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RIDH | publicação semestral | Bauru | v. 10, n. 1 | p. 1-297 | jan. /jun., 2022 (18)
EXPEDIENTE EQUIPE EDITORIAL
Contato Editores
Prof. Dr. Clodoaldo Meneguello Cardoso Clodoaldo Meneguello Cardoso (Unesp-Bauru)
OEDH - OBSERVATÓRIO DE EDUCAÇÃO Ari Fernando Maia (Unesp-Bauru)
EM DIREITOS HUMANOS / Unesp
Av. Luiz Edmundo Carrijo Coube, 14-01 - (sala 69) Comitê Editorial Executivo
Vargem Limpa - CEP 17033-360 - Bauru, SP - Brasil Ana Maria Klein (Unesp-São José do Rio Preto)
Tels. 55 (14) 3103 6172 / 3103 6064 Arlete Maria Francisco (Unesp-Pres. Prudente)
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Eli Vagner Francisco Rodrigues (Unesp-Bauru)
Revisão José Carlos Marques (Unesp-Bauru)
Editoria Juarez Tadeu de Paula Xavier (Unesp-Bauru)
Nilma Renildes da Silva (Unesp-Bauru)
Capa
Cristina de Souza Corat Conselho Editorial
Inky Design - Unesp Aida Monteiro (UFPE)
Alberto Damasceno (UFPA)
Diagramação Ana Maria Rodino (IIDDHH- San José de Costa Rica)
Érika Woelke Artur Stamford (UFPE)
Leonardo Lucas de Oliveira Neves Bethania Assy (PUC-RJ)
Dagoberto José Fonseca (Unesp-Araraquara)
Produção Gráfica Edson Teles (Unifesp)
Canal6 Projetos Editoriais
Enoque Feitosa (UFPB)
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Fábio Barbosa de Freitas (UFCG)
Fernanda Bragato (Unisinos)
Giancarla Brunetto (UFRGS)
Giuseppe Tosi (UFPB)
José Sérgio (USP)
José Luiz Sanfelice (Unicamp)
João Ricardo Dornelles (PUC-RJ)
Julio C. Llanan Nogueira (UNR-Rosário/Argentina)
Helena Esser (UFG)
Lúcia de Fátima Guerra (UFPB)
Versão on-line da RIDH - ISSN: 2357-7738 Márcia dos Santos Macêdo (UFBA)
www2.faac.unesp.br/ridh3 Maria Nazaré Tavares (UFPB)
Mariana Blengio Valdés (UdelaR/Uruguai)
Marco Mondaini (UFPE)
Marlise Miriam de Matos Almeida (UFMG)
Maria das Graças de P. Britto (UFPel)
Miriam Pillar Grossi (UFSC)
Nair Heloisa Bicalho de Souza (UnB) Iraíde Marques de Freitas Barreiro (Unesp-Assis)
Naldson Ramos da Costa(UFMT) Itamar Nunes Silva (UFPB)
Paulo Carbonari (IFIBE) Ivo Pons (Mackenzie)
Ricardo Barbosa de Lima (UFG) Jair Pinheiro (Unesp-Marília)
Rosa Maria Godoy (UFPB) João Carlos Jarochinski Silva ( UFRR)
Sandra Unbehaum (Fund. Carlos Chagas) José Brás Barreto de Oliveira (Unesp-Bauru)
Sheila Stolz (FURG) José Luiz Guimarães (Unesp-Assis)
Sólon Viola (Unisinos) José Renê Trentim (Unicamp)
Zilda Márcia Gricoli Iokoi (USP) Juarez Tadeu de Paula Xavier (Unesp-Bauru)
Luana Rosário (UESC)
Conselho Consultivo Lúcia de F. Guerra Ferreira (UFPB)
Adalberto da Silva Retto Júnior (Unesp-Bauru) Julio C. Llanan Nogueira (UNR-Rosário/Argentina)
Abraham Magdenzo (Cátedra da Unesco em DH-Chile) Laércio Fidelis Dias (Unesp-Marília)
Agnaldo dos Santos (Unesp-Marília) Larissa Maués Pelúcio Silva (Unesp-Bauru)
Alberto Damasceno (UFPA) Leonardo Lemos de Souza (Unesp-Assis)
Aline da Silva Nicolino (UFG) Luciana de Oliveira Dias (UFG)
Alonso Bezerra de Carvalho (Unesp-Assis) Luís Antônio Francisco de Souza (Unesp-Marília)
Ana Maria Klein (Unesp-São José do Rio Preto) Magno Luiz Medeiros da Silva (UFG)
André Varella (UFF-RJ) Maria Goretti Dal Bosco (UFG)
Antônio Euzébios Filho (USP) Maria Ribeiro do Valle (Unesp-Araraquara)
Antônio Hilário Aguilera Urquiza (UFMS) Maria Salete Kern Machado (UnB)
Antônio Mendes da Costa Braga (Unesp-Marília) Mariana Blengio Valdés (UdelaR-Montevidéu)
Antônio Roberto Espinosa (Unifesp) Maximiliano Martin Vicente (Unesp-Bauru)
Ari Fernando Maia (Unesp-Bauru) Nilma Silva (Unesp-Bauru)
Arlete Maria Francisco (Unesp-Pres. Prudente) Paula Ariane Freire (IBEJ - Uberaba)
Brunela Vieira de Vincenzi (UFES) Paulo Ribeiro Rodrigues da Cunha (Unesp-Marília)
Carlo Napolitano (Unesp-Bauru) Petrônio de Tílio Neto (Mackenzie)
Carlos Ugo Santander (UFG) Raul Aragão Martins (Unesp- S. J. do Rio Preto)
Cássia Letícia Carrara Domiciano (Unesp-Bauru) Ricardo Barbosa de Lima (UFG)
Célia Maria Rodrigues da Costa Pereira (UFPE) Rodolfo Puttini (Unesp-Botucatu)
Celma Tavares (UFPE) Rodrigo Alves Correia (Fac. AVEC de Vilhena -RO)
Cerise de Castro Campos (UFG) Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos (Unesp-Marília)
César Augusto Silva da Silva (UFGD-PB) Rosângela de Lima Vieira (Unesp-Marília)
Cláudio Roberto Y Goya (Unesp-Bauru) Sandra Eli Sartoreto de O. Martins (Unesp-Marília)
Cristiane Famer Rocha (UFRGS) Sílvia Ap. de Sousa Fernandes (Unesp-Marília)
Cristina Grobério Pazó (Fac. de Direito de Vitória) Solange Ramires Daher (Unesp-Botucatu)
Dagoberto José Fonseca (Unesp-Araraquara) Suzana Sacavino (Novamerica-RJ)
Danilo Rothberg (Unesp-Bauru) Telma Regina de Paula Sousa (Unimep-Piracicaba)
Douglas Antônio Rocha Pinheiro (UnB) Raquel Cabral (Unesp-Bauru)
Edinilson Donisete Machado (Univem-Marília) Roberto Goulart Menezes (UnB)
Edmundo Antonio Peggion ( Unesp/FCL-Araraquara) Teófilo Marcelo de Arêa Leão Jr. (Univem-Marília)
Emina Márcia Nery dos Santos (UFPA) Vera Lúcia Messias Fialho Capellini (Unesp-Bauru)
Evandro Fiorin (Unesp-P. Prudente) Washington Cesar Shoiti Nozu (UFGD)
Fábio Metzger (FMC/UNIESP-Caieiras/SP) Wellington Lourenço de Almeida (UnB)
Fernanda Bragato (Unisinos)
Fernanda Henriques (Unesp-Bauru)
Flávia Queiroga Aranha de Almeida (Unesp/Botucatu)
Flávia Roberta Benevenuto de Souza (UFAL)
Gustavo José de Toledo Pedroso (Unesp-Franca) Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos
Guilherme de Almeida (USP) Av Eng Luiz Edmundo Carrijo Coube, nº 14-01 (sala 69)
Helena Esser (UFG) Vargem Limpa - CEP 17.033-360 - Bauru-SP
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Henrique Sartori de Almeida Prado (UFGD-PB)
ESTA REVISTA FOI PATROCINADA PELA
Semestral
ISSN - 2318-9568
000
Editorial
7 Clodoaldo Meneguello Cardoso
É um tempo de guerra; é um tempo sem sol
DOSSIÊ:
11 Fábio Santos de Andrade; Reginaldo Santos Pereira
Apresentação: Pessoas em situação de rua: a luta pelo direito de viver
115 Fábio Santos de Andrade; Reginaldo Santos Pereira; Armelinda Borges da Silva
Crianças e adolescentes em situação de rua: relações entre a rua, o trabalho e a
escola
Educação tecnológica
235 Ana Carolina Corrêa Salvio; Helder Antonio da Silva
Aproximações conceituais entre educação em direitos humanos e
as bases teóricas da educação profissional e tecnológica
Comunicação
255 Janaina Soares Gallo e Anderson Vinicius Romanini
‘Direitos humanos para humanos direitos’: como um conceito
distorcido de Direitos Humanos se dissemina como meme
Saúde pública
273 Thais Janaina Wenczenovicz; Noelen Alexandra Weise da Maia
COVID-19 e as mulheres brasileiras: direitos sexuais e direitos
reprodutivos entre a crise política e a crise sanitária
Editorial
O mundo atual está vivendo uma guerra entre duas visões imperialis-
tas, dissimuladas em ataques localizados e batendo na eterna tecla dos pode-
rosos para justificar a violência: a legítima defesa. Na realidade o que os move
é a expansão de seu campo de influência econômica. Não aprendemos que
não há paz entre vencedores e vencidos.
O mundo passou (ainda passa?) por uma pandemia que já dizimou milhões
de vidas e fez alastrar ainda mais a extrema pobreza, numa verdadeira pandemia
das desigualdades. Mesmo assim não aprendemos que não há paz com fome.
O planeta está dando sinais claros de uma crise climática pela não
superação do extrativismo, pela destruição das florestas e pela poluição da
água, terra e ar. Não aprendemos ainda que o planeta não nos pertence, mas
que nós a ele pertencemos.
No Brasil também vivemos em meio de uma guerra, com bombardeios
diários à dignidade humana. Vivemos sob um autoritarismo institucionalizado,
que nega o valor da cultura e das ciências; promove o desmonte das políticas
públicas e dos conselhos de participação social; incentiva preconceitos; é coni-
vente com a devastação das florestas e do genocídio de indígenas; e alimenta,
pelas redes sociais, a cultura da violência e violação dos direitos humanos.
Aqui, nossas escolas também sofrem massacres ideológicos, quando a
gestão democrática é invadida pela administração autoritária disciplinadora;
quando o docente é amordaçado ao discutir questões de gênero e quando o
ensino domiciliar tira do aluno seu direito de formação na convivência social
escolar. Esse é um ataque ao nosso futuro.
E mais. A face mais cruel da realidade brasileira está escancarada nas ruas
em que tentam sobreviver milhares de pessoas; nas filas intermináveis de desem-
pregados; na imensidão de nossas favelas e na violência que tortura e mata a céu
aberto. Fascismo e miséria seriam, hoje, a terrível notícia de que fala Brecht?
Não aprendemos muito, enquanto nação, o que é a democracia, em
que todos possam ter efetivamente garantidos seus direitos. A crise da demo-
cracia se enfrenta com mais democracia; com uma democracia social partici-
pativa, socialmente justa, culturalmente livre e solidária com a humanidade
de hoje e a do futuro.
***
Nesse tempo sombrio, RIDH 18 vem trazer sua contribuição para dis-
sipar as nuvens escuras, com estudos e pesquisas que mostram causas con-
junturais e estruturais de violações dos direitos humanos e apontam possíveis
caminhos de sua superação.
***
Apresentação
Pessoas em situação de rua: a luta pelo direito de viver
A rua sempre foi um lugar de passagem que nos conduz aos destinos.
Um lugar de trabalho, de luta e de festa. Na rua, direitos foram conquistados
e censurados; líderes foram eleitos e depostos. A rua sempre foi um lugar de
movimento, de ação, de liberdade e de vida.
A rua também é o não-lugar dos que tiveram seus direitos básicos nega-
dos e dela e nela sobrevivem. São crianças, adolescentes, adultos e idosos, que
desenvolvem táticas lícitas ou ilícitas, para garantir a vida individual ou coletiva.
Essas são as pessoas que, por motivos diversos, deixaram suas casas de forma
temporária ou definitiva e estão nas ruas lutando pela sobrevivência.
O fenômeno da população em situação de rua no Brasil é histórico e
seus primeiros registros datam do século XVI. Com o passar dos anos as pes-
soas em situação de rua foram se adaptando ao tempo e espaço, tornando-se
cena comum em todo o território brasileiro no século XX. No decorrer da his-
tória, essas pessoas ganharam diversos nomes como “mendigo”, “maltrapilho”,
“marginal”, “esmoler”, “indigente”, “mendicante”, “pedinte”, dentre muitos ou-
tros, mas é a negação de direitos, a violência e a pobreza extrema que sempre
as fizeram buscar a rua como espaço de moradia e/ou sobrevivência. Cabe
destacar que as pessoas em situação de rua não são um grupo homogêneo;
elas se dividem em diversos grupos com características distintas e o que os
iguala é a busca pela sobrevivência na rua.
Cotidianamente as pessoas em situação de rua são percebidas por
toda a parte: nos bancos de praça, calçadas, semáforos, porta de lojas. São
quase cena fixa da paisagem urbana de muitas cidades, perdendo suas iden-
tidades, passando a ser parte do local onde são visualizadas.
Nos últimos anos o número de pessoas em situação de rua tem cres-
cido principalmente nos grandes centros urbanos, passando a ser notícia fre-
quente nos meios de comunicação. Esse número ganhou mais notoriedade
no atual contexto político, com agravantes causados pela Covid-19 e pela fal-
ta de políticas públicas de qualidades capazes de garantir direitos de forma
efetiva e promover a justiça social. O que marca o tempo atual é o cresci-
mento da violência gratuita sofrida por pelas pessoas em situação de rua por
parte do Estado ou da sociedade, em contraste com as ações de solidariedade
promovidas por grupos sociais, que tentam minimizar o problema.
Na tentativa de compreender um pouco mais os fenômenos que en-
volvem o estar em situação de rua, propomos o dossiê Pessoas em situação
de rua: a luta pelo direito de viver. Nessa trilha, buscamos provocar pesqui-
sadores e pesquisadores a pensar as pessoas situações de rua, seus lugares e
não-lugares, seu mundo visível e invisível, estabelecendo um diálogo com os
direitos humanos, principalmente sobre a negação dos mesmos. Para tanto,
o dossiê foi construído com sete artigos que apresentam as causas e motivos
de ser e estar em situação de rua, evidenciando os significantes e significados
que nela são construídos.
O primeiro artigo, “População em situação de rua, expressão da desi-
gualdade social”, apresentado pelos autores João Clemente de Souza Neto,
Orlando Coelho Barbosa e Leandro Alves Lopes, buscou compreender a di-
nâmica das pessoas em situação de rua e as vinculações com a desigualdade
social. Partem da percepção do fenômeno e da análise do modo pelo qual as
políticas públicas atuam na cidade de São Paulo. Nessa trilha, o texto eviden-
cia que as políticas locais continuam a reproduzir a desigualdade e a negar
direitos básicos aos que estão em situação de rua.
O segundo artigo, intitulado “Marcas da precariedade da pandemia de
COVID-19 na vida de mulheres em situação de rua”, das autoras Thalita Catarina
Decome Poker e Stephanie Caroline Ferreira de Lima, reflete sobre o contex-
to atual das mulheres em situação de rua diante da pandemia do COVID-19.
O texto traz um importante debate sobre a promoção e garantia dos direitos
das mulheres em situação de rua e uma análise crítica da violência estrutural e
estruturante naturalizada pelo Estado, que reconhece os corpos femininos em
situação de rua como inteligíveis no campo das políticas públicas.
O terceiro, “Cidadania e o direito à saúde da população em situação
de rua: um olhar sobre a estratégia do Consultório na Rua” escrito por Maria
Izabel Sanches Costa e Fabiana Santos Lucena, trata de um ensaio que traz
uma reflexão sobre o status de cidadania da população em situação de rua
frente ao acesso à política de saúde brasileira. Nesse contexto, ganha desta-
que a atuação dos profissionais da saúde que estão inseridos na estratégia do
Consultório na Rua.
O artigo, “Pandemia, racialidade e homens negros em situação de
rua”, de Rodrigo Pedro Casteleira, problematiza o entrecruzamento de raça/
cor, masculinidade e pessoas em situação de rua, durante a pandemia do Co-
vid-19. O texto reflete sobre as relações de branquitude vinculadas à raciali-
dade da pele, tanto de pessoas negras como de pessoas brancas, implicando
em alterações nas subjetividades que buscam construir padronizações que
firmam o lugar comum para pessoas negras, em destaque as que estão em
situação de rua.
Em “As violações de direitos humanos da população em situação de
rua na cidade de Curitiba”, Rodrigo Alvarenga e Isabele Cristine Gulisz descre-
Coordenadores
Prof. Dr. Fábio Santos de Andrade
Universidade Federal de Rondônia – UNIR
1 Este artigo é resultado de pesquisas que os autores desenvolvem no Grupo de Estudo e Pesquisa em Pedagogia So-
cial (GEPPS), que tem como foco compreender as formas de apropriação e as estratégias de sobrevivência utilizadas
pela pessoa em situação de vulnerabilidades, bem como as práticas de atendimento.
