Você está na página 1de 445

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Sven Peterke
Tarciso Dal Maso Jardim
(Organizadores)
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

A GUERRA NA UCRÂNIA
E O DIREITO INTERNACIONAL:
debates atuais

Editora CRV
Curitiba – Brasil
2023
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Imagem de Capa: @vector_corp | Freepik
Revisão: Os Autores

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


CATALOGAÇÃO NA FONTE
Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


G924

A Guerra na Ucrânia e o Direito Internacional: debates atuais / Sven Peterke, Tarciso Dal
Maso Jardim (organizadores). – Curitiba : CRV, 2023.
444 p.

Bibliografia
ISBN Digital 978-65-251-5181-6
ISBN Físico 978-65-251-5184-7
DOI 10.24824/978652515184.7

1.Direito 2. Direito internacional humanitário I. Peterke, Sven, org. II. Jardim, Tarciso Dal
Maso, org. III. Título IV. Série.

CDU 342.7 CDD 341.481


Índice para catálogo sistemático
1. Direito internacional humanitário – 341.481

2023
Foi feito o depósito legal conf. Lei nº 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418 – E-mail: sac@editoracrv.com.br
Conheça os nossos lançamentos: www.editoracrv.com.br
Conselho Editorial: Comitê Científico:
Aldira Guimarães Duarte Domínguez (UNB) Alexandre Sanson (Justiça Federal – São Paulo/SP)
Andréia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR/UFRN) Aloisio Krohling (FDV)
Anselmo Alencar Colares (UFOPA) André Pires Gontijo (UniCEUB)
Antônio Pereira Gaio Júnior (UFRRJ) Antônio Pereira Gaio Júnior (UFRRJ)
Carlos Alberto Vilar Estêvão (UMINHO – PT) Celso Ferreira da Cruz Victoriano (TJ-MT)
Carlos Federico Dominguez Avila (Unieuro) César Augusto de Castro Fiuza (Ferreira, Kumaira
Carmen Tereza Velanga (UNIR) e Fiuza Advogados Associados/UFMG)
Celso Conti (UFSCar) Christine Oliveira Peter da Silva (STF)
Cesar Gerónimo Tello (Univer.Nacional Claudine Rodembusch Rocha (FEEVALE)
Três de Febrero – Argentina) Cristiane Miziara Mussi (UFRRJ)
Eduardo Fernandes Barbosa (UFMG) Daniel Amin Ferraz (Amin, Ferraz, Coelho
Elione Maria Nogueira Diogenes (UFAL) Advogados/ Universidad de Valencia, UV, Espanha)
Elizeu Clementino de Souza (UNEB) Daury Cesar Fabriz (UFES)
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Élsio José Corá (UFFS) Edson Vieira da Silva Filho (FDSM)


Fernando Antônio Gonçalves Alcoforado (IPB) Evandro Marcelo dos Santos
Francisco Carlos Duarte (PUC-PR) (Faculdade Três Pontas/MG)
Gloria Fariñas León (Universidade Gláucia Aparecida da Silva Faria Lamblém (UEMS)
de La Havana – Cuba) Janaína Machado Sturza (UNIJUÍ)
Guillermo Arias Beatón (Universidade João Bosco Coelho Pasin (UPM)
de La Havana – Cuba) Joséli Fiorin Gomes (UFSM)
Jailson Alves dos Santos (UFRJ) Manoel Valente Figueiredo Neto (Registro
João Adalberto Campato Junior (UNESP) Imobiliário de Caxias do Sul, RS/UCS)
Josania Portela (UFPI) Marcio Renan Hamel (UPF)
Leonel Severo Rocha (UNISINOS) Rafael Lamera Giesta Cabral (UFERSA)
Lídia de Oliveira Xavier (UNIEURO) Renato Zerbini Ribeiro Leão (UNICEUB)
Lourdes Helena da Silva (UFV) Ricarlos Almagro Vitoriano Cunha (UFRJ)
Luciano Rodrigues Costa (UFV) Thiago Allisson Cardoso de Jesus (CEUMA)
Marcelo Paixão (UFRJ e UTexas – US) Valéria Furlan (FDSBC)
Maria Cristina dos Santos Bezerra (UFSCar) Vallisney de Souza Oliveira (Justiça
Maria de Lourdes Pinto de Almeida (UNOESC) Federal – Brasília/DF)
Maria Lília Imbiriba Sousa Colares (UFOPA) Vinicius Klein (UFPR)
Paulo Romualdo Hernandes (UNIFAL-MG)
Renato Francisco dos Santos Paula (UFG)
Sérgio Nunes de Jesus (IFRO)
Simone Rodrigues Pinto (UNB)
Solange Helena Ximenes-Rocha (UFOPA)
Sydione Santos (UEPG)
Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)

Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
AGRADECIMENTOS
O presente trabalho foi realizado com fomento da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – pelo
Programa de Desenvolvimento de Pós-Graduação (PDPG), Apoio Financeiro
a Projeto Educacional e de Pesquisa (AUXPE) – Consolidação 3 e 4, refe-
rido no Contrato nº 8887.707760/2022-00 do Programa de Pós-Graduação
em Ciências Jurídicas da UFPB sob a Coordenação do Professor Gustavo
Barbosa de Mesquita Batista.
Agradecemos, imensamente, à CAPES e ao Professor Gustavo Barbosa
de Mesquita pelo apoio e pela confiança na qualidade dessa obra.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Agradecemos também aos pesquisadores e pesquisadoras que fizeram


contribuições a essa publicação. Muito obrigado pelo excelente trabalho!
O que vale também para a tradutora, Noemia Carneiro Mariz Maia, e
a equipe da editora que acompanhou os últimos passos dessa obra inédita.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .......................................................................................... 13
Sven Peterke
Tarciso Dal Maso Jardim

INTRODUÇÃO

1. INTERNATIONAL LAW IS DEAD? LONG LIVE INTERNATIONAL


LAW! A guerra na Ucrânia e o direito internacional público ............................ 17
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Sven Peterke
Tarciso Dal Maso Jardim

2. A TRANSFERÊNCIA DA CRIMEIA EM 1954:


desmascarando o mito da “dádiva imperial” para a Ucrânia*.......................... 31
Alina Cherviatsova

PARTE 1

DEBATES SOB A ÓTICA DO DIREITO INTERNACIONAL


DA MANUTENÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA

3. A LEGALIDADE DA “OPERAÇÃO MILITAR ESPECIAL” DA


RÚSSIA NA UCRÂNIA................................................................................... 57
Ielbo Marcus Lobo de Souza

4. OS PODERES DA CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA NA


EMISSÃO DE MEDIDAS CAUTELARES NO CASO DE ALEGAÇÕES
DE GENOCÍDIO ENTRE UCRÂNIA E FEDERAÇÃO RUSSA ................... 79
Lucas Carlos Lima

5. A ATUAÇÃO DO CONSELHO DE SEGURANÇA E DA


ASSEMBLEIA GERAL DA ONU NA RESTAURAÇÃO DA PAZ NA
UCRÂNIA........................................................................................................ 95
Francisco Gaspar de Lima Junior
Heverton Felinto Pedrosa de Mélo

6. A LEGALIDADE DAS SANÇÕES NÃO MILITARES IMPOSTAS À


RÚSSIA E A SUA ELITE POLÍTICA E ECONÔMICA PELA GUERRA
DE AGRESSÃO CONTRA A UCRÂNIA ..................................................... 107
Felipe Tôrres Pereira
7. OPERAÇÕES CIBERNÉTICAS COMO PARTE DA GUERRA
HÍBRIDA CONTRA A UCRÂNIA E SUA COMPATIBILIDADE COM A
CARTA DA ONU ........................................................................................... 123
Marcelynne Aranha Almeida
Sven Peterke

8. GUERRA, MÚSICA, PAZ E DIREITO INTERNACIONAL:


um ensaio sobre a potência das sonoridades para a construção
das concórdias .............................................................................................. 137
Marcílio Toscano Franca Filho

PARTE II

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


DEBATES SOB A ÓTICA DO DIREITO
INTERNACIONAL HUMANITÁRIO

9. O DIREITO DA GUERRA NAVAL NO CONFLITO ENTRE A


UCRÂNIA E RÚSSIA ................................................................................... 145
Victor Alencar Mayer Feitosa Ventura
Eduardo Cavalcanti de Mello Filho

10. AS IMPLICAÇÕES NORMATIVAS, ÉTICAS E OPERACIONAIS


QUANTO AO USO DE SISTEMA DE ARMAS AUTÔNOMAS .................. 171
Bárbara Thaís Pinheiro Silva
Luíza Fernandes

11. O DIH E O DIREITO DA POPULAÇÃO CIVIL UCRANIANA DE


RESISTIR À INVASÃO RUSSA .................................................................. 191
Cláudio Cerqueira B. Netto
Leticia Heinzmann

12. O DIREITO À ASSISTÊNCIA HUMANITÁRIA E A ATUAÇÃO DA


COMUNIDADE INTERNACIONAL NA PROTEÇÃO DA POPULAÇÃO
AFETADA PELA GUERRA NA UCRÂNIA, EM ESPECIAL, CRIANÇAS .... 205
José Wagner de Oliveira Tavares
Robson Antão de Medeiros

13. O MEIO AMBIENTE NATURAL SOB AMEAÇA NO CONFLITO


ARMADO NA UCRÂNIA: potencial e limites da proteção do Direito
Internacional Humanitário.............................................................................. 223
Gabriela Hühne Porto
Ana Paula dos Santos
PARTE III

DEBATES SOB A ÓTICA DO DIREITO INTERNACIONAL PENAL

14. PUTIN PERANTE O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL?............ 245


Allan Jones Andreza Silva
Thiago Fernando Alves de Araújo Lima

15. CRIMES DE GUERRA E O CONFLITO NA UCRÂNIA* ..................... 259


Fredys Orlando Sorto

16. A AMEAÇA NUCLEAR NA GUERRA ENTRE RÚSSIA E UCRÂNIA


E A FORMAÇÃO DE UM NOVO CRIME INTERNACIONAL .................... 285
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Tarciso Dal Maso Jardim

17. MULHERES INCITANDO O ESTUPRO DE MULHERES:


a guerra na Ucrânia e o estupro como crime internacional ........................... 305
Giovanna M. Frisso

18. ESPIONAGEM NO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL NO


CONTEXTO DA GUERRA NA UCRÂNIA................................................... 323
Carlos Frederico de Oliveira Pereira

PARTE IV

DEBATES SOB A ÓTICA DO DIREITO INTERNACIONAL


DOS DIREITOS HUMANOS E DOS REFUGIADOS

19. A ATUAÇÃO DO CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS DA ONU


NO CONTEXTO DO CONFLITO ARMADO NA UCRÂNIA ....................... 341
Sven Peterke
João Gabriel Dias Arruda Vieira Dantas

20. A GUERRA NA UCRÂNIA E OS IMPACTOS DA SAÍDA DA


RÚSSIA DO SISTEMA EUROPEU DE DIREITOS HUMANOS ............... 359
Melissa Gusmão Ramos

21. O DIREITO HUMANO À PAZ À LUZ DA GUERRA NA UCRÂNIA ..... 373


Johannes van Aggelen
22. APONTAMENTOS SOBRE PADRÕES E TENDÊNCIAS DE
PROTEÇÃO ÀS PESSOAS REFUGIADAS NO CONTEXTO DA
INVASÃO DA UCRÂNIA: boas práticas e aspectos negativos.................... 389
Liliana Lyra Jubilut
Flávia Oliveira Ribeiro

23. A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS DAS MULHERES


DESLOCADAS INTERNAMENTE PELA GUERRA NA UCRÂNIA .......... 415
Quévia Linamara de Almeida Camboim
Janayna Nunes Pereira

ÍNDICE REMISSIVO ................................................................................... 431

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


SOBRE OS ORGANIZADORES ................................................................. 437

SOBRE OS AUTORES ................................................................................ 439


APRESENTAÇÃO
Em 24 de fevereiro de 2022, tropas russas iniciaram “operações militares
especiais” no território nacional da Ucrânia, que, por sua vez, não hesitou em
pegar em armas para se defender contra os invasores estrangeiros. Destarte,
ampliou-se e intensificou-se um conflito armado internacional entre os dois
Estados vizinhos que tinha eclodido pela anexação russa da Crimeia, em
fevereiro de 2014.
No momento do presente escrito, essa guerra ainda está em andamento e
não se sabe qual das partes sairá como “vitoriosa”, nem como findar o conflito.
No entanto, milhares de pessoas, combatentes e civis, já foram mortos, feridos ou
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

traumatizados pelas hostilidades, sem se esquecer das milhões de pessoas, sobre-


tudo, mulheres e crianças, que logo abandonaram as suas residências e fugiram
para regiões mais seguras de dentro ou fora da Ucrânia. Assim, não somente
conseguiram escapar das bombas e foguetes, mas também do risco incalculável
de se encontrar nas mãos de um poder ocupante que oficialmente nega o direito à
existência do seu Estado, visando sua “desnazificação”. Enquanto isso, o mundo
inteiro sente os impactos dessa guerra, seja na segurança alimentar e energética,
seja na alta inflação que tende a gerar diversas outras crises.
O continente europeu não tem visto um cenário bélico de tais dimensões
dramáticas desde a Segunda Guerra Mundial, encerrada em 1945, em que
pese o conflito na ex-Iugoslávia ter sido traumático. Pior ainda, o conflito
armado continua a ter potencial de se transformar em algo mais devastador
e ainda mais globalizado, last but not least, por envolver cada vez mais os
Estados-membros da OTAN e pairar ameaças de uso de armas de destruição
em massa, em particular, nucleares. Há décadas, a possibilidade de uma Ter-
ceira Guerra Mundial nunca foi tão real.
Guerra e desinformação sempre andam juntas. Por isso, várias informa-
ções que nos são fornecidas nestes dias ainda não podem ser tidas como “fatos”
ou até representam fake news lançadas pelas partes nessa guerra híbrida. Há
uma disputa de narrativas para atribuir ao “outro” a culpa e a responsabili-
dade pelo conflito e seus desdobramentos. Como sempre, ambas as partes
alegam ter o direito internacional “ao seu lado”, o que revela, sobretudo, o
seu poder legitimador mundialmente reconhecido, como fundamento jurídico
que assegura a convivência civilizada dos povos que habitam o nosso planeta.
Isto posto, governos raramente declaram as suas regras como obsoletas ou
confessam a sua flagrante violação, pelo contrário, costumam alegar atuar em
plena consonância com elas.
Por esse e outros motivos, situações como o atual conflito armado na
Ucrânia sempre geram uma série de debates jurídicos. A presente obra traz
14

alguns deles, oferecendo orientações basilares para todos e todas que pretendem
compreender melhor os aspectos jurídicos mais relevantes e urgentes do conflito
armado em andamento. Alguns desses debates não são novos, mas merecem ser
contextualizados e explicados a um público maior. Eles abordam, entre outros
aspectos, a justificação da invasão e ocupação militar de um Estado soberano,
a legalidade de reagir com sanções, o direito da população afetada pelas hos-
tilidades a receber assistência humanitária e a punibilidade de certas condu-
tas criminosas por tribunais internacionais. Outros debates são relativamente
novos, como, por exemplo, referente à classificação de ataques cibernéticos ou
ao possível emprego de Lethal Autonomous Weapons Systems (LAWS). Salvo
engano, ainda não há nenhuma obra em língua portuguesa apresentando esses
debates, tornando o presente livro único no momento em questão.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Satisfazendo a existente demanda por respostas, mesmo que provisórias,
às diversas questões jurídicas que surgiram no contexto da guerra na Ucrânia,
essa obra reúne 23 análises de, ao todo, 31 pesquisadoras/es. Muitos são inter-
nacionalmente reconhecidos, outros “talentos” brasileiros, que se preparam
para assumir seu papel como nova geração de pesquisadores. Por suas contri-
buições comprova-se que o direito internacional, em particular, o humanitário,
está vivo e forte no Brasil. Enfim, foi desejo especial nosso, dar voz também
aos colegas ucranianos. Por isso, é com grande satisfação que apresentamos
a contribuição da professora Alina Cherviatsova ao público brasileiro.
Ao melhor sistematizar essas análises, assim oferecendo uma visão pano-
râmica bastante completa sobre os atuais debates, eles estão organizados a par-
tir de quatro eixos temáticos: referentes ao direito internacional da manutenção
da paz e segurança, o direito internacional humanitário, o direito internacional
penal e o direito internacional dos direitos humanos e dos refugiados.
Resta desejar a todas/os usuárias/os dessa obra uma leitura rica de infor-
mações, reflexões e conclusões úteis, enquanto se espera que essa guerra na
Ucrânia termine logo e seja uma lição, embora dolorosa, para o mundo, cujos
povos querem viver em paz, segurança e bem-estar. Algo que é impensável
sem apostar no direito internacional como gentle civilizer (Martti Kosken-
niemi) que possui um papel fundamental nesse processo complexo e per-
manente que, infelizmente, não é linear, mas costuma a enfrentar grandes
desafios e até retrocessos.

Sven Peterke
Tarciso Dal Maso Jardim
João Pessoa/Brasília, 24 de maio de 2023
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

INTRODUÇÃO
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
1. INTERNATIONAL LAW IS DEAD?
LONG LIVE INTERNATIONAL
LAW! A guerra na Ucrânia e o
direito internacional público
Sven Peterke
Tarciso Dal Maso Jardim

Não há nada de sólido fundado em sangue,


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

nem vida segura baseada na morte de outra pessoa


(William Shakespeare, Rei João, Ato IV, Cena 2).

1. Considerações iniciais

Em 24 de fevereiro de 2022, o Presidente russo, Vladimir Putin, anunciou


uma “operação militar especial” na região de Donbas, no leste da Ucrânia.
Em discurso televisionado e enviado, ainda no mesmo dia, ao Conselho de
Segurança da ONU1, o poderoso chefe do Kremlin justificou a medida com
a necessidade de “defender as pessoas que há oito anos sofrem perseguição
e genocídio pelo regime de Kiev. Para isso, visaremos a desmilitarização e
desnazificação da Ucrânia”2. Ainda citou o direito à legítima defesa, con-
sagrado no Artigo 51 da Carta da ONU, assim como os acordos de mútua
assistência que seu país tinha celebrado com as autoproclamadas Repúblicas
Populares de Donetsk e Lugansk dois dias antes – somente 24 horas após seu
reconhecimento como Estados independentes3.
Observou-se, já no primeiro dia da referida “operação militar especial”,
ataques armados russos em praticamente todas as regiões do país vizinho, dei-
xando mais de 100 mortos. Logo restaram poucas dúvidas: o verdadeiro obje-
tivo dessa guerra, que ampliou e intensificou o conflito armado internacional

1 UN SECURITY COUNCIL. Letter dated 24 February 2022 from the Permanent Representative of the Russian
Federation to the United Nations addressed to the Secretary-General, S/2022/154, 24 fev. 2022.
2 Desnazificação e genocídio: a história por trás da justificativa de Putin para invasão da Ucrânia. Tradução
Mariana Sanches. BBC News Brasil, 25 fev. 2002. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/inter-
nacional-60518951. Acesso em: 15 dez. 2022.
3 CAVANDOLI, Sofia; WILSON, Gary. Distorting Fundamental Norms of International Law to Resurrect the
Soviet Union: The International Law Context of Russia’s Invasion of Ukraine. Netherland International Law
Review, s/n, 2022. Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s40802-022-00219-9. Acesso
em: 15 dez. 2022.
18

que tinha rompido pela anexação da Crimeia pela Rússia em fevereiro de 2014,
seria nada menos do que redefinir as fronteiras internacionalmente reconhe-
cidas da Ucrânia e pôr fim à independência política do segundo maior país
da Europa, ao derrubar o seu governo democraticamente eleito, mas hostil à
ideia de se curvar às reivindicações de Putin – entre elas, a de não se tornar
Estado-membro da OTAN.
No momento da última redação do presente texto (4 de maio de 2023),
essa guerra ainda está em andamento e não se sabe qual das partes sairá como
“vitoriosa”, nem como pacificar o conflito. No entanto, milhares de pessoas –
combatentes e civis –, já foram mortas, feridas ou traumatizadas pelas hostili-
dades. Além disso, milhões de indivíduos, sobretudo mulheres e crianças, foram

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


forçadas a abandonar as suas casas e fugir para regiões mais seguras dentro ou
fora da Ucrânia. Enquanto isso, o mundo inteiro sente os impactos dessa catás-
trofe que afeta a segurança alimentar e energética de muitos países.
Há alguns que atribuem a imensa atenção internacional a esse conflito
armado ao fato de que ocorre na Europa – e não na África ou Ásia –, destarte,
envolvendo interesses geoestratégicos dos Estados-membros da OTAN. Por
essa razão, promovem sanções econômicas e fornecem armas e assistência de
toda ordem à Ucrânia que outros Estados em situação similar jamais recebe-
ram4. Ainda apontam como possíveis consequências negativas dessa guerra a
falta de engajamento internacional em outras regiões do mundo, igualmente
castigadas por catástrofes, em especial, no que se refere à prestação de assis-
tência humanitária5.
Certo é: há conflitos armados efetivamente “esquecidos”, ou, ao escolher
uma formulação menos eufêmica, ignorados não somente pela grande maioria
dos Estados, mas por todos nós. Além disso, é também muito provável que
os recursos multibilionários mobilizados para a guerra na Ucrânia resultarão
em cortes nos orçamentos destinados para lidar com outras crises nacionais
ou internacionais, last but not least, a crise climática como desafio global de
enorme urgência. Portanto, a notória crítica da seletividade do engajamento
dos Estados ocidentais parece outra vez pertinente.
De modo semelhante, faz-se necessário analisar criticamente os fatores que
fizeram com que o Presidente Putin mandasse as suas tropas atacarem a Ucrânia6.

4 Compare GHARIB, Malaka. Not every war gets the same coverage as Russia’s invasion – and that has conse-
quences. NPR, 4 mar. 2022. Disponível em: pr.org/sections/goatsandsoda/2022/03/04/1084230259/not-every-
-war-gets-the-same-coverage-as-russias-invasion-and-that-has-consequenc. Acesso em: 2 nov. 2022.
5 FOULKES, Imogen. Ukraine war could worsen crisis in Yemen and Afghanistan. BBC News, 12 abr. 2022.
Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-60995064. Acesso em: 2 nov. 2022.
6 Veja para uma tentavia: KATCHANOSKI, Ivan. The Separatist War in Donbas: A Violent Break-up of Ukraine?
European Politics and Society, v. 17, n. 4, p. 473-489, 2016.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 19

Enfim, todas as guerras ocorrem por falhas políticas cometidas em tempos de


paz. Só que a análise das informações, permitindo explicar as principais causas e
motivos que impulsionaram certa parte a optar pelo uso de força armada, costuma
ser extremamente difícil, em virtude da complexidade e multidimensionalidade
das dinâmicas que levaram governos a essa “ultima irratio” (Willy Brandt)7. Por
conseguinte, é quase inevitável a existência de controvérsias sobre a “culpa” ou
“responsabilidade principal” pela violência, como sempre, concorrendo com
narrativas lançadas pelas próprias partes de conflito.
Porém, independentemente dessas variáveis geopolíticas, históricas e
socioeconômicas, que não devem ser menosprezadas, há também uma série de
argumentos jurídicos, embasados em fatos sólidos, que nos permitem qualificar
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

a “operação militar especial” na Ucrânia como cenário bélico qualitativamente


diferente de outros conflitos armados, sejam internacionais ou não: por consti-
tuir uma flagrante violação da Carta da ONU, cuja pedra angular é a proibição
de usar força militar contra a integridade territorial ou a independência política
de qualquer Estado, no mínimo, triplamente qualificada.
Primeiro não se trata de qualquer uso de força ou ataque armado contra
outro Estado soberano, mas de um ato de agressão no sentido da Resolução
3.314 (XXIX) da Assembleia Geral, de 19748. Essa famosa resolução define o
conceito da agressão9 e a reconhece como maior crime atribuível a um Estado
como sujeito do direito internacional. Como minuciosamente demonstrado em
outro capítulo da presente obra, a justificação para o uso da força oferecida
pelo Presidente russo, Vladimir Putin, não é capaz de convencer10. A realidade
é que ele agrediu deliberadamente a Ucrânia como Estado soberano, membro
da ONU desde a sua independência em 1991, por não se submeter aos seus
interesses. Com isso, Putin nega também o direito à autodeterminação do povo
ucraniano, que se recusa a desistir da sua soberania e a viver sob condições
autocráticas. Dados esses fatos, não há a menor dúvida de que a Ucrânia tem
o direito à legítima defesa do seu lado. Como se trata de um direito que pode
ser exercido coletivamente, justificaria até a participação militar direta por
Estados terceiros, os da OTAN inclusos.

7 BRANDT, Willy. Nobel Lecture, 11 Dec. 1971. Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/peace/1971/


brandt/lecture/. Acesso em: 15 dez. 2022.
8 UN GENERAL ASSEMBLY. A/RES/ES-11/L1, 1 mar. 2022, § 2: “2. Deplores in the strongest terms the
aggression by the Russian Federation against Ukraine in violation of Article 2 (4) of the Charter”; A/RES/
ES-11/4, 13 out. 2022; KRESS, Claus. The Ukraine War and the Prohibition of the Use of Force in Interna-
tional Law. Brussels: Torkel Opsahl Academic EPublisher, 2022, p. 19.
9 Veja para maiores informações: LOBO DE SOUZA, Ielbo M. O conceito de agressão armada no direito
internacional. Revista de Informação Legislativa, ano 33, n. 129, p. 145-156, 1996.
10 LOBO DE SOUZA, A Legalidade da “Operação Militar Especial” da Rússia na Ucrânia, contida na presente
publicação como capítulo 3.
20

Segundo, trata-se de uma agressão “aberta”11 por um membro permanente


do Conselho de Segurança que usa seu poder de veto para que esse órgão não
tome nenhuma decisão vinculante contrariando seus interesses políticos e mili-
tares12. Historicamente, isto não é um fato novo, mas adicionado à observação
anterior, reforça a percepção de que a ordem jurídica internacional se encontra
numa profunda crise: por ora, “acabou” de valer para um dos Estados mais
poderosos do mundo. Por isso, parece até haver uma conjuntura favorecendo
o ressurgimento de “teorias” do direito internacional, que recusam a atestá-lo
com a qualidade digna a ser chamada “direito”. Como se sabe, essas doutrinas
negacionistas foram abandonadas há muito tempo; no entanto, foram substituídas
por outras abordagens relativistas, como, por exemplo, aquelas da Yale School
of New Haven, sustentando que a observância do direito internacional decorre,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


essencialmente, de uma oportunista escolha política pelos governos13.
Certamente, é preciso registrar: outros Estados-membros permanentes do
Conselho de Segurança já violaram repetitivamente o Artigo 2º (4) da Carta da
ONU, igualmente, sem autorização por esse órgão e sem poder invocar legal-
mente o direito à autodefesa do seu Artigo 51, assim demonstrando enorme
desprezo pelo direito internacional. Todavia, o que distingue a agressão da
Rússia contra a Ucrânia, por exemplo, do bombardeio aéreo da ex-República
Federativa da Iugoslávia pelos Estados-membros da OTAN, em março de 1999,
ou da guerra dos EUA e seus aliados contra o Iraque, em 2003, é o fato de que,
quanto a essas intervenções militares, o próprio Conselho de Segurança já havia
se manifestado várias vezes sob o Capítulo VII da Carta da ONU, razão pela
qual os Estados-infratores da proibição de usar a força pelo menos podiam
citar algumas resoluções a seu favor, cobrando outras reações do órgão14. Sem
dúvida, este fato não justifica essas violações da Carta da ONU, ocorridas em
outras ocasiões, inclusive pela Rússia, para legitimar as suas próprias interven-
ções ilegais, mas a distingue da atual agressão russa contra a Ucrânia, baseada,
em boa parte, em informações efetivamente falsas sobre um presumível geno-
cídio em andamento. Por isso, a Ucrânia recorreu logo à Corte Internacional
da Justiça a respeito, que atestou a ausência de indícios da ocorrência do crime
de genocídio, argumento central na justificação oferecida pela Rússia15. Nos

11 Quer dizer, ocorrendo de modo direto, sem menor esforço de instruir ou financiar grupos não estatais,
camuflando a participação no conflito, o que costuma dificultar a responsabilização internacional.
12 Ver para detalhes: BRUNK, Ingrid; HAKIMI, Monica. Russia, Ukraine, and the Future World Order. American
Journal of International Law, v. 116, n. 4, p. 687-697, 2022. p. 693.
13 Comp. MCDOUGAL, Myres et al. (eds.), Studies in World Public Order. Dordrecht: Nijhoff, 1987; CHEN,
Lung-chu. An Introduction to Contemporary International Law: A Policy-Oriented Approach. 3. ed. Oxford/
New York: OUP, 2016.
14 Ver, p. ex., UN SECURITY COUNCIL, S/RES/1199 (1998); S/RES/1441 (2002).
15 ICJ, Allegations of Genocide under the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of
Genocide (Ukraine v. Russian Federation). Provisional Measures, March 16, 2022.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 21

meses antes da invasão militar, o governo russo em momento nenhum fez um


esforço sério para envolver o Conselho de Segurança e usar essa plataforma
para chegar a uma solução pacífica do conflito ou até obter autorização para a
tomada de certas medidas. Ao contrário, fez manobras políticas e se preparou
para a guerra. Como tudo indica, houve sim violações de direitos humanos
das minorias russas atribuíveis à Ucrânia, mas elas não foram a verdadeira
preocupação do Kremlin que, em 15 de março de 2022, acabou por se retirar
do Conselho Europeu e, assim, do sistema europeu de direitos humanos, em
antecipação da sua expulsão pelos outros 46 Estados-membros16.
Terceiro, desde a crise da “Baia dos Porcos”, em 1961, o perigo de
emprego de armas nucleares nunca foi tão real. Reiteradamente, o Presidente
Putin ameaçou o mundo com o emprego dessas armas, caso os Estados apoia-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

dores da Ucrânia, sobretudo os EUA e os outros membros da OTAN, ajam


diretamente no terreno com as suas forças armadas nesse conflito armado17.
Nem hesitou em quebrar esse tabu internacional, quando, em setembro de
2022, os chefes de Estados se reuniram na Assembleia Geral da ONU para se
lembrar solenemente do fato de que essa organização mundial foi fundada18,
após as terríveis catástrofes do Holocausto e da Segunda Guerra Mundial,
para preservar a paz e segurança internacionais, proteger direitos humanos e
promover desenvolvimento e bem-estar de todos.
Diante dessas breves considerações iniciais, que, sem dúvida, merecem
refinamentos e acréscimos (críticos), coloca-se uma pergunta que incomoda tanto
acadêmicos como cidadãos comuns no mundo inteiro: estamos não somente
assistindo (mais) uma profunda crise do sistema internacional, mas um colapso
da atual ordem internacional? Is public international law dead19?
Ainda está cedo demais para oferecer conclusões mais robustas ou até
“definitivas”, – justamente, porque nem se pode descartar uma guerra atômica
ou outra “guerra mundial” por uma possível participação militar direta dos
Estados-membros da OTAN ou outros Estados nesse momento. Não obs-
tante, parece possível demonstrar que o direito internacional, mesmo sendo
incapaz de parar, por ora, um autocrata que aposta na “lei do mais forte”,
continua operando de acordo com sua própria lógica. Talvez até saia de modo

16 CSÚRI, András. Russian Federation ceases to be a member of the CoE. EUCRIM 1/2022, p. 37-38.
17 Cf. MCGEE, Luke; CALZONETTI, Claire. Porta-Voz diz que Rússia poder usar armas nucleares em caso de
“ameaça existencial”. CNN Brasil, 23 mar. 20222. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/
porta-voz-diz-que-russia-pode-usar-armas-nucleares-em-caso-de-ameaca-existencial/. Acesso em: 15
dez. 2022.
18 Comp. CRAVEIRO, Rodrigo. Putin ameaça usar armas nucleares contra chantagem do ocidente. Correio
Braziliense, 22 set. 2022. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/mundo/2022/09/5038526-pu-
tin-ameaca-usar-armas-nucleares-contra-chantagem-do-ocidente.html. Acesso em: 15 dez. 2022.
19 Não é a primeira vez que essa pergunta é lançada. Veja, p. ex., FROWEIN, Jochen Abr. Is International Law
Dead?. German Yearbook of Inernational Law, v. 46, p. 9-16, 2003.
22

fortalecido dessa tragédia, como já foi o caso após outras grandes catástrofes
que abalaram a humanidade.

2. O ius contra bellum da Carta da ONU

A Carta da ONU, adotada em 26 de junho de 1945, objetiva “preservar


as gerações vindouras do flagelo da guerra” com base em um espírito huma-
nista, pautada “na dignidade e no valor do ser humano”20. Aproveitando-se de
forma cosmopolita da máxima ubi societas, ibi ius (onde houver sociedade,
há também direito), a Carta logo destaca a importância do direito internacio-
nal, pois estipula no seu Artigo 1º, como primeiro propósito desse sistema de

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


segurança coletiva, “manter a paz e segurança internacionais, e, para esse fim:
tomar, coletivamente, medidas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir
os atos de agressão [...] e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com
os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução
das controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz”.
Assim admite, de forma realista, que não se deve criar a ilusão de uma “paz
perpétua”, em virtude da conquista histórica representada pela proibição do
uso da força nas relações internacionais, contida no Artigo 2º (4) da Carta da
ONU. Pois, infelizmente, a violência, e, em especial, a guerra, desde sempre
faz parte da história humana. É justamente por essa razão que a Carta da
ONU não somente reconhece o direito de todos os Estados à legítima defesa,
inclusive, coletiva21, ao lado das atribuições extraordinárias do Conselho de
Segurança no Capítulo VII, encarregado de até intervir militarmente e, se for
assim necessário, controlar e pacificar determinada situação que representa
uma “ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão”22.
Não resta dúvidas ser triste o fato de que o Artigo 2º (4) da Carta da ONU
já sofreu diversas violações, porém, ao mesmo tempo, mister observar que
não há nenhum governo no mundo que nega publicamente a validade dessa
“pedra fundamental”23 do direito internacional contemporâneo, em virtude da
sua função protetiva. Até o governo russo preferiu oferecer algumas justifica-
tivas jurídicas a fim de negar estar violando esse dispositivo, embora fáceis
de reconhecer como meros pretextos para esconder o óbvio. Portanto, fazendo
uma diferenciação (neo)kantiana, não há nenhum Estado colocando em xeque
o “dever ser” do mundo normativo, que é ato absolutamente ilícito atacar

20 CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, 26 jun. 1945, Decreto n. 19.841, de 22 out. 1945.
21 Ibid., Art. 51 da Carta da ONU.
22 Ibid., Art. 39 da Carta da ONU.
23 ICJ, Armed Activities on the Territory of the Congo (Dem. Rep. of the Congo v. Uganda), Julgamento, 19
dez. 2005, § 148; BRIERLY, James L. The Law of Nations. 6. ed. Oxford: OUP, 1963. p. 413.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 23

outro Estado em contrariedade à Carta da ONU – mundo esse que precisa ser
distinguido do “ser”, do mundo dos fatos24. Embora seja também importante
anotar que a falta de aplicação de uma norma convencional pode afetar a sua
validade, absolutamente nada indica que tal desuetude25 aconteceu com a proi-
bição de usar força. Pelo contrário, a grande maioria dos Estados age em plena
consonância com ela e está disposto a tratá-la, junto com a grande maioria dos
doutrinadores do direito internacional, como ius cogens26.
As debilidades do Conselho de Segurança – órgão ao qual foi transferido
a “principal responsabilidade na manutenção da paz e segurança internacio-
nais”27 – são comumente atribuídas ao poder de veto dos seus cinco Estados
permanentes: China, EUA, França, Grã-Bretanha e Rússia. Critica-se “blo-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

queios” e “paralisações” por seus governos perante situações que exigiam


posturas e respostas firmes pelo Conselho. Por deixarem prevalecer os seus
interesses nacionais sobre os da comunidade internacional, esses poderes aca-
bariam por colocar em xeque a credibilidade e o funcionamento do sistema de
segurança coletiva da ONU. A guerra da Rússia contra a Ucrânia confirmaria
a fragilidade dessa construção pós-Segunda Guerra Mundial.
Essa crítica é, muitas das vezes, pertinente, mas merece um olhar mais
aguçado. Sem dúvida, abusar o poder de veto como escudo de proteção, para
assim impedir discussões e ações do Conselho de Segurança referentes a fla-
grantes violações da Carta da ONU, fere as obrigações bona fide que emanam
da responsabilidade especial de ser membro permanente desse órgão principal
da ONU28. Por outro lado, é inerente ao poder de veto seu uso para proteger
interesses nacionais legítimos. Vale a pena lembrar que essa concessão surgiu
na famosa conferência de Yalta29, de fevereiro de 1945, onde Churchill, Roo-
sevelt e Stalin decidiram incorporar o poder de veto no Capítulo VII, como
fórmula de compromisso que futuramente evitasse o pior de todos os cenários
bélicos: uma guerra entre as grandes potências militares e blocos políticos
que resultaria em uma Terceira Guerra Mundial. Quase 80 anos depois, esse
cenário ainda não se realizou – entre outras razões, graças ao poder de veto
e às reuniões quase diárias no Conselho de Segurança envolvendo os mais
altos diplomatas desses países.

24 Ver ZIPELLIUS, Reinhold. Juristische Methodenlehre. 10. Aufl. München: C.H. Beck, 2006. p. 2.
25 KOHEN, Marcelo G. Desuetude and Obsolescence of Treaties. In: CANNIZARRO, Enzo (ed.), The Law of
Treaties Beyong the Vienna Convention. Oxford/New York: OUP, p. 350-359, 2011.
26 Compare HELMERSON, Sondre T. The Prohibition of the Use of Force: Explaining Apparent Derogations.
Netherland International Law Review, v. 64, n. 2, p. 164-193, 2014.
27 CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS. Op cit. (nota 20), Art. 24 (1).
28 Ibid., Art. 2º (2).
29 WILCOX, Francis O. The Yalta VOTING Formula. The American Political Science Review, v. 39, n. 5,
p. 943-956, 1945.
24

Sem dúvida, as frustrações decorrentes de vários abusos desse mecanismo


cresceram na medida em que ficou cada vez mais distante a Segunda Guerra
Mundial. No início do século XXI, o sistema internacional não é mais aquele
das décadas da “Guerra Fria”, que, porém, na opinião de alguns, acabou de
renascer30. Independentemente disso chegou, há muito tempo, a hora para
reformar o Conselho de Segurança. Só que isso não tira desse mecanismo, de
um momento para outro, o referido mérito de sabor amargo. Enfim, também
não se pode esquecer do fato de que todos os 193 Estados, que ratificaram a
Carta da ONU, assim aceitaram os poderes extraordinários dos membros per-
manentes do Conselho de Segurança. Destarte, tornaram-se primi inter pares
em plena consonância com o direito internacional contemporâneo, baseando,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


sobretudo, no princípio de consenso31.
Trata-se de uma argumentação positivista, que, porém, pode facilmente ser
complementada por uma série de outras observações de natureza mais socio-
lógica e (cosmo)política. Talvez a constatação mais relevante no presente con-
texto seja que a comunidade internacional dos Estados não se conformou com
a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia e, por isso, já tomou diversas
providências. A título de exemplo, tanto a Corte Internacional da Justiça como
o Tribunal Penal Internacional, além de diversas cortes nacionais, estão neste
momento trabalhando para, ao recitar o Artigo 1º (1) da Carta da ONU, “chegar,
por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do direito
internacional, a um ajuste ou solução” para essa tragédia inédita.
Pesa também o fato de que a Assembleia Geral da ONU já condenou
várias vezes a invasão russa32. Essas resoluções foram adotadas pela grande
maioria dos Estados que assim reafirmaram, pelo menos politicamente, a
atual ordem internacional. Na verdade, a Assembleia foi além disso, pois
aprovou, em 26 de abril de 2022 – poucos dias após a suspensão da Rússia
do Conselho de Direitos Humanos33 –, outra resolução34, que exige dos Países
que lancem mão dos poderes de veto justificarem futuramente perante esse
órgão representativo da comunidade internacional dos Estados o uso dessa
prerrogativa. Evidentemente, é possível fazer uma leitura crítica da medida,

30 Compare, p. ex.: HIRSH, Michael. We are now in a Global Cold War. Foreign Relations, 27 jun. 2022; BELLAMY,
John et al. The United States is Waging a New Cold War: A Socialist Perspective. Studies of Contemporary
Dilemmas, 2022. Disponível em: https://thetricontinental.org/wp-content/uploads/2022/09/20221107_
MR-NCW_EN_Web.pdf. Acesso em 15 dez. 2022.
31 SUY, Eric. Certain Other Perspectives for a Reform of the United Nations Security Council. In: RIETER, Eva;
DE WAELE, Henri (eds.), Evolving Principles of International Law. Studies in Honour of Karel C. Wellens,
p. 91-104, 2012. p. 98.
32 UN GENERAL ASSEMBLY. A/RES/ES-11/1, 2 mar. 2022; A/RES/ES-11/4, 13 out. 2022.
33 Ver U.N. UN General Assembly Votes to Suspend Russia from Human Rights Council. U.N. News, 7 abr.
2022. Disponível em: https://news.un.org/en/story/2022/04/1115782. Acesso em: 15 dez. 2022.
34 UN GENERAL ASSEMBLY, A/77/L.52, 26 Apr. 2022; GA/12417, 26 Apr. 2022.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 25

aparentemente, “sem dentes”. Não obstante é um passo na direção certa: tira


dos poderes de veto importante “zona de conforto”, dificulta a apresentação de
narrativas enganosas e, destarte, contribui para deslegitimar práticas violando
princípios fundamentais do direito internacional, inclusive, o de bona fide.
Portanto, trata-se de um progresso, embora tímido, em reação a um retrocesso
civilizatório imputável principalmente à decisão de Vladimir Putin de ordenar
a agressão contra a Ucrânia.

3. O ius in bello e o Direito Internacional Penal

Uma das citações mais famosas do grande pensador romano Marcus Tullius
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Cicero (106 – 43 a.c.) é inter armas enim silent leges – entre as armas, as leis
se calam35. Muitas das vezes, esse aforismo é tirado do seu contexto original
e aplicado a cenários bélicos, sugerindo que o autor defendeu tratar guerras
como situações anárquicas em que unicamente vigorasse nada mais do que a
“lei do mais forte”. Não foi bem assim36, mas, com certeza, as terríveis imagens
e impressões da guerra na Ucrânia, que há mais de um ano chamam a nossa
atenção, fizeram com que muitas pessoas acreditassem na completa irrelevância
dos ditames do direito internacional humanitário (DIH), aparentemente incapaz
de pôr algum termo a tanto sofrimento e tanta destruição “sem sentido”.
Entrementes, vale a pena lembrar o fato de que as regras aplicáveis em
tempos de guerra são justamente as mais antigas do direito internacional.
Não somente os romanos, mas diversas outras civilizações da Antiguidade
já reconheciam que guerras têm sim certos limites e, portanto, precisam de
regramento. Assim surgiu, no decorrer de muitos séculos, o chamado ius in
bello – hoje em dia mais apropriadamente denominado como Direito Inter-
nacional dos Conflitos Armados ou DIH37. Embora seja possível criticar, com
muita razão, a idoneidade de algumas das suas regras de lidar adequadamente
com os desafios humanitários postos pelos atuais cenários bélicos, em par-
ticular, cibernéticos38, é preciso ressaltar que “sobreviveu” às duas grandes
guerras da primeira metade do século passado, com ampla aceitação formal.
Houve gravíssimas e terríveis violações desse corpus juris, mas houve também
inúmeros momentos em que foi respeitado, assim confirmando, sobretudo,

35 Tradução livre nossa. CICERO, M.T. Pro Milone. Cambridge/New York: CUP, 2021.
36 KLEINSCHMIDT, Harald. Geschichte des Völkerrechts in Krieg und Frieden. Tübingen: Francke Verlag,
2013, p. 35-37.
37 KOLB, Robert; HYDE, Richard. An Introduction to the International Law of Armed Conflict. Portland: Hart
Publ., 2008, p. 16.
38 Veja para uma análise das operações cibernéticas no contexto da guerra na Ucrânia: ALMEIDA, Marcelynne
A; PETERKE, Sven. Operações cibernéticas como parte da guerra híbrida contra a Ucrânia e sua compa-
tibilidade com a Carta da ONU, nesta publicação.
26

silenciosamente, a sua relevância prática. Após o fim da Segunda Guerra Mun-


dial, os Estados compareceram a grande conferência em Genebra, organizada
pelo Comitê Internacional da Cruz (CICV), para discutir os defeitos das nor-
mas na época incidentes aos conflitos armados e acordar novas regras, o que
resultou na aprovação das famosas quatro Convenções de Genebra, de 1949,
até hoje constituindo a base do DIH moderno.
Por ser um regime jurídico aplicável durante os mais graves estados de
exceção, em que a violência armada abala profundamente o dia a dia das pes-
soas e coloca em xeque o funcionamento normal das instituições públicas, as
leges speciales do DIH39 autorizam o uso de força pelas partes envolvidas, em
particular, contra pessoas diretamente participando das hostilidades. Trata-se

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


de um compromisso pragmático diante a realidade de ocorrência de operações
militares. Porém, ao prevenir sofrimento desnecessário e assim humanizar
pelo menos um pouco essas situações em que armas de destruição em massa
ou convencionais estão sendo utilizadas, restringe-se o emprego de certos
meios e métodos da guerra incompatíveis com os princípios da humanidade,
da proporcionalidade, e, sobretudo, da distinção entre combatentes e civis.
Num mundo ideal, a proibição de usar força seria respeitada e até se tornaria
supérfluo garantir aos Estados um direito à autodefesa contra-ataques armados.
A Carta da ONU e o DIDH nos obrigam a lutar pela paz global, a não desistir
dessa utopia. Por outro lado, não restam dúvidas de que o DIH serve como
uma espécie de tábua de salvação para nossa humanidade em momentos em
que esse mundo ideal está muito distante. Dado esse cenário, os Estados ao
menos celebraram acordos para respeitar as regras “em todas as circunstân-
cias”, mesmo quando desrespeitadas pelo adversário40.
Boa parte das regras do DIH operam em silêncio, fornecendo não
somente importantes bases legais para diferentes ações humanitárias, mas
também para chamada “diplomacia humanitária”41 de diversos atores inter-
nacionais, entres eles, a própria ONU e o CICV. Indicador relevante costuma
ser o tratamento de prisioneiros de guerra, pois se encontram em situações

39 Ver para uma visão panorâmica sobre a jurisprudência consolidada: DROEGE, Cordula. Elective Afinities?
Human rights and humanitarian law. International Review of the Red Cross, v. 90 n. 871, p. 501-548, 2009.
p. 507-509.
40 Ver a 1ª CONVENÇÃO DE GENEBRA PARA MELHORIA DA SORTE DOS FERIDOS E ENFERMOS DOS
EXÉRCITOS EM CAMPANHA, de 12 de agosto de 1949, Art. 1º. BRASIL. Decreto 42.121, de 21 de agosto
de 1957. As quatro Convenções de Genebra, de 1949, foram ratificados por todos os Estados do mundo.
CAMERON, Lindsay et al., The updated Commentary on the First Geneva Convention – a new tool for
generating respect for international humanitarian law. International Review of the Red Cross, v. 97, n. 900,
p. 1209-1226, 2015. p. 1211.
41 Ver DE LAURI, Antonio. Humanitarian Diplomacy: A New Research Agenda, CMI Brief, n. 4, p. 1-4, 2018;
SLIM, Hugo. Humanitarian Diplomacy: The ICRC’s Neutral and Impartial Advocacy in Armed Conflicts. Ethics
& International Affairs, v. 33, n. 1, p. 67-77, 2019.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 27

de extrema vulnerabilidade, literalmente nas mãos do inimigo (termo esse


que o DIH aspira suprimir e substituir por “adversário”). De acordo com os
standards do DIH, os prisioneiros de guerra jamais podem ser maltratados ou
descuidados, por não representarem mais algum tipo de perigo42.
Diante disso, chamou atenção, em 14 de outubro de 2022, uma nota publi-
cada pelo CICV em que reclama não obter acesso aos prisioneiros de guerra na
Ucrânia, garantido pela Terceira Convenção de Genebra, de 1949, a que a Rússia
e a Ucrânia são partes43. Não acusou nenhum dos dois Estados em conflito expli-
citamente por violações, que parecem ocorrer em ambos os lados44. Não menos
preocupantes são as informações apresentadas por Comissão de Inquérito Inde-
pendente, indicando a comissão de muitos crimes de guerra. Aparentemente, a
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

grande maioria é atribuída às forças russas45 que atacam deliberadamente infraes-


trutura a que a população ucraniana depende para poder sobreviver o rigoroso
inverno nessa região. Portanto, é preciso concluir que o DIH “acabou”?
Se fosse essa a conclusão, sobretudo aqueles que dependem da sua pro-
teção neste momento tão complicado acabariam sendo abandonados pela
comunidade internacional e pelo direito criado por ela. Aliás, outra vez, vale
a pena distinguir entre a violação de uma norma e a sua validade – e fazer
uma comparação: há dúzias de países não castigados por conflitos armados
em que ocorrem violações aos direitos humanos, com milhares de homicídios
dolosos, torturas e outras barbaridades todo ano. Apesar de desanimador,
nenhuma pessoa mais ou menos lúcida defende que, por ser assim, essas
regras fundamentais– como respeitar o direito à vida e a integridade física de
outrem – se tornaram obsoletas. Isso vale para DIP, em geral, e o DIH, em
especial, embora haja claramente uma diferença qualitativa entre as violações
cometidas por indivíduos e a pelos Estados. Por enquanto, não há sinais de
que o desrespeito de uma parte do conflito armado fez a outra usar o fato
como pretexto para declarar o DIH inaplicável. Pelo contrário, é outra vez
perceptível como o direito internacional consegue deslegitimar aquele lado
que apostou na bruta violência.

42 3ª CONVENÇÃO DE GENEBRA RELATIVA AO TRATAMENTO DOS PRISIONEIROS DE GUERRA, de 12


de agosto de 1949, Art. 12. BRASIL. Decreto 42.121, 21 ago. 1957; MELZER, Nils. International Humanitarian
Law: a Comprehensive Introduction, Cambridge: CUP, 2016, p. 182.
43 ICRC. Russia-Ukraine International Armed Conflict: ICRC asks for immediate and unimpeded access to all
prisoners of war. ICRC New Release, 14 out. 2022. Disponível em: https://www.icrc.org/en/document/ukraine-
-russia-icrc-asks-immediate-and-unimpeded-access-to-all-prisoners-of-war. Acesso em: 28 dez. 2022.
44 JEFFORD, Jasmira. Prisoners of war tortured by both Russia and Ukraine, UN probe shows. Geneva Solution
News, 15 nov. 2022. Disponível em: https://genevasolutions.news/human-rights/prisoners-of-war-tortured-
-by-both-russia-and-ukraine-un-probe-shows. Acesso: 15 dez. 2022.
45 INDEPENDENT INTERNATIONAL COMMISSON OF INQUIRY ON UKRAINE. Report of the Independent
International Commission of Inquiry on Ukraine. A/77/533, 18 out. 2022, p. 2: “Russian armed forces are
responsible for the vast majority of the violations identified”.
28

O que nos choca e irrita é, antes de mais nada, a possível – ou até


provável – impunidade dos principais perpetradores de crimes internacio-
nais, gerando insegurança e sentimentos de revolta e injustiça, mesmo após
a emissão de ordem de prisão contra Presidente Putin pelo Tribunal Penal
Internacional (TPI), em 17 de março de 2023. Destarte, abala também a nossa
confiança no ordenamento jurídico internacional. No que se refere ao DIH,
é, de fato, criticado há muito tempo que se trata de um regime jurídico “sem
dentes”, marcado por consideráveis dificuldades de responsabilizar os seus
infratores46. Na lógica do atual DIH, cabe primeiramente aos Estados garan-
tir dentro das suas jurisdições o seu cumprimento e, se necessário, tomar
as medidas cabíveis, inclusive punitivas, em reação a suas violações. Na

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


realidade, os Estados relevam uma grande relutância de investigar e punir
os crimes cometidos por seus soldados que, enfim, arriscaram suas vidas por
sua pátria. Ainda mais excepcional é a acusação de criminosos de guerra de
um (ex) chefe ou ministro de Estado ou de outra alta autoridade pela justiça
doméstica. Pelo não reconhecimento do cometimento desses crimes, o Estado
nega simultaneamente fatos com potencial de fundamentar sua própria res-
ponsabilização como sujeito do direito internacional, com a consequência de
reparar os danos causados por seus atos ilícitos.
À luz dessa realidade, é preciso lembrar a importância de um sistema
internacional de justiça internacional que atua com órgãos próprios. Por muito
tempo, sobretudo, em virtude da Guerra Fria, houve dificuldades em consolidar
este sistema, porém, com seu, proliferaram instituições, com destaque para o
TPI, que começou a operar em 2002. Os Estados mais poderosos do planeta –
como China, EUA e Rússia – ainda não ratificaram o Estatuo de Roma do TPI,
de 1998. Mesmo assim, não se deve menosprezar o fato de que o TPI possui
123 Estados-membros e que tem competência para julgar qualquer caso com
incidência em seus territórios, mesmo que praticados por Estados não Partes.
Trata-se de um avanço, mesmo concordando com a crítica de que a jurisprudên-
cia e o desempenho geral do TPI ainda são insuficientes47. Por exemplo, é fato
animador que o TPI já abriu inquérito em caso que envolve soldados norte-a-
mericanos acusados de atos de tortura no Afeganistão48. Ademais, a jurisdição
do TPI é complementar a dos Estados-membros, que possuem a obrigação
primária de reprimir os crimes internacionais, o que impulsionou julgamentos
46 WOLF, Joachim. Violations of Humanitarian Law – The Lack of a Coherent Accountability and Sanction
Regime. In: TOSI, Guiseppe; GUERRA, FERREIRA, Lúcia F. de (org.). Ditaduras Militares, Estado de
Exceção e Resistência Democrática na América Latina. João Pessoa. CCTA, p. 243-280, 2016. p. 243.
47 PETERKE, Sven. Quo vadis, Tribunal Penal Internacional? Sobre um projeto histórico correndo sério risco
de fracassar. In: FILHO, Amilson Albuqueque L. A Voz da Vítima no Processo Penal Internacional. Uma
análise jurídico-normativa do Tribunal Penal Internacional. Curitiba: Appris, 2020.
48 ICC. Situation in the Islamic Republic of Afghanistan. Pre-Trial Chamber II. ICC-O2/17-196, 31 out. 2021.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 29

internos. Recentemente, a justiça alemã conseguiu acusar e condenar tortura-


dores do regime do Presidente sírio por crimes contra a humanidade49.
Como analisado em outro capítulo da presente publicação, o TPI já
enviou dúzias de investigadores para a Ucrânia, que tinha se submetido à
sua jurisdição logo após a anexação da Crimeia pela Rússia, especificamente
para os casos derivados desse fato, ampliado pela nova invasão50. Parece
difícil nesse momento prender o Presidente russo, que agora, com a emissão
da ordem de prisão contra si mesmo, deve estar ainda mais decidido em fragi-
lizar a corte na Haia e obstruir e deslegitimar a sua justiça. É outra batalha em
andamento cujo fim é difícil de prever. Parece ser provável, porém, o anterior
julgamento de outros perpetradores de crimes internacionais cometidos na
Ucrânia51. Certamente, isto não ocorrerá de um dia para outro, mas, como se
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

espera, após um fair trial que costuma demorar. Precisamos daquele olhar dife-
renciado exigido pelo direito (penal) e garantido por uma justiça independente
e imparcial. Por enquanto, o sistema internacional de justiça criminal ainda
enfrenta muitas resistências, que, de certa forma, fazem parte da sua própria
lógica de tentar enfrentar a chamada “macrocriminalidade”52. Seu sucesso
dependerá de uma série de fatores, inclusive a insistência da sociedade civil
internacional no seu efetivo reconhecimento como elemento-chave de uma
ordem “social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos
na presente Declaração possam ser plenamente realizados”53.

4. Considerações finais

Seria possível acrescentar diversas outras reflexões, em especial, sob as


perspectivas do Direito Internacional dos Direitos Humanos e dos Refugiados54.
No entanto, ficou suficientemente claro que a guerra contra a Ucrânia representa
um desafio especial para o ordenamento jurídico internacional por se tratar uma
violação multiplamente qualificada da proibição de usar força nas relações
49 HANNA, Nathalie. Tribunal da Alemanha condena oficial sírio a prisão perpétua. VEJA, 13 jan. 2022. Dis-
ponível em: https://veja.abril.com.br/mundo/tribunal-da-alemanha-condena-oficial-sirio-a-prisao-perpetua/.
Acesso em: 28 dez. 2022.
50 ICC. Situation in Ukraine. ICC-01/22, 2 mar. 2022; MARCHUK, Iryna; WANIGASURIYA, Aloka. The ICC and
the Russia-Ukraine War. ASIL Insights, v. 26, n. 4, p. 1-5, 2022. p. 2.
51 Cf. VASILIEV, Sergey. The Reckoning of War Crimes in Ukraine Has Begun. Foreign Policy, 17 jun. 2022.
Disponível em: https://foreignpolicy.com/2022/06/17/war-crimes-trials-ukraine-russian-soldiers-shishimarin/.
Acesso em: 15 dez. 2022.
52 AMBOS, Kai. “Impunidad”, Makrokriminalität und Völkerstrafrecht. Zu Ausmaß, Ursachen und Grenzen der
weltweiten Straflosigkeit von Menschenrechtsverletzungen. Kritische Vierteljahresschrift für Gesetzgebung
und Rechtswissenschaft, v. 79, n. 4, p. 355-370, 1996.
53 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, UN General Assembly, Resolution 217-A (III), 10
Dec. 1948, Art. 28.
54 Veja as diversas análises contidas na presente publicação, na sua Parte IV.
30

internacionais – uma agressão contra um Estado soberano que, por isso, tem
o direito a se defender militarmente junto como outros Estados, inclusive os
da OTAN. O resultado é uma guerra com potencial de se espalhar e que abala
profundamente o sistema internacional. Por isso, no mundo inteiro, gera dúvidas
acerca da validade do direito internacional, da sua força de se opor às diversas
injustiças observáveis no atual contexto bélico. Ao ver de alguns, contém “letras
mortas” na triste praxe dos Estados mais poderosos.
Todavia, foi possível demonstrar que tal percepção seria inadequada
e, sobretudo, precoce. Como outras ordens jurídicas, o direito internacional
sempre passou e vai passar por outras crises causadas por violações graves
e sistemáticas das suas regras fundamentais. Que essas normas são, na sua
grande maioria, certas e necessárias, porém, ninguém duvida. Pelo contrário,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


sobretudo para as vítimas de violações de direitos e os Estados menos podero-
sos, com dificuldades de se opor imediatamente à imposição da “lei do mais
forte”, o direito internacional possui uma importante função (des)legitimadora
para que possa ser feita justiça no futuro. Assim é fonte de esperança e força
para milhões de pessoas no mundo inteiro, que cobram há muito tempo dos
Estados o fortalecimento do sistema de justiça criminal internacional efeti-
vamente capaz de enfrentar a impunidade dos mais poderosos pelos crimes
internacionais mais graves.
Não se sabe, mas talvez seja logo possível observar com maior clareza
que a guerra na Ucrânia terá justamente este efeito – possivelmente de forma
tímida, não obstante, significativa. Como vimos, já estão ocorrendo diversas
adaptações de procedimentos internacionais capazes de denunciar e deslegi-
timar o exercício abusivo e ilegal de poder nas relações internacionais. Assim
como foi o caso após outras grandes catástrofes no século XX, há motivos para
acreditar que o direito internacional não sairá “derrotado”, mas fortalecido da
crise internacional causada pela guerra da Rússia contra a Ucrânia.
Com muita certeza, seria essa a visão do maior pensador brasileiro
de direito internacional contemporâneo e ex-juiz da Corte Internacional
de Justiça, falecido logo após o início das “operações militares especiais”
na Ucrânia – o grande humanista Antônio Augusto Cançado Trindade
(17/09/1947 – 29/05/2022).
2. A TRANSFERÊNCIA
DA CRIMEIA EM 1954:
desmascarando o mito da “dádiva
imperial” para a Ucrânia*
Alina Cherviatsova

*Tradução: Noemia Carneiro Mariz Maia.


Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba, Brasil.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Mestranda em Tradução e Serviços Linguísticos pela Universidade do


Porto, Portugal. Contato: noemia.marizmaia@gmail.com.

*Artigo originalmente publicado em inglês no Journal of


Soviet and Post-Soviet Politics and Society, v. 6, n. 2, p. 183-
212, 2020. Disponível em: https://spps-jspps.autorenbetreuung.
de/en/jspps/current-issue.html. Acesso em: 23 abr. 2023.

1. Introdução

Em março de 2014, no rescaldo do Euromaidan, a Federação Russa ane-


xou a Crimeia. Este evento marcou um momento decisivo na história europeia
moderna e no direito internacional do pós-guerra. Pela primeira vez desde
a Segunda Guerra Mundial, um membro do Conselho da Europa (CoE), da
OSCE e do Conselho de Segurança da ONU empregou unilateralmente o uso
da força contra um país vizinho membro da CoE, OSCE e da ONU com o
objetivo único de expansão territorial1. Além disso, o Estado vítima, a Ucrânia,
havia sido o primeiro e único Estado na história a ter desistido de um arsenal
de armas nucleares efetivamente geoestratégico. Isso foi feito em troca de
garantias por escrito, contidas no âmbito do célebre Memorando de Budapeste
de 1994, em prol da segurança nacional e integridade territorial da Ucrânia
(bem como da Bielorrússia e do Cazaquistão), pelos três estados depositários
do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) de 19682.

1 ROTARU, Vasile; TRONCOTA, Miruna (eds.). Russia and the Former Soviet Space: Instrumentalizing Security,
Legitimizing Intervention. Cambridge: Cambridge Scholars Publ., 2017, p. viii.
2 Veja, referente às implicações para a segurança internacional pelo descumprimento parcial das garantias de
dezembro de 1994 pelos três Estados depositários: BUDJIERYN, Mariana. The Breach: Ukraine’s Territorial
Integrity and the Budapest Memorandum. NPIHP Issues Brief, n. 3, 2014; UMLAND, Andreas. The Ukraine
Example: Nuclear Disarmament Doesn’t Pay. World Affairs 178, n. 4, p. 45-49, 2016; BUDIERYN, Mariana;
32

Esquece-se, por vezes, que a anexação da Crimeia já havia sido iniciada,


territorialmente, no final de fevereiro de 2014, ou seja, antes do processo ofi-
cial para-secessionista que se principiou em Simferopol, no início de março
de 2014. A apropriação paramilitar de terras pela Rússia violou, entre outros,
a proibição do uso da força, a qual é considerada uma das poucas normas
jus cogens existentes. A operação da Rússia contra a Ucrânia foi, portanto,
categoricamente julgada como ilegal e repetidas vezes condenada pela comu-
nidade internacional3. Com o intuito de justificar a anexação (um termo que
formalmente a Rússia não aceita para seu ato de apropriação de terras), o
Kremlin apelou para um sentimento nacionalista através da construção e difu-
são proposital de várias narrativas históricas fictícias. Entre elas, o mito da
“dádiva imperial” ocupa um lugar de destaque na medida em que também

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


se tornou amplamente divulgado e parcialmente aceito para além da Rússia.
Esta narrativa retrata a transferência russa da Crimeia para a Ucrânia em
1954 como fruto de uma decisão arbitrária por parte de um único indivíduo,
o líder soviético e então Primeiro Secretário do PCUS, Nikita Khrushchev.
Mediante esta narrativa, Khrushchev, motivado em parte por ter raízes ucra-
nianas e simpatizar com seu povo, teria concedido a península da Crimeia
– a qual é geograficamente contígua – à República Socialista Soviética da
Ucrânia (RSSU) por mero capricho, como uma suposta “dádiva imperial”
(Russ.: tsarskii podarok; Ukr.: tsars’kyi podarunok) à sua amada Ucrânia.
Esse mito também se baseia com frequência na alegação de que a transferência
da Crimeia supostamente violava a legislação soviética então existente – e
que se tratou, portanto, de um ato ilegal na época, sendo assim igualmente
inválido na atualidade. Seguindo esta lógica, em 2014, a Crimeia não teria
sido anexada, mas sim “reunificada” com a Federação Russa. Longe de ser
uma violação da integridade territorial da Ucrânia, a anexação russa de 2014
estaria apenas historicamente corrigindo um erro e restaurando a justiça.

UMLAND, Andreas. Amerikanische Russlandpolitik, die Souveränität der Ukraine und der Atomwaffens-
perrvertrag: Ein Dreiecksverhältnis mit weitreichenden Konsequenzen. Sirius: Zeitschrift für Strategische
Analysen 1, n. 2, p. 133-142, 2017.
3 Veja, p. ex.: UN GENERAL ASSEMBLY, A/RES/68/262 (2014), intitulado “Integridade territorial da Ucrânia”.
Disponível em: https://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/68/262. Acesso em: 23 abr.
2023; PARLIAMENTARY ASSEMBLY OF THE COUNCIL OF EUROPE. Resolution 1990/2014, “Reconside-
ration on Substantive Grounds of the Previously Ratified Credentials of the Russian Delegation”; Resolution
2132/16, “Political Consequences of the Russian Aggression in Ukraine”; Resolution 2198/2018, “Humanitarian
Consequences of the War in Ukraine; PARLIAMENTARY ASSEMBLY OF THE OSCE. Resolution “On Clear,
Gross and Uncorrected Violations of Helsinki Principles by the Russian Federation”, 28 jun./2 jul. 2014;
Resolution “On the Continuation of Clear, Gross and Uncorrected Violations of OSCE Commitments and
International Norms by the Russian Federation”, 5-9 jul. 2015; EUROPEAN PARLIAMENT. Resolution on the
Invasion of Ukraine by Russia, Eur. Parl. Doc. 2014/2627(RSP), 13 mar. 2014; NATO. North Atlantic Council
Statement on the Situation in Ukraine. Press Release, 2 mar. 2014; Joint Statement of the NATO-Ukraine
Commission, Press Release, 13 maio 2015; etc.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 33

O mito da dádiva imperial ficou consagrado no famoso discurso de Putin


sobre a Crimeia, proferido após a tomada da península pela Rússia, em 18
de março de 2014. Primeiramente, Putin enfatizou que, nos corações e na
consciência do povo russo, “a Crimeia sempre foi uma parte inseparável
da Rússia”. Sendo um lugar onde tudo remetia à “história e o orgulho em
comum” com a Rússia e simbolizava “a glória e a excepcional bravura militar”
da mesma. Em segundo lugar, Putin criticou a transferência da Crimeia por
Khrushchev como tendo sido um ato ilegal:

Em 1954, foi tomada a decisão de transferir a Região da Crimeia para a


Ucrânia, juntamente com Sebastopol, apesar da mesma se tratar de uma
cidade federada. Esta foi uma iniciativa própria do chefe do Partido Comu-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

nista Nikita Khrushchev. O motivo por trás dessa decisão – um desejo


de ganhar o apoio do aparelho político ucraniano ou de compensar pelas
repressões em massa que ocorreram na década de 1930 no país – é uma
questão para os historiadores. O que importa hoje é que esta decisão foi
tomada em clara violação às normas constitucionais que já então eram
vigentes. Foi uma decisão tomada nos bastidores [...]4.

Assim, Putin adotou o mito da dádiva imperial como um posicionamento


oficial da Federação Russa. A mensagem é clara: A Crimeia sempre foi parte da
Rússia, e como tal a ela pertence. Tomando emprestado um conceito utilizado
por James Hughes e Gwendolyn Sasse, esta narrativa pode ser vista como uma
“ideia potencializadora” – isto é, uma ideia com o poder de “substancialmente
definir ou redefinir” tanto a política nacional como internacional5. Neste caso,
esta narrativa (re)definiu a política da Rússia em relação à Ucrânia e à Crimeia
em especial, assim como a sua política externa de forma geral.
Atualmente, existe uma rica literatura que analisa a anexação da Crimeia
em 2014 sob a perspectiva do direito internacional6. Há, todavia, uma quan-

4 THE KREMLIN. Address by President of Russian Federation. President of Russia, 18 mar. 2014. Disponível
em: http://en.kremlin.ru/events/president/news/20603. Acesso em: 29 abr. 2023.
5 HUGHES, James; SASSE, Gwendoly. Power ideas and Conflict: Ideology, Linkage and Leverage in Crimeia
and Chechnya. East European Politics, v. 32, n. 3, p. 314-334, 2016. p. 317.
6 P. ex.: DELAHUNTY, Robert J. The Crimean Crisis. University of St. Thomas Journal of Law and Public
Policy, v. 9, n. 1, p. 125-187, 2014; FABRY, Mikulas. How to Uphold the Territorial Integrity of Ukraine.
German Law Journal, v. 16, n. 3, p. 415-33, 2015; GRANT, Thomas D. Aggression Against Ukraine: Ter-
ritory, Responsibility, and International Law. New York, NY: Palgrave Macmillan, 2015; GRANT, Thomas
D. International Dispute Settlement in Response to an Unlawful Seizure of Territory: Three Mechanisms.
Chicago Journal of International Law, v. 16, n. 1, p. 1-42, 2015; PETERS, Anne. Sense and Nonsense
of Territorial Referendum in Ukraine, and Why the 16 March Referendum in Crimea Does Not Justify
Crimea’s Alteration of Territorial Status under International Law. EJIL: Talk! 16 abr. 2014. Disponível em:
https://www.ejiltalk.org/sense-and-nonsense-of-territorial-referendums-in-ukraine-and-why-the-16-mar-
ch-referendum-in-crimea-does-not-justify-crimeas-alteration-of-territorial-status-under-international-law/.
34

tidade muito menor de publicações acerca das normas e trâmites soviéticos


com base nos quais a Crimeia havia se tornado parte da RSSU. No entanto,
esta última questão é importante na medida em que o mito da dádiva imperial
fundamenta-se no princípio de que a transferência intra-soviética de 1954
violava as normas e trâmites constitucionais da URSS bem como a “legiti-
midade soviética”.
Com base em uma análise do direito soviético e das práticas administra-
tivas relativas às mudanças territoriais em vigor na época, este artigo procura
desmascarar o mito da dádiva imperial. Busca, pois, responder às questões
de como e por que a Região da Crimeia foi transferida da Rússia Soviética
para a RSS da Ucrânia, que trâmites e normas existiam no direito soviético

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


para regular tais transferências territoriais internas, bem como determinar se
essas normas foram violadas em 1954.
O artigo é composto por quatro partes. Inicia-se com um breve pano-
rama das origens do mito da dádiva imperial e de seu desdobramento no
âmbito das relações russo-ucranianas, desde o colapso da União Soviética
até a anexação da Crimeia. Neste, mostra-se a evolução das reivindicações
territoriais da Rússia, desde pontuais declarações extraoficiais feitas nos
anos 90 até a consolidação do posicionamento do Kremlin em 2014. A
seguir, o artigo explora algumas das razões socioeconômicas, entre outras,
que levaram à transferência da Crimeia em 1954, a fim de abordar a alega-
ção de que esta decisão teria sido supostamente tomada “nos bastidores”
de maneira individual por Nikita Khrushchev, na forma de uma “dádiva
imperial”. Em sua terceira parte, analisa-se o direito soviético e a prática
de mudanças territoriais visando contextualizar a transferência da Crimeia
no que diz respeito às normas e disposições judiciais existentes na época.
Aqui, demonstra-se que a transferência da Crimeia foi apenas uma dentre
muitas mudanças territoriais e fronteiriças realizadas entre as repúblicas
soviéticas, e que o trâmite percorrido em 1954 foi semelhante ao de outras
transferências territoriais realizadas entre 1940 e 1970. Por fim, a última
parte do artigo trata da questão de Sebastopol, questionando a alegação
Acesso em: 20 jun. 2020; MARXSEN, Christian. The Crimea Crisis – An International Law Perspective,
Zeitschrift für ausländisches öffentliches Recht und Völkerrecht, v. 74, p. 367-91, 2014; WHITE Thomas W.
Referendum in Crimea: Developing International Law on ‘Territorial Realignment’ Referendums. Houston
Journal of International Law, v. 38, n. 3, p. 843-86, 2016; BERING, Juergen Bering. The Prohibition on
Annexation: Lessons from Crimea. New York University Journal of International Law and Politics, v. 49,
n. 3, p. 748–832, 2017; VIDMAR, Jure. The Annexation of Crimea and the Boundaries of the Will of the
People. German Law Journal, v. 16, n. 3, p. 365-83, 2015; BÍLKOVÁ, Veronika. The Use of Force by the
Russian Federation in Crimea, Zeitschrift für ausländisches öffentliches Recht und Völkerrecht, v. 75, p.
27-50, 2015; Czapliński, Władysław et al. (eds.), The Case of Crimea’s Annexation Under International
Law. Warsaw: Scholar Publishing House, 2018; WELLER, Mark. Why Russia’s Crimea Move Fails Legal
Test. BBC News, 7 mar. 2014; etc.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 35

de que, após a transferência da Crimeia, aquela supostamente tenha per-


manecido sob a jurisdição da Rússia como uma “cidade de subordinação
à república”.

2. O mito da “dádiva imperial” e a questão da Crimeia nas


relações russo-ucranianas (1990-2014)

A questão da Crimeia, ou a questão quanto à afiliação da Crimeia, marcou


presença constante nas relações Ucrânia-Rússia a partir do momento em que a
Ucrânia tornou-se independente, em 1991. Não se tratava de um problema isolado,
estando associado a outras questões russo-ucranianas pós-soviéticas, como o des-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

tino da Frota do Mar Negro, os preços do gás na Rússia e as dívidas energéticas


da Ucrânia, os direitos das minorias russas, o papel e as funções da Comunidade
de Estados Independentes, as dívidas e ativos que ambos os países herdaram da
antiga União Soviética, a cooperação da Ucrânia com a OTAN e a UE etc.
Desde 1991, as relações entre os dois países mostraram-se tensas, com
muitos russos relutantes em aceitar o colapso da União Soviética e/ou a Ucrânia
como um Estado independente7. O empenho da Ucrânia para com a indepen-
dência foi e é incompatível com a autoimagem russa de uma “grande potên-
cia”. As políticas, estratégias e pretensões pós-soviéticas da Rússia relativas
à Ucrânia reiteradamente atestam a relevância da famosa tese publicada por
Zbigniew Brzezinski em 1994, segundo a qual “sem a Ucrânia, a Rússia deixa
de ser um império”8. Esta dependência de Moscou para com sua autoimagem
enquanto centro imperial explica a constante pressão exercida pela Rússia sobre
a Ucrânia, embora, até 2014, não tenha implicado violência.
Dentre as perdas territoriais decorrentes da desintegração da União Sovié-
tica, muitos russos consideraram a da Crimeia como uma das mais humi-
lhantes9. Na concepção da Rússia, a Crimeia “sempre” foi russa. A cidade de
Sebastopol teve e continua a ter um lugar de destaque na memória do povo
russo como uma cidade de “glória militar russa”, por ocasião da sua defesa
heroica, tanto na Guerra da Crimeia entre 1853 e 1856, como na Segunda
Guerra Mundial10.

7 Veja, p. ex., a famosa declaração de Putin que a queda da União Soviética seria a “maior catástrofe geopo-
lítica” do séc. XX: “Putin Deplores Collapse of USS”, BBC News, 25 abr. 2005. Disponível em: http://news.
bbc.co.uk/2/hi/4480745.stm. Acesso em: 20 jun. 2020.
8 Brzezinski, Zbigniew. The Premature Partnership. Foreign Affairs, v. 73, n. 2, p. 67-82, 1994. p. 80.
9 Lukyanov, Fyodor. Putin’s Foreign Policy: The Quest to Restore Russia’s Rightful Place. Foreign Affairs, v.
95, n. 3, p. 30-37, 2016. p. 33–34.
10 Yekelchyk, Serhy. The Conflict in Ukraine: What Everyone Needs to Know. Oxford: Oxford University Press,
2015, p. 127. Sobre o papel de Sevastopol na memória coletiva russa, veja Plokhy, Serhii. The City of Glory:
Sevastopol in Russian Historical Mythology. Journal of Contemporary History, v. 35, n. 3, p. 369-383, 2000.
36

Contudo, esta “geografia imaginária” concebida pela Rússia não reflete


toda a complexidade histórica da região11. Em verdade, ela omite o fato de que
a Crimeia foi disputada por diversos impérios ao longo dos séculos, dentre os
quais o Bizantino, os Rus de Kiev e a Cazária nos séculos IX e X; bem como
o Czarado da Moscóvia e o Canato da Crimeia nos séculos XV a XVIII12.
Somente em 1783 o Império Russo adquiriu o controle sobre a península. De
1853 a 1856, o mesmo teve de enfrentar o Império Otomano, a França, o Reino
Unido e o Reino da Sardenha na Guerra da Crimeia, de forma a não perder seu
domínio sobre a região13.
A alegação de que “a Crimeia é historicamente russa” elide as drásticas
mudanças sofridas pela população da Crimeia resultantes de guerras, fome,
repressões e políticas de reassentamento. Ignora, sobretudo, o fato de que a Cri-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


meia só se tornou uma região de maioria étnica russa após Stalin ter expulsado
os tártaros da Crimeia, assim como outras minorias da península, em 194414. Por
fim, a mesma desconsidera que as tropas imperialistas russas e militares soviéticas
que participaram das diversas batalhas pela Crimeia não eram etnicamente russas,
mas sim distintamente multinacionais, incluindo uma parcela significativa de
etnia ucraniana. Supondo que se tomasse seriamente em consideração a questão
da “glória militar” durante a Guerra da Crimeia e a Segunda Guerra Mundial, a
mesma não diria, então, respeito apenas aos russos.
O mito da “dádiva imperial” só surgiu depois que a Ucrânia conquistou
a independência em 1991. Até então, a transferência da Crimeia era, pela
concepção ideológica soviética, tida como um testemunho da “amizade fra-
terna” entre as duas nações. Uma declaração proferida durante uma sessão
do Presidium do Soviete Supremo, em 1954, afirma:

O povo ucraniano há muito criou laços intrínsecos que o vincula ao povo


russo... A transferência da Região da Crimeia para a República da Ucrâ-
nia contribui para o fortalecimento da amizade entre todos os povos da
grande União Soviética; ela fortalecerá as relações fraternas entre os povos
ucraniano e russo15.

A transferência da Crimeia serviu de ferramenta para o regime soviético,


cuja retórica oficial, após a morte de Stalin, refletiu uma mudança na atitude de

11 O termo refere-se aos sentimentos nacionais da Rússia e às narrativas históricas que impactam na
política russa no “exterior próximo; veja WOOD, Elizabeth A. Introduction. In: WOOD, Elizabeth A. et
al. (eds.), Roots of Russia’s War in Ukraine. Washington, DC: Wood Wilson Center Press, 2016, p. 3;
LARUELLE, Marlene. The ‘Russian World:’ Russia’s Soft Power and Geopolitical Imagination. Centre
on Global Interest, 21 maio 2015, p. 1.
12 Cf. WOOD, Ibid., p. 3.
13 Para uma visão panorâmica sobre a história da Crimeia veja Yekelchyk, op. cit. (nota 10), p. 120-22.
14 Ibid., p. 119.
15 Stenogramma zasedaniia Prezidiuma Verkhovnogo Soveta SSSR, 19 fev. 1954.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 37

Moscou em relação à Ucrânia. Políticas anteriores que visavam a permanência


da Ucrânia como parte do império soviético através do uso de força, eram
agora substituídas pela disseminação da ideia de “amizade entre os povos”.
Esta retórica procurou convencer os ucranianos de que, enquanto parte da
URSS, eles haviam conseguido tudo aquilo com que sempre sonharam16.
Ao transferir a Crimeia em 1954, o Kremlin não tinha nada a perder,
tendo em vista que durante o regime totalitário soviético, a Ucrânia encon-
trava-se completamente subordinada a Moscou. Logo, não importava a qual
das duas repúblicas soviéticas – a russa ou a ucraniana – a Crimeia pertencia.
De fato, nos anos 50, ninguém poderia ter previsto que, dentro de quarenta
anos, a Ucrânia seria capaz de libertar-se da União Soviética e distanciar-se
da Rússia. Após o colapso da URSS, no entanto, houve uma mudança quanto
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ao caráter da “questão da Crimeia”. A velha narrativa soviética de “amizade


fraterna” entre a Rússia e a Ucrânia não tardou a ser substituída pelo mito
russo pós-soviético da dádiva imperial.
Nos anos 90, havia o risco de que a Crimeia pudesse se tornar outro
foco de conflito dentre os muitos que surgiram após a desintegração da União
Soviética. O status incerto da Crimeia como parte da recém independente
Ucrânia, as reivindicações territoriais da Rússia, a incerteza sobre o futuro
da base naval em Sebastopol, o declínio da economia ucraniana, as tensões
étnicas entre a maioria de língua russa da região e os tártaros da Crimeia que
retornavam à península após sua deportação, e a relutância da população da
Crimeia em aceitar a política linguística da Ucrânia – todos esses fatores
juntos geraram um verdadeiro risco de conflito na região.
Em maio de 1992, e durante o primeiro semestre de 1994, ocorreram os
ápices no que foi uma crise semiconstante nas relações russo-ucranianas com
relação à Crimeia. No entanto, o agravamento desses conflitos foi evitado atra-
vés de negociações e uma proposta com vista a um plano de autonomia para
a Crimeia. A nova Constituição da Ucrânia, adotada em 1996, definiu a Cri-
meia como uma “república autônoma” dentro do Estado unitário ucraniano. O
processo de negociação acerca do status de autonomia da Crimeia na Ucrânia
implicou na participação de todos as principais forças políticas – os líderes do
movimento nacionalista regional russo, a liderança dos tártaros da Crimeia e
os representantes das instituições políticas da Crimeia e Kiev. As negociações
foram acompanhadas de discussões entre Moscou e Kiev sobre o fornecimento
de energia à Ucrânia, a partição da frota do Mar Negro e o status da base militar
russa em Sebastopol17. Tais negociações juntamente com a reforma constitucional
permitiram à Ucrânia manter a integridade territorial e consolidar a integração

16 Kul’chyts’kyi, Stanislav. Try Pereiaslavy. Dzerkalo tyzhnia, n. 33, p, 408, 31 ago./6 set. 2002.
17 HUGES; SASSE. Op. cit. (nota 5), p. 318.
38

da península com o continente. Da primavera de 1994 à primavera de 1995, o


apoio ao separatismo pró-russo na Crimeia diminuiu, e a liderança da república
foi substituída por líderes locais pró-ucranianos18. A Ucrânia foi capaz, durante
algum tempo, de integrar a Crimeia no âmbito de sua soberania.
Ao passo que a Ucrânia recorreu a um processo constitucional para man-
ter a Crimeia – uma abordagem não violenta que contrastava fortemente com
a política russa que visava suprimir o separatismo na Chechênia, por volta da
mesma época, em dezembro de 1994 – desde aquela época, o Kremlin já se
valia do mito da “dádiva imperial” para justificar suas demandas territoriais e
incentivar o separatismo da Crimeia. Em maio de 1992, o Conselho Supremo
da Federação Russa, o parlamento russo, declarou inconstitucional a transfe-
rência da Crimeia ocorrida em 195419. O Conselho revogou o Decreto “Sobre

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


a transferência da Região da Crimeia sob a jurisdição da República Socia-
lista Federativa Soviética da Rússia para a jurisdição da República Socialista
Soviética da Ucrânia”, que fora promulgado em 5 de fevereiro de 1954. O
parlamento russo declarou que a questão territorial da Crimeia – que já havia
sido decidida através do Pacto de Belaveja relativo à dissolução da URSS, o
qual foi assinado na Bielorrússia no dia 8 de dezembro de 1991 e ratificado –
precisaria ser rediscutida. A questão supostamente ainda em aberto deveria ser
resolvida através de um processo de negociações entre os dois países, Rússia
e Ucrânia, com a participação de representantes da Crimeia. Em resposta,
Kiev declarou que o decreto parlamentar russo não implicava “consequências
legais” e enfatizou que a questão do status da Crimeia “como parte integrante
da Ucrânia” não era passível de negociação20.
Pouco depois, em julho de 1993, a Rússia e a Ucrânia travaram uma guerra
“diplomática” pela cidade de Sebastopol. Este conflito inseriu-se num contexto
de grande tensão envolvendo a frota do Mar Negro, o qual marcou as relações
russo-ucranianas entre 1992 e 1995. A questão da frota em si era menos impor-
tante do que ter controle sobre a principal base naval – a cidade de Sebastopol
e, consequentemente, a península como um todo. A “batalha” se intensificou
quando o parlamento russo aprovou o Decreto “Sobre o status de Sebastopol”,
que afirmava que esta era uma cidade federada pertencente à Federação Russa21.
A reivindicação territorial da Rússia em relação à cidade de Sebastopol
também foi baseada no mito de uma “dádiva imperial”. Com base no fato de

18 Kuzio, Taras. Ukraine under Kuchma: Political Reform, Economic Transformation and Security Policy in
Independent Ukraine. New York, NY: Palgrave Macmillan, 1997, p. 67.
19 Postanovlenie Verkhovnogo Soveta RF n. 2809-1. O pravovoi otsenke reshenii vysshikh organov gosudars-
tvennoi vlasti RSFSR po izmeneniiu statusa Kryma, priniatykh v 1954 godu, 21 maio 1992.
20 Postanova Verkhovnoi Rady Ukrainy n. 2397-XII. Pro Postanovu Verkhovnoi Rady Rosiis’koi Federatsii
‘Pro pravovu otsinku rishen’ vyshchykh orhaniv derzhavnoi vlady RSFSR shchodo zminy statusu Krymu,
pryiniatykh u 1954 rotsi. 2 jun. 1992.
21 Postanovlenie Verkhovnogo Soveta RF no 53559-I. O statuse goroda Sevastopolia. 9 jul. 1993.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 39

que em 1948 Sebastopol recebeu o status especial de “cidade subordinada à


república”, a Rússia alegou que em 1954 a cidade não integrava a Crimeia e,
portanto, nunca fora transferida para a Ucrânia. Destarte, quase quarenta anos
após a transferência da península, Moscou alegou que a cidade de Sebastopol
sempre fora russa. O Decreto “Sobre o status do Sebastopol” considerou a
cidade como território russo.
A Ucrânia rejeitou as reivindicações territoriais da Rússia e declarou
o Decreto como sendo ilegal. Ela também recorreu ao Conselho de Segu-
rança da ONU com vistas a uma avaliação jurídica dos atos praticados pelo
parlamento russo22. Isso obrigou o Kremlin a cessar suas ações. Referindo-
-se ao Decreto, o Ministério das Relações Exteriores da Federação Russa
declarou que o parlamento russo “havia se desvinculado da política ado-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

tada pelo Presidente e pelo Governo da Federação Russa”. O representante


da Federação Russa garantiu ao Conselho de Segurança da ONU que seu
país “permaneceria comprometido com o princípio da inviolabilidade das
fronteiras no âmbito da Comunidade de Estados Independentes e que cum-
priria integralmente suas obrigações nos termos do direito internacional”;
em suas relações com a Ucrânia, e que a Federação Russa “continuaria a se
pautar por seus tratados e acordos bilaterais e, sobretudo, aqueles relativos
ao respeito mútuo à soberania”23. O Conselho de Segurança – incluindo a
Rússia! – reafirmou seu compromisso com a integridade territorial da Ucrâ-
nia e declarou “incompatível com os propósitos e princípios da Carta, e sem
efeito” o decreto parlamentar russo24. Desta vez, a soberania e a integridade
territorial da Ucrânia foram protegidas.
No decorrer dos próximos anos, o mito da “dádiva imperial” como ele-
mento da popular narrativa russa de que “Crimeia é russa” coexistiu com o
reconhecimento oficial de Moscou sobre as fronteiras da Ucrânia e os direi-
tos desta à Crimeia e Sebastopol, gerando uma estranha dualidade nas rela-
ções entre os dois países. A soberania e a integridade territorial da Ucrânia
(incluindo a Crimeia e a cidade de Sebastopol) são reconhecidas sob uma
série de acordos bilaterais e multilaterais dos quais a URSS fez e a Rússia faz
parte: a Ata Final de Helsinque (1975)25; o Acordo entre a RSFS da Rússia e

22 Postanova Verkhovnoi Rady Ukrainy n. 3378-XII. Pro postanovu Verkhovnoi Rady Rosiis’koi Federatsii ‘Pro
status mista Sevastopolia. 14 jul. 1993.
23 UN SECURITY COUNCIL. Complaint by Ukraine regarding the Decree of the Supreme Soviet of the Russian
Federation concerning Sevastopol. Repertoire of the Practice of the Security Council 1993-1995, p. 957–59.
Disponível em: https://www.un.org/en/sc/repertoire/93-95/Chapter%208/EUROPE/93-95_8-22-UKRAINE.
pdf. Acesso em: 29 abr. 2023.
24 Ibid., p. 959.
25 Helsinki Act (1975), Part 1(a) (Declaration on Principles Guiding Relations between Participating States);
Principle III (Inviolability of Frontiers); Principle IV (Territorial Integrity of States).
40

a RSS da Ucrânia (1990)26; o Pacto de Belaveja (1991)27; o Memorando de


Budapeste (1994)28; o Tratado de Amizade, Cooperação e Parceria entre a
Ucrânia e a Rússia (1997)29; e o Tratado entre a Ucrânia e a Federação Russa
sobre a Fronteira Russo-Ucraniana (2003)30. Ademais, a Rússia confirmou a
pertença de Sebastopol à Ucrânia no Acordo entre a Ucrânia e a Federação
Russa sobre o Status da Frota do Mar Negro e as Condições de sua Acomo-
dação no Território da Ucrânia (1997)31, segundo o qual a Rússia arrendou
da Ucrânia as bases navais em Sebastopol por vinte anos32.
Em 2014, a Rússia violou estas e outras obrigações internacionais rela-
tivas à soberania e integridade territorial da Ucrânia. O mito da “dádiva
imperial” passou, então, a ser um posicionamento oficial de Moscou. Tor-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


nou-se um componente decisivo da estratégia do Kremlin na justificação da
anexação da Crimeia.

3. Analisando as razões para a transferência de 1954

O mito da “dádiva imperial” pressupõe que a transferência da Crimeia


tenha resultado de uma decisão voluntária por parte de Khrushchev. No entanto,

26 Dogovor mezhdu RSFSR i USSR, 19 nov. 1990. Disponível em: http://docs.cntd.ru/document/1900094.


Acesso em: 20 jun. 2020.
27 Agreements Establishing the Commonwealth of Independent States, 8 dez. 1991. No seu art. 5º, os Estados-
-parte reconhecem e respeitam a sua integridade territorial e a inviolabilidade das suas fronteiras. Disponível
em: https://www.venice.coe.int/webforms/documents/?pdf=CDL(1994)054-e. Acesso em: 29 abr. 2023.
28 O Memorando de Budapest objetivou dar à Ucrânia garantias de segurança após a entrega das suas armas
nucleares. Os EUA, o Reino Unido e Rússia declararam respeitar a independencia e a soberania assim
como as fronteiras existentes da Ucrânia e ainda reafirmaram “sua obrigação de se abster da ameaçou ou
uso de força contra a integridade territorial ou a independência política da Ucrânia” (tradução livre).
29 De acordo como o Tratado de Amizade, Cooperação e Parceria entre a Ucrânia e a Rússia, os Estados-parte
afirmaram a inviolabilidade de fronteiras entre os dois Estados (art. 2º) e “o princípio de respeito mútuo para
a sua igualdade soberana, os princípios de respeito mútuo para a integridade territorial, a inviolabilidade das
fronteiras, a resolução pacífica de disputas, o não uso da forca ou da ameaça com força, inclusive meios
de pressão, seja de natureza econômica ou outra, o direito dos povos a determinar livremente a sua sorte,
não ingerência nos assuntos internos, observância dos direitos humanos e das liberdades fundamentais,
cooperação entre os Estados, a ciente performance de obrigações internacionais empreendidas, e de outras
normas gerais reconhecidos pelo direito internacional (art. 3º) (tradução livre); ver Dohovir pro druzhbu,
spivrobitnytstvo i partnerstvo mizh Ukrainoiu i Rosiis’koiu Federatsiieiu, 31 maio 1997. Disponível em: https://
zakon.rada.gov.ua/laws/show/643_006#Text. Acesso em: 20 jun. 2020.
30 O Tratado entre a Ucrânia e a Federação Russa sobre a Fronteira Russo-Ucraniana confirma que penín-
sula da Crimeia (inclusive a cidade de Sevastopol) é parte integral da Ucrânia. Cf. Dohovir mizh Ukrainoiu
i Rosiis’koiu Federatsiieiu pro ukrains’ko-rosiis’kyi derzhavnyi kordon, 28 jan. 2003. Disponível em: https://
zakon.rada.gov.ua/laws/show/643_157#Text. Acesso em: 20 jun. 2020.
31 Dogovor mezhdu Ukrainoi i Rossiiskoi Federatsiei o statuse i usloviiakh prebyvaniia Chernomorskogo flota Ros-
siiskoi Federatsii na territorii Ukrainy, 28 maio 1997. Disponível em: http://docs.cntd.ru/document/901737969.
Acesso em: 20 jun. 2020.
32 Em 2010, foi prorrogado o período de arrendamento das bases navais de Sebastopol até 2042, através dos
assim chamados Acordos de Kharkiv.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 41

nos anos 50, havia motivos objetivos subjacentes à mesma. Estas razões foram
expostas de maneira clara por Mikhail Tarasov, então presidente do Presidium
do Soviete Supremo da Rússia Soviética, em discurso proferido no dia 19 de
fevereiro de 1954, perante o Presidium do Soviete Supremo da URSS:

Como é sabido, a Região da Crimeia ocupa toda a península, sendo adja-


cente ao território da República da Ucrânia, constituindo assim a conti-
nuação natural das estepes ao sul da Ucrânia. A economia da Região da
Crimeia é intimamente ligada à economia da RSS da Ucrânia. A transferên-
cia da Região da Crimeia para a nação vizinha da Ucrânia se justifica por
razões geográficas e econômicas, sendo de interesse comum aos Estados
soviéticos [...] Tendo em vista as semelhanças entre suas economias, a
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

proximidade territorial, e os estreitos laços econômicos e culturais entre a


Região da Crimeia e a RSS da Ucrânia, e pressupondo o consentimento do
Presidium do Soviete Supremo da RSS da Ucrânia, o Presidium do Soviete
Supremo da RSFS da Rússia considera oportuno transferir a Região da
Crimeia para a jurisdição da República Socialista Soviética da Ucrânia33.

A ideia da transferência da Região da Crimeia para a RSS da Ucrânia


consolidou-se no seio de toda a alta liderança da URSS, RSFSR e RSSU no
final de 1953 e início de 1954, e não apenas na cabeça de Khrushchev. Após
a Segunda Guerra Mundial, a Região da Crimeia sofreu uma profunda crise
socioeconômica causada pela guerra e pela breve, mas devastadora, ocupação
nazista, bem como pelas deportações em massa de populações de etnia alemã,
dos tártaros da Crimeia e de outras minorias locais entre 1941 e 194434. As
consequências da crise não poderiam ser superadas sem a ajuda da Ucrânia,
a qual efetivamente forneceu auxílio e assistência econômicos. O jornal em
língua russa “A Verdade da Crimeia” noticiou no início de 1954:

Os ucranianos [...] efetivamente auxiliam os residentes da Crimeia na


construção de grandes cidades e resorts, bem como no desenvolvimento
da produção industrial. Ferramentas e equipamentos de alta potência são
transportados da Ucrânia, em um fluxo constante, para a construção da

33 Stenogramma zasedaniia Prezidiuma Verkhovnogo Soveta SSSR, 19 fev. 1954.


34 Sobre a situação socioeconômica na Península da Crimeia nos anos pós-guerra, ver: BASOV, A. V. Krym
v Velikoi Otechestvennoi voyne. 1941-1945. Moscow: Nauka, 1987; CHIRVA, I.S. (ed.). Ocherki po istorii
Kryma. Chast’ IV: Krym v period Velikoi Otechestvennoi voiny, v gody vosstanovleniia i dal’neishego razvitiia
narodnogo khoziaistva (1941–1965). Simferopol’: Krym, 1967; Maksymenko, M.M. Pereselennia v Krym
sil’s’koho naselennia z inshykh raioniv SRSR (1944-1960 rr.). Ukrains’kyi istorychnyi zhurnal 11 (1990): 50-54;
Broshevan, V.M.; V. K. Renpening, V.K. Bol’ i pamiat’ krymskikh nemtsev (1941-2001 gg.): Istoriko-doku-
mental’naia kniga. Simferopol’: Tarpan, 2002; Serhiychuk, V. Ukrains’kyi Krym. Kyiv: Ukrains’ka Vydavnycha
Spilka, 2010.; A. I. Adzhubei, A.I. Kak Khrushchev Krym Ukraine otdal: vospominaniia na zadannuiu temu.
Novoe vremia v. 18, p. 18-33, 1992; e CHUMAK, V. Ukraina i Krym: spil’nist’ istorychnoi doli. Fenomen na
mezhi Ievropy ta Skhodu. Kyiv: Akademiia munitsypal’noho upravlinnia, 2013.
42

cidade de Sebastopol e dos resorts de Ialta. Kiev, a capital da Ucrânia,


envia pás carregadoras e doseadores automáticos para as fábricas; a Car-
cóvia envia pontes rolantes e tratores; Mykolaiv envia correias trans-
portadoras para as fábricas de cimento e tratores de esteira; Ossipenko
(Berdyansk) envia máquinas rodoviárias; Kremenchug envia misturas
de betão betuminoso; Priluky envia dispositivos para a mecanização de
estucamento; Melitopol envia seus mais novos compressores35.

Além disso, enquanto de jure pertencesse à Federação Russa de 1921 a


1954, a Região da Crimeia, já antes de sua transferência para a Ucrânia, havia
tornado-se de fato parte integrante do espaço econômico da RSS da Ucrânia36.
Nos anos do pós-guerra, as economias da Ucrânia continental e da Crimeia

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


tornaram-se ainda mais interligadas, gradativamente transformando-se em
um único mercado integrado. No entanto, a crescente convergência econô-
mica entre a Crimeia e Ucrânia continental não dispunha de embasamento
administrativo ou de regulamentação jurídica própria. Isto ocasionou uma
série de problemas normativos. Como resultado, os conselhos municipais de
Simferopol (capital da Crimeia) e Sebastopol reiteradamente comunicaram
ao Comitê Executivo Regional da Crimeia e ao Conselho de Ministros da
RSFS da Rússia que a população da Crimeia desejava integrar-se à Ucrânia
a fim de acabar com os conflitos administrativos37.
A transferência da Crimeia para a Ucrânia foi, destarte, respaldada por
razões econômicas e administrativas, e não por um capricho pessoal. Não foi de
maneira alguma uma “dádiva imperial” espontânea ou arbitrária. Pelo contrário,
havia, nos anos 50, uma crença generalizada de que a, então profundamente
debilitada, região da Crimeia poderia ser melhor administrada a partir de Kiev
do que de Moscou. Assim, o principal objetivo da transferência territorial era
assegurar uma gestão e administração mais eficazes do território.
Na época em que a decisão foi tomada, Nikita Khrushchev era apenas um
dos nove membros do Presidium do Comitê Central do Partido Comunista da
União Soviética (PCUS). Depois de obter o cargo de Primeiro Secretário do
Comitê Central do PCUS em setembro de 1953, ele passou a ser, efetivamente,
o político mais influente da URSS. Contudo, Georgii Malenkov, o líder do
governo soviético, ainda era popular junto à elite política, e também desfrutava
de influência sobre o Partido Comunista. Os antigos aliados de Stalin, Klim
Voroshilov e Vyacheslav Molotov, eram ainda, igualmente, figuras políticas

35 Krymskaia Pravda, 17 jan. 1954.


36 Vol’vach, P. Chy stav by Krym ‘ordenom na hrudiakh planety’ iakby ne ukrains’ki mozoli? Kryms’ka svitlytsia,
27 fev. 2004.
37 Butkevych, V. Pravo na Krym, khto ioho maie: Rosiia? Ukraina?. In: Butkevych, V; Horyn, B; Svidzyns’kyi
(eds.). A. Krym—ne til’ky zona vidpochynku. L’viv: Poklyk sumlinnia, 1993. p. 45.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 43

poderosas38. Após a morte de Stalin em março de 1953, o cargo de liderança


não foi imediatamente atribuído ao “provincial” Khrushchev39.
No início de 1954, quando as decisões cruciais relativas à Crimeia
estavam sendo elaboradas e tomadas, Khrushchev ainda estava no início
de seu governo. Ele ainda não possuía força suficiente para decidir unilate-
ralmente acerca de uma transferência territorial intra-soviética de tamanha
importância simbólica e econômica, dificilmente estando em condições
de oferecer, sozinho, uma “dádiva imperial” desta magnitude. À época,
Khrushchev ainda estava preocupado em preservar, consolidar e expan-
dir seus recém-adquiridos poderes como Primeiro Secretário. Com efeito,
resolver os problemas da Crimeia mediante a transferência da península
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

entre repúblicas soviéticas provavelmente não era uma de suas prioridades


políticas na época40.

4. O direito soviético e a prática administrativa soviética em


matéria de mudanças territoriais

4.1 A transferência da Crimeia no contexto do direito soviético

Segundo o mito da “dádiva imperial”, a transferência da Crimeia foi


ilegal por supostamente violar as normas das Constituições Soviéticas – a
Constituição da URSS de 1936; a Constituição da RSFSR de 1937; e a Cons-
tituição da RSSU de 1937. Para analisar esta alegação, a transferência da
Crimeia de 1954 deve ser considerada no contexto do direito e da prática
administrativa soviéticos então vigentes.
A transferência da Crimeia (na época, a Região da Crimeia) para a RSSU
foi iniciada pela RSFSR. O procedimento foi iniciado oficialmente em 5 de
fevereiro de 1954 por decreto do Conselho de Ministros da RSFSR41. No
mesmo dia, esta decisão executiva foi aprovada pelo Presidium do Conselho
Supremo, ou seja, o Parlamento, do RSFSR que aprovou o Decreto “Sobre a
transferência da Região da Crimeia da jurisdição da República Socialista Fede-
rativa Soviética da Rússia para a jurisdição da República Socialista Soviética
da Ucrânia”. O decreto estabelecia que:
38 Kul’chyts’kyi, S.‘Tsars’kyi podarunok’ Mykyty Khrushchova. Krym v istorychnykh realiiakh Ukrainy: Materialy
naukovoi konferentsii do 50-richchia vkhodzhennia Krymu do skladu URSR. Kyiv: Instytut istorii Ukrainy NAN
Ukrainy, 2004, p. 404.
39 Adzhubei, op cit. (nota 34), p. 21.
40 Butkevych, op. cit. (nota 37), p. 48.
41 Postanovlenie Soveta Ministrov RSFSR “O peredache Krymskoi oblasti iz sostava Rossiiskoi Sovetskoi
Federativnoi Sotsialisticheskoi Respubliki v sostav Ukrainskoi Sovetskoi Sotsialisticheskoi Respubliki”, 5
fev. 1954.
44

Dada as semelhanças entre suas economias, a localização, e os estreitos


laços econômicos e culturais entre a Região da Crimeia e a RSS da Ucrâ-
nia, o Presidium do Soviete Supremo da RSFS da Rússia determina:
a transferência da Região da Crimeia da jurisdição da República Socia-
lista Soviética Federativa Russa para a jurisdição da República Socialista
Soviética da Ucrânia;
a submissão deste Decreto ao Soviete Supremo da URSS para aprovação42.

Passados vários dias, em 13 de fevereiro de 1954, em apoio à iniciativa da


RSFRS, o Presidium do Soviete Supremo da RSSU aprovou o Decreto “Sobre
a questão da transferência da Região da Crimeia para a jurisdição da República
Socialista Soviética da Ucrânia” pedindo ao Soviete Supremo da URSS, na

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


mais alta instância da União, que decidisse sobre a transferência da Crimeia
da jurisdição russa para a ucraniana. Esta decisão do Presidium parlamentar
ucraniano foi então aprovada por todo o Soviete Supremo da RSSU, o qual
também manifestou-se disposto a aceitar a integração da península à Ucrânia43.
Em seguida, a transferência da Crimeia que havia sido originalmente
proposta pelas duas repúblicas da União, obteve a aprovação do Presi-
dium do Soviete Supremo da URSS. A Resolução “Sobre a transferência
da Região da Crimeia da jurisdição da RSFS da Rússia para a jurisdição da
SSR da Ucrânia” aprovada pelo Presidium do Soviete Supremo da URSS
simplesmente reproduziu as disposições previstas no Decreto do Presidium
do Soviete Supremo da RSFSR44. Esta série de documentos possui uma
pertinência política concreta limitada, uma vez que os documentos oficiais
publicados nas repúblicas e a nível da União haviam sido previamente
pré-formulados dentro do aparato central do PCUS. No entanto, este longo
e elaborado trâmite revela que a decisão sobre a transferência havia sido
tomada vários meses antes de sua efetivação, e que toda a elite política da
URSS esteve, de uma forma ou de outra, envolvida em sua elaboração, bem
como em sua implementação.
Finalmente, em 26 de abril de 1954, o Soviete Supremo da URSS, ofi-
cialmente a instância máxima do estado soviético, confirmou o novo status
legal da Região da Crimeia através da lei “Sobre a transferência da Região
42 Ibid., id.
43 Postanova Prezydii Verkhovnoi Rady URSR “Pro podannia Prezydii Verkhovnoi Rady Rosiis’koi Radians’koi
Federatyvnoi Sotsialistychnoi Respubliky z pytannia peredachi Kryms’koi oblasti zi skladu Rosiis’koi
Radians’koi Federatyvnoi Sotsialistychnoi Respubliky do skladu Ukrains’koi Radians’koi Sotsialistychnoi
Respubliky”, 13 fev. 1954.
44 Ukaz Prezidiuma Verkhovnogo Soveta SSSR “O peredache Krymskoi oblasti iz sostava Rossiiskoi Sovetskoi
Federativnoi Sotsialisticheskoi Respubliki v sostav Ukrainskoi Sovetskoi Sotsialisticheskoi Respubliki”, 19 fev.
1954. In: SBORNIK ZAKONOV SSSR I UKAZOV PREZIDIUMA VERKHOVNOGO SOVETA SSSR: 1938-
1961, ed. F.I. Kalinychev. Moscow: Izdatel’stvo Izvestiia sovetov deputatov trudiashchikhsia SSSR, 1961.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 45

da Crimeia da jurisdição da RSFS da Rússia para a jurisdição da RSS da


Ucrânia”45. A lei alterou os artigos 22 e 23 da Constituição de 1936 da URSS,
referentes à organização territorial da Rússia e da Ucrânia. Assim, a expressão
“Região da Crimeia” foi removida do Artigo 22, relativo à RSFSR, e inserida
no Artigo 23, relativo à RSSU.
Após a conclusão formal da transferência a nível da União, o processo
de sua implementação continuou a nível republicano. A legalização do status
da Crimeia como parte da Ucrânia exigiu a alteração das constituições das
duas repúblicas soviéticas em questão. Em 2 de junho de 1954, o Soviete
Supremo da RSFSR retirou as menções à Região da Crimeia do Artigo 14 da
Constituição da RSFS da Rússia46. Ao mesmo passo que a RSS da Ucrânia
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

alterou sua Constituição para incorporar a Crimeia.


Vinte anos depois, o status da Crimeia como parte da RSSU foi confir-
mado pela “nova” União Soviética e pelas constituições republicanas adotadas
em 1978. O artigo 71 da Constituição da RSFS da Rússia não listou a Crimeia
entre os territórios russos47, enquanto que o artigo 77 da Constituição da RSS
da Ucrânia designou a Região da Crimeia como unidade administrativa ucra-
niana48. Convém destacar que a Constituição da RSS da Ucrânia foi adotada
em 20 de abril de 1978, poucos dias após a aprovação da Constituição da
RSFS da Rússia, em 12 de abril de 1978.
Em suma, a transferência da Crimeia em 1954 repercutiu numa série de
documentos jurídicos soviéticos de natureza mais ou menos decisiva:

i. o Decreto do Conselho de Ministros da RSFSR “Sobre a trans-


ferência da Região da Crimeia da jurisdição da República Socia-
lista Federativa Soviética da Rússia para a jurisdição da República
Socialista Soviética da Ucrânia”, de 5 de fevereiro de 1954;
ii. o Decreto do Presidium do Soviete Supremo da RSFSR “Sobre a
transferência da Região da Crimeia da jurisdição da República Socia-
lista Federativa Soviética da Rússia para a jurisdição da República
Socialista Soviética da Ucrânia”, em 5 de fevereiro de 1954;

45 Zakon SSSR “O peredache Krymskoi oblasti iz sostava Rossiiskoi Sovetskoi Federativnoi Sotsialisticheskoi
Respubliki v sostav Ukrainskoi Sovetskoi Sotsialisticheskoi Respubliki”, 26 abr. 1954. In: VEDOMOSTI
VERKHOVNOGO SOVETA SSSR 10 (1954), art. 211.
46 Zakon RSFSR “O vnesenii izmenenii v stat’iu 14 Konstitutsii (Osnovnogo Zakona) RSFSR”, 2 jun. 1954.
47 Konstitutsiia (Osnovnoi Zakon) RSFS. In: KONSTITUTSIIA (OSNOVNOI ZAKON) SOIUZA SOVETSKIKH
SOTSIALISTICHESKIKH RESPUBLIK. Konstitutsii (Osnovnye Zakony) Soiuznykh Sovetskikh Sotsialisti-
cheskikh Respublik. Moskva: Iuridicheskaia literatura, 1978, p. 55-82.
48 Konstitutsiia (Osnovnoi Zakon) USSR. In: KAMENAN, Z. K. (ed.). Sbornik zakonov Ukrainskoi Sovetskoi
Sotsialisticheskoi Respubliki i ukazov Prezidiuma Verkhovnogo Soveta Ukrainskoi Sovetskoi Sotsialisticheskoi
Respubliki: 1938-1979, v. 2. Kyiv: Politizdat Ukrainy, 1980, p. 3-29.
46

iii. o Decreto do Presidium do Soviete Supremo da República Socialista


Soviética da Ucrânia “Sobre a questão da transferência da Região
da Crimeia para a jurisdição da República Socialista Soviética da
Ucrânia”, de 13 de fevereiro de 1954;
iv. a Resolução do Presidium do Soviete Supremo da URSS “Sobre a
transferência da Região da Crimeia da jurisdição da República Socia-
lista Federativa Soviética da Rússia para a jurisdição da República
Socialista Soviética da Ucrânia”, de 19 de fevereiro de 1954;
v. a lei da URSS “Sobre a transferência da Região da Crimeia da
jurisdição da RSFS da Rússia para a jurisdição da SSR da Ucrânia”,
de 26 de abril de 1954;
vi. a Lei da RSFSR “Sobre as alterações ao Artigo 14 da Constituição

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


(Lei Fundamental) da RSFSR”, de 2 de junho de 1954;
vii. a Constituição da RSFSR, de 12 de abril de 1978;
viii. a Constituição da República Socialista Soviética da Ucrânia, de 20
de abril de 1978.

Esta impressionante lista de documentação importante e objetiva é geral-


mente ignorada nas iterações do mito sobre a “dádiva imperial”. Da mesma
forma, não se encontrará nenhuma menção neste sentido ao fato de que o
processo de transferência da Crimeia teve várias etapas, implicando os órgãos
supremos de governo da URSS – o Soviete Supremo da URSS e o Presidium
do Soviete Supremo da URSS; e das duas repúblicas soviéticas – o Soviete
Supremo da RSFSR, o Presidium do Soviete Supremo da RSFSR, o Conselho
de Ministros da RSFSR, o Soviete Supremo da RSS da Ucrânia, e o Presidium
do Soviete Supremo da RSS da Ucrânia.

4.2 A transferência da Crimeia e a prática soviética de mudanças


territoriais

O mito da “dádiva imperial” costuma sugerir ou insinuar que a trans-


ferência da Crimeia foi um caso extraordinário – uma exceção, um caso
anômalo de transferência territorial arbitrária entre repúblicas soviéticas.
Com efeito, foi apenas uma das ocorrências dentro do âmbito de uma
política administrativo-territorial que foi implementada dos anos 40 até
os anos 70 na URSS. Neste contexto, outras mudanças territoriais devem
ser mencionadas.
Por exemplo, em 1940, a República Autônoma da Moldávia, a qual fazia
parte da RSS da Ucrânia, foi transformada na RSS da Moldávia49. No mesmo

49 Zakon SSSR “Ob obrazovanii Soiuznoi Moldavskoi Sovetskoi Sotsialisticheskoi Respubliki,” 2 ago. 1940. In:
SBORNIK ZAKONOV SSSR I UKAZOV.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 47

ano, a República Socialista Soviética Autônoma da Carélia foi convertida na


RSS Carelo-Finlandesa50. Em 1956, porém, seu status foi novamente rebai-
xado à RSSA da Carélia, e foi incorporada à RSFS da Rússia51. Em 1944,
a República Popular de Tuvan foi incorporada à URSS e tornou-se parte da
RSFS da Rússia52.
Além da marcante movimentação de grandes territórios, houve várias
modificações menores nas fronteiras entre as repúblicas soviéticas53. Por fim,
houve ainda outras transferências territoriais expressivas dentro da URSS,
demasiadamente numerosas para serem aqui todas mencionadas54. É digno

50 Zakon SSSR “O preobrazovanii Karel’skoi Avtonomnoi Sovetskoi Sotsialisticheskoi Respubliki v Soiuznuiu


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Karelo-Finskuiu Sovetskuiu Sotsialisticheskuiu Respubliku”, 31 mar. 1940. In: VEDOMOSTI VERKHOVNOGO


SOVETA SSSR 2 (1940), art. 23.
51 Zakon SSSR “O preobrazovanii Karelo-Finskoi Sovetskoi Sotsialisticheskoi Respubliki v Karel’skuiu Avto-
nomnuiu Sovetskuiu Sotsialisticheskuiu Respubliku i o vkliuchenii Karel’skoi Avtonomnoi Sovetskoi Sotsia-
listicheskoi Respubliki v sostav Rossiiskoi Sovetskoi Federativnoi Sotsialisticheskoi Respubliki”, 16 jul. 1956.
In: SBORNIK ZAKONOV SSSR.
52 Ukaz Prezidiuma Verkhovnogo Soveta SSSR “O priniatii Tuvinskoi Narodnoi Respubliki v sostav Soiuza
Sovetskikh Sotsialisticheskikh Respublik,” 11 out. 1944. In: SBORNIK ZAKONOV SSSR.
53 Ukaz Prezidiuma Verkhovnogo Soveta SSSR “O razgranichenii oblastei mezhdu Ukrainskoi Sovetskoi Sot-
sialisticheskoi Respublikoi i Belorusskoi Sovetskoi Sotsialisticheskoi Respublikoi”, 4 dez. 1939. In: SBORNIK
ZAKONOV SSSR; Ukaz Prezidiuma Verkhovnogo Soveta SSSR “Ob ustanovlenii granitsy Ukrainskoi Sovetskoi
Sotsialisticheskoi Respublikoi i Moldavskoi Sovetskoi Sotsialisticheskoi Respublikoi”, 4 nov. 1940. In: SBORNIK
ZAKONOV SSSR; Ukaz Prezidiuma Verkhovnogo Soveta SSSR “Ob ustanovlenii granitsy mezhdu Belorusskoi
Sovetskoi Sotsialisticheskoi Respublikoi i Litovskoi Sovetskoi Sotsialisticheskoi Respublikoi”, 4 dez. 1939.
In: SBORNIK ZAKONOV SSSR; Ukaz Prezidiuma Verkhovnogo Soveta SSSR “O chastichnom izmenenii
granitsy mezhdu Uzbekskoi Sovetskoi Sotsialisticheskoi Respublikoi i Tadzhikskoi Sovetskoi Sotsialisticheskoi
Respublikoi”, 8 set. 1953. In: SBORNIK ZAKONOV SSSR; Ukaz Prezidiuma Verkhovnogo Soveta SSSR “Ob
utochnenii granitsy mezhdu Kustanaiskoi oblast’iu Tselinnogo kraia Kazakhskoi Sovetskoi Sotsialisticheskoi
Respublikoi i Orenburgskoi oblast’iu Rossiiskoi Sovetskoi Federativnoi Sotsialisticheskoi Respublikoi”, 15 ago.
1963. In: VEDOMOSTI VERKHOVNOGO SOVETA SSSR 33 (1963), art. 610; etc.
54 Ukaz Prezidiuma Verkhovnogo Soveta SSSR “O peredache Klukhorskogo raiona Gruzinskoi Sovetskoi
Sotsialisticheskoi Respubliki v sostav Rossiiskoi Sovetskoi Federativnoi Sotsialisticheskoi Respubliki”, 14
mar. 1955. In: SBORNIK ZAKONOV SSSR; Ukaz Prezidiuma Verkhovnogo Soveta SSSR “O chastichnom
izmenenii granitsy mezhdu Kazakhskoi Sovetskoi Sotsialisticheskoi Respublikoi i Uzbekskoi Sovetskoi Sot-
sialisticheskoi Respublikoi”, 13 fev. 1956. In: VEDOMOSTI VERKHOVNOGO SOVETA SSSR 5 (1956), art.
129; Ukaz Prezidiuma Verkhovnogo Soveta SSSR “O chastichnom izmenenii granitsy mezhdu Kazakhskoi
Sovetskoi Sotsialisticheskoi Respublikoi i Rossiiskoi Sovetskoi Federativnoi Sotsialisticheskoi Respublikoi”,
20 abr. 1956. In: VEDOMOSTI VERKHOVNOGO SOVETA SSSR 9 (1956), art. 194; Ukaz Prezidiuma
Verkhovnogo Soveta SSSR “O chastichnom izmenenii granitsy mezhdu Estonskoi Sovetskoi Sotsialisti-
cheskoi Respublikoi i Rossiiskoi Sovetskoi Federativnoi Sotsialisticheskoi Respublikoi”, 31 out. 1957. In:
VEDOMOSTI VERKHOVNOGO SOVETA SSSR 25 (1957), art. 596; Ukaz Prezidiuma Verkhovnogo Soveta
SSSR “O chastichnom izmenenii granitsy mezhdu Uzbekskoi Sovetskoi Sotsialisticheskoi Respublikoi
i Tadzhikskoi Sovetskoi Sotsialisticheskoi Respublikoi”, 2 jul. 1959. In: VEDOMOSTI VERKHOVNOGO
SOVETA SSSR 27 (1959), art. 147; Ukaz Prezidiuma Verkhovnogo Soveta SSSR “O peredache chasti
territorii iz Komsomol’skogo raiona Kustanaiskoi oblasti Kazakhskoi Sovetskoi Sotsialisticheskoi Respubliki
v sostav Troitskogo raiona Cheliabinskoi oblasti Rossiiskoi Sovetskoi Federativnoi Sotsialisticheskoi Res-
publiki i chastichnym izmeneniem v sviazi s etim granitsy mezhdu Kazakhskoi Sovetskoi Sotsialisticheskoi
Respublikoi i Rossiiskoi Sovetskoi Federativnoi Sotsialisticheskoi Respublikoi”, 6 dez. 1965. In: VEDOMOSTI
48

de nota, contudo, que todas as transferências territoriais envolvendo a RSFSR


foram – à exceção do caso da Crimeia – feitas em uma única direção: no
sentido de sua integração à RSFS da Rússia. Neste sentido, a alegação atual
de Moscou de que a Crimeia foi um caso historicamente único pode ser vista
como verdadeira. A Crimeia representou a única ocasião em que um território
foi transferido da Rússia para outra república soviética.
Os atos jurídicos adotados para pôr em prática a política soviética de
mudanças territoriais empregaram diferentes terminologias e técnicas jurídi-
cas. Alguns atos citavam os territórios em questão em seus títulos, enquanto
outros referiam-se a “mudanças parciais de fronteiras” de forma mais genérica.
Alguns atos expuseram as razões das mudanças territoriais, enquanto outros

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


não forneceram explicação alguma. As mudanças territoriais podiam ser pro-
postas pelos Sovietes Supremos ou pelos Presidiums dos Sovietes Supremos
das repúblicas envolvidas nas referidas transferências. Por exemplo, a Reso-
lução do Presidium do Soviete Supremo da URSS “Sobre a transferência do
Distrito de Klukhorsky da República Socialista Soviética da Geórgia para
a República Socialista Federativa Soviética da Rússia” (1955) refere-se às
decisões tomadas pelos Presidiums dos Sovietes Supremos das duas repúblicas
da União envolvidas55.
Outro exemplo: o Presidium do Soviete Supremo do RSS Cazaque ini-
ciou a transferência de seu território para a RSFS da Rússia, mediante alte-
ração aprovada pela Resolução do Presidium do Soviete Supremo da URSS
“Sobre a mudança parcial da fronteira entre a República Socialista Soviética
Cazaque e a República Socialista Federativa Soviética da Rússia” (1956).
Nomeadamente, o documento referia-se aos Decretos dos Presidiums da RSS
Cazaque e da RSFS da Rússia sobre a transferência da parte norte do Dis-
trito de Dzanibetsky da RSS Cazaque para a RSFS da Rússia, resultando em
mudanças parciais nas fronteiras entre as duas repúblicas da União56.
Estes e outros casos de mudanças territoriais promovidas pelos Pre-
sidiums dos Soviéticos Supremos a nível republicano atestam a legalidade

VERKHOVNOGO SOVETA SSSR 48 (1965), art. 691; Ukaz Prezidiuma Verkhovnogo Soveta SSSR “O
chastichnom izmenenii granitsy mezhdu Uzbekskoi Sovetskoi Sotsialisticheskoi Respublikoi i Kazakhskoi
Sovetskoi Sotsialisticheskoi Respublikoi”, 28 jun. 1971. In: Vedomosti Verkhovnogo Soveta SSSR 28 (1971),
art. 283; Ukaz Prezidiuma Verkhovnogo Soveta SSSR “O chastichnom izmenenii granitsy mezhdu Uzbekskoi
Sovetskoi Sotsialisticheskoi Respublikoi i Kirgizskoi Sovetskoi Sotsialisticheskoi Respublikoi”, 28 jan. 1972.
In: Vedomosti Verkhovnogo Soveta SSSR 5 (1972), art. 38; Ukaz Prezidiuma Verkhovnogo Soveta SSSR
“O chastichnom izmenenii granitsy mezhdu Tadzhikskoi Sovetskoi Sotsialisticheskoi Respublikoi i Uzbekskoi
Sovetskoi Sotsialisticheskoi Respublikoi”, 25 fev. 1972; etc.
55 Presidium of the Supreme Soviet of the USSR: Ordinance “On the transfer of the Klukhori Region of the
Georgian Soviet Socialist Republic to the Russian Soviet Federative Socialist Republic,” 14 mar. 1955.
56 Ordinance of the Presidium of the Supreme Soviet of the USSR “On the partial change of the border between
the Kazakh Soviet Socialist Republic and the Russian Soviet Federative Socialist Republic”, 20 abr. 1956.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 49

da transferência da Crimeia, cuja iniciativa partiu do Presidium do Soviete


Supremo da RSFS da Rússia. Apesar de algumas diferenças na terminologia
jurídica dos vários decretos relevantes, todas as transferências territoriais
seguiram os mesmos procedimentos baseados no princípio soviético do “cen-
tralismo democrático”: a transferência foi iniciada pela república à qual o terri-
tório ou região pertencia; depois, esta iniciativa foi apoiada por uma república
que aceitou a transferência e foi aprovada pelos mais altos órgãos estatais da
União Soviética; finalmente, as mudanças territoriais foram incorporadas às
constituições soviéticas através das devidas emendas constitucionais.
Esta mesma abordagem foi utilizada na transferência da Crimeia
em 1954. A transferência da península não foi uma decisão tomada por
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Khrushchev de forma impulsiva, mas o resultado de um longo processo que


envolveu várias etapas distintas. Na primeira etapa, a decisão de transferir
a Crimeia foi comunicada através do mais alto órgão decisório da RSFS
da Rússia – o Presidium do Soviete Supremo. Na segunda etapa, a RSS
da Ucrânia manifestou sua anuência em aceitar a região. Terceiramente,
os mais altos órgãos estatais da União Soviética aprovaram esta decisão
e alteraram a Constituição da URSS de 1936 de forma correspondente.
Na quarta etapa, as alterações relevantes relativas às mudanças territoriais
foram então introduzidas na Constituição da RSFS da Rússia de 1937 e na
Constituição da RSS da Ucrânia de 1937. Por último, o status da Crimeia
como parte da Ucrânia foi, pela segunda vez, ratificado na Constituição da
RSFS da Rússia de 1978 e na Constituição da RSS da Ucrânia de 1978.
Se a transferência da Crimeia realmente houvesse sido arbitrariamente
promovida por Khrushchev como uma “dádiva” concedida à Ucrânia por um
capricho pessoal seu, teria havido inúmeras oportunidades por parte de outros
líderes políticos soviéticos da época para impedi-la de ser concretizada, por
exemplo, fazendo com que a RSFS da Rússia barrasse a transferência em 1954.
Analogamente, poder-se-ia ter questionado a legalidade da transferência, por
exemplo, nos anos 70, após a deposição de Khrushchev, numa época em que
suas políticas eram amplamente criticadas e na qual as constituições soviética,
russa e ucraniana já sofriam alterações. No entanto, nenhum desses sucedeu.

5. O mito da “dádiva imperial” e a cidade de Sebastopol

O mito da “dádiva imperial” também inclui alegações a respeito de Sebas-


topol. Especificamente, foi declarado em uma resolução russa de 1993 que
a transferência da Crimeia não incluía a cidade, que era uma base militar da
Frota do Mar Negro57, visto que a partir de 1948, Sebastopol passou a ser uma

57 Cf.: Postanovlenie Verkhovnogo Soveta RF “O statuse goroda Sevastopolia”, 9 jul. 1993.


50

“cidade de subordinação à república”58. Como uma cidade com status especial,


segundo o raciocínio, Sebastopol não fazia parte da Crimeia em 1954. Conse-
quentemente, não fora transferida para a Ucrânia. Em outras palavras, após a
transferência da Crimeia para a RSSU, a cidade de Sebastopol supostamente
teria permanecido sob a jurisdição da RSFSR59.
Contudo, se o status especial atribuído à Sebastopol em outubro de 1948
houvesse alterado a jurisdição da cidade, então um novo domínio da RSFS da
Rússia – a cidade de Sebastopol – deveria presumivelmente ter sido criado.
De acordo com o artigo 14(d) da Constituição da URSS de 1936, qualquer
mudança na estrutura territorial de uma república soviética precisava ser apro-
vada pelo Soviete Supremo da URSS e incorporada na respectiva constituição

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


republicana. Há diversos exemplos da implementação prática das disposições
do Artigo 14(d). Por exemplo, a Lei “Sobre alterações aos artigos 14 e 31
da Constituição (Lei Fundamental) da RSFS da Rússia” (30 de janeiro de
1958), instituiu emendas constitucionais relativas a mudanças territoriais.
A lei aprovou a Resolução do Presidium do Soviete Supremo da RSFS da
Rússia “Sobre a mudança de nome da Região de Molotov para Região de
Perm e da Cidade de Molotov para Cidade de Perm e sobre a eliminação
da Região de Velykoluzhskyi” (27 de outubro de 1957); as Resoluções do
Presidium do Soviete Supremo da RSFS da Rússia “Sobre a eliminação da
Região de Kamensk” e “Sobre a eliminação da Região de Balashovsk” (19
de novembro de 1957); a Resolução do Presidium do Soviete Supremo da
RSFS da Rússia “Sobre a mudança do nome da Região de Chkalovsk para
Região de Oremburgo e da cidade de Chkalov para Cidade de Oremburgo” (4
de dezembro de 1957)60. Igualmente, a Lei “Sobre alterações aos artigos 14 e
31 da Constituição (Lei Fundamental) da RSFS da Rússia” (27 de dezembro
de 1958) instituiu alterações relativas à transformação da Região Autônoma
da Calmúquia na República Socialista Soviética Autônoma da Calmúquia e
a renomeação da República Socialista Soviética Autônoma Buriácio-Mongol
como República Socialista Soviética Autônoma da Buriácia61.
Não obstante, nenhum destes procedimentos foi utilizado no caso do
Sebastopol: a atribuição de um status especial à cidade não se refletiu em
uma alteração correspondente da Constituição da RSFSR de 1937. Assim, o

58 Cf.: Ukaz Prezidiuma Verkhovnogo Soveta RSFSR “O vydelenii goroda Sevastopolia v samostoiatel’nyi
administrativno-khoziaistvennyi tsentr”, 29 out. 1948. O documento estabelece que a cidade de Sebastopol
deve ser “dado o status de centro administrativo e econômico independente, com orçamento próprio e que
lhe seja atribuída a categoria de cidade com subordinação à república”.
59 FEDOROV, A. B. Fedorov, Pravovoi status Kryma. Pravovoi status Sevastopolia. Moscow: Izdatel’stvo
MGU, 1999.
60 Zakon RSFSR “O vnesenii izmenenii v stat’i 14 i 31 Konstitutsii (Osnovnogo Zakona) RSFSR”, 30 jan. 1958.
61 Zakon RSFSR “O vnesenii izmenenii v stat’i 14 i 31 Konstitutsii (Osnovnogo Zakona) RSFSR”, 27 dec. 1958.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 51

novo título conferido a Sebastopol em 1948 representou apenas uma pequena


mudança administrativa, e não uma alteração essencial em matéria de subor-
dinação. Ou seja, não criou um novo domínio distinto no âmbito da RSFSR,
tendo a cidade mantido sua estrutura jurídica original. Em outras palavras,
Sebastopol permaneceu como uma “cidade de subordinação à república”,
enquanto unidade administrativa dentro da Região da Crimeia. Consequen-
temente, ela foi transferida para a RSS da Ucrânia juntamente com o resto
da península em 1954.
Essa situação um tanto confusa pode ser parcialmente explicada pelo
fato de que, de acordo com as constituições “estalinistas” republicanas e da
União dos anos 30, o status de uma unidade administrativa de subordinação
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

à república não implicava a “extraterritorialidade” da mesma, ou seja, a sua


isenção no caso da divisão da sua respectiva república soviética62. Em contra-
partida, as “novas” constituições soviéticas de 1978 previram a independência
territorial para “cidades de subordinação à república”, definindo, destarte, este
status de forma um pouco diferente em relação às constituições estalinistas.
De qualquer forma, as novas constituições soviéticas de 1978 deixaram
expressamente claro a qual república a cidade de Sebastopol legalmente per-
tencia. O Artigo 71 da Constituição da RSFSR de 1978 listou apenas duas
cidades de subordinação à república – Moscou e Leningrado (atualmente São
Petersburgo), enquanto o Artigo 77 da Constituição da RSS da Ucrânia de
1978 reconheceu Kiev e Sebastopol como cidades com tal status especial.
Estas disposições constitucionais confirmaram explicitamente e sem margem
para dúvidas no plano jurídico, que a cidade de Sebastopol tinha sido de fato
plenamente transferida, juntamente com o resto do território da Crimeia, para
a RSS da Ucrânia em 1954.
O status de “subordinação à república” raramente era concedido na
União Soviética. Apenas cidades de especial importância política, econô-
mica, cultural e estratégica, ou de especial mérito histórico, obtiveram este
status. Sebastopol foi uma das cinco cidades a receber este status, o que a
elevou à categoria das cidades mais importantes da URSS, juntamente com
Moscou (status concedido em 1931), Leningrado (1931), Tasquente (1943)
e Minsk (1946).
Considerando o significado especial do status de “cidade de subordinação
à república” e a importância estratégica da cidade de Sebastopol, o fato de
a Constituição da RSFSR de 1978 não mencionar a supracitada cidade não
pode ser justificado como uma mera lacuna constitucional ou erro jurídico,

62 Kopylenko, O. Krym iak nevid’iemna skladova chastyna Ukrainy: pravovi aspekty. In: KRYM V ISTORYCHNYKH
REALIIAKH UKRAINY: Materialy naukovoi konferentsii do 50-richchia vkhodzhennia Krymu do skladu URSR.
Kyiv: Instytut istorii Ukrainy NAN Ukrainy, 2004, p. 16.
52

como têm-se por vezes alegado63. Como já mencionado, a Constituição da


RSFS da Rússia de 1978 foi adotada alguns dias antes da Constituição da RSS
da Ucrânia. Por conseguinte, qualquer alegação de que a Ucrânia soviética
tenha de alguma forma “apropriado-se” de uma parte do território da RSFSR
ou incorporado a cidade de Sebastopol à sua Constituição de 1978 de forma
“ilegal e unilateral” é infundada – para além da insinuação ridícula de que
seria possível tamanha independência republicana dentro da totalitária URSS.
De fato, a partir de 1954, a cidade de Sebastopol foi, no âmbito da admi-
nistração soviética, tratada plena e explicitamente como pertencente à Região da
Crimeia e como parte da Ucrânia. Por exemplo, os representantes dos Comitês
Executivos da Região da Crimeia e do Conselho da cidade de Sebastopol par-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


ticiparam das reuniões do Presidium do Soviete Supremo da RSS da Ucrânia
quando questões relativas à península estavam sendo debatidas. Após 1954, os
trâmites relativos à administração e financiamento da cidade foram alterados:
em 1953, Sebastopol tinha uma dotação financeira própria dentro do orçamento
da RSFS da Rússia64; contudo, após a transferência da Crimea em 1954, a RSS
da Ucrânia tornou-se responsável pelo financiamento da cidade65. Por exemplo,
a lei “Sobre o orçamento estatal da RSS da Ucrânia para o ano de 1955” listou
Sebastopol expressa e especificamente como uma cidade de subordinação à
república, logo após a cidade de Kiev (todas as outras regiões ucranianas, exceto
estas duas cidades, foram colocadas em ordem alfabética)66.
Os habitantes de Sebastopol participaram das eleições para o Soviete
Regional da Crimeia e para o Soviete Supremo da RSS da Ucrânia. De acordo
com a Resolução do Presidium do Soviete Supremo da RSS da Ucrânia “Sobre
a aprovação da Comissão Regional Eleitoral para as eleições para o Conselho
Regional dos Deputados da Crimeia” (1969), foi incluído na Comissão Elei-
toral um representante do organismo público de Sebastopol67.
Depois de 1954, o Soviete Supremo da RSS da Ucrânia passou a tratar
das questões administrativo-territoriais relativas à cidade de Sebastopol. Por
exemplo, a Resolução do Presidium do Soviete Supremo da RSS da Ucrânia
“Sobre alterações na segmentação administrativa da RSS da Ucrânia” (1965)

63 Pokhlebkin, V.B. K istorii administrativno-pravovogo i gosudarstvennogo statusa goroda, porta i voenno-morskoi


bazy Sevastopolia, Moskovskii zhurnal mezhdunarodnogo prava, v. 1, p. 112, 1997.
64 Zakon RSFSR “O Gosudarstvennom Biudzhete RSFSR na 1953 god”, 20 jan. 1953, Vedomosti Verkhovnogo
Soveta RSFSR 1 (1953), art. 8.
65 Zakon RSFSR “O Gosudarstvennom Biudzhete RSFSR na 1955 god”, 24 jan. 1955, Vedomosti Verkhovnogo
Soveta RSFSR 1 (1955), art. 10.
66 Zakon URSR “Pro Derzhavnyi Biudzhet URSR na 1955 rik”. 22 jan. 1955, Vidomosti Verkhovnoi Rady URSR
1 (1955), art. 12.
67 Ukaz Prezydii Verkhovnoi Rady URSR “Pro zatverdzhennia skladu Oblasnoi vyborchoi komisii po vyborakh
do Kryms’koi oblasnoi Rady deputativ trudiashchykh”, 24 jan. 1969 roku, Vidomosti Verkhovnoi Rady URSR
5 (1969), art. 38.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 53

mudou a subordinação do soviete da vila de Orlovska no distrito de Bakhchi-


saray, na região da Crimeia, para o soviete do distrito de Balaklava, na cidade
de Sebastopol68. Além disso, o Soviete Supremo da RSS da Ucrânia tinha a
prática de condecorar os residentes da cidade de Sebastopol69. É possível listar
diversos outros exemplos semelhantes.
A transferência da cidade de Sebastopol da RSFS da Rússia para a RSS
da Ucrânia como parte integrante da região da Crimeia também consta no
manual A URSS: Subdivisões das Repúblicas Soviéticas, cuja oitava edição
foi publicada em 1 de março de 1954. A seção intitulada “A RSS da Ucrâ-
nia” apresenta dados referentes a Sebastopol como uma cidade ucraniana de
subordinação à república70. Considerando que o manual foi publicado pelo
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Departamento de Estatística do Presidium do Soviete Supremo da URSS, esta


publicação tinha um status oficial.
E por fim, depois de 1954, o status ucraniano da cidade de Sebastopol
foi retratado em diversos mapas oficiais da URSS, nos quais a cidade foi
incluída no território da Ucrânia. De forma geral, a partir de 1954, a cidade
de Sebastopol foi, no âmbito da URSS, unanimemente tratada como parte
da Ucrânia. Isto evidentemente não teria sido possível se, em 1954, a cidade
tivesse de fato, de algum modo, permanecido parte da RSFS da Rússia.

6. Conclusões

Ao contrário do que o mito da “dádiva imperial” pressupõe, a transfe-


rência da Crimeia não foi um ato fruto de um desejo pessoal de Khrushchev.
A decisão foi motivada e embasada por uma fundamentação econômica e
administrativa objetiva. A mesma foi efetivada através do longo processo
de transferências territoriais intra-soviéticas habitual na época, no qual os
órgãos de mais alta instância da URSS e das duas repúblicas soviéticas
participaram plenamente.
68 Ukaz Prezydii Verkhovnoi Rady URSR “Pro vnesennia zmin v administratyvne raionuvannia URSR”, 4 jan. 1965.
In: VIDOMOSTI VERKHOVNOI RADY URSR 5 (1965), art. 64. Cf. Ordinance of the Presidium of the Supreme
Council of the Ukrainian SSR “On the partial change of the boundaries of some regions and cities of republican
subordination”, 4 jan. 1965, que transferiu os vilarejos de Vyshneve, Orlivka, Osypenko Poliushko, do conselho
municipal de Tynystivska, assim como o vilarejo de Povorotne, do conselho municipal de Verkhniosadivska,
no Distrito Bakhchysaraiskyi da região crimeia, para a subordinação do conselho distrital de Nakhimovska do
cidade de Sevastopol; Ukaz Prezydii Verkhovnoi Rady URSR “Pro chastkovu zminu mezh deiakykh oblastei i
mist respublikans’koho pidporiadkuvannia”, 4 jan. 1965, Vidomosti Verkhovnoi Rady URSR 3 (1965), art. 66.
69 V Prezydii Verkhovnoi Rady URSR. Vidomosti Verkhovnoi Rady URSR 46, 1961, p. 952; V Prezydii Verkhov-
noi Rady URSR. Vidomosti Verkhovnoi Rady URSR 37 (1969), p. 397; V Prezydii Verkhovnoi Rady URSR.
Vidomosti Verkhovnoi Rady URSR 7 (1969), p. 75; V Prezydii Verkhovnoi Rady URSR. Vidomosti Verkhovnoi
Rady URSR 12 (1969), p. 113; etc.
70 SSSR: Administrativnoe-territorial’noe delenie soiuznykh respublik na 1 marta 1954 goda: Spravochnik,
Moscow: Izveshchenie Sovetov deputatov trudiashchikhsia SSSR, 1954.
54

A transferência da Crimeia foi única, mas não no sentido difundido


pelo mito da “dádiva imperial” que retrata erroneamente a Crimeia como um
caso único e excepcional de alteração territorial dentro da União Soviética.
Com efeito, era praxe na URSS a transferência de territórios e a mudança
de fronteiras entre repúblicas soviéticas com o objetivo de suprir demandas
econômicas e administrativas. Neste sentido, a transferência da Crimeia foi
apenas uma das instâncias no âmbito de um amplo projeto administrativo
desenvolvido entre as décadas de 40-70.
Curiosamente, a incorporação da Crimeia à RSSU em 1954 foi de fato
diferente das outras transferências. Foi o único caso em que um território da
RSFS da Rússia foi transferido para outra república soviética. Se partirmos do

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


princípio de que a transferência da Região da Crimeia tenha sido ilegal, abrir-
-se-ia margem para inúmeras reivindicações territoriais por parte das antigas
repúblicas soviéticas contra a Rússia, repúblicas estas cujos territórios foram
transferidos para a RSFS da Rússia com base em justificativas semelhantes e
seguindo os mesmos trâmites adotados no caso da Crimeia.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

PARTE 1
DEBATES SOB A ÓTICA DO DIREITO
INTERNACIONAL DA MANUTENÇÃO
DA PAZ E SEGURANÇA
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
3. A LEGALIDADE DA
“OPERAÇÃO MILITAR ESPECIAL”
DA RÚSSIA NA UCRÂNIA
Ielbo Marcus Lobo de Souza

1. Introdução

No dia 24 de fevereiro de 2022, a Rússia lançou o que denominou “Ope-


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ração Militar Especial” (doravante, “OME”) no território da Ucrânia, expres-


são deliberadamente cunhada para designar uma ação militar aparentemente
específica e delimitada em escopo. Não houve declaração formal de guerra
nem um ultimato com declaração condicional de guerra. No entanto, de acordo
com o direito internacional geral e o artigo 2º comum das Convenções de
Genebra de 19491, nesta data iniciou-se formalmente um conflito armado de
caráter internacional, opondo diretamente a Ucrânia e a Rússia. Pode-se argu-
mentar que existia, concomitantemente, um conflito armado de natureza não
internacional, envolvendo o governo central da Ucrânia e as forças militares
das duas autoproclamadas repúblicas independentes da região de Donbass.
De fato, uma situação de conflito armado pode ser mais dinâmica e complexa
do que aquilo que uma cognição sumária indicaria2.
A conflagração de um conflito armado internacional atrai a incidência auto-
mática dos princípios e regras do direito internacional humanitário, de natureza
costumeira e convencional, para regular e limitar a conduta das partes belige-
rantes e os meios e métodos de guerra3. Ademais, não interrompe a aplicação
simultânea do direito internacional dos direitos humanos, embora este último
possa sofrer derrogação parcial e justificada, conforme previsão expressa em
tratados de direitos humanos, e esteja sujeito às disposições paralelas da lex
specialis (direito internacional humanitário)4. A participação indireta de outros
1 Geneva Convention for the Amelioration of the Condition of the Wounded and Sick in Armed Forces in the
Field, 12 ago. 1949, 75 UNTS 31; Geneva Convention for the amelioration of the condition of the wounded,
sick and shipwrecked members of the armed forces at sea, 12 ago. 1949, 75 UNTS 85; Geneva Convention
relative to the Treatment of Prisoners of War, 12 ago. 1949, 75 UNTS 135; Geneva Convention relative to
the Protection of Civilian Persons in Time of War, 12 ago. 1949, 75 UNTS 287.
2 DINSTEIN, Yoram. The Conduct of Hostilities under the Law of International Armed Conflict. Cambridge:
Cambridge University Press, 2004, p. 14-15; Solis, Gary. The Law of Armed Conflict: International Humani-
tarian Law in War. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 2010, p. 156.
3 ICJ, Legality of the Threat or Use of Nuclear Weapons. Parecer Consultivo, 8 jul. 1996, § 22, 42, 51, 78-82.
4 Veja ICJ, Legality of the Threat or Use of Nuclear Weapons, Id., § 25; ICJ, Legal Consequences of the
Construction of a Wall in the Occupied Palestinian Territory. Parecer Consultivo, 9 jul. 2004, § 106; ICJ,
58

Estados no conflito, com a provisão de armas e assessores militares a um dos


beligerantes, por exemplo, pode suscitar questões afetas à possível infringência
dos princípios do não uso da força e da não intervenção5. Todos esses aspectos
jurídicos conexos ao conflito armado, contudo, não mereceram atenção no pre-
sente estudo. O objeto desta seção é mais circunscrito: analisar, de forma objetiva
e independente, a legalidade da ação militar russa, isto é, sua conformidade com
a Carta da ONU e as normas do direito internacional geral.
De início, note-se que o primeiro uso da força armada “em contravenção
da Carta”, nos termos da Resolução 3314 (XXIX) da Assembleia Geral da
ONU6, constituiria, prima facie, um ato de agressão, embora o Conselho de
Segurança possa determinar, à luz de circunstâncias relevantes, que a ação
armada tenha sido justificada. O nível de autoridade normativa da Resolução

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


3314 é motivo de debate, mas há pelo menos um dispositivo cujo caráter cos-
tumeiro já foi atestado pela Corte Internacional de Justiça7, e suas disposições
estão refletidas, em grande parte, no Estatuto do Tribunal Penal Internacio-
nal8. De toda forma, é certo que o Estado que comete um ato de agressão
armada claramente viola o princípio do não uso da força armada nas relações
internacionais e o princípio da solução pacífica de controvérsias internacionais,
princípios estes que integram o direito internacional costumeiro e a Carta de
ONU. A Declaração sobre os Princípios do Direito Internacional relativos às
Relações Amistosas e à Cooperação entre Estados de acordo com a Carta das
Nações Unidas, contida na Resolução 26259, enuncia estes dois princípios
entre os sete princípios básicos do direito internacional. No caso do princípio
que proíbe o uso da força nas relações internacionais, há respaldo doutrinário
e de órgãos de autoridade para classificá-lo como norma jus cogens10.
Armed Activities on the Territory of the Congo (Democratic Republic of the Congo v. Uganda). Julgamento,
18 dez. 2005, § 216; Human Rights Committee, General Comment n. 29 (2001), CCPR/C/21/Rev.1/Add.11;
General Comment n. 31 (2004), CCPR/C/21/Rev.1/Add.13, § 11; MERON, Theodor. The American Journal
of International Law, v. 94, n. 2, pp. 239-278, 2000, p. 266-273.
5 ICJ, Military and Paramilitary Activities in and against Nicaragua (Nicaragua v. United States of America).
Julgamento, 27 jun. 1986, § 209, 247, 292.
6 UN GENERAL ASSEMBLY, A/RES/3314 (1974), article 2.
7 A Corte Internacional de Justiça considerou que o artigo 3(g) da Definição de Agressão reflete o direito
internacional costumeiro. Veja Military and Paramilitary Activities in and against Nicaragua, op. cit., § 195.
A Corte aplicou o mesmo dispositivo no exame de outro caso, veja Armed Activities on the Territory of the
Congo, op cit., § 146. Dito isto, deve-se reconhecer que o status da Resolução como um todo no plano
costumeiro ainda é matéria de debate (veja a opinião separada do Juiz Kooijmans no caso Armed Activities
on the Territory of the Congo, Id., § 63).
8 Cf. ROME STATUTE OF THE INTERNATIONAL CRIMINAL COURT, 17 jul. 1998, 2187 UNTS 3, Art. 8 bis.
9 UN GENERAL ASSEMBLY, A/RES/25/2625 (1970).
10 Veja, inter alia, CRAWFORD, James. Brownlie’s Principles of Public International Law. Oxford: Oxford University
Press, 2012, p. 595; HOOGH, André de. Jus Cogens and the Use of Armed Force. In: WELLER, Marc (ed.), The
Oxford Handbook of the Use of Force in International Law. Oxford: Oxford University Press, 2015, p. 1162-1164;
Military and Paramilitary Activities in and against Nicaragua, op cit., § 190, e posição do juiz Nagendra Singh
a respeito, em opinião separada, p. 152. Em igual sentido, manifestou-se a Comissão de Direito Internacional
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 59

Consoante o sistema de segurança coletiva da ONU, um Estado agressor


está sujeito, de acordo com a Carta, às medidas coletivas destinadas a “evitar
ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da
paz”11. A estruturação do sistema, confirmada pela prática do Conselho de
Segurança, estabelece que a primeira ação a ser tomada pelo Conselho é a
determinação do tipo de situação na qual o conflito na Ucrânia se encaixa, isto
é, se se trata de “uma controvérsia que possa vir a constituir uma ameaça à paz
e à segurança internacionais” (Capítulo VI da Carta), ou uma “ameaça à paz,
ruptura da paz ou ato de agressão” (Capítulo VII da Carta). A determinação
de que o conflito recai sob o Cap. VII da Carta, efetuada com base no artigo
39, poderá identificar expressamente o Estado agressor e o Estado vítima,
não raro fazendo referência também ao direito de legítima defesa individual
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ou coletivo previsto no artigo 51 da Carta.


Uma vez determinado, pelo Conselho de Segurança, que o conflito
se enquadra como uma situação de ruptura da paz oriunda de um ato de
agressão, o Conselho pode acionar os poderes expressamente elencados no
Capítulo VII da Carta, tomando decisões obrigatórias com amparo geral nos
artigos 24, 25 e 48 da Carta. Especificamente, o Conselho tem competência
para, de forma escalonada, prescrever medidas provisórias, ou impor um
regime de sanções, e, eventualmente, autorizar o uso da força armada em
prol do Estado vítima da agressão, para o fim de restaurar a paz e segurança
internacionais12. Por conseguinte, em face do risco legal, político e material
a que se sujeita o Estado que primeiro usou da força armada em um deter-
minado conflito, é recomendável que ele exponha tão logo quanto possível
a base legal que justificaria a licitude de sua ação. Em outras palavras, o
ônus da prova acerca da legalidade da ação militar incumbe ao Estado que
primeiro usou da forca, i.e., a Rússia. Nesse sentido, estatui o artigo 51 da
Carta que se o fundamento jurídico da ação militar do Estado se assenta
no direito de defesa, o Estado deve informar imediatamente ao Conselho
“as medidas tomadas... no exercício desse direito de legítima defesa”. Por
óbvio, a comunicação das medidas tomadas pressupõe a exposição da base
legal respectiva, a saber, o artigo 51 da Carta.
Tendo em vista tais obrigações jurídicas assumidas pelos Estados partes
da Carta da ONU, consolidou-se a prática de informar a organização, em

da ONU, cf. International Law Commission, Yearbook of the International Law Commission, 1966-II, p. 247;
REPORT ON THE WORK OF THE SEVENTY-FIRST SESSION (2019), UN Doc A/74/10, p. 146-147, 205;
YEARBOOK OF THE INTERNATIONAL LAW COMMISSION, 2001, v. II, Part Two, Draft articles on Respon-
sibility of States for Internationally Wrongful Acts, with commentaries (2001), p. 85.
11 CHARTER OF THE UNITED NATIONS, 26 jun. 1945, 1 UNTS 16, art. 1 (1).
12 Veja LOBO DE SOUZA, I. M. A Segurança Coletiva da Humanidade: uma análise jurídico-institucional do
sistema de segurança coletiva da ONU. Campinas: Unicamp, 2021, p. 286-313.
60

Carta endereçada ao Secretário-geral, acerca das ações militares tomadas e


seu fundamento legal. O documento é, então, numerado como documento do
Conselho de Segurança e copia é distribuída entre seus membros.

