de Direito, que objetiva assegurar o exercí-
cio dos direitos sociais e individuais, além da liberdade, segurança, bem-estar,
desenvolvimento, igualdade e justiça (PIOVESAN, 2011; SILVEIRA, 2019).

102 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 97-144, jan./jun., 2022. (18)


RODRIGO ALVARENGA; ISABELE CRISTINE GULISZ
As violações de direitos humanos da população em situação de rua na cidade de Curitiba

Em seu Artigo 5º, a Constituição Federal expressa os direitos humanos


quando conclama para a igualdade de todos os cidadãos brasileiros perante
a lei e a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade. Assim também em seu artigo 5º, quando afirma: “são direi-
tos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL, 1988).
Contudo, não bastam as declarações e legislações para se garantir di-
reitos, pois eles se caracterizam como resultado sempre provisório das lutas
dos seres humanos pelo acesso aos bens necessários para a vida, ou seja, os
direitos humanos se constituem como resultados impermanentes de lutas
sociais (FLORES, 2009). Assim, o resultado dessas lutas deverá ser garantido
a partir de normas jurídicas, políticas públicas e por uma economia aberta
aos requisitos da dignidade, bem como pela formação ética e política da po-
pulação por meio da educação (BONETI, 2019; SILVEIRA, 2019). O problema
é que, de acordo com Resende e Mendonça (2019), a falta de conhecimento,
especialmente das especificidades e necessidades dessa população, é um dos
obstáculos que dificultam a implantação efetiva de políticas públicas especí-
ficas (ROCHA; CORONA, 2015).
Mesmo depois de trinta anos da promulgação da Constituição Fede-
ral de 1988, a qual determina a igualdade de todos e todas parente a lei e a
garantia de direitos sociais, uma considerável parte da população brasileira,
mesmo organizados na luta social, não acessa grande parte dos direitos pre-
vistos na constituição. Sem o acesso aos direitos básicos e essenciais à vida
digna, a população em situação de rua sofre a ausência de políticas públicas e
o descaso social (RESENDE; MENDONÇA, 2019). Tal realidade se tornou ainda
pior durante a pandemia da Covid-19.

O desafio da política para população em situação de rua


em Curitiba durante a pandemia

Com a pandemia da Covid-19 a população brasileira pobre teve mui-


ta dificuldade para manter condições financeiras mínimas que desse conta
de suas despesas com habitação, alimentação, transporte, saúde, educação,
etc..., isso porque uma grande parte dos trabalhadores e trabalhadoras ganha
seu sustento em empregos informais que dependem diretamente da movi-
mentação populacional dos grandes centros urbanos. Embora as medidas de

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 97-114, jan./jun., 2022. (18) 103


RODRIGO ALVARENGA; ISABELE CRISTINE GULISZ
As violações de direitos humanos da população em situação de rua na cidade de Curitiba

afastamento social e fechamento temporário de espaços que representam


riscos iminentes de contágio tenham sido necessárias e muitas vezes ocorrido
de forma insatisfatória e aquém do que a situação exigia no Brasil, o impacto
dessas medidas foi brutal para a sobrevivência da população mais vulnerável.
Além disso, a falta de medidas de redução dos danos econômicos e sociais
da pandemia para a população mais pobre fez crescer o número de pessoas
desempregadas, tornando impossível para algumas famílias se manterem do-
miciliadas, fato que fez aumentar o número de pessoas vivendo em situação
de rua.
Os índices preliminares com relação ao desemprego, a pobreza e a
fome no país são alarmantes. No ano de 2020 o desemprego aumentou cerca
de 3% e 485 mil famílias passaram a condição de extrema pobreza, o que coin-
cide não apenas com o período de pandemia, mas também com o desmonte
sem precedentes nas políticas de proteção social e de segurança alimentar
do Estado brasileiro. (NEVES et al. 2021). Por consequência, a população em
situação de rua tem crescido de forma exponencial em todo o país. Cada vez
mais pessoas chegam às ruas, muitas vezes são famílias inteiras que já não
conseguem mais arcar com suas despesas e se encontram nessa condição de
miséria e pobreza extrema.
Os dados obtidos por meio de uma pesquisa de doutorado realizada
no Rio de Janeiro revelaram esse novo perfil ao indicar que 31% das pessoas
entrevistadas estavam em situação de rua a menos de um ano, sendo que
64% por razões relacionadas a perda do emprego, renda ou moradia. (GAMEI-
RO, 2021). Se já havia uma ausência generalizada de políticas públicas para a
população em situação de rua, essa realidade ficou ainda mais evidente du-
rante a pandemia. Sem poder se manter em casa, já que não possuem domi-
cílio; sem possibilidade de usar máscaras ou álcool gel decorrente da falta de
recursos para comprar; muitas vezes sem acesso a água para lavar as mãos ou
mesmo para beber, a população em situação de rua ficou ainda mais exposta
ao risco de morte. A pandemia escancarou o fato de que os mais vulneráveis
são os primeiros a serem deixados para morrer, principalmente aqueles que
padecem sobre o estigma e o preconceito. As palavras de José Vanilson Torres
da Silva, da coordenação do Movimento Nacional da População em Situação
de Rua (MNPR) demonstram o drama dessa realidade de forma contundente:
Estar nas ruas é difícil e agora com a pandemia ficou muito mais com-
plicado, pois habitação, saúde e educação, dentre outras, é direito do povo
brasileiro e é dever do Estado. Nos oferecem abrigos na modalidade de isola-
mento, mas quando essa pandemia passar teremos que voltar pras ruas? Por
tormento? (apud SILVA; NATALINO; PINHEIRO 2020, p. 7).
Embora as palavras de José Vanilson pressuponham uma ação gover-

104 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 97-144, jan./jun., 2022. (18)


RODRIGO ALVARENGA; ISABELE CRISTINE GULISZ
As violações de direitos humanos da população em situação de rua na cidade de Curitiba

namental emergencial durante a pandemia e chame a atenção para o caráter


paliativo de medidas que não se tornam políticas públicas efetivas, tais ações
ainda foram extremamente pouco efetivas e sem grande abrangência. No
caso da cidade de Curitiba isso se torna evidente, pois as medidas emergen-
ciais que se esperaria do poder público municipal tiveram que ser demanda-
das e cobradas por meio do sistema de justiça, até mesmo para que decisões
judiciais fossem cumpridas.
O levantamento realizado pelo IPEA (SILVA; NATALINO; PINHEI-
RO 2020) indica que todos os municípios estudados tiveram algum tipo de
política emergencial para a população em situação de rua e procuraram de
alguma forma seguir as orientações publicadas pelo Ministério da cidadania,
Defensoria pública da União, Conselho Nacional de Direitos Humanos e Minis-
tério da Mulher, Cidadania e Direitos Humanos. As políticas emergenciais em
geral se caracterizaram por medidas no âmbito da própria política nacional
(BRASIL, 2008) para a população em situação de rua, nos campos do abriga-
mento, alimentação, orientação, higiene, saúde e serviços especializados.
Na cidade de Curitiba algumas medidas foram tomadas para tentar
oferecer um atendimento melhor para essa população, com destaque para a
inauguração de mais um espaço para abrigamento, localizado na região do
bairro Campina do Siqueira, bem como o projeto desenvolvido na praça Plí-
nio Tourinho, que ampliou os serviços oferecidos. Contudo, Curitiba foi cená-
rio de um grande absurdo no que se refere à política de alimentação. Criou-se
um programa que na sua origem previa proibir pessoas e entidades, não ca-
dastradas na prefeitura, realizarem entrega de marmitas, com pagamento de
multa para quem insistisse em não se adequar (MAROS, 2021).
Diante da articulação e mobilização do MNPR, da sociedade civil or-
ganizada, das igrejas e universidades, e da repercussão negativa do Projeto
Mesa Solidária em todo o território nacional levou a prefeitura a modificar
a proposta. O projeto foi aprovado e entidades cadastradas contribuem em
espaços específicos com a entrega de alimentos em parceria com a prefeitura,
mas a atividade livre e espontânea não foi proibida.
Com o fechamento dos restaurantes populares e a diminuição da ofer-
ta de alimentação pela sociedade civil e igrejas, decorrente da pandemia, o
MNPR criou sua própria cozinha para garantir o mínimo de segurança alimen-
tar para seus pares. Além disso, houve apoio do Movimento dos Trabalhado-
res Rurais Sem Terra (MST), que também se organizaram para ajudar na distri-
buição de refeições na capital do Paraná.
Contudo, a oferta dos serviços públicos nessa área deveria ser organi-
zada de forma a dispensar ou ao menos deixar de depender da solidariedade
e caridade da população. Em vez disso, o projeto Mesa Solidária da Prefeitura

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 97-114, jan./jun., 2022. (18) 105


RODRIGO ALVARENGA; ISABELE CRISTINE GULISZ
As violações de direitos humanos da população em situação de rua na cidade de Curitiba

Municipal de Curitiba usa ações de ongs, igrejas e movimentos para compen-


sar a carência de políticas públicas de segurança alimentar adequadas. Não
é apenas o projeto de alimentação para a população em situação de rua que
demonstra os problemas das políticas municipais para o atendimento emer-
gencial na cidade. Outra situação dramática se revela na disputa judicial entre
a Defensoria Pública do Estado e o Governo Municipal.

Judicialização para garantir os direitos da população em


situação de rua

No dia 4 de junho de 2020 a Defensoria Pública do Estado, por meio


do Núcleo da Cidadania e Direitos Humanos (NUCIDH) ajuizou ação civil pú-
blica para garantir direitos básicos durante a pandemia, no caso, alimentação,
água, máscaras, álcool gel e o acesso gratuito aos banheiros públicos, bem
como vagas suficientes em unidades de acolhimento e a elaboração de um
plano de contingência. Tal ação foi impetrada justamente em função das de-
núncias recebidas sobre a insuficiência de políticas emergenciais e o risco de
ter um grupo completamente desassistido. De acordo com a coordenadora
do NUCIDH, Mariana Gonzaga Amorim, a ação civil publica só foi ajuizada em
função das respostas insatisfatórias por parte da prefeitura às explicações que
foram solicitadas (PARANÁ, 2020).
Como se não bastasse o constrangimento causado pela própria ação
civil ao poder público, após perder em primeira instância a prefeitura interpôs
recurso para tentar modificar o resultado. Todavia, por unanimidade o Tribu-
nal de Justiça determinou o acesso gratuito da população em situação de rua
aos banheiros públicos, assim como a distribuição de água potável, máscaras
e álcool gel. Em sua argumentação o poder público tentou reivindicar o di-
reito de tarifar o uso dos banheiros públicos, ao que a decisão do Tribunal de
Justiça respondeu:

Sobre o tema, não se ignora que os banheiros da Praça Rui Barbosa,


Praça Osório e Praça Tiradentes tem o uso condicionado ao paga-
mento de tarifa por força da Lei Municipal 8.121/93, que estabeleceu
o regime de concessão para a URBS e previu a possibilidade de co-
brança. “ [...] A referida concessão, contudo, não isenta o Município
Agravante de cumprir com a Decisão Agravada através do custeio
das referidas tarifas, de forma a possibilizar o uso gratuito dos sani-
tários pela população de rua, haja vista a obrigação constitucional
de garantir condições dignas de vida e saúde aos cidadãos - sem ex-
ceção, atrelada à situação de premente necessidade dos moradores

106 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 97-144, jan./jun., 2022. (18)


RODRIGO ALVARENGA; ISABELE CRISTINE GULISZ
As violações de direitos humanos da população em situação de rua na cidade de Curitiba

de rua evidenciada nos autos (PARANÁ, 2021).

A questão que se impõe para reflexão é sobre o que leva a Prefeitura


Municipal de Curitiba a interpor recurso para se negar a cumprir uma decisão
Judicial que visa garantir o acesso a um direito tão básico e fundamental? Ou-
tra argumentação para não atender as medidas impostas versa sobre a divi-
são de poderes, pela alegação de que ao poder judiciário não cabe demandar
políticas públicas, o que foi respondido da seguinte maneira: “Os Insurgentes
afirmam que não cabe intervenção judicial para a modificação de política pú-
blica já existente, mormente quando não há qualquer ilegalidade apontada,
importando tal intervenção em indevida imposição de modo de agir à Ad-
ministração Pública” (PARANÁ, 2021). Coube a desembargadora esclarecer ao
poder público sobre o papel do sistema de justiça nesse caso, destacando
que a negligência no cumprimento de medidas que visam garantir direitos
fundamentais da população será sempre passível de intervenção do poder
judiciário.

A tese recursal, contudo, aparenta esbarrar nos entendimentos dou-


trinário e jurisprudencial pacificados no sentido de que quando de-
monstrada a excepcional negligência do ente público para com seu
dever de garantir condições dignas de vida e saúde aos cidadãos,
faz-se possível a interferência judicial na seara das políticas públicas
sem que tal medida implique em ofensa ao princípio da Separação
de Poderes (PARANÁ, 2021)

A alegação da prefeitura indica a falta de disponibilidade em cumprir


uma decisão judicial que apenas procura lembrar ao poder público sobre a
necessidade de garantir direitos humanos para todas as pessoas, principal-
mente durante a pandemia. Diante desse tipo de disputa judicial se coloca em
questão o próprio modo de funcionamento da política, sendo importante re-
conhecer que infelizmente a relação entre o estado e a sociedade civil, no que
se refere ao reconhecimento e à garantia de direitos, ocorre de forma extre-
mamente desigual. É a dinâmica do poder que decide quem é mais ou menos
humano, portanto, mais ou menos digno de ter seus direitos efetivados. Esse
poder não emana do governante de forma centralizada, mas opera em rede
por toda a estrutura social e se reproduz em todas as instituições e espaços
nos quais se estabelecem as relações entre pessoas, por isso um biopoder que
estabelece quem deve viver e quem deve ser deixado para morrer por meio
do racismo de estado (FOUCAULT, 1999).

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 97-114, jan./jun., 2022. (18) 107


Necropolítica, brutalismo e resistência da população em
situação de rua
As inúmeras formas de violência e de violações de direitos, pelos quais
passa a população em situação de rua, exige uma discussão que admita haver
um tipo de política que não se explica apenas pela lógica da incompetência
técnica e da escassez econômica, como fatores limitantes. Uma política que
possa levar condições minimamente dignas para cidadãos e cidadãs em con-
dição de tamanha vulnerabilidade. É preciso reconhecer que o racismo de Es-
tado é um operador biopolítico de primeira ordem, quando se trata de negar
políticas de saúde e assistência social mínimas, e que, portanto, é função do
soberano, decidir sobre quem deve viver e quem deve ser deixado para mor-
rer, conforme expressa a formulação foucaultiana (FOUCAULT, 1999).
Embora seja difícil para a sociedade admitir que a condição funda-
mental da política, aquilo que define o próprio princípio da soberania, este-
ja relacionada a essa escolha. Não há como negar que o desprezo pela vida
das pessoas em situação de rua, notável não apenas entre governantes, como
também entre os demais cidadãos e cidadãs que se julgam como sendo “de
bem”, seja a própria expressão de um necropoder. Procurando explorar a tese
foucaultiana sobre biopolítica e o racismo de Estado, Achille Mbembe usará a
expressão necropolítica para tratar dessa forma como algumas vidas são não
apenas expostas a condição de vidas matáveis pelo poder soberano, mas são
efetivamente o alvo a ser exterminado, algo que a noção de biopoder não
parece alcançar. De acordo com Mbembe (2016, p. 146):

[...] a noção de biopoder é insuficiente para explicar as formas con-


temporâneas de subjugação da morte. Além disso, propus a noção
de necropolítica e necropoder para explicar as várias maneiras
pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, armas de fogo são
implantadas no interesse da destruição máxima de pessoas e da
criação de ‘mundos da morte’, formas novas e únicas de existência
social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de
vida que lhes conferem o status de ‘mortos-vivos’.

A forma como a população em situação de rua é morta não implica


uso de armas poderosas ou práticas de destruição em massa como nas guer-
ras coloniais e nas novas guerras de controle territorial. Entretanto a política
adotada durante a pandemia da Covid-19 pode ser considerada uma expres-
são desse necropoder do qual fala Mbembe. Além disso, diante da naturali-
zação do capitalismo exploratório e dos artifícios tecnológicos e cibernéticos
de sua reprodução, pelas quais se intensificam a lógica da exploração e da
exclusão de grupos populacionais inteiros, a necropolítica contra a população
RODRIGO ALVARENGA; ISABELE CRISTINE GULISZ
As violações de direitos humanos da população em situação de rua na cidade de Curitiba

em situação de rua se impõe de forma brutal.


A brutalidade do sistema de exploração colonial, o qual se baseava
na violência da escravização, não parece ter desaparecido; pelo contrário, se
estende a um conjunto cada vez maior de pessoas. Por meio do poderio tec-
nológico, embora pessoas negras e empobrecidas sejam as principais vítimas,
a marcha do progresso e da realização capitalista estende a vulnerabilidade
e produz miséria e morte em grande escala. O brutalismo, na perspectiva de
Mbembe (2020a), diz respeito ao processo contemporâneo pelo qual o poder
de matar é a tal modo intensificado que se torna uma espécie de força geo-
mórfica, operando processos de exclusão e relativização da vida em nome de
uma sociedade científica e tecnológica a serviço da economia de mercado e
do lucro a qualquer preço.
A pandemia da Covid-19 deixou isso evidente quando estabeleceu o
dilema vida versus economia. A dificuldade de parar o sistema de produção
capitalista para salvar vidas evidenciou essa máquina mortífera, esse moedor
de carne, que expulsa cada vez mais pessoas dos círculos internos dos direitos
e as coloca em uma marcha fúnebre em direção a miséria, a fome e a morte.
Diante dessa realidade de asfixia é preciso reivindicar um direito universal à
respiração.

Antes deste vírus, a humanidade já estava ameaçada de asfixia. Se


houver guerra, portanto, ela não será contra um vírus em particular,
mas contra tudo o que condena a maior parte da humanidade à ces-
sação prematura da respiração, tudo o que ataca sobretudo as vias
respiratórias, tudo que, durante a longa duração do capitalismo, terá
reservado a segmentos de populações ou raças inteiras, submetidas
a uma respiração difícil e ofegante, uma vida penosa. Para escapar
disso, contudo, é preciso compreender a respiração para além de
seus aspectos puramente biológicos, como algo que é comum a nós
e que, por definição, escapa a todo cálculo. Estamos falando, por-
tanto, de um direito universal à respiração (MBEMBE, 2020b, s.p.)

Foi pensando na necessidade que se impôs de forma ainda mais radi-


cal durante a pandemia de lutar por esse direito, que o Movimento Nacional
da População em Situação de Rua (MNPR), além de criar a sua própria cozinha
solidária, organizou junto com seus parceiros o Observatório Estadual de Di-
reitos Humanos da População em Situação de Rua no Paraná. Com a urgên-
cia de prover alimentos para quem tem fome e que ficaria em uma situação
de completo abandono nos piores momentos da pandemia e das medidas
de isolamento social, algumas entidades e organizações se aproximaram do
MNPR em Curitiba e idealizaram um grande projeto para contribuir com a luta
por esse ‘direito universal à respiração’ e aos direitos humanos de forma geral.
Nesse sentido, o Observatório Estadual de Direitos Humanos da Po-
pulação em Situação de Rua foi criado a partir das denúncias constantes de

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 97-114, jan./jun., 2022. (18) 109


RODRIGO ALVARENGA; ISABELE CRISTINE GULISZ
As violações de direitos humanos da população em situação de rua na cidade de Curitiba

violências sofridas e de direitos fundamentais não garantidos por parte do


poder público e dos órgãos de justiça na cidade de Curitiba e em diversas
cidades do Estado do Paraná. Nasceu do protagonismo da luta por direitos do
Movimento Nacional da População em Situação de rua e do Instituto Nacio-
nal da População em Situação de Rua (INRUA), por meio da articulação com o
Conselho Estadual de Direitos Humanos do Paraná e o Núcleo de Direitos Hu-
manos da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, em parceria com a Casa
de Acolhida São José, a Organização Mãos Invisíveis, o Conselho Regional de
Psicologia, a Rede de Saúde Mental e Economia Solidária (Libersol) e o Projeto
Praxis Itinerante da Universidade Estadual de Londrina.
Trata-se de um espaço de estudo, pesquisa e incidência política que
produz dados sobre as violações sofridas pela população em situação de rua
e dá encaminhamento aos órgãos responsáveis do poder público, do siste-
ma de justiça e da sociedade civil, com o objetivo de efetivação dos direitos
humanos. Com espaço físico na cidade de Curitiba e plantões diários para o
acolhimento da população em situação de rua e escuta das denúncias sobre
a violência sofrida no cotidiano das ruas da cidade e negligência do poder
público municipal e estadual, se pretende ser um espaço de resistência e rein-
venção de novas formas de viver e se relacionar coletivamente. Isso porque
diante de brutalismo dos tempos atuais se torna urgente “uma interrupção
voluntária, consciente e plenamente consentida que precisamos, caso contrá-
rio, mal haverá um depois” (MBEMBE, 2020b, s.p.).

Considerações finais
A população em situação de rua tem sofrido com o aumento da vio-
lência e as práticas de extermínio desde o golpe civil, parlamentar e empresa-
rial contra a primeira mulher eleita presidenta na história do Brasil, em 2016.
E com a chegada da extrema direita ao poder o autoritarismo protofascista
atingiu níveis inimagináveis para uma sociedade que acredita ser civilizada. O
grau de violência sofrido se expressa não apenas pela negligência e abando-
no do poder público municipal, mas também pelo tipo de resposta fornecida
aos órgãos de justiça para que não se cumpra o dever constitucional de ga-
rantir direitos fundamentais à população em situação de rua.
Entrar em uma disputa judicial para relativizar a obrigação de forne-
cer água potável, liberar o acesso a banheiros públicos, fornecer alimentação
e parar de recolher pertences individuais demonstra a capacidade do poder
público de não apenas decidir quem tem direitos e quem não tem, mas, sem
exageros, decidir quem deve viver e quem deve morrer. A insuficiência de

110 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 97-144, jan./jun., 2022. (18)


RODRIGO ALVARENGA; ISABELE CRISTINE GULISZ
As violações de direitos humanos da população em situação de rua na cidade de Curitiba

políticas para a população em situação de rua durante a pandemia e a disputa


judicial envolvendo a prefeitura municipal para se reivindicar uma espécie de
direito de não cumprir deveres explicitou a necropolítica e o brutalismo dos
tempos atuais.
Contudo, a resistência dos movimentos sociais, dos espaços de con-
trole social, igrejas, universidades e das organizações da sociedade civil, que
se evidencia pela criação do Observatório Estadual de Direitos Humanos da
População em Situação de Rua, demonstra que nem todos sucumbem a tem-
pos sombrios. Diante da escalada de violência e banalização da vida humana,
não resta outra alternativa senão o engajamento político e social concreto,
inclusive no âmbito da pesquisa e da vida acadêmica.

Referências

ALVARENGA, Rodrigo. Direitos humanos, alteridade e saúde mental: o caso


da população em situação de rua. In: SANTOS, Renato dos; GUTELVIL, Lu-
cilene (org.). Ontologia, política e psicanálise: discursos acerca da alteridade.
Porto Alegre: Editora Fi, 2018. p. 195 -214.

BONETI, Lindomar Wessler. Panorama histórico dos direitos humanos no


mundo. In: BONETI, L. W.; SCHIO, M. A.; BLEY, R. B. (org.). Educação em direitos
humanos: história, epistemologia e práticas pedagógicas. Ponta Grossa: Edi-
tora UEPG, 2019. p. 19-37

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União, 5 de


outubro de 1988. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/
handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf. Acesso em: 10 março. 2022.

BRASIL, Política Nacional para Inclusão Social da População em Situação de


Rua. Brasília, 2008. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/
portal/cao_civel/acoes_afirmativas/inclusaooutros/aa_diversos/Pol.Nacio-
nal-Morad.Rua.pdf. Acesso em: 10 mai. 2021.

BRASIL, Secretaria de Vigilância em Saúde - Ministério da Saúde. População


em situação de rua e violência – uma análise das notificações no Brasil de
2015 a 2017. Boletim Epidemiológico, n. 14, v. 50, junho, 2019. Disponível
em: https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2019/junho/13/
2019-010-publicacao.pdf. Acesso em: 10 mai. 2021.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 97-114, jan./jun., 2022. (18) 111


RODRIGO ALVARENGA; ISABELE CRISTINE GULISZ
As violações de direitos humanos da população em situação de rua na cidade de Curitiba

CABRAL JÚNIOR, L. R. G.; COSTA, E. D. de Paula. Violências às pessoas em situ-


ação de rua: o direito fundamental à segurança em xeque. JURIS - Revista da
Faculdade de Direito, Rio Grande, 27(2), p. 25-40. 2017. Disponível em: https://
periodicos.furg.br/juris/article/view/6777. Acesso em: 17 fev. 2022.

FLORES, Joaquín Herrera. A (re)invenção dos direitos humanos. 1. ed. Florianó-


polis: Fundação Boiteux, 2009.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

GAMEIRO, Nathalia. População em situação de rua aumentou durante a pan-


demia. Portal Fundação Oswaldo Cruz. Disponível em: https://portal.fiocruz.
br/noticia/populacao-em-situacao-de-rua-aumentou-durante-pandemia.
Acesso em: 10 fev. 2022.

MARTINS, Dinaê Espindola. Necropolítica e a produção de morte da população


em situação de rua. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Enfermagem, Porto Alegre, RS, 2018.
Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/218269. Acesso em: 28
mai. 2021.

MBEMBE, Achille. Brutalisme. Paris: La Decouverte, 2020a. Disponível em:


https://www.researchgate.net/publication/344945691_Achille_Mbembe_
Brutalisme. Acesso em 28 abr. 2022.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, 32(1), p.122-
151. 2016.

MBEMBE, Achille. O direito universal à respiração. Trad. A. Braga. 2020b. Pu-


blicação digital da n-1edições. Disponível em: https://www.n-1edicoes.org/
textos/53. Acesso em: 15 março. 2022.

MAROS, Angieli. Famílias em situação de rua aumentam 1.000% em Curitiba


desde 2012. Plural. Curitiba, 2021. Disponível em: https://www.plural.jor.br/
noticias/vizinhanca/familias-em-situacao-de-rua-aumentam-1-000-em-curi-
tiba-desde-2012/. Acesso em: 12 mai. 2022.

MELO, Cíntia de Freitas. População de rua: entre a exclusão e a justiça social.


In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. (org.). Direitos fundamentais das pessoas em
situação de rua. 2. ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016. p. 51-64.

112 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 97-144, jan./jun., 2022. (18)


RODRIGO ALVARENGA; ISABELE CRISTINE GULISZ
As violações de direitos humanos da população em situação de rua na cidade de Curitiba

NATALINO, Marco. Estimativa da população em situação de rua no Brasil (se-


tembro de 2012 a março de 2020) - Nota Técnica. Brasília: IPEA, 2020. Disponí-
vel em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&-
view=article&id=%2035812. Acesso em: 11 de mai. 2021.

NEVES, José Anael et al. Unemployment, poverty, and hunger in Brazil in Covid-19
pandemic times. Rev Nutr. Campinas, 34: e200170, s.p., 2021. Disponível em: ht-
tps://doi.org/10.1590/1678-9865202134e200170. Acesso em: 15 mar. 2022.

OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES - NÚCLEO UEM/MARINGÁ. Pesquisa -


Pessoas em situação de rua em Maringá-PR: Descontruindo a Invisibilidade:
Resultados Comparativos 2015 a 2019. Maringá, dezembro, 2019. Disponível
em: https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-content/uplo-
ads/2019/12/Relatorio-2015_a_2019.pdf. Acesso em: 11 mai. 2021.

PARANÁ. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Recurso: 0041378-17.2020.8.16.0000


- Ref. mov. 88.1. Juntada de Acordão. 4ª Câmara civil. 23 de Junho de 2021. Rela-
tor: Maria Aparecida Blanco de Lima. Disponível em: https://projudi.tjpr.jus.br/
projudi/processo/validacaoDocumentos.do?actionType=pesquisar. (Identifica-
dor: PJ65W Y2TH9 FZ6HZ MR4GB) Acesso em: 10 mai. 2021.

PIMENTEL, Elaine et al. Mortes invisíveis: um estudo sobre homicídios de mo-


radores de rua em Maceió. Configurações, Braga, v. 16, p 41-54, 2015. Dispo-
nível em: http://journals.openedition.org/configuracoes/2840. Acesso em: 10
mai. 2021.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional.


12. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

RESENDE, Viviane de Melo; MENDONÇA, Daniele Gruppi. População em


situação de rua e políticas públicas: representações na Folha de São Paulo.
DELTA, São Paulo, v. 35, n. 4, p. 1-28, 2019. Disponível em: https://www.scielo.
br/pdf/delta/v35n4/1678-460X-delta-35-04-e2019350413.pdf. Acesso em: 6
mai. 2021.

ROCHA, Vanderlei Cardoso; CORONA, Jefferson Bruno. Marcos normativos e


institucionais de proteção a população em situação de rua no contexto dos di-
reitos humanos. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015.
Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/182514. Acesso
em: 6 mai. 2021.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 97-114, jan./jun., 2022. (18) 113


RODRIGO ALVARENGA; ISABELE CRISTINE GULISZ
As violações de direitos humanos da população em situação de rua na cidade de Curitiba

ROSA, Anderson da Silva; BRÊTAS, Ana Cristina Passarella. A violência na vida


de mulheres em situação de rua na cidade de São Paulo, Brasil. Comunicação
Saúde Educação, Botucatu, 19(53), p. 275-85, 2015. Disponível em: https://
www.scielo.br/j/icse/a/8T6c9LN8dqCzSJRFyypZDbT/abstract/?lang=pt. Aces-
so em: 15 fev. 2022.

SILVA, Tatiana Dias; NATALINO, Marco; PINHEIRO, Marina Brito. População


em Situação de Rua em Tempos de Pandemia: um levantamento de Medidas
Municipais Emergenciais: nota técnica. Brasília: IPEA, 2020. Disponível em:
https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=arti-
cle&id=35809. Acesso em: 11 mai. 2021.

SILVEIRA, Jucimeri Isolda. Direitos humanos e políticas públicas: panorama


e desafios contemporâneos. In: BONETI, Lindomar Wessler et al. Educação
em direitos humanos: história, epistemologia e práticas pedagógicas. Ponta
Grossa: Editora UEPG, 2019. p. 57-76.

114 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 97-144, jan./jun., 2022. (18)


Crianças e adolescentes em
situação de rua: relações entre
a rua, o trabalho e a escola
§ Children and adolescents in street situation:
relationships between street, work and school

§ Niños y adolescentes en situación de calle: relaciones


entre la calle, el trabajo y la escuela

Fábio Santos de Andrade1


Reginaldo Santos Pereira2
Armelinda Borges da Silva3

Resumo: O aumento considerável do número de crianças e adolescentes em


situação de pobreza no Brasil que necessitam de ações de defesa e garantia
de direitos é notório. Entre essas, destacam-se as que estão em situação de
rua e que utilizam os espaços públicos urbanos para desenvolver táticas de
sobrevivência. Para elas, a rua se torna um local de dinâmicas variadas, de so-
brevivência individual e coletiva, de sociabilidade, de prática de atividades lí-
citas ou ilícitas e até de moradia. Tal realidade traz à tona questões sobre os as-

1 Doutor em Educação. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional da Universidade


Federal de Rondônia (UNIR). Líder do Humanize – Grupo de pesquisa sobre história, educação social e vida
cotidiana. Coordenador da Rede Situação de Rua. E-mail: fasaan@hotmail.com
2 Doutor em Educação. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Sudo-
este da Bahia (UESB), campus de Vitória da Conquista. E-mail: reginaldouesb@gmail.com
3 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional da Universidade Federal de Rondônia
(UNIR). E-mail: armelindabs@gmail.com

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 115-127, jan./jun., 2022. (18) 115


FÁBIO S. DE ANDRADE; REGINALDO S. PEREIRA; ARMELINDA B. DA SILVA
Crianças e adolescentes em situação de rua: relações entre a rua, o trabalho e a escola

pectos positivos da rua que minimizam as situações de pobreza e que a torna


atraente e sedutora quando comparada à escola, família e programas de ação
educativa complementar; o que pode provocar a ineficiência de muitas políti-
cas públicas e projetos não governamentais que visam reduzir ou erradicar o
problema. Nessa trilha, este artigo tem como objetivo refletir sobre o cotidia-
no das crianças e adolescentes em situação de rua, sobre as relações de socia-
bilidade estabelecidas com seus pares e sobre ações de inclusão na escola. Tal
reflexão parte, principalmente dos estudos de Andrade (2019; 2021), Graciani
(2005; 2014), Gregori (2000), Leite (2001) e Telles, (2006). Os estudos apontam
que a mudança de cenário, em que as crianças e adolescentes deixam as ruas,
retornam ao convívio familiar e são inseridas na escola, deve considerar diver-
sos significantes e contextos que envolvem as causas e situações de pobreza.
A escola, enquanto espaço de acolhimento e inclusão, deve estar pronta para
lidar com as diferenças, com a diversidade, com as culturas e, principalmente,
com os saberes que fazem parte da vida cotidiana das crianças e adolescentes
que buscam a sobrevivência nas ruas. ]

Palavras-chave: Crianças e adolescentes em situação de rua. Educação so-


cial. Educação escolar. Táticas de sobrevivência nas ruas.

Resumen: Es notorio el aumento considerable del número de niños y adoles-


centes en situación de pobreza en Brasil que necesitan acciones para defen-
der y garantizar sus derechos. Entre estos, destacan los que están en la calle y
que utilizan los espacios públicos urbanos para desarrollar tácticas de super-
vivencia. Para ellos, la calle se convierte en un lugar de variadas dinámicas,
de supervivencia individual y colectiva, de sociabilidad, de práctica de acti-
vidades lícitas o ilegales e incluso de vivienda. Esta realidad plantea interro-
gantes sobre los aspectos positivos de la calle que minimizan las situaciones
de pobreza y que la hacen atractiva y seductora frente a la escuela, la familia
y los programas educativos complementarios; lo que puede provocar la ine-
ficiencia de muchas políticas públicas y proyectos no gubernamentales que
pretenden reducir o erradicar el problema. En ese camino, este artículo tiene
como objetivo reflexionar sobre el cotidiano de los niños y adolescentes que
viven en la calle, sobre las relaciones de sociabilidad que establecen con sus
pares y sobre las acciones de inclusión en la escuela. Esta reflexión proviene
principalmente de estudios de Andrade (2019; 2021), Graciani (2005; 2014),
Gregori (2000), Leite (2001) y Telles, (2006). Los estudios indican que el cam-
bio de escenario, en que los niños y adolescentes dejan las calles, regresan a
la vida familiar y se insertan en la escuela, debe considerar varios significados

116 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 115-127, jan./jun., 2022. (18)


FÁBIO S. DE ANDRADE; REGINALDO S. PEREIRA; ARMELINDA B. DA SILVA
Crianças e adolescentes em situação de rua: relações entre a rua, o trabalho e a escola

y contextos que envuelven las causas y situaciones de pobreza. La escuela,


como espacio acogedor e incluyente, debe estar preparada para hacer frente
a las diferencias, a la diversidad, a las culturas y, sobre todo, a los saberes que
forman parte del cotidiano de los niños, niñas y adolescentes que buscan la
supervivencia en las calles.

Palabras clave: Niños y adolescentes de la calle. Educación Social. Enseñanza.


Tácticas de supervivencia callejera.

Abstract: The considerable increase in the number of children and adoles-


cents in poverty in Brazil who need actions to defend and guarantee their
rights is notorious. Among these, those who are on the streets and who use
urban public spaces to develop survival tactics stand out. For them, the street
becomes a place of varied dynamics, of individual and collective survival, of
sociability, of practice of legal or illegal activities and even of housing. This re-
ality raises questions about the positive aspects of the street that minimize si-
tuations of poverty and that make it attractive and seductive when compared
to school, family and complementary educational programs; which can cause
the inefficiency of many public policies and non-governmental projects that
aim to reduce or eradicate the problem. Along this path, this article aims to re-
flect on the daily lives of children and adolescents living on the streets, on the
sociability relationships established with their peers and on inclusion actions
at school. This reflection comes mainly from studies by Andrade (2019; 2021),
Graciani (2005; 2014), Gregori (2000), Leite (2001) and Telles, (2006). Studies
indicate that the change of scenario, in which children and adolescents leave
the streets, return to family life and are inserted in school, must consider seve-
ral meanings and contexts that involve the causes and situations of poverty.
The school, as a welcoming and inclusive space, must be ready to deal with
differences, with diversity, with cultures and, above all, with the knowledge
that is part of the daily life of children and adolescents who seek survival on
the streets.

Keywords: Street children and adolescents. Social education. Teaching. Street


survival tactics.

De rua, não; em situação de rua


A criança e o adolescente em situação de rua sempre fizeram parte da

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 115-127, jan./jun., 2022. (18) 117


FÁBIO S. DE ANDRADE; REGINALDO S. PEREIRA; ARMELINDA B. DA SILVA
Crianças e adolescentes em situação de rua: relações entre a rua, o trabalho e a escola

história do Brasil. Os primeiros registros datam da segunda metade do século


XVI, quando foram denominadas pelo padre José Anchieta como moços perdi-
dos, ladrões, maus e patifes (LEITE, 2001). Por todos os séculos seguintes essas
criança e adolescente, mesmo excluídas da história oficial do Brasil, sempre ti-
veram presença marcante na história social e cultural. Ao passar dos anos foram
chamadas de “orfãos”, “enjeitados”, “expostos”, “menores”, “delinquentes”, “meni-
nos de rua”, “trombadinha”, “pivete”, dentre outros títulos pejorativos.
O termo mais comum utilizado atualmente é “menino de rua”. Este
termo apareceu pela primeira vez no fim da década de 1970, publicado em
um livro de Rosa Maria Fischer Ferreira (1979), difundindo-se rapidamente por
toda a sociedade. O mesmo foi envolvido numa carga de preconceitos, her-
dados do temo “menor”, retirando a criança e o adolescente da condição de
humanos, passando a identificá-los como inferiores, dignos de pena e vítimas
das ações violentas praticadas pelo poder público e pela sociedade.
A expressão ‘menino de rua’ também denota pertença, ou seja, quan-
do na rua, as crianças e adolescentes passam a ser tratadas como se a ela per-
tencessem; daí a expressão “de rua”. Somente após a promulgação do Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA), na década de 1990, é que o termo começa
a ser modificado e passamos a entender que elas não são “de rua”, elas estão
em “situação de rua”, devido a uma série de problemas: econômicos, familia-
res, pessoais, culturais etc. Assim, o termo correto a ser utilizado é criança ou
adolescente em situação de rua. O ECA também passa a denominar TODAS
as pessoas até doze anos de idade incompletos com crianças e entre doze e
dezoito anos de idade como adolescentes

Da casa para a rua


O olhar humanizado para crianças e adolescentes em situação
de pobreza só ganha força na década de 1980, quando o fim do Regime Mi-
litar (1964-1985) possibilita a mobilização da sociedade civil, principalmente
dos movimentos sociais e da Pastoral do Menor da igreja católica, e o repensar
sobre a igualdade, a defesa e garantia de direitos e a justiça social. Foi essa
mobilização que também impulsionou a promulgação da Constituição Bra-
sileira de 1988, cujo Artigo 227 trata de todas as crianças e adolescentes sem
quaisquer distinção, abolindo o termo menor quando usado para identificar
o sujeito e não sua idade.

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao


adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida,
à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar
e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negli-

118 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 115-127, jan./jun., 2022. (18)


FÁBIO S. DE ANDRADE; REGINALDO S. PEREIRA; ARMELINDA B. DA SILVA
Crianças e adolescentes em situação de rua: relações entre a rua, o trabalho e a escola

gência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.


(BRASIL, 1990)

Na mesma trilha, em 1990 o Estatuto da Criança e do Adolescente


(ECA) passa a fortalecer a luta pela defesa e garantia dos direitos das crianças
e adolescentes, ao reconhecê-las como sujeitos de direitos, deveres e saberes,
independentemente de sua origem étnica e condição econômica e/ou social.
No entanto, o texto escrito tarda em se tornar realidade para as crianças e
adolescentes em situação de pobreza, principalmente as que estão em situ-
ação de rua. Os poucos resultados positivos alcançados pelo ECA não foram
capazes de exterminar a violência herdada dos séculos anteriores, mantendo
viva na sociedade a herança dos Códigos de Menores de 1927 e 1970 e fa-
zendo com que pobreza seja um “[...] sinal de uma população na prática des-
tituída de seus direitos”, uma sociedade “[...] que se fez moderna e que não
consegue traduzir direitos proclamados em parâmetros mais igualitários de
ação.” (TELLES, 2006, p. 82).
A década de 1990 ainda foi marcada pela presença do neoliberalis-
mo que orientava a política econômica brasileira, contribuindo significativa-
mente para o aumento das desigualdades econômicas, colocando boa par-
te da população brasileira em situação de extrema pobreza. É essa condição
que impulsiona as pessoas a tornarem-se violadoras dos códigos, símbolos e
signos impostos pelo Estado e que violentam os mais pobres, colocando-os
numa situação de desigualdade e injustiça social.
Importa ainda ressaltar que a violência contra a população em situa-
ção de pobreza está diretamente ligada ao sistema capitalista que nega seus
direitos básicos de sobrevivência, tornando essa população mais vulnerável,
sendo discriminada pela ação de agentes políticos e sociais que anulam os
seus direitos básicos. O mesmo Estado que viola os direitos, na tentativa de
controlar as manifestações reivindicatórias que possam surgir da população
pobre e de minimizar as atrocidades causadas pela pobreza, cria uma série de
políticas assistencialistas que apenas garantem a “funcionalização da pobre-
za”. (TELLES, 2006, p. 187).
A política social do neoliberalismo era vista pela classe média alta
como uma política que atendia aos seus interesses. Para ela, essa política, ao
mesmo tempo, confinava a massa trabalhadora nos serviços sociais públicos
decadentes e reservava os serviços sociais privados para os setores de ren-
da elevada. Esse sistema obrigou parte da população a tirar suas crianças e
adolescentes das escolas e enviá-las às ruas em busca de sustento para suas
famílias.
Crianças e adolescentes se espalham pelas ruas das cidades brasilei-
ras, fazendo com que a quantidade aumente significativamente a cada ano.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 115-127, jan./jun., 2022. (18) 119


FÁBIO S. DE ANDRADE; REGINALDO S. PEREIRA; ARMELINDA B. DA SILVA
Crianças e adolescentes em situação de rua: relações entre a rua, o trabalho e a escola

Elas se tornaram parte da cena urbana, ocupando praças, avenidas, portas de


lojas, supermercados e restaurantes, dentre muitos lugares.
Nas ruas, crianças e adolescentes sempre foram obrigados a buscar
sua sobrevivência enfrentando desafios que os impulsionam a de-
senvolver táticas de sobrevivência que nosso olhar, enquanto cole-
tividade influenciada por questões culturais e históricas, se desloca,
constantemente, para o campo do lícito ou do ilícito. Nesse contex-
to, rótulos passam a ter significado e identificação, as crianças e ado-
lescentes perdem seus nomes e passam a ser chamados de menor,
menino de rua, marginal, coitadinho, pivete, trombadinha, bandido,
excluído, dentre outros. (ANDRADE, 2021, p. 23)

Essas crianças e adolescentes criam táticas de sobrevivência, lícitas e


ilícitas, capazes de promover a sobrevivência individual ou coletiva. “Assim, os
meninos vendendo alho e flanela nos cruzamentos com semáforos não são a
prova do atraso do país, mas de sua forma atroz de modernização.” (SCHWARZ,
2012, p. 23).
No Brasil as táticas de sobrevivência recebem nomes variados como
“viração”, “caça jeito”, “correria”, “mangueamento” e “desenrascaço” e exigem
uma convivência grupal entre os usuários do espaço urbano, possibilitando a
otimização do tempo e promovendo a eficácia das ações executadas.
De acordo com Feffermann (2006, p. 177), as crianças e adolescen-
tes em situação de rua se agrupam por identificação, “Mas se, num primeiro
momento, essa é a finalidade, percebe-se que muitos destes grupos transfor-
mam-se e passam a ter como propósito, implícito ou explícito, a manutenção
das condições sociais”. Esses grupos passam a ter o sentido de família cuida-
dora e protetora. Em citação extraída do livro de Lígia Costa Leite, “Meninos
de rua: a infância excluída no Brasil”, um adolescente afirma que,
A rua só presta se você souber cair nela, se souber lutar, viver, como
por exemplo, quando eu caí na rua eu não tinha amizade, eu não
conhecia ninguém. Agora a gente é unido assim, se eu consigo
uma coisa todo mundo vai comer. Se um tem um dinheiro assim,
eles compra um negócio pra todo mundo. Se come e fica de marra
a gente não deixa, todo mundo é irmãozinho. (LEITE, 2001, p. 168)

A rua possibilita que cada criança ou adolescente se identifique com


seus pares que são provenientes do mesmo universo de miséria e que estão
na rua em busca sobrevivência. Formam grupos que brincam, namoram, rou-
bam, pedem dinheiro e/ou alimentos e sobrevivem da caridade, do assisten-
cialismo e do lixo. Os lações entre os grupos são tão fortes que fazem com que
a vida coletiva na rua substitua os vínculos familiares. Assim,
O rompimento dos vínculos familiares possibilita a composição de
outros laços de afetividade, fazendo surgir uma família unida pela
dor, pela alegria e pela necessidade de viver e sobreviver na e da
rua. Os que residem nas ruas passam ser uma nova família, um gru-

120 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 115-127, jan./jun., 2022. (18)


FÁBIO S. DE ANDRADE; REGINALDO S. PEREIRA; ARMELINDA B. DA SILVA
Crianças e adolescentes em situação de rua: relações entre a rua, o trabalho e a escola

po unido pelas mesmas dores; um grupo em que os membros se


amam e se odeiam, se violentam e se protegem. Mas, acima de tudo,
a cultura da rua provoca relações de sociabilidade e afetividade que
os fazem iguais, unidos na luta contra um inimigo comum e pela
sobrevivência. (ANDRADE, 2019, p. 109)

A rua é, e sempre será, um espaço de perigo para os que nela buscam


a sobrevivência. No entanto, o perigo enfrentado ordinariamente nas ruas,
muitas vezes, torna-se pequeno quando comparado às manifestações de vio-
lência que se apresentam no universo familiar e nos bairros onde residem,
“[...] no qual a violência física não é só virtual.” (GREGORI, 2000, p. 71). Embora
a rua exija “esperteza” e “coragem”, nem sempre ela é necessariamente mais
violenta do que a família, a casa ou o bairro, e, muitas vezes, esses jovens saem
de casa, porque se envolveram (ou foram envolvidos) em situações onde a
permanência significa correr risco.
Para execução dessas táticas crianças e adolescentes se dividem em
diversos grupos, cada um com características próprias e regras de convivência
e sobrevivência. Os diversos grupos são formados considerando as culturas
individuais, os espaços públicos urbanos e as táticas desenvolvidas. Dentre os
diversos grupos, Andrade (2019, p. 87) destaca cinco:
1. Crianças e adolescentes que mantêm vínculo com a família e
com a escola – Os membros deste grupo mantêm fortes vínculos fa-
miliares, tem residência fixa e frequentam a escola. Vão à rua desen-
volver táticas de sobrevivência, no turno oposto ao da escola, a fim
de geraram renda para contribuir no sustento da família. Em muitos
casos o rendimento escolar é baixo, tendo em vista que as táticas
de sobrevivência provocam o esgotamento físico e mental, o que,
consequentemente, interfere na execução das atividades escolares;

2. Crianças e adolescentes que mantêm vínculo com a família e


que abandonaram a escola – Os membros deste grupo mantêm
fortes vínculos familiares e tem residência fixa, no entanto, deixaram
a escola, priorizando a ida à rua, na tentativa de garantir a sobrevi-
vência individual e familiar. Desenvolvem táticas de sobrevivência
na rua e retornam para casa ao final do dia levando os ganhos que
complementam o sustento da família;

3. Crianças e adolescentes que vão à rua acompanhados da famí-


lia – Esse grupo vai à rua em família e retorna para casa ao fim do
dia. Normalmente é composto, principalmente, por pais e filhos e as
táticas de sobrevivência são desenvolvidas em grupo, destacando
especialmente a mendicância;

4. Crianças e adolescentes que tomaram a rua como moradia, mas


ainda mantêm vínculos familiares – Esse grupo passou a residir na
rua, mas ainda mantêm vínculos com as famílias, que tem residência
fixa, visitando-as regularmente. Em muitos casos, as famílias resi-
dem em cidades diferentes das que as crianças e adolescentes em
situação de rua estão;

5. Crianças e adolescentes que perderam os vínculos familiares,

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 115-127, jan./jun., 2022. (18) 121


FÁBIO S. DE ANDRADE; REGINALDO S. PEREIRA; ARMELINDA B. DA SILVA
Crianças e adolescentes em situação de rua: relações entre a rua, o trabalho e a escola

tomando a rua como moradia – Esse grupo é formado por crianças


e adolescentes independentes. Os laços familiares foram rompidos
por diversos fatores (distância, brigas, exploração, abusos, falta de
comida etc.). Vivem em grupos que delimitam espaços, regras de
convivência e funções na rua. Desenvolvem táticas de sobrevivên-
cias diversas: roubo, mendicância, malabares, uso e venda de dro-
gas, relações sexuais consentidas ou pagas. Muitos formam famí-
lias e têm filhos, mesmo morando na rua. Há casos em que bebês
são alugados para outros membros do grupo, para serem usados
como sensibilizadores na mendicância, fazendo-se passar por pais
da criança. Assim, para eles, a rua se torna um lugar de dinâmicas
variadas.

Nessa trilha, devemos compreender a rua como um espaço onde as


crianças e adolescentes desenvolvem suas táticas de sobrevivência, onde fa-
zem novas amizades, onde conciliam trabalho, educação e lazer. Algumas, pela
distância da moradia ou problemas familiares, nem retornam às suas casas.

A rua e o lugar da escola


A professora era muito bruta, xingava muito e me chamava de retar-
dado e sujo. Um dia briguei com uns filhinhos de papai, porque eles
me chamaram de “negro fedido”. Bati neles e fugi. Eles deram queixa
na escola. A diretora chamou minha mãe para dar queixa de mim. Aí
nunca mais voltei lá. Fiquei triste porque perdi a merenda. Mas, da
escola, nem senti falta (ATAIDE, 1996, p. 18).

A citação acima, extraída do livro “Joca: um menino de rua”, escrito por


Yara Dulce Bandeira de Ataíde, revela o cotidiano escolar de várias crianças e
adolescentes em situação de pobreza no Brasil. Quando falamos sobre o coti-
diano e sobre a rotina escolar de crianças e adolescentes, pensamos na escola
e em seu papel no acolhimento, inclusão e respeito às diferenças, diversida-
des e saberes. Em nosso contexto, a escola é vista como espaço de formação
para a vida adulta e de aquisição de sabres necessários para a vida em socie-
dade, dentro de um modelo de cidadania elaborado pelo Estado, sendo este o
principal responsável por sua oferta gratuita e com qualidade. Com base nos
artigos 205 e 206 da Constituição Federal,
Art. 205 - A educação, direito de todos e dever do Estado e da famí-
lia, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade,
visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Art. 206 - O ensino será ministrado com base nos seguintes prin-
cípios: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na
escola; II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o
pensamento, a arte e o saber; (BRASIL, 2010)

Na prática, a escola ainda é um espaço que intenciona um modelo pa-

122 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 115-127, jan./jun., 2022. (18)


FÁBIO S. DE ANDRADE; REGINALDO S. PEREIRA; ARMELINDA B. DA SILVA
Crianças e adolescentes em situação de rua: relações entre a rua, o trabalho e a escola

drão de educando, construído social e culturalmente, que, ao ser inserido em


instituições educacionais, é capaz de suportar suas regras e rotinas e de ab-
sorver o conteúdo programático ofertado. Essa mesma escola também excluí
os alunos e alunas que, dentro do padrão série/idade, não estão prontos para
se “encaixarem” em um modelo de educando previamente formatado. Assim,
ela cria um sistema de expulsão denominado evasão.
Para as crianças e adolescentes, acostumadas à liberdade das ruas, in-
serir-se em uma escola – tendo que ficar durante horas presas a uma sala de
aula e obedecer às normas institucionais, às quais ainda não estão acostuma-
das – pode ser algo extremamente desestimulante. Muitas nunca frequenta-
ram a escola por falta de tempo, devido às atividades desenvolvidas na rua, ou
por não a verem como necessária. As famílias, maioria compostas por pessoas
que pouco ou nunca frequentaram uma escola, deixam a educação escolar
das crianças e adolescentes em segundo plano frente à necessidade de sobre-
vivência diária, buscando nas ruas alimento e dinheiro.
Na tentativa de incluir as crianças e adolescentes em situação de rua
no ambiente escolar, o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990),
impõe obrigatoriedades ao poder público e incentiva a vocação filantrópica,
fazendo surgir programas e projetos sociais, desenvolvidos pelos estados e
municípios, por organizações não governamentais e grupos sociais. Tais ações
objetivam a retirada dessas crianças e adolescentes da rua, a construção de
um novo projeto de vida e a inserção das mesmas na escola e na família. Con-
tudo, esses projetos e programas desenvolvem atividades educativas com-
plementares fora do ambiente escolar e não substituem a escola que é a única
instituição autorizada a certificar o individuo como um “ser educado”. Aqui
ganha força o que Saviani (1998, p. 157) chamou de hipertrofia da escola, em
que a mesma passa a absorver todas as funções educativas que antes eram
desenvolvidas fora do ambiente escolar. O mesmo autor também afirma que,
[...] a escola é uma das formas de educação, uma entre muitas e, en-
tre estas, não é a principal. Educa-se através de múltiplas organiza-
ções, não apenas através da escola. Educa-se, por exemplo, através
dos sindicatos, dos partidos, das associações dos mais diversos ti-
pos, através dos clubes, do esporte, dos clubes de mães. Educa-se
através do trabalho, através da convivialidade do relacionamento
informal das pessoas entre si. Daí se considera que a escola é uma
entre essas muitas formas de educar e não é a que tem maior peso.
(SAVIANI, 1998, p. 158)

A escola que temos hoje não está preparada para acolher e trabalhar
com os saberes e as especificidades apresentadas pelas crianças e adolescen-
tes em situação de rua. Para Graciani (2005, p. 167), quando as crianças e ado-
lescentes saem das ruas e entram na escola, suas atitudes, enfrentamentos e
brincadeiras “[...] são rotuladas de inadequadas e dificultadoras das aprendi-

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 115-127, jan./jun., 2022. (18) 123


FÁBIO S. DE ANDRADE; REGINALDO S. PEREIRA; ARMELINDA B. DA SILVA
Crianças e adolescentes em situação de rua: relações entre a rua, o trabalho e a escola

zagens escolares, e invariavelmente vistas como sinal de impertinência, indis-


ciplina ou falta de atenção”. Isso prova a incapacidade da escola em lidar com
o diferente, principalmente com os que carregam os estigmas históricos de
“menor”, “menino de rua”, “pivete”, “marginal” e “delinquente”.
Em uma escola, que compreende que os alunos e alunas são diferen-
tes e suas necessidades de aprendizagem também, a sala de aula não deve ser
o palco para “apresentação” dos professores e professoras; mas sim, um local
de construção do conhecimento, numa relação de ensino-aprendizagem que
envolve a valorização dos diversos saberes. Para se tornar inclusiva, a escola
precisa romper com os estigmas que discriminam as crianças e adolescentes
em situação de rua e as colocam em um sistema de vigilância que as conside-
ra suspeitas quando atos ilícitos são praticados no ambiente escolar.
Sabemos que a educação tem um imenso poder na formação de seres
críticos, mas deve atuar compreendendo e valorizando as diferenças, as diversi-
dades e singularidades. Precisa acreditar que as crianças e adolescentes em situ-
ação de rua possuem um grande potencial de aprendizagem; o que lhes faltam
são oportunidades concretas. Essas oportunidades, a que nos referimos, não po-
dem vir isoladas no campo da escolarização; elas devem estar inseridas em um
contexto amplo, envolvendo geração de emprego e renda, saneamento básico,
moradia, saúde, alimentação etc. Tais medidas não devem ser “assistencialistas”
ou “paternalistas” e sim discutidas e desenvolvidas com a participação dos alunos
e alunas, considerando seus conhecimentos construídos na vida cotidiana, pois
“[...] quem não apostar que existem nas crianças e nos jovens com quem trabalha-
mos, qualidades que, muitas vezes, não se fazem evidentes nos seus atos, não se
presta, verdadeiramente, ao trabalho educativo” (COSTA, 1999, p. 20).
Sabemos que a escola supervaloriza um processo de ensino e aprendi-
zagem que objetiva diminuir a repetência, a evasão e o analfabetismo, porém
o modelo pedagógico imposto pelo Estado, muitas vezes, excluí aqueles que
não estão acostumados à rotina escolar. Para Mill (1991, p. 118), a educação
tem um importante papel na formação e no condicionamento do indivíduo,
sendo ela responsável por educar gradativamente a sociedade, convencendo
e persuadindo ao tratar das virtudes que um indivíduo em um ambiente de
convivência coletiva deve ter. Com isso, surge a pergunta: Qual é a essência de
uma escola de qualidade? Ao respondê-la, Milet (1999, p. 17) afirma que a es-
cola deve ser encarada “[...] como um espaço de produção e disseminação da
cultura, de conhecimentos e principalmente de luta contra a desigualdade”.

A rua enquanto espaço educativo


Mesmo com todos os riscos que a rua possui, ela deve ser compreen-

124 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 115-127, jan./jun., 2022. (18)


FÁBIO S. DE ANDRADE; REGINALDO S. PEREIRA; ARMELINDA B. DA SILVA
Crianças e adolescentes em situação de rua: relações entre a rua, o trabalho e a escola

dida como espaço educativo capaz de potencializar saberes. Nela as crianças


e adolescentes desenvolvem uma sabedoria única, fruto das vivências diárias
e das relações de sociabilidade. Vivenciam uma educação construída pelas
táticas de sobrevivência que desenvolvem com o objetivo de ocupar e do-
minar o espaço público urbano. Operações matemáticas, leitura de símbolos,
dramaturgia... são também saberes adquiridos e aprimorados nas ruas.
A princípio, devemos compreender a criança e o adolescente em
situação de rua como sujeitos formados em espaços ímpares, dife-
rentes dos que comumente elegemos como educativos e próprios
para o desenvolvimento humano. Entre as várias atividades desen-
volvidas pelas crianças e adolescentes em situação de rua está a
abordagem que fazem às pessoas que transitam pelas vias públicas
e que representam uma percentagem considerável na captação de
recursos que possibilitam a sua sobrevivência e/ou de suas respecti-
vas famílias ou grupos. Essas abordagens, reconhecidas aqui como
táticas de sobrevivência, são compreendidas comumente como
mendicância. (ANDRADE, 2019. p. 102).

Elas possuem uma enorme capacidade de articular artisticamente as


palavras e criar histórias que podem sensibilizar e encantar seu público-alvo.
As histórias por elas tecidas encantam, emocionam e comovem. Não há apenas
uma narração simples, há a incorporação teatral do personagem da história.
Esses saberes, pouco compreendidos, fazem com que, em muitos casos,
as crianças e adolescentes em situação de rua tenham um desenvolvimento
cognitivo superior quando comparado ao de outras crianças e adolescentes da
mesma faixa etária. Elas adaptam a natureza, por meio das táticas, para satisfa-
zer suas necessidades humanas no mundo capitalista. Dessa forma,
Não podemos também desconsiderar o poder de aprendizagem e
criatividade dessas crianças e adolescentes em situação de rua, pois,
visualizamos suas táticas de sobrevivência entrelaçadas aos códigos
da moralidade estipulados pelo Estado. Eles conhecem as normas e
códigos fornecidos pelo Estado, mas só as respeitam quando lhes
fornecem algum benefício. (ANDRADE, 2019. p. 96).

Também não podemos esquecer que as crianças e adolescentes em


situação de rua foram, e continuam sendo, vítimas do descaso do sistema ca-
pitalista. Apesar de tantas mudanças ocorridas na legislação brasileira, que
teoricamente garantem uma educação gratuita e de qualidade para todos,
muitas crianças e adolescentes ainda estão fora da escola. Sendo assim, consi-
deramos importante refletir sobre o modelo de escola que temos. Para as que
estão em situação de rua, “O espaço da rua, duramente conquistado, constitui
o seu mundo e a sua maior lição de vida é a única “escola” que passam e fre-
quentar sem evadir.” (ANDRADE, 2019, p. 109). A rua acolhe e as torna iguais, o
que frequentemente não acontece na escola.
Em seu processo de mudança, a escola deve compreender as diferen-

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 115-127, jan./jun., 2022. (18) 125


ças e singularidades e promover a inclusão positiva das crianças e adolescen-
tes em situação de rua, pois, parafraseando Graciani (2014, p. 31), fazer peda-
gogia hoje é confrontar-se com a diferença, superar o preconceito, promover
a emancipação e, principalmente a justiça social.

Referências
ANDRADE, Fábio Santos de. Crianças e adolescentes em situação de rua no
Brasil: táticas de sobrevivência e ocupação do espaço publico urbano. Jun-
diaí-SP: Paco Editorial, 2019.

ANDRADE, F. S. de. Diversidade, sociabilidade e superioridade masculina no


cotidiano da rua. In. SANTOS, João Diógenes Ferreira dos; CARVALHO FILHO,
Milton Júlio de; CUNHA, Tânia Rocha Andrade (org.). Memórias, masculinida-
des e feminidades. Uberlândia: Navegando Publicações, 2021.

ATAIDE, Yara Dulce Bandeira de. Joca: um menino de rua. São Paulo: Loyola,
1996.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei Federal n. 8069, de 13 de


julho de 1990. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, 14
de julho de 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
l8069compilado.htm. Acesso em 22 de jun. 2021.