2 Pós-Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP, professor e pesquisador no Programa de Pós-Graduação EAHC e
do Curso de Pedagogia. Líder do GEPPS; membro do Socius, da Universidade Técnica de Lisboa, do Instituto Ca-
tequético Secular São José, da Associação Civil Gaudium et Spes, da Pastoral do Menor e da rede internacional de
Pedagogia Social. j.clemente@uol.com.br
3 Doutorando em Psicologia Educacional, no Programa de Psicologia do UNIFIEO e membro do GEPPS. ohaicai@
gmail.com
4 Doutorando do Programa de Pós-graduação em Educação, Arte, História da Cultura, da Universidade Presbite-
riana Mackenzie, membro do GEPPS. Atua como Orientador Pedagógico do Centro Social Nossa Senhora do Bom
Parto, Assessor nacional das Escolas de Cidadania e da Pastoral do Menor. leandro.alps1@gmail.com
Introdução
Este artigo visa evidenciar as correlações entre a desigualdade social
e o aumento de pessoas em situação de rua, assim como as estratégias de
sobrevivência dessa população na cidade de São Paulo. No Brasil e no mun-
do, a desigualdade social corrói a coesão social e a democracia. Sob a socie-
dade globalizada e moderna recai o peso de não efetivar o almejado estado
de bem-estar social, com os agravantes da fome, violência, intolerância e da
conivência com a perda de dignidade, invisibilidade, coisificação de pessoas,
fortalecendo a cultura do descarte social, que persiste com diferentes rou-
pagens, desintegra e potencializa paradoxalmente a confiança, a cooperação
e a esperança. Entre as consequências inevitáveis, estão a perda do sentido
existencial, as dificuldades de concretização dos sonhos, a reificação da espe-
rança e dos desejos. Numa realidade, em que são
5 Fundado em 1946, atende mais de 10.000 pessoas por dia, entre crianças, adolescentes, jovens, idosos, famílias e
pessoas em situação de rua, dado disponível em: https://bompar.org.br/. Acesso em: 1 fev. 2022.
identificadas por seus nomes sociais, Samira e Susy, ambas buscaram São Pau-
lo como opção para melhoria das condições de vida. Susy é do Nordeste do
país está na cidade há nove anos, passou cerca de dois meses na rua e seis
anos em centros de acolhida. Com o trabalho, que iniciou há três anos, Susy
conseguiu morar de aluguel e concluir o ensino médio. Diz não ter feito uso
de álcool ou outras drogas. Samira é da Região Norte do país e está na cidade
há 22 anos, mas vivia na rua desde os 14 anos de idade. Teve que se prostituir
para sobreviver, sofreu diversas violências, fez uso de álcool e outros tipos de
droga. Há nove anos trabalhando no BOMPAR, retomou os estudos e concluiu
a graduação em serviço social.
A entrevista seguiu o formato de ‘vídeo-chamada’ pelo aplicativo goo-
gle meet, com duração de uma hora cada, sendo previamente autorizada a
gravação. Os dados coletados foram processados e analisados. Durante a en-
trevista, foram abordados os seguintes itens: Fale um pouco sobre sua traje-
tória de rua. Por que você veio para São Paulo? Sobre a questão de gênero,
nos serviços que acolhem a população de rua existem diferenças? Hoje, na
condição de trabalhadora, como você lida com os conflitos e as violências
de gênero? Quais são as maiores dificuldades da situação de estar na rua?
Quais são suas críticas e o que você mudaria nesta política pública? Como foi
a transição da rua para o trabalho? O que você acha do aumento do número
de pessoas em situação de rua?
Na análise dos depoimentos e documentos, foi possível evidenciar os
múltiplos rostos da pessoa em situação de rua e os limites e possibilidades
das políticas e dos serviços.
Por este olhar, acreditamos que coexistam nas políticas de direitos hu-
manos um controle que oprime tanto quanto liberta. A democracia e as práti-
cas de solidariedade não visam somente à melhoria das condições de vida das
pessoas, elas permitem, reproduzir a desigualdade, manter o processo de ex-
clusão social, aumentar a produção e a riqueza (SOUZA NETO, 2003), já que “[...]
a sociedade do controle busca criar inúmeros mecanismos de eliminação das
subversões [...]” (HARDT, 2000, p. 372). As políticas de atendimento não podem
servir a isso, transformando a assistência em instrumento de exploração.
Na sociedade capitalista, o sujeito é estimulado, simultaneamente,
a ser agente da biofilia pela promoção da vida, e da necrofilia, movido pela
morte e destruição, preso ao fracasso e ao luto. A necrofilia característica dos
espíritos tirânicos, como o de Hitler, impregna, de certo modo, os políticos
corruptos que desviam os recursos dos fundos públicos para interesses pri-
vados. Em direção oposta, a biofilia traz, na sua essência o amor, a alegria de
viver e a tendência a preservar a vida e a lutar contra sua destruição. É neces-
sário compreender estas questões na perspectiva das políticas sociais brasi-
leiras voltadas à população em situação de rua.
ANO AÇÃO
1989 Criação dos centros de serviços para a população em situação de rua.
1990 Reconhecimento pela Prefeitura do trabalho dos catadores de papel das ruas pelo Decreto
Municipal nº 28.649/89.
1991 Primeiro levantamento da população em situação de rua da área central da cidade de São
Paulo, uma parceria entre a Prefeitura de São Paulo e ONGs da cidade, sob a coordenação da
Secretaria Municipal de Bem-Estar Social.
1992 Encontro Internacional paralelo à Cúpula Mundial do Meio Ambiente, marco do debate
sobre a população em situação de rua no Brasil, sob a coordenação da Secretaria Municipal
de Bem-Estar Social.
2000 Primeiro Censo da população em situação de rua realizado pela Fundação Instituto de
Pesquisas Econômicas - FIPE, sob contrato da Secretaria Municipal de Assistência Social da
Prefeitura.
2003 Contagem da população em situação de rua da cidade de São Paulo, realizada pela
Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas - FIPE, sob contrato da Secretaria Municipal de
Assistência Social da Prefeitura.
2009 Segundo Censo da População em Situação de Rua, realizado pela Fundação Instituto de
Pesquisas Econômicas - FIPE, sob contrato da Secretaria Municipal de Assistência Social
Prefeitura.
2009 - 20010 Pesquisa Socioantropológica Trajetória de Vida da População atendida nos serviços de ac-
olhimento para adultos em situação de rua no município de São Paulo, realizada pelo CERU
- Centro de Estudos Rurais e Urbanos da USP e Secretaria de Assistência e Desenvolvimento
Social da Prefeitura de São Paulo.
Fonte: Quadro elaborado pelos autores a partir dos dados de Silva, 2012, p. 30.
Quadro 2 - Quantidade de pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo, série histórica
tem todo um contexto o uso disso, quem é da rua sabe do porquê [...].
(Depoimento da Samira).
[...] nos sofríamos muito, em 2008 sofri uma violência na rua de três ra-
pazes me agrediram tanto que deformaram meu rosto uma outra trans,
Alcione, que já era do movimento LGBT, foi quem me ajudou, eu nem
queria saber de movimento, porque o que eu queria era comer e dor-
mir em lugar seguro. Quando sofri essa violência não quis mais fazer
programa com medo [...] eu fiquei de 2009 a 2013 procurando emprego
e não consegui pelo meu nome, porque na época não tinha o nome so-
cial, a polícia parava a gente, batia na gente e se a gente falasse o nome
social aí que apanhávamos [...]. (Depoimento da Samira).
[...] a sensação que tenho é que preciso fazer o máximo pelas pessoas,
como fizeram comigo. Foi difícil, mas tive algumas pessoas que me aju-
daram. A meritocracia não existe, esse discurso que se consegue só não
é verdadeiro. Precisamos do outro, as pessoas nos atravessam, nem que
seja com uma palavra, elas motivam, e isso me atravessou que tento
retribuir da melhor forma possível. Tive profissionais que me atenderam
de forma diferente e me atravessaram, me acalentaram, me ouviram, e
isso me auxiliou muito. São pequenos detalhes que contribuem para a
mudança. Quando você tem uma pessoa que acredita em você, você
passa a começar a acreditar em si mesma. Quando a pessoa vê você fa-
zendo um desenho e diz nossa que bonito, você tem talento, já pensou
em fazer um curso, nossa isso não custa nada, mas coloca a autoesti-
ma da pessoa lá em cima e isso atravessa a pessoa. Era muito difícil as
pessoas não te tratar como ser humano e a arte me ajudou a retomar
minha identidade, protestar, militar, me engajar. A gente, quando está
na extrema vulnerabilidade, não tem sonhos. Se se perguntar para al-
guém qual o seu sonho para daqui a um mês, a pessoa não sabe dizer.
Quando comecei a participar dos coletivos de arte, comecei a sonhar
novamente, a ter possibilidade de me expressar, a acessar determinado
espaços que nem imaginava, a ganhar um dinheiro com meu trabalho.
Isso vai fazendo você crescer e me imaginar fora da vulnerabilidade. Ja-
mais imaginaria entrar no teatro municipal expressando minha arte.
Trabalhava com a poesia, mas fazíamos performances, um conjunto de
coisas. Mas o importante era estar com pessoas e criar com elas, estar
trocando, com gente que me enxergava, era muito gostoso. Então, eu
queria estar e participar, pois era vista como Susy, não era mais a 122.
Isso fazia muito diferença pra mim. (Depoimento da Susy.)
Minha percepção é de que as questões que fazem, ano após ano, a po-
pulação de rua aumentar é que realmente, e falo da questão social e
jogo a responsabilidade ao poder público, eles não querem resolver
essas questões. As pessoas correm pra São Paulo, pois ela dá oportuni-
dade que outros lugares não têm. É muito mais fácil sobreviver em São
Paulo. Aqui se você aprender a se virar não passa fome. Agora, outra
questão que levou muita gente para a vulnerabilidade é que ao mesmo
tempo que São Paulo tem essas oportunidades, São Paulo é um lugar
impossível de se viver, pois ela é muito cara, se manter está quase im-
possível, São Paulo não é feita pra quem não tem dinheiro, o aluguel é
muito caro, quem ganha o salário-mínimo não vive, sobrevive. Para vir
para São Paulo, tem que ter recurso, caso contrário não consegue sair
da vulnerabilidade. São Paulo, como é gerida, ela torna-se fermentado-
ra de pessoas vulneráveis. Você passa nas praças e vê barracas, famílias
morando na rua. Se não mudarmos a economia, porque São Paulo é
rica, mas se continuarmos sendo permissivos a esse tipo de política e
economia, nada mudará. Na minha concepção, não existe de fato um
projeto para mudar a situação de vulnerabilidade. (Depoimento da
Susy).
Referências
BRASIL. Casa Civil. Decreto Presidencial nº. 7.053, de 23 de dezembro de
2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu
Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras
providências. Legislação. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/
fed/decret/2009/decreto-7053-23-dezembro-2009-599156-publicacaoorigi-
nal-121538-pe.html.
DEMO, Pedro. Solidariedade como efeito do poder. São Paulo: Cortez, 2002.
DUPAS, Gilberto. Economia global e exclusão social. São Paulo: Paz e Terra,
2001.
FERNANDES, Florestan (org.). Marx e Engels. São Paulo: Ática, Coleção Gran-
des Cientistas Sociais, 1989.
HARDT, Michael. A sociedade mundial de controle. In: ALLIEZ, Éric (org.). Gil-
les Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2000, p. 357-372.
LOPES, Leandro Alves. Uma narrativa sobre a formação dos educadores sociais
no Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto: percepções sobre a práxis e o
desenvolvimento profissional. Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e
História da Cultura) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2020.
PASSETI, Edson. Anarquismos e sociedade de controle. São Paulo: Cortez, 2003.
SILVA, Cláudia Lucia da. Estudos sobre população adulta em situação de rua:
campo para uma comunidade epistêmica? Dissertação (Mestrado – Programa
de Estudos em Serviço Social). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
2012.
Resumo: Este artigo tem como objetivo refletir sobre o contexto atual das
mulheres em situação de rua diante da pandemia do COVID-19. Para lidar
com a questão apresentada, trabalhamos com perspectivas teóricas como
os aforismos sobre vidas precárias e corpos de enquadramento no contexto
de vulnerabilidade, como proposto por Butler (2015; 2019; 2020). Junto com
a crítica à ausência de uma rede de apoio efetiva e políticas de assistência
social que reconheçam a cidadania dessa população. Assim, realizamos uma
análise crítica da literatura científica, de relatórios e dados oficiais que tratam
das políticas públicas utilizadas neste período de crise sanitária. Os principais
temas encontrados foram: classe social, raça e trabalho como marcadores de
1 Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, Instituto de Psi-
cologia da Universidade de São Paulo – IP/USP. Mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo – PUC/SP. Professora na graduação em Psicologia no Centro Universitário Salesiano de São Paulo –
UNISAL. catarinadecome@gmail.com
2 Professora de Sociologia da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Doutoranda e mestra em Psicologia pela Uni-
versidade Federal do Ceará (UFC) e bacharela em Ciências Sociais pela mesma instituição. tecarolima@gmail.com
Resumen: Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre el contexto ac-
tual de las mujeres en situación de calle frente a la pandemia del COVID-19.
Para abordar la cuestión planteada, trabajamos con perspectivas teóricas
como los aforismos sobre las vidas precarias y el encuadre de los cuerpos en el
contexto de la vulnerabilidad,como propone Butler (2015; 2019; 2020). Junto
con las críticas a la ausencia de una red de apoyo efectiva y políticas de asis-
tencia social que reconozcan la ciudadanía de esta población. Así, realizamos
un análisis crítico de la literatura científica y de los informes y datos oficiales
que abordan las políticas públicas utilizadas en este período de crisis sani-
taria. Los principales temas encontrados fueron: clase social, raza y trabajo
como marcadores de precariedad; y, los factores de riesgo en salud por falta
de garantía de derechos y discriminación. Con estas exposiciones esperamos
contribuir al debate sobre la promoción y garantía de los derechos de las mu-
jeres en situación de calle; y, con ello, poder, a partir de estos escritos, realizar
un análisis crítico de la violencia estructural y estructurante naturalizada por
el Estado, al no reconocer los cuerpos femeninos en situación de calle, como
inteligibles en el campo de las políticas públicas.
Abstract: This article aims to reflect on the current context of homeless wo-
men in the face of the COVID-19 pandemic. To deal with the presented issue,
we work with theoretical perspectives such as the aphorisms about preca-
rious lives and framing bodies in the context of vulnerability, as proposed by
Butler (2015; 2019; 2020). Along with the criticism of the absence of an effec-
tive supportive network and social assistance policies that recognize the citi-
zenship of this population. Thus, we carried out a critical analysis: of the scien-
tific literature and of official reports and data that deal with the public policies
used in this period of health crisis. The main themes found were: social class,
race and work as markers of precariousness; and, the risk factors in health for
lack of guarantee of rights and discrimination. With these exhibitions we hope
to contribute to the debate on the promotion and guarantee of the rights of
women living on the streets; and, with that, to be able, from these writings,
to carry out a critical analysis of the structural and structuring violence natu-
ralized by the State, by not recognizing female bodies in street situations, as
intelligible in the field of public policies.
classe, uma vez que estes são fatores que podem ter um impacto significativo
na identidade, na autonomia e nas experiências dessas mulheres. Outro pon-
to relacionado às especificidades das mulheres em situação de rua, é a perda
do poder familiar e da tutela de seus(as) filhos(as), passando o Estado a ser o
principal responsável por eles (NUNES; SOUSA, 2020).
Junto à perda da tutela de sua prole, as pesquisas consultadas de-
monstram que, em muitos casos, enquanto fenômeno de uma sociedade
estruturalmente patriarcal, mulheres em situação de rua relatam ter sofrido
violências intrafamiliares, seja física ou sexual (GRAMMATIKOPOULOU et al.,
2021; NUNES; SOUSA, 2020). Esses apontamentos corroboram com o último
relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2020), publicado no perí-
odo da pandemia de COVID-19, em que apontam para o aumento de 47% nas
denúncias de tais violências de gênero, quando comparadas ao ano anterior,
constando como principais vítimas desse fenômeno mulheres e crianças.
Para grupos socialmente minorizados como o de mulheres, estar em
situação de rua pode representar, portanto, o rompimento de laços com os
grupos sociais da vida doméstica e da vida no trabalho, sendo uma forma de
(sobre)viver em um mundo em que o individualismo falocêntrico predomina
(SILVA; MACIEL; SOUZA, 2021). Estar em situação de rua, para as mulheres,
pode representar uma exposição maior às situações de violência e opressão,
abruptamente ressaltada junto a outras mazelas estruturais como o patriarca-
do, o racismo e a miséria. Assim, quando mulheres estão em situação de rua,
devido a um processo social que pressiona os grupos mais vulneráveis a viver
esta condição, ocorre um emparelhamento das heranças escravistas e colo-
niais, intensificada pelos tempos de pandemia (NUNES; SOUSA, 2020)
A literatura mostra que um dos principais disparadores para as mulhe-
res estarem em situação de rua é a violência intrafamiliar. Com a pandemia,
pode-se perceber que as tensões intrafamiliar recaíram de modo mais con-
tundente sob os corpos femininos (SANTOS, 2020). Este fenômeno pode ser
interpretado desta maneira, ao recorrermos a premissa de (BEAUVOIR, 1949,
p. 29), de que “basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os
direitos das mulheres sejam questionados”. Vemos o quanto os direitos das
mulheres são facilmente barganhados no cenário de pandemia, uma vez que,
passaram a ser de várias maneiras, na hierarquia das opressões sociais as pri-
meiras a sofrerem com os impactos da dinâmica do vírus pelos ordenamentos
dos corpos na estrutural social.
Posto isso, no cenário da pandemia de COVID-19, as desigualdades
sociais foram abruptamente escancaradas pela ausência de políticas públicas
para lidar com a crise sanitária, em decorrência disso, um dos marcadores so-
ciais foi o aumento do desemprego - em especial de mulheres negras de baixa
logia do corpo, proposta pela autora, mesmo o gênero traduzido pela norma
enquanto elemento biologizante, estar em situação de rua no caso das refe-
ridas mulheres deste estudo é a última forma de reivindicação de sua exis-
tência pela não conformidade dos quadros que a materialidade insiste em
enquadrá-las.
Com os achados, vemos que os corpos femininos, negros e que se en-
contram na linha de corte da miséria, em situação de rua, são fruto de um
processo histórico longitudinal em que pesam os estereótipos e preconcei-
tos escravistas e coloniais a serviço da lógica neoliberal. Percebe-se, de modo
desnudo, a extrema sujeição dos corpos femininos, uma vez que estar em si-
tuação de rua pode ser considerado como última opção para garantir o míni-
mo da vida que restou a esta população. Sendo a situação de rua uma forma
de pseudo-cidadania na vida destas mulheres, como uma alternativa perver-
sa para não se sujeitar a violência intrafamiliar e se auto-gerir diante do de-
semprego frente a ausência de garantia de seus direitos básicos. Todavia, em
troca disso, correm outros riscos igualmente ameaçadores à sua humanidade
e existência – dentre eles, a violência física e/ou sexual e o preconceito no
modo de ser enquadrada pelos serviços da saúde.