2. As justificativas legais aduzidas pela Rússia


Qual o embasamento legal da Rússia para justificar a sua ação? Em Carta
endereçada ao Secretário-geral da ONU, datada de 24 de março de 2022, o
representante permanente da Rússia junto à organização encaminhou cópia
do texto do pronunciamento do Presidente Putin à nação russa, e comunicou
que medidas militares estavam sendo tomadas “de acordo com o artigo 51 da
Carta das Nações Unidas, no exercício do direito de defesa”13. Ao referir-se

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


ao artigo 51 da Carta, a Rússia buscou demonstrar a conformidade de sua
ação com a Carta e o sistema de segurança coletiva da ONU.
Ora, o artigo 51 da Carta da ONU aduz uma das exceções, previstas nesse
tratado, ao princípio que proíbe o uso ou ameaça do uso da força nas relações
internacionais. A outra exceção é o uso da força autorizado pelo órgão compe-
tente das Nações Unidas14. O Conselho de Segurança detém expressamente a
prerrogativa de outorgar tal autorização, com base no Capítulo VII da Carta,
conjugado com os artigos 25 e 48 da Carta. No entanto, a Assembleia Geral
da ONU estabeleceu, desde a Resolução 377 (V), de 195015, sua competência
subsidiária em situações nas quais a paz e segurança internacionais estão amea-
çadas, ou violadas, ou em caso de agressão, e o Conselho de Segurança resta
paralisado por motivo de aposição de veto por um dos membros permanentes.
Na prática, há várias situações que foram remetidas à Assembleia Geral pelo
próprio Conselho de Segurança, após a aposição de veto por membro perma-
nente, e o atual conflito na Ucrânia sofreu o mesmo destino (cf. infra)16.
Desde a entrada em vigor da Carta da ONU, a prática dos Estados revela
um recurso frequente ao artigo 51 para justificar legalmente o aparente uso
13 UN SECURITY COUNCIL, S/2022/154 (2022), § 1.
14 Veja, inter alia, RUDA, J. M. Panorama del derecho internacional publico contemporaneo. Washington:
Comitê Jurídico Interamericano, 1984, p. 62; WALDOCK, H. The regulation of the use of force by individual
states in international law. Recueil des cours de l’académie de droit international, v. 106, p. 455-517, 1952-II.
p. 492; SCHACHTER, O. International law in theory and practice. Recueil des cours de l’académie de droit
international, v. 178, p. 9-395, 1982. p. 133; FLECK, Dieter. The handbook of international humanitarian
law. Oxford: Oxford University Press, 2013, p. 1-10. Schwebel identifica uma terceira possibilidade: ação
armada por parte de organizações regionais, em determinadas circunstâncias (cf. SCHWEBEL, S. Aggres-
sion, intervention and self-defense in modern international law”. Recueil des cours de l’académie de droit
international, v. 136, p. 413-497, 1972-II. p. 473), mas, ainda assim, a ação coercitiva deve ser aprovada
pelo Conselho de Segurança de acordo com o capítulo VIII da Carta.
15 UN GENERAL ASSEMBLY, A/RES/377 (1950), § A.
16 Veja, e. g., UN SECURITY COUNCIL, S/119 (1956), UN SECURITY COUNCIL, S/120 (1956), UN SECURITY
COUNCIL, S/129 (1958), UN SECURITY COUNCIL, S/157 (1960), UN SECURITY COUNCIL, S/303 (1971),
UN SECURITY COUNCIL, S/462 (1980) e UN SECURITY COUNCIL, S/500 (1982).
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 61

unilateral da força armada, isto é, aquele feito sem a expressa autorização


do Conselho de Segurança, ou sem o reconhecimento do direito de defesa
individual ou coletivo pelo Conselho, e às vezes até contra manifesta decisão
do citado órgão. O breve texto da Carta diplomática do representante russo
(contendo apenas 6 linhas, ou dois parágrafos) não permite identificar se o
direito de defesa invocado foi o individual ou coletivo, ou ambos, nem as
razões específicas que motivaram a ação militar. Verdade é que a Carta faz
referência a um anexo, que reproduz o pronunciamento público do Chefe de
Estado russo. Embora se possa extrair algumas informações deste pronuncia-
mento, deve-se lê-lo com muita cautela, tendo em mente que a manifestação
do Presidente russo foi endereçada aos cidadãos da Rússia, e, nesse sentido,
possui natureza eminentemente política. Não se trata, portanto, de um docu-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

mento propriamente jurídico que veicularia uma exposição minuciosa dos


fundamentos jurídicos autorizadores da operação militar.
Em primeiro lugar, vale notar que em momento algum desse pronuncia-
mento alegou-se que a operação militar foi lançada em resposta a um ataque
armado ucraniano diretamente contra a Rússia. Portanto, pode-se inferir que o
início da ação militar russa não teria se lastreado no direito de defesa própria,
estatuído no artigo 51 da Carta em sua dimensão literal, isto é, na ocorrência
de um ataque armado da Ucrânia contra a Rússia. O texto, porém, elenca
uma série de razões que poderiam ser invocadas para subsidiar um pretenso
exercício antecipatório do direito individual de defesa. Cita, primeiramente, a
expansão da OTAN e sua infraestrutura militar até as fronteiras com a Rússia,
incluindo a progressiva incorporação da Ucrânia nas estruturas da OTAN e
sua militarização. Relata, a seguir, que a Ucrânia possui um governo hostil à
Rússia, controlado por potências externas, ocupado por forças armadas dos
países da OTAN e equipado com armas modernas. Esta situação constituiria,
nas palavras do líder russo, uma “questão de vida ou morte”, uma “ameaça
real” à “própria existência de nosso Estado e sua soberania”17.
Em apoio à tese da inevitabilidade da guerra, o Presidente russo menciona a
intenção da liderança da Ucrânia em estender a guerra contra Donbass à Crimeia
e outros territórios que a Rússia considera como próprios. Finalmente, ele relata
a aspiração da Ucrânia em possuir armas nucleares. Concluindo, o líder russo
afirma que “simplesmente não nos resta outra maneira de defender a Rússia e
nosso povo além daquela que somos obrigados a recorrer hoje”18.
As razões referenciadas por Putin podem ser confirmadas por meio de um
breve exame dos fatos internacionais. Primeiramente, é fato que a OTAN se
expandiu consideravelmente, na direção leste, após o fim da Guerra Fria. De

17 UN SECURITY COUNCIL, S/2022/154 (2022), Annex, p. 5.


18 Ibid., p. 6.
62

dezesseis membros, em 1990, a organização passou a contar, hoje, com trinta


membros. Com o ingresso dos países Bálticos na organização, em 2004, a OTAN
chegou à fronteira russa. Dentre os novos candidatos à admissão (cinco Esta-
dos), alguns há que também são vizinhos da Rússia, a saber, Ucrânia, Geórgia
e Finlândia, o que colocaria a Organização nas fronteiras norte, sul, e oeste da
Rússia19. Reconheça-se, também, que na Cimeira de Bucareste, em 2008, o
Conselho do Atlântico Norte da OTAN declarou o acordo dos Estados membros
da organização a respeito da admissão da Ucrânia, e, desde então, o seu processo
de integração militar nas estruturas da OTAN tem estado em contínua operação20.
Nessa esteira, a OTAN divulgou que “desde 2014... tem reforçado seu apoio ao
desenvolvimento de capacidades e à construção de capacidades na Ucrânia”21.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Mediante a implementação do chamado “Pacote de Assistência Abrangente para a
Ucrânia”, a OTAN tem fornecido assistência militar em diversas áreas, incluindo
o treinamento de forças ucranianas, a transferência de equipamentos militares, e
a reorganização e modernização, nos padrões da organização, de suas estruturas
e capacidades de Comando e Controle22. No plano doméstico, a Ucrânia tem
implementado reformas legais e políticas para a sua integração completa com
a União Europeia e a OTAN. Por exemplo, a Constituição da Ucrânia sofreu
reforma em 2014 para inserir disposição que apregoa a “irreversibilidade do
curso europeu e euro-atlântico da Ucrânia”23.
Na tentativa de equacionar uma solução pacífica para a ameaçadora
crise de segurança que identificava, a Rússia formulou, em dezembro de
2021, duas propostas de acordo mútuo de segurança, uma para a OTAN
(Acordo sobre Medidas para Garantir a Segurança da Federação Russa e
dos Estados Membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte)24, e
outra para os Estados Unidos (Tratado entre os Estados Unidos da América
e a Federação Russa sobre Garantias de Segurança)25. A resposta escrita
19 NATO. Enlargement and Article 10. NATO, 6 jul. 2022. Disponível em: https://www.nato.int/cps/en/natolive/
topics_49212.htm. Acesso em: 11 jul. 2022.
20 NATO. Relations with Ukraine. NATO, 8 jul. 2022. Disponível em: https://www.nato.int/cps/en/natohq/
topics_37750.htm. Acesso em: 11 jul. 2022.
21 Ibid.
22 NATO. Comprehensive Assistance Package for Ukraine. NATO, 2 jul. 2016. Disponível em: https://www.nato.
int/nato_static_fl2014/assets/pdf/pdf_2016_09/20160920_160920-compreh-ass-package-ukra.pdf. Acesso
em: 12 jul. 2022.
23 Presidente da Ucrânia, Representação oficial na web. Constituição da Ucrânia. Disponível em: https://www.
president.gov.ua/documents/constitution. Acesso em: 17 jul. 2022.
24 Ministério das Relações Exteriores da Federação Russa. Agreement on measures to ensure the security of The
Russian Federation and member States of the North Atlantic Treaty Organization. MRE, 17 dez. 2021. Disponível
em: https://mid.ru/ru/foreign_policy/rso/nato/1790803/?lang=en&clear_cache=Y. Acesso em: 25 ago. 2022.
25 Ministério das Relações Exteriores da Federação Russa. Treaty between The United States of America
and the Russian Federation on security guarantees. MRE, 17 dez. 2021. Disponível em: https://mid.ru/ru/
foreign_policy/rso/nato/1790818/?lang=en. Acesso em: 25 ago. 2022.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 63

da OTAN e dos Estados Unidos foi considerada insatisfatória pela Rússia,


na medida em que, inter alia, sustentava a ininterrupta expansão da OTAN
mediante a “política de portas abertas”26.
Fato também é que, em 24 de fevereiro de 2021, o Presidente da Ucrânia
emitiu decreto que aprovou e determinou a implementação da “estratégia
de desocupação e reintegração do território temporariamente ocupado da
República Autônoma da Crimeia e da cidade de Sebastopol”, formulada pelo
Conselho de Segurança e Defesa Nacional da Ucrânia, estratégia essa que
prevê o uso de medidas militares e não militares27. De igual modo, há que se
admitir que, na Conferência de Segurança de Munique, em 19 de fevereiro
de 2022, o Presidente ucraniano advertiu que o Memorando de Budapeste,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

um acordo que efetivamente promoveu a desarmamento nuclear da Ucrânia,


teria a sua validade posta em dúvida caso as necessidades de segurança do
país não fossem atendidas pelos Estados garantidores28.
Todas estas razões, tomadas em seu conjunto, podem servir para aclarar
a perspectiva russa de que haveria uma séria ameaça militar que não deveria
ser ignorada. Do ponto de vista jurídico, cumpre examinar se elas, indivi-
dualmente ou em seu conjunto, teriam o condão de justificar o exercício do
direito de legítima defesa antecipada ou preventiva.
Na doutrina, há opiniões abalizadas que rejeitam a noção do direito de
defesa antecipado, visto que esse suposto direito seria incompatível com a
linguagem adotada pelo artigo 51 da Carta da ONU, o qual menciona apenas
a ocorrência de um ataque armado. Demais, mesmo diante da suspeita de um
iminente ataque armado, não se pode prever que esse ataque se concretizará.
O Estado que se sente ameaçado disporia sempre de uma alternativa: tomar
medidas defensivas preparatórias e acionar cautelarmente o Conselho de
Segurança. Se, em vez de tomar estas medidas preventivas e não agressivas,
o Estado resolver lançar mão da força armada em nome do direito de defesa
antecipado, o requisito da proporcionalidade não seria determinável29.

26 ARMS CONTROL ASSOCIATION. Russia, U.S., NATO Security Proposals. ACA, mar. 2022. Disponível em:
https://www.armscontrol.org/act/2022-03/news/russia-us-nato-security-proposals. Acesso em: 11 set. 2022.
27 Presidente da Ucrânia, Representação oficial na web. Decreto Presidencial nº 117/2021 – A respeito da
decisão do Conselho Nacional de Segurança e Defesa da Ucrânia de 11 de março de 2021 “Acerca da
estratégia de desocupação e reintegração do território temporariamente ocupado da República Autônoma
da Crimeia e da cidade de Sevastopol” (tradução livre). 24 mar. 2021. Disponível em: https://www.president.
gov.ua/documents/1172021-37533. Acesso em: 12 set. 2022.
28 Presidente da Ucrânia, Representação oficial na web. Speech by the President of Ukraine at the 58th Munich
Security Conference. 19 fev. 2022. Disponível em: https://www.president.gov.ua/en/news/vistup-prezidenta-
-ukrayini-na-58-j-myunhenskij-konferenciyi-72997. Acesso em: 15 set. 2022.
29 BROWNLIE, Ian. The use of force in self-defence. The British Year Book of International Law, v. 37, p. 183-
268, 1961. p. 227, 266-267; CANÇADO TRINDADE, A.A. International law for humankind: Towards a new
jus gentium. The Netherlands: Martinus Nijhoff, 2010, p. 94-96; HAMID, Abdul Ghafur. The Legality of
64

No outro espectro do argumento estão aqueles que sustentam a existência,


no direito internacional, do direito de defesa antecipado. Interpretando o artigo
51, observam a inexistência do advérbio “somente” associado à ocorrência
de um ataque armado no texto do artigo. Argumentam também a existência
do direito na esfera costumeira30. Retrucam ainda que, em determinadas
situações, esperar a concretização de um ataque armado pode pôr em grave
risco a própria sobrevivência do Estado. Depositar a confiança na pronta e
eficaz ação preventiva do sistema de segurança coletiva seria outrossim uma
atitude temerária. Como concluiu Waldock, “ler o artigo 51 de outra forma é
proteger o direito do agressor a dar o primeiro golpe”31.
Há pareceres do Consultores Jurídicos dos Estados Unidos e do Reino
Unido que endossam a tese jurídica do direito de legitima defesa antecipada

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


em face de ataque armado iminente32. O Secretário-geral da ONU corrobo-
rou essa hipótese legal, nos seguintes termos: “As ameaças iminentes são
totalmente cobertas pelo Artigo 51, que salvaguarda o direito inerente dos
Estados soberanos de se defenderem contra-ataques armados”33. O Rela-
tório do Painel das Nações Unidas sobre Ameaças e Riscos foi ainda mais
longe, caracterizando-o como um direito previsto no direito internacional
consolidado34. Note-se que, em todo caso, o direito de defesa antecipado
atrela-se ao elemento da iminência, embora este requisito temporal-subs-
tantivo não esteja definido em tratado ou prática consolidada dos Estados
e dos organismos internacionais. A doutrina propõe dois critérios para a
determinação da iminência: “deve ser um ataque iminente sobre o qual exista
um nível razoável de certeza de que ocorrerá num futuro previsível; e deve
ser um ataque específico e identificável, em vez de uma vaga ameaça de
forma desconhecida”35.

Anticipatory Self-Defence in the 21st Century World Order: a re-appraisal. Netherlands International Law
Review, v. 54(3), p. 441-490, 2007.
30 BOWETT, D. Self-Defence in International Law. Manchester: University of Manchester Press 1958, p. 184-199;
BOWETT, D. Review of International Law and the Use of Force by States. International and Comparative
Law Quarterly, v. 18, p. 1107-1108, 1964. p. 1107.
31 WALDOCK, H., op. cit., p. 497-498.
32 TAFT IV, W. H.; BUCHWALD, T. F. Preemption, Iraq, and international law. The American Journal of Interna-
tional Law, v. 97, n. 3, p. 557-563, 2003; Attorney General’s Advice on the Iraq War Iraq: Resolution 1441.
The International and Comparative Law Quarterly, v. 54, n. 3, p. 767-778, 2005.
33 Secretary-General. In larger freedom: towards development, security and human rights for all. UN GENERAL
ASSEMBLY, A/59/2005, § 124.
34 Veja, no mesmo sentido, o Relatório do Painel das Nações Unidas sobre Ameaças e Riscos: “No entanto,
um Estado ameaçado, de acordo com o direito internacional há muito estabelecido, pode tomar medidas
militares desde que o ataque ameaçado seja iminente, que nenhum outro meio o afaste e que a ação seja
proporcional”. Cf. High-level Panel on Threats, Challenges and Change. A more secure world: our shared
responsibility. UN GENERAL ASSEMBLY A/59/565, § 188.
35 LUBELL, Noam. The Problem of Imminence in an Uncertain World. In: WELLER, Marc (ed.), The Oxford
Handbook of the Use of Force in International Law. Oxford: Oxford University Press, 2015, p. 718.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 65

Admite-se o direito da defesa antecipado apenas na presença do elemento


da iminência do ataque armado, sem a qual não se justificaria o uso da força,
pode-se argumentar que não se vislumbrariam as medidas políticas e militares
da Ucrânia como sinalizadoras de um iminente ataque contra a Rússia. Por
outro lado, se retrucaria que havia uma iminente ofensiva militar do exército
ucraniano na região de Donbass, que incluiria a Crimeia e Sebastopol, loca-
lidades que a Rússia considera como parte do seu território. Em apoio a esta
tese, os relatórios da Missão Especial de Monitoramento da OSCE na Ucrânia
apontaram para um aumento significativo das violações do cessar-fogo (em
sua maioria, com uso de artilharia) entre forças do governo da Ucrânia e as
forças das repúblicas do Donbass nos primeiros meses de 2022. No ano de
2021 houve, em média, 300 violações por período monitorado; a partir dos
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

meses de janeiro e fevereiro de 2022, porém, houve um aumento expressivo


de violações, até que somente nos dias 21 e 22 de fevereiro de 2022, dias
antes do início da OEM, a Missão da OSCE registrou aproximadamente 2000
violações, das quais a esmagadora maioria teria sido perpetrada pelas forças
do governo ucraniano contra as repúblicas de Donbass36. Dito isto, um exame
mais detido da questão, para se concluir pela iminência de um possível ataque
armado, deveria tomar em conta a alocação das forças armadas da Ucrânia
nas áreas mais próximas de Donbass e da Crimeia, os planos militares, e a
preparação de recursos e equipamentos militares que apoiariam uma ofensiva,
informações que não estão oficialmente disponíveis no momento.
Uma terceira possibilidade a ser examinada, dentro do tema do artigo 51
da Carta da ONU, é se a Rússia teria o direito de defesa própria em socorro
dos seus nacionais que vivem nas repúblicas do Donbass. Reporta-se que
mais de 700 mil cidadãos dessas repúblicas adquiriram a nacionalidade
russa desde 2014. Milhares desses nacionais têm se transferido para a Rús-
sia para fugir dos bombardeios ucranianos, movimento que se intensificou
a partir desse ano de 2022, mas ainda um número considerável permanece
na região de Donbass37.
Poderia a Rússia invocar o direito de defesa individual para sustentar uma
intervenção armada em socorro desses seus nacionais que estariam sofrendo
bombardeio constante das forças militares ucranianas? Há precedentes da prática
36 Organization for Security and Co-operation in Europe. Daily Report 42/2022. OSCE, 23 fev. 2022. Disponível
em: https://www.osce.org/files/2022-02-23%20Daily%20Report_ENG.pdf?itok=57816. Acesso em: 17 out.
2022. Organization for Security and Co-operation in Europe. Table of ceasefire violations as of 22 February
2022. OSCE, 23 fev. 2022. Disponível em: https://www.osce.org/files/7/7/table_ceasefire--2022-02-22.pdf?i-
tok=57816. Acesso em: 17 out. 2022.
37 EURONEWS. Russia has issued 720,000 fast-track passports in separatist-held areas of eastern Ukraine.
Euronews, 17 fev. 2022. Disponível em: https://www.euronews.com/2022/02/17/russia-has-issued-720-000-fas-
t-track-passports-in-separatist-held-areas-of-eastern-ukraine. Acesso em: 29 ago. 2022; Ria Novosti. More
than 720,000 residents of Donbass received Russian passports. RIA, 27 jan. 2022. Disponível em: https://
ria.ru/20220127/donbass-1769781282.html. Acesso em: 30 ago. 2022.
66

dos Estados que amparariam a tese de uma intervenção armada de caráter huma-
nitário, mesmo na ausência de autorização do Estado que sofre a intervenção,
para o fim de resgatar os nacionais38. Contudo, o Estado russo não parece haver
invocado oficialmente este fundamento legal. Waldock oferece três critérios
que deveriam ser cumulativamente observados para uma intervenção armada
no exterior em favor de seus nacionais estar de acordo com a Carta da ONU: a)
deve haver uma ameaça iminente de dano aos nacionais; b) o Estado que sofrerá
a intervenção deve ter falhado em protegê-los ou ser incapaz de protegê-los;
e c) as medidas de proteção devem estar confinadas ao objeto de proteger os
nacionais contra danos39. O Relatório do Special Rapporteur sobre Proteção
Diplomática, da Comissão de Direito Internacional, fez um estudo da doutrina
e da prática dos Estados para, ao fim, aduzir os seguintes requisitos para o exer-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


cício da ameaça ou do uso da força como no caso de resgate de nacionais: a) o
Estado protetor não logrou assegurar a segurança de seus nacionais por meios
pacíficos; b) o Estado responsável pelo dano não está disposto a, ou é incapaz
de, assegurar a segurança dos nacionais do Estado protetor; c) os nacionais do
Estado protetor estão expostos a um perigo imediato contra sua segurança; d)
o uso da força é proporcional às circunstâncias da situação; e e) o uso da força
termina, e o Estado protetor retira suas forças, tão logo os nacionais sejam res-
gatados40. Quando se considera a amplitude geográfica da intervenção militar,
os objetivos políticos-militares anunciados (desnazificação e desarmamento), o
Decreto presidencial russo de 24 de abril de 2019, que permite aos cidadãos das
regiões administrativas de Kherson e Zaporizhia (além das repúblicas do Don-
bass) a aquisição da nacionalidade russa sob um procedimento simplificado, e a
não evacuação dos cidadãos russos, em sua totalidade, para a Rússia41, pode-se
38 Diversas intervenções ocorridas após a adoção da Carta da ONU invocaram o fundamento da proteção
humanitária, entre outros, valendo citar a intervenção dos Estados Unidos em Granada (1983), Panamá
(1989) e Libéria (1990-1991); da França em Gabão (1990 e 2007), Somália (1976), Ruanda (1990 e 1994),
Costa do Marfim (2002-2003), Zaire (1991 e 1993), Mali (2013) e República Centro-Africana (1996 e 2003);
da Rússia na Geórgia (2008); da Bélgica no Congo (1960); e de vários países no Líbano, em 2006 (e. g.,
Estados Unidos, Canadá, e Reino Unido). Em pronunciamentos oficiais, Estados Unidos, Reino Unido,
Austrália, França, Canadá e Rússia têm argumentado em favor da existência desse direito. Veja THOM-
SON, A. Doctrine of the protection of nationals abroad: Rise of the non-combatant evacuation operation.
Washington University Global Studies Law Review, v. 11, n. 3, p. 627-688, 2012. p. 629-658. Veja também
as justificativas apresentadas pelos Estados Unidos para a ação armada contra o Panamá em Yearbook of
the United Nations. New York: DPI, 1989, p. 174.
39 WALDOCK, H., op. cit., p. 467.
40 International Law Commission. First report on diplomatic protection. Fifty-Second session, Geneva, 2000,
A/CN.4/506, p. 16-21.
41 Official Internet Portal of Legal Information. Decree of the President of the Russian Federation from April
24, 2019, n. 183 “On the definition for humanitarian purposes of categories of persons who have the right to
apply for citizenship of the Russian Federation in a simplified manner” (tradução livre). Data de publicação:
25 maio 2022. Disponível em: http://publication.pravo.gov.ru/Document/View/0001202205250004#print.
Acesso em: 25 ago. 2022.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 67

arrematar que os limites dessa justificativa legal teriam sido extrapolados, e,


portanto, a mesma seria inadmissível42.
Voltando a atenção para o texto do pronunciamento do Presidente russo,
identifica-se também, indubitavelmente, o argumento do direito de defesa
coletiva. O Chefe de Estado russo denunciou o genocídio (um crime interna-
cional) que estaria sendo praticado pelas forças ucranianas contra a população
da região, e que teria inspirado o reconhecimento da independência das duas
Repúblicas do Donbass (Donetz e Lugansk). Após referir-se ao fato de que
“as Repúblicas Populares de Donbass apelaram à Rússia por ajuda”, o líder
russo citou o artigo 51 da Carta da ONU para elucidar que a OME estava
sendo conduzida “de acordo com os tratados de amizade e assistência mútua
com a República Popular de Donetsk e a República Popular de Lugansk”43.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Com efeito, no dia 21 de fevereiro, portanto, três dias antes do início da OME,
a Rússia reconheceu a independência das duas Repúblicas de Donbass e fir-
mou, com cada qual, um tratado bilateral de amizade e assistência mútua44.
Em ambos os tratados, há uma cláusula comum que estabelece a assistência
militar em caso de agressão externa, nos seguintes termos:

As partes contratantes tomarão conjuntamente todas as medidas ao seu


alcance para remover as ameaças à paz e as violações da paz e para com-
bater os atos de agressão perpetrados contra elas por qualquer Estado ou
grupo de Estados, e prestar-se-ão mutuamente a assistência necessária,
incluindo a assistência militar, no exercício do direito de defesa individual
ou coletiva, de acordo com o Artigo 51 da Carta das Nações Unidas45.

No dia 22 de fevereiro de 2022, os representantes legais das duas repú-


blicas enviaram ao governo russo, cada qual, pedido formal de assistência
com base no tratado bilateral, alegando agressão armada da Ucrânia46.
A Corte Internacional de Justiça estabeleceu seu entendimento de que, além
dos requisitos da necessidade e proporcionalidade, duas outras condições devem
42 Veja também GREEN, James A.; HENDERSON, Christian; RUYS, Tom. Russia’s attack on Ukraine and the
jus ad bellum. Journal on the Use of Force and International Law, v. 9, n. 1, p. 4-30, 2022, p. 14-16.
43 UN SECURITY COUNCIL, S/2022/154 (2022), Annex, p. 6.
44 President of Russia. Signing of documents recognising Donetsk and Lugansk People’s Republics. 21 fev.
2022. Disponível em: http://en.kremlin.ru/events/president/news/67829. Acesso em: 11 jul. 2022; President
signed Federal Law on Ratifying the Treaty of Friendship, Cooperation and Mutual Assistance Between
the Russian Federation and the Donetsk People’s Republic. 22 fev. 2022. Disponível em: http://en.kremlin.
ru/events/president/news/67835. Acesso em: 11 jul. 2022; President signed Federal Law On Ratifying the
Treaty of Friendship, Cooperation and Mutual Assistance Between the Russian Federation and the Lugansk
People’s Republic. 22 fev. 2022. Disponível em: http://en.kremlin.ru/events/president/news/67834. Acesso
em: 11 jul. 2022.
45 UN Doc. A/76/740–S/2022/179, p. 3, 9.
46 Ibid., p. 14-15.
68

ser atendidas para que haja um exercício legítimo do direito de defesa coletiva.
Suscintamente, deve o Estado favorecido denunciar um ataque armado sofrido
e solicitar a assistência de outros Estados, evitando-se, assim, que terceiros
intervenham na situação sob um falso pretexto de direito de defesa coletiva47.
O reconhecimento, por resolução do Conselho de Segurança, do direito de
defesa coletiva em determinada situação de conflito armado, constituiria um
forte embasamento da legalidade das medidas militares tomadas em favor do
Estado vítima, colocando os Estados intervenientes em harmonia com o sistema
de segurança coletiva. Esta hipótese, contudo, não se verificou no caso sob
exame, nem se configurou o caso de medidas coletivas com base no Capítulo
VII da Carta48. Por outro lado, se entre o Estado que se diz vítima de um ataque
armado e o Estado que intervém em seu favor há um tratado que expressamente

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


prevê o dever de assistência mútua em caso de agressão externa, o pressuposto
da legalidade da intervenção se assentaria numa base mais sólida. Não se ques-
tiona que a intervenção russa está amparada em tratado bilateral de assistência
mútua e que houve um pedido formal de assistência.
Um exame jurídico mais aprofundado sobre a legalidade do direito de
defesa coletiva sustentado pela Rússia poderia enfrentar algumas questões
jurídicas, de natureza preliminar, que afetariam a validade do tratado bilateral
firmado e, em última análise, o exercício regular do direito invocado. Pri-
meiramente, poder-se-ia examinar se as Repúblicas de Donbass são sujeitos
de direito internacional público, possuindo a capacidade jurídica de firmar
tratados internacionais.
Sabe-se que as duas Repúblicas de Donbass proclamaram sua indepen-
dência após a realização de um plebiscito popular. A validade, de acordo
com o direito internacional, do ato de independência das duas Repúblicas de
Donbass, pode ser analisada à luz do precedente do Parecer Consultivo da
Corte Internacional de Justiça sobre a declaração unilateral de independência
de Kosovo. Há um paralelo interessante a ser ressaltado: em ambos os casos,
uma região que integrava um país entrou em processo de secessão e decla-
rou unilateralmente sua independência, ato o qual foi oposto pelo governo
central com o uso da força e gerou um conflito armado. Em seu Parecer, a
Corte rejeitou a tese de que haveria uma proibição, no direito internacional
geral, de declarações unilaterais de independência como corolário do princí-
pio da integridade territorial. Fundamentando sua posição, a Corte observou
que o princípio da integridade territorial se aplicaria tão-somente às relações
entre Estados, fazendo referência à Resolução 2625 da Assembleia Geral e
47 Military and Paramilitary Activities in and against Nicaragua, op. cit., § 195 e 199.
48 Sobre a distinção entre defesa coletiva e medidas coletivas sob o Cap. VII da Carta, veja WOOD, Michael.
Self-Defence and Collective Security: Key Distinctions. In: WELLER, Marc (ed.), The Oxford Handbook of
the Use of Force in International Law. Oxford: Oxford University Press, 2015, p. 649-666.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 69

à Ata Final da Conferência de Helsinque sobre Segurança e Cooperação na


Europa. Em conclusão, a Corte asseverou que “o direito internacional geral
não contém nenhuma proibição aplicável de declarações de independência”, e
estatuiu que a declaração de independência de Kosovo não infringia o direito
internacional geral49. Assim sendo, a Corte, em posição compartilhada com
alguns Estados participantes do processo, entendeu o ato de independência
como um fato juridicamente neutro.
As consequências jurídicas de um ato declaratório de independência
dependeriam, em contrapartida, da conjugação de dois fatores: a entidade
deve revelar as propriedades de um Estado e lograr reconhecimento por outros
Estados. Uma declaração de independência é sobretudo um ato de aspiração
política, manifestando a expectativa de que os membros da comunidade
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

internacional venham a reconhecer a nova entidade e estabelecer com ela


relações diplomáticas formais. O ato de independência não tem o condão
de tornar uma entidade pretensamente emancipada em um Estado, quando
se constata nela a ausência dos elementos de um Estado. Em deferência ao
princípio da efetividade, o direito internacional confere reconhecimento e
validade somente às situações fáticas que revelam a existência e operação
de um sujeito de direito internacional público.
Não se coloca em dúvida que as duas repúblicas possuem um governo
próprio e autônomo (ao menos em relação à Kiev) que controla um territó-
rio determinado, no qual reside uma população permanente que ostenta a
recém-inaugurada nacionalidade do Estado. A determinação do elemento da
independência e capacidade de manutenção de relações internacionais é mais
complexa, especialmente quando se trata de um Estado recentemente procla-
mado, que enfrenta a oposição do Estado do qual teria se emancipado, e possui
pouco reconhecimento internacional50. É de se reconhecer que a independência
é um critério relativamente flexível, quando se trata da existência, segundo
o direito internacional, da personalidade jurídica internacional de um novo
Estado, considerando-se, em particular, suas limitações materiais e outras.
Nesse sentido, a doutrina e a prática dos Estados têm entendido que o exercício
delegado de competências nacionais por um outro sujeito de direito interna-
cional não prejudica a independência formal do Estado que as transferiu, nem
tampouco perde-se a capacidade jurídica de celebrar tratados internacionais51.
A hipossuficiência de alguns microestados, por exemplo, os levou a delegar
esferas importantes de suas competências nacionais a um Estado terceiro,
como a defesa nacional. Ainda assim, a maioria dos microestados é integrante
49 ICJ, Accordance with International Law of the Unilateral Declaration of Independence in Respect of Kosovo.
Parecer Consultivo, 22 jul. 2010, §§ 79-84.
50 No momento, apenas a Rússia, Coreia do Norte e Síria reconhecem as duas repúblicas.
51 CRAWFORD. James. The Creation of States in International Law. Oxford: Clarendon Press, 2006, p. 95-96.
70

de organizações internacionais, como a ONU, que exigem a condição de


Estado como requisito de ingresso, e eles celebram tratados internacionais no
exercício legítimo de sua capacidade jurídica internacional. No caso Direitos
dos Nacionais dos Estados Unidos em Marrocos, por exemplo, a Corte Inter-
nacional de Justiça examinou uma ação proposta pela França contra os Esta-
dos Unidos, na qual se questionava a extensão dos privilégios dos nacionais
americanos no território marroquino. Na época, Marrocos estava sujeito a um
protetorado da França, estabelecido pelo Tratado de Fez de 1912, pelo qual
delegou-se à França o exercício de certas competências soberanas, em nome
e em benefício de Marrocos, incluindo suas relações internacionais. O Reino
de Marrocos também firmou um tratado multilateral, o Ato Geral de Algeciras
de 1906, mediante o qual prerrogativas comerciais e de outra natureza foram

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


reconhecidas aos Estados partes e seus nacionais. A despeito dessas concessões
e delegações de competência, a Corte considerou que Marrocos “reteve sua
personalidade como um Estado no direito internacional”, ressaltando que o
Ato Geral e o Tratado de Fez reafirmaram a soberania e integridade do país52.
Admitindo-se a existência de um debate doutrinário sobre a natureza
jurídica do ato de reconhecimento de um Estado recém-emancipado, por parte
de outros Estados, a posição majoritária confere ao ato o caráter meramente
declaratório (não constitutivo), desde que se enderece a uma realidade fática
e jurídica53. O reconhecimento, na perspectiva do direito internacional, é
ato unilateral e discricionário, cabendo ao Estado fazer sua própria avaliação
sobre a condição de Estado daquela entidade e a conveniência política de
realizá-lo54. Na situação de Kosovo, por exemplo, há um grupo de Estados
que reconhece sua independência e outro grupo que se nega a fazê-lo. No
caso estudado, a valia do ato de reconhecimento não deve ser desprezada: na
perspectiva do direito internacional, o reconhecimento das duas repúblicas
de Donbass representaria uma medida jurídica preliminar necessária para o
exercício do direito de defesa coletiva. Nesse sentido, o ato de reconhecimento
emitido pela Rússia se destinava a satisfazer esse requisito.
Um aspecto que merece atenção especial é a posição do Conselho de
Segurança em situações de secessão e emancipação política. A prática do
Conselho revela diversas situações nas quais o órgão determinou o não

52 ICJ, Case concerning rights of nationals of the United States of America in Morocco. Julgamento, 27 ago.
1952, p. 183-188.
53 CASESSE, Antonio. International Law. Oxford: Oxford University Press, 2005, p. 73-76; LAUTERPACHT,
Hersch. Recognition in International Law. Cambridge: Cambridge University Press, 1947, p. 55-66; BIER-
ZANECK, Remigiusz. La non-reconnaissance et le droit international contemporain. Annuaire Français de
Droit International, v. 8, p. 117-137, 1962, p. 124.
54 CADOUX, Charles; RANJEVA, Raymond. Droit International Public. Paris: EDICEF, 1992, p. 91-93.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 71

reconhecimento de entidades pretensamente estatais, em razão de violação dos


princípios fundamentais da Carta e do direito internacional geral. Por exemplo,
quando a República Turca de Chipre do Norte declarou sua independência, o
Conselho de Segurança considerou o ato ilegal e inválido, reiterando seu apelo
a todos os Estados para “não reconhecerem o suposto Estado da República
Turca do Norte de Chipre”55. Em casos tais, seria inadmissível o recurso ao
fundamento legal do direito de defesa coletiva em benefício dessa entidade,
visto que afrontaria a Carta da ONU e o sistema de segurança coletiva. Tal
hipótese, todavia, não se configurou no caso da Ucrânia, nem se concretizará,
dada a prerrogativa russa, como membro permanente do Conselho de Segu-
rança, de vetar qualquer proposta de resolução nesse sentido.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Ao examinar a questão que lhe foi submetida sobre a independência de


Kosovo, a Corte tangenciou, sem adentrar o mérito, o chamado direito de
“secessão corretiva”, não deixando de notar, porém, que tal direito havia sido
alegado por “um número de participantes do presente procedimento”56. De
fato, nas manifestações orais e escritas dos Estados intervenientes, um número
majoritário de Estados arguiu a favor do direito de secessão corretiva como
expressão da chamada autodeterminação externa, embora se observe algumas
diferenças de opinião sobre as condições que devem ser atendidas para que tal
direito possa ser exercido57. No outro espectro do debate situaram-se outros
Estados, os quais entenderam inexistir tal direito e defenderam a prevalência
absoluta do princípio da integridade territorial58.
55 Veja UN SECURITY COUNCIL, S/RES/541 (1983), § 7, e S/RES/550 (1984), § 3.
56 Accordance with International Law of the Unilateral Declaration of Independence in Respect of Kosovo, op
cit., §§ 82-83.
57 Cf. Reply of the Netherlands to questions posed by Judges Koroma and Cançado Trindade at the close of the
oral proceedings, § 5; Reply of Finland to questions posed by Judges Koroma and Cançado Trindade at the
close of the oral proceedings, p. 3; Reply of Romania to questions posed by Judges Koroma and Cançado
Trindade at the close of the oral proceedings, § 7; Reply of the United States of America to questions posed
by Judges Koroma and Cançado Trindade at the close of the oral proceedings, p. 2; Reply of the Bolivarian
Republic of Venezuela to questions posed by Judges Koroma and Cançado Trindade at the close of the oral
proceedings, p. 2; Written Statement of the Russian Federation, § 87-88; Written Statement of Switzerland, §
66; Written Statement of Ireland, § 32; Written Statement of Denmark, § 2.7; Written Statement of Slovakia,
§ 10; Written Statement of Poland, § 6.5-6.7; Written Statement of Germany, p. 35-36; Reply of Albania to
questions posed by Judges Koroma, Bennouna and Cançado Trindade at the close of the oral proceedings,
§ 18; Written Comments of Norway, § 5; Written Statement of Latvia, p. 1-2; Written Statement of Estonia,
p. 6-9; Written Statement of the Czech Republic, p. 7-8. Disponível em: https://www.icj-cij.org/en/case/141/
written-proceedings; https://www.icj-cij.org/en/case/141/other-documents. Acesso em: 12 set. 2022.
58 Cf. Reply of the Argentine Republic to questions posed by Judges Koroma and Cançado Trindade at the
close of the oral proceedings, § 2; Reply of the Kingdom of Spain to questions posed by Judges Koroma,
Bennouna and Cançado Trindade at the close of the oral proceedings, § 6; Reply of the Republic of Cyprus
to questions posed by Judges Koroma, Bennouna and Cançado Trindade at the close of the oral proceedings,
§ 1.9; Written Statement of China, p. 3-6; Reply of the Republic of Serbia to questions posed by Judges
Koroma, Bennouna and Cançado Trindade at the close of the oral proceedings, § 1.2; Reply of the Republic
of Burundi to the questions posed by Judges Koroma, Bennouna and Cançado Trindade at the close of
72

Sobre a possibilidade da existência de um direito de secessão corretiva,


há intensos debates doutrinários59, e um precedente judicial influente, oriundo
da Corte Suprema do Canadá60. Menciona-se aqui o direito de “secessão
corretiva” pelo motivo de que este fundamento legal específico parece ter
sido abonado pela Rússia no documento que encaminhou à Corte Interna-
cional de Justiça para contestar a jurisdição da Corte no caso Alegações de
Genocídio61. Ponderou a Rússia que a OME “está baseada na Carta das
Nações Unidas, em seu artigo 51, e no direito internacional costumeiro”.
Mais adiante, o arrazoado russo associou o ato de reconhecimento das duas
repúblicas de Donbass ao direito de autodeterminação dos povos. Segundo
a Rússia, em razão do governo ucraniano não ter respeitado o princípio dos
direitos iguais e da autodeterminação dos povos, a secessão unilateral das

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


duas repúblicas de Donbass teria sido justificada à luz do direito interna-
cional62. As medidas militares e legislativas tomadas pelo governo de Kiev
contra as duas repúblicas desde 2014 poderiam decerto servir de justificação
para o movimento de autodeterminação externa.

3. Avaliação das justificativas

O caráter descentralizado do sistema internacional reserva aos Estados,


individual ou coletivamente, e organizações internacionais de vocação política, a
avaliação da justificativa legal aduzida pelos Estados envolvidos em um conflito
armado. Os Estados dão publicidade à sua estimativa da legalidade de ações mili-
tares de diversas maneiras, tais como, e.g., comunicados à imprensa, declarações
the oral proceedings, p. 1; Written Statement of the Islamic Republic of Iran, p. 6-11; Written Comments of
Bolivia, § 12; Written Statement of Azerbaijan, § 23-25; Written Statement of Japan, p. 4. Disponível em:
https://www.icj-cij.org/en/case/141/written-proceedings; https://www.icj-cij.org/en/case/141/other-documents.
Acesso em: 12 set. 2022.
59 VAN DEN DRIEST, S.F. Crimea’s Separation from Ukraine: An Analysis of the Right to Self-Determination
and (Remedial) Secession in International Law. Netherlands International Law Review, v. 62, p. 329-363,
2015; ALEKSANIAN S.R. On Theory of Remedial Secession in Contemporary International Law. Moscow
Journal of International Law, v. 4, p. 141-150, 2017; CHRISTAKIS. Theodore. The ICJ Advisory Opinion on
Kosovo: Has International Law Something to Say about Secession? Leiden Journal of International Law,
v. 24, p. 73-86, 2011; CRAWFORD, James. State Practice and International Law in Relation to Secession.
British Yearbook of International Law, v. 69, n. 1, p. 85-117, 1998, p. 113 (para quem a autodeterminação
fora do contexto colonial é “principalmente um processo pelo qual os povos dos vários Estados determinam
o seu futuro através de processos constitucionais sem interferência externa”).
60 Supreme Court of Canada: Reference Re Secession of Quebec. International Legal Materials, v. 37, n. 6,
p. 1340-1377, 1998; LESLIE, Peter. Canada: The Supreme Court Sets Rules for the Secession of Quebec.
Publius: The Journal of Federalism, v. 29, n. 2, p. 135-151, 1999.
61 ICJ, Allegations of Genocide under the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of
Genocide (Ukraine v. Russian Federation).
62 Document (with annexes) from the Russian Federation setting out its position regarding the alleged “lack of
jurisdiction” of the Court in the case. Disponível em: https://www.icj-cij.org/en/case/182/other-documents.
Acesso em: 13 ago. 2022.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 73

de chefe de Estado ou de governo, pronunciamentos de ministro das relações


exteriores, manifestações de representantes do Estado perante organismos inter-
nacionais ou em foros multilaterais diversos, e votos a respeito de propostas de
decisões/resoluções de órgãos de organizações internacionais.
Em algumas situações esporádicas de conflitos armados, poderá haver um
consenso aparente ou uma maioria avassaladora acerca da legalidade ou ilega-
lidade de determinada intervenção armada, como ocorreu na resposta da comu-
nidade internacional à invasão do Kuwait pelo Iraque63. Contudo, uma análise
das manifestações dos Estados não raro revelará a visão preponderante da comu-
nidade internacional em determinado corte de tempo ou, alternativamente, uma
divisão de pontos de vista alicerçada nas alianças militares e políticas, assim como
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

nos interesses econômicos de cada um. Feitas essas observações preliminares,


passe-se agora ao exame da posição dos Estados acerca da legalidade da OME.
A OME da Rússia foi fortemente condenada pela OTAN e pela União
Europeia (cujos países, em sua maioria, integram a Aliança Atlântica). No
dia 24 de março de 2022, os Chefes de Estado e de governo dos trinta Esta-
dos membros da OTAN se reuniram e emitiram uma declaração que definiu
claramente sua posição jurídica conjunta a respeito da ação militar russa: a
caracterizaram como uma “agressão” e uma “invasão”, e afirmaram que a
Ucrânia possuía o direito de autodefesa de acordo com a Carta da ONU64. O
Conselho Europeu da União Europeia, reunido no dia 24 de junho de 2022,
emitiu suas Conclusões, nas quais condenou a “guerra de agressão” da Rússia
e afirmou o direito de defesa da Ucrânia65. Após o início da OME, uma reso-
lução do Comitê de Ministros do Conselho de Europa igualmente denunciou
a “agressão” da Rússia contra a Ucrânia66.
Se as organizações internacionais de composição majoritariamente
europeia ou ocidental categoricamente denunciaram a ilegalidade da OME,
o mesmo não se pode dizer das congêneres oriundas de outras regiões do
mundo. Não houve, até o momento, manifestação sobre a legalidade ou
ilegalidade da OME por parte de organizações intergovernamentais como a
Organização do Tratado de Segurança Coletiva, a Organização de Cooperação
63 A Resolução 660, adotada por 14 votos a favor e uma ausência (Iêmen), condenou a invasão do Kuwait
pelo Iraque. Veja UN SECURITY COUNCIL, S/RES/660 (1990), § 1.
64 NATO. Statement by NATO Heads of State and Government. NATO, 24 de março de 2022. Disponível em:
https://www.nato.int/cps/en/natohq/official_texts_193719.htm?selectedLocale=en. Acesso em: 7 ago. 2022.
65 European Council. European Council meeting (23 and 24 June 2022) – Conclusions. EC, 24 jun. 2022.
EUCO 24/22, CO EUR 21 CONCL 5, § 4,6. Disponível em: https://www.consilium.europa.eu/media/57442/
2022-06-2324-euco-conclusions-en.pdf. Acesso em: 14 set. 2022.
66 Council of Europe. Resolution CM/Res(2022)2 on the cessation of the membership of the Russian Federation
to the Council of Europe. CE, 16 mar. 2022. Disponível em: https://www.coe.int/en/web/moscow/-/resolu-
tion-cm-res-2022-2-on-the-cessation-of-the-membership-of-the-russian-federation-to-the-council-of-europe.
Acesso em: 14 set. 2022.
74

de Xangai, a Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), o Mer-


cosul, a União Africana, a Organização da Cooperação Islâmica e a Liga
dos Estados Árabes67. Uma exceção a ser notada é a Resolução 1192 do
Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos, adotada
em 25 de março de 2022, na qual pede-se o respeito ao direito internacional
humanitário e aos direitos humanos, reiteram-se os princípios fundamentais
da Carta da ONU, assim como a soberania, independência política e integri-
dade territorial a Ucrânia, e, por fim, solicita-se a retirada das forças russas
do território ucraniano e o retorno à diplomacia68.
No âmbito da ONU, o Conselho de Segurança se reuniu no dia 25 de
fevereiro e debateu o conflito armado na Ucrânia. Em virtude do veto oposto

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


pela Rússia, uma proposta de resolução69 condenatória da OME não foi
adotada pelo órgão70. Seguindo sua prática, o Conselho adotou a Resolução
262371, pela qual, observando a falta de unanimidade entre os membros per-
manentes, que obstava o exercício de sua responsabilidade pela manutenção
da paz e segurança internacionais, convocou uma sessão especial emergencial
da Assembleia Geral para examinar a questão. Na sua sessão de 23 de março
de 2022, outra proposta de resolução72 também deixou de ser aprovada,
desta feita em razão do número insuficiente de votos favoráveis73. Desde
então, o Conselho de Segurança tem se reunido sucessivamente e debatido
diversos temas relacionados ao conflito na Ucrânia, mas nenhuma proposta
de resolução foi submetida à votação74.
Na 11ª sessão especial emergencial da Assembleia Geral, o órgão ado-
tou, após debates e submissão de propostas, uma Resolução que ostentou
inequívoca posição sobre a ilegalidade da OME. Em seu parágrafo operativo
2, a Assembleia “deplora veementemente a agressão da Federação Russa
contra a Ucrânia, em violação do artigo 2(4) da Carta”75. A Resolução foi
adotada por substancial maioria de 141 Estados, com 5 Estados se opondo
e 35 se abstendo. Muito embora resoluções da Assembleia Geral possuam
67 UN GENERAL ASSEMBLY – SECURITY COUNCIL, A/76/737–S/2022/169, 3 mar. 2022.
68 ORGANIZACIÓN DE LOS ESTADOS AMERICANOS, Consejo Permanente, EA/Ser.G CP/RES. 1192
(2371/22), 25 mar. 2022.
69 UN SECURITY COUNCIL, S/2022/155, 25 fev. 2022.
70 UN SECURITY COUNCIL, S/PV.8979, 25/02/2022, p. 6. Na votação, China, Índia e Emirados Árabes Unidos
se abstiveram.
71 UN SECURITY COUNCIL, S/RES/2623 (2022).
72 UN SECURITY COUNCIL, S/2022/231, 24 mar. 2022.
73 UN SECURITY COUNCIL, S/PV.9002, 23 mar. 2022, p. 3-13 abstenções.
74 UN SECURITY COUNCIL, S/PV.9126, 7 set. 2022; S/PV.9115, 24 ago. 2022; S/PV.9104, 29 jul. 2022; S/
PV.9080, 28 jun. 2022; S/PV.9069, 21 jun. 2022; S/PV.9056, 6 jun. 2022; S/PV.9032, 12 maio 2022; S/PV.9028,
6 maio 2022; S/PV.9027, 5 maio 2022; S/PV.9018, 19 abr. 2022; S/PV.9013, 11 abr. 2022; S/PV.9011, 5 abr.
2022; S/PV.9008, 29 mar. 2022.
75 UN GENERAL ASSEMBLY, A/RES/ES-11/1, § 2.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 75

caráter recomendatório, de acordo com a Carta da ONU, não se deve ignorar


o peso político de uma manifestação coletiva de tal magnitude. Além disso,
há quem sustente que uma resolução da Assembleia Geral possa produzir ao
menos dois efeitos jurídicos: exprimir uma autorização legal para a prática
de determinados atos, seja individual, seja coletivamente; e, à luz dos artigos
2(5), 24 e 48 da Carta, gerar o dever jurídico geral de considerar, de boa-fé,
suas recomendações76. De toda forma, uma expressão tão clara de posiciona-
mento jurídico poderia ser considerada como a opinio juris, dos Estados que
votaram a favor da resolução, a respeito da ilegalidade da OME e sua falta
de conformidade com a Carta. Recorde-se situações semelhantes no passado,
como, e.g., a operação militar dos Estados Unidos contra o Panamá (1989).
A situação foi obstada no Conselho de Segurança, mas a Assembleia Geral
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

condenou a “invasão” norte-americana, classificando-a como uma “interven-


ção armada que constitui uma flagrante violação do direito internacional”,
fazendo menção também ao artigo 2(4) da Carta77.
Perfilhando as posições contrárias à legalidade, acima referidas, o
Institut de Droit International também condenou a “agressão” da Rússia
contra a Ucrânia, a qual transgrediria os princípios fundamentais do direito
internacional, incluindo o da proibição do uso da força nas relações inter-
nacionais. A Declaração do IDI assinalou a carência de justificativa legal
para a ação russa, seja no “direito natural de legítima defesa, previsto no
artigo 51 da Carta, na ausência de agressão armada por parte da Ucrânia”,
seja “numa resolução do Conselho de Segurança adoptada ao abrigo do
Capítulo VII da Carta”78.
Há, portanto, um número considerável de Estados e organismos interna-
cionais que entendem que a OME viola o direito internacional geral e a Carta
da ONU, rejeitando as justificativas legais aduzidas pela Rússia. Baseados
nessa estimativa, muitos desses países, particularmente os europeus e norte-
-americanos, estão aplicando sanções unilaterais (i.e., não determinadas pelo
Conselho de Segurança) contra a Rússia. Para quem acompanha as oscilações
da política internacional, entretanto, deve-se notar que a posição legal dos
Estados a respeito de determinado conflito pode ser modificada com o passar
do tempo, em qualquer sentido, especialmente quando se trata de um conflito
de longa duração que tem a possibilidade de alastramento e agravamento.
76 ICJ, South West Africa – Voting Procedure. Parecer Consultivo, 7 jun. 1955, Opinião Separada do Juiz
Lauterpacht, p. 55-58.
77 UN GENERAL ASSEMBLY, A/44/240, 29 dez. 1989. Assim como no caso da Ucrânia, esta resolução foi
adotada por maioria, com um número de Estados se abstendo e se opondo.
78 Institut de Droit International. Déclaration de l’Institut de Droit International sur l’agression en Ukraine. IDI,
1 mar. 2022. Disponivel em https://www.idi-iil.org/app/uploads/2022/03/Déclaration-de-lInstitut-de-Droit-in-
ternational-sur-lagression-en-Ukraine-1-mars-2022-FR.pdf. Acesso em: 19 set. 2022.
76

A OME foi objeto de decisão recente da Corte Internacional de Justiça em


caso que ainda não chegou à fase do mérito. Como medida cautelar, a Corte
determinou que a Rússia suspenda “imediatamente as operações militares
que iniciou em 24 de fevereiro de 2022 no território da Ucrânia”, e que os
dois lados se abstenham de qualquer ação “que possa agravar ou prolongar a
litígio perante a Corte ou torná-lo mais difícil de resolver”79. Até o momento,
a decisão da Corte tem sido ignorada pelas duas partes do conflito, o que
ensejaria a responsabilidade internacional de cada qual80. A ação movida pela
Ucrânia se fundamentou na Convenção para a Prevenção e a Repressão do
Crime de Genocídio81 para determinar o fim da OME em território ucraniano.
Ao deferir a medida cautelar, nos exatos termos requeridos pela Ucrânia, a

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Corte aderiu, mesmo que provisoriamente, ao argumento ucraniano de que
a OME se estriba exclusivamente na defesa da população das repúblicas de
Donbass contra o genocídio alegadamente praticado pela Ucrânia82, algo que,
como visto, não reflete a posição jurídica da Rússia. Não se pode prever a
decisão final da Corte, mas a medida cautelar insinua uma posição contrária
à legalidade da OME, quando afirma a preocupação do tribunal “com o uso
da força por parte da Federação Russa na Ucrânia, o que levanta questões
muito sérias de direito internacional”83.
Nos dias 23 a 27 de setembro de 2022, efetuou-se um referendo popular
nas duas repúblicas de Donbass e nas regiões de Kherson e Zaporozhye. O
objeto do referendo era coletar a opinião das populações desses territórios a
respeito de eventual integração à Federação Russa84. O resultado divulgado,
demonstrando amplo apoio à medida, foi ratificado pelas autoridades dos ter-
ritórios. O processo de integração dos territórios à Federação Russa seguiu as
mesmas etapas legais do processo de incorporação da Crimeia85. A partir de
03 de outubro de 2022, os quatro territórios estão oficialmente incorporados
à Rússia. Desde então, na perspectiva russa, a OME não se ampara mais no
79 ICJ, Allegations of Genocide under the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of
Genocide (Ukraine v. Russian Federation). Julgamento, 16 mar. 2022, § 86.
80 LIMA, Lucas Carlos. As medidas cautelares da Corte Internacional de Justiça no caso entre Ucrânia e
Federação Russa. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 19, n. 1, p. 32-38, 2022, p. 37.
81 CONVENTION ON THE PREVENTION AND PUNISHMENT OF THE CRIME OF GENOCIDE, 9 dec. 1948,
78 UNTS 277.
82 Veja o seguinte trecho da decisão: “Sob estas circunstâncias, a Corte considera que a Ucrânia tem o direito
plausível de não ser submetida a operações militares pela Federação Russa com o objetivo de prevenir e
punir um suposto genocídio no território da Ucrânia”. Cf. Allegations of Genocide, op. cit., § 60.
83 Id., § 18.
84 No que diz respeito aos territórios de Kherson e Zaporozhye, havia também uma pergunta preliminar para
referendar (ou não) a secessão em relação à Ucrânia.
85 Assinatura dos tratados de adesão à Federação Russa, exame de adequação constitucional dos tratados
pela Corte Constitucional, aprovação no Parlamento Russo, ratificação dos tratados, emenda à Constituição
russa, e incorporação dos tratados mediante lei assinada pelo Presidente da Rússia.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 77

direito de defesa coletiva. A base jurídica transmudou-se para o direito de


legítima defesa própria, visto que o conflito armado abrange agora o que a
Rússia considera território nacional. Os questionamentos legais da OME assu-
mirão novos contornos, e uma aparente antinomia se verificará. Os Estados
que apregoam a ilegalidade da OME seguramente condenarão a incorporação
dos territórios, estribando-se no princípio do não reconhecimento de situações
territoriais consumadas pelo uso ilícito da força armada86, e na inadequação
formal do referendo efetuado para a justificação da alteração do status dos
territórios87. A Rússia, por seu turno, continuará a sustentar a legalidade do
processo de incorporação dos territórios com fundamento no princípio da
autodeterminação dos povos e no legítimo exercício de um referendo popular,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

como visto acima. A proposta de resolução que os Estados Unidos e a Albânia


submeteram uma ao Conselho de Segurança, na sessão de 30 de setembro de
2022, e os debates que sucederam, refletem essa oposição de pontos de vista
jurídicos nas linhas acima indicadas. A resolução não foi aprovada88.

4. Conclusão

As justificativas legais da conduta russa foram aqui dissecadas e discuti-


das. Há, inegavelmente, razoabilidade jurídica em algumas proposições. Entre-
tanto, neste ponto específico no tempo, a reação da comunidade internacional
mostra um substancial número de Estados, ao lado de algumas organizações
internacionais, que rejeitam as justificativas e consideram a OME uma clara
infringência do direito internacional. A situação fática, jurídica e política do
conflito é profundamente dinâmica e está em constante evolução.
De todo modo, é preciso ter em mente o contexto mais amplo do sis-
tema de segurança coletiva da ONU. O sistema não foi planejado e estru-
turado para lidar com a hipótese de agressão armada praticada por membro
permanente. A previsão da prerrogativa de veto, baseada no pressuposto e
regra da unanimidade das grandes potências, reflete esta opção político-ju-
rídica dos idealizadores da Carta. A regra presta deferência às realidades
do poder internacional. Uma ação coletiva sob a autoridade da ONU contra
86 SHAW, Malcom. International Law. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 2003, 390-392; VERHOEVEN, Joe.
La reconnaissance international: declin ou renouveau? Annuaire Français de Droit International, v. 39, p.
7-40, 1993, p. 34-37.
87 Veja, e. g., as ponderações feitas em desfavor do referendo na Crimeia, entre elas, a sua incompatibilidade
com a Constituição da Ucrânia, em HILPOLD, P. (2015). Ukraine, Crimea and New International Law:
Balancing International Law with Arguments Drawn from History. Chinese Journal of International Law,
v. 14(2), p. 237–270, 2015, §§ 33-39.
88 Veja UN SECURITY COUNCIL, S/PV.9143, 30 set. 2022. A Rússia vetou a proposta, e China, Índia, Brasil
e Gabão se abstiveram.
78

um Estado agressor normalmente será viável e produzirá efeitos na restau-


ração da paz e segurança internacionais. Contudo, no caso de um membro
permanente, que também é uma potência nuclear, como poderia o Conselho
de Segurança, supondo-se a inexistência do veto, autorizar o uso da força
contra o agressor sem colocar em risco a sobrevivência da humanidade?
Em percuciente análise acerca da matéria, Gross ponderou que a “lista
de infrações passíveis de punição tende a diminuir proporcionalmente ao
crescimento do poderio atômico nas mãos de agressores em potencial.
A repressão é, ela própria, coibida pelo temor”89. Este é precisamente o
desafio atual enfrentado pelo sistema de segurança coletiva.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

89 GROSS, E. As Nações Unidas: Estrutura da paz. Rio de Janeiro: GRD, 1964, p. 20.
4. OS PODERES DA CORTE
INTERNACIONAL DE JUSTIÇA NA
EMISSÃO DE MEDIDAS CAUTELARES
NO CASO DE ALEGAÇÕES DE
GENOCÍDIO ENTRE UCRÂNIA
E FEDERAÇÃO RUSSA
Lucas Carlos Lima
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

1. Introdução

No dia 16 de março de 2022, a Corte Internacional de Justiça (CIJ ou


‘a Corte’), principal órgão judiciário da Organização das Nações Unidas
(ONU), emitiu ordem processual outorgando medidas cautelares (‘provi-
sórias/provisionais/conservatórias’)1 na controvérsia sobre as Alegações
de Genocídio sob a Convenção sobre Prevenção e Punição do Crime de
Genocídio (Ucrânia v. Federação Russa). A ordem é a primeira manifesta-
ção formal da Corte no curso do processo iniciado pela Ucrânia no dia 27
de fevereiro, ocasião na qual este Estado requereu à Corte decisão sobre
a alegação, proferida pela Federação Russa, de que um genocídio estaria
em curso em território ucraniano, o que teria motivado o uso da força por
aquele Estado contra a Ucrânia, bem como solicitou a ordenação de medidas
cautelares para salvaguardar o objeto da demanda. Na decisão da ordem de
medida cautelar, em síntese a CIJ determinou que:

a) A Federação Russa deve suspender imediatamente as operações mili-


tares iniciadas em 24 de fevereiro de 2022 no território da Ucrânia,
por 13 votos a 2;
b) A Federação Russa deve garantir que quaisquer unidades militares
ou armadas irregulares que possam ser por ela dirigidas ou apoiadas,
bem como quaisquer organizações e pessoas que possam estar sujeitas

1 Há alguma discussão sobre a melhor tradução da expressão em inglês “provisional measures” ou em francês
“mesures conservatoires” à língua portuguesa. A expressão “medidas provisórias”, presente na tradução
oficial da Carta da ONU à legislação brasileira (Decreto nº 19.841, de 22 de outubro de 1945) associar-se-ia
às normas exaradas pelo Poder Executivo brasileiro, gerando potencial equívoco com a função. Optou-se
pela opção “medidas cautelares” a fim de aproximar a expressão às figuras processuais brasileiras, dada a
função do instituto no interior do regramento processual da Corte Internacional de Justiça.
80

ao seu controle ou direção, não tomem medidas para promover as


operações militares referidas no ponto (a) acima, por 13 votos a 2;
c) Ambas as Partes devem abster-se de qualquer ação que possa agravar
ou estender a controvérsia perante a Corte ou dificultar sua resolução,
por unanimidade2.

A ordem da Corte avançou alguns passos além da demanda ucraniana3,


a qual se limitava a alegar a ilicitude das operações militares justificadas a
partir da prática de suposto genocídio contra populações de origem russa nas
províncias orientais ucranianas de Donetsk e Lugansk. Ao exortar a Rússia
a garantir a não promoção das operações militares por grupos armados sob
seu controle, bem como ao exigir de ambas as partes a abstenção de ações

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


passíveis de agravar o conflito, a Corte Internacional de Justiça parece ter
procurado estipular medidas condizentes com a natureza complexa da disputa,
não se restringindo à – um tanto estreita – demanda ucraniana.
Deve-se notar que, em comparação com outros pedidos de medidas
cautelares, a resposta da Corte foi excecionalmente célere, o que reafirma o
caráter singular da controvérsia. Embora no passado a Corte tenha emitido
medidas cautelares em menos de 24 horas, em dois casos recentes a ordem
levou pouco mais de dois meses para vir à tona – um deles envolvendo o
Genocídio dos Rohingya, em Mianmar4. No presente caso, menos de vinte
dias desde o depósito da petição inicial foram necessários para que a ordem
de medidas cautelares ganhasse corpo.
O conteúdo da ordem já reverbera nos discursos jurídicos envolvendo o
conflito entre Rússia e Ucrânia e forma o debate internacionalista sobre a lega-
lidade do uso da força na região5. A linguagem adotada pela Corte, sua celeri-
dade, e o coro de algumas opiniões individuais parecem revelar um afinamento
em relação ao seu papel como órgão de solução de controvérsias, mas também

2 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Ordem na Requisição para a Indicação de Medidas Cautelares.


Allegations of Genocide under the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide
(Ucrânia v. Federação Russa), 16 mar. 2022.
3 Ibid.
4 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Ordem na Requisição para a Indicação de Medidas Cautelares.
Application of the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide (Gâmbia v.
Mianmar), 23 jan. 2020. Sobre a decisão, ver PAPA, Maria Irene. La tutela degli interessi collettivi nell’or-
dinanza sulle misure provvisorie nel caso Gambia c. Myanmar. Rivista di diritto internazionale, v. 103, n. 3,
p. 729-755, 2020; FERRARA, Maria. L’ordinanza cautelare della Corte internazionale di giustizia nel caso
Gambia c. Myanmar: la prova dell’intento genocidario tra giurisdizione prima facie e test di plausibilità della
pretesa. Diritti umani e diritto internazionale, v. 14, n. 2, p. 511-529, 2020.
5 Ver, nesse sentido: GREEN, James A; HENDERSON, Christian; RUYS, Tom. Russia’s attack on Ukraine
and the jus ad bellum. Journal on the Use of Force and International Law, v. 9, n. 1, p. 4-30, 2022.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 81

enquanto responsável pela manutenção da paz e segurança internacionais6,


uma função prioritariamente atribuída ao Conselho de Segurança7. Diante de
um conflito armado de grandes proporções e de massivo potencial desestabi-
lizador da paz e segurança internacionais, a Corte prontificou-se a preencher a
posição de clarificadora das normas internacionais pertinentes à disputa, bem
como a traduzir em termos jurídicos, ainda que de modo preliminar, os múltiplos
acontecimentos os quais compuseram o conflito nas últimas semanas.
Esse ensaio dedica-se a explorar os argumentos utilizados pela CIJ ao
emitir sua decisão, bem como sublinhar outras pronúncias, a título de obiter
dicta, as quais merecem destaque pelo seu significado para a construção dos
argumentos jurídicos esgrimidos pelas partes. A tese central aqui esposada é
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

que, apesar de aparentemente ter concedido medidas distintas daquela origi-


nalmente requeridas pela Ucrânia, é possível harmonizar a decisão da Corte
com sua jurisprudência e sua função judicial, em especial na tentativa de
preservar o objeto da controvérsia e não agravamento da disputa. O exame
conduzido partiu da análise empírica não apenas dos documentos primários
apresentados perante a Corte, mas também outros documentos concernentes
à disputa e bibliografia especializada reagindo à sua decisão.
A investigação inicia-se pelo exame da posição ucraniana e da defesa
russa (2), para então enfrentar os argumentos da Corte (3). Algumas reflexões
sobre o significado dessa decisão – certamente histórica – encerram o trabalho,
conjecturando sobre sua relevância para uma observação crítica do papel da
Corte no interior do vasto sistema das Nações Unidas (4).

2. A defesa das partes

Até o presente momento, o andamento do processo na Corte deu-se na


ausência de um time de defesa russo. “Eles não estão aqui, estão no campo de
batalha. É assim que a Rússia resolve suas controvérsias”, reprovou o repre-
sentante da Ucrânia durante as audiências relativas às medidas cautelares. A
Rússia limitou-se a apresentar uma breve defesa escrita8, enquanto a Ucrânia
engajou-se também nos procedimentos orais, aprofundando sua tese.

6 THIRLWAY, Hugh. Peace, Justice and Provisional Measures. In: GAJA, Giorgio; STOUTENBURG, Jenny.
(eds.). Enhancing the Rule of Law through the International Court of Justice. Leiden: Brill, 2014, p. 75-86. Ver
também: AKANDE, Dapo. The role of the International Court of Justice in the Maintenance of International
Peace. African Journal of International and Comparative Law, v. 8, 1996, p. 592.
7 GAJA, Giorgio. Preventing Conflicts between the Court’s Orders on Provisional Measures and Security
Council Resolutions. In: GAJA, G.; STOUTENBURG, J. (eds.). op. cit., p. 87-92.
8 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Document (with annexes) from the Russian Federation setting out
its position regarding the alleged “lack of jurisdiction” of the Court in the case, 7 mar. 2022.
82

Embora a ausência de uma das partes não seja um óbice para a con-
tinuidade do procedimento, a Presidente da Corte, a estadounidense Joan
Donoghue, fez questão de ressaltar o prejuízo desta estratégia processual
para a boa administração da justiça e para a condução bilateral do litígio, na
medida em que a arguição de uma das partes restou bastante prejudicada. Essa
indicação da presidente é relevante e particularmente rara. Não porque o não
aparecimento perante a Corte Internacional de Justiça não esteja já bem esta-
belecido na jurisprudência da Corte9. No caso concreto, ele poderia ter sido
particularmente útil diante da gravidade, urgência e no estabelecimento das
medidas. A manifestação escrita russa, essencialmente contestando a jurisdição
e repisando os argumentos jurídicos oferecidos pelo Kremlin, deixou de se
pronunciar sobre outros pontos importantes da decisão que a Corte teria se

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


beneficiado caso o time de defesa russo tivesse se apresentado.
Não obstante, a Corte considerou ambas as argumentações previamente
à decisão e deliberou ao longo de 9 dias antes de render sua primeira ordem.
Procede-se então ao exame das duas argumentações a fim de evidenciar tanto
os limites da controvérsia quanto as expectativas das partes em relação às
medidas cautelares requisitadas pela Ucrânia.

2.1 A petição ucraniana

A tese central da petição ucraniana orbita ao redor da justificativa ofere-


cida pela Rússia para sua intervenção armada. Segundo a Ucrânia, a alegação
de que um genocídio estaria ocorrendo na região de Donbass não poderia
legitimar o uso da força em seu território, nem justificar o reconhecimento
de novos Estados constituídos a partir de ilícitos – as Repúblicas Populares
de Donetsk e Lugansk.
Em termos materiais, o centro de gravidade do caso é a Convenção para
a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio (“Convenção contra o
Genocídio” ou “CcG”), de 1948. Esse tratado internacional não apenas esta-
belece todas as obrigações as quais os Estados estão submetidos em relação
ao não cometimento de genocídio, sua prevenção e quais condutas podem
configurá-lo, mas também oferece jurisdição à Corte Internacional de Jus-
tiça para decidir sobre controvérsias “relativas à interpretação, aplicação ou
9 Sobre o tema ver THIRLWAY, Hugh. Non-appearance before the International Court of Justice. Cambridge
Studies in International and Comparative Law. Cambridge: Cambridge University Press, 1985; SARMIENTO
LAMUS, A.; ARÉVALO RAMÍREZ, W. Non-appearance before the International Court of Justice and the
Role and Function of Judges ad hoc. The Law & Practice of International Courts and Tribunals, v. 16, n.
3, p. 398-412, 2017; FRY, James. Non-Participation in the International Court of Justice Revisited: Change
or Plus Ça Change? Columbia Journal of Transnational Law, v. 45, n. 1, p. 35-74, 2010; TZENG, Tzeng. A
Strategy of Non-Participation before International Courts and Tribunals. The Law & Practice of International
Courts and Tribunals, v. 19, n. 1, p. 5-27, 2020.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 83

execução da presente Convenção” (Art. IX). Em suma, o tratado dá poder à


Corte de Haia para decidir uma ampla margem de questões relacionadas à
Convenção – mas nem um passo além. Em vista do contexto ainda instável e
corrente no qual a controvérsia se insere, a delimitação das fronteiras dentro
das quais o exercício da competência da Corte se daria suscita questionamen-
tos quanto à possibilidade de “desagregação” da disputa, explorando distintas
bases jurisdicionais – estratégia já mobilizada na esteira dos acontecimentos
envolvendo a Ucrânia e a Rússia na Crimeia em 201410.
Em breve síntese, a Ucrânia construiu seu argumento de maneira inver-
tida. Em vez de afirmar a ocorrência de violações da Convenção contra o
Genocídio, buscou demonstrar que nenhum tipo de genocídio ocorria em solo
ucraniano, sobretudo nas regiões de Lugansk e Donetsk, no momento prece-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

dente ao início das operações militares russas. A partir dessa argumentação,


a pretensão ucraniana recairia na base jurisdicional do art. IX da Convenção
vez que tratar-se-ia de uma controvérsia relativa à “interpretação, aplicação
ou execução da presente Convenção bem como à responsabilidade de um
Estado em matéria de genocídio”.
A estratégia de inversão ucraniana é interessante, vez que este seria
um dos principais – senão o principal – argumento jurídico empregado por
Moscou para justificar o uso da força em território ucraniano. A acusação
asseverou que as alegações russas não foram consubstanciadas por evidên-
cias11, afirmando que relatórios recentes do Alto Comissariado da ONU
para Direitos Humanos não mencionam nenhuma evidência da ocorrência
de genocídio em solo ucraniano12, e arrematou afirmando que as pretensas
justificativas não são mais do que “pretexto para uma guerra de agressão
não provocada”13.
10 “This broad dispute has been disaggregated into a number of discrete legal claims before different international
tribunals. At the inter-state level, Ukraine has brought proceedings against Russia before the International
Court of Justice (ICJ), the European Court of Human Rights (ECtHR), and two tribunals constituted under
Annex VII of the UN Convention on the Law of the Sea (UNCLOS). Five disputes between Ukraine and
Russia have also made their way to the WTO dispute settlement system. With respect to mixed claims (where
the parties are a mix of state and non-state actors), 4,300 individual claims are currently pending before
the ECtHR that all appear related to the Ukraine/Russia dispute, and nine known investor-state arbitrations
have been initiated by Ukrainian investors in Crimea against Russia. Finally, whereas the above claims all
concern the invocation of state responsibility, the Ukraine/Russia dispute has also led to considerations of
individual responsibility under international law. Thus, there is an ongoing preliminary examination into the
situation in Crimea and eastern Ukraine by the Office of the Prosecutor of the International Criminal Court
(ICC)”. HILL-CAWTHORNE, Lawrence. International Litigation and the Disaggregation of Disputes: Ukraine/
Russia as a Case-Study. International & Comparative Law Quarterly, v. 68, n. 4, p. 779-815, 2019.
11 CORTE INTERNACIONAL D EJUSTIÇA, 2022. Op cit. (nota 3).
12 ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA DIREITOS HUMANOS. Report on the Human Rights
Situation in Ukraine (1 February – 31 July 2021), 23 set. 2021, par. 21; ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES
UNIDAS PARA DIREITOS HUMANOS. Human Rights Monitoring Mission in Ukraine, Update on the Human
Rights Situation in Ukraine (1 August – 31 October 2021), 30 nov. 2021, p. 1.
13 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, 2022. Op cit. (nota 3).
84

Contudo, ao se examinar quais foram os pedidos nas medidas caute-


lares , verifica-se que a Ucrânia não demandava apenas uma declaração
14

qualificando a alegação russa como ilegal e factualmente infundada. Segundo


os conselheiros jurídicos do time ucraniano, o uso da Convenção contra o
Genocídio pela Rússia poderia ser qualificado como “de má fé”, de modo que
todo ato cometido sob essa alegação seria também ilícito por contaminação,
erodindo o objeto e o propósito da Convenção, assim como apequenando o
voto solene das partes de prevenir e punir o crime de genocídio15. A Ucrânia
requereu, por consequência, a cessação das ações militares russas relacionadas
à alegação de genocídio, assim como a reparação e garantias de não repetição
contra os atos cometidos sob a falsa alegação de genocídio em território ucra-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


niano e o reconhecimento da independência das duas entidades separatistas
nos oblasts orientais do país.

2.2 A defesa russa

Embora a Rússia não tenha enviado um time de defesa à Haia, a Corte


Internacional de Justiça disponibilizou em seu website uma manifestação do
governo de Moscou datada de 7 de março de 2022. Tratava-se da mais articulada
defesa jurídica russa concernente ao conflito apresentada até o momento – além
do discurso do Presidente Vladimir Putin de 24 de fevereiro de 2022. Embora
circunscrita aos limites da disputa específica perante a Corte – cujo centro de
gravidade é a Convenção contra o Genocídio de 1948 – há na manifestação
argumentos que merecem ser examinados, vez que revelam o ímpeto de se
revestir as ações russas com pretensões de legalidade e legitimidade.
A defesa russa parte do pressuposto de que a Corte não teria jurisdição
sobre a controvérsia, uma vez que aquela não se trataria, na realidade, de uma
disputa envolvendo a Convenção contra o Genocídio. Segundo Moscou, o caso
seria apenas uma tentativa mascarada de exigir da Corte uma decisão sobre
questões referentes à legitimidade do uso da força pela Rússia na Ucrânia, e
sobre a declaração de independência das províncias de Luhansk e Donetsk.
Visto que a competência da Corte para decidir o caso se assenta unicamente
sobre a Convenção, o Kremlin acredita não existir base jurisdicional em razão
da matéria, de maneira que o caso deveria ser dispensado.
No entanto, a manifestação russa revela mais do que apenas uma defesa
puramente “reativa”. Em paralelo, Moscou parece diminuir o peso dado às ale-
gações de genocídio feitas no discurso do Presidente Putin em 24 de fevereiro,
ao tentar avançar a (difícil) tese de que a mera referência ao termo “genocídio”
14 Ibid.
15 Ibid.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 85

não se confunde com a invocação da Convenção discutida. Ao contrário, a


verdadeira justificativa para o uso da força pela Rússia encontrar-se-ia na
ideia de legítima defesa coletiva, substanciada no artigo 51 de outro tratado,
a Carta da ONU – além de se basear em uma frágil menção à ideia alargada
de legítima defesa preventiva na tentativa de proteger os interesses russos e
a própria existência do Estado russo.
Em teoria, o uso da força por convite constituiria uma defesa mais pala-
tável, vez que existe alguma prática estatal (discutível)16 a respeito, dentro
da lógica da legítima defesa coletiva17. Não obstante, o grave problema desta
tese é o fato de basear-se na tênue autoridade de supostos Estados precaria-
mente constituídos e em sua competência para apresentar convites de autoria
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

de suas débeis autoridades, uma vez que as entidades de Donetsk e Lugansk


foram reconhecidas até então somente pela Rússia, enquanto a comunidade
internacional rechaçou esse reconhecimento por meio de Resolução da ONU18.
Ainda que o Parlamento russo tenha ratificado tratados de assistência mútua
com as nascentes repúblicas, tais acordos teriam apenas efeitos inter partes
e deveriam estar submetidos às lógicas das regras peremptórias do direito
internacional relativas ao uso da força. O Conselho de Segurança já notou,
em circunstâncias semelhantes, serem inválidos os tratados firmados entre um
Estado e uma entidade ilicitamente constituída – como parte constituinte da
obrigação costumeira de não reconhecimento de atos ilícitos internacionais19.
Por consequência, a tese do uso da força via convite parece, em primeira
análise, também não prosperar20. No entanto, a Corte não se manifestou dire-
tamente – e não deveria fazê-lo – sobre a legalidade da invasão russa.

3. A decisão da corte

A emissão de medidas cautelares nos termos do artigo 41 do Estatuto


é condicionada pelo preenchimento de alguns requisitos desenvolvidos na

16 PETERS, Anne. Intervention by Invitation: Impulses from the Max Planck Trialogues on the Law of Peace
and War. Zeitschrift für ausländisches öffentliches Recht und Völkerrecht, v. 79, p. 639-641, 2017. Ver
também: VISSER, Laura. May the Force be With You: The Legal Classification of Intervention by Invitation.
Netherlands International Law Review, v. 66, p. 21-65, 2019.
17 VISSER, Laura. Intervention by Invitation and Collective Self-Defence: Two Sides of the Same Coin? Journal
on the Use of Force and International Law, v. 7, p. 292-316, 2020.
18 ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolução A/ES-11/L.1, Aggression against Ukraine, 1
mar. 2022.
19 CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU. Resolução S/RES/301, 20 out. 1971; CONSELHO DE SEGURANÇA
DA ONU. Resolução S/RES/476, 30 jun. 1980; CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU. Resolução 662. S/
RES/662, 9 ago. 1990.
20 Ver, nesse sentido: GREEN, James; HENDERSON, Christian; RUYS, Tom. Russia’s attack on Ukraine and
the jus ad bellum. Journal on the Use of Force and International Law, v. 9, n.1, p. 4-30, 2022.
86

própria jurisprudência da Corte21. Estes requisitos podem ser sumarizados


em (a) existência de jurisdição prima facie; (b) plausibilidade dos direitos
e sua conexão com as medidas requeridas e (c) o risco de dano irreparável
e urgência. A formulação desses requisitos por vezes pode variar22, e em
determinadas circunstâncias, a depender dos argumentos solevados, a Corte
se sente mais ou menos inclinada a deter-se sobre algumas condicionantes
como, por exemplo, a existência de uma controvérsia23.
No que concerne à jurisdição prima facie, ou seja, a verificação preli-
minar de que a Corte possuiria jurisdição para decidir o mérito do caso, a
Corte basicamente concentrou-se em dois argumentos: a existência de uma
controvérsia, e a base para a jurisdição, essencialmente centrada no artigo IX

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


da Convenção contra o Genocídio. Este raciocínio provou-se fundamental
para a decisão da Corte, vez que a defesa da Rússia se sustentava sobre a
inexistência de uma controvérsia em relação à Convenção contra o Genocí-
dio. Para superar esta barreira processual, a Corte identificou uma série de
declarações russas as quais alegavam a prática de genocídio em território
ucraniano. Em seguida, adotou uma postura bastante liberal em relação à
necessidade de expressa menção à Convenção, e compreendeu que bastaria
que as trocas entre as partes se referissem ao tema do tratado ou da cláusula
jurisdicional (para. 44) para que uma disputa sob a Convenção pudesse ser
configurada prima facie. O reasoning da Corte foi significativamente permis-
sivo se comparado, por exemplo, à indicação de medidas cautelares no caso
21 ROSENNE, Shabtai. Provisional Measures in International Law: the International Court of Justice and the
International Tribunal for the Law of the Sea. Oxford: Oxford University Press, 2005; LE FLOCH, Guillaume.
Requirements for the Issuance of Provisional Measures, In: PALOMBINO, Fulvio Maria et al. Provisional
Measures Issued by International Courts and Tribunals. Haia: Springer, 2021, p. 19-54; MAROTTI, Loris. A
“Game of Give and Take”: The ITLOS, the ICJ and Provisional Measures. In: PALOMBINO, F. M. Op. cit., p.
131-146; FORLATI, Serena. The Adoption of Provisional Measures under Article 41 of the Statute. In: FOR-
LATI, Serena (ed.) The International Court of Justice: An Arbitral Tribunal or a Judicial Body? Haia: Springer,
p. 85-100, 2014; GAJA, Giorgio. Requesting the ICJ to Revoke or Modify Provisional Measures. The Law and
Practice of International Courts and Tribunals, v. 14, pp. 1-6, 2015; MILES, Cameron. Provisional Measures
before International Courts and Tribunals. New York: Cambridge University Press, 2017; PALCHETTI, Paolo.
The Power of the International Court of Justice to Indicate Provisional Measures to Prevent the Aggravation
of a Dispute. Leiden Journal of International Law, v. 21, p. 623-642, 2008; PALCHETTI, Paolo. Responsibility
for Breach of Provisional Measures of the ICJ: Between Protection of the Rights of the Parties and Respect
for the Judicial Function. Rivista di Diritto Internazionale, v. 100, p. 5-22, 2017.
22 OELLERS-FRAHM, Karin; ZIMMERMANN, Andreas. Part Three Statute of the International Court of Justice,
Ch. III Procedure, Article 41. In: OELLERS-FRAHM, Karin et al. (eds.). The Statute of the International Court
of Justice: A Commentary, 3. ed. Oxford: Oxford Commentaries on International Law, 2019. Ver também:
LE FLOCH, 2021, Op. cit. (nota 21).
23 BONAFÉ, Beatrice. Establishing the Existence of a Dispute before the International Court of Justice:
Drawbacks and Implications. Questions of International Law, Zoom Out, v. 45, p. 3-32, 2017. Ver também:
MCINTYRE, Juliette. Put on Notice: The Role of the Dispute Requirement in Assessing the Jurisdiction
and Admissibility Before the International Court. Melbourne Journal of International Law, v. 19, n. 2, p.
546-585, 2018.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 87

do Genocídio Rohingya. Neste caso, a Corte estabeleceu a existência de uma


disputa a partir de trocas verbais entre as duas partes as quais mencionavam
explicitamente a Convenção do Genocídio e alegavam claramente a suposta
violação por Mianmar de obrigações dela decorrentes24.
O caso do Desarmamento Nuclear, em 2015, sublinhou a importância da
existência de uma controvérsia para que a Corte exerça sua jurisdição25. No
caso, a Corte formulou dois requisitos à aferição da existência de uma disputa: a
consciência da parte demandada sobre a existência da disputa26 e a existência da
disputa no momento de submissão da petição inicial27. Na presente controvérsia,
a Corte parece ter tomado como suficientes as trocas entre as partes para reco-
nhecer que a Rússia teria conhecimento da existência da disputa no momento
de sua submissão – diferentemente do caso das Obrigações Concernentes à
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Negociações relacionadas à Cessação da Corrida Armamentista Nuclear e ao


Desarmamento Nuclear, em que as manifestações das Ilhas Marshall sobre a
conduta dos Estados detentores de armas nucleares foram lidas como excessi-
vamente genéricas. Quanto ao segundo critério, a Corte parece ter reconhecido
a existência da disputa no momento da submissão com base nas evidências
factuais fornecidas pela resolução da AGNU, como explorado logo adiante, e
na troca diplomática bilateral entre as duas partes. Beatrice Bonafé nota que o
fato de que as trocas sejam públicas ou privadas não parece fazer diferença para
a delimitação de uma disputa diante da Corte, visto que a mesma já exerceu
sua jurisdição sobre controvérsias criadas a partir de pronúncias unilaterais e
de amplo conhecimento – e.g. Nicarágua v. Colômbia28.
Toda a lógica que rege o poder da Corte em emitir medidas cautelares
baseia-se na proteção dos direitos sobre cuja violação ela decidirá a respeito
no mérito – daí a necessidade de investigar a plausibilidade de tais direitos29,
24 BECKER, Michael. The Plight of the Rohingya: Genocide Allegations and Provisional Measures in the
Gambia v. Myanmar at the International Court of Justice. Melbourne Journal of International Law, v. 21,
n. 2, p. 428-449, 2020.
25 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Decisão. Obligations concerning Negotiations relating to Cessation
of the Nuclear Arms Race and to Nuclear Disarmament (Ilhas Marshall v. Reino Unido), 5 out. 2016. Sobre
a questão ver LIMA, Lucas Carlos. Da relevância dos casos do desarmamento nuclear perante a Corte
Internacional de Justiça. Revista de Direito Internacional, v. 14, p. 203-216, 2018.
26 Sobre este requisito, ver: MAROTTI, Loris. Establishing the Existence of a Dispute Before the International
Court of Justice: Glimpses of Flexibility Within Formalism? Questions of International Law, Zoom Out, v. 45,
p. 77-88, 2017. Ver também: MIRON, Alina. Establishing the Existence of a Dispute before the International
Court of Justice: Between Formalism and Verbalism. Questions of International Law, Zoom Out, v. 45, p.
43-51, 2017.
27 BONAFÉ, Beatrice. Establishing the Existence of a Dispute before the International Court of Justice: Dra-
wbacks and Implications. Questions of International Law, Zoom Out, v. 45, p. 3-32, 2017, p. 6.
28 Ibid., p. 10.
29 MAROTTI, Loris. Plausibilità dei Diritti e Autonomia del Regime di Responsabilità nella Recente Giurisprudenza
della Corte Internazionale di Giustizia in tema di Misure Cautelari. Note i Comentti. Rivista di Diritto Internazio-
nale, n. 3, a. 47, 2014. Ver também: MILES, Cameron. Provisional Measures and the ‘New’ Plausibility in the
88

um argumento de desenvolvimento bastante recente na jurisprudência da Corte


voltado para compreender a ligação existente entre o sujeito detentor de um deter-
minado direito e o direito em si, ainda que fora da disputa, de maneira abstrata.
É notável que a plausibilidade se trata de um elemento complexo desenvolvido
pela jurisprudência da Corte, tal qual demonstrado por Lando:

A plausibilidade jurídica pode ser subdividida em dois componentes. A ava-


liação de que, in abstracto, um Estado requerente tem um direito de acordo
com o direito internacional exige que a Corte estabeleça que o direito em
questão pode ter uma base legal, bem como que o Estado pode deter tal
direito... No entanto, já que reconhecer que um Estado detém um direito de
acordo com o direito internacional implica necessariamente uma determina-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


ção prévia de que tal direito possa existir in abstracto, ambos os componentes
devem ser subsumidos sob o único título de plausibilidade jurídica30.

Se inicialmente a Corte adotou um limiar relativamente baixo para a afe-


rição da plausibilidade – limitando-se a verificar a existência da norma alegada
pela parte demandante no direito internacional – a partir do caso Imunidades
e Procedimentos Criminais o limiar voltou-se para reconhecer “se a alega-
ção de que a conduta do Estado demandado violou os direitos reivindicados
pelo Estado requerente é plausível”31. Pode-se questionar se este padrão foi
seguido na presente controvérsia com o máximo de rigor possível, mas fato
é que a Corte preocupou-se em estabelecer alguma ligação, ainda que tênue
entre o uso da força por parte da Rússia e a pretensa violação da Convenção
do Genocídio para fins de aferição da plausibilidade.
O exame de plausibilidade não comporta uma dimensão qualitativa, na
qual importaria verificar a gravidade da pretensa violação. Em sua ordem de
medidas cautelares no caso Gâmbia v. Mianmar, a Corte rejeitou o argumento
apresentado pela parte demandada de que seria necessário, em função da
gravidade das acusações, provar um “alto grau de intenção delituosa para se
cometer o crime de genocídio”, e se satisfez com a relação plausível entre as
alegações da Gâmbia e os direitos protegidos pela Convenção e pretensamente
violados por Mianmar, em especial a incitação à prática de genocídio32. Essa
determinação não agradou a todos os juízes, pelo menos um dentre os quais

Jurisprudence of the International Court of Justice. The British Yearbook of International Law, 2018 e KOLB,
Robert. Digging Deeper into the “Plausibility of Rights” Criterion in the Provisional Measures Jurisprudence
of the ICJ. The Law & Practice of International Courts and Tribunals, v. 19, n. 2, p. 365-387, 2020.
30 LANDO, Massimo. Plausibility in the Provisional Measures Jurisprudence of the International Court of Justice.
Leiden Journal of International Law, v. 31, n. 1, p. 641-668, 2018. p. 651.
31 Ibid., p. 650.
32 BECKER, M. Op. cit. (nota 33), p. 9.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 89

notou o escopo excessivamente amplo deste requisito33, e também sofreu


críticas de especialistas34. Já na presente controvérsia, o raciocínio da Corte
gravitou em torno unicamente da obrigação do Artigo I da Convenção contra
o Genocídio, segundo a qual Estados devem prevenir e punir aquele crime
de boa-fé35. A Corte também se satisfez com a relação plausível entre as
alegações ucranianas e o dispositivo mencionado acima.
Contudo, a Corte recordou que a prevenção e punição do genocídio pode
se dar por diversos meios institucionais. Ilustrativamente, sua jurisprudência
no caso Genocídio Bósnio (Bósnia e Herzegovina v. Sérvia e Montenegro)
afirmou que “todo Estado só pode agir dentro dos limites permitidos pelo
direito internacional” (para 57)36. Aqui, a Corte preferiu não adentrar numa
afirmação de que qualquer ato russo seria contrário aos limites do direito inter-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

nacional, limitando-se a uma breve observação sobre os princípios da Carta


(Art. 1º) e asseverou que “a Corte não possui provas substanciando a alegação
da Federação Russa que genocídio ocorreu no território ucraniano” (para.
59). Ainda assim, a Corte notou de forma incisiva que, à luz dos objetivos e
propósitos da Convenção para a prevenção e punição do crime de genocídio,
é duvidosa a existência de uma autorização para uso da força unilateral com
o objetivo de prevenir a prática daquele ilícito. Logo, em conclusão, a Corte
indicou que “a Ucrânia tem o direito plausível de não ser submetida a ope-
rações militares da Federação Russa com o objetivo de prevenir e punir um
suposto genocídio no seu território” (para. 60)37.
Para comprovar a urgência e possibilidade de dano irreparável aos direitos
plausíveis da Ucrânia, a Corte deu ênfase especial à Resolução da Assembleia
Geral de 2 de março de 2022; em especial às considerações da Assembleia
sobre as mortes de civis, a crise humanitária, ataques a alvos não militares
como hospitais e grupos vulneráveis38 É particularmente digno de nota que
33 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Opinião Separada do Juiz Ad Hoc Kress. Application of the Con-
vention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide (Gâmbia v. Mianmar), 23 jan. 2020.
34 “The Court did not explain whether the plausibility requirement was met because The Gambia alleged facts that,
if proven, would be capable of demonstrating violations of the Genocide Convention by Myanmar, or whether it
was met because those factual allegations had some evidentiary support and were not manifestly unfounded. Nor
did the Court clarify the extent to which the rights or defences of the state against whom provisional measures
are sought might be part of the plausibility analysis”. BECKER, M. Op. cit. (nota 33).
35 Talvez um certo simplismo tenha perpassado a análise da Corte no que concerne ao cumprimento de tais
obrigações presentes no Art. I da Convenção. Sobre o caráter complexo de tais obrigações, ver: LONGO-
BARDO, Marco. L’Obbligo di Prevenzione del Genocidio i la Distinzione fra Obblighi di Condotta e Obblighi
di Risultato. Diritti Umani e Diritto Internazionale, v. 2, p. 237-256, 2019.
36 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Decisão. Case Concerning Application of the Convention on the
Prevention and Punishment of the Crime of Genocide (Bósnia e Herzergovina v. Sérvia e Montenegro), 26
fev. 2007, para. 57.
37 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Op. cit. (nota 3).
38 ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolução A/ES-11/L.1, Aggression against Ukraine, 1
mar. 2022.
90

a Corte use como fundamento da urgência outro documento do sistema ONU


lidando com o conflito. Se ocasionalmente há quem diminua o valor jurídico
de uma resolução da Assembleia Geral, no caso em tela a resolução provou-se
fonte importante de legitimidade das ações da Corte, bem como ancoradouro
no requisito da urgência e dano irreparável.
Em sua jurisprudência anterior, a Corte notou não ser necessário que uma
violação do instrumento no qual está inserida a cláusula compromissória tenha
ocorrido, mas tão somente que se comprove o “risco real e iminente” de uma
violação. Baseando-se também em uma resolução da Assembleia Geral, a Corte
afirmou em 2019 que o povo Rohingya permanecia sob risco de sofrer um “pre-
juízo irreparável” a partir das violações dos direitos alegadas pela Gâmbia, o
que justificaria a indicação das medidas cautelares39. Nesse sentido, a indicação

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


das medidas no caso parece voltar-se não apenas para as violações já cometidas
no teatro do conflito, mas também para aquelas de caráter continuado ou em
vias de ocorrer na hipótese de um agravamento do mesmo.
Preenchidos os requisitos processuais para a emissão de medidas, a Corte
então tratou de defini-las, recordando sua jurisprudência segundo a qual não
necessariamente está as medidas exortadas devem ser idênticas às requeridas
pela parte demandante. Este foi o caso, porquanto a Corte determinou medidas
mais amplas – e decisivas – do que aquelas requeridas pela Ucrânia.

4. Como ler a decisão? Ultra vires ou manutenção da paz?

Acusada no passado de silêncio diante de graves situações, de inércia


perante as grandes potências e até mesmo de esquivar-se em argumentos
processuais, a decisão de medidas cautelares da Corte Internacional de Justiça
revela uma Corte decidida a desaprovar a operação militar russa. A Corte
reforçou o fato de estar “profundamente preocupada com o uso da força pela
Federação Russa na Ucrânia, o que levanta questões muito sérias de direito
internacional” (para. 18)40.
Sabe-se quais são os riscos envolvidos na exortação de decisões particu-
larmente duras contra Estados, e a Corte tem em mente que o seu cumprimento
– especialmente em caráter preliminar – depende quase que exclusivamente do
Estado sobre o qual as medidas cautelares são impostas. O recurso ao Conselho
de Segurança, previsto no Estatuto da Corte no caso de descumprimento de
decisões, provavelmente encontraria as mesmas barreiras políticas que hoje
entravam o órgão para uma resolução institucional. O risco de desrespeito à
medida cautelar é alto enquanto um acordo não for alcançado pelas partes.
39 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Op. cit. (nota 4).
40 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Op. cit. (nota 3).
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 91

Ainda assim, a Corte optou por ultrapassar o pedido ucraniano, não conec-
tando a suspensão das atividades militares às alegações de genocídio. Trata-se
de uma postura notadamente ousada se comparada com aquela adotada pela
Corte de 2019, a qual estipulou medidas provisionais mais tímidas do que
aquelas requeridas pela Gâmbia41.
As razões pelas quais a Corte elegeu esta postura são bastante evidentes.
Um comportamento mais hesitante bastaria à Rússia para esta levar adiante sua
estratégia de alegar a legalidade do uso da força sem conexão com a Convenção
do Genocídio (o que apareceu em sua manifestação, mas também na curiosa
declaração do Presidium do Ramo Russo da International Law Association) sob
risco de frustrar a disputa42. A estratégia da Corte de conceder medidas mais
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

amplas, talvez criticável no vocabulário do rigorismo processual, provou-se


bem-vinda para a finalidade última de acrescentar adicional camada de juridi-
cidade ao conflito e defender o objeto da controvérsia a ser adjudicado na fase
de mérito – razão de ser do instrumento das medidas cautelares43.
Esse debate aparece nas entrelinhas das opiniões individuais dos juízes.
Dentre os juízes que votaram contra a ordem, o juiz russo Gevorgian enfa-
tizou em sua opinião que as razões as quais levaram ao seu dissenso parcial
eram firmadas “puramente por um fundamento jurídico substancial”, e seguiu
ao afirmar que a disputa apresentada pela Ucrânia não teria como objeto ou
“matéria” nenhum tema regido pela Convenção contra o Genocídio. Segundo
ele, a demanda ucraniana estaria relacionada ao uso da força, o qual não cons-
tituiria por si só um ato de genocídio, de acordo com a própria jurisprudência
da Corte44. Alegando que a Corte já autolimitou afastamentos de sua “jurispru-
dência constante” exceto sob “razões muito particulares”, o juiz russo afirmou
que a ausência de base de jurisdição em razão da matéria comprometeria o
exercício da competência da Corte45. Encerrou apontando seu ceticismo em
relação ao argumento ucraniano de que a Convenção resguardaria um direito
a “não ser submetido a operações militares de outro Estado em abuso do Art. 1
da Convenção”46. Trata-se de uma argumentação alternativa, a qual se choca
com o fato de que a Ucrânia efetivamente provou a relação entre o uso da
41 BECKER, M. Op. cit. (nota 33).
42 INTERNATIONAL LAW ASSOCIATION. Russian Branch of the International Law Association. Statement
of the Presidium of the Russian Association of International Law.
43 MILES, Cameron. Purpose of Provisional Measures. In: MILES, Cameron (ed.). Provisional Measures Before
International Courts and Tribunals. New York: Cambridge University Press, p. 174-224, 2017.
44 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Ordem na Requisição para a Indicação de Medidas Cautelares.
Legality of Use of Force (Iugoslávia v. Bélgica), 2 jun. 1999, para. 38.
45 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Declaração do Vice-Presidente Gevorgian. Allegations of Genocide
under the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide (Ucrânia v. Federação
Russa), 16 mar. 2022.
46 Ibid.
92

força pela Rússia e a Convenção, bem como desconsidera a possibilidade de


que a ênfase seja assentada sobre o requisito de “urgência” para a concessão
de medidas cautelares, o que implicaria em uma flexibilização das demais
condições, incluindo a jurisdição prima facie.
Inclusive, parece ter sido esta a justificativa central sobre a qual se funda
a ordem da Corte. Devido a urgência da situação revelada pela Resolução
de 2 de março da AGNU, seria possível afirmar que a exigência de plausibi-
lidade dos direitos reivindicados poderia ser atenuada, havendo indicativos
de jurisdição prima facie. Ou seja, em vista de algum grau de jurisdição em
razão da matéria, a urgência e a possibilidade de dano irreparável foram
colocadas em ênfase, razão que explicaria a atitude da Corte para a concessão
de medidas cautelares.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


No entanto, a questão da dubiedade dos argumentos da Corte não insurgiu
apenas nos votos contrários. O juiz Bennouna registrou sentir-se compelido
a votar com a maioria, diante da situação trágica na Ucrânia, mas que não se
sentia convencido pelo argumento de que a Convenção do Genocídio pode-
ria ser usada de tal forma pela parte requerente47. Já o juiz ad hoc Daudet
endossou substancialmente a ordem, e criticou o terceiro ponto do dispositivo,
indicando que as medidas deveriam ser apenas direcionadas à Rússia, dada
a agressão caracterizada pela Assembleia Geral48. Apenas o juiz Robinson
tentou explicar a relação entre a medida concedida e os pedidos, enfatizando
a necessidade de não agravamento da controvérsia, uma tendência geral nas
medidas cautelares ordenadas pela Corte49.
É possível ler nas entrelinhas das frases cuidadosamente escolhidas pela
Corte e nas opiniões individuais mais mensagens do que uma simples ordem
de medidas provisórias poderia decretar. Apesar disso, tais argumentos não
foram suficientes para derrubar o caso prima facie. Trata-se de problemas
jurisdicionais menores e provisórios. Todas essas questões serão muito pro-
vavelmente levantadas no julgamento de mérito ou em objeções preliminares
à jurisdição da Corte. O esmero da diplomacia de Moscou diante dos casos
apresentados à Corte sempre foi alto. Seu engajamento nesta disputa será
um significativo indício de quanto a Rússia está ainda integrada ao sistema
judicial da ONU.
47 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Declaração do Juiz Bennouna. Allegations of Genocide under the
Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide (Ucrânia v. Federação Russa),
16 mar. 2022.
48 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Declaração do Juiz Daudet. Allegations of Genocide under the
Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide (Ucrânia v. Federação Russa),
16 mar. 2022.
49 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Opinião Separada do Juiz Robinson. Allegations of Genocide
under the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide (Ucrânia v. Federação
Russa), 16 mar. 2022. Ver também: PALCHETTI, P. Op. cit. (nota 22).
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 93

Resta uma conclusão à qual perpassa toda a ordem da Corte: a aguardada


manifestação do principal órgão judicial da ONU contribui, em termos jurí-
dicos, para solapar uma pretensa defesa de atos ilegítimos de uso da força os
quais ocorrem em território ucraniano no tempo presente. Ao mesmo tempo,
a manifestação faz com que a Corte se una às vozes que clamam o fim do
conflito e a restauração da paz e segurança internacionais na Ucrânia.

5. Desafios do mérito

Se é que é possível admitir que a Corte mobiliza algum grau de livre-arbí-


trio ao julgar as disputas a ela apresentadas, não se pode negar o brilhantismo
da estratégia proposta pelo tribunal ao expedir sua primeira Ordem. Ciente do
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

altíssimo risco de não cumprimento de suas medidas cautelares, bem como da


fragilidade da base jurisdicional em razão da matéria proposta pela Ucrânia,
a Corte exortou três medidas abrangentes e assertivas, cujo não cumprimento
inevitavelmente acarretaria responsabilidade internacional à Rússia – visto que,
desde a decisão da Corte em LaGrand, as medidas cautelares possuem caráter
obrigatório50. Dessa maneira, embora as demandas principais apresentadas pela
Ucrânia talvez restem sem julgamento, a responsabilidade pelo descumprimento
das medidas cautelares seria contemplado. Motivada ou não pela imensa pres-
são política advinda dos mais diferentes agentes, é verdade que a Corte buscou
sopesar a fiabilidade de sua função judicial com o clamor por justiça que faz
desta controvérsia uma disputa, ao mínimo, singular.
O destaque cabe à ordem de cessação do uso da força a qual promete, se
descumprida, impor grave responsabilidade à Rússia. A jurisprudência recente
da Corte, inclusive, corrobora no sentido de estabelecer a responsabilidade
internacional a partir da violação de obrigações de cessação impostas por
medidas cautelares51.
Por fim, uma das grandes preocupações relativas a esta estratégia de
condução processual trata-se da possível perda do objeto do litígio quando
este atingir a fase de mérito, vez que a Rússia parece abandonar o discurso de
violação da Convenção contra o Genocídio em prol da exortação da legítima
defesa coletiva, nos termos da Carta da ONU. Nessa hipótese, as medidas cau-
telares impostas pela Corte perderiam sua razão de ser, e a ausência de objeto
50 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Decisão. LaGrand (Alemanha v. Estados Unidos), 27 jun. 2001.
51 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Decisão. Certain Activities Carried Out by Nicaragua in the Border
Area (Costa Rica v. Nicaragua) and Construction of a Road in Costa Rica along the San Juan River (Nica-
ragua v. Costa Rica), Judgment, I.C.J. Reports 2015, p. 665: “The Court [...] (3) Unanimously, Finds that, by
excavating two caños in 2013 and establishing a military presence in the disputed territory, Nicaragua has
breached the obligations incumbent upon it under the Order indicating provisional measures issued by the
Court on 8 March 2011”.
94

inviabilizaria uma decisão de mérito. A associação clara entre a Convenção


contra o Genocídio e a presente disputa foi um dos mecanismos mobilizados
pela Corte para evitar este desfecho.

6. Conclusões

A Ordem de Medidas Cautelares expedida pela Corte Internacional de


Justiça é o primeiro passo na saga judicial que pretende abarcar um aspecto
jurídico específico do conflito entre Rússia e Ucrânia, a saber, a pretensa vio-
lação da Convenção contra o Genocídio advinda das falsas alegações russas de
que um genocídio estaria em curso na Ucrânia, seguida da decisão de utilizar
a força contra este Estado. Frustrada pelo alto risco de descumprimento, a

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Ordem foi ousada em apresentar medidas mais abrangentes do que aquelas
requisitadas pela Ucrânia.
Além disso, a Ordem contou com exímio exercício judicial da Corte, a
qual enriqueceu sua jurisprudência relativa às condições para exortação de
medidas cautelares, em particular no que diz respeito à existência de uma
controvérsia e ao requisito de plausibilidade dos direitos – temas os quais já
se encontravam na ordem do dia nas últimas duas décadas. Contribuição à
própria Corte? Indubitável. Resta saber sua efetividade na proteção do objeto
deste complexo litígio, o qual aguarda ainda novas pronúncias.
5. A ATUAÇÃO DO CONSELHO DE
SEGURANÇA E DA ASSEMBLEIA
GERAL DA ONU NA RESTAURAÇÃO
DA PAZ NA UCRÂNIA
Francisco Gaspar de Lima Junior
Heverton Felinto Pedrosa de Mélo

1. Introdução
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

No início de 2022 a Rússia encaminhou suas tropas à fronteira da Ucrâ-


nia, quando no dia 24 de fevereiro do mesmo ano o presidente russo, Vladimir
Putin, autorizou a invasão do território ucraniano, que se caracterizou, em
termos operacionais, como uma ofensiva militar numa escala sem precedentes
na Europa desde a invasão da Checoslováquia em 19681. Cumpre ressaltar
que, apenas nos dois primeiros dias da invasão, mais de trezentos mil de civis
já haviam cruzado as fronteiras, ao passo que com o decorrer das invasões,
já em setembro de 2022, o número de pessoas que haviam fugido da Ucrânia
superou o quantitativo de seis milhões, em sua maioria dirigindo-se para os
Estados-membros da União Europeia através das fronteiras com Polônia,
Eslováquia, Hungria e Romênia. Configurando, assim, uma tragédia huma-
nitária de dimensões comparáveis às grandes guerras globais.
Em termos jurídicos, o conflito armado iniciado pela Federação Russa con-
tra a Ucrânia representa uma flagrante violação da Carta da ONU de 1945, cuja
pedra fundamental é o artigo 2º, § 4º: a proibição de usar força militar nas rela-
ções internacionais. Prevendo que não sempre será respeitado, a Carta da ONU
estabelece um complexo sistema de segurança coletiva para não somente pre-
venir, mas também poder reagir a tais rupturas da paz internacional. Para tanto,
o Capítulo VII dota o Conselho de Segurança (CS) com atribuições especiais,
que incluem até a tomada de sanções militares contra agressores. No entanto,
é notório que essa responsabilidade frequentemente não possa ser exercida de
acordo com as necessidades da comunidade internacional em virtude do poder
de veto dos cinco Estados permanentes no CS. Nessas situações, pergunta-se
qual o papel que possa ser desempenhado pela Assembleia Geral (AG) como
órgão representando todos os 193 Estados-membros da ONU.

1 REIS, Bruno Cardoso. Da invasão de Putin à uma revolução estratégica. IDN Brief, n. 40 (18 mar. 2022). Dis-
ponível em: https://www.idn.gov.pt/pt/publicacoes/idnbrief/Documents/2022/IDN_brief_mar%C3%A7o_2022.
pdf. Acesso em: 25 abr. 2023.
96

Essa análise propõe-se a examinar a atuação desses dois órgãos princi-


pais da ONU no contexto da atual guerra na Ucrânia2. Para tanto, parte de
uma breve descrição das suas funções e atribuições previstas pela Carta da
ONU, para posteriormente apresentar e comentar as principais resoluções e
declarações que foram tomadas por eles até fevereiro de 2023.

2. O Conselho de Segurança da ONU

Por força do artigo 24, § 1º, da Carta da ONU, os quase duzentos Esta-
dos-membros da organização mundial “conferem ao Conselho de Segurança
a principal responsabilidade na manutenção da paz e da segurança interna-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


cionais, e concordam em que no cumprimento dos deveres impostos por essa
responsabilidade o Conselho de Segurança aja em nome deles”. Ao poder
cumprir essa missão delicada, que frequentemente exige intervir nas esferas
soberanas de Estados, o Conselho foi dotado com funções e atribuições espe-
ciais que diferem substancialmente daquelas da AG da ONU.

2.1 Funções e atribuições

Embora essas funções e atribuições não sejam restritas àquelas previs-


tas pelo Capítulo VII da Carta da ONU (artigos 39 a 51), trata-se do mais
importante no que se refere à possível tomada de medidas coercitivas para
prevenir ou restaurar a paz e a segurança internacionais em qualquer momento
e em qualquer “canto do mundo”. Mais concretamente, o CS pode, após ter
determinado “a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou ato
de agressão”, de acordo com o artigo 39 da Carta da ONU, decidir sobre
sanções militares e não militares, previstas nos artigos 41 e 42. Segundo o
artigo 25 da Carta da ONU, essas decisões têm efeitos vinculantes para todos
os Estados-membros da ONU3. Portanto, o CS, que é composto por, ao todo,
15 Estados4, está teoricamente autorizado para impor uma série de medidas
coercitivas, entre outras, embargos de armas a partes de um conflito interna-
cional ou a instalação de missões da paz, com ou sem mandato de usar toda
a força militar necessária para responder adequadamente a atos de agressão
ou intervenções armadas semelhantes. O Conselho pode até encerrar o direito

2 Não obstante, ressalva-se a importante atuação do Secretário-Geral e da Corte Internacional de Justiça como
outros órgãos principais da ONU, cuja análise, porém, ultrapassaria o escopo limitado do presente capítulo.
3 Todavia, é às vezes difícil distinguir essas decisões das medidas não vinculantes aprovadas pelo Conselho. Veja
para detalhes: HIGGINS, Rosalyn. The Advisory Opinion on Namibia: Which UN Resolutions Are Binding under
Article 25 of the Charter? International and Comparative Law Quarterly, v. 21, n. 2, p. 270-286, 1972.
4 Art. 23 (1) da Carta da ONU.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 97

de um Estado de se defender em legítima defesa individual ou coletivamente


no caso de ocorrência de um ataque armado5. De acordo com o artigo 2º, §
7º, a aplicação das medidas coercitivas constantes do Capítulo VII não viola
o princípio da não intervenção em assuntos que dependem essencialmente da
jurisdição de qualquer Estado.
No entanto, todas essas decisões de natureza material dependem da apro-
vação pelo Conselho que garante os cinco Estados permanentes, ex-vítimas
da Segunda Guerra Mundial (Estados Unidos da América, o Reino Unido, a
China, a Rússia e a França) o famoso poder de veto. Estipula o artigo 27, § 3º,
da Carta da ONU: “As decisões do Conselho de Segurança, em todos os outros
assuntos, serão tomadas pelo voto afirmativo de nove membros, inclusive os
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

votos afirmativos de todos os Membros permanentes [...]”. Importante escla-


recer que, a princípio, o poder de veto não se aplica a “questões processuais”,
embora seja às vezes possível o duplo exercício de veto por assim impedir
que uma questão seja classificada como tal. Interessante observar ainda que
a Carta da ONU usa em lugar nenhum o termo “veto”, mas prefere se referir
ao “voto negativo”, ou, como vimos, exige “voto afirmativo”, razão pela qual
houve inicialmente dúvidas sobre as consequências de uma abstenção ou até
ausência por um membro permanente no Conselho6.
No entanto, há muito também é praxe reconhecida por todos os membros
do CS que abstenções não impedem a aprovação de uma resolução, o que
não dispensa a necessidade de, no mínimo, nove votos a seu favor, ou seja,
necessitando também o consentimento de alguns membros não permanentes
que, aliás, são eleitos conforme uma “chave geográfica” e através de votação
realizada na AG da ONU para cumprimento de um mandato de dois anos7.
Atualmente, temos a seguinte composição do Conselho de Segurança da
ONU: a) África, através dos Estados Gabão (2022-2023), Gana (2022-2023)
e Moçambique (2023-2024); b) Ásia-Pacífico, através dos Estados Emirados
Árabes Unidos (2022-2023) e Japão (2023-2024); c) Europa Oriental, através
da Albânia (2022-2023); d) América Latina e Caribe, através do Brasil (2022-
2023) e Equador (2023-2024); e) Europa Ocidental e outros, por meio da Suíça
(2023-2024) e Malta (2023-2024)8. Vale destacar que, após concluírem os

5 Art. 51 da Carta da ONU: “Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa indivi-
dual ou coletiva, no caso de ocorrer um ataque armado contra um Membro das Nações Unidas, até que o
Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança
internacionais [...]”.
6 TRAHAN, Jennifer. Existing Legal Limits to Security Council Veto Power in the Face of Atrocity Crimes. New
York: Cambridge University Press, 2020, p. 20.
7 Art. 23 da Carta da ONU.
8 Informação disponível em: https://www.un.org/securitycouncil/content/current-members. Acesso em: 23
abr. 2023.
98

seus mandatos no Conselho de Segurança, tais Estados não poderão enfrentar


um novo processo eleitoral para o mandato seguinte9.

2.2 Atuação no contexto da atual guerra na Ucrânia

O conflito entre a Rússia e a Ucrânia possui uma longa história10, que


se agravou qualitativamente com anexação da Crimeia pela Rússia a partir de
fevereiro de 2014. Tratando-se de uma flagrante violação da soberania e inte-
gridade territorial da Ucrânia, Estado-membro da ONU11 desde a entrada em
vigor da Carta da ONU em 24 de outubro de 1945, o assunto foi logo levado
ao CS. Em 15 de março de 2014, o órgão, diante das dificuldades de condenar
formalmente os esforços da Rússia para incorporar a Crimeia no seu território

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


em virtude do poder de veto desse membro permanente, tentou aprovar um
draft de uma resolução direcionada a comunidade internacional dos Estados
exigindo o não reconhecimento do plebiscito enfim realizado pouco depois
pela Rússia entre os habitantes da península12. 13 dos 15 membros votaram
a favor da resolução, somente a China se absteve, indicando a existência de
uma opinião clara e firme sobre o assunto no CS. No entanto, como esperado,
o governo russo não hesitou em usar o seu poder de veto, assim deixando claro
que continuará bloquear qualquer ação contrária ao seu interesse nacional em
expandir o seu território em detrimento da Ucrânia.
Ainda em 2014 a situação passou por outro momento delicado, quando o
voo MH17, da Malaysia Airlines, foi derrubado em 17 de julho por um míssil
na região de Donetsk, deixando 298 mortos. Nessa região havia acontecendo
um conflito armado com forças separatistas clandestinamente apoiadas pelas
forças armadas da Rússia13. No entanto, não se sabia neste momento qual
parte de conflito ou grupo foi responsável pelo lançamento do míssil. Diante
esse pano de fundo, o CS editou e aprovou uma resolução condenando o ato
e exigindo a apuração para que justiça possa ser feita14.

9 Art. 23 (2) da Carta da ONU.


10 Leia, p. ex., na presente publicação, no capítulo 2: CHERVIATSOVA, Alina. A transferência da Crimeia em
1954: desmascarando o mito da “dádiva imperial” para a Ucrânia.
11 Inicialmente, como República Socialista Soviética de Ucrânia, após o desmembramento da União Soviética,
desde o 24 de agosto de 1991, simplesmente Ucrânia.
12 UNITED NATIONS. UN Security Council action on Crimea referendum blocked, UN NEWS, 15 mar.
2015. Disponivel em: https://news.un.org/en/story/2014/03/464002-un-security-council-action-crimea-re-
ferendum-blocked. Acesso em: 11 out. 2022.
13 HOON, Marieke de. Navigation the Legal Horizon: Lawyering the MH17 disaster. Utrecht Journal of Inter-
national and European Law, v. 22, n. 84, p. 90-199, 2017. p. 90.
14 UN SECURITY COUNCIL, S/RES/2166 (2014), 21 July 2014. Em 2016, investigadores internacionais che-
garam à conclusão que o míssil era de produção russa e lançada de território controlado por separatistas
russos. Em 17 de novembro de 2022, dois russos e um ucraniano foram condenados in absentia à prisão
perpetua por um tribunal holandês. ILYSHINA, Mary. Dutch court convicts three of murder in MH17 jet
downing over Ukraine. Washington Post, 17 nov. 2022.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 99

Enfim, outra medida aprovada pelo CS ainda antes do início das “ope-
rações especiais” na Ucrânia, em fevereiro de 2022, se referiu ao Protocolo
de Minsk II, de 12 de fevereiro de 2015, acordo negociado entre a Rússia e
a Ucrânia sob os auspícios da OSCE, para pôr um fim à guerra no leste da
Ucrânia. Incluiu medidas como cessar-fogo, a retirada de efetivos e equipa-
mentos militares das linhas de frente, libertação de prisioneiros de guerra,
além da concessão de autonomia para certos distritos das regiões de Donetsk
e Lugansk que passariam ao controle do governo de Kiev. O CS aprovou o
Protocolo mediante a Resolução 2022, de 17 de fevereiro de 201515, para
assim fortalecer o processo da sua implementação.
Todavia, a partir de março de 2021, por motivos analisados em outros
capítulos dessa publicação, a Rússia mobilizou um grande contingente militar
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

em torno das fronteiras ucranianas, passando, em 21 de fevereiro de 2022, a


reconhecer oficialmente as Repúblicas Populares de Lugansk e a de Donetsk.
No dia subsequente, declarou nulos os acordos de Minsk e, dois dias mais
tarde, invadiu a Ucrânia16. No dia 25 de fevereiro de 2022, o CS esteve reu-
nido pela primeira vez para votar uma resolução apelando à Rússia a parar
as atividades militares no território ucraniano e a se retirar dele prontamente.
No entanto, a aprovação foi outra vez frustrada pelo veto do governo russo17.
Onze Estados votaram a seu favor, mas China, Índia (na época, ainda com
sede não permanente no SC) e os Emirados Árabes Unidos se abstiveram.
Tudo indica que seu principal motivo foi não provocar reações negativos por
parte da Rússia, como parceiro internacional importante.
Diante desta situação, o CS realizou, no domingo, dia 27 de fevereiro de
2022, uma nova reunião. Desta vez, a proposta era convocar uma sessão de
emergência na AG da ONU visando discutir os desdobramentos do conflito
armado internacional em andamento. Tratando-se de uma questão puramente
processual18, não foi aceita o exercício do poder de veto pela Rússia, que,
mesmo assim, votou contra, enquanto China, Índia e os Emirados Árabes Uni-
dos se abstiveram outra vez19. A resolução20 aprovada representou um marco
histórico na medida que foi somente a décima primeira vez desde a aprovação

15 UN SECURITY COUNCIL, S/RES/2202 (2015), 17 fev. 2015.


16 BUMBIERIS, João Victor Scherrer (org.). A Guerra Russo-Ucraniana e seus impactos para o Brasil. Brasília:
Câmara dos Deputados, 2022.
17 NAÇÕES UNIDAS. Ucrânia: Conselho de Segurança reúne-se na tarde de domingo para votação. ONU News,
27 fev. 2022. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2022/02/1781072#:~:text=Na%20noite%20de%20
sexta%2Dfeira,da%20ONU%20sobre%20a%20situa%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 23 abr. 2023.
18 Art. 27 (2) da Carta da ONU estabelece: “As decisões do Conselho de Segurança, em questões processuais,
serão tomadas pelo voto afirmativo de nove Membros”.
19 UN SECURITY COUNCIL, SC/14809, 27 fev. 2022.
20 UN SECURITY COUNCIL, S/RES/2623 (2022), 27 fev. 2022.
100

da famosa resolução “Unidas pela Paz” (Uniting for Peace), de 195021, e


a primeira desde 1982, em que o Conselho, em virtude de uma situação de
bloqueio, solicitou a atuação da Assembleia Geral22. De acordo com referida
resolução23 há uma competência secundária da AG para se manifestar excep-
cionalmente sobre assuntos de competência primária do CS.
Durante a sessão no CS que aprovou a medida, o embaixador da Rússia
no CS, Vasily Nebenzya, afirmou que a Rússia não atacara nenhuma estru-
tura civil ucraniana, como escolas e hospitais. Já o embaixador da Ucrânia,
Sergiy Kyslytsya, revelou o número de 16 crianças já mortas pelo conflito
armado24. Neste cenário, milhares de nacionais ucranianos estavam cru-
zando as fronteiras para sair do seu país, fugindo das bombas e dos soldados

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


russos se aproximando.
Em abril de 2022, a discussão sobre assistência humanitária às vítimas da
guerra se intensificou no Conselho. O Secretário-geral da ONU, António Guter-
res, revelou que mais de 1 bilhão de pessoas estavam enfrentando insegurança
alimentar no mundo inteiro em virtude das consequências mediatas da guerra
na Ucrânia, em parte devida à falta de energia e fertilizantes.
No mês de maio de 2022, Guterres, acompanhado da Alta Comissária
para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, e do Subsecretário-geral para
Assuntos Humanitários, Martin Griffiths, realizaram uma visita aos presidentes
russo (Vladimir Putin) e ucraniano (Volodymyr Zelensky), bem como a alguns
locais afetados pelo conflito. No retorno desta visita, em 06 de maio de 2022,
ou seja, dois meses após a invasão, o CS resolveu aprovar uma declaração
presidencial (presidential statement), medida puramente informal, a não ser
confundida com uma resolução do Conselho. Nessa declaração os membros
do CS manifestaram seu apoio ao Secretário-Geral da ONU referentes aos seus
esforços para alcançar uma solução pacífica na Ucrânia25. No entanto, até essa
medida foi alvo de críticas, pois trecho nenhum menciona o termo “guerra” ou
“invasão”, demonstrando outra vez a impossibilidade de tocar nesse assunto no
âmbito do CS. Afirmou somente a sua preocupação com a segurança e paz na

21 Security Council vote sets up emergency UN General Assembly session on Ukraine crisis, UN News, 27 fev.
2022. Disponível em: https://news.un.org/en/story/2022/02/1112842. Acesso em: 14 out. 2022.
22 BLANCHDIED, Luisa; WEED, Matthew C. United Nations Security Council and General Assembly Responses
to the Russian Invasion of Ukraine. CRS Insight, 7 mar. 2022.
23 UN GENERAL ASSEMBLY. Resolution 377 (A) C, 2 nov. 1950.
24 NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança aprova reunião emergencial na Assembleia Geral sobre a Ucrânia.
ONU News, 27 fev. 2022. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2022/02/1781082#:~:text=Foram%20
11%20pa%C3%ADses%20que%20votaram,%C3%8Dndia%20e%20Emirados%20%C3%81rabes%20
Unidos. Acesso em: 23 abr. 2023.
25 UN SECURITY COUNCIL, S/PRST/2022/3, 6 maio 2022.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 101

Ucrânia, lembrando da obrigação assumida pelos Estados-Membros da ONU


em resolver suas disputas por meios pacíficos26.
Nos meses seguintes, o CS ainda realizou diversas reuniões, sempre com
o mesmo objetivo de discutir o conflito armado em andamento, violações do
direito internacional humanitário, dos direitos humanos etc. Mais recentemente,
está discutindo ainda uma resolução que cria uma comissão composta por
especialistas imparciais e independentes para investigar os responsáveis pela
explosão do oleoduto Nordstream II, em 26 de setembro de 202227. Ocorre
que até a presente data (23 de fevereiro de 2023), o CS não conseguiu expedir
nenhuma medida mais impositiva sobre a guerra russo-ucraniana28.
Com dúzias de milhares de mortos e feridos bem como milhões de refu-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

giados de guerra e pessoas descoladas internamente, permanecemos sem qual-


quer resposta pelo único órgão da ONU que tem poder de aprovar sanções
vinculantes, sejam elas militares ou não. A principal razão é o contínuo veto
da Rússia, sendo um problema antigo e estrutural do Conselho, problema
esse, que agora começou a ser debatido outra vez pela AG29.

3. A Assembleia Geral da ONU

Antes de apresentar essa discussão, faz-se necessário brevemente lembrar


das funções e atribuições a AG e sua relação com o CS.

3.1 Funções e atribuições da Assembleia Geral

A AG é o órgão representativo de todos os 193 Estados-membros da


ONU que, de acordo com o art. 10º, “poderá discutir quaisquer questões
ou assuntos que estiveram dentro das finalidades” da Carta da ONU, ou
seja, também questões de guerra e paz. A princípio, essa competência quase
ilimitada de se ocupar com problemas que interessam a humanidade não
provoca nenhum choque com as funções e atribuições do CS que, como
vimos, deve assumir “a principal responsabilidade na manutenção da paz
26 ONU NEWS – Perspectiva Global Reportagens Humanas. Em declaração unânime, Conselho de Segu-
rança apoia solução pacífica na Ucrânia. ONU News, 6 maio 2022. Disponível em: https://news.un.org/pt/
story/2022/05/1788412. Acesso em: 23 set. 2022.
27 Veja o draft sob apreciação do CS: S/2023/212, 27 mar. 2023.
28 Cf. UN SECURITY COUNCIL. UN Documents for Ukraine. Disponíveis em: https://www.securitycouncilreport.
org/un-documents/ukraine/. Acesso em: 23 abr. 2023.
29 Cf. MCCLEAN, Emma; HEHIR, Aidan. Ukraine: UN takes a step towards addressing “veto problem” which
stopped it condeming Russia. The Conversation, 27 abr. 2022. Disponível em: https://theconversation.com/
ukraine-un-takes-a-step-towards-addressing-veto-problem-which-stopped-it-condemning-russia-181979.
Acesso em: 24 abr. 2023.
102

e da segurança internacionais”. Pois com exceção de algumas questões


de natureza organizacional interna (orçamento, admissão e expulsão de
membros etc.), a AG somente pode expedir resoluções não vinculantes
para os Estados-membros da ONU30.
Trata-se, antes de mais nada, de recomendações de natureza política,
embora às vezes com potencial de serem levadas em consideração como
expressões de uma opinio iuris no processo da formação do direito cos-
tumeiro31. Não havendo, assim, alguma possibilidade de afetar ou até
“derrubar” uma decisão vinculante do Conselho, existe mesmo assim o
risco de que os dois órgãos da ONU se manifestam de forma equivocada,
destarte provocando uma situação em que a ONU fala com duas vozes, ao

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


invés de uma só.
Diante disso, estipula o art. 12º da Carta da ONU: “1. Enquanto o Con-
selho de Segurança estiver exercendo, em relação a qualquer controvérsia,
as funções que lhe são atribuídas na presente Carta, a Assembleia Geral
fará nenhuma recomendação a respeito dessa controvérsia ou situação, a
menos que o Conselho de Segurança a solicite”. Na supracitada Resolução
“Unidas pela Paz”, de 1950, a AG da ONU determinou que pode ser reunir
em sessões emergências para fazer recomendações referentes medidas cole-
tivas em casos de atos de agressão etc., se solicitado por sete membros do
Conselho ou uma maioria dos membros da ONU. Mesmo assim, a AG está
impedido de adotar decisões ou medidas coercitivas, tornando o procedi-
mento sobretudo apto para deslegitimar politicamente determinados ações,
mas incapaz de julgar sua legalidade, o que faz parte da competência de
outro órgão principal da ONU, a Corte Internacional de Justiça32.
Levando em consideração que a suspensão ou expulsão de um Estado-
-membro da AG requer, de acordo com os art. 5º e 6º da Carta da ONU, uma
recomendação do CS, que possa ser vetada por um membro permanente, a
Assembleia possui ainda outros mecanismos para aumentar a pressão aos
Estados que violam de forma grave e sistemática o direito internacional. Nesse
contexto, destaca-se o papel do Conselho de Direitos Humanos da ONU, que
é, desde 2006, um sub-órgão da AG e tem como função principal promover e
proteger os direitos humanos em todo o planeta. Seus 47 membros são eleitos
pela AG da ONU.

30 SHAW, Malcolm N. Direito Internacional. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 911.
31 RAMSDEN, Michael. International Justice in the United Nations General Assembly. Cheltenham, Reino
Unido: Edward Elgar Publ., 2021, p. 66.
32 Veja a análise no capítulo 4 dessa publicação de: LIMA, Lucas Carlos. Os Poderes da Corte Internacional
de Justiça na Emissão de Medidas Cautelares no Caso de Alegações de Genocídio entre Ucrânia e Fede-
ração Russa.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 103

3.2 Atuação da Assembleia Geral

No caso da guerra entre Rússia e Ucrânia, o referido Conselho está


investigando uma série de violações e abusos cometidos em território ucra-
niano, que podem ser interpretados como crimes de guerra. Como a atuação
do Conselho de Direitos Humanos é analisado em outro capítulo da presente
publicação33, basta aqui lembrar o fato de que a AG já suspendeu em 7 de
abril de 2022 a Rússia como membro do Conselho, sobretudo, em reação a
relatórios sobre abusos por soldados russos praticados na guerra na Ucrânia34.
Todavia, a decisão nem foi perto de unanimidade, vez que muito embora estes
93 (noventa e três) países membros tenho sido favoráveis à suspensão, os
Estados-membros restantes (sendo maioria, incluindo o Brasil) não o fizeram.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Isto porque, diante do fato que a expressiva abstenção ocorrida na dita votação
(a abstenção de 58 Estados-membros) foi o que possibilitou o resultado de
maioria por 2/3, quantitativo necessário a aprovação, ao passo que na ocasião
somente 24 Estados-membros foram contrários à suspensão35.
Como acima mencionado, a atuação da AG se iniciou já em 28 de feve-
reiro de 2022, quando o CS solicitou uma sessão de emergência neste órgão
para tratar da invasão da Rússia, já que não conseguiu tratar deste assunto
dentro de sua competência, diante do veto russo como país permanente do
próprio Conselho de Segurança.
Durante essa reunião emergencial, a expectativa era que pudesse ser apro-
vada uma recomendação, por maioria de 2/3 dos membros, “condenando” a
ofensiva militar russa no território ucraniano, o que não aconteceu de imediato.
Embora já sabendo que as resoluções da AG não possuem efeitos externos
vinculantes, a referida normativa seria interessante para ratificar o pensamento
político da grande maioria Estados-Membros, carregando um certo “peso” e
legitimidade na posição defendida por eles.
Ato contínuo, em 2 de março de 2022, a AG finalmente aprovou uma
Resolução intitulada “Agressão contra Ucrânia”36, em afirmar o princípio
fundamental que o direito internacional não tolera a aquisição de território
mediante o uso ilegal de força, apelando à Rússia a se retirar imediatamente
do solo ucraniano. O Brasil foi um dos 141 (cento e quarenta e um) Estados
33 No capítulo 20 de: PETERKE, Sven; DANTAS, João Gabriel Dias Arruda Viera. A Atuação do Conselho de
Direitos Humanos da ONU no Contexto do Conflito Armado na Ucrânia.
34 UNITED NATIONS. UN General Assembly votes to suspend Russia from Human Rights Council. UN News,
7 abr. 2022. Disponível em: https://news.un.org/en/story/2022/04/1115782. Acesso em: 25 abr. 2023.
35 GREEN, Mark A. Only 93 of the Human Rights Council´s 193-member General Assembly Voted to Suspend
Russia. Insight & Analysis, 21 jun. 2022. Disponível em: https://www.wilsoncenter.org/blog-post/only-93-cou-
ntries-human-rights-councils-193-member-general-assembly-voted-suspend-russia#:~:text=In%20the%20
UN%20General%20Assembly,from%20the%20Human%20Rights%20Council. Acesso em: 24 abr. 2023.
36 UN GENERAL ASSEMBLY, A/RES/ES-11/1, 2 mar. 2022.
104

que votaram a favor, contra cinco votos contrários (Belarus, Correia do Norte,
Eritreia, Rússia e Síria) e 35 trinta e cinco abstenções, incluindo China, Índia,
Paquistão e África do Sul37.
Uma segunda e terceira condenação das anexações de territórios ucra-
nianos pela Rússia ocorreram em 12 de outubro38 e 15 de novembro de 2023.
A Resolução ES-11/4 foi até aprovada por 143 Estados, entre eles novamente
o Brasil, contra os mesmo cinco votos39, destarte sublinhando o que consta
na Carta da ONU e representa direito costumeiro: que todo Estado possui um
direito à existência dentro das fronteiras internacionalmente reconhecidas e
que qualquer operação militar servindo para colocar em xeque esse direito
jamais terá reconhecimento pela comunidade internacional.
Já a Resolução ES-11/5 foi muito além do conteúdo do documento apro-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


vado poucas semanas antes, exigindo a responsabilização da Rússia pelas
violações do direito internacional, inclusive, o pagamento de reparações à
Ucrânia. Essa resolução foi aprovada com 94 contra 14 votos, mas recebeu
73 abstenções, incluindo o Brasil. Foi recomenda o estabelecimento de um
mecanismo que cuida dessa tarefa gigantesca e complexa. Só que essa “pers-
pectiva” não foi vista como uma medida prudente neste momento por muitos
Estados que, com certa razão, a avaliaram como obstáculo para negociar um
fim das hostilidades em andamento.
A última resolução adotada pela AG até fevereiro de 2023, foi aquela de
23 de fevereiro, em que é exigida a imediata retirada da Rússia da Ucrânia40.
No mais, ela ressalva a necessidade de não deixar passar impunes os crimes
internacionais mais sérios cometidos no território ucraniano para que haja
justiça para as vítimas da guerra e prevenir crimes futuros. Desta vez, 141
Estados apoiaram a resolução, incluindo o Brasil, e 32 se abstiveram41. Sete
Estados votaram contra: Coreia do Norte, Eritreia, Mali, Nicaragua, Rússia
e Síria. Todavia, China e Índia se abstiveram, indicando uma postura cada
vez menos solidária com Putin, como importante parceiro internacional. De
fato, a resolução lembra dos impactos globais negativos da guerra, causando
não somente uma enorme insegurança alimentar, energética e financeira, mas
também ambiental, em virtude do risco da destruição de usina nucleares ou
até o uso de uma bomba atômica.
37 Cf. TORTELLA, Tiage; LOPES, Léo. Assembleia-Geral da ONU aprova resolução que condena a Rússia
por invasão à Ucrânia, CNN Brasil, 2 mar. 2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/
assembleia-geral-da-onu-aprova-resolucao-que-condena-a-russia-por-invasao-a-ucrania/. Acesso em: 23
abr. 2023.
38 UN GENERAL ASSEMBLY, A/RES/ES/11-4, 12 Oct. 2022; A/RES/ES-11/5, 15 nov. 2022.
39 Cf. TORTELLA, Tiago. Assembleia Geral da ONU condena anexação de territórios ucrânios pela Rússia.
CNN Brasil, 12 out. 2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/assembleia-geral-da-
-onu-condena-anexacao-de-territorios-ucranianos-pela-russia/. Acesso em: 24 abr. 2023.
40 UN GENERAL ASSEMBLY, A/RES/E-11/L.7, 23 fev. 2023.
41 UNITED NATIONS. UN General Assembly calls for immediate end to war in Ukraine. UN News, 23 fev. 2023.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 105

4. Considerações finais

O foco deste estudo se concentrou em sintetizar os aspectos normativos


e práticos do CS e da AG da ONU de maneira a identificar o alinhamento
de suas atuações com as funções e atribuições previstas pela Carta da ONU.
Destarte, pretendeu contribuir para uma melhor compreensão das “lógicas”
jurídicas e políticas do seu (não funcionamento) em momentos de grandes
crises internacionais, em que o mundo espera que seja adotadas as medidas
necessárias para seu encerramento.
Refletimos, de forma suscinta, sobre duas questões: 1) as violações ocor-
ridas no território ucraniano; 2) se as medidas tomadas pelo CS e AG estão
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

sendo suficientes para garantir o papel da ONU perante a população mundial,


e, principalmente, em favor das vítimas.
Partindo desses pressupostos, acredita-se que há muito ainda o que
ser feito, pois o conflito entre Rússia e Ucrânia ainda está acontecendo, de
modo que a cada dia temos mais refugiados, pessoas com os seus direitos
humanos violados, diversos feridos e até mortos. Destaca-se nesse contexto
a elaboração de algumas resoluções por parte do CS e da AG da ONU na
tentativa de demonstrar o pensamento de toda a comunidade internacional
sobre os conflitos existentes. Tais documentos, conforme já dito, servem
como um parâmetro para além da ONU, servindo de base para a luta em
defesa e promoção do direito internacional e dos direitos humanos no mundo,
deslegitimando atitudes injustas.
O que nos parece, é que, ao contrário da inércia enfrentada no âmbito
do CS, a AG da ONU tem se articulado com seus Estados-membros para
punir politicamente os “atos ilegais” praticados pela Rússia no território
ucraniano. Tais atitudes já foram analisadas em vários julgamentos pela
CIJ, que é o principal braço judicial da ONU. Neste momento, já emitiu
uma medida provisória em que determina que as partes (Rússia e Ucrânia)
devem terminar o conflito armado internacional. Por isso, exigir da AG a
solicitação um parecer da CIJ, de acordo com o Artigo 96 da Carta da ONU,
parece ser uma proposta desnecessária, porque a Corte já está analisando a
situação, aliás, assim como o Tribunal Penal Internacional, que investiga,
junto com diversos tribunais nacionais, o cometimento de crimes de guerra
e crimes contra humanidade na Ucrânia.
Finalmente, é possível apontar a posição brasileira quanto um Estado-
-membro da ONU, e indicar criticamente que a inicial opção de não condenar
explicitamente as ameaças de invasão russa fora justificada por um caminho
intercedente de promoção de um acordo de paz. Ocorre que, considerando a
fluidez dos efeitos econômicos e sociais a que o conflito tem exposto a nível
106

global, a atuação do CS da ONU antes depende da manutenção dos esforços


políticos e diplomáticos por uma solução pacífica. Quando não possível, o
restabelecimento dos pilares do direito internacional robustecidos pelo sistema
de segurança coletiva imprescinde da atuação específica quanto a legitimidades
das ações do invasor, tal qual a devida resposta bélica pelos países membros.
A posição solidária quanto à preocupação econômica, corolário do embate
bélico, é imperiosa quanto à imediata diminuição do estado de manutenção de
guerra. Que para ser efetiva precisa que o compromisso dos Estados-membros
do CS da ONU especifique a medida corretiva que considere todos os efeitos
econômicos e sociais envolvidos.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


6. A LEGALIDADE DAS SANÇÕES
NÃO MILITARES IMPOSTAS À
RÚSSIA E A SUA ELITE POLÍTICA
E ECONÔMICA PELA GUERRA DE
AGRESSÃO CONTRA A UCRÂNIA
Felipe Tôrres Pereira
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

1. Introdução

O Estado russo sempre exerceu influência sobre o Estado ucraniano,


desde a fundação deste, em 1991, em especial pelo fato de terem integrado
a União Soviética. Todavia, essa interferência ensejou violações à sobera-
nia da Ucrânia, a exemplo da anexação da Crimeia, em 2014, promovida
pela Rússia. A redução do controle sobre o Estado vizinho bem como a
aproximação deste com a União Europeia e os Estados do Ocidente, entre
outros fatores, desencadearam, em 24 de fevereiro de 2022, a invasão ilegal
de tropas russas ao território ucraniano, instaurando-se conflito armado de
índole internacional.
No intuito de impedir a continuidade da guerra, fazendo com que a Rússia
desista de suas pretensões pela via do embate, e como mecanismo de repri-
menda pela agressão efetuada à integridade e à autonomia ucranianas, terceiros
Estados, máxime os Estados Unidos e os integrantes da União Europeia, têm
estabelecido unilateralmente sanções contra o Estado russo e os seus nacionais,
com ênfase para os membros do governo e oligarcas. Assim sendo, o problema
deste artigo é: as reprimendas impostas por terceiros Estados ao Estado da
Rússia e aos russos são legais de acordo com o direito internacional?
A fim de responder a esse questionamento, divide-se o estudo em 03 (três)
seções. Em primeiro momento, discutem-se as dificuldades de impor sanções
ao Estado russo no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), em
virtude da flagrante violação da sua Carta. Posteriormente, indicam-se algu-
mas das medidas determinadas por vontade unilateral à Rússia e discute-se
a sua legalidade, com base no parâmetro normativo deste estudo. Ademais,
em terceiro momento, mencionam-se restrições estabelecidas aos direitos de
nacionais deste Estado, com ênfase para os ligados ao Kremlin e aos oligarcas,
e analise-se a sua adequação jurídica.
108

Conclui-se, de modo principal, que as sanções impostas à Rússia pelos


Estados alheios diretamente ao conflito com a Ucrânia são respaldadas pelo
direito internacional, todavia se discute a sua proporcionalidade na garantia
dos direitos humanos em virtude de seus efeitos humanitários. Por sua vez, no
que tange às ações em face dos russos, não obstante a justificativa de fazerem
parte daquela intervenção legal, a sua adequação com o respeito aos direitos
humanos individuais é discutível.

2. Sanções no âmbito da ONU

A ONU, em sua Carta constitutiva, tem como uma de suas finalidades

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


precípuas, de acordo com o art. 1, a manutenção da paz e da segurança inter-
nacionais, cabendo-lhe, pois, implementar meios de reprimir atos de agressão
ou de ruptura da paz1. A atitude do Estado Russo em invadir o território
ucraniano, dando início à guerra, representou lídima violação ao art. 2 (4),
do referido documento, pelo qual os seus membros evitam em suas relações
internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a
independência política de qualquer Estado. Trata-se da “pedra fundamental”
do sistema de segurança coletiva da ONU, cujo conteúdo não somente possui
qualidade de direito costumeiro, mas até de ius cogens.
Todavia, não se pode deduzir do fato de que a Rússia violou uma norma
imperativa a legalidade de qualquer sanção contra esse Estado. É preciso lembrar
de que o princípio da não intervenção representa um obstáculo nesse sentido,
posto que, por exemplo, de acordo com o art. 2 (7), da Carta da ONU, esta orga-
nização não está autorizada a intervir em assuntos que dependem essencialmente
da jurisdição de qualquer Estado-membro assim como não pode obrigá-los a
submeter esse aspecto a uma solução. Esse princípio, por sua vez, não veda que
sanções sejam estipuladas nos termos do Capítulo VII, da Carta da ONU2.
Em síntese, acerca dessa temática, afirma-se que o art. 39, da Carta da
ONU, concede ao Conselho de Segurança a competência para impor medidas
para manter ou reestabelecer a paz e a segurança internacionais. Essas ações,
em primeiro momento, não envolvem o recurso à força armada e se referem,
pois, pelo art. 41, da normativa, à interrupção completa ou parcial das relações
econômicas, dos meios de comunicação ferroviários, marítimos, aéreos, pos-
tais, telegráficos, radiofônicos, ou de outra qualquer espécie e o rompimento
das relações diplomáticas. Em complemento, o art. 42, da Carta da ONU,
determina que a inadequação dessas medidas permite o seu recrudescimento,

1 CHARTER OF THE UNITED NATIONS, 26 jun. 1945, 1 UNTS 16, Art. 1.


2 Ibid., Art. 2 (7).
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 109

pelo emprego de demonstrações, bloqueios e outras operações, por parte das


forças aéreas, navais ou terrestres dos Membros das Nações Unidas3.
Essas sanções possuem dificuldades de ordem prática, posto que, ainda
que aprovadas, necessitam da colaboração dos Estados-membros da ONU para
se tornarem efetivas, como determina os arts. 41, 43 e 44, da Carta constitutiva,
principalmente as de índole econômica, as quais são “externas” à organização
e salientam o objetivo de coagir a respeitar os seus deveres internacionais
ou promover a correção de suas faltas4. Ademais, como principal entrave
para a sua aplicação ao Estado russo, tem-se o procedimento deliberativo da
instância da organização, pois, pelo art. 27(3), da regra em análise, exige-se
o voto afirmativo dos membros permanentes, os quais são Estados Unidos,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

França, China, Reino Unido e a própria Rússia5.


Logo, utilizando-se de seu poder de veto, a Rússia assim procedeu na
reunião de 25 de fevereiro de 2022, na discussão de Resolução que conde-
nava as transgressões ao direito internacional, determinava ao Estado russo a
cessação do uso da força imediatamente na Ucrânia e o impedida de ameaçar
ilegalmente ou utilizá-la contra outro Estado-parte da ONU; e ainda exortava
aos Estados a respeitarem essas regras internacionais bem como as que se
referem às garantias de direitos humanos6. Nota-se que, no âmbito do Con-
selho de Segurança, o qual tem a atribuição de prolatar decisões de natureza
vinculante, pelo art. 25, da Carta da ONU, não há possibilidades reais de que
sejam estabelecidas sanções em face do Estado russo.
Ademais, em virtude desse aspecto, aprovou-se Resolução, no Conselho
de Segurança, pela qual se convocou sessão extraordinária da Assembleia-Geral
da ONU, para discutir a temática7. A Resolução teve a aprovação de todos os
membros, exceto da Rússia, contudo, por ser de cunho procedimental, o poder
de veto não foi exercido, em virtude do teor do art. 27.2, da Carta da ONU8.
Tratou-se da utilização de manobra jurídica para que se tivesse a possibilidade
de o assunto ser discutido no âmbito da Assembleia Geral, pois esta não pode
atuar em temas sujeitos ao Conselho de Segurança, pelo art. 12.1, do diploma

3 Ibid., Arts. 39,41 e 42.


4 CARREAU, Dominque; BICHARA, Jahyr-Philippe. Direito Internacional. 2. ed. São Paulo: Lumen Iures, 2016.
p. 693-694.
5 CHARTER OF THE UNITED NATIONS. Op. cit. (nota 1), Art. 27 (3).
6 Salienta-se que, na deliberação, os Estados da Albânia, do Brasil, dos Estados Unidos, da França, do Gabão,
de Gana, da Irlanda, do México, da Noruega, do Quênia e do Reino Unido votaram a favor; ao passo que os
Estados da China, Emirados Árabes e Índia se abstiveram. Cf. NAÇÕES UNIDAS. Rússia veta resolução do
Conselho de Segurança condenando ofensiva à Ucrânia, ONU News, 25 fev. 2022. Disponível em: https://
news.un.org/pt/story/2022/02/1781042. Acesso em: 25 set. 2022.
7 UN SECURITY COUNCIL. S/RES/2623 (2022), § 1.
8 CHARTER OF THE UNITED NATIONS. Op. cit. (nota 1), Art. 27 (2).
110

internacional9. Assim, teve-se o caminho pelo qual, ao menos de modo polí-


tico, em virtude da destituição da natureza cogente das decisões da Assembleia
Geral, de acordo com o art. 14, da Carta da ONU, estipule-se algum meio de
expressar a desaprovação da conduta da Rússia.
Essa atitude ocorreu pela Resolução, na 11º sessão extraordinária, em 02 de
março de 2022, a qual foi aprovada por mais de 90 membros, com o voto contrá-
rio do Estado de Belarus, da Coreia do Norte, da Eritreia, da Rússia e da Síria, e
condenou a declaração da Rússia sobre a operação militar especial e “exigiu” o
cessar das hostilidades e a retirada das forças russas do território ucraniano, de
acordo com as fronteiras internacionalmente reconhecidas, de modo imediato,
completo e incondicional10. Os termos da Resolução possuem outras disposições,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


mas se destaca a posição da ONU em firmar incontroversamente a sua reprova-
ção da ação do Estado russo em violar a soberania ucraniana, promovendo-se a
transgressão ao determinado pela Carta da ONU, como já demonstrado.
O tema não apenas foi debatido nessa ocasião, pois, por exemplo,
durante a 77ª Reunião Ordinária da Assembleia Geral da ONU11, a pauta
foi bastante discutida, oportunidade em que, novamente, houve o rechaço
público e oficial de representantes de Estados e da ONU acerca da agressão
russa à autonomia ucraniana. Esses posicionamentos de valor político são de
extrema relevância, mas não representam sanções institucionais impostas ao
Estado russo, logo, em outros termos, não possuem efeitos práticos diretos
para a Rússia, pois “apenas” reforçam a compreensão já estabelecida de que
a sua atuação contra a Ucrânia ocorreu de maneira ilegal e ilegítima, em
afronta aos preceitos de direito internacional.
Destaca-se que o art. 6 da Carta da ONU, estabelece que, por decisão da
Assembleia Geral, mediante recomendação do Conselho de Segurança, Esta-
do-parte da ONU pode ser expulso da Organização ao violar continuamente
os princípios do documento12. Todavia, não é provável que essa sanção seja
imposta à Rússia, pois as consequências dessa decisão podem recrudescer
o conflito ao reverberar o discurso russo de perseguição do Ocidente e de
isolamento, por exemplo, não sendo favorável ao encerramento do conflito.
Igualmente, não se cogitam mudanças no procedimento da ONU para retirar
o poder de veto dos membros permanentes do Conselho de Segurança, pois
essa decisão, de modo algum, é do interesse das potências que possuem essa
prerrogativa, as quais exercem influência sobre os demais Estados.

9 Ibid., Art. 12 (1).


10 UN GENERAL ASSEMBLY. A/RES/ES-11/1 (2022), §§ 11-15.
11 DW. Russia and climate change dominate, 21 set. 2022. Disponível em: https://www.dw.com/en/russia-an-
d-climate-change-dominate-un-general-assembly/a-63188891. Acesso em: 26 set. 2022.
12 CHARTER OF THE UNITED NATIONS. Op. cit. (nota 1), Art. 6.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 111

Assim sendo, nota-se que a atuação institucional da ONU, enquanto


principal organização internacional sobre a temática, é destituída de reais
condições procedimentais e políticas para que se estipulem sanções rígidas
ao Estado russo, mais ainda quando a sua aplicação depende de colaboração
dos demais membros da ONU. Esse contexto é meio para reforçar a atuação
dos Estados de modo unilateral, a fim de que se estabeleçam reprimendas ao
Estado, para influenciar na sua conduta, assunto que será discutido em seção
própria deste artigo.

3. A legalidade das sanções econômicas impostas à Rússia

A decisão da Rússia em invadir o território ucraniano provocou reação


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

de grande parte dos Estados soberanos. Ao lado das reprimendas ou ten-


tativas de sanções de índole institucional, como já analisado, os terceiros
Estados estabelecem sanções coletivas e unilaterais ao Estado russo, com
destaque para as estipuladas pela União Europeia e pelos Estados Unidos.
Assim sendo, nesta seção, apresentam-se algumas das sanções impostas ao
Estado da Rússia e, posteriormente, analisa-se a sua legalidade, de acordo
com o direito internacional.