BRASIL. Constituição da República Federativa: Texto constitucional promul-


gado em 5 de outubro de 1988, com alterações adotadas pelas Emendas
Constitucionais. Brasília: Senado Federal, 2010.

COSTA, Antônio Carlos Gomes da. Aventura pedagógica: caminhos e desca-


minhos de uma ação educativa. Belo Horizonte: Modus Faciendi, 1999.

FEFFERMANN, Marisa. Vidas arriscadas: o cotidiano dos jovens trabalhadores


do tráfico. Petrópolis: Vozes, 2006.

FERREIRA, Rosa Maria Fisher. Meninos de rua: valores e expectativas de meno-


res marginalizados em São Paulo. São Paulo: Comissão Justiça e Paz/CEDEC,
1979.
FÁBIO S. DE ANDRADE; REGINALDO S. PEREIRA; ARMELINDA B. DA SILVA
Crianças e adolescentes em situação de rua: relações entre a rua, o trabalho e a escola

GRACIANI, Maria Stela Santos. Pedagogia social de rua. 5. ed. São Paulo: Cor-
tez; Instituto Paulo Freire, 2005.
GRACIANI, Maria Stela Santos. Pedagogia social. 1. ed. São Paulo: Cortez,
2014.

GREGORI, Maria Filomena. Viração: experiências de meninos nas ruas. São


Paulo: Companhia das Letras, 2000.

LEITE, Lígia Costa. Meninos de rua: a infância excluída no Brasil. São Paulo:
Atual, 2001.

MILET, Maria Eugênia. Brincadeira com assunto dentro. Salvador: Miac, 1999.

MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1991.

SAVIANI, Demerval. O trabalho como princípio educativo frente às novas


tecnologias. In: FERRETTI, Celso João et al. Novas tecnologias, trabalho e edu-
cação: um debate multidisciplinar. 4. ed. Petrópolis: Vozes. 1998.

SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Pau-


lo: Companhia das Letras, 2012.

TELLES, Vera da Silva. Direitos sociais: afinal do que se trata? 2. reimpr. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2006.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 115-127, jan./jun., 2022. (18) 127


População em situação de
rua e o direito de acesso aos
serviços de saúde

§ La población sin hogar y el derecho de acceso a los


servicios de salud

§ Homeless population and the right of access to health


services

Márcia Astrês Fernandes1


Amanda Alves de Alencar Ribeiro2

Resumo: O processo de exclusão social se reflete diretamente no acesso às


políticas públicas. Ainda que existam avanços legais na delimitação dos direi-
tos das populações em situação de vulnerabilidade, as violações às garantias
e aos direitos básicos de cidadania são recorrentes e interferem diretamente
no acesso às políticas públicas, especialmente em relação aos serviços de saú-
de. O presente artigo tem o objetivo centrado na investigação analítica dos
direitos de acesso aos serviços de saúde pelas populações em situação de
rua, no Brasil, construídos a partir da leitura crítica sobre a Política Nacional
para a População em Situação de Rua (PNPSR) e de investigações relacionadas
à temática, disponíveis no acervo eletrônico da Biblioteca Virtual em Saúde
(BVS), nas seguintes bases de dados: Literatura Latino-Americana e do Caribe

1 Enfermeira. Mestrado em Enfermagem pela UFRJ e Doutorado em Ciências (Área Enfermagem Fundamental)
pela USP. Professora da Universidade Federal do Piauí (UFPI). m.astres@ufpi.edu.br
2 Enfermeira. Mestranda em Enfermagem pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). dealencar.ribeiro@ufpi.edu.br

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 129-140, jan./jun., 2022. (18) 129


MÁRCIA ASTRÊS FERNANDES; AMANDA ALVES DE ALENCAR RIBEIRO
População em situação de rua e o direito de acesso aos serviços de saúde

em Ciências da Saúde, BDENF-Enfermagem e Medical Literature Analysis and


Retrieval System Online. Foram utilizadas, também, outras fontes de informa-
ção, como publicações e documentos do domínio eletrônico do Ministério
da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Ainda que a política nacional
represente um importante expoente das conquistas legais desse grupo, os
direitos previstos para a população em situação de rua não são garantidos de
forma inclusiva e integral em todos os estados e municípios, com destaque
maior para a fragilidade na adesão ao Sistema Único de Saúde. Nesse contex-
to, as readequações nas ofertas dos serviços de saúde, a exemplo da busca
ativa no espaço das ruas, readequação do fluxo de acesso e atendimento nos
serviços de atenção primária à saúde, são fundamentais para a expansão dos
cuidados.

Palavras-chave: População em situação de rua. Acesso aos serviços de saúde.


Direito à saúde.

Resumen: El proceso de exclusión social se refleja directamente en el acceso


a las políticas públicas. Si bien existen avances jurídicos en la delimitación de
los derechos de las poblaciones vulnerables, las violaciones a las garantías y
derechos básicos de ciudadanía son recurrentes e interfieren directamente
en el acceso a las políticas públicas, especialmente en relación a los servicios
de salud. El presente artículo tiene el objetivo centrado en la investigación
analítica de los derechos de acceso a los servicios de salud de las poblaciones
sin hogar, en Brasil, construidos a partir de una lectura crítica de la Política
Nacional para la Población Sin Hogar (PNPSR) e investigaciones relacionadas
con el tema, disponible en el acervo electrónico de la Biblioteca Virtual en
Salud (BVS), en las siguientes bases de datos: Literatura Latinoamericana y del
Caribe en Ciencias de la Salud (LILACS), BDENF-Sistema de Análisis y Recupe-
ración de Literatura Médica y de Enfermería en Línea (MEDLINE). También se
utilizaron publicaciones y documentos del dominio electrónico del Ministerio
de la Mujer, la Familia y los Derechos Humanos. Si bien la política nacional
representa un exponente importante de los logros jurídicos de este grupo,
los derechos previstos para la población en situación de calle no son garan-
tizados de manera incluyente e integral en todos los estados y municipios,
con mayor énfasis en la fragilidad en la adhesión al Sistema Único de Salud.
En este contexto, los reajustes en la oferta de servicios de salud, como la bús-
queda activa en las calles, el reajuste del flujo de acceso y atención en los
servicios de atención primaria de salud, son fundamentales para la expansión
de la atención.

130 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 129-140, jan./jun., 2022. (18)


MÁRCIA ASTRÊS FERNANDES; AMANDA ALVES DE ALENCAR RIBEIRO
População em situação de rua e o direito de acesso aos serviços de saúde

Palabras clave: Población sin hogar. Acceso a los servicios de salud. Derecho
a la salud.

Abstract: The process of social exclusion is directly reflected in the access to


public policies. Although there are legal advances in the delimitation of the ri-
ghts of vulnerable populations, violations of guarantees and basic citizenship
rights are recurrent and directly interfere with access to public policies, espe-
cially in relation to health services. The present article has the objective cen-
tered on the analytical investigation of the rights of access to health services
by homeless populations, in Brazil, built from a critical reading of the Natio-
nal Policy for the Homeless Population (PNPSR) and investigations related to
the theme, available in the electronic collection of the Virtual Health Library
(VHL), in the following databases: Latin American and Caribbean Literature on
Health Sciences (LILACS), BDENF-Nursing and Medical Literature Analysis and
Retrieval System Online (MEDLINE). Publications and documents from the
electronic domain of the Ministry of Women, Family and Human Rights were
also used. Although the national policy represents an important exponent of
the legal achievements of this group, the rights provided for the homeless po-
pulation are not guaranteed in an inclusive and integral way in all states and
municipalities, with greater emphasis on the fragility in the adhesion to the
System. Single Health. In this context, readjustments in health service offerin-
gs, such as the active search in the streets, readjustment of the flow of access
and care in primary health care services, are fundamental for the expansion
of care.

Keywords: Homeless population. Access to health services. Right to health.

Introdução
O processo de exclusão social, e as circunstâncias que o compõem,
mantém persistentes os ciclos de marginalização de determinados grupos
populacionais na sociedade, como a População em Situação de Rua (PSR). O
estudo mais recente sobre o panorama atual dessa população indica que exis-
tem aproximadamente 222 mil pessoas em situação de rua no Brasil. A PSR
está exposta a condições de extrema pobreza social e econômica. Além disso,
o distanciamento das famílias, o preconceito, a violência e a dificuldade no

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 129-140, jan./jun., 2022. (18) 131


MÁRCIA ASTRÊS FERNANDES; AMANDA ALVES DE ALENCAR RIBEIRO
População em situação de rua e o direito de acesso aos serviços de saúde

acesso aos serviços públicos causam extenso impacto à saúde física e mental
(SILVA et al., 2021).
As circunstâncias que envolvem esse processo social são complexas,
de causas diversificadas e multifatoriais, não podendo ser restrita a somen-
te um expoente. A esse cenário, evidenciam-se variáveis de forte influência
como as dimensões relacionadas a determinantes sociais da saúde (DSS) das
condições de vida: educação, desemprego, acesso aos serviços de saúde e
moradia; além disso, integram-se a esse contexto os fatores psicológicos, as
condições socioeconômicas, a inclusão e participação na sociedade (LIMA et
al., 2020).
Ainda que os avanços legais tenham sido relevantes na delimitação
dos direitos das populações em situação de vulnerabilidade, as violações às
garantias e aos direitos básicos de cidadania são recorrentes e interferem di-
retamente no acesso às políticas públicas, especialmente em relação aos ser-
viços de saúde.
Nessa perspectiva, a Política Nacional para a População em Situação
de Rua - PNPSR, (BRASIL, 2009), foi desenvolvida com objetivo de assegurar o
acesso amplo, simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as
políticas públicas do país; em suas diretrizes, instituiu pontos importantes para
atender às necessidades específicas das PSR, como trabalho, assistência social,
educação, segurança alimentar e nutricional, cultura e saúde (BRASIL, 2022).
Ainda que a PNPSR represente um importante expoente das conquis-
tas legais desse grupo, os direitos previstos para a PSR não são garantidos de
forma inclusiva e integral em todos os estados e municípios, com destaque
maior para a fragilidade na adesão ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Essa população apresenta baixos índices de acesso aos serviços de
saúde e, de modo geral, associados a situações agudas e emergentes, de do-
enças ou agravos que impossibilitam ou reduzam a mobilidade e sem neces-
sidade de encaminhamento de outros serviços. As dificuldades de acesso aos
serviços de saúde e à educação em saúde, entrelaçados principalmente ao
preconceito e à discriminação que a PSR está continuamente exposta, são de-
terminantes fatores impeditivos relacionados ao acesso e à procura de servi-
ços de saúde, aumentando os riscos de doenças, agravos e complicações de
saúde nessa população (VALE; VECCHIA, 2020).
A participação da PSR nos serviços de saúde se depara, muitas vezes,
com barreiras estruturais similares em diversos pontos da rede de atenção à
saúde (necessidade da apresentação de documentos e comprovação de resi-
dência, dentre outros entraves relacionados). Entretanto, a atuação da aten-
ção primária – por meio das equipes de consultório de rua) e/ou de equipes
especializadas, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e serviços de

132 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 129-140, jan./jun., 2022. (18)


MÁRCIA ASTRÊS FERNANDES; AMANDA ALVES DE ALENCAR RIBEIRO
População em situação de rua e o direito de acesso aos serviços de saúde

assistência social – desempenha papel importante na facilitação do acesso


dessas pessoas aos serviços de saúde (ANDRADE et al., 2022).

Metodologia
Trata-se de um estudo teórico-reflexivo, realizado dentro da aborda-
gem de revisão narrativa da literatura científica. As buscas por publicações
nessas plataformas ocorreram no período de fevereiro a abril de 2022. Os cri-
térios de inclusão foram artigos completos, guias, informativos e/ou mono-
grafias, em um recorte temporal de 2017 a 2022. Foram excluídos os docu-
mentos indisponíveis gratuitamente para leitura ou que não apresentaram
associação aos aspectos temáticos.
Delimitou-se como objetivo central a investigação analítica dos direi-
tos de acesso aos serviços de saúde pelas populações em situação de rua no
Brasil, construído a partir da leitura crítica sobre a Política Nacional para a Po-
pulação em Situação de Rua (PNPSR) e de artigos e documentos relacionados
à temática, disponíveis no acervo eletrônico da Biblioteca Virtual em Saúde
(BVS), nas seguintes bases de dados: LILACS (Literatura Latino-Americana e
do Caribe em Ciências da Saúde), BDENF-Enfermagem e MEDLINE (Medical
Literature Analysis and Retrieval System Online).
Para a melhor delimitação do assunto de pesquisa, utilizou-se a busca
de pesquisas nas bases a partir dos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS/
MeSH): “pessoas em situação de rua” (homeless persons), “acesso aos serviços
de saúde (health services accessibility), “política de saúde” (health policy), Bra-
sil (Brazil); e, a partir desse delineamento, delimitou-se os estudos que aten-
diam aos requisitos estabelecidos para seleção e construção do manuscrito.
Além disso, foram utilizadas também outras fontes de informação, como pu-
blicações e documentos do domínio eletrônico do Ministério da Mulher, da
Família e dos Direitos Humanos.

Referencial temático
O direito à saúde foi reconhecido pelo Artigo 12 do Pacto Internacio-
nal sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) da Organização
das Nações Unidas (ONU), em 19663. Segundo o texto, a saúde foi estabele-

3 Disponível em: https://www.oas.org/dil/port/1966%20Pacto%20Internacional%20sobre%20os%20Direitos%20


Econ%C3%B3micos,%20Sociais%20e%20Culturais.pdf. Acesso em: 9 mai 2022.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 129-140, jan./jun., 2022. (18) 133


MÁRCIA ASTRÊS FERNANDES; AMANDA ALVES DE ALENCAR RIBEIRO
População em situação de rua e o direito de acesso aos serviços de saúde

cida como um direito de todo indivíduo, no mais elevado nível possível de


saúde física e mental. Entretanto, as estruturas sociais, econômicas, políticas e
jurídicas dos Estados podem ser fatores impeditivos no alcance integral des-
se direito. Ao compreender a saúde como um direito humano, as exigências
transcendem a percepção de apenas consultas médicas e/ou exames e se
aproximam de todas as ações e serviços necessários para a garantia dos con-
dicionantes e determinantes de saúde (VIEGAS; VENTURA; VENTURA, 2022).
As desigualdades sociais causam impacto direto no número de pesso-
as que necessitam de proteção social, incluindo o acesso aos diferentes ser-
viços públicos – como os serviços de saúde. A invisibilidade social, política e
a burocratização dos serviços de saúde no atendimento à PSR no processo
saúde-doença contribuem para o agravo dos riscos à saúde. A exposição às
precárias condições de saúde, higiene, moradia, exposição a condições climá-
ticas (baixas temperaturas, chuvas) e/ou esforços físicos extenuantes podem
levar as surgimento e/ou agravamento de quadros infecciosos, principalmen-
te de doenças pulmonares (FERNANDES et al., 2020).
Em relação aos fatores motivacionais associados à situação de rua, o
consumo de substâncias psicoativas (SPA) e as condições de saúde autorre-
feridas (sofrimento mental, sem especificação por patologia) são a principal
causa relatada. Em seguida, aparecem as questões socioeconômicas, entre-
laçadas à complexidade do desemprego e das dificuldades nas atividades do
mercado informal e, também, ao afastamento/ausência de relação familiar
(SANTOS; FERNANDES, 2021b).
Outras questões menos prevalentes – como problemas de saúde fí-
sica, divórcio / término de relacionamento, abuso /violência doméstica / de
gênero/conjugal – também devem ser analisadas para o entendimento da
complexidade que circunda essa problemática e para o delineamento de in-
tervenções direcionadas. É importante entender que o avanço do indivíduo
para a situação de rua se correlaciona a uma série de adversidades que, em
conjunto, contribuem para um processo final de ruptura total das relações
desses indivíduos com o seu entorno (SANTOS; FERNANDES, 2021b).
Nesse contexto, a PNPSR instituiu diretrizes importantes para atender
às necessidades específicas das pessoas em situação de rua, como trabalho,
assistência social, educação, segurança alimentar e nutricional, cultura e saú-
de. A garantia de acesso aos serviços públicos, incluindo os serviços de saúde,
compõe uma de suas diretrizes. Diante disso, faz-se necessário refletir sobre o
acesso aos serviços de saúde por esse público, pois apesar de a saúde ser uma
garantia constitucional (CF/2008), o acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS)
pelas populações mais vulneráveis, com adequação dos serviços e ações exis-
tentes, ainda está muito aquém de uma perspectiva adequada de atenção à

134 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 129-140, jan./jun., 2022. (18)


MÁRCIA ASTRÊS FERNANDES; AMANDA ALVES DE ALENCAR RIBEIRO
População em situação de rua e o direito de acesso aos serviços de saúde

saúde e promoção da equidade (VALLE; FARAH, 2020).


As dificuldades enfrentadas pelas PSR para a sua inserção no sistema
de saúde brasileiro são determinantes para a continuidade ou não dos aten-
dimentos de saúde. Dentre os motivos mais relevantes que impedem, ou atra-
sam, a procura por um serviço de saúde, destacam-se: o preconceito e a discri-
minação relacionados às condições de higiene, a falta de documentação para
identificação e cadastro do usuário, o longo período de espera pelo atendi-
mento e a fragilidade da escuta qualificada e do acolhimento das demandas e
necessidades de saúde dessa população. Nota-se, portanto, a interrupção dos
princípios da universalidade do acesso aos serviços de saúde, da equidade no
acesso às ações e serviços de saúde e da integralidade da assistência – base
constituinte do Sistema Único de Saúde (SUS) (HINO; SANTOS; ROSA, 2018).
Outra vertente de discussão direciona-se à análise do acesso dos ser-
viços para a população feminina em situação de rua. No Brasil, a fragilidade
dos dispositivos voltados a essa população está diretamente relacionada à
postura de parte dos profissionais de saúde e da assistência, sendo um dos
principais fatores que influenciam na qualidade do serviço oferecido. Muitas
mulheres em situação de rua se sentem julgadas ou incompreendidas pelos
profissionais e não se sentem incluídas nas instituições e políticas públicas
criadas em nome dessa população. Além disso, não reconhecem as institui-
ções de saúde como um recurso principal de suporte, recorrendo à rede am-
bulatorial e de urgência apenas em situações mais graves (COLDIBELI; PAIVA;
BATISTA, 2021).
Nessa perspectiva, um estudo brasileiro realizado em uma residência
de acolhimento para mulheres em situação de rua de Belo Horizonte/MG evi-
denciou as altas prevalências de infecções sexualmente transmissíveis, asso-
ciadas a comportamentos sexuais de risco. Apontou-se a prevalência positiva
de até 13,1% para o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV). Desse percen-
tual, 70% referiram terem mantido relações sexuais sem o uso de preservativo
em pelo menos uma relação sexual vaginal, oral ou anal (SANTOS; FERNAN-
DES, 2021a).
Em acréscimo, é de relevante importância a discussão dos obstáculos
para o acesso aos serviços de saúde mental. Essas barreiras estão, principal-
mente, relacionadas a dificuldades organizacionais, resistências de profissio-
nais para o trabalho de busca ativa e entraves no acolhimento adequado nas
unidades de atendimento. A compreensão crítica da interface entre as políti-
cas públicas e a atenção à saúde da população em situação de rua, a partir do
conhecimento das situações e necessidades de saúde desse grupo específico,
é a base de intervenções significativas que correlacionem o entendimento da
complexidade das questões de saúde à organização de estratégias singulares

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 129-140, jan./jun., 2022. (18) 135


MÁRCIA ASTRÊS FERNANDES; AMANDA ALVES DE ALENCAR RIBEIRO
População em situação de rua e o direito de acesso aos serviços de saúde

para cada demanda (HINO; SANTOS; ROSA, 2018).


Embora muitos entraves no acesso à saúde pela PSR sejam ainda
persistentes, algumas estratégias de intervenção têm conseguido êxito no
acolhimento efetivo e na ampliação do acesso desse grupo aos serviços. Nes-
se contexto, a Portaria nº. 122 (BRASIL, 2011), publicada pelo Ministério da
Saúde e que definiu as diretrizes de funcionamento e organização das eCR,
estabeleceu-se como um importante instrumento para a ampliação e a quali-
ficação do atendimento às necessidades de saúde dessa população (CHAVES
JÚNIOR; AGUIAR, 2020).
Nesse sentido, segundo a Portaria, as eCR integram a atenção básica da
Rede de Atenção Psicossocial e desenvolvem ações de Atenção Básica em Saúde
de acordo com os fundamentos e as diretrizes definidas na Política Nacional de
Atenção Básica; além disso, devem trabalhar em caráter multiprofissional para
manejar os diferentes problemas e necessidades de saúde da PSR, incluindo
atividades de busca ativa, avaliação em saúde física e mental e cuidado integral
relacionado ao uso de substâncias psicoativas (CHAVES JUNIOR; AGUIAR, 2020).
Destaca-se ainda que as ações das eCR não estão direcionadas somen-
te às demandas de saúde-doença dessa população, mas também à amplia-
ção do acesso aos serviços de saúde e assistência social, com disponibiliza-
ção de atividades básicas e essenciais como a solicitação do cartão do SUS,
por exemplo. Essa movimentação pode garantir e agilizar o agendamento de
consultas, vacinação e acompanhamento para o atendimento em níveis mais
especializados do sistema de saúde (CHAVES JUNIOR; AGUIAR, 2020).
Nessa perspectiva, é importante mencionar o impacto que a pande-
mia pela COVID-19 teve sobre a PSR e a relevância das equipes de abordagem
social e de saúde para minimizar os agravos das circunstâncias. A pandemia
elevou ainda mais a vulnerabilidade das pessoas que vivem em situação de
rua, ampliando o contingente populacional e mudando o perfil dessa parcela
da população, com novos integrantes. São trabalhadores que perderam seus
empregos e residências em decorrência da crise econômica e do atual cenário
do país (MONTEIRO, 2021).
Na prática, a atuação das equipes de abordagem social e de saúde, da
distribuição de alimentos e da oferta de equipamentos públicos de higiene
tornou-se base para a contenção da situação. Ademais, as ações da eCR – con-
centradas na circulação por pontos estratégicos no território-rua, identifican-
do pessoas com sintomas de síndromes gripais que são acompanhadas à UBS
para atendimento médico – fazem parte da atuação da Atenção Primária à
Saúde (APS) no atendimento à PSR (MACIEL; SILVA; SOUZA, 2020).

136 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 129-140, jan./jun., 2022. (18)


MÁRCIA ASTRÊS FERNANDES; AMANDA ALVES DE ALENCAR RIBEIRO
População em situação de rua e o direito de acesso aos serviços de saúde

Considerações finais
Diante da análise dos contextos que abrangem a inserção da PSR nos ser-
viços de saúde, é importante destacar que, apesar da disponibilização de atendi-
mento e recursos de saúde, o preconceito e as barreiras de acesso da PSR a estes
serviços são determinantes na ruptura do ciclo de assistência efetiva ao grupo.
Evidencia-se, portanto, que as readequações nas ofertas dos serviços de
saúde são fundamentais para a expansão do acesso, bem como para a continui-
dade dos atendimentos a essa população. Para isso, delimitam-se como ativida-
des principais: 1) busca ativa no espaço das ruas (expansão das eCR, por exem-
plo); 2) identificação e compreensão das singularidades desse grupo durante os
atendimentos (com o objetivo de afastar comportamentos e concepções que
perpetuem o preconceito e as barreiras sociais para o acesso); e 3) esclareci-
mento do fluxo de atendimento à PSR nas unidades da atenção primária, de
modo que os profissionais tenham o entendimento de que os serviços à essa
população não se restringem somente aos consultórios de rua e que as unida-
des básicas de saúde são parte integrante dos direitos à saúde no Brasil.
Destaca-se que as citadas adequações dos serviços e ações depen-
dem principalmente do preparo, do acolhimento e do estabelecimento de
vínculos efetivos entre os profissionais de saúde e a PSR. O vínculo inclusivo,
voltado à humanização do cuidado, vai além das avaliações técnicas, de ob-
servação de aspectos físicos e biológicos, as nuances psicoemocionais tam-
bém devem ser foco das análises de saúde.

Referências
ANDRADE, Rebeca de et al. O acesso aos serviços de saúde pela População
em Situação de Rua: uma revisão integrativa. Saúde debate, Rio de Janeiro,
v. 46, n. 132, p. 227-239, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-
1104202213216. Acesso em: 21 abr. 2022.

BRASIL. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. População


em Situação de Rua. 2022. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/na-
vegue-por-temas/populacao-em-situacao-de-rua. Acesso em: 1 fev. 2022.

BRASIL. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto nº 7.053 de 23 de


dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação
de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e
dá outras providências. Legislação. Disponível em: http://www.planalto.gov.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 129-140, jan./jun., 2022. (18) 137


MÁRCIA ASTRÊS FERNANDES; AMANDA ALVES DE ALENCAR RIBEIRO
População em situação de rua e o direito de acesso aos serviços de saúde

br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7053.htm. Acesso em: 9 mar.


2022.

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 122 de 25 de dezembro de 2011.


Define as diretrizes de organização e funcionamento das Equipes de Con-
sultório na Rua. Legislação. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/
saudelegis/gm/2012/prt0122_25_01_2012.html. Acesso em: 9 mar. 2022.

CHAVES JÚNIOR, Paulo Roberto; AGUIAR, Ricardo Saraiva. Compreensão e


entendimento de saúde vivenciado por pessoas em situação de rua. Nursing,
São Paulo, 23(262): 3688-3692, 2020. Disponível em: http://www.revistanur-
sing.com.br/revistas/263/pg31.pdf. Acesso em: 6 fev. 2022.

COLDIBELI, Larissa Pimenta; PAIVA, Fernando Santana de; BATISTA, Cássia Be-
atriz. Gênero, pobreza e saúde: revisão sistemática sobre a saúde de mulhe-
res em situação de rua. Textos & Contextos, Porto Alegre, 20(1): 38015, 2021.
Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/fass/article/
view/38015/26808. Acesso em: 6 fev. 2022.

FERNANDES, Márcia Astrês et al. População em situação de rua e a vulnerabi-


lidade no contexto da pandemia por Covid-19. In: FREITAS, Guilherme Bar-
roso Langoni de. Epidemiologia e Políticas Públicas de Saúde. 1. ed., v. 2, Irati:
Editora Pasteur, 2020. p. 162-169. Disponível em: https://editorapasteur.com.
br/wp-content/uploads/2021/07/Epidemiologia-e-Politicas-Publicas-de-Sau-
de-Vol.-2-ig0zth.pdf. Acesso em: 3 mar. 2022.

HINO, Paula; SANTOS, Jaqueline de Oliveira; ROSA, Anderson da Silva. Pes-


soas que vivenciam situação de rua sob o olhar da saúde. Rev. Bras Enferm,
Brasília, DF, p. 732-740, (Suppl 1), 2018. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/reben/a/NsHh6w97c84Sy8h9Ssybxdk/?format=pd-
f&lang=pt201. Acesso em: 3 mar. 2022.

LIMA, Diellison Layson dos Santos et al. Determinantes sociais a saúde e a


população em situação de rua: uma análise reflexiva. In: FREITAS, Guilherme
Barroso Langoni de. (org.) Teoria e prática multidisciplinar em saúde. 1. ed., v.
1, Irati: Pasteur, 2020. p. 43-50..

MACIEL, Lidiane Maria; SILVA, Marilia Goulart; SOUZA, Adriane Aparecida


Moreira. A população em situação de rua diante da pandemia: um estudo de
caso ampliado entre São José dos Campos/SP e São Paulo/SP. Revista Nacio-

138 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 129-140, jan./jun., 2022. (18)


MÁRCIA ASTRÊS FERNANDES; AMANDA ALVES DE ALENCAR RIBEIRO
População em situação de rua e o direito de acesso aos serviços de saúde

nal de Gerenciamento de Cidades, São Paulo, v. 8, n. 3, p. 205-225, 2020. Dispo-


nível em: https://publicacoes.amigosdanatureza.org.br/index.php/gerencia-
mento_de_cidades/article/view/2514/0. Acesso em: 8 mar. 2022.

MONTEIRO, Danielle. Pandemia de Covid-19 muda perfil de população em


situação de rua. Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), 2021. Disponível: https://
portal.fiocruz.br/noticia/pandemia-de-covid-19-muda-perfil-de-populacao-
-em-situacao-de-rua. Acesso em 21 abr. 2022.

SANTOS, João Gabriel Ribeiro dos; FERNANDES, Márcia Astrês. Condições


de saúde da população em situação de rua: uma reflexão-teórica. In: CON-
GRESSO INTERNACIONAL DE SAÚDE ÚNICA (INTERFACE MUNDIAL), Recife,
2021. Internacional Saúde Única (Interface Mundial). Recife: Even3, 2021a,
p. 1909-1916. Disponível em: https://even3.blob.core.windows.net/anais/
ebookcongressonacionaldesaudeunica-3ed-VERFINAL5-compactado.ebfa-
66fdd883446cac06.pdf. Acesso em: 9 mar. 2022.

SANTOS, João Gabriel Ribeiro dos; FERNANDES, Márcia Astrês. O viver em situa-
ção de rua, fatores relacionados e a associação com os aspectos sociodemográ-
ficos e econômicos dos moradores. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE SAÚDE
ÚNICA (INTERFACE MUNDIAL), Recife, 2021. Internacional Saúde Única (Interface
Mundial). Recife: Even3, 2021b, p. 1841-1849. Disponível em: https://even3.blob.
core.windows.net/anais/ebookcongressonacionaldesaudeunica-3ed-VERFINAL-
5-compactado.ebfa66fdd883446cac06.pdf. Acesso em: 9 mar. 2022.

SILVA, André Freire et al. Diagnósticos de enfermagem relacionados a agravos car-


diovasculares na população em situação de rua de São Paulo Nursing, São Paulo,
24(277): 5765-5774, jun. 2021. Disponível em: http://revistas.mpmcomunicacao.
com.br/index.php/revistanursing/article/view/1564/1774 Acesso em: 6 mar. 2022.

VALE, Aléxa Rodrigues do; VECCHIA, Marcelo Dalla. Sobreviver nas ruas: per-
cursos de resistência à negação do direito à saúde. Psicol. Estud., Maringá, 25:
e45235, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pe/a/Y8qyJYbj4nLTD-
4Qz8yNHyXM/?lang=pt. Acesso em: 6 mar. 2022.

VALLE, Fabiana Ap. Almeida Lawall; FARAH, Beatriz Francisco. A saúde de


quem está em situação de rua: (in)visibilidades no acesso ao Sistema Único.
Physis, Rio de janeiro, 30(2): e300226, 2020. Disponível em: https://www.
scielo.br/j/physis/a/W5xmkgkcjN7PNBLJTMFMMfP/?format=pdf&lang=pt.
Acesso em: 9 mar. 2022.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 129-140, jan./jun., 2022. (18) 139


MÁRCIA ASTRÊS FERNANDES; AMANDA ALVES DE ALENCAR RIBEIRO
População em situação de rua e o direito de acesso aos serviços de saúde

VIEGAS, Leandro Luiz; VENTURA, Deisy de Freitas Lima; VENTURA, Miriam.


A proposta de convenção internacional sobre a resposta às pandemias: em
defesa de um tratado de direitos humanos para o campo da saúde global.
Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 38, n. 1, e00168121, 2022. Disponível
em: https://doi.org/10.1590/0102-311X00168121. Acesso em. 21 abr. 2022.

140 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 129-140, jan./jun., 2022. (18)


A proteção das pessoas
com deficiência no Sistema
Interamericano de Direitos
Humanos

§ Protección de las personas con discapacidad en el


Sistema Interamericano de Derechos Humanos

§ Protection of Persons with Disabilities in the Inter-


American Human Rights System

Danilo Garnica Simini1

Resumo: A emergência do Direito Internacional dos Direitos Humanos trouxe


como principal consequência a criação dos Sistemas Internacionais de Direi-
tos Humanos, compostos por tratados e órgãos de monitoramento dos direi-
tos previstos em tais documentos internacionais. O Sistema Interamericano
de Direitos Humanos vem sendo desenvolvido principalmente a partir da ela-
boração da Convenção Americana de Direitos Humanos, bem como em razão
da criação da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Pa-
ralelamente ao desenvolvimento do Sistema Interamericano de Direitos Hu-
manos há a introdução da temática dos direitos das pessoas com deficiência
no plano internacional, fazendo com que posteriormente a temática também
fosse incorporada ao referido Sistema. Por isso, o trabalho buscou analisar

1 Doutor em Ciências Humanas e Sociais (UFABC), Doutorando em Direito Internacional (USP), Mestre em Direito
(UNESP), Pesquisador do Núcleo de Estudos em Tribunais Internacionais da Faculdade de Direito da USP e docen-
te na Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP). danilosimini@gmail.com

RIDH | Bauru, v. 9, n. 2, p. 141-161, jan./jun., 2022. (18) 141


DANILO GARNICA SIMINI
A proteção das pessoas com deficiência no Sistema Interamericano de Direitos Humanos

a atuação do Sistema Interamericano de Direitos Humanos na proteção da


pessoa com deficiência. Concluiu-se haver uma preocupação com a temática
através dos julgamentos proferidos pela Corte Interamericana de Direitos Hu-
manos, por meio da criação de um tratado específico e também em razão da
existência de uma relatoria específica da Comissão Interamericana de Direitos
Humano, não obstante o próprio Tribunal muitas vezes não conseguir fazer
com que os países cumpram suas sentenças, inclusive em matéria de pessoas
com deficiência.

Palavras-chave: Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Pessoas com


deficiência. Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Resumen: El surgimiento del Derecho Internacional de los Derechos Huma-


nos trajo como principal consecuencia la creación de Sistemas Internaciona-
les de Derechos Humanos, integrados por tratados y órganos de vigilancia
de los derechos previstos en dichos documentos internacionales. El Sistema
Interamericano de Derechos Humanos se ha desarrollado principalmente a
partir de la elaboración de la Convención Americana sobre Derechos Huma-
nos, así como debido a la creación de la Comisión y la Corte Interamericana de
Derechos Humanos. Paralelamente al desarrollo del Sistema Interamericano
de Derechos Humanos, se produce la introducción del tema de los derechos
de las personas con discapacidad a nivel internacional, provocando que el
tema sea incorporado posteriormente al referido Sistema. Por ello, el trabajo
buscó analizar el papel del Sistema Interamericano de Derechos Humanos en
la protección de las personas con discapacidad. Se concluyó que existe una
preocupación con el tema a través de las sentencias dictadas por la Corte In-
teramericana de Derechos Humanos, a través de la creación de un tratado
específico y también por la existencia de una relatoría específica de la Comi-
sión Interamericana sobre Derechos Humanos, a pesar de que la propia Corte
muchas veces no logra que los países cumplan con sus sentencias, incluso en
el ámbito de las personas con discapacidad.

Palabras clave: Sistema Interamericano de Derechos Humanos. Personas


con deficiencia. Corte Interamericana de Derechos Humanos.

Abstract: The emergence of International Human Rights Law brought as its


main consequence the creation of International Human Rights Systems, com-
posed of treaties and bodies for monitoring the rights provided for in such
international documents. The Inter-American System of Human Rights has

142 RIDH | Bauru, v. 9, n. 2, p. 141-161, jan./jun., 2022. (18)


DANILO GARNICA SIMINI
A proteção das pessoas com deficiência no Sistema Interamericano de Direitos Humanos

been developed mainly from the elaboration of the American Convention on


Human Rights, as well as due to the creation of the Commission and the Inter-
-American Court of Human Rights. Parallel to the development of the Inter-A-
merican System of Human Rights, there is the introduction of the issue of the
rights of persons with disabilities at the international level, causing the issue
to be later incorporated into the referred System. Therefore, the work sought
to analyze the role of the Inter-American System of Human Rights in the pro-
tection of people with disabilities. It was concluded that there is a concern
with the theme through the judgments handed down by the Inter-American
Court of Human Rights, through the creation of a specific treaty and also be-
cause of the existence of a specific rapporteurship of the Inter-American Com-
mission on Human Rights, despite the Court itself often fail to make countries
comply with their sentences, including in the field of persons with disabilities.

Keywords: Inter-American Human Rights System. Disabled people. Inter-A-


merican Court of Human Rights.

Introdução
A proteção internacional dos direitos humanos pode ser apontada
como uma das principais contribuições do século XX, particularmente, após o
término da Segunda Guerra Mundial. Direitos humanos se tornaram um tema
de legítimo interesse da comunidade internacional e Sistemas Internacionais
de Direitos Humanos foram criados. Estes, compostos por tratados e órgãos
de monitoramento, foram estabelecidos no intuito de maximizar a proteção
dos direitos humanos, possibilitando a responsabilização dos Estados em
caso de violação.
De acordo com a literatura, atualmente se encontram consolidados o
Sistema Global (também chamado de Onusiano) e o Sistema Regional, sendo
este composto pelos Sistemas Europeu, Interamericano e Africano. Tais siste-
mas devem ser analisados e interpretados à luz da complementariedade, ou
seja, não há hierarquia entre eles, pois foram criados visando maximizar a pro-
teção dos direitos humanos. Ademais, os sistemas regionais foram pensados
como forma de privilegiar as características de cada continente.
Inicialmente, os tratados de direitos humanos criados no âmbito de
tais Sistemas Internacionais tratavam do ser humano de forma genérica, pois
naquele momento histórico era de fundamental importância deixar claro que
bastava ser humano para ser titular de direitos. Posteriormente, foram sendo
criados tratados relacionados a temas ou grupos específicos, tais como crian-

RIDH | Bauru, v. 9, n. 2, p. 141-161, jan./jun., 2022. (18) 143


DANILO GARNICA SIMINI
A proteção das pessoas com deficiência no Sistema Interamericano de Direitos Humanos

ças, idosos, mulheres, racismo, tortura e pessoas com deficiência.


Em relação às pessoas com deficiência, de acordo com dados da Or-
ganização Mundial da Saúde de 2011, divulgados pelo portal da Organização
das Nações Unidas2, estima-se que 1 bilhão de pessoas, ou seja, uma em cada
sete pessoas no mundo, vivam com alguma deficiência e 80% delas habitam
em países em desenvolvimento como o Brasil. O Direito Internacional tem
contribuído para tornar as pessoas com deficiência mais visíveis através da
criação de tratados de direitos humanos e também por meio da atuação das
Organizações Internacionais.
Na década de 1970, a Assembleia Geral da ONU editou duas resolu-
ções acerca das pessoas com deficiência, especificamente a Declaração sobre
os Direitos das Pessoas com Deficiências Mentais (1971) e a Declaração dos
Direitos das Pessoas com Deficiência (1975). Posteriormente, 1987 foi decla-
rado o Ano Internacional das Pessoas Deficientes. A repercussão positiva fez
com que especialistas reunidos na Suécia sugerissem a elaboração de uma
Convenção referente aos direitos das pessoas com deficiência. A ideia não foi
acolhida naquele momento, mas a ONU elaborou outros documentos, tais
como as “Normas Uniformes sobre a Igualdade de Oportunidades para as Pes-
soas com Deficiência” de 1993 e a Declaração de Salamanca de 1994, explicam
Vittorati e Hernandez (2014).
Em setembro de 2001, o México apresentou proposta de realização
da Convenção durante a Conferência Mundial contra o Racismo e a Discrimi-
nação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância. A proposta
encontrou resistência por parte dos países desenvolvidos, e as organizações
representativas começaram a propagar a ideia, a fim de buscar apoio para a
sua concretização junto à ONU. No mês de dezembro de 2001, a Resolução nº
56/168 da ONU criou um Comitê voltado à elaboração da convenção. O Comi-
tê realizou oito sessões entre 2002 e 2006 para a redação do texto do tratado,
e o processo contou com a participação da sociedade civil, tendo o Brasil atu-
ado de forma fundamental nesse processo (VITTORATI; HERNANDEZ, 2014).
Os trabalhos do Comitê resultaram na celebração da Convenção dos Direitos
das Pessoas com Deficiência, assinada e ratificada pelo Estado brasileiro.
A temática da proteção da pessoa com deficiência também se faz pre-
sente no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Por isso, o presente ar-
tigo busca analisar a atuação do referido Sistema na proteção da pessoa com
deficiência. A fim de atingir tal objetivo será feita inicialmente uma descrição
do surgimento do Sistema Interamericano, bem como uma apresentação dos

2 Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2013/12/1458411-onu-diz-que-mundo-tem-mais-de-1-bi-


lhao-de-pessoas-com-deficiencia. Acesso em: 26 abr. 2022.

144 RIDH | Bauru, v. 9, n. 2, p. 141-161, jan./jun., 2022. (18)


DANILO GARNICA SIMINI
A proteção das pessoas com deficiência no Sistema Interamericano de Direitos Humanos

seus dois principais órgãos, quais sejam, a Comissão (CIDH) e a Corte Intera-
mericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Posteriormente, será apresentado
o tratado relativo às pessoas com deficiência no âmbito do Sistema Interame-
ricano de Direitos Humanos e os principais casos relacionados ao tema julga-
dos pela Corte IDH.

O Sistema Interamericano e proteção dos Direitos Hu-


manos
A proteção internacional dos direitos humanos nas Américas se en-
contra intimamente ligada a quatro diplomas normativos, quais sejam, a
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, a Carta da Orga-
nização dos Estados Americanos, a Convenção Americana de Direitos Huma-
nos e o Protocolo de San Salvador (ACIOLY; SILVA; CASELLA, 2019; RAMOS,
2016). Tais diplomas normativos criaram dois sistemas de proteção. A Decla-
ração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e a Carta da Organização
dos Estados Americanos constituem o Sistema da Organização dos Estados
Americanos. De outra parte, a Convenção Americana de Direitos Humanos e
o Protocolo de San Salvador formam o Sistema da Convenção Americana de
Direitos Humanos.
A Carta da OEA (Carta de Bogotá) foi assinada no dia 30 de abril de
1948, em Bogotá, capital da Colômbia, durante a 9ª Conferência Interameri-
cana, entrando em vigor na esfera internacional no dia 13 de dezembro de
1951, momento do depósito do 14º instrumento de ratificação. Trata-se de
um tratado multilateral constitutivo de uma organização internacional regio-
nal, tendo passado por quatro reformas através do Protocolo de Buenos Aires
em 1967, Protocolo de Cartagena das Índias em 1985, Protocolo de Washin-
gton em 1992 e Protocolo de Manágua em 1993 (MAZZUOLI, 2018). A Carta
da OEA apresenta 146 artigos, divididos em três partes. A primeira trata dos
princípios (artigos 1º ao 52), a segunda trata da estrutura da OEA (artigos 53
ao 130) e a terceira parte discorre sobre as disposições finais e transitórias
(artigos 131 ao 146).
O artigo 3º da Carta da OEA apresenta os princípios a serem observa-
dos pelos Estados americanos, dentre eles a proclamação dos direitos funda-
mentais da pessoa humana, sem qualquer distinção de raça, nacionalidade,
credo ou sexo, bem como o respeito ao direito internacional enquanto norma
de conduta dos Estados em suas relações recíprocas. Também na própria Car-
ta da OEA encontra-se no artigo 106 a determinação da criação da CIDH, “que
terá por principal função promover o respeito e a defesa dos direitos humanos
e servir como órgão consultivo da Organização em tal matéria.” (OEA, 1948a).

RIDH | Bauru, v. 9, n. 2, p. 141-161, jan./jun., 2022. (18) 145


DANILO GARNICA SIMINI
A proteção das pessoas com deficiência no Sistema Interamericano de Direitos Humanos

Não obstante a Carta da OEA já abordar a importância da proteção


dos direitos humanos, o referido tratado não trouxe qualquer exemplo de di-
reitos humanos, ou seja, não apresentou o que a própria OEA entendia como
direitos humanos. Sendo assim, também durante a 9ª Conferência Interame-
ricana, foi celebrada a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Ho-
mem. Trata-se de uma declaração não vinculante contendo um catálogo de
direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. Logo no preâmbulo da
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem está evidenciado
que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos e, como
são dotados pela natureza de razão e consciência, devem proceder fraternal-
mente uns com os outros.” (OEA, 1948b).
Ramos (2016) explica que, após a elaboração da Carta da OEA e da
Declaração Americana de Direitos e Deveres dos Homens, a etapa natural e
seguinte seria a criação de um tratado interamericano de direitos humanos,
pois o Protocolo de Buenos Aires de 1967, ao dar nova redação ao artigo 106
da Carta da OEA, havia previsto a criação de uma convenção sobre direitos
humanos. Também no ano de 1967, o anteprojeto da Convenção foi feito pela
CIDH e no ano de 1969, durante a Conferência Interamericana Especializada
sobre Direitos Humanos, sediada em São José da Costa Rica, é adotado final-
mente o texto da denominada Convenção Americana de Direitos Humanos,
conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, principal tratado de direitos
humanos, do chamado Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
A Convenção Americana de Direitos Humanos, ou Pacto de São José
da Costa Rica foi adotada em 22 de novembro de 1969, tendo entrado em vi-
gor somente em 18 de julho de 1978, quando houve a 11ª ratificação por par-
te do Peru (RAMOS, 2016). Somente Estados-membro da OEA podem ratificar
a Convenção Americana de Direitos Humanos. O tratado possui 82 artigos dis-
tribuídos em 11 capítulos. Trata-se de um catálogo de direitos civis e políticos.
Os direitos econômicos, sociais e culturais são abordados de forma superficial,
no artigo 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos.
Em relação à Convenção Americana de Direitos Humanos, os Esta-
dos-parte devem respeitar os direitos nela previstos e garantir o livre e pleno
exercício a qualquer pessoa, sem qualquer discriminação, ressaltando ser pes-
soa todo ser humano, conforme artigo 1º. Ademais, os Estados-parte “com-
prometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com
a disposição desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza
que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.” (OEA,
1969). Como se vê, os referidos artigos tratam da importância de uma dupla
obrigação por parte dos Estados, qual seja, de respeito e de garantir os direi-
tos humanos.

146 RIDH | Bauru, v. 9, n. 2, p. 141-161, jan./jun., 2022. (18)


DANILO GARNICA SIMINI
A proteção das pessoas com deficiência no Sistema Interamericano de Direitos Humanos

A Convenção Americana de Direitos Humanos estabelece como ór-


gãos competentes para conhecer dos assuntos relacionados com os compro-
missos assumidos pelos Estados-parte a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, localizada em Washington DC, e a Corte IDH, com sede em São José
na Costa Rica, órgãos estudados nos tópicos seguintes.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) é composta


de sete membros, denominados comissários, eleitos a título pessoal pela As-
sembleia-Geral da OEA para um mandato de quatro anos (permitida uma re-
eleição), através de uma lista elaborada pelos governos dos Estados-membro.
Os candidatos deverão ser pessoas de alta autoridade moral e de reconhe-
cido saber em matéria de direitos humanos. Ademais, cada governo poderá
propor até três candidatos, nacional do Estado proponente ou nacional de
qualquer outro Estado-membro e, havendo a proposição de uma lista trípli-
ce, pelo menos um deles deverá ser nacional de Estado diferente do Estado
proponente, conforme artigos 34 a 36 da Convenção Americana de Direitos
Humanos (OEA, 1969). Os membros da CIDH, no exercício de suas funções,
gozam dos privilégios diplomáticos necessários para o desempenho do cargo
(OEA, 1979a).
A CIDH possui sede em Washington DC, porém poderá ser reunir em
qualquer Estado americano, inclusive para a realização de investigações in
loco, conforme artigo 39 de seu Regulamento, havendo concordância expres-
sa pela maioria absoluta dos votos e anuência ou convite do respectivo go-
verno. Durante as suas atividades, a CIDH se reunirá em sessões ordinárias
ou extraordinárias, cujo quórum de deliberação é o da maioria absoluta dos
membros. No que diz respeito à Diretoria da Comissão, esta será composta
pelo Presidente, Primeiro Vice-Presidente e Segundo Vice-Presidente, eleitos
pela maioria absoluta dos membros da Comissão por um ano, podendo ser
reeleitos somente uma vez no período de quatro anos (OEA, 1979a).
De acordo com o artigo 41 da Convenção Americana de Direitos Hu-
manos, a CIDH tem como principal função promover a observância e a defesa
dos direitos humanos, e no exercício de seu mandato apresenta as seguin-
tes funções e atribuições: a) estimular a consciência dos direitos humanos
nos povos da América; b) formular recomendações aos governos dos Esta-
dos-membro, quando o considerar conveniente, no sentido de que adotem
medidas progressivas em prol dos direitos humanos no âmbito de suas leis
internas e seus preceitos constitucionais, bem como disposições apropriadas

RIDH | Bauru, v. 9, n. 2, p. 141-161, jan./jun., 2022. (18) 147


DANILO GARNICA SIMINI
A proteção das pessoas com deficiência no Sistema Interamericano de Direitos Humanos

para promover o devido respeito a esses direitos; c) preparar os estudos ou


relatórios que considerar convenientes para o desempenho de suas funções;
d) solicitar aos governos dos Estados-membro que lhe proporcionem infor-
mações sobre as medidas que adotarem em matéria de direitos humanos; e)
atender às consultas que, por meio da Secretaria-Geral da OEA, formularem
os Estados-membro sobre questões relacionadas com os direitos humanos e,
dentro de suas possibilidades, prestar-lhes o assessoramento que solicitarem;
f ) atuar com respeito às petições e outras comunicações, no exercício de sua
autoridade, de conformidade com o disposto nos artigos 44 a 51 da Conven-
ção Americana de Direitos Humanos; e g) apresentar relatório anual à Assem-
bleia-Geral da OEA (OEA, 1969).
A CIDH possui atribuições em relação aos Estados-parte da Conven-
ção Americana de Direitos Humanos (artigo 19 do Estatuto da CIDH), bem
como em relação aos Estados da OEA que não são parte do referido tratado
(Artigo 20 do Estatuto da CIDH). Portanto, a CIDH possui competência em re-
lação aos Estados-parte da Convenção Americana de Direitos Humanos no
que diz respeito aos direitos nela previstos, bem como em relação a todos os
Estados-membro da OEA no que diz respeito aos direitos previstos na Decla-
ração Americana de Direitos e Deveres do Homem.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos


A Corte IDH é uma instituição jurídica autônoma cujo objetivo é a apli-
cação e interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos, nos
termos do artigo 1º do seu Estatuto (OEA, 1979b). O artigo 62 da Convenção
Americana de Direitos Humanos estabelece que todo Estado, ao ratificar o
seu texto ou em momento posterior, poderá declarar que reconhece como
obrigatória a competência da Corte IDH em todos os casos relativos à inter-
pretação ou aplicação dessa Convenção. Atualmente, 20 países reconhecem
a jurisdição da Corte IDH, dentre eles o Brasil, fazendo com que a jurisdição
alcance 550 milhões de pessoas (RAMOS, 2016).
A Corte IDH é composta por sete juízes, nacionais dos Estados-mem-
bro da OEA, eleitos a título pessoal, dentre os juristas da mais alta autoridade
moral, de reconhecida competência em matéria de direitos humanos e que
reúnam as condições necessárias para o exercício das mais elevadas funções
judiciais em seus países de origem, não podendo haver dois juízes da mesma
nacionalidade (artigo 52 da Convenção Americana de Direitos Humanos). Os
juízes serão eleitos em votação secreta e por meio do voto da maioria abso-
luta dos Estados-parte da Convenção Americana de Direitos Humanos, com
mandato de seis anos, permitida uma reeleição (artigos 53 e 54). Cada Estado-

148 RIDH | Bauru, v. 9, n. 2, p. 141-161, jan./jun., 2022. (18)


DANILO GARNICA SIMINI
A proteção das pessoas com deficiência no Sistema Interamericano de Direitos Humanos

-parte poderá propor até três candidatos, de sua mesma nacionalidade ou de


qualquer outro Estado-membro da OEA (OEA, 1979b).
A Corte IDH possui competência consultiva e contenciosa. No que diz
respeito à sua competência contenciosa, o artigo 61 da Convenção America-
na de Direitos Humanos enuncia que somente Estados-parte e a CIDH pos-
suem o direito de submeter um litígio à Corte IDH. Portanto, indivíduos não
possuem legitimidade para acessar a Corte IDH, ao contrário do que ocorre,
por exemplo, na Corte Europeia de Direitos Humanos. Porém, o artigo 25 do
Regulamento da Corte IDH enuncia que “as supostas vítimas ou seus repre-
sentantes poderão apresentar de forma autônoma o seu escrito de petições,
argumentos e provas e continuarão atuando dessa forma durante todo o pro-
cesso.” (OEA, 2009b).
O artigo 63 da Convenção Americana de Direitos Humanos enuncia
que, se a Corte IDH decidir pela existência de violação de um direito ou li-
berdade, determinará que se assegure ao prejudicado o gozo de seu direito
ou liberdade violados, bem como poderá determinar que sejam reparadas as
consequências da medida ou situação causadora da violação, além de poder
condenar o Estado ao pagamento de indenização à vítima ou seus represen-
tantes. Pode-se dizer, portanto, que “o objeto de uma sentença da Corte é o
mais amplo possível no âmbito de uma ação de responsabilidade internacio-
nal do Estado.” (RAMOS, 2016, p. 259).
No que diz respeito à competência consultiva, o artigo 64 da Conven-
ção Americana de Direitos Humanos enuncia que os Estados-membro da OEA
poderão consultar a Corte sobre a interpretação da Convenção ou de outros
tratados concernentes à proteção dos direitos humanos nos Estados ameri-
canos. Nesse contexto, a Corte IDH, a pedido de um Estado-membro da OEA,
poderá emitir pareceres sobre a compatibilidade entre qualquer de suas leis
internas e os tratados internacionais (OEA, 1969). Os Estados, ao ratificarem
a Convenção Americana de Direitos Humanos aceitam automaticamente a
competência consultiva da Corte IDH (MAZZUOLI, 2018).

A jurisprudência da Corte IDH em matéria de direitos


das pessoas com deficiência
O caso Damião Ximenes Lopes versus Brasil foi o primeiro processo
analisado pela Corte IDH a envolver de forma direta os direitos das pessoas
com deficiência. A vítima foi internada em 1º de outubro de 1999 na Casa de
Repouso Guararapes, localizada no município de Sobral, Ceará, para receber
tratamento psiquiátrico, vindo a falecer três dias após a internação. A clínica,
apesar de privada, atuava no âmbito do SUS. O falecimento da vítima ocorreu

RIDH | Bauru, v. 9, n. 2, p. 141-161, jan./jun., 2022. (18) 149


DANILO GARNICA SIMINI
A proteção das pessoas com deficiência no Sistema Interamericano de Direitos Humanos

em razão dos maus tratos praticados pelos funcionários da clínica.


O Estado brasileiro foi denunciado perante a Comissão Interamerica-
na de Direitos Humanos (CIDH) pela irmã da vítima, no mês de novembro de
1999. A Comissão solicitou ao Estado brasileiro informações, a fim de verificar
o prévio esgotamento dos recursos internos. Em razão da falta de resposta do
Estado brasileiro, a CIDH considerou admissível a reclamação através do Rela-
tório de Admissibilidade nº 38/02, de 9 de outubro de 2002. Posteriormente,
no mês de maio de 2003, a CIDH informou às partes a possibilidade de reali-
zação de conciliação.
No dia 8 de outubro de 2003, a CIDH aprovou o Relatório de Mérito nº
43/03, tendo concluído a violação por parte do Estado brasileiro dos seguin-
tes direitos previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos: direito
à integridade pessoal, direito à vida, direito à proteção judicial e direito às ga-
rantias judiciais, tendo determinado a adoção de diversas medidas. O Estado
brasileiro, em setembro de 2004, apresentou um relatório parcial acerca da
adoção das medidas. No mesmo mês, a CIDH submeteu o caso à Corte IDH.
A Corte IDH, após a produção de prova testemunhal, documental e
pericial, reconheceu a responsabilidade internacional do Estado, tendo se
manifestado sobre a especial atenção a ser direcionada às pessoas com de-
ficiência, em razão de sua notória vulnerabilidade. O Tribunal asseverou que
todo aquele pertencente a grupos vulneráveis é titular de uma proteção es-
pecial por parte do Estado, não bastando que este se abstenha de violar direi-
tos, exigindo-se também a adoção de medidas positivas para a proteção das
pessoas com deficiência.

104. Nesse sentido, os Estados devem levar em conta que os grupos


de indivíduos que vivem em circunstâncias adversas e com menos
recursos, tais como as pessoas em condição de extrema pobreza, as
crianças e adolescentes em situação de risco e as populações indí-
genas, enfrentam um aumento do risco de padecer de deficiências
mentais, como era o caso do senhor Damião Ximenes Lopes. É di-
reto e significativo o vínculo existente entre a deficiência, por um
lado, e a pobreza e a exclusão social, por outro. Entre as medidas
positivas a cargo dos Estados encontram-se, pelas razões expostas,
as necessárias para evitar todas as formas de deficiência que possam
ser prevenidas e estender às pessoas que padeçam de deficiências
mentais o tratamento preferencial apropriado a sua condição. (COR-
TE IDH, 2006, p. 29).

Na visão da Corte IDH, há nítida relação entre deficiência, pobreza e


exclusão social. Assim, os Estados devem adotar medidas de caráter legislati-
vo, social, educativo, trabalhista ou de qualquer natureza, como forma de eli-
minar a discriminação contra as pessoas com deficiência. Também ressaltou o
fato de as pessoas com deficiência mental internadas em hospitais psiquiátri-
cos serem particularmente vulneráveis a tortura e outras formas de tratamen-

150 RIDH | Bauru, v. 9, n. 2, p. 141-161, jan./jun., 2022. (18)


DANILO GARNICA SIMINI
A proteção das pessoas com deficiência no Sistema Interamericano de Direitos Humanos

to cruel, desumano ou degradante. A Corte IDH lembrou que a vulnerabilida-


de intrínseca das pessoas portadoras de deficiência mental

[...] é agravada pelo alto grau de intimidade que caracteriza o trata-


mento das doenças psiquiátricas, que torna essas pessoas mais sus-
cetíveis a tratamentos abusivos quando submetidas a internação.
[...]
108.Todas as circunstâncias acima citadas exigem que se exerça
uma estrita vigilância sobre esses estabelecimentos. Os Estados têm
o dever de supervisionar e garantir que em toda instituição psiqui-
átrica, pública ou privada, seja preservado o direito dos pacientes
de receberem tratamento digno, humano e profissional e de serem
protegidos contra a exploração, o abuso e a degradação. 109. O
atendimento de saúde mental deve estar disponível para toda pes-
soa que dele necessite. Todo tratamento de pessoas acometidas de
deficiência mental deve se destinar ao melhor interesse do pacien-
te, deve ter por objetivo preservar sua dignidade e sua autonomia,
reduzir o impacto da doença e melhorar sua qualidade de vida (par.
135, 138 e 139 infra). (CORTE IDH, 2006, p. 29).

Essa Corte ressaltou a existência do dever dos Estados em assegurar


atendimento eficaz às pessoas com deficiência. O dever está relacionado ao
acesso aos serviços básicos de saúde, à promoção da saúde mental e à pre-
venção das deficiências mentais. De acordo com o Tribunal, todo tratamento
voltado às pessoas com deficiência mental deve ter por principal finalidade o
“bem-estar do paciente e o respeito a sua dignidade como ser humano, que
se traduz no dever de adotar como princípios orientadores do tratamento
psiquiátrico o respeito à intimidade e à autonomia das pessoas.” (CORTE IDH,
2006, p. 52).
Por outro lado, a Corte IDH apontou como deveres do Estado em re-
lação às pessoas com deficiência o dever de cuidar, o dever de regular e fis-
calizar e o dever de investigar. Em relação ao primeiro, a Corte IDH lembrou a
posição especial de garantia do Estado em relação às pessoas sob sua guarda
ou cuidado, havendo a obrigação de o Estado proporcionar condições neces-
sárias para garantir a dignidade humana. Este dever de cuidar estaria mais
evidente em relação às pessoas submetidas a tratamento médico.

139. Em segundo lugar, o Tribunal considera que o acima exposto se


aplica de maneira especial às pessoas que se encontrem recebendo
atendimento médico, uma vez que a finalidade última da prestação
de serviços de saúde é a melhoria da condição da saúde física ou
mental do paciente, o que aumenta significativamente as obriga-
ções do Estado e dele exige a adoção das medidas disponíveis e
necessárias para impedir a deterioração da condição do paciente e
otimizar sua saúde. 140. Finalmente, os cuidados de que são titu-
lares todas as pessoas que estejam recebendo assistência médica
alcançam sua máxima exigência quando se referem a pacientes com
deficiência mental, dada sua particular vulnerabilidade quando se

RIDH | Bauru, v. 9, n. 2, p. 141-161, jan./jun., 2022. (18) 151


encontram em instituições psiquiátricas. (CORTE IDH, 2006, p. 55).