Estas particularidades dos corpos femininos em situação de rua, no
campo da interseccionalidade com as categorias raça e classe social no cená-
rio de pandemia, em que, a vulnerabilidade da vida humana tornou-se mais
explícita, fez com que na gestão política das vidas os processos segregatórios
fossem realçados enquanto realidade de países em desvantagem econômica.
Uma limitação, tanto deste estudo, quanto da literatura consultada,
abordando o tripé mulheres, situação de rua e COVID-19 é a ausência de es-
tudos que contemplem a mulher trans – não sabemos se por já serem consi-
deradas no contingente geral de mulheres, ou, pela literatura não promover
a visibilidade e reconhecer este fenômeno. Ainda em alguns artigos, quando
a questão de gênero era abordada, a mesma estava entre uma lógica binária
dentro de inteligibilidade corpos generificados – masculino e feminino.
Podemos entender, com o exposto, que a pandemia foi uma incuba-
dora abrupta das mazelas sociais para quem se encontrava na ponta da escala
de opressão/discriminação. Esta afirmação se torna legítima a somar pelo au-
mento da população feminina em situação de rua e a ausência de projetos e
políticas públicas específicas, ou ainda, pela omissão de planos para resguar-
do e cuidado da saúde para essas mulheres. Estes achados, portanto, demons-
traram que o constructo da cidadania em um Estado moderno razoavelmente
democrático assemelha-se a alegoria da cama de Procusto na mitologia grega
- só cabe na cama de modo imperfeito quem é mutilado de algum modo pela
serventia que seu corpo, porventura poderá ter para o Capital.
Referências
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1 Doutora em Saúde Pública na Universidade de São Paulo (USP), graduada e mestre em Ciências Políticas pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Pós-doutora em Administração Pública na FGV-
EAESP. Pesquisadora do Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. belcost@gmail.com
2 Graduação em Enfermagem pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo e mestrado em
Enfermagem Psiquiátrica pela Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Instituto de Saúde da Secretaria de
Estado da Saúde de São Paulo. fabiana.lucena@isaude.sp.gov.br
la sociedad como tales. Para la base de este ensayo, se adoptaron autores que
vienen trabajando con el tema de la ciudadanía, la exclusión social, la vulnera-
bilidad y la población sin hogar. Este artículo muestra que el el hecho de que
los profesionales de la saçud se inserten en la calle, potencia la construcción
de vínculos, permite identificar problemas y priorizar intervenciones, indivi-
dualizando necesidades y promoviendo un cuidado equitativo. Sin embargo,
ha habido muchos desafíos, que van desde la dificultad de trabajar en red,
garantizando la atención en la red especializada, hasta la persistencia de los
estigmas. Se argumenta que aún es necesario avanzar en el reconocimiento
de la ciudadanía de esta población para que se garanticen sus derechos. Fi-
nalmente, se argumenta que, a pesar de su relevancia, el derecho a la salud es
sólo uno de los necesarios para la realización de la ciudadanía plena de la PSR.
Es fundamental estructurar un arreglo institucional intersectorial que articule
la política de salud, seguridad social, trabajo, vivienda, educación, etc.
relevance, the right to health is only one of the necessary for the realization
of full citizenship of the homeless population. It is essential to structure an
intersectoral institutional arrangement that articulates health policy, social
security, work, housing, education and others.
1. Introdução
Este artigo trata de um ensaio que tem como objetivo refletir sobre o
status de cidadania da população em situação de rua (PSR) frente ao acesso à
política de saúde brasileira. Fundamenta-se na premissa que a cidadania não
é algo estático e universal, mas sim, uma noção construída socialmente e que
ganha sentido nas experiências sociais e individuais (COSTA; IANNI, 2018). De
fato; vulnerabilidades, desigualdades e iniquidades produzem categorias de
cidadania e interferem nas garantias de direitos. Assim, é indiscutível que o
contexto em que o indivíduo está inserido impacta na sua experiência en-
quanto cidadão.
Argumenta-se que os estigmas e a exclusão social vivida pela Popula-
ção em Situação de Rua (PSR) fazem com que tais indivíduos sejam privados
de, praticamente, todos os direitos de cidadania e não sejam reconhecidos
pela sociedade como tal.
A Constituição de 1988 determinou que todo e qualquer cidadão tem
direito a acessar os serviços de saúde, independente do gênero, classe, raça,
idade etc. Entretanto, a PSR ainda encontra barreiras para a garantia de tais
direitos. A implementação da estratégia da equipe do Consultório na Rua
(CnaR) tem buscado alterar esta situação, mas ainda são muitos os desafios. A
proposta desse ensaio é trazer algumas reflexões sobre o alcance desse direi-
to à PSR e o reconhecimento do seu status de cidadão.
Adotou-se, para fundamentação desse ensaio, autores que vêm traba-
lhando com o tema de cidadania, exclusão social, vulnerabilidade e popula-
ção em situação de rua. Também foi realizada uma revisão narrativa de arti-
gos científicos sobre a atenção à saúde da PSR com enfoque na estratégia do
Consultório na Rua.
O artigo está estruturado em duas seções, além desta Introdução e
das Considerações finais. Na segunda seção debatemos a definição do con-
ceito de cidadania para a PSR, bem como os encaixes e desencaixes do acesso
ao direito à saúde por parte de tais indivíduos. Na terceira seção são proble-
dimensão do estigma.
Em consonância à concepção de Varanda e Adorno (2004), partimos
do pressuposto da necessidade de reconhecer as particularidades das experi-
ências de cada pessoa; entretanto, reforçamos a necessidade de não restringir
este fenômeno a tal universo de análise, tendo em vista que se pode facil-
mente cair no discurso da culpabilização do indivíduo por sua trajetória, visto
que este fenômeno merece análises sociais macro estruturais. É neste sentido
que aqui ratificamos que, ao se falar do processo de exclusão social, não se
pode deixar de lado questões macro como o desemprego, a precarização do
trabalho, a valorização especulativa do capital, a tecnologização do processo
produtivo, o racismo estrutural, iniquidade e a extrema desigualdade social.
Tais variáveis produzem tanto efeitos sociais quanto individuais, são proces-
sos imbricados que se retroalimentam.
Viver na rua provoca uma ruptura com as formas aceitas de sobrevi-
vência legitimadas pelo modo de produção capitalista. O contexto em que
essas pessoas vivem as mantém em uma posição de exclusão, de invisibili-
dade e, portanto, destituídas das duas dimensões de cidadania de direitos
e deveres e de participação política. Isto as tornam cidadãos isolados. A sua
própria condição de exclusão social torna a sua cidadania invisível para os de-
mais cidadãos. Quando são visualizadas, são tratadas como “objeto de tutela
estatal” sendo alvo de filantropia e caridade (ROSA et al, 2005).
O viver na rua, ser cidadão isolado, privado de direitos e não visuali-
zado pela sociedade traz marcas físicas e psíquicas. A marginalização em que
essas pessoas vivem é produtora de necessidades de cuidados em saúde, po-
rém essa condição também é fator de exclusão para o acesso aos serviços de
saúde apesar deste se constituir em um direito universal.
3. O direito à saúde
4. Considerações finais
É inegável o avanço da criação da estratégia do CnaR, tendo em vista que
é uma política formulada segundo as necessidades da PSR. O fato de os profis-
sionais estarem inseridos na rua potencializa a construção de vínculos, permite
identificar problemas e priorizar intervenções, individualizar as necessidades e
promover cuidados equitativos. Em contrapartida, ainda muito tem sido os de-
safios, visto que persistem os problemas de acesso principalmente aos serviços
especializados, estigmas, preconceitos, despreparo por parte dos profissionais
da ponta, desarticulação entre os setores e ações assistencialistas. O acesso não
pode estar atrelado a uma “equipe especializada em PSR”. É preciso avançar para
que essa população tenha o status cidadão com reconhecimento de seus direitos.
Apesar da importância da garantia do direito à saúde, cabe frisar que este
é insuficiente para o alcance da cidadania plena ou até mesmo do cidadão poli-
ticamente passivo. Para tal, é essencial ampliar as políticas intersetoriais que ga-
rantam acesso aos diversos direitos dessa população. Em casos complexos como
esse, políticas focais são importantes para resolverem demandas pontuais, mas
não são efetivas para o alcance da cidadania plena a partir da reintegração social
com autonomia.
Referências
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1 Possui graduação em Filosofia, mestrado em Ciências Sociais e doutorado em Educação pela Universidade Estadual
de Maringá. É professor da Universidade Federal de Rondônia, no Departamento Acadêmico de Ciências da Edu-
cação, campus de Vilhena, RO. pccasteleira@gmail.com
Abstract: This proposal problematizes the intersection of race and color, mas-
culinity and people experiencing homelessness during the Covid-19 pande-
mic. In order to carry out some analysis of these intersections, intersectionali-
ty was chosen as an analytical method for giving conditions to articulate such
categories together with the reflection on Human Rights. The aim here was
to raise questions on the whitness relationships, a colonialism heritage, while
thinking how racialized skin can be and, along with it, how black people and
white people subjectivities may differ between them. These subjectivities su-
cked up in the brazilian social knots are capable of building racialized patterns
to the point of establishing a common and antecipated place for black people
such as, for instance, experiencing homelessness. Blackness and masculinity
seem to emphasize this situation, worsened even more in times of social dis-
tancing and the need to access health services.
em oposição à branca, conforme provoca bell hooks (2019), vinculado aos ví-
cios, à maldade e presa ao ethos tanto em brancos como em negros, já diria
Guerreiro Ramos (1995). Esses padrões somam-se ao processo de alocação da
categoria de homem negro e na produção/manutenção do capital simbólico.
Segundo Miranda (2017, p. 63), “É dentro dessa engrenagem normatizada e
normatizadora que padrões sociais são criados e constantemente reforçados
e reproduzidos. Nela, as identidades que estão em posição de poder se mo-
vimentam principalmente pela aquisição/manutenção do capital simbólico.”
A posição de poder estruturada por e para corpos brancos junto da
normatização de padrões sociais do que é aceitável entremeiam-se às po-
líticas públicas de saúde, por exemplo. No caso do acesso a essas políticas,
não raro, existem solicitações inadequadas, como exigir comprovante de re-
sidência a quem está em situação de rua, ou mesmo o preconceito para com
esse público (SILVA; NATALINO; PINHEIRO, 2020). Talvez esse preconceito seja
potencializado pela questão da racialidade e masculinidade do sujeito que
procura o atendimento de saúde.
O homem branco já se encontra no corolário de uma hegemonia
normatizada e normatizadora (MIRANDA, 2007), ainda que a branquitude
também seja um fenômeno complexo e de articulações múltiplas, segundo
Priscila Elisabete Silva (2017, p. 26), de difícil conceituação, mas de inegável
presença como “constructo ideológico de poder que nasceu no contexto do
projeto moderno de colonização europeia”. Esse constructo aloca a branqui-
tude no próprio centro de seu projeto, angariando “vantagens materiais e
simbólicas aos brancos em detrimento dos não brancos” (SILVA, 2017, p. 26-
27). Essas afirmações parecem corroborar a ideia de potencialização do pre-
conceito vivenciado por um homem negro em situação de rua, uma vez que
ele está fora das vantagens simbólicas, mais uma vez.
Um caso, antes do período pandêmico, talvez ajude a compreender
um pouco dessa dimensão de vantagens simbólicas descritas por Priscila Eli-
sabete Silva (2017). Rafael Nunes, um homem vivendo pelas ruas de Curitiba,
foi fotografado e o caso ganha repercussão:
Intersecções em trânsito
2 Faustino (2017) é um pesquisador enveredado no campo da educação das relações étnico-raciais, sobretudo, interes-
sado na produção de Frantz Fanon. Fanon, a grosso modo, foi um psiquiatra marxista de vertente anti-colonialista em
defesa de uma tese de psicopatologia da colonização, ou seja, existe uma introjeção colonialista presa à subjetividade
da pessoa colonizada e seu rompimento seria possível apenas com mudanças radicais da estrutura social.
periféricas que tragam essa visão a partir das suas próprias vivências.” Parece
positiva a conduta exatamente por abrir a possibilidade de escuta atenciosa,
no sentido de produzir condições derivadas dela, como, por exemplo, rees-
truturar o acesso da população em situação de rua a fim de que os acordos
das agendas dos direitos humanos minimamente se cumpram, bem como
provocar o poder público no que tange os pactos silenciosos e históricos da
branquitude.
Considerações finais
Referências:
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disse a arquiteta Joice Berth. 2018. Disponível em: https://casavogue.globo.
com/Casa-Vogue-Experience/noticia/2018/11/cidades-brasileiras-nao-fo-
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G1. Das ruas à recuperação, ‘Mendigo Gato’ relembra a luta para deixar o
crack. G1, 03 de jul. 2017. Disponível em: https://g1.globo.com/pr/parana/
noticia/das-ruas-a-recuperacao-mendigo-gato-relembra-a-luta-para-deixar-
SILVA, Rosimeire Barbosa da; COSTA, Alderon Pereira da. Direitos humanos
da população em situação de rua? Paradoxos e aproximações a uma vida
digna. Revista Direitos Humanos e Democracia, Ijuí, ano 3, n. 6, jul./dez., p.
117-135, 2015.
Rodrigo Alvarenga1
Isabele Cristine Gulisz2
1 Doutor em Filosofia. Docente do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Políticas Públicas da PUC-
-PR. alvarenga.rodrigo@pucpr.br
2 Graduada em Psicologia e mestranda em Direitos Humanos e Políticas Públicas no Programa de Pós-Graduação em
Direitos Humanos e Políticas Públicas da PUC-PR isabele.gulisz@pucpr.edu.br
Abstract: Faced with the Covid-19 pandemic and its consequences, a specific
population group already so victimized by daily violence had its survival even
more threatened. The security measures aimed at protecting the population
as a whole from mass contamination left the homeless population in a ge-
neralized condition of insecurity. This article aims to describe the process of
abandonment and violation of human rights that the homeless population
in the city of Curitiba has been going through during the pandemic, as well
as highlighting the measures that were taken by social movements, society
civil society and Universities in facing this necropolitical process. To this end,
an analysis will be carried out of the public civil action perpetrated by the
Public Defender’s Office of the State of Paraná against the Municipality of
Curitiba, and the responses that were given by the public authorities to the
Appeal regarding the measures required and not complied with by the public
authorities during the pandemic. In addition, part of the action strategy of
the National Movement of the Homeless Population will be presented, in the
creation of a solidarity kitchen, as well as the process of creation of the State
Observatory of Human Rights of the Homeless Population of Paraná will be
described. As a way of reflecting and analyzing this situation, a discussion will
be proposed based on Achille Mbembe’s theoretical framework, specifically
through the concept of Necropolitics and Brutalism.]
Introdução
A população em situação de rua em todo o país tem seus direitos hu-
manos sistematicamente violados e sofrem um processo de marginalização e
exclusão por parte da sociedade em geral. Percebidas de forma extremamen-
te negativa, consideradas potencialmente criminosas, vagabundas e depen-
dentes químicos perigosas, na realidade são as pessoas submetidas a situação
de sobrevivência sem moradia quem realmente se encontra em situação de
perigo, risco e vulnerabilidade.
Os discursos e narrativas as culpabilizam por sua condição de vulnera-
bilidade gerando processos cada vez mais graves de invisibilidade, exclusão e,
por consequência, de violência. O próprio fato de estar em situação de rua já
é uma grande violação de direitos humanos por parte tanto do poder público
e do sistema de justiça, como da sociedade civil em geral.
A violência contra essa população se manifesta de diferentes modos,
Considerações finais
A população em situação de rua tem sofrido com o aumento da vio-
lência e as práticas de extermínio desde o golpe civil, parlamentar e empresa-
rial contra a primeira mulher eleita presidenta na história do Brasil, em 2016.
E com a chegada da extrema direita ao poder o autoritarismo protofascista
atingiu níveis inimagináveis para uma sociedade que acredita ser civilizada. O
grau de violência sofrido se expressa não apenas pela negligência e abando-
no do poder público municipal, mas também pelo tipo de resposta fornecida
aos órgãos de justiça para que não se cumpra o dever constitucional de ga-
rantir direitos fundamentais à população em situação de rua.
Entrar em uma disputa judicial para relativizar a obrigação de forne-
cer água potável, liberar o acesso a banheiros públicos, fornecer alimentação
e parar de recolher pertences individuais demonstra a capacidade do poder
público de não apenas decidir quem tem direitos e quem não tem, mas, sem
exageros, decidir quem deve viver e quem deve morrer. A insuficiência de
Referências
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Art. 206 - O ensino será ministrado com base nos seguintes prin-
cípios: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na
escola; II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o
pensamento, a arte e o saber; (BRASIL, 2010)
A escola que temos hoje não está preparada para acolher e trabalhar
com os saberes e as especificidades apresentadas pelas crianças e adolescen-
tes em situação de rua. Para Graciani (2005, p. 167), quando as crianças e ado-
lescentes saem das ruas e entram na escola, suas atitudes, enfrentamentos e
brincadeiras “[...] são rotuladas de inadequadas e dificultadoras das aprendi-
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1 Enfermeira. Mestrado em Enfermagem pela UFRJ e Doutorado em Ciências (Área Enfermagem Fundamental)
pela USP. Professora da Universidade Federal do Piauí (UFPI). m.astres@ufpi.edu.br
2 Enfermeira. Mestranda em Enfermagem pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). dealencar.ribeiro@ufpi.edu.br
Palabras clave: Población sin hogar. Acceso a los servicios de salud. Derecho
a la salud.
Introdução
O processo de exclusão social, e as circunstâncias que o compõem,
mantém persistentes os ciclos de marginalização de determinados grupos
populacionais na sociedade, como a População em Situação de Rua (PSR). O
estudo mais recente sobre o panorama atual dessa população indica que exis-
tem aproximadamente 222 mil pessoas em situação de rua no Brasil. A PSR
está exposta a condições de extrema pobreza social e econômica. Além disso,
o distanciamento das famílias, o preconceito, a violência e a dificuldade no
acesso aos serviços públicos causam extenso impacto à saúde física e mental
(SILVA et al., 2021).