3.1 Visão panorâmica sobre as sanções impostas

As sanções impostas ao Kremlin não foram iniciadas apenas com a guerra


da Ucrânia, posto que advêm desde a anexação da península da Crimeia por
aquele país, em 2014. Todavia, em virtude da decisão da Rússia de admitir as
regiões das de Donetsk e Luhansk como governos independentes e da agressão
à soberania da Ucrânia pela agressão militar, houve o recrudescimento das
reprimendas impostas pelos terceiros Estados, como espécie de contraofensiva
à atuação russa em buscar a realização ilegal de suas finalidades ilegítimos.
Logo, faz-se a apresentação, em síntese, das principais sanções determinadas
pelos sujeitos originários do direito internacional ao Estado russo.
Em geral, a justificativa para essas sanções é limitar as possibilidades
do governo russo de financiar a guerra e estabelecer consequências eco-
nômicas e políticas aos membros da elite política da Rússia que possuem
responsabilidade pelo conflito13. Esses objetivos são incontroversamente
legítimos, em destaque o primeiro, posto que a retirada ou a diminuição
da capacidade do Estado agressor em arcar com as elevadas despesas da
13 CONSELHO EUROPEU/CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA. Medidas restritivas da UE contra a Rússia a
respeito da Ucrânia (desde 2014), 13 abr. 2023. Disponível em: https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/
sanctions/restrictive-measures-against-russia-over-ukraine/. Acesso em: 26 abr. 2023.
112

guerra é lídimo mecanismo para que se estimule o encerramento das hosti-


lidades. Entretanto, cabe destacar que, apesar de as sanções se referirem à
economia, estas não podem ter essa motivação ao visarem reduzir a aptidão
econômica de um Estado enquanto concorrente no mercado internacional.
Outrossim, a racionalidade deve ser levada em consideração, pois cada
restrição tem de ser concebida nos seus efeitos para o Estado sancionado
e os sancionadores, já que podem apresentar consequências para as suas
próprias economias, por exemplo14.
No mesmo sentido, não se deve conceber as sanções unilaterais como
as responsáveis pelo encerramento definitivo do conflito entre a Rússia e a
Ucrânia, tendo em vista que se tem diferença entre um cessar-fogo e um acordo

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


de paz estável e duradouro. Aquele pode ser alcançado com as restrições de
natureza econômica e as demais, contudo este requer outros fatores, como
a reparação dos danos ocasionados, investigação dos crimes, a discussão
sobre os direitos territoriais e a situação das minorias15. E m outros termos,
as sanções têm o objetivo de alterar o comportamento do Estado sancionado,
todavia o nível dessa mudança, para que se tenha maior estabilidade, requer
ações que transcendem e muito as reprimendas ou estratégia aplicável durante
o conflito, já que se deve lidar de modo devido com as consequências do
período anterior, para que não se regresse a esse cenário.
Com essas ressalvas, acerca das sanções em si estabelecidas ao Estado da
Rússia, é possível esquematizá-las em algumas categorias. A primeira delas
refere-se à imobilização ou congelamento de bens do presidente da Rússia e
de outros membros de seu governo, bem como pessoas da elite empresarial e
política. Este conjunto inicial é objeto de considerações específicas na seção
seguinte. Por sua vez, o segundo nível de resposta é de natureza financeira, que
é composta, por exemplo, pelo bloqueio das contas de bancos e instituições
russas nas suas relações com outras pessoas da mesma categoria, a vedação de
transações com o Banco Central russo, a exclusão do sistema de pagamento
do Swift, que congrega diversas instituições de operações financeiras mun-
diais em sistema de mensagens, a proibição de fornecer euro à Rússia e de
praticar financiamento ou investimento com este Estado16. Essas iniciativas
visam especificamente a dificultar as relações da Rússia com outras institui-
ções financeiras, com destaque para as ocidentais, bem como não permitir
que tenha acesso a todas as suas reservas estrangeiras ou a moedas da União
14 MOISEIENKO, Anton. The Future of EU Sanctions against Russia: Objectives, Frozen Assets, and Huma-
nitarian Impact. EUCRIM, n. 2, p. 130-136, 2022. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?-
codigo=8559845. Acesso em: 21 set. 2022.
15 Ibid., id.
16 CONSELHO EUROPEU/CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA. Op cit. (nota 13).
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 113

Europeia e a negociação de sua dívida em mercados primários e secundários,


o que expande a sua situação de desconforto17.
A terceira categoria é afetar a matriz energética russa. Tem-se, por
exemplo, a vedação, pelos EUA, da distribuição do petróleo russo e de
qualquer novo investimento no desenvolvimento ou setor da energia da
Rússia Os Estados da União Europeia, no início, não foram muito concor-
dantes com ações nessa seara, em virtude da dependência do gás prove-
niente da Rússia18, entretanto o desenvolvimento do conflito fez com que
sanções desse tipo fossem estabelecidas, como a proibição da importação
de carvão e de petróleo, exportação de bens e tecnologias para a Rússia e
novos investimentos no setor19. A seu turno, a quarta forma de sanção é o
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

controle sobre o comércio internacional. A influência dos Estados Unidos e


da União Europeia sobre a importação de produtos russos, como ferro, aço,
madeira, cimentos e bebidas alcoólicas, a redução do acesso da Rússia a
commodities e tecnologias, afetando a sua capacidade militar ou de defesa,
inclusive com a vedação a comercialização de armas com o país inserem-se
às medidas adotadas. Ainda, menciona-se que os EUA, a União Europeia
e outros Estados do G7 retiraram o status de nação mais favorecida para
as tarifas internacionais, afetando o papel e benefícios da Rússia na Orga-
nização Mundial do Comércio (OMC), a suspensão da gestão do gasoduto
Nord Stream com a Alemanha etc.20.
A quinta esfera de restrições é quanto ao setor de transporte. Companhias
áreas russas estão banidas de largas faixas do espaço aéreo mundial, como
dos EUA e da União Europeia, a vedação do acesso aos seus portos a navios
russos e a proibição de entrada de operadores de transporte russos no território
europeu21. Ademais, ainda cabe mencionar as sanções do ponto de vista da
comunicação, pois a União Europeia suspendeu meios de comunicação russos
(Sputnik, Russia Today, Rossiya RTR, Rossiya 24, TV Centre International),
em decorrência da perpetuação de notícias falsas sobre a natureza do conflito,
o qual, para a Rússia, é uma operação militar especial para o alcance de fins
legítimos. É necessário ponderar que as sanções aplicadas à Rússia, no geral,
são extensíveis a Belarus, sendo válidas pela colaboração com a invasão da
Ucrânia. Igualmente, impuseram-se outras a Crimeia e Sebastopol, regiões da
Ucrânia anexadas à Rússia, as zonas de Donetsk e Luhansk, como a proibição
17 CHACHKO, Elena; HEALTH, J. Benton. A Watershed Moment for Sanctions? Russia, Ukraine, and the
Economic Battlefield. Temple University Legal Studies Research Paper n. 2022-7, 28 abr. 2022. Disponível
em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=4090894. Acesso em: 26 set. 2022.
18 CONSELHO EUROPEU/CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA. Op. cit. (nota 13).
19 CHACHKO, E.; HEALTH, J.B. Op. cit. (nota 17).
20 Ibid.
21 Ibid.
114

de importação de mercadorias e exportação de alguns gêneros, a vedação ao


serviço de turismo e restrições ao comércio e ao investimento22.
Pelo exposto, nota-se que são sanções de natureza multidimensional. Há
diversos setores afetados, com relevância especial para o econômico, claro,
posto que todas as medidas possuem ligação direta ou indireta com essa
seara, a qual, sem dúvidas, é de extrema importância para a Rússia, a qual se
encontrava, antes da guerra, dentre os Estados com grande desenvolvimento.
O objetivo maior dessas restrições ainda não foi alcançado, em decorrência
da continuidade do conflito entre a Rússia e a Ucrânia, mas são verificáveis
efeitos para o Estado russo. Nesse sentido, citam-se: (i) diminuição de mais
de 11% do Produto Interno Bruto (PIB) da Rússia – antes, a previsão de
crescimento era de 4,2% estimado em 2021 –, que é a maior queda desde a

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


extinção da União Soviética, segundo o Bando Mundial, (ii) redução de 35,
2% nas importações e de 30,9% nas exportações, (iii) o incremento da inflação
russa, a qual atinge o patamar de 22%23.
Esses efeitos são bem consideráveis para qualquer economia do mundo
e, embora a sustentação de que o governo russo se mantém inabalado, é ine-
gável a crise instaurada internacionalmente com consequências que suplantam
as fronteiras do Estado russo. Esse aspecto faz com que se tenha de discutir
sobre a legalidade das sanções unilaterais impostas ao Estado da Rússia, de
acordo com o direito internacional, assunto que é objeto de considerações
na seção a seguir.

3.2 A legalidade das sanções contra o estado russo

A aplicação de sanções pelos Estados Unidos, União Europeia e demais


Estados a Rússia é realidade estabelecida. Inclusive, pela realização do “plebis-
cito” nas áreas ocupadas pela Rússia acerca da anexação de regiões ucranianas
controladas pelas suas tropas e a ameaça de utilização de armas nucleares,
a presidente da Comissão Europeia apresentou proposta de novas restrições
contra a Rússia, as quais incluem a inserção de pessoas e empresas russas
às restrições europeias, o aumento dos produtos russos que não podem ser
importados e exportados para o país, como tecnológicos e químicos, a proibi-
ção de cidadãos europeus de prestarem serviços para empresas estatais russas
e estabelecimento de teto para o preço do petróleo russo24. Nesse contexto,
22 CONSELHO EUROPEU/CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA. Op. cit. (nota 13).
23 CONSELHO EUROPEU/CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA. Infografia – Impacto das sanções na economia
da Rússia, 21 set. 2022. Disponível em: https://www.consilium.europa.eu/pt/infographics/impact-sanctions-
-russian-economy/. Acesso em: 21 set. 2022.
24 EUROPEAN COMISSION. Press statement by President von der Leyen on a new package of restrictive measures
against Russia, 29 set. 2022. Disponível em: https://www.eeas.europa.eu/delegations/ukraine/press-statement-
-president-von-der-leyen-new-package-restrictive-measures_en?s=232. Acesso em: 28 set. 2022.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 115

cabem discutir dois pontos iniciais: (i) a legalidade das sanções e (ii) sua
limitação ou adequação aos direitos humanos.
Assim, no que concerne ao primeiro tópico, afirma-se que as sanções econô-
micas não representam, por si, uma violação ao art. 2.4, da Carta da ONU, pois
este dispositivo veda a aplicação de ameaça ou da força física contra a integridade
territorial ou a dependência política de qualquer Estado. Contudo, esse aspecto
não garante a sua legalidade de modo teórico. Essa prática, de modo doutrinário,
poderia ser caraterizada como contramedidas, as quais podem ser compreendidas
como ações que um Estado lesado é autorizado a implementar como resposta
à ação do Estado responsável pela violação do direito internacional, buscando
reestabelecer a adequação de sua conduta com os deveres internacionais, fazendo
parte do direito costumeiro. No caso, os terceiros Estados promovem as sanções
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

coletivas ou unilaterais, suspendendo os seus deveres com a Rússia e os seus


nacionais por causa do descumprimento da norma internacional ao agredir a
soberania da Ucrânia, com o objetivo de alterar o seu comportamento25. Por esse
raciocínio, haveria, pois, direito de o Estado impor sanções unilaterais a outros,
das quais se destacam as de índole econômica26, uma vez que, máxime quando
se considera que o recurso à força é bastante limitado, as restrições unilaterais são
os meios coercitivos restantes, para que se possa exercer maior pressão quanto
aos Estados transgressores27.
Todavia, essa perspectiva não deve prosperar. É necessário pontuar que
as contramedidas, de acordo com o art. 49, do “Articles on Responsibility
of States for Internationally Wrongful Acts”, é atividade disponível para os
Estados que foram afetados pela conduta do Estado que viola o direito inter-
nacional, na forma do art. 42, do referido documento. Ademais, de acordo
com o art. 54, é possível que terceiros Estados, caracterizados na forma do
art. 48, § 1º, possam aplicar medidas legais para que a violação cesse ou que
seja reparado o interesse do Estado lesado, quando a obrigação violada é
devida a um grupo de Estado ou à comunidade internacional, contudo a sua
aplicação aos terceiros Estados diante da atuação do Estado da Rússia per-
manece controvertida. Assim, nota-se que não se pode caracterizar as ações
de terceiros Estados apenas como contramedidas, posto que não são lesados
pela violação da Rússia ao art. 2(4), da Carta da ONU, cabendo estabelecer
fundamento de sua legalidade com base no Direito Internacional.
Essa adequação é notada pelo argumento a maiori, ad minus. O art. 51,
da Carta da ONU, estabelece o direito à legítima defesa coletiva, de modo
25 BARAN, Deniz. What is the International Law on Unilateral Sanctions? Examining the Case of Unilateral
Sanctions Imposed on Russia. Al Sharq: Strategic Research, 22 abr. 2022. Disponível em: https://research.
sharqforum.org/2022/04/22/unilateral-sanctions/. Acesso em: 28 set. 2022.
26 CARREU, D.; BICHARA, J.-Ph. Op. cit. (nota 4), p. 696.
27 BARAN, D. Op. cit. (nota 25).
116

que Estados que não foram afetados pela agressão de outro podem auxi-
liá-lo na defesa de sua soberania e interesses, desde que o Estado agredido
tenha solicitado a cooperação e a tenha feito declaração pública de que foi
atacado28. Esse direito de legítima defesa coletiva não requer a tomada de
medidas militares contra o Estado agressor, permitindo-se, pois, a aplicação
de sanções de natureza econômica. Nesse sentido, como é cabível a utilização
de sanções com o recurso à força, consequentemente, deflui-se o cabimento
de medidas menos restritivas, como é o caso das sanções econômicas, desde
que proporcionais, a exemplo das aplicadas pelos terceiros Estados, os quais
foram conclamados pelo Estado ucraniano a colaborar com as ações de repri-
mendas ao Estado russo pela agressão.
Por sua vez, quanto à limitação ou adequação aos direitos humanos,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


tem-se a discussão sobre os limites dessa prerrogativa estatal. As sanções
possuem incontroverso objetivo de mudar o comportamento do Estado trans-
gressor do direito internacional, contudo esse fim não pode justificar todas
as medidas, pois não se pode buscar preservar as regras jurídicas por meio
do desrespeito dos direitos humanos. Nesse sentido, exige-se que as restri-
ções econômicas dos Estados tenham como parâmetro necessário, ao serem
elaboradas e aplicadas, a preservação dos direitos humanos das pessoas que
podem sofrer os efeitos, como o direito à saúde, à alimentação e à moradia,
o que deve ser aferido de acordo com o caso concreto. Defendem-se, pois,
sanções inteligentes, as quais guardam a compatibilidade com os direitos
humanos e o direito internacional humanitário, de modo a afetar pessoas ou
instituições específicas, reduzindo seus efeitos para as partes que não devem
ser sancionadas ou impedindo a sua expressão29.
A partir disso, percebe-se relação entre as sanções unilaterais e os direitos
humanos, então, tem-se o questionamento: as sanções contra a Rússia são
adequadas? Quanto a essa questão, as opiniões são distintas. Em uma pers-
pectiva, salienta-se que todo conflito armado tem como efeito a insegurança
alimentar das populações envolvidas, contudo, na guerra entre Ucrânia e Rús-
sia há efeitos mais expressos, tendo em vista que este país é um dos maiores
produtores de petróleo para os Estados e exportador e importador de gêneros
alimentícios e fertilizantes, por exemplo, havendo uma interconexão com os
países ocidentais. A proibição da importação de gás e petróleo russos, nesse
contexto, gera o aumento do preço dos alimentos e de toda a engrenagem ali-
mentícia, e a afetação da importação de fertilizantes russos pode desencadear
crise mais elevada que a de 2008. Por esse raciocínio, defende-se que, se as
consequências das sanções econômicas agravam a insegurança alimentar e
28 RUYS, Tom. “Armed attack” and Article 51 of the UN Charter: Customary Law and Practice. Cambridge:
Cambridge University Press, p. 83, 2010.
29 BARAN, D. Op. cit. (nota 25).
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 117

produzem fome dos cidadãos, pelo aumento do preço e escassez de alimentos,


não se pode sustentar a sua legalidade30.
Em complementação, observa-se compreensão de que as sanções unila-
terais estão promovendo a crise de alimentação em todo o mundo. Malgrado
a ideia de reduzir esses efeitos, o aumento do preço da energia e a diminuição
das exportações dos Estados em conflito fazem com que se falte ou se diminua
o acesso à alimentação das populações em situação de vulnerabilidade. Por
exemplo, os Estados do conflito são responsáveis por 30% das exportações
de trigo e por 70% de óleo de girassol do mundo, e a redução do desempenho
dessas funções, que é utilizada como forma de a Rússia pressionar a suspen-
são das sanções, tem colaborado para que metade da população de Estados de
baixa renda seja submetida à escassez de alimentos ou de incremento do seu
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

preço, às medidas de retenção de alimentos, ao protecionismo dos Estados e


à redução da ajuda de assistência humanitária para países do Oriente Médio e
da África. Essas características representam motivos suficientes para contestar
a persistência nos atuais níveis das sanções unilaterais à Rússia, pela violação
aos direitos humanos31.
Lado outro, sem deixar de reconhecer os efeitos para a garantia do direito
ao acesso aos alimentos, opina-se que, na situação atual, as sanções impostas
contra a Rússia são condizentes com os direitos humanos e o direito inter-
nacional humanitário. O elevado nível de transgressão das normas interna-
cionais pelos russos exige reprimendas da mesma natureza, para que se evite
o aumento do conflito, apesar de que não se saber sobre a sua eficácia em
dissuadir a atuação do governo da Rússia32. Ademais, as restrições ao Banco
Central Russo e ao sistema de pagamento Swift, por exemplo, não são dire-
cionadas quando se considerada que as suas repercussões são abrangentes,
ao afetar diretamente a população russa. Contudo, as ações da Rússia no
conflito, como a posse de armas nucleares e a ameaça de sua utilização, e o
recrudescimento das violações de direitos humanos já praticadas, fazem com
que se tolerem esses efeitos humanitários das sanções, pois o seu objetivo de
mudar o comportamento, cessando as hostilidades, justifica-os. Portanto, a
discussão sobre alteração da estratégia das sanções apenas pode ser promovida
com a afetação dos padrões de vida dos cidadãos da Rússia, o que ainda não
foi comprovado33.
30 DERANI, Cristiane. Economic sanctions in Russia risk breaking international law if they lead to global food
shortages. University of Cambridge, 8 abr. 2022. Disponível em: https://www.cam.ac.uk/stories/food-insecurity.
Acesso em: 26 set. 2022.
31 RAPPEPORT, Alan. Global Food Crisis Tests Western Resolve to Retain Russia Sanctions. The New York
Times, 30 jun. 2022. Disponível: https://www.nytimes.com/2022/06/27/business/russia-food-crisis-sanctions.
html. Acesso: 28 set. 2022.
32 BARAN, D. Op cit. (nota 25).
33 MOISEIENKO, A. Op cit. (nota 14).
118

Compreende-se do expresso que as opiniões acerca da legalidade das


sanções pontuam as consequências para os cidadãos russos. Essa situação
deve ser considerada, mas, com a mesma importância, tem-se as pessoas que,
atualmente, sofrem as consequências de conflito armado e das sanções ao
Estado russo na sua sobrevivência, na garantia do direito básico à alimentação.
É, pois, necessária a manutenção e recrudescimento das sanções unilaterais,
mas que se mude a estratégia, para aumentar os ganhos e reduzir os efeitos
humanitários em todo o mundo, principalmente pelos Estados mais vulneráveis.
A questão é que essa solução, na prática, não se mostra fácil, pois as sanções
econômicas têm se mostrado o meio acessível para que se possa tentar impedir
a continuidade do conflito entre a Rússia e a Ucrânia. Portanto, enquanto não
se aprimoram as sanções, tem-se de harmonizá-las com a redução das conse-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


quências estabelecidas às pessoas dos terceiros Estados e dos envolvidos, a
exemplo da atuação de instâncias internacionais, como a ONU, a qual cumprirá
com o seu dever de zelar pela preservação dos direitos humanos.

4. Das sanções impostas aos representantes da elite política e


econômica da Rússia

A imposição de restrições aos bens e ao direito à locomoção de nacio-


nais russos faz parte das sanções dos terceiros Estados desde o início do
implemento dessas iniciativas contra o Estado da Rússia. Apesar de ser algo
estabelecido na prática, esta ação apresenta questionamentos acerca de sua
adequação com o direito internacional. Assim sendo, nesta seção, apresentam-
-se algumas das sanções estabelecidas aos russos e realizam-se observações
sobre a legalidade dessa medida de sancionar pessoas em detrimento do Estado
da Rússia, que é o legítimo, a princípio, dessas ações de coerção.
A imposição unilateral de sanções a membros do governo russo e a
oligarcas deste país e de Belarus, como estratégia de afetar pessoas que são
influentes no governo russo, é fundamentada na compreensão de reforçar as
iniciativas que visam a alterar o comportamento do Estado russo na conti-
nuidade do conflito internacional. Nesse sentido, apresentam-se atividades
coordenadas pela União Europeia quanto às restrições aos bens dos russos
como instrumento do direito de impor restrições.
Desde o início da estipulação desse tipo de medida repressiva, cerca
de 1.206 pessoas e 108 entidades consideradas como responsáveis por atos
que afetam a soberania, a integridade territorial e a independência do Estado
ucraniano já foram sujeitas às sanções de indisponibilidade de bens e restri-
ção ao direito à locomoção. Essas medidas são impostas às pessoas inseri-
das em listas que são atualizadas constantemente e revisadas regularmente
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 119

pelo Conselho Europeu. Dentre essas pessoas, destacam-se: Vladimir Putin,


Presidente da Rússia, Sergey Lavrov, Ministro das Relações Exteriores da
Rússia, integrantes do Conselho Nacional de Segurança, militares e altos
funcionários, empresários e oligarcas, políticos locais, divulgadores de ideias
e atos pró-Kremlin e contra a Ucrânia e agentes envolvidos no recrutamento
de mercenários sírios para combater na Ucrânia34.
Para garantir essa política, máxime acerca dos oligarcas, tem-se a ação
denominada “Freeze and Seize”, a qual foi instituída pela Comissão Europeia
para garantir a aplicação das restrições contra os oligarcas russos na União Euro-
peia. Como resultado, teve-se a criação de força tarefa integrada por instâncias
nacionais dos Estados, instituições europeias como a “Eurojust” e a “Europol”, e
outras instâncias, que têm como intento apreender e, quando as leis internas dos
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Estados europeus permitirem, confiscar os bens dos sancionados, com destaque


para os oligarcas. Igualmente a essa colaboração dos Estados e das instituições
europeias, tem-se rede internacional, para que as sanções individuais sejam
efetivas e congelem-se e confisquem-se, quando possível, os bens, havendo o
envolvimento da União Europeia e dos demais países do G735.
Um dos mais recentes pacotes de sanções da União Europeia abrange
o reforço da aplicação de restrições aos indivíduos, ao abranger a evasão de
sanções individuais. Em síntese, as pessoas que adquirem bens na União
Europeia, os situam para terceiros Estados e, depois, para a Rússia, também
podem ser sancionadas pelos países europeus36. É medida que visa a expandir
o cerco em volta dos oligarcas russos e de quem apresenta relevância para
apoiar os objetivos ilegais e ilegítimos do governo russo.
A iniciativa dos Estados em afetar os direitos individuais está condi-
zente com a ideia de empregar iniciativas que afetam pessoas influentes no
governo russo, seja por fazerem parte diretamente dele ou pelo prestígio que
possuem quanto ao Presidente russo, que é um dos sancionados. A relação
com seus bens tem o objetivo de, ao envolver o seu patrimônio, fomentar a
mudança de postura no apoio à guerra na Ucrânia, influenciando que essa
mesma conduta seja implementada pelo governo russo, o qual teria os seus
apoios político e financeiro reduzidos. É iniciativa legítima, que tem bom
fundamento, pois se o Estado russo não possui como acessar parte dos seus
recursos pelas sanções e não pode ter o suporte dos seus apoiadores privados
financeiros e políticos, torna-se mais possível que se desmobilize, cessando
as hostilidades, ao menos temporariamente.
34 COUNCIL OF EUROPE. Op cit. (nota 13).
35 EUROPEAN COMISSION. Enforcing sanctions against listened Russian and Belarusians oligarchs: Com-
mission’s “Freeze and Seize” Task Force steps up work with international partners, 17 mar. 2022. Disponível
em: https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/IP_22_1828. Acesso em: 25 set. 2022.
36 EUROPEAN COMISSION. Op cit. (nota 24).
120

Essa possibilidade de restringir direitos individuais faz parte da capaci-


dade de ação do Estado de estabelecer as sanções, ou seja, o fundamento que
sustenta a atuação quanto ao Estado russo é basicamente o mesmo que permite
a imposição de reprimendas aos indivíduos. Dessa forma, a atuação descon-
forme do Estado com o direito internacional faz com que os demais Estados
tenham a possibilidade de impor sanções aos nacionais daquele país de modo
individual, como parte do direito à legítima defesa coletiva. Essa prática foi
realizada no contexto da anexação da Crimeia e permite tanto o congelamento
quanto o confisco dos bens das pessoas públicas e privadas37.
Por essa compreensão, não há que se discutir sobre a legalidade dessa
medida, entretanto, fazem-se algumas ponderações quanto à compatibilidade
com os direitos humanos e a possibilidade de recorrer contra as sanções e seus

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


efeitos perante tribunais internacionais. Como demonstrado, a forma pela qual
as sanções são impostas pode consubstanciar violação a direitos humanos. Cada
Estado possui a sua regulação própria de como esses congelamentos e confiscos
ocorrem, mas, mesmo que se se sustente a adequação das pessoas a algumas das
categorias dos indivíduos sancionáveis, essa ligação tem de ser suficientemente
provada, com a garantia do direito ao devido processo e ao julgamento justo, o
qual é aplicável a todas as esferas de expressão do Estado, não apenas a crimi-
nal, mas também envolve procedimentos civis e administrativos, de natureza
pública e com respeito a todos os seus direitos processuais38.
Ademais, as sanções apresentam adequação de acordo com as regras de
cada Estado ou bloco, logo, para que a sua legalidade seja debatida perante as
instâncias internacionais de proteção dos direitos humanos, como o Sistema
Europeu, exige-se, pelas determinações do art. 35.1, da Convenção Europeia
de Direitos Humanos, o prévio esgotamento dos recursos internos dos Esta-
dos. Dessa maneira, mesmo que sejam consideradas ilegais de acordo com a
normativa dos direitos humanos, ainda assim a decisão definitiva de mérito
não será prolatada de imediato, o que dificultam os efeitos do recurso a essa
via no âmbito internacional.

5. Conclusão

A partir das considerações anteriores, é possível concluir que as sanções


institucionais ao Estado russo e aos russos no âmbito da ONU não detém
maiores possibilidades de aplicação, diante do poder de veto da Rússia no
Conselho de Segurança da ONU, o que impede a imposição de reprimendas
37 CARREAU, D.; BICHARA, J.-Ph. Op cit. (nota 4), p. 696.
38 SHAH, Sangeeta. Administration of Justice. In: MOECKLI, Daniel; SHAH, Sangeta; SIVAKUMARAN, Sandesh.
International Human Rights Law. Oxford: Oxford University Press, p. 304-330, 2010. p. 31.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 121

coercitivas, as quais são de competência apenas desta instância de deliberação.


Esse contexto faz com que as sanções unilaterais e coletivas sejam meio de
implementar iniciativas com certo grau de coercibilidade, para que se pressione
o Estado russo a deixar os seus objetivos de guerra contra a Ucrânia.
As sanções econômicas ao Estado russo encontram respaldo acerca da
sua legalidade no art. 51, da Carta da ONU, todavia é indispensável que sejam
consideradas as consequências humanitárias dessas reprimendas, tanto quanto
à população dos Estados do conflito quanto aos demais Estados. No caso do
conflito entre Rússia e Ucrânia, as reverberações sobre a garantia da dignidade
das pessoas fazem com que seja necessário refinar essas sanções, para que
sejam mais objetivas em suas pretensões e que se faça frente aos efeitos sobre
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

os vulneráveis, principalmente pela atuação das organizações internacionais.


Por sua vez, as sanções individuais não encontram o mesmo caráter incontro-
verso, pois, apesar de suas finalidades legítimas, os mecanismos pelos quais
são expressas podem caracterizar violações aos direitos humanos.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
7. OPERAÇÕES CIBERNÉTICAS COMO
PARTE DA GUERRA HÍBRIDA CONTRA
A UCRÂNIA E SUA COMPATIBILIDADE
COM A CARTA DA ONU
Marcelynne Aranha Almeida
Sven Peterke

1. Entre as “guerras híbridas” e o poder no ciberespaço


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

O conceito de hybrid warfare, ou guerra híbrida, não compreende fenô-


meno intrinsecamente recente, mas reflete preocupação contemporânea e que
se destrincha em cada vez mais vertentes de se utilizar de instrumentos de
poder e de se fazer guerra. Seja pela corrente difusão de estratégias e táticas
para obter vantagem sobre o inimigo, ou pela gama de formas alternativas de
luta armada, o termo remete à convergência de métodos ortodoxos de beli-
gerância, com enfoque nas incumbências das forças armadas regulares e nos
conflitos interestatais, e de mecanismos de combate irregular, onde figuram
práticas criminosas, terrorismo etc., por atores não estatais e não necessaria-
mente fazendo uso de força armada.
Apesar da heterogeneidade de atores e de modos de guerra não ser algo
novo, foi em 2010 que uma entidade internacional – a Organização do Tratado do
Atlântico Norte (OTAN) – passou a delinear o potencial da combinação de táticas
e estratégias de guerra em um conceito, qual seja o de “ameaças híbridas”, com
vistas ao desenvolvimento de uma doutrina para combater tais. A OTAN designou
as ameaças híbridas como aquelas apresentadas por qualquer adversário potencial
ou atual – onde se incluem atores estatais e não estatais, inclusive terroristas – com
a capacidade, seja ela demonstrada ou provável, de empregar simultaneamente
meios convencionais e não convencionais em busca de seus objetivos1.
De fato, as teorias que permeiam as guerras híbridas emergiram sobre-
tudo no pós Guerra Fria, mas o cenário de crise na Ucrânia, com anexação
da Crimeia à Federação Russa em 2014, elevou as discussões sobre os deno-
minados conflitos multimodais2 ou híbridos. Ao recorrer a estratégias para

1 United States Government Accountability Office. GAO-10-1036R Hybrid Warfare. 10 set. 2010. Disponível
em: https://www.gao.gov/assets/gao-10-1036r.pdf. Acesso em: 9 set. 2022.
2 HOFFMAN, Frank G. Conflict in the 21st Century: the rise of hybrid wars. Arlington: Potomac Institute for
Policy Studies, 2007, p. 28.
124

invadir a Crimeia e para manter a Ucrânia fora das influências da OTAN e


da União Europeia, a Rússia supostamente utilizou de campanhas de desin-
formação, propagandas enganosas e fake news como aliadas na manipulação
da opinião pública3. Mediante exploração de vulnerabilidades para além da
militar – econômica, social etc. –, as ameaças híbridas abarcam a mudança
no modus operandi das guerras, com o incremento de operações não cinéticas
pautadas no benefício (ou malefício) às partes da dubiedade de existência de
uma situação de guerra juridicamente produzida.

Figura 1 – Modelo conceitual de Guerra Híbrida a partir de


abordagens que podem ser incluídas em seu escopo

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Guerra Híbrida
Convencional
Irregular
Guerra Híbrida
Guerra Irregular Criminalidade
Defesa Interna Convencional Guerra Convencional
Ciberataques
Terrorismo Irregular Conflito Interestatal
Contraterrorismo Criminalidade Forças Regulares
Não convencional Ciberataques
Contrainsurgência
ão
Operações de Estabilização

Fonte: United States Government Accountability Office. GAO-10-


1036R Hybrid Warfare. 10 set. 2010, p. 16 (adaptada).

Na gama de abordagens que podem estar incluídas na situação de guerra


híbrida, e na ausência de uma definição universalmente aceita, o termo ora é
utilizado como referindo-se ao desenvolvimento de capacidades para evitar
uma operação militar – cinética – ou dissuadir cenários de guerra convencional,
ora é utilizado remetendo ao incremento ou como precursor de uma campanha
militar4. Certo é que, em todas as searas de motivação do uso das ameaças
híbridas, seja ela política, social ou econômica, a exploração dos meios ciber-
néticos ou de instrumentos de tecnologia da informação tem sido ampliada.

3 DELEGATION OF THE EUROPEAN UNION TO THE PEOPLE’S REPUBLIC OF CHINA. Desinformation


About Russia’s invasion of Ukraine – Debunking Seven Myths spread by Russia. 18 mar. 2022. Disponível
em: https://www.eeas.europa.eu/delegations/china/disinformation-about-russias-invasion-ukraine-debunkin-
g-seven-myths-spread-russia_en?s=166. Acesso em: 11 set. 2022.
4 ABDYRAEVA, Cholpon. The use of cyberspace in the context of hybrid warfare: means, challenges and
trends. OIIP – Austrian Institute for International Affairs, v. 107, p. 2-36, 2020. p. 13. Disponível em: https://
www.jstor.org/stable/resrep25102. Acesso em: 29 ago. 2021.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 125

O uso do espaço cibernético, enquanto ambiente virtual onde constam


dados digitalizados e que funciona como extensão da tecnologia informacional,
desponta como característica de manifestação de poder evidenciada no século
XXI, apesar da “cibernética” cunhada por Norbert Wiener (1894-1964) na
esfera científica datar de momento anterior, ao fim da Segunda Guerra Mun-
dial5. Com efeito, os estudos das ramificações da teoria das mensagens como
meios de dirigir maquinaria e sociedade, ou sobre um novo viés de comuni-
cação, controle e cognição entre animal e máquina6 conduziu ao surgimento
das ciências da Tecnologia da Informação (TI) da atualidade.
Do pontapé suscitado pelas pesquisas sobre linguagem e comunicação
cibernética, eis que o termo “ciberespaço” passa a ser empregado para apontar
a existência de um novo domínio relacional, onde há o hibridismo do físico
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

e do virtual; em definição largamente utilizada, remete ao

[...] domínio global dentro do ambiente da informação, cujo caráter dis-


tinto e único é moldado pelo uso da eletrônica e do espectro magnético
para criar, armazenar, modificar, trocar e explorar informações por meio
de redes interdependentes e interconectadas usando tecnologias de infor-
mação e comunicação7.

A acepção de um novo domínio relacional adentra as discussões sobre con-


flitos internacionais na medida em que auxilia estrategicamente na consecução
de objetivos bélicos. Ou, ainda, à proporção que deslinda uma nova forma de
exercício de poder entre os Estados na persecução de seus interesses. É evidente
que a lógica de poder baseado na informação não compreende uma novidade
para o âmbito internacional, mas quando o acesso à informação passa a ser
maiormente explorado e facilitado em níveis antes inimagináveis, alcança-se
uma nova categoria de interesse para os estudos sobre paz e guerra.
Dentre os mais diversos termos provenientes de estudos sobre o novo
domínio e utilização de recursos cibernéticos como fonte de poder ou mesmo
como arma de guerra, a expressão “poder cibernético”, cyber power, alinhou-se
ao fenômeno das guerras híbridas ao implicar na capacidade de usar o cibe-
respaço para criar vantagens e influenciar eventos nos mais diversos ambien-
tes operacionais (terrestre, marítimo, aeroespacial, geoespacial, ou no próprio

5 WIENER, Norbert. Cybernetics: or the control and communication in the animal and the machine. Massa-
chusetts: MIT – Massachusetts Institute of Technology, 1948.
6 WIENER, Norbert. Cibernética e Sociedade: o uso humano de seres humanos. Tradução: José Paulo Paes.
2. ed. São Paulo: Cultrix, p. 15-16, 1965.
7 KUEHL, Daniel T. From cyberspace to cyberpower: defining the problem. In: KRAMER, F. D.; STARR, S.
H.; WENTZ, L. K. (eds.). Cyberpower and National Security. Washington: University of Nebraska Press, p.
24-42, 2009, p. 27.
126

ciberespaço)8 e por explicitar a possibilidade de interligar forças convencionais


e irregulares, combatentes e civis, destruição física e operações de informação9
– ou “guerras de (des)informação” – em um mesmo episódio ou circunstância
demasiadamente complexa e de difícil delimitação jurídica.
Os instrumentos de poder cibernético, que se relacionam com a criação,
controle e comunicação de informações10 por computadores, redes, internet,
campo eletromagnético etc., por sua vez, são os mesmos que repercutem
como campanhas de desinformação em massa nas redes sociais, interferên-
cias em processos eleitorais, interrupção de redes de comunicação, ataques à
infraestrutura crítica de um país, minando o acesso a serviços essenciais, como
fornecimento de água e energia, dentre outros. Esses ciberataques, enquanto

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


ameaças proferidas por meio do espaço cibernético em diferentes níveis e
situações para obter o que se deseja – o desfecho do “poder cibernético” –
estão demasiadamente presentes no contexto do conflito russo-ucraniano, e
são utilizados para desestabilizar governos.
Ao lado de outras ações de guerra híbrida, como uso de ferramentas de
sanções políticas, utilização de recursos naturais como instrumento de política
externa, manipulação social ou psicológica, apoio a grupos separatistas etc.,
o uso de ataques cibernéticos têm ganhado forte conotação internacional ao
possibilitar a distribuição de poder entre Estados de maneira relativamente
barata, acessível a atores estatais e não estatais, mas com capacidade de gerar o
impacto almejado de forma por vezes secreta ou dissimulada e sem confrontos
físicos ou declaração de guerra11. Aliás, esse é um dos intuitos próprios de
se aderir às ações de guerras híbridas: explorar vulnerabilidades e alcançar
objetivos estratégicos valendo-se da ambiguidade e criatividade para gerar
incertezas às margens das leis internacionais.

2. Uso de operações cibernéticas no conflito russo-ucraniano

Desde a anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014, a Ucrânia tem sofrido


diversos ciberataques, afetando persistentemente a capacidade do governo e das
forças armadas ucranianas de se comunicar e de operar. Tais ataques ocorre-
ram sobretudo via spear phising12, malwares, ataques de DoS (Denial of Ser-
vice) e DDoS (Distributed Denial of Service) e outras formas de interrupção e
8 Id., p. 24-25, 38.
9 NYE JR., Joseph S. The future of power. New York: Public Affairs, p. 34, 123, 2011.
10 Ibid., p. 123.
11 ABDYRAEVA, C. Op cit. (nota 4), p. 16.
12 Spear phishing é um golpe proveniente de e-mail ou comunicação eletrônica, direcionado a um indivíduo, orga-
nização ou empresa específicos voltado ao comprometimento de dados e exposição de informações privadas.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 127

espionagem cibernética13. Os primeiros ataques cibernéticos teriam ocorrido em


13 de março de 2014, poucos dias antes do referendo sobre o estatuto político da
península, quando foi detectado o uso de DDoS para desestabilizar as redes de
computadores e comunicações ucranianas e assim desviar a atenção do público
da presença de tropas russas na Crimeia14. Pouco depois, os ciberataques contra
a infraestrutura crítica ucraniana tiveram como alvo as eleições presidenciais,
em maio de 2014, e repercutiram como tentativa de fraudar resultados e de
desacreditar o sistema eleitoral aos olhos do público; a autoria dos ataques teria
sido atribuída a um grupo hacktivista pró-Rússia, o CyberBerkut15.
A partir de então, a Ucrânia passou a ser considerada um verdadeiro campo
de testes de ataques cibernéticos por hackers russos, onde diferentes malwares,
com variadas ferramentas, técnicas, funcionalidades e propósitos foram utiliza-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

dos, valendo-se da complexa classificação dos atos cometidos no ciberespaço


e da difícil atribuição de autoria ao governo russo, que veementemente nega o
patrocínio e envolvimento da sua agência de inteligência militar com os ataques.
Para além do uso estratégico da informação a favor de propagandas e
campanhas de desinformação e manipulação psicológica e social de indivíduos
e povos – práticas que coadunam como ferramentas de guerra híbrida – o
incremento das capacidades cibernéticas já em 2015 exibiu o potencial de
causar danos ainda mais graves e físicos: em dezembro do mesmo ano, atores
cibernéticos pró-Rússia desferiram um ataque organizado que comprometeu
temporariamente três centros de fornecimento de energia elétrica ucranianos,
afetando milhares de pessoas16.
Segundo especialistas em segurança cibernética, o ataque supracitado
teria sido realizado sob alto nível de sofisticação e preparo, e propositadamente
utilizado como espécie de sinalização, alerta ou ameaça, sobre a capacidade
de atacar a infraestrutura física da Ucrânia17. Outros ciberataques ao setor
energético que sucederam aquela que seria a primeira18 operação cibernética

13 CONNELL, Michael; VOGLER, Sarah. Russia’s Approach to Cyber Warfare. Center for Naval Analyses
Occasional Paper Series, Arlington, mar. 2017, p. 19. Disponível em: https://www.cna.org/cna_files/pdf/
DOP-2016-U-014231-1Rev.pdf. Acesso em: 16 jan. 2022.
14 European Parliamentary Research Service. Russia’s war on Ukraine: Timeline of cyber-attacks. European
Parliament, jun. 2022. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/BRIE/2022/733549/
EPRS_BRI(2022)733549_EN.pdf. Acesso em: 11 nov. 2022.
15 CLAYTON, Mark. Ukraine election narrowly avoided ‘wanton destruction’ from hackers. The Christian Science
Monitor,17 jun. 2014. Disponível em: https://www.csmonitor.com/World/Passcode/2014/0617/Ukraine-elec-
tion-narrowly-avoided-wanton-destruction-from-hackers. Acesso em: 4 set. 2022.
16 CONNELL, M.; VOGLER, S. Op cit (nota 13), p. 20.
17 Ibid., Id.
18 POLITYUK, Pavel. Hackers have infiltrated Ukraine’s power grid – and they could take down other infrastructure
at any time. Business Insider. 27 jan. 2016. Disponível em: https://www.businessinsider.com/r-exclusive-hac-
kers-may-have-wider-access-to-ukrainian-industrial-facilities-2016-1. Acesso em: 10 out. 2022.
128

contra a rede elétrica de outro país não ficaram aquém19, e a alta capacidade de
realizar ataques coordenados e sincronizados para controlar e operar remota-
mente disjuntores e influir sobremaneira em instalações industriais faz ponderar
que, pelo desenvolvimento e precisão, tais malwares bastante complexos não
tenham sido programados por um indivíduo ou organização não estatal20.
Em 2017, o uso de ataques cibernéticos foi intensificado, com o famoso
caso do malware de exclusão de dados NotPetya, que atingiu proporções
mundiais. Tido como um dos piores ciberataques do mundo21, o NotPetya
foi projetado para se propagar automaticamente e, ao infectar computadores,
possuía a capacidade de tornar o sistema inutilizável. Inicialmente, foi lançado
no contexto do conflito entre Rússia e Ucrânia para prejudicar a funcionali-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


dade de sistemas ucranianos, mas espalhou-se globalmente e trouxe danos
que podem ter atingido os 10 bilhões de dólares americanos, afetando bancos,
agências governamentais, setores de energia e saúde, paralisando portos e
impactando o transporte e logística internacionais22. O malware, apesar de se
propagar de forma indiscriminada e de, entre seus alvos e consequências mais
expressivas, ter atingido os sistemas de monitoramento de radiação da usina
nuclear de Chernobyl e ter impossibilitado a prestação de serviços médicos
e a realização de cirurgias ao redor do mundo23, objetivou sobretudo perdas
econômicas a entidades ucranianas públicas e privadas24, e não foi vinculado
a danos mais graves, como mortes e ferimentos25.
A autoria do NotPetya foi atribuída à Rússia, inicialmente pelo governo
ucraniano, em razão do histórico e sistemática de ciberataques que já vinha
sofrendo26, e posteriormente afirmada por diversos governos e instituições,
19 European Parliamentary Research Service. Op cit.
20 CONNELL, M.; VOGLER, S. Op cit. (nota 16), p. 21.
21 GREENBERG, Andy. The Untold Story of NotPetya, the Most Devastating Cyberattack in History. Wired, 22
ago. 2018. Disponível em: https://www.wired.com/story/notpetya-cyberattack-ukraine-russia-code-crashed-
-the-world/. Acesso em: 2 nov. 2021.
22 GISEL, Laurent; OLEJNIK, Lukasz. The potential human cost of cyber operations: Starting the conversation.
Humanitarian Law & Policy, 14 nov. 2018. Disponível em: https://blogs.icrc.org/law-and-policy/2018/11/14/
potential-human-cost-cyber-operations/. Acesso em: 19 set. 2020.
23 GLOBAL INITIATIVE AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME. Cybercrime: threats during the
COVID-19 pandemic. Global Initiative Against Transnational Organized Crime, abr. 2020. p. 3. Disponível em:
https://globalinitiative.net/wp-content/uploads/2020/04/Cybercrime-Threats-during-the-Covid-19-pandemic.
pdf. Acesso em: 20 de nov. 2021.
24 CYBER LAW TOOLKIT. NotPetya (2017). NATO CCDCOE, 2022. Disponível em: https://cyberlaw.ccdcoe.
org/wiki/NotPetya_(2017). Acesso em: 11 nov. 2022.
25 SCHMITT, Michael; BILLER, Jeffrey. The NotPetya Cyber Operation as a Case Study of International Law.
EJIL: Talk!, 11 jul. 2017. Disponível em: https://www.ejiltalk.org/the-notpetya-cyber-operation-as-a-case-s-
tudy-of-international-law/. Acesso em: 22 jan. 2022.
26 POLITYUK, P. Ukraine points finger at Russian security services in recent cyber attack. Reuters, 1 jul. 2017.
Disponível em: https://www.reuters.com/article/us-cyber-attack-ukraine/ukraine-points-finger-at-russian-se-
curity-services-in-recent-cyber-attack-idUSKBN19M39P. Acesso em: 15 nov. 2022.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 129

após investigações direcionadas ao incidente. Após o grande prejuízo finan-


ceiro causado pelo malware, Estados Unidos e União Europeia conferiram
atribuição legal russa ao caso, acusando oficiais da inteligência militar de
envolvimento com o uso malicioso das tecnologias de informação e comuni-
cação, e lançaram mão de sanções econômicas27.
A destreza dos ataques cibernéticos não diminuiu. Aliás, o NotPetya
adentrou à lista de ciberataques que foram efetuados para causar perturbação
e supostamente passar a mensagem aos ucranianos de que não estavam livres
do controle autoritário russo, já que iniciou pouco antes da data comemora-
tiva da aprovação da Constituição da Ucrânia28. Entre 2018 e 2021, várias
tentativas de ataque cibernético foram direcionadas a diversos setores da
infraestrutura crítica ucraniana, como a do frustrado VPNFilter ao sistema
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

de destilação de cloro ucraniano, o qual poderia ter causado uma situação


de emergência social em caso de êxito na inoperabilidade dos processos de
tratamento de água do país29.
Em 2022, no entanto, houve um aumento significativo de ataques ciberné-
ticos às instituições ucranianas, nas semanas que antecederam a invasão russa,
em fevereiro, estendendo-se ao longo dos meses. Em meio a operações de
desfiguração de sites governamentais para desestabilizar a situação interna do
país, cerca de 70 sites do governo ucraniano foram invadidos e passaram a exi-
bir mensagens de ameaça à população30, houve ataques de negação de serviço
(DDoS) a sites ministeriais e a bancos estatais31, campanhas de desinformação
via mensagens de texto aos cidadãos ucranianos32, etc., com vistas a gerar caos e
desespero na sociedade. Enquanto tais ataques cibernéticos ocorriam, soldados
russos se organizavam nas fronteiras ucranianas, valendo-se do pânico e instabi-
lidade gerada para obter vantagens nas ações militares no campo de batalha. A
combinação de ataques cibernéticos com meios convencionais ficou ainda mais
evidente a partir do dia 24 de fevereiro, quando foram detectados sucessivos
ataques aos sistemas de comunicação e ao satélite KA-SAT – interrompendo
27 BENDIEK, Annegret; SCHULZE, Matthias. Attribution: A Major Challenge for EU Cyber Sanctions. Stiftung
Wissenschaft und Politik Research Paper, n. 11, p. 1-46, 16 dec. 2021. p. 25-26.
28 Ibid., Id.
29 OSBORNE, Charlie. Ukraine blocks VPNFilter attack against core country water system. ZDNET, 13 jul.
2018. Disponível em: https://www.zdnet.com/article/ukraine-blocks-vpnfilter-attack-against-core-country-wa-
ter-system/. Acesso em: 12 out. 2022.
30 TIDY, Joe. Ukraine cyber-attack: Russia to blame for hack, says Kyiv. BBC News, 14 jan. 2022. Disponível
em: https://www.bbc.com/news/world-europe-59992531. Acesso em: 3 abr. 2022.
31 HOPKINS, Valerie. A hack of the Defense Ministry, army and state banks was the largest of its kind in
Ukraine’s history. The New York Times, 15 fev. 2022. Disponível em: https://www.nytimes.com/2022/02/15/
world/europe/ukraine-cyberattack.html. Acesso em: 13 nov. 2022.
32 BERGENGRUEN, Vera. How Putin Is Losing at His Own Disinformation Game in Ukraine. Time, 25 fev.
2022. Disponível em: https://time.com/6151578/russia-disinformation-ukraine-social-media/. Acesso em:
13 nov. 2022.
130

conexões de internet uma hora antes da invasão –, à sites do governo e à sistemas


de acesso a serviços financeiros e de energia33.
Desde então, diversos ciberataques foram direcionados a sites governamen-
tais, instituições de telecomunicações, financeiras, de caridade e de ajuda huma-
nitária, relatando-se a dificuldade de distribuição de medicamentos, alimentos e
suprimentos emergenciais em meio ao conflito armado34. A Ucrânia não ficou à
mercê dos ataques e criou o seu “exército de TI” para a defesa contra os hackers
russos e para atividades de contra operação às ameaças, recebendo também o
apoio de indivíduos e grupos de fora do país35. Entre os apoiadores, figuram o
empresário Elon Musk, que, após pedido de ajuda do vice primeiro-ministro da
Ucrânia, Mykhailo Fedorov, permitiu o fluxo de internet pelo país a partir do uso
dos satélites Starlink e possibilitou a comunicação entre as tropas ucranianas36, e

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


o coletivo hacktivista Anonymous, que tem desfigurado sites e lançado diversos
ataques cibernéticos a veículos de notícias e instituições russas37.
Gerada a batalha complexa de várias camadas, ampliada pelo leque de
atores envolvidos em um conflito armado como nunca antes visto, diversos
desafios à luz do direito internacional surgem, e serão temas de constante
investigação nos anos por vir: a existência de um quadro legal para regula-
mentar ataques cibernéticos; a graduação dos efeitos de operações ciberné-
ticas; a medida em que as ameaças cibernéticas são tratadas pelas normas
humanitárias; o papel e a categorização do hacktivismo em conflitos armados;
etc. Em termos de legalidade do uso de “operações cibernéticas” no conflito
russo-ucraniano, contudo, uma breve análise a partir dos parâmetros da Carta
das Nações Unidas é desde já possibilitada, e pode viabilizar debates poste-
riores e para além dos desdobramentos no jus ad bellum.

3. O que nos diz a carta da ONU

Bastante se utiliza o termo “ataque cibernético” para designar “qualquer


ato de um insider ou outsider que compromete as expectativas de segurança
33 European Parliamentary Research Service. Op cit.
34 Ibid., Id.
35 PALMER, Danny. Russia’s invasion of Ukraine has been accompanied by cyberattacks and now Ukraine
is recruiting volunteers to defend networks – and hack back. ZDNET, 1 mar. 2022. Disponível em: https://
www.zdnet.com/article/ukraine-is-building-an-it-army-of-volunteers-something-thats-never-been-tried-before/.
Acesso em: 9 nov. 2022.
36 ANKEL, Sophia. Ukrainian soldier says Elon Musk’s Starlink satellites ‘changed the war in Ukraine’s favor’
as they’re helping troops stay online amid Russian strikes. Business Insider, 28 abr. 2022. Disponível em:
https://www.businessinsider.com/elon-musk-starlink-satellites-helping-ukraine-fight-soldier-2022-4. Acesso
em: 9 nov. 2022.
37 MILMO, Dan. Anonymous: the hacker collective that has declared cyberwar on Russia. The Guardian, 27
fev. 2022. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2022/feb/27/anonymous-the-hacker-collecti-
ve-that-has-declared-cyberwar-on-russia. Acesso em: 9 nov. 2022.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 131

de um indivíduo, organização ou nação”38 ou aquilo “que não está autorizado


a acontecer” a um computador ou rede, mediante exploração de vulnerabili-
dade cibernética39, de maneira abrangente e desvinculada das acepções que
a palavra “ataque” pode ter nas searas do jus ad bellum e do jus in bello.
Ocorre que, aos olhos do direito internacional, os tipos de ciberataques podem
obedecer a diferentes conotações e ter repercussões diversas.
Por isso, em documentos com fulcro jurídico, por vezes prefere-se o
termo “operações cibernéticas” para abordar as ações ofensivas ou defensivas
no ciberespaço, sem qualquer juízo ou enquadramento prévio das atividades.
De toda sorte, valendo-se da compreensão comum de “ciberataques” como
operações cibernéticas, entende-se que ambos termos implicam em atividade
inesperada, cuja análise da escala e efeitos, numa observação da natureza
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

qualitativa das consequências40, pode corroborar para uma posterior classi-


ficação dos atos cibernéticos.
O art. 2(4) da Carta da ONU, ao refletir o direito internacional costumeiro,
dispõe sobre a proibição geral da ameaça ou o uso da força contra a integridade
territorial ou independência política de qualquer Estado, e é excepcionado pelas
previsões do art. 42, vide autorização do Conselho de Segurança, e do art. 51,
nos casos de legítima defesa. Tais exceções proporcionam o aprofundamento do
jus ad bellum, (direito do uso da força41) que busca limitar o recurso da força
entre os Estados, regulamentando quando estes podem utilizar legalmente tal
força, e quando devem ou podem se ater a providências outras, como diplo-
macia, uso de sanções econômicas e contramedidas.
Em particular, a aplicabilidade do art. 2(4) e sua contraparte às operações
cibernéticas naturalmente requer o cumprimento de três requisitos, quais sejam:
a atribuição da conduta a um Estado – atividades de indivíduos privados ou gru-
pos armados não são abarcadas pela disposição –; a operação cibernética deve
constituir ameaça ou uso da força; a ameaça ou uso da força deve ser exercido
na condução das relações internacionais – ou seja, entre Estados42.
38 “We define a cyber-attack as any act by an insider or an outsider that compromises the security expectations
of an individual, organization, or nation”. GANDHI, Robin; et al. Dimensions of Cyber-Attacks: social, political,
economic, and cultural. IEEE Technology and Society Magazine, v. 30, n. 1, p. 28-38, 2011, p. 29.
39 SNL – Sandia National Laboratories. A Common Language for Computer Security Incidents. SNL, out. 1998,
p. 11-12. Disponível em: https://doi.org/10.2172/751004. Acesso em: 24 ago. 2021.
40 SCHMITT, Michael N. “Attack” as a Term of Art in International Law: The Cyber Operations Context. In:
CZOSSECK, C.; OTTIS, R.; ZIOLKOWSKI, K. (eds.), 4th International Conference on Cyber Conflict. Tallinn:
NATO CCD COE, p. 283-293, 2012, p. 288.
41 Também chamado de jus contra bellum (direito da prevenção à guerra): VAN STEENBERGHE, Raphael.
The Law against War or Ius contra Bellum: A New Terminology for a Conservative View on the Use of Force?
Leiden Journal of International Law, v. 24, n. 3, p. 747-788, 2011, p. 747.
42 ROSCINI, M. Cyber operations as use of force. In: TSAGOURIAS, Nicholas; BUCHAN, Russell (eds.).
Research Handbook on International Law and Cyberspace. Cheltenham: Edward Elgar, p. 297-316,
2021. p. 299.
132

Quando tratando de uso de operações cibernéticas, bastante se ques-


tiona a existência de categorização ou de um limiar a partir do qual a ação
cibernética pode ser vista como “uso da força” e, logo, sobre a possibilidade
de violação da Carta por um Estado via ciberespaço. Não há unanimidade
sobre os pormenores do assunto, e as operações cibernéticas continuam a ser
utilizadas como medidas híbridas para que não fiquem claras as prováveis
violações à Carta. A tradução e interpretação dos eventos no mundo digital
para o ambiente físico e vice-versa aduz tarefa complexa, contudo, para tentar
nortear a classificação de ciberataques como uso da força, especialistas do
Manual de Tallinn têm dado um passo à frente na discussão sobre possíveis
critérios de avaliação.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Segundo o Manual, com a observação de critérios não formais ou exausti-
vos como gravidade, iminência, objetividade, caráter invasor, mensurabilidade
dos efeitos, conotação militar, envolvimento estatal e legalidade presuntiva43,
os ataques cibernéticos poderiam ser melhor classificados. Os parâmetros não
são tão tangíveis para o ciberespaço como podem ser para contextos cinéticos,
mas sinalizam as proporções em que um ciberataque pode ser visto como mero
inconveniente, coerção, uso da força ou até mesmo como ataque armado; noção
particularmente útil para entender como, legalmente, os Estados podem respon-
der ao ciberataque – se em nome do art. 51 da Carta, por contramedidas, ou por
intermédio de outras ações que não impliquem em uso da força.
Nessa linha, por exemplo, ataques cibernéticos atribuíveis a um Estado
e que impliquem em manipulação de eleições ou em danos reversíveis e
de baixa extensão à infraestrutura cibernética pública ou privada de outro
Estado não corresponderiam a uso da força, mas podem indicar violação
à integridade territorial e interferência em funções inerentemente gover-
namentais do Estado-vítima44, ou seja, aos princípios gerais de direito
internacional de respeito à soberania e de não intervenção. Esse pode ser
o caso dos ataques cibernéticos que acarretaram em negação de acesso a
dados governamentais e em desfiguração de sites ministeriais ucranianos,
em fevereiro de 2022. Observa-se, entretanto, que classificação das ope-
rações cibernéticas à luz da Carta da ONU requererá sempre uma análise
detalhada e multifacetada, onde escala e efeitos dos atos não devem ser
determinados prematuramente. Similarmente, o juízo de violação à não
intervenção deve ser fundamentado pela caracterização do elemento de
coerção de um Estado sobre outro – o exercício de pressão abusiva para

43 SCHMITT, Michael N (ed.). Tallinn Manual 2.0 on the International Law Applicable to Cyber Operations.
Prepared by the International Group of Experts at the Invitation of the NATO Cooperative Defence Centre
of Excelente. 2. ed. Cambridge University Press, 2017, p. 333-337.
44 Ibid., p. 313; SCHMITT, M.; BILLER, J. Op cit. (nota 25).
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 133

obrigar o Estado a fazer ou deixar de fazer algo em detrimento de sua


função soberana45.
É perceptível que termos-chave como “uso da força” não são assertivos
nem mesmo para assessorar os conflitos cinéticos, que se valem de definições
e significados inferidos por precedentes históricos e pela praxe – como os
Estados, as Nações Unidas e os órgãos judiciais internacionais têm defi-
nido o termo em casos particulares46 –, por isso, não se espera concordân-
cia instantânea ou consistência para o contexto de conflitos cibernéticos. A
interpretação doutrinária e a prática subsequente dos Estados em relação ao
art. 2(4) anteriormente aos conflitos cibernéticos têm demonstrado que o
dispositivo se limita à “força armada”, onde se excluem coerções políticas
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ou econômicas47. O risco da constante comparação entre ataques cinéticos


e “força armada cibernética” para tentar classificar as ações no ciberespaço
está na expectativa de que os efeitos sejam os mesmos, quando a lógica para
causar danos via ciberataques pode ser completamente diversa e não tão
mensurável, sobretudo em tempos de crescente dependência do ciberespaço
pelos Estados e civilizações.
Para se valer da legítima defesa constante no art. 51 da Carta, a ope-
ração cibernética deve equivaler a um “ataque armado”, em situação ainda
mais restritiva, a partir da qual inferem-se as formas mais gravosas de uso
da força48. Entende-se que a existência de “armas” como instrumentos físi-
cos de emprego de violência não é requisito para visualização de um ataque
armado49, assim como não o é para a determinação de uma operação como
uso da força. Aliás, a proibição constante no art. 2(4) se aplica a “qualquer uso
da força, independentemente das armas empregadas”50, e, inicialmente, não
haveria maiores óbices para a possível aferição de uma operação cibernética
como ataque armado. Destarte, a regra do art. 51 faz orientar que, Estados os
quais lidem com uso da força que não alcance o nível de ataque armado, não
poderão utilizar-se da força em legítima defesa, mas devem recorrer a outras
medidas lícitas de responsabilidade internacional; seria a hipótese de valer-se
de contramedidas ou ações consistentes com o fundamento de necessidade,
45 ROSCINI, Marco. Op cit. (nota 42), p. 313-314.
46 LIN, Herbert. Cyber conflict and International Humanitarian Law. International Review of the Red Cross, v.
94, n. 886, p. 515-531, 2012. p. 524.
47 ROSCINI, M. Op cit. (nota 42), p. 299-300; GISEL, Laurent; RODENHÄUSER, Tilman; DÖRMANN, Knut.
Twenty years on: International humanitarian law and the protection of civilians against the effects of cyber ope-
rations during armed conflicts. International Review of the Red Cross, v. 102, n. 913, p. 287-334, 2020. p. 307.
48 ICJ, Case concerning military and paramilitary activities in and against Nicaragua (Nicaragua v. United States
of America). Julgamento, 27 jun. 1986, § 191.
49 SCHMITT, M. N. Op cit. (nota 43), p. 287.
50 “These provisions do not refer to specific weapons. They apply to any use of force, regardless of weapons
employed”. ICJ, Legality of the Threat or Use of Nuclear Weapons. Opinião Consultiva, 8 jul. 1996, § 39.
134

nos casos de atos cibernéticos que representem um perigo grave e iminente


a um interesse essencial do Estado vitimizado51.
Embora os critérios de avaliação mencionados pelo Manual de Tallinn
colaborem com a visualização de uma operação cibernética como uso da
força, os mesmos especialistas que elaboraram o documento ressaltam que
há certa dificuldade em se definir quais seriam as formas “mais graves” de
uso da força por meio de ciberataques, já que a própria qualificação com
base na escala e efeitos preliminarmente desenhada pela Corte Internacio-
nal de Justiça, no julgamento Nicarágua versus Estados Unidos, de 1986,
permanece incerta52. O que há, de fato, é o aparente consenso53 de que, se
um ataque cibernético faz uso de recursos que causam ou são razoavelmente
susceptíveis de causar danos físicos à propriedade, morte ou ferimentos a

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


pessoas de maneira equivalente a ataques cinéticos, não apenas recairá sob
a proibição do art. 2(4), mas poderá atingir o nível de ataque armado, desde
que estes danos perfaçam a caracterização como “mais graves e significati-
vos”54. Ou seja: diante de um cenário tão novo e indefinido, equiparam-se as
consequências de um ataque cibernético com ataques cinéticos – ou mesmo
não cinéticos, como ataques químicos, biológicos e radiológicos55 – que a
comunidade internacional descreveria como uso da força e ataque armado
em virtude da gravidade e proporções alcançadas.
De todo modo, percebe-se que a qualificação de alguns ciberataques como
uso de força não é suficiente para validar o argumento de que, ampliando o
leque de possibilidades de violação ao art. 2(4), aumenta-se o risco de conflitos
interestatais; ainda que não sejam claros os parâmetros em que uma atividade
ofensiva no ciberespaço pode alcançar o nível de ataque armado, é evidente
que, pela restrição do art. 51, assim como nem toda operação cibernética é
uso da força, nem todo uso da força equivale a ataque armado. Qualificar as
atividades cibernéticas proferidas entre Estados trata-se de uma necessidade
constante do séc. XXI frente à evolução dos armamentos e ao incremento de
ameaças híbridas cada vez mais violentas e potencialmente lesivas.
É crescente a compreensão entre acadêmicos e Estados de que os ataques
cibernéticos que não resultem, ou que não tenham probabilidade razoável de
resultar, em danos físicos à propriedade ou a pessoas, ou, ainda, em perda
significativa de funcionalidade de infraestruturas físicas, não são uso da
força56. Nessa vereda, não implicariam nem em violação do art. 2(4) nem
51 SCHMITT, M.N. Op cit. (nota 41), p. 111-135.
52 Ibid., p. 341-342.
53 ROSCINI, M. Op cit. (nota 42), p. 305; SCHMITT, M. N. (ed.). Op cit. (nota 41), p. 341.
54 Parâmetros incertos, passíveis de verificação na práxis internacional. Ibid., p. 333, 341-343.
55 Ibid., p. 340.
56 Ibid., p. 333-337, 417-418; GISEL, L.; RODENHÄUSER, T.; DÖRMANN, K. Op cit. (nota 47), p. 307; ROSCINI,
Marco. Op cit. (nota 41), p. 305, 313.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 135

do art. 51 da Carta. Porém, reitera-se: o fato de não repercutirem em con-


sequências violentas, tal qual se espera em atos de força armada pelo artigo
supracitado, não exime os Estados de responsabilização pelo uso indevido
de operações cibernéticas. Ademais, ainda que não ocorra violação pelo art.
2(4), os ataques cibernéticos podem constituir violação aos princípios de
respeito à soberania e da não intervenção nos assuntos de outro Estado. Um
dos principais impasses, mesmo nesses termos, não deixa de ser a necessária
atribuição de autoria da operação cibernética à figura estatal.

4. Considerações finais
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Nota-se que a Carta expõe regras primárias de direito internacional, cuja


violação traça o caminho para a observação de normas secundárias, onde,
por sua vez, estão localizadas as diretrizes de responsabilidade internacional
do Estado. Antes da dificuldade própria de se afirmar ciberataques como
uso da força ou como outras condutas internacionalmente ilícitas, portanto,
há a problemática atribuição de autoria russa aos ciberataques sofridos pela
Ucrânia, posto que a negativa do governo russo de envolvimento com as
atividades é uma constante.
Destarte, como e em que medida as normas de responsabilidade interna-
cional existentes57 se aplicam a operações cibernéticas – visualizadas como
atos ilícitos –, consiste em assunto controverso. A busca por estabelecimento
de diretrizes específicas para as atividades internacionais no ciberespaço, ou
a interpretação a partir das regras já constantes, é salutar nos estudos sobre
segurança internacional na contemporaneidade. Com base em tais regras,
parâmetros para o problema de atribuição de uma operação cibernética a um
Estado podem ser visualizados, já que a gama de atores e a possibilidade
de disfarçar e falsificar a origem e autoria dos ciberataques não raramente
é vista como um aparato para livrar o Estado de seus deveres e obrigações
nas relações internacionais.
Não à toa, na sua função de desenvolver e monitorar assuntos correlatos
e de natureza humanitária, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha recen-
temente se posicionou sobre como a matéria de responsabilidade estatal deve
ser tratada no que condiz ao uso de operações cibernéticas, englobando a atri-
buição estatal às condutas de pessoas ou grupos, como milícias ou grupos de
hackers, que atuem sob instruções, direção ou controle do Estado58. Também
57 Por ora, norteadas pelos artigos sobre a Responsabilidade dos Estados por Atos Internacionalmente Ilícitos,
em Resolução da Assembleia Geral da ONU. UN GENERAL ASSEMBLY, A/RES/56/83 (2001).
58 ICRC. International Humanitarian Law and Cyber Operations during Armed Conflicts: ICRC position paper.
ICRC, nov. 2019. Disponível em: https://www.icrc.org/en/download/file/108983/icrc_ihl-and-cyber-operations-
-during-armed-conflicts.pdf. Acesso em: 2 out. 2020.
136

com base nos artigos sobre Responsabilidade dos Estados por Atos Internacio-
nalmente Ilícitos59 os especialistas do Manual de Tallinn acordaram que um
Estado pode ser responsabilizado por operações cibernéticas conduzidas por
atores não estatais quando tem efetivo conhecimento das atividades60. Aos
poucos, a comunidade internacional tem avançado nos pormenores de como as
operações cibernéticas não dispensam atenção às normas primárias constantes
na Carta da ONU, sejam essas ameaças híbridas qualificáveis como uso da
força ou não; reflexo disso são os fóruns realizados no escopo das Nações
Unidas61 sobre segurança internacional e uso do ciberespaço, e a inserção de
debates sobre como o direito internacional se aplica ao ciberespaço na agenda
da Organização dos Estados Americanos – OEA62.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Ao cenário de inquestionável conflito armado entre Rússia e Ucrânia,
é notório que as normas humanitárias, quais sejam as conferidas a partir
do direito consuetudinário e das Convenções de Genebra e seus Protocolos
Adicionais63, se aplicam ao uso de operações cibernéticas conexas ao con-
flito internacional. Aos casos factualmente ambíguos envolvendo ciberata-
ques entre os Estados, entre o direito internacional da manutenção da paz e
segurança (jus ad bellum) ou o direito internacional dos conflitos armados
(jus in bello), resta claro que, apesar dos diversos debates e opinio juris por
vir, não há uma situação de vácuo jurídico sob aqueles atos atentatórios aos
princípios gerais de direito internacional. O que há, entretanto, é a inevita-
bilidade de se investigar, qualificar e parametrizar a origem e o uso de tais
medidas híbridas, para que não semeiem o espírito de inação e fragilidade
do direito internacional.

59 UN GENERAL ASSEMBLY. Op cit. (nota 57), arts. 4-11.


60 SCHMITT, M.N. (ed.). Op cit. (nota 41), p. 94-100.
61 Os GGEs e OEWG, Group of Governmental Experts (GGE) on Advancing Responsible State Behaviour in
Cyberspace in the Context of International Security, inicialmente, GGE on Developments in the Field of Information
and Telecommunications in the Context of International Security, e Open-Ended Working Group on Developments
in the Field of Information and Telecommunications in the Context of International Security.
62 OAS. Inter-American Juridical Committee (CJI) Current Agenda, 2022. Disponível em: https://www.oas.org/
en/sla/iajc/current_agenda.asp. Acesso em: 11 jun. 2022
63 As quatro Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949, e os Protocolos Adicionais I e II de 8 de
junho de 1977.
8. GUERRA, MÚSICA,
PAZ E DIREITO INTERNACIONAL:
um ensaio sobre a potência das sonoridades
para a construção das concórdias
Marcílio Toscano Franca Filho

Uma vez que as guerras começam nas mentes das pessoas,


é nas mentes das pessoas que deve ser construída a defesa da paz
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

(Preâmbulo da Constituição da UNESCO, 16 de novembro de 1945).

Para Fyodor Petrov

1. Primeiro movimento
O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky pronunciou um discurso
surpresa durante a noite do Grammy 2022, em abril. Ali, dirigiu um pedido
a uma plateia espantada com a sua inesperada presença: “Em nossa terra,
estamos lutando contra a Rússia, que trouxe um silêncio horrível com suas
bombas. O triste silêncio da morte. Preencham esse silêncio com sua música.
Preencham-no agora. Contem nossas histórias. Digam a todos a verdade sobre
essa guerra [...]. Por favor, apoiem-nos de qualquer maneira possível. De todas
as formas, mas não com o silêncio. Então também haverá paz em todas as
cidades destruídas por esta guerra”1.
A guerra, porém, não é apenas silêncio. A guerra tem um som. E não é
só o rumor de bombas, os gritos, as sirenes antiaéreas, as explosões, o pranto
ou os tiros. Há também os hinos marciais, os clarins, o rufar de tambores, a
cadência da marcha e os cânticos de batalha que animam as tropas e ame-
drontam os inimigos. Essa tem sido a trágica e estrondosa melodia da guerra
há muitos séculos.
Em 2010, o popstar Simon Bikindi, célebre cantor e compositor de
Ruanda, espécie de Michael Jackson local e rosto mais visível do Ministé-
rio da Juventude e Esporte do país africano destruído pela guerra civil, foi
condenado a quinze anos de prisão, por crime contra a humanidade, por um
tribunal das Nações Unidas. O seu delito? Incitar de maneira grave, repetitiva,

1 Disponível em: https://www.grammy.com/videos/ukraine-president-volodymyr-zelensky-speech-2022-grammys.


Acesso em: 23 nov. 2022.
138

direta e pública, com composições musicais distribuídas em fitas cassete e


divulgadas em alto-falantes, shows ao vivo e gravações na Rádio Ruanda,
os seus compatriotas da etnia hutu ao feroz genocídio da etnia tutsi, durante
os massacres de 1994. Para os magistrados do Tribunal Penal Internacional
para Ruanda, em Haia, na Holanda, Simon Bikindi, ao criar a trilha sonora do
flagelo ruandense, foi culpado de incitamento ao genocídio com suas obras
que misturavam letras de rap a melodias tradicionais africanas. O caso foi
narrado e analisado – com brilhantismo – por James E. K. Parker, no seu
ótimo “Acoustic Jurisprudence: Listening to the Trial of Simon Bikindi”2.
Nunca antes um tribunal internacional havia condenado um músico pelo
teor de suas músicas, embora esta não fosse, nem de longe, a primeira vez que

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


a música tivesse sido utilizada para afrontar direitos humanos, como arma de
guerra, para fomentar o ódio racial ou como instrumento de tortura. Exemplos
antigos e recentes não são poucos, desde as estrepitosas Trombetas de Jericó,
da Bíblia, passando pela humilhante “Tauza”, a dança em que prisioneiros
políticos do Apartheid sul-africano eram obrigados dançar nus, diante de
outros detentos e policiais, a fim de expor potenciais objetos escondidos em
suas partes íntimas, chegando até mesmo à utilização da música como meio
de tortura psicológica em prisões em Abu Grahib, Guantánamo ou no Gulag
soviético. O drama de músicos judeus que eram obrigados a tocar para seus
algozes durante as festas do III Reich ou de prisioneiras políticas argentinas
que tinham que dançar com oficiais da ditadura militar em discotecas e centros
de diversão para as tropas tampouco podem ser jamais esquecidos.
Decididamente, nem toda música significa elevação intelectual, moral
ou espiritual. Música é uma ação profundamente social, nunca é inocente, e,
como todo resultado da conduta humana, é ambígua, pode ser explorada pela
ideologia e configurar-se como ferramenta ou resultado de nacionalismos,
extremismos e toda sorte de violência.

2. Segundo movimento

Mas e quanto à paz: a paz tem um som? Esse som seria um ruído ou
poderia ser música? Aliás, pode uma melodia constituir um caminho para
a paz? A música pode ser um instrumento de peacemaking, peacekeeping,
peacebuilding e peace enforcement3?

2 PARKER, James E. K. Acoustic Jurisprudence: Listening to the Trial of Simon Bikindi. Oxford: OUP, 2015.
3 Para uma definição didática desses conceitos, consultar: https://peacekeeping.un.org/en/terminology. Acesso
em: 23 nov. 2022.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 139

Naquela mesma Ruanda de Simon Bikindi, anos antes de sua conde-


nação, a musicista Odile Gakire (Kiki) Katese criou, em 2004, um grupo de
percussão tradicional formado apenas por mulheres chamado Ingoma Nshya.
Todas as mulheres eram sobreviventes da guerra civil ruandesa de 1994 e
egressas de ambos os lados do conflito. Algumas daquelas percussionistas
que haviam perdido parentes e entes queridos tocavam seus tambores lado a
lado com parentes de genocidas, em uma demonstração eloquente do poder
da música de reunir, aproximar e produzir harmonia. Para além disso, a per-
cussão tradicional em Ruanda era reservada apenas para homens, e o grupo
Ingoma Nshya demonstrou que, levando as mulheres a um lugar de destaque,
as culturas podem mudar e evoluir4.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Esse, obviamente, não é um exemplo único. Músicos de muitos mati-


zes notabilizaram-se por manifestações contra a guerra e a favor da paz em
diversas ocasiões. Na segunda metade do século XX, o violoncelista catalão
Pablo Casals destacou-se eloquentemente contra todos os tipos de guerras e
regimes opressores. Casals chegou a ser indicado ao Prêmio Nobel da Paz de
1958, recebeu a Medalha da Paz das Nações Unidas e até compôs um Hino às
Nações Unidas, em 1971, encomendado pelo secretário-geral U Thant. Bob
Dylan, vencedor do Prêmio Nobel de literatura em 2016 e autor de clássicos
pacifistas como “Masters of War” e “Blowing in the Wind”, foi figura desta-
cada nos protestos contra a Guerra no Vietnã. Em 2006, o violoncelista Yo-Yo
Ma foi designado pela ONU como “Mensageiro da Paz”. Logo após a queda do
Muro de Berlim, em 1989, o violoncelista russo Mstislav Rostropovich tocou
uma composição de J. S. Bach em uma Berlim novamente reunificada. Agora,
durante a tragédia da guerra na Ucrânia, as televisões do mundo mostraram um
violoncelista anônimo tocando seu instrumento como um grito desesperado de
paz. Não se pode esquecer também a West Eastern Divan Orchestra, sinfônica
fundada em 1999 pelo maestro judeu Daniel Barenboim e o escritor palestino
Edward Said com o propósito de promover o diálogo entre músicos de países
e culturas historicamente inimigos. Em 2002, Barenboim conduziu a West
Eastern Divan Orchestra em Ramallah, na Cisjordânia, quando a capital de
fato da Palestina encontrava-se então marcada por fortes combates.

3. Terceiro movimento

Quando me preparava para finalizar este escrito, tive a emoção de assistir


a Barenboim e à West Eastern Divan Orchestra na Filarmônica de Colônia.

4 URBAIN, Olivier. Overcoming Challenges to Music’s Role in Peacebuilding. Peace Review: A Journal of
Social Justice. v. 31, n. 3, 2019, p. 334.
140

Poucas semanas depois, ele surpreenderia o mundo com um anúncio oficial


de que estava dando uma pausa em sua carreira, em razão de um diagnóstico
de uma “condição neurológica grave”5. Há cerca de trinta anos, ainda jovem
estudante em Berlim, eu já tinha tido a chance de vê-lo à frente da Staatsoper.
Nas duas ocasiões, o maestro me ensinou que, numa performance musical,
tudo, absolutamente tudo, é diálogo.
Se há, de fato, uma geopolítica musical, Daniel Barenboim é um dos
grandes responsáveis por uma certa détente ou distensão (artístico-cultural)
na política internacional há muitos anos. Em lugar de ódio e hostilidade, tem
buscado estabelecer relações musicais de mútua compreensão e pluralidade,
como quando, em julho de 2001, regeu, no prestigioso Festival de Ópera de

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Israel, um fragmento de “Tristão e Isolda”, de Richard Wagner, quebrando
um tabu nas casas de ópera do país. Ao reger o compositor conhecido pelo
antisemitismo no país dos sobreviventes do Holocausto, o maestro judeu
conseguiu produzir mais luz que polêmica.
Mas qual é o sentido de todas essas iniciativas? Qual o poder dessas per-
formances de música pela paz, pelo diálogo, pela concórdia? Isso tem algum
efeito prático? O que, de fato, pode um musicista com seu instrumento, ou
um maestro com a sua batuta, contra exércitos e canhões? Isso, por acaso, é
diferente daquilo que pode um intelectual com a sua caneta ou um manifes-
tante com o seu megafone?
W. H. Auden guardava uma visão pessimista do poder da arte e dos
artistas. Certa vez, ao ser questionado, disse: “Eu sei que, mesmo com todos
os versos que escrevi, mesmo com todas as posições que tomei [...], eu não
salvei um único judeu... A história política do mundo teria sido exatamente
a mesma se não tivesse sido escrito um único poema, nem pintado um único
quadro, nem composto um único compasso de música”6.
Perdoem-me a ousadia, mas não posso concordar com o poeta inglês. A arte,
a música, e os artistas podem muito, caso contrário não seriam tão perseguidos,
mortos, presos ou censurados pelas ditaduras ao longo da história. Portanto, há
sim um sentido profundo, uma importância enorme e uma utilidade inegável
nessas performances de “música pela paz” ou “concertos pela paz”.

4. Quarto movimento

Quando um músico executa uma melodia contra a guerra, ele nos permite
enxergar, em primeiro lugar, que a música é uma excelente metáfora para
5 O comunicado foi feito em sua conta no Twitter: shorturl.at/jkNR6. Acesso em: 24 nov. 2022.
6 PHILLIPS, Gerald L. Can There Be “Music For Peace”? International Journal on World Peace. v. 21, n. 2,
June 2004, p. 63-73.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 141

um “processo de paz”, já que é ela própria, a criação musical, o resultado da


resolução de conflitos entre notas, entre instrumentos, entre interpretações,
entre dissonâncias que dialogam e se harmonizam. Com efeito, a música não
elimina as diferenças, mas sim as soma e as reaproxima, produzindo empatia,
entendimento mútuo e transformação, convertendo em consonância e harmonia
o que antes era apenas conflito, desarmonia, desafinação. Em uma orquestra,
por exemplo, seria trágico silenciar o violinista para escutar apenas os violon-
celos. A diversidade é a maior riqueza de qualquer grupo musical. Segundo
o maestro Daniel Barenboim, ademais, a verdadeira essência da música é o
contraponto, quando um tema conversa com o seu oposto7.
Em segundo lugar, um concerto demonstra que, apesar de o senso comum
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

dizer que a música é uma linguagem universal, a cultura musical está for-
temente ligada às tradições locais, à cultura da região e ao sentido de per-
tencimento a uma comunidade. Repartir uma melodia comum ou entoar um
ritmo folclórico reforça o senso de acolhimento, quebra percepções de dissi-
milaridade e cria um sentido de solidariedade e um sentimento de reconcilia-
ção. Uma performance musical, muitas vezes, permite ouvir uma expressiva
convergência de gestos musicais que enfatizam o sentido de fraternidade. O
mesmo sentido de fraternidade presente, por exemplo, no quarto movimento
da 9ª sinfonia de Beethoven, o Hino à Alegria, que sempre nos encanta e
emociona a todos desde as suas notas iniciais.
E por falar em emoção, um terceiro ponto pode ser citado no profundo
e eloquente diálogo entre música e paz. Dado o apelo emocional que as
manifestações musicais apresentam, um concerto demonstra que a música
tem o condão de amplificar ações em favor da paz. Ações que vão desde as
demonstrações antiguerra, passando pelas afirmações da própria humanidade
em meio ao conflito e o apoio à cicatrização dos traumas, até a promoção
do empoderamento da comunidade e a expressão e a valorização de grupos
marginalizados. Nesse quadro, a música pode, sem dúvida, apoiar e reforçar os
processos de peacemaking, peacekeeping, peacebuilding e peace enforcement.
Uma apresentação musical ainda proporciona uma quarta reflexão, agora
sobre a privilegiada conexão entre música e humanidade. Uma peça musical
bem composta e bem executada é uma grande proeza do espírito humano –
tanto quanto uma pintura de Da Vinci ou uma escultura de Nicola Pisano,
por exemplo. Mas, no caso da performance musical, é como se estivésse-
mos sentados precisamente ao lado do grande mestre Nicola Pisano no exato
momento em que ele maneja o martelo e o cinzel para esculpir o majestoso
púlpito do Batistério de Pisa, joia do gótico e uma das pedras angulares da

7 BARENBOIM, Daniel. La Musica è un Tutto. Milano: Feltrinelli, 2018, p. 12. BARENBOIM, Daniel. La Musica
Sveglia il Tempo. Milano: Feltrinelli, 2008, p. 61 e ss.
142

escultura italiana. Ou seja: há aqui uma mensagem de otimismo: “ainda somos


capazes”. Nunca é fácil, mas é possível. Não é fácil porque, como dizia Vla-
dimir Horowitz, tocar bem demanda razão, coração e meios técnicos em igual
medida e proporção: “Sem razão, será um fiasco; sem técnica, um amador;
sem coração, máquina”. Essa complexa modulação entre razão, técnica e
emoção requer treino, ensaio, investimento em tempo e estudo. Tudo isso
não está longe dos processos de peacemaking, peacekeeping, peacebuilding
e peace enforcement. Posso dizer isso com a experiência pessoal de quem
foi assessor da Missão de Paz da ONU em Timor Leste – um país em que a
cultura musical é rica e muito serviu para a sua reconstrução.
Ao facilitar as conexões entre as pessoas, ao ultrapassar diferenças, ao
permitir a memória e ao reconstruir relacionamentos fraturados pela violência,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


não tenho dúvidas de que o soft power da música ocupa um lugar privilegiado
nos processos de paz, em qualquer parte do mundo.
Não tenho dúvidas também de que o som da paz, nas sociedades mul-
tiétnicas, multirreligiosas e multiculturais é inclusivo, diverso, dialógico,
polifônico, múltiplo, plural. Da mesma forma que não há apenas um único
caminho para a paz, também não existe apenas uma única música para a paz.
Há várias trilhas sonoras possíveis. Porém, digo sem receio de errar, que,
nessa trilha sonora da paz, há de haver um espaço generoso para um pequeno
trecho de ópera: a última frase do personagem Marcello, o pintor de “La
Bohème”8, de Giacomo Puccini, um fragmento que deve constituir o apelo
permanente para todos os nossos esforços, grandes e pequenos, em busca da
paz: “Coraggio!” “Coraggio!”
Com o eco dessa pequena frase ressoando em nossos ouvidos, ainda há
tempo para que a música nos ofereça uma quinta e última lição: não pode
haver paz sem audição. Ouvir o outro, escutar a diferença, é essencial para a
música e para a paz.
Piazza Cavallotti, Pisa, verão de 2022
Nos 80 anos do Maestro Daniel Barenboim

8 Ópera em quatro atos, com música de Giacomo Puccini e libretto de Giuseppe Giacosa e Luigi Illica. Estreou
no Teatro Regio de Turim em 1 de fevereiro de 1896, sob a regência de Arturo Toscanini.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

PARTE II
DEBATES SOB A ÓTICA DO DIREITO
INTERNACIONAL HUMANITÁRIO
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
9. O DIREITO DA GUERRA
NAVAL NO CONFLITO ENTRE
A UCRÂNIA E RÚSSIA
Victor Alencar Mayer Feitosa Ventura
Eduardo Cavalcanti de Mello Filho

1. Introdução
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

A dimensão marítima do conflito no leste europeu tem recebido pouca


atenção e, provavelmente, os eventos da Ilha da Serpente atraíram a maior parte
da percepção popular1. Entretanto, o Mar Negro e o Mar de Azov, palcos de
escaramuças naquele conflito, além de estratégicos para as ações em terra,
constituem importante via de conexão da Ucrânia com o resto do mundo. E,
neste contexto, o direito da guerra naval (Law of Naval Warfare) é aplicável.
Num esboço dessa aplicação, na primeira seção, o presente capítulo abordará o
direito da guerra naval em si e como ele se relaciona com o direito dos conflitos
armados e o direito do mar, geralmente aplicável em tempos de paz.
Apesar de reconhecido como sub-ramo, o direito da guerra naval apre-
senta sensíveis variações em relação ao direito dos conflitos armados. Estas
variações acompanham as diferenças entre os conflitos em terra e mar. Ade-
mais, embora desloque a aplicação do direito do mar em tempos de paz em
vários aspectos, o direito da guerra naval é integrado por normas daquele
em instâncias basilares. Os exemplos principais são os espaços marítimos e
parte dos regimes jurídicos respectivamente aplicáveis, como, de um lado, o
mar territorial e a zona econômica exclusiva (ZEE) e, de outro, a soberania
exercida pelo Estado costeiro sobre o mar territorial e a obrigação de terceiros
de ter em devida conta os direitos do Estado costeiro na ZEE.
Considerado em sua relação com a mais ampla ordem jurídica inter-
nacional, o direito da guerra naval é comumente dividido em três partes: (i)
condução das hostilidades e proteção humanitária (jus in bello), (ii) neutra-
lidade marítima, e (iii) presas marítimas2. Na seção seguinte, este capítulo

1 HUNDER, M.; BALMFORTH, T. Rússia abandona Ilha da Serpente em vitória estratégica para Ucrânia.
Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/reuters/2022/06/30/russia-abandona-ilha-da-ser-
pente-em-vitoria-estrategica-para-ucrania.htm. Acesso em: 15 nov. 2022.
2 Essa divisão, no entanto, não é hermética. Em particular, as regras sobre neutralidade marítima e presas
marítimas influenciam diretamente o jus in bello.
146

as duas primeiras partes3. A primeira apresenta lógicas parecidas às do


direito dos conflitos armados geral (jus ad bellum), cujas variações terão
sido introduzidas na seção anterior. Nela, endereçamos questões centrais
ao conflito em tela, como as regras concernentes a bloqueios navais, minas
navais e bombardeamento naval.
A segunda, sobre neutralidade marítima, está ligada ao direito da neu-
tralidade como um todo. Entretanto, no mar, o direito da neutralidade assume
uma importância maior do que em terra, quando o foco está na distinção entre
potências neutras e beligerantes e em países neutros geograficamente próximos
às zonas de conflito. Em contraste, é pelo mar que a maior parte do comércio
mundial é levada a cabo e também pelo mar navegam não só embarcações

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


arvorando bandeiras de países geograficamente próximos às zonas de conflito,
mas de todo o mundo.
A Guerra na Ucrânia provoca importantes reflexões acerca da neutrali-
dade. Vários países ocidentais têm prestado apoio militar e financeiro à Ucrâ-
nia4. Embora outrora, pelas Regulações da Haia, pudessem ser considerados
potências beligerantes5, hoje, o jus contra bellum epitomizado na Carta das
Nações Unidas modifica o direito à guerra (jus ad bellum), com repercussões
no “direito” à neutralidade. É que o Artigo 2º (4) da Carta proíbe o uso da
força de um Estado contra outro. Logo, uma vez configurado um “ato de agres-
são”6, alguns autores e países sustentam que Estados neutros podem adotar

3 O direito das presas marítimas não está no foco das discussões no que diz respeito ao aspecto naval da
Guerra na Ucrânia. De toda forma, será mencionado durante as duas partes da segunda seção, pois (i) é um
aspecto da conduta das hostilidades e há questões de proteção humanitária e (ii) uma embarcação neutra
que, após visita e inspeção, é razoavelmente suspeita de ter caráter inimigo pode ser apresada.
4 Por exemplo, cf. BRUM, Matheus. EUA já deram US$ 2,4 bilhões em arma e munição à Ucrânia; veja quem
ajudou. Uol Notícias, 19 abr. 2022. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noti-
cias/2022/04/19/que-paises-ajudam-a-ucrania-contra-a-russia-e-o-que-deram-ate-agora.htm. Acesso em:
15 nov. 2022.
5 Mais especificamente, de acordo com o Artigo 6, analisado na seção 3.2 deste capítulo, da Convenção
sobre os Direitos e Deveres das Potências Neutras na Guerra Naval, de 1907 e de que são partes Rússia,
Estados Unidos, China, França, Alemanha, Noruega, Suécia, Brasil, Holanda, Finlândia, Dinamarca, Bélgica
e, desde 2015, Ucrânia. Convention (XIII) concerning the Rights and Duties of Neutral Powers in Naval War,
18 Oct. 1907, International Peace Conference, The Hague, Official Record (original: French), Art. 6.
6 A violação do Artigo 2 (4) não importa automaticamente num Ato de Agressão. A referência clássica nesta
discussão é a Resolução 3314 (XXIX) da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), sobre a “Definição
de Agressão”. Enquanto o Artigo 1 do Anexo à resolução estipula que é ato de agressão qualquer uso de
força armada contrário à Carta — portanto, uma simples violação do Artigo 2 (4) seria um ato de agressão
— o Artigo 2 do Anexo faz a ressalva de que o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) ao
determinar se um ato de agressão foi cometido pode levar em consideração outras circunstâncias relevantes.
Entre estas circunstâncias estão a gravidade do uso de força armada em questão. Ademais, o Artigo 3 lista
casos em que se tem configurado um ato de agressão, incluindo, relevantemente para o aspecto naval da
Guerra da Ucrânia, bloqueio naval e o ataque pelas forças armadas de um contra as frotas navais ou aéreas
de outro. UN GENERAL ASSEMBLY. A/RES/3314 (1974).
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 147

uma posição de neutralidade “qualificada”, “diferenciada” ou “benevolente”,


consistindo no apoio à vítima de um ato de suposta injusta agressão7.
A terceira parte do direito da guerra naval, sobre presas marítimas, talvez
soe ainda mais démodée que o direito da neutralidade. No entanto, justiça seja
feita, um dos pontos de inflexão do direito internacional clássico decorreu de
um apresamento marítimo. Hugo Grócio apenas escreveu De Jure Predae (Do
Direito das Presas) sob encomenda da Companhia das Índias Orientais (VOC),
para defender o apresamento, pela VOC, da nau portuguesa Santa Catarina, no
Estreito de Malacca8. Além de conter Mare Liberum como 12º capítulo, De
Jure Predae efetivamente lançou as bases do direito internacional grociano,
sistematizado em sua magnum opus, De Jure Belli ac Pacis9.
Mas, afinal, o que são presas marítimas? Diferentemente do direito apli-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

cável em terra, em que o confisco de propriedade é vedado em tempos de


guerra, o direito da guerra naval regula o confisco das “presas” em mar. Em
síntese, a propriedade privada ou comercial e as embarcações inimigas podem
ser capturadas no mar, no curso de conflitos armados. Ato contínuo, os bens
apresados podem ser adjudicados em tribunais (normalmente domésticos) e
convertidos em bens de propriedade do Estado beligerante que os capturou. O
direito das presas marítimas regula, igualmente, como e em quais circunstân-
cias essa captura pode ser exercida, conformando, juntamente com as regras
que regulam bloqueios navais, um corpo normativo disciplinador da chamada
“guerra econômica”10, conforme se verá a seguir.
Este capítulo obedecerá à estrutura delineada acima, com duas seções
principais, sendo a segunda dividida em duas partes: jus in bello e neutrali-
dade marítima. Os eventos relevantes da Guerra da Ucrânia serão destacados
e examinados no decorrer do texto, conforme a pertinência temática. Meto-
dologicamente, este é um trabalho jurídico-analítico e, portanto, majorita-
riamente, dedutivo, que não visa a oferecer exaustiva revisão bibliográfica,
mas a aclarar tópicos de relevância do direito da guerra naval no contexto da
Guerra na Ucrânia. Neste esforço eminentemente dogmático, a atenção dos
autores voltou-se às fontes formais do direito internacional e à prática dos

7 Para obras iniciais a respeito desta mudança no direito da neutralidade: DE LA PRADELLE, Paul. L´évolution
de la neutralité. Revue de Droit International, v. 14, p. 197-221, 1934 p. 210; JESSUP, Philipp C. Neutrality:
Its History, Economics and Law, v. 4, Today and Tomorrow. Nova Iorque: Columbia University Press, 1936,
121ss. Para entender as bases do entendimento atual de neutralidade qualificada, cf.: SKUBISZEWESKI,
Krzysztof. Use of Force by States: Collective Security, Law of War and Neutrality. In: SORENSEN, Max (ed.).
Manual of Public International Law. Nova Iorque: St. Martin’s Press, p. 739-843, 1968, p. 840 ss.
8 ZEMANEK, Karl. Was Hugo Grotius Really in Favour of the Freedom of the Seas? Journal of the History
of International Law/Revue d’histoire du droit international, v. 1, n. 1, p. 48-60, 1999, p. 49-52.
9 TUCK, Richard. The Rights of War and Peace: Political Thought and the International Order from Grotius
to Kant. Oxford, New York: Oxford University Press, 1999, p. 81.
10 MARQUES GUEDES, Armando, A Guerra Naval e o Direito. Nação e Defesa, v. 23, p. 68-119, 1982. p. 72.
148

Estados — especialmente de seus órgãos militares, e à comunidade epistêmica


pertinente, que inclui jurisprudência e doutrina internacionais.

2. O Direito da Guerra Naval em sistema

Toda e qualquer análise do direito da guerra naval, no âmbito da ordem


jurídica internacional, deve partir de uma premissa fundante: sua aplicação
exclusiva em tempos de guerra. A presente subseção abordará essa premissa,
traçando contrapontos com o direito do mar aplicável em tempos de paz, ao
tempo que se ocupará, igualmente, das interações do direito da guerra naval
com o direito dos conflitos armados em geral.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


2.1 O Direito da Guerra Naval e o direito do mar em tempos de paz:
análise da controvérsia envolvendo o Estreito de Kerch

O direito da guerra naval segue o mesmo critério de aplicação seguido


pelo direito dos conflitos armados em terra: quando há conflito armado no
mar11. Segundo esta regra geral, o conflito armado — e a agressão — no
Leste Europeu teve início, com toda certeza, em 24 de fevereiro de 2022,
quando a Rússia invadiu a Ucrânia. Este capítulo tem por foco os eventos
levados a cabo desde então, embora examine episódios ocorridos anterior-
mente, como a controvérsia do Estreito de Kerch (2018), que levantam
série de questões acerca do direito aplicável: se humanitário (dos conflitos
armados) ou do mar (dos tempos de paz).
É sustentável que o direito da guerra naval já fosse aplicável anterior-
mente a fevereiro de 202212, posto que existente conflito armado no contexto
iniciado pela anexação da Crimeia pela Rússia, em 201413. Na controvérsia do
Estreito de Kerch, em 25 de novembro de 2018, três embarcações ucranianas
e 24 marinheiros (dois navios de guerra e um auxiliar) foram arrestados e
detidos, em operação conduzida pela Guarda Costeira (GCR) e pelas Forças

11 A fórmula clássica pode ser encontrada nas Convenções de Genebra de 1949. Cf. Convention for the Ame-
lioration of the Condition of Wounded, Sick and Shipwrecked Members of Armed Forces at Sea (Second
Geneva Convention), Art. 2, 12 ago. 1949, 75 UNTS 85.
12 Autores respeitados compartilham esta opinião. Por exemplo, cf. KRASKA, James. The Kerch Strait Incident:
Law of the Sea or Law of Naval Warfare? EJIL: Talk!, 3 dez. 2018. Disponível em: https://www.ejiltalk.org/
the-kerch-strait-incident-law-of-the-sea-or-law-of-naval-warfare/. Acesso em: 15 nov. 2022; FINK, Martin, The
ever-existing “crisis” of the law of naval warfare, International Review of the Red Cross, v. 104, p. 1971-1988,
2022, p. 1976.
13 Em 2014, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou uma resolução condenando a anexação da
Crimeia pela Rússia: A/RES/68/26, 27 March 2014. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/
UNDOC/GEN/N13/455/17/PDF/N1345517.pdf?OpenElement. Acesso em: 20 jan. 2023.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 149

Armadas Russas (FAR)14. A Ucrânia chegou a levar o ocorrido para o Con-


selho de Segurança das Nações Unidas, inclusive reclamando o tratamento
de prisioneiros de guerra para seus marinheiros15.
Em maio de 2019, o Tribunal Internacional do Direito do Mar (TIDM)
ouviu o caso em sede de medidas provisórias (provisional measures), com ful-
cro no Artigo 290 (5) da Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar
(CNUDM)16, isto é, enquanto pendente a constituição de tribunal arbitral para
análise do mérito da controvérsia, segundo o Anexo VII da Convenção.
De acordo com a versão ucraniana, em grande medida acolhida pelo TIDM,
três embarcações navais ucranianas (Berdyansk, Nikopol e Yani Kapu) partiram
do Porto de Odessa, no Mar Negro, com destino ao Porto de Berdyansk, no Mar
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

de Azov, atravessando o Estreito de Kerch. Porém, aproximando-se do Estreito,


na noite de 25 de novembro, os navios ucranianos receberam radiocomunicações
da GCR afirmando que o Estreito estava fechado, tendo a GCR bloqueado o
caminho das embarcações ucranianas. De início, os navios da Ucrânia tentaram
avançar, mas recuaram, ao que foram perseguidas pela GCR e por um helicóp-
tero das FAR. A GCR chegou a disparar contra o Berdyansk, danificando-o
e ferindo três tripulantes. As embarcações foram arrestadas e, nos dois dias
seguintes, os 24 marinheiros foram detidos sob a suspeita do cometimento do
crime de passagem ilegal agravada, com base no direito russo17.
A Rússia apresentara objeções preliminares à jurisdição ratione materiae
do TIDM porque o caso tratava supostamente de “atividades militares”, hipó-
tese excepcionada da jurisdição do Tribunal em virtude de declaração russa
feita sob o Artigo 298, CNUDM. O TIDM apenas deveria satisfazer-se prima
facie que o tribunal arbitral a ser constituído possuiria. O TIDM sabidamente
adota um critério muito fácil de ser preenchido: não há prima facie jurisdiction
se a matéria está “obviamente” fora da jurisdição do tribunal18. Neste caso,
o Tribunal avaliou que se “atividades militares” devesse se referir apenas
a atividades do Estado terceiro, não costeiro, (Ucrânia), o tribunal arbitral
teria jurisdição pois os navios ucranianos estavam envolvidos em atividades

14 ITLOS, Case concerning the detention of three Ukrainian naval vessels (Ukraine v. Russia), Ordem de
Medidas Provisórias, 25 maio 2019, p. 9-10.
15 Esses fatos foram destacados pelo tribunal arbitral a que os pedidos de mérito foram submetidos. PCA,
Dispute concerning the detention of three Ukrainian naval vessels (Ukraine v. Russia), Decisão de objeções
preliminares, 27 jun. 2022, para. 117.
16 UNITED NATIONS CONVENTION ON THE LAW OF THE SEA, 10 dez. 1982, 1833 UNTS 397.
17 MARCOS, Henrique Jerônimo Bezerra; MELLO FILHO, Eduardo Cavalcanti de. Complexidades Jurídicas
Relativas à Execução da Lei e ao Uso da Força no Mar: Uma Análise do Caso Ucrânia v. Rússia no Tribunal
Internacional de Direito do Mar. In: TOLEDO, Andre de Paiva et al. (eds.). Direito do Mar: Reflexões, Ten-
dências e Perspectivas, v. 3. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, p. 237-262, 2019, p. 244.
18 Para mais detalhes sobre como o Tribunal tem usado este critério, cf. Id., p. 239-243.
150

de navegação (ilegal)19, tal como caracterizado no direito russo20. Por ser


esta uma hipótese interpretativa válida, a matéria não estava “obviamente”
excluída da jurisdição do tribunal arbitral. Logo, a preliminar foi afastada e
o caso foi ouvido pelo TIDM.
Nesse ínterim, em declaração apartada, a Juíza Liebeth Linjzaad discorreu
sobre o direito dos conflitos armados, cuja interpretação e aplicação estariam
evidentemente além da jurisdição do TIDM. Porém, limitou-se a esclarecer
que uma discussão mais pormenorizada da questão (direito do mar vs. direito
dos conflitos armados) iria além de mera análise prima facie da questão,
efetivamente adentrando no mérito. Dessa forma, reservou tal reflexão para
o tribunal arbitral a que a matéria havia sido submetida21.
Em junho de 2022, o tribunal arbitral respondeu às questões preliminares

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


russas. É de se salientar que as objeções russas não diziam respeito à aplicação
ou não do direito dos conflitos armados, mas à exceção de “atividades militares”,
presente no Artigo 298 da CNUDM, do rol de disputas sobre as quais o TIDM
possui jurisdição. Embora a Rússia pareça rejeitar uma relação de identidade
entre “atividades militares” e “conflitos armados”, para fins de aplicação do
direito dos conflitos armados22, é bem verdade que o direito dos conflitos arma-
dos pode se aplicar às “atividades militares” referidas pela Rússia23. Entretanto,
a decisão do tribunal arbitral foi ainda mais complicadora: dividiu os eventos
em três fases cronológicas, caracterizando a primeira como atividades militares,
a terceira como atividades de law enforcement e deixando para decidir sobre a
segunda apenas na fase de méritos24. A terceira fase começa quando as embar-
cações ucranianas são arrestadas e continua na detenção e nos processos penais
referentes aos marinheiros. O tribunal demonstrou dúvida quanto a enquadrar
os fatos que antecedem o arrestamento dos navios; se já seria law enforcement
por parte da Rússia ou atividades militares.
Ora, se Rússia e Ucrânia estavam em conflito armado quando destes even-
tos, aplica-se o direito dos conflitos armados inclusive na terceira fase, para a
qual o Tribunal disse ter jurisdição. Com efeito, essa é a razão pela qual a Ucrâ-
nia havia reclamado tratamento de prisioneiros de guerra aos seus marinhos.
Entretanto, é certo que o tribunal não possui jurisdição para conhecer matéria
respeitante a conflitos armados. Neste caso em específico, o direito da guerra
19 ITLOS. Op cit. (nota 14), para. 68;
20 Ibid., para. 66.
21 ITLOS. Case concerning the detention of three Ukrainian naval vessels (Ukraine v. Russia), Declaração da
Juíza Lijnzaad, 25 mai. 2019, paras. 5-8.
22 A Rússia sustenta que houve “atividades militares”, mas não reconhecia que havia um conflito armado
internacional. No caso perante o tribunal arbitral, os seguintes parágrafos são instrutivos PCA. Op. cit. (nota
15), paras. 78-80.
23 KRASKA, J. Op. cit. (nota 12).
24 PCA. Op. cit. (nota 15), para. 125.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 151

naval e o direito aplicável em tempos pacíficos divergem em muito. Enquanto


em tempos pacíficos, disputas envolvendo a regulação do uso da força em ativi-
dades de law enforcement (os famosos Saiga Principles)25 e de imunidades de
navios de Estado e de oficiais ucranianos podem surgir, em tempos de guerra os
navios de guerra ucranianos seriam alvos legítimos e os marinheiros ucranianos
deveriam receber tratamento de prisioneiros de guerra.
Enquanto o TIDM resguarda-se na justificativa de ter exercido cognição
meramente sumária e prima facie (não exauriente), o tribunal arbitral não
só exerceu cognição exauriente em fase preliminar, como reservou para os
méritos a análise de uma das fases, para ser definida enquanto “atividades
militares” ou não. Sabendo que críticas contundentes já haviam sido dirigidas
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

à ordem do TIDM26, estima-se que a decisão do tribunal arbitral experimente


ainda mais reprovação.
Por fim, embora haja controvérsias quanto ao direito aplicável às relações
entre a Ucrânia e Rússia quando desses eventos, o direito do mar de tempos de
paz continua aplicável entre países neutros e entre estes e Ucrânia ou Rússia27.

2.2 O Direito da Guerra Naval e o direito dos conflitos armados em terra

As diferenças entre um e outro encontram razão de ser em duas impor-


tantes diferenças entre guerras navais e terrestres. Primeiro, os ataques em mar
normalmente são dirigidos contra “plataformas,”28 como navios, submarinos,
aeronaves e sistemas não tripulados. Nesta lógica, por exemplo, não importam
a nacionalidade ou o status das pessoas (civil ou combatente) a bordo de um
navio de guerra inimigo, que é um objetivo militar reconhecido. Similar-
mente, navios mercantes e aeronaves civis, aos quais o ataque é normalmente
proibido, podem se tornar objetivos militares29. Ainda segundo a lógica das
“plataformas”, determinadas embarcações, como os navios-hospitais, estão
normalmente isentas de ataque. No entanto, a “plataformização” do direito da
guerra naval não é absoluta; os Estados beligerantes ainda devem realizar a
distinção entre civis ou outras pessoas protegidas e combatentes, quando estas
25 A referência é a outro caso do Tribunal do Mar: ITLOS.c, M/V Saiga 2 (St. Vincent and the Grenadines v.
Guinea), Judgment, 1 jul. 1999.
26 KRASKA, James. Did ITLOS Just Kill the Military Activities Exemption in Article 298? EJIL: Talk!, 27 maio
2019. Disponível em: https://www.ejiltalk.org/did-itlos-just-kill-the-military-activities-exemption-in-article-298/.
Acesso em: 15 nov. 2022
27 Como será visto na segunda subseção da seção seguinte, os direitos dos Estados neutros são afetados
pelo direito da guerra naval aplicável à relação de outros Estados. Um exemplo mais óbvio é o direito de
visita e inspeção que beligerantes têm a respeito de embarcações mercantes neutras.
28 O termo “Plataforma” usado aqui não possui conotação jurídica específica. É dizer que não se refere, por
exemplo, a ilhas artificiais, estruturas ou instalações tais quais previstas no Artigo 60 da CNUDM.
29 É o teor do § 41 do Manual de San Remo, introduzido mais abaixo.
152

estiverem sob seu controle ou jurisdição. O foco da Convenção de Genebra


II é justamente a proteção de indivíduos no mar30.
Segundo, as regiões de operação englobam não somente os territórios,
incluindo o mar territorial, dos Estados beligerantes, mas também suas res-
pectivas ZEEs e plataformas continentais, o alto mar e, com certa reserva,
as ZEEs e plataforma continentais de Estados neutros31. O mar territorial,
águas interiores e águas arquipelágicas de Estados neutros são águas neutras,
em que hostilidades são proibidas32. Portanto e em contraste com o conflito
armado em terra, é natural que navios mercantes inimigos e navios neutros, por
exemplo, transitem em regiões de operação. Em concreto, navios mercantes
neutros estão sujeitos ao direito de visita e inspeção dos navios de guerra dos
beligerantes. Navios neutros em tentativa de auxílio à potência inimiga ou de

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


quebrar bloqueio naval podem ser capturados. Ademais, como salientado na
introdução, propriedade inimiga no mar pode ser capturada e adjudicada ao
Estado que a capturou33.
Feitas estas duas observações, o direito da guerra naval segue a genera-
lidade do direito dos conflitos armados em terra, incluindo os princípios da
distinção, necessidade e proporcionalidade34. Na prática, como veremos, os
maiores contrastes são encontrados no tratamento dispensado a plataformas
civis, neutras ou inimigas.
Porém, antes de prosseguir, é importante que tracemos as principais
fontes do direito da guerra naval. Os principais tratados sobre a conduta de
hostilidades no mar, incluindo neutralidade marítima, foram adotados no
contexto das conferências da Haia de 1907:

i. Convenção relativa à Posição Jurídica dos Navios Mercantes Ini-


migos no Início das Hostilidades (1907)35, de que Rússia e Ucrânia
são partes, tendo esta a ratificado apenas em 2015;
ii. Convenção relativa à Conversão de Navios Mercantes em Navios
de Guerra (1907)36, de que Rússia e Ucrânia são partes;
30 RONZITTI, Natalino, Le droit humanitaire applicable aux conflits armés en mer (V. 242). In: COLLECTED
COURSES OF THE HAGUE ACADEMY OF INTERNATIONAL LAW, Leiden: Brill, 1993, p. 68-72.
31 Em geral, os Estados beligerantes devem ter em devida conta os direitos, jurisdição e liberdades de Estados
neutros em todos estes espaços marítimos. Não há carte blanche para operações militares neles.
32 RONZITTI, N. Op. cit. (nota 30), p. 53-55.
33 O tratamento superficial deste conteúdo na presente seção visa apenas a demonstrar as principais diferenças
entre o direito humanitário geral (em terra) e o direito da guerra naval. Na Seção 3, a matéria é esmiuçada
em riqueza de detalhes e referências.
34 CLAPHAM, Andrew, Booty, bounty, blockade, and prize: time to reevaluate the law, International Law Studies,
v. 97, p. 1201-1268, 2021, p. 1236, 1252.
35 CONVENTION RELATING TO THE STATUS OF ENEMY MERCHANT SHIPS AT THE OUTBREAK OF HOS-
TILITIES, 6., 18 Oct. 1907, International Peace Conference, The Hague, Official Record (original: French).
36 CONVENTION RELATING TO THE CONVERSION OF MERCHANT SHIPS INTO WAR-SHIPS, 7., 18 Oct.
1907, International Peace Conference, The Hague, Official Record (original: French).
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 153

iii. Convenção relativa à Colocação de Minas Automáticas de Con-


tato Submarino (1907)37, que é, em certas passagens, correspon-
dente ao DIC;
iv. Convenção sobre Bombardeio por Forças Navais em Tempo de
Guerra (1907)38, de que Rússia e Ucrânia são partes, tendo esta a
ratificado apenas em 2015;
v. Convenção relativa a Certas Restrições com relação ao Exercício
do Direito de Captura na Guerra Naval (1907)39, em grande medida
refletida no DIC;
vi. Convenção sobre os Direitos e Deveres das Potências Neutras na
Guerra Naval40, de que Rússia e Ucrânia são partes, tendo esta a
ratificado apenas em 2015;
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Em adição a estes tratados, deve-se considerar também aqueles que ver-


sam sobre tipos específicos de armamento e cujo escopo de aplicação inclui
a guerra naval41. Sobre o “Direito de Genebra”, mais preocupado com a
proteção humanitária e no contexto da Guerra da Ucrânia, notabilizam-se as
Convenções de Genebra II, III e IV e o Protocolo Adicional I42.
Finalmente, é importante salientar que o direito da guerra naval é majori-
tário e mais detalhadamente regulado no DIC. As duas principais referências
textuais para o conteúdo deste direito são os Manuais de Oxford e San Remo.
O primeiro foi produzido pelo Instituto de Direito Internacional em 191343.
O segundo foi resultado de uma série de mesas redondas entre 1988 e 1994
37 CONVENTION RELATIVE TO THE LAYING OF AUTOMATIC SUBMARINE CONTACT MINES, 8., 18 Oct.
1907, International Peace Conference, The Hague, Official Record (original: French).
38 CONVENTION CONCERNING BOMBARDMENT BY NAVAL FORCES IN TIME OF WAR, 9., 18 Oct. 1907,
International Peace Conference, The Hague, Official Record (original: French).
39 CONVENTION RELATIVE TO CERTAIN RESTRICTIONS WITH REGARD TO THE EXERCISE OF THE
RIGHT OF CAPTURE IN NAVAL WAR, 11., 18 Oct. 1907, International Peace Conference, The Hague,
Official Record (original: French).
40 CONVENTION CONCERNING THE RIGHTS AND DUTIES OF NEUTRAL POWERS IN NAVAL WAR, 13.,
18 Oct. 1907, International Peace Conference, The Hague, Official Record (original: French).
41 Por exemplo, no contexto da guerra naval, que inclui aeronaves, a Convenção sobre Certas Armas Conven-
cionais assume grande importância. O Protocolo IV à Convenção proíbe o uso de armas laser que visam a
cegar o inimigo. Nos últimos anos, vários incidentes entre as marinhas americanas chinesa se notabilizaram
pelo uso ilegal de armas laser. Additional Protocol to the Convention on Prohibitions or Restrictions on
the Use of Certain Conventional Weapons Which May Be Deemed to Be Excessively Injurious or to Have
Indiscriminate Effects, 3 out. 1995, 2024 UNTS 163.
42 CONVENTION RELATIVE TO THE TREATMENT OF PRISONERS OF WAR, 3., 12 ago. 1949, 75 UNTS 135;
CONVENTION RELATIVE TO THE PROTECTION OF CIVILIAN PERSONS IN TIME OF WAR, 4., 12 ago.
1949, 75 UNTS 287; PROTOCOL ADDITIONAL TO THE GENEVA CONVENTIONS OF 12 AUGUST 1949
AND RELATING TO THE PROTECTION OF VICTIMS OF INTERNATIONAL ARMED CONFLICTS, 8 jun.
1977, 1125 UNTS 3.
43 Institut de Droit International. Manuel des lois de la guerre maritime dans les rapports entre belligérants.
Oxford, 9 ago. 1913. Disponível em: https://www.idi-iil.org/app/uploads/2017/06/1913_oxf_02_fr.pdf/. Acesso
em: 16 nov. 2022.
154

organizadas pelo Instituto Internacional de Direito Humanitário, que reuniu


uma série de especialistas jurídicos e navais44. Enquanto parte do Manual de
San Remo é de fato “desenvolvimento progressivo” do direito internacional45,
a maior, e mais relevante, é codificação do DIC. Aliás, tudo o que se escreveu
nesta subseção é incontroversamente DIC e pode ser conferido no Manual.
Ademais, com o Manual, pretendeu-se adaptar ao direito da guerra naval as
evoluções que o direito dos conflitos armados em terra, já havia experienciado,
como através do Protocolo Adicional I.
Este capítulo tem no Manual de San Remo sua principal fonte de enun-
ciação do direito consuetudinário. Entretanto, análises mais pormenorizadas
devem ser mais criteriosas, levando em consideração as práticas de órgãos
militares nacionais. É, neste sentido, por exemplo, que a US Navy, a US

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Marine Corps, e a US Coast Guard —os três ramos “marinhos” das forças
armadas estadunidenses — publicaram o famoso Commander’s Handbook
on the Law of Naval Operations, pela primeira vez em 1987, atualizado em
202246. O Commander’s Handbook é certamente o mais autoritativo dentre os
manuais militares nacionais. É comum autores estadunidenses o considerarem
uma enunciação do DIC tal como o Manual de San Remo47.

3. O sistema do Direito da Guerra Naval

As diferenças do Direito da Guerra Naval para seu irmão terrestre


explicam o porquê dividimos aquele em três “sub-ramos”: (i) o direito
da condução de hostilidades e proteção humanitária (jus in bello), (ii) o
direito da neutralidade marítima, e (iii) o direito das presas. Entrementes,
tal divisão revela-se imperfeita. Por exemplo, o direito da neutralidade
marítima limita as hostilidades conforme o elemento de “neutralidade”
entra em discussão. Isto, no entanto, ocorre diferentemente no mar pelo
amplo teatro da guerra naval. O direito das presas também se insere numa
relação similar com o jus in bello.
44 INTERNATIONAL LAWYERS AND NAVAL EXPERTS, Convened by the International Institute of Humanitarian
Law. San Remo Manual on International Law applicable to Armed Conflicts at Sea. IIHL, jun. 1994. Disponível
em: https://www.icrc.org/en/doc/resources/documents/article/other/57jmsu.htm/. Acesso em: 16 nov. 2022.
45 Por exemplo, a CNUDM nem entrara em vigor e o Manual já continha estipulações específicas sobre águas
arquipelágicas, estreitos internacionais e zona econômica exclusiva.
46 US NAVY, US MARINE CORPS, AND US COAST GUARD. NWP 1- 14M/ MCTP 11- 10B/COMDTPUB P5800.7A,
The Commander’s Handbook on the Law of Naval Operations. 2022 (NWP 1- 14M). Para uma perspectiva sobre
as novidades da última edição, cf: PARMLEY, C. J.; PEDROZO, R. New Edition of The Commander’s Handbook
on the Law of Naval Operations. Lieber Institute West Point, 20 abr. 2022. Disponível em: https://lieber.westpoint.
edu/new-edition-commanders-handbook-law-of-naval-operations/. Acesso em: 16 nov. 2022
47 KRASKA, J.; PEDROZO, R. Disruptive Technology and the Law of Naval Warfare. Oxford, New York: Oxford
University Press, 2022, p. 18-19.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 155

3.1 O jus in bello no mar

O jus in bello no mar é, nos seus termos mais gerais, informado pelo Pro-
tocolo Adicional I e pelo DIC, tal como codificado no Manual de San Remo.
Os Artigos 48 a 67 do Protocolo delineiam princípios gerais do jus in bello,
incluindo o princípio da distinção (Artigo 48); regras sobre ataques indiscrimi-
nados e participação direta nas hostilidades (Artigo 51); a definição de objetivo
militar (Artigo 52(2); e precauções em ataque (Artigo 57). Estes dispositivos
são aplicáveis à guerra naval, mas apenas na medida em que afetam a população
civil ou objetos civis em terra. Ademais, o Artigo 49(3) limita a aplicação de
certos dispositivos a ataques conduzidos da terra ao mar ou vice-versa, excluindo
ataques mar-mar, ar-ar, mar-ar e vice-versa48. O Manual de San Remo através
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

de sua Parte III, §§ 38-77, basicamente elimina esta lacuna.


Não cobriremos aqui o básico dos princípios da necessidade, da distinção
e da proporcionalidade, além de outros, que devem ser abordados mais apro-
fundadamente neste volume, no contexto da Guerra da Ucrânia. No entanto,
há peculiaridades do direito da guerra naval que merecem destaque.
A primeira diz respeito ao conceito de objetivo militar: a guerra naval
tem uma finalidade eminentemente econômica. Ao passo em que busca con-
servar a liberdade de navegação própria, a potência beligerante tentará pre-
judicar a liberdade de seu inimigo ou de seus aliados, visando a reduzir seu
reabastecimento ou a sustentação de seus esforços de guerra. Lateralmente,
a neutralidade marítima busca garantir as liberdades dos Estados neutros e
alheios ao conflito.
O bloqueio naval é a epítome desta característica da guerra naval. No
entanto, o bloqueio não pode ter o único propósito de afaimar a população
civil do inimigo ou de lhe privar de outros objetos essenciais à sobrevivência
nem representar danos à população civil excessivos em relação à vantagem
militar oriunda do bloqueio49. Mesmo fora dessas hipóteses o bloqueio não
pode impedir a passagem de suprimento médicos ou de alimentos e outros
objetos essenciais se a população civil afetada estiver em necessidade deste
objetos50. Ademais, no geral, bloqueios navais são regidos pelos princípios
da publicidade e da efetividade, isto é, o bloqueio deve ser declarado e os
Estados neutros e beligerantes devem ser notificados; e o bloqueio deve ser,
em termos materiais, efetivo — é uma questão de fato51.

48 Como veremos mais abaixo nesta subseção, no contexto da Guerra da Ucrânia, ataques terra-mar e mar-terra
se tornaram a regra.
49 San Remo MANUAL. Op cit. (nota 44), § 102.
50 Ibid., §§ 103-104.
51 Ibid., §§ 93-95. Este é aspecto interessante do direito da guerra naval. Desde pelo menos Grócio, passando
por Bynkershoek, a extensão do mar territorial era doutrinariamente baseada na “efetividade” imposta pelo
Estado costeiro. Daí a regra da bala de canhão, de forte influência francesa. É apenas no século XIX que se
consolida a ideia de um “direito” a um mar territorial, de três milhas náuticas. A regulação do bloqueio naval
156

Isto impacta, sobretudo, navios mercantes, inclusive neutros, que podem


ser capturados se a potência a cargo do bloqueio tiver fundamentos razoáveis
para acreditar que tal navio está furando o bloqueio. Se, após aviso, claramente
houver resistência à captura, o navio mercante pode ser atacado52.
Este é um dos pontos mais sensíveis da faceta naval da guerra sob análise
neste volume. A Rússia tem amplo domínio no mar com a histórica Frota do
Mar Negro53. Adicionalmente, a Turquia fechou os Estreitos de Bósforo e
Dardanelos para navios de guerra, de acordo com a Convenção de Montreux
de 193654. A exceção é para navios de guerra registrados em bases no Mar
Negro, que inclui a Frota do Mar Negro russa, centrada em Sebastopol, na
Crimeia. A Rússia ainda conseguiu contornar a proibição ao usar navios civis
para transportar materiais e suprimentos militares55. Como resultado, no mar

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


a vantagem é quase totalmente russa. As principais ofensivas ucranianas a
navios e bases navais russas partem da terra (mísseis antinavio)56.
Portanto, o bloqueio naval russo tem apresentado um alto grau de efe-
tividade. O destaque tem sido o bloqueio no Mar Negro, focado no Porto de
Odessa, o maior da Ucrânia. Nos principais tabloides, o bloqueio ao Porto de
Odessa tem sido coberto em razão dos seus efeitos na segurança alimentar
mundial57. Por evidente, o bloqueio foi duramente criticado no ocidente e, de
fato, países na África e no Oriente Médio sentiram mais agudamente a alta nos
preços dos commodities e a escassez58. Mas é bem verdade que um bloqueio
naval, a priori e per se, não é ilegal. Aliás, o direito que regula o bloqueio naval
russo é mais claro que aquele em torno das sanções econômicas do ocidente,
sendo que ambos visam ao estrangulamento econômico da Ucrânia e da Rússia
respectivamente. Em julho, a Rússia aceitou um acordo para o escoamento de
grãos ucranianos. O quadro foi renovado em novembro59.
não prevê um “direito” nesses moldes, mas o reconhecimento do papel que a força exerce na guerra. Para
mais a respeito, cf. KENT, H. S. K. The Historical Origins of the Three-Mile Limit. The American Journal of
International Law, v. 48, n. 4, p. 537-553, 1954.
52 SAN REMO MANUAL. Op cit. (nota 44), § 98.
53 FIOTT, Daniel, Relative Dominance: Russian Naval Power in the Black Sea, War on the Rocks. Disponível
em: https://warontherocks.com/2022/11/relative-dominance-russian-naval-power-in-the-black-sea/. Acesso
em: 23 jan. 2023.
54 CONVENTION REGARDING THE REGIME OF THE STRAITS, 20 jul. 1936, 173 LNTS 213, Ar. 19.
55 ISIK, Yoruk. Russia is Using “Civilian” Ships to Circumvent Closure of the Bosporus. The Maritime Executive,
19 maio 2022. Disponível em: https://maritime-executive.com/editorials/russia-is-using-civilian-ships-to-cir-
cumvent-closure-of-the-bosporus. Acesso em: 16 nov. 2022.
56 FIOTT, D. Op. cit. (nota 53).
57 SWANSON, Ana. Ukraine Invasion Threatens Global Wheat Supply. The New York Times, 24 fev. 2022.
Disponível em: https://www.nytimes.com/2022/02/24/business/ukraine-russia-wheat-prices.html. Acesso em:
16 nov. 2022
58 TAN, Su-Lin. Russia is weaponizing food supplies to “blackmail the world”. CNBC, 8 jun. 2022. Disponível
em: https://www.cnbc.com/2022/06/08/russia-is-weaponizing-food-supplies-to-blackmail-the-world.html.
Acesso em: 16 nov. 2022.
59 KUSA, Iliya, The Ukraine-Russia Grain Deal: A Success or Failure?, Wilson Center. Disponível em: https://www.
wilsoncenter.org/blog-post/ukraine-russia-grain-deal-success-or-failure. Acesso em: 23 jan. 2023.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 157

Antes, porém, o bloqueio naval russo, diante das informações tornadas


públicas ao mundo, parece ter-se desviado dessa cartilha, notadamente no que
toca ao princípio da publicidade. Já em 10 de fevereiro de 2022, a Ucrânia
acusava a Rússia de, na prática, levar a cabo um bloqueio naval através de uma
miríade de exercícios militares, com uma concentração de navios de guerra
russos no Mar Negro acima do normal60. Acontece que o bloqueio naval é
um método de guerra, permitido apenas em tempos de guerra. Nos momentos
de paz, como sustentara a Rússia até a invasão do dia 24 de fevereiro, é uma
autêntica ilicitude. Aliás, de acordo com Artigo 3º (c) do Anexo à Resolução
3314 da AGNU, o bloqueio naval pelas forças armadas de um Estado aos portos
ou costas de outro é um ato de agressão.
Similarmente, Lott especulou que a Rússia estabeleceu bloqueio no Mar
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

de Azov sem explícita declaração. É que às 4h00 do dia 24 de fevereiro, dia


da invasão, a Rússia suspendeu navegação comercial pelo Estreito de Kerch
— e com a Crimeia, a Rússia controla os dois lados do Estreito, que liga o
Mar Negro ao Mar de Azov. Isto afetou o escoamento de bens através dos
portos ucranianos de Mariupol e Berdyansk61.

Fonte: Google Maps. Circunferências em vermelho destacam as cidades portuárias de Mariupol


e Berdyansk, no Mar de Azov; Odessa, o principal porto do país; e o Estreito de Kerch.

Percebe-se que o debate não se centra, inicialmente, sobre as regras que


regulam o bloqueio naval, mas sobre o estatuto do Estreito de Kerch enquanto

60 Ukraine tensions: Russia accused of sea blockade. BBC News, 10 fev. 2022. Disponível em: https://www.
bbc.com/news/world-europe-60340232. Acesso em: 16 nov. 2022.
61 LOTT, Alexander. Russia’s Blockade in the Sea of Azov: A Call for Relief Shipments for Mariupol. EJIL: Talk!,
14 mar. 2022. Disponível em: https://www.ejiltalk.org/russias-blockade-in-the-sea-of-azov-a-call-for-relief-shi-
pments-for-mariupol/. Acesso em: 16 nov. 2022.
158

estreito regulado por tratado específico e o regime que regula estreitos em


tempos de paz e de guerra, objetivo a que ora se almeja62.
O Tratado de Kerch63 é instrumento mui peculiar. Seu Artigo 1º estipula
que o Mar de Azov e o Estreito de Kerch são historicamente águas interio-
res (“inland”) Russas e Ucranianas, sendo que a delimitação dependerá de
acordo entre as partes. É uma herança do passado comum soviético, quando
a questão era incontroversa64. No entanto, após o Tratado de 2003, com a
Crimeia e o controle dos dois lados do Estreito, a Rússia passou a sustentar
que tem exercido “soberania exclusiva” sobre as águas do estreito, entendi-
mento esposado em 201965, em gritante contradição com o Tratado de 2003,
mas manteve a aplicação do Artigo 2º. Esse dispositivo prevê que: (i) navios
ucranianos e russos, mercantes e estatais, terão liberdade de navegação no

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Mar de Azov; (ii) navios mercantes que hasteiam bandeiras de estados tercei-
ros podem atravessar o Estreito se indo ou retornando de um porto russo ou
ucraniano; e (iii) navios de Estado de outros estados só podem atravessar o
estreito com a permissão de ambas as partes. Note-se, contudo, que a Rússia
não reconhecia estar em um conflito armado internacional no ano de 2019.
Nos dias em que este capítulo é redigido, sim.
Antes de analisar os efeitos do direito da guerra naval sobre o estreito,
esse Tratado deve ser interpretado no contexto do direito do mar em geral.
Primeiro, o Artigo 2º deixa claro que Ucrânia e Rússia consideram o Estreito
como sendo “utilizado para a navegação internacional”, que é um requisito
para que o direito geral dos estreitos internacionais seja aplicado a determi-
nado estreito66. No entanto, como visto, Ucrânia e Rússia consideram, no
Tratado, o Mar de Azov e as águas do estreito como águas históricas russas e
ucranianas. E o outro requisito para a aplicação do “direito geral dos estreitos
internacionais” é a conexão entre duas áreas de ZEE ou alto mar (caso em que
terceiros têm direito de passagem de trânsito) ou a conexão entre uma área
de ZEE ou alto mar e o mar territorial de um Estado (caso em que terceiros
têm direito de passagem inocente)67.
62 Nós não concordamos com Lott de que o fechamento do estreito caracteriza um bloqueio naval. Alinha-
mos-nos mais a Fink: FINK, Martin. The War at Sea: Is There a Naval Blockade in the Sea of Azov? Lieber
Institute West Point, 24 mar. 2022. Disponível em: https://lieber.westpoint.edu/war-at-sea-naval-blockade-
-sea-of-azov/. Acesso em: 19 nov. 2022.
63 AGREEMENT BETWEEN THE RUSSIAN FEDERATION AND THE UKRAINE ON COOPERATION IN THE
USE OF THE SEA OF AZOV AND THE STRAIT OF KERCH, 24 dez. 2003. Disponível em: https://faolex.
fao.org/docs/pdf/bi-45795.pdf. Acesso em: 23 jan. 2023.
64 SCHATZ, V.; KOVAL, D. Ukraine v. Russia: Passage through Kerch Strait and the Sea of Azov. Völkerrechts-
blog, 10 jan. 2022. Disponível em: https://voelkerrechtsblog.org/ukraine-v-russia-passage-through-kerch-s-
trait-and-the-sea-of-azov/. Acesso em: 17 nov. 2022
65 PCA. Dispute Concerning Coastal State Rights in the Black Sea, Sea of Azov, and Kerch Strait (Ukraine v.
Russia), Decisão de Objeções Preliminares, 21 fev. 2020, para. 211.
66 Artigo 37, CNUDM.
67 Artigo 37, CNUDM.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 159

Títulos históricos e tratados de estreitos apresentam uma controvérsia


em comum: eles visam a aplicar um regramento jurídico a terceiros68. Porém,
como é evidente, estes tratados constituem uma res inter alios acta e a impo-
sição de obrigações a terceiros necessita do consentimento explícito dos ter-
ceiros. Ora, se Ucrânia e Rússia, na verdade, não têm títulos históricos sobre
as águas do Estreito ou do Mar de Azov, Estados terceiros têm que consentir
explicitamente à imposição do Artigo 2º. Caso contrário, em que o Mar de
Azov e as águas do estreito não sejam águas interiores, o “direito geral” é
aplicável69; e aí terceiros (e a Ucrânia) têm o direito de passagem de trânsito.
Esta posição foi sustentada pela Ucrânia em 201870.
Ademais, segundo os parágrafos 27 e 28 do Manual de San Remo, o direito
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

de passagem de trânsito em estreitos, que por definição não pode ser suspendido
pelo Estado costeiro, continua aplicável em tempos de guerra. No entanto, esta
é potencialmente uma das partes do Manual classificadas como em “desenvol-
vimento progressivo”. Embora a Parte III da CNUDM – “Estreitos Usados para
a Navegação Internacional” – seja considerada DIC, o debate é controverso
em se tratando de tempos de guerra, sobretudo porque a CNUDM entrou em
vigor há menos de 30 anos. Como aponta von Heinegg, a prática dos Estados
após 1945 revela que, quando Estados às bordas de um estreito internacional se
envolveram em conflito armado internacional, eles tenderam a fechá-lo mesmo
para navegação pacífica por parte de países neutros71.
Esta prática, porém, parece em contradição com a decisão da Corte Inter-
nacional de Justiça no caso do Canal de Corfu: a Albânia, em guerra com a
Grécia, poderia emitir regulações a respeito da passagem de navios de guerra
(neutros) pelo estreito, mas não, proibir ou sujeitar a passagem a seu consenti-
mento72. Ainda antes da assinatura da CNUDM, em 1980 no início da Guerra
Irã-Iraque, o Irã reconheceu sua obrigação legal de manter aberto o Estreito
68 Títulos históricos entram no espinhoso debate sobre consolidação histórica e prescrição aquisitiva. A pers-
pectiva mais aceita hoje parece ser aquela que foi adotada pelo UN Study on Historical Waters e pelo
Tribunal Arbitral, no caso do Mar do Sul da China. Segundo tal perspectiva, o título histórico é fundado em
dois movimentos: por um lado, determinado Estado exerce e reivindica determinado direito e, por outro,
outros Estados afetados aquiescem. PCA. South China Sea Arbitration (Philippines v. China), Julgamento,
12 jul. 2016, para. 265.
69 O Tratado de Kerch não se insere na exceção ao “direito geral” prevista no Artigo 35(c) da CNUDM, já que
esta se refere apenas a “convenções internacionais de longa data”. É o caso do Tratado de Montreux de
1936. Neste tipo de caso, não se precisa do consentimento de Estados terceiros.
70 A Ucrânia sustentou que sempre entendeu que o Mar de Azov e as águas do estreito, após sua indepêndencia
não eram águas interiores comuns, mas estavam sujeitas ao direito do mar geral. Salientou que apenas
aceitou os termos do Artigo 1 do Tratado de 2003, pois este previa que as partes ainda delimitariam a área.
PCA, op. cit., paras. 237-239.
71 VON HEINEGG, Wolff. H. The Law of Naval Warfare and International Straits. International Law Studies,
v. 71, p. 263-292, 1998, p. 265.
72 ICJ. Corfu Channel case (Reino Unido v. Albânia), Julgamento, 9 abr. 1949, p. 29.
160

de Ormuz. Isto se dera em resposta a protestos da comunidade internacional


dirigidos à decisão iraniana de proclamar uma zona de guerra nas águas do
estreito e fechá-lo à navegação internacional. Em termos claros, com que
concordamos, os Estados Unidos mantiveram que o direito de passagem de
trânsito não fora afetado pelo fato de que os Estados às bordas de um estreito
estão em um conflito armado internacional73. Por outro lado, os manuais
militares de países como a Alemanha e a Dinamarca negam que o direito de
passagem de trânsito permaneça intocado em tempos de guerra. Tudo (ou a
pouca prática) leva a uma inconclusão para Von Heinegg74.
De toda forma, a verdade é que, a depender da técnica jurídica, não se
precisa determinar que os §§ 27 e 28 do Manual são DIC. Afinal, em geral, a

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Parte III da CNUDM e o DIC correspondente são aplicáveis. Em tempos de
guerra, ela apenas não é aplicável no que for incompatível com o direito da
guerra naval na forma de lex specialis. Os presentes autores sustentam que não
há incompatibilidade total entre a Parte III da CNUDM e o direito da guerra
naval. Primeiro, é evidente que a Rússia pode atacar navios de guerra ucra-
nianos; então não faz sentido estabelecer que estes têm direito de passagem
de trânsito — ou liberdade de navegação, como no Artigo 2 (1) do Tratado
de Kerch. Segundo, navios mercantes ucranianos, a priori, não são objetivos
militares, mas estão sujeitos à captura e à adjudicação à Rússia como presas
— debilitando a liberdade de navegação prevista no Tratado75.
Porém, o direito aplicável entre a Rússia e Estados neutros é o direito do
mar de tempos de paz, que não é o Tratado de Kerch, evidentemente inoponí-
vel erga omnes, mas a Parte III da CNUDM e o DIC correspondente. Nesse
campo, a única limitação ao direito de passagem de trânsito é o direito russo de
visita e inspeção, que não deve ser usado arbitrariamente e visa a verificar se
navios mercantes neutros estão auxiliando o inimigo. Portanto, o fechamento
do Estreito de Kerch foi ilegal na medida em que violou o direito de passagem
de trânsito de Estados neutros. No tocante às embarcações ucranianas, não
houve ilegalidade sob o prisma do direito internacional, nem faz sentido se
falar em bloqueio naval neste caso.
Ainda sobre a condução das hostilidades, uma prática recorrente de
ambas as partes do conflito tem sido a colocação de minas navais, sobre-
tudo no Mar Negro. Dada a clara vantagem russa nesta área, um dos meios
adotados pela Ucrânia para impedir que esta vantagem contribua para a
ofensiva russa em terra (por exemplo, operações anfíbias e bombardeamen-
tos partindo do mar), tem sido a aposição de minas em locais específicos
73 VON HEINEGG. Op cit. (nota 71), p. 265.
74 Ibid., p. 266-267.
75 SAN REMO MANUAL. Op cit. (nota 44), § 135.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 161

da sua costa, sobretudo nas proximidades do Porto de Odessa76. A Ucrânia


também acusou a Rússia de colocar minas à deriva, sem localização fixa,
no Mar Negro, prejudicando a liberdade de navegação e a vida humana no
mar77. Esta acusação significa que a Rússia estaria violando o parágrafo
80 do Manual de San Remo, segundo o qual, minas navais só podem ser
usadas visando a objetivos militares legítimos, incluindo a negação de áreas
do mar ao inimigo.
A prática de instalar minas aquáticas apresenta riscos a civis e está
em desacordo com o direito da guerra naval, na medida em que as partes
beligerantes não têm demonstrado adotar as devidas precauções78. Pri-
meiro, de acordo com o parágrafo 81 do Manual, minas não devem ser
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

empregadas, a menos que sua efetiva neutralização ocorra quando elas


tenham se desanexado (do solo marinho, por exemplo) ou o controle sobre
elas tenha se perdido de alguma outra maneira. Terceiro, pelo parágrafo 82
(b), minas de livre flutuação são proibidas a menos que se tornem inofen-
sivas em até uma hora depois de perdido o controle sobre elas. Terceiro,
a colocação de minas deve ser notificada a menos que detonem apenas
contra navios que se configurem como objetivos militares. Todos estes
dispositivos foram violados pela Ucrânia, e possivelmente pela Rússia,
como se vê no extenso tratamento que a questão tem recebido na mídia
internacional ou especializada.
Como dito acima, as ações defensivas ucranianas visavam a prevenir o
bombardeamento de suas cidades e infraestruturas a partir do mar, além de
dificultar o bloqueio naval. Acontece que o bombardeamento naval não tem
previsão no Manual e é regulado por Convenção de que fazem parte a Rússia e
a Ucrânia desde 2015. O Artigo 1º da Convenção é direto e resume a regra do
jogo: é proibido o bombardeamento, por forças navais, de portos, cidades, vilas,
habitações ou prédios não defendidos. O Artigo 5º contém ainda “embargos de
zelo”, ao impor ao comandante de bombardeamentos a obrigação de tomar as
medidas necessárias para poupar edifícios sagrados, prédios usados para fins
artísticos, científicos ou beneficentes, monumentos históricos, hospitais e luga-
res onde enfermos e feridos são reunidos. O notável caso do bombardeamento,

76 TONDO, Lorenzo. Sea mines: the deadly danger lurking in Ukraine’s waters. The Guardian, 11 jul. 2022.
Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2022/jul/11/sea-mines-ukraine-waters-russia-war-black-
-sea. Acesso em: 19 nov. 2022.
77 SAUL, Jonathan. Ukraine says Russia planting mines in Black Sea as shipping perils grow. Reuters, 30 mar.
2022. Disponível em: https://www.reuters.com/world/europe/ukraine-says-russia-planting-mines-black-sea-
-shipping-perils-grow-2022-03-30/. Acesso em: 19 nov. 2022.
78 OZBERK, Tayfun. Opinion: Is there a serious sea mine threat in the Black Sea? Naval News, 27 mar. 2022.
Disponível em: https://www.navalnews.com/naval-news/2022/03/opinion-is-there-a-serious-sea-mine-threa-
t-in-the-black-sea/. Acesso em: 19 nov. 2022.
162

na prática, indiscriminado da cidade portuária de Mariupol, no Mar de Azov,


revela claras violações a esta Convenção79.
Além destes tópicos específicos, o direito da guerra naval se torna rele-
vante no que concerne a capturas e ataques contra navios mercantes neutros
e ucranianos e navios de Estado ucranianos. A construção dos fatos da grande
maioria dos eventos não permite uma análise jurídica detalhada, consideran-
do-se a assimetria de informações e o viés inevitavelmente político a depen-
der das fontes dessas informações. Ainda assim, alguns incidentes merecem
menção, mesmo en passant.
Primeiro, os casos cujos fatos são mais claros. No dia 26 de fevereiro de
2022, o navio ucraniano de resgate Sapphire foi capturado por forças russas
ao tentar resgatar soldados ucranianos após o incidente da Ilha da Serpente.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Apesar de ser um navio de Estado para usos civis, navios de resgate apenas se
tornam isentos de captura mediante acordo expresso entre os beligerantes80
De toda forma, a Rússia retornou o Sapphire em 8 de abril, como parte de
um acordo de troca de prisioneiros de guerra81. Ainda no dia 26 de fevereiro,
dois graneleiros ucranianos (Afina e Princesse Nicole) foram capturados pela
Rússia82. O ato estaria em conformidade com o direito da guerra naval, não
fosse o fato de ter sido levado a cabo em águas neutras, romenas83.
No dia 8 de abril, a Rússia abriu fogo e capturou embarcação maltesa
pertencente a uma empresa turca, sob a justificativa de que o graneleiro Apache
estaria recebendo ordens da Ucrânia para atuar como navio de resgate para a
evacuação de líderes (“nacionalistas”) ucranianos após a Batalha de Mariupol.
A Rússia parece ter seguido a cartilha, pois o Apache ignorou pedidos das
forças russas para estabelecer contato84. A visita e a inspeção, um direito dos
beligerantes, poderia identificar se a embarcação arvorando bandeira neutra
seria, na verdade, uma embarcação inimiga. Ignoradas, as forças russas lan-
çaram mão de tiros de aviso. Eventualmente, a tripulação do Apache cedeu e
a embarcação foi capturada, levada ao Porto russo de Yeysk85.
79 THE MARITIME EXECUTIVE. Russian Navy Joins the Bombardment of Mariupol. The Maritime Executive,
20 mar. 2022. Disponível em: https://maritime-executive.com/article/russian-navy-joins-the-bombardment-
-of-mariupol. Acesso em: 19 nov. 2022.
80 SAN REMO MANUAL. Op cit. (nota 44), § 136 (c) (ii).
81 Curiosamente, esta fonte, oficial Ucraniana, alega que a captura fora uma violação do direito marítimo
internacional. “Sapphire” rescue vessel has returned to Ukraine. Militarnyi, 12 abr. 2022. Disponível em:
https://mil.in.ua/en/news/sapphire-rescue-vessel-has-returned-to-ukraine/. Acesso em: 19 nov. 2022.
82 VOYTENKO, Mikhail. Two bulk carriers intercepted, captured by Russian Navy. FleetMon.com, 27 fev. 2022.
Disponível em: https://www.fleetmon.com/maritime-news/2022/37401/two-bulk-carriers-intercepted-captu-
red-russian-nav/. Acesso em: 19 nov. 2022
83 SAN REMO MANUAL. Op cit. (nota 44), § 135.
84 Ibid., §§ 67 and 146.
85 DIXON, Gary. Russia fires on Turkish cargo ship on ‘rescue mission’ to Mariupol. TradeWinds, 11 abr. 2022.
Disponível em: https://www.tradewindsnews.com/casualties/russia-fires-on-turkish-cargo-ship-on-rescue-
-mission-to-mariupol/2-1-1200502. Acesso em: 19 nov. 2022.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 163

Quanto a outros incidentes, muitos precisam de maior aporte fático para


precisão jurídica. É que navios mercantes russos e de estados neutros foram
atingidos em meio a fogo cruzado86. Logo, não se estaria falando apenas de
captura ou ataques direcionados a estas embarcações — como visto acima.
Foram ataques com objetivos militares, como no início da guerra ou na Batalha
de Mariupol. A questão é se as devidas precauções durante o ataque foram
feitas e, para estes fins, a integralidade do § 46 és instrutiva87.
A esta altura, o leitor deve ter apercebido a maneira como o status de neu-
tralidade de determinados Estados afeta a conduta das hostilidades, como nos
casos dos graneleiros Afina, Princess Nicole e Apache. A próxima subseção
trabalhará não tanto o modo como o status de neutralidade afeta a condução
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

das hostilidades, mas o conceito em si de neutralidade, em particular a marí-


tima, no direito internacional contemporâneo.

3.2 A neutralidade marítima

O direito da neutralidade marítima limita o desenrolar das hostilidades em


mar e terra. A diferenciação entre países beligerantes e países neutros influencia
qual direito será aplicável às relações entre determinados Estados, se direito do

86 Seraphim Sarovskiy – Cargo Ship, IMO 8867222, MMSI 273334800, Callsign UHSO, Flag Russia – ves-
seltracker.com. Disponível em: https://www.vesseltracker.com/en/Ships/Seraphim-Sarovskiy-8867222.
html. Acesso em: 19 nov. 2022; BUSH, D. Turkish bulker hit by bomb off Odessa. Lloyd’s List, 24 fev.
2022. Disponível em: https://lloydslist.maritimeintelligence.informa.com/LL1139973/Turkish-bulker-hit-by-
-bomb-off-Odessa. Acesso em: 19 nov. 2022; Cargo ship Namura Queen hit by rocket off Ukraine – local
agent. Reuters, 25 fev. 2022. Disponível em:https://www.reuters.com/world/europe/cargo-ship-namura-
-queen-hit-by-rocket-off-ukraine-local-agent-2022-02-25/. Acesso em: 19 nov. 2022; Bangladeshi killed in
attack on ship “Banglar Samriddhi” at Ukraine port. The Financial Express, [s.d.]. Disponível em: https://
thefinancialexpress.com.bd/national/bangladeshi-killed-in-attack-on-ship-banglar-samriddhi-at-ukrai-
ne-port-1646276767. Acesso em: 19 nov. 2022. SAUL, J. Foreign ship sinks in Mariupol after missile
attacks, says flag registry. Reuters, 5 abr. 2022. Disponível em: https://www.reuters.com/world/europe/
foreign-merchant-ship-hit-by-missile-mariupol-ukrainian-official-2022-04-05/. Acesso em: 19 nov. 2022.
Seafarer killed as Russian shells hit icebreaker in Mariupol, says Ukrainian army. Llods List. Disponível
em: https://lloydslist.maritimeintelligence.informa.com/LL1140466/Seafarer-killed-as-Russian-shells-hit-
-icebreaker-in-Mariupol-says-Ukrainian-army. Acesso em: 19 nov. 2022.
87 Tradução livre nossa: “Com relação aos ataques, as seguintes precauções devem ser tomadas:
(a) aqueles que planejam, decidem ou executam um ataque devem tomar todas as medidas possíveis para
coletar informações que ajudarão a determinar se objetos que não são objetivos militares estão ou não
presentes em uma área de ataque;
(b) à luz das informações disponíveis, aqueles que planejam, decidem ou executam um ataque devem fazer
todo o possível para garantir que os ataques sejam limitados a objetivos militares;
(c) devem ainda tomar todas as precauções viáveis na escolha de métodos e meios para evitar ou minimizar
baixas ou danos colaterais; e
(d) um ataque não deve ser lançado se for esperado que cause baixas colaterais ou danos que sejam excessivos
em relação à vantagem militar concreta e direta antecipada do ataque como um todo; um ataque deve ser cancelado
ou suspenso assim que se tornar aparente que as baixas ou danos colaterais seriam excessivos”.
164

mar (tempos de paz) ou dos conflitos armados. A saber, enquanto o jus in bello
é aplicável entre duas forças beligerantes, a regra é que o direito de tempos de
paz seja aplicado entre um Estado beligerante e outro neutro.
A realidade é que a beligerância afeta muito claramente os direitos e liber-
dades de Estados neutros. Por exemplo, boa parte do Mar Negro é composta por
ZEEs de Estados neutros, como a Romênia, onde, em regra, todos os Estados
gozam de liberdade de navegação, e onde a Romênia detém direitos de soberania
e de algum grau de jurisdição88. Nesses casos, o que acontece na ZEE não se
trata mais de uma ponderação entre os direitos do Estado costeiro e as liberdades
dos outros, na medida em que as necessidades militares dos beligerantes passa
a ter enorme peso na equação, concretamente limitando os direitos da Romênia
e a liberdade de navegação de Estados neutros na região.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


O status de neutralidade ou beligerância é um só, na terra ou no mar. No
entanto, o direito da neutralidade marítima possui especificidades sobre o que
constitui uma violação do status de neutralidade, ou o que é proibido para
Estados neutros; e isto, claro, pode impactar o status geral de determinados
Estados. Nesse sentido, a mais destacada regra é o Artigo 6º da Convenção
sobre os Direitos e Deveres das Potências Neutras na Guerra Naval, de 1907, e
de que são partes inter alia Rússia, Estados Unidos, China, França, Alemanha,
Noruega, Suécia, Brasil, Holanda, Finlândia, Dinamarca, Bélgica e, desde 2015,
Ucrânia. Segundo o referido dispositivo: o suprimento, de qualquer forma,
direta ou indiretamente, por uma potência neutra a uma potência beligerante, de
navios de guerra, munição, ou material de guerra de qualquer tipo, é proibido.
Por outro lado, uma potência neutra não é obrigada a impedir a exportação ou
o trânsito destes objetos a uma potência beligerante.
No contexto da Guerra da Ucrânia, foco deve ser atribuído ao Artigo 6º
citado, que parece ser contrariado pelas ações de vários Estados ocidentais,
em condutas que infringem outras obrigações de neutralidade. Os exemplos
são tantos que nem precisariam ser mencionados aqui. No entanto, posto que
o tema deste capítulo seja guerra naval, é importante salientar que a resposta
ucraniana à dominância naval russa se deu, sobretudo, através de mísseis
antinavios partindo de terra, exemplos dos quais são os mísseis Harpoon
doados por Holanda, Estados Unidos e Reino Unido89.
De volta às reflexões lançadas na introdução, qual a relação do direito
da neutralidade com a proibição do uso da força e o sistema de segurança
coletiva da ONU? Teoricamente, a única maneira de Estados neutros não
88 GAVOUNELI, Maria. Functional Jurisdiction in the Law of the Sea. Publications on Ocean Development, v.
62. Leiden, Boston: Martinus Nijhoff, 2007.
89 ROBLIN, Sebastien, Ukraine Blasts Russian Tug Near Snake Island With Land-Based Harpoon Missiles.
Forbes, 17 jun. 2022. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/sebastienroblin/2022/06/17/ukraine-blast-
s-russian-tug-near-snake-island-with-land-based-missiles/. Acesso em: 24 jan. 2023.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 165

terem de cumprir a obrigação do Artigo 6º (além de outras) seria através


de resolução do Conselho de Segurança da ONU baseada no Capítulo VII
da Carta. Na medida do óbvio, o poder de veto russo (e o dos membros
permanentes ocidentais) impede a adoção de qualquer resolução nesse sen-
tido. Portanto, há elementos para argumentar que os Estados do ocidente,
ao fornecer material militar à Ucrânia, estariam agindo em desacordo com
suas obrigações de Estados neutros90.
A ressalva a tal vaticínio reside no entendimento esposado por apro-
ximadamente 40 Estados, segundo o qual países neutros poderiam adotar
uma posição de neutralidade “qualificada” ou “benevolente”, ao distinguir
Estado agressor e Estado vítima de agressão91. Historicamente, essa visão
começou a se desenvolver durante o Entreguerras, com a Liga das Nações e
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

o Acordo Briand-Kellogg. Isso porque, no período anterior, que compreende


os anos entre o Congresso de Viena (1815) e a Primeira Guerra Mundial,
reconheciam-se largamente os direitos soberanos de recorrer à guerra e de
permanecer neutro.
O jus ad bellum (direito à guerra) sofreu mudanças embrionárias no Entre-
guerras, apenas consolidadas com a Carta das Nações Unidas, de 1945, nomea-
damente o Artigo 2 (4), que aboliu expressamente o direito à guerra. Daí a
referência contemporânea ao atual regime como jus contra bellum92, do qual
as principais exceções seriam a legítima defesa em resposta a ataque armado, ou
uma decisão do Conselho de Segurança sob o Capítulo VII da Carta93.
Para crescente número de internacionalistas, essa mudança no âmago
do direito à guerra implicava, em certa medida, em mudança do “direito à
neutralidade”94. Nesse sentido, a Estados terceiros seria plenamente permitido
socorrer Estado vítima de uma agressão ou, pelo menos, diferenciar entre
90 Essa prática não é recente e se define como proxy war, ou “guerra por procuração”. No contexto da Guerra na
Ucrânia, tem sido veementemente criticada pela Rússia. Para mais sobre o tema, cf. FOX, Amos C. Conflict
and the Need for a Theory of Proxy Warfare. Journal of Strategic Security, v. 12, n. 1, 2019, p. 44-71.
91 PEDROZO, Raul (Pete), Ukraine Symposium – Is the Law of Neutrality Dead?, Lieber Institute West Point.
Disponível em: https://lieber.westpoint.edu/is-law-of-neutrality-dead/. Acesso em: 24 jan. 2023.
92 Este é, inclusive, o título de uma das monografias mais influentes sobre o tema na contemporaneidade:
CORTEN, Olivier. The Law Against War. 2. ed. Londres: Bloomsbury, 2021.
93 A outra exceção presente na Carta se refere à Estados inimigos (no contexto da Segunda Guerra), de
acordo com o Artigo 53. Ademais, é controverso, mas alguns autores sustentam que as regras contendo
autorizações de atividades executórias além do mar territorial sobre embarcações estrangeiras constituem
exceções à proibição do uso da força. DÖRR, O. Use of Force, Prohibition of. Max Planck Encyclopedia
of Public International Law, 2019, para. 41. Disponível em: https://opil.ouplaw.com/view/10.1093/law:e-
pil/9780199231690/law-9780199231690-e427?prd=MPIL. Acesso em: 19 nov. 2022.
94 Cf. HAINES, Steven. The United Kingdom’s Manual of the Law of Armed Conflict and the San Remo Manual:
Maritime Rules Compared. Israel Yearbook on Human Rights, v. 36, p. 89-118, 1 jan. 2006; JESSUP, Philipp.
C. Should International Law Recognize an Intermediate Status between Peace and War? The American
Journal of International Law, v. 48, n. 1, p. 98-103, 1954; SCHINDLER, Dieter. Aspects contemporains de
la neutralité. Recueil des Cours, v. 121, 1967, p. 261.
166

agressor e vítima, adotando uma posição mais benevolente para com esta,
rememorando ensinamentos de Vitória e Grócio sobre guerra justa. A prática
estadunidense a partir da Segunda Guerra Mundial, e a entrada em vigor da
Carta da ONU fortaleceram de vez essa posição. Como via de consequência,
as regras inscritas nas Convenções de 1907 sobre neutralidade raramente
foram observadas em todo o seu rigor95.
Voltando a discussão para o prisma de atuação do Conselho de Segu-
rança, a tese da neutralidade benevolente se revela controversa se o órgão
da ONU não consegue identificar determinado Estado como agressor. Isso
porque ambas as partes de um conflito podem alegar agir em legítima defesa,
sem qualquer violação à Carta, o que ocorre com a Guerra na Ucrânia, em

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


que tanto Ucrânia quanto Rússia alegam estar agindo em legítima defesa
(coletiva, no caso da Rússia). Para situações dessa natureza, poder-se-ia
argumentar in abstracto que, se for atribuída a Estados neutros autoridade
para determinar unilateralmente agressor e agredido, que permita o emprego
de uma “neutralidade qualificada”, o direito da neutralidade seria qualquer
coisa, menos útil. Tal autoridade moral unilateral contrariaria o objeto e a
raison d’être da neutralidade, que é proteger os Estados neutros e evitar a
escalação das hostilidades.
No entanto, a neutralidade “benevolente” não deveria ser analisada em
abstrato, mas levando-se em conta variáveis concretas em cenários geopolíti-
cos carregados de belicosidade. A Guerra na Ucrânia não é tão (absurdamente)
cinza quanto a agressor e agredido96. Von Heinegg, que normalmente esposa
os argumentos do parágrafo anterior97, destaca as seguintes observações: (i)
a Rússia travou unilateralmente o mecanismo do Capítulo VII da Carta, que
invariavelmente definiria a Rússia como Estado agressor, com maioria sufi-
ciente no Conselho, mesmo contando com esperada abstenção da China; (ii)
independentemente de resolução do Conselho, as manobras militares russas,
nomeadamente após 24 de fevereiro de 2022, configuram evidentes atos de
agressão — suas justificativas são inconsistentes e provavelmente serão rejei-
tadas pela Corte Internacional de Justiça, no mais recente caso instaurado
95 Uma análise recente da questão com aportes doutrinários e atenção à prática dos Estados é esta mono-
grafia: UPCHER, James, Neutrality in Contemporary International Law, Oxford: Oxford University Press,
2020, p. 9-37.
96 Dada a predominância desnecenários cinzas, Upcher, citado acima, defende a aplicação prima facie da
neutralidade tradicional (e seus direitos e deveres). UPCHER, James, Neutrality in Contemporary International
Law, Oxford: Oxford University Press, 2020, p. 37
97 VON HEINEGG. W. H. The Current State of the Law of Naval Warfare: A Fresh Look at the San Remo
Manual. International Law Studies, v. 82, p. 269–296, 2006, p. 282-283; BOOTHBY, W. H.; VON HEINEGG,
W. H. The Law of Neutrality. In: The Law of War: A Detailed Assessment of the US Department of Defense
Law of War Manual. Cambridge: Cambridge University Press, p. 371-389, 2018.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 167

perante aquele Tribunal98; e (iii) o número de Estados condenando os ataques


russos como violação de direito internacional é esmagador. Alguns países,
como China, Cuba, Venezuela e Nicarágua, apoiam ou simpatizam com a
posição russa, postura que deve ser entendida mais como alinhamento político
do que como peso para uma interpretação do direito internacional99. Similar-
mente, pode-se argumentar que a abstenção de outros países se explica não
por suas perspectivas jurídicas, mas pela dependência de que cada sofre da
Rússia, no âmbito do comércio internacional.
Por fim, existe analogia deveras persuasiva no próprio sistema da Carta,
na qual os Estados têm o direito de apoiar a vítima de uma agressão sob o
direito de legítima defesa coletiva — vide a Guerra das Malvinas, o (não)
envolvimento dos Estados Unidos e o Tratado Interamericano de Assistência
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Recíproca de 1947100. Ora, se a um Estado individualmente é dado determinar


que outro Estado tenha sofrido agressão ilegal para fins de exercer o direito
de legítima defesa coletiva, logicamente aquele Estado gozaria do direito de
distinguir agressor de vítima. O envolvimento ativo lícito em uma guerra parida
por agressão também parece ser direito mais valioso do que o direito de apoio
lícito a um dos beligerantes (neutralidade qualificada). Logo, a maiore ad
minus, todo e qualquer Estado teria o direito de individualmente determinar
se outro Estado sofreu agressão, para fins de exercer o direito-dever de adotar
um status de neutralidade qualificada.
A discussão trazida acima, claro, só diz respeito à distinção entre
Estados neutros e beligerantes. No caso em tela, isso gerará uma relação
assimétrica de direitos e deveres. Por um lado, os Estados neutros bene-
volentes prescindirão de cumprir obrigações que o status de neutralidade
impõe. Pelo outro, o Estado agressor ainda deverá distinguir entre Estados
neutros e inimigos. Da mesma forma é assimétrica a relação de um agressor
com o resto da comunidade internacional em termos de legítima defesa
coletiva ou ação do Conselho de Segurança. Como visto mais acima, Rússia,
Ucrânia e vários países do ocidente desenvolvido ratificaram a Convenção
da Haia (XIII) sobre neutralidade marítima. O leitor mais curioso é enco-
rajado a investigar seu conteúdo, assim como os parágrafos do Manual de
San Remo no que concerne a Estados neutros e os Princípios de Helsinki
sobre Neutralidade Marítima101. O único embargo é que tanto o Manual de
San Remo quanto os Princípios (e a maioria dos manuais militares) acolhem
98 ICJ. Latest developments. Allegations of Genocide under the Convention on the Prevention and Punishment
of the Crime of Genocide (Ukraine v. Russian Federation). Disponível em: https://www.icj-cij.org/en/case/182.
Acesso em: 19 nov. 2022.
99 VON HEINEGG, W. H. Neutrality in the War against Ukraine. Lieber Institute West Point, 1 mar. 2022. Dis-
ponível em: https://lieber.westpoint.edu/neutrality-in-the-war-against-ukraine/. Acesso em: 19 nov. 2022.
100 TRATADO INTERAMERICANO DE ASSISTÊNCIA RECÍPROCA, 2 set. 1947, 21 UNTS 324.
101 COMMITTEE ON MARITIME NEUTRALITY. Final Report: Helsinki Principles on Maritime Neutrality: Report
of the 68th Taipei, Taiwan Conference, 24-30 May 1998. In: SCHINDLER, D.; TOMAN, J. (eds.). The Laws of
168

uma perspectiva tradicional da neutralidade. Então, é importante lê-los


sempre levando em conta como os Estados se comportam nos níveis mais
altos do executivo e os debates doutrinários que vislumbram o conceito de
neutralidade benevolente.