Em relação ao dever de regular e fiscalizar, a Corte IDH lembrou que


os Estados devem fiscalizar as instituições de saúde públicas ou privadas, ha-
vendo também o dever de cuidado em relação às pessoas internadas. No caso
em análise, o Tribunal reconheceu a responsabilidade internacional do Estado
brasileiro por descumprir seu dever de regulamentar e fiscalizar o atendimen-
to médico, deveres decorrentes das obrigações dispostas nos artigos 4º e 5º
da Convenção Americana de Direitos Humanos. Por derradeiro, a Corte IDH
asseverou ter o Estado o dever de realizar de ofício e sem demora investiga-
ção, a fim de esclarecer as violações de direitos humanos e apontar os respon-
sáveis.
O Brasil foi considerado responsável pelas violações dos direitos pre-
vistos nos artigos 4.1, 5.1 e 5.2, bem como por ter violado o artigo 1.1, todos
da Convenção Americana de Direitos Humanos. Assim, a Corte IDH condenou
o Estado brasileiro: a) garantir, em um prazo razoável, que o processo interno
destinado a investigar e sancionar os responsáveis pelos fatos do caso surta
seus devidos efeitos; b) a publicar no prazo de seis meses, no Diário Oficial
e em outro jornal de ampla circulação nacional, uma só vez, o Capítulo VII
relativo aos fatos provados; c) continuar a desenvolver um programa de for-
mação e capacitação para o pessoal médico, de psiquiatria e psicologia, de
enfermagem e auxiliares de enfermagem e para todas as pessoas vinculadas
ao atendimento de saúde mental, em especial sobre os princípios que devem
reger o trato das pessoas com deficiência mental; e d) pagar indenização para
os familiares de Damião Ximenes Lopes.
Posteriormente, em agosto de 2012, a Corte IDH proferiu sentença no
caso Furlan versus Argentina, também relacionado aos direitos das pessoas
com deficiência. Sebástian Furlan, no ano de 1989, tentou tirar a própria vida
quando tinha apenas 14 anos, tendo ficado em coma e com deficiências físi-
cas. A família ajuizou uma ação civil de indenização contra o Estado argentino
pelos danos e prejuízos decorrentes da incapacidade do filho. Em razão da
demora na resolução dos pedidos feitos pela família, o Estado argentino foi
denunciado perante a CIDH, tendo essa posteriormente submetido o proces-
so à Corte IDH.
A Corte IDH teceu considerações acerca dos direitos das pessoas com
deficiência. Ressaltou novamente que toda pessoa em situação de vulnera-
bilidade merece uma atenção especial por parte do Estado, devendo este to-
mar medidas para eliminar a discriminação contra as pessoas vulneráveis, tais
como aquelas com deficiência. Assim, os Estados devem atuar pela inclusão
das pessoas com deficiência por meio da igualdade de condições, oportuni-
dades e participação em todas as esferas da sociedade. Ademais, o Tribunal
DANILO GARNICA SIMINI
A proteção das pessoas com deficiência no Sistema Interamericano de Direitos Humanos

ressaltou a adoção do modelo social da deficiência pela Convenção Intera-


mericana para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as
Pessoas Portadoras de Deficiência e Convenção das Nações Unidas sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência.

133. Al respecto, la Corte observa que en las mencionadas Conven-


ciones se tiene em cuenta el modelo social para abordar la disca-
pacidad, lo cual implica que la discapacidad no se define exclusiva-
mente por la presencia de una deficiencia física, mental, intelectual
o sensorial, sino que se interrelaciona con las barreras o limitaciones
que socialmente existen para que las personas puedan ejercer sus
derechos de manera efectiva. Los tipos de limites o barreras que co-
múnmente encuentran las personas con diversidad funcional en la
sociedad, son, entre otras, barreras físicas o arquitectónicas, comu-
nicativas, actitudinales o socioeconómicas. (CORTE IDH, 2012, p. 46).

O Estado argentino foi, ao final, condenado pela Corte IDH, sendo


estabelecida a adoção das seguintes medidas: a) oferecer atenção médica e
psicológica ou psiquiátrica gratuita e de forma imediata, adequada e efetiva,
através de suas instituições públicas de saúde especializadas às vítimas que
assim o solicitem; b) criar um grupo interdisciplinar, o qual, tendo em conta a
opinião de Sebastián Furlan, determinará as medidas de proteção e assistên-
cia que seriam mais apropriadas para sua inclusão social, educativa, vocacio-
nal e laboral; c) adotar as medidas necessárias para assegurar que no momen-
to em que uma pessoa é diagnosticada com graves problemas ou sequelas
relacionadas com deficiência, seja entregue à pessoa ou a seu grupo familiar
uma carta de direitos que resuma de forma sintética, clara e acessível os bene-
fícios contemplados na legislação argentina; e d) pagamento de indenização.
A Corte IDH, nos casos Artavia Murillo e outros versus Costa Rica e
Chinchilla Sandoval versus Guatemala, também tratou dos direitos das pes-
soas com deficiência, tendo reiterado os argumentos apresentados nos casos
Damião Ximenes Lopes versus Brasil e Furlan versus Argentina. Novamente
destacou a adoção do modelo social e também a obrigação dos Estados de
adotarem medidas voltadas à eliminação da discriminação contra as pessoas
com deficiência.
Nessa linha, pudemos identificar um alinhamento entre os organis-
mos internacionais, em especial na Corte Interamericana, referente
aos entendimentos norteadores do modelo social que entende a
deficiência como fruto da estrutura social discriminatória e da vulne-
rabilidade social de alguns grupos. A Corte aponta a desigualdade
social como importante fator no desencadeamento de deficiências,
haja vista que, em determinados contextos predomina a escassez
de recursos e de esforços destinados à prevenção e tratamento de
doenças ou outros eventos incapacitantes. (PERUZZO e LOPES, 2019,
p. 26).
Portanto, a jurisprudência da Corte IDH tem contribuído para o desen-

RIDH | Bauru, v. 9, n. 2, p. 141-161, jan./jun., 2022. (18) 153


DANILO GARNICA SIMINI
A proteção das pessoas com deficiência no Sistema Interamericano de Direitos Humanos

volvimento da proteção dos direitos das pessoas com deficiência ao ressaltar


a importância do modelo social e da adoção de medidas destinadas à elimi-
nação da discriminação contra a pessoa com deficiência.

Convenção Interamericana para a Eliminação de todas


as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portado-
ras de Deficiência
Os direitos das pessoas com deficiência também foram positivados no
âmbito do Sistema Interamericano em um tratado específico. A Convenção
Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra
as Pessoas Portadoras de Deficiência, assinada em 1999 e com vigência em
2001, é o tratado referente à matéria no âmbito interamericano, tendo o Esta-
do brasileiro a promulgado por meio do Decreto 3.956/2001.
De acordo com a Convenção, as pessoas com deficiência têm os mes-
mos direitos e liberdades fundamentais que as outras pessoas, não podendo
haver discriminação com base na deficiência, tendo os direitos fundamenta-
dos na dignidade e igualdade inerentes aos seres humanos. Assim, o preâm-
bulo da Convenção demonstra preocupação com a discriminação praticada
contra as pessoas com deficiência e os Estados se comprometem a eliminar
toda e qualquer forma de discriminação contra as pessoas com deficiência.
De acordo com a Convenção deficiência é toda “restrição física, mental
ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade
de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agra-
vada pelo ambiente econômico e social.” (OEA, 1999). A Convenção define de-
ficiência como “restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente
ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades es-
senciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e so-
cial.” (OEA, 1999). Em relação à discriminação contra a pessoa com deficiência,
a Convenção conceitua:

2. Discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência


a) o termo ‘discriminação contra as pessoas portadoras de deficiên-
cia’ significa toda diferenciação, exclusão ou restrição baseada em
deficiência, antecedente de deficiência, consequência de deficiên-
cia anterior ou percepção de deficiência presente ou passada, que
tenha o efeito ou propósito de impedir ou anular o reconhecimento,
gozo ou exercício por parte das pessoas portadoras de deficiência
de seus direitos humanos e suas liberdades fundamentais. b) Não
constitui discriminação a diferenciação ou preferência adotada pelo
Estado Parte para promover a integração social ou o desenvolvi-
mento pessoal dos portadores de deficiência, desde que a diferen-
ciação ou preferência não limite em si mesma o direito à igualdade

154 RIDH | Bauru, v. 9, n. 2, p. 141-161, jan./jun., 2022. (18)


DANILO GARNICA SIMINI
A proteção das pessoas com deficiência no Sistema Interamericano de Direitos Humanos

dessas pessoas e que elas não sejam obrigadas a aceitar tal diferen-
ciação ou preferência. Nos casos em que a legislação interna preveja
a declaração de interdição, quando for necessária e apropriada para
o seu bem-estar, esta não constituirá discriminação. (OEA, 1999).

A fim de eliminar a discriminação contra as pessoas com deficiência,


os Estados da Convenção se comprometem a tomar medidas de caráter le-
gislativo, social, educacional, trabalhista ou de qualquer natureza visando à
plena integração da pessoa com deficiência na sociedade, tais como medidas
para garantir a acessibilidade em prédios, instalações e veículos e a adoção de
medidas para garantir o acesso ao emprego, ao transporte, às comunicações,
à habitação, ao lazer, à educação, ao esporte, à justiça e aos serviços policiais
e às atividades políticas e de administração, conforme preceitua o artigo III. 1
da Convenção.
Nesse contexto, nos termos do artigo III. 2 da Convenção, os Estados
se comprometem a trabalhar nas seguintes áreas: a) prevenção de todas as
formas de deficiência preveníveis; b) detecção e intervenção precoce, trata-
mento, reabilitação, educação, formação ocupacional e prestação de serviços
completos para garantir o melhor nível de independência e qualidade de vida
para as pessoas portadoras de deficiência; e c) sensibilização da população,
por meio de campanhas de educação destinadas a eliminar preconceitos, es-
tereótipos e outras atitudes que atentam contra o direito das pessoas a serem
iguais, permitindo dessa forma o respeito e a convivência com as pessoas por-
tadoras de deficiência.
A Convenção também evidencia a importância da cooperação inter-
nacional como forma de se alcançar os objetivos nela previstos. A coopera-
ção, de acordo com o artigo IV. 2 da Convenção, deve envolver: a) pesquisa
científica e tecnológica relacionada com a prevenção das deficiências, o trata-
mento, a reabilitação e a integração na sociedade de pessoas portadoras de
deficiência; e b) desenvolvimento de meios e recursos destinados a facilitar
ou promover a vida independente, a autossuficiência e a integração total à
sociedade das pessoas portadoras de deficiência, em condições de igualdade.
Outra questão importante existente na Convenção diz respeito à
participação das pessoas com deficiência e as entidades representativas na
elaboração, execução e avaliação de medidas e políticas voltadas à aplicação
das obrigações decorrentes da própria Convenção, conforme artigo V. 1 do
referido tratado. Ademais, nos termos do artigo V. 2, a Convenção impõe aos
Estados a criação de canais de comunicação voltados à difusão entre as orga-
nizações públicas e privadas dos avanços normativos e jurídicos relacionados
à eliminação da discriminação contra as pessoas com deficiência.
A Convenção estabelece a criação da Comissão para a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiên-

RIDH | Bauru, v. 9, n. 2, p. 141-161, jan./jun., 2022. (18) 155


DANILO GARNICA SIMINI
A proteção das pessoas com deficiência no Sistema Interamericano de Direitos Humanos

cia, constituída por um representante designado por cada Estado-parte, cuja


finalidade é fiscalizar, através de relatórios enviados pelos Estados, os avanços
na eliminação de todas as formas de discriminação contra as pessoas com
deficiência.
A Comissão para a Eliminação de Todas as Formas contra as Pessoas
Portadoras de Deficiência, ao analisar o último informe enviado pelo Estado
brasileiro, reconheceu a existência de avanços, mas também apresentou algu-
mas recomendações: a) melhor compilação dos dados referentes à educação,
à saúde e à acessibilidade em espaços públicos e privados, a fim de garantir
a inclusão das pessoas com deficiência; b) a criação de programas de treina-
mento voltados à sensibilização dos direitos das pessoas com deficiência; c)
reformar o Código Eleitoral para permitir o voto das pessoas interditadas por
questões mentais; d) desenvolver um plano de ação para os juízes eleitorais;
e) incentivar maior participação da mídia; e) a adoção de medidas para garan-
tir o bem-estar e a assistência social da população com deficiência; f ) a criação
de programas que garantam o acesso à seguridade social para a população
com deficiência, tanto nas áreas urbanas quanto nas rurais, sem distinção de
gênero; g) garantir o acesso à justiça por parte das pessoas com deficiência e
a realização de ajustes nos procedimentos judiciais e no monitoramento de
pessoas com deficiência privadas de liberdade; h) a adoção de medidas de si-
nalização que permitam às pessoas com deficiência conhecer o tipo de desas-
tre ou catástrofe, levando em consideração os vários tipos de deficiência, bem
como realizar protocolos que envolvam toda a população; e i) a continuidade
de projetos de cooperação envolvendo as pessoas com deficiência e de forma
a abranger os moradores de todas as áreas (OEA, 2017).
Como se vê, as recomendações feitas ao Brasil pela Comissão são ge-
néricas e tratam de poucos assuntos, pois a própria Convenção da OEA é mais
enxuta, se comparada à Convenção da ONU. De qualquer forma, a Comissão
para a Eliminação de Todas as Formas contra as Pessoas Portadoras de Defi-
ciência também pode ser apontada como um mecanismo internacional de
monitoramento acerca dos direitos das pessoas com deficiência.

Desafios e avanços na implementação da normativa


internacional
A sentença da Corte IDH é definitiva e inapelável, sendo possível ape-
nas a apresentação de um pedido de esclarecimentos pelas partes, caso haja
divergência sobre o sentido ou alcance da sentença Esse pedido (semelhante
aos embargos de declaração) deve ser apresentado dentro do prazo de 90
dias a partir da notificação da sentença (artigo 67 da Convenção Americana

156 RIDH | Bauru, v. 9, n. 2, p. 141-161, jan./jun., 2022. (18)


DANILO GARNICA SIMINI
A proteção das pessoas com deficiência no Sistema Interamericano de Direitos Humanos

de Direitos Humanos). Os Estados-parte da Convenção Americana de Direitos


Humanos, ao aceitarem a jurisdição da Corte IDH, comprometem-se a cumprir
as suas decisões (artigo 68 da Convenção Americana de Direitos Humanos).
Caso a Corte IDH condene o Estado ao pagamento de indenização à
vítima ou seus representantes, a sentença poderá ser executada no respectivo
país. No caso do Brasil, a sentença da Corte vale como título executivo e po-
derá ser executada junto à Justiça Federal, sem necessidade de homologação
prévia pelo Superior Tribunal de Justiça (MAZZUOLI, 2018; RAMOS, 2016). No
que diz respeito à parte “não pecuniária” da condenação, o artigo 65 da Con-
venção Americana de Direitos Humanos enuncia que a Corte IDH submeterá
à Assembleia-Geral da OEA relatoria sobre suas atividades e indicará os casos
em que o Estado não tenha dado cumprimento às suas sentenças. Como se
vê, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos não possui um mecanismo
aperfeiçoado de supervisão do cumprimento das decisões da Corte IDH, fato
que enseja diversas críticas por parte da literatura especializada.
Não obstante a importância da jurisprudência do Tribunal nos deba-
tes sobre os direitos das pessoas com deficiência, o próprio Sistema Interame-
ricano de Direitos não apresenta mecanismos eficazes para garantir o cumpri-
mento de suas decisões. E tal fato também acaba por atingir as decisões da
Corte IDH, relacionadas às pessoas com deficiência.
Na etapa de supervisão de cumprimento de sentença do caso Damião
Ximenes Lopes versus Brasil, por exemplo, a Corte IDH entendeu, em decisão
proferida em janeiro de 2021, que o Estado brasileiro cumpriu apenas as me-
didas de reparação, porém continua a descumprir a obrigação de garantir que
o processo interno relacionado à responsabilização dos agentes violadores
dos direitos de Damião Ximenes Lopes surta seus devidos efeitos. A Corte IDH
também decidiu manter em aberto o procedimento de supervisão de cumpri-
mento de sentença em relação ao programa de capacitação dos profissionais
da área de saúde (CORTE IDH, 2021). Como se vê, a sentença proferida em
2006 ainda não foi totalmente implementada pelo Estado brasileiro, especial-
mente, no que diz respeito às medidas a exigir políticas públicas.
Em relação às deliberações da Comissão para a Eliminação de Todas as
Formas contra as Pessoas Portadoras de Deficiência da OEA, o desafio é tor-
ná-las mais detalhadas, pois ainda são enxutas e tratam de poucos assuntos.
Tal fato contraria o pouco o tema da proteção da pessoa com deficiência, pois
trata-se de assunto complexo e multifacetado. Por outro lado, a própria OEA
poderia estabelecer mecanismos mais adequados a fim de garantir o cumpri-
mento das recomendações da referida Comissão, pois ainda são encaradas
pelos Estados como meros conselhos.
Outro aspecto importante deve ser ressaltado. A normativa interna-

RIDH | Bauru, v. 9, n. 2, p. 141-161, jan./jun., 2022. (18) 157


DANILO GARNICA SIMINI
A proteção das pessoas com deficiência no Sistema Interamericano de Direitos Humanos

cional vincula o Estado como um todo, a exigir a sua observância por toda
autoridade pública, em todos os níveis de governo. Assim, as normas inter-
nacionais de proteção das pessoas com deficiência devem ser observadas
pelos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário em suas respectivas atua-
ções. Contudo, a prática se mostra desafiadora. Em trabalho anterior (SIMINI,
2021) demonstramos que o Poder Legislativo municipal da capital paulista,
ao longo de dez anos, apreciou um pouco mais de duzentos projetos de lei
relacionados às pessoas com deficiência e em apenas 11% deles o legislativo
municipal verificou a sua compatibilidade com a normativa internacional. Por
outro lado, o Poder Executivo da capital paulista vem desenvolvendo políticas
públicas compatíveis com as normas internacionais de proteção dos direitos
das pessoas com deficiência (SIMINI, 2021).
Certamente o maior desafio é conscientizar os agentes públicos da
importância das normas e decisões internacionais referentes aos direitos das
pessoas com deficiência. A sua observância poderá contribuir com uma maior
proteção dos direitos de tal grupo ainda vulnerável e muitas vezes margina-
lizado.

Considerações finais
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos foi criado em um con-
texto de instabilidade política nas Américas, particularmente, na América do
Sul. Não obstante críticas referentes à efetividade de suas decisões, o referi-
do Sistema vem contribuindo com a proteção dos direitos humanos no Con-
tinente Americano, bem como no que diz respeito aos direitos das pessoas
com deficiência. A Convenção Americana de Direitos Humanos, seu principal
tratado, apesar de não fazer referência expressa à pessoa com deficiência vem
sendo utilizada pela Corte IDH em seus julgamentos relacionados aos direitos
das pessoas com deficiência.
A Corte IDH já se manifestou em mais de uma oportunidade acerca
dos direitos das pessoas com deficiência, inclusive em relação ao Brasil no
caso Damião Ximenes Lopes, o primeiro precedente julgado pela Corte IDH
a tratar diretamente dos direitos das pessoas com deficiência. Em todos os
casos a Corte IDH ressaltou o modelo social da deficiência, além de ter desta-
cado a obrigação dos Estados em adotarem medidas voltadas à eliminação da
discriminação contra a pessoa com deficiência. Ademais, merece igualmente
destaque o fato de haver no Sistema Interamericano um tratado específico
sobre direitos das pessoas com deficiência, anterior à Convenção da ONU so-
bre o mesmo tema.
De qualquer forma, o desafio imposto ao Sistema Interamericano de

158 RIDH | Bauru, v. 9, n. 2, p. 141-161, jan./jun., 2022. (18)


DANILO GARNICA SIMINI
A proteção das pessoas com deficiência no Sistema Interamericano de Direitos Humanos

Direitos Humanos é zelar pelo cumprimento de suas normas e decisões. Os


Estados, por meio de todos os seus órgãos e autoridades públicas, devem
adotar a normativa e as sentenças da Corte IDH como forma de maximizar a
proteção dos direitos humanos, especialmente, aqueles voltados às pessoas
com deficiência. Nesse contexto, as normas internacionais de proteção aos
direitos das pessoas com deficiência devem ser observadas internamente pe-
los Estados na atividade legislativa, nos julgamentos realizados pelo Poder
Judiciário, bem como na formulação e implementação de políticas em todos
os níveis de governo.

Referências
ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento; CASELLA, Pau-
lo Borba. Manual de direito internacional público. 24. ed. São Paulo: Saraiva,
2019.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CORTE IDH). Sentença do


Caso Damião Ximenes Lopes versus Brasil. 2006. Disponível em: https://www.
corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/ seriec_149_por.pdf. Acesso em: 25 ago.
2020.

CORTE IDH. Sentença do Caso Furlan versus Argentina. 2012. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_246_esp.pdf. Acesso
em: 25 ago. 2020.

CORTE IDH. Supervisão do cumprimento de sentença do Caso Damião Ximenes


Lopes versus Brasil. 2021. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/su-
pervisiones/ximeneslopes_28_01_21_por.pdf. Acesso em: 26 abr. 2022.

GUERRA, Sidney. Direito internacional dos direitos humanos. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 2015.

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 11. ed.


Rio de Janeiro: Forense, 2018.

OEA. Carta da Organização dos Estados Americanos. 1948a. Disponível em:


http://www.oas.org/dil/port/tratados_A-41_Carta_da_Organiza%C3%A7%-
C3%A3o_dos_Estados_Americanos.htm. Acesso em: 10 dez. 2018.

RIDH | Bauru, v. 9, n. 2, p. 141-161, jan./jun., 2022. (18) 159


DANILO GARNICA SIMINI
A proteção das pessoas com deficiência no Sistema Interamericano de Direitos Humanos

OEA. Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. 1948b. Disponí-


vel em: https://www.cidh.oas.org/Basicos/Portugues/b. Declaracao_America-
na.htm. Acesso em: 20 dez. 2018.

OEA. Convenção Americana de Direitos Humanos. 1969. Disponível em: ht-


tps://www.cidh.oas.org/Basicos/Portugues/c.Convencao_Americana.htm.
Acesso em: 20 dez. 2018.

OEA. Estatuto da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 1979a. Dispo-


nível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/t. Estatuto.CIDH.htm.
Acesso em: 20 dez. 2018.

OEA. Estatuto da Corte Interamericana de Direitos Humanos. 1979b. Disponí-


vel em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/v.Estatuto. Corte.htm.
Acesso em: 22 dez. 2018.

OEA. Convenção Interamericana Para a Eliminação de Todas as Formas de


Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência. 1999. Disponível
em: http://www.oas.org/juridico/portuguese/treaties/a-65.htm. Acesso em
20 ago. 2020.

OEA. Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 2009a.


Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/mandato/Basicos/ Regulamen-
toCIDH2013.pdf. Acesso em: 20 dez. 2018.

OEA. Regulamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos. 2009b. Dis-


ponível em: http://www.corteidh.or.cr/sitios/reglamento/ nov_2009_por.pdf.
Acesso em: 22 dez. 2018.

OEA. Revisão do informe brasileiro pela Comissão para a Eliminação de Todas


as Formas Contra as Pessoas Portadoras de Deficiência. 2017 Disponível em:
http://www.oas.org/es/sedi/ddse/paginas/documentos/discapacidad/CIA-
DDIS-PAD_INFORMES-CUMPLIMIENTO/Segundo-Informe_CIADDIS-PAD/
EVALUACIONES/ResumenEjecutivo_Brasil.pdf. Acesso em: 5 ago. 2020.

PERUZZO, Pedro Pulzatto; LOPES, Lucas Silva. Afirmação e promoção do di-


reito às diferenças das pessoas com deficiência e as contribuições do Sistema
Interamericano de Direitos Humanos. Revista Eletrônica do Curso de Direito da
UFSM, Santa Maria, RS, v. 14, n. 3, p. 1-34, set/dez 2019.

160 RIDH | Bauru, v. 9, n. 2, p. 141-161, jan./jun., 2022. (18)


DANILO GARNICA SIMINI
A proteção das pessoas com deficiência no Sistema Interamericano de Direitos Humanos

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 18.


ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

RAMOS, André de Carvalho. Processo internacional de direitos humanos. 5. ed.,


rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2016.

SIMINI, Danilo Garnica. Controle preventivo legislativo de convencionalidade


no município de São Paulo e os direitos das pessoas com deficiência. Tese (Dou-
torado em Ciências Humanas e Sociais). Programa de Pós-Graduação em
Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal do ABC, UFABC, 2021.

VITTORATI, Luana da Silva; HERNANDEZ, Matheus de Carvalho. Convenção


sobre os direitos das pessoas com deficiência: como “invisíveis” conquistaram
seu espaço. Revista de Direito Internacional, Brasília, DF, v. 11, n. 1, p. 229-263,
2014. Disponível em: https://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/rdi/
article/view/2689. Acesso em: 27 abr. 2022.

Recebido em: 15 de agosto de 202.


Aprovado em: 18 de abril de 2022.

RIDH | Bauru, v. 9, n. 2, p. 141-161, jan./jun., 2022. (18) 161


Educação e engajamento
pelos direitos humanos:
potencialidades e limites dos
cursos livres online da Anistia
Internacional

§ Educación y compromiso por los derechos humanos:


potencial y límites de los cursos gratuitos en línea de
Amnistía Internacional

§ Education and engagement for human rights: potential


and limits of Amnesty International’s open online
courses

Teresa Cristina Schneider Marques1

Resumo: Os cursos online podem ser entendidos enquanto uma das trans-
formações mais significativas da Educação em Direitos Humanos, visto que
passaram a fazer parte do repertório de ação de atores diversos. As organi-
zações não-governamentais com a atuação internacional fazem parte dos
atores atuantes na promoção da EDH que passaram a efetivar cursos dessa
natureza. No presente artigo, apresentamos um estudo do caso dos cursos

1 Doutora (2011) em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com estágio douto-
ral em Sociologia das Relações Internacionais no Institut d’Études Politiques de Paris (Sciences Po). Coordenadora
do curso de graduação em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PU-
CRS). Professora adjunta dos Programas de Pós-graduação em Ciências Sociais e Filosofia da PUCRS.
teresa.marques@pucrs.br

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 163-189, jan./jun., 2022. (18) 163


TERESA CRISTINA SCHNEIDER MARQUES
Educação e engajamento pelos direitos humanos: potencialidades e limites dos cursos livres online da Anistia Internacional

disponibilizados pela Anistia Internacional no seu aplicativo Amnesty’s Human


Rights Academy. Por meio da análise qualitativa de documentos diversos e
cursos disponibilizados pela organização, buscamos compreender as poten-
cialidades da plataforma digital para a educação em direitos humanos e para
o engajamento político transnacional. Para tanto, partimos de diálogo teórico
entre a sociologia da educação e os estudos sobre engajamento político. A
pesquisa indicou que a educação online pode ser entendida enquanto uma
forma de relações das organizações não-governamentais com educação. Ela
demonstra ter potencial para alcançar a juventude em contextos excepcio-
nais e autoritários, sobretudo ao permitir a abordagem de temas contempo-
râneos diversos, ainda que também conte com limitações.

Palavras-chave: Organizações não-governamentais. Educação em direitos


humanos. Ativismo transnacional. Anistia Interrnacional.

Resumen: Los cursos en línea pueden entenderse como una de las transfor-
maciones más significativas de la Educación en Derechos Humanos, ya que se
han convertido en parte del repertorio de acción de diferentes actores. Las or-
ganizaciones no gubernamentales con operaciones internacionales son parte
de los actores involucrados en la promoción de la EDH que han comenzado
a realizar cursos de esta naturaleza. En este artículo, presentamos un estudio
de caso de los cursos proporcionados por Amnistía Internacional en su aplica-
ción Academia de Derechos Humanos de Amnistía. A través del análisis cua-
litativo de varios documentos y cursos proporcionados por la organización,
buscamos comprender el potencial de la plataforma digital para la educación
en derechos humanos y para el compromiso político transnacional. Para ello,
partimos de un diálogo teórico entre la sociología de la educación y los estú-
dios sobre compromiso politico. La investigación indicó que la educación en
línea puede entenderse como una forma de relación entre las organizaciones
no gubernamentales y la educación. Demuestra el potencial para llegar a la
juventud en contextos excepcionales y autoritarios, especialmente al permitir
el abordaje de diversos temas contemporáneos, aunque también tiene limi-
taciones.

Palabras clave: Organizaciones no gubernamentales. Educación en derechos


humanos. Activismo transnacional. Amnistía Internacional.

164 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 163-189, jan./jun., 2022. (18)


TERESA CRISTINA SCHNEIDER MARQUES
Educação e engajamento pelos direitos humanos: potencialidades e limites dos cursos livres online da Anistia Internacional

Abstract: Online courses can be understood as one of the most significant


transformations in Human Rights Education, as they became part of the ac-
tion repertoire of different actors. Non-governmental organizations with an
international presence are part of the actors active in promoting EDH, who
started to carry out courses of this nature. In this article, we present a case
study of the courses made available by Amnesty International in its Amnes-
ty’s Human Rights Academy app. Through the qualitative analysis of various
documents and courses provided by the organization, we seek to understand
the potential of the digital platform for human rights education and for trans-
national political engagement. To do so, we start from a theoretical dialogue
between the sociology of education and studies about political engagement.
The research indicated that online education can be understood as a form
of relationship between non-governmental organizations and education. It
demonstrates the potential to reach youth in exceptional and authoritarian
contexts, especially by allowing the approach of diverse contemporary the-
mes, although it also has limitations.

Keywords: Non-governmental organizations. Human rights education. Trans-


national activism. Amnesty International

1. Introdução
A partir da segunda metade do século XX, multiplicaram-se as orga-
nizações internacionais não-governamentais (OING’s) dedicadas à defesa dos
direitos humanos (Badie, 2008). Elas podem ser consideradas como redes de
ativismos transnacionais, visto que sua atuação conecta atores de diferentes
localidades e nacionalidades (Keck; Sikkink, 1998). A educação em Direitos
Humanos (EDH) é parte do repertório de ação de muitas dessas organizações.
De acordo com os estudos sobre EDH, organizações dessa natureza são gran-
des incentivadoras e promotoras da EDH, ainda que tenham a tendência de
valorizar determinados temas em detrimento de outros na educação em di-
reitos humanos (GOHN, 2011; FLOWERS, 2017).
Em um contexto de valorização das tecnologias digitais, a educação
online também passou a ser valorizada por organizações dessa natureza. Se-
gundo Nancy Flowers (2017, p. 324), os cursos online representam um “novo
espaço para a educação em direitos humanos” e se tornaram o fenômeno re-
cente mais marcante nesse campo. Eles se multiplicaram e alcançaram um
novo padrão, apresentando materiais e cursos em diversos e inovadores for-
matos. Todavia, muito embora a EDH já tenha analisada a partir de diversos

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 163-189, jan./jun., 2022. (18) 165


TERESA CRISTINA SCHNEIDER MARQUES
Educação e engajamento pelos direitos humanos: potencialidades e limites dos cursos livres online da Anistia Internacional

ângulos, ainda existem poucas pesquisas no Brasil sobre a EDH em versão


online, um formato que também passou a ser mobilizado pelas OING’s.
No presente artigo, buscamos contribuir ao destacar a mobilização de
ferramentas digitais pela Anistia Internacional (AI). Trata-se de uma das orga-
nizações não-governamentais de defesa aos direitos humanos mais atuantes
no Brasil, considerada a maior ONG do mundo por especialistas (Clark, 2003).
A organização em questão também trabalha com tecnologias da informação
como ferramentas educacionais (Norlander, 2013). Recentemente, lançou a
Amnesty’s Human Rights Academy, uma plataforma educativa que disponi-
biliza cursos livres e materiais pedagógicos sobre direitos humanos em mais
de 20 idiomas2. Alinhamo-nos com Sacavino e Candau (2020, p. 128) ao afir-
marem que a cultura digital nos desafia a entender “formas de aprendizagem
múltiplas, suas possibilidades e limites”.
No presente artigo que é resultado de uma pesquisa exploratória,
objetivamos identificar as contribuições dessa plataforma de cursos online
para as reflexões sobre potencialidades e limites dos cursos livres online para
a EDH. Parece interessante compreender as relações dessas organizações com
a educação online, sobre os temas destacados pela plataforma e a coerência
com a visão da organização sobre EDH e, por fim, sobre metodologia adotada.
Perguntamo-nos sobre a relação entre o surgimento da plataforma e as trans-
formações contextuais impostas ao ativismo transnacional.
Para tanto, parte-se da combinação das contribuições teóricas da socio-
logia da educação e da sociologia dos movimentos sociais – sobretudo os estu-
dos sobre engajamento individual e ativismo transnacional – para análise dos
conteúdos dos cursos online disponibilizados pela organização na plataforma
Amnesty’s Human Rights Academy. Recorre-se ao estudo de caso em virtude da
implicação de analisar “uma variedade de dimensões que demanda estratégias
de investigação plurais” (ALMEIDA, 2016, p. 62). Com base em pesquisa biblio-
gráfica e técnicas de investigação qualitativas, analisaremos comunicados de
imprensa, relatórios, materiais de divulgação do aplicativo, bem como os mate-
riais disponibilizados pela plataforma em estudo em seus cursos.
O artigo conta com três partes. Na primeira, discutimos a relação entre
educação e diversas formas de associativismo, enquanto na segunda, anali-
samos a “missão pedagógica” da AI. Por fim, na terceira parte, analisamos a
plataforma em estudo, destacando os seguintes pontos: contexto de origem;
as características gerais da plataforma; temas selecionados pela organização
e estratégias/metodologias de ensino.

2 Ver: AI – Anistia internacional. Catálogo de cursos. Amnesty Human rights Academy. 2021b. https://academy.
amnesty.org/learn/catalog. Acesso em: 10 mai. 2022

166 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 163-189, jan./jun., 2022. (18)


TERESA CRISTINA SCHNEIDER MARQUES
Educação e engajamento pelos direitos humanos: potencialidades e limites dos cursos livres online da Anistia Internacional

2. As OING’s, a EDH e as ferramentas digitais


A educação em direitos humanos (EDH) é fundamental para que os
sujeitos se vejam como detentores de direitos e se tornem mais empáticos.
Isto é, ela diz respeito a processos educacionais voltados para a cidadania.
A Educação em direitos humanos é essencialmente a formação de
uma cultura de respeito à dignidade humana, através da promoção
e da vivência de atitudes, hábitos, comportamentos e valores como
igualdade, solidariedade, cooperação, tolerância e paz. Quando fa-
lamos em cultura [...] falamos em formação de uma cultura de res-
peito aos direitos humanos, à dignidade humana, tomando como
referência o próprio inacabamento do homem, eterno aprendiz,
sujeito de sua própria cultura que se constitui humano pela própria
experiência humana (GORCZEVSKI; TAUCHEN, 2008, p. 71).

Partindo das contribuições de Paulo Freire (2021), é possível refletir


que, embora a escola seja fundamental para esse processo, a EDH não deve
ficar limitada à escola. Assim, os movimentos sociais se tornam importantes
na transmissão de valores, sobretudo para a juventude, visto que no interior
das organizações políticas ocorre um importante processo de transmissão de
saberes que possui caráter educativo. Portanto, a educação em direitos hu-
manos também pode ser promovida no interior do movimento social e de
organizações não-governamentais.
As organizações internacionais não-governamentais (OING’s) estão
entre os atores emergentes no cenário internacional após o fim da segunda
guerra mundial. Tais organizações são atores não-estatais que visam influen-
ciar a política nacional e internacional. Com a institucionalização alcançada
no cenário internacional com o fim da guerra fria, elas alcançaram visibilidade
crescente, inclusive em espaços multilaterais como a Organização das Nações
Unidas (ONU) (BADIE, 2008). No Brasil, segundo Maria da Glória Gohn (2011,
p. 341), elas se encontram entre as formas de associativismo que reuniram
setores populares no Brasil e que ganharam destaque, sobretudo, a partir da
década de 1990. Para a socióloga, o caráter educativo assumido pelas ONGs e
os movimentos sociais tradicionalmente se dá de duas formas:
A relação movimento social e educação existe a partir das ações prá-
ticas de movimentos e grupos sociais. Ocorre de duas formas: na in-
teração dos movimentos em contato com instituições educacionais,
e no interior do próprio movimento social, dado o caráter educativo
de suas ações (GOHN, 2011, p. 334).

O contato com as instituições de ensino é uma das formas de rela-


cionamento com a educação destacada por Gohn. A educação formal por
meio da rede pública é uma forma marcante de relacionamento das ONG’s

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 163-189, jan./jun., 2022. (18) 167


TERESA CRISTINA SCHNEIDER MARQUES
Educação e engajamento pelos direitos humanos: potencialidades e limites dos cursos livres online da Anistia Internacional

com a educação. Porém, a segunda forma, também é relevante, sobretudo


no caso da EDH. A educação no interior do próprio movimento social pode
ser entendida enquanto uma educação não formal, de acordo com Gohn. Ela
ocorre além das instituições educacionais formais e dos usos que estas fazem
de espaços coletivos exteriores às unidades escolares, tais como praças, mo-
numentos históricos, etc. Enquanto as instituições escolares estariam direta-
mente conectadas à um currículo previamente estabelecido e limitado pela
legislação nacional que rege o ensino em todas as suas esferas, a educação
não formal “volta-se para a formação de cidadãos(as) livres, emancipados,
portadores de um leque diversificado de direitos, assim como de deveres para
com o(s) outro(s)” (GOHN, 2010, p. 33).
Essa perspectiva, definida por Maria da Glória Gohn enquanto uma arti-
culação ao campo da “educação cidadã”, visa ultrapassar a visão que opõe edu-
cação formal/escolar e a educação não formal, uma vez que elas podem ser en-
tendidas enquanto complementares. De forma resumida, nos alinhamos à sua
definição de educação não formal: “Um processo sociopolítico, cultural e peda-
gógico de formação para a cidadania, entendendo o político como a formação
do indivíduo para interagir com o outro em sociedade” (GOHN, 2010, p. 33)
Portanto, há um processo de aprendizado no diálogo entre ativistas
nas mais diversas práticas militantes, permitindo que esses processos sejam
entendidos como uma forma de educacional não-formal. Sem a formação te-
órica militante não é possível construir acordo sobre os enquadramentos, ou
seja, uma interpretação da realidade com vistas ao engajamento e busca de
soluções (SNOW et al., 1986). Além disso, muitos repertórios – isto é, as for-
mas de ação disponíveis em um dado contexto para os atores políticos (TILLY,
2016) - exigem saberes específicos.
Essa dimensão educativa é ainda mais visível em organizações dedica-
das à defesa dos DH. Além de a EDH ser fundamental para que os sujeitos se
vejam como detentores de direitos e se tornem mais empáticos, ela também
oferece o conhecimento necessário para o engajamento no âmbito das orga-
nizações. Conforme destacado por Michel Offerlé (1998, p.119), a preparação
de relatórios, dossiês, dados que enfim possam ajudar a organizações a se opo-
rem aos dados oficiais são exemplos interessantes do papel da educação para a
ação coletiva. De acordo com a socióloga Johanna Simèant em entrevista para
um livro sobre os 50 anos da AI, essa dimensão educativa/formativa é ainda
mais importante para formas de militância setoriais ou especializadas, entre as
quais se encontram as organizações centradas na defesa dos direitos humanos
(VERS UN..., 2011, p.121). Assim, a EDH é essencial para as organizações inter-
nacionais de defesa aos DH, visto que há um savoir-faire militante que deve ser
transmitido para a efetivação das ações propostas por essas organizações.

168 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 163-189, jan./jun., 2022. (18)


TERESA CRISTINA SCHNEIDER MARQUES
Educação e engajamento pelos direitos humanos: potencialidades e limites dos cursos livres online da Anistia Internacional

Todavia, mais do que transmitir os DH, de acordo com Nancy Flowers


(2004), as organizações não-governamentais estão entre os agentes que pro-
porcionam definições para a EDH, assim como as organizações intergoverna-
mentais, os educadores e instituições de ensino. A multiplicidade de agentes
que buscam contribuir com esse debate resulta em um número amplo de de-
finições que variam de acordo com os lócus de atuação dos agentes. Dessa
forma, as práticas e metodologias de ensino, como com as temáticas privile-
giadas, podem variar sobremaneira. Inclusive, essa capacidade de adaptação
da EDH, é considerada uma das suas forças por especialistas (BAJAJ, 2011).
Mas queremos destacar uma mudança significativa que passou a to-
car todas as dimensões da vida, e, consequentemente, a relação das OINGI’s
e movimentos sociais com a educação: as novas tecnologias de educação. De
acordo com Baxto e Carneiro (2019, p. 36), “Na sociedade contemporânea, as
TIC exercem cada vez mais papéis importantes que repercutem nas dimen-
sões [...] educacionais”.
Como resultado dessas transformações, verifica-se o surgimento de
múltiplas ferramentas digitais que permitem a emergência de processos edu-
cativos mais ativos. Tal transformação é tão significativa que permite refletir
sobre uma nova forma de relação das OINGI’s com a educação, além das duas
formas apontadas por Gohn. Com a pandemia do Covid-19 as novas tecnolo-
gias de comunicação se tornaram ainda mais importantes, passando a fazer
parte da nossa vida cotidiana, em suas mais variadas dimensões (SACAVINO;
CANDAU, 2020). Torna-se importante refletir sobre práticas de ensino como
parte de um contexto global que foi influenciado por essa nova realidade.
A dimensão política da vida, consequentemente, foi tocada por essa
transformação, inclusive a política transnacional. É possível refletir que os ato-
res por trás de ações políticas transnacionais estão entre os pioneiros na mo-
bilização desses recursos. Segundo Guillaume Devin (2004, p. 20), o avanço
dos meios de comunicação no século XX mudou a intensidade e ampliou as
possibilidades de conexões de solidariedade entre atores de diferentes países
com mais rapidez do que outrora.
Tal debate nos leva a refletir sobre essa transformação como parte das
transformações do militantismo, dentre as quais, destacamos três. Em pri-
meiro lugar, verifica-se uma nova força garantida às lutas transnacionais, tais
como os movimentos antiglobalização e as próprias organizações de solida-
riedades transnacionais (SOMMIER, 2003, p. 45-46). Essa nova força em espa-
ços como a ONU garante ao ativismo transnacional o sentimento de eficácia
buscado pelos militantes, segundo Memmi (1985), tornando a transnaciona-
lização das lutas por direitos em uma das mudanças mais significativas do
cenário internacional em tempos globalizados (SIMÈANT, 2005). Em segundo

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 163-189, jan./jun., 2022. (18) 169


TERESA CRISTINA SCHNEIDER MARQUES
Educação e engajamento pelos direitos humanos: potencialidades e limites dos cursos livres online da Anistia Internacional

lugar, verifica-se um novo perfil de ativista, chamados por Jacques Ion de “mi-
litantes post-it”: ativistas com engajamento mais pontual, diante do tempo
para o militantismo comprimido pelo capitalismo (ION, 2012). Por último, des-
taca-se o papel desempenhado pelos conhecimentos técnicos de informática
enquanto um potencial para o engajamento, visto que rapidez da internet
permite potencializar o tempo dedicado à política e ampliação das conexões
(VERS UN..., 2011, p.119). Importante ressaltar que, de acordo com McAdam
e Paulsen (1993), as redes de relacionamento interpessoal são fundamentais
com o engajamento político.
Diante desse novo perfil de ativista, da força dos novos canais de co-
municação e da importância da educação política para as organizações trans-
nacionais, o potencial das ferramentas digitais para a educação em direitos
humanos e educação política em geral se torna evidente. De acordo com
Pavani, os mais diferentes espaços de interação disponibilizados pelas novas
ferramentas de comunicação podem ser vistos como espaços não-formais de
ensino, ainda que limitados:
Como produtos do modelo econômico vigente, essas ferramentas
não estão, necessariamente, destinadas ou comprometidas com
a educação formal e com os seus fins didáticos, uma vez que são
canais de veiculação e comercialização de serviços e produtos. En-
tretanto, sua utilização pode resultar em práticas “não formais” de
ensino (PAVANI, 2021, p. 503).

Diante dessa realidade, nos alinhamos com Sacavino e Candau (2020),


ao afirmarem a necessidade de refletir sobre processos de letramento digital
para superar as barreiras à conectividade. De forma geral, no Brasil e em diver-
sos países, o acesso ao ensino ainda é limitado, mas as dificuldades vão além de
questões tecnológicas de acesso e financeiras. De qualquer forma, embora não
estejam ao acesso de todos, tais ferramentas permitem ultrapassar barreiras ge-
ográficas e parte dos impedimentos ao acesso à educação (PAVANI, 2021).
Logo, os chamados cursos livres em modalidade online vêm se mul-
tiplicado. Trata-se de cursos que não são regulamentados pelo Ministério da
Educação, mas que oferecem saberes específicos, sem a exigência de forma-
ção anterior. Não há normativas sobre a carga horária ou a formação dos/
das docentes e podem ser ofertados em todo o território nacional, tanto em
formato online quanto presencial, gratuitamente ou não, certificados ou não.
Tais cursos podem ser entendidos enquanto uma modalidade de ensino de
caráter não-formal, amparados pela lei n. 9394 de 20 de dezembro de 1996
e pelo decreto n.5.154 de 23 de julho de 2004 (BRASIL, 1996; BRASIL, 2004),
ainda que não sejam regulamentados pelo Ministério da Educação (MEC).
Em um contexto marcado também pela pandemia Covid-19, é notável
que diversos perfis e páginas políticas – sobretudo no Instagram e Youtube –

170 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 163-189, jan./jun., 2022. (18)


TERESA CRISTINA SCHNEIDER MARQUES
Educação e engajamento pelos direitos humanos: potencialidades e limites dos cursos livres online da Anistia Internacional

passaram a oferecer os chamados “cursos livres”. No Brasil, se destacam canais


tais como o canal marxista “Tese Onze”. Conforme já destacado na introdução,
tais cursos se multiplicaram e se diversificaram, apresentando materiais com
propostas e formatos inovadores. Em termos de EDH, eles são a mais marcan-
te e recente transformação, segundo Nancy Flowers (2017, p.32-324).
Não raro, as organizações e atores políticos que oferecem cursos livres
mesclam a oferta de conhecimento científico com uma leitura política dos pro-
blemas sociais e políticos da atualidade, tornando o curso um “convite à ação”.
É o caso do canal “Tese Onze”, um “projeto de educação política e divulgação
científica”, produzido pela socióloga Sabrina Fernandes. Em entrevista para uma
das poucas pesquisas localizadas sobre o tema, de autoria William Victor Torrico,
Sabrina afirmou o diferencial dos cursos livres para a formação política:
O Tese Onze não substituiria uma aula de Sociologia minha, por
exemplo, quando dou cursos livres, tenho a oportunidade de mis-
turar as duas coisas: um pouco da minha intenção política, com te-
óricos plurais que trazem contrapontos também. Digamos, então,
que apesar de todo ensino ter viés, crítico, no caso, o Tese Onze é
abertamente enviesado para o marxismo (TORRICO, 2020, p. 21-22).

A fala de Sabrina nos permite refletir sobre o potencial dos cursos livres
online para a mobilização política e, consequentemente, para a especificidade
da educação em direitos humanos. Furar a “bolha do conhecimento” por meio
da educação não-formal online é entendida enquanto uma forma de luta po-
lítica e resistência. A educação tem uma função de recrutamento e formação
militante, mas antes disso, ela importa para a construção da sensibilização po-
pular em favor dos direitos humanos. De acordo com Simèant em entrevista, a
formação de organizações dessa natureza é mais interessada em sensibilizar a
opinião pública do que em recrutar ativistas fiéis (VERS UN..., 2011, p.119).
Objetivamos compreender o caso do aplicativo Amnesty’s Human Rights
Academy. Assim, passamos primeiro à análise da atuação da AI no campo da EDH.

3. O ativismo transnacional da Anistia Internacional e


sua “missão pedagógica”
A Anistia Internacional pode ser identificada como uma ONG Advoca-
cy ou uma Transnacional advocacy network. Em outras palavras, trata-se de
uma organização internacional não-governamental que engaja ativistas em
todo o globo em ações coletivas e que é implicada em processos que buscam
aprofundar uma governança global ou transnacional em favor dos Direitos
Humanos (KECK; SIKKINK, 1999). Lidas a partir de uma perspectiva relacional

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 163-189, jan./jun., 2022. (18) 171


TERESA CRISTINA SCHNEIDER MARQUES
Educação e engajamento pelos direitos humanos: potencialidades e limites dos cursos livres online da Anistia Internacional

do engajamento político, é possível compreender que contexto influencia a


ação de tais organizações oferecendo oportunidades e impondo restrições,
mas por outro lado, tais organizações atuam visando mudar essa relação em
seu favor (TILLY, TARROW, 2008; DELLA PORTA, TARROW, 2005).
É o caso da AI. Ela surgiu em 1961 em Londres, após a publicação do
artigo “The Forgotten Prisoners” (MEIRELLES, 2016). Em um contexto marcado
pela Guerra Fria, esse apelo à solidariedade internacional deu origem a uma
organização que hoje é atuante em centenas países (CLARK, 2003). Além da
expansão geográfica, ao longo de seis décadas de existência, a AI também
ampliou os temas abordados, o repertório de ação e mesmo as suas arenas
de atuação. Quanto aos temas destacados pela organização em DH, até o iní-
cio da década de 1990, ela esteve voltada para os direitos civis e políticos,
tais como liberdade de pensamento, organização política e expressão. A in-
corporação dos Direitos econômicos, sociais e culturais (DhESC) no estatuto
da organização ocorreu em 2011, após o fim da Guerra Fria, segundo a pági-
na oficial da organização no Brasil3. Quanto as ações da AI, em geral elas to-
mam duas direções: a da promoção dos DH e de oposição aos seus violadores
(POINSOT, 2012, p.440-441). Por meio de suas ações, a AI contribuiu para a
definição do entendimento acerca dos DH por meio da articulação da pressão
de ONGs contra os Estados Nacionais em organismos internacionais. Entre os
mesmos, se destaca a Organização das Nações Unidas (ONU), onde ela inclu-
sive atua como membro consultivo (HERNANDEZ; VRECHE, 2016, p. 91).
Ao assumir uma leitura da educação que a entende como processos
que devem ir além das instituições formais de ensino, pode-se entender a
EDH enquanto parte da direção da promoção dos DH. Todavia, essa relação
com a educação nem sempre se deu por meio do contato com instituições
educacionais formais. Destacam-se algumas iniciativas educacionais, tais
como a estratégia do treinamento de representantes das categorias profis-
sionais consideradas fundamentais para ampliar a eficácia da mobilização em
favor dos direitos humanos. A organização definiu alguns setores como “seto-
res alvo”, cuja atuação é identificada como diretamente ligada à aplicação dos
DH pela AI. Assim, médicos, assistentes sociais, policiais, educadores – entre
outros – estão entre as categorias visadas pelos treinamentos oferecidos pela
organização com o objetivo de garantir instrumentos para uma atuação ainda
mais voltada à promoção dos direitos humanos. Como exemplo, ainda em
1978 a AI organizou seminários voltadas para a categoria médica (CRÉMIEU;
LEFAIT, 2011, p. 182). Na leitura de Gohn, essas iniciativas podem ser entendi-

3 Ver: Anistia Internacional. Quem somos. Anistia Internacional Brasil. Disponível em: https://anistia.org.br/quem-
-somos/. Acesso em: 3 fev. 2021

172 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 163-189, jan./jun., 2022. (18)


TERESA CRISTINA SCHNEIDER MARQUES
Educação e engajamento pelos direitos humanos: potencialidades e limites dos cursos livres online da Anistia Internacional

das como educação no interior das organizações.


Mas foi, sobretudo, a partir de 1985 que a AI passou a investir mais
em EDH, sobretudo por meio do contato com instituições formais de ensino.
Segundo Flowers (2017, p. 323), até então, a organização contava apenas com
um grupo de membros dedicados à EDH na Alemanha, que, embora muito
eficaz, era muito pequeno. Foi em 1986 a organização se comprometeu com
a EDH. No relatório que cobria o ano de 1985, publicizou o diagnóstico feito
pela organização acerca da importância da EDH, com fins de garantir à popu-
lação os conhecimentos sobre os seus direitos. De acordo com a própria AI,
em seu relatório de 1986, p. 6-7:
A luta pelos Direitos Humanos deve ir além das vítimas individuais
e dos atuais padrões de abuso. [...] O próprio cidadão deve ser cons-
cientizado sobre seus direitos e saber reclamar quando estes são
infringidos. Esses objetivos implicam um programa de educação
em direitos humanos que começa na escola e se estende a todos
os membros da comunidade. Alguns governos precisam de assis-
tência na elaboração e implementação de tal programa. É impor-
tante que a ONU e outros órgãos intergovernamentais respondam
positivamente a tais solicitações e que os países mais ricos estejam
preparados para ajudar no financiamento de tais esforços. Às vezes
é possível, principalmente após mudanças de governo, dar passos
nessa direção (Tradução nossa).

O texto evidencia a percepção de que a EDH era fundamental, tanto


no âmbito da educação formal, quanto no âmbito da educação não-formal.
No texto de 1986, em um contexto marcado pela chamada terceira onda de
democratização, a AI se propôs a assumir um papel mais ativo na promoção
da EDH, mas destacou a função prioritária dos Estados nacionais nesse pro-
jeto.
A Anistia internacional tentou assumir sua parte nessa responsabili-
dade. [...] O papel central da Anistia Internacional, no entanto, con-
tinua sendo do cão de guarda. Coleta e analisa informações sobre
supostas violações e entra em ação para ajudar as vítimas (AI, 1986,
p. 6-7 – Tradução nossa).

No segundo trecho destacado do texto que abre o relatório anual, per-


cebe-se o comprometimento com o deslocamento de parte dos seus esforços
no auxílio dos Estados à efetivação de projetos de EDH, ao mesmo tempo
em que a organização insiste no foco nas denúncias das violações cometidas
pelo Estado. Todavia, a organização assumiu então o compromisso por meio
da mobilização de equipes em diversos países e da produção de materiais
educativos sobre DH.
Em um primeiro momento, destacam-se as ações em diálogo com
instituições de ensino. A organização estabeleceu destaque aos educadores
entre as categorias que compõem os “setores alvo” da AI. Com o objetivo ini-

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 163-189, jan./jun., 2022. (18) 173


cial de promover a Convenção sobre os Direitos da Criança, foi adotada pela
Assembleia Geral da ONU em 20 de novembro de 1989 e os programas edu-
cacionais a ela vinculados, a AI intensificou uma nova estratégia de ação ainda
na década de 1990: a conexão com instituições educacionais e educadores
do ensino básico ao ensino superior (CRÉMIEU; LEFAIT, 2011, p. 184). Por meio
dessas conexões, os educadores muitas vezes se tornam tradutores de uma
linguagem global dos direitos humanos para uma linguagem local, sendo res-
ponsáveis pelo enfrentamento ao relativismo cultural que argumenta que a
definição ocidental dos direitos humanos pode entrar em chique com valores
locais (MERRY, 2006). Os educadores são entendidos pela AI como um dos
principais “multiplicadores” dos DH e por isso programas educacionais diver-
sos são efetivados em colaboração com atores locais, tais como o programa
“ação e educação” que teve início na Noruega e que em 2011 existia em 10
países entre dezenas de outros projetos (CRÉMIEU; LEFAIT, 2011, p. 195).
Segundo Crémieu e Lefait (2011, p. 196), o contato promovido com as
crianças e populações em situação de vulnerabilidade por meio dos projetos
educativos garante retorno aos militantes da organização, acostumados a atu-
ar em condição de anonimato com tarefas técnicas. Portanto, o contato direto
com as populações assistidas nos projetos de educação em direitos humanos
se mostra importante também quanto às retribuições do militantismo, con-
sideradas fundamentais por Gaxie (2011) para a longevidade do movimento.
Segundo ele, a gratificações do militantismo estão em concorrência com as
gratificações oferecidas à outras atividades. Juntamente com o conhecimento
adquirido e o sentimento de eficácia oferecido pela legitimidade mundial ga-
rantida pela organização, podemos compreender a educação enquanto parte
da estratégia de transformação social da AI, mas também da promoção da
própria organização.
Progressivamente, a organização estabeleceu a EDH como central em
seu repertório. De acordo com suas páginas oficiais, a organização entende
a EDH de forma multidimensional, destacando três facetas: “Conhecimentos
e habilidades; Valores e ação” (AI, 2021a). Com efeito, foi criada uma equipe/
rede voltada para a EDH e a AI passou a publicar dossiês regulares que abor-
davam o ensino e a aprendizagem dos direitos humanos, bem como materiais
educativos em diferentes formatos. Tais dossiês são anuais, segundo a equipe
de educação da AI (2019, p. 3). O acompanhamento que a rede faz de seus
projetos tem como base os critérios do World Programme for Human Rights
Education construído pelas ONU/UNESCO (2006) para a década para Educa-
ção em direitos humanos, definida entre 1995 e 2004.
Há pouco mais de uma década, a organização vem incrementando o
seu programa de EDH com o uso das ferramentas digitais, abrindo uma nova
TERESA CRISTINA SCHNEIDER MARQUES
Educação e engajamento pelos direitos humanos: potencialidades e limites dos cursos livres online da Anistia Internacional

forma de diálogo com a educação. Segundo Norlander (2013), o uso de tais


ferramentas contribuiu para a divulgação de informações, recursos e mate-
riais. Tal como destacado por Shalil Shetty, que foi secretário geral da AI entre
2010 e 2018, esse era o principal o objetivo do programa para a organização:
A educação em direitos humanos é fundamental para abordar as
causas subjacentes da injustiça em todo o mundo. Quanto mais as
pessoas souberem sobre seus direitos e os direitos dos outros na
sociedade, mais bem equipadas estarão para protegê-los (AI, 2010
– Tradução nossa).

Todavia, para Rebecca Norlander (2013), o caso do website interativo


Respectmyrights.com demonstra que apesar desse ganho destacado, a ferra-
menta pecou por não aplicar uma abordagem mais participativa da EDH. Le-
vando em consideração o histórico da organização e tais objetivos, marcado
pela ampliação e constante aprimoramento do seu repertório de ação, nos
perguntamos sobre as potencialidades do Amnesty’s Human Rights Academy
enquanto uma nova forma de interação online da ONGI com a educação. Para
tanto, buscaremos compreender o contexto de origem e foco da plataforma;
Temas selecionados pela organização e metodologias de ensino.

4. Estudo de caso: Amnesty’s Human Rights Academy


A ampliação do acesso aos computadores e à internet que marca o
século XXI faz que os cursos online sobre os DH tenham tido um visível cres-
cimento nas duas últimas décadas. Segundo Nancy Flowers (2017, p. 324), a
Human Rights Education Associates (HREA) foi pioneira em cursos dessa na-
tureza, estabelecendo altos padrões. A organização em questão deu início à
oferta de cursos online em 2002 e adapta constantemente os seus cursos. Eles
são oferecidos em diferentes formatos, com curta duração e metodologias
inovadoras de ensino online.
Por sua vez, a AI lançou os seus primeiros cursos em online em 2015,
em formato de arquivos e em parceria com a Edx4, uma plataforma global
voltada para o compartilhamento de cursos educativos (Amnesty Internacio-
nal, 2016). Em uma página intitulada AmnestyInternationalX eram compar-
tilhados chamados Massive Open Online Courses (MOOCs), disponibilizados
sobretudo em inglês e espanhol. Os cursos abordam temas variados: da “In-
trodução aos direitos humanos” a “International Women’s Health and Human

4 Ver: Amnesty International. AmnestyinternationalX. Edx. 2016. Disponível em: https://www.edx.org/school/am-


nestyinternationalx. Acesso em: 23 dez. 2021.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 163-189, jan./jun., 2022. (18) 175


TERESA CRISTINA SCHNEIDER MARQUES
Educação e engajamento pelos direitos humanos: potencialidades e limites dos cursos livres online da Anistia Internacional

Rights”. Ao abordar tanto uma perspectiva introdutória, quanto debates atu-


ais sobre a saúde da mulher, tais cursos já demonstravam a abertura temática
da organização, bastando apenas o acesso à internet para realizá-los. De acor-
do com a descrição disponível no comunicado da organização, muitos cursos
disponibilizados na plataforma AmnestyInternationalX apresentam um deba-
te amplo a partir de leituras acadêmicas. Era o caso do curso “Psychology of
Political Activism: Women Changing the World” que objetivava abordar “teo-
rias psicológicas” (AI, 2016).
Por sua vez, a análise dos documentos de informes e das matérias di-
vulgadas pela própria organização indica que o aplicativo Amnesty’s Human
Rights Academy foi lançado pela em 2020 (AI, 2020a). Contudo, ele foi ideali-
zado muito antes e elaborado ao longo de três anos antes do seu lançamento,
com alguns cursos lançados ainda em 2018 como parte do projeto. Segundo
um texto divulgado pela organização em 2019, a Primavera Árabe foi o con-
texto que motivou o início da elaboração da plataforma:
Após a Primavera Árabe e uma crise de direitos humanos em curso
no Oriente Médio e Norte da África (MENA), os jovens da região es-
tão ansiosos para desempenhar um papel importante na criação de
mudanças. Ao mesmo tempo, as ferramentas necessárias para trans-
formar a sociedade são de difícil acesso e a jornada de aprendizado
para eles é bloqueada por quem está no poder. Os Defensores dos
Direitos Humanos no MENA enfrentam ameaças significativas de se-
gurança e proteção em sua luta pelos direitos humanos. Dependen-
do do país, a simples participação em um workshop ou treinamento
em direitos humanos pode resultar em deportação, proibição de
viagem ou até mesmo encarceramento. A realidade do caminho
para a mudança é drasticamente diferente dependendo do país,
mas muitos Defensores de Direitos Humanos vivem em situações
perigosas, muitas vezes afetadas por conflitos e opressão. Com esse
conhecimento em mente, a equipe de Educação em Direitos Huma-
nos da Anistia Internacional decidiu elaborar um plano sobre como
apoiar esses agentes de mudança (AI, 2019ª – Tradução nossa).