As circunstâncias que envolvem esse processo social são complexas,
de causas diversificadas e multifatoriais, não podendo ser restrita a somen-
te um expoente. A esse cenário, evidenciam-se variáveis de forte influência
como as dimensões relacionadas a determinantes sociais da saúde (DSS) das
condições de vida: educação, desemprego, acesso aos serviços de saúde e
moradia; além disso, integram-se a esse contexto os fatores psicológicos, as
condições socioeconômicas, a inclusão e participação na sociedade (LIMA et
al., 2020).
Ainda que os avanços legais tenham sido relevantes na delimitação
dos direitos das populações em situação de vulnerabilidade, as violações às
garantias e aos direitos básicos de cidadania são recorrentes e interferem di-
retamente no acesso às políticas públicas, especialmente em relação aos ser-
viços de saúde.
Nessa perspectiva, a Política Nacional para a População em Situação
de Rua - PNPSR, (BRASIL, 2009), foi desenvolvida com objetivo de assegurar o
acesso amplo, simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as
políticas públicas do país; em suas diretrizes, instituiu pontos importantes para
atender às necessidades específicas das PSR, como trabalho, assistência social,
educação, segurança alimentar e nutricional, cultura e saúde (BRASIL, 2022).
Ainda que a PNPSR represente um importante expoente das conquis-
tas legais desse grupo, os direitos previstos para a PSR não são garantidos de
forma inclusiva e integral em todos os estados e municípios, com destaque
maior para a fragilidade na adesão ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Essa população apresenta baixos índices de acesso aos serviços de
saúde e, de modo geral, associados a situações agudas e emergentes, de do-
enças ou agravos que impossibilitam ou reduzam a mobilidade e sem neces-
sidade de encaminhamento de outros serviços. As dificuldades de acesso aos
serviços de saúde e à educação em saúde, entrelaçados principalmente ao
preconceito e à discriminação que a PSR está continuamente exposta, são de-
terminantes fatores impeditivos relacionados ao acesso e à procura de servi-
ços de saúde, aumentando os riscos de doenças, agravos e complicações de
saúde nessa população (VALE; VECCHIA, 2020).
A participação da PSR nos serviços de saúde se depara, muitas vezes,
com barreiras estruturais similares em diversos pontos da rede de atenção à
saúde (necessidade da apresentação de documentos e comprovação de resi-
dência, dentre outros entraves relacionados). Entretanto, a atuação da aten-
ção primária – por meio das equipes de consultório de rua) e/ou de equipes
especializadas, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e serviços de
Metodologia
Trata-se de um estudo teórico-reflexivo, realizado dentro da aborda-
gem de revisão narrativa da literatura científica. As buscas por publicações
nessas plataformas ocorreram no período de fevereiro a abril de 2022. Os cri-
térios de inclusão foram artigos completos, guias, informativos e/ou mono-
grafias, em um recorte temporal de 2017 a 2022. Foram excluídos os docu-
mentos indisponíveis gratuitamente para leitura ou que não apresentaram
associação aos aspectos temáticos.
Delimitou-se como objetivo central a investigação analítica dos direi-
tos de acesso aos serviços de saúde pelas populações em situação de rua no
Brasil, construído a partir da leitura crítica sobre a Política Nacional para a Po-
pulação em Situação de Rua (PNPSR) e de artigos e documentos relacionados
à temática, disponíveis no acervo eletrônico da Biblioteca Virtual em Saúde
(BVS), nas seguintes bases de dados: LILACS (Literatura Latino-Americana e
do Caribe em Ciências da Saúde), BDENF-Enfermagem e MEDLINE (Medical
Literature Analysis and Retrieval System Online).
Para a melhor delimitação do assunto de pesquisa, utilizou-se a busca
de pesquisas nas bases a partir dos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS/
MeSH): “pessoas em situação de rua” (homeless persons), “acesso aos serviços
de saúde (health services accessibility), “política de saúde” (health policy), Bra-
sil (Brazil); e, a partir desse delineamento, delimitou-se os estudos que aten-
diam aos requisitos estabelecidos para seleção e construção do manuscrito.
Além disso, foram utilizadas também outras fontes de informação, como pu-
blicações e documentos do domínio eletrônico do Ministério da Mulher, da
Família e dos Direitos Humanos.
Referencial temático
O direito à saúde foi reconhecido pelo Artigo 12 do Pacto Internacio-
nal sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) da Organização
das Nações Unidas (ONU), em 19663. Segundo o texto, a saúde foi estabele-
Considerações finais
Diante da análise dos contextos que abrangem a inserção da PSR nos ser-
viços de saúde, é importante destacar que, apesar da disponibilização de atendi-
mento e recursos de saúde, o preconceito e as barreiras de acesso da PSR a estes
serviços são determinantes na ruptura do ciclo de assistência efetiva ao grupo.
Evidencia-se, portanto, que as readequações nas ofertas dos serviços de
saúde são fundamentais para a expansão do acesso, bem como para a continui-
dade dos atendimentos a essa população. Para isso, delimitam-se como ativida-
des principais: 1) busca ativa no espaço das ruas (expansão das eCR, por exem-
plo); 2) identificação e compreensão das singularidades desse grupo durante os
atendimentos (com o objetivo de afastar comportamentos e concepções que
perpetuem o preconceito e as barreiras sociais para o acesso); e 3) esclareci-
mento do fluxo de atendimento à PSR nas unidades da atenção primária, de
modo que os profissionais tenham o entendimento de que os serviços à essa
população não se restringem somente aos consultórios de rua e que as unida-
des básicas de saúde são parte integrante dos direitos à saúde no Brasil.
Destaca-se que as citadas adequações dos serviços e ações depen-
dem principalmente do preparo, do acolhimento e do estabelecimento de
vínculos efetivos entre os profissionais de saúde e a PSR. O vínculo inclusivo,
voltado à humanização do cuidado, vai além das avaliações técnicas, de ob-
servação de aspectos físicos e biológicos, as nuances psicoemocionais tam-
bém devem ser foco das análises de saúde.
Referências
ANDRADE, Rebeca de et al. O acesso aos serviços de saúde pela População
em Situação de Rua: uma revisão integrativa. Saúde debate, Rio de Janeiro,
v. 46, n. 132, p. 227-239, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-
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Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/fass/article/
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SANTOS, João Gabriel Ribeiro dos; FERNANDES, Márcia Astrês. O viver em situa-
ção de rua, fatores relacionados e a associação com os aspectos sociodemográ-
ficos e econômicos dos moradores. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE SAÚDE
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VALE, Aléxa Rodrigues do; VECCHIA, Marcelo Dalla. Sobreviver nas ruas: per-
cursos de resistência à negação do direito à saúde. Psicol. Estud., Maringá, 25:
e45235, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pe/a/Y8qyJYbj4nLTD-
4Qz8yNHyXM/?lang=pt. Acesso em: 6 mar. 2022.
1 Doutor em Ciências Humanas e Sociais (UFABC), Doutorando em Direito Internacional (USP), Mestre em Direito
(UNESP), Pesquisador do Núcleo de Estudos em Tribunais Internacionais da Faculdade de Direito da USP e docen-
te na Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP). danilosimini@gmail.com
Introdução
A proteção internacional dos direitos humanos pode ser apontada
como uma das principais contribuições do século XX, particularmente, após o
término da Segunda Guerra Mundial. Direitos humanos se tornaram um tema
de legítimo interesse da comunidade internacional e Sistemas Internacionais
de Direitos Humanos foram criados. Estes, compostos por tratados e órgãos
de monitoramento, foram estabelecidos no intuito de maximizar a proteção
dos direitos humanos, possibilitando a responsabilização dos Estados em
caso de violação.
De acordo com a literatura, atualmente se encontram consolidados o
Sistema Global (também chamado de Onusiano) e o Sistema Regional, sendo
este composto pelos Sistemas Europeu, Interamericano e Africano. Tais siste-
mas devem ser analisados e interpretados à luz da complementariedade, ou
seja, não há hierarquia entre eles, pois foram criados visando maximizar a pro-
teção dos direitos humanos. Ademais, os sistemas regionais foram pensados
como forma de privilegiar as características de cada continente.
Inicialmente, os tratados de direitos humanos criados no âmbito de
tais Sistemas Internacionais tratavam do ser humano de forma genérica, pois
naquele momento histórico era de fundamental importância deixar claro que
bastava ser humano para ser titular de direitos. Posteriormente, foram sendo
criados tratados relacionados a temas ou grupos específicos, tais como crian-
seus dois principais órgãos, quais sejam, a Comissão (CIDH) e a Corte Intera-
mericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Posteriormente, será apresentado
o tratado relativo às pessoas com deficiência no âmbito do Sistema Interame-
ricano de Direitos Humanos e os principais casos relacionados ao tema julga-
dos pela Corte IDH.
dessas pessoas e que elas não sejam obrigadas a aceitar tal diferen-
ciação ou preferência. Nos casos em que a legislação interna preveja
a declaração de interdição, quando for necessária e apropriada para
o seu bem-estar, esta não constituirá discriminação. (OEA, 1999).
cional vincula o Estado como um todo, a exigir a sua observância por toda
autoridade pública, em todos os níveis de governo. Assim, as normas inter-
nacionais de proteção das pessoas com deficiência devem ser observadas
pelos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário em suas respectivas atua-
ções. Contudo, a prática se mostra desafiadora. Em trabalho anterior (SIMINI,
2021) demonstramos que o Poder Legislativo municipal da capital paulista,
ao longo de dez anos, apreciou um pouco mais de duzentos projetos de lei
relacionados às pessoas com deficiência e em apenas 11% deles o legislativo
municipal verificou a sua compatibilidade com a normativa internacional. Por
outro lado, o Poder Executivo da capital paulista vem desenvolvendo políticas
públicas compatíveis com as normas internacionais de proteção dos direitos
das pessoas com deficiência (SIMINI, 2021).
Certamente o maior desafio é conscientizar os agentes públicos da
importância das normas e decisões internacionais referentes aos direitos das
pessoas com deficiência. A sua observância poderá contribuir com uma maior
proteção dos direitos de tal grupo ainda vulnerável e muitas vezes margina-
lizado.
Considerações finais
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos foi criado em um con-
texto de instabilidade política nas Américas, particularmente, na América do
Sul. Não obstante críticas referentes à efetividade de suas decisões, o referi-
do Sistema vem contribuindo com a proteção dos direitos humanos no Con-
tinente Americano, bem como no que diz respeito aos direitos das pessoas
com deficiência. A Convenção Americana de Direitos Humanos, seu principal
tratado, apesar de não fazer referência expressa à pessoa com deficiência vem
sendo utilizada pela Corte IDH em seus julgamentos relacionados aos direitos
das pessoas com deficiência.
A Corte IDH já se manifestou em mais de uma oportunidade acerca
dos direitos das pessoas com deficiência, inclusive em relação ao Brasil no
caso Damião Ximenes Lopes, o primeiro precedente julgado pela Corte IDH
a tratar diretamente dos direitos das pessoas com deficiência. Em todos os
casos a Corte IDH ressaltou o modelo social da deficiência, além de ter desta-
cado a obrigação dos Estados em adotarem medidas voltadas à eliminação da
discriminação contra a pessoa com deficiência. Ademais, merece igualmente
destaque o fato de haver no Sistema Interamericano um tratado específico
sobre direitos das pessoas com deficiência, anterior à Convenção da ONU so-
bre o mesmo tema.
De qualquer forma, o desafio imposto ao Sistema Interamericano de
Referências
ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento; CASELLA, Pau-
lo Borba. Manual de direito internacional público. 24. ed. São Paulo: Saraiva,
2019.
CORTE IDH. Sentença do Caso Furlan versus Argentina. 2012. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_246_esp.pdf. Acesso
em: 25 ago. 2020.
GUERRA, Sidney. Direito internacional dos direitos humanos. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 2015.
Resumo: Os cursos online podem ser entendidos enquanto uma das trans-
formações mais significativas da Educação em Direitos Humanos, visto que
passaram a fazer parte do repertório de ação de atores diversos. As organi-
zações não-governamentais com a atuação internacional fazem parte dos
atores atuantes na promoção da EDH que passaram a efetivar cursos dessa
natureza. No presente artigo, apresentamos um estudo do caso dos cursos
1 Doutora (2011) em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com estágio douto-
ral em Sociologia das Relações Internacionais no Institut d’Études Politiques de Paris (Sciences Po). Coordenadora
do curso de graduação em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PU-
CRS). Professora adjunta dos Programas de Pós-graduação em Ciências Sociais e Filosofia da PUCRS.
teresa.marques@pucrs.br
Resumen: Los cursos en línea pueden entenderse como una de las transfor-
maciones más significativas de la Educación en Derechos Humanos, ya que se
han convertido en parte del repertorio de acción de diferentes actores. Las or-
ganizaciones no gubernamentales con operaciones internacionales son parte
de los actores involucrados en la promoción de la EDH que han comenzado
a realizar cursos de esta naturaleza. En este artículo, presentamos un estudio
de caso de los cursos proporcionados por Amnistía Internacional en su aplica-
ción Academia de Derechos Humanos de Amnistía. A través del análisis cua-
litativo de varios documentos y cursos proporcionados por la organización,
buscamos comprender el potencial de la plataforma digital para la educación
en derechos humanos y para el compromiso político transnacional. Para ello,
partimos de un diálogo teórico entre la sociología de la educación y los estú-
dios sobre compromiso politico. La investigación indicó que la educación en
línea puede entenderse como una forma de relación entre las organizaciones
no gubernamentales y la educación. Demuestra el potencial para llegar a la
juventud en contextos excepcionales y autoritarios, especialmente al permitir
el abordaje de diversos temas contemporáneos, aunque también tiene limi-
taciones.
1. Introdução
A partir da segunda metade do século XX, multiplicaram-se as orga-
nizações internacionais não-governamentais (OING’s) dedicadas à defesa dos
direitos humanos (Badie, 2008). Elas podem ser consideradas como redes de
ativismos transnacionais, visto que sua atuação conecta atores de diferentes
localidades e nacionalidades (Keck; Sikkink, 1998). A educação em Direitos
Humanos (EDH) é parte do repertório de ação de muitas dessas organizações.
De acordo com os estudos sobre EDH, organizações dessa natureza são gran-
des incentivadoras e promotoras da EDH, ainda que tenham a tendência de
valorizar determinados temas em detrimento de outros na educação em di-
reitos humanos (GOHN, 2011; FLOWERS, 2017).
Em um contexto de valorização das tecnologias digitais, a educação
online também passou a ser valorizada por organizações dessa natureza. Se-
gundo Nancy Flowers (2017, p. 324), os cursos online representam um “novo
espaço para a educação em direitos humanos” e se tornaram o fenômeno re-
cente mais marcante nesse campo. Eles se multiplicaram e alcançaram um
novo padrão, apresentando materiais e cursos em diversos e inovadores for-
matos. Todavia, muito embora a EDH já tenha analisada a partir de diversos
2 Ver: AI – Anistia internacional. Catálogo de cursos. Amnesty Human rights Academy. 2021b. https://academy.
amnesty.org/learn/catalog. Acesso em: 10 mai. 2022
lugar, verifica-se um novo perfil de ativista, chamados por Jacques Ion de “mi-
litantes post-it”: ativistas com engajamento mais pontual, diante do tempo
para o militantismo comprimido pelo capitalismo (ION, 2012). Por último, des-
taca-se o papel desempenhado pelos conhecimentos técnicos de informática
enquanto um potencial para o engajamento, visto que rapidez da internet
permite potencializar o tempo dedicado à política e ampliação das conexões
(VERS UN..., 2011, p.119). Importante ressaltar que, de acordo com McAdam
e Paulsen (1993), as redes de relacionamento interpessoal são fundamentais
com o engajamento político.
Diante desse novo perfil de ativista, da força dos novos canais de co-
municação e da importância da educação política para as organizações trans-
nacionais, o potencial das ferramentas digitais para a educação em direitos
humanos e educação política em geral se torna evidente. De acordo com
Pavani, os mais diferentes espaços de interação disponibilizados pelas novas
ferramentas de comunicação podem ser vistos como espaços não-formais de
ensino, ainda que limitados:
Como produtos do modelo econômico vigente, essas ferramentas
não estão, necessariamente, destinadas ou comprometidas com
a educação formal e com os seus fins didáticos, uma vez que são
canais de veiculação e comercialização de serviços e produtos. En-
tretanto, sua utilização pode resultar em práticas “não formais” de
ensino (PAVANI, 2021, p. 503).
A fala de Sabrina nos permite refletir sobre o potencial dos cursos livres
online para a mobilização política e, consequentemente, para a especificidade
da educação em direitos humanos. Furar a “bolha do conhecimento” por meio
da educação não-formal online é entendida enquanto uma forma de luta po-
lítica e resistência. A educação tem uma função de recrutamento e formação
militante, mas antes disso, ela importa para a construção da sensibilização po-
pular em favor dos direitos humanos. De acordo com Simèant em entrevista, a
formação de organizações dessa natureza é mais interessada em sensibilizar a
opinião pública do que em recrutar ativistas fiéis (VERS UN..., 2011, p.119).
Objetivamos compreender o caso do aplicativo Amnesty’s Human Rights
Academy. Assim, passamos primeiro à análise da atuação da AI no campo da EDH.
3 Ver: Anistia Internacional. Quem somos. Anistia Internacional Brasil. Disponível em: https://anistia.org.br/quem-
-somos/. Acesso em: 3 fev. 2021
5 Com exemplo, citamos as divulgações efetuadas no facebook da filial brasileira da ONGI. Ver: ANISTIA INTER-
NACIONAL BRASIL. Facebook page. Post de 20 de julho de 2020. Disponível em:
https://anistia.org.br/evento/inscreva-se-no-curso-online-gratuito-sobre-direitos-humanos/?fbclid=IwAR1s-
-kULLpKK1KCy0wDW83u6G5MC4tJkxZwY0JEacXMokPB9zUS0iWRHn4k. Acesso em: 20 dez. 2021
6 São eles: “An Introduction to Human Rights”; “An Introdution to Child’s rights”; “Covid-19 and Human Rights”;
“Courses for families”; “Digital security and human Rights”; “Criminalization and unjust imprisonment of Human
rights defender: Bernardo Call in Guatemala”; “Freedom of expression: a fundamental right”; “The global Arms
trade”; “Human Rights defenders”; “In the line of fire: Human Rights and the US gun violence crisis”; “Indigenous
people land rights”; “The right to freedom from torture”; “Write for rights: a short guide”; “Human Rights defen-
ders: A short guide”; “Introdution to Amnesty International”; “Human rights: a tool for change”; “Speaking out for
freedom of expression”; “Human rights: a tool for change”; “Speaking out for freedom of expression.”; “Taking a
stance against the death penalty”; “The right to protest”; “Human Rights Friendly school”; “Climate changes and
Human Rights”; “Decoding decent-base discrimination”; “Deconstructing Israel’s Apartheid against Palestinians”.