4. Considerações finais

À guisa de conclusão, é importante ressaltar novamente que este capítulo


não pretendeu levar o tema do direito da guerra naval e a Guerra na Ucrânia
à exaustão, nem, muito menos, o direito da guerra naval em geral. O objetivo
foi introduzir o leitor nos principais tópicos deste tema, mediante análise

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


de conceitos-chave deste ramo do direito internacional e sua aplicação nos
episódios concretos do conflito armado em curso.
A questão mais saliente analisada neste capítulo refere-se à neutralidade,
já que o exame da Guerra na Ucrânia perpassa pela participação de Estados
terceiros e pelos seus efeitos de escala global. Como visto, para além da neu-
tralidade marítima, debate-se sobre conceitos como neutralidade “qualificada”
ou “benevolente,” que no mundo dos fatos vem sendo chamado pela Rússia de
“guerra por procuração” (proxy war). Nesta guerra por procuração, a Rússia
se vê confrontada pelo ocidente e justificada na escalação das hostilidades102.
Isto inclui, claro, a faceta naval do conflito. No tangente ao jus in bello no
mar propriamente dito, além de seus aspectos fundamentais, o capítulo ana-
lisou a legislação aplicável aos bloqueios, bombardeamentos, minas navais
e estreitos internacionais.
Uma nota de cuidado, por fim, é necessária. O direito da guerra naval
está longe de ser um “ramo da moda” do direito internacional. Na verdade,
parece existir em uma eterna crise, como dito por Fink, fundada em algumas
razões principais: (i) não há uma Convenção de Direito do Mar (CNUDM)
para tempos de guerra; (ii) há um sentimento de que os tratados existen-
tes (centenários em sua maioria) estão ultrapassados; (iii) o DIC, quando
incontroverso, é conhecido apenas por um pequeno número de acadêmicos
e profissionais da área; (iv) sua discussão é cada vez mais escassa; (v) novos
desevolvimentos tecnológicos desafiam as regras ditas vigentes; e (vi) Estados

Armed Conflicts: A Collection of Conventions, Resolutions, and Other Documents. Boston: Martinus Nijhoff,
p. 1425-1430, 2004.
102 TREISMAN, Rachel. Russia responds to Zelenskyy’s visit by accusing the U.S. of a proxy war in Ukraine,
NPR, 22 dez. 22. Disponível em: https://www.npr.org/2022/12/22/1145004513/russia-ukraine-us-proxy-
-war-zelenskyy-visit. Acesso em: 24 jan. 2023; WINTER-LEVY, Sam. A Proxy War in Ukraine Is the Worst
Possible Outcome — Except For All the Others, War on the Rocks. Disponível em: https://warontherocks.
com/2022/03/a-proxy-war-in-ukraine-is-the-worst-possible-outcome-except-for-all-the-others/. Acesso em:
24 jan. 2023.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 169

se acostumaram com a caráter “costumeiro,” e portanto mais impreciso, do


direito da guerra naval103.
Adotando outra perspectiva, Clapham questiona o anacronismo do
caráter econômico do direito da guerra naval. Para ele, Estados beligeran-
tes não devem ser premiados com o direito de apresamento marítimo, por
exemplo. A incongruência com o direito dos conflitos armados em terra,
onde é vedado o confisco de propriedade inimiga, também é destacada104.
Assim, e concluímos aqui, o direito da guerra naval pode se apresentar como
algo demodée, estranho e antiquado. Talvez por isso este capítulo se revele,
mesmo com todas as suas limitações, importante.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

103 FINK, M. Op. cit. (nota 11), p. 1987-1988.


104 CLAPHAM, A. Op. cit. (nota 34), p. 1204-1206.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
10. AS IMPLICAÇÕES NORMATIVAS,
ÉTICAS E OPERACIONAIS
QUANTO AO USO DE SISTEMA
DE ARMAS AUTÔNOMAS
Bárbara Thaís Pinheiro Silva
Luíza Fernandes

1. Introdução
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Nenhum Estado utilizou armas totalmente autônomas, sobretudo devido


aos desafios tecnológicos e normativos que permeiam a questão. Uma vez
que essas máquinas são capazes de selecionar e atacar alvos sem a super-
visão humana, parece necessária e urgente a regulamentação internacional
do emprego de tais equipamentos bélicos, conhecidos como Lethal Autono-
mous Weapons Systems (LAWS). Para esse fim, um Grupo de Especialistas
Governamentais (GGE, sigla em inglês) realizou uma reunião, em julho de
2022, no âmbito da ONU para discutir o escopo de um possível instrumento
internacional que discipline essa matéria complexa1.
Diante da atual conjuntura geopolítica e bélica, vários Estados mostram
grande relutância em aceitar restrições legais para os sistemas de armas autô-
nomas, o que dificulta obter um consenso sobre o quadro legal de fabricação
e uso dessas armas. Em particular, a Rússia boicotou a última rodada do GGE
que exige unanimidade na tomada de decisão. Portanto, a falta de cooperação
do governo russo no futuro reflete o atraso nas discussões sobre a regulamen-
tação do uso das armas autônomas2.
Igualmente, na primeira das duas reuniões do GGE neste ano em Gene-
bra, a Rússia aproveitou o momento para justificar sua invasão na Ucrânia.
As tensões geopolíticas na reunião, diante do discurso dos delegados rus-
sos, provocaram o fracasso nas negociações, inviabilizando uma possível
regulamentação das LAWS, diante da falta de consenso sobre os contornos

1 UNITED NATIONS. Convention on Certain Conventional Weapons – Group of Governmental Experts on


Lethal Autonomous Weapons Systems. Disponível em: https://meetings.unoda.org/ccw/convention-certain-
-conventional-weapons-group-governmental-experts-2022. Acesso em: 25 mar. 2023.
2 HOFFBERGER-PIPPAN, Elisabeth; VOHS, Vanessa; KOHLER, Paula. Autonomous Weapons Systems: UN
Expert Talks Facing Failure. SWP Comment, n. 43 (2022). Disponível em: https://www.swp-berlin.org/en/
publication/autonomous-weapons-systems-un-expert-talks-facing-failuretime-to-consider-alternative-formats
Acesso em: 15 nov. 2022.
172

legais que devem ser observados caso haja o emprego de alguma arma letal
totalmente autônoma3.
Ocorre que antes mesmo da guerra Russo-Ucraniana, as diferenças de
opinião sobre o tema dentro do GGE impediam um acordo célere, embora a
maior parte dos Estados concordam com a definição proposta pelo Comitê
Internacional da Cruz Vermelha (CICV), segundo a qual uma LAWS é um
“sistema de armas com autonomia em suas funções críticas” capaz de sele-
cionar e atacar alvos sem intervenção humana, outros Estados – França e
Alemanha – apresentam a sua própria definição, concentrando no tipo, grau
e forma de interação homem/máquina4.
Tudo indica que é apenas uma questão de tempo até que os “robôs assas-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


sinos” avancem no campo de batalha5. Se as suspeitas se confirmarem quanto
ao emprego de armas totalmente autônomas por parte do exército russo na
Ucrânia, diante do fato de possuir munições que permitem o uso de tais
armas – capaz de encontrar e atacar alvos sem supervisão-, outros países,
sejam envolvidos na guerra ou não, seguirão. Deste modo, a motivação, e
o medo da ameaça bélica, provocará os governos a desenvolver, de modo
célere, armas autônomas6.
Considerando a importância do tema, o artigo em tela tem por escopo
apresentar, em primeiro momento, a noção conceitual e as características das
LAWs. Logo em seguida, o possível emprego desta arma na guerra russo-u-
craniana, bem como as implicações éticas e humanitárias. Posteriormente,
apresentar-se-á o argumento da necessidade do controle humano sobre o uso
da LAWs. Por fim, analisar-se-á o uso da LAWs à luz das normas do Direito
Internacional Humanitário. Nessa perspectiva, optou-se pela pesquisa de natu-
reza bibliográfica a fim de desenvolver um estudo com primazia.

2. Noção e características de LAWS

Novos sistemas robóticos estão sendo produzidos para realizar atividades


complexas, de modo autônomo, por meio de força letal7. Este é o caso das
LAWS, também conhecidos como “robôs assassinos”. São sistemas de armas
que utilizam da inteligência artificial para identificar, selecionar e matar alvos

3 Ibid.
4 Ibid.
5 HAMBLING, David. Efforts to regulate ‘killer robots’ are threatened by war in Ukraine. New Scientist, 13 jul.
2022. Disponível em: https://www.newscientist.com/article/2327965-efforts-to-regulate-killer-robots-are-
-threatened-by-war-in-ukraine/ Acesso em: 25 abr. 2023.
6 ICRC. Autonomy, Artificial Intelligence and Robotics: Technical Aspects of Human Control. Geneva: ICRC,
2019, p. 7.
7 Ibid.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 173

humanos sem intervenção humana8. Embora não haja uma definição inter-
nacionalmente acordada de LAWS, estes sistemas são relativamente fáceis
de definir, uma vez que envolve a delegação da tomada de decisões a uma
máquina pré-programada por um humano9.
Em suma, é a capacidade de puxar o gatilho, após selecionar o alvo,
bem como promover o ataque devido, sem intervenção de um indivíduo10.
Neste caso, os algoritmos decidem quem vive e quem morre. Trata-se de um
sistema sofisticado de Inteligência Artificial programado para determinar suas
próprias ações, tomar decisões e se adaptar ao ambiente11. Nesse sentido, a
autonomia é definida como a capacidade de um robô, após a ativação, operar
sem qualquer controle externo em algumas ou todas as áreas de sua operação
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

por longos períodos12.


Os sistemas robóticos autônomos são melhores em realizar tarefas sim-
ples, embora não sejam capazes de raciocínio complexo ou julgamentos axio-
lógicos; igualmente, são melhores na execução de tarefas únicas, em vez de
múltiplas; possuem (ainda) pouca capacidade para perceber seu ambiente,
por isso, são utilizados em ambientes simples e previsíveis; além disso, não
concebem uma estratégia alternativa para se recuperar de uma falha13. Assim,
as máquinas sobressaem em termos de análise quantitativa, ações repetitivas
e classificação de dados, enquanto a capacidade humana supera em análise
qualitativa, raciocínio valorativo e reconhecimento de padrões14.
Atualmente o grau de autonomia da arma varia, levando em consideração
o nível de controle humano15:

i. Sistema de armas autônomas (“out-of-the-loop”): uma vez ativado,


o sistema pode selecionar alvos sem intervenção de um operador
humano – por exemplo, armas que utilizam interferência eletrônica
de forma autônoma para interromper as comunicações;
8 ICRC. Autonomous Weapon Systems: Technical, Military, Legal and Humanitarian Aspects. Geneva: ICRC,
2014, p. 29.
9 BREHM, M. Defending the Boundary: Constraints and Requirements on the Use of Autonomous Weapon Systems
under International Humanitarian and Human Rights Law. Geneva: Geneva Academy, 2017, p. 11.
10 Ibid.
11 ICRC. The Element of Human Control. Working Paper submitted at the Meeting of High Contracting Parties
to the Convention on Prohibitions or Restrictions on the Use of Certain Conventional Weapons Which May
Be Deemed to Be Excessively Injurious or to Have Indiscriminate Effects. Geneva, 2018, p. 9.
12 AMOROSO, Daniele; TABURRINI, Guglielmo. What Makes Human Control Over Weapons Meaningful?
ICRAC Working Paper Series #4 (August 2019).
13 ICRC. International Humanitarian Law and the Challenges of Contemporary Armed Conflicts. Geneva: ICRC.
2019, p. 13.
14 AMOROSO, D.; TABURRINI, G. Op cit. (nota 12).
15 SHARKEY, Noel, Staying in the loop: human supervisory control of weapons. In: BHUTA, Nehal et al. (eds).
Autonomous Weapons Systems: Law, Ethics, Policy. Cambridge: CUP, p. 23-38, 2016.
174

ii. Sistemas de armas autônomas supervisionadas (“on-the-loop”):


sistemas que fornecem aos operadores humanos a capacidade de
intervir e encerrar as atividades do robô, mesmo diante de uma falha
do sistema, antes que ocorram níveis inaceitáveis de danos – por
exemplo, sistemas de armas defensivas usadas para atacar mísseis
ou foguetes;
iii. Sistema de armas semiautônoma (“in-the-loop”): uma vez ativado,
destina-se a atacar apenas alvos individuais ou grupos específicos
que foram selecionados por um operador humano – por exemplo,
munições de guia que procuram e atacam categorias pré-programa-
das de alvos, como tanques.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


No caso de drones militares a decisão de tirar a vida é feita por um
operador humano, mesmo que remotamente; por outro lado, no caso de
LAWS a decisão é tomada apenas por algoritmos. Assim, utilizando os
sensores, como reconhecimento facial, o “robô assassino” é capaz de iden-
tificar o objetivo militar e eliminá-lo16. A possibilidade em terceirizar
decisões de vida e morte para máquinas é o ponto nevrálgico do assunto,
sobretudo diante dos dilemas morais e éticos, pois delegar às máquinas a
possibilidade de selecionar alvos e decidir sobre questões de engajamento
é algo extremamente delicado17.
Os defensores das LAWS afirmam que a utilização dessas máquinas podem
trazer ganhos significativos na zona de operações militares, visto que: (i) implica
na diminuição de soldados humanos no campo de batalha; (ii) possibilita os
soldados desempenharem suas missões com menos esforço que antes exigia;
(iii) expande o tabuleiro bélico, isto é, viabiliza que o combate ocorra em áreas
maiores do que era possível anteriormente; por fim, (iv) permite obter informa-
ções mais precisas em relação ao objetivo militar pretendido.
Nesse sentido, o interesse militar em aumentar a autonomia dos siste-
mas de armas deve-se à possibilidade de aumentar o potencial de capacidade
militar, minimizando os riscos para as forças armadas, bem como os custos
operacionais18. Portanto, distintos elementos são considerados quanto à conve-
niência em utilizar LAWS: a vantagem militar proporcionada pela autonomia
na seleção e ataque de alvos; e, a necessidade militar em relação a autonomia
da arma para executar uma tarefa específica, possibilitando agir mais rápido
que um ser humano19.
16 BREHM, M. Op cit. (nota 9).
17 EKELHOF, Merel. Autonomous weapons: operationalizing meaningful human control. ICRC Humanitarian
Law & Policy Blog, 2018, p. 23.
18 Ibid.
19 ICRC. Autonomous Weapon Systems. Op cit. (nota 8), p. 15.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 175

No entanto, mesmo diante das vantagens quanto a utilização de LAWS, é


enganoso imaginar que o uso dessas tecnologias significará necessariamente uma
vantagem assimétrica, ao pressupor que apenas um país terá o seu monopólio20.
A história comprova que as novas tecnologias de armas proliferam rapidamente,
portanto, a automação da guerra não é exceção. Ademais, uma vez que potências
militares comecem a fabricar, há o risco dessas armas cair no mercado negro e, em
seguida, nas mãos de terroristas, ditadores ou organizações criminosas21.
Ademais, considerando a velocidade e a escala em que são capazes de
operar, as LAWS apresentam o risco de uma escalada acidental e rápida dos
conflitos. Desta forma, os sistemas habilitados para Inteligência Artificial podem
aumentar o ritmo e a automação em geral. Logo, na ausência de um esforço
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

global unificado para destacar os riscos de armas autônomas letais, uma “corrida
armamentista de Inteligência Artificial” é possível, agravando ainda mais os
riscos inerentes de imprevisibilidade e comportamento escalonado22.

3. O possível emprego de LAWS na guerra russo-ucraniana

A geração inicial de robôs militares geralmente opera ao abrigo do con-


trole humano direto, como é o caso dos veículos aéreos não tripulados –
(VANTs sigla em inglês), comumente conhecidos como drones23. No entanto,
à medida que a tecnologia avança, vários fatores contribuem para o aumento
da autonomia dos sistemas militares robóticos, possibilitando que funcionem
como soldado humano. Com base nessa tendência, muitos especialistas afir-
mam que a utilização dos robôs autônomos letais é inevitável24.
Tal previsão é confirmada com o fato de muitos países – dentre eles
China, França, Alemanha, Estados Unidos, Reino Unido –, já operarem com
sistemas militares de automação robótica, embora o indivíduo permaneça no
comando do desdobramento da força letal – por exemplo, sistemas de armas
de proximidade, armas antissubmarino, mísseis de cruzeiro, mísseis terra-ar,
sistemas de mísseis de fogo, minas antipessoais25.
20 BREHM, M. Op cit. (nota 9).
21 HEYNS, Christof. Autonomous weapon systems: human rights and ethical issues. Presentation to the Meeting of
High Contracting Parties to the Convention on Certain Conventional Weapons, Geneva, 2016, p. 18. Disponível
em: https://docs-library.unoda.org/Convention_on_Certain_Conventional_Weapons_-_Informal_Meeting_of_
Experts_(2016)/heyns%2BCCW%2B2016%2Btalking%2Bpoints.pdf. Acesso em: 23 abr. 2023.
22 Ibid.
23 ROFF, Heather M.; MOYES, Richard. Meaningful Human Control, Artificial intelligence and Autonomous
Weapons. London: Briefing Paper, 2016, p. 9. Disponível em: https://article36.org/wp-content/uploads/2016/04/
MHC-AI-and-AWS-FINAL.pdf. Acesso em: 25 abr. 2023.
24 ISLAM, Mohammad S. Contemporary technological development and challenges to the international huma-
nitarian law. IIUC Studies, v. 13, p. 53-68, 2016.
25 ICRC. Op cit. (nota 13).
176

No contexto da guerra russo-ucraniana, o governo russo por décadas


investe no desenvolvimento de tecnologias bélicas que combina a IA com
o sistema de armas autônomas, inclusive por meio das empresas Rostec e
Kalashnikov. Tal fato é comprovado por meio da criação do sistema KUB-
-BLA, visto que é uma arma capaz, com base na programação das coordenadas
do alvo, direcionar o sensor ao objetivo militar pretendido. Uma vez que se
trata de um sistema que está em forte desenvolvimento na indústria russa, a
suposição de que tais armas estariam sendo utilizadas na atual guerra saltou
aos olhos dos analistas internacionais26.
Tal suposição foi confirmada pela empresa desenvolvedora da KUB-BLA,
a ZALA Aero, que faz parte do complexo industrial de defesa estatal da Rússia.
A KUB-BLA, ao ser utilizada na guerra russo-ucraniana, tem provocado grandes

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


discussões, sobretudo no que diz respeito à regulamentação dessas armas, bem
como os limiares éticos quanto a sua utilização. O ponto nevrálgico dos debates
tangencia o uso autônomo da arma, o que é possível por meio do emprego da
Inteligência Artificial (IA) na fabricação de tecnologias de guerra27.
Ocorre que o emprego de IA em aprendizagem de máquinas militares não
encontra consenso, diferente quando utilizadas para outras finalidades, por exem-
plo, pela indústria agrícola. Isso se deve ao fato dos dados de treinamento que
uma IA precisa para executar um sistema de arma autônoma é mais desafiador
de ser obtido, mas não significa que seja impossível28. Sendo assim, ainda não
se sabe se o KUB-BLA recebeu alguma atualização de emprego da IA antes de
ser usado na Ucrânia, permitindo um módulo de combate totalmente automa-
tizado. Entrementes, nada obsta essa realidade mudar, quando será possível a
arma selecionar o alvo, além de decidir quando e como atacá-lo29.
Destarte, embora haja poucas evidências ou razões para acreditar que a
Rússia esteja utilizando um sistema de armas autônomas na Ucrânia, isso não
significa que o governo russo não tenha os meios ou a tecnologia necessária
para implementar esse tipo de arma30. Igualmente, a OTAN forneceu armas
e equipamentos à Ucrânia que favoreceram uma melhor coleta de dados de
treinamento operacional para novos modelos de IA e aplicações militares31.
26 TAGC TEAM. Kalashnikov unveils KUB-BLA Kamikaze Drone. The Aviation Geek Club, 29 mar. 2019.
Disponível em: https://theaviationgeekclub.com/kalashnikov-unveils-kub-bla-kamikaze-drone/. Acesso em:
25 abr. 2023.
27 ALLEN, Gregory. Russia Probably Has Not Used AI-Enabled Weapons in Ukraine, but That Could Change.
CSIS, 26 May 2022. Disponível em: https://www.csis.org/analysis/russia-probably-has-not-used-ai-enable-
d-weapons-ukraine-could-change. Acesso em: 15 nov. 2022.
28 HAMBLING, D. Op cit. (nota 5).
29 Ibid.
30 HOFFBERGER-PIPPAN, E.; VOHS, V; KOHLER, P. Op cit. (nota 2).
31 BBC News. Guerra da Ucrânia: com que equipamento militar o mundo tem armado o país? BBC News
Brasil, 28 ago. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62692536. Acesso em:
25 abr. 2023.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 177

Dito isso, a possibilidade de uma IA dotar as armas de capacidade autônoma


letais é uma realidade presente no cenário internacional. Inclusive, a própria
indústria russa vem desenvolvendo uma arma multifuncional, denominada
de Lancet, capaz de encontrar e acertar um alvo de forma autônoma, por
meio de componentes de ataque de precisão, reconhecimento, navegação e
módulos de comunicação32.

3.1 Questões éticas e humanitárias e suas implicações

O processo autônomo, pelo qual as LAWS operam e funcionam, associada


à imprevisibilidade sobre seus efeitos, pode provocar consequências sérias aos
civis e, por conseguinte, coloca em xeque o Direito Internacional Humanitário
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

(DIH), além de gerar preocupações éticas fundamentais sobre as decisões de


vida ou morte e desafios para o comando e o controle militar33. As LAWS,
devido às interações complexas entre algoritmos, além do contexto operacional
dinâmico, são pouco controláveis quanto ao comportamento in locu34.
A seleção de indivíduos para matar com base apenas em dados de senso-
res, especialmente por meio de reconhecimento facial ou outras informações
biométricas, apresenta riscos substanciais para o direcionamento seletivo de
grupos com base na percepção de idade, sexo, raça e etnia35. Combinado isso
com o risco de proliferação, as armas autônomas podem aumentar muito a
violência direcionada contra classes específicas de indivíduos, incluindo até
limpeza étnica e genocídio. Sendo assim, nada impede as críticas em relação
à perspectiva moral quanto ao uso dessas máquinas, pois, em síntese, conce-
der liberdade a um sistema robótico para tomar decisões em um cenário de
conflito armado é algo delicado36.
O uso das LAWS revela um distanciamento cognitivo, que levanta preo-
cupações éticas, uma vez que são pouco previsíveis as consequências do
seu emprego no período entre sua ativação e a aplicação de força, que pode
ser horas, dias, semanas, até meses (distanciamento temporal), e a incerteza
sobre o local em que a força será aplicada (distanciamento espacial). Deste
modo, conceder liberdade a um sistema autônomo para tomar decisões em
um cenário de conflito armado é arriscado37.
32 ALLEN, G. Op cit. (nota 27).
33 BREHM, M. Op cit. (nota 9), p. 17.
34 ICRC. The Element of Human Control. Op cit. (nota 11), p. 12.
35 SPOERRI, Phillip; KELLENBERGER, Jakob. International Humanitarian Law and New Weapon Technologies.
International Review of the Red Cross, v. 94, n. 866, p. 809-818, 2012.
36 RIGHETTI, Ludovic. Emerging Technology and Future Autonomous Weapons. In: ICRC (ed.). Expert Meeting
– Autonomous Weapon Systems: Implications of Increasing Autonomy in the Critical Functions of Weapons.
Geneva: ICRC, p. 36-39, 2016.
37 HEYNS, C. Op cit. (nota 21), p. 19.
178

Em termos práticos, pode-se afirmar que o desenvolvimento das LAWS é


uma realidade, embora ainda marcado pela aceitação de uma alta taxa de falhas,
o que implica na relação de confiabilidade do homem com a máquina. As falhas
no sistema dessas armas podem decorrer de várias causas, como a dificuldade da
interação homem-máquina, mau funcionamento, erros de hardware e software,
ataques cibernéticos, interferências, dentre outras38.
À medida que os sistemas robóticos recebem mais poder de decisão e
mais autonomia, cada vez mais se torna imprevisível em relação às conse-
quências, razões pelas quais surgem várias preocupações multidimensionais
– jurídicas, éticas, operacionais e humanitárias. Em suma, a moralidade requer
a supervisão humana das decisões de tirar a vida, por isso, os juristas aduzem
que a decisão de tirar a vida de alguém deve permanecer com os humanos e

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


não com as máquinas. Consequentemente, mesmo diante da atual tendência em
investir no desenvolvimento de LAWS, as deliberações formais dos Estados
sobre a utilização dessas armas não encontram consenso39.
A política dos EUA sobre autonomia em sistemas de armas, fundamentada
na Diretiva 3000.09, do Departamento de Defesa, de 2012, abrange plataformas
tripuladas e não tripuladas, e visa estabelecer diretrizes destinadas a minimizar a
probabilidade e as consequências de falhas em sistemas de armas autônomos e
semiautônomos que possam levar a engajamentos não intencionais. Desta forma,
determina que “sistemas de armas autônomos e semi-autônomos devem ser pro-
jetados para permitir que comandantes e operadores exerçam níveis apropriados
de julgamento humano sobre o uso da força”. Uma vez que a referida Diretiva
não determina o que é considerado um nível adequado de julgamento humano,
tal avaliação pode ser diferente para distintos sistemas de armas, dependendo
do ambiente operacional e do tipo de força utilizada40.
Logo, percebe-se que a política dos EUA é projetada para cobrir a
autonomia em sistemas de armas existentes e futuros. Na prática, a dire-
tiva do Departamento de Defesa estadunidense não proíbe o uso de armas
autônomas nos Estados Unidos, pois, na verdade, estabelece os critérios
que essas armas devem atender, a fim de serem aprovadas. Ressalta-se que
as regras são mais rigorosas, pois exigem aprovação do oficial de mais alto
escalão das Forças Armadas, sendo que tal exigência não é imposta aos
demais sistemas de revisão41.
38 LEWIS, Larry. Redefining Human Control: Lessons from the Battlefield for Autonomous Weapons. Center
for Autonomy and AI, CNA: Arlington, 2018, p. 9. Disponível em: https://www.cna.org/reports/2018/03/rede-
fining-human-control. Acesso em: 25 abr. 2023.
39 Ibid.
40 DEPARTMENT OF DEFENSE. DIRECTIVE NUMBER 3000.09. Autonomy in Weapon Systems. Disponível em:
https://www.esd.whs.mil/portals/54/documents/dd/issuances/dodd/300009p.pdf. Acesso em: 15 nov. 2022.
41 ALLEN, G. Op cit. (nota 27).
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 179

Igualmente, a França e a Alemanha adotaram iniciativas legislativas


nacionais quanto à regulamentação das LAWS; embora a Alemanha não tenha
avançado tanto, pois deseja esperar o desdobramento da guerra Russo-Ucra-
niana. Em suma, os governos da França e da Alemanha acreditam que a cate-
goria de armas totalmente autônomas deve ser proibida; enquanto os sistemas
parcialmente autônomos, por não tomar decisões mais abrangentes por conta
própria, precisam ser regulamentadas para garantir que sejam usadas apenas
de acordo com os princípios legais e éticos. Porém, a Alemanha acredita que o
compromisso do governo de banir as LAWS não implica uma rejeição total à
inovação tecnológica no âmbito militar, pois nada impede o desenvolvimento
de pesquisas e voltados para a inovação tecnológica militar42.
Iniciativas para o controle de armas estão sendo feitas através de cam-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

panhas pela criação de acordos internacionais vinculantes sobre o uso de


LAWS, como os já existentes para armas químicas e biológicas. Um Grupo
de Especialistas Governamentais das Nações Unidas realizou sua reunião
final sobre armas autônomas de 13 a 15 de novembro de 201943, sendo que
o assunto está sendo analisado desde 2017. A Rússia, no entanto, se opôs aos
encontros legais internacionais e agora boicota as discussões, por motivos
relacionados à invasão da Ucrânia, impossibilitando um acordo unânime.
Portanto, as maiores tensões no momento são entre os Estados Unidos (ou a
OTAN) e a Rússia44. Na prática, mesmo que a Rússia seja a favor do controle
humano significativo na operação das armas, ela se opõe à expansão do marco
legal internacional em relação à fabricação e uso de LAWS45.
A OTAN, a União Europeia (UE) e as Nações Unidas são os principais
fóruns para regular LAWS, somadas às iniciativas dos governos de cada
Estado. Embora não seja o objetivo principal da OTAN, nada impede, por meio
dela, seus membros para propor uma possível regulamentação das LAWS.
Por conseguinte, isso refletir em outras esferas, como nos fóruns promovidos
pelas Nações Unidas. Inclusive, desde 2020, a OTAN estabeleceu um grupo
especializado em estudar o controle humano sobre os sistemas baseados em
IA, focando no desenvolvimento operacional das LAWS. Deste modo, o inter-
câmbio de informações entre os Estados que fazem parte da OTAN permite um
avanço sobre o estabelecimento de uma regulamentação internacional para as
LAWS. Igualmente, a discussão entre os membros da OTAN e os países não
membros contribuem para solidificar um entendimento homogêneo sobre o
assunto, favorecendo a cooperação entre os Estados terceiros46.
42 HOFFBERGER-PIPPAN, E.; VOHS, V.; KOHLER, P. Op cit. (nota 2).
43 ICRC. The Element of Human Control. Op cit. (nota 11), p. 23.
44 HOFFBERGER-PIPPAN, E.; VOHS, V.; KOHLER, P. Op cit. (nota 2).
45 HAMBLING, D. Op cit. (nota 5).
46 HOFFBERGER-PIPPAN, E.; VOHS, V.; KOHLER, P. Op cit. (nota 2).
180

Por sua vez, a União Europeia também se esforça para estabelecer um


entendimento conjunto sobre o estabelecimento de padrões internacionais
em relação aos sistemas de armas autônomas, de modo a assegurar o efetivo
controle humano sobre a seleção e ataque aos alvos. Ademais, no âmbito
das Nações Unidas, o Comitê de Desarmamento e Segurança Internacional
da Assembleia Geral da ONU, no qual as decisões são adotadas por unani-
midade, podem avançar na elaboração de uma resolução sobre as LAWS.
Mesmo não tendo força obrigatória, seria um sinal político importante, se
aprovado com maioria expressiva47.
A relação entre a ética e o DIH é encontrada na Cláusula Martens, trans-
crita nas Convenções da Haia de 1899 e 1907, e incorporada nos Protocolos
Adicionais de 1977 às Convenções de Genebra. Hoje seu conteúdo é consi-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


derado direito consuetudinário48. A Cláusula Martens prevê: “Nos casos não
abrangidos por este Protocolo ou por quaisquer outros acordos internacionais,
civis e combatentes permanecem sob a proteção e autoridade dos princípios
do Direito Internacional derivados do costume estabelecido, dos princípios
da humanidade e dos ditames da consciência pública”49.

3.2 Necessidade de controle humano sobre o uso de LAWS

Apesar dos desacordos sobre a necessidade de regulamentação adicio-


nal, há um consenso entre os Estados de que a autonomia nos sistemas de
armas não pode ser ilimitada50. Por conseguinte, a responsabilidade humana
pelas decisões sobre o uso de sistemas de armas deve ser mantida, ou seja, a
responsabilidade não pode ser transferida para máquinas. Entretanto, como
os humanos devem exercer essa responsabilidade permanece algo incerto.
Embora haja consenso sobre a importância do elemento humano, são neces-
sários esclarecimentos sobre o tipo e grau de interação homem-máquina,
incluindo elementos de controle e julgamento51.
Uma análise dos requisitos legais, éticos e operacionais em relação ao
controle humano aponta para combinação de três tipos de medidas de con-
trole52: (i) controle sobre os parâmetros de uso do sistema de armas: incluindo
47 Ibid.
48 Ibid.
49 Comp. Art. 1 (2) do Protocolo Adicional (PA I) às Convenções de Genebra de 12 de Agosto de 1949 relativo
à Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados de Caráter Internacional (8.6.1977). In: JARDIM, Tarciso Dal
Maso. O Brasil e o Direito Internacional dos Conflitos Armados. Tomo I: Porto Algre: Sérigo Antonio Fabris
Ed., 2006, p. 455.
50 BREHM, Maya. Targeting people: key issues in regulation of autonomous weapons systems. Article 36 –
Policy Note, nov. 2019.
51 SHARKEY, N. Op cit. (nota 15), p. 23-38.
52 UNIDIR. The Weaponization of Increasingly Autonomous Technologies: Considering Ethics and Social
Values. Geneva: UNIDIR, 2015, p. 16.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 181

medidas que restringem o tipo de alvo e as atividades das LAWS – por exem-
plo, limites temporais e espaciais, restrição quanto aos efeitos e ativação do
mecanismo à prova de falhas; (ii) controle sobre o meio ambiente: medidas
que controlam o ambiente em que as LAWS são usadas – por exemplo, limi-
tação da atuação do sistema apenas em ambientes onde civis e bens civis não
estão presentes; (iii) controle por meio da interação homem-máquina, como
medidas que permitam ao usuário supervisionar as LAWS e intervir em sua
operação quando necessário.
Os tipos de controle supracitados não estão vinculados a uma tecno-
logia específica, portanto, fornecem uma base normativa sólida aplicável a
qualquer tipo de arma. Além disso, tais medidas de controle visam reduzir ou
compensar a imprevisibilidade inerente ao uso das LAWS e mitigar os riscos,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

principalmente, para os civis. Em outros termos, considerando as restrições


legais impostas pelo DIH, o soldado que operacionalizar LAWS deverá fazer
conforme determinam as leis da guerra, bem como as considerações éticas,
visto que elas exigem restrições adicionais53.
O elemento de controle humano deve ser entendido como condição
necessária para garantir a conformidade legal, a aceitabilidade ética e a uti-
lidade operacional. Assim, são os humanos, sujeitos ao DIH, responsáveis
pela aplicação da lei e que podem ser responsabilizados pelas violações, não
a própria máquina. Portanto, os requisitos legais das regras que regulamentam
os ataques devem ser cumpridos por aqueles que planejam, decidem e atacam,
em outras palavras, os usuários de LAWS54.
As LAWS operam e atuam com base em indicadores técnicos, nomea-
damente perfis de alvos pré-programados, informações recebidas através de
sensores e análise gerada por computador55. Sendo assim, ela é projetada
com indicadores técnicos específicos e programados para determinar quais
objetos serão direcionados e sob quais condições. Essas decisões de pro-
gramação são tomadas antes do início de um ataque, com base nas tarefas
pretendidas, tipo de alvo e ambiente operacional previsto, além do método e
circunstâncias de uso56.
O soldado que ativa as LAWS não conhece o alvo exato, nem sua
localização, nem o momento e o ambiente da aplicação da força contra
o alvo, incluindo a presença de civis ou objetos civis em risco de serem
53 SHARKEY, N. Op cit. (nota 15), p. 23-38.
54 ICRC. Ethics and Autonomous Weapon Systems: An ethical basis for human control? Geneva: ICRC,
2018, p. 11.
55 UNIDIR. Op cit. (nota 52), p. 8.
56 EKELHOF, Merel. Autonomous weapons: operationalizing meaningful human control. ICRC Humanitarian
Law & Policy Blog, 15 ago. 2018. Disponível em: https://blogs.icrc.org/law-and-policy/2018/08/15/autono-
mous-weapons-operationalizing-meaningful-human-control/. Acesso em: 25 abr. 2023.
182

acidentalmente feridos. Por conseguinte, essa dependência de contexto apre-


senta um desafio às características únicas das LAWS, onde os soldados, que
a acionam, não conhecerão o contexto específico (tempo, local e ambiente)
da aplicação de força resultante57.
Sendo assim, para cumprir o DIH, quem acionar a LAWS deverá levar
em consideração fatores que variam ao longo do tempo, inclusive entre a
programação e ativação da arma, e entre a ativação e a eventual seleção e
aplicação de força contra um alvo58. Portanto, cabe ao indivíduo fazer o
devido julgamento das regras de DIH a serem observadas dentro do contexto
específico. Assim, para cumprir as regras do DIH, é necessário limitar os
efeitos das armas a partir do controle humano59.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


4. LAWS à luz do Direito Internacional Humanitário

A mais importante condição que permite que LAWS possam ser usadas em
conflitos armados é a sua adequação às normas de DIH. Ainda é controverso,
porém, se essas armas em algum momento serão capazes de seguir as normas de
DIH como combatentes humanos, existindo muitos debates acerca da rejeição
de tal possibilidade, com base no argumento de que decidir um alvo em meio
a um conflito armado também envolve julgamentos de valor que são subjeti-
vos60. Deste modo, faz-se necessário apresentar as revisões legais pelas quais
tais armas devem ser submetidas e suas limitações específicas, observando os
princípios norteadores do DIH e as regras de condução de hostilidades.

4.1 Revisões legais de novas armas (Artigo 36 PA I)

Os Estados têm o direito de escolher seus meios e métodos de guerra para


a condução de hostilidades em conflitos armados; porém, esse direito não é
ilimitado61, o que pode ser entendido como uma reversão da (antiquada) pre-
sunção ‘Lótus’, de 1927, segundo a qual tudo o que não é proibido pelo direito
internacional é lícito62. Em regra geral, o DIH proíbe o uso de armas, meios e
métodos de guerra que causem danos supérfluos ou sofrimento desnecessário,
ou danifiquem objetivos militares e civis ou bens civis indistintamente. Nesse
sentido, como complemento e reforço das limitações, o Artigo 36 do Protocolo
57 Ibid.
58 LEWIS, L. Op cit. (nota 38), p. 9.
59 UNIDIR. Op cit. (nota 52), p. 10.
60 SASSÒLI, Marco. International Humanitarian Law: Rules, Controversies, and Solutions to Problems Arising
in Warfare. Cheltenham: Edward Elgar Publ., 2019, p. 517.
61 Art. 35(1) do Protocolo Adicional I. Op cit. (nota 49).
62 SASSÒLI, M. Op cit. (nota 60), p. 380.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 183

Adicional I (PA I) de 1977 às Convenções de Genebra de 1949, impõe uma


obrigação prática aos Estados de determinar:

“no estudo, desenvolvimento, aquisição ou adoção de uma nova arma,


meio ou método de guerra, uma Alta Parte Contratante tem a obrigação de
determinar se seu emprego seria, em algumas ou em todas as circunstân-
cias, proibido por este Protocolo ou por qualquer outra norma de direito
internacional aplicável à Alta Parte Contratante”.

A primeira questão a surgir é que o termo “arma, meio ou método de


guerra” não é definido e uma interpretação razoável deve ser, então, apli-
cada. Decidir o que é uma arma é um processo mais simples, já que o termo
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

conota uma capacidade ofensiva que pode ser aplicada a um objeto militar
ou combatente inimigo63. Os “meios” referem-se a armas, sistemas de armas
e plataformas, sendo difícil diferenciar o termo “armas” do termo “meios”.
Já os métodos, por sua vez, abordam a maneira como as armas são usadas e,
mais amplamente, as táticas militares64.
Assim, é obrigatório, para os Estados que são partes do PA I, a revisão
das armas, bem como dos métodos que serão utilizados no seu emprego, antes
de as usarem. A importância de realizar revisões, conforme a previsão legal
do Artigo 36, é amplamente reconhecida no Direito Internacional, sobretudo
devido ao desenvolvimento tecnológico militar empregado em guerras. Dessa
forma, é imprescindível que os Estados sejam capazes de conduzir hostilida-
des de acordo com as obrigações impostas pelo DIH, e, por isso, a condução
das revisões do Artigo 36 deve ser minuciosa ao determinar se a adoção de
novas tecnologias pode ou não causar preocupações significativas do ponto
de vista humanitário65.
Porém, mesmo com a obrigatoriedade de revisão de armas e novas tec-
nologias imposta pelo Artigo 36 do PA I, um número pequeno de Estados é
conhecido por ter um mecanismo formal de revisão estabelecido, e o artigo
também não fornece nenhuma orientação concreta sobre como os países
devem formalizar tal processo. Contudo, para o Comitê Internacional da Cruz
Vermelha (CICV) essa questão não é necessariamente um problema66, porque
63 MCCLELLAND, Justin. The review of weapons in accordance with Article 36 of Additional Protocol I. Inter-
national Review of the Red Cross, v. 85, n. 850, p. 397-415, 2003. p. 404.
64 SASSÒLI, M. Op cit. (nota 60), p. 380.
65 BOULANIN, Vincent; VERBRUGGEN, Maaike. Article 36 Reviews. Dealing with the challenges posed
by emerging technologies. Stockholm: SIPRI, 2017, p. 15. Disponível em: https://www.sipri.org/publica-
tions/2017/other-publications/article-36-reviews-dealing-challenges-posed-emerging-technologies. Acesso
em: 15 nov. 2022.
66 ICRC. A Guide to the Legal Review of New Weapons, Means and Methods of Warfare. Geneva: ICRC, 2006.
Disponível em: https://ww.icrc.org/en/publication/0902-guide-legal-review-new-weapons-means-and-methods-
-warfare-measures-implement-article. Acesso em: 21 nov. 2022.
184

os Estados têm necessidades diferentes, bem como acesso a diferentes recursos


humanos e financeiros para realizar as revisões do Artigo 36. Igualmente, o
fato de o artigo não prescrever exatamente como o processo de revisão deve
ser conduzido permite que os Estados se adaptem às mudanças, notadamente
às mudanças tecnológicas67.
Para o pesquisador Justin McClelland68, é possível existir um comitê de
revisão, como a Delegação da Suécia para Monitoramento do Direito Inter-
nacional Humanitário ou Projetos de Armas e o Comitê do Departamento de
Defesa da Noruega, citados pelo autor ao mencionar essa possibilidade69.
Além disso, as forças armadas de um Estado também têm a opção de encar-
regar um “reviewer” individual para conduzir a revisão legal das armas, tendo
a permissão de realizar reuniões com outros especialistas e discutir questões

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


relativas ao desempenho ou uso da arma. Assim, reuniões com outros revisores
permitir-se-á a evolução de abordagens uniformes para lidar com tecnologias
emergentes, podendo beneficiar todos os Estados que estivessem revisando
uma mesma arma, ou diferentes armamentos.
O Artigo 36 usa a palavra “nova” ao referir-se à obrigação do Estado
de conduzir revisões legais nas armas, meios ou métodos de guerra. Nesse
sentido, é necessário definir o que é seria considerado como uma nova arma
para uma Alta Parte Contratante de Protocolo I. Para isso, o primeiro fator a
ser analisado é o Estado que pretende utilizar uma arma, porque se a arma foi
usada e fabricada anteriormente por um Estado X e o Estado Y a comprou,
ela pode ser considerada como “nova” para o Estado receptor. O segundo
fator é a data em que a arma entrou em uso, sendo que na ratificação por um
Estado do Protocolo Adicional I, aquelas armas em serviço não poderiam
ser consideradas “novas” nos termos do Artigo 36. O Estado pode fazer
uma revisão de armas que são alvo de inspeção internacional para defender
a posse e uso de determinada arma, embora essa não seja uma obrigação ao
abrigo do Artigo 3670.
É importante mencionar que a obrigação se aplica aos países que fabri-
cam e exportam armas, bem como aqueles que são compradores, isto é,
importadores. Inclusive, há mais países que apenas compram armas em rela-
ção ao número de países que as desenvolvem, fabricam e vendem, podendo
acontecer que os países compradores sejam Partes do Protocolo e que os
fabricantes não sejam. Entretanto, isso não obsta a obrigação dos Estados
67 BOULANIN, V.; VERBRUGGEN, M. Op cit. (nota 65), p. 5.
68 Justin McClelland é oficial em serviço nos Serviços Jurídicos do Exército Britânico. Sua nomeação atual
envolve a realização de revisões legais de acordo com as disposições do art. 36 para todos os equipamentos
terrestres dentro das Forças Armadas britânicas.
69 MCCLELLAND, J. Op cit. (nota 63), p. 403.
70 Ibid.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 185

importadores de armas procedam a devida revisão das armas obtidas, a


fim de não depender totalmente do fabricante para definir a legalidade ou
ilegalidade do uso de uma arma71.

4.2 Limitações do uso de LAWS em conflitos armados com base nos


princípios do DIH

Em 2016, Estados Partes da Convenção da ONU sobre Armas Conven-


cionais (CCW – sigla em inglês) criaram um Grupo de Peritos Governamentais
em LAWS no contexto da CCW, que se reuniu pela primeira vez em 2017 e
novamente em 201872. Nesse sentido, muitas delegações da CCW concorda-
ram que as LAWS só podem ser usadas com “controle humano significativo”,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

enquanto outras delegações propuseram o critério alternativo de “nível apro-


priado de julgamento humano”73. Porém, ainda é pouco claro o que esses termos
significaria na prática. Sassòli cita a prática dos Estados Unidos na matéria, em
que é exigido que as LAWS sejam projetadas para permitir que comandantes e
operadores exerçam níveis apropriados de julgamento sobre o uso da força, o
que significa que não é permitido que produtores programem essas máquinas
para ter a “palavra final” sobre o uso da força contra alvos74.
Assim, embora a total autonomia de armas ainda não exista, é necessário
pensar no uso dessas armas à luz dos princípios do DIH. Apenas humanos
são destinatários do DIH, razão pela qual é proibido ataques indiscrimina-
dos, ou seja, ataques que empregam um método ou meio de combate que
não podem ser dirigidos – pelo Estado ou pelo grupo armado não estatal
agindo por meio de humanos – a um objetivo militar específico. Os objeti-
vos militares75 são aqueles que contribuem efetivamente, por sua natureza,
localização, propósito ou uso, para as capacidades militares do inimigo e cuja
destruição, captura ou neutralização ofereça à parte atacante uma vantagem
militar direta e concreta76.
Dessa forma, se ficar provável que as LAWS não respeitam o princípio
da distinção entre objetos civis (por exclusão, são todos aqueles que não se
71 Art. 36 do Protocolo Adicional I. Op cit. (nota 49).
72 UN OFFICE FOR DISARMAMENT AFFAIRS. Background on LAWS in the CCW. Disponível em: https://
www.un.org/disarmament/the-convention-on-certain-conventional-weapons/background-on-laws-in-the-ccw/.
Acesso em: 21 nov. 2022.
73 UN OFFICE FOR DISARMAMENT AFFAIRS. Report of the 2016 Informal Meeting of Experts on Lethal
Autonomous Weapons Systems (LAWS). Advanced Version, §§ 15, 38. Disponível em: https://docs-library.
unoda.org/Convention_on_Certain_Conventional_Weapons_-_Informal_Meeting_of_Experts_(2016)/
ReportLAWS_2016_AdvancedVersion.pdf. Acesso em 15 nov. 2022
74 SASSÒLI, Marco. Op cit. (nota 60), p. 518.
75 Art. 51 (4) do Protocolo Adicional I. Op cit. (nota 49).
76 Ibid., Arts. 2(4) e 52(2).
186

enquadram na definição apresentada) e militares, seu uso deve ser estritamente


vetado pelo Estado. Além disso, é essencial que as LAWS sejam capazes de
reconhecer quando alvos humanos legítimos se rendem ou estão feridos, e se
esses alvos se abstêm de qualquer ato de hostilidade77-78
Embora as LAWS sejam sistemas autônomos de inteligência artificial,
sendo, assim, capazes de aprender, tal armamento não tem o controle de
cometer atos que não foram pensados pelos humanos que as projetaram,
motivo pelo qual justifica a limitação a ser imposta a sua autonomia. Isso é
imprescindível, pois como pontuado anteriormente, esses sistemas não são
destinatários da lei. Nesse diapasão, faz-se necessário prever o que as LAWS
podem ou não fazer à luz do DIH, justamente porque os humanos permanecem
responsáveis pela conduta empregada pela máquina em um cenário de guerra,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


visto que são os únicos destinatários do DIH.
No entanto, a princípio, nada obsta que no futuro, LAWS sejam construídas
com capacidade ímpar de percepção e processamento de informações obtidas
do meio a fim de ponderar qual o comportamento viável dentro das leis de
guerra. Assim, enquanto essa questão ainda não é definida por tratados de DIH
ou discutida profundamente pelos Estados, de acordo com Sassòli, “pode ser
sensato limitar o uso de armas autônomas a situações em que nenhuma avaliação
de proporcionalidade é necessária e onde o inimigo consiste em forças hostis
declaradas em conflitos de alta intensidade” (tradução nossa)79.
Em alternativa, ainda é preciso ponderar sobre a capacidade das LAWS
de satisfazer o princípio da proporcionalidade, uma vez que são dotadas de
autonomia, sobretudo em um cenário complexo que representa um campo de
batalha. O referido princípio implica que as operações militares não sejam
conduzidas diante da possível perda excessiva de vidas humanas ou danos a
bens civis quando comparada à vantagem militar direta e concreta prevista80.
Desse modo, o princípio oferece um critério objetivo, e sua aplicação exige
a ponderação de acordo com o caso concreto. Por conseguinte, isso implica
em uma tarefa hercúlea, pois exige que os fabricadores de armas autônomas
avaliem e elenquem indicadores para a infinita variedade de situações possí-
veis que podem existir em uma guerra e que a LAWS deverá observar, como
a quantidade de civis e objetos civis nos arredores de um objetivo militar
legítimo. Além disso, a maior dificuldade para um sistema de armas autônomo
aplicar o princípio da proporcionalidade está ligada à avaliação da vantagem
militar prevista, visto que, conforme ressalta Sassòli81,
77 UN HUMAN RIGHTS COUNCIL. Report of the Special Rapporteur on Extrajudicial, Summary or Arbitrary
Executions, A/HRC/23/47, 9 abr. 2013, § 67.
78 BOOTHBY, William H. Weapons and the Law of Armed Conflict. 2. ed. Oxford: OUP, 2016, p. 255-257.
79 ICRC. Op cit. (nota 8).
80 CICV. Base de Dados do Direito Internacional Humanitário Consuetudinário. Norma 70. Disponível em:
https://ihl-databases.icrc.org/customary-ihl/por/docs/v1_rul_rule70. Acesso em: 10 maio 2022.
81 ICRC. Op cit. (nota 8).
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 187

A “vantagem militar concreta e direta prevista” resultante de um ataque


contra um alvo legítimo muda constantemente de acordo com os planos
do comandante e o desenvolvimento das operações militares de ambos
os lados. Exceto quando nenhum efeito sobre os civis pode ser previsto,
ou claramente desprezível, uma máquina, mesmo que perfeitamente
programada, não pode, portanto, ser deixada sozinha na aplicação do
princípio da proporcionalidade, mas deve ser constantemente atualizada
sobre operações e planos militares (tradução nossa).

Ademais, o princípio da precaução exige a sua observância por todas as


partes envolvidas no conflito independentemente da sua posição de atacan-
tes ou defensores, constituindo direito costumeiro82. Para o ataque, devem
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ser tomadas todas as medidas de precaução viáveis para reduzir o possível


impacto sobre a população civil83. Aqui, a semântica da palavra “viáveis”
torna-se relevante, pois a viabilidade das precauções deve ser entendida no
que se refere ao que seria viável para os seres humanos usando a arma.
Como é necessário, antes de um ataque, que o comandante tome todas
as precauções razoáveis para proteger os civis, esse fator implica no exer-
cício do raciocínio valorativo sobre o potencial dano a civis, bem como a
ponderação deste dano com o princípio da necessidade militar em deter-
minado ataque. Em outros termos, significa que o beligerante apenas está
autorizado a utilizar determinada arma quando observado o princípio da
precaução. Por conseguinte, isso significa que arma autônoma em questão
não exerceria sua total autonomia. Em síntese, a determinação das precau-
ções a serem tomadas84, como a obrigação de verificar a natureza do alvo
(com base no princípio da distinção), a legalidade do ataque, a escolha dos
meios e métodos que evitem ou minimizem efeitos incidentais sobre os
civis e, por fim, o respeito ao princípio da proporcionalidade, devem ser
feitas por quem planeja o ataque.
Nota-se que até hoje, apenas humanos são capazes de tomar tais decisões
levando em conta o aspecto valorativo da escolha, isto é, os critérios morais
e éticos da decisão, o que não impede que os tomadores de decisões usem
LAWS a seu favor no campo de batalha se essas cumprirem com os critérios
estabelecidos pelo DIH. Sendo assim, desde que esses sistemas autônomos
tenham sido construídos com informações necessárias para serem capazes de
tal feito, permitindo o afastamento temporal e geográfico do controle humano
sobre tais armas, o risco de violação do DIH estará superado.

82 CICV. Base de Dados do Direito Internacional Humanitário Consuetudinário. Norma 15. Op cit. (nota 80).
83 Art. 57 do Protocolo Adicional I. Op cit. (nota 49).
84 Ibid.
188

5. Conclusão

A sociedade contemporânea é marcada por um avanço significativo na


área tecnológica, inclusive no setor bélico, motivo pelo qual é possível o
desenvolvimento de sistema de armas autônomas. Em outras palavras, uma
das mudanças tecnológicas mais significativas dos últimos tempos está rela-
cionada ao uso da Inteligência Artificial (IA) na fabricação de sistemas de
armas autônomas letais.
Tais sistemas são definidos como armas dotadas de capacidade de apren-
dizagem ou adaptação ao meio, de modo que o seu funcionamento, em res-
posta às mudanças em determinado ambiente, é, a princípio, mais eficaz85.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Destarte, as LAWS são vista como a terceira revolução da guerra, segundo
alguns pesquisadores86, já que sua utilização não permite apenas matar por
distância – como é o caso de muitas armas e sistemas em uso –, mas, também,
possibilita que a sua utilização se faça sem a presença de soldados huma-
nos operacionalizando-as.
Logo, o principal argumento suscitado por aqueles que defendem o uso
dessa tecnologia é, em relação aos aspectos militares, a redução de comba-
tentes humanos no campo de batalha, o que pressupõe a otimização do uso
de espaço, combustível e munição desses sistemas; sua capacidade de atingir
velocidades incrivelmente altas, mantendo a capacidade de manobra; e sua
flexibilidade e redução de custos de longo prazo87.
Além disso, os defensores apostam na possível redução de danos colaterais
pela alta precisão dessas armas e, por conseguinte, a redução na morte de civis;
a falta de elementos cognitivos, sobretudo relacionados à emoção, supostamente
torna-os mais previsíveis e menos violentos que os humanos; bem como sua
capacidade de coletar e armazenar grandes quantidades de dados, proporcio-
nando uma melhora no controle das atividades de guerra e possivelmente redu-
zindo as chances de ocorrência de crimes de guerra88.
Dito isso, percebe-se que a discussão sobre o uso de LAWS em tempos
de conflito armado não pode ser analisada fora do marco legal do Direito
85 ICRC. Op cit. (nota 13), p. 39.
86 Até abril de 2023 as “Armas Autônomas: uma Carta Aberta de Pesquisadores de IA e Robótica” foi assinada
por 4.502 pessoas, incluindo pesquisadores como Stuart Russel, Nils J. Nilsson, Barbara Grosz, Tom Mitchell,
Oren Etzioni, Eric Sandewall, bem como Stephen Hawking, Elon Musk, Noam Chomsky, Steve Wozniak e
Frank Wilczek.
87 ETZIONI, Amitai; ETZIONI, Oren. Pros and cons of autonomous weapons systems. In: ETZIONI, Amitai.
Happiness is the Wrong Metric. A Liberal Communitarian Response to Populism. Cham: Springer Open, p.
252-263, 2018.
88 MÜLLER, Vincent C; SIMPSON Thomas W. Autonomous Killer Robots Are Probably Good News. Frontiers
in Artificial Intelligence and Applications, p. 273, 297-305, 2016.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 189

Internacional Humanitário (DIH), uma vez que este ramo do Direito Inter-
nacional Público é responsável pela regulação de conflitos armados e seus
princípios fundamentais sempre devem ser observados. As LAWS não estão
isentas dessas obrigações, mesmo assim apresentam um enorme desafio
quanto à aplicação das normas humanitárias em vigor. Enquanto a regula-
mentação da matéria por tratado ou outro instrumento internacional parece
desejável e urgente, não há uma conjuntura política favorável a tal medida.
Como vimos, a atual guerra na Ucrânia não somente impede chegar logo a
um consenso sobre os limites do emprego de LAWS, mas também aumenta
a chance do seu uso por algumas das partes envolvidas. Cada dia que passa,
o desenvolvimento dessa tecnologia avança.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
11. O DIH E O DIREITO DA
POPULAÇÃO CIVIL UCRANIANA
DE RESISTIR À INVASÃO RUSSA
Cláudio Cerqueira B. Netto
Leticia Heinzmann

1. Introdução
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

A comunidade internacional acompanha a situação na Ucrânia há vários


anos, particularmente após a anexação da Crimeia pela Rússia em fevereiro
de 2014. Desde então, órgãos internacionais tratam as hostilidades entre a
Ucrânia e a Rússia como um conflito armado internacional e a situação na refe-
rida península como uma ocupação estrangeira. Com o início das “operações
militares especiais”, em fevereiro de 2022, este conflito armado se ampliou
e resultou na ocupação de demais territórios ucranianos pelas forças russas e
outros grupos armados organizados. Diante disso, se questiona a existência
do direito da população civil afetada de resistir à invasão russa, geralmente
discutida sob o conceito de levée em masse.
Além de contextualizar o conflito entre Rússia e Ucrânia sob a ótica do
direito internacional humanitário (DIH), este capítulo busca analisar as regras
deste corpo jurídico aplicáveis à participação da população civil na resistência
à ocupação do seu território. A partir da definição dos conceitos de ocupação
e levée en masse busca-se entender se os critérios necessários para essas
classificações foram atingidos no caso ucraniano e o que isso significa para
a proteção das pessoas tomando parte nas hostilidades. Por fim, o capítulo
discute a possível resposta por parte da Rússia, enquanto poder ocupante,
àqueles que resistem à sua presença no país, observando a necessidade de
garantia da segurança das suas forças armadas e de garantia da ordem e da
vida pública no território ocupado.

2. O conceito da ocupação

Os critérios para identificar um conflito armado internacional foram esta-


belecidos pelo Artigo 2º Comum às quatro Convenções de Genebra, de 12
de agosto de 19491, quais sejam: “qualquer [...] conflito armado que surja

1 Reproduzidas em português em: DAL MASO JARDIM, Tarciso. O Brasil e o Direito Internacional dos Conflitos
Armados. Tomo I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2006, p. 263-454,
192

entre duas ou várias das Altas Partes Contratantes, mesmo que o estado de
guerra não seja reconhecido por uma delas”. O mesmo dispositivo esclarece
no seu segundo parágrafo que “se aplicará, igualmente, em todos os casos de
ocupação da totalidade ou de parte de território de uma Alta Parte Contratante,
mesmo que essa ocupação não encontre resistência”.
O Artigo 1º (4) do Protocolo Adicional I às Convenções de Genebra, de
10 de junho de 19772, ampliou o conceito por incluir “[...] conflitos armados
em que os povos lutam contra a dominação colonial e a ocupação estrangeira
e contra os regimes racistas no exercício do direito dos povos à autodetermi-
nação[...]”. Todavia, somente completa as quatro Convenções de 1949 e, por
isso, não afeta a validade da referida regra que se aplica à ocupação bélica.
Os critérios que caracterizam uma ocupação militar já foram definidos no

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Regulamento de Haia Concernente às Leis e aos Usos da Guerra Terrestre, de
18 de outubro 1907, como uma situação em que um território está, na prática,
sob a autoridade do exército hostil, sendo que a ocupação se estende somente
às áreas em que tal autoridade foi estabelecida e pode ser exercida3. Assim,
são três os requisitos de uma ocupação: (i) um Estado precisa efetivamente
perder o controle sobre o seu território; (ii) outro Estado deve ter assumido
esse controle efetivo; e (iii) o Estado original não pode ter consentido com o
exercício desse controle pelo segundo Estado.
Como visto, uma ocupação independe da ocorrência de resistência
armada. Assim, seja porque o Estado não possui os meios necessários para
resistir à ocupação ou porque a resistência à ocupação é conduzida por um
grupo armado, não pelo Estado4, a situação permanece sendo considerada
uma ocupação militar de acordo com o DIH.
Nota-se que o DIH se aplica igualmente a ambas as partes ao conflito
armado, independentemente da (i)legalidade da invasão. Não se confunde
o direito de legítima defesa do Estado5 segundo o jus ad bellum (conjunto
de regras do direito internacional sobre a proibição do uso da força e suas
respectivas exceções) e as regras de jus in bello (direito internacional apli-
cável durante um conflito armado), considerando que prevalece no direito
internacional a separação entre ambos.

3. Classificação da situação na Ucrânia


As tensões entre Rússia e Ucrânia vêm acontecendo desde 2014,
quando, ao final dos protestos de Euromaidan (também chamada Primavera
2 Ibid., p. 455-548.
3 Ibid., p. 189-203, Art. 42.
4 Esse foi o caso durante a invasão da Turquia à parte norte da Síria, em 2018. Na época, o Exército Livre
da Síria, com apoio turco, tomou o controle da fronteira norte do país.
5 CHARTER OF THE UNITED NATIONS, 26 jun. 1945, 1 U.N.T.S. 15, Art. 51.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 193

Ucraniana), a disputa a respeito do status do território da Crimeia e da região


de Donbass se intensificou. Em fevereiro daquele ano, soldados russos toma-
ram o controle de diversas posições estratégicas e capturaram o parlamento
na Crimeia. Ao mesmo tempo, os confrontos entre protestantes e forças
policiais em Donbass e Kyiv resultaram em diversas mortes, culminando
na queda do Presidente Viktor Yanukovych e na declaração de criação das
Repúblicas Populares de Luhansk e Donetsk.
Desde o início, houve controvérsias e acusações sobre a responsabilidade
russa pelos soldados atuando em território ucraniano, com fortes evidências
demonstrando que a Rússia estava lutando lado a lado com os rebeldes locais.
Em novembro de 2014, o Presidente Vladmir Putin inclusive confirmou a
participação do país na anexação da Crimeia (que ocorreu em contravenção
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ao direito internacional) e, em dezembro de 2015, admitiu a presença de


militares especializados no leste da Ucrânia.
Já em 2021, as tensões aumentaram, com ataques a diversos alvos milita-
res no país e bombardeios aéreos contra as principais cidades. A Organização
das Nações Unidas (ONU) declarou que mais de 7 milhões de pessoas foram
deslocadas internamente e 6 milhões buscaram refúgio fora do país. Além
disso, mais de 13 milhões de pessoas permanecem nas áreas de conflito, sem
possibilidade de fuga6.
Como mencionado anteriormente, uma ocupação constitui um conflito
armado de caráter internacional e é caracterizada pelos critérios definidos nos
Regulamentos de Haia de 1907, quais sejam: (i) um Estado precisa efetiva-
mente perder o controle sobre o seu território; (ii) outro Estado deve ter assu-
mido esse controle efetivo; e (iii) o Estado original não pode ter consentido
com o exercício desse controle pelo segundo Estado. Outras regras aplicáveis
ao território ocupado podem ser encontradas na Parte III da IV Convenção
de Genebra de 1949, Seção I (que cobre tanto pessoas em território ocupado
quanto a população em geral) e Seção III (específica para territórios ocupados).
Conforme definido no artigo 42 dos Regulamentos de Haia de 1907: “Consi-
dera-se um território como ocupado quando se encontra colocado de fato sob a
autoridade do exército inimigo. A ocupação somente estende-se aos territórios
onde essa autoridade esteja estabelecida e em condições de exercê-la”.
Apesar de o texto do artigo explicitar apenas os dois primeiros critérios,
a falta de consentimento resta implícita. Isso porque no momento em que
o consentimento é dado, o ocupante deixa de ser considerado um “exército
inimigo”, perde a sua característica de hostilidade necessária para a carac-
terização da ocupação.

6 UNHCR. Ukraine Emergency. 2022. Disponível em: https://www.unrefugees.org/emergencies/ukraine/.


Acesso em: 8 nov. 2022; UNCHR. Ukraine Situation: Refugees from Ukraine across Europe. 19 maio 2022.
Disponível em: https://data2.unhcr.org/en/documents/details/92974. Acesso em: 8 nov. 2022.
194

Outro ponto importante na discussão a respeito do início da ocupação é


se existe a necessidade da presença de forças armadas no território ocupado ou
se é possível que a ocupação seja realizada remotamente – através do ciberes-
paço, por exemplo – ou pelas vias aéreas e navais. De forma alinhada ao texto
do artigo 42 – “[...] onde essa autoridade esteja estabelecida e em condições
de exercê-la” – é razoável entender que independentemente da presença de
forças armadas no território, é necessário que o poder ocupante seja capaz de
responder com agilidade e efetividade a eventuais distúrbios de autoridade7.
Esse parece ser o ponto de vista da Corte Internacional de Justiça, que defende
que a autoridade deve ser exercida de fato8. O Protocolo Adicional I de 1977
às Convenções de Genebra de 1949, por sua vez, impõe ao poder ocupante

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


diversas obrigações sobre a administração do território ocupado, as quais não
poderiam ser cumpridas por um poder que não possui o controle efetivo de um
território. No entanto, tal protocolo tampouco exige que as forças armadas do
poder ocupante estejam presentes no próprio território ocupado, e não especifica
se a ocupação beligerante pode ser conduzida mesmo que as forças armadas
do poder ocupante pisem o solo do território ocupado.
Dessa forma, considerando que é preciso que a autoridade esteja factual-
mente estabelecida, por certo que a presença de resistência impõe limites ao
início da ocupação. Um território disputado, que não está sob a autoridade de
nenhuma das partes do conflito, não é considerado ocupado. Por outro lado,
uma vez estabelecida tal autoridade, a presença de eventuais operações de
resistência não desqualifica a situação enquanto uma ocupação9.
Levando esses critérios em consideração, constata-se que há uma ocupação
do território ucraniano levada a cabo pela Rússia. Pode-se considerar que há ocu-
pação da Crimeia e da cidade de Sevastopol, situação que foi reconhecida pela
Assembleia Geral da ONU em 201610. O mesmo órgão condenou a tentativa de
anexação ilegal das referidas localidades ucranianas11. Ainda, desde o ataque de
fevereiro de 2022, a Rússia possui controle militar sobre parte considerável do
território ucraniano, especificamente das regiões de Luhansk, Donetsk, Kherson e
Zaporizhzhia12, impedindo a Ucrânia de exercer autoridade nessas áreas. Assim,

7 SASSÒLI, Marco; NAGLER, Patrick. International humanitarian law: rules, controversies, and solutions to
problems arising in warfare. Cheltenham, UK: Edward Elgar Publishing, 2019, p. 308.
8 ICJ, Case concerning Armed Activities on the Territory of the Congo (República Democrática do Congo vs.
Uganda). Julgamento, 19 dez. 2005, § 173.
9 SASSÒLI; NAGLER. Op cit. (nota 7), p. 306.
10 UN GENERAL ASSEMBLY, A/RES/71/205. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/
GEN/N16/455/74/PDF/N1645574.pdf?OpenElement. Acesso em: 12 jun. 2023.
11 UN GENERAL ASSEMBLY, A/RES/76/174. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/
GEN/N21/403/46/PDF/N2140346.pdf?OpenElement. Acesso em: 14 nov. 2022.
12 VISUAL JOURNALSIM TEAM. Ukraine in maps: Tracking the war with Russia. BBC News, 28 out. 2022.
Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-europe-60506682. Acesso em: 8 nov. 2022.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 195

é possível afirmar que os critérios necessários para caracterizar uma ocupação,


conforme mencionado anteriormente, foram atingidos13.

4. A definição de levée en masse

A correta classificação da situação é importante porque afeta diretamente


as regras de direito internacional humanitário aplicáveis ao conflito. Isso é
especialmente verdadeiro naquilo que diz respeito à proteção de pessoas, uma
vez que o regime de proteção a pessoas em território ocupado é maior do que
qualquer outro14, com um regramento detalhado de direitos e deveres entre
poder ocupante e população local.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Isso também é verdadeiro naquilo que concerne à detenção de pessoas.


Conforme definido no supracitado artigo 2º das quatro Convenções de Gene-
bra, o DIH dos conflitos armados internacionais também se aplica a todos os
casos de ocupação, total ou parcial, “mesmo que essa ocupação não encontre
resistência militar”.
Isso significa que os status de combatente e de prisioneiro de guerra se
estendem àqueles lutando em uma ocupação. Também se estende àqueles
que participam de um levée en masse – termo utilizado para se referir aos
habitantes de um território não ocupado que, à aproximação do inimigo,
pegam espontaneamente em armas para resistir às tropas invasoras, sem terem
tido tempo de se organizar em forças armadas regulares. Porém, nem todos
aqueles que apresentam resistência à presença do poder ocupante recebem
os privilégios e imunidades desses status. De acordo com o artigo 4º, que
define quem pode ser considerado um prisioneiro de guerra, é necessário
que o indivíduo (i) pertença à população que tem seu território invadido; (ii)
pegue em armas espontaneamente, sem organização ou treinamento prévios;
(iii) combata o inimigo; (iv) porte suas armas abertamente, à vista; (v) e
respeite as leis e costumes da guerra.
Tomando isso em consideração, é possível questionar se a participação
da população civil ucraniana, especificamente a partir de 24 de fevereiro de
2022, poderia constituir um levée en masse. Isso porque desde dezembro de
2021, civis ucranianos receberam treinamento de combate e autodefesa para
enfrentar o exército inimigo em caso de invasão15. Além disso, logo após o
ataque russo ao país, o Parlamento da Ucrânia aprovou uma lei permitindo

13 GENEVA ACADEMY. Military occupation of Ukraine by Russia. RULAC, 3 nov. 2022. Disponível em: https://www.
rulac.org/browse/conflicts/military-occupation-of-ukraine#collapse2accord. Acesso em: 8 nov. 2022.
14 SASSÒLI.; NAGLER. Op. cit. (nota 7), p. 303.
15 Ucrânia treina civis para defesa em caso de invasão russa, Exame, 28 dez. 2022. Disponível em: https://exame.
com/mundo/ucrania-treina-civis-para-defesa-em-caso-de-invasao-russa. Acesso em: 11 jul. 2022.
196

que os cidadãos portassem armas em público16 e oferecendo armas àqueles


que almejavam defender o país17.
Assim, apesar do treinamento e da distribuição de armamento mencio-
nados, existem indícios de que a situação analisada caracteriza um levée en
masse, uma vez que os civis ucranianos não tiveram condições suficientes
para se caracterizar como uma “força armada regular”. A correta definição
desses indivíduos é de grande relevância, uma vez que a concessão ou não
do privilégio e imunidade de combatentes significa que eles teriam o direito
de (i) participar diretamente das hostilidades e (ii) não serem criminalmente
responsabilizados por essa participação.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


5. Consequências jurídicas da resistência da população civil

Apesar da extensão do status de prisioneiro de guerra àqueles que parti-


cipam de um levée en masse, o direito internacional humanitário não estabe-
lece um direito à utilização de métodos violentos de resistência à ocupação ou
de liberação de um território ocupado18, mesmo que o direito internacional
não imponha à população civil do território ocupado um dever de obediên-
cia ao poder ocupante19. Ao mesmo tempo que o direito internacional não
proíbe a população civil de cometer atos de resistência, o DIH permite que
a potência ocupante puna esses atos, inclusive com o uso da força contra
pessoas que participem das hostilidades, desde que sejam respeitados os
demais princípios e regras de DIH20.
Assim, apesar de receberem o privilégio e a imunidade inerentes aos com-
batentes, aqueles que participam das hostilidades nessa categoria podem ser
detidos e podem ser alvos legítimos de ataque pelo inimigo. Além disso, esse
status privilegiado é aplicável somente durante o restrito período de duração
do levée en masse, que pode ser aplicado apenas à atividade da população de
um território desocupado, frente à ameaça da ocupação. Durante esse período,

16 HAROUN, Azmi. Ukraine’s parliament passed a law allowing citizens to carry firearms, and a local NGO
official said “there’s a feeling that Ukrainians will fight. Business Insider India, 24 fev. 2022. Disponível em:
https://www.businessinsider.com/ukraine-parliament-passes-law-allowing-citizens-to-carry-firearms-2022-2.
Acesso em: 11 jul. 2022.
17 SHETH, Sonam. Ordinary Ukrainian citizens are taking up arms to fend off Russian forces as they close in
on Kyiv. Business Insider India, 25 fev. 2022. Disponível em: https://www.businessinsider.com/ordinary-u-
krainians-take-up-arms-defend-kyiv-from-russia-2022-2. Acesso em: 11 jul. 2022.
18 SASSÒLI, Marco; BOUVIER, Antoine.; QUINTIN, Anne. How does law protect in war? Geneva: ICRC,
2011, p. 186.
19 LONGOBARDO, Marco. The Use of Armed Force in Occupied Territory. Cambridge: Cambridge University
Press, 2018.
20 FORD, William J. Resistance Movements and international law. International Review of the Red Cross, v. 8,
n. 82, p. 7-15, 1968.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 197

é necessário que os civis participando da resistência apenas carreguem suas


armas abertamente e respeitem as leis e costumes de guerra para que possam
ser considerados prisioneiros de guerra uma vez capturados21.
Porém, logo após o período que constitui o levée en masse, ou a situação
se transforma em uma ocupação, ou a força ocupante é repelida. Independen-
temente do resultado, aqueles que tomaram parte nas hostilidades passam a
não mais serem considerados combatentes, mas sim civis tomando parte ativa
nas hostilidades, sem proteção especial em caso de captura22.
Dessa forma, mesmo que seja reconhecida juridicamente a possibilidade
de que a população civil apresente resistência à ocupação do seu território, os
indivíduos que nela tomam parte não estão imunes à resposta do ocupante.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Assim, mesmo que eles tenham sido incluídos no escopo de proteção especial
dos prisioneiros de guerra, seu status não é estável e se restringe apenas a um
período muito específico da sua participação nas hostilidades.

5.1 Consequências jurídicas dos atos de resistência

Pessoas que participam em um levée en masse possuem status de com-


batente e têm direito ao status de prisioneiro de guerra (PDG), segundo o
artigo 4.A.6 da III Convenção de Genebra de 194923. Como combatentes,
participantes do levée en masse perdem proteção direta a ataques, logo, podem
ser considerados um objetivo militar sob a ótica das regras de condução das
hostilidades. Ainda, não poderão ser processados judicialmente pela prática
de atos permitidos pelo DIH, como a própria participação nas hostilidades.
Evidentemente, os combatentes podem ser processados pela prática de con-
dutas ilegais no DIH, como os crimes de guerra.
Também podem ter o status de PDG os membros de movimentos de
resistência (considerados como forças armadas irregulares). O artigo 4.A.2
da III CG concede esse status aos membros de movimentos de resistência,
que devem estar subordinados a uma das partes do conflito armado e devem
satisfazer os requisitos de: “a) ter a sua frente uma pessoa responsável
pelos seus subordinados; b) ter um sinal distintivo fixo que se reconheça à
distância; c) usar as armas à vista; d) respeitar, nas suas operações, as leis e
usos de guerra”24. Segundo Sassòli, os requisitos enumerados pela III CG
são coletivos, e o status de prisioneiro de guerra é concedido coletivamente
21 DINSTEIN, Yoram. The International Law of Belligerent Occupation. Cambridge: Cambridge University
Press, 2019, p. 97.
22 Ibid., Id.
23 CONVENÇÃO DE GENEBRA RELATIVA À PROTEÇÃO DOS PRISIONEIROS DE GUERRA, 3., 12 ago.
1949, Art; 4.A.6. Reproduzida em: DAL MASO JARDIM. Op cit. (nota 1), p. 312-388.
24 Ibid., Art. 4.A.2.
198

aos membros de grupos que estejam de acordo com tais requisitos25. Dessa
maneira, não poderão ser PDGs os indivíduos que atendam aos requisitos
individualmente, mas façam parte de um grupo que não os atende como um
todo26. Sobre o requisito de que o movimento de resistência esteja subor-
dinado a uma das partes ao conflito, tal subordinação pode ser expressa ou
tácita; sendo imprescindível que o grupo esteja de fato lutando em nome
dessa parte ao conflito armado e que tal parte ao conflito aceite que o movi-
mento de resistência tenha função de combate 27. Assim, basta que haja
uma relação fática entre o movimento de resistência e a parte do conflito
armado, sendo desnecessário um ato formal que reconheça o movimento
de resistência como força auxiliar à parte ao conflito28.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Sobre a situação dos civis, nota-se que o princípio da distinção entre civis
e combatentes é uma das bases do DIH29, concedendo o status de combatente
a membros das forças armadas de uma parte ao conflito armado. Logo, a
participação nas hostilidades não é um critério definidor do status de civil ou
combatente30. Um civil que participa diretamente das hostilidades não deixa de
ter o status de civil, desde que não esteja participando em um levée en masse.
Entretanto, tal civil perde proteção direta a ataques durante a sua participação
nas hostilidades, de acordo com o artigo 51.3 do Protocolo Adicional n. 1 (PA
1) às Convenções de Genebra de 1949. Tal regra é considerada como uma
norma de direito internacional costumeiro, e por isso é vinculante às partes
ao conflito mesmo que uma delas decida denunciar ou não seja parte do PA
131. Ao cessar a participação direta nas hostilidades, o civil volta a gozar de
proteção contra-ataques. Ou seja, a perda da proteção a ataques se dá apenas
durante o período de duração da participação direta nas hostilidades.
Como regra geral, qualquer pessoa que for capturada enquanto estiver
participando das hostilidades pode ser presumida como um combatente e
prisioneiro de guerra32. Posteriormente, seu status deverá ser avaliado por
um tribunal constituído de acordo com as exigências do art. 5 da III CG de

25 SASSÒLI; NAGLER. Op cit. (nota 7), p. 253.


26 Ibid., p. 253.
27 ICRC. Convention (III) relative to the Treatment of Prisioners of War: Commentary of 2020, Art. 4, IHL
Databases. Disponível em: https://ihl-databases.icrc.org/applic/ihl/ihl.nsf/Comment.xsp?action=openDocu-
ment&documentId=1796813618ABDA06C12585850057AB95. Acesso em: 13 nov. 2022.
28 Ibid.
29 ICJ. Opinião Consultiva sobre a Legalidade da Ameaça ou Uso de Armas Nucleares. Julgamento, 9 jul. 1996.
30 REGULAMENTO DE HAIA CONCERNENTE ÀS LEIS E AOS USOS DA GUERRA TERRESTRE, 18 de
out. 1907, Artigo 3; PROTOCOLO ADICIONAL I ÀS CONVENÇÕES DE GENEBRA DE 1949, Art. 43.2.
31 HENCKAERTS, Jean-Marie; DOSWALD-BECK, Louise (eds.). Customary International Law, v. 2. Cambridge:
Cambridge University Press, 2005, Chap. 1, Sec. F, Rule 6. Disponível em: https://ihl-databases.icrc.org/
customary-ihl/eng/docs/v1_rul_rule6. Acesso em: 7 out. 2022.
32 SASSÒLI; NAGLER. Op cit. (nota 7).
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 199

1949, que deverá definir o seu status como civil ou combatente. Esse artigo
não exige que tal tribunal seja parte do Poder Judiciário do Estado em questão,
mas estabelece que ele deve ser um órgão colegiado de natureza judicial ou
administrativa e tem o objetivo de impedir que um único oficial militar decida
o status da pessoa capturada33.
Marco Longobardo observa que as regras do DIH sobre ocupação beli-
gerante buscam regular, de modo geral, a conduta do poder ocupante, e não
a da população ocupada34. Ainda, o autor resume as regras aplicáveis da
seguinte forma:

O direito internacional humanitário contemporâneo trata a resistência


armada em território ocupado de forma similar às regras sobre espionagem:
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

a atividade não é per se proibida, mas o inimigo contra o qual é dirigida


tem o direito de combatê-la e privar o status de prisioneiro de guerra aos
membros da resistência inimiga que não cumpram com os requisitos para
tal. Assim, os membros da resistência armada civil contra a potência ocu-
pante correm o risco de serem punidos por sua conduta se não cumprirem
os requisitos do Direito Internacional Humanitário sobre a condição de
prisioneiro de guerra. No entanto, do ponto de vista da legitimidade da
resistência armada como tal, o Direito Internacional Humanitário não a
proíbe. Esta conclusão está perfeitamente de acordo com a ausência de
imposição no direito internacional de um dever de obediência da população
de um território ocupado ao ocupante35.

Longobardo argumenta também que a não proibição de resistência


armada por parte da população do território ocupado deve ser interpretada
como uma afirmação tácita de que a resistência é juridicamente legítima36.
Ao mesmo tempo, o autor considera que não existe um “direito” a participar
de uma resistência armada; e que a resistência é um mero fato, considerado
pelo DIH de acordo com as regras que impõe o status de combatente e de
prisioneiro de guerra a algumas pessoas que participam de hostilidades contra
o poder ocupante37.
Observa-se que os civis que participarem das hostilidades e não fizerem
parte de um levée en masse ou de um movimento de resistência não possuem
o status de combatente. Portanto, eles não possuem o privilégio jurídico sob o
DIH de se engajar nos meios e métodos de guerra, e poderão ser processados
e punidos pelo poder ocupante pela prática de tais atos.

33 Ibid.
34 LONGOBARDO, Marco. Op cit. (nota 19).
35 Ibid. (Tradução livre).
36 Ibid.
37 Ibid.
200

Ademais, perdem proteção direta de ataque os civis que participem dire-


tamente de hostilidades contra o poder ocupante. Nesse sentido, Dinstein
menciona o julgado da Corte Especial dos Países Baixos no caso Christiansen
(1948): “the civilian population, if it considers itself justified in committing acts
of resistance, must know that, in general, counter-measures within the limits set
by international law may be taken against them with impunity”38.
Nota-se que o DIH proíbe as represálias contra a população civil — em
outras palavras, a parte ao conflito não pode atacar deliberadamente a popu-
lação civil do inimigo em resposta a um ataque ilegal do inimigo que causou
dano a sua própia população civil39.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


5.2 Medidas de segurança no território ocupado

Segundo o artigo 43 da Convenção de Haia de 1907, a potência ocu-


pante poderá, após tomar controle do território ocupado, desprender medidas
para assegurar a ordem e a segurança públicas. Segundo Dinstein, o artigo
43 estabelece ao poder ocupante duas obrigações: (i) restaurar e assegurar,
na medida do possível, a ordem pública e a vida no território ocupado; (ii)
respeitar as leis em vigor no território ocupado, a menos que exista um impe-
dimento absoluto40. O autor afirma que tal artigo obriga o poder ocupante a
garantir a segurança e a ordem públicas no território ocupado, como medida
de proteção da população civil de atos como saques, vandalismos e outras
ações que afetem a vida cotidiana41. Nesse sentido, Dinstein menciona um
julgado em que a Corte Suprema de Israel decidiu que Israel, como poder
ocupante, tinha o dever de manter a ordem no território ocupado durante a
primeira intifada42.
Com base também no artigo 43, a potência ocupante pode excepcional-
mente revogar ou suspender as leis locais do território ocupado quando tais
leis constituam uma ameaça a sua segurança, ou quando tais leis sejam um
obstáculo para o cumprimento do DIH43. Por exemplo, o poder ocupante
pode revogar uma lei local imposta pela potência ocupada antes da ocupação
obrigando os civis do território ocupado a pegarem em armas para defender

38 CORTE ESPECIAL DOS PAÍSES BAIXOS. Christiansen trial. Julgamento, 1948, § 128. Cf. DINSTEIN. Op
cit. (nota 21).
39 CONVENÇÃO DE GENEBRA RELATIVA À PROTEÇÃO DAS PESSOAS CIVIS EM TEMPOS DE GUERRA,
4., 12 ago. 1949, Art. 33. Reproduzida em: DAL MASO JARIM. Op cit. (nota 1), p. 389-453.
40 DINSTEIN. Op cit. (nota 21).
41 Ibid.
42 SUPREME COURT OF ISRAEL. Taha (minor) et al. v. Minister of Defence et al. Julgamento, 1993, § 63.
Cf. DINSTEIN. Op cit. (nota 21).
43 MELZER, Nils. International Humanitarian Law: A Comprehensive Introduction. Geneva: ICRC, 2019. p. 246.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 201

seu território e se engajarem em hostilidades contra a parte inimiga no conflito


armado na fase pré-ocupação44. No entanto, o poder ocupante não pode com-
pelir os civis do poder ocupado, sob pressão ou propaganda, a se alistarem às
forças armadas ou forças auxiliares do poder ocupante45. Desde a ocupação da
Crimeia, a Assembleia Geral da ONU alerta sobre a ocorrência de tal prática
ilegal no território ucraniano ocupado pela Rússia46.
No caso de civis que participam de protestos, o poder ocupante pode
tomar medidas para manter a ordem social e controlar as manifestações popu-
lares que venham a causar distúrbios, mas a resposta deve ser proporcional à
ameaça causada. O poder ocupante não pode utilizar força letal para responder
a uma manifestação política de civis desarmados, quando esta não tiver liga-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ção com os meios e métodos de guerra empregados no contexto do conflito


armado. Nesse tipo de situação, o poder ocupante deve pautar sua interven-
ção nos princípios de necessidade e proporcionalidade da força empregada,
podendo inclusive utilizar armas menos letais como bombas de efeito moral
e balas de borracha, considerando que não se trata de um embate entre as
partes ao conflito armado, mas de uma ação do poder ocupante exercendo o
poder de garantia da lei e ordem no território ocupado.
Durante CAIs, o DIH também permite o internamento47 de civis prote-
gidos (ou seja, nacionais da parte inimiga no CAI) como medida excepcional
a ser adotada por razões de segurança, de acordo com avaliação individual
da ameaça de segurança da pessoa detida, a ser reavaliada semestralmente48.
A participação direta em hostilidades pode ser considerada uma base des-
sas razões de segurança que permitem o internamento de civis pelo poder
ocupante49. Considerando que há um CAI entre Ucrânia e Rússia, ambos
países poderiam internar civis do país inimigo que tenham participado dire-
tamente das hostilidades, respeitando todas as garantias da IV Convenção
de Genebra de 1949. Nils Melzer explica quais critérios devem ser levados
em consideração para definir se um civil ameaça a segurança de uma das
partes ao conflito armado:

44 Ibid.
45 CONVENÇÃO DE GENEBRA RELATIVA À PROTEÇÃO DAS PESSOAS CIVIS EM TEMPOS DE GUERRA,
4., 12 ago. 1949, Art. 51. Reproduzida em: DAL MASO JARIM. Op cit. (nota 1), p. 389-453.
46 UN GENERAL ASSEMBLY, A/RES/71/205: “Urges the Russian Federation: [...] To end the practice of
compelling Crimean residents to serve in the armed or auxiliary forces of the Russian Federation, including
through pressure or propaganda, and in particular ensure that Crimean residents are not compelled to
participate in military operations of the Russian Federation”.
47 Entende-se por internamento a privação de liberdade de natureza administrativa, ou seja, desvinculada de
um processo penal.
48 CONVENÇÃO DE GENEBRA RELATIVA À PROTEÇÃO DAS PESSOAS CIVIS EM TEMPOS DE GUERRA,
4., 12 ago. 1949. Reproduzida em: DAL MASO JARIM. Op cit. (nota 1), p. 389-453.
49 MELZER. Op. cit. (nota 43), p. 190.
202

Other activities or affiliations that may justify the internment of protected


persons include subversive activities carried out within the territory of the
detaining power, membership in organizations aiming to cause distur-
bances, direct assistance to the enemy, and acts of sabotage or espionage.
However, the mere fact that a person is an enemy national cannot be
regarded as a security threat automatically justifying internment with-
out completely defeating the idea of tailoring security measures to the
requirements of each individual case and reserving internment for the most
serious cases. In sum, the decisive factor seems to be that the detaining
State “must have good reason to think that the person concerned, by his
activities, knowledge or qualifications, represents a real threat to its pres-
ent or future security”. In all cases, however, internment must remain an

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


exceptional measure of last resort50.

Ressalta-se que o internamento de civis é a medida mais severa a ser tomada


pela parte ao conflito armado, e deve ser utilizada como último recurso, quando
outras medidas menos restritivas – como, por exemplo, restrições de movimento
e assignação de residência fixa – não tenham sido efetivas51.
O poder detentor deve garantir aos civis internados as garantias procedimen-
tais previstas pelo DIH. O poder detentor deve garantir, ainda, que a análise da
ameaça individual que o civil faz para a sua segurança seja feita por um tribunal
ou órgão colegiado administrativo, e a pessoa internada deve ser informada das
razões do internamento e deve ter um direito a recurso52.

6. Conclusão

Não há dúvida que há um CAI entre Rússia e Ucrânia, e que o direito


internacional humanitário se aplica ao conflito, devendo ser respeitado igual-
mente por ambas as partes. O jus ad bellum e o jus in bello são imiscíveis.
Portanto, mesmo que a invasão russa seja ilegal, as regras de DIH se aplicam
igualmente a Rússia e Ucrânia.
Considerando que o DIH não estabelece por si só um “direito à resistên-
cia”, haverá consequências jurídicas aos civis ucranianos que participem das
hostilidades. Eles poderão perder a proteção direta a ataques durante (e tão
somente) o período que estiverem participando das hostilidades, assim sendo
durante esse tempo um alvo militar legítimo que pode ser atacado legalmente
pelas forças armadas russas de acordo com o DIH.

50 Ibid., Id.
51 Ibid., Id.
52 PICTET, Jean S. (ed.). The Geneva Conventions of 12 August 1949. Commentary – IV Geneva Convention
Relative to the Protection of Civilian Persons in Time of War. Geneva: ICRC, 1958.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 203

Nota-se que os civis que participem de um levée en masse durante a


fase pré-ocupação e obedeçam aos requisitos supracitados não serão tra-
tados da mesma forma que civis que participam de hostilidades em outros
contextos. Também recebem tratamento distinto os participantes em um
movimento de resistência.
Em território ocupado, a população civil que participar das hostilidades
poderá ser alvo de medidas de segurança pelo poder ocupante, o qual poderá
realizar, em último caso, o internamento de civis. No entanto, esta é uma
medida de último recurso, que deve ser aplicada de acordo com as regras da
IV Convenção de Genebra. Ademais, o poder ocupante poderá implementar
medidas para garantir a lei e a ordem em território ocupado, incluindo a
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

revogação de leis locais. Ainda que o poder ocupante possa impor medidas à
população do território ocupado, ele possui obrigações em relação aos civis do
território ocupado, devendo também garantir a segurança e, até certa medida,
satisfazer as necessidades da população local53.

53 NETTO, Cláudio Cerqueira Bastos. Reducing the Negative Effects of Counterterrorism Frameworks and
Other Restrictive Measures on Humanitarian Action and Enforcing the Obligations of States in Relation to
the COVID-19 Vaccine. American University International Law Review, v. 37, n. 2, p. 209-252, 2022.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
12. O DIREITO À ASSISTÊNCIA
HUMANITÁRIA E A ATUAÇÃO DA
COMUNIDADE INTERNACIONAL
NA PROTEÇÃO DA POPULAÇÃO
AFETADA PELA GUERRA NA
UCRÂNIA, EM ESPECIAL, CRIANÇAS
José Wagner de Oliveira Tavares
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Robson Antão de Medeiros

1. Introdução

A população civil residente na Ucrânia, afetada por hostilidades russas,


encontra-se entre as principais vítimas da guerra em curso entre Rússia e Ucrânia
Rússia – com tropas russas invadindo o país: ao norte, fazendo fronteira com a
Bielorrússia; ao leste, pela Rússia; e ao sul, pela Crimeia –, com fortes indícios
de graves violações de Direitos Humanos contra a população civil ucraniana1.
Vivendo em ruínas e abrigos improvisados, há, atualmente, milhões de pessoas,
em especial, crianças, privadas de seus meios de subsistência. Sendo assim, a
satisfação de suas necessidades mais urgentes (água potável, alimentação, ves-
timentas etc.) depende da prestação de assistência humanitária rápida e eficaz.
A presente pesquisa demonstra que todo indivíduo possui um direito
(humano) a receber esta assistência e que, durante conflitos armados, a
implementação desta assistência é regulamentada pelo Direito Internacional
Humanitário (DIH), que prevê um complexo sistema de direitos e obrigações,
envolvendo as partes em conflito e a comunidade internacional, composta,
essencialmente, por Estados e por organizações internacionais (governamentais
e/ou não governamentais). Nesse contexto, é natural a tensão entre as neces-
sidades da população civil, os interesses da comunidade internacional – no
engajamento dessa assistência – e o direito da Ucrânia de decidir quais orga-
nizações (nacionais, internacionais, transnacionais etc.) reúnem as condições
necessárias à esta prestação2.
1 LOFT, Philip; BRIEN, Philip. Ukraine Crisis 2022: Aid and Refugees. House of Commons Library: Research
Briefing, London, 2022.
2 STOFFELS, Ruth Abril. Legal Regulation of Humanitarian Assistance in Armed Conflict: Achievements and
Gaps. International Review of the Red Cross, v. 86, n. 855, p. 515-546, 2004.
206

Muitas destas organizações, de caráter humanitário, são responsáveis por


salvaguardar o bem-estar das populações civis em meio a conflitos armados
– privadas de necessidades básicas de sobrevivência, a exemplo de saúde,
alimentação, abrigo etc. –, observando-se os princípios de “humanidade, invio-
labilidade, não discriminação e segurança”, que são alicerces do Direito Inter-
nacional Humanitário (DIH) e do Direito Internacional dos Direitos Humanos
(DIDH), cujas regras específicas serão esmiuçadas neste estudo3. Outrossim,
a correlação entre estes regimes jurídicos – DIH e DIDH – irá permitir que
ambos estabeleçam mecanismos garantidores do respeito ao direito de vítimas
receberem assistência humanitária e das obrigações, atribuídas aos Estados e
aos demais atores humanitários, para que este direito não seja vilipendiado4.
Esta arquitetura colaborativa, embora longe da “perfeição”, revelou-se, razoa-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


velmente, capaz de cumprir seu papel nos primeiros meses da guerra na Ucrânia
(entre fevereiro a agosto de 2022).
Para esmiuçar as informações supracitadas, realizou-se pesquisa docu-
mental e bibliográfica, estando a presente investigação dividida da seguinte
forma, a saber: seção 1) Introdução; seção 2) O direito à assistência humani-
tária – discute acerca da estrutura legal internacional que regula o direito de
cada indivíduo a receber assistência humanitária e o dever desta prestação, em
conflitos armados, com base no DIH e no DIDH, envolvendo, também, o direito
de organizações internacionais a oferecer e prestar esta assistência, bem como
violações do direito à assistência humanitária; seção 3) A atuação da comuni-
dade internacional na proteção da população afetada pela guerra na Ucrânia,
em especial, crianças – aborda os desafios da efetivação e da prestação de assis-
tência humanitária, destacando a importância de organizações (inter-regionais,
intergovernamentais, nacionais, internacionais, transnacionais etc.) envolvidas
neste processo de cooperação, apresentando e analisando dados – quantitativos
e qualitativos – referentes à esta prestação, durante os primeiros seis meses do
conflito armado em epígrafe; e seção 4) Considerações finais.

2. O direito à assistência humanitária em conflitos armados

Com o advento da guerra na Ucrânia, instituições de Direitos Humanos


e de Direito Internacional têm-se empenhado, juntamente com o governo
ucraniano – em instâncias multilaterais – em dar respostas à população civil,
diante da crise instalada desde fevereiro de 2022. Além dessas instituições
serem responsáveis pela prestação de ajuda imediata, para cidadãos ucrania-
nos e residentes naquele país, elas oferecem alternativas à lógica da guerra,

3 Ibid., Id.
4 PICTET, Jean. Développement et principes du droit international humanitaire. Paris: Pedone, 1983.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 207

escolhida pelo governo russo, contribuindo para firmar consenso internacional


e fornecer avaliações legais e independentes, no tocante ao conflito, abrindo
caminho para garantir a responsabilização por crimes cometidos durante a
guerra, baseando-se, sobretudo, no DIH, no DIDH e no DIP5.
Nesse contexto, faz-se necessário atentar para estrutura legal que regula-
menta o acesso e a prestação de assistência humanitária (nesta investigação,
com foco no DIH e no DIDH), em meio a conflitos armados, envolvendo exi-
gências burocráticas cada vez mais difíceis e complexas de serem atendidas,
representando, por vezes, entraves aos Estados e às organizações envolvidas
neste processo. De acordo com Schwendimann, esses entraves podem incluir:
hostilidades constantes; ambiente de completa insegurança; destruição de
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

infraestrutura necessária à prestação de assistência humanitária; e, ainda, falta


de familiaridade – por parte de Estados, grupos (armados e não armados) e
organizações humanitárias – com o aparato legal que estabelece a estrutura
supracitada, quando se trata de zonas conflito armado, representando um dos
principais desafios para promoção de ações humanitárias6.

2.1 O direito de cada indivíduo a receber assistência humanitária

A proteção de civis, em conflitos armados, representa um componente


central de políticas humanitárias, perpassando a superação de dificuldades em
diversos níveis – político, operacional e legal –, havendo, em muitos casos, falta
de clareza quanto às obrigações legais existentes para que atores humanitários
possam atuar – uma vez que o direito individual a receber assistência humanitá-
ria não é explicitamente mencionado pelo DIDH – familiarizados com condições
e regras de DIH, DIDH e DIP7. Sendo assim, para que a assistência humanitária
seja efetivada, precisa-se, primeiramente, estabelecer alguns objetos de análise
que, doravante, passa-se a discutir: 1) quem são os principais responsáveis por
assegurar o atendimento das necessidades básicas da população afetada; 2) o
que os atores humanitários podem fazer; 3) até que ponto as ações humanitárias
devem ser consentidas e quais as condições para que o DIH conduza estas ações;
4) quais as obrigações de direitos humanos no tocante ao acesso de assistência
humanitária; e 5) quais as consequência de violações desses direitos8.

5 LERCH, Marika. Russia´s War on Ukraine in International Law and Human Rights Bodies: Bringing Institutions
Back in. European Parliament. Directorate-General for External Policies of the Union: Policy Department for
External Relations, Brussels, abr. 2022.
6 SCHWENDIMANN, Felix. The Legal Framework of Humanitarian Access in Armed Conflict. International
Review of the Red Cross, v. 93, n. 384, p. 993-1008, 2011.
7 Ibid.
8 Ibid.
208

Como consequência trazida pelo princípio da soberania e em confor-


midade com a Resolução 46/182 da Assembleia Geral das Nações Unidas
(AGNU), de 1991, os Estados são os principais responsáveis por garantir o
acesso às necessidades básicas das populações afetadas, em respeito à práxis
internacional, que estabelece que cada Estado tem a responsabilidade, em
primeiro lugar, de assistir vítimas de conflitos armados – em seu território
e sujeitos à sua jurisdição – desenvolvendo, também, as funções de inicia-
ção, organização, coordenação e implementação de assistência humanitária,
tomando todas as medidas necessárias à não violação desse direito9. Even-
tualmente, se o Estado for incapaz de cumprir estas medidas – ou se seus
esforços falharem – ele terá que permitir o envolvimento de outros atores de

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


direitos humanos, a exemplo de Organizações Não Governamentais (ONGs)
– nacionais, internacionais, transnacionais etc. –, para efetuação dessa assis-
tência humanitária, que é objeto de discussões acadêmicas sobre sua efetiva
regulamentação como direito humano10.
Ademais, a consagração do direito à assistência humanitária, no DIH, está
fundada em dois princípios, estabelecidos na Resolução XXVIII da Vigésima
Conferência Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho – que
também norteiam todo conjunto normativo supracitado –, a saber: 1) a obri-
gação de se distinguir entre população civil e combatentes; e 2) a obrigação
de se assegurar respeito, proteção e tratamento humanitário para pessoas que
não mais participam das hostilidades em conflitos internacionais11. Ainda,
com relações a estes conflitos, a “Quarta Convenção de Genebra Referente à
Proteção de Pessoas Civis em Tempos de Guerra” estabelece, claramente, que
os Estados têm o dever de prestar assistência humanitária à população civil
sob seu controle (incluindo-se não nacionais, livres ou detidos, e a população
de territórios ocupados), estando, estes Estados, obrigados a aceitar ajuda de
atores terceiros quando se fizer necessário12.

2.2 O dever de prestar assistência humanitária

A princípio, o Estado tem o dever de promover assistência humanitária


(duty to protect), exercendo sua jurisdição sobre indivíduos que enfrentam cri-
ses humanitárias, configurando, assim, assistência humanitária nacional, per-
mitindo, entretanto, que outros atores (imparciais) o façam, para seus próprios
9 Un General Assembly. A/RES/46/182, Annex, § 4, 19 dez. 1991.
10 STOFFELS, R.A. Op cit. (nota 2).
11 INTERNATIONAL CONFERENCE OF THE RED CROSS AND RED CRESCENT. Resolution XXVIII of the
20th International Conference of the Red Cross and Red Crescent. Vienna, 1965.
12 CONVENÇÃO DE GENEBRA RELATIVA À PROTEÇÃO DAS PESSOAS CIVIS EM TEMPOS DE GUERRA,
4., 12 ago. 1949, 75 UNTS 287.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 209

cidadãos, e embora esta determinação não esteja contida, expressamente, na


Convenção supracitada, o direito à assistência humanitária dos cidadãos de
Estados neutros foi, posteriormente, incluído no “Primeiro Protocolo Adi-
cional”, ao tratar da “Ajuda em Favor da População Civil”, estabelecendo
obrigações para aceitação de “entrada, passagem e distribuição de auxílio
para população civil”, incluindo-se, nesta população, todos os civis, indepen-
dentemente de sua nacionalidade ou posição no conflito armado13. Importante
salientar que, em respeito aos princípios de “humanidade, imparcialidade e
não discriminação” (anteriormente citados), ofertas de “ação estritamente
humanitária”, independente de orientações políticas dos atores envolvidos,
não podem ser consideradas como “intervenção estrangeira” ou “intervenção
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ilegal” pela política interna do Estado receptor14.


Vale ressaltar, também, que, durantes conflitos armados internacionais,
a exemplo do que se presencia na Ucrânia, ações de razão humanitária estão
ligadas, diretamente, às necessidades indispensáveis da população civil, não
se estendendo, portanto, aos combatentes. Os direitos humanos podem gerar,
também, obrigações extraterritoriais, não sendo possível, porém, identificar
uma obrigação concreta, de cada Estado, em prestar assistência humanitária
em determinada quantidade e/ou qualidade; existe, sim, a obrigação geral da
comunidade dos Estados, seja esta de caráter financeiro ou por iniciativas
próprias dentro das capacidades de cada Estado15. Estas obrigações podem
incluir itens indispensáveis à sobrevivência – água, comida, medicamentos,
vestimentas, roupas de cama e abrigo – podendo alcançar, até mesmo, civis
em residências não atingidas por ataques militares, mas que podem estar em
estado de necessidade, de um ou mais dos itens supracitados, podendo ser
fornecidos, também, por Estados neutros ou atores externos, a exemplo de
organizações humanitárias imparciais16.
Porém, segundo Dinstein, não há o “direito absoluto” da população civil de
exigir assistência humanitária externa, uma vez que outros atores, como Estados
e/ou organizações não envolvidos, diretamente, no conflito armado, não podem
ser obrigados a prestar assistência humanitária, embora devam, em respeito ao
princípio de “humanidade”, fazer esforços adequados para que essa prestação
seja efetivada. Nesse contexto, o DIH se aplica, atualmente, à Rússia e à Ucrânia

13 PROTOCOL ADDITIONAL TO THE GENEVA CONVENTIONS OF 12 AUGUST 1949, AND RELATING TO


THE PROTECTION OF VICTIMS OF INTERNATIONAL ARMED CONFLICTS (Protocol I), 8 jun. 1977, 1125
UNTS 3, Arts. 68-71.
14 INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Military and Paramilitary in and against Nicaragua (Nicaragua
v. United States of America). Judgment, 27 jun. 1986, ICJ Reports 1986, 14.
15 SCHWENDIMANN, F. Op cit. (nota 11).
16 DINSTEIN, Yoram. The Right to Humanitarian Assistance. Naval War College Review, v. 53, n. 4,
p. 77-91, 2000.
210

– envolvidas em um conflito armado internacional – uma vez que ambos são


signatários das 4 Convenções de Genebra, de 1949, e do Protocolo I, de 1977,
confirmando obrigações de prestação de assistência humanitária supracitadas,
ratificadas pelo artigo 23 da IV Convenção de Genebra (referente à população
em território ocupado pelo adversário) e pelo artigo 70 do Protocolo I17.
Ademais, operações humanitárias, durante conflitos armados internacio-
nais, estão sujeitas ao consenso das partes envolvidas, de acordo com o Artigo
70(1) do Protocolo Adicional I de 1977, protegendo a soberania de Estado
receptor e procurando equilíbrio entre interesses da população civil e de Estados,
não se devendo, todavia, recusar assistência, arbitraria ou injustificadamente,
em especial quando as autoridades possuidoras deste dever primário são – ou

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


estão – incapacitadas de prestá-la18. Uma eventual recusa de ajuda humanitária,
portanto, deve estar alicerçada em razões válidas, dependentes de circunstâncias
a ser determinadas, caso a caso, podendo-se, até mesmo, invocar uma “necessi-
dade imperativa de caráter militar” como justificativa de recusa19. Entretanto,
quando esta recusa se associa à escalada da fome de vítimas, nenhuma razão
válida poderá ser postulada para justificar a desaprovação de ação humanitária
destinada a este fim, evitando-se, assim, o “uso da fome de civis como arma de
guerra” e em respeito ao Direito Internacional Consuetudinário, que defende o
acesso à assistência humanitária, associada (ou não) à fome20.

2.3 O direito de organizações internacionais a oferecer e prestar


assistência humanitária

Em respeito ao cumprimento dos princípios de assistência humanitária,


organizações internacionais, a exemplo de ONGs, são detentoras de um direito
condicionado a prestar este tipo de assistência que, em um primeiro momento,
implica no direito a oferecer assistência humanitária ao Estado receptor21. Sendo
assim, em consonância com o Artigo 70(2) do Protocolo Adicional I, de 1977,
faz-se necessário que haja facilitação de passagem – livre e rápida – de itens,
equipamentos e equipes de caráter humanitário, por parte de todos os Estados,
mesmo quando a população civil beneficiada representar o lado adversário do
17 Ibid.
18 SPIEKER, Heike. The Right to Give and Receive Humanitarian Assistance. In: HEINTZE, Hans-Joachim;
ZWITTER, Andrej Zwitter (eds.). International Law and Humanitarian Assistance: A Crosscut Trough Legal
Issues Pertaining to Humanitarianism. Berlin: Springer Verlag, p. 7-31, 2011.
19 LUOPAJÄRVI, Katja. Is there an Obligation on States to Accept International Humanitarian Assistance to
Internally Displaced Persons under International Law? International Journal of Refugee Law, v. 15, n. 4,
p. 678-714, 2004.
20 BARBER, Rebecca. Facilitating Humanitarian Assistance in International Humanitarian and Human Rights
Law. International Review of the Red Cross, v. 91, n. 874, p. 371-397, 2009.
21 LERCH, M. Op cit. (nota 5).
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 211

país receptor, baseando-se nos já citados princípios de “humanidade, não dis-


criminação e imparcialidade”, presentes no DIH e no DIDH22.
Ademais, de acordo com o Artigo 17 da IV Convenção de Genebra (da
qual Rússia e Ucrânia são signatários), a assistência deve ser prestada à toda
população civil e não apenas aos grupos vulneráveis – feridos, doentes, idosos,
crianças, puérperas etc. –, devendo-se permitir, também, o livre acesso de auto-
ridades religiosas, profissionais de saúde e demais equipamentos necessários.
Além disso, o Protocolo Adicional I proíbe o atraso intencional da prestação de
ajuda humanitária – ou o desvio desta ajuda – para outras finalidades, ressaltan-
do-se exceções por razões de segurança e quando houver “extrema necessidade”
e apenas se esta demanda for de interesse da população afetada pelo conflito.
Destarte, as partes envolvidas no conflito têm a obrigação de ação
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

positiva protetiva dos itens humanitários disponíveis, assegurando rápida


distribuição e proatividade quanto à coordenação internacional de ações
humanitárias23. Os Estados envolvidos nestas negociações podem requerer
que haja supervisão local dessas ações, por parte de organizações humanitá-
rias imparciais, prezando-se pela proteção, auxílio e respeito incondicionais
às equipes humanitárias em missão24. Em contrapartida, estas equipes não
poderão exceder os termos da missão em epígrafe, em nenhuma hipótese,
prezando, também, pelo respeito às regras de segurança, impostas pelos
Estados onde a assistência ocorre, sob o risco de cancelamento dessa presta-
ção. Percebe-se, então, que Estados precisam respeitar e manter, mesmo em
tempos de guerra, níveis mínimos essenciais de direitos econômicos, sociais e
culturais dos cidadãos, agindo de forma proativa para fortalecer o acesso e o
gozo destes direitos, especialmente por meio de organizações internacionais,
para garantia de sobrevivência digna da população25.
Nesse âmbito, quando um indivíduo (ou grupo) estiver incapacitado, por
razões alheias ao seu controle, de acessar bens essenciais à sua sobrevivência,
faz-se necessário que a prestação de assistência humanitária ocorra, de forma
não discriminatória, principalmente ao se tratar de grupos vulneráveis ou
marginalizados26. Outrossim, é preciso haver fornecimento de alimentação,
nutricionalmente, adequada, para evitar fome, saneamento básico e acesso
à água potável, respeitando-se, como já citado anteriormente, o DIH e o
DIDH27. Nesse contexto, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,

22 SCHWENDIMANN, F. Op cit. (nota 11).


23 Ibid.
24 Ibid.
25 Veja, p. ex., os direitos garantidos no International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights
(ICESCR), 16 dez. 1966, 993 UNTS 3, Arts. 11-12.
26 Ibid.
27 KOLB, Robert. De l‘assistance humanitaire: La résolution sur l‘assistance humanitaire adoptée par l‘Institut
de droit international à sa session de Bruges en 2003. International Review of the Red Cross, v. 86, n. 856,
212

Sociais e Culturais (PIDESC) fornece proteção mais substancial de assistência


humanitária que o DIH, quando restrições referentes à esta assistência são
atribuídas aos Estados envolvidos em conflitos armados.
Entretanto, Estados que aleguem incapacidade de cumprir com as obriga-
ções supracitadas, devido a fatos fora de seu controle, precisam demonstrar que
empenharam todos os esforços necessários, por meio de recursos disponíveis,
para satisfazer as prioridades da população28. Importante salientar, ainda, que,
de acordo com o DIDH, faz-se necessário que Estados apresentem razões para
o não cumprimentos dessas obrigações, considerando os recursos existentes e
disponíveis, dentro dos Estados, e os recursos disponibilizados pela comuni-
dade internacional e pelas organizações internacionais29.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


2.4 Violação do direito à assistência humanitária

No tocante à responsabilização por violações do Direito Internacio-


nal – alusivos à prestação de assistência humanitária em conflitos armados
– o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) já tratou destas
violações, em inúmeras ocasiões, levando em consideração, inclusive, res-
ponsabilização de autores individuais por violarem as regras supracitadas,
constituindo, dessa forma, “crimes de guerra”, a exemplo do que reza o
Artigo 8 do Estatuto de Roma30.
Portanto, a recusa de prestação de assistência humanitária, particular-
mente no tocante ao acesso de civis à esta prestação, pode constituir crime de
guerra, proibindo-se (segundo o DIH, o DIDH, às Convenções de Genebra, os
Protocolos Adicionais e o Estatuto de Roma) o uso da fome intencional desta
população (por meio de privação de suprimentos indispensáveis à sobrevi-
vência) como arma de guerra em um cenário de conflitos armados – ou não
armados – internacionais31. Sendo assim, autores de ataques indiscriminados
a pessoas ou suprimentos – envolvidos em assistência humanitária e não
envolvidos, diretamente, em hostilidades – podem responder, disciplinar ou
criminalmente, por infrações desta natureza32.
No tocante à assistência de caráter humanitário, em conflitos armados, a
“IV Convenção de Genebra”, a “Convenção sobre os Direitos das Crianças” e
o “Protocolo Adicional I”, em seu Artigo 70, estabelecem que a distribuição de

p. 853-878, 2004.
28 ICESCR. Op cit. (nota 25).
29 SCHWENDIMANN, F. Op cit. (nota 11).
30 Ibid.
31 HENCKAERTS, Jean-Marie; DOSWALD-BECK, Louise. Study on Customary International Humanitarian
Law. v. 2. Cambridige: CUP, 2005, Chap. 17, Sec. A, Rule 53.
32 Ibid.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 213

suprimentos essenciais deve ser feita, prioritariamente, aos grupos em maior


estado de vulnerabilidade, a exemplo de crianças – objeto desta investigação –
devendo ser prestados tratamento privilegiado e atenção especial e estes grupos33.
Nesse sentido, há discussões em torno do uso da força – em caráter excepcional
– contra Estados que ajam, lesivamente, contra o direito à essa assistência, em
circunstâncias sob as quais este direito existe, havendo entendimento que Estados
poderão usar de força coercitiva para impor respeito ao DIH, em relação à uma
possível “intervenção de natureza humanitária”, configurando-se como questão
polêmica e não investigada por este estudo34.
Nesse contexto, devido ao “direito à assistência humanitária” ser ins-
trumental na “garantia do direito à vida”, a obrigação – imposta a atores não
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

governamentais para garantir o direito à prestação desta ajuda – apresenta


efeito vinculante para cumprimento de obrigações, associadas à observância
dos Direitos Humanos, usando-se, sempre que possível, mecanismos e ins-
trumentos fornecidos pelo DIDH e pelo DIH para reforçar este cumprimento,
respeitando-se, como já citado, os direitos à humanidade e à inviolabilidade,
vinculados a todos os atores irrestritamente35. Ademais, as obrigações de
atores (estatais ou não) em facilitar a efetivação de prestação assistencial
humanitária está em consonância com o direito de pessoas receberem –
inclusive de atores não estatais, a exemplo de organizações humanitárias
internacionais – suprimentos de emergência, em conformidade com condi-
ções impostas pelo DIH36.

3. A atuação da comunidade internacional na proteção da população


afetada pela guerra na Ucrânia, em especial, crianças

No tocante ao conflito na Ucrânia e, mais especificamente, entre janeiro


e julho de 2022, as Nações Unidas estimam haver, pelo menos, 15.7 milhões
de ucranianos necessitando, urgentemente, de assistência humanitária ime-
diata, a saber: 13 milhões estão precisando de água potável, saneamento e
produtos de higiene; 12.1 milhões, de serviços de saúde; 10.2 milhões, de
comida e nutrição, estimando-se que cerca de 600.000 estão desnutridos,
incluindo-se mulheres grávidas e crianças; e 6.2 milhões, de abrigo e produtos
domésticos de primeira necessidade, devido à destruição de residências37. Até
agosto de 2022, as Nações Unidas já solicitaram mais de US$2,25 bilhões

33 DINSTEIN, Y. Op cit. (nota 16).


34 Ibid.
35 STOFFELS, R.A. Op cit. (nota 2).
36 Ibid.
37 LOFT, Ph.; BRIEN, Ph. Op cit. (nota 1).
214

para impulsionar assistência humanitária, dentro da Ucrânia e em países hos-


pedeiros de refugiados ucranianos, com 85% deste total já arrecadados38.
Apenas o Reino Unido já empenhou 220 milhões de libras esterlinas em ajuda
humanitária para Ucrânia – deste total, 145 milhões destinados a agências da
ONU e da Cruz Vermelha, focando em fornecimento de abrigo e alimentação,
priorizando mulheres e crianças, que estão entre os mais vulneráveis39.
Neste cenário, o Banco Mundial (em conjunto com doadores interna-
cionais) já mobilizou US$6.8 bilhões para Ucrânia, entre fevereiro e julho
de 2022, incluindo um pacote de US$925 milhões em empréstimos e finan-
ciamentos para pagamento de salários de trabalhadores da saúde – que estão
na linha de frente em hospitais ucranianos –, de pensões e para ajuda huma-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


nitária da população vulnerável, incluindo crianças40. O Fundo Monetário
Internacional (FMI) aprovou, também, financiamento emergencial de cerca
de US$1.4 bilhão para atenuar efeitos de guerra em receitas do governo,
disponibilizando, ainda, um valor adicional de US$2.2 bilhões como parte
de acordos já pré-fixados com a Ucrânia antes da eclosão da guerra41. Ade-
mais, os países integrantes do chamado G7 (fórum integrado de sete nações,
entre as mais ricas e industrializadas do mundo, a saber: Alemanha, Canadá,
Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido), já empenharam cerca
de US$29.5 bilhões em apoio geral à Ucrânia e, apenas para assistência huma-
nitária, cerca de US$2.8 bilhões42.

3.1 A assistência financeira da comunidade internacional

Diversos países (especialmente os mais ricos) se comprometeram em


prestar assistência financeira, no tocante à guerra na Ucrânia, da seguinte
forma: Estados Unidos (US$1.8 bilhão para assistência humanitária e US$4
bilhões em apoio orçamentário direto para serviços essenciais, infraestrutura
e pagamento de salários de servidores públicos e professores); Canadá (com-
prometeu C$245 milhões para ajuda humanitária, C$620 milhões em emprés-
timos bilaterais e mais C$1.25 bilhão em empréstimos adicionais por meio do
FMI); União Europeia (€335 bilhões alocados para assistência humanitária e
€330 milhões para programas emergenciais, voltados para o acesso seguro a
suprimentos e aos serviços básicos, a exemplo de alimentos, energia e educa-
ção); França (em ajuda humanitária, um pacote de €100 milhões e mais €300

38 Ibid.
39 UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES. Ukraine Situation: UNHCR Supplementary
Appeal 2022. Italy, Mar. 2022.
40 LOFT, Ph.; BRIEN, Ph. Op cit. (nota 1).
41 Ibid.
42 Ibid.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 215

milhões em empréstimos concedidos à Ucrânia; Alemanha (US$463 milhões


para ajuda humanitária e €1 bilhão em apoio orçamentário); Itália (€25 milhões
empenhados junto à União Europeia e à Cruz Vermelha Internacional, €110
milhões em apoio orçamentário ao governo ucraniano e mais €200 milhões em
empréstimos à Ucrânia); e Japão (US$300 milhões para fornecer assistência
humanitária emergencial e mais US$1.4 bilhão em empréstimos)43.
Nesse âmbito, os valores supracitados, alocados para ajuda humanitária
emergencial, devem ser destinados, prioritariamente, às populações mais vul-
neráveis, a exemplo de crianças e mulheres. Em relação, especificamente, às
crianças atingidas por este conflito, nos primeiros seis meses de guerra, a Unicef
afirma haver cerca de três milhões de crianças deslocadas, internamente, e mais
de 2.2 milhões, refugiadas em países anfitriões, necessitando de assistência
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

humanitária, somando-se um total de duas em cada três crianças, originalmente,


residentes na Ucrânia, afetadas pelo conflito44. Outrossim, em média, mais de
duas crianças são mortas e mais de quaro são feridas, diariamente, em decor-
rência da guerra e, na maioria dos casos, são vítimas de explosivos, em áreas
habitadas por civis, destruindo ou danificando, também, a infraestrutura destas
áreas, incluindo, pelo menos, 256 unidades de saúde e 1 em cada 6 escolas,
apoiadas pela Unicef – UNICEF-supported Safe Schools – no lado oeste do país,
estão incapacitadas de funcionar45. Ainda, de acordo com a Unicef, centenas
de outras escolas, ao redor da Ucrânia, já foram danificadas desde o início da
guerra, negando-se, portanto, a estas crianças, o direito à educação.
Segundo Catherine Russel, diretora executiva da Unicef, a depender da
duração da guerra, milhões de outras crianças vulneráveis, ao redor do mundo,
também poderão ser impactadas pelos efeitos nefastos deste conflito armado,
provocando, assim, uma crise global quanto à proteção destas crianças, que
sofrem, também, as consequências da alta dos preços de alimentos e com-
bustíveis46. Além disso, crianças que fogem de guerras correm sério risco,
dentre outros, de serem separadas das famílias, sofrerem violência, abusos e
serem vítimas de explosão sexual e tráfico humano, estando expostas a even-
tos traumáticos que podem ser irremediáveis, necessitando, urgentemente, de
segurança, estabilidade, serviços de proteção e acompanhamento psicológico,
em especial quando elas se encontram desacompanhadas de seus responsáveis
43 CICV. Crise Humanitária na Ucrânia e em Países Vizinhos. Disponível em: https://www.icrc.org/pt/crise-hu-
manitaria-na-ucrania. Acesso em: 20 ago. 2022.
44 UNICEF. One Hundred Days of War in Ukraine Have Left 5.2 Million Children in Need of Humanitarian
Assistance. Press Release, May 2022. Disponível em: https://www.unicef.org/press-releases/one-hundred-
-days-war-ukraine-have-left-52-million-children-need-humanitarian. Acesso em: 5 jul. 2022.
45 Ibid.
46 UNICEF. Ukraine Response: Six Grave Violations against Children in Times of War. Press Release, Jun.
2022. Disponível em: https://www.unicef.org/stories/children-under-attack-six-grave-violations-against-chil-
dren-times-war. Acesso em: 5 jul. 2022.
216

legais, ou mesmo quando estas famílias estão impossibilitadas de prestar


assistência – psicológica e/ou econômica – aos seus membros menores47.

3.2 Os esforços de organizações internacionais na prestação de


assistência a crianças

Organizações internacionais humanitárias, a exemplo de Unicef e Médi-


cos sem Fronteiras, empenham esforços, desde o início da crise, para que a
prestação de assistência humanitária seja feita, irrestritamente, às crianças e
às suas famílias, onde quer que elas estejam, juntamente com parceiros, em
países vizinhos, que trabalham, diuturnamente, para fornecer esta assistência,
incluindo proteção destas crianças e fornecimento de água, saneamento, saúde,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


nutrição e serviços educacionais48. Neste sentido, já foram distribuídos supri-
mentos médicos emergenciais para cerca de 2.1 milhões de pessoas, em áreas
afetadas pela guerra; água potável para mais de 2.1 milhões de pessoas, cujas
linhas de abastecimento foram danificadas ou, completamente, destruídas; apoio
psicológico e de saúde mental para mais de 610,000 crianças e cuidadores; e
materiais escolares para, aproximadamente, 290,000 crianças, com cerca de
300,000 famílias já registradas para o Programa de Política Social de Assistência
Financeira Direta, criado pela Unicef em parceria com o governo ucraniano49.
Outrossim, em países de acolhimento destes refugiados, a Unicef, em
parceria com instituições humanitárias – locais e internacionais – vem pres-
tando apoio, nacional e localmente, com serviços essenciais de proteção às
crianças afetadas pelo conflito, a saber: 1) treinamento de guardas de fronteia
contra tráfico de seres humanos; 2) expansão de programas de aprendizagem
e integração de crianças refugiadas em escolas; 3) aquisição de vacinas e
suprimentos médicos; e 4) criação de centros de brincadeiras e aprendiza-
gem para crianças, proporcionando, assim, uma sensação de normalidade e
descanso50. Vale salientar, ainda, que o sistema educacional ucraniano está
sob ataque, desde o início da guerra, forçando o governo a suspender o ano
letivo, em 2022, com várias escolas sendo usadas como centros de informação
e abastecimento, abrigo ou, até mesmo, para fins militares, impossibilitando
o retorno às aulas, embora o Conselho de Segurança da ONU já tenha se
pronunciado, por meio da Resolução 69/290, condenado ataques a escolas e
defendendo o direito humano e fundamental à educação51.

47 Ibid.
48 UNICEF. Op cit. (nota 44).
49 Ibid.
50 Ibid.
51 MÉDECINS SANS FRONTIÈRES. MSF Response to War in Ukraine: Responding as Millions of People
flee war in Ukraine. Switzerland, jun. 2022. Disponível em: https://www.msf.org/msf-response-war-ukraine.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 217

Segundo o diretor de Programas de Emergência do Unicef, Manuel Fon-


taine, mais de dois terços da população infantil ucraniana continuam necessi-
tando de assistência humanitária, estimando-se que mais de 50% de famílias
em deslocamento, fugindo da guerra, incluem crianças, acreditando-se, ainda,
que cerca de 90% da população destes refugiados seja formada por mulheres
e crianças52. Neste sentido, a ONG World Vision (Visão Mundial, no Brasil),
com representação no Centro de Coordenação de Crises da ONU, em Genebra,
também tem empenhado esforços para prestação de assistência humanitária
desde o início da guerra. De acordo com a diretora nacional da World Vision
Romênia, Miheala Nabar, a organização tem atuado, por meio de seus escritó-
rios na Romênia, para prestar ajuda a dezenas de milhares de pessoas, erguendo
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

postos de assistência emergencial, tanto na fronteira da Romênia com a Ucrânia


quanto na fronteira com a Moldávia, com o objetivo de acolher refugiados – em
sua maioria, mulheres e crianças – e prestar assistência humanitária devida,
em um primeiro momento, com distribuição de kits para crianças e de primei-
ros socorros psicológicos, tendas, aquecedores, televisores, comida e abrigo,
mobilizando esforços, também, para o transporte de refugiados53.
Segundo Eleanor Monbiot (líder regional da World Vision para o Oriente
Médio e a Europa Ocidental), a principal preocupação da ONG tem sido
crianças e famílias afetadas pelo conflito armado, já que o país tem mais
de 7,5 milhões de crianças, cada vez mais ameaçadas, devido à escalada
da crise, acometidas de estresse mental e emocional, especialmente com a
perda de familiares, fechamento de escolas, além da destruição de casas,
meios de subsistência, de acesso à saneamento básico e de instalações de
saúde54. Importante salientar que, em março de 2022, várias organizações
internacionais humanitárias, incluindo World Vision, MSF, Red Cross e Oxfam,
assinaram uma declaração conjunta, comprometendo-se com a proteção de
crianças afetadas pela guerra, respeitando-se, portanto, o DIH e o DIDH,
especialmente no tangente à facilitação e passagens seguras de assistência
humanitária55. Embora a World Vision não possua presença física na Ucrânia,
houve o estabelecimento de parcerias locais, objetivando oferecer este tipo
de assistência aos ucranianos que continuam no país, com foco em ações
voltadas para saúde, proteção da criança, alimentação e distribuição de itens
de primeira necessidade.

Acesso em: 19 ago. 2022.


52 UNICEF. Op cit. (nota 46).
53 VISÃO MUNDIAL. Visão Mundial Amplia Atuação na Crise na Ucrânia, mar. 2022. Disponível em: https://
visaomundial.org.br/noticias/ong-de-ajuda-humanitaria-amplia-atuacao-na-crise-da-ucrania. Acesso em: 5
jul. 2022.
54 Ibid.
55 Ibid.
218

Outrossim, milhares de crianças, residentes de uma vasta e disfuncional


rede ucraniana de orfanatos, internatos e instituições para deficientes (100 mil
crianças, aproximadamente, representando o maior número em toda Europa,
com cerca de 70 mil menores internados em regiões atingidas pela invasão
russa, segundo a ONG Rede de Direitos das Crianças Ucranianas), foram
quase que completamente esvaziados desde o início da guerra, segundo a
ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados56. A
representante do Grupo de Direitos Humanos DRI (Disability Rights Interna-
tional), Halyna Kurylo, afirma que muitas instituições foram bombardeadas e
esvaziadas, indevidamente, abandonando centenas de crianças, incapacitadas
de se deslocarem, devido à sua deficiência, havendo, inclusive, a fusão de
algumas instituições, no oeste da Ucrânia, deixando-as superlotadas57.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Nesse sentido, outro agravante é o fato destas instituições formarem,
segundo as palavras do fundador e diretor executivo da DRI, Eric Rosenthal,
um imenso sistema desorganizado e com pouco controle, tornando as crianças
ainda mais vulneráveis e, por conseguinte, alvos de organizações criminosas,
havendo relatos de trabalho forçado infantil, exploração sexual, adoções ilegais
e, até mesmo, tráfico de órgãos, desde a anexação da Crimeia pela Rússia em
março de 201458.

4. Considerações finais

O ano de 2022 representa, indubitavelmente, um marco na história das


Relações Internacionais e do Direito Internacional, com a invasão da Ucrânia
pela Rússia, em 24 de fevereiro do 2022 – usando como justificativa a apro-
ximação entre Ucrânia e OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte)
e uma hipotética presença de grupos neonazistas no país, que atentariam,
supostamente, contra a integridade territorial russa –, envolvendo potências
bélicas e causando perplexidade e obnubilação na Comunidade Internacional.
Este conflito armado, que configura a maior crise, em solo europeu, desde
a Segunda Grande Guerra – soma-se a outros conflitos em andamento, ao
redor do mundo, a exemplo de guerras na Síria, no Iêmen, em Myanmar e no
Sudão do Sul. Importante salientar que há consenso internacional em torno
da violação da soberania estatal ucraniana (nação independente, desde 1991,
com a derrocada da União Soviética) e quanto ao risco de Guerra Nuclear,
atingindo níveis globais, já que alianças militares se solidificam e a extensão

56 R7 INTERNACIONAL. Milhares de Crianças de Orfanatos na Ucrânia Vivem Situação Caótica, jun. 2022.
Disponível em: https://noticias.r7.com/internacional/milhares-de-criancas-de-orfanatos-na-ucrania-vivem-si-
tuacao-caotica-27062022. Acesso em: 28 ago 2022.
57 UNHCR. Ukraine Situation: UNHCR Supplementary Appeal 2022. Italy, Mar. 2022.
58 R7 INTERNACIONAL. Op cit. (nota 56).
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 219

do conflito se mostra cada vez mais incerta, colocando em risco, portanto, a


segurança de países vizinhos e da população mundial.
Nesse contexto, embora Rússia e Ucrânia não sejam países signatários
do Estatuto de Roma – responsável por criar o Tribunal Penal Internacional
(TPI) – ambos os países são signatários das Convenções de Genebra, que
estabelecem regras que devem ser seguidas, sob a égide do DIH, em um
cenário de conflitos armados, e exemplo do que ocorre na Ucrânia, consti-
tuindo obrigações legais dos Estados e estabelecendo normas de proteção
de vítimas destes conflitos, em especial da população civil59. Estas obriga-
ções – que tratam de assistência humanitária e DIH – são regidas por dois
princípios básicos: 1) a obrigação de se fazer distinção entre população civil
e combatentes; e 2) a obrigação de assegurar respeito, proteção e tratamento
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

humanitário a todos os indivíduos que não se encontrem envolvidos em hos-


tilidades, especialmente em respeito à IV Convenção de Genebra Relativa à
Proteção da População Civil em Tempos de Guerra60.
Sendo assim, devido ao fato da assistência humanitária está ligada,
diretamente, às normas fundamentais do DIDH, relacionadas à proteção ao
direito à vida, e do DIH, relacionadas ao princípio de inviolabilidade, estas
normas representam os principais direitos e obrigações fundamentais, gerando
efeitos erga omnes para todas as partes envolvidas em conflitos armados61.
Neste sentido, a Comunidade Internacional como um todo – incluindo Estados
(envolvidos ou não em conflitos) e Organizações Humanitárias Internacio-
nais – têm a obrigação legal de adotar medidas necessárias para galvanizar,
também, o Estado invasor (no caso em epígrafe, a Rússia) a cumprir estas
obrigações62. No tocante à guerra na Ucrânia, especificamente, a comunidade
internacional está empenhando esforços para cumprir seu papel na prestação
devida de assistência humanitária – em especial para os grupos mais vul-
neráveis citados no presente estudo – verificando-se que o sistema previsto
pelo DIH, destinado à regulamentação de assistência humanitária, tem seu
funcionamento efetivado de forma razoável.
Importante salientar que a população necessitada de assistência humanitária
é, em grande escala, dependente da vontade política de Estados para usar meios
disponíveis para assegurar implementação e execução de prestação devida, difi-
cultada, por vezes, pela falta de implementação de mecanismos concernentes
à legislação doméstica dos Estados, prejudicando, assim, a celeridade do pro-
cesso assistencial63. Os Estados têm, portanto, não apenas o direito legal, mas

59 SCHWENDIMANN, F. Op cit. (nota 6).


60 STOFFELS, R.A. Op cit. (nota 2).
61 PICTET, J. Op cit. (nota 4).
62 STOFFELS, R.A. Op cit. (nota 2).
63 Ibid.
220

a obrigação legal de tomar as medidas necessárias, quando houver violações à


prestação de assistência humanitária, usando de todos os meios à disposição para
lidar com eventuais violações, cometidas por quaisquer atores, e não apenas com
infrações perpetradas por países vizinhos dos Estados envolvidos em conflitos,
assegurando, segundo o DIH, que todas as partes do conflito exerçam a obrigação
jurídica de assegurar a proteção de civis e bens de caráter civil64.
Neste âmbito, os princípios de “humanidade”, “imparcialidade” e “neu-
tralidade”, que regem o DIH e o DIDH, precisam, também, ser inerentes aos
atores externos ao conflito, a exemplo de Organizações Humanitárias Interna-
cionais (incluindo-se, aqui, ONGs), mostrando-se de extrema relevância para
estabelecer diálogo com autoridades e vítimas, objetivando realizar prestação

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


efetiva de ajuda humanitária, especialmente às populações mais vulneráveis,
a exemplo de mulheres e crianças, assegurando que as partes do conflito cum-
pram suas obrigações, respeitando o interesse legítimo da Comunidade Inter-
nacional pela paz e pela humanidade65. Por conseguinte, a atuação de ONGs
internacionais – a exemplo da Red Cross (que detém mandato internacional e
reconhecido por Convenções de DIH para atuar neste campo) e Médecins Sans
Frontières, que vêm atuando de forma ostensiva, desde o início da Guerra na
Ucrânia, sob princípios de DIH e DIDH – é de fundamental importância para
assegurar a cooperação com Estados, na resolução de questões humanitárias,
seguindo o princípio de solidariedade internacional66.
Vale salientar que todos os atores envolvidos precisam estar cientes das
determinações legais necessárias à implementação e à efetivação dos direi-
tos humanos fundamentais de vítimas – sobretudo grupos mais vulneráveis,
e exemplo de crianças – que precisam ter estes direitos assegurados, dentre
eles: serviços de saúde, educação, acesso à moradia digna, à alimentação, à
água potável e à proteção da vida humana67. Ademais, a necessidade de auto-
rização de prestação humanitária está, claramente, estabelecida no Artigo 23
da IV Convenção de Genebra, e nos Artigos 70 e 71 do Protocolo Adicional
I, estipulando a obrigatoriedade desta obrigação, com disposições legais nas
Resoluções 43/131 e 45/100 da Assembleia Geral das Nações Unidas68.
Nesse sentido, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha alerta para
carência de condições de segurança, para acesso desimpedido de ajuda huma-
nitária imparcial, em especial para os mais vulneráveis, uma vez que há mais
de 6,3 milhões de deslocados internos na Ucrânia, com mais de um terço de

64 Ibid.
65 Ibid.
66 SPIEKER, H. Op cit. (nota 18).
67 MÉDECINS SANS FRONTIÈRES. Op cit. (nota 51).
68 SPIEKER, H. Op cit. (nota 18).
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 221

toda população – cerca de 15,7 milhões de pessoas – precisando de assistência


humanitária, uma vez que áreas residenciais, escolas, redes de infraestrutura
de acesso à água e à energia elétrica, além de unidades de saúde foram – e
continuam a ser – alvos dos intensos bombardeios69.
Adicionalmente, a Unicef considera haver cerca de 3 milhões de crianças,
internamente, deslocadas e mais de 2.2 milhões delas refugiadas em países
vizinhos (apenas nos seis primeiros meses de guerra), estimando-se que dois
terços das crianças residentes na Ucrânia foram, de alguma forma, afetadas
pelo conflito, com cerca de duas crianças sendo mortas, diariamente, e pelo
menos quatro sendo feridas70. Ademais, ao passo que o conflito armado inter-
nacional avança, aumentam os níveis de morte e destruição, especialmente
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

contra a população civil, necessitando-se que as partes do conflito, atores


humanitários imparciais, instituições onusianas e a Comunidade Internacio-
nal permaneçam em constante diálogo, e em processos de negociação, para
atenuar o sofrimento das vítimas e fomentar a paz.

69 CICV. Op cit. (nota 43).


70 UNICEF. Op cit. (nota 44).
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
13. O MEIO AMBIENTE NATURAL SOB
AMEAÇA NO CONFLITO ARMADO NA
UCRÂNIA: potencial e limites da proteção
do Direito Internacional Humanitário
Gabriela Hühne Porto
Ana Paula dos Santos
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

1. Introdução

Os conflitos armados sempre foram uma ameaça ao meio ambiente natu-


ral e, portanto, à sobrevivência e ao bem-estar daqueles que dependem dele
para seu sustento1. Desde 1970, o ambiente natural passou a ser especifica-
mente protegido pelo direito internacional humanitário (DIH)2. O DIH protege
o ambiente natural e visa limitar os danos causados a ele, não só porque o
ambiente sustenta a vida humana, mas também devido ao seu valor intrínseco3.
Desenvolvimentos em diferentes órgãos empregaram esforços para expandir
a proteção do ambiente natural antes, durante e após o conflito armado4.
Em 2020, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) publicou suas
“Diretrizes atualizadas sobre a Proteção do Ambiente Natural em Conflitos

1 As ameaças ambientais podem assumir diversas formas, entre elas: ataques diretos ao meio ambiente, como
o uso do agente laranja, um herbicida e desfolhante, durante a guerra no Vietnã; a liberação de substâncias
perigosas como resultado de ataques a locais industriais, como os que ocorreram em Kosovo em 1999 e no
Líbano em 2006; o uso de certos meios ou métodos de guerra, como armas biológicas, químicas e nucleares; e
a exploração de recursos naturais (diamantes, ouro, cobre, coltan, madeira etc.) para financiar forças armadas e
comprar armas ou para enriquecimento pessoal. HENCKAERTS, Jean-Marie; CONSTANTIN, Dana. Protection
of the Natural Environment. In: Andrew Clapham, Paola Gaeta (eds.), Tom Haeck; Alice Priddy (assistant eds.).
The Oxford Handbook of International Law in Armed Conflict, Oxford University Press, 2014, p. 569.
2 Os esforços significativos para proteger o meio ambiente durante o conflito armado começaram na década
de 1970, principalmente em resposta a eventos ocorridos durante a Guerra do Vietnã; houve ressurgimento
da atenção internacional para as questões que se seguiram aos incêndios e derramamentos deliberados
de petróleo durante a Guerra do Golfo de 1990-1991. No entanto, a estrutura que se desenvolveu nas
últimas quatro décadas contém numerosas lacunas e ambiguidades. BOTHER, M; BRUCH C; DIAMOND,
J; JENSEN D. International law protecting the environment during armed conflict: gaps and opportunities.
International Review of the Red Cross, v. 92, n. 879, set. 2010, p. 591.
3 ICRC. Natural environment: Neglected victim of armed conflict, International Committee of the Red Cross,
5 jul. 2019. Disponível em: https://www.icrc.org/en/document/natural-environment-neglected-victim-armed-
-conflict. Acesso em: 23 abr. 2023.
4 ICRC. Global call for papers: “Protecting the Environment in Armed Conflict: The Legal and Policy Framework
of the Future”, International Review of the Red Cross. Disponível em: https://international-review.icrc.org/
call-for-papers-protection-of-environment. Acesso em: 23 abr. 2023.
224

Armados”, que fornecem um conjunto de regras e recomendações do DIH


que protegem o ambiente natural5. Por sua vez, os Estados e a comunidade
internacional estão tomando medidas para fortalecer a proteção ambiental
em conflitos armados para atender a essas necessidades6, como pode se notar
pela publicação dos “Draft Principles on the Protection of the Environment in
Relation to Armed Conflicts” da Comissão de Direito Internacional da ONU
(2022) após anos de discussão7.
O debate torna-se ainda mais proeminente pelo atual conflito entre
Rússia e Ucrânia, que pôs em evidência o risco de danos ambientais signi-
ficativos8. Embora a guerra ainda esteja em curso, há evidências de danos
graves e generalizados ao meio ambiente com consequências imediatas e a

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


longo prazo à saúde humana, aos ecossistemas e à economia ucraniana9.
O bombardeamento de (i) florestas, ecossistemas terrestres e marinhos,
(ii) instalações industriais, infraestrutura de transporte, casas e de gestão
de resíduos10, (iii) danos à água, saneamento, ao solo, na morfologia da

5 As Diretrizes de 2020 também contêm comentários que podem servir como referência para todas as partes
envolvidas em conflitos armados ou que estejam em posição de influenciá-las. Com o objetivo de proteger
o meio ambiente natural, as Diretrizes exigem a divulgação das regras relevantes do DIH, a adoção de
medidas que aumentem a consciência dos efeitos dos conflitos armados sobre o meio ambiente natural, a
designação de zonas desmilitarizadas para proteger áreas de particular importância ambiental ou fragilidade,
e o intercâmbio de boas práticas para melhorar o comportamento. ICRC, Guidelines on Protection of Natural
Environment in Armed Conflict, 2020. Disponível em: https://www.icrc.org/en/publication/4382-guidelines-
-protection-natural-environment-armed-conflict. Acesso em: 23 abr. 2023.
6 ICRC, Global call for papers: “Protecting the Environment in Armed Conflict: The Legal and Policy Framework
of the Future”. International Review of the Red Cross. Disponível em: https://international-review.icrc.org/
call-for-papers-protection-of-environment. Acesso em: 23 abr. 2023.
7 Os 27 princípios da CDI, juntamente com seus preâmbulos e comentários, preveem a proteção do meio
ambiente em relação aos conflitos armados, estabelecendo as responsabilidades dos Estados e dos atores
não estatais. Além de abordar a lei aplicável durante conflitos armados, os princípios também se aplicam antes
e depois do conflito. Eles abordam a obrigação dos Estados de tomar as medidas legislativas, administrativas
e judiciais necessárias para proteger o meio ambiente, recomendam a designação de zonas protegidas
pré-conflito, e abordam a remoção de restos de guerra em terra ou no mar pós-conflito. INTERNATIONAL
LAW COMMISSION, Draft Principles on the Protection of the Environment in Relation to Armed Conflicts,
2022. Disponível em: https://legal.un.org/ilc/guide/8_7.shtml. Acesso em: 23 abr. 2023.
8 Ver mapa dinâmico da “Ecozodor”, uma plataforma que reúne dados sobre consequências ambientais e
os riscos dos combates na Ucrânia, cujo desenvolvimento e a manutenção do sistema são apoiados pela
Zoï Environment Network (Suíça), pelo Coordenador de Projetos da OSCE na Ucrânia e pelo Programa
das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Disponível em: https://www.ecodozor.org/index.php?lang=en.
Acesso em: 15 nov. 2022.
9 Ver PEREIRA, Paulo; BAŠIĆ, Ferdo; BOGUNOVIC, Igor; BARCELO, Damia. Russian-Ukrainian war impacts
the total environment. Science of the Total Environment, n. 837, p. 1-6, 2022.
10 O artigo apresenta dados empíricos do grau de poluição causada pelas hostilidades na Ucrânia. A Ucrânia
tem uma economia industrializada extensa e diversificada, incluindo fábricas pesadas e instalações nucleares.
Para além dos riscos ambientais decorrentes da contaminação de seu património industrial, os danos nas
infraestruturas comerciais, industriais e energéticas exacerbaram os riscos para a população civil e para o
ambiente em geral. Ibid., p. 1.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 225

paisagem; (iv) grave poluição do ar e emissões de gases de efeito estufa; (v)


ameaça à biodiversidade e à vida selvagem devido ao intenso desmatamento
e destruição de habitat; (vi) e, particularmente, a ameaça de contaminação
química e por radiação causada pela condução de hostilidades próxima a
usinas nucleares de Zaporizhzhia e Chernobyl levantam questionamentos
sobre o Direito Internacional aplicável para proteção do meio ambiente
durante conflitos armados11.
Ao tratar das consequências ambientais do conflito na Ucrânia, frequen-
temente ignoradas, o objetivo do presente capítulo é apontar os mecanismos
legais que visam, principalmente, a prevenção e mitigação dos riscos imedia-
tos que a guerra representa para a saúde humana e para o meio ambiente. No
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

âmbito do Direito Internacional Humanitário, atenta-se para a regulação geral


(2) e especial (3) aplicável à condução de hostilidades e utilização de meios e
métodos de guerra não proibidos. Danos ambientais causados pela extração e
exploração de recursos naturais, pela pegada ambiental (environmental foo-
tprint) das atividades militares na região12 ou por efeitos do deslocamento
humano interno em massa estão além do escopo deste capítulo.
No caso do conflito armado entre Rússia e Ucrânia, aproveita-se de que a
maioria das disposições legais internacionais que protegem o meio ambiente
durante conflitos armados foi projetada para conflitos armados internacionais.
A Federação Russa e a Ucrânia são ambos Estados partes nas quatro Conven-
ções de Genebra (1949) e nos três Protocolos Adicionais a estas Convenções
(1977, 2005)13, das quais muitas normas também são consideradas parte do
Direito Internacional Consuetudinário. Além disso, parte-se do reconhecimento

11 Como todos os elementos do meio ambiente estão interligados, danos em determinados elementos do
meio ambiente podem gerar impactos (in)diretos sobre outros elementos. Em razão das atividades militares
intensas e prolongadas, por exemplo, o desmatamento pode diminuir a capacidade dos ecossistemas de
regular a poluição do ar e a degradação do solo pode dificultar a produção de alimentos. Ver PEREIRA;
BAŠIĆ; BOGUNOVIC; BARCELO. Op cit. (nota 11), p. 2-5.
12 Conflitos armados de alta intensidade requerem e consomem grandes quantidades de combustível, con-
duzindo às emissões maciças de gás carbônico e contribuindo para as alterações climáticas. Em grande
escala, os movimentos dos veículos podem levar a danos físicos generalizados em paisagens e geodiver-
sidade. Conflict and Environment Observatory, How does war damage the environment? CEOBS Blog, Law
and policy, 4 jun. 2020. Disponível em: https://ceobs.org/how-does-war-damage-the-environment/. Acesso
em: 2 nov. 2022.
13 Apesar do atual presidente ter feito críticas em 2019 quanto à efetividade do Protocolo Adicional I, a Rússia
segue sendo parte de todas as Convenções de Genebra de 1949 e seus Protocolos adicionais de 1977.
Nada obstante, mesmo que houvesse denunciado o tratado em uma tentativa de eximir-se das obrigações
de proteção em conflitos armados de caráter internacional, a maioria das previsões do Protocolo Adicional
I compõe o Direito Costumeiro. Ver ICRC Database: Treaties, States Parties and Commentaries. Protocol
Additional to the Geneva Conventions of 12 August 1949, and relating to the Protection of Victims of Inter-
national Armed Conflicts (Protocol I), 8 jun. 1977. Russian Federation: Notification to the Governments of
the States parties to the Geneva Conventions of 12 August 1949 for the Protection of War Victims/Swiss
Federal Department of Foreign Affairs FDFA, 30.10.2019.
226

de que o caráter civil do ambiente natural durante conflitos armados se reflete


na prática estatal, no trabalho da Comissão de Direito Internacional da ONU,
na produção acadêmica e em outras práticas14. Como consequência, a menos
que se tornem objetivos militares15, todas as partes ou elementos do meio
ambiente natural são tratadas como bens civis e protegidas pelas respectivas
regras gerais do DIH16.