A Primavera Árabe, com início em 2011, pode ser considerada um ciclo


de protestos contra o autoritarismo dos governos na Tunísia e no Egito que ra-
pidamente alcançou outros países, como a Síria e a Líbia. Portanto, foram pro-
testos com impacto transnacional que ficaram marcados também por duas
características marcantes: o protagonismo da juventude e o caráter inovador
dos repertórios potencializados por canais de comunicação como facebook
e twitter. Para Ferabolli (2012), os novos canais de informação de então con-
tribuíram para a comunicação e “encorajamento” de ativistas. Em entrevista
à BBC em 2011, Eric Hobsbawm atribuiu tais características – bem como o
alcance dos protestos e seu caráter inovador – ao papel desempenhado pela
classe média e pela juventude estudantil (WHITEHEAD, 2011). Assim, a prima-
vera Árabe evidenciou a importância de um ator para o cenário internacional

176 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 163-189, jan./jun., 2022. (18)


TERESA CRISTINA SCHNEIDER MARQUES
Educação e engajamento pelos direitos humanos: potencialidades e limites dos cursos livres online da Anistia Internacional

– a juventude, e, mais particularmente os estudantes – bem como o papel da


internet para a construção de mobilizações e solidariedades transnacionais.
Todavia, a primavera também evidenciou novos desafios para o ativis-
mo transnacional e para os defensores dos direitos humanos. Entre eles, po-
demos destacar as próprias dificuldades de acesso à internet e uma questão
considerada nova para os defensores dos direitos humanos em nível trans-
nacional, a questão da segurança digital. Como se sabe, os novos desafios
se somam àqueles impostos ao ativismo político em regimes autoritários. De
acordo com os estudos sobre o engajamento político, a repressão, o risco de
deportação, prisão ou assassinato são custos implicados na ação política que
aumentam em regimes autoritários (TARROW, 2009; TARROW, 2005). A ordem
internacional organizada em Estados independentes faz com que os direitos
civis e políticos permaneçam vinculados ao território-nação por meio da ci-
dadania, trazendo ainda mais custos ao ativismo transnacional. Portanto, em
variadas situações, assistir um curso ou um treinamento sobre direitos hu-
manos pode significar um grande risco para ativistas, colocando em xeque
um processo formativo fundamental para a passagem para o engajamento,
sobretudo quando ele atravessa fronteiras nacionais.
Diante desse cenário, o aplicativo Amnesty’s Human Rights Academy
demonstra um grande potencial para o engajamento em regiões nas quais
o direito à manifestação é limitado. Conforme já destacado, tal limitação foi
identificada pelos ativistas da organização nos países do norte da África e
Oriente Médio. Boa parte desse potencial se deve ao uso da tecnologia que
leva em consideração as dificuldades impostas ao ativismo, tais como a pró-
pria dificuldade ao acesso à internet e a coerção estatal. Visando diminuir
esses custos, o aplicativo permite que todos os cursos sejam baixados a fim
de serem acompanhados offline, disponíveis em aparelhos iOS e Android (AI,
2020a).
O contexto da primavera árabe como motivador para o desenvolvi-
mento do aplicativo é visível na plataforma em questão. Diferente da Amnes-
tyInternationalX na qual os cursos eram disponibilizados sobretudo em inglês
e espanhol, no aplicativo Amnesty’s Human Rights Academy, o segundo idio-
ma que conta mais cursos é o idioma Árabe, com 20 cursos, atrás apenas da
língua inglesa, que conta com 23 cursos na plataforma (incluindo os cursos
que são compostos por dois cursos ou mais). Além da língua inglesa e árabe,
há cursos disponibilizados em: espanhol (19 cursos), francês (12 cursos), core-
ano (6 cursos), russo (5 cursos), português (3 cursos), turco (3 cursos), húngaro
(4 cursos), chinês (3 cursos), norueguês (2 cursos), tcheco (2 cursos), alemão
(2 cursos), ucraniano (1 curso), grego (1 curso), urdu (2 cursos), eslovaco (3
cursos), polonês (3 cursos), tailandês (1 curso), islandês (3 cursos), bengali (1

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 163-189, jan./jun., 2022. (18) 177


TERESA CRISTINA SCHNEIDER MARQUES
Educação e engajamento pelos direitos humanos: potencialidades e limites dos cursos livres online da Anistia Internacional

curso) búlgaro (2 cursos), italiano (5 cursos), língua cazaque (1 curso); finlan-


dês (1 curso), Língua mongol (1 curso) e romeno (1 curso) (Amnesty Interna-
tional, 2021b). A plataforma está em constante atualização, mas a diversidade
de idiomas evidencia o interesse da organização em expandir o alcance geo-
gráfico do acesso aos cursos de educação em direitos humanos por meio do
ensino online.
Muito embora existam informes que destaquem que as características
do aplicativo permitem que uma diversidade de pessoas tenha acesso aos
cursos, as divulgações dos mesmos e informes de imprensa abordam o inte-
resse em sensibilizar a juventude em favor dos direitos humanos (AI, 2020a):
“Sensibilizar a nova geração de ativistas”, “foco na juventude”, são expressões
recorrentes nos informes da organização sobre o aplicativo em estudo. Im-
portante destacar ainda a relação íntima que as novas gerações estabelece-
ram com as tecnologias de informação, o que as tornam um ator muito eficaz
para o ativismo político segundo um estudo sobre a Rede francesa “Educação
sem fronteiras” (LAFAYE; BLIC, 2011).
O foco na juventude também é perceptível nas divulgações dos cursos
nas páginas da organização, que muitas vezes fazem referência ao fato de que
alguns cursos disponibilizam certificados de cursos livres5. Percebe-se aí o foco
em um público cuja formação se encontra em construção. Conforme observa-
do por Gaxie (2005), as retribuições do ativismo concorrem com outras dimen-
sões da vida. Nesse sentido, a prática de certificados diz tanto sobre as retri-
buições do ativismo, quanto das limitações do tempo impostas aos ativistas. A
certificação permite que os cursos tenham uma dupla função para os ativistas,
potencializando do tempo livre ao garantir a ela também a função de formação
acadêmica. O objetivo que tais cursos alcancem os jovens por meio da educa-
ção é ainda verificável no “Guia para professores”, voltado para a categoria que
se mantém enquanto um “alvo” para a organização (AI, 2020b).
Quanto aos temas selecionados para a plataforma, destaca-se que,
tal como apontado por Flowers (2017), é esperado que organizações não-
-governamentais destaquem determinados temas em direitos humanos. Tal
seleção não as impede de defender o seu caráter indivisível e universal. Por
outro lado, permitem verificar os objetivos da organização. Os cursos em in-
glês permitem verificar a visão da EDH da organização nos cursos oferecidos
pelo aplicativo. No caso da plataforma em questão, 23 cursos se encontravam

5 Com exemplo, citamos as divulgações efetuadas no facebook da filial brasileira da ONGI. Ver: ANISTIA INTER-
NACIONAL BRASIL. Facebook page. Post de 20 de julho de 2020. Disponível em:
https://anistia.org.br/evento/inscreva-se-no-curso-online-gratuito-sobre-direitos-humanos/?fbclid=IwAR1s-
-kULLpKK1KCy0wDW83u6G5MC4tJkxZwY0JEacXMokPB9zUS0iWRHn4k. Acesso em: 20 dez. 2021

178 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 163-189, jan./jun., 2022. (18)


TERESA CRISTINA SCHNEIDER MARQUES
Educação e engajamento pelos direitos humanos: potencialidades e limites dos cursos livres online da Anistia Internacional

disponíveis em maio de 20226.


Em tais cursos, é notável o foco nos direitos civis e políticos. Isso é ve-
rificável com os cursos introdutórios aos direitos humanos, dentre os quais se
destacam os cursos sobre liberdade de expressão, direito ao protesto e o de-
bate sobre desarmamento. Destacam ainda os temas atuais, como os direitos
civis em tempos pandêmicos e sobre o tema da segurança digital, que, con-
forme destacado, é um impedimento importante para a formação militante
exigida pelo ativismo em favor dos direitos humanos.
A escolha dos temas evidencia ainda a possibilidade garantida pela
ferramenta para a oferta de uma rápida resposta educativa aos desafios mais
recentes impostos pelas transformações contextuais. Por outro lado, parece
haver uma grande diferença temática a depender do idioma dos cursos, além
da diferença quanto ao número de cursos oferecidos. A título de exemplo, em
português ainda existem apenas três cursos disponíveis, a saber: “Introdução
aos Direitos Humanos”; “Defensoras e defensores em direitos Humanos: guia
resumido”; e “Uma introdução aos Direitos Humanos”. Há ainda cursos uma
variedade de cursos distintos em outros idiomas, tais como o curso sobre di-
versidade sexual em espanhol, entre outros.
Ainda que a análise dos cursos em inglês em português seja insufi-
ciente para verificar a absorção da diversidade temática adotada pela orga-
nização a partir da década de 1990 em seu projeto de educação online, é
possível verificar as três dimensões da EDH escolhidas pela organização na
plataforma: Conhecimento e habilidades; Valores e ação. Assim, percebe-se
que ao promovera EDH por meio dos cursos online, a AI busca: 1) contribuir
para que cada pessoa que alcançada tenha informações necessárias para se
reconhecer como sujeito de direitos; 2) Promover uma cultura de empatia,
tolerância e responsabilidade em relação à pessoas de outros países e etnias,
bem como sobre desafios globais à promoção dos DH; 3) sensibilizar a socie-
dade em favor da tomada de posição efetiva em favor dos direitos humanos.
Ainda que seja possível verificar um foco específico em cada curso, os três ob-
jetivos estão interligados, alinhando à plataforma às diretrizes da organização

6 São eles: “An Introduction to Human Rights”; “An Introdution to Child’s rights”; “Covid-19 and Human Rights”;
“Courses for families”; “Digital security and human Rights”; “Criminalization and unjust imprisonment of Human
rights defender: Bernardo Call in Guatemala”; “Freedom of expression: a fundamental right”; “The global Arms
trade”; “Human Rights defenders”; “In the line of fire: Human Rights and the US gun violence crisis”; “Indigenous
people land rights”; “The right to freedom from torture”; “Write for rights: a short guide”; “Human Rights defen-
ders: A short guide”; “Introdution to Amnesty International”; “Human rights: a tool for change”; “Speaking out for
freedom of expression”; “Human rights: a tool for change”; “Speaking out for freedom of expression.”; “Taking a
stance against the death penalty”; “The right to protest”; “Human Rights Friendly school”; “Climate changes and
Human Rights”; “Decoding decent-base discrimination”; “Deconstructing Israel’s Apartheid against Palestinians”.
Disponível em: AMNESTY INTERNATIONAL Human Rights Academy. https://academy.amnesty.org/lms. Acesso
em 11 mai. 2022.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 163-189, jan./jun., 2022. (18) 179


TERESA CRISTINA SCHNEIDER MARQUES
Educação e engajamento pelos direitos humanos: potencialidades e limites dos cursos livres online da Anistia Internacional

e garantindo coerência à sua atuação em formato online.


Com relação à metodologia, o estudo exploratório permite verificar
o foco na metodologia de Storytelling nos três cursos disponíveis em língua
portuguesa. É possível definir o Storetelling da seguinte forma:
O storytelling é uma prática que se utiliza de recursos de memória,
importância do folclore, da transmissão de valores e uso de perso-
nagens – que podem ser líderes políticos, culturais ou religiosos.
Narrativas como mitos, contos e lendas, descrevem lições de moral
e comportamento, reforçam costumes e reproduzem símbolos por
meio de uma estrutura argumentativa, permeada por instrumentos
de persuasão e comunicação. No entanto, diferentemente da tradi-
ção oral de contar histórias, o storytelling pressupõe que a audiên-
cia reaja à narrativa, participando ativa e conjuntamente da constru-
ção da aprendizagem (VALENÇA; TOSTES, 2019, p. 224).

Importante lembrar que essa é uma abordagem que marca as cam-


panhas da AI, com destaque para a “adoção dos presos de consciência” que
tinha como objetivo sensibilizar à população em geral quanto aos crimes co-
metidos a partir da identificação com a história das vítimas (VRECHE, 2017).
Nos cursos disponíveis na plataforma em estudo, é notável o recurso à essa
abordagem, destacada pela própria organização.
A título de exemplo, destacamos o curso “Defensoras e defensores
dos direitos humanos” que traz as histórias de ativistas com reconhecimento
internacional, a saber: Máxima Acuña, Azza Soliman, Dr. Mudawi (AI, 2021c).
Por sua vez, o curso “Introdução à Anistia Internacional” apresenta depoimen-
tos de ativistas da organização, destacando as suas histórias de vida e suas
visões sobre a Anistia. Há um sentido político em humanizar, garantir uma
face à essas narrativas (LAFAYE; BLIC, 2011).
A dimensão interativa do aplicado se soma ao método de Stores-
telling. Isso é possível no curso online em virtude dos recursos do aplicativo,
que por meio da disponibilização de testes, mapas interativos, entre outros
recursos que permitem que o público reaja e participe do processo de apren-
dizado. Não raro, as atividades interativas também dialogam com situações
do cotidiano, visando aproximar o debate teórico sobre direitos humanos por
meio de recursos de memórias.
Nesse sentido, o aplicativo em questão representa um avanço para a
organização. Segundo Norlander (2013), iniciativas online anteriores da orga-
nização poderiam ser criticadas pela falta da dimensão interativa. Diferente
de outrora, o novo aplicativo é marcado pelo foco em textos curtos e na cons-
trução de uma plataforma interativa, mais acessível à diferentes públicos e
ainda mais interessante para a juventude.
Com efeito, o Storestelling busca oferecer respostas dimensão social
inerente ao engajamento político. Destacamos por exemplo, o curso “Intro-

180 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 163-189, jan./jun., 2022. (18)


TERESA CRISTINA SCHNEIDER MARQUES
Educação e engajamento pelos direitos humanos: potencialidades e limites dos cursos livres online da Anistia Internacional

dução à Anistia Internacional”, que garantem maior atenção aos depoimentos


de ativistas em formato de vídeo. Entre eles, destacamos o depoimento de
Rodwal Hadi, ativista da AI na Noruega:
Como ativista da Anistia, tenho trabalhado em várias campanhas
[...]. E toda vez que noto que contribuí para a liberdade de expressão
de alguém, toda vez que noto que salvei alguém da tortura e da
pena de morte, esses são os melhores momentos da minha vida na
Anistia Internacional (AI, 2021c).

Destacamos também o relato de Hugh Sandeman, que atualmente é


atuante no Reino Unido: “Fazer parte da Anistia me possibilita participar de
algo muito, muito além de mim mesmo, algo que coloca em prática os ideais,
os quais se eu estivesse sozinho, eu estaria apenas sonhando em um dia rea-
lizar” (AI, 2021c).
Ambos os depoimentos buscam traduzir em formato de vídeo o senti-
mento de eficácia e também o sentimento de pertencimento. Conforme des-
tacado pelas leituras sobre engajamento político, esses são incentivos impor-
tantes para a construção do ativismo e da militância política. A Storytelling
apresenta-se enquanto uma ferramenta interessante para a transmissão des-
se sentimento por meio dos computadores. Tal como destacado por Valença
e Tostes (2019), trata-se de uma proposta de aprendizado por empatia, que
pode permitir a conexão entre as vivências cotidianas locais e a dimensão
internacional. Há potenciais visíveis nessa abordagem para a educação em
direitos humanos, tornando potente também para o engajamento em ações
coletivas transnacionais. A análise demonstrou assim que a organização pre-
tende não apenas informar sobre os direitos humanos, mas também sensibili-
zar e garantir as ferramentas para a ação por do meio do aplicativo Amnesty’s
Human Rights Academy.

5. Considerações finais
Tal como destacado por Flowers (2017), os cursos online de EDH po-
dem ser considerados um fenômeno que merece nossa atenção. A análise da
relação das AI com a educação e mais particularmente, sobre a Amnesty In-
ternational Human Rights Academy permite refletir sobre potencialidades e
limites dos cursos livres online.
A pesquisa indicou que a educação online pode ser entendida en-
quanto uma terceira forma de relações das organizações não-governamen-
tais com educação. Ela vem a se somar com a relação das organizações com
instituições de ensino e no interior da organização. No caso da AI, a EDH é

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 163-189, jan./jun., 2022. (18) 181


TERESA CRISTINA SCHNEIDER MARQUES
Educação e engajamento pelos direitos humanos: potencialidades e limites dos cursos livres online da Anistia Internacional

parte da sua estratégia de ação. A organização passou a assumir uma “missão


pedagógica” a partir de 1985 e desde então, a educação têm assumido um pa-
pel crescente para a organização. Sua visão de EDH engloba três dimensões:
conhecimento e habilidades (a promoção do conhecimento em DH); Valores
(o cultivo de uma cultura de empatia global) e engajamento (a ação).
Sobre as potencialidades, a pesquisa demonstrou que o aplicativo
tem potencial como alternativa para diminuir os custos para a militância, sen-
sibilizar para o ativismo e alcançar novos públicos, em diferentes regiões do
globo, mesmo em contextos com muitos custos para os defensores de DH. O
contexto específico que incentivou o surgimento da a Amnesty International
Human Rights Academy – a Primavera Árabe – bem como os temas desta-
cados indicam ainda que essa pode ser uma ferramenta potente para a pro-
moção e defesa dos DH em contextos excepcionais e autoritários. Destaca-se
ainda a possibilidade de oferecer respostas educacionais rápidas em contex-
tos de violações recentes, permitindo uma adaptação constante. Assim, é no-
tável a existência de cursos sobre segurança digital e sobre violações de DH
durante a pandemia. A plataforma permite ainda a expressão da diversidade
temática dos DH defendida pela AI, ainda que seja verificável o caráter priori-
tário atribuído aos direitos civis e políticos e à dimensão da ação em favor dos
DH. Além disso, ao focar na juventude, ela atende ao novo perfil de ativista
identificado pelos estudos sobre ativismo político. Quanto às metodologias,
é possível afirmar que há um avanço se comparada às outras experiências
digitais da organização por meio das ferramentas interativas mobilizadas e da
metodologia do storytelling.
Quanto às limitações, visto que a EDH também é voltada para cidada-
nia, é necessário refletir sobre os limites da “ação política digital”. O primeiro
deles é a dificuldade de acesso a outros públicos, conforme destacado por
Sacavino e Candau (2020). Além disso, é certo que por meio das metodologias
ativas online há a intenção em substituir uma das principais funções das redes
de relacionamento interpessoal – a construção de solidariedades – que em
geral são forjadas na militância e que consideradas tão fundamentais para o
engajamento. Todavia, tal como destacado por anterioremente, organizações
humanitárias muitas vezes priorizam mais a sensibilização em favor dos DH
do que a ação. De qualquer forma, a pesquisa efetivada, por ter se centrado na
análise qualitativa exploratória de documentos diversos fornecidos pela orga-
nização, não permite verificar se o aplicativo é suficiente para que se passe à
etapa da ação, tão esperada pela organização.
A presente pesquisa é resultado de uma pesquisa exploratória que,
por meio da análise de um caso específico, buscou trazer informações para re-
fletir sobre as potencialidades e limites dos cursos livres online para EDH. Há,

182 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 163-189, jan./jun., 2022. (18)


TERESA CRISTINA SCHNEIDER MARQUES
Educação e engajamento pelos direitos humanos: potencialidades e limites dos cursos livres online da Anistia Internacional

portanto, um amplo campo de estudos para a EDH a ser melhor explorado não
apenas pelos pesquisadores, mas por todos os atores interessados em trans-
formar a realidade social por meio da educação. Para concluir, nos alinhamos
à perspectiva de que a EDH pode ser entendida enquanto um caminho cultu-
ral para a transformação social. A pesquisa aqui apresentada demonstrou que
esse potencial também é enxergado na educação online não-formal.

5.1 Referências

6.1 Livros e artigos acadêmicos


ALMEIDA, R. Estudo de Caso: foco temático e diversidade metodológica. In:
Alonso, A. & Miranda, D. (org.), Métodos de pesquisa em Ciências Sociais: Bloco
Qualitativo. Sesc São Paulo/CEBRAP, São Paulo, 2016.

BADIE, B. Le diplomate et l’intrus: l’entrée dês societés dasn l’arène internationa-


le. Paris: Fayard, 2008.

BAJAJ, M. Human Rights Education: Ideology, Location, and Approaches.


Human Rights Quarterly, Cincinnati (EUA), v. 33, n. 2, p. 481-508, 2011.

BAXTO, W.; CARNEIRO, V. Uso das TIC na educação superior à distância. Edu-
cação, Porto Alegre, v. 42, n. 1, p. 35-43, jan.-abr, 2019.

CLARK, J. (ed.) Globalizing Civic Engagement: civil society and transnational


action. Earthscan, 2003.

CRÉMIEU, A.; LEFAIT, P. Amnesty International a 50 ans. Paris: le cherche-midi,


2011.

DEVIN, G. Introduction: Les solidarités transnationales, phénomène social


à l’échelle mondiale. In: DEVIN, G. (ed.). Les solidarités transnationales. Paris:
L’Harmattan, 2004, p. 17-18.

DELLA PORTA, D.; TARROW, S. Transtional protest and global activism: people,
passions and power. Oxford, 2005.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 163-189, jan./jun., 2022. (18) 183


TERESA CRISTINA SCHNEIDER MARQUES
Educação e engajamento pelos direitos humanos: potencialidades e limites dos cursos livres online da Anistia Internacional

FLOWERS, N. How to define Human Rights education? In: GEORGY, V.; SEBERI-
CH, M. (eds.). International perspectives in human rights education. Gütersloh:
Bertelsmann Foundation Publishers, 2004.

FLOWERS, N. Afterword. In: BAJAJ, M. Human Rights Education: Theory, Reser-


ch Praxis. Philadelphia: University of Pensylvania Press, 2017.

FERABOLLI, S. Entre a revolução e o consenso: os rumos da Primavera Árabe


Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 51, p. 101-109, jan./jun, 2012.

FREIRE, P. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São


Paulo: Paz e Terra, 6. ed., 2021.

GAXIE, D. Retribuitions du militantism et paradoxe de l’action collective. Swiss


Political Science Review, Lausanne (CHE), v. 11, n. 1: 157-188, 2005. Disponível
em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1002/j.1662-6370.2005.
tb00051.x. Acesso em: 15 mar. 2020.

GOHN, M. Movimentos sociais na contemporaneidade. Revista Brasileira de


Educação. Rio de Janeiro, v. 16, n. 47, p. 333-513, maio-ago, 2011. Disponível
em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/vXJKXcs7cybL3YNbDCkCRVp/?forma-
t=pdf&lang=pt. Acesso em: 15 mar. 2020.

GOHN, M. Educação não formal e o educador social: atuação no desenvolvi-


mento de projetos sociais. São Paulo: Cortez, 2010. (Coleção Questões da
Nossa Época; v. 1).

GORCZEVSKI, C.; TAUCHEN, G. Educação em Direitos humanos: para uma


cultura da paz. Educação, Porto Alegre, v. 31, n. 1, p. 66-74, 2008. Disponí-
vel em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/
view/2760/2107. Acesso em: 15 mar. 2020.

HERNANDEZ, M.; VRECHE, C. A contribuição da Anistia Internacional na


criação do Alto Comissariado da ONU para os Direitos humanos. BJIR, Marília,
v. 5, n. 1, p. 61-96, jan/abr, 2016. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.
br/index.php/bjir/article/view/5942. Acesso em: 20 dez 2021

ION, Jacques. S’engager dans une societé d’individus. Paris: Armand Colin,
2012

184 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 163-189, jan./jun., 2022. (18)


TERESA CRISTINA SCHNEIDER MARQUES
Educação e engajamento pelos direitos humanos: potencialidades e limites dos cursos livres online da Anistia Internacional

KECK, M.; SIKKINK, K. Activists beyon borders: advocacy networks in interna-


tional politics. Cornell University Press: 1998.

LAFAYE, C.; BLIC, D. Singulière mobilisation, le Réseau éducation sans frontei-


res. Revue Projet, Saint-Denis, v. 2, n. 321, p. 12 -19, 2011.

MCADAM, D.; PAULSEN, R. Specifying the Relationship between Social Ties


and Activism. American Journal of Sociology, Chicago, v. 99, n. 3, p. 640-667,
1993.

MEMMI, D. L’Engagement politique. In: Grawitz, M. & Leca, J. (eds.). Traité de


Science Politique. v. 3, L’Action politique. Paris, PUF, 1985.

MEIRELLES, R. Acender as velas já é profissão: a atuação da Anistia Interna-


cional em relação ao Brasil durante a Ditadura. Tese (Doutorado em História
Social) - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo,
São Paulo,2016.

MERRY, S. Transnational rights and local activism: Mapping the midle. Ameri-
can Journal of Sociology, Chicago. v. 108, n. 1 (mar.), p. 38-51, 2006.

NORLANDER, R. The Contributions of Digital Communications Technology to


Human Rights Education: A Case Study of Amnesty International. 2013. Dis-
sertation (Doctor of Philosophy (Ph.D.) in Human Science) - Saybrook Univer-
sity, San Francisco, EUA, 2013. Disponível em: https://www.proquest.com/
docview/1502040674. Acesso em: 23 dez. 2021.

OFFERLÉ, M. Sociologie des groupes d’intéret. Paris: Montchrestien, 1998.

PAVANI, M. O uso das ferramentas digitais pelo ativismo drag e suas possibi-
lidades didático-pedagógicas. In: ALMEIDA, E. et al. (org.). Movimentos sociais,
sujeitos e processos educativos: uma antologia do GT03 da ANPED. São Carlos:
Pedro e João editores, 2021.

POINSOT, É. Vers une lecture économique et sociale des droits humains:


l’évolution d’Amnesty International. Revue Française de science politique, Paris,
2004/3, v. 54, p. 399-420. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-fran-
caise-de-science-politique-2004-3-page-399.htm. Acesso em: 23 dez. 2021

SCAVINO, S. B.; CANDAU, V. M. Desigualdade, conectividade e direito à edu-

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 163-189, jan./jun., 2022. (18) 185


TERESA CRISTINA SCHNEIDER MARQUES
Educação e engajamento pelos direitos humanos: potencialidades e limites dos cursos livres online da Anistia Internacional

cação em tempos de pandemia. Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos,


Bauru, v. 8, n. 2, p. 121–132, 2020. Disponível em: https://www2.faac.unesp.
br/ridh3/index.php/ridh/article/view/20. Acesso em: 11 maio. 2022. Acesso
em: 23 dez 2021

SNOW, D. et al. Frame alignment processes, micromobilization, and move-


ment participation. American Sociological Review, Chicago, v. 51, n. 4, p. 464-
481, ago, 1986. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/2095581?seq=1.
Acesso em: 23 dez 2021

SIMÈANT, J. Des mouvements nouveaux et globaux ? Sur les mouvements


sociaux “transnationaux” dans quelques ouvrages récents. Communication
au 8e Congrès de l’Association Française de Sciences Politiques, Lyon, 14-15
septembre, 2005.

SOMMIER, I. Le renouveau des mouvements contestataires à l’heure de la mon-


dialisation. Paris: Flammarion, 2003.

TARROW, S. The new transnational activism. New York: Cambridge University


Press, 2005.

TARROW, S. O poder em movimento: movimentos sociais e confronto político.


Petrópolis: Editora Vozes, 2009.

TILLY, C. Regimes and Repertoires. Chicago: University of Chicago Pres, 2006.

TILLY, C.; TARROW, S. Politique(s) du conflit: de la greve à la Revolution. Paris:


Sciences Po, 2008.

TORRICO, W. Redes e educação: influências digitais e temas de sociologia. Mo-


nografia (Especialização em “Mídia, informação e cultura”), Escola de Comu-
nicação e Artes - Universidade de São Paulo (USP), 2020.

VALENÇA, M.; TOSTES, A. O storytelling como ferramenta de aprendizado


ativo. Carta Internacional. Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 221-243, 2019.

VRECHE, C. À luz de vela: o ativismo transnacional da Anistia Internacional


durante o regime militar brasileiro (1964-1985). 2017. Dissertação ( Mestrado
em Sociologia) - Universidade Federal de Grande Dourados, Dourados, 2017.

186 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 163-189, jan./jun., 2022. (18)


TERESA CRISTINA SCHNEIDER MARQUES
Educação e engajamento pelos direitos humanos: potencialidades e limites dos cursos livres online da Anistia Internacional

VERS UN autre militantismo: Entretien avec Johanna Siméant. In: CRÉMIEU,


A.; LEFAIT, P Amnesty International a 50 ans. Paris: le cherche-midi, 2011.

6.2 Documentos e páginas da Anistia Internacional:


AI – Amnesty Internacional. Report 1986. London: Amnesty International pu-
blications, 1988. Disponível em: https://www.amnesty.org/en/search/?docu-
mentType=Annual+Report&sort=date&p=7. Acesso em: 20 dez. 2021.

AI – Amnesty Internacional. 10 quotes on the power of human rights education.


Amnesty.org. Education. Feb 16, 2010. Disponível em: https://www.amnesty.
org/en/latest/education/2016/02/10-quotes-on-the-power-of-human-right-
s-education/ Acesso em: 20 dez. 2021.

AI – Amnesty Internacional. 6 free online courses to learn more about human


rights. Amnesty.org. June 15, 2016. Disponível em: https://www.amnesty.
org/en/latest/education/2016/06/six-free-online-courses-to-learn-more-
-about-human-rights/?fbclid=IwAR1LPa6k0tSRVdX1WetgM4oxcxbHX2WQ-
deAZPx2RlqBhUMGxAtTGom97u3U. Acesso em: 20 dez. 2021.

AI – Amnesty International. AmnestyinternationalX. Edx. 2016. Disponível


em: https://www.edx.org/school/amnestyinternationalx. Acesso em: 23 dez.
2021.

AI – Amnesty Internacional. Amnesty International Human Rights Education


2018. First published in 2019 by Amnesty International Ltd. Disponível em:
https://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/POL3202172019EN-
GLISH.PDF. Acesso em: 20 dez. 2021.

AI – Amnesty Internacional. Amnesty’s Human Rights Academy: Amplifying


the voices of a generation calling for change. Amnesty.org. Education.
July 15, 2019a. Disponível em: https://www.amnesty.org/en/latest/educa-
tion/2019/07/human-rights-academy-mena/. Acesso em: 20 dez. 2021.

AI – Amnesty Internacional. Amnesty launches human rights learning app


to equip next generation of activists. Amnesty.org. Presse Release. Octobre
29, 2020a. Disponível em: https://www.amnesty.org/en/latest/press-relea-
se/2020/10/amnesty-launches-human-rights-learning-app-to-equip-next-
-generation-of-activists/. Acesso em: 20 dez. 2021.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 163-189, jan./jun., 2022. (18) 187


TERESA CRISTINA SCHNEIDER MARQUES
Educação e engajamento pelos direitos humanos: potencialidades e limites dos cursos livres online da Anistia Internacional

ANISTIA INTERNACIONAL BRASIL. Facebook page. Post de 20 de julho de


2020. Disponível em:
https://anistia.org.br/evento/inscreva-se-no-curso-online-gratuito-sobre-di-
reitos-humanos/?fbclid=IwAR1s-kULLpKK1KCy0wDW83u6G5MC4tJkxZwY-
0JEacXMokPB9zUS0iWRHn4k. Acesso em: 20 dez 2021.

AI – Amnesty Internacional. Teacher’s Guide to Amnesty’s Human Rights Aca-


demy. Amnesty.org. Education. September 4, 2020b. Disponível em: https://
www.amnesty.org/en/latest/education/2020/09/teachers-guide-to-amnes-
tys-human-rights-academy/. Acesso em: 20 dez. 2021.

AI – Anistia internacional. Uma introdução aos direitos humanos (curso).


Amnesty Human rights Academy. 2021a. https://academy.amnesty.org/pa-
ges/15/home. Acesso em: 20 dez. 2021.

AI – Anistia internacional. Catálogo de cursos. Amnesty Human rights Aca-


demy. 2021b. https://academy.amnesty.org/learn/catalog. Acesso em: 10
mai. de 2022.

AI – Anistia internacional. Introdução à Anistia Internacional (curso). Amnes-


ty Human rights Academy. 2021c. https://academy.amnesty.org/pages/15/
home. Acesso em: 20 dez. 2021.

AI – Anistia internacional. Defensoras e defensores de direitos humanos (curso).


Amnesty Human rights Academy. 2021d. https://academy.amnesty.org/pa-
ges/15/home. Acesso em: 20 dez. 2021.

6.3 Páginas de internet e outros materiais:

BRASIL. Lei n. 9394 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da


educação nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. DF, 20
de dezembro de 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/l9394.htm. Acesso em: 20 dez. 2021.

BRASIL. Decreto-lei n.5.154 de julho de 2004. Regulamenta o § 2º do art. 36 e


os arts. 39 a 41 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece
as diretrizes e bases da educação nacional, e dá outras providências. Diário
Oficial [da] República Federativa do Brasil. DF, 23 de julho de 2004. Disponí-

188 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 163-189, jan./jun., 2022. (18)


TERESA CRISTINA SCHNEIDER MARQUES
Educação e engajamento pelos direitos humanos: potencialidades e limites dos cursos livres online da Anistia Internacional

vel em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/


d5154.htm. Acesso em: 20 dez. 2021.

ONU; UNESCO. Plan of Action for the First Phase of the World Programme for
Human Rights Education. Paris: Unesco, 2006. Disponível em: https://www.
ohchr.org/EN/PublicationsResources/Pages/TrainingEducation.aspx. Acesso
em: 23 dez. 2021.

WHITEHEAD, A. Para Hobsbawm, o protagonismo da classe média marca


revoltas de 2011. BBC Brasil. 23 de dezembro de 2011. Disponível em:
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/12/111223_hobbs-
bawm_2011_classe_media_bg.shtml. Acesso em: 3 out. 2021.

Recebido em: 13 de maio de 2022


Aprovado em: 30 de maio de 2022

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 163-189, jan./jun., 2022. (18) 189


O apartheid na Palestina/Israel:
revisão crítica e comparativa
das considerações da Yesh
Din, B’Tselem e Human Rights
Watch1

§ Apartheid en Palestina/Israel: revisión crítica y


comparativa de las consideraciones de Yesh Din,
B’Tselem y Human Rights Watch

§ Apartheid in Palestine/Israel: critical and comparative


review of considerations by Yesh Din, B’Tselem and
Human Rights Watch

Fábio Bacila Sahd2

Resumo: O presente artigo analisa as considerações feitas pelas ONGs Yesh


Din, B’Tselem e Human Rights Watch, entre 2020 e 2021, acerca da manuten-
ção de um regime de apartheid na Palestina/Israel. Embora tal abordagem
não seja nova, o posicionamento dessas ONGs foi feito em um momento no
qual, face a novos acontecimentos, tem-se difundido o uso dessa tipificação

1 Pesquisa com financiamento parcial do CNPQ.


2 Doutorado no Programa de Pós-Graduação Humanidades, Direitos e outras Legitimidades, pela Universidade de
São Paulo; professor da Universidade Federal do Toxcantins, Brasil. fabiobacila@gmail.com

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 191-215, jan./jun., 2022. (18) 191


FÁBIO BACILA SAHD
O apartheid na Palestina/Israel: revisão crítica e comparativa das considerações da Yesh Din, B’Tselem e Human Rights Watch

do direito internacional para interpretar a situação. Após breve introdução


conceitual e da Questão Palestina, são apresentadas de modo sintético as
principais considerações dessas entidades para, na sequência, compará-las
entre si, com outras relatorias e com bibliografia especializada, especialmen-
te, Ran Greenstein, Oren Yiftachel e Anthony Löwstedt. Apesar de divergên-
cias, relatórios e acadêmicos convergem quanto à manutenção de um regime
de apartheid na região.

Palavras-chave: Territórios palestinos ocupados. Israel. Direitos humanos.


Apartheid.

Resumen: Este artículo analiza las consideraciones realizadas por las ONG
Yesh Din, B’Tselem y Human Rights Watch, entre 2020 y 2021, sobre el mante-
nimiento de un régimen de apartheid en Palestina/Israel. Si bien este enfoque
no es nuevo, el posicionamiento de estas ONG se realizó en un momento en
que, ante nuevos acontecimientos, se ha generalizado el uso de esta clasifi-
cación del derecho internacional para interpretar la situación. Luego de una
breve introducción conceptual y de la Cuestión Palestina, se presentan de ma-
nera sintética las principales consideraciones de estas entidades, con el fin de
compararlas entre sí, con otros informes y con bibliografía especializada, en
especial Ran Greenstein, Oren Yiftachel y Anthony Löwstedt. A pesar de las
divergencias, informes y académicos convergen en el mantenimiento de un
régimen de apartheid en la región.

Palabras llave: Territorios Palestinos Ocupados. Israel. Derechos humanos.


Segregación racial.

Abstract: This article analyzes the considerations made by the NGOs Yesh Din,
B’Tselem and Human Rights Watch, between 2020 and 2021, about the main-
tenance of an apartheid regime in Palestine/Israel. Although this approach is
not new, the positioning of these NGOs was made at a time when, in the face
of new events, the use of this classification of international law to interpret
the situation has become widespread. After a brief conceptual introduction
and of the Palestine Question, the main considerations of these entities are
presented in a synthetic way, in order to compare them with each other, with
other reports and with specialized bibliography, especially Ran Greenstein,
Oren Yiftachel and Anthony Löwstedt. Despite divergences, reports and aca-
demics converge on the maintenance of an apartheid regime in the region.

192 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 191-215 , jan./jun., 2022. (18)


FÁBIO BACILA SAHD
O apartheid na Palestina/Israel: revisão crítica e comparativa das considerações da Yesh Din, B’Tselem e Human Rights Watch

Keywords: Occupied Palestinian Territories; Israel; Human rights; Apar-


theid.

Breve introdução conceitual e do caso em questão


A interdição da discriminação racial é um elemento fundamental do
direito internacional dos direitos humanos (DIDH), cujo objeto é a garantia da
dignidade humana. O conceito de raça deve ser entendido conforme a cons-
trução da alteridade em cada caso, com as piores formas de discriminação
consideradas “crimes contra a humanidade”. Este conceito, que já tem mais
de um século, tornou-se parte do direito internacional, em 1945, estando pre-
visto no estatuto, que fundamentou o Tribunal de Nuremberg, criado para
julgar as lideranças nazistas. Em 1998, o Estatuto de Roma, base do Tribunal
Penal Internacional (TPI), definiu os crimes contra a humanidade como atos
criminosos “cometidos como parte de um ataque difundido ou sistemático e
intencional, direcionado contra qualquer população civil” (HRW, 2021, p. 29)3.
Ao TPI compete julgar esses crimes quando as autoridades nacionais (geral-
mente, as próprias violadoras) fracassam ou se recusam a fazê-lo, sendo dois
deles, justamente, a perseguição e o apartheid. Quanto a esse, antes do Esta-
tuto de Roma, foi mencionado em instrumentos internacionais, mas especi-
ficado pela Convenção Internacional para Supressão e Punição do Crime de
Apartheid (CISPCA), de 1973.
Interpretando esse referencial, a Human Rights Watch (2021, p. 5-6)
afirma que, o crime de apartheid consiste em, basicamente, um grupo racial
manter uma política de domínio e opressão de outro e, como parte dela, co-
meter de modo difundido e sistemático um ou mais dos “atos desumanos”
especificados. Estes são: exploração da força de trabalho, perseguição da opo-
sição, tortura, tratamentos cruéis ou degradantes, prisão arbitrária, impor con-
dições de vida visando à destruição física do todo ou de partes, expropriação
de propriedade fundiária, criação de reservas separadas e guetos e negação
de direitos básicos multidimensionais (como à vida, integridade física e men-
tal, liberdades fundamentais, direitos econômicos e sociais, deixar e retornar a
seu país e ter uma nacionalidade). Quanto ao crime de perseguição, prescrito
já pelo Tribunal de Nuremberg, é definido no Estatuto de Roma como a “priva-

3 Ataques são entendidos como “curso de ação envolvendo o múltiplo cometimento de atos [...] em consonância ou
como parte de uma política organizacional ou estatal”. Se por amplo ou difundido o estatuto remete à escala dos
atos ou ao número de vítimas, por sistemático indica um padrão ou plano metódico (HRW, 2021, p. 29).

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 191-215, jan./jun., 2022. (18) 193


FÁBIO BACILA SAHD
O apartheid na Palestina/Israel: revisão crítica e comparativa das considerações da Yesh Din, B’Tselem e Human Rights Watch

ção intencional e severa de direitos fundamentais contrariamente ao direito


internacional e em razão da identidade do grupo ou coletividade”, consistin-
do de graves violações de direitos básicos cometidas “de forma difundida ou
sistemática” e “com intenção discriminatória” (HRW, 2021, p. 40).
Expostos os conceitos e o referencial que fundamentam os relatórios
das ONGs israelenses Yesh Din e B’Tselem e da internacional HRW, cabe intro-
duzir, de forma brevíssima, o caso em questão. A “Questão Palestina” (QP) tem
origem com a fundação do movimento sionista na Europa, no final do século
XIX, que assumiu como objetivo central a criação de um Estado nacional ju-
daico na Palestina, o que foi consumado, em 1948, com a fundação de Israel.
Mesclaram-se, em sua visão e projeto de colonização, nacionalismo, eurocen-
trismo e alternativa ao antissemitismo. À revelia da população palestina ori-
ginária, os sionistas conseguiram o respaldo da Grã Bretanha como potência
imperial, que se tornou mandatária da Palestina após a conquistar do Império
Otomano, ao fim da Primeira Guerra Mundial.
Desse modo, basicamente, a QP pode ser interpretada como mais um
capítulo da história do colonialismo europeu, expressando o direito autoatri-
buído de conquistar e governar as populações “nativas”, supostamente, para
seu próprio bem e como parte da missão civilizatória ou “fardo do homem
branco”. Destarte, na QP, vemos a mobilização do mesmo imaginário e jar-
gões da empresa colonial brasileira, estadunidense, sul-africana e outras. Mas,
trata-se de capítulo muito peculiar do colonialismo por também estar rela-
cionado ao antissemitismo e pelos vínculos simbólicos ligando os coloniza-
dores judeus à Palestina. Especificidades à parte, as semelhanças permitem
a classificação da QP desse modo por vários autores, que sublinham a repre-
sentação eurocêntrica racializada e inferiorizada dos “nativos”, invisibilizados
pelas reivindicações de uma suposta “terra sem povo para um povo sem ter-
ra” (terra nullius). Assim são violentados e discriminados sistematicamente, o
que figura na multidecenal e convergente relatoria produzida pela ONU e por
distintas ONGs. É elucidativo que, nos anos 1970, em suas resoluções, a Orga-
nização para a Unidade Africana relacionou sionismo e sua colonização com
o movimento africâner e o apartheid, considerando, literalmente, a QP como
uma “questão africana” (SAHD, 2016). Inclusive, na bibliografia especializada
(mas não tanto na relatoria), a origem colonial é elemento central na compre-
ensão do apartheid israelense, haja vista os vínculos umbilicais entre elas e o
racismo, como expresso no preâmbulo da Convenção Internacional sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (CIEDR).
A colonialidade constitui-se em um enquadramento teórico legítimo
e necessário para interpretar o apartheid israelense, abrangendo do início da
colonização sionista até hoje, incluindo a limpeza étnica operada com a fun-

194 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 191-215 , jan./jun., 2022. (18)


FÁBIO BACILA SAHD
O apartheid na Palestina/Israel: revisão crítica e comparativa das considerações da Yesh Din, B’Tselem e Human Rights Watch

dação de Israel, em 1948, para “judaizar” o território e sua população, a ocupa-


ção e colonização de Gaza e Cisjordânia, a partir de 1967, as tensões e guerras
entre Israel e os países vizinhos, as intifadas e os ataques mais recentes contra
Gaza (SAHD; TELES, 2021).
A chave teórica colonial possibilita avaliar até o impacto do léxico he-
gemônico utilizado para se referir à situação e como alimenta uma distorção
e incompreensão generalizadas, como parte da tentativa de dissuadir críti-
cas e evitar comparações com o regime sul-africano pretérito. Assim, vários
relatórios e autores apontam para a necessária descolonização linguística e
dos marcos interpretativos, a começar pelo então presidente da Assembleia
Geral da ONU (AG-ONU), Miguel d’Escoto Brockman, que, em 2008, enfati-
zou a importância de a organização usar o termo apartheid para descrever
as políticas israelenses nos Territórios Palestinos Ocupados (TPO) e que “não
devemos ter medo de chamar uma coisa pelo que ela é” (DUGARD; REYNOL-
DS, 2013, p. 869). Em seu relatório, a própria HRW (2021, p. 2-3; 51) exemplifica
alguns pressupostos e usos conceituais equivocados no entendimento da QP,
como considerar que os palestinos têm controle significativo sobre suas vidas
e tratar Israel e os TPO como duas realidades separadas e distintas, conside-
rando o primeiro como uma democracia igualitária em suas fronteiras. Ainda,
demonstra como leis, privilegiando judeus em detrimento dos palestinos, uti-
lizam expressões aparentemente não discriminatórias (de modo a mascarar
seu intento e se diferenciar do caso sul-africano). Desde a fundação do Estado
israelense, enquanto vigorou um governo civil para os nacionais judeus, só por
seis meses o país não manteve um governo militar institucionalizado sobre ao
menos uma parcela da fragmentada população palestina. Como relator espe-
cial designado pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU (CD-ONU) para
averiguar as violações praticadas nos TPO, Richard Falk (2014, p. 3-4) também
fez considerações terminológicas relevantes, salientando a capacidade de as
palavras condicionarem de modo equivocado os debates e as investigações
da situação. Sublinhou, em particular, a “inadequação do repertório do direito
internacional disponível para abordar uma condição de ocupação prolonga-
da, que agora já dura mais de 45 anos”. Questionou também a pertinência da
tipificação de “ocupação”, que deve ser temporária e se pautar por considera-
ções securitárias, conformando a QP uma realidade qualitativamente distinta,
como no tocante aos objetivos estatais relativos aos TPO. Falk (2014, p. 11;
p. 20-21) atribui à ONU papel fundamental no debate legal e moral da situ-
ação, devendo enfatizar os direitos negados, as violações israelenses e usar
linguagem correspondente à realidade dos fatos, “ao invés de ficar restrita a
palavrório técnico e eufemismos, que mascaram o sofrimento humano resul-
tante”. Assim, seria mais adequado falar em “anexação”, “ambições coloniais”

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 191-215, jan./jun., 2022. (18) 195


FÁBIO BACILA SAHD
O apartheid na Palestina/Israel: revisão crítica e comparativa das considerações da Yesh Din, B’Tselem e Human Rights Watch

e “apartheid”, ao invés de “ocupação”. Afinal, “manter, indefinidamente, uma


ocupação opressiva contendo muitos elementos punitivos, também parece
voltado a encorajar os residentes a sair da Palestina, o que é consistente com
os aparentes objetivos anexionistas, colonialistas e de limpeza étnica de Is-
rael”. A obra coletiva organizada pelo autor sul-africano Na’em Jeenah (2012)
já traz em seu título essa redefinição conceitual necessária para abordar ade-
quadamente a situação: “Pretending democracy: Israel, an ethnocratic state”.
Feitas essas considerações introdutórias, antes de passarmos à apre-
sentação e análise comparada e crítica dos documentos das ONGs entre si e
com bibliografia especializada, cabe salientar que, já se tornou lugar comum
o uso da tipificação de apartheid para a QP. A HRW cita uma longa lista de
autoridades, assim como comentaristas de distintas mídias, que consideram
a situação equivalente a apartheid ou que se tornará, acaso o rumo dos acon-
tecimentos não mude. Do mesmo modo, Falk (2014a) menciona vários acadê-
micos que chegaram a essa conclusão, já difundida em relatórios e na biblio-
grafia e, inclusive, em 2021, também evidenciada por dois ex-embaixadores
de Israel na África do Sul (WEISS, 2021). Portanto, como já é extenso o volume
de referências ao apartheid israelense, foi necessário delimitar. Justifica-se a
restrição aqui feita aos documentos da Yesh Din, HRW e B’Tselem, compara-
dos com parte da bibliografia, por serem organizações renomadas, que há
décadas monitoram e reportam os acontecimentos locais, mas só, recente-
mente, encamparam a interpretação de que Israel pratica apartheid. Analisar
seus posicionamentos permite, assim, compreender as mudanças ocorridas
atualmente, que levaram também elas a adotar essa tipologia, de modo re-
lativamente tardio. Se não abrangemos o conjunto maior dos documentos e
autores, fizemos algumas menções para facilitar o aprofundamento das lei-
toras e leitores interessados. De modo geral, as relatorias selecionadas refle-
tem duas posições do debate, uma interpretação restrita aos TPO e outra mais
abrangente.

Os relatórios da Yesh Din, B’Tselem e HRW sobre o


apartheid

Fundada no final da Segunda Intifada (2000-2005), a ONG israelense


Yesh Din monitora as violações de direitos humanos na Cisjordânia, em es-
pecial, a impunidade dos crimes praticados contra palestinos e suas proprie-
dades por colonos e militares israelenses. Complementa sua já significativa
relatoria, a representação legal de vítimas de violações e a atuação junto às

196 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 191-215 , jan./jun., 2022. (18)


FÁBIO BACILA SAHD
O apartheid na Palestina/Israel: revisão crítica e comparativa das considerações da Yesh Din, B’Tselem e Human Rights Watch

instituições legais de Israel para tentar reverter o quadro de difundida exce-


ção legal, que torna os palestinos vulneráveis. Em 2020, a organização pu-
blicou um relatório corroborando a tese de que o crime de apartheid está
sendo cometimento na Cisjordânia. As palavras empregadas como justifica-
tiva são enfáticas: após quinze anos de atuação, “sentimos que chegou o mo-
mento de nos perguntarmos qual é o fenômeno legal que vemos nessa área”.
O paradigma da ocupação explica plenamente “o que ocorre e o que Israel
criou nela?” ou o “Estado de Israel instituiu um regime de apartheid na Cisjor-
dânia”? (YESH DIN, 2020, p. 5-6). Fundamentando sua “opinião legal”, expôs
uma definição sintética da tipificação, baseando-se na CISPCA e no Estatuto
de Roma (1998). Deste, deriva o entendimento de ser um crime centrado na
existência de um regime, como sistema abrangente de governo com aparatos
(instituições públicas, leis, regulamentos, políticas e práticas) e poder para im-
plementar decisões sobre pessoas e territórios sob sua soberania. Da CISCPA,
extrai a constatação similar de se tratar de um conjunto de práticas e políticas
implementadas sistematicamente. Assim, apresenta o apartheid como trans-
gressão cometida por um regime, cuja própria existência é ilegítima (logo,
qualquer ato que objetive mantê-lo é criminoso). Constitui-se de três elemen-
tos: contexto (dominação e opressão sistemática, que subalterniza um grupo
praticando discriminação institucionalizada de direitos e recursos), propósito
(manter o controle do grupo dominante e discriminador) e atos “desumanos”
cometidos.
Após apresentar a definição de apartheid, a ONG justifica a restrição
de sua análise ao regime mantido na Cisjordânia. Não nega que o governo is-
raelense é o soberano único em todo o território, do Jordão ao Mediterrâneo,
e que emprega distintas práticas discriminatórias. Inclusive, afirma a legitimi-
dade de investigar a prática de apartheid nas demais áreas ou da alternativa
analítica de considerar a existência de um regime único em todo o território,
com Israel, gradativamente, anexando a Cisjordânia. Também menciona não
ignorar os riscos implicados na restrição de sua análise do apartheid aos TPO,
como “ecoar e amplificar as políticas israelenses voltadas a dividir e desco-
nectar a sociedade palestina para enfraquecê-la” ou “ofuscar o fato de que
Israel está engajado em uma campanha voltada a obter controle sobre todos
os palestinos vivendo do Rio Jordão ao Mediterrâneo”. Ou seja, “o sistema de
controle e sua perpetuação existe dentro de Israel também e, claro, em Gaza”,
mas constituiriam análises em escala distinta. Mas para a Yesh Din, “até o mo-
mento”, enquanto não houve anexação total e oficial e ao menos para julgar a
questão do apartheid, ainda seria possível considerar a existência de dois re-
gimes legais distintos, com características próprias: um militar na Cisjordânia
e outro civil em “Israel propriamente dito”, com o primeiro sendo subsidiário

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 191-215, jan./jun., 2022. (18) 197


FÁBIO BACILA SAHD
O apartheid na Palestina/Israel: revisão crítica e comparativa das considerações da Yesh Din, B’Tselem e Human Rights Watch

e subordinado ao segundo. Ademais, a entidade justifica seu recorte também


com base na delimitação contida em seu próprio estatuto e na experiência
que acumulou nos TPO e relatou por anos, garantindo-lhe subsídios para me-
lhor avaliar e classificar essa situação envolvendo vulnerabilidade legal, colo-
nização, expropriação fundiária em massa, desvio de recursos para privilegiar
israelenses em detrimento dos palestinos, repressão da oposição e um duplo
sistema legal em vigor.
Ou seja, o pressuposto da Yesh Din (2020, p. 25-26) é o da vigência de
diferentes sistemas de governo e dominação em cada espacialidade, com dis-
tintas características, autoridades e burocracia. Assim, promove “uma análise
legal separada de um crime, focando nitidamente na natureza exata do regi-
me” na Cisjordânia. Essa questão da delimitação é retomada em outras partes,
advertindo que, a “gradativa e continuada anexação legal” e oficial de partes
dos TPO está amalgamando os dois regimes. Isso “pode significar o fortaleci-
mento do argumento, que já está sendo ouvido, de que o crime de apartheid
não é apenas cometido na Cisjordânia, que o regime israelense em sua tota-
lidade é um regime de apartheid e que Israel é um Estado de apartheid”. In-
clusive, afirma que se esse quadro não se reverter será necessário revisar seu
próprio recorte analítico. Por fim, a pergunta feita na introdução (“Apartheid?
Nós?”) é respondida na conclusão (“Sim, nós”), afirmando ser “isso angustian-
te e vergonhoso. Mesmo que nem todos os israelenses sejam culpados do
crime, nós todos somos responsáveis por isso” (YESH DIN, 2020, p. 57-58).
Novos fatos e publicações consumaram esse prenúncio quanto à dis-
seminação de análises do apartheid considerando todo o território e não
somente os TPO. É o caso de outra ONG israelense, a B’Tselem (2021, p. 1),
fundada em 1989, que desde então publicou vários relatórios, monitorando
a situação dos direitos humanos. Se, inicialmente, restringiu sua atuação aos
TPO, mais recentemente, passou a cobrir ambos os lados da Linha Verde4.
Essa ampliação de seu escopo é justificada no próprio documento no qual
se posiciona sobre a questão do apartheid, que também apresenta uma res-
posta implícita à delimitação analítica da Yesh Din. Mais recentemente, teria
se acelerado o ritmo de mudança da realidade inicial, tornando-se inviável
manter a separação entre Israel e os TPO. Se a percepção hegemônica é a de
que operam dois regimes separados, isso só serve para ofuscar a realidade
de que os mais de quatorze milhões de habitantes de todo o território estão
sujeitos a um único governante. “Com o tempo, a distinção entre os dois re-
gimes, crescentemente, divorciou-se da realidade [...] a Cisjordânia tem sido

4 É a fronteira do Estado de Israel anterior à Guerra dos Seis Dias (1967), que levou à ocupação da Península do Sinai,
Faixa de Gaza, Cisjordânia e Colinas de Golã.