Disponível em: AMNESTY INTERNATIONAL Human Rights Academy. https://academy.amnesty.org/lms. Acesso
em 11 mai. 2022.
5. Considerações finais
Tal como destacado por Flowers (2017), os cursos online de EDH po-
dem ser considerados um fenômeno que merece nossa atenção. A análise da
relação das AI com a educação e mais particularmente, sobre a Amnesty In-
ternational Human Rights Academy permite refletir sobre potencialidades e
limites dos cursos livres online.
A pesquisa indicou que a educação online pode ser entendida en-
quanto uma terceira forma de relações das organizações não-governamen-
tais com educação. Ela vem a se somar com a relação das organizações com
instituições de ensino e no interior da organização. No caso da AI, a EDH é
portanto, um amplo campo de estudos para a EDH a ser melhor explorado não
apenas pelos pesquisadores, mas por todos os atores interessados em trans-
formar a realidade social por meio da educação. Para concluir, nos alinhamos
à perspectiva de que a EDH pode ser entendida enquanto um caminho cultu-
ral para a transformação social. A pesquisa aqui apresentada demonstrou que
esse potencial também é enxergado na educação online não-formal.
5.1 Referências
BAXTO, W.; CARNEIRO, V. Uso das TIC na educação superior à distância. Edu-
cação, Porto Alegre, v. 42, n. 1, p. 35-43, jan.-abr, 2019.
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ONU; UNESCO. Plan of Action for the First Phase of the World Programme for
Human Rights Education. Paris: Unesco, 2006. Disponível em: https://www.
ohchr.org/EN/PublicationsResources/Pages/TrainingEducation.aspx. Acesso
em: 23 dez. 2021.
Resumen: Este artículo analiza las consideraciones realizadas por las ONG
Yesh Din, B’Tselem y Human Rights Watch, entre 2020 y 2021, sobre el mante-
nimiento de un régimen de apartheid en Palestina/Israel. Si bien este enfoque
no es nuevo, el posicionamiento de estas ONG se realizó en un momento en
que, ante nuevos acontecimientos, se ha generalizado el uso de esta clasifi-
cación del derecho internacional para interpretar la situación. Luego de una
breve introducción conceptual y de la Cuestión Palestina, se presentan de ma-
nera sintética las principales consideraciones de estas entidades, con el fin de
compararlas entre sí, con otros informes y con bibliografía especializada, en
especial Ran Greenstein, Oren Yiftachel y Anthony Löwstedt. A pesar de las
divergencias, informes y académicos convergen en el mantenimiento de un
régimen de apartheid en la región.
Abstract: This article analyzes the considerations made by the NGOs Yesh Din,
B’Tselem and Human Rights Watch, between 2020 and 2021, about the main-
tenance of an apartheid regime in Palestine/Israel. Although this approach is
not new, the positioning of these NGOs was made at a time when, in the face
of new events, the use of this classification of international law to interpret
the situation has become widespread. After a brief conceptual introduction
and of the Palestine Question, the main considerations of these entities are
presented in a synthetic way, in order to compare them with each other, with
other reports and with specialized bibliography, especially Ran Greenstein,
Oren Yiftachel and Anthony Löwstedt. Despite divergences, reports and aca-
demics converge on the maintenance of an apartheid regime in the region.
3 Ataques são entendidos como “curso de ação envolvendo o múltiplo cometimento de atos [...] em consonância ou
como parte de uma política organizacional ou estatal”. Se por amplo ou difundido o estatuto remete à escala dos
atos ou ao número de vítimas, por sistemático indica um padrão ou plano metódico (HRW, 2021, p. 29).
4 É a fronteira do Estado de Israel anterior à Guerra dos Seis Dias (1967), que levou à ocupação da Península do Sinai,
Faixa de Gaza, Cisjordânia e Colinas de Golã.
les gozados pelos judeus. Se para estes a área habitada é indiferente, pois é
contínua e estão integrados como cidadãos, para os palestinos o território
constitui um “mosaico fragmentado”, sendo este um aspecto fundamental. A
situação piora, progressivamente, quando se compara os palestinos com ci-
dadania israelense com aqueles vivendo em Jerusalém Oriental, no restante
da Cisjordânia e em Gaza, onde a negação de direitos é mais pronunciada.
Em cada uma dessas partes a supremacia judaica é implementada de modo
distinto, resultando em distintas violações. Esse regime de apartheid não nas-
ceu do dia para a noite, sendo “processo que, gradativamente, tornou-se mais
institucionalizado e explícito”, com mecanismos introduzidos de forma contí-
nua e cumulativa, difundindo-se nas leis e práticas e contando com respaldo
público e judicial. Há tanto diferenças como “reminiscências do regime sul-a-
fricano, que buscava preservar a supremacia dos cidadãos brancos, em parte
dividindo a população em grupos e subgrupos e garantindo distintos direitos
para cada” (B’TSELEM, 2021, p. 8).
Dentre os procedimentos adotados por Israel para avançar seus obje-
tivos a ONG destaca o planejamento demográfico, político e físico do espaço
por meio de leis e ordens, objetivando sua apropriação e judaização. Ao passo
que o Estado cria comunidades exclusivas e amplas para o grupo dominante,
que goza de total liberdade de locomoção e de infraestrutura nas distintas
partes que ocupa, confina os palestinos em enclaves territoriais densamente
povoados e com a menor área possível. Enquanto fomenta a imigração e na-
cionalização de judeus do mundo todo, garantindo privilégios e cidadania,
nega esta e vários direitos básicos a milhões de palestinos. Mais especifica-
mente, a B’Tselem (2021, p, 3-6) menciona quatro métodos centrais na con-
solidação do supremacismo judaico: dois vigoram de modo similar em toda
área (no caso, gestão territorial e migratória discriminatória) e dois são aplica-
dos, sobretudo, nos TPO (restrições de movimento e de outros direitos para
os palestinos, sendo distintas dimensões de suas vidas controladas por Israel).
Enquanto os judeus podem se deslocar e habitar em quase toda parte do ter-
ritório, a realocação palestina entre as distintas unidades é cerceada se impli-
car em uma melhora de sua condição, mas não em sentido contrário. Desse
modo, se um palestino cidadão israelense pode residir na Cisjordânia ou até
mesmo em Gaza, aqueles situados na última dificilmente conseguem se esta-
belecer fora dela, o que fica melhor ilustrado pela política oficial restringindo
sua reunificação familiar e o direito de continuarem vivendo onde nasceram
(além dos refugiados de 1948, desde 1967, teria sido revogado o status de
cerca de 250.000, privando-os da possibilidade de retornar para suas casas e
famílias). Desde 1948, o Estado “pratica uma política de ‘judaizar’ a área, base-
ado em uma ideologia segundo a qual a terra é recurso quase que exclusivo
para beneficiar o público judaico” (B’TSELEM, 2021, p. 4), sendo usada para
criar novas comunidades ou desenvolver e expandir pré-existentes enquanto
desapropria e confina os palestinos. Assim, vastas áreas foram expropriadas
dos refugiados, daqueles que conseguiram permanecer e dos beduínos e co-
locadas sob controle estatal sendo, posteriormente, redistribuídas entre ju-
deus. Além de planos diretores restritivos, outras leis recentes cercearam ain-
da mais a liberdade dos palestinos escolherem seu local de habitação, como
a criação de comitês de admissão, que podem alegar “incompatibilidades cul-
turais”. No plano dos direitos civis e políticos, as restrições têm se avolumado,
sujeitando os palestinos com cidadania a leis que limitam cada vez mais sua
possibilidade de criticar as políticas oficiais, como uma prevendo punição à
instituição que, ao invés de comemorar a fundação de Israel aludir à limpeza
étnica de 1948 e outra cerceando ações ou manifestações de apoio ao boi-
cote a Israel. A situação é mais grave nos TPO, onde a restrição da presença
espacial palestina ocorre desapropriando-os sob distintos pretextos, como
criação de estradas exclusivas, “estatização” de terras ou demarcação de zonas
de tiro, reservas naturais e parques nacionais. O deslocamento entre os en-
claves é controlado por meio de checkpoints, fechamentos, bloqueios e pelo
Muro da Separação e a fragmentação do espaço engendrada compromete a
promoção de ações unificadas de resistência, estando a oposição criminaliza-
da e reprimida de modo massivo, arbitrário e violento.
Poucos meses após a B’Tselem se posicionar em relação à questão
do apartheid, foi a vez da HRW (2021, p. 9) que, ao invés de um documento
sintético, apresentou um extenso relatório, intitulado “A Threshold Crossed:
Israeli Authorities and the Crimes of Apartheid and Persecution”. Baseou-se
em “anos de pesquisa e documentação” feita por ela própria e por outras or-
ganizações, incluindo trabalho de campo e os posicionamentos anteriores da
Yesh Din e B’Tselem. Ao corroborar e aprofundar a interpretação geral e as
considerações da segunda, a HRW ressignificou as considerações limitadas da
primeira quanto à abrangência do apartheid israelense. Para tal, coligiu evi-
dências acerca das políticas e práticas discriminatórias afetando os palestinos
nas diferentes áreas, contrapondo-as ao tratamento dispensado aos cidadãos
judeus vivendo nas mesmas localidades. Analisou os possíveis objetivos das
ações e a pertinência de classifica-las a partir das tipificações de apartheid e
perseguição, sem com isso comparar Israel e África do Sul. Por reconhecer a
unicidade do regime de dominação racial, não fez constatações separadas,
considerando as práticas hegemônicas de modo conjugado e em sua dinâmi-
ca e sistematicidade. O pressuposto é o mesmo da B’Tselem: Israel é o único
governante, exceto em algumas áreas onde exerce a autoridade primária so-
bre vários aspectos (fronteiras, espaço aéreo, movimento de pessoas e bens,
5 A HRW aponta que, em Gaza, Israel impõe um punitivo fechamento generalizado, além de ataques despropor-
cionais e indiscriminados, resultado em um quadro de abrangentes, graves e sistemáticas violações de direitos
humanos e humanitários (leis de guerra). Em Jerusalém Oriental, anexada oficialmente, promove políticas orça-
mentárias e de planejamento abertamente discriminatórias, pautadas por objetivos demográficos de restringir a
presença palestina. Em muitos pontos essa também é a situação do lado israelense da Linha Verde, onde a estrutura
de duas classes de cidadania e a diferenciação entre esta e nacionalidade resultam nos palestinos terem, por lei, um
status inferior em relação aos cidadãos/nacionais judeus. Estão separados e são tratados de forma desigual, com leis
permitindo a imigração e garantindo cidadania para estrangeiros com identidade judaica ao passo em que negam
o direito de retorno e restituição dos refugiados palestinos de 1948 e de seus descendentes. Desse modo, por todo
o território, “Israel garante privilégios aos israelenses judeus negados aos palestinos e priva estes de direitos funda-
mentais pelo fato de serem palestinos”. Se variam “os mecanismos e a intensidade dos abusos entre os TPO e Israel”,
o soberano é o mesmo (HRW, 2021, p. 27).
6 As autoridades israelenses se recusam a permitir o retorno das centenas de milhares de palestinos “que fugiram ou
foram expulsos em 1948, e seus descendentes” e, desde a fundação de Israel, aqueles que permaneceram em suas
fronteiras foram alvo de discriminação sistemática e violação de direitos, como de propriedade e residência. Assim,
em todo o território, enquanto favorece a imigração e nacionalização de estrangeiros judeus, utiliza o controle sobre
o registro populacional para, sistematicamente, negar requisições de palestinos e de outros não judeus, submetendo
os requerentes a “abusos burocráticos organizados e metódicos”, justificados em defesa do “caráter judaico do Es-
tado”. Desde 2000, processos de reunificação familiar são recusados, assim como pedidos de mudança de endereço
entre Gaza e Cisjordânia ou a entrada de palestinos não registrados que vivem no exterior, tendo por efeito limitar
sua população (HUMAN RIGHTS WATCH, 2021, p. 16; p. 50-51).
7 Se outras legislações já haviam oficializado a natureza judaica do Estado (ao invés de pertencente a todos seus cidadãos),
a mais recente inscreveu a discriminação como princípio constitucional ao privilegiar seu caráter étnico em detrimento
do democrático e ao definir Israel como “Estado-nação do povo judeu”, que tem direito exclusivo à autodeterminação no
território, considerando a colonização um valor nacional e não mais aludindo ao princípio da igualdade.
8 Todos os governos devem se pronunciar, condenando a prática desses crimes por Israel, “examinar acordos, regimes
de cooperação e todos as formas de comércio e negócios” (detectando aqueles que contribuem para o apartheid e
perseguição), dar visibilidade e pressionar para que essas violações cessem e investigar e processar sujeitos impli-
cados. A venda de armas e prestação de assistência militar e securitária a Israel devem ser condicionadas à adoção
de medidas concretas para cessar tais práticas. Paralelamente, empresas “devem cessar atividades que contribuam
diretamente” para esses crimes, deve ser criada uma comissão internacional de inquérito na ONU e designado um
enviado especial para apurar os crimes e mobilizar a comunidade internacional (HRW, 2021, p. 20-21).
mina e oprime outro grupo racial em ambos os lados da Linha Verde, o que
corresponde à definição de apartheid. O contraponto é também a discrimi-
natória “lei de retorno” e de cidadania, assim como a diferenciação entre ci-
dadania e nacionalidade, beneficiando, exclusivamente, judeus. Derivam da
judeidade reivindicada e institucionalizada pelo Estado (inclusive em detri-
mento de sua dimensão democrática) os privilégios e as políticas de “opressão
sistemática” e “discriminação institucional” às quais o povo palestino como
um todo está submetido. Assim, em conformidade com a bibliografia, a HRW
considera como eixo articulador e explicativo do apartheid, da perseguição e
das violações correlatas a própria reivindicação de um Estado judeu em terri-
tório partilhado, que tem implementado práticas e políticas para conseguir e
manter uma maioria étnica, quando o total de palestinos é maior que o de is-
raelenses judeus, recorrendo então à fragmentação e expulsão populacional.
Eis reflexão convergente com a bibliografia.
Um último ponto a ser mencionado, de menor relevância, é
que, assim como Ilan Pappé (2015) em sua obra, a HRW (2021) apresentou seu
relatório como quase novidade em um debate que seria, supostamente, re-
cente, quando foi precedido de já considerável número de publicações com-
parando África do Sul e Israel ou analisando o cometimento também pelo úl-
timo do crime de apartheid. A HRW afirma buscar suprir uma lacuna, a de que
poucos, até então, teriam conduzido uma “análise legal detalhada baseada
nos crimes internacionais de apartheid e perseguição”. Ela menciona somente
outros relatórios institucionais, como o da própria B’Tselem, publicado meses
antes do seu e de outras ONGs, como a Yesh Din e aquelas que remeteram
uma relatoria paralela ao guardião da CIEDR. Vale destacar, além das obras
de intelectuais palestinos e israelenses (como Fayez Sayegh, Edward Said e
Uri Davis) e da relatoria de Dugard e Falk, o estágio avançado do debate na
África do Sul, onde circulam publicações comparativas desde, pelo menos, os
anos 1990, como um livro seminal de Greenstein (1995). Já a Yesh Din (2010,
p, 5) aponta que, há décadas, “acusações de apartheid foram feitas contra
Israel, com intensidade, graus e aludindo a contextos espaciais e temporais
variados”. Mas, explicitando suas próprias limitações teóricas e políticas, afir-
ma que tais denúncias ficaram inicialmente restritas a “grupos relativamente
marginais e extremamente radicais da sociedade civil internacional e palesti-
na”, raramente incluindo “análises legais”, voltadas a averiguar a adequação da
tipificação. Recentemente, “o discurso do apartheid foi expandido para além
desses limites” e a acusação se tornou objeto de cada vez mais análises e lugar
comum entre “crescentes círculos de ativistas políticos e mesmo ativistas de
direitos humanos e pela paz”.
Conclusão
Uma crítica necessária aos relatórios da B’Tselem e HRW é a ausência
da dimensão e/ou tipificação internacional de colonialismo, que é central na
bibliografia e está implícita na ideia de judaização territorial. Seja nas ciências
humanas, seja no direito internacional (como na CIEDR e CISPCA), a coloniali-
dade é explicitamente relacionada às situações de discriminação racial e aos
regimes de apartheid. Essa lacuna prejudica a abordagem do objeto específi-
co, dificultando a percepção da natureza mais ampla do racismo e da discrimi-
nação racial prevalecentes na Palestina/Israel. Inclusive, essa ausência ajuda a
entender porque a HRW, apesar de seu consistente relatório, reitera interpre-
tações relativamente acríticas sobre Gaza, ao sugerir uma falsa equivalência
nas violações praticadas por Israel e pela resistência armada palestina, atu-
ante sobretudo a partir desse território. Ao menos, recorrer à tipificação de
apartheid implica que, qualquer ação voltada a manter um regime desse tipo
é ilegal e ilegítima. Em contrapartida àquelas voltadas a desmantelá-lo que,
inclusive, podem ser consideradas a partir da resolução 3070 da Assembleia
Geral da ONU, de 1973 (aprovada com amplo apoio dos países não alinhados,
e à revelia das ex-potências coloniais), alusiva ao direito dos povos resistirem
às formas de colonização, discriminação e negação de seu direito à autodeter-
minação, e que menciona o caso palestino e sul-africano. Ou seja, não há uma
refinada articulação e hierarquização das causalidades dessas violações, figu-
rando elas de modo um tanto descontextualizado e acrítico, na contramão de
autores como Löwstedt (2014), que chega até a quantificar a responsabilidade
pelas violações praticadas pelos regimes de apartheid e pelas respectivas re-
sistências anticoloniais e antirracistas, demonstrando a desproporcionalidade
e como, via de regra, o causador é o regime violador. Vale destacar que, mes-
mo relatando a partir de um mandato específico designado pelo Conselho de
Direitos Humanos da ONU (portanto, também inscrito nas balizas conceituais
do direito internacional e restrito aos TPO), John Dugard e Richard Falk arti-
cularam, explicitamente, colonialismo e apartheid, o que figurou também no
relatório do conselho sul-africano. Por sua vez, a Yesh Din (2020, p. 28; 57) tam-
bém faz tais relações, aludindo à especificidade da ocupação, acompanhada
de colonialismo, o que sustenta a realidade hierárquica institucionalizada de
dois grupos raciais, um dominante e privilegiado e outro, sistematicamente,
dominado, oprimido e discriminado (“esse processo produziu duas Cisjordâ-
nia com o passar do tempo”). Inclusive, o crime de apartheid é cometido nos
TPO, pois, dentre outras coisas, a ocupação israelense não é ordinária, mas
uma “acompanhada de um vultuoso projeto de colonização”.