2. Proteção geral

Esta sessão apresentará a primeira vertente de proteção proporcionada


pelo DIH para o meio ambiente que consiste em uma série de regras gerais

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


que proporcionam tal proteção durante conflitos armados internacionais ainda
que não tenham sido adotadas especificamente com esse objetivo17. Situam-
-se nesse grupo: regras de proteção de bens civis durante as hostilidades,
incluindo a aplicação dos princípios de distinção (2.1), precaução (2.2) e
proporcionalidade (2.3).
No contexto de condução das hostilidades, as consequências ambientais
do emprego de certos meios e métodos de guerra durante um conflito armado
são múltiplas18. De forma direta, ataques podem levar à contaminação da
água, do solo e da terra e liberar poluentes para a atmosfera19. Restos explo-
sivos de guerra prejudicam a vida selvagem e a biodiversidade e contaminam
o solo e as fontes de água20. De forma indireta, conflitos armados podem levar
a deterioração do serviço de infraestrutura e exploração ilícita e prejudicial
dos recursos naturais para sustentar economias de guerra e pessoais21.

14 ICRC. Op cit. (nota 5), p. 18.


15 Partes do meio ambiente natural podem tornar-se objetivos militares se, por sua natureza, localização, propó-
sito ou uso, fizerem uma contribuição efetiva à ação militar e sua destruição, captura ou neutralização total ou
parcial, nas circunstâncias então prevalecentes, oferecerem uma vantagem militar definitiva. Ibid., p. 18.
16 Segundo o relatório do CICV, ainda que o Artigo 55 do Protocolo Adicional I não designe especificamente
todas as partes do meio ambiente natural como bens civis, esta disposição se enquadra na Parte IV, Seção
I, Capítulo III do Protocolo, intitulada “bens civis”. Ibid., p. 18.
17 HENCKAERTS; CONSTANTIN. Op cit. (nota 1), p. 471-2.
18 ICRC. Op cit. (nota 5), p. 11.
19 Ressalta-se que a utilização de armas explosivas pode causar danos maciços nas infraestruturas civis
e industriais, resultando na contaminação do ar, do solo e dos recursos hídricos. Segundo os autores,
a indústria pesada é responsável por 41% dos estabelecimentos afetados pela guerra. Cottrell, Linsey;
Darbyshire, Eoghan; Obrestad, Kristin H. Explosive Weapons Use and the Environmental Consequences:
Mapping Environmental Incidents in Ukraine. The Journal of Conventional Weapons Destruction, v. 26,
n. 1, p. 43-50, 2022.
20 ICRC. Op cit. (nota 5), p. 11.
21 Ibid., Id.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 227

2.1 Princípio da distinção

De acordo com o princípio da distinção, as partes nos conflitos devem sem-


pre distinguir entre civis e combatentes, bem como entre bens civis e objetivos
militares22. Os ataques só podem ser dirigidos contra combatentes e objetivos
militares, sendo proibido realizar ataques contra civis e bens civis, incluindo o
meio ambiente natural. O princípio da distinção foi codificado nos artigos 4823,
51 e 52 do PA I, além de ser também considerado como parte do direito interna-
cional consuetudinário. A proibição geral de ataques indiscriminados representa
uma implementação do princípio da distinção; cuja proteção é estendida por esta
regra ao ambiente natural24, com destaque aos artigos 51(4) e 51(5) do PA I.
No caso do meio ambiente natural, se uma parte em conflito montar um
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

pequeno acampamento militar em uma área limitada de uma grande floresta,


dirigir um ataque visando toda a floresta sem tentar localizar o acampamento
violaria a regra que proíbe ataques não direcionados a objetivos militares
específicos25. Levar em consideração as circunstâncias também é fundamental,
como, por exemplo, a composição do ambiente natural circundante ao alvo
de ataque e sua vulnerabilidade a certos meios ou métodos de guerra (como
o fogo) e as condições climáticas e meteorológicas26. DIH também proíbe o
emprego de métodos ou meios cujos efeitos possam escapar no tempo ou no
espaço do controle daqueles que os empregam, nas circunstâncias que regem
na época, como a poluição de poços e o uso de agentes biológicos27.
Por exemplo, em 14 de março de 2022, como resultado do bombardeio
pelas tropas russas das instalações de tratamento de água e esgoto, localizado
na vila de Verkhnya Krynytsia, Zaporizhia Oblast, o prédio e o equipamento
22 Para ser considerado um “objetivo militar” nos termos do art. 52, n. 2, do Protocolo Adicional I, deve-se
atestar que (i) contribui efetivamente para a ação militar do inimigo, pela sua natureza, localização, propó-
sito ou uso atual, bem como (ii) que sua destruição, captura ou neutralização irá oferecer ao atacante uma
vantagem militar definitiva, concreta e perceptível. Quartéis militares e meios de transporte militares são
exemplos de objetivos militares. Por sua vez, os bens civis são definidos negativamente e englobam todos
os bens que não são militares. Geralmente, cidades, edifícios, casas, escolas, áreas residenciais, hospitais
e monumentos históricos são considerados bens civis.
23 Art. 48. Regra fundamental: De forma a assegurar o respeito e a proteção da população civil e dos bens
de caráter civil, as Partes no conflito devem sempre fazer a distinção entre população civil e combatentes,
assim como entre bens de caráter civil e objetivos militares, devendo, portanto, dirigir as suas operações
unicamente contra objetivos militares.
24 O uso das seguintes armas, entre outras, tem sido citado na prática como sendo indiscriminado: armas
químicas, biológicas e nucleares; minas terrestres antipessoais; minas; veneno; explosivos lançados de
balões; foguetes V-1 e V-2; bombas de fragmentação; armadilhas; mísseis Scud; foguetes Katyusha; armas
incendiárias; e técnicas de modificação ambiental. ICRC Guidelines on the Protection of the Natural Envi-
ronment in Armed Conflict, 2020, p. 50-1.
25 ICRC. Op cit. (nota 5), p. 50.
26 Ibid., Id.
27 Ibid., Id.
228

da estação de bombeamento de esgoto n. 1 foi destruído, e a linha de energia


foi danificada28. Como consequência, águas residuais de vários bairros da
cidade de Zaporozhye agora entram no rio Dnieper sem qualquer tratamento29,
causando danos ao meio ambiente natural. Para Hulme, atacar o tratamento
de abastecimento de água e instalações de esgoto poderia ser caracterizado
como uma violação do PA I, uma vez que estas instalações não são objeti-
vos militares30.

2.2 Princípio da precaução

Sempre que o uso da força é necessário para o cumprimento da missão,


todas as precauções possíveis devem ser tomadas para confirmar que os alvos

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


são objetivos militares legítimos e selecionar os meios e métodos adequados
para não infligir “danos colaterais excessivos” a civis ou bens civis e não
causar sofrimento desnecessário ou supérfluo31, inclusive ao meio ambiente
natural32. Todas as partes de um conflito internacional têm a obrigação geral
de tomar cuidado constante (constant care) para poupar a população civil,
civis e bens civis, incluindo o ambiente natural. O princípio da precaução
pode ser encontrado no Artigo 57, itens 1 e 2, ambos também parte do direito
internacional consuetudinário.
No que diz respeito à parte atacante, as medidas de precaução devem ser
tomadas antes e durante um ataque. Antes de um ataque, aqueles que planejam
e decidem sobre o ataque devem fazer todo o possível para verificar se seus
alvos são militares e não civis por natureza e para evitar direcionamento errô-
neo ou dano acidental resultante de suas próprias operações (“precauções no
ataque”)33. As partes em conflito também devem selecionar o objetivo militar
mais distante de partes particularmente vulneráveis do ambiente natural, como
aquíferos subterrâneos, habitats naturais sensíveis ou espécies ameaçadas
de extinção34. Segundo as Guidelines do CICV, todas as precauções viáveis
também devem ser tomadas na escolha dos meios e métodos de guerra por
meio da avaliação do impacto ambiental do armamento a ser utilizado e
28 MINISTRY OF ENVIRONMENTAL PROTECTION AND NATURAL RESOURCES OF UKRAINE, 15 mar.
2022, Disponível em: https://mepr.gov.ua/en/news/39034.html. Acesso em: 15 nov. 2022.
29 Ibid.
30 Ver HULME, Karen. Ukraine Symposium – Unprecedented Environmental Risks. Lieber Institute West Point –
Articles of War, 12 abr. 2022. Disponível em: https://lieber.westpoint.edu/unprecedented-environmental-risks/.
Acesso em: 15 nov. 2022.
31 ICRC. Violence and the Use of Force. Geneva: ICRC, 2011, p. 44-45. Ver também MELZER, Nils; KUSTER,
Etienne (Coord.). International humanitarian law: a comprehensive introduction. Geneva: ICRC, 2016, p. 100.
32 ICRC. Op cit. (nota 5), p. 56.
33 Ibid., Id. Ver Art. 57 do Protocolo Adicional I e as Regras 15 a 21 do Direito Costumeiro.
34 ICRC. Op cit. (nota 5), p. 59.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 229

utilizando o armamento alternativo disponível que reduz o risco de danos a


partes específicas do ambiente natural em questão35.
Como parte do princípio da precaução, antes de um ataque, a parte ata-
cante também deve dar avisos antecipados efetivos à população civil que
possa ser afetada pelo ataque. Isso pode ser feito, por exemplo, deixando cair
folhetos de advertência de uma aeronave ou enviando mensagens de aviso para
telefones celulares ou através da internet. No caso da salvaguarda do meio
ambiente natural, a CICV recomenda que, se as circunstâncias permitirem,
o aviso de um ataque a uma rede elétrica, que se qualifica como um objetivo
militar, pode permitir que uma parte contrária instale um gerador temporário
para apoiar algumas instalações chaves de tratamento de esgoto e assim evitar
graves danos à qualidade da água e do solo na área, mesmo que não se espere
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

que tais danos afetem a população civil36.


No conflito da Ucrânia, o alegado ataque russo à fábrica de fertilizantes
Sumy Khimprom, por exemplo, danificou um tanque de gás de 50 toneladas
cheio de amônia, que enviou uma nuvem de contaminantes químicos para o
ar e afetou uma área em um raio de 2,5 km37. No caso, houve um aviso do
prefeito local – representante da parte atacada – para permanecer dentro de
casa e condições favoráveis de vento, que evitou a exposição à amônia que
no ar poderia afetar o trato respiratório38.
Tomar todas as precauções viáveis para proteger o meio ambiente natural
contra os efeitos dos ataques é particularmente pertinente para as partes em
conflitos que controlam o território de zonas de grande importância ecológica
ou de fragilidade particular; isto é, deve ser dada atenção especial à proteção
das partes do meio ambiente natural que são especialmente vulneráveis às
consequências adversas das hostilidades39. Precauções viáveis a este res-
peito poderiam incluir, por exemplo, informar às partes contrárias sobre
a existência e localização de áreas de particular importância ecológica ou
fragilidade, como aquíferos subterrâneos, parques nacionais e habitats de
espécies ameaçadas de extinção40.

2.3 Princípio da proporcionalidade

O princípio da proporcionalidade proíbe ataques que possam causar perda


acidental de vidas civis, ferimentos a civis, danos a bens civis (inclusive o meio

35 Ibid., p. 56.
36 Ibid., p. 58.
37 HULME. Op cit. (nota 30). Ver Ukraine conflict: Russian shelling blamed for corrosive gas leak, BBC News, 21
mar. 2022, Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-europe-60818488. Acesso em: 15 nov. 2022.
38 HULME. Op cit. (nota 30).
39 ICRC. Op cit. (nota 5), p. 61.
40 Ibid., Id.
230

ambiente natural41) ou uma combinação destes, o que seria excessivo em relação


à vantagem militar concreta e direta antecipada42. Uma vez que ataques diretos
contra civis e a bens civis já são proibidos, a avaliação da proporcionalidade é
relevante apenas quando os ataques são direcionados contra alvos legais43.
Durante um ataque, a fim de respeitar o princípio da proporcionalidade,
a parte atacante é obrigada a cancelá-lo ou suspendê-lo se o alvo tiver sido
inicialmente identificado erroneamente como sendo de natureza militar ou se
o dano colateral parecer ser mais significativo do que o inicialmente previsto,
inclusive danos ao meio ambiente natural. O princípio da proporcionalidade
exige que os “danos colaterais” não sejam excessivos ao objetivo militar que
se persegue. Esta análise cabe ao julgamento do comandante da operação
com base nas circunstâncias do caso concreto, especialmente, de identificar

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


o caráter concreto e direto (e não apenas hipotético) da vantagem militar do
ataque. Por exemplo, o peso dado aos vários tipos de danos civis acidentais
pode variar: os danos ao ambiente natural no meio de um deserto desabitado
irão carregar menos peso do que os danos a um reservatório de água natural
utilizado por habitantes de um vilarejo para beber ou irrigar44.
Dada a complexidade e interconexão dos sistemas de serviços essenciais
urbanos, é particularmente importante considerar na avaliação prévia do ataque
não apenas os danos colaterais causados diretamente por ele, mas também
os efeitos reverberantes e continuados que podem causar à população, desde
que sejam previsíveis45. Para a proteção do ambiente natural contra danos
acidentais, é particularmente importante que, ao avaliar a vantagem militar
concreta e direta prevista contra os danos civis acidentais esperados, sejam
levados em conta os efeitos indiretos do ataque sobre a população civil e bens
civis que sejam razoavelmente previsíveis com base em uma avaliação das
informações de todas as fontes disponíveis para a parte no momento rele-
vante46, incluindo dados específicos sobre impactos ambientais.

41 Ibid., p. 53.
42 Em geral, um ataque contra um combatente ou um objetivo militar será legítimo quando houver propor-
cionalidade entre o objetivo que se procura em relação aos eventuais danos a civis e a bens civis dele
resultantes, incluindo ao meio ambiente natural. Ver Art. 51(5)b do Protocolo Adicional I e a Regra 14 do
Direito Costumeiro.
43 MELZER, Nils; KUSTER, Etienne. International humanitarian law: a comprehensive introduction. Geneva:
ICRC, 2016, p. 101.
44 Ibid., Id.
45 ICRC. International Humanitarian Law and The Challenges Of Contemporary Armed Conflicts. Report,
2019, p. 18-19. Segundo o relatório: “Under this view, for instance, the attack must be directed at the rooftop
of the civilian house or at the specific apartment in the multi-storey building, provided it is feasible in the
circumstances, to avert the possibility of civilians losing their homes and livelihoods”. Ver também: ICRC.
Urban services during protracted armed conflict: a call for a better approach to assisting affected people.
Geneva: ICRC, 2015, p. 11.
46 ICRC. Op cit. (nota 5), p. 53.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 231

No planejamento da operação, o comandante deve assumir a decisão em


termos de seu impacto sobre a população civil e bens civis de acordo com as
obrigações legais aplicáveis47. Por exemplo, dependendo de como o ataque
é realizado, pode ser previsível que uma instalação contendo substâncias
químicas possa causar a liberação de tais substâncias no ambiente natural
circundante48. Dependendo das circunstâncias, também pode ser previsível
que um ataque afete o fornecimento de eletricidade, danificando uma usina
elétrica, possa perturbar os sistemas de tratamento de esgoto ou águas residuais
que dependem da eletricidade e, por sua vez, prejudicar a qualidade da água
e do solo ao poluí-los com águas residuais não tratadas49.
No caso do conflito da Ucrânia, em 24 de março de 2022, um míssil
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

de cruzeiro Kalibr atingiu o depósito de petróleo KLO em Kalynivka, uma


cidade a 30 km ao sudoeste do centro de Kyiv50. O ataque detonou tanques
de combustível e provocou um grande incêndio. A princípio, locais de pro-
dução, refino e armazenamento de petróleo são considerados alvo de ganhos
militares em conflitos, devido à contribuição dos combustíveis para o esforço
militar51. Contudo, segundo relatório da CEOBS (Conflict and Environment
Observatory52), o ataque ao depósito de petróleo em Kalunivka é um exem-
plo de como tais incidentes podem ter consequências ambientais imediatas e
reverberantes: a curto prazo, o ataque causou riscos à saúde ambiental através
da poluição do ar e, a longo prazo, contaminou a terra e a água, através do
derramamento de combustível53. Este não foi um caso isolado54. Para a
CEOBS, os danos e perturbações na infraestrutura de combustíveis fósseis
como resultado do conflito criaram riscos ambientais e de saúde pública, e
47 Ibid. O CICV recomenda que os comandantes e suas equipes considerarem o “terreno humano” de forma
holística, pensando não apenas em como o ambiente pode afetar a batalha, mas também em como a
batalha pode afetar a população civil – e em particular a probabilidade de danos civis e danos ao meio
ambiente natural. Ver ICRC. Reducing Civilian Harm in Urban Warfare: A Commander’s Handbook. Geneva:
ICRC, 2021.
48 ICRC. Op cit. (nota 5), p. 54.
49 Ibid., Id.
50 CEOBS/ZOÏ ENVIRONMENT NETWORK. Ukraine conflict environmental briefing. 4. Fossil fueld infrastructure.
nov. 2022. Disponível em: https://ceobs.org/ukraine-conflict-environmental-briefing-fossil-fuel-infrastructure/#2.
Acesso em: 15 nov. 2022.
51 Ibid.
52 A CEOBS é uma instituição de caridade do Reino Unido que trabalha com uma variedade de partes inte-
ressadas para pesquisar e divulgar dados ambientais, desenvolver metodologias para melhorar a coleta e
análise de dados, examinar e contribuir para a evolução do direito e da política destinada a reduzir o dano
ambiental causado por conflitos e atividades militares.
53 CEOBS/ZOÏ ENVIRONMENT NETWORK. Op cit. (nota 50).
54 Segundo a instituição, o incidente faz parte de dezenas de locais de armazenamento, refino e produção
de petróleo que têm sido deliberadamente atacados, incluindo depósitos civis e militares, bem como ins-
talações industriais e usinas elétricas armazenado de petróleo até o momento tanto pela parte da Rússia
como da Ucrânia.
232

agravaram o sofrimento civil na Ucrânia55. Por isso, o órgão defende que


maior peso deve ser dado as consequências previsíveis e duradouras dos
ataques para o meio ambiente e para a saúde humana, que podem ser exa-
cerbadas pela reduzida capacidade de resposta das autoridades56.

3. Proteção especial

Esta sessão apresentará a segunda vertente de proteção proporcionada


pelo DIH para o meio ambiente que consiste em uma série de regras espe-
cíficas que proporcionam tal proteção durante conflitos armados internacio-
nais. O caráter objetivo de legislações específicas traz uma maior segurança
jurídica e amadurecimento no âmbito de proteção de determinado assunto

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


no direito. No caso do meio ambiente natural, não é diferente. Mecanismos
legais específicos são necessários para garantir que, mesmo diante de uma
situação de conflito armado como Rússia e Ucrânia, um objeto indispensável
à sobrevivência humana, como o meio ambiente, seja respeitado.
Primeiro, serão apresentados os principais dispositivos legais que tratam
diretamente da proteção do meio ambiente natural no DIH: a Convenção sobre
a Proibição do Uso Militar ou Hostil de Técnicas de Modificação Ambien-
tal (3.1)57, ratificada tanto pela Rússia58 quanto pela Ucrânia59 em 1978,
enquanto ambas faziam parte da até então União Soviética; e o Protocolo
I Adicional às Convenções de Genebra de 12 de Agosto de 1949 relativo à
Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados Internacionais, de 1977 (3.2)60.
Segundo, será apresentado como as regras sobre bens especialmente prote-
gidos distintos do meio ambiente (3.3) e as regras específicas sobre bens sob
propriedade inimiga (3.4) se relacionam com a proteção do meio ambiente
natural durante conflitos armados61.
55 Ibid.
56 Segundo o relatório, quando ocorrem danos à infraestrutura de combustíveis fósseis, avaliações remotas e
de campo devem ser realizadas o mais rapidamente possível para evitar danos adicionais ao meio ambiente.
Devem ser feitos esforços para avaliar os danos potenciais à saúde humana, ao meio ambiente local e ao clima,
e a capacidade deve ser disponibilizada para resposta precoce e medidas de contenção, quando necessário.
57 CONVENTION ON THE PROHIBITION OF MILITARY OR ANY OTHER HOSTILE USE OF ENVIRONMENTAL
MODIFICATION TECHNIQUES, 10 dec. 1976, 1108 U.N.T.S. 151. Entrada em vigor: 5 out. 1978,
58 UN OFFICE OF DISARMAMENT AFFAIRS. Russia Federation: Ratification of Convention on Environmental
Modification Techniques (ENMOD). Disponível em: https://treaties.unoda.org/a/enmod/russianfederation/
SIG/un. Acesso em: 15 nov. 2022.
59 Ibid. Ukraine: Ratification of Convention on Environmental Modification Techniques (ENMOD). Disponível
em: https://treaties.unoda.org/a/enmod/ukraine/RAT/un. Acesso em: 15 nov. 2022.
60 Dado o caráter internacional do conflito na Ucrânia, as provisões específicas sobre meio ambiente no
Protocolo II Adicional às Convenções de Genebra de 12 de Agosto de 1949 relativo à Proteção das Vítimas
dos Conflitos Armados Não Internacionais não serão o foco do presente capítulo.
61 Cabe mencionar que também há proteções adicionais para o meio ambiente natural sob o direito internacional
humanitário, que também são de caráter geral, como a aplicação da Cláusula Martens, a conclusão de acordos
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 233

3.1 A convenção sobre a proibição do uso militar ou hostil de técnicas


de modificação ambiental

A Convenção sobre a Proibição da Utilização de Técnicas de Modificação


Ambiental para Fins Militares ou Quaisquer Outros Fins Hostis de 1976, também
conhecida como “ENMOD” é um instrumento de desarmamento internacional
especificamente relacionada à proteção do meio ambiente em caso de conflito
armado. Em seu primeiro artigo estabelece como medida não somente que os
Estados partes não se envolvam no uso militar ou qualquer outro uso hostil de
técnica que gere modificação ambiental, como também direciona os Estados parte
a não encorajar, ajudar ou induzir qualquer Estado ou organização internacional a
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

se envolver com tal tipo de prática. Esse direcionamento para coibir a prática de
apoio é essencial na conjuntura atual onde há grupos armados separatistas den-
tro da Ucrânia recebendo treinamento e apoio russo, os chamados The Donetsk
People’s Militia and Luhansk People’s Militia62 (em tradução livre: Milícia do
Povo de Donetsk e Milícia do Povo de Luhansk).
A ENMOD tem na sua integralidade a proibição de técnicas que afetem
a dinâmica, composição ou estrutura da terra63. O que de fato, de acordo com
evidências que estão sendo coletadas desde 2014 e com dados atualizados, tem
relação direta com as práticas tomadas pela Rússia e os grupos armados por
ela apoiados, em minas de carvão64 em um território ocupado denominado de
People’s Republics (em tradução livre: Repúblicas do Povo). Historicamente,
essas minas já tinham resquícios de água subterrânea com radiação devido
por terem sido local de uma explosão nuclear na mina de Yukom em 197965.
Dentre as 220 minas de carvão da região, 38 foram inundadas sob o controle de
ocupação e, por conseguinte, estão causando inundações na superfície, terre-
motos, vazamento de gases tóxicos, dentre outras consequências irreversíveis à
vida e saúde dos habitantes que circundam esse lugar66. A proibição aferida na
ENMOD é bem explícita quanto à proibição de vias técnicas para manipular o

para proporcionar proteção adicional ao meio ambiente natural e a aplicação das regras do direito internacional
humanitário que protegem o meio ambiente natural nos conflitos armados internacionais nos conflitos armados
não internacionais. Ver as regras 16, 17 e 18 nas Guidelines de 2020. ICRC. Op cit. (nota 5), p. 79-85.
62 DHANANI, Seraphin. The Case for Designating the Donetsk and Luhansk People’s Militas as Foreign Terrorists
Organizations. Disponível em: encurtador.com.br/jzJSU. Acesso em: 31 out. 2022.
63 ENMOD, Art. 3.
64 FADEK, Timothy. How war has devastated Ukraine’s coal industry. CNN News, 6 fev. 2022. Disponível em: https://
edition.cnn.com/2022/02/05/europe/gallery/ukraine-coal-miners/index.html. Acesso em: 31 out. 2022.
65 CEOBS. Are abandoned mines flooding in Ukraine’s Donbas region?, 27 abr. 2020. Disponível em: https://
ceobs.org/abandoned-mines-are-flooding-in-ukraines-donbass-region/. Acesso em: 31 out. 2022.
66 KULLAMAA, Kaarel. Is Russia Committing an Environmental War Crime in Donbas? International Centre for
Defence and Security Commentary, 3 mar. 2022. Disponível em: https://icds.ee/en/the-harsh-reality-of-the-rus-
sian-liberation-signs-indicating-that-russia-has-committed-an-environmental-war-crime-in-donbas-since-2018/.
Acesso em: 14 nov. 2022.
234

meio ambiente de forma a causar sequencialmente furacões, maremotos ou até


mesmo mudanças climáticas. Contudo, esta lista não é exaustiva. Em um dado
momento do conflito, quando os relatórios oficiais começarem a ser redigidos,
é provável que possam ser aferidas violações da ENMOD por parte de ações
da Rússia no território Ucraniano.

3.2 Protocolo Adicional I de 1977

O Protocolo Adicional I contém dois artigos específicos para a proteção do


meio ambiente. O primeiro artigo é o 3567 parágrafo 3 da seção I sobre meios
e métodos de guerra, o qual aponta a proibição de métodos e meios os quais
intencionados ou que podem ser esperados que causem um dano severo, de

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


grande escala e de longa duração ao meio ambiente natural. O segundo artigo
de número 55 dividido em dois pontos fornece: i) o conteúdo de que o cuidado
durante o conflito armado deve ser tomado quanto ao meio ambiente, ainda
com as mesmas três provisões, quanto a intensidade, circunferência geográfica
afetada e profundidade do dano, os quais são os mesmos pré-requisitos usados
na ENMOD para qualificar um ato como violador da convenção ou não; e
ii) a previsão de que ataques contra o meio ambiente natural como forma de
retaliação são proibidos. Ainda, o artigo 5568 cita a necessidade de observar
tais consequências diante ao prejuízo à saúde e à sobrevivência da população.
Outrossim, a preocupação do artigo 55 circunda a proteção da população civil
contra os efeitos das hostilidades, enquanto o artigo 35 se mantém na esfera
do meio ambiente enquanto fim em si mesmo.
A apreensão quanto à proibição de ataques contra o meio ambiente em forma
de represália se conecta com a consequência direta de penalizar a humanidade
como um todo, mesmo diante de um conflito armado. Por isso, a preocupação
com os danos causados por ataques que poluem águas, atacam a biodiversidade69,
poluem o ar70, contaminam os rios, incendeiam florestas, são de urgência para
os especialistas ambientais que avaliam a presente situação na Rússia.
Segundo relatório da OSCE publicado em junho de 2022, imagens
de satélite mostram que grandes áreas no leste e sul da Ucrânia estavam
envoltas em queimadas provocadas por explosões; o solo se contaminou com
metais pesados e outras substâncias potencialmente perigosas e venenosas
vazando de mísseis, equipamentos militares e munições usadas; enquanto
67 Art. 35 do Protocolo Adicional I.
68 Ibid., art. 55.
69 MOUTERDE, Perrine. Ukraine War encroaches on natural reserves and has deadly effect on biodiversity. Le Monde,
7 jul. 2022. Disponível em: https://www.lemonde.fr/en/environment/article/2022/07/07/war-in-ukraine-encroaches-na-
tural-reserves-and-causes-deadly-effects-on-biodiversity_5989325_114.html. Acesso em: 14 nov. 2022.
70 PEARCE, Fred. Collateral Damage: The Environmental Cost of the Ukraine War. Yale Environment 360, 29
ago. 2022. Disponível em: https://e360.yale.edu/features/ukraine-russia-war-environmental-impact. Acesso
em: 15 nov. 2022.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 235

águas subterrâneas encontravam-se poluídas pelo combustível derramado71.


Outro tipo de efeito reverberante de ataques são as faltas de energia elétrica
em diversas partes do país como consequência de ataques à infraestrutura
crítica. Segundo a Anistia Internacional, após ataques russos terem dani-
ficado seriamente cerca de 40% das instalações energéticas nacionais, as
autoridades ucranianas anunciaram que haveria quedas de energia em todo
o país em 20 de outubro de 202272.

3.3 Bens especialmente protegidos distintos do meio ambiente natural

Soma-se a proteção pelos princípios gerais da condução das hostilidades


e das regras de proteção específica ao meio ambiente natural, as regras que
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

protegem o meio ambiente por se tratar de bens especialmente protegidos


(distintos do meio ambiente). Tratam-se das regras que protegem bens indis-
pensáveis para a sobrevivência da população civil, a obras e instalações que
contenham forças perigosas e proibições relativas a bens culturais.
É proibido atacar, destruir, remover ou tornar inúteis bens que sejam
indispensáveis para a sobrevivência da população civil (Artigo 54, PAI),
inclusive quando tais bens fazem parte do ambiente natural73. Esta regra
proporciona proteção direta e indireta ao meio ambiente natural, que pode
sofrer degradação significativa quando são visados bens indispensáveis à
sobrevivência da população civil74. De forma direta, no caso de um ataque
a um reservatório de água potável, embora os elementos artificiais da insta-
lação não façam parte do ambiente natural, a água potável em si é uma parte
do ambiente natural e também é protegida como bens indispensáveis para
a sobrevivência da população civil75. De forma indireta, uma instalação de
irrigação feita pelo homem protegida por esta regra não faz parte do ambiente
natural, mas seu funcionamento pode ser um linchamento que sustenta a flora
71 OSCE. Report On Violations of International Humanitarian and Human Rights Law, War Crimes and Crimes
Against Humanity Committed in Ukraine (1 April – 25 June 2022). Office For Democratic Institutions And
Human Rights. Odihr.Gal/36/22/Corr.1 14 jul. 2022, p. 89.
72 AMNESTY INTERNATIONAL. Ukraine: Russian attacks on critical energy infrastructure amount to war
crimes, 20 out. 2022, Disponível em: https://www.amnesty.org/en/latest/news/2022/10/ukraine-russian-at-
tacks-on-critical-energy-infrastructure-amount-to-war-crimes/. Acesso em: 15 nov. 2022.
73 As Guidelines do CICV ressaltam que há duas exceções à proibição de atacar, destruir, remover ou tornar
bens inúteis indispensáveis para a sobrevivência da população civil previstas no PAI: a primeira exceção
baseia-se na consideração de que estes bens podem ser atacados, destruídos, removidos ou tornados
inúteis se forem qualificados como objetivos militares, mas apenas desde que não se possa esperar que
isso cause fome entre a população civil ou force seu movimento; a segunda exceção consiste na chamada
“scorched earth policy” aplicada em defesa do território nacional contra a invasão, que é permitida sob
condições específicas. ICRC. Op cit. (nota 5), p. 63-65.
74 Ibid., p. 63.
75 Ibid., p. 64.
236

e a fauna de uma área de terra, de outra forma árida, que é indispensável para
a sobrevivência da população civil76.
No caso do conflito Rússia e Ucrânia, destaque deve ser dado também
à proteção especial de obras e instalações que contenham forças perigosas,
ou seja, diques, represas, centrais nucleares de energia elétrica, e outras ins-
talações localizadas nas proximidades, a fim de evitar a liberação de forças
perigosas em caso de ataque e consequentes perdas graves entre a popula-
ção civil, conforme Artigo 56 do PAI77. Para os Estados Parte no Protocolo
Adicional I, tais bens não podem ser objeto de ataque, mesmo quando esses
bens são objetivos militares, se tal ataque puder causar a liberação de forças
perigosas e consequentes perdas graves entre a população civil, sujeito às
exceções especificadas no Artigo 56(2) do Protocolo78.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


À primeira vista, a proibição do artigo 56(1) poderia parecer uma opera-
cionalização específica da regra da proporcionalidade, mas é diferente79. Se
o limite expresso no artigo for atingido, o objeto não será presumivelmente
um alvo legítimo e será proibido atacá-lo, independentemente da vantagem
militar compensatória e independentemente de terem sido tomadas todas as
precauções viáveis para minimizar a perda civil (princípio da proporcionalida-
de)80. Isto é, para afastar a proibição do artigo 56, a força atacante deve ter a
certeza de que o material radioativo não será liberado ou que, se tal liberação
ocorresse, a população civil não sofreria perdas graves81.
Nesse caso, tomar especial cuidado ao atacar obras e instalações que
contenham forças perigosas envolverá o reconhecimento do perigo especial
inerente a qualquer ataque desse tipo, conduzindo uma avaliação sob os prin-
cípios da proporcionalidade e das precauções sensíveis ao risco unicamente
elevado de perdas graves envolvidas em tais ataques e tomando todas as medi-
das de precaução necessárias82. Segundo as Guidelines, tais medidas devem
assegurar que as avaliações das precauções “viáveis” considerem o risco de
consequências humanitárias particularmente agudas e possam envolver, por
exemplo, exigir que um nível superior ou elevado de comando tome a decisão
de lançar um ataque desse tipo83.
76 Ibid, Id.
77 Ibid., p. 66.
78 Ibid., Id.
79 Ver DANNENBAUM, Tom. The Attack at the Zaporizhzhia Nuclear Plant and Additional Protocol I. Lieber
Institute West Point – Articles of War, 13 mar. 2022. Disponível em: https://lieber.westpoint.edu/attack-za-
porizhzhia-nuclear-plant/. Acesso em: 15 nov. 2022.
80 Ibid.
81 DANNENBAUM. Op cit. (nota 80). Para o autor, dado o impacto duradouro de um vazamento radioativo, tal
análise é mais facilmente concebível no caso de barragens e diques.
82 ICRC. Op cit. (nota 5), p. 67.
83 Ibid., Id.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 237

Ressalta-se que o reconhecimento desta ligação entre o ambiente natural


e as graves perdas entre a população civil é de vital importância, por exemplo:
a liberação de energia nuclear envolve a contaminação da terra ao redor e
do abastecimento de água com partículas radioativas e a dispersão de sujeira
e fuligem que afetam a atmosfera e o clima; o que provavelmente teria um
impacto severo sobre a agricultura e a produção de alimentos, potencialmente
colocando as comunidades em risco de passar fome84.
A invasão das tropas russas na cidade de Energodar e à usina nuclear de
Zaporizhzhya (maior usina de energia nuclear da Europa e a nona maior do
mundo), de 4 de março de 2022, pode ser analisada no âmbito do artigo 56
do PA I85. Apesar dos danos em edifícios no local – incluindo um centro de
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

treinamento e um laboratório incendiado, análises preliminares após o ata-


que sugeriram que o risco de uma liberação radioativa era “baixo” durante o
combate86. Segundo Dannenbaum, se for estabelecido que as forças russas
se envolveram no bombardeio da usina de Zaporizhzhia ou de objetivos em
sua vizinhança de forma a arriscar um vazamento radioativo, é provável que
esta operação tenha violado o artigo 5687. A Federação Russa contestou a
alegação de que sua operação implicava em tal risco88.
Além dos bens indispensáveis à sobrevivência da população civil e dos
bens que contenham forças perigosas, o DIH protege especialmente os bens
culturais. Esse também é um tópico de interesse no atual conflito entre Rússia
e Ucrânia. Com base no artigo 53 do Protocolo Adicional I de 1977, os bens de
grande importância para o patrimônio cultural de cada povo, inclusive aque-
les que fazem parte do ambiente natural, não devem ser objeto de ataque ou
utilizados para fins que possam expô-lo à destruição ou dano89, a menos que
seja imperativamente exigido por necessidade militar90. Segundo as normas de
DIH, qualquer forma de roubo, pilhagem ou apropriação indevida e qualquer
ato de vandalismo dirigido contra tais bens é igualmente proibido.
84 Ibid., p. 68.
85 GILL, Victoria. Ukraine nuclear plant: Russia in control after shelling, BBC News, 4 mar. 2022. Dispoível em:
https://www.bbc.com/news/world-europe-60613438. Ver HULME. Op cit. (nota 30).
86 Ainda que seja menos claro se os envolvidos na operação poderiam ter tido certeza disso na ocasião.
87 DANNENBAUM. Op cit. (nota 80). O autor argumenta que é crucial que o artigo 56(1) imponha uma proibição
ex ante. A ausência de um vazamento radioativo ou perdas civis graves não exclui a ilegalidade do ataque,
se perpetrado apesar do risco de tal resultado. A virtude de codificar uma regra deste tipo é que ela antecipa
as ambiguidades inerentes às avaliações de mitigação de perdas viáveis e proporcionalidade, substituindo
estes princípios ambíguos por uma simples presunção: não visar estações geradoras de energia nuclear
ou objetivos militares em suas proximidades.
88 No entanto, não forneceu informações indicando que se tal risco fosse assumido, ele teria sido permitido
de acordo com a exceção prevista no artigo 56(2)(c). Ibid.
89 ICRC. Op cit. (nota 5), p. 71.
90 Ibid., p. 69.
238

Apesar dos esforços na proteção de bens culturais móveis e imóveis pelo


governo ucraniano91, a UNESCO verificou danos em 213 bens culturais (92
locais religiosos, 16 museus, 77 edifícios de interesse histórico e/ou artístico, 18
monumentos e 10 bibliotecas) de 24 de fevereiro a 7 de novembro de 202292.
Caberia, então, avaliar se em tais casos há concomitância do tratamento de
proteção der bens culturais e o meio ambiente natural, direta ou indiretamente.
Ainda que menos frequente, é possível que um objeto que faz parte do meio
ambiente natural se qualifique como propriedade cultural, como uma árvore
de particular importância, sítios arqueológicos, uma caverna contendo pinturas
pré-históricas, ou uma estátua esculpida na rocha, entre outros93.

3.4 Bens civis sob propriedade inimiga

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


A destruição de qualquer parte do ambiente natural é proibida, a menos
que seja exigida por necessidade militar imperativa94, com base no artigo
23(g) do Regulamento da Haia de 1907 e no artigo 53 da Quarta Convenção
de Genebra de 1949, no caso de território ocupado95. A destruição de bens,
incluindo bens que fazem parte do ambiente natural, pode assumir várias for-
mas, tais como incendiá-los ou danificá-los seriamente96. Como componentes
do ambiente natural que podem ser colocados em risco particular em tempos
de conflito armado, vale a pena destacar que esta regra protege os recursos
naturais da destruição ou apreensão97.
Outra regra de DIH aplicável a proteção de bens que fazem parte do meio
ambiente natural é a da proibição da pilhagem98. A proibição de pilhagem se
aplica às partes do ambiente natural que constituem propriedade, como gado
91 JACKSON, Dick. Ukraine Symposium – Cultural Property Protection in the Ukraine Conflict, Lieber Institute
West Point – Articles of War, 14 abr. 2022. Disponível em: https://lieber.westpoint.edu/cultural-property-pro-
tection-ukraine-conflict/. Acesso em: 15 nov. 2022.
92 UNESCO. Damaged cultural sites in Ukraine verified by UNESCO. 7 jun. 2023. Disponível em: https://www.
unesco.org/en/articles/damaged-cultural-sites-ukraine-verified-unesco?hub=66116. Acesso em: 12 jun.
2023.Ver também: KIRCHMAIR, Lando; SCHÄFFER, Cornelia. The War of Aggression Against Ukraine,
Cultural Property and Genocide: Why it is Imperative to Take a Close Look at Cultural Property, 21 mar.
2022. EJIL: Talk! Blog of the European Journal of International Law. Disponível em: https://www.ejiltalk.org/
the-war-of-aggression-against-ukraine-cultural-property-and-genocide-why-it-is-imperative-to-take-a-close-
-look-at-cultural-property/. Acesso em: 15 nov. 2022. Para a autora, é imperativo que qualquer destruição
ou dano de bens culturais seja monitorado e documentado de perto no conflito na Ucrânia.
93 ICRC. Op cit. (nota 5), p. 69.
94 Ibid., p. 73: Para os fins desta regra, um exemplo de necessidade militar suficiente para a destruição de partes
do ambiente natural poderia ser que os únicos locais seguros para um acampamento militar estão no topo
de colinas florestadas, e para montar o acampamento uma seção de árvores deve ser desmatada.
95 Ibid., p. 72.
96 Ibid., Id.
97 Ibid., p. 73.
98 Ibid., p. 74.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 239

ou parcelas de terra99. Caber apontar que a extração sistemática dos estoques


de petróleo e a exploração ilegal de recursos naturais como ouro e diamantes
já foram reconhecidas como pilhagem por tribunais internacionais e nacio-
nais100. Além de proporcionar proteção direta ao meio ambiente natural dos
próprios recursos minerais, há efeitos indiretos nos casos em que a extração
de recursos naturais também causa danos à flora e fauna vizinhas101.
Por fim, cumpre apontar as regras sobre propriedade em territórios ocupa-
dos, que é a situação atual de certas partes da Ucrânia. Segundo previsão dos
Artigos 46, 52, 53 e 55 do Regulamento da Haia de 1907 e artigos 53 e 55 da
Quarta Convenção de Genebra de 1949, em território ocupado: bens públicos
móveis que pode ser utilizado para operações militares podem ser confiscado;
bens públicos imóveis devem ser administrados de acordo com a regra do usu-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

fruto; e a propriedade privada deve ser respeitada e não pode ser confiscada,
exceto quando a destruição ou apreensão de tal propriedade for exigida por
necessidade militar imperativa. As Guidelines do CICV interpretam bens móveis,
imóveis e propriedade privada incluindo os bens que fazem parte do ambiente
natural102. Segundo relatório da OSCE publicado em junho de 2022, a situação
ambiental em alguns territórios ocupados é preocupante devido à poluição do ar,
do solo e da água e à deterioração das situações sanitárias e epidemiológicas103.
A presença de forças russas na Central Nuclear de Zaporizhzhia (ZNPP),
atestada pela Agência Internacional de Energia Atômica, eleva as preocu-
pações com a segurança nuclear da região e seus potenciais efeitos ao meio
ambiente natural104. Para a Anistia Internacional, as forças russas não só estão
colocando em perigo as da usina e seus arredores, mas também aumentando
o risco de uma catástrofe nuclear em toda a região105.

4. Conclusão

O quadro jurídico internacional existente contém diversas disposições


que, direta ou indiretamente, protegem o meio ambiente e governam o uso
99 Ibid., Id.
100 Ibid., p. 75.
101 Ibid., Id.
102 Ibid., p. 76.
103 OSCE. Report On Violations Of International Humanitarian And Human Rights Law, War Crimes And Crimes
Against Humanity Committed In Ukraine (1 April – 25 June 2022). Office For Democratic Institutions And
Human Rights. Odihr.Gal/36/22/Corr.1 14 jul. 2022, p. 89.
104 Ver INTERNATIONAL ATOMIC ENERGY AGENCY. Nuclear safety, Security and Safeguards in Ukraine,
2nd Summary Report by the Director General (28 April – 5 September). Disponível em: https://www.iaea.
org/sites/default/files/22/09/ukraine-2ndsummaryreport_sept2022.pdf. Acesso em: 15 nov. 2022.
105 AMNESTY INTERNATIONAL, Ukraine: Russia’s military activities at nuclear plant risk safety in region, 6 set.
2022, Disponível em: https://www.amnesty.org/en/latest/news/2022/09/ukraine-russias-military-activities-at-
-nuclear-plant-risk-safety-in-region/. Acesso em: 15 nov. 2022.
240

dos recursos naturais durante conflitos armados. Na prática, no entanto, estas


disposições podem apresentar lacunas na prevenção, monitoramento e repa-
ração dos danos106 e nem sempre são efetivamente implementadas107, como é
observado no atual conflito entre Rússia e Ucrânia.
A fim de lidar com as aparentes lacunas na proteção do meio ambiente
durante conflitos armados, cabe enfatizar que a estrutura legal existente inclui
não apenas normas de Direito Internacional Humanitário, mas também de
Direito Internacional Penal, Direito Internacional Ambiental (DIA) e Direito
Internacional dos Direitos Humanos (DIDH), que podem ser encontradas em
tratados, soft law, direito consuetudinário ou em decisões de cortes de tribunais
internacionais108. Partindo do pressuposto de que já não é mais predominante,
na visão de acadêmicos e experts, a noção de que o DIH afastaria a aplicação

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


de normas de DIA ou DIDH durante conflitos armados, argumenta-se que seus
instrumentos poderiam colaborar para o esforço conjunto da proteção do meio
ambiente durante conflitos armados109.
Normas de direito internacional ambiental (DIA) continuam a ser aplicadas
durante os conflitos armados e poderiam ser usadas como base para proteção
durante conflitos armados internacionais e não internacionais, a menos que se
estipule especificamente o contrário110-111. Normas, padrões, abordagens e meca-
nismos encontrados no DIA e no DIDH poderiam ser usados na interpretação de
normas de direito internacional humanitário, bem como poderiam ajudar a escla-
recer e ampliar os princípios básicos do DIH para prevenir, abordar, ou avaliar
a responsabilidade por danos ambientais ocorridos durante o conflito armado112.
106 Com relação aos recursos preventivos não há regras ou mecanismos estabelecidos para designar áreas de
grande importância ecológica como áreas especialmente protegidas; tampouco há regras ou mecanismos
para a recuperação pós-conflito das áreas afetadas, para monitoramento efetivo e permanente, para a
cooperação internacional realizar tais empreendimentos, ou para assistência e indenização das vítimas.
HENCKAERTS; CONSTANTIN. Op cit. (nota 1), p. 490-491.
107 United Nations Environment Programme. Protecting the Environment During Armed Conflict: An Inventory
and Analysis of International Law. Nairobi: UNEP, 2009, p. 4. Ver também: STEPPUTAT, Finn; MUNIVE, Jairo.
Protecting The Environment In Times Of Armed Conflict. DIIS Policy Brief, 26 out. 2022. Disponível em: https://
www.diis.dk/en/research/protecting-the-environment-in-times-of-armed-conflict. Acesso em: 13 jun. 2023.
108 Ibid., p. 4.
109 Ver DIENELT, Anne. Armed Conflicts and the Environment. Complementing the Laws of Armed Conflict with
Human Rights Law and International Environmental Law. Cham Springer, 2022.
110 UNEP. Op cit. (nota 106), p. 5.
111 Para Wyatt, o exemplo de danos ambientais em tempo de guerra, especialmente desde sua criminalização
pelo Estatuto de Roma, reforça a importância de analisar o crescente número de normas de direito inter-
nacional intersetorial a partir de uma pluralidade de perspectivas e avaliá-las no contexto dos objetivos,
princípios, abordagens e normas de cada ramo relevante; ainda que seja uma tarefa difícil e trabalhosa.
WYATT, Julian. Law-making at the intersection of international environmental, humanitarian and criminal
law: the issue of damage to the environment in international armed conflict. International Review of the Red
Cross, v. 92, n. 879, p. 593-646, 2010, p. 536.
112 Ver BOTHE, Michael et al. International law protecting the environment during armed conflict: gaps and
opportunities. International Review of the Red Cross, v. 92, n. 879, p. 569-592, 2010.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 241

Na falta de um mecanismo internacional permanente para monitorar infrações


legais e tratar de pedidos de indenização por danos ambientais sofridos durante
conflitos armados internacionais113, órgão judiciais e quase-judiciais de direitos
humanos poderiam assumir o papel suplementar de monitoramento e respon-
sabilização estatal por danos ambientais causados por conflitos armados114.
Embora a guerra ainda esteja em curso, há evidências de danos imi-
nentes e graves ao meio ambiente e consequências imediatas e mediatas à
saúde humana, aos ecossistemas e à economia ucraniana. Com intuito de
reforçar a proteção do meio ambiente natural neste conflito, cabe reiterar, por
fim, as recomendações do CICV para as partes beligerantes em 2019: evitar
situar tropas ou material militar em ecossistemas frágeis ou áreas protegidas,
tais como parques nacionais; cartografar áreas de importância ecológica ou
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

fragilidade e não conduzir operações militares nessas áreas; concordar em


designar tais áreas como zonas desmilitarizadas, nas quais não pode haver
ação militar e das quais tanto os combatentes como o material militar estão
proibidos; relevar a questão da degradação ambiental em conflitos armados
e reforçar o cumprimento do DIH nas agendas das organizações cívicas,
religiosas, sociais e políticas, chamando a atenção dos meios de comunicação
social locais para estas questões115.

113 UNEP. Op cit. (nota 106), p. 5.


114 Segundo o UNEP, uma variedade de missões de averiguação dos direitos humanos, incluindo que liderado pelo
Juiz Goldstone na Faixa de Gaza em 2009, investigaram danos ambientais que contribuíram para as violações
dos direitos humanos. Esta abordagem poderia fornecer uma solução provisória para tratar de danos ambientais
até que a direito humanitário e sua aplicação às instituições sejam fortalecidas. Ibid., Id.
115 ICRC. Natural environment: Neglected victim of armed conflict. ICRC, 5 jun. 2019. Disponível em: https://www.
icrc.org/en/document/natural-environment-neglected-victim-armed-conflict. Acesso em: 13 jun. 2023.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

PARTE III
DEBATES SOB A ÓTICA DO DIREITO
INTERNACIONAL PENAL
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
14. PUTIN PERANTE O TRIBUNAL
PENAL INTERNACIONAL?
Allan Jones Andreza Silva
Thiago Fernando Alves de Araújo Lima

1. Introdução

Durante as duas Grandes Guerras do início do século XX, o mundo


assistiu vários povos serem destroçados pela beligerância, o exercício de
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

práticas genocidas e várias outras atrocidades que abalaram profundamente a


consciência da humanidade. Tratou-se de uma experiência tão traumatizante
que fez os Estados soberanos passo a passo modificarem o tradicional modelo
westfaliano, essencialmente baseado no reconhecimento da soberania absoluta,
exprimida no princípio de não intervenção em seus assuntos internos. Surgiu
como novo paradigma a proteção aos indivíduos enquanto sujeitos de direitos
e deveres próprios no plano internacional.
Destaque-se a criação de uma international bill of rights, enraizada na
Carta da Organização das Nações Unidas, de 1945, na Declaração Universal
dos Direitos Humanos, adotada por sua Assembleia Geral em 1948 e, enfim,
nos dois Pactos Internacionais de Direitos Humanos, de 1966, que hoje fazem
parte de um complexo sistema universal de proteção aos direitos humanos,
por sua vez, complementado uma série de sistemas (sub)regionais1.
Com a superação da exclusividade do trato das relações interestatais
pelo direito internacional pelo reconhecimento do indivíduo enquanto sujeito
da tutela jurídica internacional, acabou-se dando margem também para o
reconhecimento de sua capacidade processual e de sua responsabilização
perante as práticas consideradas atentatórias à ordem e aos novos interesses
internacionais, o que notadamente permitiu reconhecer o genocídio, crimes
contra a humanidade, crimes de guerra e de agressão como delitos gravosos
e atentatórios aos direitos humanos.
A responsabilização individual perante esses delitos tem como preceden-
tes os Tribunais Militares Internacionais de Nuremberg e o do Extremo Oriente,
os quais possibilitaram, entre os anos 1945 e 1948, o sancionamento daque-
les considerados como principais criminosos da Segunda Guerra Mundial2.
Neste sentido, “a responsabilidade penal individual na ordem internacional foi

1 Ver para detalhes: BUERGENTHAL, Thomas. The Evolving International Human Rights System. The American
Journal of International Law, v. 100, n. 4, p. 783-807, 2006.
2 WERLE, Gerhard. Principles of International Criminal Law. 2. ed. The Hague: TMC Asser Press, 2009. p. 7.
246

inserida no Estatuto do Tribunal de Nuremberg, em seu art. 6. Foi a primeira


vez, na história, que se castigava os indivíduos por atos realizados como atos
de seu Estado”3, algo que fora reproduzido somente após o fim da “Guerra
Fria”, pelo estabelecimento dos tribunais ad hoc da Ex-Iugoslávia (1993) e
da Ruanda (1994).
Desta maneira, estavam constituídos os pressupostos fundamentais para
a criação de um direito penal internacional, haja vista4: a) o avanço do
direito internacional contemporâneo face à internacionalização dos Direitos
Humanos; b) a superação do domínio reservado aos Estados, passando ao
reconhecimento dos indivíduos; c) o reconhecimento da necessidade de pre-
venção às graves violações contra os direitos humanos e o direito internacional

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


humanitário; d) a instalação dos tribunais de Nuremberg, Tóquio, Ex-Iugos-
lávia e Ruanda, que constituíram importantes precedentes; e) a consagração
do princípio da complementariedade entre as jurisdições interna e externa,
como mecanismo de sincronização da proteção jurídica.
É nessa esteira que, considerando a emergência de um mecanismo regu-
latório internacional, sobretudo de prevenção e repressão aos crimes mais
graves contra a paz e o bem-estar da humanidade, fora aprovado o Estatuto
de Roma (ER), em 1998. Assim foi criado o Tribunal Penal Internacional
(TPI), com sede em Haia, nos Países-Baixos, o qual veio a tomar corpo prá-
tico após a ratificação do ER pelo 60º Estado em julho de 2002. Segundo o
preâmbulo os, atualmente, 123 Estados-membros5 estão “decididos a pôr
fim à impunidade dos autores desses crimes”. No entanto, em virtude da
oposição de um número significante de Estados, entre eles, China, Rússia e
os Estados Unidos como membros permanentes do Conselho de Segurança
da ONU, o TPI ainda está longe de possuir jurisdição universal. Portanto,
em que pese toda essa evolução do sistema internacional de proteção à paz
e aos direitos humanos por intermédio da criação de um Tribunal Penal
Internacional permanente, este ainda não exerce um efeito desestimulador
suficientemente adequado para prevenir e, se necessário, reprimir o cometi-
mento de crimes internacional.
A anexação da Crimeia, território ucraniano, pela Rússia em 2014 foi
somente um entre vários exemplos dados pelo Presidente Putin de que tentaria
alavancar seus objetivos políticos a qualquer custo, sem menor respeito aos
princípios fundamentais do direito internacional. Assim, na noite do dia 23
para o dia 24 de fevereiro de 2022, sob a alegação de que a Ucrânia estaria

3 SOUSA, Fernanda Nepomuceno. Tribunais de Guerra. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 16.
4 MAIA, Mariele. Tribunal Penal Internacional. Aspectos Constitucionais, jurisdição e princípio de complemen-
tariedade. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 45-59.
5 ROME STATUTE OF THE INTERNATIONAL CRIMINAL COURT, 7 jul. 1998, 2187 UNTS 3.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 247

permitindo o genocídio de ucranianos de origem russa que viviam nas regiões


separatistas de Donetsk e Luhansk e que este país precisaria ser “desnazifi-
cada”, o governo russo distribuiu militares na fronteira ucraniana, bloqueou os
principais acessos à região e lançou uma ofensiva militar, a qual denominou
de “operação militar especial”, que ainda se encontra em curso e não tem
previsão para um cessar fogo definitivo6.
Diante desse cenário, o conflito militar desponta como um dos maio-
res ocorridos na Europa desde a Segunda Guerra Mundial e tem gerado a
maior crise de segurança no continente desde a Guerra Fria7. Pior ainda,
logo sugiram diversos relatos sobre atrocidades possivelmente qualificadas
como crimes internacionais, em particular, crimes de guerra e contra huma-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

nidade, assim provocando a pergunta: se e até que ponto tais crimes podem
ser perseguidos pelo TPI? Como é sabido, este já enviou no início de março
de 2022 investigadores para a Ucrânia, que, sem ser Estado-parte, aceitou
a sua jurisdição ad hoc8. Tendo em vista o fato de que a Câmara de Ques-
tões Preliminares (Pre-Trial Chamber) II do TPI acabou de emitir, em 17 de
março de 20239, uma ordem de prisão contra o Presidente russo Vladimir
Vladimirovitch Putin (assim como a sua Comissária para os Direitos de
Criança, Maria Alekseyevna Lvova-Belova), a presente análise foca na sua
possível responsabilização perante o Tribunal na Haia pelo cometimento dos
crimes internacionais tipificados pelo ER. Para tanto, o trabalho em pauta
foi estruturado em duas partes: a primeira, de natureza suscinta e didática,
introduz aos crimes que se encontram sob a jurisdição do TPI e traz uma
visão panorâmica sobre o seu provável cometimento no contexto da Guerra
Russo-Ucraniana; já a segunda parte, examina as condições jurisdicionais
para responsabilizar o presidente russo perante o TPI, iluminando alguns
obstáculos processuais e práticos-políticos.

6 Veja para uma análise mais profunda da ilegalidade dessas operações militares o capítulo de LOBO DE SOUZA,
Ielbo M. A Legalidade da “Operação Militar Especial” da Rússia na Ucrânia, na presente publicação.
7 A Missão de Monitoramento de Direitos Humanos na Ucrânia constatou pelos menos 416 vítimas de deten-
ções arbitrárias e desaparecimentos forçados em áreas controladas pelas forças russas, não obstante
também haver relatos de casos de tortura e maus-tratos pelas forças ucranianas contra militares russos, con-
soante dados informados em: NAÇÕES UNIDAS. ONU alerta sobre abusos sofridos por prisioneiros de guerra
ucranianos e russos. ONU News, 9 set. 2022. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2022/09/1800591.
Acesso em: 25 set. 2022.
8 Maiores informações disponíveis sob: https://www.icc-cpi.int/ukraine. Acesso em: 15 abr. 2023.
9 As ordens de prisão (ainda) não estão publicamente acessíveis. Por enquanto, o TPI somente afirmou a
sua existência e os principais motivos para a sua emissão. Cf. ICC, Situation in Ukraine. ICC judges issue
arrest warrants against Vladimir Vladimirovich Putin and Maria Alekseyevna Lvova-Belova, Press Release,
17 mar. 2023. Disponível em: https://www.icc-cpi.int/news/situation-ukraine-icc-judges-issue-arrest-warrant-
s-against-vladimir-vladimirovich-putin-and. Acesso em: 29 abr. 2023.
248

2. Crimes sob jurisdição do TPI

O TPI, sob o aspecto material, detém a competência para julgar os cri-


mes mais graves que afetam a comunidade internacional: genocídio, crimes
contra a humanidade, crimes de guerra e até o de agressão. Para compreender
a extensão da competência dos delitos perseguidos pelo TPI e seu possível
cometimento na guerra da Rússia contra a Ucrânia é necessário tecer algumas
considerações básicas sobre sua caracterização à luz do ER e outras normas
de caráter internacional.
Além disso, é preciso deixar claro, inicialmente, que, embora a presente
análise discuta essencialmente a possível responsabilização do Presidente, o
TPI deve analisar quaisquer denúncias de crimes supostamente cometidos no

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


contexto deste conflito internacional. Neste sentido, a Corte na Haia não pode
restringir seus esforços a condutas criminosos exclusivamente atribuíveis a
nacionais de Rússia, mas precisa se comportar como tribunal independente e
imparcial e, se houver informações suficientes, até apurar o suposto cometi-
mento do crime de genocídio contra a minoria russa.

2.1 Crime de genocídio

Os estatutos dos primeiros tribunais penais internacionais, de Nuremberg


e Tóquio, ainda desconheciam o genocídio como tipo penal próprio, que foi
conceituado, a partir do ano de 1955, pelo advogado judeu Raphael Lemkin
(1900-1959), ao tentar encontrar palavras para descrever as políticas nazistas
de assassinato sistemático, incluindo o plano de erradicar os judeus europeus10.
Ao considerar o genocídio como uma das grandes preocupações mundiais,
sobretudo diante dos horrores observados no holocausto judeu na Alemanha,
a Assembleia Geral das Nações Unidades, através da Resolução 260-A(III),
elaborou a Convenção sobre a Prevenção e Repressão do Crime de Genocí-
dio11, em dezembro de 1948, a partir da qual compreende-se o genocídio, nos
termos do seu art. 2º, como práticas realizadas com a intenção de destruir, no
todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como: a)
assassinato de membros do grupo; b) causar lesão grave à integridade física
ou mental de membros do grupo; c) submissão intencional do grupo a condi-
ções de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial; d) a
adoção de medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e
e) transferência forçada de menores de um grupo para outro.
10 Veja para maiores informações a Enciclopédia do Holocausto, publicada pelo United States Holocaust
Memorial Museum. Disponível em: http://www.ushmm.org/wlc/ptbr/a2z.php. Acesso em: 25 abr. 2023.
11 Aprovado pelo Congresso Nacional através do Decreto Legislativo n. 2, 11 abr. 1951 e promulgado através
do Decreto nº 30.822, 6 maio 1952. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Atos/decretos/1952/
D30822.html. Acesso em: 20 set. 2022.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 249

Ao longo do tempo, firmou-se no seio da comunidade internacional,


sobretudo após posicionamento expresso na Opinião Consultiva de 28 de maio
de 1951 sobre as reservas à Convenção para Prevenção e Repressão ao Crime
de Genocídio pela Corte Internacional de Justiça (CIJ), que tal prática é um
“crime de direito internacional”12. Logo, a proibição do genocídio passou a
ser considerada norma de jus cogens13 e seu repúdio e a responsabilização dos
autores como obrigação erga omnes14. O ER, através do seu art. 6º, reproduz
em boa parte o conteúdo tipológico da Convenção, mas aprimorando a técnica
legislativa quanto às condutas especificadas.
A suposta existência de crime de genocídio na região de Donbass foi susci-
tada pelo governo russo para justificar a intervenção bélica na Ucrânia. Poucos
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

dias depois, esta circunstância foi tomada pelo governo ucraniano para requerer
um posicionamento da CIJ face a falta de devida comprovação do delito. Em
medida cautelar exarada em 16 de março de 202215, a CIJ considerou que não
havia elementos comprobatórios suficientes sobre a prática de genocídio no ter-
ritório ucraniano e, mesmo não havendo a configuração de tal crime, entendeu
que havendo risco real e iminente estavam estabelecidos os pressupostos para a
emissão de decisão cautelar que pugnou pela suspensão imediata das operações
militares russas no território ucraniano e que os Estados-partes deveriam abster-se
de quaisquer ações que pudessem agravar ou estender as controvérsias.
Notadamente, tal decisão não se prendeu a incidência do genocídio, mas
se prestou a considerar a desnecessidade do uso da força como forma de tutela
de direitos humanos e manutenção da paz, o que notadamente não foi cum-
prido pelo governo russo que não reconheceu a decisão16 e deu continuidade
a intervenção militar. Enquanto isso, a CIJ assim já deixou bastante claro que
a Rússia, como Estado, pode ser responsabilizado, entre outras violações do
direito internacional, pelo uso ilegal de força militar contra a Ucrânia.
12 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O Tribunal Penal Internacional. Integração ao direito brasileiro e sua
importância para a justiça penal internacional. Revista de Informação Legislativa, v. 41 n. 164, p. 157-178,
out./dez. 2004.
13 ICJ. Armed Activities on the Territory of the Congo (República Democrática do Congo v. Ruanda), parágrafo
62; Case concerning the Application of the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of
Genocide (Bósnia e Herzegovina v. Iugoslávia – Sérvia e Montenegro), Julgamento, 2007, § 161.
14 ICJ. Barcelona Traction Case (Bélgica v. Espanha), Julgamento, 1970, § 34; ICJ. Case concerning the
Application of the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide (Bósnia e
Herzegovina v. Iugoslávia – Sérvia e Montenegro), Decisão sobre Exceções Preliminares, 1996, § 31.
15 ICJ. Ukraine v. Russia: Allegations of Genocide under the Convention on the Prevention and Punishment
of the Crime of Genocide. 16 mar. 2022. Disponível em: https://www.legal-tools.org/doc/pw9myi/. Acesso
em: 29 abr. 2023.
16 LIMA, Lucas Carlos Os Poderes da Corte Internacional de Justiça na Emissão de Medidas Cautelares no
caso de alegações de genocídio entre Ucrânia e Federação Russa, na presente publicação. Veja também o
mesmo autor: As medidas cautelares da Corte Internacional de Justiça no caso entre Ucrânia e Federação
Russa. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 19, n. 1, p. 32-38, 2022.
250

2.2 Crime de agressão

Dado o fato de que a intervenção militar pela Rússia representa uma fla-
grante violação das regras que compõem o sistema de segurança coletiva da
ONU e que ela foi ordenada pelo Presidente Putin, coloca-se a pergunta sobre
a sua responsabilidade pessoal, perante o TPI, por crime de agressão.
A incorporação do crime de agressão ao ER, por intermédio da edição
do art. 8º bis, ocorreu a partir do “compromisso” alcançado na conferência
de Kampala, em 2010, mas que só ganharia oficialização após 1 de janeiro
de 2017 e mediante a aceitação de pelo menos trinta Estados-partes, algo
que ocorreu apenas em julho de 2018.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Nessa esteira, com a incorporação do art. 8º bis ao Estatuto, o crime de
agressão passou a ser entendido como planejamento, preparação, iniciação
ou execução por pessoa em posição de exercer efetivamente o controle
ou dirigir a ação política ou militar de um Estado, de um ato de agressão
que, por seu caráter, gravidade e escala, constitui uma violação mani-
festa da Carta das Nações Unidas (CNU). Uma análise do parágrafo 2 do
artigo 8º bis, permite a compreensão de que foi adotada uma conceituação
genérica sobre ato de agressão (decorrente da expressão “qualquer outra
forma incompatível com a CNU”, que permite abarcar por exemplo o uso
da força bélica frustrando os mecanismos para solução pacífica de con-
trovérsias adotados pela ONU) aliada a um rol exemplificativo contido na
Resolução 3314 (XXIX) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 14
de dezembro de 1974.
Assim, ao considerar a invasão militar na Ucrânia, observa-se que o
uso da força pela Federação Russa, iniciada em 24 de fevereiro de 2022,
constitui uma flagrante violação do art. 2º, 4 da Carta da ONU, sobretudo
por não se balizar numa autorização do Conselho de Segurança (a ser exte-
riorizada via resolução consoante termos dos arts. 39 e 42), nem tão pouco
é fundada numa legítima defesa conforme termos do art. 51, pois não houve
um ataque armado da Ucrânia contra a Rússia. Por esses motivos e outros,
a situação acabou sendo certificada como ato de agressão pela Assembleia
Geral das Nações Unidas quando da aprovação da Resolução A/ES-11/1,
de 02 de março de 202217. Outra resolução, adotada pela Assembleia Geral
em 14 de novembro de 2022, exige da Rússia reparar os danos causados
pela agressão18. Como não há dúvidas quanto o fato de que foi o Presidente
russo quem ordenou as forças armadas atacar a Ucrânia, coloca-se também

17 UN GENERAL ASSEMBLY, A/RES/ES-11/1, 18 mar. 2022.


18 UN GENERAL ASSEMBLY, A/RES/ES-11/6, 15 nov. 2022.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 251

a questão da sua responsabilidade pessoal e possível acusação perante o TPI


por cometimento deste crime específico.

2.3 Crimes contra a humanidade

Entende-se que os crimes contra a humanidade têm sua origem no mas-


sacre de armênios pelos turcos durante a Primeira Guerra Mundial19. Sua
evolução como tipo penal internacional próprio iniciou-se com adoção dos
estatutos dos tribunais de Nuremberg e Tóquio. O ER, por sua vez, trata
sobre a questão no art. 7º, § 1º, considerando-os como um ato cometido no
quadro de ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população
civil, havendo conhecimento que este ataque implique na denegação da sua
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

dignidade20, abarcando assim práticas como: homicídio, extermínio, tortura,


escravidão sexual, dentre outros21. Via de regra, a comprovação desse “ele-
mento contextual” exige operações jurídicas de considerável complexidade,
sem falar da necessidade da sua devida comprovação.
Basta aqui mencionar o fato de que a Comissão Internacional Indepen-
dente de Inquérito sobre a Ucrânia, em relatório apresentado à Assembleia
Geral da ONU em outubro de 2022, informou que, ao menos, já foram regis-
trados 6.306 mortos e 9.602 feridos em toda a Ucrânia, muitas das quais
decorrentes de execuções sumárias, tortura, maus-tratos e violência sexual e
de gênero, além de confinamento ilegal22 e detenção em condições desuma-
nas, deportações forçadas, dentre outros. Há, portanto, fortes indícios pelo
cometimento de crimes contra a humanidade no conflito em análise.
19 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O Tribunal Penal Internacional. Integração ao direito brasileiro e sua importância
para a justiça penal internacional. Revista de Informação Legislativa, Brasília a. 41 n. 164 out./dez. 2004.
20 O Art. 7º, § 1º do ER, considera Crimes contra Humanidade: “qualquer um dos atos seguintes, quando
cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo
conhecimento desse ataque: a) Homicídio; b) Extermínio; c) Escravidão; d) Deportação ou transferência
forçada de uma população; e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das
normas fundamentais de direito internacional; f) Tortura; g) Agressão sexual, escravatura sexual, prostituição
forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de
gravidade comparável; h) Perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos
políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, tal como definido no parágrafo 3º,
ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional,
relacionados com qualquer ato referido neste parágrafo ou com qualquer crime da competência do Tribu-
nal; i) Desaparecimento forçado de pessoas; j) Crime de apartheid; k) Outros atos desumanos de caráter
semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física
ou a saúde física ou mental”.
21 Nesta senda, o § 2º, do art. 7º, trata de conceituar as categorias-chaves explicitadas no parágrafo anterior,
como: ataque contra uma população civil, extermínio, escravidão e outros.
22 Segundo a Comissão Internacional Independente de Inquérito sobre a Ucrânia: “In Yahidne village, Chernihiv
region, Russian armed forces soldiers confined 365 civilians, including 70 children, for 28 days”. UNITED
NATIONS. Report of the Independent International Commission of Inquiry on Ukraine. 2022. Disponível
em: https://www.ohchr.org/sites/default/files/2022-10/A-77-533-AUV-EN.pdf. Acesso em: 15 nov. 2022.
252

2.4 Crimes de guerra

Até o advento dos tribunais de Nuremberg e Tóquio era responsabilidade


exclusiva das partes de um conflito armado internacional garantir a punição
daqueles que tinham cometidos graves violações do direito internacional
humanitário, antigamente chamado o direito da guerra. Hoje, a construção
tipológica dos crimes de guerra tem principalmente por base sérias violações
às quatro Convenções de Genebra de 194923, voltadas a proteger, durante a
guerra: a) os feridos e os enfermos das forças armadas em campanha; b) os
feridos, os enfermos e os náufragos das forças armadas no mar; c) os prisio-
neiros de guerra; e d) as população civil nos territórios ocupados.
Enquanto os Estados-partes das Convenções de Genebra continuam a ter a

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


responsabilidade de perseguir e punir as suas violações mais graves, o parágrafo
2º do art. 8º do ER24 caracteriza como crimes de guerra os atos dirigidos contra
pessoas ou bens protegidos, e que violem os termos convencionados através
de práticas de homicídio, exercício de tortura ou outras práticas cruéis, além
da destruição de bens em larga escala, dentre outras ações. Por conseguinte,
a tipologia delitiva adotada pelo Estatuto diferencia: os crimes de guerra pro-
priamente tidos, entendidos como conflitos armados de caráter internacional,
abordados à luz da alínea “b”, § 2º do 8º do Estatuto; e os conflitos de índole
não internacional, ou seja, aqueles que se desenvolvem no âmbito de um pró-
prio Estado que, consoante alíneas “c”, “d”, “e” “f”, § 2º do 8º do Estatuto,
constituem violações graves cometidas contra pessoas que não participem
diretamente nas hostilidades, incluindo civis e os membros das forças armadas
que tenham deposto armas e os que tenham ficado impedidos de continuar a
combater devido a doença, lesões, prisão ou qualquer outro motivo.
A supracitada Comissão Internacional Independente de Inquérito sobre
a Ucrânia, criada em março pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU,
após visitar 27 cidades das áreas de Kyiv, Chernihiv, Kharkiv e Sumy, cons-
tatou a existência de crimes de guerra, dentre estes a realização de ataques
23 MUÑOZ, Arturo Albertos; BURÓN, Javier Nistal. La judicialización de la guerra. La Corte Penal Internacional.
Diario La Ley, n. 10056, p. 1-13, abr. 2022, p. 6.
24 Segundo o art. 8º, § 2º do ER, “entende-se por ‘crimes de guerra’: a) As violações graves às Convenções de
Genebra, de 12 de Agosto de 1949, a saber, qualquer um dos seguintes atos, dirigidos contra pessoas ou
bens protegidos nos termos da Convenção de Genebra que for pertinente: i) Homicídio doloso; ii) Tortura ou
outros tratamentos desumanos, incluindo as experiências biológicas; iii) O ato de causar intencionalmente
grande sofrimento ou ofensas graves à integridade física ou à saúde; iv) Destruição ou a apropriação de
bens em larga escala, quando não justificadas por quaisquer necessidades militares e executadas de forma
ilegal e arbitrária; v) O ato de compelir um prisioneiro de guerra ou outra pessoa sob proteção a servir nas
forças armadas de uma potência inimiga; vi) Privação intencional de um prisioneiro de guerra ou de outra
pessoa sob proteção do seu direito a um julgamento justo e imparcial; vii) Deportação ou transferência ilegais,
ou a privação ilegal de liberdade; viii) Tomada de reféns; b) Outras violações graves das leis e costumes
aplicáveis em conflitos armados internacionais no âmbito do direito internacional”.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 253

indiscriminados russos com o uso de explosivos em áreas povoadas da Ucrâ-


nia, práticas de maus-tratos, torturas e mortes de civis inclusive com sinais de
execuções, destruição da infraestrutura, incluindo escolas e hospitais, práticas
de violência sexual por soldados russos, recurso a táticas proibidas25, dentre
outros. Por outro lado, a Comissão também constatou incidentes de maus-
-tratos contra soldados russos por forças ucranianas26. Há, portanto, fortes
indícios pelo cometimento de crimes de guerra na Ucrânia.
Como vimos, o TPI já reagiu a esta situação pela emissão de duas ordens
de prisão, sendo uma delas, contra o Presidente Putin. Pelo que se sabe até o
presente momento, o principal motivo é sua possível responsabilidade pela
deportação e transferência de crianças ucranianas dos territórios ocupados
pelas forças russas para a sua pátria. Se for verdade, seriam crimes de acordo
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

com o Art. 8 (2) (a) (vii) e o Art. 8 (2) (b) (viii)27. Por enquanto, o inquérito
do TPI ainda está em andamento. É preciso observar, no entanto, que é bem
provável que os investigadores encontrarão outro material probatório que
motivarão o Procurador do TPI ampliar as suas acusações.

3. Condições processuais para a persecução penal de Putin

Como foi demonstrado, há uma série de relatos que, embora ainda não
se saiba se as informações recolhidas prestam como material probatório, ao
menos fundamentam a suspeita de que vários crimes internacionais foram
cometidos no contexto da Guerra Russo-Ucraniana para qual a persecução
penal o TPI é materialmente competente. Neste momento, o Tribunal de Haia
já está formalmente exercendo a sua jurisdição, de acordo com o art. 13 do
ER, o “trigger mechanism”, que prevê três possibilidades, entre elas, uma
denúncia por um Estado-parte do TPI. A este respeito, em 1 de março de
2022, o Procurador do TPI recebeu a remessa do Estado-parte da República da
Lituânia, o que foi posteriormente acompanhado por mais outros 42 Estados,
notificando sobre a situação da Ucrânia, o que originou uma investigação
instalada a partir de 2 de março de 202228.
Todavia, ao poder exercer a sua jurisdição sobre determinado suspeito,
a corte precisa verificar também a sua competência territorial, temporal e
pessoal. No caso do Presidente russo, Vladimir Putin, houve – e ainda há –
certas dúvidas em relação a essas condições essências, razão pela merecem
uma breve análise.
25 NEVES, M. S. Op cit., p. 94.
26 NAÇÕES UNIDAS. Comissão de Inquérito Internacional diz que houve crimes de guerra na Ucrânia, ONU
News, 28 set. 2022. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2022/09/1802141. Acesso em: 25 abr. 2023.
27 ICC, Situation in Ukraine. Op cit. (nota 27).
28 ICC. Situation in Ukraine. Op cit. (nota 27).
254

No que se refere à competência territorial, é preciso considerar, primei-


ramente, que nem a Ucrânia nem a Rússia são Estados signatários do ER. No
entanto, determina o seu art. 12 (3): “Se a aceitação da competência do Tribunal
por um Estado que não seja Parte no presente Estatuto for necessária nos ter-
mos do parágrafo 2º, pode o referido Estado, mediante declaração depositada
junto ao Secretário, consentir em que o Tribunal exerça a sua competência em
relação ao crime em questão”. Ocorre que a Ucrânia declarou até duas vezes
oficialmente a sua aceitação ad hoc da jurisdição do TPI. A primeira restringiu
temporalmente a jurisdição a ocorrências no solo ucraniano entre o dia 21 de
novembro de 2013 a 22 de fevereiro de 201429. Todavia, após a anexação da
Crimeia pela Rússia, uma segunda declaração foi emitida pelo governo ucra-
niano, dispensando qualquer restrição temporal30. Portanto, pode-se asseverar a

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


competência territorial e temporal do TPI para crimes suspostamente cometidos
antes e após aquelas “operações militares especiais”, iniciados pela Rússia em
fevereiro de 2022 no território da Ucrânia. Frisa-se que o fato de Rússia já ter
incorporado parte do território ucraniano, baseando-se em suas leis domésticas,
é irrelevante para o TPI, por se tratar de anexações ilegais segundo o direito
internacional, feitas após as referidas declarações de 2013 e 2014.
Há, porém, um obstáculo formal quanto a persecução do crime de agres-
são. Decorre do supracitado “compromisso de Kampala”, de que o TPI somente
pode exercer sua jurisdição sobre esse crime ou com a aprovação do Conse-
lho de Segurança, ou com o consentimento do Estado da nacionalidade dos
investigados – no presente caso, da Rússia31. Evidentemente, enquanto o Putin
está no poder, não uma chance real para superar esse obstáculo. Não obstante,
não se deve excluir essa possibilidade de forma categórica. Seja nos próximos
meses ou até num futuro até mais distante, seu regime pode cair. Assim, se
abriria uma chance histórica de julgar pela primeira vez na história da huma-
nidade um chefe de Estado pelo crime de agressão. Aliás, já está em discussão
entre acadêmicos, ativistas e políticos, como alternativa a essa possibilidade, a
criação de um tribunal penal especial somente para julgar Putin e outros altos
integrantes do seu regime pelo crime de agressão32.
Quanto à competência pessoal do TPI referente aos outros três crimes
internacionais, importa ressalvar, primeiramente, que, no caso sob análise,
29 ICC. Declaration of the Verkhovna Rada of Ukraine to the International Criminal Court on the recognition
of the jurisdiction of the International Criminal Court by Ukraine over crimes against humanity, committed
by senior officials of the state. 2014. Disponível em: https://www.legal-tools.org/doc/1a65fa/. Acesso em:
1 nov. 2022.
30 ICC. Situation in Ukraine. Op. cit. (nota 27).
31 Compare CARDOSO, Elio. Tribunal Penal Internacional. Conceitos, Realidades e Implicações para o Brasil.
Brasília: FUNAG, 2012, p. 54-57.
32 SMYRNOV, Andrii. We Need a Special Tribunal to Put Putin and His Regime on Trial. TIMES, 23 set. 2022.
Disponível em: https://time.com/6216040/putin-war-crimes-tribunals/. Acesso em: 12 nov. 2022.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 255

a sua jurisdição não é limitada a indivíduos que possuam nacionalidade


ucraniana, mas abrange todas as pessoas que se encontram no seu território
internacionalmente reconhecido, independentemente da sua nacionalidade.
Portanto, inclui também soldados russos e os chamados de foreign fighters,
que ou integram as forças armadas de uma das partes de conflito ou tratam-se
de grupos armados organizados. Só que não podem ser menores de dezoito
anos de idade (art. 26 do ER). No entanto, pensando na responsabilização do
Presidente Putin, a situação é mais complexa, principalmente, por duas razões:
preciso observar: 1. Sua imunidade como chefe de Estado; 2. o fato de que
ele não esteve, nos últimos anos, no território da Ucrânia, menos algumas
visitas nas regiões anexadas.
O primeiro desse obstáculo é tratado pelo art. 27 do ER que declara como
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

irrelevante a qualidade oficial de pessoas acusadas de cometimento de um


dos quatro crimes internacionais sob a jurisdição, deixando claro que “2. As
imunidades ou normas de procedimento especiais [...] nos termos do direito
interno ou do direito internacional” não impedem a Corte a cumprir o seu
papel. Nem os Estados-partes do TPI, obrigados a cooperar com ele, podem
citar a imunidade de Putin com obstáculo processual para a execução da
ordem de prisão, com o próprio tribunal já explicou no caso do ex-Presidente
do Sudão, al Bashir que se tornou o primeiro chefe de Estado procurado por
tal mandado internacional33.
Quanto ao segundo obstáculo, estabelece o art. 28 do ER a famosa “Res-
ponsabilidade dos Chefes Militares e Outros Superiores”. Em palavras sim-
ples, consiste no reconhecimento de que chefes de Estado ou de governo e
outros representantes do alto escalão raramente “sujam as suas mãos” por,
em muitos casos, não participarem diretamente das atrocidades que se confi-
guram como crimes internacionais. Logo, se não for possível comprovar que
esses crimes foram ordenados por essas pessoas, podem mesmo assim serem
responsabilizados por sua omissão, ou seja, “pelo fato de não exercer um con-
trole apropriado sobre essas forças”. Os detalhes não precisam ser iluminados
aqui, mas ficou demonstrado que, a princípio, a competência pessoal do TPI
existe também em relação ao Putin. Ele nem pode invocar sua imunidade
como Presidente da Rússia, nem afastar o exercício da jurisdição pelo TPI
com base no argumento que não esteve na Ucrânia quando os crimes foram
cometidos. De fato, o que se sabe até o presente momento sobre a ordem de
prisão contra ele decorre da hipótese da sua responsabilidade superior – o que
seria uma novidade perante o TPI –, ao lado da sua responsabilidade direta
como (co)autor de crime de guerra.
33 ICC, Judgment in the Jordan Referral re Al-Bashir Appeal, Appeals Chamber, 6 maio 2019. Disponível em:
https://www.icc-cpi.int/sites/default/files/CourtRecords/CR2019_02856.PDF. Acesso em: 29 abr. 2023.
256

No entanto, embora o TPI esteja autorizado para abrir formalmente um


inquérito citando o nome de Putin como possível réu dos três crimes acima
iluminados, precisa respeitar o art. 63 do ER que estipula: “1. O acusado
estará presente durante o julgamento”34. Portanto, a Corte agora precisa
esperar por sua captura e entrega, o que, como já observado, parece ser
improvável, por enquanto.
Todavia, há também o art. 29 do ER que prevê a imprescritibilidade dos
crimes sob competência do Tribunal. Quer dizer: a justiça criminal interna-
cional possui um fôlego longo. Às vezes, passam anos, em que os acusados
conseguem escapar do seu julgamento, até ocorrem mudanças na conjuntura
política ou nos ambientes em que se sentem seguros, que, de repente, per-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


mitem acabar com essa tranquilidade. Putin sabe disso e, por isso, é também
possível vislumbrar que tal cenário certamente não é um incentivo para ele
desistir da anexação da Ucrânia.
Em resumo, somente uma coisa é certa: ele dificilmente poderá ser acu-
sado pelo crime de agressão perante o TPI.

4. Considerações finais

Muito embora observe-se a instauração de processos investigativos leva-


dos a cabo pelo Procurador do TPI e outros órgãos das Nações Unidas que
dão indicativos do cometimento de crimes de guerra, contra a humanidade e
até mesmo de agressão por representantes da Federação Russa na Ucrânia,
a responsabilização do Presidente Vladmir Putin por tais delitos esbarra em
barreiras de natureza jurídico-políticas.
Há de se considerar que muito embora haja a competência do TPI para
analisar e julgar tais delitos sobretudo diante da aceitação da atuação jurisdi-
cional desta Corte pela Ucrânia, o não reconhecimento desta atividade juris-
dicional pelo governo russo é o indicativo de que este irá causar ainda mais
resistência a responsabilização do presidente pelos crimes em pauta.
Em reação imediata à notícia da emissão de ordem de prisão contra Putin,
o ex-Presidente russo, Dimitri Medvedev alertou que a sua execução igualaria
uma “declaração de guerra”, provocando uma resposta militar35. Todavia, a
recente prisão de um espião russo que, em 16 de junho de 2022, tentou se
34 A este respeito, observa-se que “gran parte de los sujetos potencialmente responsables se encontrarían en
territorio ruso, por lo que primero sería necesario sustraerlos de dicho territorio. Esta necesidad obedece
al hecho de que la Corte no puede llevar a cabo juicios ‘in absentia’”. MUÑOZ, A. A.; BURÓN, J. N. Op cit.
(nota 23), p. 11.
35 CHAVACHINI, Rafael. Dimitri Medvedev ameaça Tribunal Penal Internacional com míssil hipersônico. Revista
Sociedade Militar, 20 mar. 2023. Disponível em: https://www.sociedademilitar.com.br/2023/03/dmitri-medve-
dev-ameaca-tribunal-penal-internacional-com-missil-hipersonico-cvc.html. Acesso em: 29 abr. 2023.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 257

passar por brasileiro para se infiltrar como estagiário no TPI, releva que essa
guerra já foi iniciada há algum tempo36. Faz parte dela a tentativa contínua
de deslegitimar o tribunal como projeto “neoimperial” dos países ocidentais,
algo que outros regimes autoritários, como governo chinês, estão também
interessados em cultivar. Neste sentido, a decisão do TPI de emitir a ordem
de prisão contra Putin representa não somente um ato corajoso, mas também
altamente arriscado. Enquanto essa ordem fez o Presidente russo ter entrado
no “clube dos grandes bad boys da história” – como Slobodan Milosevic,
Charles Taylor, Muammar Gaddafi e Omar al-Bashir –, consideravelmente
minando a sua reputação e autoridade assim como limitando a sua liberdade
de visitar conferências e cúpulas internacionais no exterior, assim não se pode
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

prever quem sairá vitorioso nesta luta inédita.


Acrescente-se ainda que outros motivos de natureza política, a exemplo
da participação russa no Conselho de Segurança e seu poderio bélico-nuclear,
causam dificuldades para implementação de ações.

36 Veja PEREIRA, Carlos Federico de Oliveira. Espionagem no Tribunal Penal Internacional no Contexto da
Guerra na Ucrânia, capítulo contido nesta obra.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
15. CRIMES DE GUERRA E O
CONFLITO NA UCRÂNIA*
Fredys Orlando Sorto

*Versão preliminar deste texto foi publicada no livro: “La Situación de


Ucrania ante el Derecho Internacional (Perspectiva Iberoamericana)”
FERNÁNDEZ SÁNCHEZ, Pablo Antoni (org.). Univerisdad de Sevilla.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

1. Introdução

Termos do problema: Qual o direito aplicável aos crimes de guerra, que


deve ser entendido por sujeito ativo nos crimes de guerra, qual é a instância
jurisdicional competente para julgar os crimes ocorridos na Ucrânia e quais
as atribuições do Conselho de Segurança e da Corte Penal Internacional em
relação a esse conflito armado?
Este artigo trata da guerra em geral e dos crimes dela decorrentes em
particular. Sabe-se que o direito internacional moderno nasce atrelado ao
então chamado direito de guerra, que na sua versão medieval consagra a tese
da guerra justa, noção que ainda hoje acha defensores. No texto demonstra-se
como essa guerra dita justa transforma-se em crime contra o direito interna-
cional humanitário. Destaque-se que os esforços de codificação da matéria são
imprescindíveis na tipificação dos ilícitos penais. É fundamental esclarecer,
desde já, que o crime de guerra tem como sujeito ativo o indivíduo, é ele que
responde pelas violações às normas de direito das gentes, dado que o Estado
não é passível de responsabilização criminal, como bem o demonstram a
doutrina e todos os estatutos dos tribunais ad hoc, além de o próprio Estatuto
de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional.
A responsabilidade internacional do Estado pela violação ou omissão
da norma jurídica é sempre civil (política), nesse sentido o Estado é o sujeito
ativo e responde perante os tribunais de direitos humanos, dentre eles, a Corte
Interamericana de Direitos Humanos. Em assim sendo, os crimes de guerra
são de índole penal, a responsabilidade é individual e a sanção mais grave é
a de privação da liberdade.
O Estatuto de Roma positiva, praticamente, todo o direito internacio-
nal humanitário vigente. No que se refere aos crimes de guerra, a matéria
é detalhada de modo exaustivo no artigo 8º. A distinção feita pela doutrina
no que ficou conhecido como direito da Haia e direito de Genebra revela-se
260

inconsistente, porque ambos convergem para a regulamentação de um único


instituto jurídico.
Por fim, no texto defende-se a tese de que há dever urgente de buscar
os meios pacíficos na solução do conflito, quais sejam os diplomáticos, os
políticos e os jurisdicionais, com destaque para os primeiros. É dever de todos
os Estados de procurar resolver os conflitos por meios pacíficos, conforme
determinação da Carta das Nações Unidas. O problema crucial na aplicação
da Carta enfrenta o óbice descabido do chamado “direito de veto” de alguns
Estados, direito cujo exercício redunda sempre em disparidade jurídica e
impunidade desses Estados.
No caso concreto da guerra na Ucrânia, acusa-se principalmente a Rússia

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


pela perpetração dos crimes de guerra, mas é preciso lembrar que há antece-
dentes atrozes como os bombardeios atômicos contra alvos civis nas cidades
japonesas de Hiroshima e Nagasaki, fatos ocorridos, respectivamente, em 6
e 9 de agosto de 1945. Lembre-se ainda: Vietnam (armas químicas), Iraque
(prisão ilegal de Guantánamo). Portanto, os conflitos armados já internacionais
já nacionais assolam a sociedade internacional, nada obstante o que dispõe a
Carta das Nações Unidas.
Por certo, da perspectiva do direito internacional importa a regulamenta-
ção do conflito armado e dos crimes cometidos pelos beligerantes, bem como
a busca, acima de tudo, da solução pacífica, que é assunto também integrante
do direito das gentes, como se demonstra no texto (Cf. 6). Quanto à denomi-
nação do conflito, é curioso notar que o presidente russo usa um eufemismo
e chama-a de “Operação Especial”, não de guerra.
Antes de discorrer sobre a ilegalidade da guerra e de seus crimes, é
essencial perquirir como e por que ela se transforma de justa em ilegal, de
direito em prática ilícita.

2. Da guerra justa à guerra ilegal: codificação

Objetivamente, o direito à guerra e as condições determinantes da sua


justeza remontam ao estoicismo. A proposição da guerra justa tem em Santo
Agostinho o seu principal teórico, como se verá em seguida.
Direito de guerra (Ius in bello) é o conjunto de normas aplicáveis durante
o conflito armado, vigente no tempo em que: “[...] a guerra era uma opção lícita
para resolver conflito entre Estados”1. Já o Direito à guerra (Ius ad bellum) tem
outra regência, é o direito à guerra quando ela é justa. A noção de guerra justa
constitui contribuição do Cristianismo, embora a ideia tenha vindo da filosofia
1 REZEK, José Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 16. ed. rev. e atual. São Paulo:
Saraiva, 2016, p. 437.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 261

estoica, precisamente de Cícero (106-43 a.C.), que estabeleceu pela primeira vez
a distinção jurídica entre as guerras justas (as de legítima defesa) e as injustas
(ilegítimas). Os requisitos da Guerra Justa foram estabelecidos especialmente por
Santo Agostinho (354-430 d.C.), que adotou e defendeu a distinção estabelecida
por Cícero. A questão é retomada e sistematizada por Santo Tomás de Aquino
(1225-1274 d.C.) na Idade Média. Segundo ele, com base em Santo Agostinho,
a guerra é justa quando cumpre os três requisitos seguintes: a) que seja declarada
pela Autoridade competente, isto é, pelo Poder legitimamente constituído (o
Príncipe)2; b) que a guerra tenha uma causa. Por outras palavras, que a guerra
seja a resposta merecida a um direito violado, com o intuito de reparar o dano e
restabelecer a ordem3; c) o terceiro requisito refere-se à intenção reta dos belige-
rantes, isto é, que a guerra tenha por escopo “promover o bem ou evitar um mal”4.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Mas, como se sabe, a tese da Guerra Justa perpassa a Idade Média e


alcança a Modernidade, aqui cabe destacar autores como Hugo Grócio (1583-
1645), Francisco Suárez (1548-1617) e Francisco de Vitoria (1483-1546).
Atualmente, ainda conta com defensores, dentre eles Norberto Bobbio5, a des-
peito da ilicitude de qualquer tipo de guerra. Portanto, desde 1945, em rigor,
a guerra é ilícita, salvo nos casos autorizados pela Carta das Nações Unidas.
Se bem que o Pacto Briand-Kellog (1928) constitua o grande precedente.

2 Em apoio a este requisito da Guerra Justa, Aquino cita Santo Agostinho (o livro Contra Faust.): “El orden natural,
acomodado a la paz de los mortales, postula que la autoridad y la deliberación de aceptar la guerra pertenezca
al príncipe”. AQUINO, Tomás de. Suma de Teología III. Parte II-II (a). Tradução: Ovidio Calle Campo; Lorenzo
Jiménez Patón. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1990, p. 338. (Cf. II-II Cuestión, 40, Art. 1º).
3 Santo Tomás de Aquino recorre novamente à autoridade de Santo Agostinho (Heptateuco. Libro VI, q. 10)
para fundamentar este requisito: “Suelen llamarse guerras justas las que vengan las injurias; por ejemplo, si
ha habido lugar para castigar al pueblo o a la ciudad que descuida castigar el atropello cometido por los suyos
o restituir lo que ha sido injustamente robado”. Idem. Cf. AQUINO, Tomás de. Op cit. (nota 2), p. 338. (Cf.
II-II Cuestión, 40, Art. 1). No original da tradução espanhola (bilingue) está assim: “Suelen llamarse guerras
justas las que vengan injurias, en el caso de que una nación o una ciudad, que hay que atacar en la guerra,
ha descuidado vengar lo que los suyos han hecho indebidamente o devolver lo que ha sido arrebatado por
medio de injurias”. SAN AGUSTÍN. Obras completas. Escritos bíblicos (4º). Cuestiones sobre el Heptateuco
(en siete libros). v. 28. Tradução: Olegario García de la Fuente. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1989.
739 p. Cf. Cuestiones sobre el Heptateuco. Libro VI. Cuestiones sobre Josué Nave, 10.
4 O terceiro requisito da guerra justa apoia-se também em Santo Agostino (Contra Faust.): “En efecto, el deseo
de dañar, la crueldad de vengarse, el ánimo inaplacado e implacable, la ferocidad en la lucha, la pasión de
dominar y otras cosas semejantes, son, en justicia, vituperables en las guerras”. Idem. Cf. AQUINO, Tomás
de. Op cit. (nota 2), p. 338. Cf. II-II Cuestión, 40, Art. 1º. Esta citação está também um pouco diferente no
original publicado pela mesma Editora BAC, in verbis: “El deseo de dañar, la crueldad en la venganza, el
ánimo no aplacado e implacable, la ferocidad de la rebelión, la pasión de dominio y cosas semejantes: he
aquí lo que, conforme a derecho, se considera culpa en las guerras”. SAN AGUSTÍN. Escritos antimaniqueos
(2). Contra Fausto. Tradução: Pio de Luis. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1993, p. 604. Cf. Libro
22, C. 74. Licitud del servicio militar.
5 A invasão do Iraque (Operation Iraqi Freedom), em 2003, trouxe à tona o tema da Guerra Justa. Bobbio
defendeu-a como guerra justa, embora depois tenha mudado de ideia. Cf. BOBBIO, Norberto. Una guerra
giusta? Sul conflitto del Golfo. Venezia: Marsilio, 1991. 92 p. Veja também: BELLAMY, Alex J. Just wars:
from Cicero to Iraq. Cambridge: Polity, 2006. 280 p.
262

Há que ter em conta que o direito internacional nasceu, como afirma com
acerto Sette-Câmara, sob a sombra do direito de guerra6. Ele diz que a maioria
das obras clássicas de direito internacional ocuparam-se mais da guerra do
que da paz, em abono dessa afirmação cita as seguintes obras: Lignano, De
Bello (1360), Gorco, De Bello Justo (1420), Wilhelmus Mathias, Libellus de
bello justo et licito (1514), A. Guerrero, Tractatus de bello justo et injusto
(1543), Francisco de Vitoria, De jure Belli (1557), Alberico Gentili, De Jure
Belli (1598), Grócio, De Jure belli ac Pacis (1625).
A sabendas de que a tese da guerra justa não é mais aceita como lícita,
nem por isso os conflitos armados foram banidos, o fato de a guerra ser crime
não afasta o aparecimento de conflitos armados, como ainda se observa em
tempos recentes. Portanto, é preciso retomar o tema na sua correta dimensão.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Como já se disse, compete ao direito internacional a regulamentação da guerra
até a sua prescrição como crime.
Efetivamente, os esforços de codificação da matéria remontam à metade
do século XIX, especialmente à Declaração de Paris, de 18567. Contudo, o
instrumento mais significativo foi a Convenção de Genebra, de 22 de agosto
de 18648. Esse instrumento é o precursor do direito internacional humanitário,
o qual, segundo Rezek (2016. p. 439) é “[…] marco inicial do direito humani-
tário iniciado por Henri Dunant”. Como se sabe, Dunant comoveu-se com o
sofrimento dos feridos da batalha de Solferino9 (1859), por falta de assistência
médica. Assim, começa a luta de Dunant pela humanização da guerra,
6 Ipsis litteris: “International law itself was born under the shadow of war”. SETTE-CAMARA, José. Methods
of obligatory settlement of disputes. In: Bedjaoui, Mohammed (ed.) International Law: Achievements and
Prospects. Paris: Unesco, 1991, p. 520.
7 A Declaração de Paris sobre Princípios de Direito Marítimo em tempo de Guerra, de 16 de abril de 1856, foi
anexada ao Tratado de Paris (1856), que pôs termo à guerra da Crimeia (1853-1856). Na parte dispositiva,
a referida Declaração estabelece quatro princípios: “1) O Corso está e fica abolido. 2) O pavilhão neutro
cobre a mercadoria inimiga, com exceção do contrabando de guerra. 3) A mercadoria neutra, com exceção
do contrabando de guerra, não pode ser apreendida sob pavilhão inimigo. 4) Os bloqueios, para obrigar,
devem ser efetivos, isto é, mantidos por uma força suficiente para realmente impedir o acesso ao litoral
inimigo”. A Declaração de Paris foi assinada pelos plenipotenciários da Áustria, França, Grã-Bretanha,
Prússia, Rússia, Sardenha e Turquia.
8 O título completo do documento é este: Convenção de Genebra, de 22 de agosto de 1864, para a Melhoria da
Sorte dos Militares Feridos nos Exércitos em Campanha. Conforme Rubens Ferreira de Mello, a Convenção
baseou-se no Projeto elaborado por Gustave Moynier e pelo General Dufour. A Convenção de Genebra
de 1864 foi substituída pela Convenção de 1906, esta pela de 1929. Esses textos normativos de Direito
Internacional Humanitário foram atualizados com as Quatro Convenções de Genebra de 1949. MELLO,
Rubens Ferreira de. Textos de direito internacional e de história diplomática de 1815 a 1949. Rio de Janeiro:
A. Coelho Branco, 1950, p. 32.
9 A Batalha de Solferino, de 24 de junho de 1859, deu-se no norte da Itália entre as tropas da Áustria, de um
lado, e as tropas da França e do Reino da Sardenha (1297-1861), do outro lado. Trata-se de batalha decisiva
da Segunda Guerra de Independência Italiana. Desse conflito emergem vitoriosas as tropas francesas de
Napoleão III e as de Vittorio Emanuele II. Resulta daí a substituição do Reino da Sardenha pelo Reino da
Itália (Regno d’Italia), em 1861.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 263

resultando na criação da Cruz Vermelha Internacional, que é ator fundamen-


tal de solidariedade humana em períodos de guerra. Pouco tempo depois, em
1862, Dunant publicou o impactante livro “Un Souvenir de Solferino”, no qual
descreve os horrores provocados pela guerra da qual fora ator e testemunha.
Em 1899, ocorre a Primeira Conferência de Paz da Haia. O resultado
dessa conferência internacional foi imprescindível na instituição do chamado
direito humanitário bélico10. Essa questão será retomada e atualizada na con-
ferência seguinte, em 1907.
A Segunda Conferência de Paz da Haia, de 1907, foi realizada por iniciativa
do Presidente Theodore Roosevelt. Essa Conferência atualiza os instrumentos
aprovados na Conferência anterior e avança na regulamentação dos conflitos
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

armados. A participação na Conferência foi extraordinária, se for considerado


que a sociedade internacional da época era composta por poucos membros.
No total, 44 Estados enviaram representação, incluída aí a maioria dos Estados
americanos, dentre eles o Brasil11. As duas Conferências da Haia contribuíram de
maneira excepcional no desenvolvimento do direito internacional humanitário.
Na Conferência de 1907 foram aprovados, dentre outros, treze convenções,
regulamentos concernentes às leis e usos da guerra terrestre12 e o projeto de
convenção relativa ao estabelecimento de uma corte de justiça arbitral.
A passagem da licitude da guerra para a sua ilicitude tem como grande
baliza o Pacto de Paris ou Briand-Kellog13 (1928), porquanto constitui
10 Na Primeira Conferência de Paz da Haia foram assinados vários instrumentos relativos à regulamentação
da guerra e da solução pacífica dos conflitos, a saber: 1) Ata Final da Conferência Internacional da Paz,
assinada em 29 de julho de 1899; 2) Convenção para a solução pacífica dos conflitos Internacionais; 3)
Convenção relativa às leis e usos da guerra terrestre; 4) Regulamento concernente às leis e usos da guerra
terrestre; 5) Convenção para a adaptação à guerra marítima dos Princípios da Convenção de Genebra; 6)
Declaração da Haia, proibindo o lançamento de projéteis e de explosivos, dos balões; 7) Declaração proibindo
o emprego de projéteis que tiverem por fim único espalhar gases asfixiantes ou deletérios; 8) Declaração
proibindo o emprego de balas que se dilatam ou se achatam facilmente dentro do corpo humano.
11 Nesta Conferência, Rui Barbosa teve participação destacada. Pelas suas notáveis intervenções na Haia,
granjeou dos compatriotas o distinto cognome de “Águia da Haia”. Essas intervenções foram vertidas em
português e republicadas recentemente pela Casa Rui Barbosa. Cf. BARBOSA, Rui. Discursos de Rui
Barbosa em Haia. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 2007. 276 p. (Obras completas de Rui Barbosa,
v. 34, t. 2, 1907).
12 O significado desses instrumentos pode ser notado pelo que dispõe o art. 1 desses Regulamentos Concer-
nentes às Leis e Usos da Guerra Terrestre: “1º As leis, os direitos e os deveres da guerra não se aplicam
somente ao exército, mas também às milícias e aos corpos de voluntários que reunissem as seguintes
condições: 1º estarem sob o comando de uma pessoa responsável por seus subordinados; 2º terem um
signo distintivo, fixo e reconhecível à distância; 3º levarem armas ostensivamente; 4º conformarem-se em
suas operações às leis e usos da guerra. Nos países em que as milícias ou corpos de voluntários constituem
o exército ou façam parte dele, as referidas milícias ou corpos estão compreendidos sob a denominação
de exército”. MELLO, Rubens Ferreira de. Textos de direito internacional e de história diplomática de 1815
a 1949. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco, 1950. p. 148.
13 Conhece-se dessa forma em homenagem aos mentores desse Pacto: Aristides Briand (1862-1932), o
Ministro dos Negócios Estrangeiros da França, e Frank B. Kellog (1856-1937), Secretário de Estado dos
264

importante precedente da guerra como ilícito internacional. O Pacto é, na


verdade, instrumento formal de renúncia à guerra “como instrumento de
política nacional”.
A ilicitude da guerra está consagrada na Carta das Nações Unidas, espe-
cialmente no art. 2º. Se a principal Organização internacional prescreve a
mencionada ilicitude da guerra desde 1945, a tarefa só estaria completa com
a conclusão das quatro Convenções de Genebra de 1949 e os Protocolos
Adicionais, de 1977, que somados às convenções da Haia (1899 e 1907)
constituem o núcleo normativo do direito internacional humanitário, sendo
os crimes de guerra um dos tipos penais mais graves.
As convenções de Genebra têm por finalidade a “humanização da

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


guerra”, isto é, amainar o sofrimento e proteger vidas e patrimônios. As
convenções são estas: Convenção para a Melhoria da Sorte dos Feridos e
Enfermos em Exércitos em Campanha (I); Convenção para a Melhoria da
Sorte dos Feridos, Enfermos e Náufragos das Forças Armadas no Mar (II);
Convenção Relativa ao Tratamento dos Prisioneiros de Guerra (III); Conven-
ção Relativa à Proteção dos Civis em Tempo de Guerra (IV). Em relação a
essas convenções, Rezek diz que o artigo 3º, comum às quatro convenções,
“[...] fixa uma pauta mínima de humanidade a prevalecer mesmo nos conflitos
internos, proibindo, por exemplo, a tortura, a tomada de reféns, o tratamento
humilhante ou degradante, as condenações e execuções sem julgamento pré-
vio”14. As convenções de Genebra são completadas pelos referidos Protocolos
Adicionais I e II, de 1977, que atualizam a matéria e confirmam a disposição
de “humanizar” os conflitos armados.
Segundo Pastor Ridruejo, a efetividade e o cumprimento do direito inter-
nacional humanitário “[...] esbarra no grave problema do controle da sua obser-
vância”15 por parte de beligerantes que, de modo desarrazoado procuram evitar
a derrota, como no caso da Ucrânia, ou alcançar a vitória, caso da Rússia. “É
que o direito internacional humanitário persegue um objetivo extremamente
problemático: humanizar uma atividade essencialmente desumana como é a
guerra”16. A esta altura já cabe indagar: é o indivíduo ou o Estado que responde
pela prática de crime de guerra? De quem é afinal a responsabilidade criminal?

EUA. A despeito da sua importância, o Pacto Briand-Kellog, assinado em Paris em 27 de agosto de 1928,
“[...] não proscrevia a guerra de conquista, nem dispunha de sanções”. MELLO, Rubens Ferreira de. Op.
cit. (nota 12), p. 324.
O tratado bilateral foi transformado e multilateral por sugestão de Kellog. O Brasil aderiu em 1934. Cf. Decreto
nº 24.557, de 3 de julho de 1934.
14 REZEK, Op. cit. (nota 1), p. 445.
15 PASTOR RIDRUEJO, José Antonio. Curso de derecho internacional público y organizaciones internacionales.
6. ed. Madrid: Tecnos, 1996. p. 681.
16 Ibid., Id.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 265

3. O sujeito ativo da prática do crime de guerra

Dever-se-ia asseverar, de modo enfático, que todos os crimes da com-


petência do Tribunal Internacional Penal (crime de genocídio; crimes contra
a humanidade; crimes de guerra; crime de agressão) são de responsabilidade
individual. O Estado não responde criminalmente, apenas os governantes e
responsáveis pela prática dos ilícitos. De modo que o sujeito ativo é sempre
a pessoa física.
Essa questão foi enfrentada pelo Tribunal de Nuremberg nestes termos:
“Os crimes contra o direito internacional são cometidos por homens, não por
entidades abstratas, e unicamente se podem fazer cumprir as disposições do
direito internacional castigando os que cometem esses crimes”17. Os tribunais
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

internacionais especiais da Ex-Iugoslávia e de Ruanda seguem o precedente


estabelecido pelo Tribunal de Nuremberg18.
Quanto à estrutura, Fonseca mostra com precisão que “Como todo delito,
o crime de guerra é objeto cultural tridimensional: fato típico, antijurídico e
culpável”19. Em assim sendo, “No plano do fato típico, temos: a. sujeito ativo;
b. ação ou omissão; c. resultado: dano incidente sobre bem jurídico de que é
portador ou titular; d. adequação típica: subsunção do fato à norma penal. O
sujeito ativo deve agir por vontade livre e deve ser imputável”20. Observa, em
conclusão, que o sujeito ativo somente pode ser a pessoa física, embora na
doutrina alemã (Gierke) e alguns na francesa sustentem a responsabilidade
da pessoa jurídica. De fato, é tradição de que a responsabilidade criminal não
alcança os Estados, mas sim os indivíduos responsáveis diretos pelo ilícito. A
primazia da tese da responsabilidade individual pelos crimes contra o direito
internacional humanitário está demonstrada em todos os Estatutos dos tribunais
internacionais penais, desde Nuremberg ao Estatuto de Roma o sujeito ativo é
sempre o indivíduo: que responde pelo ilícito, que sofre a sanção penal devida.
Para não deixar de tocar o tema da responsabilidade criminal no direito
interno, vale a pena um sucinto comentário. Um dos principais penalistas
brasileiros, Damásio de Jesus, critica essa tendência de responsabilidade penal
das pessoas jurídicas (societas dellinquere non potest). Segundo Damásio “[...]

17 Ipsis verbis: “Crimes against international law are committed by men, not by abstract entities, and only by
punishing individuals who commit such crimes can the provisions of international law be enforced”. Sentença
de 1 out. 1946. Cf. Trial of the Major War Criminals before the International Military Tribunal, v. 1, Nürnberg
1947, p. 223.
18 CRAWFORD, James. Los artículos de la comisión de Derecho internacional sobre la responsabilidad
internacional del Estado. Tradução: Luis Fonseca. Madrid: Dykinson, 2004. p. 291.
19 FONSECA, José Roberto Franco da. Crimes de guerra. Revista da Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo. São Paulo, v. 93, p. 371-389. jan./dez. 1998. p. 378.
20 Ibid., Id.
266

fora do homem, não se concebe crime. Só ele possui a faculdade de querer


[...] as pessoas jurídicas só podem praticar atos por meio de seus represen-
tantes”21. Na mesma linha, Fonseca diz que “[...] a tradição brasileira nunca
aceitou a responsabilidade penal de grupo coletivo de pessoas”22. Mas, a bem
da verdade, a questão está em vigor no Brasil23.
A responsabilidade jurídico-penal é própria de pessoas físicas, pune-se o
indivíduo com o intuito de que não torne a delinquir. Isso não quer dizer que o
Estado não incorra em responsabilidade. Na responsabilidade civil repara-se o
dano ao titular do bem jurídico lesionado. Fonseca afirma que “[...] a ideia de
um Estado criminoso é um absurdo jurídico, enquanto governantes criminosos
são uma realidade”. Conforme o mesmo autor: “Como todo delito, o crime de

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


guerra é objeto cultural tridimensional: fato típico, antijurídico e culpável”24.
No que tange ao fato típico, ele diz que “[...] as pessoas mortas, torturadas
ou deportadas não são os sujeitos passivos dos crimes de guerra, mas sim-
ples objetos materiais da ação delituosa”25. Nesse caso, o sujeito passivo é a
sociedade internacional, titular do bem jurídico lesado pela conduta criminosa.
Em que situação ocorre a responsabilidade internacional26 do Estado?
Esta ocorre, dentre outros, no caso de crimes de direitos humanos oponí-
veis contra o Estado (pessoa jurídica), quando os direitos subjetivos públi-
cos carecem de tutela do direito Internacional. O Estado aqui é o sujeito
ativo, isto é, o responsável pela violação ou pela omissão27. Em tal caso, as

21 JESUS, Damásio E. de. Direito penal: parte geral. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 210.
22 FONSECA, José Roberto Franco da. Op. cit. (nota 19), p. 378.
23 A doutrina no geral tem posição crítica com respeito à responsabilidade criminal da pessoa jurídica. Assim,
Fernando Capez, baseando-se em Cernicchiaro, assevera que “[...] a pessoa jurídica não pode ser autora de
crimes nem passível de sanção penal porque, não sendo dotada de consciência e vontade própria, a ela não
se aplicam os princípios da responsabilidade pessoal e da culpabilidade”. CAPEZ, Fernando. Curso de direito
penal. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 170. A despeito disso, no direito interno admite-se a responsabilidade
penal das pessoas jurídicas em casos pontuais. Mas não contra o Estado. No Brasil, por exemplo, a Constituição
Federal estabelece a responsabilidade penal objetiva das pessoas jurídicas em atos cometidos contra a economia
popular, a ordem econômica e financeira e “condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente”. Cf.
artigos. 173, § 5º e 225 § 3º. Portanto, não há negar a constitucionalidade da Lei 9.605/98, que detalha a referida
responsabilidade penal das pessoas jurídicas por crimes ambientais (art. 3.). As penas estabelecidas pela Lei
9.605/98 (art. 8º) são as seguintes: “Prestação de serviços à comunidade; interdição temporária de direitos;
suspensão parcial ou total de atividades; prestação pecuniária; recolhimento domiciliar”. Se observadas com
rigor, as penas cominadas parecem distantes da esfera penal no que tange ao castigo, mas próximas das esferas
civil e administrativa, no tocante à reparação pelo dano causado ao titular bem jurídico.
24 FONSECA, José Roberto Franco da. Op. cit. (nota 19), p. 378.
25 Ibid., p. 379.
26 Vale registrar aqui a posição de Gómez-Robledo Verduzco, a respeito de responsabilidade penal, ele afirma
que: “A diferencia de lo que sucede en los órdenes jurídicos nacionales, en el derecho internacional se des-
conoce el principio de la llamada responsabilidad penal, por lo que la responsabilidad internacional asegura
simplemente la reparación como consecuencia de una violación jurídica”. GOMEZ-ROBLEDO VERDUZCO,
Alonso. In: Diccionario de Derecho Internacional. México: Porrúa; UNAM, 2001. p. 304.
27 FONSECA, José Roberto Franco da. Op. cit. (nota 19), p. 382.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 267

instâncias jurisdicionais em que o Estado é processado são, por exemplo:


a Corte Interamericana de Direitos Humanos (São José, Costa Rica) ou a
Corte Europeia de Direitos Humanos (Estrasburgo, França). A sentença é
declaratória (política) combinada com sanção indenizatória civil. A res-
ponsabilidade internacional do Estado, nas questões em discussão, é de
fato exercida nas cortes de direitos humanos, que julgam de acordo com
o direito internacional dos direitos humanos. Os diversos e emblemáticos
casos levados à Corte Interamericana de Direitos Humanos contra o Brasil
exemplificam bem o assunto28.
Por fim, retornando ao crime de guerra, merece atenção especial um
ponto teórico trivial, sabe-se que a doutrina divide o direito internacional
dos conflitos armados em duas grandes vertentes: o chamado direito da Haia
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

(direito humanitário bélico), que regula os métodos e os meios de combate;


e o direito de Genebra (direito internacional humanitário), que trata da pro-
teção das vítimas da guerra29. O caráter artificial dessa distinção é feito em
vários ensaios, principalmente, por Nahlik. Este autor diz que “Essa fronteira
um tanto artificial entre esses dois corpos jurídicos tende a desaparecer”30.
Aliás, desde o início das conferências da Haia já havia a intenção de codificar
o direito de guerra num único corpo normativo31, a divisão teria se tornado
mais clara somente depois da Primeira Guerra Mundial.
Esse é também o entendimento de Gros Espiell32, que afirma ser erro a
contraposição do direito de Genebra ao direito da Haia, “[...] porque ambos
formam o direito dos conflitos armados e, embora com enfoques diferentes e
voltados para objetivos imediatos distintos, baseiam-se nos mesmos princípios
e buscam um objetivo final comum”.

28 Eis aqui alguns Casos do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos: 1) Caso Ximenes Lopes
versus Brasil. Sentença de 4 de julho de 2006. Este caso abre uma série de condenações do Brasil na CIDH.
Interessante notar que a sentença condenatória já constitui forma de reparação: “Esta Sentença constitui
per se uma forma de reparação, nos termos do parágrafo 251”. 2) Caso Nogueira de Carvalho e Outro
Versus Brasil. Sentença de 28 de Novembro de 2006. 3) Caso Gomes Lund e outros vs. Brasil (“Guerrilha
do Araguaia”). Sentença de 24 de novembro de 2010. 4) Caso Herzog e outros vs. Brasil. Sentença de 15
de março de 2018. O Brasil foi condenado por unanimidade.
29 PASTOR RIDRUEJO, José Antonio. Curso de derecho internacional público y organizaciones internacionales.
6. ed. Madrid: Tecnos, 1996. p. 676.
30 “Cette frontiere un peu artificielle entre ces deux corps de droit tendd’ailleurs a disparaitre”. NAHLIK, Stanislaw.
Précis abrégé de droit international humanitaire. Revue Internationale de la Croix-Rouge, n. 748, 1984. p. 203.
Quanto a essa divisão entre o direito de Genebra e o direito da Haia, veja-se do mesmo autor: Droit “de Genève”
et Droit “de La Haye”: Unité ou dualité? Annuaire français de droit international, Paris, v. 24, p. 9-27, 1978.
31 “[...] l’intention des delegues rassembles a ces deux occasions a La Haye semble avoir ete bien claire:
incorporer le droit de Geneve dans le droit de La Haye afin que celui-ci constitue un systeme complet des
lois de la guerre”. Ibid., p. 203.
32 GROS ESPIELL, Héctor. Derechos humanos, derecho internacional humanitario y derecho internacional de
los refugiados. Derechos humanos, México, año 8, n. 49, p. 47-55, mayo/jun. 2001. p. 51. Disponível em:
http://historico.juridicas.unam.mx/publica/ librev/rev/derhum/cont/49/pr/pr18.pdf.
268

Realmente, são duas vertentes doutrinárias e normativas que se comple-


mentam. O Estatuto de Roma confirma essa convergência e afasta tal distinção.
Esse Estatuto recolhe o que importa quer de Haia quer Genebra, toma ainda
o que é essencial da jurisprudência dos tribunais internacionais, da Comissão
de Direito Internacional (CDI) e do direito internacional humanitário. Essa
distinção não faz sentido nem no pretérito, visto que o direito da Haia e o
direito de Genebra tratam do mesmo objeto jurídico, constituindo juntos a
base de todo o direito internacional dos conflitos armados.

4. O crime de guerra e sua vinculação jurídica

Merece cuidado especial o lugar que cabe aos crimes de guerra no marco

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


do direito internacional público. Fonseca alerta, em relação a essa questão,
quando diz que “A temática dos crimes de guerra foi por alguns alargada e
confundida com a dos direitos humanos, englobando-se, assim, na primeira
categoria, uma segunda categoria lógico-científica substancialmente diversa
dela”33. Ele assevera, ainda, que o tratamento adequado do tema só será dado
de modo cabal se feito à luz da Teoria Geral do Direito Penal. “Pois crimes
de guerra são espécie do gênero crime. Sem o conhecimento da estrutura
tridimensional do crime (gênero), não é admissível se tratar das diferenças
específicas do tema em estudo”34. Em síntese, os crimes de guerra são alheios
ao direito internacional dos direitos humanos. Eles pertencem ao direito inter-
nacional penal, especificamente ao direito internacional humanitário. Essa
filiação vem desde a instituição dos primeiros tribunais ad hoc. O Tribunal
Militar de Nuremberg, estabelecido pelo Acordo de Londres de 194535, precur-
sor dos tribunais ad hoc, criados pelas Nações Unidas (TPI da Ex-Iugoslátia
e TPI de Ruanda), e do Tribunal Penal Internacional (TPI). Assunto ao qual
se retornará mais adiante (Cf. 5).
É preciso esclarecer, desde logo, que entre o direito internacional humani-
tário e o direito internacional dos direitos humanos não há nem integração nem
separação radical, mas sim complementaridade. São ramos que se complementam
na proteção da pessoa humana, mas que têm natureza jurídica diferentes.
33 FONSECA, José Roberto Franco da. Op. cit. (nota 19), p. 373.
34 Ibid., p. 374.
35 O Tribunal Militar de Nuremberg criado, em 8 de agosto de 1945, por acordo assinado entre os Estados
vencedores da Segunda Guerra Mundial, a saber: Estados Unidos, França, Reino Unido e URSS. A sede
permanente do Tribunal era Berlin, mas os julgamentos ocorreram na cidade de Nuremberg, de 20 de novembro
de 1945 a 1 de outubro de 1946. Ferreira de Mello diz que “O julgamento de Nuremberg, segundo observa
Donnedieu de Vabres, consagrou a supremacia do direito internacional sobre o direito interno”. O Tribunal,
composto por 4 juízes, um por cada Estado signatário. O Estatuto (art. 6º) deixa claro que a responsabilidade
pelo cometimento dos crimes sob a sua jurisdição é individual. Tribunal condenou 12 pessoas à morte e 3 a
prisão perpétua, dentre outras condenações. MELLO, Rubens Ferreira de. Op cit. (nota 11), p. 740.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 269

Pictet aponta os princípios comuns do direito de Genebra (DIH) e os


direitos humanos (nacional e internacional), ou seja, indica os pontos comuns
aos dois ramos jurídicos. Princípio da inviolabilidade: “O indivíduo tem
direito ao respeito da sua vida, da sua integridade física e mental e aos atri-
butos inseparáveis da personalidade”36. Princípio da não discriminação: “As
pessoas serão tratadas sem distinção fundada em raça, sexo, nacionalidade,
idioma, classe social, opiniões políticas, filosóficas ou religiosas ou em critério
análogo”37. Princípio da segurança: “O indivíduo tem direito à segurança
da sua pessoa” integram também este princípio: a presunção de inocência
das garantias judiciais e a irrenunciabilidade de direitos reconhecidos em
tratados38. Segundo Trindade esse processo é de aproximação de convergên-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

cia normativa principalmente em temas como a tortura, a detenção e prisão


arbitrárias; garantias do due process; proibição de discriminação39. Não há
dúvida em relação à importância dessa afirmação, porque é conveniente que
assim seja, mas isso não muda em nada o caráter inato do direito internacio-
nal humanitário e dos direitos humanos (DIDH). Em vista disso, são normas
jurídicas que não se confundem.
Não me parece que a questão seja tanto de aproximação ou de convergên-
cia. Na verdade, o que há é a relação entre ramos jurídicos que têm matérias
em comum. O direito internacional, por exemplo, relaciona-se com o direito
constitucional em vários pontos (direito dos tratados, extradição, nacionali-
dade). Mas isso não muda a natureza de cada uma dessas disciplinas. Essa
relação não prospera no sentido de fusão, principalmente em se tratando de
assuntos tão diferentes. Claro está que o DIH e os direitos humanos têm em
comum a proteção da pessoa humana. Em suma, são ramos jurídicos diver-
sos, mas que se completam na dupla missão de proteção nos planos interno
e internacional.
Essa complementaridade é duplamente regulamentada pelo Estatuto
de Roma tanto em relação à matéria como ao âmbito de aplicação da norma
jurídica. É o que diz a letra do Estatuto, quando prescreve que o TPI, na
aplicação e na interpretação do direito, fá-lo-á de modo “[...] compatível com
os direitos humanos internacionalmente reconhecidos” (Art. 22 § 3º). Mais
ainda, o Estatuto de Roma reafirma no Preâmbulo, e no articulado (art. 1º), o
seu caráter de instituição complementar às jurisdições penais nacionais. De

36 PICTET, Jean. Desarrollo y principios del derecho internacional humanitario. 2. ed. 2. reimpr. Bogotá: Tercer
Mundo; Ginebra: Instituto Henry Dunant; Comité Internacional de la Cruz Roja, 1998. p. 75.
37 Ibid., p. 79.
38 Ibid., p. 80.
39 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Desarrollo de las relaciones entre el derecho internacional huma-
nitario y la protección internacional de los derechos humanos en su amplia dimensión. Revista IIDH, San
José, n. 16, 1992. p. 43.
270

modo que o TPI, que não está acima das instancias jurisdicionais estatais,
só age em caso de omissão ou de impossibilidade das instancias nacionais.

5. A guerra como crime contra o direito internacional humanitário

Acerca dos crimes de guerra, o Estatuto do Tribunal de Nuremberg é o


paradigma cabalmente seguido por todos os outros tribunais penais interna-
cionais, quer os criados ad hoc quer o próprio Tribunal Penal Internacional.
Seguem, pois, o precedente de Nuremberg, os dois tribunais penais ad hoc
das Nações Unidas, criados mediante resoluções do Conselho de Segurança:
1) o Tribunal Penal Internacional da ex-Iugoslávia (1991)40, competente para
julgar as violações graves ao direito internacional humanitário, especialmente

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


as Convenções de Genebra de 1949 (crimes de guerra41, crime de genocídio
e crimes contra a humanidade). 2) O Tribunal Penal Internacional de Ruanda
(1994)42, criado com base no da ex-Iugoslávia, cuida de questão interna de
um Estado, aplicando-se no caso o direito internacional humanitário previsto
nas Convenções de Genebra (1949) e do Protocolo II (1977).
De fato, os tribunais posteriores, inclusive o Tribunal Penal Internacional,
repetem a tipificação de Nuremberg, com certo aperfeiçoamento, como é o
caso da autonomia dada ao crime de genocídio, que antes estava atrelado aos
crimes contra a humanidade. Esse crime foi, de fato, utilizado nas acusações
nos julgamentos de Nuremberg, o que constitui precedente, mas no final não
foi aplicado. Na realidade, o crime de genocídio ganhou autonomia depois da
conclusão da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Geno-
cídio (1948). Deve notar-se que o Estatuto do Tribunal Penal Internacional

40 Estatuto do Tribunal Internacional para Julgar as Pessoas Responsáveis por Violações Graves ao Direito Inter-
nacional Humanitário Cometidas no Território da Ex-Jugoslávia desde 1991. Adotado pelo Conselho de Segu-
rança das Nações Unidas, em 25 de maio de 1993 (Resolução n. 827, de 25 de Maio de 1993). Alterado pelas
resoluções do Conselho de Segurança n. 1166, de 13 de Maio de 1998 (altera os artigos 11, 12, 13, que tratam
da composição do Tribunal Internacional, das câmaras e das qualificações e eleição dos juízes) n. 1329, de 30
de Novembro de 2000 (altera o artigo 14 do Estatuto, que trata de cargos e membros das câmaras).
41 Os crimes de guerra são tratados pelo Estatuto no seu artigo 3º: “Violações das leis ou dos costumes da
guerra O Tribunal Internacional terá competência para julgar as pessoas que violarem as leis ou os costumes
da guerra. Tais violações incluem, mas não se limitam a: a) Emprego de armas tóxicas ou outras concebidas
com o objetivo de causar sofrimentos inúteis; b) Destruição sem motivo de cidades, vilas e povoações ou
devastação não justificadas pelas exigências militares; c) Ataque ou bombardeamento, por qualquer meio,
de cidades, vilas, habitações ou construções não defendidas; d) Confisco, destruição ou danificação deli-
berada de edifícios consagrados ao culto, à beneficência e ao ensino, às artes e às ciências, monumentos
históricos, obras de arte e de caráter científico; e) Pilhagem de bens públicos ou privados”.
42 Instituído pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, em 8 de novembro de 1994 (Resolução n. 955),
e alterado pela Resolução n. 1329, de 30 de novembro de 2000. O Tribunal tem competência para julgar as
pessoas físicas (Competência ratione personae) que tenham cometido os seguintes crimes: a) genocídio
(art. 2º); b) crimes contra a humanidade (art. 3º); c) violações graves do artigo 3º comum às Convenções
de Genebra e ao Segundo Protocolo Adicional (art. 4º).
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 271

da ex-Iugoslávia (art. 4.) e o do Tribunal Penal Internacional de Ruanda


recepcionaram a definição dada pela referida Convenção43.
Ainda que o precedente de Nuremberg seja seguido por todos os tribunais
penais posteriores, somente o Tribunal Penal Internacional foi criado com rigo-
rosa observância dos princípios e normas jurídicas do direito das gentes, o que
constitui novidade (originalidade). De fato, o Tribunal foi criado por tratado
especial (não por resolução do Conselho de Segurança), concluído livremente
(sem vício de consentimento) por sujeitos de direito internacional, respeitando
o princípio da anterioridade da lei (Nullum crimen, nulla poena sine praevia
lege). Além do que, ostenta o caráter de permanente, independente e com a
peculiaridade de ter personalidade jurídica internacional. Nesse sentido, o TPI
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

é sujeito de direito internacional público, algo que nem a Corte Internacional


de Justiça tem, já que é apenas um dos órgãos das Nações Unidas. A título de
cotejamento com os tribunais havidos posteriormente, convém assinalar que
a competência do Tribunal de Nuremberg se restringia a processar os crimes
contra a paz; os crimes de guerra44; os crimes contra a humanidade. Já o Tri-
bunal Penal Internacional, estabelecido pelo Estatuto de Roma de 1998, tem
competência para julgar crimes graves de interesse da sociedade internacional:
a) O crime de genocídio; b) Crimes contra a humanidade; c) Crimes de guerra;
d) O crime de agressão45. Este último crime, que no Estatuto de Nuremberg

43 Artigo 2º da Convenção de 1948 define genocídio nestes termos: “Na presente Convenção, entende-se por
genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo
nacional, étnico, racial ou religioso, tal como: assassinato de membros do grupo; dano grave à integridade
física ou mental de membros do grupo; submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe
ocasionem a destruição física total ou parcial; medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do
grupo; transferência forçada de menores do grupo para outro”.
44 Os crimes de guerra são definidos pelo Estatuto do Tribunal de Nuremberg deste modo: “Violações de leis
e costumes de guerra. Essas violações compreendem, sem serem limitadas nas leis e costumes: o assas-
sinato, maus-tratos, ou deportação para trabalhos forçados ou para qualquer outro fim, das populações
civis nos territórios ocupados, assassinatos ou maus-tratos de prisioneiros de guerra ou de pessoas no mar,
execução de reféns, pilhagem de bens públicos ou privados, destruição sem motivo de cidades e aldeias,
ou devastações que as exigências militares não justifiquem” Cf. Art. 6.
45 O Estatuto de Roma estabeleceu, entre os tipos penais, o crime de agressão, mas sem defini-lo. A defi-
nição veio somente em 2010 (Resolução RC/Res.6), Artigo 8º bis: “1. Para efeitos do presente Estatuto,
entende-se por ‘crime de agressão’, o planejamento, a preparação, o desencadeamento ou a execução
por uma pessoa que se encontre em posição de controlar ou conduzir de forma efetiva a ação política ou
militar de um Estado de um ato de agressão que, pelo seu caráter, pela sua gravidade e dimensão, constitui
uma violação manifesta da Carta das Nações Unidas”. O § 2. do mesmo artigo diz ainda: “[...] entende-se
por ‘ato de agressão’, o uso da força armada por um Estado contra a soberania, integridade territorial ou
independência política de outro Estado, ou de qualquer outra forma incompatível com a Carta das Nações
Unidas. Independentemente da existência ou não de uma declaração de guerra, em conformidade com a
Resolução n. 3314 (XXIX) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 14 de dezembro de 1974”. O artigo
inclui como atos de agressão estes: a) A invasão do território de um Estado; b) O bombardeio; c) O bloqueio
de portos ou das costas de um Estado; d) O ataque pelas forças armadas de um Estado contra as forças
terrestres, navais ou aéreas, ou contra a marinha mercante e a aviação civil de outro Estado; e) O envio,
272

se denominava “crime contra a paz”, somente foi tipificado em 2010, na Con-


ferência de Revisão do Estatuto de Roma, ocorrida em Kampala (Uganda).
No que tange aos crimes de guerra, é impossível negar a importância
do legado deixado pelo Tribunal de Nuremberg. Trata-se de órgão jurisdi-
cional passível de críticas por razões sabidas: pelo fato de ter sido tribunal
de exceção, criado pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial, e por ter
sido instituído em descumprimento do princípio de reserva legal (Nullum
crimen sine lege; nulla poena lege poenale). No que se refere a este último
aspecto, há quem entenda que a prescrição legal já existia antes da instituição
do Tribunal de Nuremberg no chamado direito internacional consuetudinário
e nos crimes contra a paz (Pacto Briand-Kellog), além da regulamentação da

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


conduta da guerra estabelecida nas convenções da Haia46. Mesmo se aceito
esse argumento, ainda assim permanece o defeito jurídico do Tribunal de
Nuremberg, isto é, de ser instância jurisdicional parcial que não alcança todos
os que cometeram crimes durante a Segunda Guerra Mundial, mas somente
os que saíram derrotados. Razão por que Jescheck chama-o de “tribunal das
forças aliadas de ocupação”47. Jiménez de Asúa também manifesta opinião
negativa em relação ao Tribunal de Nuremberg, ele critica o procedimento
e a publicidade e diz não acreditar que tenha sido justiça exemplar. Ainda
consoante Jiménez de Asúa: “Lo que más importa es que se ha vulnerado
el principio nullum crimen, sine praevia lege”48. E conclui, “[...] Por lo
demás, tampoco se enjuició en Nuremberg a todos los auténticos culpables
de la guerra”49. Em relação à primeira crítica de Jiménez de Asúa, pode-se
argumentar, em favor do Tribunal, a existência de certo direito penal inter-
nacional consuetudinário e das convenções da Haia, mas resulta inteiramente
indefensável a parcialidade do referido tribunal, criado apenas para julgar
um dos lados, o dos vencidos.

por parte de um Estado, de grupos armados, de forças irregulares ou de mercenários que pratiquem, contra
outro Estado, atos de força armada de gravidade equiparável à dos atos acima enumerados.
46 Cf. MELLO, Celso D. de Albuquerque. Direito penal e direito internacional. Rio de Janeiro: Livraria Freitas
Bastos, 1978. p. 211-212. Veja-se também JESCHECK, Hans-Heinrich. Crimes du droit des gens. Revue
internationale de droit pénal, 1955, v. 26, p. 534, apud GIL GIL, Alicia. El genocidio y otros crímenes
internacionales. Valencia: Centro Francisco Tomás y Valiente, 1999. p. 83. A questão da parcialidade do
Tribunal de Nuremberg é abordada por Celso Mello da seguinte forma: “Devemos reconhecer que razão
assiste àqueles que afirmam que o grande crime dos alemães foi terem perdido a guerra, porque se eles
vencessem os mesmos argumentos aqui desenvolvidos seriam utilizados em sentido contrário”. MELLO,
Celso D. de Albuquerque. Op. Cit. p. 213.
47 JESCHECK, Hans-Heinrich. El Tribunal Penal Internacional. Tradução: María José Pifarré de Moner. Revista
penal, n. 8, p. 53-59, 2001. p. 54. Disponível em: http://hdl.handle.net/10272/12965.
48 JIMENEZ DE ASUA, Luis. Principios de derecho penal: la ley y el delito. Buenos Aires: Abeledo-Perrot,
1997. p. 174-175.
49 Ibid., p. 175.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 273

Além do que, no que concerne ao julgamento de crimes de guerra, é


acertado lembrar o princípio da competência universal, “[...] que permite a
qualquer Estado punir um criminoso, não importando a sua nacionalidade, ou
o bem jurídico atingido ou, ainda, o local onde se tenha cometido o delito”50.
O exercício de tal competência na situação da guerra na Ucrânia é factível?
Que Estado oportunamente estaria em condições de julgar criminosos de
guerra da Rússia? Não é demais lembrar que esse Estado tem direito de veto
no Conselho de Segurança e detém o maior arsenal nuclear do planeta. Pare-
ce-me que o problema de julgar criminosos de guerra, embora possa ser feito
por determinado Estado no exercício da competência universal, é, ou deveria
ser, da alçada da sociedade internacional. Na verdade, o próprio Conselho de
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Segurança, nos termos do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, pode
ampliar a jurisdição do Tribunal Penal Internacional (Cf. art. 3, b, do Esta-
tuto de Roma). Neste caso, o TPI “[...] assume na prática a função de órgão
permanente do Conselho de Segurança com competência geral em matéria
de crimes previstos no Estatuto, independentemente do lugar que se tenham
cometido”51. Como se pode observar, há mecanismos jurídicos e instâncias
adequadas para castigar os criminosos de guerra. No entanto, o Conselho de
Segurança, ainda mal, continua sendo o óbice intransponível nessa matéria,
porque abriga Estados com direito de veto, dentre eles a Rússia.
Francisco Rezek, que nega a personalidade jurídica internacional do
indivíduo, afirma que:

“No caso de Nuremberg nunca se poderá negar o peso do imperativo ético


que impôs o sacrifício de certos princípios elementares de direito penal”52.
E arremata: “O produto daquele tribunal não prova o argumento de que
o direito das gentes imponha diretamente obrigações ao indivíduo”53.

Bem ao contrário da posição de Rezek, acham-se as da Comissão de


Direito Internacional e as da Assembleia das Nações Unidas, que reconheceram

50 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Op cit (nota 11), p. 34.


51 JESCHECK, Hans-Heinrich. Op. cit. (nota 47), p. 59.
52 REZEK, José Francisco. Op cit. (nota 1), p. 192.
53 Com a devida vênia, Rezek confunde sujeito de direitos com objeto de regulamentação jurídica. Veja-se
o que ele diz: “Muitos são os textos internacionais votados à proteção do indivíduo. A flora e a fauna tam-
bém constituem objeto de proteção por normas de direito das gentes, sem que se lhes tenha pretendido,
por isso, atribuir personalidade jurídica” (Idem, p. 191). Lendo essa passagem, é inevitável a lembrança
da obra “Le droit et les droits de l’homme” de Michel Villey. Rezek, grande jurista, segue certa corrente
internacionalista, hoje minoritária. Em sentido contrário, no Brasil, merece destaque Gerson Boson e,
principalmente, Cançado Trindade, defensor incondicional da tese que atribui personalidade jurídica à
pessoa humana. Cançado Trindade, falecido recentemente, dedicou boa parte da sua vida à defesa do
ser humano como sujeito de Direito internacional.
274

a importância do precedente e significativo legado deixado pelo Estatuto e pelas


sentenças do Tribunal de Nuremberg e pelos princípios de direito internacional
reconhecidos e aplicados (Cf. A/RES/94 (I) e A/RES/488(V)54).
Como já supracitado, os tribunais criados posteriormente (quer ad hoc
quer o próprio Tribunal Penal Internacional) não contrariam o catálogo de
crimes estabelecido pelo Estatuto de Nuremberg, pelo contrário, houve con-
tinuidade e aperfeiçoamento. De fato, isso está demonstrado pela tipificação
dos crimes de guerra tanto no Estatuto de Nuremberg (art. 6º, b) como pelo
Estatuto de Roma (art. 8º).
Entre os primeiros tribunais internacionais penais ad hoc e o TPI está a
extraordinária contribuição da Comissão de Direito Internacional das Nações

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Unidas (CDI)55, que tem papel central no trato dos principais tipos penais de
direito internacional que tinham sido aplicados pelo Tribunal de Nuremberg.
Nesse sentido, está o “Projeto de código de crimes contra a paz e a segurança da
humanidade”, elaborado pela CDI, projeto cuja nova versão veio a lume em 1994
(Cf. DOC. A/CN.4/45). No entanto, o movimento que objetivava a criação de
uma jurisdição penal internacional ficou paralisado devido à falta de definição do
“crime de agressão”. Finalmente, em 1995, tomou a decisão de criar um Grupo
de Trabalho com o objetivo de elaborar o Projeto de Estatuto do Tribunal Penal
Internacional, o qual foi aprovado em 14 de abril de 1998.
A recepção de certos princípios, estabelecidos pelos tribunais de exceção,
são filtrados e incorporados ao arcabouço jurídico do direito das gentes. Os
princípios assim estabelecidos estão livres das máculas de origem, pois carecem
de efeito vinculante, mas servem de lastro na formação do direito internacional
humanitário consuetudinário. Na seção seguinte deste escrito tratar-se-á desse
DIH consuetudinário, ao qual estão vinculados todos os Estados.
No mencionado “Projeto de código de crimes contra a paz e a segurança da
humanidade”, o sexto princípio aprovado pela Comissão de Direito internacional
das Nações Unidas trata dos crimes de direito internacional, na seguinte ordem:
a) crimes contra a paz; e b) crimes de guerra; c) crimes contra a humanidade.
Como o assunto em pauta é crimes de guerra, o Princípio detalha esses ilícitos:

54 A/RES/94 (I) Confirmação dos princípios do Direito Internacional reconhecidos pelo estatuto do Tribunal
de Nuremberg. Quinquagésima quinta sessão plenária, de 11 de dezembro de 1945. A/RES/488(V) For-
mulação dos princípios de Nuremberg, de 12 de dezembro de 1950. Esses Princípios de Nuremberg foram
publicados no Yearbook of the International Law Commission 1950. United Nations: New York, 1957. v. 2,
p. 195. Nas páginas 191-195, comenta-se princípio por princípio. Cf. também o Relatório de J. Spiropoulos,
Relator Especial (Document A/CN.4/22). p. 181-190.
55 A Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas foi instituída pela Assembleia Geral mediante a resolução
174 (II), 1947. A Comissão de Direito Internacional tem por finalidade “Promover o desenvolvimento progressivo
do direito internacional e sua codificação” (Art. 1. do Estatuto). A Comissão, que se reúne anualmente em
Genebra, é composta por 34 membros de “reconhecida competência em direito internacional”.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 275

violações das leis ou costumes de guerra, assassinatos, maus-tratos, deportação


para trabalho escravo da população civil do território ocupado; assassinato ou
maus-tratos de prisioneiros de guerra, assassinato de reféns, pilhagem de pro-
priedade pública ou privada, destruição arbitrária de cidades, vilas ou aldeias,
ou devastação não justificada por necessidade militar56.

6. O crime de guerra no Estatuto de Roma

O artigo 8º do Estatuto de Roma (1998), que acolheu o direito inter-


nacional humanitário até então existente, é bastante abrangente em relação
à matéria. Em vista disso, é lídimo reconhecer, também, que o artigo 8º é
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

receptor distinto das contribuições normativas de Haia a Genebra e do notável


labor da Comissão de Direito Internacional. O dispositivo, de que se trata,
prescreve, de modo exaustivo, a competência do Tribunal para julgar os crimes
de guerra, “[...] em particular quando cometidos como parte integrante de um
plano ou de uma política ou como parte de uma prática em larga escala desse
tipo de crimes”. O artigo 8º divide-se em duas partes: a primeira cuida dos
crimes de guerra de índole internacional (§ 2º, a e b); a segunda parte trata
de crimes de guerra de índole não internacional.
Em harmonia com o que estabelece o citado Estatuto, os crimes de guerra
em conflitos de caráter internacional57, como os que estão em pauta, são prescritos
tomando como ponto de partida as violações graves às Convenções de Genebra,
de 1949. São referidos como crimes de guerra, portanto, os atos perpetuados
contra pessoas ou bens que se achem ao abrigo dos referidos instrumentos de
direito internacional humanitário, a saber: o homicídio doloso, a tortura, os atos
que causem intencionalmente grande sofrimento, a destruição ou apropriação de
bens, o ato de compelir prisioneiro de guerra a servir nas forças armadas inimigas,
a privação intencional de prisioneiro de guerra sem o direito a julgamento justo
e imparcial, deportação ou transferência ilegal, a tomada de reféns.
56 Acima se reproduz, quase ipsis litteris, em tradução do pesquisador, a citação original completa: “War crimes:
violations of the laws or customs of war include, but are not limited to, murder, ill-treatment or deportation to
slave-labour or for any other purpose of civilian population of or in occupied territory, murder or ill-treatment
of prisoners of war, of persons on the seas, killing of hostages, plunder of public or private property, wanton
destruction of cities, towns, or villages, or devastation not justified by military necessity”. Cf. Yearbook of the
International Law Commission. 1950. New York, 1957. v. 2, p. 195.
57 O mesmo artigo 8º determina também quais são os crimes de guerra em conflitos que não sejam de
índole internacional: as violações graves do artigo 3º comum às quatro Convenções de Genebra, de
12 de Agosto de 1949, são os atos “[...] cometidos contra pessoas que não participem diretamente nas
hostilidades, incluindo os membros das forças armadas que tenham deposto armas e os que tenham
ficado impedidos de continuar a combater devido a doença, lesões, prisão ou qualquer outro motivo”.
Após listar os atos de violência contra a vida e contra a pessoa, prescreve que o artigo não se aplica
“[...] a situações de distúrbio e de tensão internas, tais como motins, atos de violência esporádicos ou
isolados ou outros de caráter semelhante”.
276

Na seção seguinte (art. 8º § 2º, b) abordam-se as violações graves às nor-


mas e usos aplicáveis aos conflitos armados internacionais. O primeiro desses
atos remete a situações vivenciadas na atual guerra na Ucrânia (como as brutais
imagens de Mariupol e de Bucha). A este respeito, diz-se que mais de 400 cor-
pos de civis ucranianos foram achados em valas comuns na cidade de Bucha.
Essa situação se repete em outras regiões ucranianas, por exemplo, Chernihiv,
Kharkiv. De acordo com Belkis Wille, pesquisadora da Human Rights Watch,
“Em março, as forças russas realizaram vários ataques, terrestres e aéreos, a
áreas povoadas em Chernihiv sem aparentemente prezar pelas vidas de civis”.
Na verdade, são descritos vinte e seis crimes de guerra, dentre os quais
cabe destacar os seguintes: ataques intencionais à população civil e aos bens
civis, que não sejam objetivos militares; bombardear zonas habitadas por civis,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


que não sejam objetivos militares; matar ou ferir combatentes, que tenham
deposto as armas; a deportação ou transferência da totalidade ou de parte da
população do território ocupado, dentro ou fora desse território.
São crimes de guerra, da mesma forma, “[...] os ataques intencionais a
edifícios consagrados ao culto religioso, à educação, às artes, às ciências ou
à beneficência, monumentos históricos, hospitais e lugares onde se agrupem
doentes e feridos, sempre que não se trate de objetivos militares” (art. 8º § 2º, b,
ix). Cabe aqui fazer um parêntese para relevar a importância deste dispositivo,
pois cuida da estrutura física e dos monumentos históricos. O Estatuto procura
destacar que eles não são objetivos militares, mas na guerra em questão sobejam
ataques a escolas, hospitais, igrejas e até a um teatro que abrigava civis. Causa
espanto a notícia da morte de pelo menos 600 pessoas, tal carnificina foi o
resultado do ataque aéreo russo ao Teatro Regional de Drama de Donetsk, fato
ocorrido em 16 de março de 2022, em Mariupol (Ucrânia). Esses atos crimi-
nosos chocam e têm precedentes terríveis, como o da destruição, em 2001, das
estátuas de Buda pelo Talebã (Afeganistão), ou a destruição de antiguidades no
Iraque perpetradas pelo grupo denominado Estado Islâmico58.
O Estatuto de Roma lista também como crimes de guerra: a declaração
de que não será dado quartel (guerra sem quartel ou guerra total) (art. 8º § 2º,
b, xii). Embora a norma de direito internacional consuetudinário, que trata da
obrigação de não dar quartel, vede que se ataque a pessoa reconhecidamente
fora de combate, ou que se ordene que não haja sobreviventes, tudo indica que
a guerra na Ucrânia se aproxima em boa medida da dita guerra total. Acerca

58 A lista de perdas provocadas pelas guerras é enorme e irreparável, vale lembrar, por último, os sérios danos
causados pelos venezianos ao templo do Parthenon, da Acrópole de Atenas, em 1687 (Cf. Grande Guerra
Turca) ou a demolição das torres da Alhambra (Espanha), em 1812, feitas pelos franceses comandados
por Napoleão. Cf. Convenção e Protocolo para a proteção de bens culturais em caso de conflito armado,
de 1954. Protocolo I, art. 53; Protocolo II, art. 16.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 277

deste crime, convém esclarecer que o conceito de guerra total foi teorizado pelo
general alemão Erich Ludendorff (1865-1937), veterano da Primeira Guerra
Mundial, na obra A Guerra Total (Der Totale Krieg, 1935). Esse tipo de guerra
consiste na mobilização de todos os recursos materiais e humanos do Estado
com vistas à destruição do inimigo. Importa observar que a obra clássica “Da
Guerra” (Vom Kriege, 1832) de Clausewitz é considerada pelo próprio Luden-
dorff como “[...] resultado de uma evolução histórica hoje anacrônica e desde
qualquer ponto de vista ultrapassada; o estudo desta obra correria o risco de
criar confusão”59. A guerra total de Ludendorff refere-se à prática da guerra,
não à teoria, como faz Clausewitz na aludida obra. Este expediente de guerra
sem quartel viola todas as regras aplicáveis aos conflitos armados, posto que,
sobretudo da parte russa, tudo indica que não há distinção entre beligerantes
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

e não beligerantes. Trata-se, pois, de declaração temível que se traduz na vio-


lência generalizada sem perdão da vida de ninguém, ordenando que não haja
sobreviventes. Os edifícios em ruínas e outros vestígios devastadores do cerco a
Mariupol, como o ataque ao teatro da cidade, é lícito supor que materializam o
crime60. Rezek afirma que no depoimento ao Tribunal de Nuremberg o marechal
Hermann Göring “[...] pretendeu explicar o descaso do Reich alemão por seus
compromissos exteriores, afirmando que a guerra total torna caducas todas as
prescrições do direito internacional público”61.
É crime de guerra igualmente a destruição ou a apreensão de bens do ini-
migo sejam militares ou civis. Constitui crime de guerra também “[...] obrigar
os nacionais da parte inimiga a participar em operações bélicas dirigidas contra
o seu próprio país”. A utilização de veneno, de gases asfixiantes ou tóxicos; o
emprego de “[...] balas que se expandem ou achatam facilmente no interior do
corpo humano”. A respeito deste último ponto, a regulamentação remonta à
Declaração de São Petersburgo (1868), que trata das balas explosivas de peso
inferior a 400 gramas; já as balas que se expandem ou se achatam facilmente
no interior do corpo humano são versadas em outro instrumento (Declaração
da Haia, 1899) (Cf. Art. 8º, b, xiii-xix).
Considera-se crime de guerra, igualmente, o sofrimento causado intencio-
nalmente às pessoas protegidas pelas normas de direito internacional humani-
tário. Da mesma forma, o Estatuto de Roma tipifica o crime: “Utilizar armas,

59 LUDENDORFF, Erich. La guerra total. Tradução: J. C. Iglesias Brickles. Buenos Aires: Pleamar, 1964. 12 p.
60 Não dar quartel se traduz pela violência indiscriminada, sem respeito pela vida das pessoas, mesmo as
que estejam impossibilitadas de defender-se ou tenham se rendido. Com afronta, portanto, às normas que
disciplinam a conduta dos beligerantes. O Protocolo I (1977), no art. 40, preceitua o seguinte: “É proibido
ordenar que não haja sobreviventes, ameaçar com isto o adversário ou conduzir as hostilidades em função
de tal decisão”. Veja-se também o art. 23 da Convenção de Haia, de 1907 (IV), relativa às Leis e Costumes
da Guerra Terrestre.
61 REZEK, José Francisco. Op. cit. (nota 1), p. 447.
278

projéteis, materiais e métodos de combate que, pela sua própria natureza, causem
ferimentos supérfluos ou sofrimentos desnecessários ou que surtam efeitos
indiscriminados, em violação do direito internacional aplicável aos conflitos
armados”. Trata-se de aspecto importante que já consta do Protocolo I de 1977,
na seção relativa aos métodos e meios de guerra (art. 35 § 2º). Em relação aos
métodos de combate, que agravam em vão o sofrimento das pessoas que estão
fora de combate, a Regulamento da Convenção da Haia (1907) relativa às leis
e costumes da guerra terrestre (IV) já trata desse assunto (cf. art. 22). Como se
disse em outra parte deste artigo, o Estatuto de Roma acolhe todas as contri-
buições de direito internacional humanitário até então existentes.
Constituem-se crimes de guerra, do mesmo modo, os atos contrários à

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


dignidade da pessoa humana, especialmente os crimes cometidos contra a
mulher, que goza de ampla proteção do direito internacional humanitário. O
Estatuto de Roma repete essa normativa protetora: “Cometer atos de violação,
escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez à força” (art. 8º, b, xxii).
Hugh Williamson, diretor da Human Rights Watch, diz que “Os casos que
documentamos representam crueldade e violência indescritíveis e delibera-
das contra civis ucranianos”. Este assunto está amplamente positivado nas
convenções de Genebra e nos Protocolos62.
Reputa-se crime de guerra o ataque intencional ao Serviço Sanitário.
“Ataques intencionais a edifícios, material, unidades, veículos sanitários e pes-
soas que estejam usando os emblemas distintivos das Convenções de Genebra”
(Art. 8º, b, xxiv). O uso de distintivos tem por objetivo proteger as pessoas
e os bens que gozam de proteção internacional conforme as Convenções de
Genebra, por exemplo: a Cruz Vermelha Internacional sobre fundo branco,
que protege o pessoal sanitário e religioso, as unidades sanitárias e os meios
de transporte sanitário. Este assunto está bem detalhado também no Protocolo
I (Cf. do art. 8º ao 30º).
É crime utilizar a fome como método de guerra contra a população civil.
“Provocar deliberadamente a inanição da população civil como método de guerra,
privando-a dos bens indispensáveis à sua sobrevivência” (Art. 8º, b, xxv). Razão
por que é proibido atacar, destruir, retirar ou pôr fora de uso bens indispensáveis
à sobrevivência da população civil, dentre outros: principalmente os gêneros
alimentícios e as zonas produtoras desses alimentos. A este respeito, veja-se
Protocolo I (art. 54). Não é demais lembrar o enorme impacto que a guerra na

62 Cf. Convenções de Genebra de 1949. Na Convenção I, artigos: 3 e 12. Na Convenção II, artigos: 3 e 12.
Na Convenção III, artigos: 3, 14, 16, 25, 29, 49, 88, 97 e 108; Na Convenção IV, artigos: 3, 14, 16, 17,
21-23, 27, 38, 50, 76, 85, 89, 91, 97, 98, 119, 124, 127, 132. No Protocolo I (1977) artigos: 8º, 70, 75, 76.
No Protocolo II (1977) artigos 4, 5, 6. VERRI, Pietro. Diccionario de Derecho Internacional de los conflictos
armados. Tradução: Mauricio Duque Ortiz y René Cabrera. Bogotá: Tercer Mundo, 1999. p. 67.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 279

Ucrânia tem no mundo inteiro, porque o país é um dos principais produtores


de alimentos. Portanto, parte do mundo também foi condenada a passar fome,
sobretudo na África, ou a pagar mais pelos alimentos.
Considera-se crime de guerra, também, recrutar menores de quinze anos
como combatentes, como repetidas vezes tem ocorrido em países africanos63,
mas também na Ásia. No caso de que se está tratando, as crianças ucranianas
estão sendo duramente afetadas pela guerra, que as deixa fora da escola, órfãs
ou mortas, sem contar os traumas terríveis e as sequelas dessa guerra atroz.
Segundo Catherine Russell, Diretora Executiva do UNICEF, na Ucrânia, quase
1.000 crianças foram mortas ou feridas desde o início da guerra.
Quanto às sanções previstas relativas aos crimes de guerra, segundo o
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Estatuto de Roma, são estas: a) pena privativa de liberdade até o limite de


trinta anos; b) pena de prisão perpétua (se o elevado grau de ilicitude do fato
e as condições pessoais do condenado o justificarem); c) além das penas de
prisão, o TPI também poderá aplicar a pena de multa. Como se pode observar,
o Estatuto de Roma e os Estatutos da Ex-Iugoslávia e de Ruanda excluem a
pena de morte na lista de penas aplicáveis. Trata-se de grande avanço na luta
pela abolição da pena de morte.
A base legal para julgar os criminosos de guerra não está apenas nos
tratados, mas também nas normas do direito internacional humanitário con-
suetudinário. A ameaça de Putin, de usar armas nucleares, constitui grave
violação das normas internacionais, mais grave do que a declaração de que
não se dará quartel (Cf. 5). Discordo frontalmente da doutrina que afasta a
ilicitude, porque o emprego de armas nucleares não está regulado pelo direito
internacional. O uso de armas nucleares é crime de guerra, porque viola as
convenções de Genebra de 1949 e 1977, bem como as normas do direito
internacional humanitário consuetudinário.
Os crimes de guerra, bem como todos os crimes submetidos à jurisdição
do TPI são imprescritíveis (art. 29). Como se pode verificar, o Estatuto de
Roma amplia a regra de imprescritibilidade em razão da matéria, porque a
Convenção de 1968 cinge apenas os crimes de guerra e os crimes contra a
humanidade (Cf. art. 1º).