198 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 191-215 , jan./jun., 2022. (18)


FÁBIO BACILA SAHD
O apartheid na Palestina/Israel: revisão crítica e comparativa das considerações da Yesh Din, B’Tselem e Human Rights Watch

anexada na prática”, Jerusalém Oriental o foi oficialmente e os colonos vivem


como se estivessem do lado israelense da Linha Verde. Logo, não há distinção
concreta e nem dois regimes paralelos (democrático de um lado e de ocupa-
ção militar temporária de outro), mas apenas um, que governa toda a área e
população a partir de um “princípio único: avançar e cimentar a supremacia
de um grupo – judaico – sobre outro - palestino”. Fundamentando essa in-
terpretação, a B’Tselem (2021, p. 8) destaca “uma ascensão na motivação e
desejo de oficiais e instituições israelenses em inscrever a supremacia judaica
em lei e manifestar abertamente suas intenções [...] estilhaçando a fachada
que Israel trabalhou por anos para manter”. Menciona, em particular, duas ini-
ciativas mais impactantes: a Lei Básica, de 2018, e a manifestação pública do
governo Netanyahu de sua intenção de anexar partes da Cisjordânia. Juntos,
esses elementos explicitam o princípio único de governo e a inviabilidade de
seguir diferenciando os lados da Linha Verde, o que resulta na necessária re-
visão das interpretações e definições utilizadas até então para descrever os
fatos, como substituir “ocupação prolongada” pela tipificação de apartheid. A
referida legislação consagrou, legalmente, a colonização como elemento de
interesse nacional, que deve receber subsídio estatal, e definiu a autodetermi-
nação exclusivamente judaica no território como princípio constitucional, le-
gitimando a distinção entre judeus e não judeus e permitindo a discriminação
institucionalizada em favor dos primeiros em distintas áreas (assentamento,
habitação, desenvolvimento fundiário, cidadania, língua e cultura). Se o regi-
me seguiu tais princípios antes, agora “a supremacia judaica está assegurada
em uma lei básica, tornando-a princípio constitucional vinculante – diferente-
mente de práticas e leis comuns, que podem ser contestadas”. Isso sinaliza às
instituições que “elas não apenas podem, mas devem promover a supremacia
judaica em toda a área sob controle israelense” (B’TSELEM, 2021, p. 7). Quanto
aos planos de anexação formal de partes da Cisjordânia, se ainda não foram
executados, explicitam a intenção de garantir controle permanente sobre a
área (já anexada na prática há tempos), desmentindo a retórica vazia sobre o
status oficial aguardar uma solução final negociada.
A B’Tselem (2021, p. 2) traz aportes relevantes em sua avaliação da
situação e justificativa de que vigora um regime supremacista judaico “do Rio
Jordão ao Mediterrâneo”. Um regime de apartheid “usa leis, práticas e violên-
cia organizada para cimentar a supremacia de um grupo sobre outro”, sendo
um método crucial projetar os espaços de modo distinto, dividindo e sepa-
rando os subalternizados para governá-los. Nessa linha, o Estado israelense
busca consumar a dominação judaica em todo o território, dividindo-o em
várias unidades, cada qual com status distinto e um conjunto específico de
direitos negados ou assegurados aos palestinos, sempre inferiores àque-

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 191-215, jan./jun., 2022. (18) 199


FÁBIO BACILA SAHD
O apartheid na Palestina/Israel: revisão crítica e comparativa das considerações da Yesh Din, B’Tselem e Human Rights Watch

les gozados pelos judeus. Se para estes a área habitada é indiferente, pois é
contínua e estão integrados como cidadãos, para os palestinos o território
constitui um “mosaico fragmentado”, sendo este um aspecto fundamental. A
situação piora, progressivamente, quando se compara os palestinos com ci-
dadania israelense com aqueles vivendo em Jerusalém Oriental, no restante
da Cisjordânia e em Gaza, onde a negação de direitos é mais pronunciada.
Em cada uma dessas partes a supremacia judaica é implementada de modo
distinto, resultando em distintas violações. Esse regime de apartheid não nas-
ceu do dia para a noite, sendo “processo que, gradativamente, tornou-se mais
institucionalizado e explícito”, com mecanismos introduzidos de forma contí-
nua e cumulativa, difundindo-se nas leis e práticas e contando com respaldo
público e judicial. Há tanto diferenças como “reminiscências do regime sul-a-
fricano, que buscava preservar a supremacia dos cidadãos brancos, em parte
dividindo a população em grupos e subgrupos e garantindo distintos direitos
para cada” (B’TSELEM, 2021, p. 8).
Dentre os procedimentos adotados por Israel para avançar seus obje-
tivos a ONG destaca o planejamento demográfico, político e físico do espaço
por meio de leis e ordens, objetivando sua apropriação e judaização. Ao passo
que o Estado cria comunidades exclusivas e amplas para o grupo dominante,
que goza de total liberdade de locomoção e de infraestrutura nas distintas
partes que ocupa, confina os palestinos em enclaves territoriais densamente
povoados e com a menor área possível. Enquanto fomenta a imigração e na-
cionalização de judeus do mundo todo, garantindo privilégios e cidadania,
nega esta e vários direitos básicos a milhões de palestinos. Mais especifica-
mente, a B’Tselem (2021, p, 3-6) menciona quatro métodos centrais na con-
solidação do supremacismo judaico: dois vigoram de modo similar em toda
área (no caso, gestão territorial e migratória discriminatória) e dois são aplica-
dos, sobretudo, nos TPO (restrições de movimento e de outros direitos para
os palestinos, sendo distintas dimensões de suas vidas controladas por Israel).
Enquanto os judeus podem se deslocar e habitar em quase toda parte do ter-
ritório, a realocação palestina entre as distintas unidades é cerceada se impli-
car em uma melhora de sua condição, mas não em sentido contrário. Desse
modo, se um palestino cidadão israelense pode residir na Cisjordânia ou até
mesmo em Gaza, aqueles situados na última dificilmente conseguem se esta-
belecer fora dela, o que fica melhor ilustrado pela política oficial restringindo
sua reunificação familiar e o direito de continuarem vivendo onde nasceram
(além dos refugiados de 1948, desde 1967, teria sido revogado o status de
cerca de 250.000, privando-os da possibilidade de retornar para suas casas e
famílias). Desde 1948, o Estado “pratica uma política de ‘judaizar’ a área, base-
ado em uma ideologia segundo a qual a terra é recurso quase que exclusivo

200 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 191-215 , jan./jun., 2022. (18)


FÁBIO BACILA SAHD
O apartheid na Palestina/Israel: revisão crítica e comparativa das considerações da Yesh Din, B’Tselem e Human Rights Watch

para beneficiar o público judaico” (B’TSELEM, 2021, p. 4), sendo usada para
criar novas comunidades ou desenvolver e expandir pré-existentes enquanto
desapropria e confina os palestinos. Assim, vastas áreas foram expropriadas
dos refugiados, daqueles que conseguiram permanecer e dos beduínos e co-
locadas sob controle estatal sendo, posteriormente, redistribuídas entre ju-
deus. Além de planos diretores restritivos, outras leis recentes cercearam ain-
da mais a liberdade dos palestinos escolherem seu local de habitação, como
a criação de comitês de admissão, que podem alegar “incompatibilidades cul-
turais”. No plano dos direitos civis e políticos, as restrições têm se avolumado,
sujeitando os palestinos com cidadania a leis que limitam cada vez mais sua
possibilidade de criticar as políticas oficiais, como uma prevendo punição à
instituição que, ao invés de comemorar a fundação de Israel aludir à limpeza
étnica de 1948 e outra cerceando ações ou manifestações de apoio ao boi-
cote a Israel. A situação é mais grave nos TPO, onde a restrição da presença
espacial palestina ocorre desapropriando-os sob distintos pretextos, como
criação de estradas exclusivas, “estatização” de terras ou demarcação de zonas
de tiro, reservas naturais e parques nacionais. O deslocamento entre os en-
claves é controlado por meio de checkpoints, fechamentos, bloqueios e pelo
Muro da Separação e a fragmentação do espaço engendrada compromete a
promoção de ações unificadas de resistência, estando a oposição criminaliza-
da e reprimida de modo massivo, arbitrário e violento.
Poucos meses após a B’Tselem se posicionar em relação à questão
do apartheid, foi a vez da HRW (2021, p. 9) que, ao invés de um documento
sintético, apresentou um extenso relatório, intitulado “A Threshold Crossed:
Israeli Authorities and the Crimes of Apartheid and Persecution”. Baseou-se
em “anos de pesquisa e documentação” feita por ela própria e por outras or-
ganizações, incluindo trabalho de campo e os posicionamentos anteriores da
Yesh Din e B’Tselem. Ao corroborar e aprofundar a interpretação geral e as
considerações da segunda, a HRW ressignificou as considerações limitadas da
primeira quanto à abrangência do apartheid israelense. Para tal, coligiu evi-
dências acerca das políticas e práticas discriminatórias afetando os palestinos
nas diferentes áreas, contrapondo-as ao tratamento dispensado aos cidadãos
judeus vivendo nas mesmas localidades. Analisou os possíveis objetivos das
ações e a pertinência de classifica-las a partir das tipificações de apartheid e
perseguição, sem com isso comparar Israel e África do Sul. Por reconhecer a
unicidade do regime de dominação racial, não fez constatações separadas,
considerando as práticas hegemônicas de modo conjugado e em sua dinâmi-
ca e sistematicidade. O pressuposto é o mesmo da B’Tselem: Israel é o único
governante, exceto em algumas áreas onde exerce a autoridade primária so-
bre vários aspectos (fronteiras, espaço aéreo, movimento de pessoas e bens,

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 191-215, jan./jun., 2022. (18) 201


segurança e registro populacional), paralelamente a um autogoverno palesti-
no limitado e subordinado, criado com os Acordos de Oslo. Dois grupos vivem
em Israel e nos TPO: os israelenses judeus e os palestinos, com “um soberano
primário, o governo israelense, administrando-os”. A HRW (2021, p. 6-10) re-
conhece o contexto legal diferenciado de ambos os lados da Linha Verde e a
especificidade das políticas em vigor em cada área, ressaltando que a vigên-
cia de um regime integrado não modifica a situação legal dos TPO conforme
o direito internacional. Este impõe ao país ocupante obrigações que, sistema-
ticamente, vem sendo rejeitadas e violadas, como a interdição de colonização
e anexação e os crimes contra a humanidade de apartheid e perseguição, li-
gados a situações de “sistemática discriminação e repressão”.
No entendimento da HRW (2021, p. 17-19), o objetivo que até hoje
articula as políticas e ações estatais (verificável em leis, políticas e pronuncia-
mentos) é “manter o controle israelense judaico sobre a demografia, o poder
político e as terras”, garantindo o máximo de judeus e de terras disponíveis
a eles em Israel e nos TPO e uma maioria no corpo da cidadania, de modo a
manter o domínio étnico e o controle territorial, em detrimento dos pales-
tinos. Para isso, as autoridades “adotaram políticas voltadas a mitigar o que
abertamente descrevem como uma ‘ameaça’ demográfica representada pelos
palestinos”, buscando limitar sua população e poder político, restringir o aces-
so à cidadania, habitação e propriedades e operar a fragmentação e “‘judaiza-
ção’ de áreas com significativas populações palestinas”, mantendo Cisjordânia
e Gaza separadas. O controle sobre o território é ampliado fomentando a cria-
ção ou o crescimento de comunidades judaicas ao passo que, não só impede
a expansão das áreas palestinas, como desapropria e concentra em “enclaves
densos, precários” aqueles que vivem fora das principais cidades. Em decor-
rência, “na maioria dos aspectos da vida, as autoridades, metodicamente, pri-
vilegiam israelenses judeus e discriminam palestinos” que, em virtude de sua
identidade, são “desapropriados, confinados, separados à força e subjugados”.
Há décadas, é promovida a colonização e ocupação dos territórios em ambos
os lados da Linha Verde, garantindo-se aos nacionais judeus status legal su-
perior e uma série de privilégios. Enquanto “em Israel” prevalece uma “discri-
minação institucional” em relação à minoria palestina que tem cidadania, nos
TPO se sobressai, para além dela, a segregação forçada, “leis militares draco-
nianas”, a dominação e “opressão sistemática” e o cometimento de vários “atos
desumanos”. Portanto, as práticas e políticas opressivas são mais severas, com
a ocorrência conjunta desses elementos resultando em apartheid e persegui-
ção (HRW, 2021, p. 44; p. 53; p. 79-80).
Desse modo, a dominação objetivada é mantida por meio da fragmen-
tação e discriminação institucionalizada dos palestinos, cuja intensidade varia
FÁBIO BACILA SAHD
O apartheid na Palestina/Israel: revisão crítica e comparativa das considerações da Yesh Din, B’Tselem e Human Rights Watch

conforme sua localização nos territórios5. Se em cada parte é distinta a atua-


ção dos aparatos estatais e “quase-estatais”, eles operam em conjunto, sob a
direção dos governantes, cumprindo o propósito generalizado de expansão
étnica-demográfica. A fragmentação dos palestinos em diferentes categorias
é instrumental na tentativa de ocultar que, um mesmo governo discrimina,
domina e reprime todo um grupo de modo amplo e sistemático e em graus
variados, mas sempre em benefício do grupo dominante. Exemplificam isso
os argumentos de que não se trata de apartheid, pois há palestinos que são
cidadãos e podem votar em Israel. Os TPO não são parte do país ou, ainda, as
políticas e práticas de ocupação têm um caráter supostamente temporário (o
que, de todo modo, não serviria para desqualificar o cometimento de apar-
theid e perseguição). A HRW (2021, p. 17- 19) destaca que o direito de voto e
participação da minoria palestina com cidadania “não a empodera para supe-
rar a discriminação institucional que enfrenta do governo israelense, incluin-
do restrições difundidas no acesso a terras confiscadas deles, demolições de
casas e proibições efetivas de reunificação familiar”. Ademais, se a justificativa
geral das políticas discriminatórias é a questão securitária, várias não teriam
nenhuma conexão real com essa dimensão, utilizando-a como pretexto para
avançar objetivos demográficos. Inclusive, muitas leis e políticas são justifica-
das como voltadas a “preservar a maioria judaica proporcionando benefícios
aos judeus às custas dos direitos básicos dos palestinos” (HRW, 2021, p. 48). Se
Israel teria legitimidade para definir seu caráter nacional e política migratória
e de nacionalização de judeus, não poderia o fazer discriminando e negando
direitos básicos dos palestinos, como residência e, inclusive, retorno e repa-
triação dos refugiados, o que ocorre desde a fundação do Estado.
Vale reproduzir alguns dados elucidativos que a HRW (2021, p. 10-16;
p. 153-169) traz juntamente com estudos de caso para sustentar sua consta-
tação de que “as autoridades israelenses utilizam uma série de políticas e prá-
ticas para metodicamente privilegiar israelenses judeus e reprimir palestinos”,
com a severidade da repressão nos TPO resultando nos crimes de apartheid e

5 A HRW aponta que, em Gaza, Israel impõe um punitivo fechamento generalizado, além de ataques despropor-
cionais e indiscriminados, resultado em um quadro de abrangentes, graves e sistemáticas violações de direitos
humanos e humanitários (leis de guerra). Em Jerusalém Oriental, anexada oficialmente, promove políticas orça-
mentárias e de planejamento abertamente discriminatórias, pautadas por objetivos demográficos de restringir a
presença palestina. Em muitos pontos essa também é a situação do lado israelense da Linha Verde, onde a estrutura
de duas classes de cidadania e a diferenciação entre esta e nacionalidade resultam nos palestinos terem, por lei, um
status inferior em relação aos cidadãos/nacionais judeus. Estão separados e são tratados de forma desigual, com leis
permitindo a imigração e garantindo cidadania para estrangeiros com identidade judaica ao passo em que negam
o direito de retorno e restituição dos refugiados palestinos de 1948 e de seus descendentes. Desse modo, por todo
o território, “Israel garante privilégios aos israelenses judeus negados aos palestinos e priva estes de direitos funda-
mentais pelo fato de serem palestinos”. Se variam “os mecanismos e a intensidade dos abusos entre os TPO e Israel”,
o soberano é o mesmo (HRW, 2021, p. 27).

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 191-215, jan./jun., 2022. (18) 203


FÁBIO BACILA SAHD
O apartheid na Palestina/Israel: revisão crítica e comparativa das considerações da Yesh Din, B’Tselem e Human Rights Watch

perseguição. Enquanto os judeus estão integrados em um território contíguo,


deslocando-se livremente, os palestinos estão restritos em seus movimentos,
fragmentados, concentrados e separados em 165 “‘ilhas territoriais’ descontí-
nuas”. Na Cisjordânia, mais de um terço das terras foram confiscadas (muitas
delas propriedade privada). Enquanto alvarás de construção são negados aos
palestinos e se multiplicam as ordens de demolição de “construções irregu-
lares”, as construções em colônias são autorizadas para ampliá-las e isolar e
restringir as áreas palestinas, dificultando a criação de uma entidade política
unificada e perpetuando o controle. Em Jerusalém prevalece lógica seme-
lhante de ampliar a presença territorial e manter sólida maioria demográfica,
do mesmo modo que dentro de Israel, onde também vigoram políticas fundi-
árias e de planejamento discriminatórias, implicando em restrições seletivas.
As confiscações fundiárias são estimadas em 60 a 75% de toda a terra possu-
ída por palestinos até 1948, e de 40 a 60% do total pertencente aqueles que
conseguiram permanecer e se tornar cidadãos e, tal qual nos TPO, as terras
desapropriadas e tornadas estatais foram transferidas, em sua quase totali-
dade, para uso exclusivo de israelenses judeus, seguindo a lógica de judai-
zar os territórios e concentrar os palestinos. Assim, se esse grupo representa
19% dos cidadãos, tem jurisdição estimada em somente 3% de todas as terras
“dentro de Israel” e recebe, proporcionalmente, bem menos recursos públi-
cos. Os estudos de caso são as políticas de judaização no Negev e na Galileia,
em especial, o caso de Nazaré. Quanto aos objetivos demográficos, é muito
significativa a “lei de retorno” e a de nacionalidade, exclusiva para judeus, pre-
terindo os refugiados6.
Tal qual a B’Tselem, a HRW destaca os abalos recentes na retórica he-
gemônica ou na pretendida fachada democrática, provenientes de pronun-
ciamentos e políticas oficiais, que transparecem a intenção de aprofundar,
legalizar e perpetuar tanto a discriminação quanto a colonização e o controle
sobre os TPO. Os exemplos dados também são a Lei Básica de 20187 e o proje-

6 As autoridades israelenses se recusam a permitir o retorno das centenas de milhares de palestinos “que fugiram ou
foram expulsos em 1948, e seus descendentes” e, desde a fundação de Israel, aqueles que permaneceram em suas
fronteiras foram alvo de discriminação sistemática e violação de direitos, como de propriedade e residência. Assim,
em todo o território, enquanto favorece a imigração e nacionalização de estrangeiros judeus, utiliza o controle sobre
o registro populacional para, sistematicamente, negar requisições de palestinos e de outros não judeus, submetendo
os requerentes a “abusos burocráticos organizados e metódicos”, justificados em defesa do “caráter judaico do Es-
tado”. Desde 2000, processos de reunificação familiar são recusados, assim como pedidos de mudança de endereço
entre Gaza e Cisjordânia ou a entrada de palestinos não registrados que vivem no exterior, tendo por efeito limitar
sua população (HUMAN RIGHTS WATCH, 2021, p. 16; p. 50-51).
7 Se outras legislações já haviam oficializado a natureza judaica do Estado (ao invés de pertencente a todos seus cidadãos),
a mais recente inscreveu a discriminação como princípio constitucional ao privilegiar seu caráter étnico em detrimento
do democrático e ao definir Israel como “Estado-nação do povo judeu”, que tem direito exclusivo à autodeterminação no
território, considerando a colonização um valor nacional e não mais aludindo ao princípio da igualdade.

204 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 191-215 , jan./jun., 2022. (18)


FÁBIO BACILA SAHD
O apartheid na Palestina/Israel: revisão crítica e comparativa das considerações da Yesh Din, B’Tselem e Human Rights Watch

to de Netanyahu de “anexação unilateral” de outras partes da Cisjordânia, que


viriam a “formalizar a realidade de sistemático domínio e opressão israelense,
que há tempos prevalece”. Inclusive, em 2020, foi criado o Ministério de As-
suntos de Colonização. Diante disso tudo, a HRW (2021, p. 20-21) faz várias
recomendações, destacando-se a assertividade de algumas8, que se asseme-
lham às políticas adotadas outrora para isolar a África do Sul. “As constatações
de crimes contra a humanidade devem levar a comunidade internacional a
reavaliar sua abordagem em relação à Palestina e Israel”, em contrapartida à
normalização das violações com base em seu caráter supostamente tempo-
rário, o que tem “permitindo Estados a resistirem ao tipo de responsabilidade
que uma situação com essa gravidade requer, permitindo ao apartheid fazer
metástase e se consolidar”.

Comparando as relatorias e a bibliografia sobre o apar-


theid israelense
Na comparação dos documentos publicados pelas ONGs é fundamen-
tal considerar sua natureza distinta. Se a B’Tselem fez uma declaração geral
de posição de oito páginas, a Yesh Din, embora limitada à Cisjordânia, apro-
fundou-se, escrevendo seis dezenas de laudas e a HRW superou as duzentas,
elaborando um relatório detalhado. Nesse sentido, é um tanto óbvio que é
a organização internacional que melhor demonstra o caráter sistemático da
dominação, discriminação e opressão exercida sobre os palestinos como um
todo por Israel, que os confina e reduz sua presença de modo deliberado e
discriminatório. Enfatiza como o Estado se vale de políticas demográficas, fun-
diárias e de planejamento para maximizar a presença espacial judaica em de-
trimento da palestina. Procedimento comum das três ONGs é a comparação
da realidade local com a definição jurídica de apartheid (e não com o regime
sul-africano) e com os “atos desumanos” que o constituem quando cometidos
de modo sistemático e para manter a opressão e dominação de um grupo so-
bre outro. As ONGs apontam para o cometimento de vários desses “atos” por
Israel, especialmente nos TPO, exceto pela destruição física do todo ou parte,

8 Todos os governos devem se pronunciar, condenando a prática desses crimes por Israel, “examinar acordos, regimes
de cooperação e todos as formas de comércio e negócios” (detectando aqueles que contribuem para o apartheid e
perseguição), dar visibilidade e pressionar para que essas violações cessem e investigar e processar sujeitos impli-
cados. A venda de armas e prestação de assistência militar e securitária a Israel devem ser condicionadas à adoção
de medidas concretas para cessar tais práticas. Paralelamente, empresas “devem cessar atividades que contribuam
diretamente” para esses crimes, deve ser criada uma comissão internacional de inquérito na ONU e designado um
enviado especial para apurar os crimes e mobilizar a comunidade internacional (HRW, 2021, p. 20-21).

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 191-215, jan./jun., 2022. (18) 205


FÁBIO BACILA SAHD
O apartheid na Palestina/Israel: revisão crítica e comparativa das considerações da Yesh Din, B’Tselem e Human Rights Watch

que é a dimensão do apartheid afim com o genocídio. Tais atos manifestam


políticas deliberadas e sistemáticas que afetam milhares de indivíduos, por-
tanto, são enquadrados como ataques difundidos e sistemáticos contra civis
(crimes contra a humanidade), mais especificamente, apartheid. A HRW cita a
posição da B’Tselem e Yesh Din, aprofundando considerações afins com a pri-
meira ao mesmo tempo em que se contrapõe, implicitamente, à delimitação
espacial da Yesh Din aos TPO, o que constitui sua especificidade. Ou seja, HRW
e B’Tselem se posicionaram criticamente acerca dessa abordagem restrita e
ampliaram seu escopo, adotando como premissa a vigência de um regime
único do Jordão ao Mediterrâneo. Em algumas passagens, parecem replicar
indiretamente à Yesh Din, especialmente a HRW, que na introdução explicita e
fundamenta sua recusa de fazer considerações separadas e uma abordagem
restrita. A justificativa dada é semelhante a da B’Tselem, aludindo à Lei Básica
de 2018 e às declarações de Netanyahu favoráveis à anexação de partes da
Cisjordânia, o que escancararia a já vigente anexação de fato e “estilhaçaria” a
fachada ou propaganda externa israelense.
Resumidas as principais considerações das três ONGs, é fato que elas
refletem a bibliografia específica sobre o apartheid israelense, que é multidis-
ciplinar, fundada tanto no direito internacional quanto nas ciências humanas.
Assim como a relatoria, a bibliografia também está cindida entre uma inter-
pretação restrita aos TPO e outra mais abrangente, com a primeira, geralmen-
te, configurando-se em um tipo de inquérito jurídico se Israel pratica ou não
o crime de apartheid, limitando-se a abordagem a um levantamento de fatos
contrapostos à tipificação jurídica internacional. Vale destacar que, mesmo
essa delimitação suscita uma análise holística da situação ao partir do pressu-
posto integrado de um regime, que pratica discriminação sistemática e opres-
são racial para manter a dominação. A Yesh Din reproduz essa abordagem
presente na relatoria especial de John Dugard (2007) e no relatório coorde-
nado por Virginia Tilley (2009), a pedido do South Africa Human Sciences Re-
search Council. Já a B’Tselem e HRW ecoam a investigação e as considerações
mais abrangentes acerca das implicações do regime israelense de apartheid
sobre o povo palestino como um todo, tal como figura no veredito do Tribu-
nal Russell (2011) e no relatório demandado a Tilley e Richard Falk pela United
Nations Economic and Social Commission for Western Asia (ESCWA), publica-
do em 2017, que também fundamentaram os relatórios paralelos enviados
por várias ONGs palestinas e israelenses para o guardião da CIEDR (AL-HAQ et
al, 2019). Essas interpretações espacialmente mais abrangentes trazem apor-
tes teóricos relevantes p2xyrcidas em distintos tempos e partes do território
com os objetivos políticos de Israel.
Fato é que, independentemente da abordagem feita, há um evidente

206 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 191-215 , jan./jun., 2022. (18)


FÁBIO BACILA SAHD
O apartheid na Palestina/Israel: revisão crítica e comparativa das considerações da Yesh Din, B’Tselem e Human Rights Watch

espelhamento e reforço mútuo entre bibliografia e relatoria, que é o que de-


monstraremos agora. Um primeiro ponto é o fato da HRW e B’Tselem terem
superado o que alguns críticos, como Ran Greenstein (2015; 2020), definem
como análises parciais ou incompletas do apartheid israelense por se restrin-
girem às práticas nos TPO, onde as comparações com o caso sul-africano e
a tipologia de apartheid são mais fáceis, mas perde-se de vista a implicação
geral do regime e como articula outras espacialidades e categorias na ma-
nutenção da supremacia racial judaica. Ambas as organizações vão além ao
avaliarem as práticas, leis e políticas soberanas como um todo, articulando-as
nos dois lados da Linha Verde. Eixo comum das interpretações mais amplas é
a centralidade atribuída ao planejamento e ao controle demográfico e terri-
torial exercido por Israel ou ainda ao objetivo de se apropriar e judaizar o ter-
ritório, articulando as várias violações ou “atos desumanos” que configuram
o apartheid. Isso figura tanto nas considerações da B’Tselem e HRW quanto
naquelas feitas por distintos autores. Conforme Yitfachel (2006; 2012), o Esta-
do israelense é uma etnocracia e não uma democracia (não tendo um demos,
mas um etnos, tampouco fronteiras definidas), sendo seu propósito, justa-
mente, a “judaização” do território disputado. As dimensões da demografia,
das políticas fundiárias e do planejamento territorial são estruturantes dos
regimes supremacistas e etnocráticos. Ainda em 2012, o autor propôs uma
periodização do “apartheid gradativo” implementado por Israel, apontando
para o início de uma nova etapa de formalização e consolidação da segrega-
ção, que aproximaria, cada vez mais, Israel e o caso sul-africano. A pertinência
dessa proposição é corroborada pela forma como as a HRW e a B’Yselem jus-
tificaram sua posição comum acerca do cometimento do crime de apartheid,
recorrendo à Lei Básica de 2018 e aos pronunciamentos favoráveis à anexação
da Cisjordânia, que escancarariam essa institucionalização.
Da ênfase nessas medidas e em suas consequências decorre, ainda,
outro paralelo dessas fontes com as considerações de Yiftachel. Tais medidas
estariam, conforme a B’Tselem, “estilhaçando” a imagem pública que Israel
buscou manter por anos e, para a HRW, inviabilizando as tentativas de ofuscar
e negar a realidade de uma dominação única exercida sobre os palestinos
como grupo racial dominado e oprimido sistematicamente. Yiftachel (2006)
menciona a “fachada democrática” como outra característica marcante das
etnocracias como regimes instáveis, permeados de contradições e tensões.
Se elas objetivam manter certa legitimidade perante os regimes morais in-
ternacionais, enfrentam dificuldades ou fatores de desestabilização (como a
própria atuação de ONGs críticas), justamente, pela natureza supremacista
que buscam ocultar e que é fator de geração permanente de violações. Em
2012, o geógrafo caracterizou a fase atual do “apartheid gradativo” israelense

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 191-215, jan./jun., 2022. (18) 207


FÁBIO BACILA SAHD
O apartheid na Palestina/Israel: revisão crítica e comparativa das considerações da Yesh Din, B’Tselem e Human Rights Watch

como, justamente, pendendo para o recrudescimento das medidas formais


de apartação, em detrimento da manutenção dessa fachada. Vale notar, ain-
da, que, o conceito de etnocracia figura no título e é, de fato, central em diver-
sos capítulos da obra organizada por Na’eem Jeenah (2012) acerca do caso.
Contrastando-se Yiftachel com a posição da Yesh Din, esta parte de premissa
incompatível com o conceito de etnocracia, ao considerar que existe um “Is-
rael em si” separado dos TPO, ainda que não negue a validade das análises
integrais. Menciona-se pontualmente os riscos dessa abordagem restrita, seu
foco não deixa de invisibilizar questões centrais para a compreensão da do-
minação e opressão sistemática sobre os palestinos, como sua fragmentação
em diferentes categorias separadas como cerne do processo de judaização de
todo o território.
A lógica hegemônica de despalestinização/judaização do território
(ou, simplesmente, limpeza étnica) é central no conceito de etnocracia e fi-
gura em distintos relatórios como associada ao apartheid (é o caso da HRW,
B’Tselem, Al-Haq e ICAHD). Essa articulação também estrutura a definição de
“apartheid em sentido amplo” feita pelo sociólogo Anthony Löwstedt (2014).
Nesse tipo ideal, que serve para a análise e comparação das situações con-
cretas, estão elencadas como centrais nos regimes de apartheid: colonização,
demografia, políticas de despovoamento / repovoamento e fundiárias discri-
minatórias, expropriadoras e confinadoras, além da prática da violência, pri-
vação de cidadania / nacionalidade e ideologia justificadora. O apartheid é
situado entre o colonialismo e o genocídio, apresentando também políticas
de limpeza étnica. Inclusive, o relatório da HRW (2021, p. 186; 203) enfatiza a
“transferência forçada” como crime contra a humanidade e parte dos “atos de-
sumanos” que configuram o apartheid e a perseguição israelense, com as au-
toridades tendo “privado milhões de palestinos de seus direitos básicos pelo
fato de sua identidade palestina”. Essas correspondências ficam ainda mais
evidentes na descrição pormenorizada pela HRW da “judaização” do Negev,
da Galileia e dos TPO, bem como em sua interpretação da retirada da Faixa de
Gaza por questões demográficas, que foi acompanhada, justamente, pela in-
tensificação da colonização judaica em outras partes. “Em grande medida, as
autoridades israelenses perseguiram os objetivos de domínio demográfico e
fundiário de modo paralelo”, buscando maximizar a presença do grupo domi-
nante e reduzir e confinar a do outro discriminado, sendo a limpeza étnica de
1948 paradigmática pela reversão abrupta que implicou. O máximo de judeus
no território, de terras para eles e o mínimo de palestinos, concentrados em
guetos (HRW, 2021, p. 53; 57; 62 et seq.) é política explícita, central também
nas ponderações de Löwstedt (2014) acerca do despovoamento/repovoa-
mento ou judaização/despalestinização como cerne do apartheid.

208 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 191-215 , jan./jun., 2022. (18)


FÁBIO BACILA SAHD
O apartheid na Palestina/Israel: revisão crítica e comparativa das considerações da Yesh Din, B’Tselem e Human Rights Watch

Outra reflexão pertinente do sociólogo austríaco para interpretar a re-


latoria é a distinção que faz entre “apartheid em sentido amplo” e “restrito”,
com o primeiro considerando as colonizações desde seu início e o apartheid
como desdobramento e o segundo se limitando aos regimes mais explícitos,
como no caso sul-africano do período de 1948 a 1994 e no palestino/israelen-
se de 1967 em diante e somente nos TPO. Por sua vez, ao classificar o caso
israelense/palestino como “apartheid de um tipo especial”, Greenstein (2015;
2020) está parodiando a definição do caso sul-africano feita pelo partido co-
munista local como “colonialismo de tipo especial”, o que conota a temporali-
dade mais ampla e causalidade mais complexa desses regimes de separação.
Ainda contrastando relatoria e bibliografia, em sua obra com posfá-
cio de Richard Falk, Löwstedt (2014) antecipou uma constatação central feita
posteriormente em vários relatórios, como no da ESCWA (2017). Sublinhou a
centralidade das políticas e práticas hegemônicas de forjar uma maioria no
corpo de cidadãos, mantendo a etnia concorrente dividida e subalternizada
nas situações de apartheid, garantindo-se cidadania a no máximo uma mino-
ria do total de “nativos” e os concentrando, desnacionalizando e/ou expelindo
para o exterior, o que regionaliza as tensões. Inclusive, o “pânico demográfico”
seria uma das causas da recorrência com que o poder soberano emprega a
violência. Também desconstruindo a engenharia social e demográfica hege-
mônica ou a fragmentação dos palestinos, Greenstein (2015; 2020) considera
os refugiados de 1948, como a dimensão da “Grande Palestina”, conectando-
-os com a situação geral de privação de direitos, ao invés de tratá-los como
caso à parte. Inclusive, eles constituiriam a faceta mais negada nas análises do
caso, ainda que sua expulsão e manutenção no exílio sejam questão central
para a compreensão e funcionamento do todo, constituindo o primeiro ato e
pilar do regime supremacista, pois garante a maioria judaica no território e o
controle étnico do Estado.
De fato, os refugiados estão ausentes ou são quase totalmente igno-
rados nos documentos da Yesh Din e B’Tselem. Enquanto a primeira silencia
completamente, a segunda somente menciona os refugiados de modo muito
breve ao apontar que as propriedades “daqueles que foram expulsos ou fu-
giram” foram tornadas estatais dentro da lógica de judaização do território
e que, se o Estado garante cidadania a qualquer judeu que queira imigrar a
nega aos palestinos que vivem no exterior, mesmo quando nasceram ou des-
cendem de antigos moradores do território. Em contrapartida, a questão é
minimamente abordada pela HRW (2021, p. 24; 48), que articula a limpeza
étnica de 1948 e a negação do direito de retorno e restituição ao quadro mais
amplo de apropriação e judaização do território e à reivindicação de Israel
como Estado étnico (e não de todos seus cidadãos). Com isso discrimina, do-

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 191-215, jan./jun., 2022. (18) 209


FÁBIO BACILA SAHD
O apartheid na Palestina/Israel: revisão crítica e comparativa das considerações da Yesh Din, B’Tselem e Human Rights Watch

mina e oprime outro grupo racial em ambos os lados da Linha Verde, o que
corresponde à definição de apartheid. O contraponto é também a discrimi-
natória “lei de retorno” e de cidadania, assim como a diferenciação entre ci-
dadania e nacionalidade, beneficiando, exclusivamente, judeus. Derivam da
judeidade reivindicada e institucionalizada pelo Estado (inclusive em detri-
mento de sua dimensão democrática) os privilégios e as políticas de “opressão
sistemática” e “discriminação institucional” às quais o povo palestino como
um todo está submetido. Assim, em conformidade com a bibliografia, a HRW
considera como eixo articulador e explicativo do apartheid, da perseguição e
das violações correlatas a própria reivindicação de um Estado judeu em terri-
tório partilhado, que tem implementado práticas e políticas para conseguir e
manter uma maioria étnica, quando o total de palestinos é maior que o de is-
raelenses judeus, recorrendo então à fragmentação e expulsão populacional.
Eis reflexão convergente com a bibliografia.
Um último ponto a ser mencionado, de menor relevância, é
que, assim como Ilan Pappé (2015) em sua obra, a HRW (2021) apresentou seu
relatório como quase novidade em um debate que seria, supostamente, re-
cente, quando foi precedido de já considerável número de publicações com-
parando África do Sul e Israel ou analisando o cometimento também pelo úl-
timo do crime de apartheid. A HRW afirma buscar suprir uma lacuna, a de que
poucos, até então, teriam conduzido uma “análise legal detalhada baseada
nos crimes internacionais de apartheid e perseguição”. Ela menciona somente
outros relatórios institucionais, como o da própria B’Tselem, publicado meses
antes do seu e de outras ONGs, como a Yesh Din e aquelas que remeteram
uma relatoria paralela ao guardião da CIEDR. Vale destacar, além das obras
de intelectuais palestinos e israelenses (como Fayez Sayegh, Edward Said e
Uri Davis) e da relatoria de Dugard e Falk, o estágio avançado do debate na
África do Sul, onde circulam publicações comparativas desde, pelo menos, os
anos 1990, como um livro seminal de Greenstein (1995). Já a Yesh Din (2010,
p, 5) aponta que, há décadas, “acusações de apartheid foram feitas contra
Israel, com intensidade, graus e aludindo a contextos espaciais e temporais
variados”. Mas, explicitando suas próprias limitações teóricas e políticas, afir-
ma que tais denúncias ficaram inicialmente restritas a “grupos relativamente
marginais e extremamente radicais da sociedade civil internacional e palesti-
na”, raramente incluindo “análises legais”, voltadas a averiguar a adequação da
tipificação. Recentemente, “o discurso do apartheid foi expandido para além
desses limites” e a acusação se tornou objeto de cada vez mais análises e lugar
comum entre “crescentes círculos de ativistas políticos e mesmo ativistas de
direitos humanos e pela paz”.

210 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 191-215 , jan./jun., 2022. (18)


FÁBIO BACILA SAHD
O apartheid na Palestina/Israel: revisão crítica e comparativa das considerações da Yesh Din, B’Tselem e Human Rights Watch

Conclusão
Uma crítica necessária aos relatórios da B’Tselem e HRW é a ausência
da dimensão e/ou tipificação internacional de colonialismo, que é central na
bibliografia e está implícita na ideia de judaização territorial. Seja nas ciências
humanas, seja no direito internacional (como na CIEDR e CISPCA), a coloniali-
dade é explicitamente relacionada às situações de discriminação racial e aos
regimes de apartheid. Essa lacuna prejudica a abordagem do objeto específi-
co, dificultando a percepção da natureza mais ampla do racismo e da discrimi-
nação racial prevalecentes na Palestina/Israel. Inclusive, essa ausência ajuda a
entender porque a HRW, apesar de seu consistente relatório, reitera interpre-
tações relativamente acríticas sobre Gaza, ao sugerir uma falsa equivalência
nas violações praticadas por Israel e pela resistência armada palestina, atu-
ante sobretudo a partir desse território. Ao menos, recorrer à tipificação de
apartheid implica que, qualquer ação voltada a manter um regime desse tipo
é ilegal e ilegítima. Em contrapartida àquelas voltadas a desmantelá-lo que,
inclusive, podem ser consideradas a partir da resolução 3070 da Assembleia
Geral da ONU, de 1973 (aprovada com amplo apoio dos países não alinhados,
e à revelia das ex-potências coloniais), alusiva ao direito dos povos resistirem
às formas de colonização, discriminação e negação de seu direito à autodeter-
minação, e que menciona o caso palestino e sul-africano. Ou seja, não há uma
refinada articulação e hierarquização das causalidades dessas violações, figu-
rando elas de modo um tanto descontextualizado e acrítico, na contramão de
autores como Löwstedt (2014), que chega até a quantificar a responsabilidade
pelas violações praticadas pelos regimes de apartheid e pelas respectivas re-
sistências anticoloniais e antirracistas, demonstrando a desproporcionalidade
e como, via de regra, o causador é o regime violador. Vale destacar que, mes-
mo relatando a partir de um mandato específico designado pelo Conselho de
Direitos Humanos da ONU (portanto, também inscrito nas balizas conceituais
do direito internacional e restrito aos TPO), John Dugard e Richard Falk arti-
cularam, explicitamente, colonialismo e apartheid, o que figurou também no
relatório do conselho sul-africano. Por sua vez, a Yesh Din (2020, p. 28; 57) tam-
bém faz tais relações, aludindo à especificidade da ocupação, acompanhada
de colonialismo, o que sustenta a realidade hierárquica institucionalizada de
dois grupos raciais, um dominante e privilegiado e outro, sistematicamente,
dominado, oprimido e discriminado (“esse processo produziu duas Cisjordâ-
nia com o passar do tempo”). Inclusive, o crime de apartheid é cometido nos
TPO, pois, dentre outras coisas, a ocupação israelense não é ordinária, mas
uma “acompanhada de um vultuoso projeto de colonização”.
Apesar dos limites dos três relatórios se comparados com a bibliogra-

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 191-215, jan./jun., 2022. (18) 211


FÁBIO BACILA SAHD
O apartheid na Palestina/Israel: revisão crítica e comparativa das considerações da Yesh Din, B’Tselem e Human Rights Watch

fia, deve-se salientar que eles constituem avanços teóricos e interpretativos


muito significativos quando contrastados com a relatoria anterior dessas pró-
prias organizações. Por décadas, elas investigaram e denunciaram as viola-
ções israelenses de modo específico e separado, chegando a conclusões e
fazendo recomendações demasiado superficiais. Agora, finalmente passaram
a articular entre si e interpretar essas ações como “atos desumanos” consti-
tuintes do crime de apartheid, pois cometidas de modo sistemático e com o
propósito de impor e manter o domínio de um grupo racial sobre outro, dis-
criminando-o e oprimindo-o. Assim, chegaram a uma interpretação holística,
espacial e temporalmente abrangente (exceto pelo deficiente recorte traba-
lhado pela Yesh Din). É fato que esse salto teórico é tardio, pois facilmente
fundamentável a partir de seus próprios documentos e das amplas evidências
coligidas há décadas por outras organizações e pela ONU (SAHD, 2017; SAHD;
JUNIOR, 2021). Inclusive, como demonstrado, há vários, influentes e legítimos
precedentes que, com bastante antecedência, concluíram, categoricamente,
que Israel pratica o crime de apartheid. Por fim, cabe destacar que, Gaza pa-
rece constituir o modelo final de gestão do apartheid israelense, como área
territorialmente muito reduzida, densamente povoada e recortada e isolada
dos demais “palestinistãos”, com o controle se dando à distância e por meio de
operações militares intermitentes.

Referências
AL-HAQ et al. Joint Parallel Report to the United Nations Committee on the Eli-
mination of Racial Discrimination on Israel’s Seventeenth to Nineteenth Periodic
Reports. Al-Haq, november 10, 2019. Disponível em: https://www.alhaq.org/
advocacy/16183.html. Acesso em: 13 mar. 2021.

B’TSELEM. A Jewish Supremacy Regime from the River Jordan to the Mediter-
ranean Sea: This Is Apartheid. B’Tselem, january 12, 2021. Disponível em:
https://www.btselem.org/publications/fulltext/202101_this_is_apartheid.
Acesso em: 17 mar. 2021.

DUGARD, John. Report of the Special Rapporteur on the Situation of Human Ri-
ghts in the Palestinian Territories Occupied since 1967, John Dugard. UN, Janu-
ary 29, 2007. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/
GEN/G07/105/44/pdf/G0710544.pdf?OpenElement. Acesso em: 11 fev. 2021.

DUGARD, John; REYNOLDS, John. Apartheid, International Law and the Oc-
cupied Palestinian Territory. The European Journal of International Law, Ox-

212 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 191-215 , jan./jun., 2022. (18)


FÁBIO BACILA SAHD
O apartheid na Palestina/Israel: revisão crítica e comparativa das considerações da Yesh Din, B’Tselem e Human Rights Watch

ford, v. 24, n. 3, p. 865-911, 2013. Disponível em: https://academic.oup.com/


ejil/article/24/3/867/481600. Acesso em: 6 abr. 2021.

FALK, Richard. Report of the Special Rapporteur on the situation of human ri-
ghts in the Palestinian territories occupied since 1967, Richard Falk. UN, January
13, 2014. Disponível em: http://blog.unwatch.org/wp-content/uploads/A-
-HRC-25-67_en-Falkfinalreport_Feb2014.pdf. Acesso em: 19 fev. 2021.

FALK, Richard. Postscript. In: LÖWSTEDT, Anthony. Apartheid: Ancient, Past


and Present. Wien: Gesellschaft für Phänomenologie und kritische Anthropo-
logie, 2014a.

GREENSTEIN, Ran. Genealogies of Conflict: Class, Identity, and State in Palesti-


ne/Israel and South Africa. Hanover: Wesleyan University Press, 1995.

GREENSTEIN, Ran. Israel-Palestine and Apartheid Analogy: Critics, Apologists


and Strategic Lessons. In: PAPPE, Ilan (ed). Israel and South Africa. The Many
Faces of Apartheid. London: Zed Books, p. 299-330, 2015.

GREENSTEIN, Ran. Israel, Palestine and Apartheid. Insight Turkey, Istambul, v.


22, n. 1, p. 73-92, 2020.

HUMAN RIGHTS WATCH. A Threshold Crossed: Israeli Authorities and the


Crimes of Apartheid and Persecution. 2021. HRW web site, april 27, 2021.
Disponível em: https://www.hrw.org/sites/default/files/media_2021/04/isra-
el_palestine0421_web_0.pdf. Acesso em: 13 mai. 2021.

JEENAH, Na’eem. Pretending democracy, living ethnocracy. In: JEENAH,


Na’eem. (ed.). Pretending democracy: Israel, an ethnocratic state. Johannes-
burg: AMEC, p. 3-16, 2012.

LÖWSTEDT, Anthony. Apartheid: Ancient, Past and Present. Wien: Gesells-


chaft für Phänomenologie und kritische Anthropologie, 2014.

PAPPÉ, Ilan (ed.). Israel and South Africa. The Many Faces of Apartheid. Lon-
don: Zed Books, 2015.

SAHD, Fábio B. O pan-africanismo e o pan-arabismo. A organização para a


unidade africana e a questão palestina (1967-1975). História Revista, Goiâ-
nia, v. 20, n. 3, p. 138–156, 2016. Disponível em: https://doi.org/10.5216/

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 191-215, jan./jun., 2022. (18) 213


FÁBIO BACILA SAHD
O apartheid na Palestina/Israel: revisão crítica e comparativa das considerações da Yesh Din, B’Tselem e Human Rights Watch

hr.v20i3.25338. Acesso em: 15 jun. 2021.

SFARD, Michael. The Israeli Occupation of the West Bank and the crime of Apartheid:
Legal Opinion. Yesh Din web site. July 7, 2020. Disponível em: https://s3-eu-west-1.
amazonaws.com/files.yesh-din.org/Apartheid+2020/Apartheid+ENG.pdf. Acesso
em: 15 fev. 2021.

SAHD, Fábio B. As violações impunes de direitos humanos e humanitários dos


palestinos vivendo sob a ocupação israelense: possíveis interpretações. Tese
(Doutorado em Humanidades, direitos e outras legitimidades) - Faculdade de
Filosofia Ciêncais e Letras. Universidade de São Paulo, 2017. Disponível em
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8161/tde-21022018-102435/publico/
2017_FabioBacilaSahd_VOrig.pdf. Acesso em: 15 jun. 2021.

SAHD, Fábio B.; C. JUNIOR, Domingos d. Apartheid nos Territórios Palestinos


Ocupados? O que dizem os relatórios do CEIPI. Revista Epistemologias do Sul,
Foz do Iguaçu, v. 4, n. 1, p. 1-19, 2020. Disponível em: https://revistas.unila.
edu.br/epistemologiasdosul/article/view/2614/2536. Acesso em: 15 jun.
2021.

SAHD, Fábio B.; TELES, Bárbara C. O colonialismo como marco interpretativo


basilar do apartheid israelense: revisitando e ressignificando a questão. Di-
versitates, Rio de Janeiro, v. 13, n. 4, 2021. Disponível em: http://www.diversi-
tates.uff.br/index.php/1diversitates-uff1/article/download/417/pdf. Acesso
em 28 mar. 2022.

TYLLEY, Virginia (ed). Occupation, Colonialism, Apartheid? Cape Town: Middle


East Project of the Democracy and Governance Programme & Human Scien-
ces Research Council of South Africa, 2009.

UNITED NATIONS. Economic and Social Commission for Western Asia. Israeli
Practices towards the Palestinian People and the Question of Apartheid. Uni-
ted Nations: Beirute, 2017. Disponível em: https://www.middleeastmonitor.
com/wp-content/uploads/downloads/201703_UN_ESCWA-israeli-practices-
-palestinian-people-apartheid-occupation-english.pdf. Acesso em: 27 mar.
2021.

WEISS, Philip. Two former Israeli ambassadors to South Africa join tsunami of
‘apartheid’ accusations against Israel. Mondoweiss (web site), Jun. 8, 2021.
Disponível em: https://mondoweiss.net/2021/06/two-former-israeli-ambas-

214 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 191-215 , jan./jun., 2022. (18)


FÁBIO BACILA SAHD
O apartheid na Palestina/Israel: revisão crítica e comparativa das considerações da Yesh Din, B’Tselem e Human Rights Watch

sadors-to-south-africa-join-tsunami-of-apartheid-accusations-against-isra-
el/?utm_source=mailpoet&utm_medium=email&utm_campaign=daily-e-
mail-mailpoet. Acesso em: 15 mai. 2021.

YIFTACHEL, Oren. Ethnocracy. Land and identity politics in Israel/Palestine.


Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2006.

YIFTACHEL, Oren. Betweem colonialism and ethnocracy: ‘creeping apartheid’.


In: JEENAH, Na’eem (ed.). Pretending democracy: Israel, an ethnocratic state.
Johannesburg: AMEC, p. 51-83, 2012.

Recebido em: 30 de agosto de 2021.


Aprovado em: 30 de março de 2022.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 191-215, jan./jun., 2022. (18) 215


Seletividade e Utilitarismo nas
Imigrações Internacionais para
o Brasil

§ Selectivity and Utilitarianism in International


Immigration to Brazil

§ Selectividad y Utilitarismo en la Inmigración


Internacional a Brasil:

Pedro Teixeira Pinos Greco1

Jorge Rubem Folena2

“Se minha Teoria da Relatividade estiver correta, a Alemanha dirá


que sou alemão e a França me declarará um cidadão do mundo.
Mas; se não estiver, a França dirá que sou alemão e os alemães
dirão que sou judeu”.
Albert Einstein.

Resumo: Este artigo objetiva analisar o tratamento dado pelo Brasil às pesso-
as imigrantes não nacionais, mormente quando situamos nosso recorte à luz
da nova lógica humanitária, introduzida pela Lei de Migração de 2017, em re-
chaço ao momento securitário que era escudado pelo Estatuto do Estrangeiro

1 Doutorando em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ. Mestre em Direitos Humanos e Políticas
Públicas pelo NEPP-DH/UFRJ. Graduado em Direito pela FND/UFRJ. pedrotpgreco@hotmail.com
2 Pós-doutorado no CPDA/UFRRJ. Doutorado em Ciência Política e Sociologia pela UCAM. Graduado em Direito
pela FND/UFRJ. jorgefolena@yahoo.com.br

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 217-234, jan./jun., 2022. (18) 217


PEDRO TEIXEIRA PINOS GRECO; JORGE RUBEM FOLENA
Seletividade e Utilitarismo nas Imigrações Internacionais para o Brasil

de 1980. Para tanto, quanto à metodologia, vamos invocar a solidariedade


social, a Constituição da República de 1988, os tratados internacionais subs-
critos pelo nosso país, as Leis sobre imigração internacional, atos normativos
infra legais, a doutrina jurídica e a jurisprudência internacional. Como marco
teórico, estabelecemos Hélion Povoa Neto, que examina a questão das imi-
grações internacionais de forma democrática e tolerante. Com essas balizas
colocadas vamos elaborar nossos comentários críticos quanto ao caminhar
dessa disciplina no Brasil, para vermos se existe em favor do imigrante não
nacional um possível direito líquido e certo à imigração internacional para
o território brasileiro. Nesse sentido, vamos averiguar se estaria aparecendo
entre nós um sentimento de aversão ao imigrante não nacional o que poderia
derivar em um Direito Internacional do Inimigo ao imigrante não nacional.

Palavras-chave: Imigrações. Seletividade. Utilitarismo.

Resumen: Este artículo tiene como objetivo analizar el trato dado por Brasil a
los inmigrantes no nacionales, especialmente cuando ponemos nuestro foco
a la luz de la nueva lógica humanitaria, introducida por la Ley de Migración de
2017, en repudio al momento de seguridad que fue blindado por el Estatuto
de Extranjería de 1980. Por ello, en términos metodológicos, invocaremos la
solidaridad social, la Constitución de la República de 1988, los tratados inter-
nacionales suscritos por nuestro país, las Leyes sobre extranjería internacio-
nal, los actos normativos infrajurídicos, la doctrina jurídica y el derecho inter-
nacional jurisprudencia. Como referente teórico establecimos a Hélion Povoa
Neto, quien analiza el tema de la inmigración internacional de manera de-
mocrática y tolerante. Con estos objetivos en marcha, elaboraremos nuestros
comentarios críticos sobre el curso de esta disciplina en Brasil, para verificar
si hay a favor del inmigrante no nacional un posible derecho líquido y cierto
a la inmigración internacional al territorio brasileño. En este sentido, inves-
tigaremos si estaría surgiendo entre nosotros un sentimiento de aversión al
inmigrante no nacional, que podría derivar en un Derecho Internacional del
Enemigo para el inmigrante no nacional.

Palabras clave: Inmigraciones. Selectividad. Utilitarismo.

Abstract: This article aims to analyze the treatment given by Brazil to non-
national immigrants, especially when we place our focus in the light of the
new humanitarian logic, introduced by the Migration Law of 2017, in rejection

218 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 217-234, jan./jun., 2022. (18)


PEDRO TEIXEIRA PINOS GRECO; JORGE RUBEM FOLENA
Seletividade e Utilitarismo nas Imigrações Internacionais para o Brasil

of the security moment that was shielded by the 1980 Foreigner Statute. To do
so, in terms of methodology, we will invoke social solidarity, the Constitution
of the Republic of 1988, the international treaties signed by our country, the
Laws on international immigration, infra-legal normative acts, legal doctrine
and international jurisprudence. As a theoretical framework, we established
Hélion Povoa Neto, who examines the issue of international immigration in a
democratic and tolerant way. With these beacons in place, we will elaborate
our critical comments regarding the course of this discipline in Brazil, to see
if there is in favor of the non-national immigrant a possible liquid and cer-
tain right to international immigration to Brazilian territory. In this sense, we
will investigate whether a feeling of aversion to the non-national immigrant
would be appearing among us, which could result in an International Law of
the Enemy for the non-national immigrant.

Keywords: Imigration. Selectivity. Utilitarianism.

I – Introdução
De forma inicial, precisamos destacar que nosso objeto de estudo es-
tará vertido sobre os imigrantes não nacionais. Com isso, trataremos da seleti-
vidade3 e do utilitarismo4 que são, a nosso juízo, algumas das marcas do jeito
como cuidamos da imigração de não nacionais para o nosso país.
Devemos elucidar ainda, que o nosso intuito nesse texto é ser o mais
inclusivo e mitigador de situações de vulnerabilidades sociais, especialmente
dos imigrantes não nacionais que se destinam para o Brasil. Por isso, o nos-
so objeto de interesse é uma pessoa que não veio perseguida por motivos
religiosos, étnicos, culturais ou outros, e tampouco devido a guerras civis ou
declaradas, sendo esse justamente as ideias que sedimentam o conceito de
refugiados.
No que tange à metodologia, precisamos pontuar que será utilizado o
raciocínio indutivo e lógico, feito a partir da leitura e interpretação da Consti-
tuição de 1988, dos tratados internacionais de direitos humanos, das leis bra-
sileiras sobre imigração, dos atos normativos infra-legais, da doutrina jurídica

3 A seletividade dentro da questão imigratória pode ser entendida como a opção por nacionalidades específicas e o
rechaço a determinadas nacionalidades feita pelo Brasil em controle que fere os princípios constitucionais magnos
da não discriminação, da isonomia substancial e da solidariedade social.
4 O utilitarismo para esse texto se refere à escolha de nosso país de instrumentalizar os imigrantes aos interesses
nacionais em detrimento do valor humanitário que deveria guiar o Brasil dentro dessa seara das imigrações.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 217-234, jan./jun., 2022. (18) 219


PEDRO TEIXEIRA PINOS GRECO; JORGE RUBEM FOLENA
Seletividade e Utilitarismo nas Imigrações Internacionais para o Brasil

e da jurisprudência internacional, tudo coordenado para que tentemos ver o


melhor deslinde da temática suscitada.
O marco teórico está firmado em Hélion Póvoa Neto (2008), que pro-
blematiza o direito de imigração internacional e da mobilidade humana de
forma racional, sem recorrer à xenofobia ou a pensamentos que veem o imi-
grante não nacional de forma vilanesca e criminalizada.
Com isso, esse autor evidencia que erguendo muros e levantando bar-
reiras, objetiva-se dificultar a entrada de imigrantes não nacionais, o que nos
coloca na contramão da pauta humanitária. Desse modo, podemos atestar
que recalcitrâncias institucionais, rivalidades históricas e o quesito da sobe-
rania perpassam esse suposto direito à imigração internacional para o Brasil.
Nesse compasso, precisamos avisar, que o termo “estrangeiro” tem
uma raiz etimológica que não representa os vetores ilustrados que deseja-
mos aplicar nessa redação, por isso vamos utilizar a palavra não nacional, re-
pelindo também palavras como bárbaros, invasões ou hordas. Sobre isso Vera
Karam de Chueiri e Heloísa Fernandes Câmara (2010, p. 170) revelam que:
A figura do estrangeiro, por definição, mostra um estranhamento, ex-
plicita uma distância entre culturas que é difícil de superar. A origem do ter-
mo mostra que esta característica está no cerne do seu significado. A palavra
é proveniente do termo francês (antigo) estrangier (atual étranger), que por
sua vez origina-se da palavra francófona estrange (atual étrange), derivada do
termo latino extraneus, ‘estranho’.
Com isso, precisamos dizer que nossa tarefa é que tenhamos os olhos
voltados para o lado humano que a imigração internacional traz consigo e
não apenas o ponto de vista dogmático, sendo esse o entendimento de Ivo
Polleto (2006, p. 8) que compartilhamos:
Fique claro, desde o começo, contudo, que ‘migração’ não é, para o
autor, apenas um fenômeno social, um mero objeto de estudo. A migração
existe porque existem pessoas que migram. E estas pessoas têm nome, cor,
idade, sexo, nacionalidade, cultura, família, comunidade.
Desse jeito, vemos que essa ocorrência não é simplesmente a ida de
pessoas de um lugar para outro. É um fenômeno extremamente intrincado,
sendo marcado por uma miríade de filigranas que tornam esse estudo uma
colcha de retalhos e nessa linha notamos que essa heterogeneidade foi retra-
tada Daniel Chiaretti e Fabiana Galera Severo (2018, p. 16):
Diante do aumento da complexidade dos movimentos populacionais,
dificilmente os fluxos migratórios são uniformes. Ou seja, ao lado de refugia-
dos temos outros grupos que se enquadram em situações migratórias parti-
culares. São por exemplo, migrantes econômicos, vítimas de tráfico de pesso-
as, crianças e adolescentes desacompanhados e separados, deslocados por

220 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 217-234, jan./jun., 2022. (18)


PEDRO TEIXEIRA PINOS GRECO; JORGE RUBEM FOLENA
Seletividade e Utilitarismo nas Imigrações Internacionais para o Brasil

razões ambientais, etc.


Daí deriva um dos vários freios para examinar essa senda, pois não
existe um único tipo de imigração internacional, existem na verdade imigra-
ções internacionais, que com frequência são totalmente diferentes umas das
outras.
Em compêndio, podemos dizer que nos ateremos ao imigrante não
nacional, ou seja, aquela pessoa que não possui a nacionalidade brasileira e
que chega ao território pátrio com o intuito de estadia, vindo na qualidade
de imigrante, isto é, ele objetiva residir, empregar-se, eventualmente formar
família e ficar no Brasil com ânimo de permanência.

II - O direito de imigração internacional e a solidarieda-


de social constitucional
Dessa forma, para que nossa análise fique melhor edificada podemos
citar De Plácido e Silva (2009, p. 914), que nos apresenta os contornos do ins-
tituto da imigração internacional: “É assim a mudança ou a transferência de
habitantes de uma nação ou país para outra nação ou o país com o ânimo de
aí fixarem sua nova residência e passarem a viver”.
Apesar desse conceito, precisamos saber que a imigração internacio-
nal tem muitas faces, sendo algo que não pode ser trivialmente enclausurado
apenas em uma única temática e sobre isso Luciene Campos e Luciano Rodri-
gues (2011, p. 36) avolumam:
Ressaltamos que o fenômeno migratório não é simplesmente pro-
cesso de deslocamento populacional de um local mais pobre para um mais
rico. Em torno do migrante está contida uma áurea de dor, alegria, saudade,
esperanças e ilusões. Lembranças do que deixou e sonhos do que pretende
conquistar. Ao elaborar constantemente suas expectativas por dias melhores,
o migrante leva e traz consigo a mala e a alma. Nesse sentido, o fenômeno
migratório é geralmente marcado por tensões e estranhamentos tanto do
imigrante que estará submetido a novas ordens e desordens que se difere de
seu local de origem para o local receptor, que tende a vê-los através de este-
reótipos já construídos.
Nesse horizonte, precisamos nos fazer algumas indagações que são
valiosas para nos aprofundarmos em nosso tema de estudo. As réplicas para
essas perguntas não são básicas, tampouco de elementar solução, visto que
elas acarretam um domínio interdisciplinar, multidisciplinar e interseccional.
Nesse setor, Silviane Meneghetti de Freitas (2020, p. 442-443) ratifica a com-
plexidade do fenômeno imigratório internacional:
As principais causas que levam as pessoas a migrar são: políticas, cau-

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 217-234, jan./jun., 2022. (18) 221


PEDRO TEIXEIRA PINOS GRECO; JORGE RUBEM FOLENA
Seletividade e Utilitarismo nas Imigrações Internacionais para o Brasil

sadas pelas crises ou movimentos políticos; culturais, pois as pessoas decidem


migrar para países que têm base cultural sólida para ter melhores perspecti-
vas de vida; socioeconômicas, visto que a maioria das pessoas que emigram
o faz por razões econômicas, buscando melhores condições de vida; familia-
res, pois as pessoas querem o reagrupamento familiar ou o reagrupamento
com parentes que já emigraram; bélicas e outros conflitos internacionais, que
deram origem a deslocamentos massivos da população; catástrofes genera-
lizadas, como desastres naturais como terremotos, inundações, secas prolon-
gadas, ciclones, tsunamis, epidemias, desastres causados pelo homem, que
sempre causaram grandes deslocamentos de seres humanos.
Com isso, podemos por meio de uma análise cuidadosa de nosso do-
cumento nacional hierarquicamente mais elevado, a Constituição da Repúbli-
ca do Brasil de 1988, que não haveria de maneira explícita um direito à imigra-
ção internacional em sentido amplo.
Há somente a ressalva quanto ao refúgio, em que existe uma lógica
protetiva maior e diferenciada, sendo que nesse compilado não estamos ana-
lisando os refugiados, como já explanado. Todavia, conseguimos vislumbrar
em alguns dispositivos constitucionais uma intenção de nosso constituinte
em acompanhar uma sensação que tentaremos expor ao longo de nossa dis-
sertação, de que haveria um direito implícito em torno da imigração interna-
cional.
Nesse debate, é impreterível lembrar que a solidariedade social, que é
um dos marcos constitucionais, como aponta o art. 3º, I da Constituição, deve
ser nosso guia nesse assunto, porquanto essa diretriz pétrea de nossa Carta
Magna assinala que devemos enquadrar a coletividade, dando uma função
social aos institutos jurídicos.
Isso decorre da força da Constituição que não pode corroborar uma
sociedade opressora, individualista e desigual, pelo contrário ela deve valori-
zar a irmandade entre as pessoas e entre as nações, bem como o auxílio mú-
tuo.
Por essas colocações é indispensável não imaginar que a solidarieda-
de social engloba tanto a relação de empatia entre os brasileiros e também o
trato entre nacionais e não nacionais, já que a regra primordial da hermenêu-
tica ensina que não podemos discriminar onde o constituinte não o fez.
Portanto, a solidariedade social não pode e não deve ser apenas uma
expressão bonita da qual nos orgulhamos de termos em nossa Constituição,
sendo mandamental também que concebamos valor normativo e concreto a
essa expressão e para o contexto dessa perquirição deve ser dado ênfase nas
pessoas não nacionais migrantes que vem para o Brasil. Com esse teor, Eduar-
do da Costa Kerber (2015, p. 27) indica:

222 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 217-234, jan./jun., 2022. (18)


PEDRO TEIXEIRA PINOS GRECO; JORGE RUBEM FOLENA
Seletividade e Utilitarismo nas Imigrações Internacionais para o Brasil

[...] e todas as características que seriam inerentes ao homem, tais


como a benevolência, a bondade, a polidez, a cortesia, a educação e
a civilidade. É a forma de pensar e agir que seriam características de
todos os seres humanos. O conceito de humanidade também traz a
noção de solidariedade estendida a todas as pessoas, e a necessida-
de de um pensamento coletivo sobreposto ao individualismo.

Dessa maneira, pode-se realizar a solidariedade social em respeito ao


direito de imigrar como um direito à hospitalidade, para recebermos em nos-
so país e em nossas casas as pessoas imigrantes não nacionais que precisem
de acolhida humanitária.
Com esse dito direito à hospitalidade alinhavado, por estar acima das
leis poderia inclusive em consonância com o art. 3º, III da Lei de Migrações que
enuncia o princípio da não criminalização da imigração internacional se ad-
mitir que particulares que recebam imigrantes não nacionais com problemas
em sua documentação não sejam punidos penal ou administrativamente.
Isso é forçoso porque deve haver um filtro constitucional que é influen-
ciado pela solidariedade social. Essa foi a jurisprudência da Corte Máxima da
França5, que deixou de punir um francês que abrigou imigrantes indocumen-
tados em seu domicílio por se valorizar nesse país o direito à solidariedade
social e o valor da fraternidade, postulados fundantes da República francesa,
como ensina a Carta de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.
Em verdade, essa proteção a um ser humano se coloca como uma
ação categórica em salvaguardar a vida humana contra o Estado. À luz dos
Direitos Humanos nós não deveríamos discriminar negativamente, diante da
nacionalidade ou origem, porque esses fatores em relação à condição de ser
humano são inferiores em importância jurídica e social.
Ato contínuo, vemos que o art. 4º da Constituição também foi prolífi-
co, em vários incisos, ao mostrar um Brasil atento às questões internacionais
de integração. Nesse contexto, precisamos avolumar os incisos II, VIII, IX e X
do art. 4º, porquanto, eles, respectivamente, listam: “prevalência dos direitos
humanos”, “repúdio ao terrorismo e racismo”, “cooperação entre os povos para
o progresso da humanidade” e “concessão de asilo político”.
Nessa sequência, podemos concluir de forma implícita, após cumularmos
todos esses dispositivos, desembocar na visão de que a xenofobia e o racismo
imigratório foram contestados pela Constituição de 1988 que é cidadã e inclusiva,
por essência. Nisso, nota-se que embora a Constituição no seu “Título I – Dos Prin-
cípios Fundamentais” não tenha enumerado taxativamente o direito à imigração
internacional, vemos que indiretamente se salvaguardou esse direito.