Apesar dos limites dos três relatórios se comparados com a bibliogra-
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Resumo: Este artigo objetiva analisar o tratamento dado pelo Brasil às pesso-
as imigrantes não nacionais, mormente quando situamos nosso recorte à luz
da nova lógica humanitária, introduzida pela Lei de Migração de 2017, em re-
chaço ao momento securitário que era escudado pelo Estatuto do Estrangeiro
1 Doutorando em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ. Mestre em Direitos Humanos e Políticas
Públicas pelo NEPP-DH/UFRJ. Graduado em Direito pela FND/UFRJ. pedrotpgreco@hotmail.com
2 Pós-doutorado no CPDA/UFRRJ. Doutorado em Ciência Política e Sociologia pela UCAM. Graduado em Direito
pela FND/UFRJ. jorgefolena@yahoo.com.br
Resumen: Este artículo tiene como objetivo analizar el trato dado por Brasil a
los inmigrantes no nacionales, especialmente cuando ponemos nuestro foco
a la luz de la nueva lógica humanitaria, introducida por la Ley de Migración de
2017, en repudio al momento de seguridad que fue blindado por el Estatuto
de Extranjería de 1980. Por ello, en términos metodológicos, invocaremos la
solidaridad social, la Constitución de la República de 1988, los tratados inter-
nacionales suscritos por nuestro país, las Leyes sobre extranjería internacio-
nal, los actos normativos infrajurídicos, la doctrina jurídica y el derecho inter-
nacional jurisprudencia. Como referente teórico establecimos a Hélion Povoa
Neto, quien analiza el tema de la inmigración internacional de manera de-
mocrática y tolerante. Con estos objetivos en marcha, elaboraremos nuestros
comentarios críticos sobre el curso de esta disciplina en Brasil, para verificar
si hay a favor del inmigrante no nacional un posible derecho líquido y cierto
a la inmigración internacional al territorio brasileño. En este sentido, inves-
tigaremos si estaría surgiendo entre nosotros un sentimiento de aversión al
inmigrante no nacional, que podría derivar en un Derecho Internacional del
Enemigo para el inmigrante no nacional.
Abstract: This article aims to analyze the treatment given by Brazil to non-
national immigrants, especially when we place our focus in the light of the
new humanitarian logic, introduced by the Migration Law of 2017, in rejection
of the security moment that was shielded by the 1980 Foreigner Statute. To do
so, in terms of methodology, we will invoke social solidarity, the Constitution
of the Republic of 1988, the international treaties signed by our country, the
Laws on international immigration, infra-legal normative acts, legal doctrine
and international jurisprudence. As a theoretical framework, we established
Hélion Povoa Neto, who examines the issue of international immigration in a
democratic and tolerant way. With these beacons in place, we will elaborate
our critical comments regarding the course of this discipline in Brazil, to see
if there is in favor of the non-national immigrant a possible liquid and cer-
tain right to international immigration to Brazilian territory. In this sense, we
will investigate whether a feeling of aversion to the non-national immigrant
would be appearing among us, which could result in an International Law of
the Enemy for the non-national immigrant.
I – Introdução
De forma inicial, precisamos destacar que nosso objeto de estudo es-
tará vertido sobre os imigrantes não nacionais. Com isso, trataremos da seleti-
vidade3 e do utilitarismo4 que são, a nosso juízo, algumas das marcas do jeito
como cuidamos da imigração de não nacionais para o nosso país.
Devemos elucidar ainda, que o nosso intuito nesse texto é ser o mais
inclusivo e mitigador de situações de vulnerabilidades sociais, especialmente
dos imigrantes não nacionais que se destinam para o Brasil. Por isso, o nos-
so objeto de interesse é uma pessoa que não veio perseguida por motivos
religiosos, étnicos, culturais ou outros, e tampouco devido a guerras civis ou
declaradas, sendo esse justamente as ideias que sedimentam o conceito de
refugiados.
No que tange à metodologia, precisamos pontuar que será utilizado o
raciocínio indutivo e lógico, feito a partir da leitura e interpretação da Consti-
tuição de 1988, dos tratados internacionais de direitos humanos, das leis bra-
sileiras sobre imigração, dos atos normativos infra-legais, da doutrina jurídica
3 A seletividade dentro da questão imigratória pode ser entendida como a opção por nacionalidades específicas e o
rechaço a determinadas nacionalidades feita pelo Brasil em controle que fere os princípios constitucionais magnos
da não discriminação, da isonomia substancial e da solidariedade social.
4 O utilitarismo para esse texto se refere à escolha de nosso país de instrumentalizar os imigrantes aos interesses
nacionais em detrimento do valor humanitário que deveria guiar o Brasil dentro dessa seara das imigrações.
5 In: https://www.migramundo.com/em-decisao-historica-stf-frances-descriminaliza-ajuda-a-migrante-
indocumentado/amp/. Acesso em: 24 mai. 2021.
6 Com o fim didático, impera esclarecer que os escritores jurídicos são fortes em dizer que o Constituinte cochilou
na escrita desse último item porque ela se refere tanto para os não nacionais residentes e não residentes no Brasil,
ainda que lá esteja escrito que apenas os primeiros terão esse rol de direitos assegurados.
7 A Lei nº 13.445/2017 foi um dos últimos atos do governo Dilma Rousseff, enquanto o Decreto Federal nº 9.199/2017
foi um produto do governo Michel Temer, sendo esse um dos motivos que afastam a técnica desses dois atos legis-
lativos.
ser truncada.
Nessa mesma linha, também é obrigatório listar a Declaração Unversados
Direitos Humanos8 de 1948 que no seu art. 14 dispõe claramente sobre o di-
reito de toda pessoa perseguida procurar asilo em outros países: “Todo ser
humano, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em
outros países”.
Outro ato internacional precioso é a Convenção Internacional sobre
a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros
das suas Famílias de 1990. Esse documento traz a previsão de que o trabalha-
dor migrante é aquele que vai exercer atividade remunerada em um Estado
que não é o seu. Lamentavelmente, contudo, o Brasil ainda não ratificou esse
documento o que enfraquece essa agenda em nosso país.
Nessa mesma esteira, o nosso país ainda possui a Lei dos Refugiados
ou Lei nº 9.474/1997 que é valorosa por colocar luz em uma seara que, não
raro, é escanteada dentro do Direito Internacional Público e Direito Interna-
cional Privado. Esse assunto está na ordem do dia havendo fluxos significati-
vos de pessoas imigrantes em todos os continentes do mundo.
No caso do Brasil essa é uma realidade que urge, dado que o nosso
país recebeu, e ainda recebe, grupos de pessoas haitianas, venezuelanas, sí-
rios, afegãs e ucranianos, por motivos diferentes, a saber, cronologicamente,
desastre ambiental9, crise econômica10, guerra civil11, golpe de estado12 e
guerra declarada13.
Na seara pedagógica, na Lei de Migrações, infelizmente foi vetado
pelo Executivo Federal um conceito de migrante do seu art. 1º, § 1º, I, pois tal
definição desejava trazer segurança jurídica, solvendo eventuais incompatibi-
lidades entre opiniões sobre o migrante.
8 Podemos elencar que dentro da DUDH também existe garante o direito de migrar (Artigo XIII), igualdade e digni-
dade (Artigo I), a liberdade e a segurança pessoal (Artigo III), a não discriminação (Artigo VII), a segurança social
(Artigo XXII), o trabalho condições justas de trabalho (Artigo XXIII) e padrão de vida que assegure saúde e bem
estar (Artigo XXV).
9 Conhecemos que existe debate doutrinário quanto à existência dos chamados refugiados ambientais. Superado essa
discussão o Brasil no caso do Haiti teve uma política de forte recepção por meio de vistos humanitários dos fluxos
migratórios internacionais de haitianos.
10 Embora uma crise econômica por si só, nos moldes exatos da Lei de Refugiados, não seja motivo para considerar
o refúgio o Brasil, no caso da Venezuela, admitiu que existe nesse país uma situação delicada quanto aos Direitos
Humanos de forma que vem recebendo os venezuelanos por questões humanitárias.
11 In: https://www.brasildefato.com.br/2021/03/15/uma-decada-de-guerra-na-siria-nao-imaginava-isso-ate-hoje-di-
z-refugiada-no-brasil. Acesso em: 12 dez. 2021.
12 In: https://g1.globo.com/sp/mogi-das-cruzes-suzano/noticia/2021/10/03/com-ong-de-refugiados-no-brasil-pales-
tina-se-mobiliza-para-ajudar-afegaos-e-traze-los-ao-pais.ghtml. Acesso em: 12 dez. 2021.
13 In: https://g1.globo.com/mundo/ucrania-russia/noticia/2022/03/19/brasil-recebeu-894-ucranianos-desde-o-ini-
cio-da-guerra-diz-pf.ghtml. Acesso em: 6 dez 2022.
Com isso, ainda que tenha sido vetado, lançamos essas premissas para
que tenhamos uma ideia do que poderia ter se tornado Lei: “migrante: pessoa
que se desloca de país ou região geográfica ao território de outro país ou re-
gião geográfica, incluindo o imigrante, o emigrante, o residente fronteiriço e
o apátrida”. A alegação utilizada pela Presidência da República para esse veto
foi:
O dispositivo estabelece conceito demasiadamente amplo de migran-
te, abrangendo inclusive o estrangeiro com residência em país fronteiriço, o
que estende a todo e qualquer estrangeiro, qualquer que seja sua condição
migratória, a igualdade com os nacionais, violando a Constituição em seu ar-
tigo 5º, que estabelece que aquela igualdade é limitada e tem como critério
para sua efetividade a residência do estrangeiro no território nacional.
Com o devido respeito, essa razão não se apresenta como a mais
adequada, visto que o imigrante não nacional – previsto no art. 5º, caput da
Constituição – engloba o residente e o não residente. Não faz sentido conferir
proteção humanitária para uma pessoa que esteja no Brasil e deixar no limbo
jurídico uma pessoa pelo simples fato de ela não residir em nosso país.
Em outras palavras, a residência não pode, e não deve ser, o fator de-
terminante para o alcance de direitos constitucionais até mesmo em respeito
à universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos
como pontua o art. 3º, I da Lei de Migrações. Nesse sentido, seria de bom
alvitre que esse veto tivesse sido derrubado pelo Legislativo Federal por não
atender ao filtro constitucional material da motivação idônea Isso porque o
veto se construí em torno de um lapso do constituinte originário que olvidou
de consagrar a todos os não nacionais (residentes e não residentes) o acesso
aos direitos fundamentais.
Isso decorre, em parte, do tratamento a ser dado por nosso país, se-
guindo os passos, da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Entende-se
entende que a pessoa não nacional inserida em um contexto de imigração
deve receber um tratamento positivo como ficou estampado no caso Família
Pacheco Tineo x Bolívia14 em que a CIDH interpretou o pedido de asilo po-
lítico de forma dilatada, consoante o art. 22.7 da Convenção Americana de
Direitos Humanos.
Por tudo que foi exposto, vemos que atualmente não existe de manei-
ra cabal e incontestável na Constituição ou em nossas Leis o direito explícito
à imigração internacional, salvo no caso do refugiado que possui normas di-
ferenciadas a seu favor.
Entretanto, acreditamos que o direito a imigração internacional em
15 In: https://www.brasildefato.com.br/2021/06/25/morosidade-da-pf-impede-acesso-de-imigrantes-
indocumentados-a-auxilio-e-vacinacao. Acesso em: 12 dez. 2021.
temente humana que advém de pessoas que são sujeitos de direito tutelados
pelo Direito Internacional e que por isso devem ter primazia na verticalização
desse tema.
No entanto, essa mudança de prisma da imigração para o imigrante
não é primária de ser levada adiante, uma vez que existem fábulas de que
é o imigrante não nacional o culpado por nossos problemas sociais. Assim,
esse grupo seria o responsável por trazer doenças, risco sanitário, por trazer
insegurança pública e terrorismo, risco securitário, por trazer desemprego e
pobreza, risco trabalhista e social, e por ameaçar nossos costumes e tradições,
risco cultural. Ou seja, existiriam muitos argumentos para fechar as nossas
fronteiras e impedir o acesso de qualquer imigrante não nacional, porque es-
sas pessoas, em teoria, somente trariam máculas para a suposta hígida socie-
dade brasileira.
Com essas colocações aninhadas, nos perguntamos se estamos expe-
rimentando o nascimento de um Direito Internacional do Inimigo, em rela-
ção aos imigrantes não nacionais. Isso poderia estar acontecendo, o que seria
normal, pois estaria em voga um discurso de “nós contra eles”, escassez de
recursos públicos e privados, crise econômica, carência financeira, desempre-
go, dentre outros desafios sociais. Entretanto, isso não ocorre no Brasil, talvez
por não ter passado por nenhum episódio de terrorismo tão grave quanto os
EUA, ou por não ter que lidar com as altas e constantes entradas de pessoas
refugiadas vindas da Ásia e da África como acontece com a União Europeia.
E também por sermos um país multi-étnico que lidou com imigrações inter-
nacionais expressivas (africanos, portugueses, espanhóis, italianos, alemães,
poloneses, japoneses, coreanos, chineses, bolivianos, peruanos, paraguaios,
haitianos, venezuelanos, sírios, libaneses e outros povos) durante toda a nos-
sa existência.
Assim, estaríamos acostumados com pessoas não nacionais imigran-
tes e protanto não estamos com essa sensação de inimizade tão aflorada em
relação aos não brasileiros que chegam até nosso território, ainda que os ca-
sos de xenofobia16 em nosso país estejam cada vez mais visíveis. Com a pa-
lavra Ricardo Rezende Figueira e Sarah Mbuyamba Masengu (2020, p. 540)
relatam essa realidade:
Aqui a discriminação sofrida não era pela etnia, mas especialmente
pela cor da pele e pelo continente de onde vieram. Sofreram mudanças e in-
tervenções na sua cosmovisão e nos seus hábitos e certamente mudaram lu-
gares onde trabalharam e habitaram, interferiram com sua cultura, seu olhar,
16 In: https://g1.globo.com/mt/mato-grosso/noticia/2021/04/20/video-de-racismo-e-xenofobia-contra-haitianos-e-
onibus-em-cuiaba-e-apurado-pela-policia.ghtml. Acesso em: 8 jan. 2022.
seu jeito de ser. Julgaram e foram julgados. Sofreram preconceitos, foram sub-
metidos ao trabalho degradante, exaustivo e humilhante e tiveram que lidar
com o fato de serem outsiders e, por o serem, foram mais explorados.
Entretanto, esse estado de coisas pode estar se desmontando veloz-
mente, porque essa posição varia de acordo com o cenário montado, mor-
mente, quando existe, por exemplo, guerra civis como a que ocorre na Síria
(CERCHI, 2017, p. 21), desastres ambientais como o terremoto no Haiti (FER-
NANDES; FARIA, 2017, p. 15), a crise econômica na Venezuela (SILVA; SAMPAIO,
2018, p. 734), ou ainda a pandemia do Coronavírus (GRECO, 2020, p. 3). Dessa
forma, a aparente tranquilidade do Brasil pode ser modificada, sendo que, a
nosso parecer, ela já está se redesenhando, pois podemos lembrar do trata-
mento dado aos venezuelanos em Roraima quando houve o acirramento dos
casos de agressões17 entre brasileiros e venezuelanos. O inimigo aqui não
seria sinônimo de adversário, porque em uma contenda bélica, a outra parte
é aquela que merece todo o nosso desprezo e por isso não mereceria dignida-
de, mesmo que ele esteja em uma situação de miséria profunda.
Assim, para o suposto inimigo valeria o direito atroz e cruel, utilizan-
do-se todas as técnicas possíveis para impedir que ele logre êxito (direito à
imigração internacional), uma vez que hipoteticamente vigora a lógica do
“matar ou morrer” que imperaria permitir toda sorte de atitudes para preser-
var o Brasil e os brasileiros, mesmo sob o risco de ferirmos letalmente os arts.
3º, I e 4º, II, VIII, IX e X da Constituição que são os faróis no campo das relações
internacionais de nosso país.
Em resumo, paralelo a esse traço, estaríamos sendo seletivos quanto à
nacionalidade. Pessoas do norte global (estado-unidenses, canadenses, japo-
neses, europeus, australianos, por exemplo) são bem vistas e até desejadas,
mas outros latino-americanos, africanos, árabes e asiáticos, com exceção de
alguns povos, são recepcionados com maus olhos. Estaríamos valorizando
certos imigrantes não nacionais como, por exemplo, o jogador de basquete
estadounidense, o cantor inglês, o futebolista espanhol, o ator português, o
engenheiro alemão, o médico francês, o cientista japonês, o pintor italiano,
etc.
De forma geral, haveria um pensamento de rechaço ao imigrante não
nacional, mas há também uma cadência utilitarista de permitir e até mesmo
incentivar algumas pessoas que possam agregar algum valor, talento ou que
estejam circunscritas na prateleira da mão de obra estratégica. Par e passo
com essa situação temos em rumo diametralmente oposto a opção de com-
17 In: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/08/refugiados-venezuelanos-sao-agredidos-e-expulsos-de-
tendas-em-roraima.shtml. Acesso em: 24 dez. 2021.
bater pessoas que não sejam “úteis” para a sociedade de trabalho e produção
brasileiras.
Outrossim, isso é corroborado pelo nosso mecanismo imigratório in-
ternacional a entrada de pessoas para certos postos de trabalho, com cer-
to perfil social e familiar, direcionando-os para cidades específicas do Brasil.