63 Segundo o UNICEF há, atualmente, em torno de 300.000 crianças vítimas de recrutamento e que participam
como soldados em mais de 30 conflitos em todo o mundo, com destaque para estes Estados: Sudão do
Sul, República Democrática do Congo, Afeganistão, Iêmen, Síria, Etiópia, Mianmar etc. O UNICEF analisa
essa grave situação das crianças com estas palavras: “Durante o tempo em que estas crianças estão vin-
culadas às forças e grupos armados, são testemunhas e vítimas de terríveis atos de violência e, inclusive,
são obrigados a exercê-la. Os traumas emocionais que isso lhes pode provocar são difíceis de superar”.
Cf. UNICEF. Comunicado de prensa. 31 dez. 2021. Veja também: Noor Mahtani. El precio de la guerra
lo pagan los niños. El País. 25 ene. 2022. Disponível em: https://elpais.com/planeta-futuro/2022-01-25/
el-precio-de-la-guerra-lo-pagan-los-ninos.html.
280

Quanto ao julgamento dos crimes de guerra na Ucrânia, é assunto ainda


pendente, porque a guerra está ainda em curso, assim como as investigações.
Já há um razoável conjunto de provas decorrentes de relatórios institucionais
(Anistia Internacional, Organização de Segurança e Cooperação na Europa
e Human Rights Watch) de testemunhos, análises de especialistas forenses,
imagens de satélite, além das investigações do Tribunal Penal Internacional
com o intuito de reunir provas dos crimes cometidos no conflito ucraniano.
As investigações estão em curso, mas é processo demorado. Contudo, é
significativo registrar que em 17 de março de 2023, o presidente do Tribu-
nal Penal Internacional (TPI), Piotr Hofmański, anunciou a expedição de
mandado de prisão contra o presidente russo, Vladimir Putin, por crimes de
guerra (deportação em massa de crianças ucranianas). Não é a primeira vez

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


que o TPI expede ordem de prisão contra chefe de Estado ainda no poder,
o caso de Omar Al-Bashir (Sudão) demonstrou falta de colaboração dos
Estados africanos na execução da medida. De fato, sem a reformulação do
Conselho de Segurança, com o fim do direito de veto, dificilmente a normas
internacionais serão eficazes em relação a todos os Estados. Nesse sentido,
o direito de veto se traduz em impunidade.
A despeito da crítica contra o “direito” de veto do Conselho de Segurança,
no entanto, já há algumas condenações e processos em andamento64. Contudo,
a questão mais significativa e indispensável é o da eleição e do emprego dos
meios aptos, conforme o direito internacional, a por termo a essa guerra.

7. O dever de buscar os meios pacíficos na solução do conflito

Há meios pacíficos autorizados pelo direito internacional na solução dos con-


flitos armados, como o que está em curso na Ucrânia? Não só existem tais meios,
como são obrigatórios. Antes de abordar esse tema à luz da Carta das Nações
Unidas, convém fazer referência a um documento que ilumina o problema.
É impressionante a atualidade da Encíclica Pacem in Terris (Paz na terra)
do papa João XXIII65, tanto em relação ao poder de destruição das armas moder-
nas como em referência à negociação (diálogo) como meio de solução dos
64 O sargento russo Vadim Shishimarin, por exemplo, acusado pela justiça ucraniana de assassinar a tiros o
civil Olkesandre Chelipov, foi condenado 15 anos de prisão. Foram também condenados os militares russos
Alexander Bobikin e Alexander Ivanov, acusados de bombardear duas localidades da região de Kharkiv.
Há ainda o caso de o militar russo, Mikhail Romanov, acusado de ter cometido estupro. As autoridades
ucranianas já identificaram mais de uma dezena de crimes sexuais cometidos por militares russos, todos
perpetrados na região de Kiev. O tenente Vasili Litvinenko acusado pela Procuradoria-Geral ucraniana de
ter ordenado ataque contra civis desarmados em Lipivka. Autoridades da Ucrânia registraram, até 31 de
maio de 2022, 15.000 casos suspeitos de crimes de guerra.
65 A Encíclica Pacem in Terris, de abril de 1963, tem por subtítulo: “A Paz de todos os povos na base da
Verdade, Justiça, Caridade e Liberdade”.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 281

conflitos. A Encíclica diz: “Difunde-se cada vez mais entre os homens de nosso
tempo a persuasão de que as eventuais controvérsias entre os povos devem ser
dirimidas com negociações e não com armas” (Pacem in Terris, nº 125).
A catástrofe nuclear, já faz certo tempo, ronda o mundo como o maior
desafio. Vive-se sob o manto da ameaça quotidiana, sob o medo de que alguém
empregue armas atômicas, não necessariamente a Rússia de Putin. É preci-
samente nesse sentido que João XXIII, a suma autoridade da Igreja Católica,
questiona a licitude da guerra. Diz ele: “[…] o terrível poder de destruição
das armas modernas é alimentado pelo temor das calamidades e das ruínas
desastrosas que estas armas podem acarretar”. Dá-se o alerta no documento
para o tamanho do perigo, ademais de mostrar a inadequação da violência como
meio de solução de desavenças: “[…] não é mais possível pensar que nesta
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

nossa era atômica a guerra seja um meio apto para ressarcir direitos violados”
(Pacem in Terris, nº 126). Parece-me irretocável essa afirmação. Não é sensata
a promoção de guerra, seja de que tipo ela for (legal ou ilegal, legítima ou
ilegítima, justa ou injusta). Mas, o permanente espetáculo da guerra no caso
da Ucrânia, que dia após dia segue inalterado, seguramente não é a melhor
maneira de lidar com situação tão temerária. Há riscos incomensuráveis para
todos. Quanto tempo falta e quantos malefícios ainda serão necessários, antes
de os beligerantes invocarem ou aceitarem o diálogo?
Deve lembrar-se que o caso da guerra na Ucrânia não é novo, os Estados
Unidos, por exemplo, só para citar casos recentes, ocuparam militarmente o
Iraque, antes tinham invadido o Afeganistão, usando argumentos semelhan-
tes (Guerra Preventiva66), como resposta aos atentados de 11 de setembro de
2001. Neste caso, assim como no caso da Ucrânia, antes do uso da força a
questão deveria ter sido deslocada para o Conselho de Segurança e passar a
ser tratada como questão de interesse da sociedade internacional, e não apenas
de interesse de um Estado que invade outro como “prevenção”. Trata-se de
questão relevante, porque tanto os Estados Unidos como a Rússia têm “direito
de veto” no Conselho de Segurança.

66 Remeto o leitor a texto escrito por mim a respeito desse assunto: “Os fundamentos da denominada Doutrina
Bush em geral, e da guerra preventiva em particular, encontram-se numa série de discursos e documentos
emanados da Casa Branca a partir de 2001. Na versão oficial, a justificativa da formulação dos preceitos que
constituem essa doutrina está na proteção preventiva e na afirmação da hegemonia dos Estados Unidos.
O propósito central da doutrina é o de Combater o terrorismo. Mas, de acordo com essa doutrina, quem é
considerado terrorista e quem julga essa questão? O conceito de terrorismo pode abranger várias categorias
de sujeitos. Assim, terroristas podem ser, por exemplo, os Estados reunidos sob a denominação eixo do mal;
pode ser considerado terrorista, ainda, qualquer Estado que os Estados Unidos apontem como tal; podem ser
também considerados terroristas, do mesmo modo, facções ou pessoas; tudo sempre a critério do governo de
Washington. Consoante o presidente Bush: “Não fazemos distinção de espécie alguma entre os terroristas e
os que conscientemente lhes dão abrigo ou fornecem ajuda”. SORTO, Fredys Orlando. A Doutrina Bush das
guerras preventivas e o Sistema das Nações Unidas. In: MERCADANTE, Araminta de Azevedo; MAGALHÁES,
José Carlos (org.). Reflexões sobre os 60 anos da ONU. Ijuí: Unijuí, 2005. p. 139.
282

Enquanto permanecer o nefasto “direito de veto” no Conselho de Segu-


rança, a paz estará permanentemente ameaçada. Se é da competência do Conse-
lho de Segurança das Nações Unidas o monopólio do controle do uso da força
nas relações internacionais, a igualdade jurídica dos Estados deveria ser rigoro-
samente observada. Mas, infelizmente, não funciona assim. Não é demais recor-
dar que, em detrimento dessa tirania dos cinco Estados (pentarquia), Carrillo
Salcedo defende a igualdade jurídica dos Estados como norma de Ius Cogens.
Se a composição do Conselho de Segurança fosse diferente, se estivesse
esse órgão realmente a serviço da sociedade internacional, não teria ocorrido
nenhum grave conflito armado depois da instituição da Carta das Nações
Unidas. Ainda mal que a guerra tem sido a constante: Guerra da Coreia (1950-
1953), Guerra do Vietnã (1955-1975), Guerra Afegã-Soviética (1979-1989),

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Guerra Irã-Iraque (1980-1988), Guerra do Iraque (2003-2011) e tantas outras.
O traço comum dessas guerras é o envolvimento direto de algum dos membros
permanentes do Conselho de Segurança.
A consideração da ilicitude da guerra e da sua proibição é consagrada na
Carta das Nações Unidas (1945). Razão por que os membros da Organização
estão obrigados a resolver os conflitos por meios pacíficos, “[...] de modo que
não sejam ameaçadas a paz, a segurança e a justiça internacionais” (Art. 2º § 3º)
(locução mais ampla que o termo guerra, porque nem todas as ações violentas
entre Estados são guerras). Em outro parágrafo do mesmo artigo (Cf. art. 2º
§ 4º), a Carta da ONU prescreve que “Todos os Membros deverão evitar em
suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade
territorial ou a dependência política de qualquer Estado, ou qualquer outra
ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas”. Este parágrafo é
fundamental e constitui, segundo Kelsen, a verdadeira obrigação dos membros
das Nações Unidas67. O principal instrumento de direito internacional positivo
põe, de uma vez por todas, a guerra no catálogo dos ilícitos internacionais.
Quanto à solução no sistema das Nações Unidas, o capítulo VI da Carta
cuida com propriedade da solução pacífica de controvérsias. É importante
notar que na Carta se afirma que em caso de conflito, que ameace a paz e a
segurança internacionais, as partes devem procurar, antes de tudo, resolver
a questão por meios pacíficos, dentre eles destacam-se estes: a) diplomáti-
cos (negociação, mediação, conciliação), b) políticos (Assembleia Geral e
Conselho de Segurança) e c) jurisdicionais (arbitragem, solução judicial).
Embora não haja “escalonamento hierárquico” entre os meios pacíficos,

67 Eis a referência nos mesmos termos: “The provision of Article 2, paragraph 4 to refrain from the threat
or use of force constitutes certainly a true obligation of the Members since the enforcement measures of
Chapter VII are primarily intended to be applied as reaction against the threat or use of force in violation of
Article 2, paragraph 4”. KELSEN, Hans. The law of the United Nations: a critical analysis of its fundamental
problems. London: Stevens and Sons, 1954. p. 108.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 283

como afirma Rezek (2016, p. 405), a própria Carta lista em primeiro lugar
os meios diplomáticos.
Como fecho deste singelo texto, recapitulando de certo modo o que foi
dito acima, gostaria de lembrar que a religião (Pacem in Terris), o direito
internacional (Carta da ONU) e a literatura (Guerra e Paz) são unânimes
em considerar a guerra: nociva, ilícita, estúpida. Parece-me lapidar o célebre
trecho de Guerra e Paz, do notável escritor russo Liev Tolstói (1828-1910),
a respeito da guerra, segundo ele, “O objetivo da guerra é o assassinato, os
instrumentos da guerra são a espionagem, a traição e o seu encorajamento, o
extermínio dos habitantes, a pilhagem dos seus bens ou o roubo para o abas-
tecimento do exército, a fraude e a mentira, chamadas de astúcias militares”68.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

8. Conclusões
O direito internacional humanitário não deve ser confundido com os
direitos humanos, são distintos em razão das suas especificidades, da natureza
das sentenças proferidas pelos tribunais e da índole das penas cominadas. Essa
confusão conceitual deve ser evitada.
A bem da verdade, a despeito do que ainda sustenta parte da doutrina, a
noção de guerra justa não faz mais sentido diante do poder de destruição das
armas modernas, especialmente as atômicas. O direito à legitima defesa está
acautelado na Carta das Nações Unidas, sem necessidade alguma de apelo
ao direito de “guerra justa”.
O preço da alegada segurança russa nesta guerra é a morte, a destruição,
a insegurança, o êxodo. O governo ucraniano pede armas para defender-se, é
legítimo proceder assim, mas descura a diplomacia, o diálogo, o apoio diplo-
mático em favor da negociação e não da guerra. A tragédia virou espetáculo
patético na mídia, prevalece o discurso em favor das armas em detrimento
das palavras que deveriam buscar a paz a todo custo. Certamente, falta a
razão e a diplomacia nessa lutuosa guerra, mas decerto sobram estupidez e
incompetência diplomática.
A guerra se impõe pela certeza da impunidade dos seus mentores, mal-
grado haja a proibição na Carta da ONU e em documentos imprescindíveis
como a Encíclica Pacem in Terris. Questão de grande atualidade, sobretudo
quando se percebe que a maioria dos internacionalistas se dedica à análise do
conflito armado, como se a guerra fosse a única evidência em pauta e o único
caminho possível. Que desalento! Dever-se-ia lembrar a esse respeito que os
meios pacíficos de solução dos conflitos internacionais (diplomáticos, políti-
cos e jurídicos) também fazem parte do direito internacional. A diplomacia é
sem dúvida o meio mais eficiente, ela é inevitável, porque mais cedo ou mais

68 TOLSTÓI, Liev. Guerra e paz. Tradução: Rubens Figueiredo. São Paulo: Cosac Naify, 2013. p. 1617.
284

tarde terão de invocá-la. A experiência ensina que o diálogo (diplomático)


é sempre vantajoso, pois ninguém capitula, todos ganham. Mas, no conflito
bélico atual sobram atos e argumentos em favor da guerra, tanto de um lado
como do outro, a força bruta salta aos olhos. Por certo ninguém teme fazer a
guerra, porque sabe de antemão que o desfecho é a impunidade, porquanto o
Conselho de Segurança é incapaz de agir em prol da sociedade internacional,
pois neste caso está imobilizado pelo “direito de veto” da Rússia.
Essa guerra na Ucrânia traz à tona a famigerada doutrina da “Guerra
Preventiva” do governo George W. Bush. Com a justificativa de que o Ira-
que da época desenvolvia armas de destruição em massa, os Estados Unidos
invadiram o Iraque. Esse argumento torpe que justificou a invasão não esteve
alicerçado em fatos, depois se revelou a sua falsidade. No caso da invasão da

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Ucrânia, pode ser até fundado o temor por causa da expansão da OTAN, mas
não é justificativa razoável para provocar essa guerra ilegítima e ilegal que
afronta a Carta das Nações Unidas e afeta toda a Humanidade.
A guerra na Ucrânia, e a sua imensa lista de crimes, deixa evidente a
incapacidade do Conselho de Segurança de regular o uso da força na sociedade
internacional. A cada conflito armado envolvendo os membros permanentes
desse Órgão, a Carta das Nações Unidas e a própria Organização são desmo-
ralizadas, caducam um pouco, morrem em parte, tornando o ato de viver em
paz mais perigoso.
O denominado “direito de veto”, diga-se claramente, é o que impede
que as Nações Unidas exerçam cabalmente o seu papel, no que tange ao uso
da força nas relações internacionais. Essa esdrúxula tirania de cinco Estados
(Estados Unidos, Rússia, Reino Unido, França e China), embrechada no Con-
selho de Segurança, faz com que qualquer assunto de interesse de um desses
Estados se sobreponha aos interesses da coletividade (sociedade internacional).
Em consequência, na prática, esses membros permanentes, que detêm “direito
de veto”, sobrepõem-se às normas de direito internacional. O que vale para
os outros sujeitos de direito não vale para eles. Destituídos desse privilégio
absurdo, os Estados Unidos não teriam invadido o Iraque, nem a Rússia a
Ucrânia. Aplicar-se-lhes-ia a Autoridade da Carta das Nações Unidas.
A guerra é a atividade mais animalesca e terrível que existe, demons-
tram-no, no caso em discussão, os ataques a alvos civis em Mariupol e Bucha,
verbi gratia. Razão pela qual não existem vencedores na guerra, visto que não
é atividade construtiva. A sua ilicitude, infelizmente, não resiste à ganância
dos que a promovem, dos mercadores da morte e do sofrimento, totalmente
desnecessários, de todos os que são vítimas dessa sanha delituosa. A mera
tipificação dos crimes não garante a punição, de modo que a impunidade se
traduz em escárnio ao direito internacional em vigor.
16. A AMEAÇA NUCLEAR NA
GUERRA ENTRE RÚSSIA E UCRÂNIA
E A FORMAÇÃO DE UM NOVO
CRIME INTERNACIONAL
Tarciso Dal Maso Jardim

1. Da não inserção do crime de guerra no Estatuto de Roma do


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Tribunal Penal Internacional, apesar de propostas como a da Ucrânia

1.1 A extrema gravidade das armas nucleares e sua equivalência às


demais armas de destruição em massa

A tipificação dos crimes de guerra foi sendo definida durante as nego-


ciações para o estabelecimento do Tribunal Penal Internacional (TPI) por
diversos métodos, como o aproveitamento de dispositivos convencionais de
aceitação geral e de definições consagradas até então pelos tribunais penais
internacionais ad hoc ou o Projeto do Código de Crimes contra a Paz e a
Segurança da Humanidade.
Sobre o tema específico das violações sérias do direito e costumes apli-
cáveis em conflitos armados, em 1995, o Comitê Ad Hoc para o estabele-
cimento do TPI ponderou que o conceito de seriedade requeria aclarações
ou critérios suplementares, distinguindo as violações de alta das de baixa
gravidade, magnitude, escala ou duração. Na prática, a inclusão de um crime
de guerra na competência do Estatuto de Roma foi determinada pela força
consuetudinária internacional da violação grave ao direito internacional huma-
nitário correspondente1. Durante a Conferência em Roma não foi diferente,
as negociações sobre crimes de guerra foram coordenadas por Herman von
Hebel que, em artigo em conjunto com Darryl Robinson, sintetiza o processo
de seleção de crimes de guerra em três critérios: (a) o fato de a violação ser
suficientemente grave, (b) de possuir base consuetudinária e (c) ter ou não
aplicabilidade normativa em conflitos armados não internacionais. Em suma,
o primeiro critério foi subsidiário para descartar tipos propostos, o segundo
fundamental para a inclusão dos tipos e o terceiro a grande controvérsia2.
1 UN GENERAL ASSEMBLY. Report of the Ad Hoc Committee on the Establishment of an International Criminal
Court General Assembly Official Records. Fiftieth Session Supplement n. 22 (A/50/22), 1995, §§ 72-76.
2 HEBEL, Herman von; ROBINSON, Darryl. Crimes within the Jurisdiction of the Court. In: LEE, Roy (ed.),
The International Criminal Court. The Making of the Rome Statute. Issues, Negotiations, Results. Hague:
286

Antes de Roma, a sistematização dos tipos penais foi elaborada pelo


Comitê Preparatório para o estabelecimento do TPI que, em seu relatório sobre
a compilação de propostas, identifica três grupos de crimes de guerra. Primeiro,
as violações graves às Convenções de Genebra de 1949, que visam proteger
combatentes feridos, enfermos e náufragos, bem como prisioneiros de guerra
e civis. No segundo grupo, cogitavam outras violações sérias do direito e dos
costumes de guerra ocorridas em conflitos internacionais, e o terceiro grupo
versava sobre conflitos armados não internacionais, amparado no art. 3º comum
às Convenções de Genebra de 1949. Esse quadro foi sendo depurado por outras
reuniões do Comitê Preparatório, no sentido de sua sistematização e da escolha
dos tipos penais, até chegar ao relatório final com uma quarta categoria, a de

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


outras violações sérias em conflitos armados não internacionais.
No relatório final do Comitê Preparatório, de abril de 1998, no artigo 5º do
projeto, como crime de guerra da categoria “B” (Outras violações graves das
leis e costumes aplicáveis em conflitos armados internacionais no âmbito do
direito internacional”), a Variante 4 da alínea “o” proibia as armas nucleares
em inciso VI3. Se essa proposta de art. 5º, [crimes de guerra], “b”, alínea “o”,
tivesse obtido êxito, o uso de armas nucleares seria um crime de guerra.
A opção representada pela Variante 4 nominava o que causa ferimentos
supérfluos ou sofrimentos desnecessários ou que surta efeitos indiscriminados,
em violação ao direito internacional humanitário (DIH), nomeadamente, utilizar:
i) veneno ou armas envenenadas; ii) gases asfixiantes, venenosos ou outros, e
todos os líquidos, materiais ou dispositivos análogos; iii) balas que se expandem
ou achatam facilmente no corpo humano, tais como balas com um envelope
duro que não cubra inteiramente o núcleo ou seja perfurado com incisões; iv)
agentes bacteriológicos (biológicos) ou toxinas para fins hostis ou em conflitos
armados; (v) armas químicas, tal como definidas e proibidas pela Convenção
de 1993 sobre a Proibição do Desenvolvimento, Produção, Armazenamento e

Kluwer Law International, p. 79-126, 1999. p. 104.


3 UN PREPARATORY COMMITTEE ON THE ESTABLISHMENT OF AN INTERNATIONAL CRIMINAL COURT,
A/CONF.183/2/Add.1, 14 abr. 1998: Option 4 employing the following weapons, projectiles and material and
methods of warfare which are of a nature to cause superfluous injury or unnecessary suffering or which are
inherently indiscriminate: [...] OR [...] employing weapons, projectiles and material and methods of warfare
which are of a nature to cause superfluous injury or unnecessary suffering or which are inherently indiscrimi-
nate, such as but not limited to: (i) poison or poisoned weapons, (ii) asphyxiating, poisonous or other gases,
and all analogous liquids, materials or devices, (iii) bullets which expand or flatten easily in the human body,
such as bullets with a hard envelope which does not entirely cover the core or is pierced with incisions, (iv)
bacteriological (biological) agents or toxins for hostile purposes or in armed conflict, (v) chemical weapons as
defined in and prohibited by the 1993 Convention on the Prohibition of the Development, Production, Stock-
piling and Use of Chemical Weapons and On Their Destruction, (vi) nuclear weapons, (vii) anti-personnel
mines, (viii) blinding laser weapons, (ix) such other weapons or weapons systems as become the subject of
a comprehensive prohibition pursuant to customary or conventional international law.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 287

Utilização de Armas Químicas e sobre a sua Destruição; (vi) armas nucleares;


(vii) minas antipessoal; (viii) armas cegantes a laser; (ix) quaisquer outras armas
ou sistemas de armas que se tornem objeto de uma proibição global nos termos
do direito internacional consuetudinário ou convencional.
O Estatuto de Roma, de um lado, incluiu como crime de guerra em con-
flitos internacionais utilizar veneno ou armas envenenadas; gases asfixiantes,
tóxicos ou outros gases ou qualquer líquido, material ou dispositivo análogo;
e balas que se expandem ou achatam facilmente no interior do corpo humano,
tais como balas de revestimento duro que não cobre totalmente o interior ou
possui incisões [na Conferência de Kampala em 2010 foram estendidos para
conflitos armados não internacionais, no art. 8 (2)(e)].
De outro lado, o Estatuto de Roma permitiu a expansão dos crimes de
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

guerra contra certos meios e métodos de combate mediante emenda ou revisão


(artigos 121 e 123), conforme o art. 8º, 2, b, xx:

xx) Utilizar armas, projéteis; materiais e métodos de combate que, pela sua
própria natureza, causem ferimentos supérfluos ou sofrimentos desnecessários
ou que surtam efeitos indiscriminados, em violação do direito internacional
aplicável aos conflitos armados, na medida em que tais armas, projéteis, mate-
riais e métodos de combate sejam objeto de uma proibição geral e estejam
incluídos em um anexo ao presente Estatuto, em virtude de uma alteração
aprovada em conformidade com o disposto nos artigos 121 e 123;

Nessa base normativa, na conferência da Assembleia de Estados Partes


do TPI de 2017 foi incluída para ambos os tipos de conflito a proibição de
armas que utilizam agentes microbianos ou outros agentes biológicos, assim
como toxinas, seja qual for o modo de produção [arts. 8 (2)(b)(xxvii) e 8(2)
(e)(xvi)]; o emprego de qualquer arma cujo efeito primário é ferir por meio
de fragmentos que, no corpo humano, não são detectáveis por raios X [arts.
8(2)(b)(xxviii) e 8 (2)(e)(xvii)]; o emprego de armas a laser especificamente
concebidas, como única ou uma de suas funções de combate, para causar
cegueira permanente à vista não ampliada, isto é, a olho nu ou a olhos provi-
dos de dispositivos corretores da vista [arts 8(2)(b)(xxix) e 8(2)(e)(xviii)]. Na
Assembleia de 2019, foi incluído para conflitos armados internos o tipo penal
de provocar deliberadamente a inanição da população civil como método de
guerra, privando-a dos bens indispensáveis à sua sobrevivência, impedindo,
inclusive, o envio de socorros [art. 8(2)(e)(xix)].
Portanto, nada impede que um dia sejam incluídas no Estatuto de Roma
as armas nucleares como crime de guerra ou que o uso concreto das armas
nucleares atraia a incidências de outros tipos penais já consagrados.
288

1.1.1 A proposta da Ucrânia

Muitos países apoiaram a inclusão de crimes de guerra para proibir o


uso de armas nucleares no projeto de Estatuto de Roma, então no art. 5º, “b”,
alínea “o” do projeto. Contudo, vamos aqui destacar a posição da Ucrânia
durante a Conferência de Roma4, em razão das atuais circunstâncias que
esse País está passando e o objeto do presente estudo.
A Ucrânia apoiou fortemente a inclusão na jurisdição do Tribunal Penal
Internacional do tipo penal de crime de guerra para conflitos armados inter-
nacionais de proibição do uso de armas nucleares.
Como fundamento, o País defendia que a Corte Internacional de Justiça
na sua opinião consultiva de 8 de julho de 1996 já havia reconhecido que o uso

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


de armas nucleares é uma violação do direito internacional humanitário con-
temporâneo e do direito consuetudinário para conflitos armados internacionais.
Ademais, considera que devido ao efeito indiscriminado sobre os mem-
bros das forças armadas e sobre a população civil e tendo em vista os feri-
mentos supérfluos e sofrimentos desnecessários causado por seu uso, as armas
nucleares devem, para fins de justiça internacional, serem colocados no mesmo
patamar das armas químicas, bacteriológicas e outros tipos de armas que estão
sujeitas a amplo banimento.
Por fim, ressalta ser a Ucrânia o primeiro Estado do mundo a renunciar
voluntariamente as armas nucleares e ter alcançado o status de não nuclear,
apelando que as delegações defendam a ilegalidade da utilização dessas armas.
De fato, finda a União Soviética, a Ucrânia tinha o controle físico do
terceiro maior acúmulo de armas nucleares do mundo, e assinou em 1992 o
Protocolo de Lisboa ao Tratado de Redução de Armas Estratégicas (START
1), negociado no ano anterior, e que reconhecia as obrigações da Rússia,
Bielorrússia, Ucrânia e Cazaquistão como sucessores da União das Repúbli-
cas Socialistas Soviéticas para efeito deste tratado. Além disso, Bielorrússia,
Ucrânia e Cazaquistão se comprometeram a ratificar o Tratado de Não Proli-
feração de Armas Nuclear como Estados não detentores de armas nucleares
tão logo possível. Isto seria concretizado em 5 dezembro de 1994, quando
firmou em Budapeste o Memorando sobre Garantias de Segurança e aderiu
ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP).
Pelo Memorando de Budapeste, primeiro, deveria ser respeitado os prin-
cípios da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) de
independência e soberania e dos limites fronteiriços da Ucrânia; segundo,
ser evitado o uso e a ameaça da força contra a integridade territorial e
4 UN DIPLOMATIC CONFERENCE OF PLENIPOTENTIARIES ON THE ESTABLISHMENT OF AN INTER-
NATIONAL CRIMINAL COURT, A/CONF.183/C.1/L.33, 30 jun. 1998.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 289

independência política ucraniana, e nenhuma das armas das Potências Partes


deveriam usadas, salvo em nome da legítima defesa ou dos termos da Carta
das Nações Unidas; terceiro, não deveria ser utilizada a coerção econômica
para atingir a soberania ucraniana; quarto, se a Ucrânia fosse vítima de ameaça
ou de uso de armas nucleares, as Potências Partes deveriam prestar socorro;
quinto, o uso de armas nucleares seria vedado contra um Estado não nuclear, a
menos que estivessem sendo atacados em associação com um Estado nuclear.
Igualmente, Cazaquistão e a Bielorrússia firmaram acordos similares e todos
entregaram seus armamentos nucleares (mísseis e ogivas) à Federação Russa.
A Ucrânia entregou suas armas nucleares para a Rússia no final de 1996.

1.1.2 As razões não jurídicas para a exclusão do crime de guerra contra


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

armas nucleares do Estatuto de Roma

Durante as negociações do Estatuto de Roma, havia quatro opções em


relação a armas a serem proibidas como crime de guerra. A primeira incluía
pequena lista de armas proibidas, que são os atuais incisos xvii a xix do art. 8º,
2, b, além de armas biológicas e químicas; a segunda, além desta lista, admitia
cláusula aberta para inclusão de novas armas, que é o atual inciso xx do mesmo
dispositivo, já mencionado acima; a terceira, não incluía lista de armas proibi-
das, apenas propunha princípio geral de armas que geravam certos efeitos; a
quarta, defendia longa lista de armas proibidas, que incluía as armas nucleares,
com ou sem a cláusula aberta para admitir novas armas5.
Sem dúvida, a principal polêmica era a inclusão ou não das armas nuclea-
res, cuja manutenção era defendida não só por Ucrânia, mas também por Índia,
Paquistão, países árabes, muitos países africanos, asiáticos e latino-americanos,
com a defesa de que o direito consuetudinário já as proibia e que as armas de
destruição em massa deveriam ser tratadas da mesma forma; no caso, defendiam
proibir do mesmo modo as armas químicas, biológicas e nucleares.
A não inclusão se deveu ao fato de ser considerada à época como uma
cláusula que iria inviabilizar o Estatuto de Roma, por oposição dos mem-
bros permanentes do Conselho de Segurança, todos eles potências nucleares
(Rússia, Estados Unidos, China, Reino Unido e França). Estes negavam que
o direito internacional convencional e consuetudinário proibiam de todo as
armas nucleares e que utilizar o Estatuto para tal fim seria a decretação de
morte do projeto de tribunal penal internacional permanente.
O ponto de consenso foi, de um lado, a inclusão do inciso xx, que per-
mite, com o avanço do direito internacional e do acordo dos países membros,
emendar o Estatuto com a inclusão de novas armas no rol de crimes de guerra.
5 HEBEL; ROBINSON. Op cit. (nota 2), p. 114 e ss.
290

De outro lado, a não inclusão igualmente das armas biológicas e químicas foi
consequência lógica. Ou seriam todas as armas de destruição em massa incluí-
das, ou nenhuma, pois manter as biológicas e as químicas daria a impressão
de que as armas nucleares estavam autorizadas.

1.2 A base consuetudinária até a Conferência de Roma, em 1998

1.2.1 O parecer da Corte Internacional de Justiça de 1996 e a legítima


defesa extremada

Em 1996, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) respondeu a duas soli-


citações de opinião consultiva sobre armas nucleares6. A primeira tinha

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


sido solicitada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1993, com a
seguinte pergunta: “Tendo em vista os efeitos sobre a saúde e o meio ambiente,
o uso de armas nucleares por um Estado em guerra ou outro conflito armado
seria uma violação de suas obrigações sob o direito internacional, incluindo
a Constituição da OMS?”
Lamentavelmente, foi considerado que a OMS não possuía competên-
cia para acionar a CIJ, pois questões que dizem respeito ao uso da força,
regulação de armamento e desarmamento dizem respeito às Nações Unidas
e não a suas agências especializadas. Portanto, o tema ultrapassa o âmbito
das atividades da OMS.
De qualquer sorte, importa registrar que a Ucrânia enviou em 16 de
maio de 1994 uma carta afirmando que, por ter o País sofrido com o desastre
nuclear de Chernobyl e voluntariamente ter se transformado em potência
não nuclear, possui a profunda convicção de que, tendo em vista os efeitos
sobre a saúde e o meio ambiente, o uso de armas nucleares por um Estado
em guerra ou outro conflito armado é uma violação de suas obrigações sob
o direito internacional, incluindo a Constituição da OMS. Distintamente, a
Rússia, em carta dirigida a CIJ em 1994, além de questionar a legitimidade
da OMS, defende que o direito internacional à época aceita o a existência de
armas nucleares.
A outra solicitação de opinião consultiva sobre armas nucleares ana-
lisada em 1996 foi requerida pela Assembleia Geral e encaminhada pelo
Secretário-Geral da ONU em 1994, com a seguinte questão: “A ameaça
ou o uso de armas nucleares em qualquer circunstância é permitido pelo
direito internacional?”
6 Ver o número 316 da International Review of the Red Cross, de fevereiro de 1997, dedicado a armas
nucleares (https://international-review.icrc.org/reviews/irrc-no-316-nuclear-weapons) e o número 899, de
julho de 2016, sobre o custo humano das armas nucleares (https://international-review.icrc.org/reviews/
irrc-no-899-human-cost-nuclear-weapons).
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 291

Desta vez, distintamente, a CIJ analisou o mérito da questão e fez impor-


tantes considerações a respeito, com oito votos de aprovação e seis dissiden-
tes. Inicialmente, não proibiu de todo o uso de armas nucleares em caso de
legítima defesa diante circunstâncias extremadas. Contudo, esse uso não pode
implicar em violação do DIH. Outro importante ponto assentado é o de que,
quando a situação indica que o “uso” é ilegal, do mesmo modo a “ameaça de
uso” seria também ilegal em relação aos mesmos fatos.
Em 1996, a CIJ constatou que não havia tratado específico proibindo
esse tipo de arma, apesar de ter sido alegado que o emprego de armas nuclea-
res violaria o direito à vida nos termos do art. 6º do Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos e de outros tratados de direitos humanos de caráter
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

regional. Foi considerado, todavia, que o tema deveria ser analisado pelo DIH
e não pelo Pacto, pois aquele é a lex specialis aplicada a tempo de conflito
armado. Tampouco poderia se inferir que todo o uso de arma nuclear implica
em genocídio, pois para a configuração desse crime é necessária a intencio-
nalidade de eliminar certos grupos. Outro argumento é o de que necessaria-
mente haveria incompatibilidade entre o uso de arma nuclear e os tratados
de proteção do meio ambiente, bem como o art. 35, § 3º, e 55 do Protocolo
Adicional I de 1977 adicional às quatro Convenções de Genebra de 1949, que
proíbem utilizar meios e métodos de guerra que são concebidos para causar,
ou dos quais se pode prever que causem, danos extensos, duradouros e gra-
ves ao meio ambiente natural. Sobre esse tópico a CIJ teve mais dificuldades
em não admitir a proibição geral das armas nucleares. Argumentou que tem
consciência que o meio ambiente não é uma abstração, mas um espaço onde
vivem os seres humanos e do qual depende a qualidade de sua vida e saúde,
a incluir as gerações futuras. Mesmo assim, consideram que essas regras não
possui o objetivo de impedir totalmente o direito à defesa, em que pese os
Estados terem limites e o cuidado com o meio ambiente é um deles, que con-
diciona a necessidade e a proporcionalidade do uso da força diante objetivos
militares legítimos. Lembre-se, contudo, que a Índia, ao aceitar o texto do
art. 35 do Protocolo Adicional I, declarou que entendia incluir nesse artigo o
uso de todas as categorias de armas, inclusive a nuclear7.
Sobre a formação de costume internacional, a CIJ defendeu que a tensão
entre a opinio juris do não uso dessas desde o fim da Segunda Mundial não era
suficiente para considerar que os Estados estavam considerando o banimento
como obrigação jurídica, pois entrava o papel da política de utilizar as armas
nucleares para a dissuasão dos conflitos.
Quanto à relação das armas nucleares e o DIH e a neutralidade, a CIJ
determinou que as armas nucleares não podem ser utilizadas contra pessoas

7 INDIA. Statement at the CDDH, Official Records, V. VI, CDDH/SR.39, 25 mar. 1977. p. 115.
292

protegidas pelo DIH, em nome do princípio da distinção entre combatentes e


não combatentes, ou entre alvos civis e militares; tampouco podem ser dirigi-
das aos combatentes, pois ofenderiam o princípio de não causar sofrimentos
desnecessários para a consecução dos objetivos do conflito.
Importa considerar que a conclusão da CIJ de permitir a ameaça ou o uso
em caso de legítima defesa extremada não foi unânime. No voto dissidente do
Juiz Christopher Gregory Weeramatry, está posto que os fatos são mais do que
suficientes para estabelecer que a arma nuclear causa sofrimento desnecessário
que vai muito além dos propósitos da guerra8. E acrescenta que é um grande
equívoco considerar que as armas nucleares serviram para a dissuasão, pois
mais de cem guerras ocorreram desde 1945, com milhões de mortes.
Já o Juiz Koroma, em seu voto dissidente lamentou profundamente a

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


conclusão majoritária da CIJ e vaticinou que era insustentável de acordo com
o direito internacional e completamente contraditório. De acordo com ele, o
emprego de armas nucleares é ilícito em quaisquer circunstâncias de acordo
com o direito internacional. O DIH não exclui o direito à legítima defesa, mas,
em relação ao uso de armas nucleares, seus princípios possuem primazia. A
CIJ parece se apoiar na ideia de que, em nome da legítima defesa, o Estado
pode aniquilar o resto da humanidade9.
Estamos de acordo com esses votos dissidentes e, mesmo se conside-
rarmos a opinião equivocada de que em 1996 o direito internacional ainda
permitiria o uso de armas nucleares em caso de legítima defesa extremada,
no caso atual na Ucrânia a legítima defesa está do lado do agredido, um
Estado nuclearmente neutro, e não da potência nuclear, conforme reconhece
a Assembleia Geral da ONU. A potência nuclear, no caso a Rússia, é o Estado
agressor, não um Estado que atua em legítima defesa, muito menos sua sobre-
vivência está ameaçada.

1.2.2 O posicionamento de organismos e organizações internacionais

As decisões da CIJ de 1996 foram suscitadas pelas Nações Unidas e


pela Organização Mundial da Saúde, o que demonstra o vínculo de organi-
zações internacionais com o banimento das armas nucleares. Ademais, todo
o variado e complexo sistema de tratados sobre armas nucleares só existem
em razão do impulso dado por organismos e organizações internacionais.
A considerar o órgão democrático das Nações Unidas, a Assembleia
Geral, inúmeras foram as resoluções por ela dedicadas ao desarmamento

8 INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE, Advisory Opinion on Legality of the Threat or Use of Nuclear
Weapons, Dissenting Opinion of Judge Weeramantry. ICJ Rep. 1996, p. 255 e 330.
9 Ibid., Dissenting Opinion of Judge Koroma, ICJ Rep. 1996, p. 336 e 348.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 293

nuclear, congelamento de armas nucleares, condenação de armas nucleares e


seguimento do Parecer Consultivo da CIJ de 1996.
A primeira resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, que criou
a já extinta Comissão de Energia Atômica, propugnava pelo desarmamento
e eliminação das armas nucleares (A/RES/1(I), de 24 de janeiro de 1946).
Em 1953, por iniciativa do Presidente Eisenhower e sua política “Atoms
for Peace”, inicia-se o processo de formação da Agência Internacional de
Energia Atômica (AIEA), o que foi concluído com a entrada em vigor de seu
Estatuto em 29 de julho de 1957. Em 1959, novamente, a Assembleia Geral
defende o objetivo do desarmamento completo e, assim, evitar guerra de efei-
tos desastrosos (Resolução 1378 (XIV)). Em 1961, houve a aprovação pela
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Assembleia Geral da Resolução 1653 (XVI), com a adoção da “Declaração


sobre a Proibição do Uso de Armas Nucleares e Termonucleares”.
Desde então inúmeras resoluções foram aprovadas e tratados foram
elaborados para proibir ou limitar o uso ou os testes de armas nucleares,
no âmbito universal ou regional, tais como o Tratado Parcial para a Proibi-
ção de Testes Nucleares de 1963, ao banir os testes na atmosfera, no meio
subaquático e no espaço, posteriormente sucedido pelo Tratado de Proibição
Total de Testes Nucleares10, de 1996, que, embora ainda não tenha entrado
em vigor em razão da ausência de ratificações de alguns Estados detentores
de armas nucleares (Índia, Paquistão e Coreia do Norte sequer assinaram;
China, Estados Unidos, Israel e Egito assinaram, mas ainda não ratificaram),
já foi ratificado por 177 países; o Tratado sobre a Não Proliferação de Armas
Nucleares (TNP), de 1968, inicialmente concebido como congelamento de
poder e posteriormente prorrogado como instrumento de desarmamento, ainda
sem o efeito esperado; os Acordos para Aplicação de Salvaguardas da Agência
Internacional de Energia Atômica (AIEA) e seus Protocolos Adicionais; os
diversos Tratados de Criação de Zonas Livres de Armas Nucleares (Tratado
Antártico, de 1959; o Tratado para a Proibição de Armas Nucleares na América
Latina e Caribe – Tratado de Tlatelolco, de 1967; Tratado da Zona Livre de
Armas Nucleares do Pacífico Sul – Tratado de Rarotonga, de 1985; o Tratado
da Zona Livre de Armas Nucleares do Sudeste Asiático – Tratado de Bangkok,
de 1995, da Associação das Nações do Sudeste Asiático – ASEAN; o Tratado
da Zona Livre de Armas Nucleares da África – Tratado de Pelindaba, de 1996,
da União Africana; e o Tratado da Zona Livre de Armas Nucleares da Ásia
Central, Tratado de Semipalatinsk, de 2006, entre Cazaquistão, o Quirgistão,
o Tajiquistão, o Turquemenistão e o Usbequistão); o Grupo de Supridores
Nucleares (Nuclear Suppliers’ Group – NSG), que disciplina o comércio de
10 SAMPAIO, Maria Feliciana Nunes Ortigão de. O Tratado de Proibição Completa dos Testes Nucleares (CTBT):
perspectivas para sua entrada em vigor e para a atuação diplomática brasileira. Brasília: Funag, 2012.
294

materiais e tecnologias com aplicação nuclear; a Resolução 1540 (2004) do


Conselho de Segurança, que propõe medidas para evitar o acesso de armas
nucleares, químicas e biológicas a grupos não estatais; e a Convenção Inter-
nacional para a Supressão de Atos de Terrorismo Nuclear, de 2005.
Esta última Convenção tipifica o crime de terrorismo nuclear da
seguinte forma:

Artigo 2º
1.Comete crime nos termos da presente Convenção toda pessoa que ilícita
e intencionalmente:
a) possuir material radioativo ou produzir ou possuir um dispositivo: i)
com o propósito de causar morte ou lesões corporais graves; ou ii) com o

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


propósito de causar consideráveis danos materiais ou ao meio ambiente;
b) utilizar de alguma maneira material radioativo ou um dispositivo, ou
utilizar ou danificar instalação nuclear de forma tal que provoque a emissão
ou traga risco de provocar a emissão de material radioativo: i) com o pro-
pósito de causar morte ou lesões corporais graves; ou ii) com o propósito
de causar consideráveis danos materiais ou ao meio ambiente; ou iii) com
o propósito de obrigar pessoa física ou jurídica, organização internacional
ou Estado a realizar ou abster-se de realizar uma ação.
2.Também comete crime toda pessoa que:
a) ameaçar, em circunstâncias que indiquem ser a ameaça verossímil,
cometer um crime nos termos definidos na alínea b) do parágrafo 1º do
presente artigo; ou
b) exigir ilícita e intencionalmente a entrega de material radioativo, de
dispositivo ou de instalação nuclear mediante ameaça, em circunstâncias
que indiquem ser a ameaça verossímil, ou mediante o uso da força.
3.Também comete crime toda pessoa que tentar cometer um crime nos
termos definidos no parágrafo 1º do presente artigo.
4.Também comete crime toda pessoa que:
a) participar como cúmplice em um crime nos termos definidos nos pará-
grafos 1º, 2º ou 3º do presente artigo; ou
b) organizar ou induzir terceiros a cometer um crime nos termos definidos
nos parágrafos 1º, 2º ou 3º do presente artigo; ou
c) contribuir de outro modo para a execução de um ou mais crimes nos
termos definidos nos parágrafos 1º, 2º ou 3º do presente artigo por um
grupo de pessoas que atuam com propósito comum; essa contribuição deve
ser intencional e feita com o objetivo de promover os fins ou a atividade
criminosa geral do grupo, ou com conhecimento da intenção do grupo de
cometer o crime ou os crimes em questão.

Igualmente, importa registrar as Sessões da Assembleia Geral devo-


tadas ao Desarmamento, ocorridas em 1978 (Res. A/S-10/4), 1982 (Res.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 295

A/S-12/32) e 1988 (Res. A/S-15/50), sempre propugnaram por um mundo


livre de armas nucleares.
Por fim, quanto ao tema específico da tipificação, lembre-se que a Assem-
bleia Geral das Nações Unidas, em 1961, 1978, 1979, 1980 e 1981, considerou
que o recurso às armas nucleares constitui uma violação da Carta da ONU e
um crime contra a humanidade11.
Igualmente importa registrar que o Comitê de Direitos Humanos das Nações
Unidas, sobre o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, em 1984, no
Comentário n. 14 (parágrafo 3), sobre o direito à vida, considera que a produção,
teste, posse, implantação e uso de armas nucleares devem ser proibidos e reco-
nhecidos como crimes contra a humanidade12. Em 2019, no comentário nº 3613,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

que substitui o de 1984, o Comitê assim decide (§ 66):

A ameaça ou a utilização de armas de destruição em massa, em espe-


cial armas nucleares, que são indiscriminadas e têm uma natureza que
causa a destruição da vida humana a uma escala catastrófica, é incom-
patível com o respeito do direito à vida e pode constituir um crime nos
termos do direito internacional. Os Estados Partes devem tomar todas
as medidas necessárias para impedir a proliferação de armas de des-
truição em massa, incluindo medidas para impedir a sua aquisição por
atores não estatais, abster-se de desenvolver, produzir, testar, adquirir,
armazenar, vender, transferir e utilizar, destruir os arsenais existentes
e tomar medidas adequadas de proteção contra a utilização acidental,
tudo em conformidade com as suas obrigações internacionais. Devem
igualmente respeitar as suas obrigações internacionais de prosseguir de
boa-fé as negociações a fim de alcançar o objetivo do desarmamento
nuclear sob controle internacional rigoroso e eficaz, e de proporcionar
uma reparação adequada às vítimas cujo direito à vida tenha sido ou
esteja sendo afetado negativamente pelos testes ou pela utilização de
armas de destruição em massa, em conformidade com os princípios da
responsabilidade internacional.

Em 3 dezembro de 2012, a Assembleia Geral adota a Res. 67/39, rea-


firmando a necessidade de medidas efetivas e urgentes para um mundo sem
armas nucleares e convoca para setembro do ano seguinte encontro de alto-
-nível sobre o desarmamento nuclear. Esse encontro ocorreu em setembro

11 A/RES/1653 (XVI), 24 nov. 1961; A/RES/37/71 B, 14 dez. 1978; A/RES/34/83, 11 dez. 1979; A/RES/35/152,
12 dez. 1980; A/RES/36/92, 9 dez. 1981.
12 HUMAN RIGHTS COMMITTEE. General comment n. 14: Right to life (1984). In: UN HUMAN RIGHTS
INSTRUMENTS. Compilation of General Comments and General Recommendations Adopted by Human
Rights Treaty Bodies, HRI/GEN/1/Rev.3, 15 ago. 1997. p. 178.
13 HUMAN RIGHTS COMMITEE. General comment n. 36: Right to life (2019). CCPR/C/GC/36, 3 set. 2019.
296

de 2013 e, em dezembro desse ano, foi aprovada a Res. 68/32, propondo a


tomada de medidas para eliminar a totalidade das armas nucleares, inclusive
a elaboração de tratado de proibição dessas armas, que foi concluído em 2017
(entrou em vigor em janeiro de 2021), e a fixação do 26 de setembro como o
Dia Internacional para a Total Eliminação de Armas Nucleares. Desde então,
todos os anos são editadas novas resoluções da Assembleia Geral da ONU
para celebrar o dia 26 de setembro e promover atividades a fim de banir as
armas nucleares por completo.
Inúmeras outras iniciativas foram tomadas por organismos ou orga-
nizações internacionais, culminando em resoluções, atos internacionais ou
tratados, com o objetivo de findar as armas nucleares. A considerar o objeto

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


deste artigo, destacamos a recente declaração conjunta do Presidente do
Comitê Internacional da Cruz Vermelha e do Presidente da Cruz Vermelha
Japonesa, quando da reunião de cúpula do G7, entre 19 e 21 de maio de
2023, em Hiroshima14:

“Enquanto os líderes do G7 escolhem Hiroshima para sua reunião, o


mundo deve se lembrar do horror causado pelos dois bombardeios atômi-
cos de 1945. Pelo bem da sobrevivência da humanidade, devemos livrar o
mundo de armas que ameaçam consequências humanitárias catastróficas
e danos irreversíveis. Isso requer uma ação imediata e decisiva de toda
a comunidade internacional.
O risco de uso de armas nucleares é maior desde os piores momentos da
Guerra Fria, em meio a tensões políticas acirradas e novos passos para
expandir os arsenais. Mesmo o uso da chamada arma nuclear “tática”
ou de baixo rendimento teria consequências humanitárias devastadoras
e quebraria um tabu nuclear de 80 anos. A bomba de Hiroshima teve
um rendimento de 15 quilotons, o que hoje seria descrita como pequena
arma nuclear. Matou 140.000 pessoas.
[...]
Além disso, qualquer uso de armas nucleares seria abominável aos prin-
cípios da humanidade e aos ditames da consciência pública. Qualquer
ameaça de uso de armas nucleares é igualmente abominável, pois implica
a possibilidade de realmente usá-las.

14 ICRC. Avoiding catastrophe: we must act now to ensure nuclear weapons are never again used. News
Release, 17 maio 2023. Disponsível em: https://www.icrc.org/en/document/avoiding-catastrophe-we-must-
-act-now-ensure-nuclear-weapons-are-never-again-used. Acesso em: 23 abr. 2023.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 297

2. A evolução jurídica do século XXI para o banimento das


armas nucleares

2.1 Caso “Obrigações relativas às negociações sobre a cessação da


corrida armamentista nuclear e o desarmamento nuclear” (Corte
Internacional de Justiça)

2.1.1 A base consuetudinária do Art. VI do TNP

O art. VI do Tratado sobre a Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP)


é emblemático ao consignar que os Estados Partes se comprometem a “enta-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

bular, de boa-fé, negociações sobre medidas efetivas para a cessação em data


próxima da corrida armamentista nuclear e para o desarmamento nuclear,
e sobre um Tratado de desarmamento geral e completo, sob estrito e eficaz
controle internacional”.
Em 1996, na já mencionada Opinião Consultiva de 1996, a Corte Inter-
nacional de Justiça dispôs que há a obrigação de buscar de boa-fé e levar à
conclusão negociações conducentes ao desarmamento nuclear “em todos os
seus aspectos”15.
O tema volta a ser abordado pela Corte Internacional de Justiça no caso
“Obrigações Referentes a Negociações Relativas à Cessação da Corrida das
Nucleares e ao Desarmamento Nuclear”. Diferentemente de 1996, vinte anos
depois, quem suscitou o caso não foram organizações internacionais, mas as
Ilhas Marshall, arquipélago do Pacífico que, entre 1946 e 1958, sofreu com
67 testes nucleares capitaneados pelos Estados Unidos.
A demanda das Ilhas Marshal é a de que o art. VI do TNP não estava
sendo cumprido e, portanto, a ação se dirigia aos nove países detentores de
armas nucleares, a incluir Estados que não ratificaram o TNP, como Índia,
Paquistão, Israel e Coreia do Norte (além de Estados Unidos, China, França,
Reino Unido e Federação Russa).
Infelizmente, por 9 a 8 votos, a Corte Internacional de Justiça não chegou
a analisar o mérito da questão, vencendo a tese de que não havia controvérsia
jurídica contra Reino Unido, Índia e Paquistão (únicos países que aceitaram
a jurisdição da Corte no caso, com base na aceitação da cláusula facultativa
da jurisdição obrigatória da Corte, conforme o art. 36.2 do seu Estatuto) na
data em que a ação foi interposta, em 2014.
O TNP, como se sabe, inicialmente, foi um tratado de 1968, em vigor
desde 1970 para prazo inicial de vinte e cinco anos, a fim de congelar o poder
15 INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Op. cit. (nota 8). p. 94.
298

de potências nucleares durante a guerra-fria. Ocorre que, em revisão de 1995,


passou a ser tratado de caráter permanente, com encontros quinquenais, pro-
movendo a não proliferação, o desarmamento e o direito do uso pacífico da
tecnologia nuclear. Essa transformação permitiu que o Brasil alterasse sua
posição e, em 1997, acede-se ao TNP.
O documento da Conferência dos Estados Partes encarregados de exami-
nar o funcionamento do TNP, de 202016, a seguir as decisões de 1995, 2000
e 2010, determina que o art. VI indica a obrigação de eliminar totalmente o
arsenal nuclear, lamentando a ausência de progressos tangíveis nesse sentido.
Ademais, dispõe que a integridade e a credibilidade do TNP dependem do
desarmamento total e que a prorrogação indefinida do tratado, decidida em

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


1995, não implica que os Estados possuidores de armas nucleares têm o direito
de as possuir por duração indefinida. Por fim, ressalta que as consequências
imediatas, a médio e longo prazo, de explosão de arma nuclear, especialmente
sobre a saúde, meio ambiente, diversidade biológica, infraestruturas, segu-
rança alimentar, clima, desenvolvimento, coesão social e economia mundial,
são mais pesadas que pensávamos outrora e ultrapassam fronteiras, além de
ameaçar a sobrevivência da humanidade.
Em outros termos, se o objetivo atual do sistema de não proliferação é o
desarmamento total das armas nucleares, outra conclusão não é possível que
o uso ou ameaça de uso de armas nucleares ser um crime.
Lamentavelmente, a guerra na Ucrânia tem gerado mais uma inflexão, como
o fato de a Bielorrússia, após referendo em 27 de fevereiro de 2022, ter alterado
em 20 junho de 2022 o art. 18 de sua Constituição a fim de renunciar seu status
de País nuclearmente neutro. Como resultado, a Rússia tem sinalizado que pode
deslocar àquele País sistema capaz de lançar armas nucleares táticas.
Sobre esses assuntos, nos posicionamos, desde já, que defendemos
a proibição de todas as armas nucleares, sejam consideradas estratégicas
ou táticas17.

2.1.2 O voto dissidente de Antônio Augusto Cançado Trindade

O saudoso magistrado brasileiro Antônio Augusto Cançado Trindade foi


um dos oito membros da CIJ que divergiram do resultado, descontentes por
sequer analisarem o mérito da questão, ao aceitar a preliminar aposta pelo
Reino Unido de que não havia controvérsia deste País com as Ilhas Marshall.
16 2020 REVIEW CONFERENCE OF THE PARTIES TO THE TREATY ON THE NON-PROLIFERATION OF
NUCLEAR WEAPONS, NPT/CONF.2020/MC.I/WP.1.
17 Richardson, Evan. Tactical Nuclear Weapons Cannot Comply with the Law of Armed Conflict. Fordham
International Law Journal, v. 45, n. 2, p. 429-476, 2021.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 299

Cançado Trindade advertiu que as resoluções da Assembleia Geral apon-


tavam para a necessidade de celebração de tratado que proibisse as armas
nucleares, o que ocorreu no ano seguinte, em 2017, e, concomitantemente,
culminasse na lógica obrigação de desarmamento nuclear, o que é justamente
objeto da demanda em torno do art. VI do TNP.
Há tanto do ponto de vista convencional, como consuetudinário, a obri-
gação de desarmamento nuclear, o que não se cinge à lógica de um conflito
puramente interestatal, desqualificando a conclusão da CIJ de que não haveria
um conflito entre as Ilhas Marshall e os Estados detentores de armas nucleares
que aceitaram a competência da Corte.
O tema supera qualquer razão de Estado, pois vinculado à consciência
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

jurídica universal e a preservação do humanismo. A dissuasão nuclear não pos-


sui espaço perante a segurança da humanidade como um todo. Distintamente,
há opinião universal de que as armas de destruição em massa (biológicas,
químicas e nucleares) devem ser banidas.
De acordo com o magistrado, não só há a proibição convencional e
consuetudinária das armas nucleares, mas de proibição sob mandamento de
norma imperativa (proibição jus cogens)18:

Trata-se, em suma, de uma proibição do jus cogens. Ao longo dos anos,


os órgãos principais das Nações Unidas, tais como a Assembleia Geral, o
Conselho de Segurança, e o Secretário-Geral, vêm dando contribuições
consistentes e notáveis ao desarmamento. É de se esperar que a CIJ, como
órgão judicial principal das Nações Unidas, também tenha em mente consi-
derações básicas de humanidade, com sua incidência no exame de questões
tanto de jurisdição e admissibilidade, como também de direito substantivo.

2.2 A proibição de armas nucleares

2.2.1 O tratado sobre a proibição de armas nucleares de 2017

Após reinvindicações mundiais, de organizações internacionais, socie-


dade civil e alguns Estados, além de doutrina e jurisprudência, como o voto
dissidente já mencionado de Cançado Trindade, finalmente, em 2017, foi
celebrado o Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares. Entrou em vigor
em 22 de janeiro de 2021.
Por esse tratado, aponta-se no preâmbulo a preocupação com as conse-
quências humanitárias catastróficas que resultariam de qualquer uso de armas
18 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A Obrigação Universal de Desarmamento Nuclear. Brasília:
Fundação Alexandre de Gusmão, 2017. p. 46. Ver também NORMILE, Gaela. The Non-Proliferation of
Nuclear Weapons as Jus Cogens. Penn State Law Review, v. 124, n. 1, p. 277-302, 2019.
300

nucleares e o reconhecimento da necessidade de eliminar completamente essas


armas, o que continua a ser a única forma de garantir que as armas nucleares
jamais serão utilizadas novamente em quaisquer circunstâncias.
Alerta-se ainda no preâmbulo que tais consequências do uso das armas
nucleares ameaçam a sobrevivência humana, o meio ambiente, o desenvolvi-
mento socioeconômico, a economia global, a segurança alimentar e a saúde
das gerações atuais e futuras e impactam de forma desproporcional mulheres e
meninas, inclusive como resultado da radiação ionizante.
De acordo com o art. I do Tratado, os Estados Partes se comprometem a
jamais, em nenhuma circunstância: (a) Desenvolver, testar, produzir, fabricar,
ou por outros meios adquirir, possuir ou armazenar armas nucleares ou outros
dispositivos explosivos nucleares; (b) Transferir para qualquer recipiendário, de

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


qualquer maneira, armas nucleares ou outros dispositivos explosivos nucleares
ou o controle sobre tais armas ou dispositivos explosivos, de maneira direta
ou indireta; (c) Receber a transferência de ou o controle sobre armas nucleares
ou outros dispositivos explosivos nucleares, de maneira direta ou indireta; (d)
Utilizar ou ameaçar utilizar armas nucleares ou outros dispositivos explosivos
nucleares; (e) Assistir, encorajar ou induzir quem quer que seja, de qualquer
forma, a realizar qualquer atividade proibida a um Estado Parte nos termos do
presente Tratado; (f) Solicitar ou receber assistência, de qualquer forma, de quem
quer que seja, para realizar qualquer atividade proibida a um Estado Parte nos
termos do presente Tratado; (g) Permitir qualquer estacionamento, instalação ou
desdobramento de armas nucleares ou outros dispositivos explosivos nucleares
em seu território ou em qualquer local sob sua jurisdição ou controle.
Assim, o acordo obriga, a quem detenha a propriedade, a posse ou o
controle de armas nucleares ou de outros dispositivos explosivos nucleares
a neutralizá-lo e em seguida destruí-los na maior brevidade possível (art. 4).
Já o art. 5 é taxativo, obriga os Estados Partes a adotar as medidas legais,
administrativas e de outra natureza cabíveis, incluindo a imposição de san-
ções penais, para impedir e reprimir qualquer atividade proibida a um Estado
Parte, nos termos do Tratado, que seja realizada por pessoas ou em territórios
sob sua jurisdição ou controle.
Portanto, não há mais nenhuma dúvida que a ameaça de uso e o uso
das armas nucleares, bem como o desenvolvimento, teste, produção, posse,
transferência de armas ou dispositivos explosivos nucleares, é crime!

2.2.2 O direito comparado: Lei Cambojana

Não há muitos exemplos de Estados que incorporaram no direito interno


a tipificação do crime de uso ou ameaça de uso de armas nucleares, o que
acreditamos que poderá ser impulsionado com a entrada em vigor do Tratado
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 301

sobre a Proibição de Armas Nucleares de 2017, ainda não ratificado pelo


Brasil, mas já em vigor há dois ano19.
Entretanto, temos um precedente exemplar: o Reino do Camboja. Como é
notório, o Camboja possui histórico de violações dos mais vários crimes inter-
nacionais, no regime do Khmer vermelho. Esse fato culminou na criação das
Câmaras Extraordinárias dos Tribunais do Camboja, tribunal internacionalizado
estabelecido em 2003 a partir de acordo com as Nações Unidas20 para julgar as
graves violações do direito penal do Camboja, do direito internacional humani-
tário e dos costumes e violações das convenções internacionais ratificadas pelo
Camboja, cometidas durante 17 de abril de 1975 e 6 de janeiro de 1979.
Seis anos após, em 3 de dezembro de 2009, foi aprovada internamente a
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Lei de Proibição de Armas Químicas, Nucleares, Biológicas e Radiológicas.


Por essa norma, ficou absolutamente proibida a produção, transformação,
aquisição, transferência, armazenamento, transporte e utilização de armas
químicas, nucleares, biológicas e radiológicas e substâncias químicas envol-
vidas na produção dessas armas no Reino do Camboja (art. 1º).
Louvável, em verdadeiro espírito de Cançado Trindade, o art. 2º dispõe
que o objetivo da Lei é assegurar a segurança e a ordem pública, a proteção
do meio ambiente e do bem-estar das pessoas, bem como contribuir para a
proteção da segurança e da paz na região e no mundo.
De acordo com o art. 26 desta Lei, qualquer pessoa que intencionalmente
produzir, processar, adquirir, transferir, armazenar, transportar ou utilizar armas
químicas, nucleares, biológicas e radiológicas será punida de 20 (vinte) a 30
(trinta) anos ou prisão perpétua. Se não for intencional a pena é reduzida para
5 (cinco) a 10 (dez) anos. Quem publicar dados, de modo desautorizado, sobre
essas armas, poderá ser punido de 3 (três) a 10 (cinco) anos. Ademais, a Lei prevê
a punição de pessoas jurídicas envolvidas, com multas e dissolução.
De modo comparativo, o Brasil possui a Lei nº 11.254, de 27 de dezembro
de 2005, que estabelece sanções administrativas e penais em caso de realização
de atividades proibidas pela Convenção Internacional sobre a Proibição do
Desenvolvimento, Produção, Estocagem e Uso das Armas Químicas e sobre
a Destruição das Armas Químicas existentes no mundo (CPAQ).
De acordo com o art. 4º da lei brasileira, quem fizer uso de armas quími-
cas ou realizar, no Brasil, atividade que envolva a pesquisa, produção, estoca-
gem, aquisição, transferência, importação ou exportação de armas químicas ou
de substâncias químicas abrangidas pela CPAQ com a finalidade de produção
de tais armas; ou contribuir, direta ou indiretamente, por ação ou omissão,
19 O tratado foi submetido ao Congresso Nacional pela Mensagem Presidencial n. 516, de 2018, porém até a
data deste artigo (junho de 2023), ainda está sob análise da Câmara dos Deputados.
20 UN GENERAL ASSEMBLY, A/RES/57/228 B, 22 maio 2003.
302

para o uso de armas químicas ou para a realização, no Brasil ou no exterior,


dessas atividades; poderá ser punido com reclusão, de 1 (um) a 10 (dez) anos.
Em conclusão, Camboja é o exemplo e comprovação de que, mesmo antes
do tratado de 2017, já havia base consuetudinária para considerarmos, ao lado
das armas químicas e biológicas, a arma nuclear como igualmente banida, em
todas as circunstâncias, como arma de destruição de massa que é.

3. Conclusão: sobre a necessidade de tipificação do crime de


guerra de ameaça e uso de armas nucleares

Mohamed Elbaradei, ex-diretor da Agência Internacional de Energia

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Atômica, defende com precisão que só há sentido em defendermos a segu-
rança internacional se for de modo indivisível, e, por via de consequência,
a dissuasão nuclear é uma estratégia de segurança temporária e ilusória. E
termina seu livro A Era da Ilusão do seguinte modo: “A última razão para
não perder a fé em que a diplomacia e o diálogo podem prevalecer como
estratégia para lidar com crises nucleares se baseia em uma questão de
lógica: a alternativa é inaceitável”21.
É inaceitável admitir a existência de armas nucleares e não devemos
tardar de condená-la internacional e internamente. O Egito, país de nacio-
nalidade de Elbaradei, durante os debates da opinião consultiva da CIJ, de
1996, defendeu que o Regulamento de Haia (artigo 23º, alínea e), de 1907, e o
Protocolo Adicional I de 1977, adicional às Convenções de Genebra de 1949
(artigo 35.2), preveem que é especialmente proibido empregar armas, projéteis
e materiais e métodos de guerra de natureza a causar ferimentos supérfluos
ou sofrimento desnecessários. Estes artigos já seriam suficientes para banir as
armas nucleares à época22. Com coerência, o Egito, quando da sua assinatura
do Estatuto de Roma, assim declarou: as disposições do Estatuto de Roma
relativas aos crimes de guerra referidos no artigo 8º, em geral, e no artigo 8.2,
alínea “b”, em particular, aplicam-se independentemente do meio pelo qual
foram perpetrados ou do tipo de arma utilizada, incluindo armas nucleares,
pois causam danos desnecessários, em violação ao DIH23. Essa opinião era
compartilhada por vários outros países durante a Conferência de Roma, que
estabeleceu o Estatuto de Roma, conforme já nominado.
O crime de guerra em questão, a exemplo do tipificado no Camboja,
pode ser levado a cabo por qualquer pessoa, representante do Estado ou não,
21 ELBARADEI, Mohamed. A era da Ilusão: a diplomacia nuclear em tempos traiçoeiros. São Paulo: Leya,
2011, p. 362.
22 EGYPT. Written statement submitted to the ICJ, Nuclear Weapons case, 20 June 1995, p. 12-13, §§ 19-20.
23 EGYPT. Declarations made upon signature of the 1998 ICC Statute, 26 December 2000, § 4(a).
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 303

no contexto de crime de guerra ou outro crime, como crimes contra a huma-


nidade, terrorismo ou genocídio, pouco importando se forem armas nucleares
estratégicas ou táticas24.
Em 1996, a CIJ deixou uma brecha para o argumento da não destruição
completa das armas nucleares e dispositivos explosivos nucleares, que é a
legítima defesa extremada. Mesmo assim, fixou princípios importantes, como
o de não poder, em qualquer situação, ofender o DIH. Dois anos depois, apesar
de propostas terem sido apresentadas, as armas de destruição em massa não
foram incluídas no Estatuto de Roma, nada impedindo que aos poucos estejam
sendo acatadas (como as biológicas foram em 2017) ou que o uso concreto
de armas nucleares implique na incidência de outros crimes.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Após 1996, a CIJ teve a oportunidade de revisitar o tema, no caso jul-


gado em 2016 sobre o descumprimento do art. VI do TNP, o que não o fez
por questões processuais, porém em ambos os casos deixou posicionamentos
divergentes emblemáticos, como o de Cançado Trindade.
Contudo, o direito internacional deu vários saltos em direção à proibição
completa de armas nucleares. O TNP é visto por sua Conferência periódica,
a exemplo da última, de 2020, como um mecanismo que só se justifica pelo
desarmamento total. Sobre testes, em 1996 foi celebrado o Tratado de Proibi-
ção Completa dos Testes Nucleares, tendo atingido 177 ratificações, embora
não tenha ainda entrado em vigor em razão de algumas potências nucleares se
recusarem a ratificá-lo. Por fim, em 2017, finalmente, adveio o Tratado sobre
a Proibição de Armas Nucleares, em vigência desde 2021, que deu às armas
nucleares o mesmo tratamento já recebido pelas demais armas de destruição
em massa, inclusive do ponto de vista penal.
Urge que todos os Estados tipifiquem os crimes relacionados às armas
nucleares, com previsão de exercício de jurisdição universal. Assim, criaria
mais um mecanismo para inibir os nove Estados detentores de armas nucleares
e os novos candidatos à cumplicidade da ameaça de uso ou uso de armas de
destruição em massa, como a Bielorrússia.
A guerra na Ucrânia é, em si, ato de agressão da Rússia em descum-
primento de tratado vinculado a não proliferação de armas nucleares, além
da Carta das Nações Unidas. A Ucrânia deixou de ser potência nuclear em
troca da proteção de seu território contra agressão de potências nucleares.
Ocorreu exatamente o contrário. O Estado que recebeu as armas nucleares
ucranianas foi justamente quem esbulha e anexa parte do território da Ucrâ-
nia. Não bastasse, a Rússia volta a pretender deslocar armas ou dispositivos
nucleares à Bielorrússia, que é um dos outros dois Estados que, junto com
24 IQBAL, Imrana. International Law of Nuclear Weapons Nonproliferation: Application to Non-State Actors.
Pace International Law Review, v. 31, n. 1, p. 1-58, 2018.
304

a Ucrânia, haviam firmado atos internacionais de se vincularem ao TNP


como potência não nuclear após a dissolução da União Soviética. Conforme
notório, a Bielorrússia alterou sua Constituição para deixar de ser País neu-
tro nuclearmente justamente como gesto de apoio à Rússia, a lembrar que
é País vizinho da Ucrânia e de seus apoiadores, países da Organização do
Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
O Brasil não pode ficar alheio ao tema nuclear, pois nossa eventual
neutralidade não se coaduna com a conivência ao uso de armas de destrui-
ção em massa. Urge, portanto, que ratifiquemos o Tratado sobre a Proi-
bição de Armas Nucleares e tipifiquemos todas as condutas criminosas
relacionadas à pior arma já inventada pela autodestrutiva humanidade, as
armas nucleares.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


17. MULHERES INCITANDO
O ESTUPRO DE MULHERES:
a guerra na Ucrânia e o estupro
como crime internacional
Giovanna M. Frisso

1. Introdução
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

No dia 12 de abril de 2022, em meio ao conflito armado entre a Rússia e a


Ucrânia, foi divulgado o conteúdo de uma ligação telefônica em que a esposa
de um soldado russo consentia com o estupro de mulheres ucranianas1. De
forma mais abrangente, o Serviço de Segurança Ucraniano afirmou estarem as
mulheres russas incentivando a prática do estupro durante o conflito armado2.
Esta não é, todavia, uma realidade isolada. Na República Democrática do
Congo, 41 por cento de vítimas do sexo feminino e 10 por cento das vítimas
do sexo masculino relataram ter sido vítimas de violência sexual perpetrada
por mulheres3. Em outra ocasião, o Daily Mirror relatou estar uma Jihadista
britânica administrando bordéis do ISIS e permitindo que assassinos estuprem
mulheres yazidis sequestradas4. Nem mesmo a preocupação com o uso de
preservativo pelo perpetrador parece ser nova, como apresentado no caso
contra Pauline Nyiramasuhuko, ouvido perante o Tribunal Penal Internacional
para Ruanda (TPIR)5. Este contexto, em que o estupro de mulheres é se não
praticado, ao menos incentivado por outras mulheres permite-nos questionar
a centralidade do sexo biológico para a compreensão de atos de violência
sexual durante conflitos armados.
Em relação ao conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia, observa-se
serem os corpos de mulheres russas e de mulheres ucranianas concebidos de

1 CAILLER, Adam. Russian wife tells soldier husband ‘you can rape Ukrainian women if you use a condom’,
Daily Star, 13 abr. 2022. Disponível em: https://www.dailystar.co.uk/news/world-news/russian-wife-tells-sol-
dier-husband-26700311. Acesso em: 1 nov. 2022.
2 Ibid.
3 See GODBOLE, Ramona. Gender-Based Violence in the DRC. New Security Beat, 6 jan. 2011. Disponível
em: https://www.newsecuritybeat.org/2011/01/gender-based-violence-in-the-drc/. Acesso em: 7 dez. 2022.
4 HALL, John. Revealed: How ‘up to 60’ women rule ISIS’s capital by fear. Merciless ‘Jihadettes’ order execu-
tions, punishment lashings, and manage sex slave brothels. Daily Mail, 4 dez. 2014. Disponível em: https://
www.dailymail.co.uk/news/article-2858819/Up-60-British-Jihadette-women-rule-ISIS-s-capital-fear.html.
Acesso em: 7 dez. 2022.
5 TPIR. Prosecutor v. Nyiramasuhuko. Julgamento, 24 jun. 2011, § 4985.
306

forma diferenciada pelas diferentes partes envolvidas no conflito armado.


Como explica Sjoberg, aqueles que cometem atos de violência sexual estão
atentos aos corpos de suas vítimas, à mensagem que a violação daquele corpo
específico comunica enquanto um ato de subjugação sexual6. Em outros ter-
mos, as expectativas de gênero são também moldadas pelo conflito armado7.
Assim, apesar de a violência sexual em conflitos armados não ser uma prática
recente8, a forma pela qual compreendemos a mensagem que expressa em
um contexto jurídico tem sido continuamente discutida.
Neste contexto, a subjugação sexual e de gênero no caso do estupro
durante conflitos armados tem sido concebida como a expressão, entre outros,
de uma tática ou estratégia de guerra, uma recompensa, um meio de se ali-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


viar o stress ou as necessidades biológicas, das consequências da quebra do
controle social ou de modelos de masculinidade9. Dentre estas mensagens,
algumas articulam o estupro como ato individualizado, reforçando a visão de
que o respeito ao direito internacional humanitário – a aplicação de medidas
apropriadas de disciplina militar, a formação adequada das tropas, o cumpri-
mento da responsabilidade do comando10 – é capaz de coibir a prática do
estupro durante conflitos armados. É, diante deste contexto, que a proibição
da prática do estupro na normativa de direito internacional humanitário, a ser
implementada sobretudo pelo Estado, tem sido considerada.
Entende-se, todavia, que a compreensão do estupro como tática ou
estratégia de guerra melhor evidencia a relevância da categoria de gênero
como aspecto estruturante da violência nas relações internacionais. De
acordo com Segato, a violação dos corpos das mulheres pertencentes a
determinadas localidades equivale à manifestação da soberania sobre o
respectivo território11. Mulheres dos territórios invadidos e ocupados são
mais facilmente tomadas como objetos sobre os quais um novo domínio
deve ser estabelecido e publicizado. “O homem abusa das mulheres que se
encontram sob sua dependência porque pode fazê-lo, quer dizer, porque

6 SJOBERG, Laura. Women as wartime rapists: beyond sensation and stereotyping. New York: New York
Press, 2016.
7 Ibid.
8 Veja, p. ex., PIERCE, Karen F; DEACY, Susan (eds.). Rape in Antiquity: Sexual Violence in the Greek and
Roman Worlds. London: Bloomsbury Academic, 2002.
9 Veja, p. ex., ZURBRIGGEN, Eileen L. Rape, War and the Socialization of Masculinity: Why our Refusal
to Give up Ear Ensures that Rape cannot be Eradicated. Psychology of Women Quarterly, v. 34, n. 4, p.
538-549, 2010; CAMPBELL, Emer. How does Hegemonic Masculinity Influence Wartime Sexual Violence?
E-International Relations, 2 set. 2018. Disponível em: https://www.e-ir.info/2018/09/02/how-does-hegemo-
nic-masculinity-influence-wartime-sexual-violence/ Acesso em: 1 nov. 2022.
10 UN SECURITY COUNCIL, S/RES/1820 (2008), § 4.
11 SEGATO, Rita Laura. Território, soberania e crimes de segundo Estado: a escritura nos corpos das mulheres
de Ciudad Juarez. Revista de Estudos Feministas, v. 13, n. 2, p. 265-284, 2005. p. 275
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 307

estas já formam parte do território que controla, o agressor que se apropria


do corpo feminino em um espaço aberto, público, o faz porque deve, para
mostrar que pode”12. O apoio ofertado por mulheres russas ao estupro das
mulheres ucranianas pode, portanto, ser compreendido como o apoio ao
conflito armado, à invasão do território da Ucrânia.
Informado por esta compreensão mais ampla da violência sexual em
conflitos armados, este artigo busca identificar os desafios relacionados à dis-
suasão e condenação da prática de violência sexual, em particular o estupro,
contra mulheres civis durante conflitos armados, em particular no conflito
armado entre Rússia e Ucrânia. Em particular, o artigo questiona em que
medida o direito internacional penal permite compreender as mulheres como
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

catalisadores importantes da violência perpetrada por seus próprios parceiros


contra outras mulheres. As dificuldades relacionadas à responsabilização penal
internacional de mulheres que participam, em lato sensu, da prática do estu-
pro não deve ser vista como a negação da relevância dos esforços voltados à
condenação internacional do estupro, mas como parte da busca pelo contínuo
reconhecimento da integridade física e mental, bem como da autonomia de
todas as mulheres, durante conflitos armados. O reconhecimento da agência
das mulheres, inclusive no que diz respeito à prática de um ilícito penal, é
aspecto essencial do reconhecimento da autonomia feminina.
Para tanto, o artigo discute a potencial responsabilização internacio-
nal por estupro pelo Tribunal Penal Internacional (TPI). Esta discussão é
informada pela atual criminalização do estupro no Estatuto do TPI, à luz do
desenvolvimento da jurisprudência do Tribunal Penal Internacional para a
ex-Iugoslávia (TPII) e do TPIR. Apesar de a jurisdição do TPI em relação ao
conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia ser debatida13, a análise do qua-
dro normativo do TPI em relação ao estupro mantém-se relevante, uma vez
que a Promotoria do TPI investiga crimes cometidos em território ucraniano
desde 201314. Neste contexto, a Anistia Internacional alega terem as mulhe-
res no leste da Ucrânia sofrido violência sexual pós-201415. Já o relatório da
ONU de 2018 identificou semelhantes alegações em áreas controladas por

12 Ibid., Id.
13 Veja, p. ex., VASILIEV, Sergey. Aggression against Ukraine: Avenues for Accountability for Core Crimes,
EJIL: Talk!, 3 mar. 2022. Disponível em: https://www.ejiltalk.org/aggression-against-ukraine-avenues-for-ac-
countability-for-core-crimes/. Acesso em: 1 nov. 2022.
14 OFFICE OF THE PROSECUTOR, Notification on receipt of referrals and on initiation of investigation, ICC-
01/22-2, 7 mar. 2022. A atuação do TPI também pode ser relevante à luz do princípio da complementaridade,
informando a interpretação do estupro em julgamentos domésticos.
15 ANISTIA INTERNACIONAL. Ukraine: Epidemic of violence against women in conflict-torn east, 11 nov.
2020. Disponível em: https://www.amnesty.org/en/latest/press-release/2020/11/ukraine-epidemic-of-violen-
ce-against-women-in-conflicttorn-east/. Acesso em: 1 nov. 2022.
308

separatistas e na República Autônoma da Crimeia16. As alegações de violência


sexual cometidas na invasão da Ucrânia em 2022 situam-se, portanto, em um
contexto temporal mais abrangente.
A referência a mulheres civis nestes relatórios informa o foco deste
artigo. O foco em mulheres civis limita o debate aqui desenvolvido, uma vez
que exclui discussões relacionadas a violência sexual entre combatentes, bem
como o abuso sexual de homens. Esta delimitação é, todavia, seguida neste
artigo por se entender que as medidas adotadas para lidar com a violência
sexual contra mulheres civis durante conflitos armados ainda se mostram
insuficientes. Ademais, a maior parte das vítimas de violência sexual durante
conflitos armados continua sendo mulheres civis17.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


2. A proteção da mulher no direito internacional humanitário

Entende-se por direito internacional humanitário o corpo de normas


internacionais, de origem convencional ou consuetudinário, especificamente
aplicável aos conflitos armados, internacionais ou não internacionais, e que
limita o direito das partes em conflito de escolher livremente os métodos e
os meios utilizados, protegendo as pessoas e os bens afetados ou que possam
ser afetados pelo conflito. Tendo em mente o conflito armado entre Rússia e
Ucrânia, nossa atenção se volta, neste estudo, aos instrumentos convencionais
de proteção de civis relacionados a conflitos armados internacionais, dos quais
tanto a Rússia como a Ucrânia são partes18.
Na origem do direito humanitário, a I Convenção de Genebra de 1864
só faz referência aos militares em conflitos armados internacionais, pois se
pressupunha que civis estariam fora da guerra. A primeira proteção aos civis,
na perspectiva de ocupação de um território pelo exército inimigo, é encon-
trada no anexo da IV Convenção de Haia de 1907. O regulamento se limita a
enunciar algumas normas elementares em apoio ao princípio segundo o qual
o ocupante tem a obrigação de tomar “todas as medidas que dele dependam
a fim de restabelecer e garantir, na medida do possível, a ordem e a vida

16 OHCHR; UN WOMEN. The strategy for prevention of and response to the conflict-related sexual violence
in Ukraine. UN Women, 6 abr. 2019. Disponíel em: https://ukraine.un.org/en/90689-strategy-prevention-an-
d-response-conflict-related-sexual-violence-ukraine. Acesso em: 1 nov. 2022.
17 ASKIN, Kelly D. Prosecuting Wartime Rape and Other Gender-Related Crimes under International
Law: Extraordinary Advances, Enduring Obstacles. Berkeley Journal of International Law, v. 23, n. 2,
p. 288-349, 2003.
18 A Ucrânia e a Rússia são partes das Convenções de Genebra, bem como do Protocolo Adicional I. Veja,
respectivamente, na base de dados do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), disponível em: https://
ihl-databases.icrc.org/en/ihl-treaties/treaties-and-states-parties. Acesso em: 20 abr. 2023.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 309

pública (…)”19. “O homem e os direitos da família, a vida dos indivíduos e


a propriedade privada, assim como as convicções religiosas e o exercício de
culturas, hão de ser respeitados (…)”20. Nota-se, neste instrumento de pro-
teção, a distinção entre público e privado. A esfera do privado, o homem, os
direitos de família, a propriedade privada, as convicções religiosas devem ser
respeitadas, a não interferência do Estado ocupante é a regra. A desigualdade
de gênero estabelecida nas relações familiares não faz parte da ordem pública
e da vida pública, área em que o Estado ocupante tem um papel ativo.
Apenas em 1949, com a IV Convenção de Genebra, nós temos um tra-
tado relativo à proteção de civis durante conflitos armados internacionais21. A
Convenção adota o princípio de não distinção, de acordo como o qual todas
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

as pessoas que não tomem parte diretamente nas hostilidades devem ser tra-
tadas, em todas as circunstâncias, com humanidade, sem nenhuma distinção
de carácter desfavorável baseada, entre outros, no sexo22. Uma das exceções
a este princípio é a clara referência a mulheres no Título III da Convenção,
relativo ao Estatuto e Tratamento das Pessoas Protegidas, em que se estabelece
que: “as mulheres serão especialmente protegidas contra qualquer atentado a
sua honra e, em particular, contra a violação, prostituição forçada ou qualquer
atentado a seu pudor”23. A inclusão deste dispositivo pode ser compreendida
como uma reação às acusações de estupros cometidos durante a II Guerra
Mundial, inclusive àqueles praticados por soldados da ex-União Soviética24.
A limitada tematização do estupro no contexto pós II Guerra Mundial não
permitiu constatar, de forma clara, se o recurso à violência sexual foi uma
estratégia oficial deliberadamente adotada pela ex-União Soviética. Há, no
entanto, indícios de a violência sexual ter, ao menos, reforçado o elo entre
19 CONVENÇÃO DE HAIA RELATIVA ÀS LEIS E COSTUMES DE GUERRA TERRESTRES (ANEXO), 18
out. 1907, Art. 43.
20 Ibid., Art. 46.
21 Para maiores informações sobre as dificuldades encontradas pelo CICV para a elaboração e aprovação da
IV Convenção de Genebra, veja COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA, Notas Preliminares.
In: COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA, Convenções de Genebra de 12 de Agosto de 1994.
Genebra: CICV, 1992.
22 Este princípio informa o direito internacional humanitário como um todo. Sobre seu impacto para a proteção
de mulheres, veja OOSTERVELD, Valerie. Feminist debates on civilian women and international humanitarian
law. Windsor Yearbook of Access to Justice, v. 27, n. 1, p. 385-402, 2009.
23 IV CONVENÇÃO DE GENEBRA RELATIVA À PROTEÇÃO DE PESSOAS CIVIS EM TEMPO DE GUERRA,
12 de Agosto de 1949, Art. 27. Vale lembrar que na III Convenção de Genebra, voltada para a proteção dos
prisioneiros de guerra, há dispositivos direcionados à proteção das mulheres. Estes dispositivos, todavia,
não serão abordados neste artigo. Sobre o tema, veja LINDSEY, Charlotte. Women and war: the detention
of women in war time. International Review of the Red Cross, v. 83, n. 842, p. 505-520, 2001.
24 Vários livros fazem referência ao estupro de mulheres por soldados soviéticos, veja, por exemplo, BOEHM,
Philip (ed.). A Woman in Berlin Eight Weeks in the Conquered City: A Diary. Nova Iorque: Metropolitan books,
2005; GEBHARDT, Miriam. Crimes Unspoken: The rape of German women at the end of the Second World
War. Oxford: Polity Press, 2016.
310

os soldados soviéticos, ao articular a incapacidade de os soldados alemães


protegerem suas mulheres25.
Dispositivos legais com foco na proteção de mulheres durante conflitos
armados são posteriormente encontrados nos Protocolos Adicionais às Con-
venções de Genebra. Particularmente relevante para este artigo, é o Protocolo
Adicional I, relativo a conflitos internacionais. Em seu Art. 76, o Protocolo
Adicional I dispõe que “as mulheres devem ser objeto de um respeito especial
e protegidas nomeadamente contra a violação sexual, a prostituição forçada
e qualquer outra forma de atentado ao pudor”. A categoria de direitos objeto
de garantia na qual a proibição ao estupro foi incluída relaciona-se com
conceitos como castidade, pudor, decência, pureza e virgindade. O estupro,
pensado enquanto atentado violento ao pudor, é trabalhado em termos de

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


castidade em oposição a violações contra a integridade física, como no caso
de outros crimes de guerra.
É importante observar que, sendo a honra o interesse protegido, a per-
cepção da sociedade em relação ao estupro torna-se essencial para a sua com-
preensão. Neste sentido, o elo entre a violência contra mulheres em períodos
de paz, durante o conflito armado e após o conflito torna-se evidente. O conflito
armado traz à tona o contexto de violência estrutural de gênero que posiciona a
mulher como hierarquicamente inferior, feminina, vulnerável, frágil e permite
atualizar esta percepção, transformando a violência estrutural em violência
direta. É dentro deste contexto que O´Brien e Quenivet entendem os relatos de
violência sexual no atual conflito entre a Rússia e a Ucrânia como reflexo dos
altos índices de violência doméstica na Rússia, bem como da descriminalização
de certas formas de violência doméstica26. Como uma questão social, e não
individual, as relações de poder entre homens e mulheres na Rússia informam
as relações de poder entre homens e mulheres na Ucrânia. Os papéis sociais
normalizados na Rússia são transferidos para o território ucraniano, não só por
combatentes russos, mas também por suas esposas.
Deve-se observar que esta transferência se dá também em relação à
desigualdade de gênero estabelecida na Ucrânia. Observadores externos das
Nações Unidas identificaram exemplos de desigualdade por meio da análise
do quadro jurídico sobre a violência contra as mulheres na Ucrânia e da
aplicação desta normativa em âmbito doméstico27. Este contexto juntamente

25 O’BRIEN, Melanie; QUENIVET, Noelle. Sexual and Gender-Based Violence against Women in the Russia-
-Ukraine Conflict. EJIL: Talk!, 8 jun. 2022. Disponível em: https://www.ejiltalk.org/sexual-and-gender-base-
d-violence-against-women-in-the-russia-ukraine-conflict/. Acesso em: 1 nov. 2022.
26 Ibid.
27 ESCRITÓRIO DO ALTO COMISSARIADO PARA DAS NAÇOES UNIDAS PARA OS DIREITOS HUMANOS.
Conflict-Related Sexual Violence in Ukraine, 14 March 2014 to 31 January 2017. Office of the United Nations
High Commissioner for Human Rights, 16 March 2017, A/HRC/34/CRP.4. Disponível em: http://www.ohchr.org/
Documents/Countries/UA/ReportCRSV_EN.pdf. Acesso em: 1 nov. 2022. Veja também Anosova, Iuliia, Will
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 311

com a proliferação de armas e um alto número de atores militares mobilizados


no leste ucraniano aumentaram o risco de violência sexual contra mulheres
ucranianas28. Este risco se materializou após a invasão de 2022, uma vez que
se constata alegações de abuso sexual praticada contra mulheres ucranianas
por parte de soldados ucranianos29. Neste sentido, Zipfel afirma

Ainda que a violência sexual não só aumente substancialmente na guerra,


como também desempenhe funções específicas nesse contexto, ela não
surge sem premissas vindas dos tempos de paz, ou, melhor, dos períodos
de entre-guerras, e não se esgota depois da guerra. As práticas da guerra,
enquanto chamado estado de exceção, e as práticas de violência sexual
vividas enquanto permissividade têm de fazer parte das linhas desta des-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

crição, pois inscrevem-se no potencial de experiências e de ação de uma


sociedade, sendo transmitidas de geração em geração30.

A referência à honra traz à tona as consequências do estupro para a coesão


social do Estado sob ataque, tais como o isolamento e a rejeição das mulheres
estupradas; a difusão de doenças sexualmente transmissíveis31, e a misci-
genação. Em outros termos, a definição de estupro no direito internacional
humanitário chama atenção para a possível instrumentalização do corpo e da
autonomia da mulher para o alcance de um objetivo maior: derrotar o inimigo,
quebrar laços comunitários32. Este objetivo se configura como um objetivo
comum, partilhado por homens e mulheres, combatentes ou não combatentes.
the Rubber Hit the Road: Dealing with Conflict-Related Sexual Violence in Ukraine, 3 out. 2020. Disponível em:
SSRN: https://ssrn.com/abstract=3719860 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3719860. Acesso em: 1 nov. 2022.
28 Ibid.
29 Veja McKERNAN, Bethan. Rape as a weapon: huge scale of sexual violence inflicted in Ukraine emerges.
The Guardian, 4 abr. 2022. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2022/apr/03/all-wars-are-li-
ke-this-used-as-a-weapon-of-war-in-ukraine. Acesso em: 1 nov. 2022.
30 ZIPFEL, Gaby. “Vamos lá curtir um bocado”. A relação entre identidade sexual, violência e sexualidade em
conflitos armados. Revista Crítica de Ciências Sociais, v. 96, p. 31-46, 2012.
31 O aumento de casos de AIDS em razão de violência sexual foi reconhecido em 2000 pelo Conselho de
Segurança das Nações Unidas por meio da Resolução 1308/2000 e pelo Secretário Geral da Organização
em seu relatório sobre crianças em conflitos armados. UNITED NATIONS SECRETARY-GENERAL, Report
of the Secretary-General to the Security Council on Children in Armed Conflict pursuant Security Council
Resolution 1261/1999, 19 jul. 2000, A/55/163 – S/2000/712. Disponível em: https://digitallibrary.un.org/
record/419209?ln=en. Acesso em: 1 nov. 2022.
32 LINDSEY, C. Op cit. (nota 23), p. 32; DIXON, Rosalind. Rape as a Crime in International Humanitarian Law:
Where to from Here? European Journal of International Law, v. 13, n. 3, p. 697-719, 2002. p. 702. A Relatora
Especial da ONU sobre Violência contra a Mulher argumenta que descrever a violência sexual em termos de
desonra rejeita sua compreensão como um crime de violência e a vincula a conceitos de castidade, pureza
e virgindade, ou seja, uma compreensão estereotipada da feminilidade. Ademais, tal descrição incentiva
um sentimento de vergonha para a vítima, bem como a percepção pela comunidade da vítima como “suja”.
Veja COMISSÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS DIREITOS HUMANOS, Relatório do Relator especial
sobre violência contra mulheres, causas e consequências, Ms Radhika Coomaraswamy, submetido de
312

O estupro como estratégia de guerra exige, portanto, a tematização das relações


de gênero não só durante, mas também antes e após o conflito armado.

3. Desenvolvendo o significado do estupro no direito


internacional penal

3.1 Os elementos do crime

A etapa mais recente no processo de definição da responsabilidade penal


internacional tem início nos anos 80 e se relaciona, por um lado, ao processo
de democratização pelo qual vários países passaram e, por outro, aos con-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


flitos armados na ex-Iugoslávia e em Ruanda. Caracterizados, mesmo que
tardiamente, como ameaças à paz, os conflitos armados exigiram a atuação
da comunidade internacional. Dentre as medidas adotadas, destacam-se as
Resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas que instituíram os
tribunais penais internacionais ad hoc33. Esses tribunais foram pioneiros no
exame e condenação de violência sexual em situações de guerra.
Os Estatutos dos tribunais ad hoc enumeraram o estupro como um crime
contra a humanidade34. Além disto, o Estatuto do Tribunal Penal Internacional
para Ruanda (TPIR) tipificou o estupro, a prostituição forçada e qualquer
forma de atentado ao pudor como crimes de guerra35. Apesar do silêncio
do Estatuto do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (TPII) em
relação à tipificação do estupro como crime de guerra, o Tribunal foi capaz
de tematizar o estupro como crime de guerra, considerando-o uma forma de
tortura36. De acordo com Segato, “é por sua qualidade de violência expressiva
mais que instrumental – violência cuja finalidade é a expressão do controle
absoluto de uma vontade sobre a outra – que a agressão mais próxima do
estupro é a tortura, física ou moral. Expressar que se tem nas mãos a vontade
acordo com a Resolução 1997/44 da Comissão, 26 jan. 1998, E/CN.4/1998/54, § 4. Disponível em: https://
www.refworld.org/docid/3b00efbd24.html. Acesso em: 1 nov. 2022.
33 UNITED NATIONS SECURITY COUNCIL, Estatuto do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia,
S/R 827(1993), Art. 5 e UNITED NATIONS SECURITY COUNCIL, Estatuto do Tribunal Penal Internacional
para Ruanda, S/R 955(1994), Art. 3. Em seguida, referência será feita diretamente ao Estatuto relevante e
não à Resolução do Conselho de Segurança.
34 Estatuto do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, Art. 5; Estatuto do Tribunal Penal Internacional
para Ruanda, Art. 3.
35 Estatuto do Tribunal Penal Internacional para Ruanda, Art. 4(2).
36 TPII, Prosecutor v. Delalic et al, (Celebici Camp). Julgamento, 16 nov. 1998. De acordo com o Tribunal, para
que uma conduta seja enquadrada como tortura em um conflito armado, deve ser infligidos, por ato ou
omissão intencional, dor ou sofrimento agudos, físicos ou mentais, com o objetivo de obter informação ou
confissão, punir, intimidar, humilhar, coagir ou discriminar em qualquer base a vítima ou terceira pessoa. O
ato deve estar relacionado com o conflito armado e ao menos uma das pessoas envolvidas na tortura deve
exercer função pública ou estar agindo de alguma forma em função não privada.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 313

do outro é o telos ou a finalidade da violência expressiva”37. O TPIR também


foi capaz de condenar o estupro como genocídio. O Estatuto do Tribunal
Penal Internacional (Estatuto de Roma), por sua vez, consolidou o enten-
dimento de que crimes sexuais podem constituir genocídio, crime contra a
humanidade ou crime de guerra, a depender das circunstâncias presentes em
cada caso concreto38.
Os casos ouvidos perante os tribunais ad hoc trouxeram à tona a frequên-
cia com que o estupro é praticado durante conflitos armados e o seu impacto
destrutivo para as vítimas e para a sociedade como um todo. Eles não só
chamaram atenção para o crime de estupro, mas também o articularam como
um crime internacional39. No entanto, o desenvolvimento da jurisprudência
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

relacionada ao estupro enfrentou vários desafios, sobretudo no tocante às


ações que podem ser enquadradas como estupro e ao relacionamento entre a
força/coerção e o consentimento.
Os primeiros esforços voltados para a definição do estupro foram adota-
dos pelo TPIR, no caso Akayesu. Após constatar que, no âmbito doméstico,
o estupro é normalmente definido como relação sexual não consentida, o
TPIR entendeu ser necessário uma definição mais ampla, capaz de conside-
rar o contexto específico de atuação do direito internacional penal. Assim, o
TPIR entendeu que o estupro também inclui atos que envolvam “a inserção
de objetos e/ou o uso de orifícios corporais não considerados intrinsecamente
sexuais”40. O TPIR afirmou ser o estupro, como a tortura, “usado para fins
de intimidação, degradação, humilhação, discriminação, punição, controle ou
destruição de uma pessoa”41. Seguindo a definição de tortura da Conven-
ção das Nações Unidas contra a Tortura, o TPIR rejeitou a enumeração de
objetos e partes do corpo, adotando uma definição conceitual do estupro no
caso Akayesu42. Assim, o estupro foi definido, de forma ampla, como “uma
invasão física de natureza sexual”43.
Caminho oposto foi seguido pelo TPII no caso Furundzija, no qual o TPII
enumerou as partes do corpo consideradas relevantes para a caracterização do
estupro. Recorrendo à análise dos sistemas domésticos, o TPII decidiu que
37 SEGATO. Op cit. (nota 11), p. 271.
38 Veja discussão mais detalhada abaixo.
39 Veja também DEPARTMENT OF PEACE KEEPING OPERATIONS. Review of the Sexual Violence Elements
of the Judgments of the International Criminal Tribunal for the Former Yugoslavia, the International Criminal
Tribunal for Rwanda and the Special Court for Sierra Leone in the light of Security Council Resolution 1820.
United Nations Digital Library, 9 mar. 2009, p. 24. Disponível em: https://digitallibrary.un.org/record/784421?l-
n=en. Acesso em: 1 nov. 2022.
40 TPIR. Prosecutor v. Jean-Paul Akayesu. Julgamento. 2 set. 1998, § 597.
41 Ibid., Id.
42 Ibid., Id.
43 Ibid., § 688.
314

o estupro é considerado a “penetração sexual, ainda que leve, da vagina ou


ânus da vítima pelo pênis do agressor ou qualquer outro objeto utilizado pelo
agressor”44. O TPII constatou ainda que a penetração oral forçada não é crimi-
nalizada de forma uniforme pelos Estados, sendo que alguns a caracterizam
como estupro, outros como atentado violento ao pudor45. Reconhecendo que
o respeito à dignidade humana é um princípio fundamental do direito inter-
nacional humanitário e dos direitos humanos, bem como um princípio que
permeia todo o direito internacional público, o TPII decidiu que a definição
de estupro deveria ser ampla o possível para enquadrar a penetração forçada
da boca da vítima pelo pênis do agressor46.
Tendo em mente o princípio da legalidade, a jurisprudência subsequente

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


dos tribunais ad hoc refletiu, em grande medida, o actus reus estipulado no caso
Furundzija, buscando especificar os atos que constituem o estupro. A normativa
do TPI também seguiu esta perspectiva ao adotar como um dos elementos
constitutivos do estupro a invasão “do corpo de uma pessoa por conduta que
resultou na penetração, por mais leve que fosse, de qualquer parte do corpo
da vítima ou do autor com um órgão sexual, ou da abertura anal ou genital da
vítima com qualquer objeto ou qualquer outra parte do corpo”47.
Os casos Akayesu e Furundzija também ilustram os conflitos relacio-
nados à compreensão da relação entre força/coerção e consentimento. O
TPIR no caso Akayesu entendeu que “ameaças, intimidação, extorsão e
outras formas de coação que se aproveitam do medo ou do desespero podem
constituir coerção, e a coerção pode ser inerente a certas circunstâncias,
como conflito armado [...]”48. O contexto particular da guerra, portanto,
justificava uma ampla compreensão da coerção, segundo a qual o elemento
coercitivo seria automaticamente preenchido no conflito armado e o único
elemento a ser comprovado seria a invasão física de natureza sexual. Não
seria, portanto, necessário estabelecer nem o uso ou a ameaça de uso da
força nem o não consentimento. Já no caso Furundzija, o TPII entendeu
ser a coação, o uso ou a ameaça de uso da força contra a vítima ou terceiro
elemento do crime49. Por possibilitar uma interpretação restritiva, capaz
de impedir o reconhecimento das várias circunstâncias que podem afetar

44 TPII. Prosecutor v. Furundzija. Julgamento. 10 dez. 1998, § 185.


45 Ibid., § 181.
46 Ibid., §§ 179-186.
47 ASSEMBLBLY OF STATES PARTIES TO THE ROME STATUTE OF THE INTERNATIONAL CRIMINAL
COURT. Elements of Crimes, 3-10 September 2002, Art. 8(2)b(xxii)-(estupro como crime de guerra) e Art.
7(1)(g)-1 (estupro como crime contra a humanidade).
48 TPIR, Prosecutor v. Jean-Paul Akayesu, Julgamento, 2 set. 1998, § 688.
49 TPII. Prosecutor v. Furundzija, Julgamento. 10 dez. 1998, § 185.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 315

o livre consentimento da vítima50, este entendimento foi rejeitado no caso


Kunarac. Assim, no caso Kunarac, o TPII substitui o elemento coação, força
ou ameaça de uso da força pelo elemento ausência de consentimento51.
Assim, o uso ou ameaça de uso da força passou a ser apenas uma das for-
mas pelas quais se pode viciar o consentimento da vítima. Circunstâncias
como extrema pressão psicológica, enfermidade física ou mental, menori-
dade, entre outros, podem viciar o livre consentimento52. Abriu-se, assim,
espaço para a consideração do contexto criado pelo conflito armado, sem
o comprometimento da definição do estupro como relação não consensual.
A liberdade e a autodeterminação sexual passaram a ser os bens jurídicos
protegidos pela criminalização do estupro. Ademais, ao afastar a centralidade
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

do uso da força, esta interpretação abriu espaço para a responsabilização


penal internacional de mulheres ainda que estereótipos de gêneros continuem
a informar a discussão em relação ao perpetrador.
Este entendimento foi adotado pelo Estatuto de Roma, o qual exige,
para a caracterização do estupro, que a invasão tenha sido cometida “por
força, ou por ameaça de força ou coerção, assim como por medo de violência,
coação, detenção, opressão psicológica ou abuso de poder, contra tal pessoa
ou outra pessoa, ou por tirar vantagem de um ambiente coercivo”53, ou que
a invasão tenha sido cometida “contra uma pessoa incapaz de dar o consen-
timento genuíno”54. No caso Nataganda, o TPI afirmou não ser necessária
a comprovação do uso de força física para a configuração de um ato como
coercível55. Os atos coercitivos podem incluir, por exemplo, ameaças, inti-
midação, extorsão e outras formas de infligir medo e desespero nas vítimas.
Além disso, vários fatores podem contribuir para a criação de um ambiente
coercitivo, como o número de pessoas envolvidas na realização do crime,
se o crime foi cometido durante ou imediatamente após o combate, ou se foi
cometido juntamente com outros crimes.
É interessante observar que a definição conceitual do estupro adotada no
caso Akayesu se deu quando da caracterização do estupro como genocídio, isto
é, quando a violência sexual foi cometida contra mulheres enquanto integrantes

50 TPII. Prosecutor v. Kunarac, Kovac and Vukovic, Julgamento. 22 fev. 2001, § 442. A jurisprudência posterior
do TPII buscou conciliar as decisões nos casos Furndzija e Kunarac, indicando a possibilidade de uma
interpretação mais ampla dos termos força e coação. TPII. Prosecutor v. Kunarac, Kovac and Vukovic.
Julgamento em fase de Apelação. 12 jun. 2002, § 129.
51 TPII. Prosecutor v. Kunarac, Kovac and Vukovic, Julgamento. 22 de Fevereiro de 2001, §§ 450-452.
52 Ibid., § 452.
53 ASSEMBLBLY OF STATES PARTIES TO THE ROME STATUTE OF THE INTERNATIONAL CRIMINAL
COURT. Elements of Crimes, 3-10 set. 2002, Art. 8(2)b(xxii)-(estupro como crime de guerra) e Ar. 7(1)(g)-1
(estupro como crime contra a humanidade).
54 Ibid. Id.
55 TPI. Prosecutor v. Ntaganda. Julgamento, 8 jul. 2019. A condenação de Ntaganda foi confirmada em apelação.
316

de um grupo étnico estável ou permanente. Neste caso, o TPIR entendeu que


o acusado tinha a intenção de cometer o genocídio por meio, entre outros,
do estupro sistemático das mulheres tutsi em Ruanda em 1994. A violência
sexual foi articulada como um passo em relação à destruição da etnia tutsi, ao
promover a destruição de seu espírito, de sua vontade de viver, ou da vontade
de procriar56. Pensado enquanto genocídio, o estupro, amplamente definido,
tomou dimensão pública/política por estar relacionado a figuras jurídicas do
delito contra determinados grupos. Em outros termos, a proteção que o direito
internacional público oferece à integridade física e mental das mulheres, bem
como à sua autonomia, se retrai diante da proteção do grupo. Como um crime
contra a mulher, o estupro foi definido de forma bem mais restritiva.
De forma geral, a discussão do estupro nos tribunais ad hoc permite a

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


responsabilização penal de mulheres pela prática do estupro. E, de fato, isto
ocorreu em dois casos. Biljhana Plavsic foi condenada pelo TPII e Pauline
Nyiramasuhuko, pelo TPIR57. O baixo número de condenações em âmbito
internacional reflete, em parte, o baixo número de acusações contra mulheres.
Estes dados parecem, todavia, contrariar os estudos relacionados à participação
de mulheres em conflitos armados, bem como à sua participação na prática de
ilícitos. Ainda que informado pelo princípio da seletividade, segundo o qual
apenas indivíduos considerados os mais responsáveis seriam julgados em âmbito
internacional58, o reduzido número de acusações envolvendo mulheres e a
prática de violência sexual também compromete a nossa habilidade de com-
preensão da (re)configuração das relações de gênero durante conflitos armados
e, consequente, limita a nossa compressão sobre violência sexual.

3.2 O possível enquadramento legal das alegações de estupro na Ucrânia

Tanto a Rússia quanto a Ucrânia têm alegado a prática de genocídio no


conflito armado59. O Estatuto do TPI permite enquadrar o estupro como

56 TPIR. Prosecutor v. Jean-Paul Akayesu. Julgamento. 2 set. 1998, § 732.


57 Veja, respectivamente, TPII. Prosecutor v. Plavsic. Julgamento, 7 fev. 2003; TPIR. Op cit. (nota 5).
58 Para uma discussão global sobre o significado da expressão “os mais responsáveis” no direito internacional
penal, veja: RIKHOF, Joseph. Who are most responsible in International Criminal Law? PKI Global Justice
Journal, 21 nov. 2019. Disponível em: https://globaljustice.queenslaw.ca/news/who-are-most-responsible-
-in-international-criminal-law. Acesso em: 7 dez. 2022. Importante observar que o modo de participação é
um dos elementos considerados pela promotoria do TPI.
59 BHASIN, Swati. Zelensky to address UN Security Council amidst global outrage over mass killings. Hindustan
Times, 5 abr. 2022. Disponível em: https://www.hindustantimes.com/world-news/zelensky-to-address-un-
-security-council-amid-global-outrage-over-mass-killings-101649122102697.html. Acesso em: 1 nov. 2022.
WARD, Myah. Biden labels Russia atrocities in Ukraine genocide. Politico, 12 abr. 2022. Disponível em:
https://www.politico.com/news/2022/04/12/biden-russia-ukraine-genocide-00024807. Acesso em: 1 nov.
2022. Veja também as acusações apresentadas perante a Corte Internacional de Justice. ICJ, Allegations
of Genocide under the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide (Ukraine
v. Russian Federation).
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 317

elemento do crime de genocídio quando praticado com intenção de destruir,


no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, nos ter-
mos de seu Art. 6º. Apesar de o Art. 6º não mencionar expressamente atos
de violência sexual na descrição do crime de genocídio, o documento sobre
os elementos dos crimes contém uma nota esclarecendo que a conduta cau-
sadora de lesões graves à integridade física ou mental de membros do grupo
“pode incluir, mas não necessariamente se limita a, atos de tortura, violação,
violência sexual ou tratamento desumano ou degradante”60.
Analisando os dados coletados em Bucha, onde forças russas mantiveram
dezenas de meninas e mulheres ucranianas como escravas sexuais e afirmaram
esperar que, como resultado, suas prisioneiras recusassem sexo no futuro e,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

portanto, não tivessem filhos ucranianos, Block caracterizou o ato como geno-
cídio61. A autora prossegue sua análise indicando que “os soldados poderiam
ter matado as mulheres e meninas para impedir a reprodução. Mas, eles esco-
lheram infligir danos sexuais como um sinal de seu poder”62. A caracterização
do genocídio pautada exclusivamente na manutenção da vida destas mulheres
não parece, todavia, ser congruente com intenção exigida para a caracterização
do genocídio: a destruição no todo ou em parte, de um grupo nacional, étnico,
racial ou religioso. Até o momento, provas coletadas em relação aos vários
crimes praticados parecem não apoiar a prática do genocídio63.
É no âmbito dos crimes contra a humanidade que o Estatuto de Roma
regula de forma expressa os crimes sexuais, prevendo, pela primeira vez
em âmbito internacional, a título exemplificativo, diversas formas de crimes
sexuais – violação sexual, escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez
forçada, esterilização forçada e outras formas de violência. Exige-se, neste
contexto, que a violência sexual seja cometida no quadro de um ataque, gene-
ralizado ou sistemático, contra qualquer população civil. O termo generali-
zado implica um grande número de vítimas, um ataque em grande escala, já
o termo sistemático sugere serem os ataques de alguma forma organizados
ou tolerados, sendo improvável que os incidentes ocorram aleatoriamente.
A generalidade e sistematicidade dos ataques têm sido concebidas à luz das
estruturas hierárquicas que envolvem combatentes durante o conflito armado.
Em outros termos, o potencial impacto da tolerância social, se não do apoio
60 ASSEMBLBLY OF STATES PARTIES TO THE ROME STATUTE OF THE INTERNATIONAL CRIMINAL
COURT. Elements of Crimes, 3-10 set. 2002. Op cit. (nota 3).
61 BLOCK, Sharon, The rape of Ukraine, NCB News, 15 abr. 2022, Disponível em: https://www.nbcnews.com/
think/opinion/ukraine-russia-war-crimes-spotlight-soldier-rape-strategy-rcna25903. Accesso em: 1 nov. 2022.
62 Ibid.
63 Veja, por exemplo, SCHABAS, William A. Genocide and Ukraine: Do words mean what we choose them to
mean? Journal of International Criminal Justice, v. 20, n. 4, p. 843-857, 2022; Quénivet, Noëlle, The conflict
in Ukraine and Genocide, Journal of International Peacekeeping, v. 25, n. 2, p. 141-154, 2022.
318

social, à prática da violência sexual durante conflitos armados ainda não foi
articulado pelo direito internacional penal. Ainda assim, de acordo com o
relatório da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, a prá-
tica do estupro no conflito entre a Rússia e a Ucrânia pode caracterizar crime
contra a humanidade64.
Um dos grandes desafios que se observa em relação à caracterização do
estupro como crime contra a humanidade diz respeito aos baixos índices de
notificação65, o que dificulta a coleta de provas. Como resultado, Goetz afirma
haver uma tendência a supor a não ocorrência de estupros66. Para evitar o
impacto desta reticência em se reconhecer a prática do estupro, O´Brien e Que-
nivet sugerem dever ser presumida a ocorrência de violência sexual em conflitos

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


armados que envolvam grupos armados com histórico de perpetrar tais atos em
outros conflitos67. Tendo em mente relatos de estupro pós 2014 no conflito entre
a Rússia e a Ucrânia, esta presunção se aplicaria ao atual contexto.
Referida presunção, ainda que capaz de informar o desenvolvimento e
adoção de medidas preventivas relacionadas à violência sexual desde o início
das hostilidades, tal como sugerido pelas autoras, não se mostra suficiente para
apoiar a condenação por crime contra a humanidade. Em relação ao contexto
probatório, é importante observar que, no caso Bemba, o TPI entendeu ser
necessária a apresentação, pela acusação, na fase inicial do processo do quadro
completo das condutas a serem analisadas no decurso do julgamento, bem
como das provas relacionadas a tais condutas68. Este entendimento dificulta
a condenação internacional por crimes sexuais, uma vez que a relutância
das vítimas em testemunhar impede a apresentação completa de acusações
relacionadas à prática do estupro na fase inicial do processo penal69. Diante
deste contexto, a responsabilização penal por incitamento à prática do estupro
pode configurar uma alternativa viável para a promotoria.
64 OSCE. Report of the OSCE Moscow Mechanism’s mission of experts entitled ‘Report on Violations of
International Humanitarian and Human Rights Law, War Crimes and Crimes Against Humanity Committed
in Ukraine (1 April – 25 June 2022), 14 July 2022. Disponível em: https://www.osce.org/odihr/522616. Acesso
em: 1 nov. 2022.
65 Além do estigma associado à violência sexual, a percepção de que o processo de vitimização sofrido
não será assim compreendido é uma das razões apontadas para os baixos índices de notificação. Veja:
CAMPOS, Carmen Hein de et al. Cultura do estupro ou cultura antiestupro? Revista Direito GV, v. 13,
n. 13, p. 981-1006, 2017.
66 GOETZ, Anne Marie. Options for a Peace Settlement for Ukraine: Option Paper X – Addressing Sexual
Violence in the Ukraine Conflict. OpinioJuris, 18 jul. 2022. Disponível em: http://opiniojuris.org/2022/07/18/
options-for-a-peace-settlement-for-ukraine-option-paper-x-addressing-sexual-violence-in-the-ukraine-conflict/.
Acesso em: 1 nov. 2022.
67 O’BRIEN, M; QUENIVET, N. Op cit. (nota 25).
68 TPI. Prosecutor v. Bemba, Julgamento em fase de Apelação, ICC-01/05-01/08, 8 jun. 2018, §§ 110 e 115.
69 ALTUNJAN, Tanja. The International Criminal Court and Sexual Violence: Between Aspirations and Reality,
German Law Journal, v. 22, n. 5, p. 878-893, 2021. p. 886.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 319

O Estatuto de Roma também estabelece que atos de violência sexual, escra-


vidão sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada e qual-
quer outra forma de violência sexual que constitua também um desrespeito grave
às Convenções de Genebra podem configurar crimes de guerra, seja em conflitos
armados internacionais ou conflitos armados internos. Para que a violência sexual
constitua um crime de guerra, exige-se que o autor da conduta esteja ciente das
circunstâncias factuais que estabelecem a existência de um conflito armado, ainda
que não tenha clareza acerca da caracterização do conflito como internacional ou
interno. Ademais, tais atos devem ser “parte integrante de um plano ou de uma
política ou como parte de uma prática em larga escala”, nos termos do Art. 8º do
Estatuto. Neste sentido, no caso contra Katanga, o TPI afastou a responsabilidade
de Katanga pelos estupros relatados durante o conflito armado, ao compreender
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

que eles não faziam parte do propósito comum dos membros da milicia sob a
responsabilidade de Katanga nos termos do artigo 25(3)(d) do Estatuto do TPI70.
Desta forma, apesar de não combatentes poderem ser condenados por crimes de
guerra, o TPI parece compreender a noção de propósito comum de forma não
inclusiva, isto é, o amplo apoio social à prática do estupro como instrumento
de guerra não seria suficiente para a caracterização de um propósito comum,
manifesto em um plano ou política.
Uma vez caracterizados os elementos do crime, a condenação por estupro
exige ainda a análise da participação do acusado. À luz da seletividade do
direito internacional penal, o incitamento, de forma individualizada, parece
não ser capaz de mobilizar o direito internacional penal. No contexto de parti-
cipação indireta na prática o estupro, ganha centralidade a responsabilidade de
comando, isto é, se o acusado sabia que as forças sob o seu comando cometiam
ou cometeram crimes internacionais e as medidas adotadas para impedir e
repreender estes atos. No caso Bemba, o TPI entendeu ser necessário avaliar
as medidas que estavam à disposição do comandante nas circunstâncias da
época71. Considerando o status de Bemba como um comandante remoto
com tropas em um país estrangeiro, o TPI afirmou que lhe era devida certa
deferência devido às “limitações que o Sr. Bemba teria enfrentado ao inves-
tigar e processar crimes cometidos em outros países”72. Este entendimento

70 TPI. Prosecutor v. Katanga, Julgamento, ICC-01/04-01/07, 7 mar. 2014, §1663. Esta compreensão foi pau-
tada na ausência de provas capazes de comprovar a prática do estupro antes da batalha de Bogoro. Neste
sentido, a definição do início do conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia pode ser importante para a
caracterização do estupro como crime de guerra. Segundo Rosenberg, o conflito remonta a 2014, sendo que
a partir de 2017-2018 relatórios documentando a prática do estupro começam a surgir. Veja ROSENBERG,
Erin Farrel. Response to conflict-related sexual violence in Ukraine: Accountability and Reparations. Opinio
Juris, 21 jun. 2022. Disponível em: http://opiniojuris.org/2022/06/21/response-to-conflict-related-sexual-vio-
lence-in-ukraine-accountability-and-reparations/. Acesso em: 1 nov. 2022.
71 TPI, Prosecutor v. Bemba, Julgamento em fase de Apelação, ICC-01/05-01/08, 8 jun. 2018, § 168.
72 Id. § 191.
320

certamente limita a possiblidade de futura condenação por crimes sexuais


pautada na responsabilidade de comando73.

4. Considerações finais

A prática do estupro durante conflitos armados tem sido amplamente


condenada pelo direito internacional público e, em particular, no direito inter-
nacional humanitário e no direito internacional penal. Todavia, a ausência
de menção clara ao estupro como violação da integridade física e mental da
mulher, bem como de sua autonomia, nos documentos de direito internacio-
nal humanitário acabou por reproduzir no discurso jurídico a compreensão

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


da mulher enquanto reprodutora, que demanda proteção durante o conflito
armado. Esta percepção, ao ser explorada nos conflitos armados, conduziu
ao estupro massivo de mulheres em Ruanda e na ex-Iugoslávia. O estupro se
mostrou uma eficiente estratégia de guerra: ele é capaz de infectar as mulheres
com doenças sexualmente transmissíveis; conduz, em determinadas comu-
nidades, as mulheres estupradas ao ostracismo, impedindo a reprodução do
grupo inimigo; provoca a miscigenação.
Atentos à dimensão que as consequências do estupro podem tomar em um
conflito armado, os tribunais ad hoc buscaram promover a responsabilização
penal nesta área. O estupro foi, então, considerado crime de guerra, crime
contra a humanidade e como elemento do genocídio, à luz das circunstâncias
particulares de cada caso. Neste processo, a jurisprudência dos tribunais ad hoc
permitiu a melhor articulação dos elementos do crime de estupro no contexto
internacional, informando o posterior processo de tipificação do estupro no
TPI. Ademais, a jurisprudência internacional penal em relação ao estupro,
sobretudo enquanto crime contra a humanidade e crime de guerra, passou a
reconhecer não só a integridade física e mental das mulheres, como também
a sua autonomia como aspectos violados pelo estupro.
Assim, o Estatuto do TPI oferece um quadro normativo capaz de possibi-
litar a responsabilização penal internacional por atos de violência sexual, tais
como o estupro, cometidos durante o conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia.
Enquanto crime contra a humanidade, a prática generalizada ou sistemática
do estupro é exigida; enquanto crime de guerra, a existência de um propósito
comum. Em outros termos, até mesmo a tipificação do estupro demonstra a
seletividade do direito internacional penal, permitindo-nos refletir sobre o silen-
ciamento de inúmeros casos de estupro cometidos durante conflitos armados que

73 Veja SÁCOUTO, Susana; SELLERS, Patricia. The Bemba Appeals Chamber Judgment: Impunity for Sexual
and Gender-Based Crimes? William & Mary Bill of Rights Journal, v. 27, n. 3, p. 599-622, 2019.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 321

são percebidos como atos individualizados, aleatórios. Os desafios relacionados


à coleta de provas, ao dificultar a condenação do estupro como uma prática
generalizada ou sistemática ou como estratégia de guerra, acabam por reiterar
a percepção do estupro como exceção durante conflitos armados. No entanto,
tal percepção necessita ser questionada, sobretudo quando a prática do estupro
recebe o apoio inclusive de outras mulheres, tais como no conflito entre a Rússia
e a Ucrânia. Na medida em que este questionamento se dá na esfera penal inter-
nacional, torna-se essencial questionar, por exemplo, em que medida este apoio
pode configurar incitamento, bem como o impacto desta forma de participação
à luz dos debates relacionados à categoria de gênero.
Ademais, esforços relacionados à coleta e posterior apresentação das
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

provas perante o TPI tornam-se essencial. Neste contexto, é importante obser-


var que o desenvolvimento mais recente da jurisprudência do TPI dificultou
ainda mais este processo, ao exigir a articulação da acusação e das provas
a serem apresentadas já no início do processo. O impacto desta decisão é,
todavia, variável, podendo ser a coleta de provas relacionadas ao incitamento
à prática do estupro, em determinados contexto, mais promissora do que a
coleta de evidências relacionadas à prática do estupro em si. De forma geral,
estes desafios não devem, todavia, afastar os esforços voltados para a con-
denação de atos de violência sexual durante conflitos armados. Tal como o
estupro, a condenação internacional também expressa uma mensagem, uma
mensagem que não se reduz à retribuição, mas que se volta para a preven-
ção ao articular a igualdade de gênero e sexo não só em tempos de paz, mas
também durante conflitos armados.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
18. ESPIONAGEM NO TRIBUNAL PENAL
INTERNACIONAL NO CONTEXTO
DA GUERRA NA UCRÂNIA
Carlos Frederico de Oliveira Pereira

1. Introdução

A presente análise trata de aspectos de direito internacional e de direito


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

penal relativos à prisão de um agente russo que tentou ingressar em solo holan-
dês com o objetivo de realizar espionagem no Tribunal Penal Internacional
(TPI). O referido agente se fazia passar por brasileiro e atualmente está preso
por sentença condenatória no Distrito Federal originária da justiça federal em
São Paulo. A análise debruça-se sobre o tratamento legislativo no nosso país
dado à espionagem, primeiro dentro da violação de acesso a comunicações e
bancos de dados, fato que já se constitui em crime, como, também, quanto à
obtenção da informação sigilosa, o que se pode considerar como criminaliza-
ção da espionagem de forma direta. Procuramos demonstrar, após análise do
tema espionagem no direito internacional, sobre a necessidade de alteração do
Estatuto de Roma para se fazer previsão de crime específico de espionagem
contra os órgãos da Corte, como também sugerimos alterações nas legisla-
ções nacionais dos Estados que aderiram ao Tratado, como forma de melhor
preservar a atividade judicante deste importante Tribunal Internacional.

2. O conceito de espionagem

A espionagem é a atividade de coleta de informações de interesse de um


Estado em benefício de outro, ou em favor de uma empresa ou conjunto de
empresas. Coletar informações disponíveis não se trata de espionagem. Um
detetive particular, atuando regularmente, recolhe informações disponíveis na
busca de evidências para resolver um crime ou esclarecer um fato de interesse
de seu cliente. Na espionagem existe coleta de informações não disponíveis
ao público, portanto, envolve atividade clandestina. Essas informações são
sensíveis, cujos detentores não desejam serem conhecidas ou divulgadas. De
posse dessas informações o favorecido vai orientar a sua tomada de decisão,
normalmente em prejuízo de quem foi objeto da espionagem.
A espionagem é uma atividade que pode ser desenvolvida em tempo de
paz ou de guerra e comporta incriminação. A espionagem feita no local de
324

interesse de coleta de informações, tal como foi o intento do agente russo,


hoje cedeu espaço para a realizada à distância, por meio de acesso ilegal de
sistemas de comunicação e armazenamento de dados, dando margem a uma
nova área do comportamento humano sujeito à lei penal das nações. A aborda-
gem do presente trabalho será eminentemente dentro da perspectiva criminal,
sobretudo porque a partir do caso analisado – espionagem no Tribunal Penal
Internacional (TPI) – deveria importar em previsão de crime internacional,
nada obstante a sua previsão também nos códigos penais, principalmente dos
países que deram adesão ao Estatuto de Roma (ER).
Primeiramente vamos ver o tratamento na nossa legislação penal ao acesso
ilegal de informações, em face de sistemas de comunicação, e a eventual divul-
gação da informação obtida. Essa conduta por si só já se constitui em crime na

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


nossa legislação penal, mas não porque se trata de punição de espionagem, e sim
porque atenta contra a tutela da intimidade, tutela jurídico-penal recentemente
construída. No entanto, esse mesmo acesso ilegal à informação, principalmente
dentro dos sistemas de comunicação e informática, é o principal instrumento
para a espionagem remota. Ou seja, é fato que por si só já é crime. A punição
ao acesso ilegal de sistemas funciona como punição ao ato preparatório da
espionagem, enquanto captação de informação sensível.
A espionagem, visto que envolve colheita (obtenção) de informações sen-
síveis, de conhecimento restrito a um número determinado de pessoas, seja de
natureza pública ou privada, neste último caso, empresarial, logo tem por objeto
informações sigilosas. Uma informação restrita, que não possa ser divulgada,
ingressa no conceito de segredo, como visto no artigo 154 do Código Penal (CP).
Não é o carimbo de top secret que torna a divulgação dessa informação como
sendo criminosa, mas a sua natureza sigilosa, que deve ser perquirida no caso
concreto. Afora essa classificação de segredo, entendida como elemento norma-
tivo do tipo – conceito extrajurídico – a Lei de Acesso à Informação, de 2011,
define informação sigilosa como aquela submetida à restrição de acesso, con-
forme definição dada pela própria lei, que faz a classificação dos graus de sigilo1.

1 Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011.


Art. 4º Para os efeitos desta lei, considera-se:
III- informação sigilosa: aquela submetida temporariamente à restrição de acesso público em razão de sua
imprescindibilidade para a segurança da sociedade do Estado.
Art. 23. São consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado e, portanto, passíveis
de classificação as informações cuja divulgação ou acesso irrestrito possam:
I – pôr em risco a defesa e a soberania nacionais ou a integridade do território nacional;
II – prejudicar ou pôr em risco a condução de negociações ou as relações internacionais do País, ou as que
tenham sido fornecidas em caráter sigiloso por outros Estados e organismos internacionais;
III – pôr em risco a vida, a segurança ou a saúde da população;
IV – oferecer elevado risco à estabilidade financeira, econômica ou monetária do País;
V – prejudicar ou causar risco a planos ou operações estratégicos das Forças Armadas;
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 325

Já neste caso as definições dadas pela lei para informações restritas funcionam
como definição da matéria proibitiva dos tipos relacionados diretamente com a
espionagem, por exemplo, artigo 359-K do CP, que, portanto, se classifica como
norma penal em branco em sentido amplo e heterogênea.
Entretanto, como não se admite crime sem lesão efetiva ou potencial ao bem
jurídico, mesmo uma informação que ingresse no conceito legal de ¨segredo¨ ou
¨restrita¨ deixa de ter proteção penal se a sua ¨natureza¨ não for de informação
que não possa vir ao conhecimento público, sob pena de causar prejuízo público
ou privado, de qualquer índole, material ou não. Não se admite tipicidade penal
sem potencialidade lesiva, decorrente da devassa ou divulgação da informação
supostamente sigilosa. No nosso entendimento, deve-se aferir se a informação
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

buscada deveria ser de potencialidade de causar danos, caso viesse a público,


fosse divulgada ou se apropriada por terceiros. Terceiros são outros Estados ou
empresas, neste último caso, tratando-se de espionagem empresarial.

3. Clandestinidade

Indaga-se, também, se qualquer tipo de atividade de obtenção de infor-


mações restritas poderia ser qualificada como espionagem? A nosso sentir,
observando-se o tratamento doméstico em outros países e o direito de guerra,
a espionagem exigiria ¨clandestinidade¨2. A colheita de informações dis-
poníveis não pode ser classificada como espionagem, ainda que se repute

VI – prejudicar ou causar risco a projetos de pesquisa e desenvolvimento científico ou tecnológico, assim


como a sistemas, bens, instalações ou áreas de interesse estratégico nacional;
VII – pôr em risco a segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus
familiares; ou
VIII – comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento,
relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações.
Art. 24. A informação em poder dos órgãos e entidades públicas, observado o seu teor e em razão de sua
imprescindibilidade à segurança da sociedade ou do Estado, poderá ser classificada como ultrassecreta,
secreta ou reservada.
§ 1º Os prazos máximos de restrição de acesso à informação, conforme a classificação prevista no caput,
vigoram a partir da data de sua produção e são os seguintes:
I – ultrassecreta: 25 (vinte e cinco) anos;
II – secreta: 15 (quinze) anos; e
III – reservada: 5 (cinco) anos. [...]
§ 5º Para a classificação da informação em determinado grau de sigilo, deverá ser observado o interesse
público da informação e utilizado o critério menos restritivo possível, considerados:
I – a gravidade do risco ou dano à segurança da sociedade e do Estado; e
II – o prazo máximo de restrição de acesso ou o evento que defina seu termo final.
2 Nos Estados Unidos, a legislação penal não exige a clandestinidade para a configuração do crime de
espionagem. Basta o fato de a informação interessar a segurança nacional, que possa vir a ser utilizada
em prejuízo dos Estados Unidos. Cf. especialmente os §§ 793 e 794 do Título 18 do U.S. Code. Disponível
em: https://www.law.cornell.edu/uscode/text. Acesso em: 24 abr. 2023.
326

importante a sua não divulgação. Cumpre aos Estados que ponham em segredo
aquilo que consideram relevante.

4. A tutela inicial da espionagem – o acesso ilegal de informações


sigilosas ou não, contidas ou não em bancos de dados, interceptação
de comunicação e revelação de segredos

Excepcionado o direito internacional dos conflitos armados (DICA), que


possui normas em Tratados sobre o tema, a espionagem é essencialmente um
problema de direito interno das nações. No nosso país, a Constituição resguarda
o sigilo das informações. Tudo começa pelo tratamento constitucional dado ao

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


direito à intimidade3, no artigo 5º, inciso X, que resguarda o âmbito privado,
a intimidade das pessoas. Já no artigo 5º, inciso XII, da Constituição Federal
de 1988 (CF/88), há o resguardo geral do sigilo da correspondência, das comu-
nicações telefônicas e em nível informático4. Importante destacar que no
país a tutela penal em relação à obtenção de qualquer informação, sigilosa ou
não, inicia-se desde, não propriamente pela obtenção da informação sensível,
mas ao próprio acesso ilegal ao seu banco de dados, seja em interceptação
de conversação telefônica, de telemática, de correspondência, ou mesmo em
sistemas de armazenamento de dados físicos ou de informática. Em um plano
mais restrito e seguinte ao acesso ilegal, tem-se a tutela do segredo, que guarda
relação mais próxima com a tutela direta da espionagem.
Na verdade, a conduta que antecede a espionagem na sua versão mais cor-
rente hoje em dia – o acesso ilegal de sistemas de informações (hackeamento),
devassa de correspondências, ou interceptação de comunicação telefônica, de
3 O primeiro jurista brasileiro a tratar da tutela penal da intimidade, dentro da perspectiva do direito penal, foi
Paulo José da Costa Júnior. Afirmava o festejado autor: “Dentre esses novos valores, que estavam a merecer
tutela pronta e urgente do direito, sobressai a intimidade: a necessidade de encontrar na solidão aquela paz
e a quele equilíbrio, continuamente comprometidos pelo ritmo da vida moderna. No direito de manter-se a
pessoa, querendo, isolada, subtraída ao alarde e à publicidade, fechada na sua intimidade, resguardada da
curiosidade dos olhares e ouvidos ávidos”. In: O DIREITO DE ESTAR SÓ: a tutela da intimidade, 2. ed. Ver e
atual. São Paulo: RT, 1.995, p. 12. É de sua autoria a redação do artigo 161 do CP de 1.969, correspondente
ao artigo 229 do Código Penal Militar (CPM). Quando da publicação da obra acima referida o ilustre professor
já ressaltava a necessidade de punição de abusos na informática, ressaltando nesse aspecto a necessidade
de incriminação “Pelos perigos que poderão advir da espionagem eletrônica” (grifo nosso), sugerindo o
modelo italiano de incriminação neste aspecto. Já naquela época ressaltava a previsão específica sobre a
interceptação telefônica, tutela que antecede à divulgação do conteúdo da conversação.
4 Artigo 5º, CF/88:
XII – É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telefônicas, de dados e das comunicações
telefônicas, salvo no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelece para fins
de investigação criminal ou instrução processual penal. [...]
X – São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a
indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 327

informática ou telemática – para configurar crime, a adequação típica prescinde


até mesmo da demonstração do caráter sigiloso do que se busca conhecer ilegal-
mente. Ou seja, no nosso país, a clandestinidade, como uma das características
da espionagem, é o suficiente para caracterizar como criminosa a ação de quem
se dedica a espionar outra pessoa, empresa ou órgãos da administração. O tema
comporta, no Direito Penal Brasileiro, portanto, uma antecipação da resposta
penal muito ampla e eficiente, a nosso sentir. O legislador se antecipou, em outras
palavras, à obtenção da informação e sua utilização ilegal criminalizando ex ante
o acesso ilegal da sua fonte, em vista da tutela da intimidade, no plano privado,
e do resguardo dos bancos de dados, no interesse público. O acesso ilegal da
informação já é crime por si só, pouco importando, também, a força motriz do
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

comportamento, se para espionagem, ou satisfazer simplesmente curiosidade,


ou para prejudicar ou beneficiar a si próprio ou terceiros.
Dessa forma, a repressão à espionagem, na legislação penal brasileira,
não se inicia propriamente pela obtenção ilegal de dados sensíveis e sigilosos,
mas, de forma muito mais ampla, pela criminalização do acesso ilegal aos
sistemas de comunicações e dos que podem abrigar informações, sigilosas ou
não, em uma tutela muito mais ampla de intimidade, no que concerne à vida
privada, relativamente à atuação profissional ou das empresas, bem como às
informações, em geral, arquivadas pela administração pública.
Nesse aspecto, por se antecipar à utilização em sentido amplo da informa-
ção ilegalmente colhida, exterioriza-se como uma punição de ato preparatório,
normalmente na forma de crime de perigo abstrato. A legislação penal brasi-
leira isola e criminaliza o trecho do comportamento imediatamente anterior
à obtenção, acesso, utilização ou modificação da informação, como se pode
ver de alguns tipos penais5. Já o tratamento direto da espionagem ocorre em
tipificação específica, como veremos à frente.

5 No CP, o artigo 154-A pune o acesso ilegal de sistemas de informática. Observe-se que o simples ingresso
no sistema, sem autorização, já se constitui crime, independente de a informação ser ou não sigilosa. A
clandestinidade do comportamento é o suficiente para a punição. O passo seguinte, a obtenção de informação
sigilosa, apenas qualifica o crime. Observe-se que quando o “acesso” ilegal de sistemas for da administração
pública, o crime passa a ser de ação penal pública incondicionada. Então, conclui-se que o tipo penal tutela
a proteção da informação em nível público e privado. A legislação penal brasileira, como dito, se antecipa
à obtenção de informações sigilosas, pois o acesso ilegal já é crime mesmo que visando informação sem
caráter sigiloso. A obtenção da informação, resultado seguinte ao acesso ilegal, é tratada como resultado
da atividade de espionagem, que apenas qualifica o crime. Segue-se outra hipótese de acesso ilegal de
informações – a devassa de correspondência – isto é, a tomada de conhecimento do conteúdo de corres-
pondência, que também pode se manifestar como uma forma de espionagem. Cf. os artigos 40 e 41 da
Lei nº 6.538/78. Outra hipótese de acesso ilegal de informações é a interceptação telefônica ou de telemática,
prevista na Lei nº 9.296/96, art. 10. Sem dúvida, a criminalização mais importante nesse tema, em vista da
antecipação da resposta penal e que passou por recente alteração legislativa. Em nível seguinte ao acesso
ilegal de informações, temos a “revelação” ou “divulgação” de segredo. Em nível privado a tutela ocorre no
artigo 154 do CP. Tratando-se de informação sigilosa de natureza pública, temos os artigos 153 e 325 do
328

No âmbito privado, como dito, existe a espionagem empresarial. A espio-


nagem em nível privado acontece não apenas nos tipos referidos ao acesso
ilegal de sistemas, de correspondências comerciais, como previsto no artigo
152 do CP, mas também na Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/96)6.
Na lei em questão estão previstas hipóteses de espionagem em face do resul-
tado da ação criminosa. A antecipação da resposta penal, pela só invasão ilegal
de sistemas ou interceptação de conversações telefônicas ou de telemática,
estão previstas nos tipos vistos nas notas anteriores.

5. Do tratamento da espionagem no direito internacional

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Vimos, no item inicial, como o direito interno vê a espionagem, tanto
em nível de acesso ilegal da informação, como na sua obtenção, que será
detalhada mais à frente. Mas esse tratamento do tema dentro do Direito Penal
estaria conforme ao Direito Internacional, ou teria nele a sua fonte direta? A
resposta não é peremptória. A começar pelo fato de que o tratamento direto
da espionagem, com previsão normativa, no âmbito do Direito Internacional,
só existe no DICA.
Em excelente artigo, Fábio de Macedo Soares Pires Condeixa leciona
sobre a consideração da espionagem como possível ilícito no Direito Inter-
nacional, fora das hipóteses no DICA. Apresenta três conclusões possíveis. A
primeira, que considera ser realmente ilícito, a segunda como atividade lícita,
posto que não regulada e, por fim, uma terceira corrente, de análise pontual
ou casuística, em que não haveria uma regra determinante sobre a licitude da
atividade espionagem e isso deveria ser analisado caso a caso7.

CP. Observe-se que o sujeito ativo do artigo 153 do CP é o particular. Caso a revelação de segredo acarrete
prejuízo para a administração pública, o crime passa a ser regido por ação penal pública incondicionada.
Já no crime do artigo 325 do CP, o sujeito ativo é o funcionário público, tal como definido no artigo 327 do
mesmo código. Aqui o particular pode ser sujeito ativo, porém em concurso com o funcionário público, por
força do que dispõe o artigo 30 do CP. A punição do particular no artigo 153 pressupõe que atua isoladamente
sem concurso com o funcionário público. Desses crimes podem decorrer a tutela direta da espionagem, que
serão referidos à frente. A nosso sentir, os tipos relacionados ao acesso ilegal de informações se situariam
como fase de execução da tutela direta da espionagem e, portanto, seriam absorvidos pelo princípio da
consunção, situando-se como antefato impunível.
6 Art. 195. Comete crime de concorrência desleal quem: [...]
XI – divulga, explora ou utiliza-se, sem autorização, de conhecimentos, informações ou dados confidenciais,
utilizáveis na indústria, comércio ou prestação de serviços, excluídos aqueles que sejam de conhecimento
público ou que sejam evidentes para um técnico no assunto, a que teve acesso mediante relação contratual
ou empregatícia, mesmo após o término do contrato;
XII – divulga, explora ou utiliza-se, sem autorização, de conhecimentos ou informações a que se refere o
inciso anterior, obtidos por meios ilícitos ou a que teve acesso mediante fraude.
7 CONDEIXA, Fábio de Macedo Soares. Espionagem e Direito. Revista Brasileira de Inteligência, n. 10,
p. 21-40, 2015.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 329

O entendimento do autor nacional segue o que vem sendo apregoado


no Direito Internacional por outros autores. Como acentuado por Juan Pablo
Hernandéz, a perplexidade surge do fato de que não existe uma norma a tra-
tar, de forma genérica, a espionagem no âmbito internacional, a não ser nas
normas que regulam os limites do uso da força nos conflitos armados8. Este
mesmo autor ressalta que a espionagem em assuntos políticos, administrativos
e militares de outros países pode ser vista como violação à Carta das Nações
Unidas, na medida em que a clandestinidade da atuação do espião significa a
violação do dever geral de não intervenção na soberania dos países.
Sem dúvida, a espionagem envolve clandestinidade na atuação de quem
colhe a informação. O seu oposto é a ação diplomática, que existe entre outros
motivos para colheita de informações em favor do Estado que representa, porém
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

atua dentro dos limites do Direito Internacional9. Claro, atuando sob falsos
propósitos, o agente diplomata age de forma clandestina, se torna um espião,
e a consequência disso normalmente é a sua consideração como persona non
grata. Já o espião, na grande maioria dos países paga com uma longa privação
da sua liberdade ou até com a própria vida. Como veremos a seguir, no Direito
de Guerra o espião perde o estatuto de prisioneiro de guerra, o que facilita a
sua punição de acordo com as leis penais domésticas. No direito internacional,
porém, não há norma explicitamente criminalizando tais condutas.

8 Cf. Hernandéz, Juan Pablo. The Legality of Espionage Under International Law. The Treaty Examiner, issue
1, p. 31-38, 2020.
9 O supracitado autor traça a diferença entre a atuação do espião e do diplomata (p. 34): “O principal objetivo
da espionagem é coletar informações do Estado anfitrião e comunicá-las ao Estado remetente. Este propósito
não é inédito no direito internacional. O direito diplomático a define como uma das atribuições cometidas às
missões diplomáticas. Espiões e diplomatas são diferentes em quatro aspectos. Primeiro, os espiões não
revelam sua condição ao Estado receptor, pois sua operação é encoberta. Em segundo lugar, ao contrário
dos diplomatas, os espiões não procuram apenas averiguar ‘condições e desenvolvimentos’ no Estado
receptor, mas também descobrir informações confidenciais e altamente sensíveis que o Estado receptor não
disponibiliza prontamente (por exemplo, informações de segurança nacional). Em terceiro lugar, ao contrário
dos diplomatas, os espiões não empregam necessariamente meios legais nesse esforço. Finalmente, os
diplomatas têm múltiplas funções além da coleta de informações: a Convenção de Viena sobre Relações
Diplomáticas (VCDR) de 1961 estabelece que as outras funções dos diplomatas são representar seu Estado
de envio, proteger seus interesses e seus nacionais no exterior, negociar e promover relações amigáveis
relações (ver artigo 3º, n. 1). A similaridade dos papéis cria um risco significativo de sobreposição, o que
tem levado Estados a expulsar diplomatas por acusações de espionagem. Alguns autores consideram que
o envio de espiões disfarçados de diplomatas é um abuso da imunidade e dos privilégios diplomáticos.
O VCDR não regula o cenário de envio de agentes secretos para coletar informações confidenciais ou
influenciar assuntos internos. Algo que pode ser destacado é que um dos propósitos do VCDR é facilitar
as relações amistosas entre os Estados; se a espionagem conduz a relações amigáveis entre Estados
parece ser uma questão de análise situacional. No entanto, interpretar a legalidade da espionagem a
partir do silêncio do VCDR seria repugnante ao objeto e finalidade daquele tratado. Conforme esclarece
o preâmbulo do VCDR, as questões não regulamentadas devem continuar a ser reguladas pelo costume
internacional” (tradução livre).
330

O fato de não existir uma regulação internacional específica sobre a


espionagem no Direito Internacional, a não ser para conflitos armados, a nosso
sentir, não nos autoriza a considerar essa uma atividade lícita, ou mesmo ape-
nas eventualmente ilícita. Não só é ilícita, como também criminosa perante o
direito interno das nações. Não existe espionagem sem clandestinidade. No
exemplo recente dos presumíveis10 balões espiões chineses, ninguém ques-
tionou a legalidade da atitude defensiva dos EUA em enviar aviões de guerra
para abatê-los. A colheita de informações de forma clandestina jamais pode
ser tida como atividade lícita, a não ser, excepcionalmente, no DICA que
regula a clandestinidade, no sentido de tomar conhecimento de informações
sem o conhecimento do oponente.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Já no DICA, como dito acima, a situação é totalmente diferente. A espio-
nagem é regulada, no sentido de que a colheita de informações é legítima,
quando preenche os requisitos previstos em convenções internacionais, mesmo
quando desconhecida a atividade de inteligência pelo inimigo11. Mas, para
tanto, a primeira exigência é se estar em situação caracterizada como conflito
armado, além de ser privativa dos membros das Forças Armadas. O militar
que procede a colheita das informações de acordo com as normas interna-
cionais pertinentes, caso caia nas mãos do inimigo, poderá invocar o estatuto
de prisioneiro de guerra, cuja consequência é não poder ser punido por essa
atividade e dever ser repatriado no final do conflito. Dessa forma, mesmo
quando, driblando a vigilância do inimigo, a obtenção de informações será
legítima, na medida em que quem assim o faz não se passa por alguém que faz
jus à proteção do DICA, bem como enverga a farda das Forças a que integre
durante a ação de espionagem, ou então, estando no território ocupado pelo
inimigo, recolha informações de interesses das suas Forças Armadas que
estejam disponíveis, ou seja, não atuando de forma clandestina12.

10 Não se sabe de detalhes, mas da existência de tais balões: SOUSA, Isaías. Como um balão chines pode
espionar os Estados Unidos. Revista Segurança, sem data e página. Disponível em: https://revistaseguranca.
com.br/como-um-balao-chines-pode-espionar-os-estados-unidos/. Acesso em: 24 abr. 2023.
11 A busca de informações é atividade essencial para se tomar decisão militar, seja ataque ou defesa. Como
dito, de posse de informações precisas, o comandante evita o ataque a objetivos que não sejam militares,
como também consegue discernir objetivos militares dos civis. Cf. Art. 29 do anexo à Convenção IV da
Haia de 1907 relativa às leis e costumes das guerras terrestres, e Artigo 46 do Protocolo (I) adicional às
Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949 relativo à proteção das vítimas dos conflitos armados de
caráter internacional, abaixo transcrito.
12 Ibid., art. 46:
1. Não obstante qualquer outra disposição das Convenções ou do presente Protocolo, qualquer membro das
Forças Armadas de uma Parte em conflito que caia em poder de uma Parte adversa enquanto realize atividades
de espionagem não terá direito ao estatuto de prisioneiro de guerra e poderá ser tratado como espião.
2. Não se considerará que realiza atividades de espionagem o membro das Forças Armadas de uma Parte
em conflito que, em favor dessa Parte, recolha ou tente recolher informação dentro de um território controlado
por uma Parte adversa sempre que, ao fazê-lo, envergue o uniforme das Forças Armadas a que pertence.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 331

Todo estado-maior de qualquer Força Armada tem uma seção especiali-


zada em informações, e a obtenção prévia de informações sobre a movimenta-
ção do inimigo orienta corretamente a se perquirir os alvos que realmente são
militares e, com isso, tende a afastar dos ataques os objetivos civis, cumprindo,
assim, com um dos mais importantes postulados do DICA, a distinção entre
objetivos militares e civis. Também é certo que bem informado o comandante
evitará ao máximo os efeitos colaterais sobre a população civil e bens de pes-
soas protegidos, inclusive quando se defende, pois as precauções acontecem
tanto no ataque, como na defesa.
Ademais, é uma atividade tipicamente militar, jamais podendo ser pra-
ticada por civil, mesmo que eventualmente possa fazer jus ao status de pri-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

sioneiro de guerra, em outras situações como, por exemplo, quando civis


se reúnem para reagir a uma invasão do território do seu país13. De plano,
portanto, a atividade desenvolvida pelo espião russo no TPI jamais poderia
ser albergada pelo DICA. Estava ele na condição de civil e dentro de um
órgão internacional. Ademais, espionagem permitida em conflitos armados
no mínimo exige que se desenvolva entre as partes no conflito, jamais se
admitindo que se desenvolva sobre um organismo internacional, pior ainda,
com destinação para julgar crimes de guerra.