5 In: https://www.migramundo.com/em-decisao-historica-stf-frances-descriminaliza-ajuda-a-migrante-
indocumentado/amp/. Acesso em: 24 mai. 2021.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 217-234, jan./jun., 2022. (18) 223


PEDRO TEIXEIRA PINOS GRECO; JORGE RUBEM FOLENA
Seletividade e Utilitarismo nas Imigrações Internacionais para o Brasil

Essa última afirmação estaria posta, porque se juntarmos todos esses


supracitados dispositivos e tendo como norte uma lógica migratória humani-
tária poderemos chegar, mesmo que por via oblíqua, a algum raciocínio que
enalteça o imigrante enquanto um sujeito de direitos tutelado pelo Direito
Internacional. Nessa toada, a Constituição esquadrinha aos não nacionais imi-
grantes como está estampado no seu art. 5º, caput, os direitos à vida, liberda-
de, igualdade, segurança e propriedade6.
Vindo ao encontro desse horizonte favorável está o art. 5º, XV da Cons-
tituição que positiva o direito de ir e vir que tem um texto bastante interes-
sante para sustentar a nossa tese: “é livre a locomoção no território nacional
em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar,
permanecer ou dele sair com seus bens”.
Nesse sentido, o ato normativo de regência é a Lei de Migração ou Lei
nº 13.445/2017 que no seu art. 4º e seus incisos traz um texto muito garantis-
ta, em rol exemplificativo, de direitos para as pessoas imigrantes. Outrossim,
vale elogiar o espírito desse novel ato normativo que é orientado por uma
bússola de que o imigrante não nacional é um sujeito de direitos tutelados
pelo Direito Internacional.
Desse jeito, a Lei de Migração de 2017 rompeu com o intuito securitá-
rio do ab-rogado Estatuto do Estrangeiro ou Lei nº 6.815/1980 que via os imi-
grantes não nacionais como adversários, desfavorecendo a pessoa que não
era brasileira em várias situações, pois se imaginava que ele competiria no
mercado de trabalho com os brasileiros, substituindo a mão de obra pátria,
por exemplo.
Em giro adicional, podemos criticar que a Lei nº 13.445/2017, apesar
da sua louvável inteligência, na sua ementa refere-se a esse ato normativo
como Lei de Migração, porém, a nosso juízo, melhor seria se ela se auto de-
nominasse como Lei de Migrações. Isso decorre, como já tratamos no capítu-
lo anterior, do entrelaçado conjunto plural de caminhos e características que
levam até a imigração internacional, por isso, defendemos que a melhor via
para se referir a esse fenômeno seja imigrações internacionais.
Sem embargo, sermos entusiastas da Lei de Migrações de 2017 pre-
cisamos reconhecer que ela poderia ter trazido no seu bojo mais normas de
eficácia plena ou no mínimo contida, já que ela cuida, especialmente, no seu
início de muitas normas programáticas que dependem de regulamentação
posterior.
Isso causa, em nosso entendimento, obstáculos para a concretização

6 Com o fim didático, impera esclarecer que os escritores jurídicos são fortes em dizer que o Constituinte cochilou
na escrita desse último item porque ela se refere tanto para os não nacionais residentes e não residentes no Brasil,
ainda que lá esteja escrito que apenas os primeiros terão esse rol de direitos assegurados.

224 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 217-234, jan./jun., 2022. (18)


PEDRO TEIXEIRA PINOS GRECO; JORGE RUBEM FOLENA
Seletividade e Utilitarismo nas Imigrações Internacionais para o Brasil

de muitos direitos aos imigrantes não nacionais que ficam dependendo de


Decretos, Portarias, Resoluções e demais atos infralegais que nem sempre
são pilotados pelo modelo humanitário das imigrações internacionais. Com
esse mesmo eixo, está Mariana Rezende Maranhão da Costa (2020, p. 395) que
pontifica:
Pois a lei de migração trouxe inúmeros direitos, porém, por serem
normas de natureza programática, precisam de regulamentações
e implementações das políticas públicas e programas sociais. Não
são garantias autoexecutáveis, precisam ser concretizada. De nada
adianta impor direitos no papel, sem viabilidade prática em razão
de não ter sido analisado o custo para se efetivar tais políticas públi-
cas, pois muitos são inexequíveis financeiramente.

Com esse panorama apresentado, podemos dizer que no Brasil acon-


tece um fenômeno jurídico curioso. Temos uma Constituição da República de
1988 com um notável elenco de diretrizes que podem ser estendidas para os
imigrantes não nacionais, uma arguta Lei de Migrações de 2017 e um prote-
tivo Estatuto do Refugiado de 1997; todavia, ao mesmo tempo, temos atos
infralegais não tão humanitários. Um dos seus expoentes é o Decreto Federal
nº 9.199/2017, marcado por uma aspereza em ungir essa população imigran-
te internacional.
Por isso, posicionamos-nos do lado que vê no Decreto Federal nº
9.199/20177 uma tentativa de brecar o avanço conseguido com a Lei nº
13.445/2017 que tem um âmago progressista, concebendo o imigrante não
nacional como sujeito de direitos tutelados pelo Direito Internacional.
Assim, o presente Decreto aparenta estar mais em harmonia com o
momento anterior do manto do Estatuto do Estrangeiro que era de valori-
zação da segurança nacional e da suposta proteção do mercado de trabalho
brasileiro para os seus nacionais.
Nesse mesmo ambiente, outro comentário pertinente é o fato de ter-
mos muitas instituições para elaborar normas sobre imigração, uma miríade
de textos legais e infralegais que podem vir do Executivo Federal, do Ministé-
rio da Justiça e Segurança Pública, do Ministério das Relações Exteriores, da
Polícia Federal, do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), da Comissão Na-
cional de Refugiados (CONARE). Nem sempre esses atos normativos dialogam
entre si.
Com isso, não é incomum que precisemos cumular vários dispositivos
de documentos múltiplos de diversas instituições por meio de ginásticas jurí-
dicas para acessar o direito à imigração internacional, podendo essa atividade

7 A Lei nº 13.445/2017 foi um dos últimos atos do governo Dilma Rousseff, enquanto o Decreto Federal nº 9.199/2017
foi um produto do governo Michel Temer, sendo esse um dos motivos que afastam a técnica desses dois atos legis-
lativos.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 217-234, jan./jun., 2022. (18) 225


PEDRO TEIXEIRA PINOS GRECO; JORGE RUBEM FOLENA
Seletividade e Utilitarismo nas Imigrações Internacionais para o Brasil

ser truncada.
Nessa mesma linha, também é obrigatório listar a Declaração Unversados
Direitos Humanos8 de 1948 que no seu art. 14 dispõe claramente sobre o di-
reito de toda pessoa perseguida procurar asilo em outros países: “Todo ser
humano, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em
outros países”.
Outro ato internacional precioso é a Convenção Internacional sobre
a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros
das suas Famílias de 1990. Esse documento traz a previsão de que o trabalha-
dor migrante é aquele que vai exercer atividade remunerada em um Estado
que não é o seu. Lamentavelmente, contudo, o Brasil ainda não ratificou esse
documento o que enfraquece essa agenda em nosso país.
Nessa mesma esteira, o nosso país ainda possui a Lei dos Refugiados
ou Lei nº 9.474/1997 que é valorosa por colocar luz em uma seara que, não
raro, é escanteada dentro do Direito Internacional Público e Direito Interna-
cional Privado. Esse assunto está na ordem do dia havendo fluxos significati-
vos de pessoas imigrantes em todos os continentes do mundo.
No caso do Brasil essa é uma realidade que urge, dado que o nosso
país recebeu, e ainda recebe, grupos de pessoas haitianas, venezuelanas, sí-
rios, afegãs e ucranianos, por motivos diferentes, a saber, cronologicamente,
desastre ambiental9, crise econômica10, guerra civil11, golpe de estado12 e
guerra declarada13.
Na seara pedagógica, na Lei de Migrações, infelizmente foi vetado
pelo Executivo Federal um conceito de migrante do seu art. 1º, § 1º, I, pois tal
definição desejava trazer segurança jurídica, solvendo eventuais incompatibi-
lidades entre opiniões sobre o migrante.

8 Podemos elencar que dentro da DUDH também existe garante o direito de migrar (Artigo XIII), igualdade e digni-
dade (Artigo I), a liberdade e a segurança pessoal (Artigo III), a não discriminação (Artigo VII), a segurança social
(Artigo XXII), o trabalho condições justas de trabalho (Artigo XXIII) e padrão de vida que assegure saúde e bem
estar (Artigo XXV).
9 Conhecemos que existe debate doutrinário quanto à existência dos chamados refugiados ambientais. Superado essa
discussão o Brasil no caso do Haiti teve uma política de forte recepção por meio de vistos humanitários dos fluxos
migratórios internacionais de haitianos.
10 Embora uma crise econômica por si só, nos moldes exatos da Lei de Refugiados, não seja motivo para considerar
o refúgio o Brasil, no caso da Venezuela, admitiu que existe nesse país uma situação delicada quanto aos Direitos
Humanos de forma que vem recebendo os venezuelanos por questões humanitárias.
11 In: https://www.brasildefato.com.br/2021/03/15/uma-decada-de-guerra-na-siria-nao-imaginava-isso-ate-hoje-di-
z-refugiada-no-brasil. Acesso em: 12 dez. 2021.
12 In: https://g1.globo.com/sp/mogi-das-cruzes-suzano/noticia/2021/10/03/com-ong-de-refugiados-no-brasil-pales-
tina-se-mobiliza-para-ajudar-afegaos-e-traze-los-ao-pais.ghtml. Acesso em: 12 dez. 2021.
13 In: https://g1.globo.com/mundo/ucrania-russia/noticia/2022/03/19/brasil-recebeu-894-ucranianos-desde-o-ini-
cio-da-guerra-diz-pf.ghtml. Acesso em: 6 dez 2022.

226 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 217-234, jan./jun., 2022. (18)


PEDRO TEIXEIRA PINOS GRECO; JORGE RUBEM FOLENA
Seletividade e Utilitarismo nas Imigrações Internacionais para o Brasil

Com isso, ainda que tenha sido vetado, lançamos essas premissas para
que tenhamos uma ideia do que poderia ter se tornado Lei: “migrante: pessoa
que se desloca de país ou região geográfica ao território de outro país ou re-
gião geográfica, incluindo o imigrante, o emigrante, o residente fronteiriço e
o apátrida”. A alegação utilizada pela Presidência da República para esse veto
foi:
O dispositivo estabelece conceito demasiadamente amplo de migran-
te, abrangendo inclusive o estrangeiro com residência em país fronteiriço, o
que estende a todo e qualquer estrangeiro, qualquer que seja sua condição
migratória, a igualdade com os nacionais, violando a Constituição em seu ar-
tigo 5º, que estabelece que aquela igualdade é limitada e tem como critério
para sua efetividade a residência do estrangeiro no território nacional.
Com o devido respeito, essa razão não se apresenta como a mais
adequada, visto que o imigrante não nacional – previsto no art. 5º, caput da
Constituição – engloba o residente e o não residente. Não faz sentido conferir
proteção humanitária para uma pessoa que esteja no Brasil e deixar no limbo
jurídico uma pessoa pelo simples fato de ela não residir em nosso país.
Em outras palavras, a residência não pode, e não deve ser, o fator de-
terminante para o alcance de direitos constitucionais até mesmo em respeito
à universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos
como pontua o art. 3º, I da Lei de Migrações. Nesse sentido, seria de bom
alvitre que esse veto tivesse sido derrubado pelo Legislativo Federal por não
atender ao filtro constitucional material da motivação idônea Isso porque o
veto se construí em torno de um lapso do constituinte originário que olvidou
de consagrar a todos os não nacionais (residentes e não residentes) o acesso
aos direitos fundamentais.
Isso decorre, em parte, do tratamento a ser dado por nosso país, se-
guindo os passos, da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Entende-se
entende que a pessoa não nacional inserida em um contexto de imigração
deve receber um tratamento positivo como ficou estampado no caso Família
Pacheco Tineo x Bolívia14 em que a CIDH interpretou o pedido de asilo po-
lítico de forma dilatada, consoante o art. 22.7 da Convenção Americana de
Direitos Humanos.
Por tudo que foi exposto, vemos que atualmente não existe de manei-
ra cabal e incontestável na Constituição ou em nossas Leis o direito explícito
à imigração internacional, salvo no caso do refugiado que possui normas di-
ferenciadas a seu favor.
Entretanto, acreditamos que o direito a imigração internacional em

14 In: https://www.corteidh.or.cr/CF/jurisprudencia2/ficha_tecnica.cfm?nId_Ficha=376. Acesso em: 6 abr. 2022.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 217-234, jan./jun., 2022. (18) 227


sentido amplo estaria na nossa Carta Magna, que consagra diversos direitos e
garantias fundamentais em proteção ao ser humano, na Lei de Migrações e no
Estatuto do Refugiado, uma vez que em alguns casos o acolhimento do imi-
grante não nacional é um comando humanitário, permitindo que esse agru-
pamento possa buscar um lugar de paz onde possa reconstruir a sua vida e
reencontrar a sua felicidade.

III – Seletividade e utilitarismo nas imigrações interna-


cionais para o Brasil
Nesse sentido, o Brasil anda bem ao admitir que os refugiados, em seu
benefício, tenham um ato estatal de natureza humanitária e por isso vincula-
do. Dito de outra forma, não pode o nosso país se negar a conferir esse status
ao solicitante de refúgio se todos os requisitos formais estiverem preenchi-
dos, sem contar que é permitida a revisão judicial em favor dele, em caso de
negatória viciada. Contudo, pode ser que haja uma situação que não se encai-
xe perfeitamente nos pré-requisitos para a pessoa ser considerada refugiada.
Isso poderia deixar pessoas necessitadas, atingidas pelo pauperismo extre-
mo, por exemplo, em uma zona cinzenta no que tange ao direito à imigração,
como quase aconteceu com os haitianos e venezuelanos no Brasil.
Vale aclarar que o tema não é de pouca monta para nosso Estado, visto
que de 2011 a 2018 foram registrados no Brasil a entrada de 774,2 mil (se-
tecentos e setenta e quatro mil e duzentos) imigrantes, considerando todas
rubricas legais como atestou o Observatório das Migrações Internacionais do
Brasil (CAVALCANTI et al., 2019, p. 2) em pesquisa elaborada e voltada especi-
ficamente para conhecer o fenômeno imigratório, esquecendo ainda os imi-
grantes indocumentados, que formariam também um número expressivo15.
Com esses dados fica evidente que a imigração internacional para o Brasil não
pode ser ignorada, exigindo de nossos poderes constituídos a máxima aten-
ção social na recepção desse público numeroso de pessoas imigrantes.
Malgrado esse último estudo, a verdade é que os imigrantes inter-
nacionais são um aspecto subestimado e subvalorizado pelas ciências jurídi-
cas, tendo como referência o foco principal de alguns instituições e países de
apenas fazer planilhas e estatísticas das imigrações. Isso enfatiza os estudos
apenas nos movimentos de idas e vindas, porém, despreza que essa troca não
acontece por força da natureza ou provisão divina, É uma ocorrência eminen-

15 In: https://www.brasildefato.com.br/2021/06/25/morosidade-da-pf-impede-acesso-de-imigrantes-
indocumentados-a-auxilio-e-vacinacao. Acesso em: 12 dez. 2021.

228 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 217-234, jan./jun., 2022. (18)


PEDRO TEIXEIRA PINOS GRECO; JORGE RUBEM FOLENA
Seletividade e Utilitarismo nas Imigrações Internacionais para o Brasil

temente humana que advém de pessoas que são sujeitos de direito tutelados
pelo Direito Internacional e que por isso devem ter primazia na verticalização
desse tema.
No entanto, essa mudança de prisma da imigração para o imigrante
não é primária de ser levada adiante, uma vez que existem fábulas de que
é o imigrante não nacional o culpado por nossos problemas sociais. Assim,
esse grupo seria o responsável por trazer doenças, risco sanitário, por trazer
insegurança pública e terrorismo, risco securitário, por trazer desemprego e
pobreza, risco trabalhista e social, e por ameaçar nossos costumes e tradições,
risco cultural. Ou seja, existiriam muitos argumentos para fechar as nossas
fronteiras e impedir o acesso de qualquer imigrante não nacional, porque es-
sas pessoas, em teoria, somente trariam máculas para a suposta hígida socie-
dade brasileira.
Com essas colocações aninhadas, nos perguntamos se estamos expe-
rimentando o nascimento de um Direito Internacional do Inimigo, em rela-
ção aos imigrantes não nacionais. Isso poderia estar acontecendo, o que seria
normal, pois estaria em voga um discurso de “nós contra eles”, escassez de
recursos públicos e privados, crise econômica, carência financeira, desempre-
go, dentre outros desafios sociais. Entretanto, isso não ocorre no Brasil, talvez
por não ter passado por nenhum episódio de terrorismo tão grave quanto os
EUA, ou por não ter que lidar com as altas e constantes entradas de pessoas
refugiadas vindas da Ásia e da África como acontece com a União Europeia.
E também por sermos um país multi-étnico que lidou com imigrações inter-
nacionais expressivas (africanos, portugueses, espanhóis, italianos, alemães,
poloneses, japoneses, coreanos, chineses, bolivianos, peruanos, paraguaios,
haitianos, venezuelanos, sírios, libaneses e outros povos) durante toda a nos-
sa existência.
Assim, estaríamos acostumados com pessoas não nacionais imigran-
tes e protanto não estamos com essa sensação de inimizade tão aflorada em
relação aos não brasileiros que chegam até nosso território, ainda que os ca-
sos de xenofobia16 em nosso país estejam cada vez mais visíveis. Com a pa-
lavra Ricardo Rezende Figueira e Sarah Mbuyamba Masengu (2020, p. 540)
relatam essa realidade:
Aqui a discriminação sofrida não era pela etnia, mas especialmente
pela cor da pele e pelo continente de onde vieram. Sofreram mudanças e in-
tervenções na sua cosmovisão e nos seus hábitos e certamente mudaram lu-
gares onde trabalharam e habitaram, interferiram com sua cultura, seu olhar,

16 In: https://g1.globo.com/mt/mato-grosso/noticia/2021/04/20/video-de-racismo-e-xenofobia-contra-haitianos-e-
onibus-em-cuiaba-e-apurado-pela-policia.ghtml. Acesso em: 8 jan. 2022.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 217-234, jan./jun., 2022. (18) 229


PEDRO TEIXEIRA PINOS GRECO; JORGE RUBEM FOLENA
Seletividade e Utilitarismo nas Imigrações Internacionais para o Brasil

seu jeito de ser. Julgaram e foram julgados. Sofreram preconceitos, foram sub-
metidos ao trabalho degradante, exaustivo e humilhante e tiveram que lidar
com o fato de serem outsiders e, por o serem, foram mais explorados.
Entretanto, esse estado de coisas pode estar se desmontando veloz-
mente, porque essa posição varia de acordo com o cenário montado, mor-
mente, quando existe, por exemplo, guerra civis como a que ocorre na Síria
(CERCHI, 2017, p. 21), desastres ambientais como o terremoto no Haiti (FER-
NANDES; FARIA, 2017, p. 15), a crise econômica na Venezuela (SILVA; SAMPAIO,
2018, p. 734), ou ainda a pandemia do Coronavírus (GRECO, 2020, p. 3). Dessa
forma, a aparente tranquilidade do Brasil pode ser modificada, sendo que, a
nosso parecer, ela já está se redesenhando, pois podemos lembrar do trata-
mento dado aos venezuelanos em Roraima quando houve o acirramento dos
casos de agressões17 entre brasileiros e venezuelanos. O inimigo aqui não
seria sinônimo de adversário, porque em uma contenda bélica, a outra parte
é aquela que merece todo o nosso desprezo e por isso não mereceria dignida-
de, mesmo que ele esteja em uma situação de miséria profunda.
Assim, para o suposto inimigo valeria o direito atroz e cruel, utilizan-
do-se todas as técnicas possíveis para impedir que ele logre êxito (direito à
imigração internacional), uma vez que hipoteticamente vigora a lógica do
“matar ou morrer” que imperaria permitir toda sorte de atitudes para preser-
var o Brasil e os brasileiros, mesmo sob o risco de ferirmos letalmente os arts.
3º, I e 4º, II, VIII, IX e X da Constituição que são os faróis no campo das relações
internacionais de nosso país.
Em resumo, paralelo a esse traço, estaríamos sendo seletivos quanto à
nacionalidade. Pessoas do norte global (estado-unidenses, canadenses, japo-
neses, europeus, australianos, por exemplo) são bem vistas e até desejadas,
mas outros latino-americanos, africanos, árabes e asiáticos, com exceção de
alguns povos, são recepcionados com maus olhos. Estaríamos valorizando
certos imigrantes não nacionais como, por exemplo, o jogador de basquete
estadounidense, o cantor inglês, o futebolista espanhol, o ator português, o
engenheiro alemão, o médico francês, o cientista japonês, o pintor italiano,
etc.
De forma geral, haveria um pensamento de rechaço ao imigrante não
nacional, mas há também uma cadência utilitarista de permitir e até mesmo
incentivar algumas pessoas que possam agregar algum valor, talento ou que
estejam circunscritas na prateleira da mão de obra estratégica. Par e passo
com essa situação temos em rumo diametralmente oposto a opção de com-

17 In: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/08/refugiados-venezuelanos-sao-agredidos-e-expulsos-de-
tendas-em-roraima.shtml. Acesso em: 24 dez. 2021.

230 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 217-234, jan./jun., 2022. (18)


PEDRO TEIXEIRA PINOS GRECO; JORGE RUBEM FOLENA
Seletividade e Utilitarismo nas Imigrações Internacionais para o Brasil

bater pessoas que não sejam “úteis” para a sociedade de trabalho e produção
brasileiras.
Outrossim, isso é corroborado pelo nosso mecanismo imigratório in-
ternacional a entrada de pessoas para certos postos de trabalho, com cer-
to perfil social e familiar, direcionando-os para cidades específicas do Brasil.
Nisso fica flagrante que o intuito não é de valorização da pessoa imigrante
não nacional, mas do processo. Ou seja, a região metropolitana do país esco-
lhido precisa de braços para a indústria naval ou para a construção civil, por
exemplo, sendo permitida a entrada de imigrantes não nacionais com essa
qualificação.
Em síntese, notamos que estaríamos sendo colonizados pela econo-
mia e não conduzidos pela proteção humanitária. Desse modo, seria o livre
mercado capitalista que estaria nos orientando, havendo uma concórdia mí-
nima com os direitos humanos.

Considerações finais
Nisso percebemos que o direito de imigrar para o Brasil não é expres-
samente reconhecido como direito líquido e certo, salvo se houver algum in-
teresse do poder público ou de determinadas entidades particulares, o que
acaba facilitando a entrada de certos imigrantes não nacionais.
Entretanto, esse não deveria ser o nosso fio condutor, dado que imi-
grar deveria ser interpretado como um direito humano, que transcende a
previsão expressa na Constituição ou o assento na Lei de Migrações ou em
qualquer outro ato legal ou infralegal de nosso ordenamento jurídico. Isso se
mostraria correto, porque precisamos ser coerentes com a nossa identidade
genética que foi feita conjuntamente com várias culturas que imigraram para
o Brasil ao longo de nossa história.
Por certo é nosso dever contribuir com esse direito humano à imigra-
ção internacional, conferindo um corpo real à solidariedade social e demais
vértices constitucionais de nosso sistema jurídico para que haja efetivamente
uma sinergia entre os atores envolvidos no contexto imigratório.
Isso acarreta que consagremos leis precisas, entidades imigratórias
sensíveis com o imigrante não nacional, bem como julgamentos judiciais e
administrativos antenados com o enaltecimento dos direitos humanos e de
sacralização da proteção das pessoas imigrantes em situação de vulnerabili-
dade.
Com isso, ratificamos as ideias de Helion Póvoa Neto (2005, p. 12052-
12060) bastante elucidativas para entenderemos que não devemos tratar os
imigrantes não nacionais como párias, e sim, com dignidade. Dado isso, escu-

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 217-234, jan./jun., 2022. (18) 231


PEDRO TEIXEIRA PINOS GRECO; JORGE RUBEM FOLENA
Seletividade e Utilitarismo nas Imigrações Internacionais para o Brasil

damos a tese de que deveria existir o direito à imigração internacional, estan-


do escorado esse ideário na Constituição e na Lei de Migrações.
Em suma, conquanto que temos uma nítida marcha para frente com
a Lei 13.455/2017, a Constituição e com o Estatuto dos Refugiados de 1997,
ainda temos uma longa e sinuosa estrada para recebermos, aceitarmos e aco-
lhermos os não nacionais imigrantes. Assim estaríamos abandonando o es-
copo seletivo e utilitarista, que ainda contamina a entrada de imigrantes não
nacionais no Brasil, bem como um possível Direito Internacional do Inimigo
na seara imigratória internacional.

Referências
BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil:
promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília, DF, 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso
em: 7 abr. 2021.

BRASIL. Decreto nº 9.199/2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/


cci-vil_ 03/_ato2015-2018/2017/decreto/d9199.htm. Acesso em: 7 abr. 2021.

BRASIL. Estatuto do Estrangeiro de 1980 ou Lei nº 6.815 de 1980. Disponível


em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6815impressao.htm. Acesso
em: 7 abr. 2021.

BRASIL. Lei de Migrações de 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.


br/cci-vil_ 03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.html. Acesso em: 7 abr. 2021.

BRASIL. Lei dos Refugiados de 1997 ou Lei nº 9.474/1997. Disponível em:


http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9474.htm. Acesso em: 7 abr. 2021.

CAMPOS, Luciene Lemos de; RODRIGUES, Luciano. Migrantes e migrações:


Entre a história e a literatura. Albuquerque: Revista de História, Campo Grande,
v. 3 n. 5 p. 33-49, jan./jun. 2011.

CAVALCANTI, L. et al. Resumo executivo. imigração e refúgio no brasil. a inser-


ção do imigrante, solicitante de refúgio e refugiado no mercado de trabalho
formal. Observatório das Migrações Internacionais; Ministério da Justiça e
Segurança pública / Conselho Nacional de Imigração e Coordenação Geral
de Imigração Laboral. Brasília, DF: OBMigra 2019.

232 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 217-234, jan./jun., 2022. (18)


PEDRO TEIXEIRA PINOS GRECO; JORGE RUBEM FOLENA
Seletividade e Utilitarismo nas Imigrações Internacionais para o Brasil

CERCHI, Bruno Antonio. Refúgio e políticas públicas de acolhimento: refugia-


dos do conflito sírio em Angra dos Reis e Rio de Janeiro (RJ). Trabalho de
Conclusão de Curso (Bacharel em Ciências Políticas) – Universidade Federal
Fluminense, Niterói. 2017.

CHIARETTI, Daniel e SEVERO, Fabiana Galera. Comentários ao estatuto dos


refugiados. Belo Horizonte: Editora CEI, 2018.

CHUEIRI, Vera Karam e CÂMARA, Heloísa Fernandes. Direitos humanos em


movimento: Migração, refúgio, saudade e hospitalidade. Direito, Estado e
Sociedade, Rio de Janeiro, nº 36 p. 158/177, jan/jun 2010.

COSTA, Mariana Rezende Maranhão da. Do Estatuto do Estrangeiro à Lei de


Migração: Paradigma imunológico na globalização. Anais do XVIII Congresso
Brasileiro de Direito Internacional. In: MENEZES, Wagner (org.). Direito Inter-
nacional em Expansão. v. 18. Belo Horizonte: Arraes Editora, 2020, p. 384-398.

FERNANDES, Duval e FARIA, Fernandes Andressa Virgínia de. O visto huma-


nitário como resposta ao pedido de refúgio dos haitianos. Rev. Bras. Est. Pop.,
Belo Horizonte, v. 34, n.1, p.145-161, jan./abr. 2017.

FIGUEIRA, Ricardo Rezende e MASENGU, Sarah Mbuyamba. A inserção de


imigrantes congoleses nas relações de trabalho no Rio de Janeiro. Brasiliana:
Journal for Bazilian Studies. Rio de Janeiro, v. 9, p. 521-542, 2020.

FRANÇA. Carta de Direitos do Homem e do cidadão. Disponível em: https://


br.ambafrance.org/A-Declaracao-dos-Direitos-do-Homem-e-do-Cidadao.
Acesso em:7 abr. 2021.

FREITAS, Silviane Meneghetti de. A segurança humana e o resgate de refu-


giados náufragos sob a perspectiva da proteção internacional dos Direitos
Humanos. Anais do XVIII Congresso Brasileiro de Direito Internacional. In:
MENEZES, Wagner (org.). Direito Internacional em Expansão. v. 18. Belo Hori-
zonte: Arraes Editora, 2020, p. 442-443.

GRECO, Pedro Teixeira Pinos. O coronavírus e a população refugiada no Brasil:


A ‘inabilitação para o refúgio’ e o princípio do Non Refoulement. Revista Brasi-
leira de Cultura e Políticas em Direitos Humanos, Rio de Janeiro, abril 2020.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 217-234, jan./jun., 2022. (18) 233


PEDRO TEIXEIRA PINOS GRECO; JORGE RUBEM FOLENA
Seletividade e Utilitarismo nas Imigrações Internacionais para o Brasil

KERBER, Eduardo da Costa. A superação do Estatuto do Estrangeiro sob a ótica


dos direitos humanos: discutindo a legislação brasileira sobre migrações. Mo-
nografia Jurídica. Porto Alegre. Faculdade de Direito da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, 2015, p. 27.

OEA. Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH). Disponível em:


https:// www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm.
Acesso em: 7 abr. 2022.

ONU. Convenção Internacional sobre a Protecção dos Direitos de Todos os Tra-


balhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias (1990). Disponível em:
https://www.migrante.org.br/migracoes/convencao-internacional-sobre-a-
-protecao-dos-direitos-de-todos-os-trabalhadores-migrantes-e-dos-mem-
bros-das-suas-familias/. Acesso em: 7 abr. 2022.

ONU. Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH). Disponível em: ht-


tps:// www.ohchr.org/en/udhr/documents/udhr_translations/por.pdf. Aces-
so em: 7 abr. 2022.

POLETTO, Ivo. Migração – Direito ou subversão? REMHU - Revista Interdiscipli-


nar da Mobilidade Humana. Brasília, v. 14, n. 26-27, 2006.

PÓVOA, Helion Neto. O erguimento de barreiras à migração e a diferenciação


dos “direitos à mobilidade”. REMHU, Brasília, v. 16, p. 394-400, 2008.

PÓVOA, Helion Neto. A descoberta da imigração: O caso italiano e a transição


no contexto das migrações internacionais. Anais do X Encontro de Geógrafos
da América Latina – Universidade de São Paulo, – 20 a 26 de março de 2005.

SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. Atualizadores: Nagib Slaibi Filho e


Glaucia Carvalho. Rio de Janeiro, 2009.

SILVA, João Carlos Jarochinski e SAMPAIO, Cyntia. As ações decorrentes da


migração de venezuelanos para o Brasil – da acolhida humanitária à interio-
rização. In: ANNONI, Danille (coord.). Direito Internacional dos Refugiados e o
Brasil, Curitiba: Gedai/UFPR, 2018, p. 734-48.

Recebido em: 10 de fevereiro de 2022.


Aprovado em: 3 de abril de 2022.

234 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 217-234, jan./jun., 2022. (18)


Aproximações conceituais entre
educação em direitos humanos
e as bases teóricas da educação
profissional e tecnológica.

§ Aproximaciones conceptuales entre la educación en


derechos humanos y los fundamentos teóricos de la
educación profesional y tecnológica

§ Conceptual approaches between education in human


rights and theoretical foundations of professional and
technological education

Ana Carolina Corrêa Salvio1


Helder Antonio da Silva2

Resumo: Este artigo pretende contribuir com a discussão teórica acerca das
possíveis aproximações entre os conceitos de Educação em Direitos Huma-
nos (EDH) e bases teóricas da Educação Profissional e Tecnológica (EPT), quais
sejam: escola unitária, politecnia e omnilateralidade, tendo em vista que tais

1 Graduada em Pedagogia e Direito, com especialização em Direitos Humanos e Educação em Direitos Humanos.
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional e Tecnológica no Instituto Federal de Edu-
cação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais. anacarolinacorrea.pedagogia@gmail.com
2 Graduado em Engenharia Industrial Mecânica pela Fundação de Ensino Superior de São João Del Rei e em
Formação Pedagógica pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais. Mes-
trado em Engenharia Mecânica pela Unesp e doutorado em Administração de Empresas pela PUC-RJ. É professor
do IF SDESTE-MG. helder.silva@ifsudestemg.edu.br

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 235-253, jan./jun., 2022. (18) 235


ANA CAROLINA CORRÊA SALVIO; HELDER ANTONIO DA SILVA
Aproximações conceituais entre educação em direitos humanos e as bases teóricas da educação profissional e tecnológica

conceitos são fundamentais para construção de uma sociedade verdadeira-


mente justa, igualitária e democrática, que rume para superação das mazelas
impostas pelo capitalismo. O método utilizado consistiu-se em revisão de lite-
ratura com o objetivo de analisar os elementos conceituais dos temas, a par-
tir da pedagogia histórico-crítica. Como resultado, evidenciou-se que a EDH
com vistas à formação unitária, politécnica e omnilateral deve constituir fun-
damento e orientação na vida das pessoas, em todas as faixas etárias, tempos
e espaços, especialmente, no Ensino Médio Integrado (EMI). Conclui-se ainda,
que as aproximações conceituais entre EDH e a EPT, sobretudo no EMI possi-
bilita colocar em prática uma educação que tenha compromisso com a forma-
ção emancipatória e cidadã dos sujeitos em processos educacionais, a fim de
tais façam a travessia da condição dominados, oprimidos e explorados pela
sociedade capitalista, para condição de sujeitos livres, não-alienados, autôno-
mos e justos. Logo, é com esta noção que deve-se entender a conexão entre
a EDH e EPT no EMI, já que ambas podem ser umas formas de impulsionar a
sociedade para superação das estruturas sociais do capitalismo, educando de
forma revolucionária.

Palavras-chave: Ensino Médio Integrado. Escola Unitária. Omnilateralidade.


Politecnia.

Resumen: Este artículo pretende contribuir a la discusión teórica sobre posi-


bles aproximaciones entre los conceptos de Educación en Derechos Huma-
nos (HDE) y las bases teóricas de la Educación Profesional y Tecnológica (EPT),
a saber: escuela unitaria, politécnica y omnilateralidad, con miras a que tales
conceptos son fundamentales para la construcción de una sociedad verda-
deramente justa, igualitaria y democrática, que busque superar los males im-
puestos por el capitalismo. Por tanto, el propósito de este artículo es analizar
aproximaciones entre estos conceptos. El método utilizado consistió en una
revisión de la literatura con el objetivo de analizar los elementos conceptu-
ales de los temas. Como resultado, se hizo evidente que la EDH, con miras
a la formación unitaria, politécnica y omnilateral, debe constituir una base y
orientación en la vida de las personas, en todos los grupos de edad, épocas
y espacios, especialmente en el Bachillerato Integrado (EMI). También se con-
cluye que los enfoques conceptuales entre EDH y EPT, especialmente en EMI,
permitirían poner en práctica una educación comprometida con la formación
emancipadora y ciudadana de los sujetos en los procesos educativos, para
que atraviesen los dominados. condición, oprimidos y explotados por la so-
ciedad capitalista, a la condición de sujetos libres, no alienados, autónomos y

236 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 235-253, jan./jun., 2022. (18)


ANA CAROLINA CORRÊA SALVIO; HELDER ANTONIO DA SILVA
Aproximações conceituais entre educação em direitos humanos e as bases teóricas da educação profissional e tecnológica

justos. Es con esta noción que debe entenderse la conexión entre EDH y EPT
en EMI, ya que ambas pueden ser formas de impulsar a la sociedad a superar
las estructuras sociales del capitalismo, educando de manera revolucionaria.

Palabras-clave: Enseñanza Media Integrada. Escuela Unitaria. Omnilaterali-


dade. Politecnia.

Abstract: This article intends to contribute to the theoretical discussion about


possible approaches between the concepts of Education in Human Rights
(HDE) and theoretical bases of Professional and Technological Education
(EPT), namely: unitary school, polytechnics and omnilaterality, with a view to
that such concepts are fundamental for the construction of a truly just, egali-
tarian and democratic society, which seeks to overcome the ills imposed by
capitalism. Therefore, the purpose of this article is to analyze approximations
between these concepts. The method used consisted of a literature review
with the aim of analyzing the conceptual elements of the themes. As a result,
it became evident that EDH, with a view to unitary, polytechnic and omnilat-
eral training, should constitute a foundation and orientation in people’s lives,
in all age groups, times and spaces, especially in Integrated High School (EMI).
It is also concluded that the conceptual approaches between EDH and EPT,
especially in EMI, would make it possible to put into practice an education
that is committed to the emancipatory and citizenship formation of subjects
in educational processes, in order for them to cross the dominated condition,
oppressed and exploited by capitalist society, to the condition of free, non-
alienated, autonomous and fair subjects. It is with this notion that the con-
nection between EDH and EPT in EMI must be understood, since both can
be ways of boosting society to overcome the social structures of capitalism,
educating in a revolutionary way.

Keywords: Integrated Secondary-School. Unitarian School. Omnilaterality.


Polytechnic.

Diálogos iniciais
A compreensão da Educação em Direitos Humanos (EDH) enquan-
to política pública – atravessada por valores éticos, subjetividades, relações
e práticas sociais e institucionais, atrelada as concepções de escola unitária,
politecnia e omnilateralidade, constituem-se eixos de primordial importância
para formação humana dos estudantes da Educação Profissional e Tecnoló-

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 235-253, jan./jun., 2022. (18) 237


ANA CAROLINA CORRÊA SALVIO; HELDER ANTONIO DA SILVA
Aproximações conceituais entre educação em direitos humanos e as bases teóricas da educação profissional e tecnológica

gica (EPT). Principalmente, no Ensino Médio Integrado (EMI), bem como para
construção de uma sociedade verdadeiramente justa, igualitária e democráti-
ca, que supere as adversidades impostas pelo capitalismo.
A partir disso, emerge para a escola, que esteja comprometida com
justiça social e com um projeto de sociedade democrática, especialmente,
para aquelas que ofertam Educação Profissional e Tecnológica (EPT) por meio
do Ensino Médio Integrado (EMI), por ser uma importante etapa formativa
para o exercício dos direitos humanos e da cidadania – o grande desafio de
realizar a EDH, sob a perspectiva da escola unitária e da politecnia, com vistas
à omnilateralidade.
No que tange ao EMI e a EPT aliados aos princípios da EDH, pactua-se
da proposta de educação que propõe a superação das dualidades e contra-
dições impostas capitalismo. Isto é, trabalha-se pela escola unitária, por uma
educação politécnica, rumo a omnilateralidade, que diz respeito à formação
integral do ser humano, desenvolvido em todas as suas potencialidades, por
meio de um processo educacional socialista que considere a formação cientí-
fica, tecnológica e humanística, a política e a estética, com vistas a emancipa-
ção das pessoas. Condição importante para equalizar a histórica desigualda-
de de oportunidades educacionais na sociedade brasileira.
Nesse sentido, a EDH não se caracteriza pela forma de “pensar” a edu-
cação das classes dominantes; opostamente, é revolucionária e contra hege-
mônica. Quando incorporada nos currículos e práticas no EMI, se constitui
uma alavanca que impulsiona a educação, para que seja mais um dos meios
de luta em prol da superação sociedade de classes.
Dessa forma, observa-se que EDH articulada à proposta de escola uni-
tária, preconizada pela concepção de politecnia, com vistas à formação om-
nilateral, pode se constituir como uma das condições necessárias na travessia
em direção à superação da dualidade educacional, em busca da efetiva trans-
formação da estrutura social.
Então, a concepção de educação de cunho socialista, inspirada nos
estudos de Marx, de base unitária, integrada, politécnica e omnilateral por
princípio, busca no desenvolvimento do capitalismo, e de sua crítica, superar
a proposta burguesa de educação, a partir da própria sociedade capitalista.
Objetivo que guarda intrínseca relação com os preceitos que fundamentam a
educação pautada nos Direitos Humanos. Daí, ser mais do necessário educar
em direitos humanos no EMI.
Portanto, vê-se que as concepções teóricas acerca EDH e da EPT no
EMI, possuem aproximações conceituais e que educar em direitos humanos
na EPT, sobretudo no EMI, ao que parece, é um norte e um dos caminhos que
rumam para modificação de mentalidades, para a formação social e política

238 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 235-253, jan./jun., 2022. (18)


ANA CAROLINA CORRÊA SALVIO; HELDER ANTONIO DA SILVA
Aproximações conceituais entre educação em direitos humanos e as bases teóricas da educação profissional e tecnológica

da nossa população e para construção de escolas democráticas, processo que


se dá pela base, ou seja, no “chão da escola”.
Aliado a isso, a inserção da EDH na pauta das atividades educacionais
do EMI, notadamente, atende ao que dispõe o Plano Nacional de Educação
em Direitos Humanos3 (PNEDH) como forma minorar as desigualdades so-
ciais, intolerâncias, preconceitos e a opressão.
Por esse motivo, pensar a EDH é colocar em prática uma educação que
tenha compromisso com a formação emancipatória e cidadã dos sujeitos, em
processos educacionais, a fim de que façam a travessia da condição domi-
nados, oprimidos e explorados pela sociedade capitalista, para condição de
sujeitos livres (liberdade aqui entendida em seu conceito mais amplo, con-
forme Marx), não-alienado, autônomo e justo. É com esta noção que se deve
entender a conexão entre a EDH e EPT no EMI.
Para Freire (2019, p. 41) a educação ligada aos direitos humanos passa
pela compreensão das classes sociais, tem a ver com educação e libertação e
não liberdade apenas. Tem a ver com libertação precisamente porque não há
liberdade, e a libertação é exatamente a briga para restaurar ou instaurar a
gostosura de ser livre que nunca finda, que nunca termina e sempre começa.
Uma das principais tarefas da educação básica, em todos os seus níveis
e modalidades de ensino, é contribuir para que os estudantes sejam protago-
nistas do seu projeto de vida, que lutem para viverem em uma sociedade verda-
deiramente justa e democrática, e que sejam de forma “real” sujeitos de direitos.
Portanto, compreende-se ser indispensável o desenvolvimento de po-
líticas públicas educacionais em EDH, materializadas nos projetos institucio-
nais, nos currículos e nas práticas escolares em todos os níveis e modalidades
de ensino, enfaticamente no EMI.
À vista disso, tem-se que a EDH é processo dinâmico, sistemático e mul-
dimensional, que não ocorre por meio de atividades isoladas e esporádicas. Ao
contrário, constitui-se em processo em nível pessoal, social, ético, político, cog-
nitivo e celebrativo. É orientado para a formação do sujeito de direitos e à pro-
moção da cidadania ativa e participativa, ou seja, objetiva formar o ser humano
de forma integral, sob uma ótica humanizadora, holística, emancipatória.
Assim sendo, educar em direitos humanos não é somente ensinar
conteúdos e conceitos relativos aos direitos humanos, mas sim construir uma
cultura, um “clima” de proteção, legitimação, respeito e vivência dos direitos
humanos, que penetre as diversas relações sociais, e principalmente, aquelas
estabelecidas dentro do ambiente escolar.

3 O PNEDH é uma política pública que consolida um projeto de sociedade baseado nos princípios da democracia,
da cidadania e da justiça social, por meio de um instrumento de construção de uma cultura de direitos humanos
que visa o exercício da solidariedade e do respeito às diversidades (BRASIL, 2018).

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 235-253, jan./jun., 2022. (18) 239


ANA CAROLINA CORRÊA SALVIO; HELDER ANTONIO DA SILVA
Aproximações conceituais entre educação em direitos humanos e as bases teóricas da educação profissional e tecnológica

Segundo Candau (2010), em fala durante a I Semana de Educação em


Direitos Humanos, a EDH é uma educação contextualizada, que constrói de-
mocracia. É político-transformadora, integral, holística, ético-valórica, cons-
trutora de sujeitos de direitos e promotora da paz. Deve estar presente nas
decisões pedagógicas e curriculares (currículo explícito e oculto), no plano
formal e informal, sendo incorporadas ao projeto político pedagógico e de-
mais práticas escolares.
Nesse trajeto, ao analisar-se EDH sob a perspectiva da escola unitária,
politécnica, com vistas à omnilateralidade, surge uma questão de especial im-
portância e que sintetiza o que nos interessa discutir: Como as concepções
relacionadas à Educação em Direitos Humanos se aproximam das bases te-
óricas da Educação Profissional Tecnológica, ofertada no âmbito do Ensino
Médio Integrado?
Essa indagação justifica-se por pensar-se que EDH, na EPT, no EMI
com vistas à formação da cidadania ativa deve se constituir fundamento e
orientação na vida das pessoas, em todas as faixas etárias, tempos e espa-
ços. E ainda, por ter estreita relação com a proposta de educação socialista
pensada por Marx, pode ser umas formas de impulsionar a sociedade na
superação das estruturas sociais do capitalismo, educando de forma revo-
lucionária.
Dessa forma, é objetivo do presente estudo, demonstrar as aproxi-
mações teóricas e conceituais entre a EDH e a EPT no EMI. Para tanto, como
metodologia, fora realizada uma revisão de literatura acerca dos elementos
conceituais dos temas.

Aproximações conceituais e teóricas


Educação e direitos humanos
Compreendem-se os direitos humanos como acúmulos históricos, re-
sultantes de intensas lutas de pessoas que nos deixaram como legados direi-
tos civis, políticos e sociais, que vão muito além da legislação e jurisprudência.
Trata-se de percepções sociais da vida humana, seu direito de existência e re-
produção. Neste sentido, dizem respeito à produção da sobrevivência em suas
dimensões políticas, econômicas e culturais. Tema complexo que se constitui
no embate entre aqueles que defendem direitos individuais, relacionados a
conquistas das revoluções burguesas e aqueles que defendem os direitos hu-
manos como direitos que se constituem na coletividade, nas interações entre
grupos sociais, só existindo como tal.
Esses últimos ainda asseveram acerca da relação entre direitos huma-
nos e educação, que a última deve ser entendida atualmente como um direito

240 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 235-253, jan./jun., 2022. (18)


ANA CAROLINA CORRÊA SALVIO; HELDER ANTONIO DA SILVA
Aproximações conceituais entre educação em direitos humanos e as bases teóricas da educação profissional e tecnológica

social e humano. Vive-se um momento no qual não se busca mais a legalida-


de normativa da educação na sociedade, mas, de outra forma, a luta neste
momento é para garantir os meios para viabilizar sua efetividade no cotidiano
das pessoas no país. Dessa forma, torna-se imperioso avançar nos debates
públicos que exigem uma postura firme na defesa de um mínimo marco co-
mum para a dignidade humana, cada vez mais enterrada no avanço de forças
liberal-conservadoras reacionárias que parecem fazer do ataque a qualquer
concepção de direitos humanos, alimento que sustenta sua corrida rumo a
um país cada vez mais marcado pelo fascismo.
Todavia, o Brasil é signatário de diversos tratados de Direitos Huma-
nos e vem de forma progressiva incorporando estes tratados à sua política
interna, inclusive no que concerne à questão das relações entre educação e
direitos humanos. As várias versões do Plano Nacional de Direitos Humanos
(PNDH-1, 1996; PNDH-2, 2002; PNDH-3, 2009), assim como o Plano Nacional
de Educação em Direitos Humanos (PNEDH), nas suas duas versões (2003,
2006), reimpresso em 2018, seguem nessa direção, inclusive com uma trans-
posição partidária entre os governos do Partido da Social Democracia Brasi-
leira (PSDB) e do Partido dos Trabalhadores (PT), o que mostra sua relevância
para além de planos de governo (VIVALDO, 2009).
Contudo, nos últimos anos, as críticas aos Planos têm se acentuado.
O PNDH-3, em especial, por haver avançado nas pautas de direito à memória
e de reflexão sobre o período ditatorial, principalmente pela promoção das
Comissões da Verdade, sofreu severas críticas por parte de setores conserva-
dores da imprensa, sendo, inclusive, chamado de “Plano Nacional-Socialista
dos Direitos Humanos” (AZEVEDO, 2012, p.40).
Para Escosteguy Filho et al. (2019, p. 87) é neste ponto que o entronca-
mento entre Direitos Humanos e Educação encontra sua síntese na dimensão
da Educação em Direitos Humanos (EDH). A expressão, na qual a preposição
“em” tem papel de destaque, não visa apenas à união dos termos “direitos hu-
manos” e “educação”. Não se trata simplesmente de destacar temas relaciona-
dos à questão dos direitos humanos. Tampouco se trata de focar na educação
como um direito humano. A concepção de educação em direitos humanos
pressupõe uma relação mais intensa, simbiótica, que se expandiu no contex-
to dos processos latino-americanos de redemocratização, como no Brasil da
virada dos anos 1970 para 1980.
Segundo Candau (2008) na EDH destacam-se três elementos consti-
tuintes: educar para formar sujeitos de direito, educar para o favorecimento
dos processos de “empoderamento” de sujeitos e populações marginaliza-
das e educar para o “nunca mais”. Trata-se, dessa maneira, de uma perspec-
tiva integrada entre os universos da educação e dos direitos humanos, vi-

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 235-253, jan./jun., 2022. (18) 241


ANA CAROLINA CORRÊA SALVIO; HELDER ANTONIO DA SILVA
Aproximações conceituais entre educação em direitos humanos e as bases teóricas da educação profissional e tecnológica

sando à prática pedagógica como caminho inseparável da construção de


sujeitos de direito, por meio não apenas das discussões, mas pelas próprias
metodologias trabalhadas como caminho para o desenvolvimento dos pro-
cessos de “empoderamento”. Dessa forma, a EDH visa ao combate ao au-
toritarismo e às diversas formas de opressão e repressão dentro e fora do
universo escolar; e à educação para o “nunca mais”, de maneira a evitar-se,
pelo trabalho da História e da Memória, a reprodução de tragédias que, di-
lacerando qualquer noção de direitos humanos, desembocam na violência
destrutiva como fundamento das sociedades excludentes. Viabilizam-se as-
sim políticas de memória contra as tragédias do autoritarismo e da violência
em especial no âmbito do “Sul”4.
Nesse caminho, o PNEDH (2018) é um documento de referência nessa
área no país, pois considera a educação como meio privilegiado para promo-
ção dos direitos humanos. O documento compreende a EDH como processo
sistemático e multidimensional, que orienta a formação do sujeito de direitos.
Entende-se que EDH deve ser um dos eixos fundamentais na educação bási-
ca, seus conteúdos devem ser introduzidos nas diretrizes curriculares da esco-
la de forma transdisciplinar, na formação inicial e continuada dos profissionais
da educação, no projeto político pedagógico, nos materiais didáticos peda-
gógicos, no modelo de gestão e avaliação. A prática escolar deve ser orienta-
da para EDH, assegurando o seu caráter transversal e a relação dialógica entre
os diversos atores sociais (BRASIL, 2018).
Teixeira (2005) aponta que a EDH não é diferente de educação para
a democracia, entendida a democracia como modo de vida, mais que forma
de governo. É tarefa que requer o esforço de todos os envolvidos no pro-
cesso educativo e deveria ser o objetivo e o norte de todo processo educa-
cional desenvolvido pela sociedade que deseja ter vida democrática. Para
tanto, é necessário criar estruturas e processos democráticos por meio dos
quais a vida escolar se realize e criar um currículo que ofereça experiências
democráticas aos jovens.
Freire (2019, p. 39) vislumbra a educação para os direitos humanos, na
perspectiva da justiça, é exatamente aquela educação que desperta os do-
minados para a necessidade da briga, da organização, da mobilização crítica,
justa, democrática, séria, rigorosa, disciplina, sem manipulações, com vistas à
reinvenção do mundo, à reinvenção do poder.

4 Por “sul” a autora está adotando a perspectiva do sul global, ou seja, um sul geopolítico e não apenas geográfico,
que faz referência às periferias do sistema-mundo capitalista. (ESCOSTEGUY FILHO, et al., 2019, p. 89).

242 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 235-253, jan./jun., 2022. (18)


ANA CAROLINA CORRÊA SALVIO; HELDER ANTONIO DA SILVA
Aproximações conceituais entre educação em direitos humanos e as bases teóricas da educação profissional e tecnológica

Educação em direitos humanos e suas relações com o


Ensino Médio Integrado
Pactuando da proposta que compatibilidade dos preceitos da EDH
com os fundamentos conceituais do EMI, Escosteguy Filho et al. (2019, p. 89)
ressalta que a EDH se articula perfeitamente com a concepção formadora dos
Institutos Federais (IF), dialogando intensamente com seus aspectos concei-
tuais e com suas finalidades. Pois, a rede técnica federal de ensino, carrega em
suas histórias o projeto de universalização do Ensino Médio Integrado (EMI)
gratuito à Educação Profissional e Tecnológica (EPT). Ou seja, propõe-se levar
essa modalidade de educação para lugares que em geral não têm oferta de
ensino federalizada. Consequentemente, o modelo de educação que deve ser
oferecido nos IF, traz consigo preceitos da educação unitária, politécnica, de
princípios omnilaterais, de cunho democrático e equitativo destinada priori-
tariamente aos filhos da/para a classe trabalhadora.
Para Silva (2012), o EMI é um espaço privilegiado para o desenvolvi-
mento dessa formação revolucionária destinada para classe trabalhadora.
Assim, pensar a educação nessa direção, requer um projeto de escola que tra-
balhe conhecimentos de direitos humanos relacionados aos conteúdos curri-
culares, valores, atitudes na defesa e ampliação dos direitos de todos(as), bem
como que propicie aos seus educados a vivência cotidiana desses direitos.
Nesse contexto, Marinho (2012) defende que educar em direitos
humanos significa promover um ambiente educacional promotor dos di-
reitos humanos, ligado ao reconhecimento da necessidade de respeito às
diversidades. Um ambiente educacional que realize de práticas tolerantes,
democráticas e inclusivas; livres de preconceitos, discriminações, violências,
assédios e abusos sexuais, punições, dentre outras formas de desrespeito
humano. Um cotidiano escolar que vise à formação de cidadãos(ãs) críti-
cos(as) e conscientes de seus direitos, – parafraseando Ciavatta (2014): Por
isso lutamos!
Ainda de acordo com Ciavatta (2014), é necessário lutarmos por
concepções e práticas educativas socialistas, que preveem a elevação das
massas ao nível de conhecimento e capacidade de atuação como as elites
sempre reservaram para si e seus pupilos. É necessário incutirmos no con-
texto educacional brasileiro, a educação unitária, politécnica e omnilateral;
humanista e científica; de cunho político e emancipatório, no sentido de
superar, a divisão social do trabalho entre trabalho manual/trabalho intelec-
tual, e formar trabalhadores que possam ser, também, dirigentes no sentido
gramsciano.
Nesse aspecto, quando se fala sobre o EMI, ofertado nos IF, é impor-
tante refletir acerca da fundamentação teórica que deu origem aos mesmos

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 235-253, jan./jun., 2022. (18) 243


ANA CAROLINA CORRÊA SALVIO; HELDER ANTONIO DA SILVA
Aproximações conceituais entre educação em direitos humanos e as bases teóricas da educação profissional e tecnológica

e que tem embasamento na articulação inseparável entre trabalho e educa-


ção como atributos ontológicos do ser humano. A escola contemporânea e
sua configuração, fruto da divisão de classes inerente ao processo produti-
vo, produzem uma divisão entre esses dois elementos formativos (trabalho
e educação), especialmente no que diz respeito à promoção, via escola, do
contato interclassista por meio de uma escolarização igualitária. A educação,
portanto, se divide e se diferencia entre as classes, apesar do protagonismo
do Estado em forjar a ideia da escola pública, universal, gratuita, laica e obri-
gatória (SAVIANI, 2007).
No entanto, educar em direitos humanos no ensino integrado é tam-
bém educar de forma revolucionária, comprometendo-se com a transforma-
ção da sociedade e suas estruturas alienantes que negam direitos. Com essa
educação, Freire (2019, p. 49) “sonha”, ressaltando que
“a questão se coloca para nós, os ideais com que sonhamos, é de só
sonharmos os sonhos possíveis, e alguns que agora são impossíveis,
por eles lutar a tal ponto que se viabilizem [...]. Aí das revoluções que
não sonham, porque essas estão fadadas a não fazer-se”.

Bases conceituais da Educação Profissional e Tecnológica


em diálogo com a Educação em direitos humanos
Partindo das reflexões realizadas nos itens anteriores, tem-se que a
proposta socialista da Educação Profissional e Tecnológica (EPT) articulada ao
Ensino Médio Integrado (EMI), ofertada pelos IF, tem no trabalho como prin-
cípio educativo, nos conceitos marxistas de politecnia e omnilateralidade, e
na escola unitária de Gramsi suas bases conceituais, o que coaduna com os
preceitos da EDH (ESCOSTEGUY FILHO et al., 2019).

Trabalho como princípio educativo


Ao tratarmos do trabalho como princípio educativo, Frigotto (2009)
define que este não se reduz à atividade laborativa ou emprego, mas à pro-
dução de todas as dimensões da vida humana. Não é uma técnica didática
ou metodológica no processo de aprendizagem, mas princípio ético-político.
Concebe que o pleno exercício da existência humana apenas pode realizar-se
pelo desenvolvimento de seu potencial criativo, produtor e de fruição que
dão sentido à própria existência da escola e do processo organizativo a que
chamamos “educação”.
Nas palavras de Ramos (2007, p. 4) o trabalho como princípio educa-
tivo, não se confunde com o “aprender fazendo”, nem é sinônimo de formar
para o exercício do trabalho. Considerar o trabalho como princípio educativo

244 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 235-253, jan./jun., 2022. (18)


ANA CAROLINA CORRÊA SALVIO; HELDER ANTONIO DA SILVA
Aproximações conceituais entre educação em direitos humanos e as bases teóricas da educação profissional e tecnológica

equivale dizer que o ser humano é produtor de sua realidade e, por isto, apro-
pria-se dela e pode transformá-la. É princípio educativo, ainda, porque leva
os estudantes a compreenderem que todos nós somos seres de trabalho, de
conhecimento e de cultura, e que o exercício pleno dessas potencialidades
exige superar a exploração de uns pelos outros.
Assumir o trabalho como princípio educativo na perspectiva do tra-
balhador, implica superar a visão utilitarista, reducionista de trabalho. Implica
inverter a relação situando todo ser humano como sujeito do seu devir. Esse é
um processo coletivo, organizado, de busca prática de transformação das re-
lações sociais desumanizadoras e, portanto, deseducativas (FRIGOTTO, 1989).

Omnilateralidade
No verbete, sobre o conceito de omnilateralidade5, Sousa Júnior (1999,
s. p) explica que:
[...] embora não haja em Marx uma definição precisa do conceito
de omnilateralidade, é verdade que o autor a ela se refere sempre
como a ruptura com o homem limitado da sociedade capitalis-
ta. Essa ruptura deve ser ampla e radical, isto é, deve atingir uma
gama muito variada de aspectos da formação do ser social, portan-
to, com expressões nos campos da moral, da ética, do fazer prático,
da criação intelectual, artística, da afetividade, da sensibilidade, da
emoção, etc. Não implica, todavia, a compreensão de uma forma-
ção de indivíduos geniais, mas, antes, de homens que se afirmam
historicamente, que se reconhecem mutuamente em sua liberdade
e submetem as relações sociais a um controle coletivo, que superam
a separação entre trabalho manual e intelectual e, especialmente,
superam a mesquinhez, o individualismo e os preconceitos da vida
social burguesa.

Frigotto (1989, p. 24) compreende que a concepção de omnilaterali-


dade do ser humano centra-se na apreensão desse enquanto uma totalida-
de histórica que é, ao mesmo tempo “natureza”, individualidade e, sobretudo,
relação social. Uma unidade na diversidade física, psíquica e social; um ser
de necessidades imperativas (mundo da necessidade material) em cuja satis-
fação se funda suas possibilidades de crescimento em outras esferas (mundo
da liberdade). A omnilateralidade contrapõe-se ao reducionismo histórico do
ser humano unilateral, o “homo oeconomicus”: formado, educado e treinado
para desenvolver traços funcionais ao mercado.
Dessa maneira, om nilateralidade seria a formação humana de todas

5 O conceito de omnilateralidade empregado neste texto apoia-se no estudo de Sousa Júnior (1999), concebendo
como fundamental em Marx, que o surgimento do homem omnilateral só será possível após a ruptura ampla e
total com as relações burguesas, ou seja, só se dará plenamente em uma sociedade pós-capitalista. A esse respeito,
contrariamente, Manacorda (1991) deixa a entender em sua análise, que é possível a existência da omnilateralida-
de na sociedade burguesa (SOUSA JÚNIOR, 1999, p. 110-111).

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 235-253, jan./jun., 2022. (18) 245


as capacidades humanas, prevista em Marx. Essa não pode ser alcançada nos
limites do capitalismo, fundado sob a divisão do trabalho, mas aquela no in-
terior do socialismo, no qual o homem poderia desenvolver todas as suas po-
tencialidades (NOZAKI, 2015, p. 188).
Isto posto, a superação da sociabilidade burguesa, da alienação, a abo-
lição da propriedade privada constituem-se condição material para o apareci-
mento do ser humano omnilateral, no seio de novas relações sociais. Relações
sociais que ultrapassem as relações do capital, não sendo determinadas pelo
caráter de mercadoria e de troca. Segundo a dialética de Marx, elas só pode-
riam nascer e serem amplamente satisfeitas em relações não-burguesas, em
uma sociedade livre, visto que o homem omnilateral é resultado da totalidade
das relações cotidianas não-alienadas (SOUSA JÚNIOR, 1999, p. 109).