Nisso fica flagrante que o intuito não é de valorização da pessoa imigrante
não nacional, mas do processo. Ou seja, a região metropolitana do país esco-
lhido precisa de braços para a indústria naval ou para a construção civil, por
exemplo, sendo permitida a entrada de imigrantes não nacionais com essa
qualificação.
Em síntese, notamos que estaríamos sendo colonizados pela econo-
mia e não conduzidos pela proteção humanitária. Desse modo, seria o livre
mercado capitalista que estaria nos orientando, havendo uma concórdia mí-
nima com os direitos humanos.
Considerações finais
Nisso percebemos que o direito de imigrar para o Brasil não é expres-
samente reconhecido como direito líquido e certo, salvo se houver algum in-
teresse do poder público ou de determinadas entidades particulares, o que
acaba facilitando a entrada de certos imigrantes não nacionais.
Entretanto, esse não deveria ser o nosso fio condutor, dado que imi-
grar deveria ser interpretado como um direito humano, que transcende a
previsão expressa na Constituição ou o assento na Lei de Migrações ou em
qualquer outro ato legal ou infralegal de nosso ordenamento jurídico. Isso se
mostraria correto, porque precisamos ser coerentes com a nossa identidade
genética que foi feita conjuntamente com várias culturas que imigraram para
o Brasil ao longo de nossa história.
Por certo é nosso dever contribuir com esse direito humano à imigra-
ção internacional, conferindo um corpo real à solidariedade social e demais
vértices constitucionais de nosso sistema jurídico para que haja efetivamente
uma sinergia entre os atores envolvidos no contexto imigratório.
Isso acarreta que consagremos leis precisas, entidades imigratórias
sensíveis com o imigrante não nacional, bem como julgamentos judiciais e
administrativos antenados com o enaltecimento dos direitos humanos e de
sacralização da proteção das pessoas imigrantes em situação de vulnerabili-
dade.
Com isso, ratificamos as ideias de Helion Póvoa Neto (2005, p. 12052-
12060) bastante elucidativas para entenderemos que não devemos tratar os
imigrantes não nacionais como párias, e sim, com dignidade. Dado isso, escu-
Referências
BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil:
promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília, DF, 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso
em: 7 abr. 2021.
Resumo: Este artigo pretende contribuir com a discussão teórica acerca das
possíveis aproximações entre os conceitos de Educação em Direitos Huma-
nos (EDH) e bases teóricas da Educação Profissional e Tecnológica (EPT), quais
sejam: escola unitária, politecnia e omnilateralidade, tendo em vista que tais
1 Graduada em Pedagogia e Direito, com especialização em Direitos Humanos e Educação em Direitos Humanos.
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional e Tecnológica no Instituto Federal de Edu-
cação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais. anacarolinacorrea.pedagogia@gmail.com
2 Graduado em Engenharia Industrial Mecânica pela Fundação de Ensino Superior de São João Del Rei e em
Formação Pedagógica pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais. Mes-
trado em Engenharia Mecânica pela Unesp e doutorado em Administração de Empresas pela PUC-RJ. É professor
do IF SDESTE-MG. helder.silva@ifsudestemg.edu.br
justos. Es con esta noción que debe entenderse la conexión entre EDH y EPT
en EMI, ya que ambas pueden ser formas de impulsar a la sociedad a superar
las estructuras sociales del capitalismo, educando de manera revolucionaria.
Diálogos iniciais
A compreensão da Educação em Direitos Humanos (EDH) enquan-
to política pública – atravessada por valores éticos, subjetividades, relações
e práticas sociais e institucionais, atrelada as concepções de escola unitária,
politecnia e omnilateralidade, constituem-se eixos de primordial importância
para formação humana dos estudantes da Educação Profissional e Tecnoló-
gica (EPT). Principalmente, no Ensino Médio Integrado (EMI), bem como para
construção de uma sociedade verdadeiramente justa, igualitária e democráti-
ca, que supere as adversidades impostas pelo capitalismo.
A partir disso, emerge para a escola, que esteja comprometida com
justiça social e com um projeto de sociedade democrática, especialmente,
para aquelas que ofertam Educação Profissional e Tecnológica (EPT) por meio
do Ensino Médio Integrado (EMI), por ser uma importante etapa formativa
para o exercício dos direitos humanos e da cidadania – o grande desafio de
realizar a EDH, sob a perspectiva da escola unitária e da politecnia, com vistas
à omnilateralidade.
No que tange ao EMI e a EPT aliados aos princípios da EDH, pactua-se
da proposta de educação que propõe a superação das dualidades e contra-
dições impostas capitalismo. Isto é, trabalha-se pela escola unitária, por uma
educação politécnica, rumo a omnilateralidade, que diz respeito à formação
integral do ser humano, desenvolvido em todas as suas potencialidades, por
meio de um processo educacional socialista que considere a formação cientí-
fica, tecnológica e humanística, a política e a estética, com vistas a emancipa-
ção das pessoas. Condição importante para equalizar a histórica desigualda-
de de oportunidades educacionais na sociedade brasileira.
Nesse sentido, a EDH não se caracteriza pela forma de “pensar” a edu-
cação das classes dominantes; opostamente, é revolucionária e contra hege-
mônica. Quando incorporada nos currículos e práticas no EMI, se constitui
uma alavanca que impulsiona a educação, para que seja mais um dos meios
de luta em prol da superação sociedade de classes.
Dessa forma, observa-se que EDH articulada à proposta de escola uni-
tária, preconizada pela concepção de politecnia, com vistas à formação om-
nilateral, pode se constituir como uma das condições necessárias na travessia
em direção à superação da dualidade educacional, em busca da efetiva trans-
formação da estrutura social.
Então, a concepção de educação de cunho socialista, inspirada nos
estudos de Marx, de base unitária, integrada, politécnica e omnilateral por
princípio, busca no desenvolvimento do capitalismo, e de sua crítica, superar
a proposta burguesa de educação, a partir da própria sociedade capitalista.
Objetivo que guarda intrínseca relação com os preceitos que fundamentam a
educação pautada nos Direitos Humanos. Daí, ser mais do necessário educar
em direitos humanos no EMI.
Portanto, vê-se que as concepções teóricas acerca EDH e da EPT no
EMI, possuem aproximações conceituais e que educar em direitos humanos
na EPT, sobretudo no EMI, ao que parece, é um norte e um dos caminhos que
rumam para modificação de mentalidades, para a formação social e política
3 O PNEDH é uma política pública que consolida um projeto de sociedade baseado nos princípios da democracia,
da cidadania e da justiça social, por meio de um instrumento de construção de uma cultura de direitos humanos
que visa o exercício da solidariedade e do respeito às diversidades (BRASIL, 2018).
4 Por “sul” a autora está adotando a perspectiva do sul global, ou seja, um sul geopolítico e não apenas geográfico,
que faz referência às periferias do sistema-mundo capitalista. (ESCOSTEGUY FILHO, et al., 2019, p. 89).
equivale dizer que o ser humano é produtor de sua realidade e, por isto, apro-
pria-se dela e pode transformá-la. É princípio educativo, ainda, porque leva
os estudantes a compreenderem que todos nós somos seres de trabalho, de
conhecimento e de cultura, e que o exercício pleno dessas potencialidades
exige superar a exploração de uns pelos outros.
Assumir o trabalho como princípio educativo na perspectiva do tra-
balhador, implica superar a visão utilitarista, reducionista de trabalho. Implica
inverter a relação situando todo ser humano como sujeito do seu devir. Esse é
um processo coletivo, organizado, de busca prática de transformação das re-
lações sociais desumanizadoras e, portanto, deseducativas (FRIGOTTO, 1989).
Omnilateralidade
No verbete, sobre o conceito de omnilateralidade5, Sousa Júnior (1999,
s. p) explica que:
[...] embora não haja em Marx uma definição precisa do conceito
de omnilateralidade, é verdade que o autor a ela se refere sempre
como a ruptura com o homem limitado da sociedade capitalis-
ta. Essa ruptura deve ser ampla e radical, isto é, deve atingir uma
gama muito variada de aspectos da formação do ser social, portan-
to, com expressões nos campos da moral, da ética, do fazer prático,
da criação intelectual, artística, da afetividade, da sensibilidade, da
emoção, etc. Não implica, todavia, a compreensão de uma forma-
ção de indivíduos geniais, mas, antes, de homens que se afirmam
historicamente, que se reconhecem mutuamente em sua liberdade
e submetem as relações sociais a um controle coletivo, que superam
a separação entre trabalho manual e intelectual e, especialmente,
superam a mesquinhez, o individualismo e os preconceitos da vida
social burguesa.
5 O conceito de omnilateralidade empregado neste texto apoia-se no estudo de Sousa Júnior (1999), concebendo
como fundamental em Marx, que o surgimento do homem omnilateral só será possível após a ruptura ampla e
total com as relações burguesas, ou seja, só se dará plenamente em uma sociedade pós-capitalista. A esse respeito,
contrariamente, Manacorda (1991) deixa a entender em sua análise, que é possível a existência da omnilateralida-
de na sociedade burguesa (SOUSA JÚNIOR, 1999, p. 110-111).
Politecnia
Ainda na abordagem marxista, o conceito de politecnia6 deriva, ba-
sicamente, da problemática do trabalho. O ponto de referência é a noção de
trabalho como princípio educativo geral. A ideia de politecnia envolve a arti-
culação entre trabalho intelectual, trabalho manual e uma formação a partir
do próprio trabalho social, desenvolvendo os fundamentos e os princípios, da
organização do trabalho na nossa sociedade e que, portanto, nos permitem
compreender o seu funcionamento (SAVIANI, 1989, p. 10).
Sousa Júnior (1999, p. 105) considera que na proposta educacional de
Marx, a educação politécnica aparece como uma proposta concreta e fun-
damental para emancipação dos trabalhadores com vistas à superação da
sociedade burguesa. Haja vista, que unida aos exercícios físicos (ginástica) e
aos conteúdos intelectuais, a educação politécnica deveria elevar a classe tra-
balhadora acima das demais, transformando os trabalhadores em potenciais
revolucionários. Exatamente porque agrega o aspecto fundamental do pro-
cesso de trabalho – a combinação da dimensão intelectual com a dimensão
prática – não encontrado na formação dos filhos classe burguesa.
Desse modo, conforme Saviani (2003), a noção de politecnia se encami-
nha na direção da superação da dicotomia entre trabalho manual e trabalho in-
telectual, entre instrução profissional e instrução geral, entre os que concebem
6 Saviani (2003) explica acerca da utilização do termo politecnia que, Manacorda (1991), após minuciosos estudos
filológicos da obra de Marx, concluiu que a expressão “educação tecnológica” traduziria com mais precisão a
concepção marxiana do que o termo “politecnia” ou “educação politécnica”. Contudo, para além da questão ter-
minológica, Saviani considera as expressões “ensino tecnológico” e “ensino politécnico” como sinônimas. Por isso,
opta-se por utilizar neste trabalho o termo “politecnia” por carregar os preceitos da educação socialista e por ser
mais utilizado entre os teóricos do campo do trabalho e educação.
ANA CAROLINA CORRÊA SALVIO; HELDER ANTONIO DA SILVA
Aproximações conceituais entre educação em direitos humanos e as bases teóricas da educação profissional e tecnológica
Referências
TEIXEIRA, Anísio. Educação não é privilégio. 5. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 1994.
1 Licenciada em Educomunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP),
advogada e mestranda em Ciências da Comunicação na mesma instituição. janaina.gallo@usp.br
2 Possui graduação (Jornalismo), mestrado e doutorado em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicação
e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP); e pós-doutorado pela Universidade de Indiana (EUA) vinicius.
romanini@usp.br
ceito de meme – muito além da propagação pelas mídias sociais – como uma
unidade de informação, que se multiplica de cérebro em cérebro ou entre ou-
tros locais onde a informação é armazenada, no presente caso nos conteúdos
apontados pelo relatório. Pretende-se ainda neste trabalho investigar como
os meios de comunicação em massa contribuíram para a propagação desse
pensamento. Assim, verificamos o quanto a penetração deste bordão se deve
à ubiquidade dos programas de cobertura policial transmitidos pelas redes
de rádio e televisão brasileiras.
Abstract: Analysis of the spreading of the phrase “Human Rights for the right
humans” as a meme. From the analysis of the Final Report on Human Rights
Violations in the Brazilian Media by the Permanent Commission on the Right
to Communication and Freedom of Speech by the National Council on Hu-
man Rights, we verified if this phrase, so present in the Brazilian collective
unconscious, configures a meme in the epistemological sense of the term, as
defined by Richard Dawkins. We’ll make an historical contextualization about
the concept of the meme, far beyond its propagation by social media, as an
unit of information that multiplies from brain to brain or between other pla-
ces where information is stored, in the present case, the content pointed by
the report. We also intend to investigate how the broadcast media contribu-
ted to the spread of this line of thought. This way, we verify how much of the
penetration of this catchphrase is due to the ubiquity of crime and police fo-
cused TV shows transmitted In Brazilian radio and TV broadcasting networks.
Introdução
Foi uma grande revolução no pensamento e na história da humani-
dade chegar à reflexão conclusiva de que todos os seres humanos detêm a
mesma dignidade, ou seja, os mesmos direitos. Mas, na prática, verificamos
claramente que tal compreensão não vigora na mentalidade de todos, pois a
dignidade humana ainda é entendida como um atributo apenas para deter-
minados grupos.
O contexto histórico e social deste imaginário e o posicionamento dos
meios de comunicação em massa, sobretudo os jornais e programas jorna-
lísticos de rádio e televisão de cunho policialesco, em especial na realidade
brasileira, contribuíram muito para a permanência e perpetuação desse pen-
samento.
Comportamentos e ideias, assim como características genéticas, po-
dem ser transmitidos ao longo do tempo, passando por mecanismos de sele-
ção natural e evolução. Essa unidade de replicação responsável pela seleção e
transmissão de conteúdos inscritos em nossa cultura é o que Richard Dawkins
denominou de meme. Para ele, memes são ideias que se propagam pela so-
ciedade e sustentam determinados ritos ou padrões culturais.
Esse artigo busca traçar a origem desse discurso de aversão e des-
conhecimento sobre os direitos humanos na sociedade brasileira contem-
porânea e como a memética – estudo dos memes e de sua difusão – pode
ajudar a explicar a permanência e propagação desse pensamento. Partimos
de um breve histórico sobre a evolução e afirmação do conceito de direitos
humanos, como aqueles aplicáveis a todos os seres humanos – passando pelo
contexto brasileiro de consolidação desses direitos, no rastro da resistência à
ditadura militar de 1964-1985 e da redemocratização – e pelas disputas po-
líticas e sociais em torno dos direitos humanos. A seguir, faremos uma breve
conceituação sobre os memes e a memética e o papel dos chamados progra-
mas “policialescos” na criação de uma forte resistência na opinião pública à
3 INSTITUTO IPSOS. 63% dos brasileiros são a favor dos direitos humanos. Disponível em: https://www.ipsos.com/
pt-br/63-dos-brasileiros-sao-favor-dos-direitos-humanos. Acesso em 16 set. 2021.
1970 e a maior parte da década de 1980 foram marcadas pela crise econômi-
ca, explosão populacional nas grandes cidades, com a proliferação de favelas,
refletindo no grande aumento dos índices de criminalidade4.
A própria violência estatal por parte do regime, que teve, além da persegui-
ção política dos opositores com prisão, exílio, tortura e morte, um aumento na atu-
ação dos Esquadrões da Morte, organizações paralegais formadas por integrantes
das forças de segurança, e o aproveitamento de agentes da repressão pelo crime
organizado e da contravenção, como o exemplo dos chefes do jogo do bicho no
Rio de Janeiro, teve papel fundamental na escalada de violência. Ao final do regi-
me militar, o aparato repressivo que servia o regime começa a ser desmobilizado e
muitos dos seus agentes são recrutados por organizações criminosas, colocando à
disposição do crime organizado e de instituições estatais, como as polícias, as ferra-
mentas antes utilizadas para violações de direitos durante o regime.
O período de redemocratização é marcado também pelo crescimento
do protagonismo dos movimentos sociais pela reivindicação de direitos como a
moradia, melhores condições de trabalho, educação e saúde, entre outros. Entres
essas reivindicações, também está a de associações de defesa dos direitos de pes-
soas encarceradas, com apoio de setores da Igreja Católica que atuavam nos pre-
sídios e outras organizações da sociedade civil que começavam a se organizar em
torno da defesa dos direitos humanos. O governo do estado de São Paulo, após
a eleição do oposicionista Franco Montoro, em 1982, busca uma política de “hu-
manização” carcerária, liderada pelo então secretário de Justiça José Carlos Dias.
Tereza Caldeira (1991) faz uma reflexão sobre como, a partir do início da
década de 1980, a defesa de direitos humanos de prisioneiros comuns passou a ser
associada pela maioria da população paulistana à defesa de “privilégios para bandi-
dos”. O artigo discute como foi possível essa associação. Para tanto, analisa os argu-
mentos e ações tanto dos defensores quanto dos opositores a respeito dos direitos
humanos de prisioneiros comuns. Essa análise considera as noções de direitos exis-
tentes na sociedade brasileira e contrapõe as percepções de direitos sociais e direi-
tos individuais, mostrando que, enquanto os primeiros são largamente legitimados,
os segundos – que incluem os direitos humanos – são associados a privilégios.
A autora traz um destaque especial para o papel dos meios de comu-
nicação em especial os programas policiais do rádio como o apresentado por
Afanasio Jazadji5. A sua conclusão reverbera até os dias de hoje quando afirma:
Enquanto a maior parte dos cidadãos continuar associando direitos
4 HORTA, Maurício. Mito: “na Ditadura Militar, as cidades não eram violentas”. Superinteressante. 28 set. 2018. Disponível
em: https://super.abril.com.br/historia/mito-na-ditadura-militar-as-cidades-nao-eram-violentas/. Acesso em: 6 mai. 2022.
5 Afanasio Jazadji é um jornalista, radialista, advogado, publicitário e político brasileiro de origem romena. Em 1986,
foi eleito deputado estadual em São Paulo, sendo eleito como o candidato mais votado para a Assembléia Legislativa
naquele ano4, obtendo cerca de 300 mil votos apenas na cidade de São Paulo, e mais de meio milhão no total do estado.