6. Espionagem cibernética

Se bem observados os regramentos do DICA, percebe-se facilmente que,


até pelo momento histórico em que as normas que o regulamentam surgiram,
pressupõem ação desenvolvida no plano físico, no território do inimigo. Hoje
temos uma situação muito mais complicada que é a cyber espionagem, em
que o espião sequer necessita ingressar no território físico do seu alvo. Pode
muito bem fazê-lo no próprio território em que esteja residindo, através de
computadores ligados a internet.

3. Não se considerará que realiza atividades de espionagem o membro das Forças Armadas de uma Parte
em conflito que seja residente em território ocupado por uma Parte adversa e que, em favor dessa Parte
de que depende, recolha ou tente recolher informação de interesse militar dentro desse território, exceto
se o fizer mediante falsos pretextos ou proceder de modo deliberadamente clandestino. Além do que, esse
residente não perderá seu direito ao estatuto de prisioneiro de guerra e nem poderá ser tratado como espião
a menos que seja capturado enquanto realize atividades de espionagem.
4. Um membro das Forças Armadas de uma Parte em conflito que não seja residente em território ocupado
por uma Parte adversa e que tenha realizado atividades de espionagem nesse território, não perderá seu
direito ao estatuto de prisioneiro de guerra e nem poderá ser tratado como espião a menos que seja capturado
antes de reintegrar-se às Forças Armadas a que pertence (grifo nosso).
13 Cf. Art. 4 A 6) da Convenção III de Genebra relativa ao tratamento dos Prisioneiros de Guerra, de 12 de
agosto de 1949.
332

Embora ainda não existam regras específicas, não há falar em lacuna.


Pensando em adaptar o avanço tecnológico à realidade física, a Organização
do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) reuniu um grupo seleto de especialistas
que editou um estudo profícuo sobre a guerra cibernética, chamado Manual
de Tallinn14. A invasão de sistemas é um meio de que se tem utilizado com
muita frequência na espionagem hoje em dia. É mais fácil, muito mais barata,
pois não necessita dispêndio de tempo e dinheiro para treinar espiões e criar
falsas identidades, e é muito mais difícil de se rastreada.
Dessa forma, a espionagem cibernética não está sujeita a regras dife-
rentes da espionagem no plano físico. Se existe alguma diferença é que, por
ser desenvolvida a distância, com invasão de sistemas, é necessariamente

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


clandestina e criminosa15. Não tem como cumprir com as normas do DICA
que possam validar a espionagem, mesmo se conduzida por integrantes
das Forças Armadas.
Um dado importante é que a ação no espaço virtual pode não se limitar
à espionagem, mas pode, eventualmente, configurar atentado à soberania das
nações, e a proibição de interferência em assuntos internos, como no caso da
interferência eleitoral, ou até mesmo configurar o conceito de ataque se vier
acompanhada de coerção, de natureza cinética, tal como prevê o DICA16.
Existem hipóteses ainda mais complicadas em que se pode vislumbrar um
ataque cibernético não cinético, por exemplo, os que podem causar interrup-
ção de serviços públicos, ou abastecimento da população civil. Em tese, pode
configurar situações de ataque indiscriminado e se direcionar a objetivos não
admitidos pelo DICA, violando as regras sobre os limites do uso da força na
mesma medida que os meios cinéticos17.
Em quaisquer dessas hipóteses, claro, estamos a falar de atividade ciber-
nética desenvolvida por quem atua a serviço de um Estado, tratando-se de
agressão, de modo que as suas ações podem ser atribuídas a esse estado.
Vistas estas considerações preliminares, vejamos como se desenvolveu o fato
objeto deste artigo.

14 SCHMITT, Michael N. (ed.). Talinn Manual 2.0 on the International Law Applicable to Cyberoperations.
Cambridge: CUP, 2017.
15 Cf. BAKER, Kurt. What is Cyber Espionage? Crowdstrike, 28 fev. 2023. Disponível em: https://www.crowdstrike.
com/cybersecurity-101/cyberattacks/cyber-espionage/. Acesso em: 25 abr. 2023.
16 Art. 49 do Protocolo (I) adicional às Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949 relativo à proteção
das vítimas dos conflitos armados de caráter internacional: 1. A expressão “ataques” designa os actos de
violência contra o adversário, quer sejam actos ofensivos, quer defensivos [...].
17 INTERNATIONAL COMMITTEE OF THE RED CROSS. Cyber warfare, 29 out. 2010. Disponível em: https://
www.icrc.org/en/document/cyber-warfare. Acesso em: 26 abr. 2023.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 333

7. Descrição do fato

Feita essa breve introdução ao tema, vamos nos debruçar sobre o fato que
se relaciona à espionagem dentro de um órgão internacional, com personali-
dade jurídica de Direito Público Internacional, no caso, o TPI. Não se tratou
de tentativa de espionagem de um Estado contra outro. Esta é a primeira parte
do problema, pois não existe regra internacional a este respeito, nem entre os
Estados, a não ser relativamente a conflitos armados, pior ainda em relação
a organismos internacionais, particularmente dentro do Estatuto de Roma.
Parece-nos que a hipótese deve ser analisada à luz da analogia, tratando a
possível espionagem em questão como se fosse praticada contra os interes-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ses de um Estado e de seus órgãos. Ou seja, deve ser analisada diretamente


na perspectiva criminal, dada a proximidade das hipóteses, até porque seria
desenvolvida na forma de falsa identidade, como na hipótese em que alguém
se passa por nacional de um país para realizar espionagem em território de
outro país. Nesse caso, também faremos referência a tipos incriminadores
mais específicos sobre a espionagem.
No dia 16 de junho de 2022, um espião russo, que se apresentava como
brasileiro, foi preso por agentes de imigração dos Países-Baixos, onde, tudo
indica, objetivava se infiltrar no TPI, admitido como estagiário18. Aparente-
mente, o objetivo dele não era exatamente colaborar com a Corte Internacional
em seus misteres, particularmente frente ao conflito Rússia-Ucrânia, mas sim
coletar informações sobre as investigações que estão em curso e levadas a
efeito pela Procuradoria junto à Corte, a fim de apurar crimes de guerra em
solo ucraniano, em face do conflito internacional que se desenvolve naquele
país, desde fevereiro de 202219, visando, obviamente, favorecer o seu país
de origem. Coincidentemente, alguns meses antes, outro russo, se passando
por brasileiro também fora detido em solo norueguês, acusado de fazer espio-
nagem na cidade de Tromso20. Aquele que se apresentava como José Assis
Giammaria, era, na verdade, o agente Mikhail Mikushin.
Segundo se noticiou à época, o preso, tudo indica, integrante de um órgão
de espionagem militar russo, viveu no Brasil por 10 anos, de 2012 a 2022,
fazendo-se passar por cidadão brasileiro. Durante esse período entrou e saiu

18 Cf. SABBAGH, Dan. Russian spy caught trying to infiltrate war crime court, says Netherlands. The Guardian,
16 jun. 2022. Disponível em: https://www.theguardian.com/law/2022/jun/16/russian-spy-caught-trying-to-in-
filtrate-war-crimes-court-says-netherlands. Acesso em: 26 abr. 2023.
19 CORERA, Gordan. Russian GRU spy tried to infiltrate International Criminal Court. BBC News, 16 jun. 2022.
Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-europe-61831961. Acesso em: 27 abr. 2023.
20 BORGES, Rebeca. Ao menos três espiões russos teriam se passados por brasileiros. Metrópoles, 7 abr.
2023. Disponível em: https://www.metropoles.com/brasil/ao-menos-tres-espioes-russos-teriam-se-passado-
-por-brasileiros. Acesso em: 27 abr. 2023.
334

do Brasil por 15 vezes, por meio dos aeroportos de Guarulhos e Galeão21.


Sergey Vladimirovich Cherkasov, sendo esse o seu nome verdadeiro, encon-
tra-se preso por força de sentença penal condenatória proferida pela Justiça
Federal em São Paulo a 15 anos de reclusão pelo crime de uso de documento
falso, dentre outros22. Segundo consta, o russo trabalharia para o GRU23,
uma unidade de inteligência militar da Defesa russa, e teria tentado entrar
na Holanda identificando-se como brasileiro. Releva notar que a Holanda
não apenas possui criminalização de espionagem, como, também, estuda a
ampliação do conceito legal deste crime24.
É impossível saber detalhes do processo e da condenação em solo pátrio,
pois se trata de processo criminal que corre em segredo de justiça. Também

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


não se sabe se estava aqui especificamente realizando espionagem contra o
nosso país, ou apenas forjando uma nacionalidade de um país neutro para
melhor desenvolver a espionagem em outros países. O agente russo foi depor-
tado da Holanda e preso em 2 de abril de 2022, quando enviado para o Brasil
pelas autoridades daquele país.
Embora tenha argumentado ser brasileiro, agora não se tem dúvida alguma
de sua identidade, e a embaixada russa formulou pedido de extradição do seu
nacional ao STF. O espião russo também residira nos Estados Unidos e na
Irlanda, que podem acabar também se interessando pelo caso, pois, afinal, no
solo desses países pode ele também ter realizado atividades de espionagem25.
No Brasil, não se sabe se realizava atividade de espionagem ou apenas utilizava
a identidade brasileira para justificar a sua entrada em outros países26.
No nosso país já tivemos situação semelhante de condenação de estran-
geiro, a importar em expulsão do território nacional, como se vê de um exemplo
21 MARTINS, Marco Antônio. Espião russo que fingia ser brasileiro é condenado a 15 anos de prisão pela
Justiça Federal. G1 Rio, 1 jul. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/07/01/
espiao-russo-que-fingia-ser-brasileiro-e-condenado-a-15-anos-de-prisao-pela-justica-federal.ghtml. Acesso
em: 27 abr. 2023.
22 PINHEIRO, Mirelle; CARONE, Carlos. Espião russo está preso em penitenciaria de segurança máxima do
DF. Metrópoles, 27 fev. 2023. Disponível em: https://www.metropoles.com/distrito-federal/na-mira/espiao-
-russo-esta-preso-em-penitenciaria-de-seguranca-maxima-do-df. Acesso em: 27 abr. 2023.
23 Sigla para Glavnoye razvedyvatel’noye upravleniye. Departamento Central de Inteligência.
24 GOVERNMENT OF THE NETHERLANDS. Criminalisation of espionage updated for modern times. Gover-
nment of the Netherlands, 28 fev. 2022. Disponível em: https://www.government.nl/latest/news/2022/02/28/
criminalisation-of-espionage-updated-for-the-modern-age. Acesso em: 25 abr. 2023.
25 Cf. PRAZERES. Leandro. EUA pedem extradição de suspeito de ser espião russo que se passava por brasi-
leiro. BBC News Brasil, 28 abr. 2023. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/czvkdzryjglo.
Acesso em: 29 abr. 2023.
26 PRAZERES, Leandro; CORERA, Gordon. A operação da Rússia para recuperar suspeito de espionagem
que jurava ser brasileiro. BBC News Brasil, 11 nov. 2022. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/
mundo/a-operacao-da-russia-para-recuperar-suspeito-de-espionagem-que-jurava-ser-brasileiro,706c8f7f8e-
63fe51e64218e91a876991rl0xb9pv.html. Acesso em: 29 abr. 2023.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 335

citado27. O pedido de extradição formulado pela Rússia, à primeira vista, vem


fundamentado em crime diverso de falsidade documental, ideológica, falsa
identidade ou uso de documento falso. Estaria amparado na prática de tráfico
de entorpecentes e associação criminosa, que implicam, segundo se noticia,
apenação bem mais severa que a prevista no nosso país, o que causa estranheza,
pois o réu estaria, nesse caso, a requerer ser submetido a processo criminal, cuja
condenação importaria em uma pena muito mais severa que a prevista na nossa
legislação28. A retirada do russo do nosso território nacional talvez melhor se
adéque à hipótese de expulsão, artigo 54 da Lei nº 13.445, de 24 de maio de
2017. Ocorre que isto poderá significar impunidade, caso se entenda ser ele
realmente espião, a serviço da Rússia, e retornando ao seu país de origem.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Ao que tudo indica, estaria se preparando para cometer crime grave


no solo holandês, e não deveria ter sido expulso sem julgamento segundo
a sua lei penal, sobretudo porque se trata de espião que poderia também
estar praticando crime de espionagem contra o Estado holandês, ou contra
qualquer outro país da OTAN. No mínimo, caso já podia ser visto como de
uso de documento falso ou falsa identidade no país-sede do TPI, na medida
em que as autoridades holandesas sabiam tratar-se de identidade e passaporte
falsos para fins de espionagem. Dessa forma, a nosso sentir, mesmo como
uso de documento falso e/ou falsa identidade, já se justificava a manutenção
do espião no solo holandês, segundo a lei penal do Estado anfitrião, e sua
punição ainda na Europa. Nada impedia, e tudo convinha, que o fato fosse
investigado e punido no país europeu, mas os agentes de imigração optaram
pela sua imediata deportação, evidentemente, não deixando o russo sair da
zona internacional do aeroporto holandês. A deportação teve como país
destinatário o Brasil, e não a Rússia. Então, na prática, estava sendo retirado
do solo holandês por espionagem, e não apenas por prática de quaisquer
dos crimes de falsidade.
Observe-se que a Holanda mantém acordo com o TPI29, especificando
direitos e obrigações por ser o país-sede da Corte internacional. O crime em
apreço, como qualquer outro que aconteça em solo holandês pode ser atentatório
à jurisdição da Corte Internacional, assim como o crime cometido no interior

27 POLÌCIA FEDERAL. Portaria SEI PF n. 13578516, 20 jan. 2020. Disponível em: https://www.gov.br/pf/pt-br/
assuntos/imigracao/lei-de-migracao/publicacoes/parana/numig-dpf-fig-pr/instauracao-de-procedimento-
-para-efeito-de-expulsao-do-territorio-nacional-do-a-estrangeiro-a-yovany-ceballo-morejon. Acesso em:
28 abr. 2023.
28 PRAZERES, Leandro; CORERA, Gordon. Op cit. (nota 26).
29 ICC. Headquarters Agreement between the International Criminal Court and the Host State, 7 jun. 2007.
Disponível em: https://www.icc-cpi.int/sites/default/files/NR/rdonlyres/99A82721-ED93-4088-B84D-7B8A-
DA4DD062/280775/ICCBD040108ENG1.pdf. Acesso em: 29 abr. 2023.
336

da Corte é também crime praticado em solo holandês. No artigo 34 do acordo


entre o país-sede e a Corte, está dito, inclusive, que o TPI deve cooperar em
matéria de segurança e observância da ordem pública interna do país-sede. Ou
seja, um crime em suas dependências, ainda mais espionagem, é um crime que
não afeta apenas ao interesse da comunidade internacional, posto que o TPI
resulta de um acordo internacional entre Estados, mas também supõe-se que
afeta igualmente o interesse nacional holandês em sua repressão.
Como dito, no mínimo tem-se como configurado os crimes-meio de fal-
sidade, de falsa identidade e uso de documento falso em solo holandês. Toda
legislação penal no mundo prevê esses crimes, e não é diferente na Holanda30.
A deportação para o Brasil convinha que acontecesse após apurado, e punido,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


este delito em solo holandês.

8. A tutela direta da espionagem no direito brasileiro

Já vimos a punição da espionagem em nível privado, agora veremos


como se passa em face dos interesses do Estado. A espionagem é punida,
no nosso país, de forma direta, em relação à tutela de informações que afe-
tam os interesses nacionais sensíveis. Isso acontece na Lei nº 12.527/11, no
CPB31, como no CPM32. De forma indireta, vimos atrás em relação a diversos
tipos incriminadores, cuja objetividade jurídica não se relaciona diretamente
à espionagem, mas terminam por também incriminar a clandestinidade na
obtenção de informações, e de forma antecipada.
30 Aparentemente, o crime de falsa identidade seria o artigo 231 b do CP holandês. Livre tradução: “Quem, de
forma dolosa e ilícita, recolher dados pessoais identificativos, que não sejam dados pessoais biométricos,
usa outro com a finalidade de ocultar sua identidade ou ocultar a identidade do outro ou uso indevido,
do qual resulte dano por esse uso, é punido com pena de prisão não superior a cinco anos ou multa de
quinta categoria”.
31 Art. 359-K, CP:
Entregar a governo estrangeiro, a seus agentes, ou a organização criminosa estrangeira, em desacordo
com determinação legal ou regulamentar, documento ou informação classificados como secretos ou ultras-
secretos nos termos da lei, cuja revelação possa colocar em perigo a preservação da ordem constitucional
ou a soberania nacional:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 12 (doze) anos.
§ 1º Incorre na mesma pena quem presta auxílio a espião, conhecendo essa circunstância, para subtraí-lo
à ação da autoridade pública.
§ 2º Se o documento, dado ou informação é transmitido ou revelado com violação do dever de sigilo:
Pena – reclusão, de 6 (seis) a 15 (quinze) anos.
§ 3º Facilitar a prática de qualquer dos crimes previstos neste artigo mediante atribuição, fornecimento ou emprés-
timo de senha, ou de qualquer outra forma de acesso de pessoas não autorizadas a sistemas de informações:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.
§ 4º Não constitui crime a comunicação, a entrega ou a publicação de informações ou de documentos com
o fim de expor a prática de crime ou a violação de direitos humanos.
32 Arts. 143 a 148, CPM.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 337

Os tipos penais diretamente relacionados à espionagem são construí-


dos, alguns deles, na forma de lei penal em branco (art. 359 K, art. 5º, IV,
Lei nº 1.079/55), pois têm como matéria proibitiva documentos e dados classi-
ficados como sigilosos, em nível civil e militar, fora da lei incriminadora, como,
por exemplo, a lei que regula o sigilo das informações. Os do CPM, crimes contra
a segurança externa, o entendimento sobre a clandestinidade da ação se situa no
plano de elemento normativo do tipo, referido a conceitos extrajurídicos. Decor-
rem da análise da natureza da informação. Em tempo de guerra, a espionagem
pode importar em pena de morte no CPM, de acordo com os arts. 359, 366 e 367.
Observe-se a gravidade do caso. Evidentemente, tratou-se de ato pre-
paratório de espionagem que, uma vez bem-sucedida, poderia importar em
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

prejuízo à apuração de crimes internacionais, os mais graves dos crimes. No


entanto, repita-se, mesmo como ato preparatório a conduta do agente russo
já encontrava tipificação nos crimes de falsa identidade e uso de documento
falso. Como dito, este é um fato que interessa à Holanda, em concorrência com
o TPI, logo, interessa a todas as nações que assinaram o Estatuto de Roma.
O ER prevê a competência da Corte para crimes contra a administração da
justiça, tal como falso testemunho, entrave da atividade judicante, coação
contra pessoas chamadas a funcionar no processo, dentre outros. Não existe
uma previsão específica sobre espionagem, embora exista norma penal no ER
que aspira proteger o TPI contra a obstrução da sua justiça33. A espionagem é

33 Art. 70, ER. Infrações contra a Administração da Justiça:


1. O Tribunal terá competência para conhecer das seguintes infrações contra a sua administração da justiça,
quando cometidas intencionalmente:
a) Prestação de falso testemunho, quando há a obrigação de dizer a verdade, de acordo com o parágrafo
1º do artigo 69;
b) Apresentação de provas, tendo a parte conhecimento de que são falsas ou que foram falsificadas;
c) Suborno de uma testemunha, impedimento ou interferência no seu comparecimento ou depoimento,
represálias contra uma testemunha por esta ter prestado depoimento, destruição ou alteração de provas
ou interferência nas diligências de obtenção de prova;
d) Entrave, intimidação ou corrupção de um funcionário do Tribunal, com a finalidade de o obrigar ou o induzir
a não cumprir as suas funções ou a fazê-lo de maneira indevida;
e) Represálias contra um funcionário do Tribunal, em virtude das funções que ele ou outro funcionário tenham
desempenhado; e
f) Solicitação ou aceitação de suborno na qualidade de funcionário do Tribunal, e em relação com o desem-
penho das respectivas funções oficiais.
2. O Regulamento Processual estabelecerá os princípios e procedimentos que regularão o exercício da
competência do Tribunal relativamente às infrações a que se faz referência no presente artigo. As condições
de cooperação internacional com o Tribunal, relativamente ao procedimento que adote de acordo com o
presente artigo, reger-se-ão pelo direito interno do Estado requerido.
3. Em caso de decisão condenatória, o Tribunal poderá impor uma pena de prisão não superior a cinco
anos, ou de multa, de acordo com o Regulamento Processual, ou ambas.
4. a) Cada Estado Parte tornará extensivas as normas penais de direito interno que punem as infrações
contra a realização da justiça às infrações contra a administração da justiça a que se faz referência no
presente artigo, e que sejam cometidas no seu território ou por um dos seus nacionais;
338

causa de entrave ao funcionamento do Tribunal, mas apenas em seu resultado


vem previsto como crime. Convém que a conduta mereça tipificação especí-
fica, como acontece em muitos códigos penais mundo afora.

9. Conclusão

Independentemente de não haver previsão específica no ER sobre a espio-


nagem contra a Corte, o fato está a evidenciar urgente inovação legislativa no
ER, como, também, na legislação de todos os Estados que assinaram o Tratado
em questão, no sentido de fazer específica previsão de crime de espionagem
contra os assuntos do TPI, inclusive em antecipação de tutela, punindo-se o
acesso ilegal de sistemas de informática e comunicação, bem como qualquer

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


ato preparatório. Como dito, este também deveria ser um crime contra a
administração da justiça em relação à própria Corte. Tudo convém, portanto,
que a espionagem em face dos crimes internacionais seja tipificada como crime
sujeito à jurisdição universal, com previsão em todos os códigos penais dos
países que aderiram ao ER. A espionagem em face da investigação levada a
efeito pela Procuradoria do TPI implica comprometer a repressão de crimes,
cuja punição é de interesse de toda a comunidade internacional.
Finalizando, como observado pela imprensa nacional34, o espião russo
poderia realmente ter obtido informações sensíveis, que municiariam a Rús-
sia em face de eventuais apurações de crimes internacionais da competência
do TPI, relacionados ao conflito Rússia-Ucrânia, comprometendo, portanto,
a atividade da Corte para a qual foi criada. Embora a formação da Corte se
trate de jurisdição compartida entre as nações que assinaram o tratado de sua
criação, a repressão a atos dessa natureza, mesmo preparatórios em relação a
esse fim, quando por si só já configuram crimes, como é o caso da falsifica-
ção de identidade ou documental, deve iniciar-se, primordialmente, perante a
jurisdição do Estado que a sedia, ainda mais quando relacionados diretamente
à espionagem. Ademais, nada impede que esta situação, mesmo os atos pre-
paratórios, seja tratada como crime sujeito ao princípio da justiça universal,
com incriminação em todos os códigos penais dos países que assinaram o
ER. O sucesso da espionagem poderia ser nada menos que a impunidade em
relação a crimes de guerra, tornando inócua a criação do TPI.

b) A pedido do Tribunal, qualquer Estado Parte submeterá, sempre que o entender necessário, o caso
à apreciação das suas autoridades competentes para fins de procedimento criminal. Essas autoridades
conhecerão do caso com diligência e acionarão os meios necessários para a sua eficaz condução.
34 SERAPIÃO, Fábio. PF transfere suspeito de ser espião russo para presídio de segurança máxima em
Brasília. Folha de S.Paulo, 24 fev. 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/02/
pf-transfere-suspeito-de-ser-espiao-russo-para-presidio-de-seguranca-maxima-em-brasilia.shtml. Acesso
em: 29 abr. 2023.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

PARTE IV
DEBATES SOB A ÓTICA DO DIREITO
INTERNACIONAL DOS DIREITOS
HUMANOS E DOS REFUGIADOS
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
19. A ATUAÇÃO DO CONSELHO
DE DIREITOS HUMANOS DA ONU
NO CONTEXTO DO CONFLITO
ARMADO NA UCRÂNIA
Sven Peterke
João Gabriel Dias Arruda Vieira Dantas

1. Introdução
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

O Conselho de Direitos Humanos (ConsDH) é um órgão subsidiário à


Assembleia Geral das Nações Unidas instituído no ano de 2006, representando
um dos grandes símbolos de uma série de reformas institucionais perpassadas
pela Organização durante os primeiros anos do século XXI. Após cerca de
50 anos de existência, sendo possível a identificação das maiores virtudes e
entraves da estrutura de funcionamento da ONU, diversos desses aspectos
encontraram efeitos justamente no processo que levou à substituição da ante-
rior Comissão de Direitos Humanos – vinculada ao Conselho Econômico e
Social (ECOSOC) – pelo atual Conselho.
Tal transição não só conferiu à temática uma posição de maior pres-
tígio e visibilidade perante a comunidade global, como também permitiu
ao órgão aperfeiçoar os seus métodos de trabalho. No presente, estes são
compostos tanto por mecanismos “herdados” da antiga Comissão, quanto
pela singular Revisão Periódica Universal (RPU), delineada para incorporar
intensamente a necessidade de inovações nas práticas de proteção interna-
cional dos direitos humanos.
Quando da sua atuação diante de Estados envolvidos em conflitos arma-
dos, levando em consideração os efeitos destes ao regime do Direito Interna-
cional dos Direitos Humanos (DIDH), com vistas à sua salvaguarda, é factível
a frequência com a qual o ConsDH se dispõe a também tratar de questões
atinentes ao Direito Internacional Humanitário (DIH). Desse modo, surgem
cenários que acrescentam particulares desafios à sua atuação, não apenas
confirmando seus já conhecidos êxitos e obstáculos, mas também revelando
eventuais novas limitações.
Em razão disso, o presente estudo se dispõe a analisar a forma pela
qual os mecanismos de atuação do Conselho de Direitos Humanos têm sido
empregados em relação aos múltiplos conflitos armados mais recentes que
342

se desenrolam entre a Ucrânia e a Federação Russa. O recorte proposto com-


preende as ações implementadas pelo Conselho desde o ano de 2014, quando
do episódio de anexação da região ucraniana da Crimeia por parte da Rússia,
até a guerra de agressão por esta iniciada no ano de 2022.

2. Os mecanismos do Conselho de Direitos Humanos

Desde o seu momento de origem, no ano de 2006, o Conselho de Direitos


Humanos se notabilizou como um marco institucional da ONU. Seguramente,
a substituição da anterior e frustrada experiência da Comissão de Direitos
Humanos parecia transmitir a mensagem de otimismo de que, daquele ponto

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


em diante, os caminhos de mitigação à seletividade e politização em seu âmago
renovariam a proteção internacional dos direitos humanos1.
Uma vez concluso o processo de criação do Conselho, o órgão tanto
herdou algumas das práticas de monitoramento da situação de direitos huma-
nos anteriormente atribuídas à extinta Comissão, quanto também foi direcio-
nado a estabelecer inovadores mecanismos. Nesse sentido, para o exercício
de seus renovados propósitos, passou a dispor de uma série de instrumentos,
dentre os quais figuram a Revisão Periódica Universal e denominados as
Comissões de Inquérito ao lado dos denominados Procedimentos Especiais
(special procedures), que, porém, não serão abordados pela presente análise,
por falta de espaço.
Representando relevante herança da extinta Comissão de Direitos Huma-
nos, o sistema de Procedimentos Especiais enseja a apreciação do Conselho,
que deve atuar na elaboração e aprovação de resoluções sobre as violações
através deles constatadas.
Há de se notar que, em termos de mecanismos de monitoramento, a
grande inovação resultante da criação do ConsDH reside, em realidade, na
Revisão Periódica Universal2, realizada em ciclos a partir de informações
confiáveis e objetivas acerca de cumprimentos de obrigações afetas aos direi-
tos humanos de cada um dos Estados-membros da ONU que a ela devem se
apresentar a cada quatro anos e meio3. Para sua realização, são documentos

1 Cf. FREEDMAN, Rosa. The Human Rights Council. In: MÉGRET, Frédéric; ALSTON, Philip (eds.). The
United Nations and human rights: a critical appraisal. Oxford: OUP, p. 181-238, 2020. p. 184; RAMCHARAN,
Bertrand. The UN Human Rights Council. New York: Routledge, 2013. p. 24.
2 A necessidade de realização de uma revisão por pares (peer review) através da atuação do novo órgão
figurou desde o princípio entre as várias propostas que Kofi Annan, então Secretário-Geral da Organização
das Nações Unidas, apresentou ao longo do processo de reestruturação que levaria à extinção da Comissão
de Direitos Humanos e posterior criação do Conselho de Direitos Humanos (2003-2005). Com o avanço das
reformas, chegou-se à Revisão Periódica Universal.
3 UN GENERAL ASSEMBLY, A/RES/60/251 (2006).
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 343

fundamentais: os relatórios nacionais dos próprios Estados sob Revisão (EsR);


os relatórios de especialistas independentes e órgãos de direitos humanos da
ONU; e os relatórios contendo informações disponibilizadas por demais partes
interessadas (stakeholders), como instituições nacionais de direitos humanos
ou Organizações Não Governamentais (ONG’s)4.
A partir deles, a RPU é conduzida por grupo de trabalho específico
composto pelos 47 Estados integrantes do Conselho, permitindo que qualquer
Estado das Nações Unidas estabeleça diálogo interativo com aquele monito-
rado e o analise em atenção: I) à Carta das Nações Unidas; II) à Declaração
Universal dos Direitos Humanos; III) aos instrumentos de direitos humanos
dos quais o Estado é partícipe; IV) aos compromissos assumidos voluntaria-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

mente pelos Estados, incluindo aqueles assumidos quando da apresentação de


suas candidaturas à eleição do Conselho de Direitos Humanos; e V) ao Direito
Internacional Humanitário aplicável5. Como resultado dessa dinâmica, os
Estados revisores são habilitados a emitir recomendações que comporão uma
decisão branda do Conselho destinada ao EsR, podendo este rejeita-las ou
aceita-las – neste caso, assumindo a responsabilidade para implementar a
questão correspondente6.
A despeito do principal escopo de firmar procedimento democrático e
paritário entre os partícipes das Nações Unidas, a Revisão Periódica pode
ser compreendida sob o mesmo prisma crítico amplamente direcionado ao
ConsDH, sendo costumeiramente notório o teor político e seletivo que a cir-
cunda. Afinal, em razão de sua própria natureza, é inegável como diferentes
graus de politização sempre permeiam as atividades das Organizações Inter-
nacionais7. Nessa lógica, é recorrente que, diante de parceiros estratégicos,
os Estados evitem questões mais sensíveis de direitos humanos e favoreçam
debates mais amenos; por outro lado, perante rivais geopolíticos, aplicam uma
postura mais incisiva de naming and shaming e tendem a suscitar pontos mais
politicamente prejudiciais8.
Uma vez atados aos prós e contras derivados do caráter intergoverna-
mental das Nações Unidas, é irremediável que tanto o Conselho quanto a
RPU se caracterizem como politicamente orientados. Conforme demonstrado,
com descomedida manifestação dos interesses das delegações de revisores

4 UPR INFO. What is the UPR?. Disponível em: https://www.upr-info.org/en/upr-process/what-upr/introduc-


tion-brief-history. Acesso em: 14 set. 2022.
5 UN HUMAN RIGHTS COUNCIL, A/HRC/RES/5/1 (2007).
6 PETERKE, Sven; FRANCO, Fernanda Cristina. O Conselho de Direitos Humanos da ONU: um avanço?
Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, v. 104, n. 131-135, p. 71-102, 2020. p. 90.
7 FREEDMAN, R. Op cit. (nota 1), p. 225.
8 TERMAN, Rochelle; BYUN, Joshua. Punishment and Politicization in the International Human Rights Regime.
American Political Science Review, v. 116, n. 2, p. 385-402, 2022.
344

e revisados, é o maior objetivo do mecanismo e do próprio ConsDH aquele


que sai mais prejudicado.
Não obstante, é necessário reconhecer que a Revisão Periódica Univer-
sal persiste sendo instrumento singular do sistema de proteção dos direitos
humanos. De qualquer sorte, algumas das suas já mencionadas peculiarida-
des e outras que ainda serão pormenorizadas demonstram os motivos pelos
quais tanto interessa compreender de que forma esse mecanismo ocasionou
o monitoramento dos efeitos dos conflitos entre Ucrânia e Rússia aos direitos
humanos e ao DIH.
As Comissões de Inquérito, por sua vez, são estabelecidas diante de con-
textos particulares de graves e abruptas violações de direitos humanos e do
direito humanitário que requeiram a intervenção urgente do Conselho, podendo

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


ela variar desde uma análise dos fatos a algum método de identificação dos
indivíduos por elas responsáveis. Apesar de sofrer com a falta de um padrão
de funcionamento durante os anos iniciais do Conselho, esse mecanismo de
investigação é progressivamente harmonizado: geralmente, é composto por três
especialistas internacionais solicitados a determinar os fatos e circunstâncias
dos crimes e abusos alegados na intenção de assegurar a responsabilização de
seus autores, justiça às vítimas e o combate à impunidade9.
Do mesmo modo, é do seu dever a formulação de recomendações ao
Conselho, sobretudo verificando se os fatos se enquadram como crimes inter-
nacionais ou crimes de guerra, bem como que medidas podem ser tomadas.
Espera-se, igualmente, que cooperem com autoridades em prol de suporte ao
restabelecimento de boas condições aos direitos humanos10.

3. O DIH na revisão periódica universal

Embora a priori soe contrassenso, é possível constatar facilmente como


o Conselho de Direitos Humanos, por vezes, ultrapassa a aparente delimitação
da sua própria nomenclatura para lidar, também, com temas afetos ao Direito
Internacional Humanitário. É notável, afinal, ser um dos órgãos das Nações
Unidas que mais frequentemente lhe atribuem papel secundário ao longo das
atividades realizadas11.
De fato, os Procedimentos e Relatores Especiais do ConsDH, quando
atinentes a países envolvidos em conflito armado, invocam o DIH de forma

9 TISTOUNET, Eric. The UN Human Rights Council: A Practical Anatomy. Cheltenham: Edward Elgar Publishing,
2020, p. 17.
10 Ibid., Id.
11 BENVENUTI, Paolo; BARTOLINI, Giulio. Is there a need for new international humanitarian law implemen-
tation mechanisms? In: KOLB, Robert; GAGGIOLO, Gloria (ed.). Research Handbook on Human Rights and
Humanitarian Law. Cheltenham: Edward Elgar Publ., p. 590-627, 2013.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 345

explícita em conjunto ao DIDH, representando significativos substitutos aos


inexistentes mecanismos de monitoramento no que tange às Convenções
de Genebra e Protocolos Adicionais12. Em algumas ocasiões, também as
Comissões de Inquérito já suscitaram matérias de direito humanitário, sendo
elas aquelas enviadas: ao Líbano (2006); a Beit Hanoun, na Faixa de Gaza
(2006); a Darfur (2006); à República Democrática do Congo (2009); e à Líbia
Árabe Jamahiriya (2011)13.
Ainda, é preciso evidenciar que o “fenômeno” ora evidenciado não ocorre
exclusivamente nos mecanismos acima, suscitando efeitos também ao funcio-
namento da RPU, tida como um dos grandes marcos do processo de reforma
estrutural que deu origem ao Conselho. Afinal, há de se notar que tal status
não lhe seria atribuído caso o mecanismo não aportasse certas particularidades,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

dentre as quais é possível encontrar justamente um exemplo dessa tendência


de expansão do campo de atuação do órgão para além dos direitos humanos.
Consta nos dizeres da sua própria Resolução 5/1 no que diz respeito
à base da revisão que, para além de normas diversas de direitos humanos
e dada a natureza complementar e mutuamente inter-relacionada do DIDH
e do DIH, o mecanismo deverá levar em consideração o DIH aplicável14.
A inserção deste último em seu texto final, contudo, foi resultado de árduo
processo de debates, motivado sobremaneira pelas críticas quanto à compe-
tência que o Conselho possui para lidar propriamente com tal campo jurídico.
O ponto de vista favorável confere apoio à conduta do ConsDH em
razão da expectativa de que disso resultem a institucionalização do Direito
Humanitário e o efeito benéfico de salvaguarda mais eficiente de direitos
humanos em contextos de conflito armado. Por outro lado, aqueles que se
opõem a essa inclinação do órgão argumentam que a sua natureza política
afeta a imparcialidade e legitimidade da sua atuação e que, além do mais, as
reiteradas abordagens do DIH se demonstram demasiadamente superficiais,
não correspondendo à especificidade da qual ele naturalmente carece15.
Inobstante, é igualmente apropriado considerar que, embora seja pro-
cesso dotado de alguns riscos, à medida que os Estados se recusem a aceitar
mecanismos efetivos para a sua aplicação, é inevitável que ocorram mudan-
ças àqueles pertencentes ao DIDH16. É o que se afere com a frequência em
12 ZYBERI, Gentian. Enforcement of International Humanitarian Law. In: OBERLEITNER, Gerd (ed.). Human Rights
Institutions, Tribunals and Courts: Legacy and Promise. Heidelberg: Springer Verlag, p. 377-400, 2018.
13 KOLB, Robert; GAGGIOLO, Gloria. Universal human rights bodies and international humanitarian law. In:
KOLB, R.; GAGGLIO, G. (ed.). Op cit. (nota 11), p. 441-465, 2013.
14 UN HUMAN RIGHTS COUNCIL, A/HRC/RES/5/1 (2007).
15 KOLB, Robert; GAGGIOLO, Gloria. Universal human rights bodies and international humanitarian law. In: KOLB,
R.; GAGGLIO, G. (ed.). Op cit. (nota 11), p. 441-465, 2013.
16 SASSOLI, Marco. International Humanitarian Law and International Human Rights Law. The Oxford Guide
to International Humanitarian Law. New York, USA: Oxford University Press. p. 381-402. 2020.
346

que temas relativos ao direito humanitário foram levantados por diversas


recomendações no decorrer dos ciclos de revisão, sendo eles: a) referências
gerais ao DIH; 2) ratificação, adesão e reservas dos seus tratados; 3) a apli-
cabilidade extraterritorial do DIDH durante conflitos armados; 4) o Direito
de Genebra; 5) o Direito de Haia; e 6) métodos de concretização do DIH em
tempos de paz, a exemplo de promoção de comitês nacionais, investigações
ou alterações legislativas17.
Nesse sentido, apesar das pertinentes discussões quanto à real expertise
do ConsDH para lidar com esse âmbito, é explícito o seu amparo na teoria
complementarista quanto à relação entre o DIDH e o DIH. Segundo essa
tese, apesar das distinções entre seus respectivos sistemas jurídicos, tornam-
-se campos complementares em razão do princípio da proteção da pessoa

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


humana, de modo que a aplicação excepcional do Direito Humanitário diante
de rupturas da ordem jurídica internacional não cessa a dos direitos humanos,
apenas inviabilizando algumas de suas disposições com ele incompatíveis18.
Isto é: em função da melhor segurança dos indivíduos, tem-se a regra
geral de que o DIDH segue aplicável nesses mesmos contextos, desde que as
normas em questão não se encontrem suspensas por cláusulas de emergência
dos tratados que as estabelecem19. Por lógica, DIDH e DIH assumem patamar
de comunicação constante, servindo o critério da lex specialis à finalidade de
solucionar seus eventuais conflitos20.
Naquilo que interessa à prática estatal no cerne da Revisão Periódica,
significa dizer que o monitoramento de Estados que perpassem por situação
de conflito armado não se restringe às temáticas de direitos humanos, também
alcançando – ou ao menos devendo alcançar – questões pertinentes à proteção
e ao fortalecimento das normativas humanitárias. Ainda mais especificamente,
dá ensejo a mais um meio através do qual o conflito entre a Ucrânia e a Rússia
pode ser submetido a análise desde o seu ponto de origem mais recente, qual
seja: a anexação da Crimeia no ano de 2014.

4. As revisões de Ucrânia e Rússia

Tomando por base a periodicidade dos Ciclos de RPU de Ucrânia e


Rússia, é possível montar o seguinte quadro:
17 ZHU, Lijiang. International Humanitarian Law in the Universal Periodic Review of the UN Human Rights Cou-
ncil: an empirical survey. Journal of International Humanitarian Legal Studies, v. 5, n. 1-2, p. 186-212, 2014.
18 BORGES, Leonardo Estrela. O Direito Internacional Humanitário. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 37.
19 São exemplos: Art. 15 da Convenção Europeia sobre Direitos Humanos, de 1950; Art. 27 da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, de 1969.
20 THÜRER, Daniel. International Humanitarian Law: Theory, Practice, Context. Maubege: AIL-Pocket,
2011, p. 132.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 347

Quadro 1 – Cronograma de Revisão Periódica Universal – Ucrânia


Cronograma de Revisão Periódica Universal – Ucrânia
Primeiro Ciclo 2008 (13 de maio)
Segundo Ciclo 2012 (24 de outubro)
Terceiro Ciclo 2017 (15 de novembro)
Quarto Ciclo Tentativa prevista para outubro de 2026
Cronograma de Revisão Periódica Universal – Rússia
Primeiro Ciclo 2009 (4 de fevereiro)
Segundo Ciclo 2013 (29 de abril)
Terceiro Ciclo 2018 (14 de maio)
Quarto Ciclo Previsão para 7 de agosto de 2023
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

De antemão, frise-se ser incerta a data de revisão de Quarto Ciclo da Ucrâ-


nia, sendo tratada apenas como uma tentativa no calendário disponibilizado nos
portais oficiais do Conselho de Direitos Humanos21. Embora não haja qualquer
previsão exata de fim para a guerra que agora se desenrola, ressalte-se como o
ano de 2027 é extremamente tardio para o aferimento das violações de DIH e
DIDH através do mecanismo de RPU. Ademais, em razão dos seus respectivos
cronogramas, evidencia-se um considerável intervalo temporal que distancia
suas revisões dos episódios mais recentes de hostilidades entre os países.
Ainda assim, importa identificar se e de que maneira os conflitos prévios à
guerra de agressão iniciada em 2022 – leia-se: sobretudo a anexação da Crimeia
no ano de 2014 – foram observados durante os Ciclos já cumpridos. Para tanto,
primeiramente, faz-se um levantamento de quaisquer eventuais menções feitas ao
longo dos três documentos fundamentais à realização de cada uma das revisões,
sendo eles os seus respectivos relatórios nacionais, resumos de informações das
Nações Unidas e resumos de informações de stakeholders.

4.1 O conflito Ucrânia v. Rússia nos documentos base da RPU

Novamente em consequência do lapso temporal, durante as revisões de


Primeiro Ciclo de Ucrânia e Rússia – respectivamente, 2008 e 2009 – não
houve menção a qualquer espécie de animosidade entre ambas. Do mesmo
modo, a revisão de Segundo Ciclo da Ucrânia (2012) não ocasionou alusão
alguma à temática, que passou a ser trazida à tona tangencialmente a partir
da segunda revisão do Estado russo (2013), conforme a própria Ucrânia pro-
movia questões relacionadas ao respeito às minorias étnicas, principalmente
em relação ao direito de uso de seu idioma materno22.

21 As informações foram retiradas do site https://www.ohchr.org/en/hr-bodies/upr/cycles-upr e se encontram


sujeitas a alterações.
22 UN HUMAN RIGHTS COUNCIL, A/HRC/24/14 (2013), § 140.217.
348

Contudo, os materiais de análise mais vastos quanto à anexação da Cri-


meia e demais confrontações são aqueles atinentes às revisões dos anos de
2017 e 2018. Em seu relatório nacional de Terceiro Ciclo, a Ucrânia, enquanto
Estado agredido, apresentou dezenas de referências ao conflito armado com
a Rússia, destacando principalmente o caráter ilegal da ocupação e da guerra
de agressão com respaldo em resolução da Assembleia Geral23 e a falta de
acesso de instrumentos de monitoramento de direitos humanos à região24.
Na mesma ocasião, elencaram-se múltiplas menções ao confronto tanto
ao longo do documento de informações das Nações Unidas quanto daquele
de demais partes interessadas. Tomando o primeiro enquanto referência, é
reportado que a equipe nacional da ONU informou que o conflito no Leste

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


e a situação na Crimeia resultaram no deslocamento interno de 1,6 milhão
de pessoas, elevando o risco de violência sexual e de gênero e cerceando a
liberdade de movimento, o acesso a acomodação, documentação, direitos e
benefícios sociais25.
Para mais, foi constatada a existência da Resolução nº 71/205 da AG
sobre a situação dos direitos humanos na República Autônoma da Crimeia
e na cidade de Sebastopol, de dezembro de 2016, pela qual condenou a sua
ocupação temporária26, bem como alertou a aspectos de igualdade e não dis-
criminação da sua população27.
No que concerne à participação dos Estados revisores, o enfrentamento da
matéria surgiu desde o momento de apresentação de questionamentos prévios
à Ucrânia: a Alemanha indagou sobre os empenhos ucranianos no combate à
impunidade de autores de graves violações de direitos humanos na zona de
conflito controlada pelo governo; a Bélgica, sobre a intenção do Estado em
alinhar sua legislação interna ao Estatuto de Roma do Tribunal Penal Inter-
nacional; a Suíça interrogou de que modo indivíduos afetados pelo conflito
recebiam assistência de modo não discriminatório; o Reino Unido, quais ações
o governo da Ucrânia adotava para que o Ministério dos Territórios Tempora-
riamente Ocupados e Deslocados Internos possuísse recursos suficientes ao seu
plano de ação no Leste do país; atenta às alegações de tortura e maus-tratos de
prisioneiros nessa mesma região, a Noruega perguntou que medidas seriam
adotadas para responsabilizar seus perpetradores, assim como operavam as
autoridades ucranianas para garantir os direitos e benefícios sociais dos grupos
vulneráveis em Áreas Não Governamentalmente Controladas.

23 UN GENERAL ASSEMBLY, A/RES/68/262 (2014).


24 UN HUMAN RIGHTS COUNCIL, A/HRC/WG.6/28/UKR/1 (2017).
25 UN HUMAN RIGHTS COUNCIL, A/HRC/WG.6/28/UKR/2 (2017), § 84.
26 Ibid., §§ 87-90.
27 Ibid., §§ 14, 52, 56, 67 e 81.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 349

Indubitavelmente, os EUA foram o Estado que mais se apropriou da pos-


sibilidade de apresentação de questões prévias para se referir explicitamente ao
conflito armado ao passo em que, indiretamente, tecia críticas à conduta russa.
Por meio delas, indagou, por exemplo: quais eram os esforços para propiciar
o movimento seguro dos indivíduos que desejassem cruzar a linha de contato
de bombardeios contínuos em áreas civis; como a Ucrânia buscava integrar
os deslocados internos e os assegurar benefícios sociais; e, em preocupação
com a proteção do patrimônio histórico e cultural durante os conflitos, de que
modo o Estado atuava para preservar os locais de herança judaica e memoriais
do Holocausto. É válido conferir destaque à questão mais enérgica levantada,
ipsis literis: “que medidas a Ucrânia está tomando para garantir que a resposta
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

do governo à guerra assimétrica liderada e financiada pela Rússia não gere um


clima de impunidade para violência e ameaças contra jornalistas?”.
No que concerne à revisão de Terceiro Ciclo da Rússia (2018), natural-
mente o país não adotou postura análoga à da Ucrânia no ano anterior em
relação às abordagens ao conflito em seu relatório nacional, limitando-se a
citar ter atuado no combate ao racismo, à discriminação racial, à xenofobia
e a intolerâncias correlatas, e na realização de atividades para “restaurar a
justiça histórica e promover o renascimento político, social e espiritual das
comunidades armênia, búlgara, grega, italiana, tártara da Crimeia e alemã que
viviam no território da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, sujeitas
a deportação ilegal e repressão política”28. Agindo de tal forma, certamente
desejava firmar justificativas às ações que, conforme supramencionado, já
haviam sido consideradas ilegais por parte da Assembleia Geral.
Por outro lado, igualmente ao que se sucedeu quando da revisão da Ucrâ-
nia, os relatórios derivados de informações das Nações Unidas e de stakehol-
ders enfatizavam os seus múltiplos efeitos à situação de direitos humanos29.
Outra vez, dentre os Estados sem envolvimento direto no conflito, os EUA
apresentaram o maior número de questionamentos prévios, dentre os quais
perguntou quando se daria a “concessão de acesso a monitores internacionais
de direitos humanos na península ucraniana da Crimeia, ilegalmente ocupada
pela Rússia”, repetindo uma postura de afronta mais acentuada.
Contudo, para além dos EUA, apenas a própria Ucrânia dirigiu questiona-
mentos prévios à Rússia, sendo circunstância manifestamente contrária ao que
transcorreu em seu Terceiro Ciclo em 2017. Se por um lado esse movimento
de abstenção dos demais Estados propicia um interessante canal de embate
direto entre os dois Estados conflitantes, evidenciando a utilização da RPU
28 UN HUMAN RIGHTS COUNCIL, A/HRC/WG.6/30/RUS/1 (2018), § 65.
29 UN HUMAN RIGHTS COUNCIL, A/HRC/WG.6/30/RUS/2 (2018); UN HUMAN RIGHTS COUNCIL, A/HRC/
WG.6/30/RUS/3 (2018).
350

como instrumento de pressão; por outro, em se tratando da Federação Russa,


demonstra o quão drástica e comprometedora a faceta política do ConsDH
foi ao devido funcionamento do mecanismo.
Por fim, importa ressaltar como, no geral, os Estados parecem apresentar
maior contundência acerca da temática quando da elaboração de questões
prévias. A mesma assertividade não é observada durante a apresentação das
recomendações, sobretudo daquelas feitas à Rússia.

4.2 O conflito Ucrânia v. Rússia nas recomendações de terceiro ciclo

Consoante ao que será verificado, embora os relatórios apresentassem


informações mais do que suficientes à apreciação diligente dos Estados revi-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


sores quanto aos conflitos nos quais os países sob análise se encontravam, é
relativamente baixo o número daqueles que de fato se debruçaram de maneira
aprofundada sobre o monitoramento de suas implicações aos direitos humanos
e ao direito humanitário. Assim, mesmo quando referenciada, por vezes a
temática pareceu não alcançar níveis satisfatórios de abordagem, tampouco
o desejoso compromisso dos Estados sob Revisão (EsR).

4.2.1 Recomendações apresentadas à Ucrânia (2017)

No geral, a obrigação de observar e aplicar as normativas humanitárias


foi seguidamente recomendada à Ucrânia. Embora notoriamente genérica,
o mesmo não viria a ocorrer menos de um ano depois durante a revisão da
Federação Russa.
Especificamente, foram Geórgia, Espanha e Lituânia os Estados respon-
sáveis pelas referidas instruções. De acordo com a primeira, seria interessante
intensificar a cooperação com a comunidade internacional a fim de garantir o
acesso de atores internacionais de direitos humanos e humanitários e mecanis-
mos de monitoramento a todo o território ucraniano30, assim como utilizar
os instrumentos e mecanismos existentes na proteção dos direitos humanos e
liberdades dos cidadãos ucranianos que vivem em seus territórios temporaria-
mente ocupados enquanto medidas políticas e diplomáticas fossem tomadas
para restaurar a sua integridade territorial31.
Por parte da Espanha, recomendou-se tão somente que fosse assegurada
a observância dos princípios do direito internacional humanitário por todas
as partes em conflito32. Segundo a Lituânia, importava continuar a procurar

30 UN HUMAN RIGHTS COUNCIL, A/HRC/37/16 (2018), § 116.27.


31 Ibid., § 116.63.
32 Ibid., § 116.56.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 351

formas eficazes, através de mecanismos internacionais, para responsabilizar


os autores de violações de direitos humanos e do DIH nas partes da Ucrânia
controladas de facto pela Federação Russa33.
No mais, o mapeamento das recomendações de Terceiro Ciclo da Ucrâ-
nia atesta que vários Estados manifestaram preocupações no que tange às
condições de direitos humanos e direito humanitário no Leste do país e na
região da Crimeia – como demonstrado, alguns até mesmo ressaltaram o papel
de controle de facto exercido pela Rússia sobre ela. Curioso que as mesmas
observações relativas ao DIH não seriam feitas tão veementemente quando
da revisão da Rússia no ano seguinte.
Outrossim, a despeito do conteúdo demasiadamente vago das recomen-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

dações, é nítido como a RPU foi utilizada pela Ucrânia como mais um âmbito
no qual o Estado pôde confrontar as condutas da Rússia, tendo em vista que,
quando oportuno, explicitou a responsabilidade desta em também adimplir
com o DIDH e o DIH nas regiões por ela controladas. É o que o Grupo de
Trabalho da RPU apontou ao registrar que, em relação às recomendações feitas
pela Federação Russa, a Ucrânia assentiu serem realmente relevantes às partes
do país controladas pelo Estado revisor, mencionando ter sido na Crimeia que
a impunidade e a discriminação étnica e religiosa se intensificaram, e onde o
direito de ser educado em sua língua nativa foi violado34.

4.2.2 Recomendações apresentadas à Rússia (2018)

No contexto do Terceiro Ciclo de RPU da Rússia, fora a própria Ucrânia,


apenas a Austrália fez recomendação pontualmente mais severa quanto aos con-
flitos armados, sendo ela a de que fosse cessada a ocupação ilegal da Crimeia
e se findasse o apoio aos grupos separatistas no Leste da Ucrânia e nas regiões
georgianas de Abkházia e Sul de Ossétia (Austrália). De resto, os demais revisores
se restringiram ou a solicitar que o EsR tomasse providências que garantissem
o acesso de instituições e ferramentas de monitoramento de direitos humanos e
direito humanitário à região35, ou que fossem libertos presos políticos e cidadãos
ucranianos ilegalmente detidos ou condenados36.
No entanto, o aspecto mais interessante da revisão em análise não con-
siste no conteúdo das recomendações destinadas ao país, mas sim na sua – falta
de – receptividade perante elas. Em realidade, a Rússia aceitou apenas uma

33 Ibid., § 116. 108.


34 Ibid., § 84.
35 Foi o teor das recomendações de Estônia, Ucrânia, Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, Austrália
e Lituânia.
36 Foi o teor das recomendações dos Estados Unidos da América e da Ucrânia.
352

recomendação diretamente afeta ao conflito armado com a Ucrânia em sua


totalidade37, sendo a maioria alvo de rejeição e apenas algumas parcialmente
aceitas. Nesse sentido, enfatize-se que todas as recomendações apresentadas
pela Ucrânia foram recusadas.
Tal posicionamento resultou da negativa categórica a qualquer recomen-
dação que fizesse referência aos atos de anexação ou ocupação da região da
Crimeia enquanto ilegais. Para tanto, argumentou acerca do teor politicamente
motivado das anteriores resoluções e decisões que assim os tenham conside-
rado e buscou respaldo no Referendo da região autônoma, justificando que
as populações da região e da cidade de Sebastopol optaram livre e democra-
ticamente por fazer parte da Federação Russa, exercendo assim o seu direito
à autodeterminação38.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Além disso, deu-se azo a um embate quanto à lei a ser aplicada na Cri-
meia, posto que, ao se referirem à situação da região como ocupação, indire-
tamente os Estados se opunham à corrente aplicação das leis russas. Contudo,
nenhum Estado revisor abordou o assunto de maneira incisiva, inclusive não
havendo qualquer menção em nome da aplicação das normativas de DIH em
contexto de ocupação.
Mantiveram-se, portanto, silentes a aspectos e discussões jurídicas mais
delicadas. Nesse sentido, a Ucrânia foi o Estado que apresentou maior fir-
meza ao requisitar que as suas próprias leis fossem observadas e seguidas na
região39. Ainda assim, vale notar que o tema não foi devidamente tratado sob
a perspectiva do Direito Humanitário.
Em suma, a discussão jurídica quanto à legitimidade da ocupação russa
e à aplicação de suas leis pareceu tomar para si os holofotes da RPU. Poten-
cialmente, os Estados revisores se aproveitaram de aspectos mais formais
para se eximirem de críticas mais severas sobre nítidas violações aos direitos
humanos e ao DIH. Portanto, agiram como se pensassem: se nos encontramos
estagnados em uma matéria juridicamente controversa e nebulosa, não há
mais o que se discutir para além dela.

5. A criação da comissão de inquérito independente e outras


atuações recentes do conselho

Conforme aludido, para além da Revisão Periódica Universal, o Conse-


lho também é incumbido de atuar em proteção aos direitos humanos através
de mecanismos investigativos e coletores de informações. Assim, apesar dos
37 Manter as obrigações sob o direito internacional de permitir o acesso à Crimeia para monitores internacionais
de direitos humanos (Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte). UN HUMAN RIGHTS COUNCIL,
A/HRC/39/13 (2018), § 147.40.
38 UN HUMAN RIGHTS COUNCIL, A/HRC/39/13 (2018), § 135.
39 Ibid., § 147.309.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 353

impasses que a impossibilitam de acompanhar tempestivamente o conflito


armado na Ucrânia iniciado em fevereiro de 2022, importa notar como o órgão
tem buscado empenho na matéria através de outras ações recentes.
Na data de 4 de março do mesmo ano, o ConsDH adotou resolução por
meio da qual solicitou a rápida e verificável retirada das tropas russas e das
forças armadas por ela apoiadas de todo o território ucraniano40. Diante do
caráter de urgência, decidiu pelo estabelecimento de uma Comissão Interna-
cional Independente de Inquérito mandatada ao acompanhamento da guerra
de agressão da Federação Russa contra a Ucrânia, na finalidade de investigar
as alegadas violações e abusos dos direitos humanos e do direito internacio-
nal humanitário41.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Sendo totalmente constituída apenas no 30º dia do mês, contava como


seus três experts em direitos humanos: Erik Møse, da Noruega, como seu
presidente; Jasminka Džumhur, da Bósnia e Herzegovina; e Pablo de Greiff,
da Colômbia. A Comissão foi requisitada à coleta, consolidação e análise de
todas as evidências, considerando sua dimensão de gênero, e ao registro e à
preservação sistemática de quaisquer informações e documentação em vista
a eventuais procedimentos legais42.
Outrossim, sempre que possível, deveria atuar na identificação dos
indivíduos e entidades responsáveis pelas violações constatadas e realizar
recomendações atinentes ao combate à impunidade e à garantia da respon-
sabilização criminal de seus autores e do acesso à justiça às vítimas. Para o
desenvolvimento dos seus trabalhos em coordenação com o Gabinete do Alto
Comissariado para os Direitos Humanos, estipulou-se um prazo de duração
inicial de um ano43.
Em 7 de abril de 2022, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou
resolução que decidia pela suspensão da Rússia do Conselho de Direitos
Humanos44. Atendendo ao requisito de maioria de dois terços dos votantes,
menos abstenções45, entre os seus 193 membros, computaram-se: 93 votos

40 UN HUMAN RIGHTS COUNCIL, A/HRC/RES/49/1 (2022).


41 Ibid.
42 UN REGIONAL INFORMATION CENTRE FOR WESTERN EUROPE. Norwegian judge appointed chair of
the Commission of Inquiry on Ukraine, 31 mar. 2022. Disponível em: https://unric.org/en/norwegian-judge-
-appointed-chair-of-the-commission-of-inquiry-on-ukraine/. Acesso em: 10 nov. 2022.
43 Ibid.
44 UN REGIONAL INFORMATION CENTRE FOR WESTERN EUROPE. The UN and the war in Ukraine: key
information, 9 mar. 2022. Disponível em: https://unric.org/en/the-un-and-the-war-in-ukraine-key-information/.
Acesso em: 15 nov. 2022.
45 Abstenções: Angola, Bahrain, Bangladesh, Barbados, Belize, Butão, Botswana, Brasil, Brunei Darussalam, Cabo
Verde, Camboja, Camarões, Egito, El Salvador, Essuatíni, Gâmbia, Guiné-Bissau, Guiana, Índia, Indonésia, Iraque,
Jordânia, Quênia, Kuwait, Lesoto, Madagascar, Malásia, Maldivas, México, Mongólia, Moçambique, Namíbia,
Nepal, Níger, Nigéria, Omã, Paquistão, Qatar, São Cristóvão e Neves, São Vicente e Granadinas, Arábia Saudita,
Senegal, Singapura, África do Sul, Sudão do Sul, Sri Lanka, Sudão, Suriname, Tailândia, Togo, Trindade e Tobago,
354

favoráveis46 e 24 contrários47. Imediatamente após a adoção, o representante


permanente russo Kuzmin informou que a própria Federação Russa já inten-
cionava se retirar do ConsDH, tendo em vista a sua monopolização por um
grupo de Estados que o utilizam em seus próprios objetivos de curto prazo,
anteriormente diretamente envolvidos ou coniventes a violações flagrantes
de direitos humanos48.
No dia 12 de maio, em Sessão Especial sobre a Ucrânia – 34ª Sessão
Especial do órgão –, a Alta Comissária das Nações Unidas, Michelle Bachelet,
apresentou uma denúncia contra as tropas de ocupação russas ao Conselho
de Direitos Humanos. As alegações decorreram de uma missão de monitora-
mento enviada a 14 cidades atingidas pelo conflito, que constatou, à época,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


cerca de 300 execuções sumárias de civis e 204 casos de desaparecimento
forçado, incluindo funcionários públicos, jornalistas, ativistas da sociedade
civil e militares aposentados49.
Na oportunidade, Bachelet frisou que, embora ambos os lados do conflito
cometessem violações, a maior parte delas resultava, com efeito, das ações das
forças armadas da Rússia50. Como resultado da Sessão, o ConsDH aprovou
uma resolução solicitando uma investigação quanto às alegações51.

Tunísia, Uganda, Emirados Árabes Unidos, República Unida da Tanzânia, Vanuatu e Iêmen. Foram ausentes:
Afeganistão, Armênia, Azerbaijão, Benin, Burkina Faso, Djibouti, Guiné Equatorial, Guiné, Líbano, Mauritânia,
Marrocos, Ruanda, São Tomé e Príncipe, Ilhas Salomão, Somália, Turquemenistão, Venezuela e Zâmbia.
46 Votos favoráveis: Albânia, Andorra, Antígua e Barbuda, Argentina, Austrália, Áustria, Bahamas, Bélgica, Bósnia
e Herzegovina, Bulgária, Canadá, Chade, Chile, Colômbia, Comores, Costa Rica, Costa do Marfim, Croácia,
Chipre, República Tcheca, República Democrática do Congo, Dinamarca, Dominica, República Dominicana,
Equador, Estônia, Ilhas Fiji, Finlândia, França, Geórgia, Alemanha, Grécia, Granada, Guatemala, Haiti, Hon-
duras, Hungria, Islândia, Irlanda, Israel, Itália, Jamaica, Japão, Kiribati, Letônia, Libéria, Líbia, Liechtenstein,
Lituânia, Luxemburgo, Maláui, Malta, Ilhas Marshall, Ilhas Maurício, Micronésia, Mônaco, Montenegro, Mianmar,
Nauru, Países Baixos, Nova Zelândia, Macedônia do Norte, Noruega, Palau, Panamá, Papua-Nova Guiné,
Paraguai, Peru, Filipinas, Polônia, Portugal, República da Coreia, República da Moldávia, Romênia, Santa
Lúcia, Samoa, San Marino, Sérvia, Seicheles, Serra Leoa, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Suécia, Suíça,
Timor-Leste, Tonga, Turquia, Tuvalu, Ucrânia, Reino Unidos, Estados Unidos da América e Uruguai.
47 Votos contrários: Argélia, Belarus, Bolívia, Burundi, República da África Central, China, Congo, Cuba, República
Popular Democrática da Coreia, Eritreia, Etiópia, Gabão, Irã, Cazaquistão, Quirguistão, Laos, Mali, Nicarágua,
Federação Russa, República Árabe Síria, Tajiquistão, Uzbequistão, Vietnã e Zimbabué.
48 UN NEWS. UN General Assembly votes to suspend Russia from the Human Rights Council, 7 abr. 2022.
Disponível em: https://news.un.org/en/story/2022/04/1115782. Acesso em: 15 nov. 2022.
49 NAÇÕES UNIDAS BRASIL. Ucrânia: Conselho de Direitos Humanos recebe denúncias de execuções, 12
maio 2022. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/181603-ucrania-conselho-de-direitos-humanos-recebe-
-denuncias-de-execucoes. Acesso em: 15 nov. 2022.
50 ACNUDH. Bachelet descreve série de violações de direitos humanos na Ucrânia, 13 maio 2022. Disponível
em: https://acnudh.org/pt-br/bachelet-descreve-serie-de-violacoes-de-direitos-humanos-na-ucrania/. Acesso
em: 15 nov. 2022.
51 UN REGIONAL INFORMATION CENTRE FOR WESTERN EUROPE. The UN and the war in Ukraine: key
information, 9 mar. 2022. Disponível em: https://unric.org/en/the-un-and-the-war-in-ukraine-key-information/.
Acesso em: 15 nov. 2022.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 355

Em 23 de setembro, após visitar 27 locais ao longo de quatro regiões


e entrevistar mais de 150 indivíduos, entre vítimas, testemunhas e autori-
dades, a Comissão de Inquérito Independente sobre a Ucrânia comunicou
ao Conselho as suas conclusões de ocorrência de uma série de crimes de
guerra e violações de direitos humanos e direito humanitário no país desde
24 de fevereiro de 202252. Confirmando os indícios anteriores, o relatório
expôs a responsabilidade das forças armadas russas pela vasta maioria das
transgressões identificadas, mas também alertou a casos nos quais as tropas
ucranianas descumpriram o DIH, inclusive com a especificação de dois epi-
sódios de crimes de guerra53.
Ao final, advertiu sobre a indispensabilidade de uma coordenação de
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

múltiplas iniciativas nacionais e internacionais no intuito de garantir o cum-


primento rigoroso aos padrões de coleta de evidências para o seu proveito em
processos judiciais. Mais tarde, em 18 de outubro, esse mesmo documento
viria a ser amplamente divulgado à medida em que o Secretariado-Geral das
Nações Unidas o remeteria à Assembleia Geral54.
Por último, mencione-se que, durante a 51ª Sessão Regular do Conselho
de Direitos Humanos, o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas
para os Direitos Humanos (ACNUDH) apresentou no dia 29 de setembro um
relatório intitulado “Situação de direitos humanos na Ucrânia: 1 de fevereiro
a 31 de julho de 2022”. O documento reunia as informações do ACNUDH
no período, discorrendo acerca de: baixas civis; destruição e dano a objetos
civis; detenções relativas ao conflito; tortura e maus-tratos; violência sexual
relativa ao conflito; tratamento de prisioneiros de guerra e demais pessoas
hors de combat; recrutamento forçado; evacuação de pessoas das áreas afeta-
das; deslocados internos; pessoas com deficiência; idosos; administração da
justiça; liberdade de opinião, expressão, reunião e associação pacíficas; dis-
criminação, discursos de ódio, violência racialmente motiva e manifestações
de intolerância; procedimentos de demissão e nomeação de Ombudsperson55.
Em seu desfecho, delineou recomendações direcionadas: a) a todas
as partes conflitantes; b) apenas à Federação Russa; c) ao Parlamento e ao
Gabinete de Ministros da Ucrânia; d) ao Estado e às autoridades locais da
Ucrânia; e) ao Escritório do Procurador-Geral e ao Gabinete de Investigação
do Estado e demais agências de aplicação da lei; f) ao Judiciário ucraniano;

52 FARGE, Emma. Investigação da ONU conclui que crimes de guerra foram cometidos na Ucrânia, 23 set.
2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/noticias/investigacao-da-onu-conclui-que-crimes-de-guer-
ra-foram-cometidos-na-ucrania/. Acesso em: 15 nov. 2022.
53 UN GENERAL ASSEMBLY, A/77/533 (2022).
54 Ibid.
55 UN HUMAN RIGHTS COUNCIL, A/HRC/51/CRP.1 (2022).
356

g) aos grupos armados filiados à Rússia; e h) à comunidade internacional56.


Indubitavelmente, foi o trabalho mais refinado e multifacetado no tocante à
atribuição de incumbências aos mais variados atores capazes de influenciar
positivamente nas trágicas circunstâncias, visivelmente considerando as falhas
e competências particulares a cada um deles.

6. Considerações finais

O presente estudo pressupõe a divisão da atuação do Conselho de Direi-


tos Humanos quanto aos conflitos entre Ucrânia e Rússia em dois momen-
tos: a) aquele concernente à forma pela qual a Revisão Periódica Universal
monitorou os impactos da anexação da Crimeia (2014) e dos insurgentes

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


embates na região Leste do país à sua situação de direitos humanos e direito
humanitário; e b) as ações mais recentes que o órgão tem conduzido até então
no acompanhamento da guerra da Ucrânia, iniciada no ano de 2022. Assim,
possibilitou-se a análise dos méritos e dificuldades de distintas abordagens
facultadas ao ConsDH em seu objetivo precípuo.
No tocante ao primeiro deles, portanto, constatou-se que a RPU circun-
dou as suas motivações iniciais principalmente acerca da região da Crimeia
de forma pouco incisiva, estando o tema restrito, por vezes, a uma espécie de
embate direto entre ambos os Estados, sendo aparentemente pouco atrativo às
considerações dos demais. De tal forma, nunca foi capaz de atingir um estágio
profícuo de debates quanto às tensões que há tempos escalavam.
Em realidade, a Revisão Periódica Universal se demonstrou como meio
no qual a faceta de orientação política e intergovernamental do Conselho
parecem influir excessivamente, prejudicando o funcionamento ideal do
mecanismo. As participações de maior veemência dos Estados ficaram restri-
tas aos momentos de apresentação de questionamentos prévios, não havendo
situação correspondente durante a elaboração das recomendações.
No máximo, a notoriedade do uso da RPU advém da observação de como
ambos os Estados se apropriaram do seu espaço no intuito de reforçar os seus
posicionamentos quanto aos conflitos. Nesse sentido, a Ucrânia pôde se impor
ao tecer críticas severas de modo direto; a Rússia, ao reproduzir argumentos
que corroborassem com as condutas realizadas.
Especificamente em atenção à competência de também versar sobre o
DIH que o próprio Conselho atrai para si ao longo de diversos instrumentos, a
RPU foi incapaz de oportunizar o seu devido exame. Conforme demonstrado,
a imensa maioria de recomendações que lhe referenciaram se resumiram a
menções genéricas de necessidade de respeito às suas normas.

56 Ibid.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 357

Com efeito, durante o Terceiro Ciclo da Rússia, foi unicamente a questão


da lei a ser aplicada na região da Crimeia aquela de maior particularidade do
âmbito jurídico em questão a ser pertinente à revisão. No entanto, foi visi-
velmente ignorada tanto pelo Estado revisado quanto pelos Estados revisores
– inclusive, pela própria Ucrânia –, muito provavelmente em razão da alegada
falta de competência e expertise do ConsDH para tratar de DIH.
Ainda mais fundamental: dado cronograma dos Ciclos, o mecanismo
tampouco foi palco de discussões atinentes às recentes invasões do território
ucraniano por parte das forças militares russas. Infelizmente, um elemento
tão característico à RPU é justamente aquele que impede o vislumbre de
como um mecanismo tão singular à proteção dos direitos humanos poderia
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ser utilizado em cenário tão crítico quanto o atual. Nesse sentido, no pre-
sente, a realização das próximas revisões de Ucrânia e Rússia é tão incerta
que soa presunçoso supor que, quando finalmente realizadas, poderão sus-
citar plena e satisfatoriamente todas as questões que vêm sendo objeto de
levantamentos tanto do próprio Conselho de Direitos Humanos quanto de
outras fontes.
Em continuidade, a partir do segundo recorte, evidencia-se que o Con-
selho de Direitos Humanos tem logrado êxito ao menos no que diz respeito
às fact-finding missions e suas consequentes compilações de informações
ou até material probatório. Significa dizer que, naquilo que concerne à
guerra na Ucrânia intensific em 2022, à despeito das especificidades que
afastam a ocorrência da RPU, outro tipo de mecanismo do Conselho – a
Comissão de Inquérito Independente – promete gerar resultados que pos-
sam ser relevantes para identificação de graves e sistemáticas violações
de direitos humanos e a responsabilização tanto dos perpetradores como
os Estados envolvidos.
Convém, contudo, ressaltar duas características que distinguem o seu
funcionamento perante o da Revisão Periódica: primeiramente, o caráter de
independência de sua equipe certamente distancia as Comissões de Inquérito
das consequências danosas da carga política que permeia o ConsDH; todavia,
é igualmente necessário reconhecer que o seu objetivo de compilação de fatos
é outro que aquele da RPU: realizar uma coleta de informações documentando
potenciais crimes contra os direitos humanos, para que justiça possa ser feita
em momento posterior.
Com os futuros acontecimentos do conflito, incluso o seu término, resta
vislumbrar de que forma as suas conclusões servirão de base para ações mais
definitivas quanto à responsabilização de violadores de direitos humanos e
direito humanitário, ao acesso à justiça de suas vítimas e à reconstrução de toda
358

a sociedade por ele impactada. Nesse sentido, é possível especular até mesmo
que sejam utilizados nos próximos ciclos de revisão de Ucrânia e Rússia.
Verificou-se que, dentro do que lhe cabe, o ConsDH tem sido capaz
de aplicar alguns dos mecanismos que detém às circunstâncias mais atuais
do histórico conflito entre a Ucrânia e a Rússia. Nesse sentido, é necessário
reconhecer a respeitabilidade do seu trabalho, sobremaneira tendo em mente
não ser justo e tampouco sensato atribuir a apenas um órgão de todo o sistema
internacional de proteção dos direitos humanos a missão de pôr fim a uma
guerra originada por causas tão múltiplas.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


20. A GUERRA NA UCRÂNIA E
OS IMPACTOS DA SAÍDA DA
RÚSSIA DO SISTEMA EUROPEU
DE DIREITOS HUMANOS
Melissa Gusmão Ramos

1. Introdução
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, impulsionados pelos aconteci-


mentos que marcaram os conflitos oriundos da guerra e pela necessidade de se
construir relações pacíficas e duradouras em todo o Continente Europeu, surge
o Conselho da Europa, resultado dos esforços empreendidos pelos Estados
europeus durante o Congresso de Haia, em maio de 19481.
O Conselho da Europa é uma organização intergovernamental composta
por Estados europeus, cuja cooperação visa fortalecer os valores democráticos
e o pluralismo político na Europa. Seus principais objetivos são a defesa dos
direitos humanos e do estado de direito na busca de soluções para os problemas
da sociedade europeia, assim como o desenvolvimento da estabilidade demo-
crática e a promoção da consciência e da apreciação da identidade cultural e
da diversidade no Continente2.
Para atingir estes objetivos, o Conselho analisa questões de interesses
comuns e busca construir práticas através da conclusão de acordos e pela adop-
ção de uma ação comum nos domínios econômico, social, cultural, científico,
jurídico e administrativo, bem como pela salvaguarda e desenvolvimento dos
direitos do homem e das liberdades fundamentais3.
A leitura do Estatuto do Conselho da Europa e dos debates que antecede-
ram a sua criação durante o Congresso de Haia de 19484 preconizam a impor-
tância de se construir princípios e práticas que favoreçam a proteção e a eficácia
dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. Em virtude deste primado,
em especial do disposto no artigo 35, do Estatuto do Conselho da Europa,
1 WASSENBERG, Birte. Histoire du Conseil de l’Europe. Strasbourg: Conseil de l’Europe, 2013. p. 28.
2 STATUT DU CONSEIL DE L‘EUROPE, Londres, 5 mai 1949, 87 UNTS 103, Art. 1.
3 Id., Art. 1(b).
4 CONGRÈS DE L’EUROPE, La Haye, 7-11 maio 1948, Strasbourg: Conseil de l’Europe, 1999.
5 STATUT DU CONSEIL DE L’EUROPE. Op cit. (nota 2), Art. 3: “Todos os Membros do Conselho da Europa
reconhecem o princípio do primado do Direito e o princípio em virtude do qual qualquer pessoa colocada
sob a sua jurisdição deve gozar dos direitos do homem e das liberdades fundamentais, comprometendo-se
a colaborar sincera e activamente na prossecução do objectivo definido no capítulo I”.
360

desenvolve-se o sistema europeu de proteção aos direitos humanos que vai se


caracterizar pela Convenção Europeia de Direitos Humanos e seus protocolos
adicionais como principal fonte normativa da proteção destes direitos, cuja
eficácia será garantida pela existência de mecanismos jurisdicionais efetivos.
A Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberda-
des Fundamentais, mais conhecida como Convenção Europeia de Direitos
Humanos, foi assinada em Roma em 4 de novembro de 1950, com entrada
em vigor em 1953. Ela foi o primeiro instrumento a dar forma concreta e
força vinculativa aos direitos contidos na Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 19436.
Os Estados que ratificaram a Convenção se comprometem a reconhecer

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


e garantir direitos civis e políticos fundamentais aos nacionais e estrangeiros
sob sua jurisdição. Em particular, a Convenção Europeia de Direitos Humanos
garante o direito à vida, a um julgamento justo, ao respeito à vida privada
e familiar, à liberdade de expressão, pensamento, consciência e religião e o
respeito à propriedade. Ela proíbe a tortura, o tratamento ou punição desumana
ou degradante, a escravidão e o trabalho forçado, a detenção arbitrária e ilegal,
e quaisquer discriminações no gozo dos direitos e liberdades reconhecidos
pela Convenção7.
A Convenção é aplicável nos Estados Partes a nível nacional, porquanto
ela é incorporada à legislação destes que são compelidos, em virtude de sua
adesão, a respeitar os direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Con-
venção8. Entretanto é importante notar que não há uniformidade quanto
à forma como esta incorporação se dá e quanto ao modo de execução das
sentenças proferidas no âmbito de cada Estado Parte9.
A fim de conferir eficácia e garantir o respeito, pelos Estados Partes
da Convenção, aos direitos, liberdades e garantias nela expressos, cria-se
a Comissão Europeia de Direitos Humanos em 1955 e a Corte Europeia de
Direitos Humanos (CEDH) em 1959, em Estrasburgo, França, pelos Estados
Partes do Conselho da Europa10.

6 RENUCCI, Jean-François. Introduction Générale à la Convention Européenne des Droits de l’Homme: Droits
garantis et mécanisme de protection. Strasbourg: Editions du Conseil de 1’Europe, 2005, p. 42.
7 CONVENTION DE SAUVEGARDE DES DROITS DE L’HOMME ET DES LIBERTÉS FONDAMENTALES,
Rome, 3 set. 1953, 213 UNTS 221, Arts. 1 a 18.
8 DAUDI, Mireya Castillo. Derecho Internacional de los Derechos Humanos. Valencia, Tirant lo Blanch, 2006.
9 ALVARADO, Paola Andrea Acosta. Tribunal Europeo y Corte Interamericana de Derechos Humanos. Esce-
narios idôneos para Ia garantia dei derecho de acceso a Ia justicia internacional?. Bogotá: Universidad
Externado de Colombia, 2007.
10 Importante notar que o Conselho de Ministros também exercia uma importante função de apreciação das
demandas de violação da Convenção. Entretanto o Protocolo Adicional nº 9 limitou a função do Conselho
de Ministros à supervisão da execução de sentenças emitidas pela Corte. GASPAROTO, Ana Lúcia; BLA-
NES SALA, José. O Sistema Europeu de Proteção dos Direitos Humanos. Revista do Instituto Brasileiro de
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 361

Apesar de sua entrada em vigor em 1953, a Convenção passa a ser apli-


cada, de fato, em 5 de julho de 1955, com o reconhecimento da competência
da Comissão Europeia de Direitos Humanos para analisar petições individuais.
A CEDH inicia seus trabalhos em 1959, entretanto com a reestruturação das
competências da CEDH em 1998, a Comissão Europeia de Direitos Humanos
deixa de existir11.
No contexto contemporâneo, a CEDH é a instância jurisdicional para
decidir sobre eventuais conflitos que envolvam violações dos direitos, liber-
dades e garantias estabelecidos na Convenção e seus respectivos protocolos
pelos Estados Partes.
Qualquer Estado Parte ou indivíduo submetido à jurisdição de um Estado
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Parte pode submeter à Corte petições que digam respeito a violações das
disposições da Convenção e dos seus protocolos e julguem poder ser impu-
tadas a outro Estado Parte. A pedido do Comitê de Ministros, a Corte pode,
ainda, emitir pareceres sobre questões jurídicas relativas à interpretação da
Convenção e dos seus protocolos adicionais.
Enquanto Estados Partes do Conselho da Europa, tanto a Rússia quanto
a Ucrânia ratificaram a Convenção Europeia de Direitos Humanos e aderiram
à jurisdição da CEDH.
A Rússia aderiu ao Conselho da Europa em 28 de fevereiro de 1996 e
ratificou a Convenção Europeia de Direitos Humanos através da Lei Federal
nº 54-FZ de 30 de março de 1998 que entrou em vigor em 5 de maio de 1998.
Através do mesmo ato, a Rússia admitiu o direito de petição individual e a
jurisdição obrigatória da CEDH12.
Nas primeiras horas do dia 24 de fevereiro de 2022, a Rússia anunciou
uma operação militar contra a Ucrânia que se tornou, até o momento, um
dos maiores conflitos militares na Europa desde o fim da Segunda Guerra
Mundial, gerando a maior crise de segurança no continente europeu desde
a Guerra Fria.
Em 25 de fevereiro, um dia após a invasão, a Rússia foi suspensa de seus
direitos de representação no Conselho da Europa, sob cuja égide funciona o
sistema europeu de direitos humanos. Em virtude de sua retirada do Conselho
da Europa, a Rússia sinalizou sua intenção de denunciar a Convenção Europeia
de Direitos Humanos13.

Direitos Humanos, n. 15, dez. 2015, p. 17-36. Disponível em: http://revista.ibdh.org.br/index.php/ibdh/article/


view/301. Acesso em: 10 nov. 2022.
11 Ibid., p. 21.
12 MASSIAS, Jean-Pierre. La Russie et le Conseil de l’Europe: dix ans pour rien?. Institut Français de Relations
Internationales, Russie Nei Visions, n. 15, jan 2007. Disponível em: https://www.ifri.org/sites/default/files/
atoms/files/ifri_CE_massias_francais_janv2007.pdf. Acesso em: 24 out. 2022.
13 CONSEIL DE L’EUROPE. CM/Del/Dec(2022)1426ter/2.3 (2022).
362

Em 10 de março, a Rússia anunciou que não mais participaria mais do


Conselho. Logo após, em 15 de março, lançou um procedimento de retirada,
com efeitos a partir de 31 de dezembro de 2022, em conformidade com o
artigo 7º do Estatuto do Conselho Europeu14.
Contudo, em 16 de março de 2022, um dia após o início do proce-
dimento de retirada pela Rússia, o Comitê de Ministros decidiu excluir
o Estado do Conselho da Europa. Esta decisão, baseada no Artigo 8 do
Estatuto do Conselho, é simplesmente sem precedentes desde sua cria-
ção em 194915.
Mas o que esta exclusão significa na prática? Obviamente as consequên-
cias são as mais distintas e geram impactos dos mais diversos, sobretudo nos

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


campos político, social, econômico e jurídico. Ainda é deveras difícil descrever
as consequências de uma decisão como.
Do ponto de vista jurídico, a questão suscita debates de diferentes pers-
pectivas, sobretudo no que diz respeito aos impactos e consequências da
exclusão sob a ótica do Direito Internacional Público e, em especial, dos
Direitos Humanos.
A invasão russa ao território ucraniano aprofundou uma crise que já se
delineava no âmbito do sistema europeu de proteção aos direitos humanos.
A tensão entre a Rússia e a CEDH já data de longa data, todavia a exclu-
são do Estado Parte ruiu as pontes que eventualmente ligavam o sistema ao
estado russo.
Após a invasão russa, a CEDH foi uma das primeiras organizações inter-
nacionais a se pronunciar sobre o fato e a adotar medidas que visavam a
constranger os atos praticados contra a autonomia da Ucrânia.
Sem embargos, a exclusão da Rússia pelo Conselho da Europa tende a
gerar consequências ainda mais desastrosas para a sociedade civil de ambos
os Estados Partes e aprofundar a crise humanitária já existente.
A fim de melhor examinar os impactos da exclusão russa do Conselho da
Europa e sua consequente saída do sistema europeu de direitos humanos, em
especial, da jurisdição CEDH, analisar-se-á a questão sob duas vertentes: i) o
posicionamento da CEDH face à Rússia após o início das hostilidades ii) A
aplicação da Convenção Europeia de Direitos Humanos na Rússia e as conse-
quências de sua exclusão do sistema europeu de direitos humanos.

14 STATUT DU CONSEIL DE L’EUROPE. Op cit. (nota 2), Art. 7: “Qualquer Membro do Conselho da Europa
pode retirar-se, notificando a sua decisão ao Secretário-Geral. A notificação terá efeito no fim do ano financeiro
em curso, se houver sido feita nos nove primeiros meses desse ano, e no fim do ano financeiro seguinte,
se houver sido feita nos últimos três meses”.
15 CONSEIL DE L’EUROPE. Conséquences de l’agression de la Fédération de Russie contre l’Ukraine. Avis
300 (2022). Disponível em: https://pace.coe.int/fr/files/29885/html. Acesso em: 11 out. 2022.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 363

2. O posicionamento da CEDH face à Rússia após o início das


hostilidades: atuação e competência

A CEDH foi a primeira jurisdição a adotar medidas contra a invasão


russa na Ucrânia, ordenando medidas cautelares que incluíam a suspensão
de ataques a civis e a propriedades civis.
A Corte define medidas cautelares como medidas urgentes que, de acordo
com a prática estabelecida pela Corte, são aplicadas somente quando há um
risco iminente de danos irreparáveis16. A possibilidade da Corte indicar tais
medidas no contexto de processos ainda em curso está prevista no artigo 39
do Regulamento da Corte:
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Artigo 39º1 – Medidas cautelares 1 – A Secção ou, se aplicável, o Pre-


sidente da Câmara ou um juiz de turno designado nos termos do nº 4 do
presente artigo podem, a pedido de uma das partes ou de outra pessoa
interessada ou por iniciativa própria, indicar às partes qualquer medida
cautelar que considerem dever ser adotada no interesse das partes ou do
bom desenrolar do processo17.

As medidas cautelares são, portanto, indicadas pelo Tribunal a título


excepcional, a fim de evitar danos irreparáveis aos direitos das partes.
Desde o início da invasão russa, a Corte proferiu diversas decisões indi-
cando tais medidas contra o Estado russo e em virtude do conflito.
A natureza dos atos examinados pela Corte em sua decisão cautelar de
1º de março sobre a ação militar da Rússia em várias partes da Ucrânia era
tal que implicavam um risco real e contínuo de graves violações do “direito
à vida” e do “direito ao respeito pela vida privada e familiar” dos civis ucra-
nianos, e da “proibição da tortura e de tratamentos ou punições desumanos
ou degradantes”18. Todos estes direitos estão consagrados na Convenção
Europeia sobre Direitos Humanos.
Em sua decisão cautelar de 1 de março de 2022 a Corte determinou ao
governo russo que se abstivesse

“de lançar ataques militares contra civis e objetos civis, incluindo casas,
veículos de emergência e outros bens civis especialmente protegidos,
tais como escolas e hospitais, e para tais como escolas e hospitais, e para

16 CEDH, Affaire A.S. c. France, n. 46240/15, Julgamento, 19 abr. 2018. CEDH, Affaire Novaya Gazeta et
autres c/ Russie, n. 11885/22. Medidas cautelares, 10 mar. 2022.
17 COUR EUROPÉENNE DES DROITS DE L’HOMME. Les mesures provisoires. Strasbourg, L’Unité de la
Presse, août 2022. Disponível em: https://www.echr.coe.int/documents/fs_interim_measures_fra.pdf. Acesso
em: 15 out. 2022.
18 CEDH, Affaire Ukraine c. Russie, n. 11055/22. Medidas cautelares, 1 mar. 2022.
364

garantir a segurança imediata das instalações de saúde, pessoal médico e


veículos de resgate no território atacado ou sitiado por soldados russos”19.

A decisão foi proferida em 1º de março de 2022, após um pedido do


Governo da Ucrânia em 28 de fevereiro de 2022.
Em sequência, em 4 de março de 2022 a Corte decidiu que a referida
medida cautelar, enunciada em 1 de março se estendia a qualquer pedido feito
por qualquer pessoa pertencentes à categoria dos civis que tenha fornecido
perante a Corte provas suficientes de que está exposto a um risco sério e imi-
nente de danos irreparáveis à sua integridade física ou à sua vida20.
Ainda, em decisão proferida em 8 de março de 2022, no caso Novaya
Gazeta e outros c. Rússia21 a Corte proferiu decisão no sentido de proteger os

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


direitos de liberdade de expressão de dois jornais russos, o Novaya Gazeta22
e o OOO Telekanal Dozhd:

“[...] no interesse das partes e da boa condução dos procedimentos perante


ela, e levando em conta o contexto excepcional em que o pedido foi feito,
determina as autoridades russas, de acordo com a regra 39 de seu Regula-
mento Interno, que se abstenham, até nova ordem, de qualquer ação e deci-
sões que visam obstruir completamente e encerrar as atividades da Novaya
Gazeta, e de qualquer outra ação que, à luz das circunstâncias atuais, seja
passível de privar a Novaya Gazeta de desfrutar dos direitos garantidos pelo
Artigo 10 da Convenção (liberdade de expressão)”.

Após a Resolução do Comitê de Ministros de que a Federação Russa


deixaria de ser parte do Conselho da Europa23, a CEDH, suspende a análise
de todos os pedidos contra a Rússia enquanto examina as consequências
legais da Resolução sobre o trabalho da Corte.
Em 22 de março de 2022, a CEDH adota uma Resolução sobre as
consequências do término da adesão da Federação Russa ao Conselho da
Europa à luz do artigo 58 da Convenção Europeia sobre Direitos Humanos
onde estabelece que:

[...] 2. A Corte manterá jurisdição para tratar de pedidos contra a Rússia


em relação a atos e omissões que possam constituir uma violação da
Convenção ocorridos até 16 de setembro de 2022.

19 Ibid., § 1.
20 COUR EUROPÉENNE DES DROITS DE L’HOMME. Communiqué de Presse 073/2022. Strasbourg,
3 mar. 2022.
21 CEDH, Affaire Novaya Gazeta et autres c/ Russie. Op cit. (nota 16).
22 O Novaya Gazeta tem como editor o jornalista Dmitry Muratov, ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 2021
pela defesa dos direitos e liberdades de expressão.
23 CEDH, CM/Res 2 (2022).
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 365

A suspensão do exame de todos os pedidos contra a Federação Russa


na sequência da decisão do Presidente da Corte em 16 de março de 2022 é
suspensa com efeito imediato24.
Da decisão se depreende que os pedidos de análise de violações da Con-
venção e seus protocolos adicionais contra a Rússia continuarão a ser exa-
minados pela Corte, desde que os fatos em questão tenham ocorrido antes de
16 de setembro de 2022.
Portanto, sentenças em processos contra a Rússia por violações da Con-
venção podem ser proferidas após essa data, desde que relacionadas com fatos
anteriores a esta. Embora tenha sido a Rússia excluída do Conselho da Europa,
o Comitê de Ministros continuará a supervisionar a execução das sentenças
como uma consequência natural da jurisdição da Corte.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

É interessante notar que em 2021, quase um quarto das sentenças pro-


feridas pela Corte foram contra a Rússia.
Ao longo do mês de maio de 2022 a Corte continuou a ampliar as
medidas cautelares contra a Rússia em virtude do conflito, notadamente
em relação à garantia do livre acesso da população civil ucraniana aos
corredores de evacuação seguros, à assistência médica, ao acesso à ali-
mentos e outros recursos essenciais, bem como à facilitação de entrada de
assistência humanitária25.
Em junho de 2022, a Corte concedeu novas medidas cautelares nos casos
Saadoune c. Rússia e Ucrânia, Pinner c. Russie e Ukraine e Aslin c. Russie
e Ukraine. Os casos diziam respeito a cidadãos estrangeiros, membros das
forças armadas ucranianas, que tinham sido condenados à morte na região de
Donetsk após se renderem às forças russas.
Em particular, a Corte indicou ao Governo da Rússia, nos termos do
artigo 39 de seu Regulamento, que a Rússia deveria garantir que a pena de
morte imposta aos requerentes não fosse executada, e se assegurar que os
demandantes recebessem condições adequadas de detenção, fornecendo-lhes
os cuidados e tratamentos médicos necessários. A Corte também determina
que a Ucrânia deve garantir, na medida do possível, o respeito aos direitos
convencionais dos requerentes26.
24 COUR EUROPÉENNE DE DROIT DE L’HOMME. Résolution de la Cour européenne des droits de l’homme
sur les conséquences de la cessation de la qualité de membre du Conseil de l’Europe de la Fédération
de Russie à la lumière de l’article 58 de la Convention européenne des droits de l’homme, Strasbourg,
22 mar. 2022.
25 A ampliação das medidas se deu após novas informações prestadas pela Ucrânia no Processo 11055/22
iniciado em 1 de março de 2022. CEDH, Affaire Ukraine c. Russie. Op cit. (nota 18). COUR EUROPÉENNE
DES DROITS DE L’HOMME. Communiqué de Presse 116/2022, Strasbourg, 1 maio 2022.
26 CEDH, Affaire Saadoune c. Russie et Ukraine, n. 28944/22. Medida cautelar, 16 jun. 2022. CEDH, Pinner
c. Russie et Ukraine 31217/22. Medida cautelar, 30 jun. 2022. CEDH, Affaire Aslin c. Russie et Ukraine,
n. 31233/22. Medida cautelar, 30 jun. 2022.
366

Em 23 de junho de 2022, a Ucrânia inicia um processo contra a Rússia


perante a Corte onde alega graves e maciças violações de direitos humanos
cometidas pela Rússia no contexto de suas operações militares em território
ucraniano desde 24 de fevereiro de 2022, data inicial do conflito27.
Outros casos foram objeto de apreciação da Corte após o início dos con-
flitos que tinham como demandada a Rússia, ainda que não tivessem relação
direta com o conflito28. Trata-se de casos já em andamento diante do Tribunal.
Atualmente 17 450 casos contra a Rússia tramitam na Corte29.
Em termos de princípios legais, vale a pena lembrar que, de acordo com
a jurisprudência estabelecida pela Corte, as medidas cautelares são obriga-
tórias. A Rússia é, portanto, obrigada a cumprir com as medidas que lhe são
indicadas. Na prática, porém, é claro que as decisões tomadas pela Corte desde

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


o início de março de 2022 surtiram pouco efeito.
Esta constatação nos leva ao reconhecimento de que as decisões da Corte
contra um Estado que não necessariamente reconhece o Estado de direito é
fundamentalmente um poder limitado.
Isto significa que, embora as medidas cautelares não tenham poder
para deter a invasão russa, elas mostram que a natureza intolerável da ofen-
siva não pode ser contestada. Neste sentido, seria impensável que a Corte,
enquanto guardiã da Convenção Europeia sobre Direitos Humanos, permane-
cesse em silêncio diante das violações de direitos fundamentais perpetradas
durante o conflito.
Contudo, é interessante notar que as sanções do Tribunal, neste conflito
em especial, se destinam apenas à Rússia, ao contrário das medidas cautela-
res tomadas na época da anexação da Crimeia à Rússia em 2014, em que as
sanções foram então dirigidas tanto à Rússia quanto à Ucrânia.

3. A aplicação da Convenção Europeia de direitos humanos na


Rússia e as consequências de sua exclusão do sistema europeu
de direitos humanos

Em 7 de junho de 2022 os deputados russos aprovaram uma Lei que per-


mite à Rússia deixar de aplicar as decisões da CEDH, já a partir da expulsão

27 CEDH, Affaire Ukraine c. Russie. Op cit. (nota 18).


28 Dentre outros: CEDH. Affaire Khasanov et Rakhmanov c. Russie, n(s). 28492/15, 49975/15. Arresto, 29
abr. 2022. CEDH. Affaire Solyanik c. Russie, n. 47987/15. Arresto, 10 maio 2022. CEDH, Taganrog LRO
et autres c. Russie, n. 32401/10. Arresto, 7 jun. 2022. CEDH, Affaire Ecodefence et autres c. Russie, n.
9988/13. Julgamento, 14 jun. 2022.
29 CONSEIL DE L’EUROPE. La Russie cesse d’être partie à la Convention européenne des droits de l’homme.
Salle de Presse. Strasbourg, 16 de mar. 2022. Disponível em: https://www.coe.int/fr/web/portal/-/russia-cea-
ses-to-be-party-to-the-european-convention-on-human-rights. Acesso em: 4 out. 2022.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 367

do país do Conselho da Europa em março. Como resultado da Lei, a Rússia


não mais aplicará as decisões da CEDH tomadas após 15 de março, quando
Moscou anunciou sua decisão de deixar o Conselho da Europa, do qual era
membro desde 1996.
Os princípios e normas geralmente reconhecidos do direito internacional
e dos tratados internacionais de que faça parte a Federação Russa são parte
integrante de seu sistema jurídico.
Em 2015, o Tribunal Constitucional da Rússia decidiu que as decisões
da Corte Europeia só poderiam ser aplicadas se estivessem de acordo com
a Constituição russa. A decisão permitiu que a Rússia declarasse certas sen-
tenças como inexequíveis. Na ocasião, a decisão do Tribunal atraiu apenas
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

críticas leves30.
Tal decisão deveu-se à interpretação do artigo 15, em especial dos parágrafos
1 e 4, que dispõe que os princípios e normas de direito internacional universal-
mente reconhecidos, assim como acordos internacionais da Federação Russa,
devem ser parte integrante de seu sistema jurídico. Segundo este parágrafo “se
um acordo internacional da Federação Russa estabelecer regras diferentes das
estipuladas por lei, as regras do acordo internacional serão aplicadas”31.
Neste sentido, segundo dispõe a jurisprudência e ordenamento jurídico
russo, se regras diferentes daquelas previstas por lei forem estabelecidas por
um tratado internacional da Federação Russa, as regras do tratado internacional
devem prevalecer. Assim, não se contesta que a Convenção prevalece sobre as
leis – sejam elas federais ou regionais – e sobre atos normativos em geral. Mas
a Constituição, de seu próprio ponto de vista, prevalece sobre os compromissos
internacionais qualquer que seja sua natureza, segundo a jurisprudência russa.
A interpretação acerca da hierarquia da Convenção Europeia de Direitos
Humanos, de fato, não representa por si só um perigo ao descumprimento
das decisões da Corte. A decisão não está muito longe do que diversos países
europeus ou não tem expressado em sua jurisprudência acerca dos tratados
internacionais. O que faz da Rússia um caso à parte é sua reiterada resistência
ao cumprimento das decisões da Corte e aos direitos e liberdades expressos
na Convenção.
A Rússia foi até agora a principal fonte de casos perante a CEDH, dos 70.000
casos pendentes na Corte, quase um quarto (24,2%) diz respeito à Rússia32,

30 KOROTEEV, Kirill. La Russie et la Convention Europeenne des Droits de l’homme. Bilan Jurisprudentiel et
Institutionnel. Droits fondamentaux, n. 5, jan. – déc. 2005. Disponível em: https://www.crdh.fr/wp-content/
uploads/la_russie_et_la_convention_europeenne_des_droits_de_lhomme._bilan_jurisprudentiel_et_insti-
tutionnel.pdf. Acesso em: 4 nov. 2022.
31 Ibid., p. 8.
32 Ibid., p. 1.
368

Não que as relações com a Rússia tenham sido fáceis desde a adesão desta
ao sistema. O relacionamento da Rússia com a Corte Europeia tem sido com-
plicado desde o seu início. A Rússia, pouco depois de se juntar ao Conselho da
Europa, embarcou em uma segunda guerra na Chechênia, por exemplo33.
A Corte emitiu centenas de sentenças contra a Rússia por violações de
direitos humanos durante o conflito. Apenas uma parte das decisões foram
executadas. O motivo para o descumprimento das decisões seria o fato de
muitas delas envolverem as forças de segurança russa, um dos principais
pilares do atual regime34.
Durante os últimos 10 anos, as autoridades russas têm defendido e per-
petuado o sexismo e a homofobia sob o disfarce de “valores tradicionais”.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Houve protesto do país, quando a Corte decidiu que os estereótipos de gênero
não justificariam o tratamento diferenciado de homens e mulheres em licença
parental nas forças armadas35. O governo russo também protestou quando a
Corte considerou que era impossível proibir as marchas de orgulho LGBTQIA+
e que as leis que criminalizavam as “propagandas gays” violavam frontalmente
a Convenção Europeia36. O Estado Parte resistiu fortemente à implementação
destas decisões, o que fortaleceu a discriminação destas pessoas em outros
Estados como o Azerbaijão, a Hungria e a Turquia.
A perseguição política de vozes críticas contrárias ao governo russo é
outro ponto constante de atrito. Entre os casos mais sensíveis estão aqueles
relacionados à abordagem restritiva e às vezes assassina da oposição política
por parte do governo russo. Diante da lista de casos pendentes na Corte pode-
mos identificar como reclamantes uma boa parte dos indivíduos que fazem
oposição ao governo37.
A intransigência e a reincidência da Rússia na não implementação das
decisões da Corte podem ter inspirado outros Estados Partes a fazerem o mesmo.
Recentemente, a Turquia desafiou o Conselho da Europa e a Corte Europeia e
condenou o líder da sociedade civil Osman Kavala a prisão perpétua38.
33 COURCELLE, Thibault. Le Conseil de l’Europe et ses limites. L‘organisation paneuropéenne en pleine crise
Identitaire. Hérodote, v. 118, n. 3, p. 48-67, 2005.
34 Ibid., p. 53.
35 CEDH, Affaire Konstantin Markin c. Russie, n. 30078/06. Julgamento, 22 mar. 2012.
36 Três cidadãos gays, após terem seus recursos fracassados na Corte Constitucional russa, peticionaram
à CEDH, argumentando que a Lei que proibia a “propaganga gay” violava a liberdade de expressão,
prevista no artigo 10 da Convenção Europeia de Direitos Humanos, e a proibição de discriminação, artigo
14 da mesma Convenção. CEDH. Affaire Bayev et Autres c. Russie, n(s). 67667/09, 44092/12, 56717/12.
Julgamento, 20 jun. 2022.
37 CEDH. Affaire Navalnyy c. Russie, n(s). 29580/12, 36847/12, 11252/13, 12317/13, 43746/14. Julgamento,
2 fev. 2017. CEDH. Affaire Kara-Murza c. Russie, n. 2513/14. Julgamento, 4 out. 2022.
38 JÉGO, Marie. Osman Kavala, homme d’affaires et mécène, condamné à la prison à vie au terme d’une
parodie de justice en Turquie. Le Monde, 22 abr. 2022. Disponível em: https://www.lemonde.fr/international/
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 369

Apesar dos desafios, a ratificação da Convenção levou a uma grande reforma


dos sistemas russos em matéria civil, processual civil e criminal. O mesmo se
aplica à execução de sentenças. Em particular o princípio do debate contraditório
foi introduzido nos julgamentos criminais e civis; o papel da promotoria pública
em processos civis foi limitado, a censura da correspondência dos detentos com
tribunais e a com a própria Corte Europeia foi abolida39.
Assim, as conquistas do sistema jurídico russo após a ratificação da
Convenção Europeia são inegáveis. Ela levou as autoridades a emendar a
legislação de acordo com as exigências da Convenção em certos pontos do
processo civil e criminal, bem como da administração penitenciária.
Se por um lado, a exclusão da Rússia configura uma sanção do ponto de
vista do Direito Internacional Público, ela representa, sobretudo, um passo
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

atrás em termos da proteção dos direitos fundamentais, notadamente dos cida-


dãos russos. Isto porque, na prática, desde 16 de setembro de 2022, a Rússia
se tornou livre de suas obrigações de respeitar a Convenção. Seria possível,
por exemplo, reintroduzir a pena de morte que não é aplicada no país desde
a adesão da Rússia ao Conselho da Europa em 1996.
Diante da exclusão, os cidadãos russos não mais poderão invocar a Con-
venção Europeia perante os tribunais nacionais para tentar obter a proteção de
seus direitos e liberdades. Ao mesmo tempo, eles não poderão mais recorrer à
CEDH para que o Estado russo seja condenado por violar estes mesmos direitos.
A perda, pelos cidadãos russos, da possibilidade de invocar perante seu
ordenamento jurídico ou diante da jurisdição internacional o descumprimento
de direitos e liberdades garantidos pela Convenção tem efeitos extremamente
negativos, ainda que nem sempre estivesse a Rússia disposta a seguir as
normas e decisões.
O simples fato de que seria possível a um cidadão levar um caso à Corte e
obter uma conclusão solene e pública da violação de seus direitos e liberdades
já constitui, por si, só uma poderosa alavanca para limitar a arbitrariedade
e a impunidade. Muitas vezes, esta foi a única ferramenta disponível, em
particular para os adversários políticos, na vanguarda dos quais se encontra
Alexeï Navalny.
Embora nem sempre a Rússia tenha se demonstrado preocupada com a
legalidade europeia, as sentenças proferidas pela Corte se demonstraram bas-
tante incômodas às autoridades russas, que se viram compelidas a justificá-las
perante a opinião pública internacional e a interlocutores da Rússia.
Ao mesmo tempo, a CEDH se encontra, neste momento, face a um desa-
fio sem precedentes. Não há dúvida de que outras decisões, tanto concernentes
ao conflito quanto fora dele, se seguirão.
article/2022/04/26/en-turquie-osman-kavala-condamne-a-perpetuite-au-terme-d-une-parodie-de-jus-
tice_6123664_3210.html. Acesso em: 4 nov. 2022.
39 KOROTEEV, Kirill. Op cit. (nota 30), p. 24.
370

Face aos desafios já impostos à eficácia das sentenças internacionais,


soma-se a difícil tarefa de atribuir eficácia às decisões em um conflito onde
a lei parece ter perdido seu lugar e contra um Estado que não se julga mais
pertence ao domínio de eficácia normativa da Corte.
Ademais, os julgamentos que vão se seguir, irão se processar de forma
atípica à dinâmica própria da Corte. A Rússia não participará do processo,
porquanto o juiz russo não se sentará no banco, e a Corte provavelmente terá
que conduzir os procedimentos na ausência do demandado, o que implica na
inexistência de um debate contraditório.
A CEDH já tem um grande número de casos contra a Rússia, conforme
dito anteriormente. A maior parte deles são trazidos à Corte por cidadãos russos,
incluindo o líder da oposição russa Alexei Navalny, mas há também processos

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


que constam como demandantes outros Estados, incluindo a Ucrânia no caso
da anexação da Crimeia em 201440, e a Ucrânia e a Holanda no caso da queda
de um avião MH17 sobre o leste da Ucrânia no mesmo ano41.
Diante das posições adotadas pela Rússia e face às decisões emanadas pelas
CEDH e pela Corte Internacional de Justiça, uma vitória legal para a Ucrânia
concernente ao conflito é provável que permaneça, em grande parte simbólica,
pelo menos a curto prazo. Porém, as sentenças e decisões emitidas pela Corte
podem se tornar essenciais em uma possível transição democrática na Rússia, na
implementação de processos mais democráticos no país à médio e longo prazo,
assim como em um eventual retorno do Estado ao Conselho da Europa.
Embora as expectativas de cumprimento das decisões pela Rússia sejam
baixas, os tribunais e Cortes internacionais, notadamente, a CEDH devem
continuar a tomar as decisões. A não execução destas e a não participação da
Rússia nos processos demonstram que o país está se afastando cada vez mais
do mundo democrático e privando mais de 140 milhões de cidadãos russos
da proteção oferecida pela Convenção.
A exclusão da Rússia do sistema europeu de direitos humanos é de consi-
derável importância para o futuro da Rússia, mas também para as perspectivas
de cooperação com seus vizinhos.
Em particular, no plano diplomático, a exclusão da Rússia alimenta a
reputação de ser um Estado onde prevalece a arbitrariedade e onde os direitos
mais fundamentais não são respeitados. Este quadro alimenta a desconfiança,
que pode levar a um progressivo movimento de isolamento da Rússia da
sociedade das nações e da ordem jurídica internacional.
O afastamento da Rússia do sistema europeu de direitos humanos tam-
bém enfraquece a dinâmica de eficácia destes direitos, uma vez que diminui
o âmbito de incidência das normas protetivas de direitos humanos.
40 Cujo exame de admissibilidade já foi efetuado. CEDH, Ukraine c. Russia (Re Crimée, n(s). 20958/14, 38334/18.
41 CEDH. Ukraine et Holande c. Russie, n(s). 8019/16, 43800/14 e 28525/20.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 371

A exclusão também traz consequências econômicas para o sistema de


proteção aos direitos humanos europeu, porquanto o antigo Estado Parte
era um dos principais contribuintes para o orçamento geral do Conselho da
Europa. Destarte, é essencial que outros Estados se apresentem para preencher
a lacuna de financiamento.

4. Considerações Finais

A exclusão da Rússia do Sistema Europeu de Proteção aos Direitos


Humanos é um evento jurídico e político significativo, cujas consequências
ainda não estão perfeitamente delineadas.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Do ponto de vista político, a principal consequência é a limitação de


participação e acesso pelos cidadãos russos às políticas, decisões e normas
que têm como objetivo promover e criar diretrizes em matéria de direitos
humanos fundamentais.
As consequências jurídicas se ligam notadamente a uma redução da
eficácia e dos mecanismos de controle destes direitos.
Se a relação do Estado Russo com a Corte Europeia de Direitos Humanos,
principal mecanismo de controle do Sistema, já se constituía de tensões e de
diversos pontos de atrito, ela é agora praticamente inexistente. É inegável que,
embora conflituosa, esta relação constituía um verdadeiro apoio, sobretudo
político, aos cidadãos russos face às ações e omissões do Estado. Ela também
permitia, ainda que de forma limitada, uma certa conformidade do Estado
Russo em matérias de direitos humanos em virtude de suas obrigações face
ao Conselho da Europa.
A exclusão da Rússia do Conselho e, posteriormente, as decisões toma-
das pelo governo russo em junho de 2022 sobre a eficácia das decisões da
Corte Europeia de Direitos Humanos colocam em risco os paradigmas que
cumprem as funções de defesa e promoção dos direitos humanos. Privar os
cidadãos sob a jurisdição da Rússia da proteção da Corte Europeia também
afeta o mecanismo de garantia coletiva estabelecido pela Convenção.
É importante lembrar que, embora a exclusão russa da jurisdição da Corte
Europeia de Direitos Humanos restrinja os seus efeitos aos atos e omissões
cometidos antes de 16 de setembro de 2022, ainda que interpostos diante da
Corte após esta data, este não é o único mecanismo de proteção europeia de
direitos humanos. A Rússia continua vinculada, enquanto não os denunciar,
aos tratados do Conselho da Europa abertos à ratificação por Estados não
membros, a exemplo da Convenção Quadro para a Proteção das Minorias
Nacionais e da Convenção Europeia para a Prevenção da Tortura e das Penas
ou Tratamentos Desumanos ou Degradantes. O Estado Russo também ratificou
372

o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos que não pode ser formal-
mente denunciado e que conta com um sistema de comunicações individuais
dirigidas ao Comitê que o monitora.
É pouco provável que a Rússia se submeta às decisões ou observe o
conteúdo de tais dispositivos. Entretanto, em um Estado onde os direitos e
garantias fundamentais desmoronam, não se pode ignorar, contra todas as
adversidades, uma pequena luz no fim do túnel.
Neste cenário sombrio em que se assevera o governo russo, resta difícil
vislumbrar a construção de um governo disposto a reconstruir uma Rússia que
respeite os direitos humanos, com a perspectiva de reintegração ao Conselho
da Europa. Na possibilidade de existência de uma reintegração, esta nova
Rússia terá que lidar com violações passadas e presentes dentro do país, mas

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


também teria de forjar novas relações com seus vizinhos.
Diante do compromisso do Conselho face à democracia, ao estado de
direito e aos direitos humanos na Europa, deve-se buscar formas criativas de
apoiar a sociedade civil russa no futuro, como, por exemplo, assegurando
que os defensores dos direitos humanos em risco iminente de prisão possam
buscar proteção nos Estados Parte.
A Corte em seu dever institucional de defesa dos direitos humanos deve
garantir que os casos relacionados à Rússia, em especial à invasão da Ucrânia,
sejam tratados rapidamente a fim de garantir a eficácia dos princípios e normas
fundamentais destes face ao quadro de graves violações perpetradas.
21. O DIREITO HUMANO À PAZ À
LUZ DA GUERRA NA UCRÂNIA
Johannes van Aggelen

1. Origens e fontes do Direito Humano à Paz

A paz entre as nações constituiu durante séculos um objeto final confuso


nas relações internacionais. A guerra em si foi considerada à luz do direito à
paz, embora devesse ser considerada um direito coletivo.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

A menção mais antiga do direito individual à paz pode ser encontrada


no preâmbulo da constituição japonesa, de 3 de novembro de 1946. O povo
japonês reconheceu que os povos do mundo têm o direito de viver em paz,
livres de medo e carência1.
A Ata Final da Conferência para a Segurança e a Cooperação na Europa,
adotada em 1 de agosto de 1975, refere-se à determinação de assegurar con-
dições em que as pessoas possam viver em paz verdadeira e duradoura, livres
de qualquer ameaça ou atentado contra a sua segurança. Considerou que o
respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais era um fator
essencial para a paz, a justiça e o bem-estar2.
Posteriormente, a Declaração Universal dos Direitos dos Povos, adotada
por uma conferência realizada por organizações não governamentais (ONGs)
em Argel, em 4 de julho de 1976, previa o direito dos povos à posse pacífica
de seu território no seu artigo 3º3.
Outra conferência de ONGs, a Conferência de Oslo sobre Direitos Huma-
nos e Paz, realizado em dezembro de 1978, afirmou que o direito à paz era um
dos direitos humanos fundamentais. Cada nação e cada ser humano possui um
direito inerente de viver em paz. Salientou igualmente que os direitos humanos
fundamentais e a paz são indivisíveis de tal forma que qualquer ameaça a um
constitui uma ameaça para o outro4.

1 Cf. TANAKA, Hideo; SMITH, Malcolm D.H. (ed.). The Japanese Legal System: Introductory Cases e Materials.
Tokyo: University of Tokyo Press, 1976.
2 HELSINKI FINAL ACT, 1 August 1975. Disponível em: https://www.osce.org/files/f/documents/5/c/39501.pdf.
Acesso em: 23 abr. 2023.
3 UNIVERSAL DECLARATION OF THE RIGHTS OF PEOPELS, 4 jul. 1976, Art. 3. Disponível em: http://
permanentpeoplestribunal.org/wp-content/uploads/2016/06/Carta-di-algeri-EN-2.pdf. Acesso em: 23 abr. 2023.
Veja também CASSESE, Antonio; JOUVES, Edmond. Pour un droit des peuples: essais sur la Déclaration
d´Alger. Paris: Berger-Levraurlt, 1978, p. 28.
4 FINAL DOCUMENT. Conference on Peace and Human Rights, Oslo, 20-22 December 1978, para. 1. Bulletin
of Peace Proposals, v. 10, n. 2, p. 224-228, 1979.
374

O Relatório Final da Reunião de Peritos da UNESCO de 1978, sobre


Direitos Humanos, Necessidades Humanas e o Estabelecimento de uma
Nova Ordem Econômica Internacional, sustentou que um dos direitos bási-
cos de cada indivíduo está incorporado no direito internacional, a saber, o
direito à paz5.
A primeira vez que a Comissão de Direitos Humanos da ONU se pro-
nunciou sobre a questão foi em 1976. Na sua Resolução nº 5 (XXXII), a
Comissão lembro do direito de cada pessoa a viver em condições de paz e
segurança e a gozarem plenamente dos direitos civis, políticos, econômicos,
sociais e culturais6. Isto é também uma indicação da interdependência da
paz e dos direitos humanos.
Em dezembro de 1978, a Assembleia Geral (AG) da ONU também se

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


pronunciou sobre o direito à paz, adotando a Declaração sobre a Preparação
das Sociedades para a Vida em Paz. Afirmou o direito inerente a viver em
paz de cada nação e de cada ser humano. A declaração foi o resultado de um
apelo feito durante a 10ª sessão extraordinária da Assembleia Geral, realizada
em junho de 1978, para fazer mais esforços coletivos para fortalecer a paz e
a segurança internacionais7.
Em novembro de 1981, a AG propôs considerar a possibilidade de decla-
rar um Ano Internacional da Paz na primeira oportunidade prática, levando
em conta a urgência e a natureza especial de tal observância. No ano seguinte,
proclamou 1986 o Ano Internacional da Paz8. Nessa ocasião recordou o
preâmbulo da Carta da ONU segundo a qual os povos das Nações Unidas
estão determinados a salvar as gerações seguintes do flagelo da guerra e a
praticar a tolerância e a viver juntos em paz.
A Declaração Relativa ao Direito dos Povos à Paz, datada de 12 de
novembro de 1984, anexa à Resolução 39/11 da AG, marca uma nova aborda-
gem. A paz foi considerada pela primeira vez um direito humano coletivo9.
Consequentemente, pode-se dizer que o passo foi dado de um ideal filosófico
abstrato para um princípio político-jurídico mais concreto. Declarou que a
preservação do direito dos povos à paz e a promoção da sua implementação
constituem uma obrigação fundamental de cada Estado. No entanto, continua
a ser muito difícil distinguir se o direito à paz é um direito individual e/ou um
direito coletivo. Esta resolução histórica foi aprovada por 92 votos a favor,
nenhum contra e 34 abstenções.

5 O´BRIAN, Peter. Rapport Final. Meeting of Experts on Human Rights, Human Needs and the Establishment
of a New International Economic Order. Paris, 29 dez., SS.78/CONF.630/12, SS.78/CONF.630/COL.2. Dis-
ponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000032647_fre. Acesso em: 23 abr. 2023.
6 UN COMMISSON OF HUMAN RIGHTS, E/CN.4/RES/5(XXXII), 27 fev. 1976, para. 1.
7 UN GENERAL ASSEMBLY, A/RES/33/73, 15 dez. 1978.
8 UN GENERAL ASSEMBRLY, A/RES/36/67, 30 nov. 1981; A/RES37/16, 16 nov. 1982.
9 UN GENERAL ASSEMBLY, A/Res39/11, 12 nov. 1984.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 375

Posteriormente, foram adotadas quatro resoluções relativas ao direito


à paz, a saber, a Resolução 40/11, de 11 de novembro de 1985, a Resolução
41/10, de 24 de outubro de 1986, a Resolução 43/22, de 11 de novembro de
1988, e a Resolução 45/14, de 7 de novembro de 1990. Entre 1991 e 2001,
nenhuma resolução específica sobre o direito à paz foi adotada pela AG. Isto
foi devido ao desaparecimento do bloco socialista no final da Guerra Fria,
que tinha sido o principal patrocinador da declaração de direito à paz de 1984.
No entanto, o Secretário-Geral da ONU, Boutrous-Ghali, durante esse
período, lançou a sua Agenda para a Paz e, três anos mais tarde, um suple-
mento. As agendas tratavam principalmente da diplomacia preventiva, da
pacificação e da manutenção da paz. O primeiro relatório do Secretário-Geral
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

à AG foi publicado na sequência de uma cúpula do Conselho de Segurança


em janeiro de 1992. O segundo relatório foi um documento de posição do
Secretário-Geral por ocasião do 50º aniversário da ONU10.
Entretanto, a AG proclamou o ano 2000 o Ano Internacional da Cultura
de Paz e o período 2001-2010 a Década Internacional da Cultura de Paz e da
Não Violência para as Crianças do Mundo11. A seguir, adotou a Declaração
e o Programa de Ação sobre uma Cultura de Paz12.
No artigo 1º, a Declaração afirmava que uma cultura de paz consiste em
um conjunto de valores, atitudes, tradições e modos de comportamento e modos
de vida baseados no respeito pela vida, no pleno respeito e promoção de todos
os direitos humanos, no compromisso com a solução pacífica de conflitos e nos
esforços para atender às necessidades de desenvolvimento e ambientais das
gerações presentes e futuras. Reconheceu também que a educação em todos os
níveis era um dos principais meios para construir uma cultura de paz.
O programa de ação, por sua vez, foi dividido em objetivos, estratégias
e principais atores, enfatizando que a ação para promover uma cultura de
paz através da educação deveria alcançar através da revisão dos currículos
educacionais, incluindo livros didáticos, tendo em mente a Declaração de
1995 e o Quadro Integrado de Ação sobre Educação para a Paz, Direitos
Humanos e Democracia.
A declaração enfatizou no parágrafo 16 a inadmissibilidade da aquisi-
ção de território pela guerra e a necessidade de trabalhar por uma paz justa e
duradoura em todas as partes do mundo.

10 UN GENERAL ASSEMBLY, U.N. Doc. A/47/277-S/24111, 17 jun. 1992; A/50/60-S/1995/1, 3 jan.1995; A/


RES/47/120 A, 18 dez. 1992; A/RES/47/120 B, 20 set. 1993.
11 UN GENERAL ASSEMBLY, UN. Doc. A/52/15, 20 nov. 1997; A/RES/53/25, 10 nov. 1998.
12 UN GENERAL ASSEMBLY, U.N. doc. A/RES/53/243. 6 oct. 1999. Uma fonte muito útil para entender as
ligações entre a cultura de paz e os direitos humanos pode ser encontrada em um livro de AGUIAR, Asdrubal.
Cultura de Paz e Direitos Humanos. Caracas, 2000.
376

O direito à paz foi reavivado na agenda da AG em 2002 com a adoção


da Resolução 57/216 sobre o direito dos povos à paz, datada de 18 de dezem-
bro de 2002, reafirmando todas as disposições da declaração de direito à paz
de 1984. Coincidindo no tempo com a adoção da declaração sobre o direito
ao desenvolvimento pela Assembleia Geral, em 4 de dezembro de 198613,
descobriu-se que havia uma ligação direta do direito à paz com o desenvol-
vimento. A AG adotou uma nova série de resoluções sobre a promoção da
paz como um requisito vital para o pleno gozo de todos os direitos humanos.
Nessas resoluções, a AG declarou que a lacuna cada vez maior entre os paí-
ses desenvolvidos e em desenvolvimento representa uma grande ameaça à
prosperidade, paz, segurança e estabilidade globais14.
O Conselho de Direitos Humanos (que substituiu a Comissão de Direi-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


tos Humanos em 2006) também tem estado ativo a esse respeito. Na sua
Resolução 11/4, o Conselho solicitou ao Alto Comissário das Nações Unidas
que convocasse um seminário sobre os direitos das pessoas à paz antes de
fevereiro de 201015.
No parágrafo 11 da resolução, o Conselho solicitou aos especialistas
que esclarecessem melhor o conteúdo e o alcance desse direito, propusessem
medidas que aumentassem a conscientização sobre a importância da reali-
zação desse direito e sugerissem ações concretas para mobilizar os Estados,
as organizações intergovernamentais e não governamentais na promoção do
direito das pessoas à paz.
A reunião de peritos, que teve lugar em dezembro de 2009, foi dividida
em quatro sessões:
A primeira sessão incidiu sobre as diferentes dimensões do direito dos
povos à paz. Observou-se que o direito à paz nunca havia sido formulado em
um tratado. Os especialistas também lembraram que a preservação do direito
à paz constitui uma obrigação fundamental de cada Estado. Além disso, havia
uma tendência a perceber o direito à paz principalmente a partir da perspectiva
dos direitos coletivos. No entanto, também era considerado um direito pessoal
anterior e indispensável a outros direitos.
A sessão 2 abordou o conteúdo do direito dos povos à paz. Observou-se
que não havia nenhuma referência explícita na Carta das Nações Unidas.
Um especialista comentou que o direito dos povos à paz tinha pelo menos
cinco novas dimensões. Primeiro, reivindicava a defesa do valor da vida, que
era o mais fundamental dos direitos humanos. Em segundo lugar, envolvia
o reconhecimento dos outros, a unidade da humanidade, superando todas as
formas de preconceito, seja devido à raça, classe, cor, nação, gênero, grau
13 UN GENERAL ASSEMBLY, A/RES 41/128, 4 dec. 1986.
14 UN GENERAL ASSEMBLY, A/RES/58/192, 22 dec. 2003; A/RES/60/163, 16 dec. 2005.
15 UN HUMAN RIGHTS COUNCIL, A/HRC/RES/11/4, 17 jun. 2009.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 377

de civilização e qualquer outra coisa que pudesse servir ao argumento para


apoiar e impor a superioridade dos povos e grupos sociais. Em terceiro lugar,
tratava-se de um recurso valioso contra a violência decorrente de conflitos
armados e de violência estrutural. Em quarto lugar, outros instrumentos de
alcance universal explicavam a base na qual a paz repousava como um direito
com aplicações individuais e coletivas. Por último, o direito à paz tinha uma
dimensão individual definida, que era apreciada através da Carta da ONU,
de 1945, da Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, e dos dois
Pactos Internacionais sobre Direitos Civis e Políticos e Econômicos, Sociais
e Culturais, ambos de 1966.
A terceira sessão foi dedicada ao direito dos povos à paz numa perspec-
tiva de direitos humanos. O agora falecido juiz Cançado Trindade lembrou
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

que em 1990, na Consulta Global sobre o direito ao desenvolvimento como


direito humano, abordou aspectos conceituais como o tema, a base jurídica
e o conteúdo desse direito, seus obstáculos, possíveis meios de implementa-
ção e sua relação com outros direitos humanos buscando o direito à paz. Ele
lembrou o projeto de declaração sobre os direitos humanos à paz celebrado
em 1997 pela UNESCO, mas observou que ainda havia a dificuldade com os
novos Estados que consideravam o direito à paz como um direito moral ou a
aspiração humana em vez de um direito legal.
Ele ainda se perguntou por que demorou tantos anos desde a declaração
da ONU sobre o direito dos povos à paz em 1984 e o aparente renascimento do
assunto pelo Conselho de Direitos Humanos. Outro especialista observou que,
uma vez que a Resolução 11/4 do Conselho de Direitos Humanos havia sido
adotada com a oposição de vários Estados, a maioria da mesma região geográ-
fica, assim indicando uma considerável falta de consenso no plano universal. Ele
observou que estar livre do medo era a expressão do direito das pessoas à paz.
O perito referiu-se igualmente ao Comentário Geral 14 do Comitê dos Direitos
Humanos sobre as armas nucleares e o direito à vida, em que o Comitê estabe-
leceu uma ligação clara entre a proibição da guerra e o direito à vida.
A última sessão tratou de medidas de sensibilização e abordagem para
promover o direito das pessoas à paz. O representante da UNESCO observou
que havia resistência ao reconhecimento do direito à paz como um direito legal,
principalmente por parte dos Estados ocidentais desenvolvidos e que a UNESCO
ainda não tinha uma posição específica sobre o direito humano à paz.
O especialista Dr. de Zayas referiu-se ao lema da OIT “se você deseja
a paz, cultive a justiça” e concluiu sugerindo que o Conselho de Direitos
Humanos crie um mandato de um relator especial ou especialista indepen-
dente sobre o direito à paz. Outro especialista observou a esse respeito que
o Conselho de Direitos Humanos estava dividido sobre o significado e o
alcance do direito à paz e até mesmo a existência desse direito emergente.
378

Ele sugeriu que o Conselho poderia iniciar a codificação do direito humano à


paz através do estabelecimento de um grupo de trabalho aberto à participação
de organizações da sociedade civil16.
Numa resolução sobre a Promoção do Direito à Paz, de 2012, o Conselho
decidiu criar um grupo de trabalho intergovernamental aberto com o mandato
de negociar progressivamente um projeto de declaração das Nações Unidas
sobre o direito à paz, com base no projeto apresentado pelo Comitê Consul-
tivo e sem prejuízo das perspectivas e propostas pertinentes do passado, do
presente e do futuro17.
O relatório do Comitê Consultivo do Conselho dos Direitos Humanos
contém um projeto de declaração com 14 artigos, que abrange as normas

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


relativas à paz e à segurança internacionais como normas fundamentais (ele-
mentos de paz negativa, ausência de violência) e inclui normas nos domínios
da educação para a paz, do desenvolvimento, do ambiente e das vítimas e dos
grupos vulneráveis como elementos de uma paz positiva18.
O artigo 1º contém os princípios do direito à paz. Este direito deve ser
implementado sem qualquer distinção ou discriminação por razões de raça,
descendência, origem nacional, étnica ou social, cor, gênero órgãos sexuais
de orientação, idade, idioma, religião de crença política ou outra opinião.
Os Estados e as organizações multilaterais são os principais destinatários
das obrigações que decorrem do direito à paz. O direito à paz é universal,
individual, indivisível, interdependente e inter-relacionado. Todos os Estados,
de acordo com os princípios do Conselho das Nações Unidas, utilizarão meios
pacíficos para resolver qualquer disputa em que sejam partes.
O artigo 13º sobre as obrigações e a aplicação convidou o Conselho dos
Direitos Humanos a estabelecer um procedimento especial para controlar o
respeito e a aplicação do direito de paz e de informar os órgãos competentes
das Nações Unidas.
No artigo 14º, disposições finais, o projeto de declaração afirma que as
disposições desta declaração devem ser aplicadas sem prejuízo de qualquer
outra disposição mais propícia à realização efetiva do direito humano à paz
formulada de acordo com a legislação interna dos Estados decorrente do
direito internacional aplicável.
Todos os Estados devem implementar de boa-fé as disposições da pre-
sente declaração, adotando medidas legislativas, judiciais, administrativas,
educacionais ou outras medidas relevantes necessárias para promover sua
efetiva realização.
16 UN HUMAN RIGHTS COUNCIL, A/HRC14/38, 17 mar. 2010.
17 UN HUMAN RIGHTS COUNCIL, A/HRC/RES/20/15, 17 jul. 2012.
18 UN HUMAN RIGHTS COUNCIL, A/HRC/20/31, 16 abr. 2012.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 379

Em julho de 2016, o Conselho dos Direitos Humanos adotou a Decla-


ração sobre o Direito à Paz19. Os cinco artigos refletem, infelizmente, uma
versão diluída do projeto recomendado pelo Comitê Consultivo do Conselho
dos Direitos Humanos. Pouco depois, em dezembro do mesmo ano, a AG,
com base no projeto preparado pelo Conselho de Direitos Humanos, adotou
uma Declaração muito profunda sobre o Direito à Paz.
A AG recorda uma série de resoluções marcantes na história das Nações
Unidas baseadas nos propósitos da Carta da ONU, reconhecendo que a paz
não é apenas a ausência de conflitos, mas também requer um processo parti-
cipativo positivo e dinâmico, onde o diálogo é encorajado e os conflitos são
resolvidos no espírito de compreensão mútua e cooperação e o desenvolvimento
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

econômico social é assegurado. Considerou, igualmente, que o respeito pela


diversidade das culturas, a tolerância, o diálogo e a cooperação, num clima de
confiança e compreensão mútuas, figuram entre as melhores garantias de paz
e segurança internacionais.
No artigo 1º, a declaração afirma que todos tem o direito de desfrutar da paz,
de modo que todos os direitos humanos sejam promovidos e protegidos e o desen-
volvimento seja plenamente realizado e, no artigo 4º, convoca os Estados das
Nações Unidas e as agências especializadas a tomarem as medidas sustentáveis
apropriadas para implementar a declaração e, em particular, pela UNESCO20.
Em 2021, a AG reiterou que o objetivo da implementação efetiva do
programa de ação sobre uma cultura de paz era fortalecer ainda mais o movi-
mento global pela cultura da paz, após a observância da década internacional
para a cultura da paz e da não violência para as crianças do mundo21.
Após a adoção pela AG da declaração em dezembro de 2016, o Conse-
lho de Direitos Humanos, em uma resolução subsequente, decidiu convocar
no período entre a 37ª e a 38ª sessão do Conselho de Direitos Humanos uma
reunião de meio dia sobre o direito à paz para discutir a implementação da
Declaração do Direito à Paz22.
O workshop interseccional teve lugar no dia 14 de junho de 2018. Foram
feitas recomendações, sobre possíveis meios para construir a paz dentro e
entre as sociedades, semelhantes ao artigo 2º da Declaração do Direito à Paz
sobre medidas sustentáveis de acordo com o artigo 3º da declaração e sobre a
educação para a paz de acordo com o artigo 4º. Sugeriu-se que os titulares de
mandatos de procedimentos especiais do Conselho elaborassem nos respec-
tivos mandatos a noção multidimensional de paz. Os participantes também

19 UN HUMAN RIGHTS COUNCIL, A/HRC/RES/32/28, 1 jul. 2016.


20 UN GENERAL ASSEMBLY, A/RES/71/189, 19 dez. 2016.
21 UN GENERAL ASSEMBLY, A/RES/76/68, 9 dez. 2021.
22 UN HUMAN RIGHTS COUNCIL, HRC/RES/35/4, 11 jul. 2017.
380

reiteraram que o Conselho, a fim de implementar a declaração, deve nomear


um relator especial sobre o direito humano à paz.
Nas considerações finais, foi enfatizado que a comunidade internacional
deve empregar o máximo de esforços e criatividade para chegar a um consenso
sobre o título e o artigo 1º da Declaração do Direito à Paz. Outra recomen-
dação reiterou que o Conselho de Direitos Humanos deveria criar um fórum
semestral para a educação para a paz e os direitos humanos, proporcionando
espaço para o diálogo e a interação entre diferentes entidades do sistema das
Nações Unidas e outras partes interessadas, incluindo a sociedade civil e as
organizações de base23.

2. Fundamento do Direito à Paz e significado da paz

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


O direito à paz inspira-se no compromisso dos fundadores da ONU
de salvar as gerações seguintes do flagelo da guerra e de reafirmar a fé nos
direitos humanos fundamentais24.
No entanto, todas as referências na Carta à paz e à violação da paz consi-
deram que o direito é de natureza coletiva. Portanto, a ligação entre o direito à
paz e o reforço das Nações Unidas é extremamente estreita. Simultaneamente, o
direito à paz está ligado ao direito humano individual à vida. Em um comentário
geral inicial sobre o direito à vida, o Comitê de Direitos Humanos considerou
que, além da proibição da ameaça ou do uso da força já consagrada no documento
da ONU, os Estados também têm o dever supremo de prevenir guerras e outros
atos de violência em massa que causem perdas arbitrárias de vidas25.
A paz, neste contexto, não se limita à ausência de guerra e de conflito
armado, a chamada paz negativa, mas inclui a paz positiva que visa a criação
de condições de equidade e justiça social que impeçam o recurso à violência.
Consequentemente, o conceito de direito à paz apresenta ligações estreitas com
o direito dos direitos humanos, com os direitos civis e políticos, mas também,
e principalmente, com dois direitos sociais: econômicos e culturais.

3. Natureza do direito: coletivo e individual

A existência do direito à paz é proclamada em documentos internacionais,


mas nunca foi consagrada em um tratado universal26, nem reconhecida como

23 UN GENERAL ASSEMBLY, A/HRC/39/31, 31 jul. 2018.


24 Considerando os primeiros dois parágrafos do Preâmbulo da Carta da ONU, de 1945.
25 HUMAN RIGHTS COMMITTEE. General Comment n. 6: Article 6 (Right to Life), 30 abr. 1982. Disponível
em: https://www.refworld.org/docid/45388400a.html. Acesso em: 27 abr. 2023.
26 Sobre o seu reconhecimento na Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Direitos dos Povos, de 1981,
veja abaixo.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 381

um direito legal. Este fato deve-se, sobretudo, à alegada imprecisão do seu


conteúdo e à sua falta de justiciabilidade. No entanto, esta última fraqueza
também foi sublinhada para os direitos econômicos, sociais e culturais, mas
isso não impede a comunidade internacional de considerá-los como verdadei-
ros direitos humanos. De fato, a justiciabilidade é uma maneira de monitorar a
implementação efetiva dos direitos humanos, juntamente com meios políticos
e outros meios institucionais. Não é uma condição de sua existência como
um direito legal. Por conseguinte, a existência de um direito à paz não pode
ser posta em causa apenas por este motivo. No entanto, o direito à paz, como
explicado acima, permuta toda a gama de direitos humanos.
A principal característica do direito à paz é uma dupla ação sobre os
cursos e meios. Procura eliminar, em primeiro lugar, as causas profundas da
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

guerra (disputas, pobreza, acesso aos recursos violações dos direitos humanos)
e, em segundo lugar, os meios materiais de fomento da guerra, tanto a fim de
estabelecer condições para uma paz verdadeira e duradoura.
O aspecto coletivo do direito à paz diz respeito aos Estados e aos seus
órgãos. Os Estados são obrigados a respeitar o princípio da autodeterminação,
independência e integridade territorial e a abster-se de guerras agressivas e
do uso ilegal da força.
Estas obrigações foram apoiadas nos relatórios apresentados pelos Estados
ao Secretário Geral das Nações Unidas sobre as medidas que tinham adotado
para implementar a declaração de direito à paz de 1984 anteriormente refe-
rida. Nestes relatórios, os Estados comprometeram-se a confiar nos princípios
consagrados na declaração e comunicaram medidas para a implementação do
direito. De um modo geral, os Estados informaram sobre as suas disposições
constitucionais em matéria de direitos humanos, assinatura de acordos relativos
ao controle de armas e ao desarmamento. Alguns Estados também insistiram
na busca da paz através do desenvolvimento social e econômico.
O direito à paz consagrado no artigo 23º da Carta Africana dos Direitos
Humanos e dos Direitos dos Povos, de 1981, refere-se, além disso, ao dever
dos Estados de assegurar que o seu território não seja utilizado para atividades
subversivas ou terroristas contra outro Estado.
O direito específico das mulheres à paz, proclamado no artigo 10º do Pro-
tocolo da Carta Africana, refere-se ao direito de participar em várias atividades
relacionadas à paz e solicita aos Estados que tomem as medidas adequadas
para assegurar essa participação, nomeadamente na educação para a gestão
e resolução de conflitos para a paz.
O direito individual inclui o direito à evolução e ao ambiente pacífico e o
direito à vida, discutido anteriormente. Além disso, o direito dos indivíduos à
paz inclui o direito de participar em associações de paz, o direito à educação
382

para a paz, o direito a ter uma voz significativa no processo de tomada de


decisão sobre o uso da força pelos Estados e o direito de obter informações
sobre a sua política externa relacionada à paz.
O fato de os indivíduos serem portadores desse direito não o transforma
automaticamente justiçável. De fato, por sua natureza abrangente e objetiva, esse
direito seria considerado não justiçável pela maioria dos tribunais do mundo.
Não há nenhum número relevante de casos legais embasando esse fato.
O direito humano à paz não só fornece direitos aos indivíduos, mas tam-
bém lhes impõe deveres. No que diz respeito às obrigações dos indivíduos
decorrentes do seu direito à paz, é possível referir-se à criminalização da agres-
são consagrada na Carta do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, de

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


1945. A comunidade internacional, através da AG das Nações Unidas, reafir-
mou este documento.
Em suma, o direito à paz é ao mesmo tempo um direito coletivo e
individual, um direito dos povos e dos Estados. Não decorre disso que terá
o mesmo conteúdo e atingirá caráter justificável em todas essas áreas. No
nível interestatal, refere-se principalmente à Carta das Nações Unidas e a
seu caráter erga omnes.

4. Iniciativas pela sociedade civil

4.1 A Declaração de Luarca sobre o Direito à Paz

Durante os anos 90, a UNESCO liderou tentativas louváveis de codificar


a nível internacional um instrumento legislativo que consagrasse o direito à paz
como um direito humano, enfatizando a dimensão individual desse direito.
A este respeito, várias propostas de declaração foram adotadas em reuniões
de peritos pelo então Diretor-geral da UNESCO, Federico Mayor, em Las Pal-
mas, em fevereiro de 1997, bem como em Oslo, em junho de 1997.
Perante um dos redatores de Las Palmas, vários Estados europeus e lati-
no-americanos, em especial a Suíça e o Brasil, mostraram-se relutantes em
debater na UNESCO um assunto que, na sua opinião, é da competência da AG
ou mesmo do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Além disso, muitos
Estados se opuseram ao possível conteúdo legal do direito à paz.
Finalmente, o diretor-geral da UNESCO, em vista das objeções dos Estados,
propôs um texto que serviria de base instrumental para a Declaração e o Pro-
grama de Ação sobre uma Cultura de Paz. Muitos especialistas consideram que
a UNESCO não era o fórum adequado para discutir a elaboração de um direito
humano à paz, uma vez que a maioria dos delegados não estava suficientemente
familiarizada com assuntos relacionados aos direitos humanos.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 383

4.1.1 Antecedentes da Declaração de Luarca

Como discutido anteriormente, pode-se defender que o direito à paz é


um direito humano e, como tal, devem ser definitivamente codificados por
órgãos competentes das Nações Unidas. Para o efeito, era necessário que fosse
realizada uma codificação privada por um especialista em direitos humanos
em estreita parceria com a sociedade civil.
A Sociedade Espanhola para o Avanço do Direito Internacional dos Direi-
tos Humanos e a UNESCO, com o apoio do governo basco, organizaram
um primeiro seminário com especialistas sobre os direitos humanos à paz,
que foi realizado em dezembro de 2005. Nessa ocasião foi criado um comitê
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

de peritos independentes para elaborar a Declaração Universal dos Direitos


Humanos à Paz, que deveria incluir o mecanismo processual para monitorar
a sua aplicação. Em 2006, realizaram-se seis seminários de peritos em comu-
nidades autônomas com o objetivo de promover o acordo final assinado em
2005. No final de outubro de 2006, um comitê de especialistas apresentou a
versão final em Luarca, que ficou conhecida como a Declaração de Luarca
sobre o Direito Humano à Paz27.

4.1.2 Principais características da Declaração de Luarca

A declaração é composta por um preâmbulo composto por 21 pará-


grafos, 18 artigos organizados em duas partes e três disposições finais.
A primeira parte diz respeito ao conteúdo do direito humano à paz e é
composta por duas secções: seção A, dos Elementos do Direito Humano à
paz, consiste em 15 artigos; e seção B, das obrigações, no artigo 16. Final-
mente, a Parte 2 é dedicada à implementação da declaração e compreende
os artigos 17 e 18.
O preâmbulo da declaração começa por recordar os instrumentos das Nações
Unidas que proclamam o valor universal da paz e que constituem o fundamento
de qualquer tentativa de definir a paz como um direito humano.

4.1.3 Conteúdo do Direito Humano à Paz

A declaração define o direito humano à paz de acordo com os direitos


e obrigações que proclama. No que diz respeito ao primeiro, contém uma
longa lista de direitos individuais e coletivos. Parece que esses direitos já
foram incluídos nos instrumentos existentes e, de fato, muitos analistas
27 LUARCA DECLARTION ON THE HUMAN RIGHT TO PEACE. Disponível em: https://www.concernedhisto-
rians.org/content_files/file/to/271.pdf. Acesso em: 23 abr. 2023.
384

descrevem o direito humano à paz como um “direito de síntese”. No entanto,


nem todos os direitos contidos na declaração aparecem em outros instru-
mentos, expressa ou implicitamente. Os artigos que poderíamos considerar
já qualificados em outros instrumentos são incluídos aqui a partir de uma
nova perspectiva coletiva, a da necessidade de alcançá-los para eliminar a
violência e avançar para a paz, tendo em vista a situação atual e os desafios
que o mundo enfrenta hoje.
A declaração atribui grande importância ao direito à educação sobre
a paz e os direitos humanos. O artigo 2º reflete o espírito dos numerosos
instrumentos e textos de natureza diferente elaborados nas Nações Unidas e
nos organismos internacionais regionais, que afirmam os fortes laços entre a

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


paz e a educação e exortam os Estados a tomarem medidas para encorajar o
estabelecimento de uma cultura de paz, base sobre a qual o direito à educação
e os direitos humanos devem ser resolvidos.
O artigo 3º da declaração diz respeito ao direito à segurança humana,
termo que a Resolução da AG sobre a Segurança Humana28 salientou ser
claramente diferente da segurança nacional, que faz do ser humano o centro
da preocupação em encontrar soluções políticas e institucionais integra-
das para os problemas gerados por conflitos violentos e privações sociais
e econômicas.
Os demais artigos recapitulam artigos contidos em outros instrumentos
de direitos humanos, com exceção do artigo 6, que contém o direito de resistir
e se opor à barbárie, bem como o artigo 15 que contém exigências de paz e
de informação verdadeira.
O artigo 16 contém obrigações para a realização do direito humano
à paz. A realização efetiva e concreta dos direitos humanos à paz implica
necessariamente deveres e obrigações para com os Estados, as organizações
internacionais, a sociedade civil e a pessoa humana. Sob a atual ordem inter-
nacional, a responsabilidade fundamental de preservar a paz e proteger a paz
dos direitos humanos cabe aos Estados e também à ONU como um centro
que harmoniza os esforços conjuntos para que todas as nações cumpram os
propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas.
O artigo 17º prevê a criação de um grupo de trabalho sobre o direito
humano à paz, composto por 10 membros eleitos a título individual. Espe-
cialistas que seriam eleitos por quatro anos e poderiam ser reeleitos ape-
nas uma vez.
O artigo 18º trata das funções do grupo de trabalho. A principal fun-
ção do grupo de trabalho é promover a observância e a implementação da
28 UN GENERAL ASSEMBLY, A/RES/66/290, 25 out. 2012.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 385

declaração. No exercício do seu mandato, dispunha, entre outros, das seguin-


tes competências:

● Promover a observância e a consciência mundiais do direito


humano à paz, agindo com discrição, objetividade e indepen-
dência, adotando uma abordagem integral que leve em conta a
universalidade, a interdependência e a indivisibilidade dos direi-
tos humanos e a necessidade primordial de alcançar a justiça
social internacional;
● Juntos, analisar e responder eficazmente a qualquer informação
relevante dos Estados, das organizações internacionais e dos seus
órgãos, bem como da sociedade civil e dos indivíduos;
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

● Sempre que apropriado, recomendações e apelos aos Estados mem-


bros das Nações Unidas para que adotem medidas apropriadas para
a efetiva recuperação do direito humano à paz, em conformidade
com a primeira parte da declaração;
● Apresentar um relatório anual de suas atividades à AG, ao Conselho
de Segurança e ao Conselho de Direitos Humanos, no qual incluirá
recomendações e conclusões que considerem necessárias para a pro-
moção e proteção efetivas do direito humano à paz, dando especial
atenção aos conflitos armados;
● Preparar um projeto de convenção internacional que inclua o direito
humano à paz, bem como mecanismos de supervisão e monitora-
mento de sua efetiva implementação;
● Chamar a atenção do procurador da Tribunal Penal Internacional ou
de outro tribunal internacional competente para obter informações
confiáveis sobre qualquer situação em que se afigure que foram
cometidos crimes da competência dos tribunais;
● O grupo de trabalho terá sua sede em Nova York e realizará três
sessões ordinárias por ano, bem como qualquer sessão extraordi-
nária necessária para ser determinada de acordo com seus métodos
de trabalho. O grupo de trabalho terá um secretariado permanente
que será assegurado pelas Nações Unidas;
● Em suas disposições finais, todos os estados são obrigados a imple-
mentar as disposições da declaração, adotando as medidas legisla-
tivas, judiciais, administrativas, educacionais ou outras necessárias
para promover a realização efetiva.

Infelizmente, todos os esforços empreendidos pelos participantes na


preparação da declaração permaneceram sem sucesso e a declaração perma-
neceu letra morta.
386

4.2 A Declaração de Santiago sobre o Direito Humano à Paz

Entre 2006 e 2010, realizaram-se mais de 50 conferências e seminários


regionais de peritos sobre o direito humano à paz, culminando com a Declaração
de Santiago, adotada durante o Fórum sobre Educação para a Paz29.
Na sua introdução, referiu-se ao pedido do Conselho dos Direitos Huma-
nos ao seu comitê consultivo no sentido de elaborar um projeto de declaração
sobre o direito dos povos à paz. O comitê consultivo criou um grupo de reda-
ção de quatro membros em agosto de 2010, que apresentou o seu projeto ao
Conselho em abril de 2012, tal como acima referido. A introdução também
se referia à declaração de Luarca sobre o direito humano à paz.
No seu preâmbulo, a declaração afirma que a paz é um valor universal e a

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


raison d’être das Nações Unidas. Observou também que o compromisso com a
paz é um princípio geral do direito internacional em conformidade com o artigo
38 (1) (c) do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, de 1945, tal como foi
reconhecido pela consulta internacional de peritos sobre o direito humano à
paz, em representação de 117 Estados, realizada em Paris, em março de 1998.
O preâmbulo afirma igualmente que a paz deve basear-se na justiça e, por
conseguinte, todas as vítimas têm direito ao reconhecimento do seu estatuto
de vítimas sem discriminação e a uma reparação efetiva, tal como previsto
na Resolução 60/147 da AG, de 16 de dezembro de 2005, que proclama os
princípios e orientações básicos sobre o direito a um recurso e a uma repara-
ção para as vítimas de graves violações do direito internacional dos direitos
humanos e de violações graves do direito internacional humanitário.
Finalmente, o preâmbulo refere-se à Agenda de Haia para a Paz e a Justiça
para o século XXI, que emergiu da conferência de Haia Apelo à Paz de 199930.
A declaração é constituída por artigos sobre direitos e deveres.
O artigo 1º trata dos titulares dos direitos e deveres. Os indivíduos, os gru-
pos, os povos e toda a humanidade têm o direito inalienável a uma paz justa,
sustentável e duradoura. Em virtude desse direito, são titulares dos direitos e
liberdades proclamados na presente declaração. Os Estados, individualmente
em conjunto ou como parte de organizações multilaterais, são os principais
destinatários do direito humano à paz.
O artigo 2º, sobre o direito à educação e à socialização para a paz, considera
a educação e a socialização para a paz uma condição sine qua non para desa-
prender a guerra e construir identidades desembaraçadas da violência.
O artigo 3º, sobre o direito à segurança humana e a viver num ambiente
seguro e saudável, afirma que os indivíduos têm direito à segurança humana,
29 SANTIAGO DECLARATION ON THE HUMAN RIGHT TO PEACE, 9 dez. 2010. Disponível em: http://www.
aedidh.org/sites/default/files/Santiago-Declaration-en.pdf. Acesso em: 28 abr. 2023.
30 UN GENERAL ASSEMBLY, A/RES/54/98, 20 maio 1998.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 387

incluindo a liberdade do medo e da carência, sendo ambos elementos de


paz positiva.
Os artigos 4º a 8º tratam sucessivamente do direito ao desenvolvimento e a
um ambiente sustentável, do direito à objeção à consciência, do direito de resistir
e de se opor à opressão, do direito ao desarmamento e do direito à liberdade de
pensamento, de opinião, de expressão, de consciência e de religião.
O artigo 9º refere-se ao direito ao estatuto de refugiado. Este artigo inse-
re-se no âmbito da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951,
e, em particular, no artigo 31º. Parece-me que este artigo é desnecessário no
âmbito de uma declaração sobre o direito à paz.
O artigo 10º, sobre o direito de emigrar e de participar, concede a todas
as pessoas o direito à liberdade de circulação e de emigrar, se o seu direito à
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

segurança humana ou a viver num ambiente seguro e saudável estiver seria-


mente ameaçado.
O artigo 11º trata dos direitos de todas as vítimas. Todas as vítimas de
violações dos direitos humanos têm direito, sem discriminação, ao reconheci-
mento do seu estatuto e a um recurso eficaz para as proteger contra as violações
dos direitos humanos, em particular do direito humano à paz.
O artigo 12º trata dos grupos em situação de vulnerabilidade e de
sua proteção.
O artigo 13º considera as obrigações para a realização do direito humano
à paz. Para ser eficaz e para a realização prática do direito humano à paz,
implica necessariamente deveres e obrigações para os Estados, as organiza-
ções internacionais, a sociedade civil, os povos, os indivíduos, as corporações,
os meios de comunicação social e outros intervenientes na sociedade e, em
geral, para toda a comunidade internacional. A última parte da declaração
trata da sua aplicação.
O artigo 14º estabeleceu o grupo de trabalho sobre o direito à paz, com-
posto por 10 membros selecionados em sua capacidade individual.
O artigo 15º enumera as funções do grupo de trabalho. A sua principal
característica consiste em preparar para a Assembleia Geral um projeto de
Convenção Internacional sobre o direito humano à paz, com um mecanismo de
controle, entre outros, do cumprimento pela aplicação plena e efetiva por parte
dos Estados. Sugere igualmente que se apresente ao procurador do Tribunal
Penal Internacional informações confiáveis sobre qualquer situação em que se
afigure que foram cometidos crimes da competência do tribunal.
O grupo de trabalho teria sua sede em Nova York e realizaria três sessões
ordinárias a cada ano, bem como quaisquer outras sessões extraordinárias a
serem determinadas de acordo com seus métodos de trabalho.
Em suas disposições finais, todos os Estados são obrigados a implemen-
tar de boa-fé as disposições da declaração, adotando medidas legislativas,
388

judiciais, administrativas, educacionais ou outras medidas relevantes neces-


sárias para promover sua efetiva realização.