Politecnia
Ainda na abordagem marxista, o conceito de politecnia6 deriva, ba-
sicamente, da problemática do trabalho. O ponto de referência é a noção de
trabalho como princípio educativo geral. A ideia de politecnia envolve a arti-
culação entre trabalho intelectual, trabalho manual e uma formação a partir
do próprio trabalho social, desenvolvendo os fundamentos e os princípios, da
organização do trabalho na nossa sociedade e que, portanto, nos permitem
compreender o seu funcionamento (SAVIANI, 1989, p. 10).
Sousa Júnior (1999, p. 105) considera que na proposta educacional de
Marx, a educação politécnica aparece como uma proposta concreta e fun-
damental para emancipação dos trabalhadores com vistas à superação da
sociedade burguesa. Haja vista, que unida aos exercícios físicos (ginástica) e
aos conteúdos intelectuais, a educação politécnica deveria elevar a classe tra-
balhadora acima das demais, transformando os trabalhadores em potenciais
revolucionários. Exatamente porque agrega o aspecto fundamental do pro-
cesso de trabalho – a combinação da dimensão intelectual com a dimensão
prática – não encontrado na formação dos filhos classe burguesa.
Desse modo, conforme Saviani (2003), a noção de politecnia se encami-
nha na direção da superação da dicotomia entre trabalho manual e trabalho in-
telectual, entre instrução profissional e instrução geral, entre os que concebem

6 Saviani (2003) explica acerca da utilização do termo politecnia que, Manacorda (1991), após minuciosos estudos
filológicos da obra de Marx, concluiu que a expressão “educação tecnológica” traduziria com mais precisão a
concepção marxiana do que o termo “politecnia” ou “educação politécnica”. Contudo, para além da questão ter-
minológica, Saviani considera as expressões “ensino tecnológico” e “ensino politécnico” como sinônimas. Por isso,
opta-se por utilizar neste trabalho o termo “politecnia” por carregar os preceitos da educação socialista e por ser
mais utilizado entre os teóricos do campo do trabalho e educação.
ANA CAROLINA CORRÊA SALVIO; HELDER ANTONIO DA SILVA
Aproximações conceituais entre educação em direitos humanos e as bases teóricas da educação profissional e tecnológica

e controlam o processo de trabalho e aqueles que o executam. Um pressuposto


dessa concepção é que não existe trabalho manual puro e nem trabalho inte-
lectual puro. Todo trabalho humano envolve a concomitância do exercício dos
membros, das mãos, e do exercício mental, intelectual. Isso está na própria ori-
gem do entendimento da realidade humana como constituída pelo trabalho.
Nesse sentido, Kuenzer (2001) concorda que a politecnia seria, na tra-
dição marxista, a formação de uma sólida base cultural, diversa da simples
erudição, ou seja, seria a síntese superadora dos limites da divisão do trabalho,
reunificando o trabalho intelectual (academicismo clássico) e o instrumental
(profissionalização estreita). Destaca, ainda, a necessidade da politecnia, en-
quanto conteúdo, vir acompanhada também da escola unitária, como estru-
tura educacional, na tradição gramsciana e da dialética, enquanto método de
ensino (NOZAKI, 2015, p. 188).
Trazendo o conceito para a nossa realidade, a politecnia implica então,
na união e na articulação entre escola e trabalho ou, mais especificamente,
entre instrução intelectual e trabalho manual, visando um projeto alternativo
de educação. Assim, a escola deve organizar o currículo e as práticas educati-
vas de forma integrada, de modo que se possibilite a assimilação não apenas
teórica, mas também prática, dos princípios científicos que estão na base da
organização moderna. A partir deste conceito, o aluno terá não apenas de
compreender todos os princípios científicos que conhece e assimilou de ma-
neira teórica desde o ensino fundamental – em suma, como a natureza e a
sociedade estão constituídas – mas também de ser capaz de aplicar o conhe-
cimento de que dispõe (SAVIANI, 2003, p. 11).
Porém, faz-se necessário destacar, para que se entenda a relação e os
limites da omnilateralidade e da politecnia, que são conceitos distintos, mas ao
mesmo complementares, de acordo com Sousa Júnior (1999, p. 100). A preo-
cupação de Marx para com a educação obedece a duas ordens de interesse
distintas que formam ao mesmo tempo uma unidade e convergem, no fim das
contas, para um mesmo interesse geral. Marx ocupa-se com a situação mais
imediata em que vivem as classes trabalhadoras e em outra ordem, se preocu-
pa com o estabelecimento de relações não-alienadas, baseadas na abolição da
propriedade privada e na superação das relações capitalistas de produção.
Em outras palavras, toda posição de Marx apresenta essa dualidade:
parte da realidade dada, preocupando-se com os problemas mais imediatos
e procura elaborar medidas possíveis de serem estabelecidas ainda na socie-
dade burguesa, que sejam ao mesmo tempo, úteis à vida mais imediata dos
trabalhadores. A par disso, discute a possibilidade de um projeto alternativo
de sociedade, em que são colocados elementos referentes a uma etapa supe-
rior da sociedade humana (SOUSA JÚNIOR, 1999, p. 100).

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 235-253, jan./jun., 2022. (18) 247


ANA CAROLINA CORRÊA SALVIO; HELDER ANTONIO DA SILVA
Aproximações conceituais entre educação em direitos humanos e as bases teóricas da educação profissional e tecnológica

Então, os conceitos politecnia e omnilateralidade se encontram, pois a


primeira é a formação dos trabalhadores no âmbito da sociedade capitalista
que, unida aos outros elementos da proposta marxiana de educação, deve
encontrar o caminho entre a existência alienada e a emancipação humana em
que se constrói o homem omnilateral. (SOUSA JÚNIOR, 1999, p. 113).

Escola Unitária versus dualidade da educação


Outra base conceitual de suma importância para qualquer trabalho
que se proponha a refletir sobre o Ensino Médio Integrado voltado para a
Educação Profissional e Tecnológica, se assenta na concepção de escola uni-
tária de Gramsci.
O projeto de escola unitária, para Ramos (2007) visa superar a dualida-
de da formação para o trabalho manual e para o trabalho intelectual, levando-
-se em conta que a estrutura dual da educação é uma manifestação específica
da dualidade social inerente ao modo de produção capitalista. Tem-se, então,
que a história dual da educação coincide com a história da luta de classes no
capitalismo. Por isto a educação permanece dividida entre aquela destinada
aos que produzem a vida e a riqueza da sociedade usando sua força de traba-
lho e aquela destinada aos dirigentes, às elites, aos grupos e segmentos que
dão orientação e direção à sociedade. Então, a marca da dualidade educa-
cional do Brasil é, na verdade, a marca da educação moderna nas sociedades
ocidentais sob o modo de produção capitalista.
Em que pese, a tradição classista da educação brasileira consagrou
a dualidade entre o ensino voltado para as elites e o ensino voltado para a
maioria da população que atravessou inabalada as diferentes reformas pelas
quais passou o ensino médio. “A essa dupla “natureza” da educação, Anísio
Teixeira chamou ‘o ensino para os nossos filhos’ e ‘o ensino para os filhos dos
outros’, o primeiro chamado de secundário, e o segundo, de técnico-profissio-
nal” (MAGRONE, 1995, p. 50).
Ainda nas palavras de Magrone (1995, p. 59) a estrutura dual da
educação representa não somente o resultado das demandas do sistema
produtivo que necessita de uma distribuição desigual do conhecimento
entre os homens, de modo que estes ocupem posições diferenciadas na
hierarquia do trabalho coletivo, como também representa as próprias re-
lações estruturais entre a educação e a produção em uma sociedade ca-
pitalista, relações estas marcadas por uma forte separação entre ambas.
Afinal, a conquista definitiva de uma escola politécnica na qual a sua or-
ganização e o seu currículo tenham por base o trabalho como princípio
educativo depende fundamentalmente, como dizia Gramsci (1982), do
estabelecimento de relações sociais gerais também unitárias nas quais

248 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 235-253, jan./jun., 2022. (18)


ANA CAROLINA CORRÊA SALVIO; HELDER ANTONIO DA SILVA
Aproximações conceituais entre educação em direitos humanos e as bases teóricas da educação profissional e tecnológica

o princípio da unidade entre concepção e execução, trabalho manual e


intelectual, teoria e prática tornará dispensável a existência de uma es-
fera separada da produção e identificada com o trabalho mental como a
escola que hoje conhecemos.
Sem embargo, a concepção da escola unitária expressa o princípio
da educação como direito de todos, opondo-se à educação dual, por ob-
jetivar que todos tenham de forma igualitária e equitativa o direito ao co-
nhecimento. Visa oferecer educação de qualidade e realizar-se por meio da
integração entre conhecimentos gerais e específicos, articulando trabalho,
ciência e cultura, sob a base da politecnia. Por conseguinte, a construção do
conhecimento deve ser mediada: pelo trabalho, como princípio educativo e
formação profissional; pela ciência, como iniciação científica; pela a cultura,
como ampliação da formação cultural e pela utopia de superar a dominação
dos trabalhadores e construir a emancipação – formação de dirigentes. Não é
uma educação para o trabalho manual para os segmentos menos favorecidos,
ao lado de uma educação de qualidade e intelectual para o outro grupo. Uma
educação unitária pressupõe que todos tenham acesso aos conhecimentos, à
cultura e às mediações necessárias para trabalhar e para produzir a existência
e a riqueza social (RAMOS, 2007, p. 2).
Por essa perspectiva, entende-se a educação unitária e politécnica
como aquela que busca, a partir do desenvolvimento do capitalismo e de sua
crítica, superar a proposta burguesa de educação que potencialize a trans-
formação estrutural da realidade. O ensino médio integrado à educação pro-
fissional é tanto possível quanto necessário em uma realidade conjuntural-
mente desfavorável – em que os filhos dos trabalhadores precisam obter uma
profissão ainda no nível médio, não podendo adiar este projeto para o nível
superior de ensino. Mas ele pode potencializar mudanças para, superando-se
essa conjuntura, constituir-se em uma educação que contenha elementos de
uma sociedade justa (RAMOS, 2007, p. 16).
Dessa maneira, construir um projeto unitário de educação tem no EMI
um “caminho” para a superação da dualidade entre formação específica e for-
mação geral, que retire a centralidade da formação para o mercado de traba-
lho e seus objetivos, para o ser humano, deslocando a lógica da formação de
“alguns” dirigentes, para que ao contrário, todos e todas possam ser dirigen-
tes (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2005).

Educação em direitos humanos no ensino médio inte-


grado: reflexões finais
Faz-se necessário aqui, concordar mais uma vez com Ciavatta (2014)

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 235-253, jan./jun., 2022. (18) 249


ANA CAROLINA CORRÊA SALVIO; HELDER ANTONIO DA SILVA
Aproximações conceituais entre educação em direitos humanos e as bases teóricas da educação profissional e tecnológica

quando essa propõe a luta pela educação unitária, politécnica e de princípios


omnilaterais, através do EMI, por meio de práticas educativas que dialogam
com a EDH. Isso porque se luta no campo do trabalho e da educação, pela
educação universalizada, laica e gratuita para toda população. Uma educa-
ção que contribua para superação da dualidade de classes sociais e traga um
padrão digno de vida e de conhecimento não apenas para as elites, mas tam-
bém para filhos da classe trabalhadora, os verdadeiros produtores da riqueza
social.
Para Freire (2019) educar em direitos humanos é lutar por uma socie-
dade menos injusta para aos poucos, ficar mais justa. Uma sociedade reinven-
tando-se sempre com uma nova compreensão do poder, passando por uma
nova compreensão da produção. Uma sociedade em que a gente tenha gosto
de viver, de sonhar, de namorar, de amar, de querer bem. Nesse pensamento,
educar em direitos humanos também é educar para liberdade; tem que ser
abrangente, totalizante e tem a ver com o conhecimento crítico do real e com
a alegria de viver.
Compreende-se que educar, tendo como princípios essas concepções,
é um “projeto” árduo, que se forja nas lutas e contradições sociais. No entanto,
nas palavras de Ramos (2007, p. 29):
[...] acreditemos na capacidade coletiva e aguerrida de defender
ideias e de propor alternativas para a construção de novas possi-
bilidades. O novo nasce do velho, daquilo que sabemos. A fórmula
não existe e o pronto nunca existirá. Como diria Gramsci, sejamos
pessimistas na inteligência e otimistas na vontade. O pessimismo
da inteligência não quer dizer que nada daria certo. Ao contrário,
significa sermos capazes de identificarmos situações adversas para
não criarmos mitos. Enquanto o otimismo da vontade é a reunião da
energia que nos alimenta para perseguirmos a utopia e novos.

Um fecho adequado para estas breves reflexões podem ser as palavras


do educador Anísio Teixeira (1994) ao dizer que: educação é a base, o funda-
mento, a condição mesma para a democracia. A justiça social da democracia,
por excelência, consiste nessa conquista da igualdade de oportunidades pela
educação. Nascemos desiguais, nascemos ignorantes e, portanto, nascemos
escravos. É a educação que pode mudar!

250 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 235-253, jan./jun., 2022. (18)


ANA CAROLINA CORRÊA SALVIO; HELDER ANTONIO DA SILVA
Aproximações conceituais entre educação em direitos humanos e as bases teóricas da educação profissional e tecnológica

Referências

BRASIL. Ministério da Justiça e Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Pro-


grama Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). Brasília: 2009. Disponível em:
https://direito.mppr.mp.br/arquivos/File/PNDH3.pdf. Acesso em: 15 mai. 2022.

BRASIL. Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Plano Nacional


de Educação em Direitos Humanos. Secretaria Especial de Direitos Humanos.
Brasília: 2018. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-
temas/educacao-em-direitos-humanos/DIAGRMAOPNEDH.pdf. Acesso em:
15 mai. 2022.

CANDAU, Vera Maria. Educação em direitos humanos: desafios atuais. In:


SILVEIRA, Rosa Maria Godoy Silveira (org.). Educação em direitos humanos:
fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa: Editora Universitária,
2008.

CANDAU, Vera Maria. Educação em/para Direitos Humanos na América Lati-


na. In: I Semana de Educação em Direitos Humanos. São Bernardo do Campo:
Universidade Metodista de São Paulo, 2010.

CIAVATTA, Maria. O ensino integrado, a politecnia e a educação omnilateral.


Por que Lutamos? Trabalho & Educação, Belo Horizonte, v. 23, p. 187-205, 2014.

ESCOSTEGUY FILHO, João Carlos et al. O processo de construção de uma


pós graduação em Educação em direitos humanos dentro da rede IF. In:
PASSOS, Pâmella; MULICO, Lesliê. (org.). Educação e Direitos Humanos
na Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica. v. 6, João Pessoa:
Editora do IFPB, 2019. p. 75-110. Disponível em: https://amajari.ifrr.edu.br/
midia/livro/educacao-e-direitos-humanos-na-rede-federal-de-educacao-
profissional-e-tecnologica. Acesso em: 30 abr. 2022.

FREIRE, Paulo. Direitos humanos e educação libertadora: questão democrática da edu-


cação pública na cidade de São Paulo. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2019.

FRIGOTTO, Gaudêncio. Trabalho-educação e tecnologia: treinamento poliva-


lente ou formação politécnica?. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 14, n.
1, p. 17-27, jan./jun., 1989.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 235-253, jan./jun., 2022. (18) 251


ANA CAROLINA CORRÊA SALVIO; HELDER ANTONIO DA SILVA
Aproximações conceituais entre educação em direitos humanos e as bases teóricas da educação profissional e tecnológica

FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria; RAMOS, Marise (org.). Ensino médio


integrado: concepção e contradições. São Paulo: Cortez, 2005.

FRIGOTTO, Gaudêncio. A polissemia da categoria trabalho e a batalha das


ideias nas sociedades de classe. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro,
v. 14, n. 40, p. 168-194, jan./abr., 2009.

KUENZER, Acácia Zeneida. Ensino do 2º grau: o trabalho como princípio edu-


cativo. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2001.

MAGRONE, Eduardo. Ensino noturno de 2º grau: o fracasso da escola ou a


escola do fracasso?. Revista Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 1, p.
50-72, jan./jun., 1995.

MANACORDA, Mario A. Marx e a pedagogia moderna. São Paulo: Cortez, 1991.

MARINHO, Genilson. Educar em Direitos Humanos e formar para cidadania no


ensino fundamental. São Paulo: Cortez, 2012.

NOZAKI, Hajime Takeuchi. Trabalho e Educação na atualidade: mediações


com a Educação Física brasileira. Revista Educação (UFSM), Santa Maria, v. 40,
n. 1, p. 183-200, jan./abr., 2015.

RAMOS, Marise Nogueira. Concepção do Ensino Médio Integrado. 2007.


Disponível em: https://docplayer.com.br/7108526-Concepcao-do-ensino-
medio-integrado-marise-ramos.html Acesso em: 10 abr. 2020.

SAVIANI, Demerval. Sobre a concepção de politecnia. Rio de Janeiro: Ministério da


Saúde/Fundação Oswaldo Cruz/Politécnico da Saúde Joaquim Venâncio, 1989.

SAVIANI, Demerval. O choque teórico da politecnia. Trabalho, Educação e Saú-


de, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 131-152, mar. 2003.

SAVIANI, Demerval. Trabalho e educação: fundamentos ontológicos e históricos.


Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 12, n. 34, p.152-180, jan./abr. 2007.

SILVA, Ainda Monteiro; TAVARES, Celma. A formação cidadã no ensino médio.


São Paulo: Cortez, 2012.

SOUSA JUNIOR, Justino de. Politecnia e onilateralidade em Marx. Trabalho e

252 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 235-253, jan./jun., 2022. (18)


ANA CAROLINA CORRÊA SALVIO; HELDER ANTONIO DA SILVA
Aproximações conceituais entre educação em direitos humanos e as bases teóricas da educação profissional e tecnológica

Educação: Revista do NETE, Belo Horizonte, n. 5, p. 98-114, jan./jul., 1999.

SOUSA JUNIOR, Justino de. Omnilateralidade. Dicionário da Educação Profis-


sional e Saúde, 1999, s. p. Disponível em: http://www.sites.epsjv.fiocruz.br/
dicionario/verbetes/omn.html. Acesso em: 10 abr. 2020.

TEIXEIRA, Anísio. Educação não é privilégio. 5. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 1994.

TEIXEIRA, Beatriz de Basto. Escolas para os direitos humanos e a democracia.


In: SCHILLING, Flávia (org.). Direitos humanos e educação: outras palavras,
outras práticas. São Paulo: Cortez Editora, 2005.

VIVALDO, Fernando Vicente. Educação em Direitos Humanos: abordagem históri-


ca, a produção e experiência brasileira. 2009. f. Dissertação (Mestrado em Educa-
ção). Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.

Recebido em: 8 de janeiro de 2022.


Aprovado em: 17 de maio de 2022.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 235-253, jan./jun., 2022. (18) 253


‘Direitos humanos para humanos
direitos’: como um conceito
distorcido de Direitos Humanos
se dissemina como meme

§ ‘Derechos humanos para los humanos derechos’: de


que manera un concepto distorsionado acerca de los
derechos humanos difunde-se como un meme

§ ‘Human rights for the right humans: how a distorted


concept about human rights spreads as a meme

Janaina Soares Gallo1


Anderson Vinicius Romanini2

Resumo: Análise da disseminação da frase ‘Direitos humanos para humanos


direitos’ como um meme. A partir da análise do Relatório Final sobre Violações
de Direitos Humanos na Mídia Brasileira da Comissão Permanente de Direito à
Comunicação e à Liberdade de Expressão do Conselho Nacional dos Direitos
Humanos, verificamos se esta frase, tão presente no inconsciente coletivo, se
configura um meme no sentido epistemológico do termo, tal qual definido
por Richard Dawkins. Faremos uma contextualização histórica sobre o con-

1 Licenciada em Educomunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP),
advogada e mestranda em Ciências da Comunicação na mesma instituição. janaina.gallo@usp.br
2 Possui graduação (Jornalismo), mestrado e doutorado em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicação
e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP); e pós-doutorado pela Universidade de Indiana (EUA) vinicius.
romanini@usp.br

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 255-271, jan./jun., 2022. (18) 255


JANAINA SOARES GALLO; ANDERSON VINICIUS ROMANINI
‘Direitos humanos para humanos direitos’: como um conceito distorcido de Direitos Humanos se dissemina como meme

ceito de meme – muito além da propagação pelas mídias sociais – como uma
unidade de informação, que se multiplica de cérebro em cérebro ou entre ou-
tros locais onde a informação é armazenada, no presente caso nos conteúdos
apontados pelo relatório. Pretende-se ainda neste trabalho investigar como
os meios de comunicação em massa contribuíram para a propagação desse
pensamento. Assim, verificamos o quanto a penetração deste bordão se deve
à ubiquidade dos programas de cobertura policial transmitidos pelas redes
de rádio e televisão brasileiras.

Palavras-chave: Direitos Humanos. Meme. Jornalismo policial. Memética

Resumen: Análisis de la difusión de la frase ‘Derechos humanos para los hu-


manos derechos’ como meme. Con base en el análisis del Informe Final sobre
Violaciones a los Derechos Humanos en los Medios de Comunicación Brasi-
leños de la Comisión Permanente del Derecho a la Comunicación y Libertad
de Expresión del Consejo Nacional de Derechos Humanos, comprobamos si
esta frase, tan presente en el inconsciente colectivo, constituye un meme en
el sentido epistemológico del término, tal como lo definió Richard Dawkins.
Aportaremos una contextualización histórica del concepto de meme, mucho
más allá de su propagación a través de las redes sociales, como una unidad
de información que se multiplica de cerebro a cerebro o entre otros lugares
donde se almacena la información, en este caso en los contenidos señalados
por el informe. También se pretende en este trabajo investigar cómo los me-
dios de comunicación contribuyeron a la propagación de este pensamiento.
Así, verificamos cuánto se debe la penetración de este eslogan a la ubicuidad
de los programas de cobertura policial emitidos por las cadenas de radio y
televisión brasileñas.

Palabras clave: Derechos humanos. Meme. Periodismo policial. Memetica.

Abstract: Analysis of the spreading of the phrase “Human Rights for the right
humans” as a meme. From the analysis of the Final Report on Human Rights
Violations in the Brazilian Media by the Permanent Commission on the Right
to Communication and Freedom of Speech by the National Council on Hu-
man Rights, we verified if this phrase, so present in the Brazilian collective
unconscious, configures a meme in the epistemological sense of the term, as
defined by Richard Dawkins. We’ll make an historical contextualization about
the concept of the meme, far beyond its propagation by social media, as an

256 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 255-271, jan./jun., 2022. (18)


JANAINA SOARES GALLO; ANDERSON VINICIUS ROMANINI
‘Direitos humanos para humanos direitos’: como um conceito distorcido de Direitos Humanos se dissemina como meme

unit of information that multiplies from brain to brain or between other pla-
ces where information is stored, in the present case, the content pointed by
the report. We also intend to investigate how the broadcast media contribu-
ted to the spread of this line of thought. This way, we verify how much of the
penetration of this catchphrase is due to the ubiquity of crime and police fo-
cused TV shows transmitted In Brazilian radio and TV broadcasting networks.

Keywords: Human rights. Meme. Police journalism. Memetics

Introdução
Foi uma grande revolução no pensamento e na história da humani-
dade chegar à reflexão conclusiva de que todos os seres humanos detêm a
mesma dignidade, ou seja, os mesmos direitos. Mas, na prática, verificamos
claramente que tal compreensão não vigora na mentalidade de todos, pois a
dignidade humana ainda é entendida como um atributo apenas para deter-
minados grupos.
O contexto histórico e social deste imaginário e o posicionamento dos
meios de comunicação em massa, sobretudo os jornais e programas jorna-
lísticos de rádio e televisão de cunho policialesco, em especial na realidade
brasileira, contribuíram muito para a permanência e perpetuação desse pen-
samento.
Comportamentos e ideias, assim como características genéticas, po-
dem ser transmitidos ao longo do tempo, passando por mecanismos de sele-
ção natural e evolução. Essa unidade de replicação responsável pela seleção e
transmissão de conteúdos inscritos em nossa cultura é o que Richard Dawkins
denominou de meme. Para ele, memes são ideias que se propagam pela so-
ciedade e sustentam determinados ritos ou padrões culturais.
Esse artigo busca traçar a origem desse discurso de aversão e des-
conhecimento sobre os direitos humanos na sociedade brasileira contem-
porânea e como a memética – estudo dos memes e de sua difusão – pode
ajudar a explicar a permanência e propagação desse pensamento. Partimos
de um breve histórico sobre a evolução e afirmação do conceito de direitos
humanos, como aqueles aplicáveis a todos os seres humanos – passando pelo
contexto brasileiro de consolidação desses direitos, no rastro da resistência à
ditadura militar de 1964-1985 e da redemocratização – e pelas disputas po-
líticas e sociais em torno dos direitos humanos. A seguir, faremos uma breve
conceituação sobre os memes e a memética e o papel dos chamados progra-
mas “policialescos” na criação de uma forte resistência na opinião pública à

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 255-271, jan./jun., 2022. (18) 257


JANAINA SOARES GALLO; ANDERSON VINICIUS ROMANINI
‘Direitos humanos para humanos direitos’: como um conceito distorcido de Direitos Humanos se dissemina como meme

aplicação dos direitos humanos a criminosos comuns.


Com este trabalho, pretendemos contribuir com subsídios para a
construção de um projeto de comunicação e educação em direitos humanos
que toque corações e mentes e influencie uma mudança de mentalidade na
opinião pública.

Breve histórico sobre direitos humanos


Direitos Humanos podem ser compreendidos como aqueles direitos
que toda a pessoa possui pelo simples fato de existir. A todos os seres hu-
manos, em que pesem as inúmeras diferenças culturais, sociais, econômicas
e biológicas, devem ser asseguradas, desde o seu nascimento, as condições
mínimas necessárias para que possa viver plenamente, de forma digna.
No entanto, o consenso de que esses direitos são destinados a toda
e qualquer pessoa é algo bem recente na História, e muitas vezes o próprio
consenso se vê ameaçado. Foi preciso um longo processo de evolução do
pensamento humano para chegarmos à conclusão de que todos os seres hu-
manos detêm a mesma dignidade e, por essa razão, a necessidade de se res-
guardar direitos considerados fundamentais a todos e todas sem quaisquer
distinções, justamente por serem indispensáveis para uma vida com respeito
à dignidade humana, os chamados Direitos Humanos.

A ideia de que os indivíduos e grupos humanos podem ser redu-


zidos a um conceito ou categoria geral, que a todos engloba, é de
elaboração recente na História. [...] Foi durante o período axial da
História [...] que despontou a ideia de uma igualdade essencial entre
todos os homens. Mas foram necessários vinte e cinco séculos para
que a primeira organização internacional a englobar a quase totali-
dade dos povos da terra proclamasse, na abertura de uma Declara-
ção Universal de Direitos Humanos, que ‘todos’ os homens nascem
livres e iguais em dignidade e direitos”. (COMPARATO, 2015, p. 25)

Devemos sempre lembrar que o conceito e essa história um tanto ro-


mantizada sobre os Direitos Humanos estão constantemente em disputa e
não são imunes a uma crítica embasada. Por muito tempo, os direitos assegu-
rados por documentos como a Bill of Rights britânica, a Declaração dos Direi-
tos do Homem francesa e a Constituição norte-americana não se aplicavam a
quem não era considerado cidadão destes países, excluindo, por exemplo, as
mulheres, escravos e povos das terras colonizadas. Mais recentemente, vimos
a defesa dos Direitos Humanos ser instrumentalizada pelos dois lados em dis-
puta na Guerra Fria, Estados Unidos e União Soviética, e ser invocado para
deflagrar guerras como no Iraque e no Afeganistão, no início deste século.
Talvez isso possa ajudar a explicar por que esses belos ideais não são

258 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 255-271, jan./jun., 2022. (18)


JANAINA SOARES GALLO; ANDERSON VINICIUS ROMANINI
‘Direitos humanos para humanos direitos’: como um conceito distorcido de Direitos Humanos se dissemina como meme

observados mesmo após 70 anos da promulgação da Declaração Universal


dos Direitos Humanos. O que se observa na prática, seja sobre sua real efe-
tivação ou na mentalidade social, ainda é um quadro de desrespeito a esses
direitos, tanto por parte dos Estados, que os violam sistematicamente, quanto
no discurso de boa parte da população.
Pesquisa do instituto Ipsos3 realizada em maio de 2018 aponta que,
na opinião de dois em cada três brasileiros, os Direitos Humanos defendem
mais os criminosos que suas vítimas. Embora 63% dos entrevistados se di-
gam genericamente “a favor” dos Direitos Humanos, 21% se manifestam con-
trariamente à mera existência deles. A pesquisa também revela um desco-
nhecimento sobre a real aplicação dos Direitos Humanos no país. Enquanto
94% dos que responderam afirmaram já terem ouvido falar sobre eles, 50%
admitem que gostariam de conhecer melhor a questão. Ao passo que 35%
dos entrevistados acham que o tema é mais ligado a partidos de esquerda,
16% acreditam ser mais ligado a partidos de direita e 39% não saberiam dizer.
Outros 54% concordam com a afirmação de que “os Direitos Humanos não
defendem pessoas como eu”.
Nesse contexto, é necessário também compreender a cultura midiá-
tica, que pode ser uma pista para entender a sociedade que vivemos, seus
conflitos, lutas, interesses, medos e fantasias e, por extensão, a relação com
os Direitos Humanos. A contemporaneidade é caracterizada pela sociedade
do conhecimento e da comunicação, devido aos avanços na tecnologia, das
técnicas de comunicação, sofisticação da publicidade e de um estilo de vida
em que o consumo tem um papel preponderante. Os meios de comunicação
em massa assumem uma expressiva importância como agentes de socializa-
ção, pois, junto com a família, a religião e a escola (entre outras instituições),
funcionam como instâncias transmissoras de valores, padrões e normas de
comportamento e servem também como referências identitárias, agindo na
formação moral e cognitiva do indivíduo na atualidade.

Direitos individuais versus direitos coletivos


Embora hoje assistamos a discursos nostálgicos afirmando que no pe-
ríodo do regime militar não havia a violência que se vê atualmente, foi na
última ditadura brasileira que os índices de criminalidade nos grandes centros
urbanos começam a crescer exponencialmente, chegando a uma verdadeira
explosão de violência na fase final do regime. A segunda metade da década

3 INSTITUTO IPSOS. 63% dos brasileiros são a favor dos direitos humanos. Disponível em: https://www.ipsos.com/
pt-br/63-dos-brasileiros-sao-favor-dos-direitos-humanos. Acesso em 16 set. 2021.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 255-271, jan./jun., 2022. (18) 259


JANAINA SOARES GALLO; ANDERSON VINICIUS ROMANINI
‘Direitos humanos para humanos direitos’: como um conceito distorcido de Direitos Humanos se dissemina como meme

1970 e a maior parte da década de 1980 foram marcadas pela crise econômi-
ca, explosão populacional nas grandes cidades, com a proliferação de favelas,
refletindo no grande aumento dos índices de criminalidade4.
A própria violência estatal por parte do regime, que teve, além da persegui-
ção política dos opositores com prisão, exílio, tortura e morte, um aumento na atu-
ação dos Esquadrões da Morte, organizações paralegais formadas por integrantes
das forças de segurança, e o aproveitamento de agentes da repressão pelo crime
organizado e da contravenção, como o exemplo dos chefes do jogo do bicho no
Rio de Janeiro, teve papel fundamental na escalada de violência. Ao final do regi-
me militar, o aparato repressivo que servia o regime começa a ser desmobilizado e
muitos dos seus agentes são recrutados por organizações criminosas, colocando à
disposição do crime organizado e de instituições estatais, como as polícias, as ferra-
mentas antes utilizadas para violações de direitos durante o regime.
O período de redemocratização é marcado também pelo crescimento
do protagonismo dos movimentos sociais pela reivindicação de direitos como a
moradia, melhores condições de trabalho, educação e saúde, entre outros. Entres
essas reivindicações, também está a de associações de defesa dos direitos de pes-
soas encarceradas, com apoio de setores da Igreja Católica que atuavam nos pre-
sídios e outras organizações da sociedade civil que começavam a se organizar em
torno da defesa dos direitos humanos. O governo do estado de São Paulo, após
a eleição do oposicionista Franco Montoro, em 1982, busca uma política de “hu-
manização” carcerária, liderada pelo então secretário de Justiça José Carlos Dias.
Tereza Caldeira (1991) faz uma reflexão sobre como, a partir do início da
década de 1980, a defesa de direitos humanos de prisioneiros comuns passou a ser
associada pela maioria da população paulistana à defesa de “privilégios para bandi-
dos”. O artigo discute como foi possível essa associação. Para tanto, analisa os argu-
mentos e ações tanto dos defensores quanto dos opositores a respeito dos direitos
humanos de prisioneiros comuns. Essa análise considera as noções de direitos exis-
tentes na sociedade brasileira e contrapõe as percepções de direitos sociais e direi-
tos individuais, mostrando que, enquanto os primeiros são largamente legitimados,
os segundos – que incluem os direitos humanos – são associados a privilégios.
A autora traz um destaque especial para o papel dos meios de comu-
nicação em especial os programas policiais do rádio como o apresentado por
Afanasio Jazadji5. A sua conclusão reverbera até os dias de hoje quando afirma:
Enquanto a maior parte dos cidadãos continuar associando direitos

4 HORTA, Maurício. Mito: “na Ditadura Militar, as cidades não eram violentas”. Superinteressante. 28 set. 2018. Disponível
em: https://super.abril.com.br/historia/mito-na-ditadura-militar-as-cidades-nao-eram-violentas/. Acesso em: 6 mai. 2022.
5 Afanasio Jazadji é um jornalista, radialista, advogado, publicitário e político brasileiro de origem romena. Em 1986,
foi eleito deputado estadual em São Paulo, sendo eleito como o candidato mais votado para a Assembléia Legislativa
naquele ano4, obtendo cerca de 300 mil votos apenas na cidade de São Paulo, e mais de meio milhão no total do estado.

260 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 255-271, jan./jun., 2022. (18)


JANAINA SOARES GALLO; ANDERSON VINICIUS ROMANINI
‘Direitos humanos para humanos direitos’: como um conceito distorcido de Direitos Humanos se dissemina como meme

humanos e direitos individuais a privilégios, e a fechar os olhos con-


tra as arbitrariedades e violências praticadas contra os que conside-
ram ser ‘outros’, será muito difícil pensar na consolidação de uma
sociedade democrática no Brasil. (CALDEIRA, 1991, p. 173)

A autora traz exemplos de como esse discurso era proferido por diver-
sos formadores de opinião da época, desde manifestos assinado por delega-
dos de polícia até na fala de locutores populares do rádio, como Jazadji.

Os tempos atuais são de intranquilidade para você e de total garan-


tia para os que matam, roubam, estupram. A sua família é destro-
çada e o seu patrimônio, conseguido à custa de muito sacrifício, é
tranquilamente subtraído. E por que isto acontece? A resposta você
sabe. Acreditando em promessas, escolhemos o governador errado,
o partido errado, o PMDB. Quantos crimes ocorreram em seu bairro
e quantos criminosos foram por eles responsabilizados? Esta res-
posta você também sabe. Eles, os bandidos, são protegidos pelos
tais “direitos humanos”, coisa que o governo acha que você, cidadão
honesto e trabalhador, não merece. - Manifesto à população da As-
sociação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo, de 4 de
outubro de 1985. (CALDEIRA, 1991, p. 169)

Tinha que pegar esses presos irrecuperáveis, colocar todos num pa-
redão e queimar com lança-chamas. Ou jogar uma bomba no meio,
pum! acabou o problema. Eles não têm família, eles não têm nada,
não têm com que se preocupar, eles só pensam em fazer o mal, e
nós vamos nos preocupar com ele? [...] Esses vagabundos, eles nos
consomem tudo, milhões e milhões por mês, vamos transformar
em hospitais, creches, orfanatos, asilos, dar uma condição digna a
quem realmente merece ter essa dignidade. Agora, para esse tipo
de gente... gente? Tratar como gente, estamos ofendendo o gênero
humano! - trecho do programa radiofônico de Afanasio Jazadji, na
Rádio Capital, e que foi ao ar no dia 25 de abril de 1984. (CALDEIRA,
1991, p. 170)

O papel dos meios de comunicação


Nesse momento, o Brasil já contava com uma grande rede de meios
de comunicação, como emissoras de rádio e televisão, que já atingia grande
parte da população. Com um processo de industrialização lento, mas inequí-
voco, o país se moderniza no decorrer do século XX. Os jornais aumentam
sua tiragem e modernizam sua formatação, incorporando, por exemplo, a
fotografia. Surgem periódicos populares, destinados a uma população que
começava a se alfabetizar em massa. Os meios de comunicação passam a
se “interiorizar”, se tornando um utensílio doméstico dentro das casas das
famílias. Primeiramente o rádio, entre as décadas de 1930 e 1940, cumprin-
do um papel de integração nacional em um país continental e diverso, e a
partir de 1950, a televisão. Nos formatos de programas de entretenimento e
jornalísticos se desenvolvem, e os grandes meios de comunicação se conso-

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 255-271, jan./jun., 2022. (18) 261


JANAINA SOARES GALLO; ANDERSON VINICIUS ROMANINI
‘Direitos humanos para humanos direitos’: como um conceito distorcido de Direitos Humanos se dissemina como meme

lidam em grandes redes, nas mãos de poucas famílias com capital econômi-
co e político para bancar as grandes estruturas necessárias.
A história da comunicação nos mostra que curiosidade sobre tragédias
sempre foi um chamariz para aumento de audiência e vendagem nos meios
de comunicação. Nessa linha, o jornalismo policial ganha destaque dentro do
gênero sensacionalista com o objetivo de aumentar, ou manter para aumen-
tar a venda de jornais (jornalismo impresso), a audiência dos ouvintes (rádio)
ou telespectadores (televisão). Começam a circular nos meios de comunica-
ção relatos sobre crimes com cada vez mais requintes de crueldade, traços
de tortura e ousadia dos criminosos apresentadas de forma teatralizada por
personagens como Gil Gomes6 e Alborghetti7.
Em sua tese de doutorado “Jornalismo Policial: indústria cultural e vio-
lência,” apresentada no Instituto de Psicologia da USP, Davi Romão conclui que:
O Jornalismo Policial, por sua forma e por seu conteúdo, reforça em
seus telespectadores uma posição conformista, de resignação frente
às mais diversas frustrações impostas pela vida em nossa sociedade.
[...] a lógica presente neste gênero televisivo alimenta mecanismos
compensatórios paranoides para a raiva gerada por essas frustrações
sociais, de forma a propiciar uma satisfação parcial para o indivíduo. [...]
O aspecto conformista do Jornalismo Policial está intimamente rela-
cionado com seu formato estereotipado. Ao contrário de uma cria-
ção cultural verdadeira, esse gênero se reduz à infindável repetição
das mesmas ideias nos mesmos formatos: uma cena trágica ou de
violência é apresentada, comenta-se o quanto essa sociedade é pe-
rigosa, como esse perigo se deve a pessoas de má índole, e pede-se
por mais policiamento e leis mais fortes. Apesar de também estarem
presentes elementos que tentam disfarçar essa monotonia, dando-
-lhe a aparência de novidade ou relevância, em sua estrutura básica
os programas são sempre exatamente iguais. (Romão, 2013, p. 199)

Violações de direitos humanos na mídia brasileira


O relatório final sobre Violações de Direitos Humanos na Mídia Brasi-
leira da “Comissão Permanente de Direito à Comunicação e à Liberdade de Ex-

6 Cândido Gil Gomes Jr. (1940-2008) foi um jornalista e advogado bem como repórter policial do rádio e televisão
rasileiro bastante popular graças a seus estilos personalíssimos de voz, de gestos e de se vestir.
7 Luiz Carlos Alborghetti (1945 -2009) foi um jornalista policial, radialista, apresentador de televisão e político bra-
sileiro. Foi deputado estadual no Paraná por dezesseis anos. Entre suas características marcantes estavam o tom
inflamado, desafiador, robusto e o discurso ácido e informal, não raro com o uso de termos chulos para expressar
sua indignação.

262 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 255-271, jan./jun., 2022. (18)


JANAINA SOARES GALLO; ANDERSON VINICIUS ROMANINI
‘Direitos humanos para humanos direitos’: como um conceito distorcido de Direitos Humanos se dissemina como meme

pressão” do Conselho Nacional dos Direitos Humanos8 foi produzido a partir


de uma análise da denúncia firmada pelas organizações ANDI - Comunicação
e Direitos; Intervozes -Coletivo Brasil de Comunicação Social; e Artigo 19 da
DUDH. O relatório confirma a ocorrência de graves violações de direitos hu-
manos e infrações a leis na mídia brasileira, especificamente, em programas
de rádio e TV de cunho “policialesco”9. Os denunciantes tiveram por base os
resultados de amplo monitoramento de 28 desses programas, produzidos e
transmitidos em 10 capitais das cinco regiões do País, em março de 2015, per-
fazendo um total de 1.928 narrativas analisadas.
A pesquisa consiste no monitoramento sistemático das narrativas so-
bre violências e criminalidades em um número determinado de produções
veiculadas por meio de rádio e TV em cidades representativas de todas as re-
giões do País. Baseada na análise de conteúdo, a metodologia reúne um con-
junto de técnicas capazes de identificar, quantificar e interpretar característi-
cas específicas do conteúdo midiático, e de, com base nelas, fazer inferências
a respeito de mensagens e significados presentes nas narrativas. A pesquisa
identificou um volume significativo de violações e infrações, evidenciando o
caráter não circunstancial das práticas anti-humanistas e antidemocráticas
desse modelo de comunicação em franca expansão no Brasil.
O monitoramento em questão identificou a ocorrência, em um ape-
nas mês, de 4.500 violações de direitos e 15.761 infrações a normas
legais e supralegais, a saber:
“Exposições indevidas de pessoas”: 1.704 vezes; 2. “Desrespeitos
à presunção de inocência”: 1.580; 3. “Violações do direito ao silên-
cio”: 614; 4. “Exposições indevidas de famílias”: 295; 5. “Incitações à
desobediência às leis ou às decisões judiciárias”: 151; 6. “Incitações
ao crime e à violência”: 127; 7. “Identificações de adolescentes em
conflito com a lei”: 39; 8. “Discursos de ódio ou Preconceito”: 17; e 9.
“Torturas psicológicas ou Tratamentos desumanos ou degradantes”:
09 vezes. 2.3. Leis brasileiras infringidas (total de 8.232 infrações) 1.
Constituição Federal de 1988: 1.928 vezes; 2. Código Brasileiro de
Telecomunicações: 1.928; 3. Código Civil Brasileiro: 1.928; 4. Regu-
lamento dos Serviços de Radiodifusão: 1.866; 5. Lei de Execução Pe-
nal: 300; 6. Código Penal Brasileiro: 127; 7. Estatuto da Criança e do
Adolescente: 78; 8. Estatuto do Idoso: 50; 9. Lei 7.716/89 (define os
crimes de preconceito de raça ou de cor): 17; 10. Lei 9.455/97 (sobre
tortura): 09; 11. Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/73): 01. 2.4. Normas
multilaterais desrespeitadas (total de 7.529 infrações) 1. Convenção
Americana sobre Direitos Humanos: 1.928 vezes; 2. Pacto Internacio-

8 Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/conselho-nacional-de-di-


reitos-humanos-cndh/copy_of_RELATRIOCNDHPOLICIALESCOS_Final.pdf. Acesso em: 6 mai. 2022.
9 Por “policialescos” compreendem-se os programas de rádio e TV dedicados a narrar violências e criminalidades,
sendo caracterizados pelo forte apelo popular. Diferentemente dos noticiosos em geral, que tratam de variados
aspectos da vida social de modo relativamente equitativo, essas produções são focadas majoritariamente em temas
vinculados a ocorrências de ordem policial, ainda que, eventualmente, insiram entre as narrativas um ou outro
assunto estranho ao rol de fatos violentos, delituosos ou criminosos (VARJÃO, 2016, p.14)

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 255-271, jan./jun., 2022. (18) 263


JANAINA SOARES GALLO; ANDERSON VINICIUS ROMANINI
‘Direitos humanos para humanos direitos’: como um conceito distorcido de Direitos Humanos se dissemina como meme

nal sobre Direitos Civis e Políticos: 1.928; 3. Declaração Universal dos


Direitos Humanos: 1.849; 4. Declaração Americana dos Direitos e De-
veres do Homem: 1.801; 5. Convenção sobre os Direitos da Criança:
13; 6. Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas
Cruéis, Desumanos ou Degradantes: 09; 7. Convenção Internacional
Sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial: 01
(VARJÃO, 2016, p. 5).

Além de identificar e quantificar as violações e infrações, a pesquisa


avaliou diferentes perspectivas do fenômeno e aqui, para efeito deste arti-
go, o que merece ser destacado é o campo dos direitos humanos. Segundo a
pesquisa, o levantamento dos indicadores de violações cometidas pelos pro-
gramas sinaliza o distanciamento do projeto editorial que os orienta, e dos
parâmetros qualitativos que regem o exercício do jornalismo. Uma das carac-
terísticas em comum a esse tipo de discurso midiático é a desqualificação do
campo de defesa dos direitos humanos – seus atores e dispositivos de ação.
Vinculados a infrações graves à lei, como “Incitação ao crime e à violência” e
“Incitação à desobediência às leis ou às decisões judiciárias”, os ataques se dão
ora de forma direta, ora indireta. Em seu conjunto, repassam para a sociedade
a ideia de que as leis e aqueles que zelam por sua observância são instrumen-
tos nocivos à segurança e bem-estar da coletividade, numa clara inversão de
posições e valores, afrontando os princípios que norteiam o Estado de Direito.
Seguem alguns fragmentos desses trechos10:

Indicador 1 Chamada: “Adote um bandido!” Trecho da narrativa.


[Apresentadora]: “O marginalzinho amarrado ao poste era tão ino-
cente que em vez de prestar queixa contra os seus agressores ele
preferiu fugir antes que ele mesmo acabasse preso. É que a ficha
do sujeito está mais suja do que pau de galinheiro. Num país que
ostenta incríveis 26 assassinatos a cada 100 mil habitantes, que ar-
quiva mais de 80% de inquérito de homicídios e sofre de violência
endêmica, a atitude dos vingadores é até compreensível. O Estado
é omisso, a polícia, desmoralizada, a justiça, falha. O que resta ao
cidadão de bem que ainda por cima foi desarmado? Se defender, é
claro! O contra-ataque aos bandidos é o que eu chamo de legítima
defesa coletiva de uma sociedade sem Estado, contra um estado de
violência sem limites. E aos defensores dos Direitos Humanos que se
apiedaram do marginalzinho preso ao poste eu lanço uma campa-
nha. Faça um favor ao Brasil! Adote um bandido!”11.
Indicador 2 Retranca: “Nós estamos falando hoje da morte covarde,
desnecessária, do soldado PM [...]” Trecho 1 da narrativa. [Âncora]:
“Alguém dos direitos humanos foi fazer uma visitinha à senhora lá?”
[Mãe da vítima]: “De maneira alguma. Infelizmente, direitos huma-
nos existem pro bandido. Para o bandido, direitos humanos briga,
luta, aparece na televisão, reivindica”; Trecho 2. [Âncora]: “Seu Valter,

10 VARJÃO, 2015, P. 30
11 Meio: TV; veículo: SBT; programa: SBT Brasil; data da ocorrência: 31-01- 14; data da veiculação: 04-02-14; minuta-
gem do trecho: 00:00 A 01:04

264 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 255-271, jan./jun., 2022. (18)


JANAINA SOARES GALLO; ANDERSON VINICIUS ROMANINI
‘Direitos humanos para humanos direitos’: como um conceito distorcido de Direitos Humanos se dissemina como meme

o senhor recebeu alguma visita a não ser dos colegas de farda e dos
poucos amigos?” [Pai da vítima]: “Eu tenho certeza que se meu filho
fosse um bandido, se meu filho fosse um safado, os direitos huma-
nos teriam me procurado”; Trecho 3. [Âncora]: “Direitos humanos
para os humanos direitos [...]”12

A pesquisa, além de identificar e quantificar as violações e infrações,


avaliou diferentes perspectivas do fenômeno que provocam forte impacto
no tecido social e no sistema democrático de governança. Concluiu também
que apologias ao arbítrio não são esporádicas, ou isoladas, mas recorrentes e
comuns a diferentes veículos – o que significa dizer que é uma prática institu-
cionalmente consentida e nacionalmente disseminada.

Memes e a memética
Da redução do termo grego mimesis (imitação) surge o termo meme.
Cunhado por Richard Dawkins no livro O gene egoísta (1976) foi aplicado pelo
biólogo para dar conta dos processos de replicação e evolução cultural que
lhe chamaram a atenção quando iniciou sua defesa à tese do determinismo
genético. Para o pesquisador, assim como os genes eram os principais res-
ponsáveis por replicar o conteúdo geracional na evolução biológica dos or-
ganismos vivos, talvez houvesse uma outra unidade de replicação, diferente
dos genes, responsável pela seleção e transmissão de conteúdos inscritos em
nossa cultura. Assim ele busca com a expressão meme criar uma mesma pa-
lavra para descrever o que os genes fazem em termos biológicos, mas para
descrever ideias, conceitos e comportamentos que se propagam na socieda-
de. (CALIXTO, 2017).
Gustavo Leal-Toledo (2017), em seu estudo sobre memes e a memé-
tica, nos traz um panorama geral sobre o tema desde o seu conceito, estu-
do, aplicação e divergências. Para o autor, um meme pode ser compreendido
como uma unidade de cultura, um comportamento ou uma ideia que pode
ser passada de pessoa para pessoa pela imitação. Desse modo, “assim como
características genéticas são transmitidas hereditariamente, passando por
mecanismos de seleção natural e evolução, comportamentos e ideias tam-
bém seguem o mesmo processo”. (p.14)
Segundo Leal-Toledo (2017), o estudo sobre a memética começa a
se estruturar com a publicação de The Meme Machine, de Susan Blackmore

12 Meio: rádio; veículo: Rádio Itatiaia (MG); programa: Itatiaia Patrulha (MG); data da ocorrência: 16/05/2014; data
da veiculação: 19/05/2014; minutagem do trecho 1: 38:28 a 38:42; minutagem do trecho 2: 41:03 a 41:22; minutagem
do trecho 3: 41:52 a 41:55

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 255-271, jan./jun., 2022. (18) 265


JANAINA SOARES GALLO; ANDERSON VINICIUS ROMANINI
‘Direitos humanos para humanos direitos’: como um conceito distorcido de Direitos Humanos se dissemina como meme

(1999), em que a autora defende que a memética pode ser uma ciência e que
os memes só poderiam ser passados por imitação no sentido estrito. Essa visão
é criticada e considerada um dos motivos da má compreensão dessa ciência.
O autor considera que a ciência dos memes pode ser uma ‘cola concei-
tual’ entre as diversas áreas que estudam a cultura. Ele traz um “resumo abstra-
to” do que chama de Darwinismo Universal, que apresenta quatro condições
fundamentais para seleção natural: reprodução, hereditariedade, variação e
variação da aptidão. Assim, a memética pode ser compreendida como um
algoritmo da evolução por seleção natural aplicada diretamente à cultura.
Analisando o nosso objeto de pesquisa, qual seja o conceito por trás
da frase “Direitos Humanos para humanos direitos” como um meme, devemos
não olhar para a frase em si, mas como unidade de informação que é repassa-
da por imitação e assume formas variáveis.
O conceito cultural sobre direitos humanos que analisamos também
não pode ser compreendido sem levar em conta diversos aspectos psicoló-
gicos, sociais e econômicos que envolvem a sua propagação no imaginário
e como a influência de constantes violações de direitos por parte da mídia
ajuda na formação desse entendimento.
Ao analisar a propagação dos memes, Leal-Toledo se pergunta se são
os memes que querem ser passados ou as pessoas que os querem passar.
Diferente de uma análise feita apenas a partir da biologia, quando se fala em
cultura é muito difícil dissociar a agência humana da propagação.
Vemos isso, por exemplo, no artigo de Teresa Pires do Rio Caldeira
(1991), quando ela mostra que o discurso contra a aplicação dos direitos hu-
manos a quem não é considerado ‘cidadão de bem’ foi feito de forma cons-
ciente, proposital e com objetivos políticos por uma série de formadores de
opinião. Mas não se pode negar o papel dos receptores dessas informações
como replicadores dessa ideia e valores sociais alimentados por um conteúdo
jornalístico que reforça essas opiniões.
Esse conceito encontrou uma maneira poderosa de se propagar: os
meios de comunicação em massa, principalmente jornais impressos, rádio e
televisão, no gênero chamado jornalismo policial. Não somente pelo seu po-
tencial de atingir milhões de pessoas simultaneamente, mas também pelo
modo, estrutura e características dos próprios meios, que privilegiam a trans-
missão de unidades de informação simples e repetitiva e facilmente replicá-
vel. Nisso podemos aludir a Marshall McLuhan, com sua famosa concepção
de que o meio é a mensagem, em sua obra “Os Meios de Comunicação como
Extensão do Homem” (2009), em que procura demonstrar que o meio é um
elemento importante da comunicação, e não somente um canal de passagem
ou um veículo de transmissão.

266 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 255-271, jan./jun., 2022. (18)


JANAINA SOARES GALLO; ANDERSON VINICIUS ROMANINI
‘Direitos humanos para humanos direitos’: como um conceito distorcido de Direitos Humanos se dissemina como meme

Numa cultura como a nossa, há muito acostumada a dividir e es-


tilhaçar todas as coisas como meio de controlá-las, não deixa, às
vezes, de ser um tanto chocante lembrar que, para efeitos práticos
e operacionais, o meio é a mensagem. Isto apenas significa que as
consequências sociais e pessoais de qualquer meio — ou seja, de
qualquer uma das extensões de nós mesmos — constituem o re-
sultado do novo estalão introduzido em nossas vidas por uma nova
tecnologia ou extensão de nós mesmos (MCLUHAN, 2009, p. 21)

Considerações finais
Durante a maior parte da história humana considerou-se natural que
populações marginalizadas como escravos, prisioneiros de guerra e crimi-
nosos comuns pudessem ser alvos de punições violentas como a tortura e
sofrimento. A memória coletiva sobre as atrocidades mantém-se latente até
os dias de hoje. No Brasil, uma sociedade com altos índices de desigualdade
social revela uma violência estrutural, que o processo de democratização das
últimas décadas tenta enfrentar. A combinação da reivindicação de direitos
à população carcerária, combinado ao aumento da percepção de violência,
fez com que esse “vírus incubado” fosse ativado com auxílio fundamental dos
meios de comunicação.
Os estudos sobre a memética ainda não estão plenamente desenvol-
vidos, mas o que se consegue concluir aqui, parafraseando Gustavo Leal-Tole-
do, é que a aproximação mais importante para a memética responder a estes
problemas seria o que chamou de behaviorismo memético, ou seja tratar os
memes como padrões de comportamento.
E foi o que conseguiu se observar aqui. A questão dos direitos huma-
nos como algo do outro, além do sujeito; ou como algo que defende bandi-
dos, é algo frequentemente disseminado pelos meios de comunicação como
uma resposta aos anseios da sociedade, que clama por melhores condições
de vida e, ao ouvir esses discursos, se sentem protegidos.
Os primeiros sistemas legais já preconizavam a defesa da sociedade
perante aqueles que quebravam um ‘contrato social’ com base no “olho por
olho, dente por dente”, como exemplo o código de Hamurabi. Mesmo com
a evolução dos códigos legais no sentido de abandonar penas cruéis e desu-
manas e o desenvolvimento legal da igualdade de direitos, o meme “olho por
olho dente por dente” permaneceu no imaginário popular, passado de gera-
ção para geração, e ganhando um forte impulso com a disseminação pelos
meios de comunicação em massa.
A própria história dos direitos humanos mostrou-se muitas vezes con-
troversa e em disputa, se pensarmos que os primeiros documentos que re-

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 255-271, jan./jun., 2022. (18) 267


JANAINA SOARES GALLO; ANDERSON VINICIUS ROMANINI
‘Direitos humanos para humanos direitos’: como um conceito distorcido de Direitos Humanos se dissemina como meme

metem ao tema, muito antes da criação das Organizações das Nações Unidas,
faziam uma defesa dos sujeitos em relação ao Estado, o que seria classificado
por muitos autores como Direitos Humanos de primeira geração, surgidos
com as revoluções burguesas do final do século XVIII e de todo o século XIX.
Refere-se mais precisamente à independência dos Estados Unidos e à criação
de sua Constituição, em 1787, e à Revolução Francesa, em 1789, tendo como
marco histórico a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, do mes-
mo ano e trazendo como elemento principal a ideia de liberdade individual,
concentrada nos direitos civis e políticos inerentes ao ser humano e oponíveis
ao Estado absoluto. Resumindo, os direitos humanos passaram por uma ‘evo-
lução legal’ que de fato não acompanhou a evolução cultural.
A questão de igualdades de direitos ainda é um grande desafio a ser
transposto, se pensarmos que ainda convivemos em uma sociedade estru-
turalmente racista e desigual. O Brasil desponta como um dos países mais
desiguais, o que reforça a dificuldade da percepção do outro como sujeito de
direitos, visto que convivemos com esse fato sem que haja políticas efetivas
que busquem combater essa estrutura.
A atual conjuntura não é favorável a essa quebra de paradigma, é
preciso um trabalho de base para ressignificar o conviver democrático como
forma de respeito e empatia, e regulações legais que responsabilizem esses
violadores, seja o Estado e as suas instituições, destacando o papel da mídia
como um quarto poder que exerce forte influência na sociedade.
A boa notícia é que já há iniciativas promissoras para se enfrentar esse
resquício cultural que teima em permanecer na sociedade contemporânea.
Propostas como a justiça restaurativa, que parte do pressuposto que os con-
flitos são inerentes aos seres humanos e busca soluções não-violentas, a edu-
comunicação, que “[...] trabalha com a interface entre os tradicionais campos
da educação e da comunicação e vem se apresentando como um caminho
de renovação das práticas sociais que objetivam ampliar as condições expres-
sões de todos os segmentos humanos” (SOARES, 2011, p.15).
Neste artigo, buscamos ter uma compreensão bem geral sobre a força
cultural do meme representado pela expressão “Direitos Humanos para Hu-
manos Direitos” no imaginário social brasileiro, o papel dos grandes meios de
comunicação e formadores de opinião na difusão desse conceito que, embo-
ra seja totalmente contrário à própria concepção de direitos humanos como
inerentes a toda e qualquer pessoa, está enraizado na construção moral de
boa parte da opinião pública. Percebemos que o contexto histórico e social
deste imaginário, em especial na realidade brasileira, também contribui mui-
to para a permanência desse pensamento, que talvez atinja seu ápice com a
eleição de um presidente da república que construiu sua imagem política em

268 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 255-271, jan./jun., 2022. (18)


JANAINA SOARES GALLO; ANDERSON VINICIUS ROMANINI
‘Direitos humanos para humanos direitos’: como um conceito distorcido de Direitos Humanos se dissemina como meme

grande parte baseado neste meme.


Esperamos assim contribuir com a continuidade da nossa pesquisa
sobre a importância da cultura na discussão, acerca uma educação e comuni-
cação que tenham como base o respeito aos direitos humanos. Desta forma,
avançaremos na construção desse campo e na elaboração de estratégias mais
eficazes para que uma compreensão maior sobre direitos se dissemine em
todos os estratos sociais. Consideramos este o caminho para efetivamente di-
minuir os altos índices de violência social.

Referências
BARBOSA, Marialva. (org.). História da comunicação no Brasil. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2013.

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Direitos Humanos ou “privilégios de bandi-


dos”: desventuras da democratização brasileira. Novos Estudos, São Paulo,
n. 30, p.162-174, julho de 1991. Disponível em: https://politicaedireitoshu-
manos.files.wordpress.com/2011/10/teresa-caldeira-direitos-humanos-ou-
-privilegios-de-bandidos.pdf. Acesso em: 21 set. 2019.

CALIXTO, Douglas de Oliveira. Memes na internet: entrelaçamentos entre


Educomunicação, cibercultura e a ‘zoeira’ de estudantes nas redes sociais. Tese
(Mestrado em Ciências da Comunicação). Escola de Comunicações e Artes,
Universidade de São Paulo, 2017. Disponível em: https://www.teses.usp.br/
teses/disponiveis/27/27154/tde-01112017-102256/pt-br.php. Acesso em: 6
mai. 2022.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos.


9. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

DAWKINS, Richard. O gene egoísta. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

HORTA, Maurício. Mito: “na Ditadura Militar, as cidades não eram violentas”.
Superinteressante. 28 set. 2018. Disponível em: https://super.abril.com.br/
historia/mito-na-ditadura-militar-as-cidades-nao-eram-violentas/. Acesso
em: 6 mai. 2022.

INSTITUTO IPSOS. 63% dos brasileiros são a favor dos direitos humanos. Dispo-
nível em: https://www.ipsos.com/pt-br/63-dos-brasileiros-sao-favor-dos-di-
reitos-humanos. Acesso em: 21 set. 2021.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 255-271, jan./jun., 2022. (18) 269


JANAINA SOARES GALLO; ANDERSON VINICIUS ROMANINI
‘Direitos humanos para humanos direitos’: como um conceito distorcido de Direitos Humanos se dissemina como meme

JUPIARA, Aloy; OTAVIO, Chico. Os porões da contravenção: jogo do bicho e


a história da aliança que profissionalizou o crime organizado. São Paulo:
Record, 2015.

LEAL-TOLEDO, Gustavo. Os memes e a memética. O uso de modelos biológi-


cos na cultura. São Paulo. FiloCzar, 2017.

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem.


Tradução de Décio Pignatari. São Paulo: Cultrix, 2009.

OLIVEIRA, C. P. U. Observando a Imprensa pelo caso Mensalão: Joaquim


Barbosa, Zé Dirceu e a Construção de Personagens em Jornalismo. In: CON-
GRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 39, 2016, São Paulo.
39º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação - Intercom. São Paulo:
Intercom, 2016. v. 1. p. 1-16. Disponível em: https://portalintercom.org.br/
anais/nacional2016/resumos/R11-2347-1.pdf. Acesso em: 6 mai. 2022.

PEUCE, Tobias. Os relatos jornalísticos. Tradução de Paulo da Rocha Dias. Re-


vista Comunicação & Sociedade. São Bernardo do Campo, n. 33, p.199-204,
1º sem. 2000. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/jornalis-
mo/article/view/2070/1812. Acesso em: 15 set. 2021.

ROMÃO, Davi Mamblona Marques. Jornalismo policial: indústria cultural


e violência. Dissertação (Mestrado em Psicologia). Instituto de Psicologia,
Universidade de São Paulo, 2013. Disponível em: https://www.teses.usp.br/
teses/disponiveis/47/47131/tde-30072013-113910/publico/romao_corrigi-
da.pdf. Acesso em: 6 mai. 2022.

SOARES, Ismar de Oliveira. Educomunicação: o conceito, o profissional, a apli-


cação: contribuições para a reforma do ensino médio. São Paulo: Paulinas,
2011.

SOUZA, Anamaíra Pereira Spaggiari. Jornalismo policial sensacionalista: entre


a audiência e a função social. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA
COMUNICAÇÃO, 32, 2009, Curitiba. 32º Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação- Intercom. Curitiba: Intercom. 2009. v.1, p. 1-15. Disponível em:
http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2009/resumos/r4-1123-1.pdf .
Acesso em: 6 de maio de 2022.