A autora traz exemplos de como esse discurso era proferido por diver-
sos formadores de opinião da época, desde manifestos assinado por delega-
dos de polícia até na fala de locutores populares do rádio, como Jazadji.
Tinha que pegar esses presos irrecuperáveis, colocar todos num pa-
redão e queimar com lança-chamas. Ou jogar uma bomba no meio,
pum! acabou o problema. Eles não têm família, eles não têm nada,
não têm com que se preocupar, eles só pensam em fazer o mal, e
nós vamos nos preocupar com ele? [...] Esses vagabundos, eles nos
consomem tudo, milhões e milhões por mês, vamos transformar
em hospitais, creches, orfanatos, asilos, dar uma condição digna a
quem realmente merece ter essa dignidade. Agora, para esse tipo
de gente... gente? Tratar como gente, estamos ofendendo o gênero
humano! - trecho do programa radiofônico de Afanasio Jazadji, na
Rádio Capital, e que foi ao ar no dia 25 de abril de 1984. (CALDEIRA,
1991, p. 170)
lidam em grandes redes, nas mãos de poucas famílias com capital econômi-
co e político para bancar as grandes estruturas necessárias.
A história da comunicação nos mostra que curiosidade sobre tragédias
sempre foi um chamariz para aumento de audiência e vendagem nos meios
de comunicação. Nessa linha, o jornalismo policial ganha destaque dentro do
gênero sensacionalista com o objetivo de aumentar, ou manter para aumen-
tar a venda de jornais (jornalismo impresso), a audiência dos ouvintes (rádio)
ou telespectadores (televisão). Começam a circular nos meios de comunica-
ção relatos sobre crimes com cada vez mais requintes de crueldade, traços
de tortura e ousadia dos criminosos apresentadas de forma teatralizada por
personagens como Gil Gomes6 e Alborghetti7.
Em sua tese de doutorado “Jornalismo Policial: indústria cultural e vio-
lência,” apresentada no Instituto de Psicologia da USP, Davi Romão conclui que:
O Jornalismo Policial, por sua forma e por seu conteúdo, reforça em
seus telespectadores uma posição conformista, de resignação frente
às mais diversas frustrações impostas pela vida em nossa sociedade.
[...] a lógica presente neste gênero televisivo alimenta mecanismos
compensatórios paranoides para a raiva gerada por essas frustrações
sociais, de forma a propiciar uma satisfação parcial para o indivíduo. [...]
O aspecto conformista do Jornalismo Policial está intimamente rela-
cionado com seu formato estereotipado. Ao contrário de uma cria-
ção cultural verdadeira, esse gênero se reduz à infindável repetição
das mesmas ideias nos mesmos formatos: uma cena trágica ou de
violência é apresentada, comenta-se o quanto essa sociedade é pe-
rigosa, como esse perigo se deve a pessoas de má índole, e pede-se
por mais policiamento e leis mais fortes. Apesar de também estarem
presentes elementos que tentam disfarçar essa monotonia, dando-
-lhe a aparência de novidade ou relevância, em sua estrutura básica
os programas são sempre exatamente iguais. (Romão, 2013, p. 199)
6 Cândido Gil Gomes Jr. (1940-2008) foi um jornalista e advogado bem como repórter policial do rádio e televisão
rasileiro bastante popular graças a seus estilos personalíssimos de voz, de gestos e de se vestir.
7 Luiz Carlos Alborghetti (1945 -2009) foi um jornalista policial, radialista, apresentador de televisão e político bra-
sileiro. Foi deputado estadual no Paraná por dezesseis anos. Entre suas características marcantes estavam o tom
inflamado, desafiador, robusto e o discurso ácido e informal, não raro com o uso de termos chulos para expressar
sua indignação.
10 VARJÃO, 2015, P. 30
11 Meio: TV; veículo: SBT; programa: SBT Brasil; data da ocorrência: 31-01- 14; data da veiculação: 04-02-14; minuta-
gem do trecho: 00:00 A 01:04
o senhor recebeu alguma visita a não ser dos colegas de farda e dos
poucos amigos?” [Pai da vítima]: “Eu tenho certeza que se meu filho
fosse um bandido, se meu filho fosse um safado, os direitos huma-
nos teriam me procurado”; Trecho 3. [Âncora]: “Direitos humanos
para os humanos direitos [...]”12
Memes e a memética
Da redução do termo grego mimesis (imitação) surge o termo meme.
Cunhado por Richard Dawkins no livro O gene egoísta (1976) foi aplicado pelo
biólogo para dar conta dos processos de replicação e evolução cultural que
lhe chamaram a atenção quando iniciou sua defesa à tese do determinismo
genético. Para o pesquisador, assim como os genes eram os principais res-
ponsáveis por replicar o conteúdo geracional na evolução biológica dos or-
ganismos vivos, talvez houvesse uma outra unidade de replicação, diferente
dos genes, responsável pela seleção e transmissão de conteúdos inscritos em
nossa cultura. Assim ele busca com a expressão meme criar uma mesma pa-
lavra para descrever o que os genes fazem em termos biológicos, mas para
descrever ideias, conceitos e comportamentos que se propagam na socieda-
de. (CALIXTO, 2017).
Gustavo Leal-Toledo (2017), em seu estudo sobre memes e a memé-
tica, nos traz um panorama geral sobre o tema desde o seu conceito, estu-
do, aplicação e divergências. Para o autor, um meme pode ser compreendido
como uma unidade de cultura, um comportamento ou uma ideia que pode
ser passada de pessoa para pessoa pela imitação. Desse modo, “assim como
características genéticas são transmitidas hereditariamente, passando por
mecanismos de seleção natural e evolução, comportamentos e ideias tam-
bém seguem o mesmo processo”. (p.14)
Segundo Leal-Toledo (2017), o estudo sobre a memética começa a
se estruturar com a publicação de The Meme Machine, de Susan Blackmore
12 Meio: rádio; veículo: Rádio Itatiaia (MG); programa: Itatiaia Patrulha (MG); data da ocorrência: 16/05/2014; data
da veiculação: 19/05/2014; minutagem do trecho 1: 38:28 a 38:42; minutagem do trecho 2: 41:03 a 41:22; minutagem
do trecho 3: 41:52 a 41:55
(1999), em que a autora defende que a memética pode ser uma ciência e que
os memes só poderiam ser passados por imitação no sentido estrito. Essa visão
é criticada e considerada um dos motivos da má compreensão dessa ciência.
O autor considera que a ciência dos memes pode ser uma ‘cola concei-
tual’ entre as diversas áreas que estudam a cultura. Ele traz um “resumo abstra-
to” do que chama de Darwinismo Universal, que apresenta quatro condições
fundamentais para seleção natural: reprodução, hereditariedade, variação e
variação da aptidão. Assim, a memética pode ser compreendida como um
algoritmo da evolução por seleção natural aplicada diretamente à cultura.
Analisando o nosso objeto de pesquisa, qual seja o conceito por trás
da frase “Direitos Humanos para humanos direitos” como um meme, devemos
não olhar para a frase em si, mas como unidade de informação que é repassa-
da por imitação e assume formas variáveis.
O conceito cultural sobre direitos humanos que analisamos também
não pode ser compreendido sem levar em conta diversos aspectos psicoló-
gicos, sociais e econômicos que envolvem a sua propagação no imaginário
e como a influência de constantes violações de direitos por parte da mídia
ajuda na formação desse entendimento.
Ao analisar a propagação dos memes, Leal-Toledo se pergunta se são
os memes que querem ser passados ou as pessoas que os querem passar.
Diferente de uma análise feita apenas a partir da biologia, quando se fala em
cultura é muito difícil dissociar a agência humana da propagação.
Vemos isso, por exemplo, no artigo de Teresa Pires do Rio Caldeira
(1991), quando ela mostra que o discurso contra a aplicação dos direitos hu-
manos a quem não é considerado ‘cidadão de bem’ foi feito de forma cons-
ciente, proposital e com objetivos políticos por uma série de formadores de
opinião. Mas não se pode negar o papel dos receptores dessas informações
como replicadores dessa ideia e valores sociais alimentados por um conteúdo
jornalístico que reforça essas opiniões.
Esse conceito encontrou uma maneira poderosa de se propagar: os
meios de comunicação em massa, principalmente jornais impressos, rádio e
televisão, no gênero chamado jornalismo policial. Não somente pelo seu po-
tencial de atingir milhões de pessoas simultaneamente, mas também pelo
modo, estrutura e características dos próprios meios, que privilegiam a trans-
missão de unidades de informação simples e repetitiva e facilmente replicá-
vel. Nisso podemos aludir a Marshall McLuhan, com sua famosa concepção
de que o meio é a mensagem, em sua obra “Os Meios de Comunicação como
Extensão do Homem” (2009), em que procura demonstrar que o meio é um
elemento importante da comunicação, e não somente um canal de passagem
ou um veículo de transmissão.
Considerações finais
Durante a maior parte da história humana considerou-se natural que
populações marginalizadas como escravos, prisioneiros de guerra e crimi-
nosos comuns pudessem ser alvos de punições violentas como a tortura e
sofrimento. A memória coletiva sobre as atrocidades mantém-se latente até
os dias de hoje. No Brasil, uma sociedade com altos índices de desigualdade
social revela uma violência estrutural, que o processo de democratização das
últimas décadas tenta enfrentar. A combinação da reivindicação de direitos
à população carcerária, combinado ao aumento da percepção de violência,
fez com que esse “vírus incubado” fosse ativado com auxílio fundamental dos
meios de comunicação.
Os estudos sobre a memética ainda não estão plenamente desenvol-
vidos, mas o que se consegue concluir aqui, parafraseando Gustavo Leal-Tole-
do, é que a aproximação mais importante para a memética responder a estes
problemas seria o que chamou de behaviorismo memético, ou seja tratar os
memes como padrões de comportamento.
E foi o que conseguiu se observar aqui. A questão dos direitos huma-
nos como algo do outro, além do sujeito; ou como algo que defende bandi-
dos, é algo frequentemente disseminado pelos meios de comunicação como
uma resposta aos anseios da sociedade, que clama por melhores condições
de vida e, ao ouvir esses discursos, se sentem protegidos.
Os primeiros sistemas legais já preconizavam a defesa da sociedade
perante aqueles que quebravam um ‘contrato social’ com base no “olho por
olho, dente por dente”, como exemplo o código de Hamurabi. Mesmo com
a evolução dos códigos legais no sentido de abandonar penas cruéis e desu-
manas e o desenvolvimento legal da igualdade de direitos, o meme “olho por
olho dente por dente” permaneceu no imaginário popular, passado de gera-
ção para geração, e ganhando um forte impulso com a disseminação pelos
meios de comunicação em massa.
A própria história dos direitos humanos mostrou-se muitas vezes con-
troversa e em disputa, se pensarmos que os primeiros documentos que re-
metem ao tema, muito antes da criação das Organizações das Nações Unidas,
faziam uma defesa dos sujeitos em relação ao Estado, o que seria classificado
por muitos autores como Direitos Humanos de primeira geração, surgidos
com as revoluções burguesas do final do século XVIII e de todo o século XIX.
Refere-se mais precisamente à independência dos Estados Unidos e à criação
de sua Constituição, em 1787, e à Revolução Francesa, em 1789, tendo como
marco histórico a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, do mes-
mo ano e trazendo como elemento principal a ideia de liberdade individual,
concentrada nos direitos civis e políticos inerentes ao ser humano e oponíveis
ao Estado absoluto. Resumindo, os direitos humanos passaram por uma ‘evo-
lução legal’ que de fato não acompanhou a evolução cultural.
A questão de igualdades de direitos ainda é um grande desafio a ser
transposto, se pensarmos que ainda convivemos em uma sociedade estru-
turalmente racista e desigual. O Brasil desponta como um dos países mais
desiguais, o que reforça a dificuldade da percepção do outro como sujeito de
direitos, visto que convivemos com esse fato sem que haja políticas efetivas
que busquem combater essa estrutura.
A atual conjuntura não é favorável a essa quebra de paradigma, é
preciso um trabalho de base para ressignificar o conviver democrático como
forma de respeito e empatia, e regulações legais que responsabilizem esses
violadores, seja o Estado e as suas instituições, destacando o papel da mídia
como um quarto poder que exerce forte influência na sociedade.
A boa notícia é que já há iniciativas promissoras para se enfrentar esse
resquício cultural que teima em permanecer na sociedade contemporânea.
Propostas como a justiça restaurativa, que parte do pressuposto que os con-
flitos são inerentes aos seres humanos e busca soluções não-violentas, a edu-
comunicação, que “[...] trabalha com a interface entre os tradicionais campos
da educação e da comunicação e vem se apresentando como um caminho
de renovação das práticas sociais que objetivam ampliar as condições expres-
sões de todos os segmentos humanos” (SOARES, 2011, p.15).
Neste artigo, buscamos ter uma compreensão bem geral sobre a força
cultural do meme representado pela expressão “Direitos Humanos para Hu-
manos Direitos” no imaginário social brasileiro, o papel dos grandes meios de
comunicação e formadores de opinião na difusão desse conceito que, embo-
ra seja totalmente contrário à própria concepção de direitos humanos como
inerentes a toda e qualquer pessoa, está enraizado na construção moral de
boa parte da opinião pública. Percebemos que o contexto histórico e social
deste imaginário, em especial na realidade brasileira, também contribui mui-
to para a permanência desse pensamento, que talvez atinja seu ápice com a
eleição de um presidente da república que construiu sua imagem política em
Referências
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DAWKINS, Richard. O gene egoísta. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252016000300018. Acesso em 6 mai.
2022.
Resumo: Neste artigo busca-se propor algumas reflexões, acerca dos direitos se-
xuais (DS) e dos direitos reprodutivos (DR) no Brasil, tendo em vista o avanço do
conservadorismo na política brasileira e o período da pandemia do COVID-19.
Resumen: Este artículo busca proponer algunas reflexiones, sobre los derechos
sexuales (DS) y los derechos reproductivos (DR) en Brasil, frente al avance del
conservadurismo en la política brasileña y el período de la pandemia de CO-
VID-19. Se parte del entendimiento de que la crisis provocada por la pandemia
y sus impactos no pueden analizarse aisladamente. Así, se busco entender cuáles
son estos derechos, su desdoblamiento a partir de la década de las mujeres y
cómo han sido tratados en un contexto de conservadurismo que avanza en el
aparato estatal para, finalmente, entender en qué contexto se inserta la pande-
mia de COVID- 19. Para tanto, el artículo parte de teorías feministas y propone
un análisis bibliográfico-investigativo sobre el tema. Con este análisis se puede
apreciar que, si bien la crisis sanitaria ha potenciado el desmantelamiento - en
lo que respecta a los DS y a los DR femeninos -, este hecho no es nuevo. Se
percibió que este ataque es una constante, desde que tales derechos comenzaron
a consolidarse a fines del siglo pasado, viniendo a fortalecerse, con el avance
de sectores conservadores en la sociedad y la política, en los últimos años. La
pandemia, en ese sentido, se insertó en un contexto ya de desmantelamiento y
terminó impulsándolo.
Abstract: This article seeks to propose some reflections on sexual rights (SR)
Introdução
[...] não havia uma política voltada à saúde da mulher no Brasil; exis-
tia interesse internacional na implementação do controle demo-
gráfico; as agências controlistas internacionais forneciam recursos
financeiros às nacionais como a Benfam e o Centro de Pesquisa de
Assistência Integral à Mulheres e à Criança (CPAIMC); e o Estado não
definiu critérios para a prática da esterilização no país. (DAMASCO;
MAIO; MONTEIRO, 2012, p. 146).
comparar os dados sobre esses direitos no período da pandemia com dados anteriores, percebe-se que a pandemia
não trouxe elementos totalmente novos, no que se refere aos DS e aos DR, mas contribuiu para potencializar o
que já vinha ocorrendo.
Considerações finais
Este artigo buscou analisar os impactos do crescimento do conserva-
dorismo no Brasil e da pandemia COVID-19 na vida das mulheres brasileiras,
sobretudo no que se refere aos seus DR e aos seus DR. Para tanto, analisou-se
tal problemática à luz da forma com que tais direitos foram tratados no cená-
rio nacional. Buscou-se, portanto, observar em que medida a pandemia foi
um fato novo ou uma potencialização do que já vinha acontecendo.
Boaventura de Sousa Santos, no livro A cruel pedagogia do vírus afir-
mou que a “actual pandemia não é uma situação de crise claramente contra-
posta a uma situação de normalidade” (SANTOS, 2020, p. 1). Ao fim deste tra-
balho, pode-se afirmar que o desmantelamento e ataque aos direitos sexuais
e reprodutivos das mulheres e meninas não é um fato inerente à pandemia,
mas vem se consolidando, no mínimo desde a segunda metade do século XX,
como forma de manutenção do status quo.
A reivindicação dos DS e dos DR está intimamente ligada à defesa da
autonomia feminina em relação ao seu corpo e em última instância é uma
forma de questionar as próprias estruturas sociais baseadas em papéis de-
terminados de gênero. Rita Segato (2016, p. 15-16) afirma que “lejos de ser
residual, minoritaria y marginal, la custión de género es la piedra angular y
eje de gravedad del edificio de todos los poderes”. Portanto, a reivindicação
de autonomia sobre o próprio corpo e também de meios para exercê-la, em
uma sociedade que se estrutura na subjugação do corpo feminino e de sua
capacidade de reprodução, significa questionar as próprias estruturas sociais.
Contatou-se, por meio deste artigo, que os ataques e desmantelo dos
direitos sexuais e reprodutivos durante o período da pandemia do COVID-19,
não são apenas uma continuidade e intensificação do que já vinha acontecen-
do, mas são também uma forma de manter as estruturas sociais protegidas do
“perigo” representado pelos movimentos feministas e LGBTQIA+.
Referências
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geral dos direitos humanos. As publicações abordarão aspectos epistemológicos, filosófi-
cos, metodológicos, como também relatos e práticas de atuação em direitos humanos, e
serão produzidas por pesquisadores e estudiosos brasileiros e de outros países, de natureza
acadêmica e científica. Dessa maneira, a RIDH estará contribuindo para informar, divul-
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americano. Estudos Avançados, São Paulo, v. 11, n. 30, p. 95-115, 1997.
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