270 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 255-271, jan./jun., 2022. (18)


JANAINA SOARES GALLO; ANDERSON VINICIUS ROMANINI
‘Direitos humanos para humanos direitos’: como um conceito distorcido de Direitos Humanos se dissemina como meme

TOSI, Giuseppe (org.). Direitos humanos: história, teoria e prática. João Pes-
soa. UFPB, 2004.

TORRES, Ton. O fenômeno dos memes. Ciência e Cultura, São Paulo, v. 68, n.
3, p.60-61, set./2016. Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252016000300018. Acesso em 6 mai.
2022.

TREVISAN, M.; DE PRÁ, E.; GOETHEL, M. Meme: intertextualidades e apropria-


ções na Internet. Revista Observatório, v. 2, n. 1, p. 277-298, maio/2016. Dispo-
nível em: https://sistemas.uft.edu.br/periodicos/index.php/observatorio/
article/view/1701. Acesso em 6 mai. 2022.

VARJÃO, Suzana. Violações de direitos na mídia brasileira: ferramenta prática


para identificar violações de direitos no campo da comunicação de massa.
Brasília, DF: ANDI, 2015. (Guia de monitoramento de violações de direitos;
v.1) Disponível em: https://andi.org.br/publicacoes/guia-de-monitoramento-
-violacoes-de-direitos-na-midia-brasileira-i/. Acesso em: 6 mai. 2022.

VARJÃO, Suzana. Violações de direitos na mídia brasileira: um conjunto de


reflexões sobre como coibir violações de direitos no campo da comunica-
ção de massa. Brasília, DF: ANDI, 2015. (Guia de monitoramento de viola-
ções de direitos; v. 2) Disponível em: https://andi.org.br/wp-content/uplo-
ads/2020/09/guia_violacoes_volumeii_web.pdf. Acesso em: 6 mai. 2022.

VARJÃO, Suzana. Violações de direitos na mídia brasileira: Pesquisa detecta


quantidade significativa de violações de direitos e infrações a leis no campo
da comunicação de massa. Brasília, DF: ANDI, 2016. (Guia de monitoramento
de violações de direitos; v. 3) Disponível em: https://andi.org.br/wp-content/
uploads/2020/09/guia_violacoes_voliii_web_0.pdf. Acesso em: 6 mai. 2022.

Recebido em: 1 de outubro de 2021.


Aprovado em: 26 de abril de 2022.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 255-271, jan./jun., 2022. (18) 271


COVID-19 e as mulheres
brasileiras: direitos sexuais e
direitos reprodutivos entre a
crise política e a crise sanitária

§ COVID-19 y mujeres brasileñas: derechos sexuales y


derechos reproductivos entre la crisis política y la crisis
sanitaria

§ COVID-19 and Brazilian women: sexual rights and


reproductive rights between the political crisis and the
health crisis

Thais Janaina Wenczenovicz1


Noelen Alexandra Weise da Maia2

Resumo: Neste artigo busca-se propor algumas reflexões, acerca dos direitos se-
xuais (DS) e dos direitos reprodutivos (DR) no Brasil, tendo em vista o avanço do
conservadorismo na política brasileira e o período da pandemia do COVID-19.

1 Docente da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul/UERGS. Professora do Programa de Pós-Graduação em


Direito/UNOESC. Professora no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas/Universida-
de Federal da Fronteira Sul. t.wencze@terra.com.br
2 Possui graduação em História. É mestranda, com bolsa CAPES, do PPGICH na Universidade Federal da Fronteira
Sul, campus Erechim / Rio Grande do Sul. noelenweise@gmail.com

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 273-291, jan./jun., 2022. (18) 273


THAIS J. WENCZENOVICZ; NOELEN A. WEISE DA MAIA
COVID-19 e as mulheres brasileiras: direitos sexuais e direitos reprodutivos entre a crise política e a crise sanitária

Parte-se da compreensão de que a crise causada pela pandemia e seus impactos


não podem ser analisados de forma isolada. Desta feita, buscou-se compreender
o que são tais direitos, seus desdobramentos a partir da década das mulheres e
como eles vêm sendo tratados em um contexto de avanço do conservadorismo
na máquina estatal para, por fim, compreender em que contexto se insere a pan-
demia do COVID-19. Para tanto, o artigo fundamenta-se em teorias feministas
e propõe uma análise bibliográfica-investigativa sobre o tema. Com esta análise,
pode-se perceber que, embora a crise sanitária tenha potencializado o desmonte
– no que se refere aos DS e aos DR das mulheres –, tal fato não é uma novidade.
Percebeu-se que este ataque é uma constante, desde que tais direitos começa-
ram a ser consolidados no final do século passado, vindo a se fortalecer, com o
avanço dos setores conservadores na sociedade e na política, nos últimos anos.
A pandemia, neste sentido, se inseriu em um contexto de já desmonte e acabou
por potencializá-lo.

Palabras-chave: Direitos sexuais. Direitos Reprodutivos. Pandemia COVID-19.

Resumen: Este artículo busca proponer algunas reflexiones, sobre los derechos
sexuales (DS) y los derechos reproductivos (DR) en Brasil, frente al avance del
conservadurismo en la política brasileña y el período de la pandemia de CO-
VID-19. Se parte del entendimiento de que la crisis provocada por la pandemia
y sus impactos no pueden analizarse aisladamente. Así, se busco entender cuáles
son estos derechos, su desdoblamiento a partir de la década de las mujeres y
cómo han sido tratados en un contexto de conservadurismo que avanza en el
aparato estatal para, finalmente, entender en qué contexto se inserta la pande-
mia de COVID- 19. Para tanto, el artículo parte de teorías feministas y propone
un análisis bibliográfico-investigativo sobre el tema. Con este análisis se puede
apreciar que, si bien la crisis sanitaria ha potenciado el desmantelamiento - en
lo que respecta a los DS y a los DR femeninos -, este hecho no es nuevo. Se
percibió que este ataque es una constante, desde que tales derechos comenzaron
a consolidarse a fines del siglo pasado, viniendo a fortalecerse, con el avance
de sectores conservadores en la sociedad y la política, en los últimos años. La
pandemia, en ese sentido, se insertó en un contexto ya de desmantelamiento y
terminó impulsándolo.

Palabras clave: Derechos Sexuales. Derechos Reproductivos. Pandemia COVID-19.

Abstract: This article seeks to propose some reflections on sexual rights (SR)

274 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 273-291, jan./jun., 2022. (18)


THAIS J. WENCZENOVICZ; NOELEN A. WEISE DA MAIA
COVID-19 e as mulheres brasileiras: direitos sexuais e direitos reprodutivos entre a crise política e a crise sanitária

and reproductive rights (RR) in Brazil, in view of the advance of conservatism


in Brazilian politics and the period of the COVID-19 pandemic. It starts from the
understanding that the crisis caused by the pandemic and its impacts cannot be
analyzed in isolation. Here we sought to understand what these rights are, how
they have unfolded since the women’s decade, and how they have been treated
in a context of advancing conservatism in the state machine to finally understand
in what context the pandemic is inserted from COVID-19. Consequently, the
article is based on feminist theories and proposes a bibliographic-investigative
analysis on the subject. With this analysis, it is verified that, even though the
public health crisis has potentiated the dismantling - with regard to SD and RD
of women - this fact is not a new one. It has been perceived that this attack is a
constant, since these rights began to be consolidated at the end of the last centu-
ry, and have been strengthen, with the advance of conservative sectors in society
and politics, over the last few years.The pandemic, in this sense, was inserted in
a context of already dismantling and ended up enhancing it.

Keywords: Sexual Rights. Reprodutive Rights. Pandemic COVID-19.

Introdução

Ao final do ano de 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) foi


alertada sobre casos de pneumonia na República Popular da China. Pouco
tempo depois, já no novo ano, autoridades chinesas confirmaram que a pneu-
monia, na verdade, era causada por um novo tipo de coronavírus, até então
desconhecido em seres humanos. O novo coronavírus é o responsável pela
doença COVID-19 que, desde então, vem se alastrando pelo mundo e já ma-
tou milhões de pessoas. Devido sua propagação e presença em diversos pa-
íses, em 11 de março de 2020 o surto passou a ser caracterizado como uma
pandemia. (OPAS, s./d.)3.
A crise da pandemia, que tomou conta do planeta desde 2020, no
Brasil se somou a crise política, social e econômica; sobretudo, marcada pelo
avanço da mentalidade conservadora a partir a vitória de Jair Messias Bolso-
naro (capitão reformado do exército) nas eleições de 2018. Seu governo tem
grande presença religiosa, – particularmente evangélica e neopentecostal – e
tem como uma de suas características o ataque aos direitos de mulheres, pes-
soas LGTQIA+, pessoas racializadas e comunidades indígenas. Dentre uma de

3 Disponível em: https://www.paho.org/pt/covid19/historico-da-pandemia-covid-19. Acesso em: 6 mai. 2022.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 273-291, jan./jun., 2022. (18) 275


THAIS J. WENCZENOVICZ; NOELEN A. WEISE DA MAIA
COVID-19 e as mulheres brasileiras: direitos sexuais e direitos reprodutivos entre a crise política e a crise sanitária

suas principais pautas está a disputa pelo termo “direitos humanos”.


Neste contexto, este artigo tem o objetivo de analisar os direitos sexuais
(DS) e os direitos reprodutivos (DR) no Brasil, tendo em vista o avanço conserva-
dor na política brasileira e o período da pandemia do COVID-19. A tese central
é que a pandemia não pode ser analisada de forma isolada, portanto, é indis-
pensável compreender o contexto político, social e econômico, em que ela se
insere, para poder compreender em que medida ela afetou a vida das pessoas,
no caso, prioritariamente as mulheres e pessoas com capacidade de gestar.
O artigo fundamenta-se teoricamente nas teorias feministas, sobre-
tudo, no que se refere as análises de gênero, raça e classe. Como metodolo-
gia proposta, utilizou-se o procedimento bibliográfico-investigativo. O artigo
divide-se em três partes. Desta feita, parte de uma breve reflexão histórica
sobre o contexto de emergência dos DS e dos DR, buscando compreender o
que pressupõem; em razão disso, busca refletir sobre a consolidação de tais
direitos em um contexto de avanço do conservadorismo, buscando perceber
os embates e disputas que envolvem tais direitos e, por último, propõe uma
análise, considerando o período de pandemia do COVID-19, à luz das refle-
xões anteriores.

1. Direitos sexuais, direitos reprodutivos e direitos hu-


manos

Os direitos sexuais e os reprodutivos, fazem parte do escopo dos direi-


tos humanos e, como tais, são direitos inalienáveis de toda e qualquer pessoa.
Eles dizem respeito a um conjunto de liberdades referentes ao pleno e autô-
nomo exercício da sexualidade e da reprodução. Pode-se compreender estes
direitos em relação ao termo de saúde reprodutiva que, segundo o Relatório
da Conferência Internacional Sobre População e Desenvolvimento que ocor-
reu no Cairo em 1994, é:
[...] um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não
simples ausência de doença ou enfermidade, em todas as matérias
concernentes ao sistema reprodutivo e suas funções e processos. A
saúde reprodutiva implica, por conseguinte, que a pessoa possa ter
uma vida sexual segura e satisfatória, tenha a capacidade de repro-
duzir e a liberdade de decidir sobre quando, e quantas vezes o deve
fazer. Implícito nessa última condição está o direito de homens e
mulheres de serem informados e de ter acesso a métodos eficientes,
seguros, permissíveis e aceitáveis de planejamento familiar de sua
escolha, assim como de outros métodos, de sua escolha, de controle
de fecundidade que não sejam contrários à lei, e o direito de acesso

276 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 273-291, jan./jun., 2022. (18)


THAIS J. WENCZENOVICZ; NOELEN A. WEISE DA MAIA
COVID-19 e as mulheres brasileiras: direitos sexuais e direitos reprodutivos entre a crise política e a crise sanitária

a serviços apropriados de saúde que deem à mulher condições de


passar, com segurança, pela gestação e pelo parto e proporcionem
aos casais a melhor chance de ter um filho sadio. (PLATAFORMA DE
CAIRO, 1994, p. 62).

Sobre a assistência à saúde reprodutiva o documento afirma que:


[...] é definida como a constelação de métodos, técnicas e serviços
que contribuem para a saúde e o bem-estar reprodutivo, prevenin-
do e resolvendo problemas de saúde reprodutiva. Isto inclui tam-
bém a saúde sexual cuja finalidade é a intensificação das relações
vitais e pessoais e não simplesmente aconselhamento e assistência
relativos à reprodução e a doenças sexualmente transmissíveis.
(PLATAFORMA DE CAIRO, 1994, p. 62).

Os DS e os DR possibilitam, portanto, uma visão ampliada sobre a se-


xualidade e a reprodução, dentre os principais documentos que os regem
estão: Conferência sobre Direitos Humanos (Teerã/Irã, 1968); Conferência de
População (Bucareste / Romênia, 1974); Conferência Mundial do Ano Interna-
cional da Mulher (México, 1975); Conferência de Alma Ata (União Soviética,
atual Cazaquistão, 1978); Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação Contra a Mulher (em 1979); 4º Encontro Internacional de
Mulher e Saúde (Amsterdã, em 1984); Estratégias de Nairóbi (1985); Conferên-
cia de Viena sobre Direitos Humanos (1993); Conferência Internacional sobre
População e Desenvolvimento (Cairo, 1994); e, por fim, a 4ª Conferência Mun-
dial da Mulher (Beijing, 1995) (DÍAZ; CABRAL; SANTOS, 2004, p. 3-5).
Tais direitos se constituem como uma resposta frente ao controle, da
sexualidade e reprodução feminina, por parte do patriarcado. Silvia Federici,
no livro O Calibã e a Bruxa (2017) afirma que o controle dos corpos femininos
– que tem o período de caça às bruxas como um evento decisório – foi um
dos pilares, junto ao cercamento de terras comunais e colonialismo, do capi-
talismo. Através da disciplinarização, da sexualidade e reprodução femininas,
Estado e Igreja intentaram o controle das mulheres, e consolidaram relações
sociais baseadas no binarismo de gênero, assim como, a definição de papéis
sociais em termos biológicos.
Em que pesem as discussões teóricas, Foucault apresenta contribui-
ções, igualmente importantes, para pensar o disciplinamento dos corpos fe-
mininos. Sua noção de biopolítica é extremamente importante para pensar o
corpo feminino como um eixo fundamental de consolidação dos Estados-Na-
ção. De acordo com o filósofo, no final do século XVIII e início do XIX, a vida
passou a ter centralidade. O conceito de população obteve maior relevância
dentro da retórica nacionalista. Desta forma “o velho direito de causar a morte
ou deixar viver foi substituído por um poder de causar a vida ou devolver à
morte” (FOUCAULT, 2017, p. 149).

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 273-291, jan./jun., 2022. (18) 277


THAIS J. WENCZENOVICZ; NOELEN A. WEISE DA MAIA
COVID-19 e as mulheres brasileiras: direitos sexuais e direitos reprodutivos entre a crise política e a crise sanitária

Neste contexto, a medicalização dos corpos assumiu um papel de gran-


de valia. Para a construção de um Estado saudável foi preciso, antes de tudo,
corpos também saudáveis, consequentemente, a sexualidade passou a ser ob-
jeto de assepsia e higiene. (FOUCAULT, 2017). Nessa mesma senda, o corpo da
mulher, em especial sua função reprodutiva, tornou-se um espaço decisivo para
tal empreitada. No Brasil, a partir do final do século XIX e início do XX,

[...] nota-se uma certa redefinição no discurso médico que enfatiza


cada vez mais o papel da mulher em virtude de uma importância
para a nação. Isso reflete uma aproximação maior da medicina com
o Estado. Mas também diz respeito a uma série de outros desenvol-
vimentos em curso, com uma forte presença de ideias eugênicas,
a propagação dos métodos de controle da natalidade, o trabalho
feminino fora de casa, a organização das mulheres reivindicando
direitos e a importância adquirida pela questão da população e da
raça. (ROHDEN, 2003, p. 179).

Percebem-se dois intuitos da medicalização do corpo feminino: de um


lado o interesse com o desenvolvimento de uma nação saudável e de outro a
manutenção e reafirmação dos papéis de gênero. No Brasil a questão do “alei-
tamento mercenário” foi alvo de intensas discussões. Neste período, muitas
mulheres privilegiadas possuíam escravas ou contratavam amas-de-leite para
exercer seu papel de “mãe” enquanto conquistavam o mundo do trabalho. No
entanto, tal prática, na visão do saber médico, constituía um grave problema
sanitário,
Os médicos propunham, então, que as mulheres fossem con-
vencidas de sua “vocação natural” para a maternidade e acon-
selhadas sobre os perigos que a criança alimentada fora do seio
materno poderia sofrer. (RAGO, 1985, p. 76).

Para a retórica higienista, dos médicos sanitaristas, a nutriz e a ama de


leite configuravam um grande perigo para as crianças. Eram atribuídas a elas
as altas taxas de mortalidade infantil e, também, a degeneração moral e racial
das famílias. O amor materno, enquanto vocação natural da mulher, esteve
emaranhado às teses higiênicas do período. Além disso, a mulher, que não se
enquadrava nos pressupostos naturalizados de “mãe”, passou a ocupar o lugar
da anormal. Rago afirma que

[...] aquela que não preenchesse os requisitos estipulados pela


natureza, inscrevia-se no campo sombrio da anormalidade,
do pecado e do crime. Não amamentar e não ser esposa e mãe
significava desobedecer a ordem natural das coisas, ao mesmo
tempo em que se punha em risco o futuro da nação. (RAGO,
1985, p. 79).

No entanto, ao passo que a maternidade foi estimulada para mulheres


“saudáveis”, também foi negada para aquelas “não-saudáveis”. A reprodução

278 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 273-291, jan./jun., 2022. (18)


THAIS J. WENCZENOVICZ; NOELEN A. WEISE DA MAIA
COVID-19 e as mulheres brasileiras: direitos sexuais e direitos reprodutivos entre a crise política e a crise sanitária

de pessoas racializadas e empobrecidas foi vista como um problema pois, se


acreditava que as altas taxas de natalidade, no Terceiro Mundo, eram culpadas
pela pobreza e também degradação do meio ambiente (ÁVILA, 2019).
Não é atoa que campanhas eugênicas tiveram tanta força no sécu-
lo passado. Angela Davis, no livro Mulheres, raça e classe (2016) demonstra
como o Estado norte-americano, ao mesmo tempo que estimulava as mulhe-
res brancas à maternidade, encorajava as mulheres de minorias étnicas a se
tornarem inférteis. Além disso, Davis afirma que até mesmo alguns movimen-
tos feministas apoiaram e contribuíram para a disseminação de ideais eugê-
nicos. Segundo Davis (2016, p. 213). “o que era reivindicado como um ‘‘direito’’
para as mulheres privilegiadas veio a ser interpretado com um ‘‘dever’’ para as
mulheres pobres”.
Os dados apontados, por Davis, são extremamente alarmantes, de
acordo com ela:
Inicialmente, o Departamento de Saúde, Educação e Bem-Estar ale-
gou que, em 1972, a esterilização havia sido feita em aproximada-
mente 16 mil mulheres e 8 mil homens graças aos programas federais.
Mais tarde, entretanto, esses números passaram por uma drástica re-
visão. Carl Shultz, diretor do Escritório para Questões Populacionais
do Departamento de Saúde, Educação e Bem-Estar, estimou que, na
verdade, entre 100 mil e 200 mil esterilizações haviam sido financia-
das pelo governo federal naquele ano. A propósito, na Alemanha,
durante o governo de Hitler, foram realizadas 250 mil esterilizações
sob a lei nazista de saúde hereditária. (DAVIS, 2016, p. 213).

No entanto, a prática de esterilização compulsória não foi exclusivida-


de do governo norte-americano. No Brasil, os movimentos feministas, notada-
mente o feminismo negro, denunciaram, entre os anos 1975-1993, elementos
que corroboravam com a tese de que o Estado contribuiu para esterilizações
compulsórias de mulheres negras, pobres e, sobretudo, nordestinas. Tais de-
núncias resultaram na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), criada
em 1993 com o intuito de denunciar a ocorrência da esterilização em massa
de mulheres brasileiras. Embora as conclusões da CPMI não tenham corrobo-
rado com a tese de que havia uma relação entre as esterilizações e o racismo
de estado, concluiu-se que:

[...] não havia uma política voltada à saúde da mulher no Brasil; exis-
tia interesse internacional na implementação do controle demo-
gráfico; as agências controlistas internacionais forneciam recursos
financeiros às nacionais como a Benfam e o Centro de Pesquisa de
Assistência Integral à Mulheres e à Criança (CPAIMC); e o Estado não
definiu critérios para a prática da esterilização no país. (DAMASCO;
MAIO; MONTEIRO, 2012, p. 146).

Isto posto, a constituição dos DS e os DR se referem a oposição à for-


ma como o corpo feminino, a sexualidade e a reprodução, foram tratados ao

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 273-291, jan./jun., 2022. (18) 279


THAIS J. WENCZENOVICZ; NOELEN A. WEISE DA MAIA
COVID-19 e as mulheres brasileiras: direitos sexuais e direitos reprodutivos entre a crise política e a crise sanitária

longo do tempo, sobretudo com o advento da modernidade. A noção de tais


direitos, como afirma Ávila, “se constrói a partir da prática política das mulhe-
res em torno de sua demanda a esfera reprodutiva” (ÁVILA, 2019, p.163). Sua
história, portanto, esteve intimamente vinculada aos movimentos organiza-
dos de mulheres. No entanto, se compararmos ao período em que se tentou
instrumentalizar o corpo feminino, percebe-se que são extremamente recen-
tes. De certa forma isso explica a forte oposição a eles, sobretudo pelos seto-
res conservadores que tem conquistado espaços estratégicos na política e na
sociedade, buscando a manutenção do status quo.

2. Direitos sexuais e direitos reprodutivos em tempos de


avanço do conservadorismo

Historicamente os movimentos religiosos, marcadamente a Igreja Ca-


tólica, tiveram forte oposição aos pequenos avanços no campo dos direitos
sexuais e reprodutivos. Ávila afirma que, no Brasil, a instituição exerceu gran-
de influência no sentido de definir políticas públicas e legislações, como é o
caso do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), criado
pelo Ministério da Saúde (MS) em 1983. De acordo com ela, o programa

[...] teve sua declaração como programa oficial retardada em função


do embate que a Igreja travou para retirar o DIU (dispositivo intrau-
terino) da lista dos métodos contraceptivos a serem oferecidos no
serviço público. A polêmica se resolveu pela inclusão do método,
mas o setor religioso ganhou um amplo espaço na divulgação e
orientação dos métodos chamados naturais. Além disso, conseguiu
embargar episodicamente e, em alguns casos, definitivamente, mui-
tos dos materiais de divulgação que foram elaborados pelos grupos
feministas a pedido do Ministério da Saúde. (ÁVILA, 2019, p. 172).

Não obstante, a pauta do aborto, difundida pelas feministas a partir


da década de 1970 mobilizou a reação católica. Barsted, afirma que em 1985,
o estado do Rio de Janeiro publicou uma lei que “obrigava a rede pública de
saúde do estado a prestar atendimento às mulheres nos casos de aborto per-
mitidos pelo Código Penal” (BARSTED, 2019), no entanto,

A Lei nº 832/85 foi revogada por iniciativa do governador do Esta-


do, que encaminhou pedido à Assembleia Legislativa em face dos
apelos do cardeal Eugenio Salles. A cúpula da Igreja Católica no Rio
de Janeiro deflagrou intensa campanha contra a lei. Distribui nas
paróquias, para ser lida em todas as missas de domingo que antece-
deram à votação do pedido de revogação da lei, uma carta em que

280 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 273-291, jan./jun., 2022. (18)


THAIS J. WENCZENOVICZ; NOELEN A. WEISE DA MAIA
COVID-19 e as mulheres brasileiras: direitos sexuais e direitos reprodutivos entre a crise política e a crise sanitária

repudiava a norma legal, afirmando que obrigava os serviços médi-


cos a praticaram o crime de aborto. A mesma campanha foi levada
a efeito nas estações de rádio. Nessa polêmica, o Conselho Regional
de Medicina do Estado do Rio de Janeiro também se colocou contra
a Lei nº 832/85 (BARSTED, 2019. p. 196).

O período de elaboração da nova Constituição Federal também marcou


embates acirrados quanto ao direito ao aborto. De um lado, feministas queriam
que o direito à prática fosse mencionado no documento, já alguns grupos reli-
giosos queriam a defesa da vida desde a concepção. Ao final, as feministas con-
seguiram modificar a proposta para a compreensão da vida em termos gerais,
não estipulando um momento para isto. (BARSTED, 2019, p. 200).
Estas disputas marcam o avanço dos setores conservadores no país
e que, nos anos recentes, tem-se fortalecido com a eleição de Jair Bolsonaro
em 2018. O avanço de tais setores caminha lado a lado com pequenos avan-
ços conquistados pelos movimentos feministas e LGBTQIA+. Exemplo disso foi
a crítica de Joseph Ratzinger, então Cardeal e Prefeito da Congregação para a
Doutrina da Fé, aos movimentos feministas. Em uma entrevista concedida a Pe-
ter Seewald, logo após as Conferências Internacionais da Mulher e Conferência
do Cairo (que dentre outras coisas passaram a adotar o termo “gênero” para se
referir as configurações sociais dos corpos sexuados) Ratzinger afirmou que:

Actualmente se considera la mujer como un ser oprimido; así que la


liberación de la mujer sirve de centro nuclear para cualquier activi-
dade de liberación. Y, ahora, resulta que a una teología de la libera-
ción política le ha tomado la delantera otra de liberación antropo-
lógica. Además, no se conforman con pensar en un simple cambio
de papeles, se ha llegado mucho más lejos que eso, y su objetivo
es liberar al hombre de su biología. Se distingue entonces el fenó-
meno biológico de la sexualidad de sus formas históricas, a las que
se denomina gender, pero la pretendida revolución contra las for-
mas históricas de la sexualidad culmina en una revolución contra los
presupuestos biológicos. Ya no se admite que la “naturaleza” tenga
algo que devir; es mejor que el hombre pueda modelarse a su gus-
to, tiene de liberarse de cualquier presupuesto de su ser; el hombre
tiene que hacerse a sí miso según lo que él quiera, solo de ese modo
será “libre” y liberado. Todo esto, en el fondo, disimula una insurrec-
ción del hombre contra los límites que lleva consigo en cuanto ser
biológico. (RATZINGER, 2005, p. 138).

Percebem-se duas coisas: de um lado o uso da ciência enquanto le-


gitimadora do discurso religioso, e de outro, aquilo que Miskolci e Campana
(2017) chamaram de “pânico moral”. Isto é, a concepção de que os avanços
no campo dos direitos das mulheres e pessoas LGBTQIA+ oferecem riscos e
ameaças à sociedade e à própria natureza humana.
A crítica de Ratzinger serviu de sustentação para o que mais
tarde veio a se chamar “ideologia de gênero” e que tem mobilizado de forma

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 273-291, jan./jun., 2022. (18) 281


THAIS J. WENCZENOVICZ; NOELEN A. WEISE DA MAIA
COVID-19 e as mulheres brasileiras: direitos sexuais e direitos reprodutivos entre a crise política e a crise sanitária

significativa os movimentos conservadores. O conceito aglutina em si uma


série de outros elementos referentes à liberdade sexual e reprodutiva das mu-
lheres, educação sexual, direitos das pessoas LGBTQIA+, sobretudo quanto ao
matrimônio e adoção (GARRAIO; TOLDY, 2020, p. 131) e serve de base susten-
tadora do movimento conservador, ou como pesquisadores/as contempo-
râneos/as tem chamado “movimento neoconservador” (BIROLI; MACHADO;
VAGGIONE, 2020).
O termo “neoconservador”, surgido nos Estados Unidos por volta dos
anos 1970, para se referir aos posicionamentos de intelectuais conservado-
res aos movimentos de contracultura, permite também “lançar luz sobre os
tipos de coalizações políticas estabelecidas entre diferentes atores - religiosos
e não religiosos - visando manter a ordem patriarcal e o sistema capitalista”
(BIROLI; MACHADO; VAGGIONE, 2020, p. 25). Neste contexto, moralidade cris-
tã e liberdade individual caminham lado a lado.
Wendy Brown traz aportes significativos para compreensão da união
entre moral e liberdade, ou melhor, movimento conservador e políticos neoli-
berais. Ao analisar os escritos de Friedrich Hayek e da Sociedade Mont Pèlirin,
ela afirma que o conceito neoliberal de liberdade é constituído pela tradição
moral, portando, a liberdade moral constituiria o desmantelo da sociedade
capitalista. Neste sentido, a liberdade só seria possível ancorada nas tradições
morais, “[...] a liberdade reforça a tradição (por meio da promoção de inova-
ções adaptativas), enquanto a tradição encora a liberdade (por meio da pro-
moção de convenções e ordem)” (BROWN, 2019, p. 122).
É perceptível, como noções aparentemente opostas como conserva-
dorismo e neoliberalismo puderam se conjugar no “neoconservadorismo”.
Fica evidente, portanto, a oposição à “ideologia de gênero” e tudo aquilo que
carrega consigo inclusive o direito à autonomia feminina sobre sua sexuali-
dade e reprodução. A tradição moral instituiu mulheres como donas de casa,
mães, frágeis e dependentes. Esta instituição estrutura a sociedade capitalista
patriarcal. Desta feita, qualquer tentativa de subverter esta ordem significa o
desmantelamento desta mesma sociedade.
Em termos mais concretos, a vitória de Jair Bolsonaro foi um marco sig-
nificativo do avanço neoconservador na política. No entanto, sua vitória não
representa, sozinha, o crescimento de tais movimentos na vida pública brasi-
leira. Nas eleições de 2018, grupos evangélicos foram decisivos para a eleição
do presidente (ALVES, 2018). Junto a isso, o Congresso eleito naquele ano foi
o mais conservador das últimas quatro décadas (QUEIROZ, 2018), mesmo se
for considerado seu pequeno crescimento em relação a outros processos elei-
torais. Dentre as 594 cadeiras do Congresso Federal, 84 foram ocupadas por

282 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 273-291, jan./jun., 2022. (18)


THAIS J. WENCZENOVICZ; NOELEN A. WEISE DA MAIA
COVID-19 e as mulheres brasileiras: direitos sexuais e direitos reprodutivos entre a crise política e a crise sanitária

parlamentares evangélicos (DIAP, 2018)4. Não obstante, Jair Bolsonaro, assim


que assumiu a presidência passou a lotear “a máquina do Estado com seus
apoiadores, ampliando a presença de cristãos neoconservadores no primeiro
e segundo escalões do governo” (MACHADO, 2020, p. 104). Dentre suas prin-
cipais alterações está o encerramento das atividades da Secretaria Especial de
Políticas para Mulheres (SPM) e posterior criação do Ministério da Mulher, da
Família e dos Direitos Humanos, sob a liderança da advogada e pastora evan-
gélica “terrivelmente cristã”, Damares Alves.
No ato de Cerimônia de Transmissão de Cargo, ocorrido no dia 9 de ja-
neiro de 2019, a nova ministra já deu o tom do que viria guiar as pautas de seu
ministério. De acordo com ela “menina será princesa, menino será príncipe e
tá dado o recado”, para além disso, também afirmou que um dos principais
desafios do então governo era “acabar com os abusos da doutrinação ideo-
lógica [...] para construir um Brasil em que nossas crianças tenham acesso à
verdade e sejam livres para pensar”5 .
Dentre os principais alvos da ministra, estão os direitos sexuais e repro-
dutivos. Na ocasião da 40ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU,
realizada em Genebra, em 2019, a ministra, em seu discurso6, afirmou, entre
outras pautas, a defesa da vida desde a concepção, a proteção da família e o
fortalecimento dos vínculos familiares. Pouco tempo depois, o governo brasi-
leiro causou polêmica ao se posicionar contra menções à saúde sexual e repro-
dutiva contida no rascunho do documento da 63ª sessão da Comissão sobre
a Situação das Mulheres, realizada também pela ONU, em março de 2019. A
contrariedade do governo brasileiro foi justificada pela compreensão de que
tais menções poderiam ajudar a promover o aborto (RODRIGUES, 2019).
O que se tem observado nos últimos anos, com o crescimento da nova
direita, tanto em número quanto em importância, é uma disputa entre con-
ceitos, dentre eles os direitos humanos. É lugar-comum, entre tais movimen-
tos, termos como “direitos humanos para humanos direitos”, neste contexto,
os direitos humanos deixam de ser direitos inalienáveis de toda e qualquer
pessoa e os direitos das mulheres passam a ser questionados, de acordo com
os usos que faz sobre seu próprio corpo. É a partir da retórica dos “direitos
humanos” que os movimentos neoconservadores tem atacado os DS e os DR
que, em sua visão, são um pleonasmo para o direito ao aborto.

4 Disponível em: https://www.diap.org.br/index.php/noticias/noticias/88900-eleicoes-2018-bancada-evangelica-


cresce-na-camara-e-no-senado. Acesso em: 4 out. 2021.
5 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2Qz_tS6zofg. Acesso em: 4 out. 2021.
6 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fwBbLyp_e78. Acesso em: 4 out. 2021.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 273-291, jan./jun., 2022. (18) 283


3. Direitos sexuais e direitos reprodutivos em tempos de
pandemia
Desde o início da pandemia do COVID-19, o governo brasileiro mostrou-
-se negligente para com sua população em relação aos cuidados e prevenção
ao vírus. Em meio ao caos mundial gerado pela pandemia, o Brasil viveu sob um
governo que negou a efetividade de formas comprovadas cientificamente de
prevenção ao vírus como: lockdown e acesso às vacinas. Além de ter promovi-
do aglomerações, proferido discursos contra o uso de máscaras e disseminado
notícias falsas sobre a doença e sobre as vacinas. Embora o vírus seja de ordem
natural, muito da crise que estamos vivendo atualmente se deu pela ação hu-
mana em descuidar de si e também da própria natureza (KRENAK, 2020).
Embora os DS e os DR sejam considerados essenciais em casos de
emergência em saúde pública (GONZAGA, GONÇALVEZ; MAYORGA, 2021, p.
154), no Brasil eles pouco foram levados em consideração. No dia primeiro
de junho de 2020, apenas três meses após o decreto de pandemia pela Orga-
nização Mundial da Saúde, integrantes do Ministério da Saúde publicaram a
Nota Técnica Nº 16/2020-COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS. A nota salientava
a importância de assegurar às mulheres o acesso à Saúde Sexual e Saúde Re-
produtiva (SSSR), partindo do pressuposto de que são

[...] necessários todos os esforços possíveis, utilizando as medidas


de redução de disseminação do vírus, para evitar a interrupção de
ações educativas, orientações, consultas e dispensação de contra-
ceptivos, e todos os serviços essenciais a SSSR, sob o risco de causar
danos importantes e irreparáveis à saúde integral das mulheres. (MI-
NISTÉRIO DA SAÚDE, 2020, p. 2).

A nota ia de encontro com as orientações da Organização Mundial da


Saúde que previa tais direitos como essenciais e que não deveriam ser descon-
tinuados durante a pandemia do COVID-19. No entanto, a reação do governo
federal à nota foi desastrosa. Dois dias após a nota ter sido publicada, o presi-
dente Jair Bolsonaro, em sua conta privada na rede social Twitter, declarou que:
- O @minsaude está buscando identificar a autoria da minuta de
portaria apócrifa sobre o aborto que circulou hoje na internet.
- O MS segue fielmente a legislação brasileira, bem como não apoia
qualquer proposta que vise a legalização do aborto, caso que está
afeto ao Congresso7.

Ainda em resposta ao seu próprio tweet acrescentou a sua contrarie-


dade à prática do aborto. No dia 4 de junho de 2020, através das portarias nº

7 Disponível em: https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1268343988404334594. Acesso em: 4 out. 2021.


THAIS J. WENCZENOVICZ; NOELEN A. WEISE DA MAIA
COVID-19 e as mulheres brasileiras: direitos sexuais e direitos reprodutivos entre a crise política e a crise sanitária

1.489/2020 e nº 1.490/2020, duas pessoas foram exoneradas de seus cargos


na Coordenação Geral de Ciclos da Vida.
Pouco tempo depois, em agosto, o governo federal se envolveu em
outra polêmica em relação aos DS e aos DR, ao publicar a Portaria nº 2.282, de
27 de agosto de 2020. A portaria tinha o objetivo de revisar os procedimentos
de justificação e autorização de abortamento, nos casos previstos em lei, pelo
SUS. Dentre os elementos inclusos pela portaria, estavam a notificação obri-
gatória às autoridades policiais em casos de violência sexual e a inclusão da
obrigatoriedade, por parte da equipe de saúde, de informar a mulher sobre a
possibilidade de ver o feto ou embrião através de ultrassonografia.
Devido pressão feminista e de demais setores ligados à defesa dos DS
e aos DR das mulheres, a portaria foi revogada pela Portaria nº 2.561 de 23 de
setembro de 2020. O texto da nova portaria revogou a obrigatoriedade de os/
as profissionais da saúde informarem à mulher a possibilidade de ver o feto ou
embrião através de ultrassonografia. No entanto, a obrigatoriedade de comu-
nicar a violência sexual às autoridades policiais permaneceu no documento.8
Deve-se pontuar que a primeira Portaria nº 2.282 foi publicada após a
repercussão do caso de uma menina de 10 anos, moradora do Espírito Santo,
que depois de anos de abuso sexual engravidou de um familiar. Ao recorrer
ao serviço de abortamento legal, a menina teve seus direitos negados, tendo
que se locomover até Recife/PE, onde precisou ir escondida para o hospital,
devido à mobilização de movimentos religiosos que ocorria em frente à ins-
tituição com o intuito de desestimular a menina à prática do abortamento
(JIMÉNEZ, 2020). O caso é extremamente sintomático do avanço do conserva-
dorismo no país e de sua capilarização dentro da máquina estatal.
A cruzada contra o aborto, no entanto, não se finda na tentativa de
obstrução do direito ao abortamento legal. Levantamento realizado pela Or-
ganização Não-Governamental “Artigo19” mostrou que durante a pandemia
apenas 42 hospitais seguiram realizando o procedimento9. Salienta-se que no
Brasil são permitidos os abortos resultantes de gravidez, fruto de violência
sexual e em caso de risco de vida para a gestante e feto com anencefalia. A
diminuição dos serviços de abortamento legal, sobretudo em um momento
de pandemia, significa um grave desrespeito aos DS e aos DR das mulheres.
A diminuição de tais serviços se deu, justamente, em um momento
em que as meninas e mulheres estavam mais expostas à violência sexual e
com menos chances de utilizar métodos contraceptivos e denunciar a vio-

8 Disponível em: https://www.febrasgo.org.br/pt/noticias/item/1116-nota-de-esclarecimento-da-comissao-


nacional-especializada-de-sexologia-da-febrasgo-sobre-a-portaria-gm-n-2-282-de-27-de-agosto-de-2020. Acesso
em: 6 mai. 2022.
9 Mapa aborto Legal. Disponível em: https://mapaabortolegal.org/sobre-o-mapa/ Acesso em: 6 mai. 2022.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 273-291, jan./jun., 2022. (18) 285


THAIS J. WENCZENOVICZ; NOELEN A. WEISE DA MAIA
COVID-19 e as mulheres brasileiras: direitos sexuais e direitos reprodutivos entre a crise política e a crise sanitária

lência. O relatório, realizado pelo Instituto Sou da Paz, Ministério Público de


São Paulo e UNICEF (2020), mostrou que os índices de violência sexual contra
meninas e adolescentes diminuíram significativamente durante a pandemia.
No entanto, tal diminuição não se refere necessariamente à diminuição da
violência em si, mas sim da subnotificação dos casos, uma vez que:

[...] são crimes predominantemente domésticos - na média históri-


ca, quase 4 em cada 5 registros desse crime indicam como local de
ocorrência a residência da vítima. As medidas de distanciamento so-
ciais adotadas para prevenir a transmissão do novo coronavírus, que
diminuíram a circulação pela cidade e mantiveram crianças mais
tempo em casa, podem explicar a redução dos crimes de oportuni-
dade, como roubos e furtos, mas não a queda nos registros de es-
tupros. Tudo indica que aumentou o tempo que as crianças passam
dentro de casa, e é dentro de casa que elas são vítimas de violência
sexual. (UNICEF, 2020, p. 41).

Neste sentido, ao mesmo tempo em que há uma diminuição significa-


tiva dos serviços de abortamento legal, meninas são isoladas dentro de casa,
muitas vezes com seus abusadores. Isso denuncia algo que já vem sido falado
por alguns setores da sociedade: embora a pandemia possa passar, seus refle-
xos serão sentidos durante muito tempo e as meninas e mulheres, sobretudo as
racializadas e empobrecidas, serão as que mais sentirão na pele tais resultados.
Não obstante, os próprios meios convencionais de contracepção sofre-
ram os impactos da pandemia (ANTUNES, 2021; SILVA; FERREIRA; LARA, 2020).
Salienta-se, no entanto, que uma pesquisa realizada pela Escola Nacional de
Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz com 24 mil mulheres entre os anos
de 2011 e 2012 mostrou que apenas 55% das mulheres brasileiras grávidas
no período haviam planejado a gestação (PASSARINHO; FRANCO, 2018). Isso
demonstra que a violação dos DS e DR das mulheres não foi inaugurada pela
pandemia, mas que esta potencializou os problemas já existentes.
Ao mesmo tempo em que o direito à contracepção foi violado para
muitas mulheres, para outras foi negado o exercício da maternidade livre
de riscos. De acordo com dados sistematizados pela ONG Criola, a partir do
Observatório Obstétrico Brasileiro Covid-19, até maio de 2021 o Brasil já res-
pondia a 75% das mortes de mulheres grávidas em decorrência do COVID-19.
Desse total de mortes, 62% são de mulheres negras, em oposição a 35,6% de
mortes maternas de mulheres brancas.10
2Percebe-se, portanto, que durante a pandemia do COVID-19, as mulheres ficaram desassistidas, sobretudo no que se
refere à sua saúde sexual e reprodutiva. A contracepção e o direito à maternidade foram direitos negligenciados
pelo Estado, contribuindo, desta forma, para a manutenção das desigualdades sociais e de gênero. No entanto, ao

10 Disponível em: https://criola.org.br/no-mes-de-luta-pela-saude-da-mulher-criola-alerta-sobre-o-aumento-da-


-mortalidade-materna-em-todo-o-pais-agravada-pela-covid-19/. Acesso em: 5 out. 2021.

286 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 273-291, jan./jun., 2022. (18)


THAIS J. WENCZENOVICZ; NOELEN A. WEISE DA MAIA
COVID-19 e as mulheres brasileiras: direitos sexuais e direitos reprodutivos entre a crise política e a crise sanitária

comparar os dados sobre esses direitos no período da pandemia com dados anteriores, percebe-se que a pandemia
não trouxe elementos totalmente novos, no que se refere aos DS e aos DR, mas contribuiu para potencializar o
que já vinha ocorrendo.

Considerações finais
Este artigo buscou analisar os impactos do crescimento do conserva-
dorismo no Brasil e da pandemia COVID-19 na vida das mulheres brasileiras,
sobretudo no que se refere aos seus DR e aos seus DR. Para tanto, analisou-se
tal problemática à luz da forma com que tais direitos foram tratados no cená-
rio nacional. Buscou-se, portanto, observar em que medida a pandemia foi
um fato novo ou uma potencialização do que já vinha acontecendo.
Boaventura de Sousa Santos, no livro A cruel pedagogia do vírus afir-
mou que a “actual pandemia não é uma situação de crise claramente contra-
posta a uma situação de normalidade” (SANTOS, 2020, p. 1). Ao fim deste tra-
balho, pode-se afirmar que o desmantelamento e ataque aos direitos sexuais
e reprodutivos das mulheres e meninas não é um fato inerente à pandemia,
mas vem se consolidando, no mínimo desde a segunda metade do século XX,
como forma de manutenção do status quo.
A reivindicação dos DS e dos DR está intimamente ligada à defesa da
autonomia feminina em relação ao seu corpo e em última instância é uma
forma de questionar as próprias estruturas sociais baseadas em papéis de-
terminados de gênero. Rita Segato (2016, p. 15-16) afirma que “lejos de ser
residual, minoritaria y marginal, la custión de género es la piedra angular y
eje de gravedad del edificio de todos los poderes”. Portanto, a reivindicação
de autonomia sobre o próprio corpo e também de meios para exercê-la, em
uma sociedade que se estrutura na subjugação do corpo feminino e de sua
capacidade de reprodução, significa questionar as próprias estruturas sociais.
Contatou-se, por meio deste artigo, que os ataques e desmantelo dos
direitos sexuais e reprodutivos durante o período da pandemia do COVID-19,
não são apenas uma continuidade e intensificação do que já vinha acontecen-
do, mas são também uma forma de manter as estruturas sociais protegidas do
“perigo” representado pelos movimentos feministas e LGBTQIA+.

Referências
ALVES, José Eustáquio Diniz. O voto evangélico garantiu a eleição de Jair Bol-
sonaro. Revista Humanitas Unisinos, 1 nov. 2018. Disponível em: http://www.
ihu.unisinos.br/188-noticias/noticias-2018/584304-o-voto-evangelico-garan-
tiu-a-eleicao-de-jair-bolsonaro. Acesso em: 4 out. 2021

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 273-291, jan./jun., 2022. (18) 287


THAIS J. WENCZENOVICZ; NOELEN A. WEISE DA MAIA
COVID-19 e as mulheres brasileiras: direitos sexuais e direitos reprodutivos entre a crise política e a crise sanitária

ÁVILA, Maria Betânia. Modernidade e cidadania reprodutiva. In: Heloisa Bu-


arque de Hollanda. Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio
de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.

ANTUNES, Leda. Impacto da pandemia nos serviços de planejamento familiar


faz oferta de DIU e laqueadura pelo SUS cair mais de 40%. O Globo, 28 mai.
2021. Disponível em: https://oglobo.globo.com/celina/impacto-da-pande-
mia-nos-servicos-de-planejamento-familiar-faz-oferta-de-diu-laqueadura-
-pelo-sus-cair-mais-de-40-25028586. Acesso em: 5 out. 2021.

BARSTED, Leila Linhares. Legalização e descriminalização: dez anos de luta


feminista. In: Heloisa Buarque de Hollanda. Pensamento feminista brasileiro:
formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.

BIROLI, Flávia; VAGGIONE, Juan Marco; MACHADO, Maria das Dores Campos.
Gênero, neoconservadorismo e democracia: disputas e retrocessos na América
Latina. São Paulo: Boitempo, 2020.

BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antide-


mocrática no ocidente. Traduzido por Mario A. Marino, Eduardo Altheman C.
Santos. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.

DAMASCO, Mariana Santos; MAIO, Marcos Chor; MONTEIRO, Simone. Femi-


nismo negro: raça, identidade e saúde reprodutiva no Brasil (1975-1993).
Estudos Feministas, Florianópolis, v. 20, n.1, p.133-150, jan./abril 2012.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO. Portaria nº 2.282, de 27 de agosto de 2020. Minis-


tério da Saúde, 28 ago. 2020. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/
dou/-/portaria-n-2.282-de-27-de-agosto-de-2020-274644814. Acesso em: 4
out. 2021.

DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO. Portaria nº 2.561, de 23 de setembro de 2020.


Ministério da Saúde, 24 set. 2020. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/
web/dou/-/portaria-n-2.561-de-23-de-setembro-de-2020-279185796. Aces-
so em: 4 out. 2021.

DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO. Portaria nº 1.489, de 4 de junho de 2020. Minis-


tério da Saúde, 4 jul. 2020. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/

288 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 273-291, jan./jun., 2022. (18)


THAIS J. WENCZENOVICZ; NOELEN A. WEISE DA MAIA
COVID-19 e as mulheres brasileiras: direitos sexuais e direitos reprodutivos entre a crise política e a crise sanitária

dou/-/portaria-n-1.489-de-4-de-junho-de-2020-260306362. Acesso em: 4


out. 2021.

DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO. Portaria nº 1.490, de 04 de junho de 2020. Minis-


tério da Saúde, 5 jul. 2020. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/
dou/-/portaria-n-1.490-de-4-de-junho-de-2020-260306772 Acesso em: 4
out. 2021.

DÍAZ, Margarita; CABRAL, Francisco; SANTOS, Leandro. Os direitos sexuais e


reprodutivos. 1994. Disponível em: http://www.reprolatina.institucional.ws/
site/respositorio/materiais_apoio/textos_de_apoio/Os_direitos_sexuais_e_
direitos_reprodutivos.pdf. Acesso em: 4 out. 2021.

FEDERICI, Silvia. O Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva.


Tradução de coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: a vontade de saber. Tradução de


Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 6. ed. Rio
de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2017.

GARRAIO, Júlia; TOLDY, Teresa. “Ideologia de género”: origem e disseminação


de um discurso antifeminsta. Mandrágora, São Paulo, v. 26, n.1, 2020, p.129-
155. Disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/
index.php/MA/article/view/10283/7272. Acesso em: 6 mai. 2022.

GONZAGA, Paula R. B.; GONÇALVES, Letícia; MAYORGA, Cláudia. Conserva-


dorismo distópico à brasileira: direitos sexuais e reprodutivos e a pandemia
da covid-19 no Brasil. Revista Feminismos, Salvador, v. 9, n.1 jan./abr, 2021.
Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/feminismos/article/
view/44330/24677. Acesso em: 4 out. 2021.

JIMÉNEZ, Carla. Menina de 10 anos violentada faz aborto legal, sob alarde
de conservadores à porta do hospital. El país, 16 ago. 2020. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-16/menina-de-10-anos-violentada-
-fara-aborto-legal-sob-alarde-de-conservadores-a-porta-do-hospital.html.
Acesso em: 4 out. 2021.

KRENAK, Ailton. O amanhã não está à venda. Companhia das Letras, 2020.

MACHADO, Maria das Dores Campos. O neoconservadorismo cristão no

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 273-291, jan./jun., 2022. (18) 289


THAIS J. WENCZENOVICZ; NOELEN A. WEISE DA MAIA
COVID-19 e as mulheres brasileiras: direitos sexuais e direitos reprodutivos entre a crise política e a crise sanitária

Brasil e na Colômbia. In: BIROLI, Flávia; VAGGIONE, Juan Marco; MACHADO,


Maria das Dores Campos. Gênero, neoconservadorismo e democracia: disputas
e retrocessos na América Latina. São Paulo: Boitempo, 2020.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Nota Técnica Nº 16/2020-COSMU / CGCIVI / DAPES /


SAPS/MS. Brasil, 1 jul. 2020. Disponível em: https://kidopilabs.com.br/planifi-
casus/upload/covid19_anexo_46.pdf. Acesso em: 4 out. 2021.

MISKOLCI, Richard; CAMPANA, Maximiliano. “Ideologia de gênero”: notas


para a genealogia de um pânico moral contemporâneo. Revista Sociedade e
Estado, Brasília, v. 32, n. 3, p. 725-747, set./dez. 2017. Disponível em: https://
www.scielo.br/j/se/a/Ns5kmRtMcSXDY78j9L8fMFL/?format=pdf&lang=pt.
Acesso em: 4 out. 2021.

PASSARINHO, Nathalia; FRANCO, Luiza. Com 55% de gestações não planejadas,


Brasil falha na oferta de contracepção eficaz. BBC News - Brasil, 26 jun. 2018.
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-44549368. Acesso
em: 5 out. 2021.

PLATAFORMA DE CAIRO. Relatório da Conferência Internacional sobre Popula-


ção e Desenvolvimento. Cairo, 1994. Disponível em: http://www.unfpa.org.br/
Arquivos/relatorio-cairo.pdf. Acesso em: 4 out. 2021.

QUEIROZ, Antônio Augusto de. O Congresso mais conservador dos últimos


quarenta anos. Le Monde Diplomatique - Brasil, 5 nov. 2018. Disponível em:
https://diplomatique.org.br/o-congresso-mais-conservador-dos-ultimos-
-quarenta-anos/. Acesso em: 4 out. 2021.

RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil


1890/1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

RATZINGER, Joseph. La sal de la tierra: Quién es y cómo piensa Benedicto XVI.


s. l: Ediciones Palabra, 1997.

RODRIGUES, Renata. Na ONU, Brasil promove desmonte de política progressista


de direitos humanos. Gênero e Número, 19 set. 2019. Disponível em: https://
www.generonumero.media/onu-brasil-conservadorismo-direitos-humanos/
Acesso em: 4 out. 2021.

ROHDEN, Fabíola. A arte de enganar a natureza: contracepção, aborto e infan-

290 RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 273-291, jan./jun., 2022. (18)


THAIS J. WENCZENOVICZ; NOELEN A. WEISE DA MAIA
COVID-19 e as mulheres brasileiras: direitos sexuais e direitos reprodutivos entre a crise política e a crise sanitária

ticídio no início do século XX. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2003.

SANTOS, Boaventura de Sousa Santos. A cruel pedagogia do vírus. Almedina:


s. l, 2020. Disponível em: https://www.abennacional.org.br/site/wp-content/
uploads/2020/04/Livro_Boaventura.pdf. Acesso em: 05 out. 2021.

SEGATO, Rita Laura. La guerra contra las mujeres. Madrid: Traficantes de


Sueños, 2016. Disponível em: https://www.traficantes.net/sites/default/files/
pdfs/map45_segato_web.pdf . Acesso em: 5 out. 2021.

SILVA, Vitória Régia da; FERREIRA, Letícia; LARA, Bruna de. Pandemia dificul-
ta acesso a contraceptivos no sistema de saúde. 20 abr. 2020. Disponível em:
https://www.generonumero.media/pandemia-dificulta-acesso-contracepti-
vos-no-sistema-de-saude/ Acesso em: 5 out. 2021.

UNICEF. Análise das ocorrências de estupro de vulnerável no estado de São Pau-


lo. 2020. Disponível em: https://soudapaz.org/o-que-fazemos/conhecer/ana-
lises-e-estudos/analises-e-estatisticas/boletim=-sou-da-paz-analisa/?show-
documentos#4484. Acesso em: 4 out. 2021.

Recebido em: 16 de novembro de 2021.


Aprovado em: 1 de maio de 2022.

RIDH | Bauru, v. 10, n. 1, p. 273-291, jan./jun., 2022. (18) 291


Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos
Observatório de Educação em Direitos Humanos / Unesp
ISSN: 2357-7738 (online)

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

POLÍTICA EDITORIAL
1. Foco e escopo:
RIDH – Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos é uma publicação semestral do OEDH
– Observatório de Educação em Direitos Humanos da Unesp. Seu objetivo abrir espaços
interdisciplinares para publicação de artigos, ensaios, resenhas e outros textos sobre o tema
geral dos direitos humanos. As publicações abordarão aspectos epistemológicos, filosófi-
cos, metodológicos, como também relatos e práticas de atuação em direitos humanos, e
serão produzidas por pesquisadores e estudiosos brasileiros e de outros países, de natureza
acadêmica e científica. Dessa maneira, a RIDH estará contribuindo para informar, divul-
gar, aprofundar, debater, analisar e fomentar de forma ampla o tema dos direitos humanos.

2. Políticas de seção:
A RIDH – Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos possui atualmente 5 seções: 1) pu-
blicação de dossiês, 2) artigos diversos 3) Resenha de publicações recentes, 4) Entrevistas e
5) documentos.

SUBMISSÕES
1. Política de acesso livre:
A RIDH – Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos aceita submissões via internet (via
e-mail) e, em caso especial, submissões pelo Correio, destinadas aos endereços dos seus
editores (com cópias impressa e em CD-ROM).

A RIDH publica artigo de pesquisador com titulação de doutor.


Mestre e/ou aluno regular de pós-graduação stricto sensu também
podem submeter artigo desde que tenha um doutor como coautor.

293
2. Diretrizes para autores:
 Normas gerais:
RIDH – Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos aceita textos inéditos nos idiomas
português, espanhol, sob forma de artigos, ensaios e resenhas de livros que versem sobre o
tema geral dos direitos humanos, produzidos interdisciplinarmente em qualquer das áreas
do conhecimento científico e acadêmico: as Ciências Humanas, as Ciências da Saúde, as
Ciências Biológicas, as Ciências Exatas, Artes e outras.

A publicação dos trabalhos será condicionada a pareceres cegos de profissionais acadêmi-


cos e científicos indicados ad hoc exclusivamente pelos Editores e membros do Comitê Edi-
torial da RIDH – Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos. Será garantido o anonimato
dos pareceristas em todo o processo de avaliação dos textos, inclusive após a publicação.
Serão comunicadas aos autores eventuais necessidades de alteração na estrutura, tamanho,
título, etc. dos textos, segundo os interesses gerais da RIDH – Revista Interdisciplinar de
Direitos Humanos, cuja aceitação será acordada com os autores.

Os textos devem ser apresentados via e-mail ou pelo sistema de gerenciamento virtual da
RIDH – Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos, nos seguintes parâmetros:

 Apresentação dos originais:


Os artigos e ensaios deverão ser apresentados em português, e espanhol. Uma vez tendo
parecer aprovado, o autor poderá, se quiser, apresentar também a versão do texto em inglês
para publicação no mesmo número da revista.

Os artigos e ensaios deverão ter no mínimo 10 páginas e no máximo 25 páginas (incluídas


as referências finais) digitadas em formato Word 97-2003 (ou superior), em fonte Times
New Roman, tamanho 12, espaço 1,5 entrelinhas, margens de 3 cm e destaques em itálico.

As resenhas deverão ter no máximo 5 páginas digitadas. Nelas não deve haver notas de
rodapé.

Gráficos e tabelas deverão ser apresentados em arquivos de imagens (JPEG) em boa re-
solução e estarem acompanhados das respectivas planilhas originais, com a indicação das
unidades em que se expressam os valores, assim como a fonte dos dados apresentados.

As notas devem ser reduzidas ao mínimo e colocadas no pé de página. As notas de rodapé


devem ser substantivas, restringindo-se a comentários adicionais e curtos, descartando-se
comentários excessivamente extensos ou desnecessários à compreensão geral do texto.

294
Todos os textos deverão vir acompanhados de resumos em português e espanhol e abstract
em inglês. Os resumos devem ter de 150 a 500 palavras, padrão acadêmico e palavras-chave
em número mínimo de três e máximo de cinco.
Os textos devem vir acompanhados dos seguintes dados dos autores: nome, maior titulação
acadêmica, vínculo institucional acadêmico ou científico atual, e-mail.

As referências bibliográficas devem estar inseridas no texto, com citações apresentadas


no formato autor/data/página, ex: (BOBBIO, 1992, p. 46). No final do artigo, deverão ser
apresentadas as referências bibliográficas completas, em ordem alfabética, segundo a NBR
6023: 2018

- Declaração
Junto com o texto, o(s) autor(es) deve(m) enviar a RIDH uma Declaração, afirmando sua
autoria do artigo e que este não se encontra publicado e nem em processo de avaliação por
outro periódico ou livro.

- Principais parâmetros:

Livro:
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

Capítulo de livro:
ARENDT, Hannah. Reflexões sobre Little Rock. In: ARENDT, Hannah. Responsa-
bilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, p. 261-281, 2004.

Artigo em revista:
ANDREWS, George Reid. Democracia racial brasileira 1900-1990: um contraponto
americano. Estudos Avançados, São Paulo, v. 11, n. 30, p. 95-115, 1997.

Publicação em meio eletrônico:


FERNANDES, Florestan. A Revolução burguesa. Trans/Form/Ação [online]. 1975,
v. 2, p. 202-205. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0101-31731975000100012&lng=pt&nrm=. Acesso em: 8 out. 2011.

Trabalho apresentado em evento


PRADO, R. A educação no futuro. In: CONFERÊNCIA NACIONAL DE EDUCA-
ÇÃO, 1, 1997, Curitiba. Anais [...] Brasília: INEP, 1997. p. 103-106.

Obs. Referências alinhadas à esquerda.

295
3. Direito autoral

Autores mantêm os direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação,


com o trabalho simultaneamente licenciado sob a Creative Commons Attribution Licen-
se que, permitindo o compartilhamento do trabalho com reconhecimento da autoria do
trabalho e publicação inicial nesta revista.

Autores têm autorização para assumir contratos adicionais separadamente, para distribui-
ção não-exclusiva da versão do trabalho publicada nesta revista (ex.: publicar em repositó-
rio institucional ou como capítulo de livro), com reconhecimento de autoria e publicação
inicial nesta revista.

4. Política de privacidade:

Os nomes e endereços informados nesta revista serão usados exclusivamente para os ser-
viços prestados para publicação, não sendo disponibilizados para outras finalidades ou a
terceiros.

Editoria

296
OBSERVATÓRIO DE EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS / Unesp

O Observatório de Educação em Direitos Humanos da Unesp constitui-se num espaço


institucional acadêmico permanente de investigação, formação, divulgação e promoção da
cultura dos direitos humanos. O OEDH está relacionado com outras universidades, orga-
nizações sociais, movimentos populares, políticas públicas locais, regionais e nacionais.

O OEDH foi instalado em 10 de dezembro de 2007, no Campus da Unesp, de Bauru-SP, na


Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação. Tem vínculo institucional com o IPPRI
– Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Unesp e ao Departamento de
Ciências Humanas/FAAC.

As diretrizes do OEDH estão em sintonia com o Plano Nacional de Educação em Direitos


Humanos, 2006, da SDH - Secretaria dos Direitos Humanos e com as Diretrizes Nacionais
para a Educação em Direitos Humanos, 2012, do MEC - Ministério da Educação.

* * *

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA


“Júlio de Mesquita Filho”

Comitê de Gestão do OEDH


Clodoaldo Meneguello Cardoso – Presidente
Tânia Suely A. Marcelino Brabo – Vice
Eli Vagner Francisco Rodrigues – Coordenador de projetos e eventos
Ari Fernando Maia – Coordenador de pesquisa

CONTATO
Observatório de Educação em Direitos Humanos
Av. Luiz Edmundo C. Coube, 14-01, CEP 17.033-360, Bauru-SP, Brasil
tels. 55 (14) 3103 6172 / 6064
www.unesp.br/observatorio_ses oedh@unesp.br

297

Você também pode gostar