5. Conclusões

Como autor de muitos artigos sobre direito internacional e direito dos


direitos humanos, foi uma tarefa muito difícil concluir este artigo. Todas as
fontes que relatam as violações flagrantes dos direitos humanos internacionais
que ocorrem na Ucrânia, incluindo a Comissão Internacional de Inquérito sobre
a Ucrânia, estabelecida pela Resolução 49/1 do Conselho de Direitos Humanos
das Nações Unidas, referem-se às vítimas de um conflito internacional. No
entanto, nenhuma menção é feita no relatório a um direito individual humano à

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


paz. Mesmo o relatório do Secretário-Geral da ONU “Nossa Agenda Comum”,
adotado em setembro de 2021, referindo-se a uma nova agenda para a paz, na
minha opinião, permanecerá uma ilusão31.

31 UNITED NATIONS. Our Common Agenda. Report of the Secretary-General, A/75/982, §§ 88 e 89.
22. APONTAMENTOS SOBRE PADRÕES
E TENDÊNCIAS DE PROTEÇÃO ÀS
PESSOAS REFUGIADAS NO CONTEXTO
DA INVASÃO DA UCRÂNIA:
boas práticas e aspectos negativos
Liliana Lyra Jubilut
Flávia Oliveira Ribeiro
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

1. Introdução

A invasão da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro de 2022, foi precedida,


em março de 2014, pela anexação, por meio de referendo – cuja legalidade é
questionada por países ocidentais1 – da Crimeia, península que integrava o
território ucraniano2. A atual agressão resultou em um conflito armado que
provocou o deslocamento massivo de pessoas, seja em movimentos internos,
que alcançaram a marca de oito milhões de pessoas deslocadas em território
ucraniano3, seja em fluxos internacionais.
Mais de oito milhões de pessoas fugindo da invasão na Ucrânia buscaram
territórios seguros na Europa4. Trata-se do maior deslocamento de pessoas
nesse continente desde o final da Segunda Guerra Mundial5. Além disso, o
deslocamento de pessoas vindas da Ucrânia foi um dos mais velozes da história,
uma vez que mais de três milhões de pessoas fugiram somente no primeiro
mês de conflito6. Em menos de uma semana, o ingresso de pessoas em outros
1 BBC. Por que a invasão da Crimeia em 2014 é relevante agora. BBC News Brasil, 1 mar. 2022. Disponível
em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60570951. Acesso em: 5 nov. 2022.
2 Ibid.
3 OIM. Mais de 8 milhões de deslocados internos na Ucrânia enfrentam necessidades crescentes. OIM, 12
maio 2022. Disponível em: https://brazil.iom.int/pt-br/news/mais-de-8-milhoes-de-deslocados-internos-na-
-ucrania-enfrentam-necessidades-crescentes#:~:text=Genebra%20%2D%20O%20n%C3%BAmero%20
de%20pessoas,publicados%20em%2016%20de%20mar%C3%A7o.. Acesso em: 5 nov. 2022.
4 UNHCR. Operational Data Portal: Ukraine Refugee Situation. UNHCR, 18 abr. 2023. Disponível em: https://
data.unhcr.org/en/situations/ukraine#_ga=2.233209432.717867669.1666988111-1709781320.1646495682.
Acesso em: 23 abr. 2023.
5 ACNUR. ACNUR atualiza dados sobre pessoas refugiadas na Ucrânia para refletir movimentos recentes.
ACNUR, 10 jun. 2022. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/2022/06/10/acnur-atualiza-dados-
-sobre-pessoas-refugiadas-na-ucrania-para-refletir-movimentos-recentes/. Acesso em: 28 out. 2022.
6 MANTOVANI, Flávia. Ucranianos são os refugiados mais aceitos no mundo, indica pesquisa.
Folha de S.Paulo, 6 jul. 2022. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022/07/
390

países da Europa vindas da Ucrânia foi dez vezes maior do que o recorde de
entrada do fluxo de pessoas deslocadas da Síria em 20157.
O acolhimento a essas pessoas passa pelo atendimento primário de neces-
sidades básicas, mas também por proteção jurídica, ou seja, a combinação
de necessidades e direitos, necessária para a assistência humanitária8. Em
análise preliminar, e nesses dois níveis, percebe-se que o tratamento dado às
pessoas deslocadas da Ucrânia, que tecnicamente podem ser consideradas
refugiadas, está sendo diferente ao visto em outros fluxos migratórios9. A
solidariedade com que as pessoas refugiadas da Ucrânia têm sido recepcio-
nadas vem produzindo diversas tendências de boas práticas de acolhimento,
as quais poderiam, e deveriam, serem replicadas em outras situações. Em
paralelo, os aspectos negativos identificados nesse processo precisam ser

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


analisados para que sejam corrigidos nesse deslocamento e sua repetição seja
evitada em novos fluxos.
É nesse contexto que o presente texto pretende contribuir, apontando tais
padrões e tendências na proteção, a fim de permitir análises sobre os mesmos,
a partir dos referenciais do Direito Internacional dos Refugiados e do Direito
Internacional dos Direitos Humanos. Para tanto, inicia-se tratando-se do ingresso
nos países anfitriões, ou seja, a busca por territórios seguros; na sequência,
trata-se da regularização migratória, seja pelo reconhecimento da condição de
refugiado10 ou por outras formas de regularização, analisando se podem ser
enquadradas como formas de proteção complementar; e, por fim, aborda-se a
integração das pessoas da Ucrânia nas sociedades de acolhida.

2. Acesso a territórios seguros

Ao examinar os deslocamentos de pessoas é necessário que haja um


local de saída e um local de entrada11 – e, possivelmente, um local de
trânsito. Os movimentos que no passado eram mais livres foram sendo

ucranianos-sao-os-refugiados-mais-aceitos-no-mundo-indica-pesquisa.shtml. Acesso em: 3 nov. 2022.


7 KINGSLEY, Patrick. Ukraine War Sets Off Europe’s Fastest Migration in Decades. The New York Times, 1
mar. 2022. Disponível em: https://www.nytimes.com/2022/03/01/world/europe/ukraine-war-migration.html.
Acesso em: 3 nov. 2022.
8 JUBILUT. Liliana L. A reforma humanitária na ONU e a necessidade de uma abordagem baseada em
direitos para a assistência humanitária internacional. Carta Internacional – USP, v. 3, n.1, fevereiro 2008.
p. 38-41. p. 39.
9 ANSA. UNHCR chief calls naval blockades and pushbacks ‘racism’. InfoMigrants, 6 set. 2022. Disponível
em: https://www.infomigrants.net/en/post/43113/unhcr-chief-calls-naval-blockades-and-pushbacks-racis-
m?preview=1662455733677. Acesso em: 28 out. 2022.
10 Esse texto adota uma perspectiva de gênero, e por isso, apenas utiliza a palavra refugiado(s) quando se
refere ao termo técnico-jurídico.
11 MEZZANOTTI, Gabriela. A Racialização dos Direitos Humanos: uma nota sobre discriminação nas políticas
migratórias europeias. In: GONÇALVES, Alcindo; ALMEIDA, Daniel F. e; REI, Fernando; JUBILUT, Liliana L.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 391

limitados12, por barreiras burocráticas (como fronteiras e passaportes) e


escolhas políticas (como restrições a quem é permitido o ingresso e questões
de segurança nacional).
Nesse contexto, o acesso seguro a territórios seguros é um tema corrente,
tal como no Pacto Global para Migração Segura, Ordenada e Regular (2018),
no qual salvar vidas e prevenir mortes de migrantes foram assumidas como
responsabilidades13, assim como o comprometimento para facilitar os movi-
mentos transfronteiriços seguros e regulares de pessoas14. No mesmo sentido,
o Pacto Global para Refugiados (2018) prevê o estabelecimento de áreas de
recepção e trânsito seguras, observando idade, gênero, deficiências e outras
áreas específicas de vulnerabilidade15. Em geral, existem vários desafios para
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

migrantes, tais como uso de coiotes; meios não seguros de locomoção, como
os barcos no Mar Mediterrâneo; desaparecimentos; entradas irregulares etc.
Contudo, no caso da Ucrânia isso parece estar minimizado.
Na busca por acesso a territórios seguros, as pessoas deslocadas da
Ucrânia têm encontrado uma Europa que parece estar mais de portas abertas
do que para outros fluxos. Isso se exemplifica na não criminalização do fluxo
migratório da Ucrânia e na inexistência de centros de detenção; políticas que
derivam do fato de que não se foi posto em pauta se esse movimento repre-
sentaria uma ameaça à segurança dos países de acolhida16. Ao contrário,
a recepção se deu por meio de fronteiras abertas, sem penalização a quem
busca proteção17. Nesse sentido, o Alto Comissariado das Nações Unidas
para Refugiados (ACNUR) classificou como extraordinária a solidariedade
dos países que têm acolhido pessoas da Ucrânia18.

(org.). Reflexões sobre Direito Ambiental e Direito Internacional. Santos: Editora Universitária Leopoldianum,
p. 70-74, 2022. p. 72-73.
12 HAYTER, Teresa. Open Borders: The Case Against Immigration Controls. In: GUPTA, Suman; OMONIYI,
Tope (eds.). The Cultures of Economic Migration International Perspectives. London/New York: Ashgate, p.
17-26, 2007. p. 17-18.
13 Global Compact for Safe, Orderly and Regular Migration, § 24. Disponível em: https://refugeesmigrants.
un.org/sites/default/files/180713_agreed_outcome_global_compact_for_migration.pdf. Acesso em:
30 nov. 2022.
14 Ibid., § 27.
15 Global Compact on Refugees, § 54. Disponível em: https://www.unhcr.org/5c658aed4. Acesso em:
30 nov. 2022.
16 AZEREDO, Laís; JAROCHINSKI SILVA, João Carlos. A Crise Humanitária na Ucrânia e a Resposta aos
Refugiados e Refugiadas: o que determina o rechaço e a acolhida? GEDES – Grupo de Estudos de Defesa
e Segurança Internacional, 25 abr. 2022. Disponível em: https://gedes-unesp.org/a-crise-humanitaria-na-
-ucrania-e-a-resposta-aos-refugiados-e-refugiadas-o-que-determina-o-rechaco-e-a-acolhida/. Acesso em:
15 nov. 2022.
17 Ibid.
18 ACNUR. ACNUR atualiza dados sobre pessoas refugiadas na Ucrânia para refletir movimen-
tos recentes. ACNUR, 10 jun. 2022. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/2022/06/10/
392

Além disso, notam-se diversas iniciativas, programas, e/ou projetos


para recepcionar o fluxo migratório vindo da Ucrânia. Alguns deles adaptam
ações já existentes no cenário global das migrações, mas com facilitações
específicas. Esse é o caso dos programas Homes for Ukraine Sponsorship
Scheme e o Ukraine Family Scheme do Reino Unido que se inspiram na
prática de sponsors (patrocinadores) para reassentamento e a adaptam para a
situação ucraniana. Reassentamento por programas de patrocínio privado
(resettlement with private sponsorship) permitem que indivíduos, grupos
de indivíduos ou organizações indiquem determinadas pessoas refugiadas
para entrar e permanecer nos países desses patrocinadores19: identificando
e selecionando as pessoas refugiadas, intervindo diretamente na entrada, e

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


apoiando o acolhimento e a integração20.
No que se refere ao acesso seguro ao território britânico, o governo
inseriu, em março de 2022, o Appendix Ukraine nas Immigration Rules,
que inclui o Homes for Ukraine Sponsorship Scheme e o Ukraine Family
Scheme 21-22. O primeiro consiste no acolhimento no Reino Unido em
casas de pessoas patrocinadoras23. No Homes for Ukraine, patrocinadores
sem antecedentes criminais podem se candidatar para disponibilizarem um
quarto ou uma propriedade vaga por um período mínimo de seis meses
para as pessoas da Ucrânia que fogem do conflito24, sem a necessidade
de laços familiares com britânicos25. Em contrapartida, o governo pagará

acnur-atualiza-dados-sobre-pessoas-refugiadas-na-ucrania-para-refletir-movimentos-recentes/. Acesso
em: 28 out. 2022.
19 UNHCR. Private Sponsorship Pathways. UNHCR, 30 nov. 2022. Disponível em: https://www.unhcr.org/
private-sponsorship-pathways.html#:~:text=Private%20sponsorship%20programmes%20provide%20indi-
viduals,displaced%20persons%20in%20their%20country. Acesso em: 30 nov. 2022.
20 Ibid.
21 GOV.UK. Immigration Rules Appendix Ukraine Scheme. GOV.UK, 18 mar. 2022. Disponível em: https://www.gov.
uk/guidance/immigration-rules/immigration-rules-appendix-ukraine-scheme. Acesso em: 29 out. 2022.
22 Foi permitido que as pessoas protegidas pelo Ukraine Extension Scheme (abordado no tópico 2.2 sobre
proteção complementar) – aplicável às pessoas de nacionalidade ucraniana que já estavam no Reino Unido
antes do início da invasão – apadrinhassem sua própria família, trazendo-os para o território seguro, por
meio do patrocínio do governo do País de Gales e da Escócia, ao invés de particulares. CLARK, Olivia. More
labels, less protection: A comparison of the Afghan and Ukraine protection schemes. Refugee Law Initiative
Blog – School of Advanced Study University of London, 12 set. 2022. Disponível em: https://rli.blogs.sas.
ac.uk/2022/09/12/more-labels-less-protection-a-comparison-of-the-afghan-and-ukraine-protection-schemes/.
Acesso em: 19 out. 2022.
23 Ibid.
24 GOV.UK. Homes for Ukraine: record your interest. GOV.UK, 28 out. 2022. Disponível em: https://www.gov.
uk/register-interest-homes-ukraine. Acesso em: 28 out. 2022.
25 MACASKILL, Andrew. Britânicos receberão 350 libras por mês para abrigar refugiados ucranianos. CNN
Brasil, 13 mar. 2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/britanicos-receberao-350-li-
bras-por-mes-para-abrigar-refugiados-ucranianos/. Acesso em: 28 out. 2022.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 393

350 libras (pouco mais de dois mil reais26) mensais para as famílias que
acolherem essas pessoas27. As pessoas solicitantes de refúgio receberão
permissão de estadia por até 36 meses; devem ser nacionais da Ucrânia ou
devem ser da família imediata de um nacional da Ucrânia; e poderão ter
acesso a fundos públicos, trabalho e estudo28. Já o segundo programa – o
Ukraine Family Scheme – permite que alguém da família, que pode ou não
ser nacional do Reino Unido, e que esteja em território britânico, patrocine
um parente nacional da Ucrânia29. Após o ingresso no país, esse programa
permite a regularização migratória por até 36 meses que possibilita o acesso
a fundos públicos, trabalho e estudo30.
Ou seja, às pessoas da Ucrânia o governo britânico assegurou entrada
legal, estadia legal por 36 meses, local para morar, apoio à família acolhedora,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

e acesso a direitos e serviços. Tal esquema de acolhimento não foi disponibi-


lizado, por exemplo, às pessoas vindas do Afeganistão31.
Além disso, verificou-se pressão por celeridade na recepção ao deslo-
camento da Ucrânia, com o governo do ex-primeiro-ministro Boris Johnson
enfrentando críticas32, por insistir na manutenção da exigência de forneci-
mento de dados biométricos e de autorizações de entrada, antes da chegada
no Reino Unido33-34.
Assim como acontece com os patrocínios privados em geral35, o pro-
grama Homes for Ukraine potencializa situações de risco de violência sexual
e tráfico para mulheres e meninas vindas da Ucrânia36, nesse caso, até em
função da proximidade física, enquanto naquele as relações de poder podem ter
26 INVESTING.COM. GBP/BRL – Libra Esterlina Real Brasileiro. Investing.com, 8 dez. 2022. Disponível em:
https://br.investing.com/currencies/gbp-brl-converter. Acesso em: 8 dez. 2022.
27 MACASKILL, A. Op cit. (nota 25).
28 GOV.UK. Immigration Rules Appendix Ukraine Scheme. GOV.UK, 18 mar. 2022. Disponível em: https://www.gov.
uk/guidance/immigration-rules/immigration-rules-appendix-ukraine-scheme. Acesso em: 29 out. 2022.
29 Ibid.
30 Ibid.
31 CLARK, Olivia. More labels, less protection: A comparison of the Afghan and Ukraine protection schemes.
Refugee Law Initiative Blog – School of Advanced Study University of London, 12 set. 2022. Disponível em:
https://rli.blogs.sas.ac.uk/2022/09/12/more-labels-less-protection-a-comparison-of-the-afghan-and-ukraine-
-protection-schemes/. Acesso em: 19 out. 2022.
32 MACASKILL, A. Op. cit. (nota 25).
33 Ibid.
34 GOV.UK. Immigration Rules Appendix Ukraine Scheme. GOV.UK, 18 mar. 2022. Disponível em: https://www.gov.
uk/guidance/immigration-rules/immigration-rules-appendix-ukraine-scheme. Acesso em: 29 out. 2022.
35 Por exemplo, o Canada’s Private Sponsorship of Refugees (PSR) que alerta sobre assédio sexual por
parte dos patrocinadores. Cf. REFUGEE SPONSORSHIP TRAINING PROGRAM. Your Responsibilities.
Disponível em: https://www.rstp.ca/en/refugee-sponsorship/groups-of-five/5-your-responsibilities/. Acesso
em: 1 dez. 2022; REFUGEE SPONSORSHIP TRAINING PROGRAM. Sexual Harassment. Disponível em:
https://www.rstp.ca/en/infosheet/sexual-harassment-2/. Acesso em: 1 dez. 2022.
36 REIS, Chen. Ukrainian female refugees are fleeing a war, but in some cases more violence awaits them
where they find shelter. The Conversation, 28 mar. 2022. Disponível em: https://theconversation.com/
394

papel relevante37. Embora existam averiguações sobre antecedentes criminais


dos patrocinadores e pelo menos uma visita à propriedade, especialistas denun-
ciam que o projeto pode colocar as pessoas refugiadas em perigo38. Casos de
violência sexual contra pessoas refugiadas da Ucrânia foram denunciados39.
O governo estadunidense, por sua vez, criou a iniciativa Uniting for
Ukraine para recepcionar 100 mil pessoas que fogem da Ucrânia devido à
invasão russa40, sendo que os Estados Unidos (EUA) receberam, ao longo
do ano de 2021, e ainda em números inferiores a seus padrões tradicionais,
somente 13.700 pessoas refugiadas reassentadas41. O programa exige prova
de patrocínio por alguém dos EUA capaz de fornecer apoio financeiro, no
período de até dois anos em que poderá haver a permanência no país42.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Após análise caso a caso, será autorizado o ingresso nos EUA, para então
possibilitar uma autorização de trabalho43.
Esse projeto idealizado para recepção de pessoas da Ucrânia foi replicado
nos EUA para pessoas da Venezuela, com algumas alterações (com maior exi-
gência nos requisitos para elegibilidade ao programa, como não ter cruzado
irregularmente a fronteira dos EUA, México ou Panamá após a data do anúncio
desse programa; não ser residente permanente nem ter dupla nacionalidade de
qualquer país que não seja a Venezuela; e não possuir status de pessoa refugiada
em qualquer país44), e visando acolher 24 mil pessoas45, ou seja, menos de
um quarto do número de pessoas vindas da Ucrânia que se pretende acolher.
No que diz respeito ao acesso a território seguro sem a necessidade
de aprovação prévia pelo país de acolhida, destaca-se o princípio do non-
-refoulement (não devolução) que, de acordo com o Direito Internacional
ukrainian-female-refugees-are-fleeing-a-war-but-in-some-cases-more-violence-awaits-them-where-they-fin-
d-shelter-179754. Acesso em: 5 nov. 2022.
37 REFUGEE SPONSORSHIP TRAINING PROGRAM. Sexual Harassment. Op cit. (nota 35).
38 CRAWFORD, Angus; SMITH, Tony. Homes for Ukraine: Housing scheme called danger to refugees. BBC News,
4 maio 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/news/uk-61311046. Acesso em: 5 nov. 2022.
39 REIS, Chen. Op cit. (nota 36).
40 US DEPARTMENT OF HOMELAND SECURITY. United for Ukraine. US Department of Homeland Security,
26 out. 2022. Disponível em: https://www.dhs.gov/ukraine. Acesso em: 26 out. 2022.
41 UNHCR. Global Trends Report 2021. Geneva, 2022. p. 39. Disponível em: https://www.unhcr.org/62a9d1494/
global-trends-report-2021. Acesso em: 12 out. 2022.
42 Ibid.
43 BBC. EE.UU. abre una vía legal para recibir a 24.000 venezolanos y devolverá a México a los que crucen la
frontera de forma irregular. BBC News Mundo, 13 out. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/mundo/
noticias-america-latina-63238148. Acesso em: 20 out. 2022.
44 US DEPARTMENT OF HOMELAND SECURITY. Process for Venezuelans. US Department of Homeland
Security, 12 out. 2022. Disponível em: https://www.uscis.gov/venezuela. Acesso em: 26 out. 2022.
45 US DEPARTMENT OF HOMELAND SECURITY. DHS Announces New Migration Enforcement Process
for Venezuelans. US Department of Homeland Security, 12 out. 2022. Disponível em: https://www.dhs.
gov/news/2022/10/12/dhs-announces-new-migration-enforcement-process-venezuelans. Acesso em:
26 out. 2022.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 395

dos Refugiados e o Direito Internacional dos Direitos Humanos, consiste na


proibição da devolução em situações em que a vida, segurança ou liberdade
estejam ameaçadas46. Na prática, a dinamicidade dos movimentos migratórios
adicionaram complexidade à aplicação do non-refoulement, principalmente,
em razão dos fluxos migratórios mistos e do fechamento de fronteiras, o que
provoca o impedimento de entrada47.
A peculiaridade da aplicação do non-refoulement no contexto do desloca-
mento de pessoas da Ucrânia também deve ser notada. Se por um lado, o relatório
do jornal The Guardian expôs que os Estados-membros da União Europeia (UE)
usaram táticas ilegais para expulsar sistematicamente, por meio da Frontex, pelo
menos 40 mil pessoas solicitantes de refúgio das fronteiras da Europa durante o
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ano de 202048, e que com o início da pandemia de COVID-19, a regularidade


e a brutalidade das práticas de repressão, incluindo o abandono marítimo49,
aumentaram50; por outro lado, não há relatos de pessoas da Ucrânia sendo
barradas ou retornadas forçosamente ao território do qual fugiram.
Segundo o chefe do ACNUR, Filippo Grandi, a política migratória da
UE aplicável a migrantes em geral – a qual ele descreve como “restrictive
legislation, barbed wire, naval blockades, and pushbacks”51-52 – é tam-
bém racista53. O caso da Ucrânia reforça tal posicionamento, uma vez que,
diferentemente do que se falava por muitos anos, sobre como “a Europa está
cheia”, a opinião pública apoiou prontamente a decisão da UE em conceder
proteção temporária às pessoas nesse deslocamento54.
Esse posicionamento, todavia, não foi homogêneo para todas as pessoas des-
locadas a partir da invasão russa da Ucrânia55. Nesse sentido, um aspecto negativo
na busca por acesso a territórios seguros nesse cenário foi a discriminação por

46 JUBILUT, Liliana. O Direito Internacional dos Refugiados e sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro.
São Paulo: Método, 2007. p. 17.
47 Ibid, p. 17.
48 TONDO, Lorenzo. Revealed: 2,000 refugee deaths linked to illegal EU pushbacks. The Guardian, 5 maio
2021. Disponível em: https://www.theguardian.com/global-development/2021/may/05/revealed-2000-refu-
gee-deaths-linked-to-eu-pushbacks. Acesso em: 28 out. 2022.
49 RAHMAN, Abdul. Europe’s treatment of refugees is racist and murderous. Peoples Dispatch, 7 set. 2022.
Disponível em: https://peoplesdispatch.org/2022/09/07/europes-treatment-of-refugees-is-racist-and-murde-
rous/. Acesso em: 20 out. 2022.
50 TONDO, L. Op cit. (nota 48).
51 Tradução nossa: legislação restritiva, arame farpado, bloqueios navais e retrocessos.
52 No mesmo sentido, está a conclusão do relatório do jornal The Guardian que considerou que a morte de mais
de duas mil pessoas refugiadas, em 2020, eram decorrentes de políticas da UE. TONDO, L. Op cit. (nota 48).
53 ANSA. UNHCR chief calls naval blockades and pushbacks ‘racism’. InfoMigrants, 6 set. 2022. Disponível em:
https://www.infomigrants.net/en/post/43113/unhcr-chief-calls-naval-blockades-and-pushbacks-racism?pre-
view=1662455733677. Acesso em: 28 out. 2022.
54 Ibid.
55 MEZZANOTTI, G. Op cit. (nota 11), p. 71.
396

nacionalidade, em que pessoas de vários países que viviam na Ucrânia enfren-


taram tratamento desigual e atrasos ao tentarem fugir do conflito56-57.
O governo ucraniano, segundo dados de 2020, estimava em 80 mil o
número de estudantes internacionais no país, sendo a maioria de nacionais da
Índia, do Marrocos, do Azerbaijão, do Turcomenistão, da Nigéria58, do Egito
e de Gana59. Um padrão de bloqueio ou atraso no embarque dessas pessoas
em ônibus e trens foi denunciado60, e houve relatos de que guardas estavam
priorizando nacionais da Ucrânia61.
Em março de 2022, nove organizações de direitos humanos ucranianas
clamaram às autoridades que combatessem a discriminação pessoal e insti-
tucional, a xenofobia e/ou racismo, bem como pediram para que os países
vizinhos à Ucrânia facilitassem a saída de todas as pessoas fugindo do con-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


flito62. No dia seguinte, as autoridades ucranianas declararam ter ciência
dessa situação e apontaram que tomariam medidas para garantir que todas as
pessoas pudessem, em condições de igualdade, deixar o país em segurança63.
Uma linha de assistência direta a estudantes internacionais que desejassem
deixar a Ucrânia foi então estabelecida pelo governo ucraniano64.
Do outro lado da disputa da invasão da Ucrânia, centenas de milhares
de nacionais da Rússia também iniciariam um movimento migratório:
principalmente homens e membros de suas famílias, começaram a buscar ter-
ritórios vizinhos, a partir da mobilização pelo Kremlin de 300 mil reservistas
do exército russo, em setembro de 20265, na primeira mobilização russa de
reservistas desde a Segunda Guerra Mundial66, e subsequente ao sucesso da
contraofensiva ucraniana em Kharkiv (Carcóvia)67.

56 HUMAN RIGHTS WATCH. Ucrânia: tratamento desigual para estrangeiros que tentam fugir. Human Rights Watch,
6 mar. 2022. Disponível em: https://www.hrw.org/pt/news/2022/03/06/381330. Acesso em: 27 out. 2022.
57 Aqui não se incluem homens entre 18 e 60 anos que foram proibidos de deixar a Ucrânia, em razão de uma
mobilização militar geral. Ibid.; QIBLAWI, Tamara; ALVARDO, Caroll. Homens ucranianos de 18 a 60 anos
estão proibidos de deixar o país. CNN Brasil, 24 fev. 2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/inter-
nacional/homens-ucranianos-de-18-a-60-anos-estao-proibidos-de-deixar-o-pais/. Acesso em: 28 out. 2022.
58 Ibid.
59 MWAKIDEU, Chrispin. Ukraine war: African students scramble to flee. DW, 28 fev. 2022. Disponível em: https://
www.dw.com/en/african-students-scramble-to-flee-fighting-in-ukraine/a-60947768. Acesso em: 20 out. 2022.
60 HUMAN RIGHTS WATCH. Op cit. (nota 56).
61 MWAKIDEU, C. Op cit. (nota 59).
62 HUMAN RIGHTS WATCH. Op cit. (nota 56).
63 Ibid.
64 Ibid.
65 BBC. Guerra na Ucrânia: Putin convoca 300 mil reservistas após derrotas. BBC News Brasil, 21 set. 2022.
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62980096. Acesso em: 19 out. 2022.
66 JONES, Martin. Ukraine war: why Russians fleeing conscription should be treated as refugees. The Conversation,
29 set. 2022. Disponível em: https://theconversation.com/ukraine-war-why-russians-fleeing-conscription-shoul-
d-be-treated-as-refugees-191450?mc_cid=1236eae074&mc_eid=84714ec347. Acesso em: 20 out. 2022.
67 CARVALHO, Tiago. Russos em fuga através da última fronteira aberta do espaço Schengen.
Público, 16 out. 2022. Disponível em: https://www.publico.pt/2022/10/16/mundo/reportagem/
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 397

A mudança nos movimentos migratórios de majoritariamente mulheres e


crianças ucranianas para homens evitando o recrutamento e suas famílias tem
afetado a opinião pública ocidenta68. Nesse novo contexto, a dificuldade inicial
do movimento migratório de saída da Rússia está em acessar territórios. Os
voos entre a Rússia e os países da UE foram impedidos em fevereiro de 2022,
possibilitando apenas a movimentação ferroviária e rodoviária69. Além disso, os
cinco Estados fronteiriços integrantes da UE – Finlândia, Estônia, Letônia (os
três países limítrofes ao território russo unificado), Lituânia e Polônia (ambos
limítrofes à província de Kaliningrado) – dificultam o ingresso por terra70.
Tais práticas podem ser relacionadas com o fato de que, no início de
setembro, o Conselho da UE suspendeu o acordo de 2007 de facilitação para
a entrada de nacionais da Rússia nos países da Organização para férias e com-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

pras71. Dois dias antes da convocação dos reservistas, os três Países Bálticos
e a Polônia passaram a impedir a entrada de turistas russos72. Após mais de
17 mil nacionais da Rússia cruzarem a fronteira finlandesa em uma semana
da convocação dos reservistas73, a Finlândia passou a impedir o ingresso de
pessoas russas que tenham visto de turismo europeu74.
Além disso, verifica-se a construção de barreiras físicas nas frontei-
ras. A proposta da guarda de fronteira finlandesa para a construção de uma
cerca com concertinas e câmaras de vigilância em partes da fronteira com
a Rússia (em uma extensão de 1.340 quilômetros75 que representa 20% da
fronteira76), com a pretensão de conter a migração irregular, recebeu o apoio
de todos os partidos políticos, em outubro de 202277. Destaca-se que a cerca
estará nas áreas identificadas como de maior potencial de migração em grande
russos-fuga-atraves-ultima-fronteira-aberta-espaco-schengen-2023996?utm_source=copy_paste. Acesso
em: 20 out. 2022.
68 Ibid.
69 SYTAS, Andrius; KAURANEN, Anne; OSMOND, Ed. Países bálticos e Polônia proíbem a entrada de turistas
russos. CNN Brasil, 19 set. 2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/paises-balticos-
-e-polonia-proibem-a-entrada-de-turistas-russos/. Acesso em: 26 out. 2022.
70 HILLE, Peter; WITTING, Volker. Can Germany grant asylum to Russian deserters? DW, 23 set. 2022.
Disponível em: https://www.dw.com/en/ukraine-war-germany-wants-to-grant-asylum-to-russian-deserter-
s/a-63220796. Acesso em: 19 out. 2022.
71 CARVALHO, Tiago. Russos em fuga através da última fronteira aberta do espaço Schengen. Público, 16
out. 2022. Disponível em: https://www.publico.pt/2022/10/16/mundo/reportagem/russos-fuga-atraves-ulti-
ma-fronteira-aberta-espaco-schengen-2023996?utm_source=copy_paste. Acesso em: 20 out. 2022.
72 SYTAS, A.; KAURANEN, A.; OSMOND, E. Op cit. (nota 69).
73 CARVALHO, T. Op cit. (nota 71).
74 G1. Finlândia anuncia que fechará fronteira para turistas russos. G1 Globo, 29 set. 2022. Disponível em:
https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/09/29/finlandia-anuncia-que-fechara-fronteira-para-turistas-russos.
ghtml. Acesso em: 26 out. 2022.
75 EL DIARIO. Finlandia acuerda levantar una valla con concertinas en su frontera con Rusia. El Diario, 19
out. 2022. Disponível em: https://www.eldiario.es/desalambre/finlandia-acuerda-levantar-valla-concertinas-
-frontera-rusia_1_9636763.html. Acesso em: 20 out. 2022.
76 Ibid.
77 Ibid.
398

escala de origem russa78. O governo finlandês declarou sua preocupação de


implementação pelo Kremlin de uma migração em massa como uma forma
de guerra híbrida79, tal qual Belarus foi acusada, pela Polônia, Letônia e
Lituânia, em 202180. A previsão para a totalidade do projeto ser concluído é
de quatro anos e seu custo será de centenas de milhões de euros81.

3. Proteção

3.1 Acolhida e recursos

A partir do momento que as pessoas refugiadas ingressam em território

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


seguro, elas precisam ter acesso a nova gama de direitos e serviços, para que,
assim, tenham a assistência humanitária completa. Tratam-se de ações que
respondem às demandas de necessidades básicas das pessoas recém-chegadas
e também no médio prazo. Ao que parece, esses cenários têm sido diferentes
no caso do deslocamento das pessoas da Ucrânia.
No que se refere ao acolhimento de pessoas fugindo do conflito na Ucrâ-
nia, até setembro de 2022, cerca de 234 mil pessoas utilizaram os serviços de
proteção e apoio, em sete países, fornecidos por Blue Dot Hubs estabelecidos
pelo ACNUR e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (o UNICEF)82.
Os Blue Dot Hubs são espaços seguros equipados para fornecer informações,
aconselhamento, apoio psicossocial e à saúde mental, assistência jurídica e
serviços de proteção para pessoas refugiadas, com foco específico em crianças
desacompanhadas; pessoas com deficiência ou necessidades médicas; pessoas
idosas; pessoas que possam ter sido traficadas; sobreviventes de violência; e
pessoas da comunidade LGBTQIA+83.

78 HENLEY, Jon; WINTOUR, Patrick. Finland’s main parties back plans to build Russia border fence. The
Guardian, 19 out. 2022. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2022/oct/19/finland-main-par-
ties-back-plans-build-russia-border-fence?CMP=Share_AndroidApp_Other. Acesso em: 20 out. 2022.
79 Ibid.
80 A acusação era de que o presidente de Belarus, Alexander Lukashenko, estaria utilizando da migração em
massa de pessoas vindas principalmente do Iraque como forma de pressionar a UE a suspender sanções
impostas como consequência da repressão aos oponentes do governo após as eleições de 2020, ampla-
mente vistas como fraudulentas. HENLEY, Jon; ROTH, Andrew; RANKIN, Jennifer. Latvia and Lithuania
act to counter migrants crossing Belarus border. The Guardian, 10 ago. 2021. Disponível em: https://www.
theguardian.com/world/2021/aug/10/latvia-and-lithuania-act-to-counter-migrants-crossing-belarus-border.
Acesso em: 27 out. 2022.
81 HENLEY, J.; WINTOUR, P. Op cit. (nota 78).
82 UNHCR. UNHCR, UNICEF establish dozens of support hubs in countries hosting Ukrainian refugees.
UNHCR, 21 set. 2022. Disponível em: https://rli.blogs.sas.ac.uk/2022/09/12/more-labels-less-protection-a-
-comparison-of-the-afghan-and-ukraine-protection-schemes/. Acesso em: 19 out. 2022.
83 Ibid.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 399

Blue Dot Hubs foram estabelecidos logo após o início do conflito na


Ucrânia nos principais pontos de passagem ao longo das rotas de trânsito e
em áreas urbanas de países vizinhos que recepcionaram pessoas refugiadas,
incluindo em estações de trem, pontos de fronteira, centros de inscrição de
assistência em dinheiro, centros de acomodação e centros comunitários84.
No auge desse deslocamento, um total de 36 Blue Dot Hubs foram postos
em funcionamento na Bulgária, Hungria, Itália, Moldávia, Polônia, Romênia
e Eslováquia, como forma complementar às medidas governamentais e de
outros parceiros no apoio às pessoas refugiadas85.
Como muitas pessoas vindas da Ucrânia continuam chegando ou perma-
necem em movimento e dependem de informações precisas para decidir sobre
para onde viajar, onde se estabelecer e como acessar serviços, o ACNUR e o
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

UNICEF também lançaram um Digital Blue Dot86, uma plataforma online


que complementa os Blue Dots Hubs físicos, fornecendo acesso a informações
atualizadas, incluindo direitos, principais serviços e como acessá-los, e como
se manter em segurança87.
Quanto à existência de abrigos para as pessoas refugiadas da Ucrâ-
nia, a Holanda, por exemplo, sofria com a falta de vagas para acolhimento,
com superlotação88 e demora de procedimentos89, antes mesmo deste novo
deslocamento90, por isso, em uma solução emergencial, o governo holan-
dês negociou com uma empresa de navios de cruzeiros que pelo menos três
embarcações fossem ancoradas em portos do país e servissem de abrigos
para três mil pessoas91. Isso exemplifica o fato de que a vontade política e
habilidade na recepção de pessoas da Ucrânia foi maior do que em relação a
outros movimentos migratórios92.
A resposta humanitária ao deslocamento vindo da Ucrânia também esta-
beleceu novos padrões de financiamento e de solidariedade pública e polí-
tia93. A solidariedade foi evidenciada pelo apoio financeiro arrecadado pelo
84 Ibid.
85 Ibid.
86 Acessível pelo site www.bluedothub.org.
87 UNHCR. UNHCR, UNICEF. Op cit. (nota 82).
88 Em agosto de 2022, no abrigo de Ter Apel, por exemplo, mais de 700 pessoas acamparam do lado de fora
do abrigo, sem acesso a banheiros ou comida e água suficientes. HOFFMAN, Iris. Ter Apel: Refugee Crisis
or Xenophobia? The Organization for World Peace, 29 set. 2022. Disponível em: https://theowp.org/ter-ape-
l-refugee-crisis-or-xenophobia/?mc_cid=1236eae074&mc_eid=84714ec347. Acesso em: 20 out. 2022.
89 Ibid.
90 BARRETO, Vitória. O criticado plano da Holanda de abrigar refugiados em cruzeiros. Veja, 22 jul. 2022.
Disponível em: https://veja.abril.com.br/mundo/o-criticado-plano-da-holanda-de-abrigar-refugiados-em-cru-
zeiros/. Acesso em: 4 nov. 2022.
91 Ibid.
92 HOFFMAN, I. Op. cit. (nota 88).
93 HYDE, Dominique. The humanitarian response to the Ukraine crisis set new standards. For the Congolese,
we are falling far short. The Globe and Mail, 26 ago. 2022. Disponível em: https://www.theglobeandmail.
400

ACNUR94, que após vinte dias do início da invasão, contabilizou um valor de


doações dez vezes maior do que o arrecadado durante todo o ano de 2021 para
emergências humanitárias na África, América Latina ou Ásia95.
Há, assim, uma solidariedade seletiva: em 2021, o ACNUR reuniu
somente 49% dos valores totais que havia requerido; para situações específicas
contudo os valores são ainda menores, por exemplo, para a da Venezuela, foi
obtido 40% do esperado; para a do Haiti, 27%; para a da República Demo-
crática do Congo, 4%96. Este contexto de seletividade se soma às dificulda-
des enfrentadas por cortes no financiamento de atividades humanitárias em
migrações, principalmente, por consequências socioeconômicas da pandemia
de covid-1997.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


3.2 Reconhecimento do status de refugiado ou proteções complementares

A regularização migratória ganha especial relevância em um cenário de


tendência de burocratização da entrada de pessoas em território seguro98. No
contexto de migração humanitária apenas o refúgio aparece como instituto
reconhecido universalmente e também com regime próprio. O refúgio é um
instituto jurídico regulado no âmbito internacional pela Convenção relativa ao
Status dos Refugiados de 1951 (Convenção de 51), revisada pelo Protocolo
relativo ao Status de Refugiado de 1967 (Protocolo de 1967). Essa proteção
garante a condição de refugiado às pessoas que tendo bem-fundado temor de
serem perseguidas por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social
ou opiniões políticas, se encontrem fora do país de origem e que não possam
ou, em virtude desse temor, não queiram valer-se da proteção desse país99.
Ou seja, a princípio, um conflito armado ou uma guerra não se enquadram
tecnicamente como fatos geradores da condição de refúgio100; no entanto, na

com/opinion/article-the-humanitarian-response-to-the-ukraine-crisis-set-new-standards-for/. Acesso em:


19 out. 2022.
94 CHADE, Jamil. Carta ao G7: por que a vida de um haitiano não vale a de um ucraniano? UOL, 16 out. 2022.
Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/10/16/carta-ao-g7-por-que-a-vida-de-
-um-haitiano-nao-vale-a-de-um-ucraniano.htm. Acesso em: 20 out. 2022.
95 CHADE, Jamil. Ucrânia gera onda de doações, enquanto milhões são abandonados pelo mundo. UOL, 15
mar. 2022. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/03/15/ucrania-gera-onda-
-de-doacoes-enquanto-milhoes-sao-abandonados-pelo-mundo.htm. Acesso em: 28 out. 2022.
96 Ibid.
97 Ibid.
98 HAYTER, T. Op cit. (nota 12), p. 17-18.
99 Art. 1A. ACNUR. Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951). ACNUR, 28 jul. 1951. Disponível em:
https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refu-
giados.pdf. Acesso em: 3 nov. 2022.
100 UNHCR. Handbook on Procedures and Criteria for Determining Refugee Status under the 1951 Convention
and the 1967 Protocol relating to the Status of Refugees. UNHCR, fev. 2019. Disponível em: https://www.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 401

prática, conflitos são causas de refúgio, tendo em vista que muitas vezes tais
situações têm como causas matrizes (root causes) a raça, etnia, religião, polí-
tica, o gênero ou grupo social101, ou ainda que têm como seu reflexo impactos
em direitos humanos que podem ser entendidos como perseguição.
Diante dessa relação prática entre conflitos armados e refúgio, o ACNUR
emitiu diretrizes, em dezembro de 2016, sobre as solicitações de reconheci-
mento do status de refugiado relacionadas a situações de conflito armado e
violência, em que fundamentou que ameaças à vida ou à liberdade e outras
violações graves dos direitos humanos podem constituir perseguição para fins
da definição da Convenção de 51102-103.
Neste documento, o ACNUR também destacou que o contexto de uma
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

situação de conflito armado pode agravar os efeitos do dano à pessoa, ense-


jando que esses equivalham à perseguição104, a qual, por exemplo, poderia
ser externada como limpeza étnica, tortura ou outras formas de tratamento
degradante, estupro ou outras violências sexuais, recrutamento forçado, pri-
sões arbitrárias105.
Em contextos de conflitos armados, condutas que podem parecer indis-
criminadas – sem que o perseguidor procure atingir determinadas pessoas –
na realidade, podem ser dirigidas a comunidades inteiras106. As situações de
violência armada podem ter uma variedade de motivos, envolvendo dimensões
étnicas, religiosas, sociais e políticas, com as partes envolvidas operando
segundo linhas étnicas, religiosas ou sociais107.
Além disso, na perspectiva regional, os Estados Africanos escolheram
expandir a definição internacional de refugiado108 por meio da Conven-
ção relativa aos Aspectos Específicos dos Refugiados Africanos, de 1969,
incluindo critérios de agressão, ocupação externa, dominação estrangeira, ou

unhcr.org/publications/legal/5ddfcdc47/handbook-procedures-criteria-determining-refugee-status-under-
-1951-convention.html. Acesso em: 10 dez. 2022. para. 164.
101 UNHCR. A Guide to International Refugee Protection and Building State Asylum Systems – Handbook for
Parliamentarians n. 27, 2017. UNHCR, 2017. Disponível em: https://www.unhcr.org/3d4aba564.pdf. Acesso
em: 10 dez. 2022. p. 135.
102 UNHCR. UNHCR Guidelines on International Protection n. 12 on claims for refugee status related to situations
of armed conflict and violence under Article 1A(2) of the 1951 Convention and/or 1967 Protocol relating
to the Status of Refugees and the regional refugee definitions, § 11. UNHCR, 2 dez. 2016. Disponível em:
https://www.unhcr.org/58359afe7. Acesso em: 3 nov. 2022.
103 No que poderia ser entendido como uma internacionalização do já expresso em 1984 na Declaração de
Cartagena sobre Refugiados.
104 Ibid., § 12.
105 Ibid., § 13.
106 Ibid., § 33.
107 Ibid., § 35.
108 JUBILUT, L.L. Op cit. (nota 8), p. 44.
402

acontecimentos que perturbem gravemente a ordem pública em uma parte ou


na totalidade do Estado de origem109. No que diz respeito à América Latina,
foi a partir das diretrizes da Declaração de Cartagena sobre Refugiados, de
1984, que os países incorporaram a ampliação do conceito de refugiado às
pessoas cuja “vida, segurança ou liberdade tenham sido ameaçadas por vio-
lência generalizada, a agressão estrangeira, os conflitos internos, a violação
maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham perturbado
gravemente a ordem pública”110.
Nesse sentido, em países africanos e latino-americanos, as pessoas que
fogem de conflitos armados em geral, o que inclui o caso da Ucrânia, podem
solicitar a condição de refugiado. Contudo, o acolhimento das pessoas vindas

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


da Ucrânia por meio do instituto do refúgio não necessariamente prevaleceu
como a solução adotada. Exemplo de tal fato foi a postura do Brasil que optou
por forma de proteção complementar, pela utilização de vistos humanitários
expedidos para as pessoas da Ucrânia ingressarem em território brasileiro111
que permite, após a entrada no país, a regularização do status migratório pela
solicitação de autorização de residência para fins de acolhida humanitária,
com prazo de duração de dois anos112.
A portaria em que essa forma complementar de regularização migratória
foi regulamentada prevê explicitamente que a obtenção da autorização de resi-
dência por razões humanitárias para pessoas da Ucrânia implica na desistência
de solicitação de reconhecimento da condição de refugiado (artigo 9)113. Até
março de 2022, apenas 3 pessoas da Ucrânia haviam solicitado o reconheci-
mento de sua condição de refugiado ao Comitê Nacional para os Refugiados
(CONARE), enquanto que 74 vistos humanitários haviam permitido o ingresso

109 Artigo I.2 da Convenção Africana para Refugiados. UN. OAU Convention governing the specific aspects of
refugee problems in Africa. Addis Ababa, 1969. Disponível em: https://treaties.un.org/doc/Publication/UNTS/
Volume%201001/volume-1001-I-14691-English.pdf. Acesso em: 8 out. 2022. p. 3.
110 Terceira Conclusão da Declaração de Cartagena. Cf. ACNUR. Declaração de Cartagena, 1984, p. 3. Dis-
ponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BD_Legal/Instrumentos_Internacionais/
Declaracao_de_Cartagena.pdf. Acesso em: 14 nov. 2021.
111 Assim como foi feito para os fluxos migratórios da Síria, do Afeganistão e do Haiti. MJSP/MRE. Portaria Inter-
ministerial n. 9 de 8 de outubro de 2022. MJSP/MRE, 8 out. 2019. Disponível em: https://portaldeimigracao.
mj.gov.br/images/portarias/PORTARIA_INTERMINISTERIAL_9.pdf. Acesso em: 3 nov. 2022; MJSP/MRE.
Portaria Interministerial n. 24 de 3 de setembro de 2021. MJSP/MRE, 3 set. 2021. Disponível em: https://
portaldeimigracao.mj.gov.br/images/portarias/PORTARIA_INTERMINISTERIAL_MJSP.MRE_N%C2%BA_24_
DE_3_DE_SETEMBRO_DE_2021.pdf. Acesso em: 3 nov. 2022; MJSP/MRE. Portaria Interministerial n. 29
de 25 de abril de 2022. MJSP/MRE, 25 abr. 2022. Disponível em: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/images/
portarias/PORTARIA_INTERMINISTERIAL_MJSP.MRE_N%C2%BA_29_DE_25_DE_ABRIL_DE_2022.
pdf. Acesso em: 3 nov. 2022.
112 MJSP/MRE. Portaria Interministerial n. 28 de 3 de março de 2022. MJSP/MRE, 3 mar. 2022. Disponível em:
https://portaldeimigracao.mj.gov.br/images/portarias/PORTARIA_INTERMINISTERIAL_MJSP.MRE_N%-
C2%BA_28_DE_3_DE_MAR%C3%87O_DE_2022.pdf. Acesso em: 3 nov. 2022.
113 Ibid.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 403

seguro no Brasil e 62 registros de proteção complementar pela autorização de


residência por acolhida humanitária haviam sido processados114.
De modo similar, os países da UE ativaram pela primeira vez e de modo
célere, em 4 de março de 2022, o artigo 5º, n. 1 da Diretiva 2001/55/EC de
proteção temporária, adotada em 2001, e que estabelece um mecanismo
de emergência cujo objetivo é conceder uma proteção coletiva automática
às pessoas deslocadas – e atenuar a pressão sobre os sistemas nacionais
de refúgio dos Estados da UE. Tal proteção não exclui a necessidade de
requerimento de autorização de residência no país da UE em que decidam
permanecer, mas também não abandona a possibilidade de solicitação da
condição de refugiado115.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

No caso do deslocamento da Ucrânia, a proteção temporária da UE


abrange nacionais da Ucrânia, nacionais de países terceiros que eram resi-
dentes de longa duração na Ucrânia e pessoas apátridas116, e traz a isenção
da necessidade de vistos na UE, a possibilidade de livre circulação por 90
dias até que se dê a escolha do país no qual irão se beneficiar da proteção
temporária, que, por sua vez, tem duração de um a três anos117.
A partir da normativa comunitária, esquemas nacionais foram criados: por
exemplo, a Alemanha aconselhou nacionais da Ucrânia a não solicitarem refú-
gio – embora o direito de solicitar continue em vigor – mas concedeu o título de
residência com efeito imediato118; a Polônia permitiu às pessoas nacionais da
Ucrânia deslocadas permanecerem no país sem a necessidade de regularização
migratória por 18 meses e solicitarem autorização de residência temporária,
concedida por 3 anos e que deve ser feita após 9 meses e antes de alcançar o
prazo máximo de estadia119; e o Reino Unido que criou, em março de 2022, o
Ukraine Extension Scheme120, como forma de regularização migratória – para

114 MJSP/OIM. Ministério da Justiça e Segurança Pública – Migração Ucraniana – Regularização Migratória de
janeiro a março de 2022. MJSP/OIM, mar. 2022. Disponível em: https://brazil.iom.int/sites/g/files/tmzbdl1496/
files/documents/informe-migracao-ucraniama-mar2022.pdf. Acesso em: 10 dez. 2022.
115 CONSELHO DA UE. Infografia – Proteção temporária da UE para pessoas deslocadas. Conselho da
União Europeia, 20 jun. 2022. Disponível em: https://www.consilium.europa.eu/pt/infographics/tempo-
rary-protection-displaced-persons/#:~:text=Em%204%20de%20mar%C3%A7o%20de,B%C3%B3snia%-
2DHerzegovina%20e%20do%20Kosovo. Acesso em: 28 out. 2022.
116 HUMAN RIGHTS WATCH. Op cit. (nota 56).
117 Ibid.
118 BUNDESAMT FÜR MIGRATION UND FLÜCHTLINGE. FAQ about entry from Ukraine an residence in
Germany. Disponível em: https://www.bamf.de/DE/Themen/AsylFluechtlingsschutz/ResettlementRe-
location/InformationenEinreiseUkraine/InformationenEinreiseUkraineEN/_documents/ukraine-faq-en.
html?nn=1159474. Acesso em: 2 dez. 2022.
119 GOV.PL. Permanência legal no território da Polônia. Disponível em: https://www.gov.pl/web/ua/Lehalne-pe-
rebuvannya-v-Polshchi. Acesso em: 2 dez. 2022.
120 GOV.UK. Immigration Rules Appendix Ukraine Scheme. GOV.UK, 18 mar. 2022. Disponível em: https://www.gov.
uk/guidance/immigration-rules/immigration-rules-appendix-ukraine-scheme. Acesso em: 29 out. 2022.
404

nacionais da Ucrânia, pessoas casadas ou filhas de nacionais da Ucrânia que já


estavam em território britânico quando do início da invasão – por até 36 meses
e que possibilita o acesso a fundos públicos, trabalho e estudo121.
Os nacionais da Ucrânia já residentes no Reino Unido e com a revali-
dação da estadia por meio do Esquema de Extensão, podem usar o Homes
for Ukraine como patrocinadores de integrantes de sua família que haviam
permanecido no país de origem122. Observa-se que esse benefício não é con-
cedido às pessoas do Afeganistão123, para quem, apenas após pressão interna
e internacional significativa, o governo britânico anunciou, em janeiro de
2022, o Afghan Citizens Resettlement Scheme, um programa de reassenta-
mento que inclui as pessoas que trabalharam para o Reino Unido ou que
estavam sob potencial perseguição do grupo Talibã (ativistas dos direitos das

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


mulheres, jornalistas)124; as que possuíam vínculo anterior com o governo
britânico (ex-bolsistas do Chevening, programa bolsas de mestrado no Reino
Unido; trabalhadores do British Council, instituição cultural do Reino Unido;
e da GardaWorld, empresa de segurança privada que atuava na embaixada
do Reino Unido no Afeganistão)125; ou as pessoas refugiadas apontadas
pelo ACNUR126.
Ainda em termos de comparação, enquanto a possibilidade de solicitar
refúgio no Reino Unido aos nacionais da Ucrânia segue existindo, o mesmo
não ocorre com todas as pessoas do Afeganistão, para as quais apenas quem
tenha sido indicado pelo ACNUR pode solicitar a proteção do refúgio127.
Ainda, o procedimento britânico impede que a maioria das pessoas solici-
tantes de refúgio possam trabalhar128, o que, como visto, não se aplica às
pessoas da Ucrânia. Tal limitação tem como uma de suas principais conse-
quências a impossibilidade de acesso às regras de reagrupamento familiar
mais benéficas disponibilizadas às pessoas refugiadas no Reino Unido129 e
que impacta direta e fortemente as pessoas do Afeganistão, pois a operação

121 Ibid.
122 CLARK, Olivia. More labels, less protection: A comparison of the Afghan and Ukraine protection schemes.
Refugee Law Initiative Blog – School of Advanced Study University of London, 12 set. 2022. Disponível em:
https://rli.blogs.sas.ac.uk/2022/09/12/more-labels-less-protection-a-comparison-of-the-afghan-and-ukraine-
-protection-schemes/. Acesso em: 19 out. 2022.
123 Ibid.
124 GOV.UK. Afghan Citizens Resettlement Scheme. GOV.UK, 6 jan. 2022. Disponível em: https://www.gov.uk/
guidance/afghan-citizens-resettlement-scheme. Acesso em: 29 out. 2022.
125 CLARK, O. Op cit. (nota 123).
126 Ibid.
127 Ibid.
128 Ibid.
129 Isso porque as regras para reunião familiar de pessoas não refugiadas são ter um patrocinador com renda
mínima exigida; os membros da família chamados serem aprovados em teste de inglês; e cada familiar chamado
ter pago uma taxa de aproximados 3.500 libras (mais de 22 mil reais) que pode ser isentada. Ibid.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 405

de retirada do país foi mal administrada130, e resultou em grande número de


chegadas ao Reino Unido sem os familiares131.
Dentre os países da Europa, até dezembro de 2022, o que mais recep-
cionou por meio de proteção temporária ou esquemas similares as pessoas
deslocadas da Ucrânia foi a Polônia (com mais de um milhão e meio de
pessoas), seguida da Alemanha (com pouco mais de um milhão de pessoas
acolhidas), e da República Tcheca (com quase 500 mil pessoas)132. O Reino
Unido acolheu quase 150 mil pessoas vindas da Ucrânia133.
De acordo com o ACNUR, a adoção pela UE da proteção temporária
possibilitou o registro de 4,8 milhões de pessoas vindas da Ucrânia na UE sob
esse esquema ou outros regimes similares, até novembro de 2022134.
As proteções complementares – como visto humanitário, proteção tem-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

porária, programas de reassentamento combinados com proteção emergen-


cial – embora sejam veículos que protegem as pessoas em deslocamento,
não correspondem em equidade com a proteção do instituto do refúgio. Esse
cenário pode ser prejudicial às pessoas vindas da Ucrânia que deveriam, de
fato, ter sua condição de refugiados reconhecida. Isso porque, de modo geral,
a proteção do refúgio é mais ampla, inclusive em razão do já mencionado
princípio do non-refoulement, e pela condição de refugiado resguardar direitos
em um regime internacional.
Postura oposta, ou seja, de aplicação do refúgio, foi vista no que tange
às pessoas que saíram da Rússia, sobretudo após a mobilização de militares
reservistas, em setembro de 2022. Na Alemanha, por exemplo, a maioria dos
partidos políticos135 apoiou o reconhecimento da condição de refugiado às
pessoas que desertarem a mobilização russa136, o que levou a uma alteração,
em abril de 2022, no procedimento de RSD (refugee status determination) para
solicitantes da Rússia, no sentido de que, em regra, a objeção de consciência seja
motivo de proteção137-138. Com isso, até setembro de 2022, 438 nacionais da

130 Ibid.
131 Ibid.
132 UNHCR. Op cit. (nota 4). UNHCR, 2 dez. 2022. Disponível em: https://data.unhcr.org/en/situations/ukraine.
Acesso em: 2 dez. 2022; CONSELHO EUROPEU. Infografia –Refugees from Ukraine in the EU. Conselho
Europeu, 2 dez. 2022. Disponível em: https://www.consilium.europa.eu/pt/infographics/ukraine-refugees-eu/.
Acesso em: 2 dez. 2022.
133 Ibid.
134 CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA. Afluxo de refugiados da Ucrânia. Conselho da União Europeia, 22 nov.
2022. Disponível em: https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/eu-migration-policy/refugee-inflow-from-u-
kraine/. Acesso em: 2 dez. 2022.
135 HILLE, P.; WITTING, V. Op cit. (nota 70).
136 MWAKIDEU, C. Op cit. (nota 59).
137 Ibid.
138 Ao lado da objeção de consciência, a deserção poderia ser caracterizada como perseguição tendo em vista a ile-
galidade da invasão, isso é, as pessoas serem forçadas a servir ou estarem sujeitas a punições desproporcionais
406

Rússia tinham sido reconhecidos na Alemanha como pessoas refugiadas desde


a invasão russa à Ucrânia, incluindo personalidades da oposição e jornalistas139.
Nesse sentido é o precedente do Tribunal de Justiça da União Europeia, de
novembro de 2020, o qual estabeleceu que pessoas que se recusam a cumprir o
serviço militar, em um contexto de conflito, têm direito à proteção na UE como
pessoas refugiadas140. O Tribunal foi solicitado a interpretar a Diretiva 2011/95/
UE do Parlamento Europeu e do Conselho de dezembro de 2011, segundo a
qual pode-se configurar como perseguição, a existência de punição para os
que se recusem a cumprir serviço militar em conflitos, em que tal atividade
militar abrangeria a prática de crimes que impeçam o reconhecimento como
refugiado141. O Tribunal de Justiça da UE considerou que a recusa a prestar
o serviço militar reflete uma expressão de opinião política ou de crenças reli-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


giosas ou, ainda, é motivada pela filiação a um determinado grupo social142.
Contudo, do outro lado, ainda que o status de refugiado seja reconhecido
caso a caso, incluindo uma verificação de segurança143, há aqueles que defen-
dem que esse acolhimento de pessoas vindas da Rússia seria um erro político,
que ameaçaria a segurança tanto das pessoas que fugiram da Ucrânia e se
refugiaram na Alemanha, como também a segurança do país de acolhimento
como um todo, contra espiões russos144. Nesse sentido, se posicionaram a
Lituânia145, a Letônia e a Polônia146.

4. Integração

Ao conseguir acesso a territórios seguros, o atendimento emergencial


(alimentação, primeiros socorros, abrigos, por exemplo), como visto, está

(como dez anos de prisão para desertores), e serem forçadas a cometerem, direta ou indiretamente, crimes
de guerra (de acordo com relatos desde o início da invasão). GUIMARÃES, Maria João. Charles Michel quer
decisão europeia sobre russos que fogem à guerra. Público, 24 set. 2022. Disponível em: https://www.publico.
pt/2022/09/24/mundo/noticia/charles-michel-quer-decisao-europeia-russos-fogem-guerra-2021740. Acesso
em: 19 out. 2022; CHADE, Jamil. ONU: crimes de guerra foram cometidos na Ucrânia e cita estupro de idosos.
UOL, 23 set. 2022. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/09/23/onu-diz-que-cri-
mes-de-guerra-foram-cometidos-na-ucrania-e-cita-russos.htm. Acesso em: 5 nov. 2022.
139 Ibid.
140 COURT OF JUSTICE OF THE EUROPEAN UNION. In the context of the civil war in Syria, there is a
strong presumption that refusal to perform military service there is connected to a reason which may give
rise to entitlement to recognition as a refugee. Court of Justice of the European Union, 19 nov. 2020.
Disponível em: https://curia.europa.eu/jcms/upload/docs/application/pdf/2020-11/cp200142en.pdf. Acesso
em: 30 out. 2022. p. 1.
141 Ibid., p. 1.
142 Ibid., p. 2.
143 Ibid., Id.
144 Ibid., Id.
145 GUIMARÃES, Maria João. Op cit. (nota 138).
146 HILLE, P.; WITTING, V. Op cit. (nota 70).
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 407

entre as primeiras medidas a serem organizadas pelos Estados de acolhida.


A regularização migratória, seja por meio do refúgio ou de proteções com-
plementares, pode ser entendida como a próxima etapa de proteção. Com o
decorrer do tempo, outras demandas surgem na fase de integração das pessoas
deslocadas à sociedade anfitriã. Isto é, a efetivação de uma das soluções durá-
veis para as pessoas refugiadas que consiste na permanência duradoura ou
permanente no Estado de acolhida147. A integração à essa sociedade abrange
questões legais, econômicas e socioculturais148.
Nesse contexto, nota-se que a resposta das autoridades e da opinião
pública quanto à permanência das pessoas da Ucrânia na Europa foi dife-
renciada, se comparada com outros fluxos antecedentes, como o de pessoas
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

deslocadas da Síria149. Uma pesquisa realizada, entre abril e maio de 2022,


em 28 países pelo instituto Ipsos apontou que 54% das pessoas afirmaram
apoiar que seu país acolha pessoas refugiadas da Ucrânia; enquanto somente
32% concordava com a recepção de pessoas da Síria; 30% para o acolhimento
de pessoas vindas da Venezuela e do Afeganistão; e apenas 27% apoiavam a
recepção de pessoas do Sudão do Sul150. Ou seja, as pessoas se mostraram
muito mais receptivas às que fogem do conflito na Ucrânia do que a pessoas
refugiadas de outros movimentos migratórios151. A proximidade cultural é um
dos fatores que pode ter contribuído para uma maior comoção no acolhimento
do novo movimento migratório152, assim como a questão de identidade pelo
fato de a Ucrânia integrar a Europa153 e questões raciais, como mencionado.
Também como visto, o fato de o fluxo migratório da Ucrânia ser formado,
principalmente por mulheres, crianças e pessoas idosas154 pode ser um diferen-
cial em termos de opinião pública e deve ser no que tange às políticas públicas

147 JUBILUT, Liliana L.; GARCEZ, Gabriela S.; RIBEIRO, Flávia O.; RODRIGUES, Maria Eduarda. A Essenciali-
dade da Relação entre Direitos Humanos e Refúgio nas Soluções Duráveis. In: JUBILUT, Liliana L.; GARCEZ,
Gabriela S.; JAROCHINSKI SILVA, João Carlos; LOPES, Rachel de Oliveira; FERNANDES, Ananda (org.).
Direitos Humanos e Vulnerabilidades e Migrações Forçadas. Boa Vista: Editora UFRR, no prelo.
148 CRISP, Jeff. The Local Integration and the Local Settlement of Refugees: a conceptual and historical analysis.
New Issues in Refugee Research, Working Paper n. 102. UNHCR, 2004. Disponível em: https://www.unhcr.
org/research/working/407d3b762/local-integration-local-settlement-refugees-conceptual-historical-analysis.
html. Acesso em: 13 out. 2022. p. 1; ACNUR. Soluções duradouras. Disponível em: https://www.acnur.org/
portugues/solucoes-duradouras/. Acesso em: 15 nov. 2022.
149 PUENTE, Beatriz. Duração da guerra definirá integração de refugiados da Ucrânia na Europa, dizem especia-
listas. CNN Brasil, 1 mar. 2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/duracao-da-guerra-
-definira-integracao-de-refugiados-da-ucrania-na-europa-dizem-especialistas/. Acesso em: 2 nov. 2022.
150 Ibid.
151 MANTOVANI, F. Op cit. (nota 6).
152 Ibid.
153 INAÊ, Güinewer. O Dilema da Nova Crise de Refugiados na Europa. CSVM – UFG, 4 nov. 2022. Disponível em:
https://csvm.ufg.br/n/152679-o-dilema-da-nova-crise-de-refugiados-na-europa. Acesso em: 4 nov. 2022.
154 PUENTE, Beatriz. Op cit. (nota 149).
408

visando a integração dessa população, as quais devem considerar os aspectos


especiais de vulnerabilidade, como gênero, idade, deficiência física155.
Em termos de acesso a direitos e serviços durante a integração, a situação
das pessoas deslocadas da Ucrânia também apresenta peculiaridades. No que
se refere às boas práticas no âmbito do acesso à saúde das pessoas vindas da
Ucrânia, a lei polonesa prevê que terão acesso em termos de igualdade com
as pessoas nacionais do país ao sistema de saúde pública156. Esse acesso
igualitário ocorre também no sistema brasileiro que garante o acesso universal
– à toda população brasileira, migrantes, pessoas refugiadas, solicitantes de
refúgio e, inclusive, visitantes – e, ainda, gratuito à saúde pública157.
O coordenador de emergência da Organização Mundial de Saúde (OMS)

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


para as pessoas refugiadas da Ucrânia, Paul Spiegel, declarou ser extraordinária
a forma igualitária com que as pessoas refugiadas da Ucrânia têm tido acesso
aos sistemas nacionais de saúde158. Contudo, denuncia que o mesmo não foi
proporcionado às pessoas migrantes e refugiadas da Turquia e da Líbia159.
Ainda assim, espera que o acesso à saúde pública concedido às pessoas da
Ucrânia seja o novo padrão de recepção estabelecido160.
No que se refere à proteção das crianças161, o Conselho da UE adotou,
em junho de 2022, ou seja, já no contexto de deslocamento da Ucrânia, termos

155 JUBILUT, L.L.; GARCEZ, G.S.; RIBEIRO, F.O.; RODRIGUES, M.E. Op cit. (nota 147).
156 GOV.PL. Amendment to the law on assistance to Ukrainian citizens in connection with the armed conflict
on the territory of the country. GOV.PL, 28 mar. 2022. Disponível em: https://www.gov.pl/web/udsc-en/the-
-law-on-assistance-to-ukrainian-citizens-in-connection-with-the-armed-conflict-on-the-territory-of-the-coun-
try-has-entered-into-force#:~:text=Every%20citizen%20of%20Ukraine%20legally,guaranteed%20from%20
the%20state%20budget. Acesso em: 4 nov. 2022.
157 ACNUR. Saúde. ACNUR Brasil – Help, 4 nov. 2022. Disponível em: https://help.unhcr.org/brazil/saude/#:~:tex-
t=Solicitantes%20de%20ref%C3%BAgio%20e%20refugiados%20t%C3%AAm%20o%20direito%20de%20
acessar,parceira%20para%20procurar%20assist%C3%AAncia%20m%C3%A9dica. Acesso em: 4 nov. 2022.
158 MYERS, Dayna Kerecman. What Makes Ukraine’s Refugee Crisis So Different. Johns Hopkins Bloomberg
School of Public Health – Global Health Now, 13 maio 2022. Disponível em: https://globalhealthnow.org/2022-
05/what-paul-spiegel-wants-you-know-about-ukraines-refugee-crisis. Acesso em: 4 nov. 2022.
159 Ibid.
160 Ibid.
161 Estima-se que mais de 16 mil crianças e adolescentes da Ucrânia foram transferidas ilegalmente da região
de Kherson para a Rússia no segundo semestre de 2022. Houve alegações de pressões para o envio
das crianças e adolescentes para a Crimeia, ocupada pela Rússia desde 2014, onde frequentariam um
acampamento de verão por 2 semanas. Contudo, as crianças não voltaram por mais de 5 meses e foram
transferidas para outras regiões da Rússia. Em março de 2023, com o auxílio da organização Save Ukraine,
algumas famílias começaram a se reencontrar, mas muitas continuam a busca pela localização de suas
crianças. Essa situação levou à emissão de mandados de prisão pelo Tribunal Penal Internacional, pelos
crimes de guerra de deportação ilegal e transferência ilegal de população de áreas ocupadas da Ucrânia para
a Rússia, com base nos artigos 8(2)(a)(vii) e 8(2)(b)(viii) do Estatuto de Roma, em março de 2023, contra
duas autoridades da Rússia: Vladimir Putin, Presidente do país, e Maria Lvova-Belova, Comissária para os
direitos da criança no gabinete do presidente. ICC. Situation in Ukraine: ICC judges issue arrest warrants
against Vladimir Vladimirovich Putin and Maria Alekseyevna Lvova-Belova. ICC, 17 mar. 2023. Disponível
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 409

a serem aplicados pelos Estados-membros em situações de crise e emergên-


cia162. Os objetivos gerais são promover medidas contra o recrutamento infantil
pelas forças armadas, o tráfico, a adoção ilegal, a exploração sexual infantil
e a separação das suas famílias163. Especificamente, criar procedimentos que
assegurem abrigos adequados às necessidades das crianças, garantindo sua
saúde física e mental; prestar assistência às crianças desacompanhadas, com
designação rápida de tutor ou representante; definir estratégias para identificar
vítimas de tráfico de crianças; assegurar que não haja adoções enquanto os
conflitos perdurarem164.
Segundo estimativas da Comissão Europeia, quase metade das crianças
e adolescentes refugiadas provenientes da Ucrânia estão em idade escolar165.
A educação delas é prioridade, por isso foi idealizado um grupo solidário
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

da UE com objetivo de identificar as necessidades das crianças da Ucrânia e


apoiar os Estados-membros que as acolhem; há disponibilidade de materiais
didáticos no idioma ucraniano e são oferecidos recursos didáticos e cursos
especiais com foco nessas crianças em situação de refúgio para os professores
através do portal School Education Gateway166.
Ainda no que se refere ao acesso ao ensino, na Holanda, por exemplo, os
municípios estão recebendo financiamento para providenciar transporte para
crianças da Ucrânia em idade escolar que não moram perto de uma escola167.
Além disso, as escolas com experiência ou que se destacarem no ensino de
alunos da Ucrânia recebem financiamento extra para ajudar outras escolas168.

em: https://www.icc-cpi.int/news/situation-ukraine-icc-judges-issue-arrest-warrants-against-vladimir-vladi-
mirovich-putin-and. Acesso em: 26 abr. 2023; OURDAN, Rémy. ‘I was scared I’d be there forever’: Children
deported by Russia finally return to Kyiv. Le Monde, 23 mar. 2023. Disponível em: https://www.lemonde.fr/
en/international/article/2023/03/23/i-was-scared-i-d-be-there-forever-children-deported-by-russia-finally-re-
turn-to-kyiv_6020441_4.html. Acesso em: 23 abr. 2023; STEWART, Briar. Russia is accused of deporting
thousands of Ukrainian children. 17 returned home this week. CBC News, 23 mar. 2023. Disponível em:
https://www.cbc.ca/news/world/ukrainian-children-return-1.6788318. Acesso em: 23 abr. 2023.
162 CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA. Solidariedade da UE com a Ucrânia. Conselho da União Europeia,
18 out. 2022. Disponível em: https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/eu-response-ukraine-invasion/
eu-solidarity-ukraine/. Acesso em: 3 nov. 2022.
163 Ibid.
164 CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA. Conselho adota conclusões sobre os direitos da criança. Conselho
da União Europeia, 9 jun. 2022. Disponível em: https://www.consilium.europa.eu/pt/press/press-relea-
ses/2022/06/09/council-adopts-conclusions-rights-child/. Acesso em: 3 nov. 2022.
165 COMISSÃO EUROPEIA. Fuga da Ucrânia: apoio à educação. Comissão Eurpeia, 4 nov. 2022. Disponível
em: https://eu-solidarity-ukraine.ec.europa.eu/information-people-fleeing-war-ukraine/fleeing-ukraine-su-
pport-education_pt. Acesso em: 4 nov. 2022.
166 Ibid.
167 GOVERNMENT OF THE NETHERLANDS. Government decides on education and healthcare for refugees
from Ukraine. Government of the Netherlands, 21 abr. 2022. Disponível em: https://www.government.nl/latest/
news/2022/04/21/government-decides-on-education-and-healthcare-for-refugees-from-ukraine. Acesso em:
4 nov. 2022.
168 Ibid.
410

De início, a integração à sociedade de acolhida está em aprender o


idioma local169. Empresas privadas estão apoiando pessoas refugiadas da
Ucrânia, disponibilizando cursos online gratuitos em suas plataformas, em
inglês170, alemão171, e polonês172, reunindo frases úteis nesses idiomas173 e,
ainda, disponibilizando gratuitamente um livro com frases mais relevantes no
idioma ucraniano para que as pessoas que recepcionam esse fluxo migratório
possam mais bem acolher os recém chegados174.
Diferentemente do apenas incentivo para o aprendizado do idioma do
país de acolhida como acontece com as pessoas vindas da Ucrânia, as pessoas
deslocadas nos anos de 2015-2016 que ingressavam na Europa tinham, em
países como Áustria, França, Alemanha, Holanda, Reino Unido, a obriga-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


ção de cursar aulas de idiomas, bem como passar por cursos de integração
e educação cívica, no qual eram ensinados a história e o funcionamento da
sociedade de acolhimento175.
A integração no mercado de trabalho do Estado anfitrião também é
tema essencial e, enquanto não ocorre, o sistema de assistência social deve
atuar176. Nesse contexto é preciso destacar que, embora os países da Europa
possuam melhores condições financeiras do que o Sul Global (Estados que
mais recepcionam pessoas refugiadas177), países como a Polônia, que além
de fazer parte da rota de trânsito, também foi destino das pessoas vindas da
Ucrânia, já sofriam com desemprego entre os locais178. Isso exigirá coope-

169 MARTINS, Elisa; GONÇALVES, Gabriela. Europa abriu portas a refugiados ucranianos, mas os desafios
daqui para a frente são enormes. O Globo, 17 mar. 2022. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/
europa-abriu-portas-refugiados-ucranianos-mas-os-desafios-daqui-para-frente-sao-enormes-25432791.
Acesso em: 2 nov. 2022.
170 eTALK. Free English language courses for refugees from Ukraine. eTalk, 4 nov. 2022. Disponível em: https://
etalkschool.com/supportukrainian/. Acesso em: 4 nov. 2022.
171 MIQR. Language courses for Ukrainians – free programs for learning German for refugees at the MIQR.
Mitteldeutsches Institut für Qualifikation und berufliche Rehabilitation (MIQR), 21 maio 2022. Disponível em:
https://mitteldeutsches-institut.de/en/language-courses-for-ukrainians-b/. Acesso em: 4 nov. 2022.
172 BABBEL. Babbel supports Ukrainian refugees with language courses. Babbel, 4 nov. 2022. Disponível
em: https://support.babbel.com/hc/en-gb/articles/4985331352980-Babbel-supports-Ukrainian-refugees-
-with-language-courses. Acesso em: 4 nov. 2022.
173 Ibid.
174 BABBEL. The Most Important Words And Phrases To Welcome Refugees From Ukraine. Babbel, 6 abr.
2022. Disponível em: https://www.babbel.com/en/magazine/most-important-ukrainian-phrases. Acesso em:
4 nov. 2022.
175 KOSYAKOVA, Yuliya; KOGAN, Irena. Labor market situation of refugees in Europe: The role of individual
and contextual factors. Front. Polit. Sci., Sec. Refugees and Conflict, 23 set. 2022. Disponível em: https://
doi.org/10.3389/fpos.2022.977764. Acesso em: 1 dez. 2022.
176 MARTINS, E.; GONÇALVES, G. Op cit. (nota 169).
177 Em 2021, os países de baixa e média renda acolheram 83% das pessoas refugiadas do mundo. UNHCR.
Global Trends Report 2021. Disponível em: https://www.unhcr.org/62a9d1494/global-trends-report-2021.
Acesso em: 12 out. 2022. p. 2.
178 MARTINS, Elisa; GONÇALVES, Gabriela. Op cit. (nota 169).
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 411

ração e suporte financeiro de outros países europeus para que haja efetiva
integração da mão de obra das pessoas do movimento migratório da Ucrânia
nas sociedades de acolhida179.
Algumas das medidas adotadas pela UE para auxiliar as pessoas refugia-
das a encontrar vagas de trabalho são: por meio da Fundação Europeia para
Formação, autoridades da UE recebem auxílio para comparar os quadros de
qualificações ucranianos e europeus, de modo a ajudar tanto as pessoas vindas
da Ucrânia que procuram assistência para fazer reconhecer suas qualificações,
como as pessoas empregadoras que precisam de ajuda com a interpretação
dessas qualificações180. No mesmo contexto, a Comissão Europeia publicou
uma recomendação para facilitar o reconhecimento das qualificações profis-
sionais e acadêmicas obtidas na Ucrânia nos Estados-membros da EU181. São
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

contrastantes os procedimentos visando o reconhecimento de credenciais,


particularmente para profissões regulamentadas, direcionados às pessoas
vindas da Ucrânia em comparação com as pessoas refugiadas no desloca-
mento de 2015-2016 para a Europa182, por exemplo, as autoridades alemãs
desencorajavam que as pessoas do fluxo migratório precedente solicitassem
o reconhecimento de credenciais, enquanto na Suécia, as pessoas refugiadas
eram comumente desviadas, pelas autoridades de assistência, para outras
opções de carreira183.
Ainda no que tange ao mercado de trabalho, foi criado o projeto-piloto
Reserva de Talentos da UE, disponível em inglês, ucraniano e russo, imple-
mentado por meio do portal EURES, que reúne Serviços Públicos de Emprego,
agências de emprego privadas e empregadores de toda a EU184. A rede EURES
atingiu mais de três milhões de ofertas de emprego simultâneas185.
A questão da moradia também é essencial, e neste caso, destaca-se o
tema de acesso a auxílio financeiros para financiamento de aluguéis até,
pelo menos, haver o estabelecimento de renda própria do núcleo familiar186.
Alguns países, como Áustria, Luxemburgo e Holanda, fornecem suporte no
pagamento de aluguéis para as pessoas refugiadas da Ucrânia que providen-
ciam acomodação independente após o acolhimento inicial187. Igualmente, o
179 Ibid.
180 COMISSÃO EUROPEIA. Fuga da Ucrânia: acesso a empregos. Comissão Europeia, 4 nov. 2022. Disponível
em: https://eu-solidarity-ukraine.ec.europa.eu/information-people-fleeing-war-ukraine/fleeing-ukraine-acces-
s-jobs_pt. Acesso em: 4 nov. 2022.
181 Ibid.
182 KOSYAKOVA, Y.; KOGAN, I. Op cit. (nota 175).
183 Ibid.
184 Ibid.
185 Ibid.
186 MARTINS, E.; GONÇALVES, G. Op cit. (nota 169).
187 OECD. Housing suppor t for Ukrainian refugees in receiving countries. OECD,
27 jul. 2022. Disponível em: https://www.oecd.org/ukraine-hub/policy-responses/
412

Fundo Francês de Assistência à Família oferece subsídios de habitação para


pessoas refugiadas da Ucrânia, transferindo o valor diretamente ao proprietário
do imóvel, e o inquilino cobre a diferença188. O montante fornecido depende
de fatores, como: custo do aluguel, área e tipo de habitação, número e idade
das pessoas que habitarão o imóvel, salários dos inquilinos189.
No Reino Unido190, no que tange à moradia, por meio do programa
Homes for Ukraine, mais de 100 mil pessoas refugiadas se tornaram hóspedes
de famílias britânicas. Contudo, muitas famílias anfitriãs cumpriram somente
os 6 meses obrigatórios pelo programa, justificando a descontinuidade pelo
aumento do custo de vida191. Apesar das mudanças anunciadas pelo governo
britânico, em dezembro de 2022, de aumento no valor mínimo recebido
pelos anfitriões e a extensão no pagamento desses recursos192, o número de

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


novas filiações ao programa não acompanhou a expectativa193. No que diz
respeito ao acesso às moradias particulares, as pessoas refugiadas da Ucrânia
no Reino Unido apontaram como dificuldades o fornecimento de fiador e a
reunião de aporte financeiro para depósito194. Tais obstáculos contribuem
para o aumento de famílias desabrigadas (entre novembro e dezembro de
2022, houve um aumento de 37% nas famílias da Ucrânia sem moradia no
Reino Unido195) e para o retorno ao país de origem196.
A UE tem fornecido apoio técnico e financeiro aos países-membros
que acolhem as pessoas desse deslocamento, bem como tem dado suporte
na gestão das fronteiras da UE e da Moldávia (país vizinho à Ucrânia)197.
No que se refere ao apoio financeiro, em abril de 2022, a UE aprovou três
regulamentos que desbloquearam mais de 20 bilhões de euros em fundos para

housing-support-for-ukrainian-refugees-in-receiving-countries-9c2b4404/. Acesso em: 4 nov. 2022.


188 VISIT UKRAINE. How Ukrainians can get help in France: money for rent and child support. Visit Ukraine, 6
ago. 2022. Disponível em: https://visitukraine.today/blog/688/how-ukrainians-can-get-help-in-france-money-
-for-rent-and-child-support. Acesso em: 4 nov. 2022.
189 Ibid.
190 TAPPER, James. Ukrainian refugees in UK face homelessness crisis as councils struggle to find hosts.
The Guardian, 30 out. 2022. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2022/oct/30/ukrai-
nian-refugees-uk-homelessness-councils-hosts?CMP=Share_iOSApp_Other. Acesso em: 5 nov. 2022.
191 WALLIS, Emma. Ukrainian refugees in the UK face homelessness as housing schemes end. Info Migrants,
17 mar. 2023. Disponível em: https://www.infomigrants.net/en/post/47588/ukrainian-refugees-in-the-uk-fa-
ce-homelessness-as-housing-schemes-end. Acesso em: 23 abr. 2023.
192 MEADE, Lulu. Homes for Ukraine: What happens after six months? House of Commons Library, 20 jan.
2023. Disponível em: https://commonslibrary.parliament.uk/research-briefings/cbp-9709/. Acesso em:
23 abr. 2023.
193 TAPPER, J. Op cit. (nota 190).
194 MEADE, L. Op cit. (nota 192)
195 Ibid.
196 WALLIS, E. Op cit. (nota 191).
197 TAPPER, J. Op cit. (nota 190).
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 413

auxiliar os Estados-membros a atender às necessidades de habitação, educação


e de saúde das pessoas refugiadas da Ucrânia198.
Espera-se que os Estados anfitriões consigam garantir proteção integral
às pessoas refugiadas da Ucrânia, isso é, a somatória dos Direitos Internacio-
nais dos Refugiados com os Direitos Internacionais dos Direitos Humanos199,
o que abarca a integração à sociedade local, por meio de auxílio em questões
de moradia, emprego e educação, por exemplo. A ausência de orientação
procedimental sobre integração pode contribuir para o retorno prematuro
ao local de origem ou novos movimentos migratórios em busca de proteção
mais adequada200.
Como contraface da integração, verifica-se desde julho de 2022, após
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

uma tendência de concentração do conflito no leste da Ucrânia201, na região


de Donbass, o movimento de retorno de parte das pessoas que fugiram da
Ucrânia, seja motivado pela reunião com familiares que não fugiram do país,
seja pelo desejo de estar de volta ao lar202.
Cada vez menos pessoas fogem da Ucrânia: segundo dados da Frontex,
o número de pessoas que retornaram está excedendo o número de pessoas
que escapam do conflito203. Em janeiro de 2023, estima-se que mais de 1,1
milhão de pessoas vindas da Ucrânia retornaram ao seu país de origem204.
Embora os números sejam altos, ainda é a minoria, muitas pessoas refugiadas
permanecem nos países anfitriões, afinal o conflito persiste.

5. Conclusão

Expôs-se assim os diversos padrões e as tendências positivas e negativas


na proteção às pessoas refugiadas vindas da Ucrânia no contexto da invasão
pela Rússia, e iniciou-se a contribuição de análise sobre quais merecem ser
replicados e quais precisam ser corrigidos.

198 CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA. Solidariedade da UE com a Ucrânia. Conselho da União Europeia,
18 out. 2022. Disponível em: https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/eu-response-ukraine-invasion/
eu-solidarity-ukraine/. Acesso em: 3 nov. 2022.
199 JUBILUT, L.L.; GARCEZ, G.S.; RIBEIRO, F.O.; RODRIGUES, M.E. Op cit. (nota 147).
200 HICKSON, Alice. Why Are Refugees Returning to Ukraine? New Lines Institute, 1 set. 2022. Disponível em:
https://www.grid.news/story/global/2022/07/18/they-thought-we-were-crazy-why-millions-of-ukrainian-refu-
gees-are-coming-home/. Acesso em: 4 nov. 2022.
201 MANTOVANI, F. Op cit. (nota 6)
202 Ibid.
203 FRONTEX. More people continue to return to Ukraine. Frontex, 6 set. 2022. Disponível em: https://frontex.
europa.eu/media-centre/news/news-release/more-people-continue-to-return-to-ukraine-UjZVYP. Acesso em:
4 nov. 2022.
204 OIM. Ukraine Returns Report. OIM, 23 jan. 2023. Disponível em: https://dtm.iom.int/reports/ukraine-retur-
ns-report-16-23-january-2023. Acesso em: 23 abr. 2023.
414

No que se refere ao acesso a territórios seguros, foram apontadas como


boas práticas de proteção das pessoas que fogem do conflito na Ucrânia,
políticas de fronteiras abertas; de não criminalização do deslocamento;
de inexistência de centros de detenção; de abordagem não centrada na
segurança nacional dos países de acolhida; da derivação de programas
de reassentamento por de patrocínio privado específicos para esse fluxo.
Quanto às práticas negativas elencaram-se a discriminação com base na
nacionalidade para aqueles que tentavam fugir do conflito; a potenciali-
zação de situações de risco de violência sexual e tráfico no contexto dos
programas de reassentamento por patrocínio privado; denúncias de uma
política migratória racista por parte da UE, tendo em vista a diferenciação

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


no tratamento da migração da Ucrânia e de fluxos anteriores; a constru-
ção de uma cerca na fronteira da Rússia com a Finlândia visando coibir
migração irregular.
Quanto à proteção das pessoas vindas da Ucrânia, os aspectos positi-
vos foram o acolhimento por meio de serviços de apoio estabelecidos pelos
ACNUR e UNICEF; a notória vontade política na recepção de pessoas da
Ucrânia; sendo que a resposta humanitária dada a esse deslocamento esta-
beleceu novos padrões de financiamento, reunindo altos valores e em curto
período de tempo, e de solidariedade pública e política; e quanto ao reconhe-
cimento de status migratório, pode-se dizer que a proteção temporária adotada
pela UE se destacou pelo ineditismo em sua aplicação prática e na celeridade
na tomada de utilizá-la. Mas a perspectiva negativa da adoção do modelo
de proteção complementar está no fato dele ser utilizado em substituição, e
não em paralelo, ao reconhecimento do refúgio. Outro aspecto negativo foi
a solidariedade seletiva, em razão da disparidade entre a assistência huma-
nitária disponibilizada para o deslocamento de pessoas da Ucrânia e fluxos
anteriores ou concomitantes.
Por fim, a integração à sociedade de acolhida e o acesso a direitos (como
saúde, educação, trabalho e moradia) se deu por diversas políticas positivas,
mas ainda se verificam também aspectos negativos, sobretudo em termos de
recursos. Falhas na integração podem estar contribuindo para um movimento
de retorno prematuro à Ucrânia.
Existem muitos padrões e tendências que parecem derivar do contexto
específico de proteção de pessoas refugiadas vindas da Ucrânia. Isso eviden-
cia a seletividade e a politização da proteção das pessoas migrantes, fatores
que podem ser minimizados com esforços para identificar boas práticas que
merecem serem replicadas para outros deslocamentos, bem como para corrigir
práticas negativas, seja no âmbito do próprio deslocamento vindo da Ucrânia,
seja na discriminação que beneficia esse fluxo.
23. A EFETIVAÇÃO DOS
DIREITOS DAS MULHERES
DESLOCADAS INTERNAMENTE
PELA GUERRA NA UCRÂNIA
Quévia Linamara de Almeida Camboim
Janayna Nunes Pereira

1. Introdução
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Em fevereiro de 2014, após o Presidente ucraniano Viktor Yanukovych ser


deposto em decorrência de uma série de protestos que expunham divergências
quanto a uma maior integração com a Rússia, iniciou-se um conflito armado
entre a Rússia e a Ucrânia de modo concentrado na península da Crimeia e
partes do território de Donbas, que são internacionalmente reconhecidas como
pertencer ao território ucraniano1. As tensões entre os dois países se inten-
sificaram ao longo dos anos e em fevereiro de 2022, após a Ucrânia anunciar
a possibilidade de sua adesão à aliança militar da Organização do Tratado do
Atlântico Norte (OTAN), tropas russas invadiram o leste da Ucrânia sob a ale-
gação de que o governo estaria cometendo de genocídio contra cidadãos de ori-
gem étnica russa que vivem nas regiões separatistas de Donetsk e Lugansk2.
Em meio a tantos conflitos, muitas pessoas têm sido impactadas, sendo
forçadas a migrar de suas residências em território ucraniano para regiões
consideradas mais seguras. Em agosto de 2022, seis meses após o início da
guerra em grandes proporções, estima-se que um terço da população ucra-
niana se deslocou, sendo desses 6,6 milhões de refugiados internacionais
e 6,6 milhões de “refugiados internos”, chamados de “pessoas deslocadas
internamente” (PDI)3. Trata-se do maior deslocamento na Europa desde
a Segunda Guerra Mundial, segundo dados da Organização Internacional
para Migrações (OIM)4.

1 MARXSEN, Christian. The Crimea Crisis: An International Law Perspective. Zeitschrift für ausländisches
öffentliches Recht und Völkerrecht, v. 74, n. 2, p. 367-391, 2016. p. 368.
2 Ver para uma análise mais profunda: CAVANDOLI, Sofia; WILSON, Gary. Distorting Fundamental Norms
of International Law to Resurrect the Soviet Union: The International Law Context of Russia´s Invasion of
Ukraine. Netherlands International Law Review, v. 69, p. 383-410, 2022. Disponível em: https://link.springer.
com/article/10.1007/s40802-022-00219-9. Acesso em: 25 abr. 2023.
3 Em inglês: Internally Displaced Persons (IDPs).
4 INTERNATIONAL ORGANIZATION OF MIGRATION. Ukraine Crisis 2022: 6 Months of Response.
IOM: 2022, p. 2. Disponível em: www.iom.int/sites/g/files/tmzbdl486/files/situation_reports/file/
416

Levando em consideração que outro capítulo da presente obra abordará


a situação dos refugiados, a presente análise se debruça sobre a situação
enfrentada pelas PDI e o desafio de efetivar os seus direitos. Sendo impos-
sível dizer respeito às circunstâncias específicas de todas elas, restringe-se,
após breve exame das garantias fundamentais previstas para essa categoria
pelo direito internacional e sua implementação pelo direito ucraniano (2.),
a destacar algumas das dificuldades enfrentadas por mulheres em razão do
gênero (3.). Para tanto, são examinadas as pertinentes observações feitas
pelo Comitê da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Contra as Mulheres (CEDAW) que revelam não somente a
preocupação da comunidade internacional com esse grupo particularmente

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


vulnerável, mas também os esforços contínuos, junto com o governo ucra-
niano, para superar as discriminações sofridas e insuficiências da proteção
dos seus direitos (4).

2. Garantias fundamentais das PDI na Ucrânia

Todos os seres humanos são titulares de direitos humanos, sejam migrantes


ou não. Trata-se de garantias de aplicabilidade universal. No entanto, pessoas
refugiadas internacionalmente ou deslocadas dentro dos seus próprios países
enfrentam uma série de dificuldades para gozar desses direitos, razão pela qual
eles foram formalizados para sua melhor proteção e efetivação por diversos
instrumentos internacionais e pelo direito interno de vários Estados.

2.1 Direito internacional

Pessoas forçadas a sair dos seus países por sofrer algum tipo de per-
seguição se enquadram na categoria de refugiados. No entanto, quanto aos
chamados de “refugiados de guerra”, é preciso observar que eles geralmente
não preenchem os critérios previstos pela Convenção Relativa ao Estatuto
dos Refugiados de 1951 e seu respectivo Protocolo de 1967, por não sofre-
rem perseguições5. Não obstante, é hoje internacionalmente reconhecido o
mandato do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR)
para cuidar desse grupo quantitativamente muito maior do que os grupo dos
refugiados no sentido da Convenção de 19516.

IOM-Ukraine-Regional-Response2022-6-Month-Special-Report.pdf. Acesso em: 19 set. 2022.


5 Ver para detalhes: ANDRADE, José H. Fischel de. On the Development on the Concept of “Persecution” in
International Refugee Law. Anuário Brasileiro de Direito Internacional, v. 2, p. 114-136, 2008.
6 BARICHELLO, Stefania Eugênia; ARAÚJO, Luiz Enani Bonesso de. Aspectos históricos da evolução e do
reconhecimento internacional do status de refugiado. Universitas: Relações Internacionais, v. 12, n. 2, p.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 417

De modo semelhante, o ACNUR conseguiu estender nas últimas décadas


a pessoas que se tornaram refugiados dentro das fronteiras do Estado onde
vivem: as PDI. Documento-chave para a sua proteção são os “Princípios Orien-
tadores relativos aos Deslocados Internos” (PORDI)7, adotados em 1998.
Esse compilado de trinta princípios tem como fundamento as normas
do Direito Internacional, especialmente no campo dos Direitos Humanos,
do Direito Internacional Humanitário e, por analogia, o Direito dos Refugia-
dos, dentre as quais se destacam o Pacto Internacional sobre Direitos Civis
e Políticos das Nações Unidas de 1966, o Pacto Internacional sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais da ONU de 1966 e a Convenção sobre o
Estatuto dos Refugiados de 1951. Com base nesse arcabouço, os Princípios
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

formalizam os direitos dos deslocados internos, bem como as obrigações dos


governos, dos intervenientes não estatais e das organizações internacionais para
com esta categoria de pessoas8. Ao definir melhor seu âmbito de aplicação
pessoal, o grupo protegido pelos Princípios Orientadores relativos aos Deslo-
cados Internos é definido no parágrafo 2 de sua Introdução, que determina que

[...] os deslocados internos são pessoas, ou grupos de pessoas, força-


das ou obrigadas a fugir ou abandonar as suas casas ou seus locais de
residência habituais, particularmente em consequência de, ou com vista
a evitar, os efeitos dos conflitos armados, situações de violência gene-
ralizada, violações dos direitos humanos ou calamidades humanas ou
naturais, e que não tenham atravessado uma fronteira internacionalmente
reconhecida de um Estado9.

A relevância dos Princípios está principalmente em operar como diretriz


para o desenvolvimento de políticas nacionais para os Estados que enfrentam
os desafios de deslocamento interno forçado em massa, além de serem ampla-
mente utilizados por órgãos e organizações humanitárias internacionais. No
entanto, é preciso observar que não foram formalmente reconhecidos pelos
Estados mediante a sua incorporação em tratado internacional vinculante.
Portanto, possuem, pelo menos, prima facie, caráter meramente recomenda-
tório. Por outro lado, é possível sustentar que esse soft law foi transformado

63-77, 2014. p. 64.


7 Em inglês: Guiding Principles on Internal Displacement, U.N. doc. E/CN.4/1998/53/Add.2, 11 fev. 1998.
Disponíveis em português como Princípios Orientadores Relativos aos Deslocados Internos: www.ohchr.
org/Documents/Issues/IDPersons/GPPortuguese.pdf. Acesso em: 18 set. 2022.
8 OCHA. Manual de Aplicação dos Princípios Orientadores Relativos aos Deslocados Internos. The Brookings
Institution, 1999. Disponível em: www.dhnet.org.br/dados/manuais/a_pdf/manual_deslocados_internos.pdf.
Acesso em: 18 set. 2022.
9 ACNUR, Princípios Orientadores. Op cit. (nota 4).
418

no decorrer dos anos, pela praxe dos Estados e do reconhecimento da sua


força jurídica, em direito costumeiro, razão pela sua violação pode resultar na
responsabilização internacional de respectivo Estado que deixar de cumprir
esses standards importantes10.

2.2 Direito interno

A história ucraniana registra numerosos casos de migração interna for-


çada em massa por fatores políticos, econômicos, ecológicos, tecnológicos
e de defesa. No entanto, até 2014 não havia regulamentação legal nacional
que os especificasse como “pessoas deslocadas internamente”, tratando-os

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


como migrantes forçados, exilados, pessoas evacuadas ou referenciando-os
conforme casos específicos, prevendo medidas a serem adotadas por prazo
determinado, como foi o caso de pessoas afetadas pelo incidente na usina
nuclear de Chernobyl11.
Em 2014, o início dos confrontos militares com a Rússia levou a Ucrânia
a criar uma regulamentação legal dos deslocados internos, cujas disposições
foram desenvolvidas em função de princípios e normas reconhecidos pelo
direito internacional, considerando-se também a experiência de outros países
com tal fenômeno. Trata-se da Lei nº 1706-VII, de 20 de outubro de 2014,
sobre a “Garantia dos Direitos e Liberdades das Pessoas Deslocadas”12. Por-
tanto, essa lei documenta o esforço do Estado ucrânio para implementar os
standards internacionais acima descritos.
A referida lei estabelece, em seu Artigo 1º (1), o conceito da PDI vin-
culado à nacionalidade ucraniana e à residência permanente no território
nacional, sendo fator-chave “ter sido forçado a deixar o local de residência
por motivo preventivo ou como consequência negativa de conflito armado,
ocupação, manifestações generalizadas de violência, violações dos direitos
humanos ou situações extraordinárias naturais ou provocadas pelo homem”13.
Observa-se, que, a princípio, essa definição é ampla comparada ao conceito
internacional da PDI. Torna-se ainda mais abrangente ao considerar, em

10 GOLDMAN, Robert K. Internal Displacement, the Guiding Principles on Internal Displacement, the Principles
Normative Status, and the Need for their Effective Domestic Implementation in Colombia. ACDI, v. 2, p. 59-86,
2009. p. 60.
11 BASOVA, Iryna. Internally Displaced Persons and Their Legal Status: The Ukranian Context. Juridica Inter-
national, n. 26, p. 113-124, 2017.
12 UKRAINE. Law n. 1706-VII, 20 Oct. 2014, on Ensuring of Rights and Liberties of Internally Displaced Persons.
Disponível em: www.ilo.org/dyn/natlex/natlex4.detail?p_lang=fr&p_isn=99133. Acesso em: 22 set. 2022.
13 Tradução nossa de “was forced or voluntarily left one’s residence place as a result of or in order to avoid
negative impact of armed conflict, temporary occupation, situations of generalized violence, mass violations
of human rights and disasters of natural or human-made origin”.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 419

tais circunstâncias, dispensa de comprovação se houver registros oficiais do


ACNUR, da Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE),
do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), do Comissário do Parla-
mento Ucraniano para os Direitos Humanos14.
A Lei nº 1.706-VII, de 2004, prevê, quanto ao seu conteúdo, a adoção de
medidas preventivas para evitar episódios de deslocamento interno forçado
de pessoas, ou, ocorrido o deslocamento forçado, de medidas para proteger
e observar os direitos e liberdades das pessoas afetadas, além de promover
condições para seu retorno voluntário ao local de residência abandonado ou
integração a novo local de residência dentro do país.
À vista disso, sendo constatado o fato de deslocamento, é necessário
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

requerer formalmente a condição de PDI conforme o procedimento previsto


na lei (onde requerer, capacidade para requerer, apresentação de documentos
de identidade e residência, prazo para apreciação pela autoridade competente)
até a emissão ou recusa justificada do certificado de registro de um deslo-
cado interno. Se comprovado o enquadramento como PDI, seu nome deve
ser inserido no chamado Banco de Dados Unificado de Informações sobre
Deslocados Internos.
Após registrados, dever-lhes-á ser assegurado emprego, pensão, seguro
social obrigatório do estado, serviços sociais, educação, saúde, direitos eleitorais,
unidade familiar. Além disso, fornecer informações confiáveis sobre ameaças à
vida e à integridade física nos territórios abandonados pelas PDI e nos em que
se encontrem; residência adequada com possibilidade de gratuidade por prazo
determinado; pagamento do custo dos serviços comunitários; eletricidade e
energia térmica; gás natural em locais de assentamento compacto de deslocados
internos; assistência para movimentação de bens; assistência no regresso ao local
de residência anterior; medicamentos; assistência médica; educação; serviços
sociais e administrativos; registros civis; ajuda humanitária e caritativa; dentre
outros direitos definidos pela Constituição e leis da Ucrânia.
De acordo com o Ministério para Políticas Sociais da Ucrânia, o país
conseguiu registrar através desse procedimento mais que 1,8 milhão de PDI
já em meados de 201615. Todavia, já na época, não conseguiram fazer o
registro de milhares de PDI que se encontram em territórios ucranianos onde
o Estado não exercia controle efetivo16. Essa problemática é vivenciada em
razão da ocupação de alguns territórios, como é o caso da República Autô-
noma da Crimeia, da cidade de Sebastopol e as regiões de Donetsk, Lugansk,

14 UKRAINE. Law n. 1706-VII, op cit. (nota 12), Art. 1º (1).


15 SASSE, Gwendolyn. War and Displacement: The Case of Ukraine. Europe-Asia Studies, v. 72, n.3, p. 437-
453, 2020. p. 438.
16 Id., Ibid.
420

Kherson e Zaporozhye, que foram (temporariamente) anexadas pela Rússia, a


quem caberia a partir de então a obrigação de respeitar e garantir os direitos
humanos de quem lá esteja sob a sua jurisdição17.
Assim, considerando que as instituições existentes até 2016 na Ucrânia,
cujas atividades visavam a recuperação e a construção da paz no leste da Ucrâ-
nia, além da reintegração dos territórios ucranianos ocupados, não conseguiram
desempenhar plenamente suas tarefas e funções devido a poderes insuficien-
tes. Por isso, em abril de 2016 foi adotada a Resolução nº 1097-VIII Sobre a
Formação do Gabinete de Ministros da Ucrânia e foi criado o Ministério dos
Territórios Ocupados Temporariamente e Pessoas Deslocadas Internamente da
Ucrânia para adoção de políticas públicas e resposta a tais desafios18.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Não obstante essas medidas, o Relatório da OSCE sobre violações de
Direito Internacional Humanitário e dos Direitos Humanos, Crimes de Guerra
e Crimes contra a Humanidade, expedido 11 de julho de 2022, registra que
a maioria das violações de direitos humanos que ocorreram nos conflitos na
Ucrânia se deram nos territórios sob ocupação russa19.
Salienta-se que não basta garantir formalmente determinados direitos, é
preciso operacionalizá-los. Pôr em praxe a Lei nº 7.006-VII, de 2014, é outro
desafio, que certamente é dificultado pela atual guerra, que começou a se ampliar
e intensificar com o início das “operações especiais” russas em fevereiro de 2022.

3. As vulnerabilidades das PDI: o caso das mulheres

Se, por um lado, parte da população ucraniana20, em especial, masculina21,


passou a participar diretamente dos conflitos armados, seja como combatentes
das forças regulares de um dos Estados em conflito ou como integrantes de
milícias ou outros grupos organizados armados, outra parte se retirou das

17 OSCE. Report on Violations of International Humanitarian and Human Rights Law, War Crimes and Crimes
against Humanity Committed in Ukraine (1 APRIL – 25 JUNE 2022). ODIHR.GAL/36/22/Corr.1, 14 jul. 2022.
Disponível em: https://www.osce.org/files/f/documents/3/e/522616.pdf. Acesso em: 8 nov. 2022.
18 Ministry for reintegration of the temporarily occupied territories of Ukraine. Disponível em https://minre.gov.
ua/en/rubric/about-ministry. Acesso em: 7 out. 2022.
19 OSCE. Op cit. (nota 17).
20 Há também milhares de homens estrangeiros que participam como foreign fighters nas hostilidades. Para
uma análise do seu status específico, veja: MALET, David. The Risky Status of Ucraine’s Foreign Fighters.
Foreign Policy, 15 mar. 2022. Disponível em: https://foreignpolicy.com/2022/03/15/ukraine-war-foreign-fighter-
s-legion-volunteers-legal-status/. Acesso em: 23 set. 2022.
21 Devido à imposição do direito marcial pelo governo ucraniano, homens entre 18 e 60 anos estão proibidos
para viajar para exterior. UKRAINE. Presidential Decree n. 64/2022, 24 Febr. 2022. Veja para uma análise
crítica da ampliação do direito marcial: CARPENTER, Charli. Civilian Men Are Trapped in Ukraine. Human
rights and humanitarian NGOs should pay attention to Kyiv´s sex-selective martial law. Foreign Policy, 15
jul. 2022. Disponível em: https://foreignpolicy.com/2022/07/15/ukraine-war-conscription-martial-law-men-
-gender-human-rights/. Acesso em: 24 set. 2022.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 421

regiões do teatro de operações, temendo por suas vidas. Assim, em fevereiro


e março de 2022, milhões de crianças, mulheres e idosos se tornam PDI com
base na Lei nº 7.006-VII, de 2014. De acordo com um estudo da Organização
Internacional para Migrações (IOM), de junho de 2022, cerca de 63% das
PDI são mulheres22.
Todos passam por situações muito complicadas e, às vezes, difíceis de
comparar por causa das circunstâncias e vulnerabilidades bem específicas
de cada caso. Enquanto alguns estão impedidos, por diversos motivos, de se
registrar e solicitar os serviços ofertados pelo Estado ucraniano ou organizações
intergovernamentais ou não governamentais, outros conseguiram informar seu
status como PDI. Mesmo assim, não conseguem efetivar os seus respectivos
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

direitos por uma série de dificuldades enfrentadas. Sendo impossível enume-


rar especificamente todas essas lutas e tragédias humanas, serão abordadas, a
seguir, algumas das dificuldades enfrentadas por mulheres em razão do gênero.
É notório que guerras suscitam espaços de violência, possibilitando várias
crueldades. Infelizmente, estupros e outros abusos sexuais são relativamente
comuns e podem até ocorrer de forma generalizada e sistemática, mesmo que
constituam violações aos direitos humanos e ao direito internacional humani-
tário, tendo, não raramente, qualidade de crimes de guerra23. Portanto, desta-
ca-se como vulnerabilidade especial de mulheres PDI a sua integridade sexual.
Sem dúvida, no caso ucraniano, o medo das mulheres de se tornarem
vítimas dessas violências é também um motivo importante para as suas fugas,
muitas vezes, conjuntas como os seus filhos. Há diversas notícias, inclusive
oficiais da ONU, alertando sobre esse risco, em evidência para os constantes
relatos sobre estupros e outras formas de violência sexual24. Estima-se que
a violência de gênero aumentou cerca de 22,4% desde o início dos confrontos
armados em 2014.
Segundo Campasso et al., as mulheres deslocadas no leste da Ucrânia
experimentaram taxas três vezes mais altas de violência do que as residentes
locais. Alerta ainda, que dentre as mulheres deslocadas, cerca de 62% sofre-
ram algum tipo violência em casa e 20% nas mãos de homens armados25.
Essas condutas podem até configurar parte de uma estratégia de expulsar a

22 IOM. Regional Ukraine Response Situation Report #21, 10 jun. 2022. Disponível em: https://www.iom.int/
sites/g/files/tmzbdl486/files/situation_reports/file/iom-regional-ukraine-response-external-sitrep-10062022-fnl.
pdf. Acesso em: 21 out. 2022.
23 GAGGIOLI, Gloria. Sexual violence in armed conflicts: A violation of international humanitarian law and
human rights law. International Review of the Red Cross, v. 96, n. 984, p. 503-538, 2014. p. 538.
24 UNITED NATIONS. Reports of sexual violence in Ukraine rising fast, Security Council hears. UN News, 6
jun. 2022. Disponível em: https://news.un.org/en/story/2022/06/1119832. Acesso em: 24 set. 2022.
25 CAMPASSO, Ariadna et al. Lessons from the field: Recommendations for gender-based violence pre-
vention and treatment for displaced women in conflict-affected Ukraine. The Lancet, v. 17, n. 100408,
422

população civil dos territórios ocupados pela Rússia, já que assumir o risco
de permanecer nas suas residências não é opção, menos ainda, quando a vida
própria e da família está colocada em xeque.
Há, porém, outros dados angustiantes que destacam a urgência do pro-
blema sob a ótica de gênero. Em grande porção, são vinculados a vulnerabi-
lidades socioeconômicos. Por muitas vezes estarem como únicas chefes de
família no processo de deslocamento interno, as mulheres passam a acumular
dificuldades provenientes das normas de gênero incorporadas na sociedade
ucraniana por estereótipos culturais complexos e desequilíbrios de poder nas
relações públicas e privadas.
No mais, muitas vezes, acumulam outras circunstâncias de complexidade
e vulnerabilidade por serem grávidas, lactantes, estarem acompanhando seus

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


filhos menores, por serem pessoas com deficiência física, idosas ou vítimas
diretas de violências. Além de dificuldade de acesso às instituições com con-
sequente mitigação de direitos básicos à informação, transporte, moradia e
trabalho, se veem também suscetíveis a discriminação por serem mulheres.
Mais da metade das mulheres deslocadas internamente relata que fora
forçada ao emprego informal por causa da situação de vulnerabilidade, diante
da necessidade de pagar aluguel e se responsabilizar por todo o sustento de
sua família. Se a taxa de informalidade entre os deslocados internos é duas
vezes maior do que a taxa média de informalidade entre todos os trabalhadores
assalariados e assalariados com idades entre 15 e 70 anos na Ucrânia, destes,
79% são mulheres26.
Assim, há uma alta probabilidade de que as deslocadas internas se envol-
vam em empregos informais e desprotegidos, dificultando a integração à nova
comunidade social. Ademais, conforme dados do Ministério da Política Social
da Ucrânia, as mulheres ganham, em média, 25% menos que os homens. As
mulheres deslocadas, especialmente aquelas que têm filhos e/ou aquelas com
40 anos ou mais, são um grupo particularmente preterido em contratações
formais e em cargos bem remunerados. Assim, as deslocadas internas têm
acesso limitado aos meios de subsistência e são submetidas a ambientes de
trabalho inseguros, enfrentando circunstâncias indignas que, dentre outras
coisas, aumentam o risco também de assédio moral e sexual27.
7 maio 2002. Disponível em: www.thelancet.com/action/showPdf?pii=S2666-7762%2822%2900101-6.
Acesso em: 20 set. 2022.
26 HRYSTOVA, Ganna; UVAROVA, Olena. Gender Component of Internal Displacement in Ukraine: A Case of
Business (In)Capability to Localize Human Rights Impact Assessment. Business and Human Rights Journal,
p. 1-8, 2022. Disponível em: www.cambridge.org/core/journals/business-and-human-rights-journal/article/
gender-component-of-internal-displacement-in-ukraine-a-case-of-business-incapability-to-localize-human-right-
s-impact-assessment/7D671D60B42EB7B17248E527EEBFDD11#fn21. Acesso em: 20 set. 2022.
27 COUNCIL OF EUROPE OFFICE IN UKRAINE. The survey was conducted in person in several stages
with a grant support provided by the Council of Europe Project ‘Internal Displacement in Ukraine: Building
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 423

Com rendas mais baixas, muitas deslocadas internas da Ucrânia têm difi-
culdades maiores de contratar moradias adequadas, especialmente quando são
chefes de família, razão pela qual muitas vezes optam pelo contrato informal
de arrendamento, que, no entanto, não lhes permite reivindicar benefícios
sociais, colocam-nas em instabilidade jurídica quanto ao direito de moradia.
Ainda, os bancos se recusam a conceder empréstimos e outros serviços ban-
cários para mulheres com mais frequência do que para homens, especialmente
quando se tratam de deslocadas internas.
Isoladas em suas moradias ou em casas de pessoas que a acolheram,
vivenciam trabalho doméstico não remunerado e violência doméstica. Sofrem
com a dificuldade de acesso à Justiça, com disputas familiares em casos de
divórcio e pedidos de pensão alimentícia para os filhos, com a indeterminação
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

do local de residência que acaba por dificultar o direito de convivência familiar.


Usualmente lhes faltam serviços médicos, psicológicos e sociais, bem
como recebimento de benefícios sociais e previdenciários por uma série de
restrições legais ucranianas para pessoas deslocadas internamente em compa-
ração com outros cidadãos, tais como: a obrigação de usar apenas os serviços
do Sberbank para receber benefícios de pensão e a necessidade de identificação
para utilização de serviços bancários para recebimento trimestral28.
Pela diminuição da rede de apoio profissional e familiar, diante de sua
vulnerabilidade econômica e a falta de vínculos sociais estáveis, as mulheres
em deslocamento interno tornam-se cada vez mais dependentes economica-
mente de seus companheiros e são visadas como potenciais alvos fáceis para
violência física, sexual e patrimonial por redes de criminalidade. Em trânsito,
há um aumento do risco de tráfico de mulheres para prostituição forçada,
escravidão doméstica, trabalho forçado ou mendicidade.
Diante desse contexto, é preciso realizar uma abordagem de gênero para
tomada de decisões do Estado, organizações internacionais e empresas que
considerem a natureza interseccional da discriminação de mulheres e meni-
nas em situações de deslocamento interno para que estabeleçam modelos de
operação baseados em padrões de conduta que efetivamente equilibrem os
interesses concorrentes de diferentes indivíduos.

4. Da implementação dos direitos das mulheres deslocadas

Os supracitados Princípios Orientadores Relativos aos Deslocados Internos


de 1998 abordam a questão de gênero como um diferencial no atendimento das
demandas desta categoria bastante heterogênea, prevendo, por exemplo, que:

Solutions’. Disponível em: https://www.coe.int/en/web/kyiv/idps2. Acesso em: 20 set. 2022.


28 HRYSTOVA, G.; UVAROVA, O. Op cit. (nota 26).
424

Certos deslocados internos tais como, crianças, especialmente não acom-


panhadas, mães grávidas, mães com crianças menores, mulheres-chefes
de família, pessoas portadoras de deficiência e velhas, devem ter direito
a proteção e assistência exigidas pelas suas condições e a um tratamento
que tome em consideração as suas necessidades especiais [...].
Os deslocados internos, com ou sem liberdade restringida, têm o direito
de ser protegidos, em particular de:
a. estupro, mutilação, tortura, crueldade, castigo ou tratamento desumano
e degradante, e outras ofensas contra a sua dignidade pessoal, tais como
atos de violência específica do gênero, prostituição forçada e qualquer
forma de ameaça indecorosa; [...].
Deve-se dar uma atenção especial às necessidades sanitárias da

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


mulher, incluindo o acesso aos serviços, e àqueles que prestam, cuidados
sanitários femininos, tais como saúde reprodutiva, bem como o aconse-
lhamento apropriado às vítimas de abusos sexuais e outros abusos29.

Existem, porém, dúvidas quanto à implementação adequada dessas dire-


trizes internacionais pela Lei nº 1706-VII, de 201430. Apesar de constar no
seu Artigo 14 uma cláusula não discriminatória, essa lei parece ser lacunosa
sob a ótica de gênero ao suprimir as particularidades do grupo. Isso é verifi-
cável na busca do termo “mulher” ou “gênero” ao longo desse instrumento
jurídico, onde apenas um deles é mencionado uma única vez, no penúltimo
artigo e de maneira genérica, juntamente com a menção a outros grupos vul-
neráveis, na seção sobre a cooperação internacional sobre os problemas dos
deslocados internos:

5. A Ucrânia assegurará uma distribuição justa dessa assistência às pessoas


deslocadas internamente, levando em consideração as necessidades das
pessoas com necessidades especiais, pessoas com deficiência, mulheres
e crianças, pais solteiros, aposentados e idosos. assegurando que haverá
distribuição justa dessa assistência às pessoas deslocadas internamente,
levando em consideração as necessidades das pessoas com necessidades
especiais, pessoas com deficiência, mulheres e crianças, pais solteiros,
aposentados e idosos31.

Comparado com outros grupos vulneráveis, nota-se uma disparidade


da ênfase dada às mulheres deslocadas: os termos “criança” e “menor”
são bastante realçados, estando mencionados 65 vezes e 4 quatro vezes

29 ACNUR, Princípios Orientadores. Op cit. (nota 4).


30 Compare IONOACA, Ganna. Internally Displaced Persons in Ukraine: Gaps in Law and Practice. Master
Thesis, Faculty of Law, Lund University, 2016, p. 27-43.
31 UKRAINE. Op cit. (nota 12), Art. 18. Tradução livre.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 425

respectivamente; “deficiência” é mencionado dez vezes e “idoso” é mencio-


nado três vezes.
De fato, a atenção dada pelo legislador ucraniano aos direitos das mulhe-
res internamente deslocadas parece ser insuficiente também sob a perspectiva
da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Contra as Mulheres (CEDAW), de 1979, ratificada pela Ucrânia. É o que se
constata nas Observações Finais sobre 8º Relatório Periódico da Ucrânia32,
de março de 2017, frente ao Comitê33 para Eliminação da Discriminação
contra a Mulher, que dedica uma parte do documento para tratar das PDI e
destaca sua preocupação com aplicação da referida lei:
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

O Comitê está preocupado com o número crescente de mulheres e meninas


deslocadas internamente no Estado Parte, que precisam de uma intervenção
de longo prazo para garantir, entre outras coisas, seu acesso a serviços
básicos e proteção. Ao observar a adoção da Lei sobre Garantir os Direitos
e Liberdades das Pessoas Deslocadas Internamente em outubro de 2014,
bem como uma série de resoluções e decretos sobre assistência às mulhe-
res deslocadas internamente, o Comitê está preocupado com a falta de
medidas de implementação. O Comitê está ainda preocupado com o
fato de que mulheres deslocadas internamente, incluindo mulheres idosas,
mulheres com deficiência, mulheres ciganas e mulheres lésbicas, bisse-
xuais e transgêneros, correm um risco maior de ser ou foram submeti-
das à violência sexual e exploração sexual, enfrentam a exacerbação
da as já difíceis condições de vida e as dificuldades de acesso ao registo
como deslocados internos e à liberdade de circulação, bem como as
limitadas oportunidades de emprego. O Comitê observa os esforços do
Estado Parte para continuar o pagamento de benefícios sociais a pessoas
deslocadas internamente nas áreas afetadas pelo conflito. No entanto,
está preocupado que mães e esposas de soldados mortos enfrentem sérios
desafios para acessar os pagamentos de benefícios sociais (Grifo nosso)34.

O Comitê, fazendo uma leitura crítica dessas medidas tomadas pelo


governo ucraniano perante a comunidade internacional, elencou como reco-
mendações: a) que o Estado Parte atenda às necessidades específicas dos
diferentes grupos de mulheres nessa categoria de migração que são subme-
tidas a variadas formas de discriminação, com atuação intervencionista de

32 CEDAW. Concluding Observations on the Eighth Periodic Report of Ukraine. CEDAW/C/UKR/CO/8, 9


mar. 2017. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N17/062/86/PDF/N1706286.
pdf?OpenElement. Acesso em: 18 set. 2022.
33 Ver para uma breve descrição das competências e do funcionamento desse órgãos de monitoramento:
PETERKE, Sven; LIMA, Newton de Oliveira. Revista Direito & Gênero, v. 1, n. 2, p. 1-33, 2010.
34 CEDAW. Op cit. (nota 32), § 16.
426

longo prazo para atende-las; b) que assegure a implementação efetiva da Lei


sobre Garantir a Direitos e Liberdades das Pessoas Deslocadas Internamente
através da emissão de regulamentos para permitir a sua operacionalização;
c) garanta a esse grupo acesso adequado a serviços de saúde, educação, ali-
mentação, abrigo, livre circulação, registro, benefícios sociais e oportunida-
des para garantir justiça e soluções duradouras, bem como oportunidades de
emprego sustentável35.
Em consequência às recomendações de 2017, sobretudo acerca da apli-
cabilidade da norma interna sobre PDIs enfatizada neste estudo, o último
Relatório apresentado pela Ucrânia ao CEDAW36, em dezembro de 2021,
elenca medidas adotadas pelo governo na formulação de estratégias, plano

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


de ação para sua aplicação e resultados obtidos até 2020. Destacam-se as
estratégias utilizadas para integrar os deslocados internos, com a adoção de
medidas para segurança de mulheres frente aos conflitos armados entre a
Rússia e a Ucrânia, a indicação de projeto de lei que tipifica, dentre outros
fatores, a violência sexual relacionada ao conflito.
Tal relatório ainda não foi analisado pelo Comitê, razão pela qual ainda
inexistem novas observações e, consequentemente, respectivas recomenda-
ções. É preciso reconhecer, porém, que o Estado ucraniano parece se engajar
em diálogo construtivo, o que já configura um avanço na luta pela efetiva-
ção dos direitos em análise, embora seja um processo complexo e relativa-
mente moroso37.
O fato de o Estado se encontrar em situação de guerra, com certeza,
dificulta o cumprimento de seus deveres. Por outro lado, essa justificativa
nem sempre poderá ser considerada válida, uma vez que, como no caso dos
direitos das pessoas PDI, as violações decorrem tipicamente de consequências
dos conflitos armados. Quanto ao fato de o próprio Estado estar incapaz ou
impedido de cuidar de algumas delas, deve recorrer à ajuda internacional,
oferecida por Estados ou organizações intergovernamentais ou não governa-
mentais – o que parece ocorrer no caso ucraniano.

35 Id., § 17.
36 GOVERNMENT OF UKRAINE. Ninth periodic report submitted by Ukraine under article 18 of the Convention,
due in 2021, U.N. doc. CEDAW/C/UKR//9, 29 dez. 2021. Tradução livre. Disponível em: https://tbinternet.
ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/TBSearch.aspx?Lang=en. Acesso em: 18 set. 2022.
37 O Comitê, atacando o desafio de monitorar a implementação das obrigações decorrentes da referida con-
venção, elaborou, nos últimos anos, uma série de Recomendações Gerais (General Recommendations)
que buscam interpretar os direitos e princípios previstos na Convenção. Destarte, facilitam e orientam a
elaboração dos relatórios periódicos cuja apreciação sempre termina na editoração de observações finais
(Concluding Observations) que, por sua vez, contém recomendações específicas. Outros comitês chamam
o mesmo instrumento de “Comentário Geral”. PETERKE, Sven. O significado dos General Comments para
a interpretação dos direitos humanos. Notícia do Direito Brasileiro, n. 15, p. 77-102, 2009.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 427

Desde 2014 as tensões violentas no leste da Ucrânia evidenciaram a


necessidade de serviços de saúde mental e apoio psicossocial sobre traumas
(MHPSS) para sobreviventes de violência de gênero. Diante dessa realidade, a
ONG Health Right International e a Fundação Ucraniana para a Saúde Pública
expandiram e aprimoraram o MHPSS para mulheres vítimas de violência entre
2015 e 202038. Com o apoio do Fundo de População das Nações Unidas
(UNFPA), o projeto implantou mais de 52 equipes móveis de MHPSS que
forneceram informações diretas sobre trauma a mais de 100.000 sobreviventes
de violência em áreas afetadas por conflitos39.
Esses grupos organizaram treinamentos sobre prevenção e resposta à
violência doméstica e sexual na rede de referência na região e se integra-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ram a redes locais para atenção à saúde mental e serviço social por meio
de parcerias com unidades médicas, delegacias de polícia, serviços sociais,
bem como Ministério da Política Social e autoridades locais. Linhas diretas
nacionais como SupportME e La Strada para denúncia, além do uso de kits
de saúde reprodutiva de emergência no atendimento e tratamento pós-estupro,
tonaram-se essenciais.
O projeto expandiu-se também para aumentar as oportunidades econô-
micas das mulheres deslocadas por conflitos, reforçando o empreendedorismo
social liderado por mulheres. Em 2020, o UNFPA Ucrânia fez parceria com
10 empresas para desenvolver as habilidades vocacionais e oferecer oportu-
nidades de emprego a mais de 3.000 mulheres deslocadas40.
Após a invasão da Rússia em 2022, com o agravamento do deslocamento
interno e das violências suportadas pelas mulheres, o apoio tangível fornecido
incluiu alimentos, itens não alimentares e de higiene, campanhas informa-
tivas para ajudar a prevenir o tráfico de pessoas bem como a exploração e
abuso sexuais, e novas promessas de assistências sociais e previdenciárias.
No entanto, essas últimas têm sido referidas com dificuldades diante das
exigências específicas do Governo.
Tem se mostrado cada vez mais necessário fornecer treinamento obriga-
tório de gênero para todo o pessoal de resposta humanitária que trabalha com
mulheres e meninas em risco, pois é preciso que esteja preparado para acolher
e responder às violências relatadas pelas deslocadas, inclusive, aderindo-se
a códigos éticos de conduta e obrigações de denúncias. É urgente a demanda
por reforço de proteção às mulheres ao longo dos corredores humanitários,

38 UNICEF. Mental Health and Psychosocial Support for Children in Humanitarian Settings: An Updated
Review of Evidence and Practice, nov. 2020. Disponível em: https://mhpsscollaborative.org/wp-content/
uploads/2021/05/MHPSS-2020-REVIEW.pdf. Acesso em: 24 abr. 2023.
39 CAMPASSO, A. et al. Op cit (nota 25), p. 1.
40 Id., p. 2
428

nos postos de controle e nas passagens de fronteira e centros de recepção para


pessoas deslocadas internamente, sobretudo, mulheres e crianças que viajam
sozinhas ao longo das rotas de deslocamento.
Se as organizações da sociedade civil, muitas vezes lideradas por mulhe-
res, demonstraram ser pedra angular da rede de resposta à violência de gênero
pré-guerra, sem elas não haveria ajuda humanitária, socorro imediato ou recu-
peração de longo prazo na circunstância atual. As mulheres ucranianas estão
na vanguarda da resposta humanitária e defendem a restauração dos direitos
humanos coletivos e das liberdades fundamentais já há algum tempo. Contudo,
estão sendo excluídas das negociações entre a Federação Russa e a Ucrânia,
o que tem sido preocupante41.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Não pode haver expectativa real de busca pela paz sem a participação
político-diplomática das mulheres, pois a história tem mostrado repetidamente
que a eclosão de conflitos e guerras aumenta a exposição de mulheres e meni-
nas a crimes de guerra, especialmente todas as formas de violência de gênero,
assassinatos arbitrários, estupro e tráfico. Igualmente, nota-se a ausência de
iniciativas legislativas internas nesse sentido desde a ocorrência dos conflitos
entre a Rússia e a Ucrânia, o que resulta na insuficiência dos instrumentos
legais a serem somados ao Direito Internacional para garantia específica dos
direitos das mulheres deslocadas internamente.

5. Conclusão

A Guerra na Ucrânia produziu milhões de PDI. A maioria é formada por


mulheres que, em virtude do seu gênero, possuem uma série de vulnerabili-
dades e necessidades especiais. Todas as PDI devem ser atendidas de acordo
com os Princípios Orientadores sobre Deslocados Internos, de 1999. Para
tanto, os Estados devem incorporá-los no seu direito interno, o que aconteceu
relativamente tarde na Ucrânia, somente após a eclosão do conflito armado
com a Rússia em 2014, através da Lei Nº 7.006-VII.
Tratando-se, sem dúvida, de um avanço, há também motivos para críti-
cas, em especial, por não depositar devida atenção às particularidades enfren-
tadas pelas mulheres deslocadas internamente. Essas lacunas aumentam
o risco de violações dos seus direitos em razão do seu gênero e já foram
identificadas por órgãos internacionais de monitoramento, como o Comitê
CEDAW, o que resultou em recentes recomendações cuja real implementação

41 UNITED NATIONS. Ukraine: Protection and participation of women is essential, say UN human rights experts,
UN Press Release, 4 mar. 2022. Disponível em: www.ohchr.org/en/press-releases/2022/03/ukraine-protec-
tion-and-participation-women-essential-say-un-human-rights. Acesso em: 20 set. 2022.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 429

pelo Estado ucraniano, até agora, é de difícil aferição. Destaca-se, porém,


que há um relatório periódico da Ucrânia de 2021 esperando por sua análise
final pelo Comitê.
Diante da insuficiência dos instrumentos legais para garantia específica
dos direitos das mulheres deslocadas internamente, a sociedade civil ucraniana
vem se mobilizando em conjunto com a comunidade internacional, represen-
tada pelo Comitê CEDAW e outros órgãos e atores, em prol de reduzir as
vulnerabilidades enfrentadas pelas mulheres PDI.
Conclui-se que, apesar desses esforços no tratamento das PDI, as mulhe-
res continuam sendo bastante impactadas e é necessário integrá-las melhor
tanto nos esforços administrativos e empresariais quanto nas atividades polí-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

tico-diplomáticas em busca do ideário da paz, trazendo maior segurança a


esse grupo vulnerável.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
ÍNDICE REMISSIVO
Symbols
1954 31, 32, 33, 34, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 49, 50, 51, 52,
53, 54, 98, 156, 165, 276, 282

A
Ameaça nuclear 285
Armas autônomas 171, 172, 173, 174, 175, 176, 177, 178, 179, 180, 186, 188
Armas nucleares 21, 31, 40, 61, 87, 114, 117, 198, 279, 285, 286, 287, 288,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

289, 290, 291, 292, 293, 294, 295, 296, 297, 298, 299, 300, 301, 302, 303,
304, 377
Assembleia Geral da ONU 21, 24, 58, 60, 95, 101, 104, 110, 135, 180, 194,
201, 251, 292, 296
Assistência humanitária 14, 18, 100, 117, 205, 206, 207, 208, 209, 210, 211,
212, 213, 214, 215, 216, 217, 219, 220, 221, 365, 390, 398, 414, 437

C
Carta da ONU 17, 19, 20, 22, 23, 24, 25, 26, 58, 59, 60, 63, 65, 66, 67, 71,
73, 74, 75, 79, 85, 93, 95, 96, 97, 98, 99, 101, 102, 104, 105, 108, 109, 110,
115, 121, 123, 130, 131, 132, 136, 166, 250, 282, 283, 295, 374, 377, 379, 380
CEDH 360, 361, 362, 363, 364, 365, 366, 367, 368, 369, 370
Ciberespaço 123, 125, 126, 127, 131, 132, 133, 134, 135, 136, 194
Civis 13, 18, 26, 89, 95, 120, 126, 151, 152, 155, 156, 161, 162, 177, 180,
181, 182, 185, 186, 187, 188, 195, 196, 197, 198, 199, 200, 201, 202, 203,
206, 207, 208, 209, 210, 212, 215, 220, 226, 227, 228, 229, 230, 231, 237,
238, 252, 253, 260, 264, 271, 276, 277, 278, 280, 284, 286, 291, 292, 295,
307, 308, 309, 330, 331, 349, 354, 355, 360, 363, 364, 369, 372, 374, 377,
380, 417, 419
Clandestinidade 325, 327, 329, 330, 336, 337
Comunidade internacional 23, 24, 27, 32, 69, 73, 77, 85, 95, 98, 104,
105, 115, 134, 136, 160, 167, 191, 205, 206, 212, 213, 214, 218, 219, 220,
221, 224, 248, 249, 296, 312, 336, 338, 350, 356, 380, 381, 382, 387, 416,
425, 429
Conflito russo-ucraniano 126, 130
432

Conflitos armados 18, 19, 25, 26, 27, 73, 130, 136, 145, 146, 147, 148, 150,
151, 152, 154, 164, 169, 180, 182, 185, 189, 191, 192, 195, 205, 206, 207,
208, 209, 210, 212, 219, 223, 224, 225, 226, 232, 233, 240, 241, 252, 260,
262, 263, 264, 267, 268, 276, 277, 278, 280, 285, 286, 287, 288, 305, 306,
307, 308, 309, 310, 311, 312, 313, 316, 318, 319, 320, 321, 326, 329, 330,
331, 332, 333, 341, 346, 351, 377, 385, 401, 402, 417, 420, 426
Conselho da Europa 31, 359, 360, 361, 362, 364, 365, 367, 368, 369, 370,
371, 372
Conselho de Direitos Humanos 24, 102, 103, 252, 341, 342, 343, 344, 347,
353, 354, 355, 356, 357, 376, 377, 379, 380, 385, 388
Conselho de Segurança 17, 20, 21, 22, 23, 24, 31, 39, 58, 59, 60, 61, 63, 68,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


70, 71, 74, 75, 77, 78, 81, 85, 90, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 108,
109, 110, 120, 131, 146, 149, 165, 166, 167, 212, 216, 246, 250, 254, 257,
259, 270, 271, 273, 280, 281, 282, 284, 289, 294, 299, 311, 312, 375, 382, 385
Constituição da RSFSR 43, 46, 50, 51
Constituição da RSSU 43
Constituição da Ucrânia 37, 62, 77, 129
Constituição da URSS 43, 49, 50
Convenção de Genebra 26, 27, 57, 136, 148, 152, 153, 180, 183, 191, 192,
193, 194, 195, 197, 198, 200, 201, 203, 208, 210, 211, 212, 219, 220, 225,
232, 238, 239, 252, 262, 263, 264, 270, 275, 278, 279, 286, 291, 302, 308,
309, 310, 319, 330, 332, 345
Corte Internacional de Justiça 30, 58, 67, 68, 70, 72, 76, 79, 80, 81, 82, 83,
84, 87, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 96, 102, 134, 159, 166, 194, 249, 271, 288,
290, 297, 370, 386
Crianças 13, 18, 100, 205, 206, 211, 212, 213, 214, 215, 216, 217, 218, 220,
221, 253, 279, 280, 311, 375, 379, 397, 398, 407, 408, 409, 421, 424, 428
Crime de guerra 27, 103, 105, 188, 197, 212, 245, 247, 248, 252, 253, 255,
256, 259, 260, 264, 265, 266, 267, 268, 270, 271, 272, 273, 274, 275, 276,
277, 278, 279, 280, 285, 286, 287, 288, 289, 302, 303, 310, 312, 313, 314,
315, 319, 320, 331, 333, 338, 344, 355, 406, 408, 420, 421, 428
Crimeia 13, 18, 29, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45,
46, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 61, 63, 65, 76, 77, 83, 98, 107, 111, 113, 120,
123, 124, 126, 127, 148, 156, 157, 158, 191, 193, 194, 201, 205, 218, 246,
254, 262, 308, 342, 346, 347, 348, 349, 351, 352, 356, 357, 366, 370, 389,
408, 415, 419
Crime internacional 67, 285, 305, 313, 324
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 433

D
Dádiva imperial 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 42, 43, 46, 49, 53, 54, 98
Direito à paz 373, 374, 375, 376, 377, 378, 379, 380, 381, 382, 383, 387
Direito brasileiro 249, 251, 336, 426
Direito da guerra 145, 147, 148, 150, 151, 152, 153, 154, 155, 158, 160, 161,
162, 168, 169, 252
Direito de Defesa 59, 60, 61, 63, 64, 65, 67, 68, 70, 71, 73, 77
Direito humano à paz 373, 377, 378, 380, 382, 383, 384, 385, 386, 387
Direito internacional da manutenção da paz 14, 55, 136
Direito internacional humanitário 14, 25, 57, 74, 101, 116, 117, 143, 172,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

177, 182, 184, 186, 187, 188, 191, 195, 196, 199, 202, 205, 206, 223, 225,
232, 233, 240, 246, 252, 259, 262, 263, 264, 265, 267, 268, 269, 270, 274,
275, 277, 278, 279, 283, 285, 286, 288, 301, 306, 308, 309, 311, 314, 320,
341, 343, 344, 346, 350, 353, 386, 417, 420, 421
Direito internacional penal 14, 25, 240, 243, 268, 307, 312, 313, 316, 318,
319, 320
Direito internacional público 17, 68, 69, 189, 260, 268, 271, 277, 314, 316,
320, 362, 369, 437
Direitos das mulheres 404, 415, 423, 425, 428, 429
Direito soviético 34, 43

E
Elite política 42, 44, 107, 111, 118
Espionagem 127, 199, 257, 283, 323, 324, 325, 326, 327, 328, 329, 330, 331,
332, 333, 334, 335, 336, 337, 338
Espionagem cibernética 127, 331, 332
Estatuto de Roma 212, 219, 240, 246, 259, 265, 268, 269, 271, 272, 273,
274, 275, 276, 277, 278, 279, 285, 287, 288, 289, 302, 303, 313, 315, 317,
319, 323, 324, 333, 337, 348, 408
Estupro 280, 305, 306, 307, 309, 310, 311, 312, 313, 314, 315, 316, 318,
319, 320, 321, 401, 406, 424, 427, 428

F
Fevereiro de 2022 13, 17, 57, 63, 65, 67, 76, 79, 84, 99, 103, 107, 109, 132,
148, 157, 162, 166, 191, 194, 195, 206, 246, 250, 254, 298, 333, 353, 355,
361, 364, 366, 389, 397, 415, 420
434

G
Genocídio 17, 20, 67, 72, 76, 79, 80, 82, 83, 84, 86, 87, 88, 89, 91, 92, 93,
94, 102, 138, 177, 245, 247, 248, 249, 265, 270, 271, 291, 303, 313, 315,
316, 317, 320, 415

I
Invasão russa 24, 85, 105, 129, 191, 195, 202, 218, 362, 363, 366, 394,
395, 406

L
LAWS 14, 40, 167, 171, 172, 173, 174, 175, 177, 178, 179, 180, 181, 182,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


185, 186, 187, 188, 189, 240, 275
Legítima defesa 17, 19, 22, 59, 63, 75, 77, 85, 93, 97, 115, 116, 120, 131,
133, 165, 166, 167, 192, 250, 261, 289, 290, 291, 292, 303

M
Manutenção da paz 14, 23, 55, 74, 81, 90, 96, 97, 101, 108, 136, 249, 375
Medidas cautelares 76, 79, 80, 81, 82, 84, 85, 86, 87, 88, 90, 91, 92, 93, 94,
102, 249, 363, 365, 366
Meio ambiente 181, 223, 224, 225, 226, 227, 228, 229, 230, 231, 232, 233,
234, 235, 238, 239, 240, 241, 266, 290, 291, 294, 298, 301
Meios pacíficos 22, 24, 66, 101, 260, 280, 282, 283, 378
Mudanças territoriais 34, 43, 46, 48, 49, 50
Música 137, 138, 139, 140, 141, 142

O
Ocupação 14, 41, 191, 192, 193, 194, 195, 196, 197, 199, 200, 201, 203, 233,
272, 308, 348, 351, 352, 354, 401, 418, 419, 420
ONU 17, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 31, 39, 58, 59, 60, 63, 64, 65, 66,
67, 70, 71, 73, 74, 75, 77, 79, 83, 85, 90, 92, 93, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 101,
102, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 110, 111, 115, 118, 120, 121, 123,
130, 131, 132, 135, 136, 139, 142, 164, 165, 166, 171, 180, 185, 193, 194,
201, 214, 216, 217, 224, 226, 246, 247, 250, 251, 252, 253, 281, 282, 283,
290, 292, 295, 296, 307, 311, 341, 342, 343, 348, 355, 374, 375, 377, 379,
380, 384, 388, 390, 406, 417, 421
Operação militar especial 17, 19, 57, 110, 113, 247
Operações cibernéticas 25, 123, 126, 130, 131, 132, 135, 136
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 435

P
PDI 415, 416, 417, 418, 419, 420, 421, 425, 426, 428, 429
Pessoas refugiadas 389, 390, 391, 392, 394, 395, 398, 399, 404, 406, 407,
408, 410, 411, 412, 413, 414, 416
População civil 155, 187, 191, 195, 196, 197, 200, 203, 205, 206, 208, 209,
210, 211, 219, 221, 224, 227, 228, 229, 230, 231, 234, 235, 236, 237, 251,
252, 275, 276, 278, 287, 288, 317, 331, 332, 365, 422
Prisioneiros de guerra 26, 27, 99, 149, 150, 151, 162, 197, 247, 252, 264,
271, 275, 286, 309, 331, 355
Proteção da população 200, 205, 206, 213, 219, 227, 234
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Protocolo adicional I 153, 154, 155, 182, 184, 185, 187, 192, 194, 198, 210,
211, 212, 220, 225, 226, 227, 228, 230, 234, 236, 237, 291, 302, 308, 310
Putin 17, 18, 19, 21, 25, 28, 33, 35, 60, 61, 84, 95, 100, 104, 119, 129, 193,
245, 246, 247, 250, 253, 254, 255, 256, 257, 279, 280, 281, 396, 408, 409

R
Região da Crimeia 33, 34, 36, 38, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 51, 52, 53, 54, 351,
352, 356, 357
Relações russo-ucranianas 34, 35, 37, 38
Revisão periódica universal 341, 342, 344, 347, 352, 356
RSFS da Rússia 39, 41, 42, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 52, 53, 54
RSS da Ucrânia 34, 40, 41, 42, 44, 45, 46, 49, 51, 52, 53

S
Sanções econômicas 18, 111, 115, 116, 118, 121, 129, 131, 156
Sebastopol 33, 34, 35, 37, 38, 39, 40, 42, 49, 50, 51, 52, 53, 63, 65, 113,
156, 348, 352, 419
Século XXI 24, 125, 134, 297, 341, 386
Segunda Guerra Mundial 13, 21, 23, 24, 26, 31, 35, 36, 41, 97, 125, 166,
245, 247, 268, 272, 359, 361, 389, 396, 415
Segurança internacional 31, 135, 136, 180, 302, 391
Sistema Europeu de Direitos Humanos 21, 359, 361, 362, 366, 370
Sociedade civil 29, 299, 354, 362, 368, 372, 378, 380, 382, 383, 384, 385,
387, 428, 429
Soviete Supremo 36, 41, 44, 45, 46, 48, 49, 50, 52, 53
Sujeito ativo 259, 265, 266, 328
436

T
Territórios seguros 389, 390, 391, 395, 406, 414
Território ucraniano 74, 76, 79, 83, 84, 86, 89, 93, 95, 99, 103, 104, 105,
107, 108, 110, 111, 193, 194, 201, 234, 246, 249, 254, 307, 310, 350, 353,
357, 362, 366, 389, 415
TPI 28, 29, 219, 246, 247, 248, 250, 251, 253, 254, 255, 256, 257, 268, 269,
270, 271, 273, 274, 279, 280, 285, 286, 287, 307, 314, 315, 316, 318, 319,
320, 321, 323, 324, 331, 333, 335, 336, 337, 338
Transferência da Crimeia 32, 33, 34, 35, 36, 38, 40, 42, 43, 44, 45, 46, 49,
50, 53, 54, 98
Tribunal Penal Internacional 24, 28, 58, 105, 138, 219, 245, 246, 249, 251,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


254, 256, 257, 259, 268, 270, 271, 272, 273, 274, 280, 285, 288, 289, 305,
307, 312, 313, 323, 324, 348, 385, 387, 408, 437

V
Violência Sexual 251, 253, 305, 306, 307, 308, 309, 310, 311, 312, 315, 316,
317, 318, 319, 320, 321, 348, 355, 393, 394, 414, 421, 425, 426
SOBRE OS ORGANIZADORES

Sven Peterke
Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas (PPGCJ)
da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Doutor summa cum laude em
Ciências Jurídicas e Mestre em Assistência Humanitária Internacional pela
Universidade de Bochum, Alemanha (2005, 2001). Jurista diplomado pela
Universidade de Kiel (2000). Estágio pós-doutoral no Instituto Max Planck
para Direito Público Comparado e Direito Internacional Público em Heidel-
berg, Alemanha (2016-2017).
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Tarciso Dal Maso Jardim


Consultor Legislativo do Senado Federal em direito internacional. Membro
do Editorial Board da Revista do Comitê Internacional da Cruz Vermelha.
Participou das reuniões constitutivas do Tribunal Penal Internacional em Roma
(1998), Nova Iorque (2000-2) e Uganda (2010). Foi Conselheiro da Comissão
de Anistia e do CDDPH (Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana)
e Assessor da Presidência do Supremo Tribunal Federal.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
SOBRE OS AUTORES
Alina Cherviatsova
Marie Sklodowska-Curie Research Fellow no Centro de Direitos Humanos
da Universidade de Ghent (Bélgica). Ex-Professora Associada para Direito
Público Comparativo, Direitos Humanos e Direito Internacional na Uni-
versidade Nacional Karazin Kharkiv (Ucrânia). Doutora em Direito pela
Universidade Nacional Karazin Kharkiv (Ucrânia); Mestra em Direito pela
Universidade de Direito Nacional Yaroslav Mudryi, Kharkiv (Ucrânia). Ex-re-
search fellow pela Fundação Alexander von Humboldt, no Instituto Max
Planck para a História de Direito Europeu, Frankfurt a.M. (Alemanha), no
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Instituto Max Planck para Direito Comparativo e Direito Internacional, Heidel-


berg (Alemanha), e na Faculdade de Direito da Universidade de Turim (Itália).

Ielbo Marcus Lobo de Souza


PhD, University of London. Professor da Universidade Federal da Paraíba
(UFPB) e membro da Associação de Direito Internacional. Regional Security
Expert do Centre for Defence and Security Studies (CDSS), University
of Manitoba.

Lucas Carlos Lima


Professor de Direito Internacional Público na Faculdade de Direito da Univer-
sidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisador visitante na Universi-
dade de Paris I – Panthéon-Sorbonne. PhD pela Universidade di Macerata e
Fellow no Max Planck Institute of International Procedural Law (Luxemburgo)
e no Lauterpacht Centre of International Law da Universidade Cambridge.

Francisco Gaspar de Lima Junior


Doutorando em Ciências Jurídicas pelo PPGCJ da Universidade Federal da
Paraíba (UFPB) e Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN). Contato: gasparjus@gmail.com.

Heverton Felinto Pedrosa de Mélo


Doutorando em Ciências Jurídicas pelo PPGCJ da UFPB e Mestre em Ges-
tão Pública e Cooperação Internacional pela UFPB. Contato: hevertonmelo.
adv@gmail.com.

Felipe Tôrres Pereira


Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pelo Programa de Pós-Graduação
em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (PPGCJ – UFPB).
Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pelo PPGCJ. Professor Universitário
e Assistente Legislativo. E-mail: torress.felippe@gmail.com.
440

Marcelynne Aranha Almeida


Doutoranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba
(PPGCJ/UFPB). Mestre em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públi-
cas pela Universidade Federal da Paraíba (2022). Pós-graduada em Relações
Internacionais e Direito Internacional pelo IBMEC-SP (2020). Pós-graduada
em Direito Civil e Processo Civil pela ESA-PB (2022). Bacharel em Ciências
Jurídicas e Sociais pela UFPB (2018). Pesquisadora e Advogada.

Marcílio Toscano Franca Filho


Foi Legal Advisor da Missão de Paz da ONU em Timor Leste. É Árbitro da
Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) para a área de arte

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


e patrimônio cultural; da Court of Arbitration for Art (CAfA) e do Tribunal
Permanente de Revisão do MERCOSUL. Membro do Conselho Executivo
da International Law Association (ILA). Professor da Faculdade de Direito
da Universidade Federal da Paraíba. Procurador-Chefe da Força-Tarefa do
Patrimônio Cultural do Ministério Público de Contas da Paraíba. Membro do
Comitê Jurídico da International Art Market Studies Association (TIAMSA);
do Instituto Hispano-Luso-Americano de Derecho Internacional (IHLADI);
da Associazione Italo-Brasiliana dei Professori di Diritto Amministrativo e
Costituzionale (AIBDAC); do Istituto Nazionale per il Diritto dell’Arte e dei
Beni Culturali (INDAC, Itália); Pós-Doutorado no Instituto Universitário
Europeu de Florença (EUI). Foi Professor Visitante nas Universidades de
Turim, Pisa (ambas na Itália) e Ghent (Bélgica). Agradeço aos estimados
colegas Professores Leonardo Pasquali (Pisa), Matteo Del Chicca (Pisa),
Alberto Vespasiani (Molise), M. Paola Mittica (Urbino) e Felipe Avellar de
Aquino (UFPB), sem os quais este texto não teria existido ou, pelo menos,
não chegaria ao mesmo resultado.

Victor Alencar Mayer Feitosa Ventura


Doutor em Direito Internacional Público, Universidade de Hamburgo. Asses-
sor Jurídico do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural, Brasil. Advogado.
Foi Assistente Jurídico do Tribunal Internacional do Direito do Mar. E-mail:
vfventura@gmail.com.

Eduardo Cavalcanti de Mello Filho


Assistente de Pesquisa, Departamento de Direito Internacional Público e
Organização Internacional, Faculdade de Direito, Universidade de Genebra.
Mestrando em Direito Internacional, Geneva Graduate Institute of Internatio-
nal and Development Studies. Bacharel em Direito pela Universidade Federal
da Paraíba. E-mail: eduardocavalmello@gmail.com.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 441

Bárbara Thaís Pinheiro Silva


Mestranda em Relações Internacionais pela PUC Minas. Bacharel em Direito
pela PUC Minas. Consultora na UFRGS IHL Clinic.

Luíza Fernandes
Coordenadora Geral (2023) da UFRGS IHL Clinic.

Cláudio Cerqueira B. Netto


Doutorando em Direito na Université de Lausanne, Suiça. LL.M. pela New
York University, EUA. Bacharel em Direito e Mestre em Direito Internacional
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Leticia Heinzmann
Graduanda em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.

José Wagner de Oliveira Tavares


Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba
(PPGCJ/UFPB). Mestre em Relações pela Universidade Estadual da Paraíba
(PPGRI/UEPB). Coordenador de captação de recursos e de campanhas em
Direitos Humanos na Oxfam Ireland, entre 2012 e 2016. Supervisor de equipes
de campanhas em Direitos Humanos e captação de recursos na Oxfam New
Zealand, entre 2016 e 2017.

Robson Antão de Medeiros


Professor titular em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. Professor
dos Cursos de Pós-Graduação em Direito e do Programa de Mestrado Profis-
sional em Gerontologia, dos Cursos de graduação em Direito e em Comunica-
ção em Mídias Digitais da UFPB. E-mail: robson.antao@academico.ufpb.br.

Gabriela Hühne Porto


Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
e Mestre na linha de Direito Internacional no Programa de Pós-Graduação
da UERJ. Atuou como consultora da IHL Clinic da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul em 2022.

Ana Paula dos Santos


Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coor-
denadora geral da IHL Clinic UFRGS (2022). Pesquisadora na temática de
migração e refúgio e CEO do English Project RS.
442

Allan Jones Andreza Silva


Doutorando e Mestre em Ciências Jurídicas (UFPB), Especialista em Direitos
Fundamentais e Democracia (UEPB), Bacharel em Direito (UEPB) e Segu-
rança Pública (PMPB).

Thiago Fernando Alves de Araújo Lima


Mestrando em Ciências Jurídicas (UFPB), Especialista em Segurança Pública
e Direitos Humanos (UFPB) e Bacharel em Direito (UNIPÊ).

Fredys Orlando Sorto


Professor Titular de Direito Internacional Público da Universidade Federal
da Paraíba (UFPB). Mestre em Direito Internacional e Doutor em Ciência

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Política pela Universidade de São Paulo (USP). Ex-coordenador do Programa
de Pós-Graduação (2001-2004) e Ex-Diretor do Centro de Ciências Jurídicas
da Universidade Federal da Paraíba (2017-2021).

Giovanna M. Frisso
Professora na Faculdade de Direito da Universidade de Lincoln, Reino Unido.
Doutorado em Direito pela Universidade de Nottingham, Reino Unido; Mestre
em Direito Internacional e Comparado pela Universidade de Uppsala, Suécia,
Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), Brasil.

Carlos Frederico de Oliveira Pereira


Subprocurador-Geral da Justiça Militar, Doutor em Direito pela Universidade
de Brasília (UnB), Professor-Adjunto da UnB, Professor de Direito Penal.

João Gabriel Dias Arruda Vieira Dantas


Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (CCJ/UFPB). Pes-
quisador do Núcleo de Estudos em Tribunais Internacionais da Universidade
de São Paulo (NETI-USP).

Melissa Gusmão Ramos


Professora da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Doutoranda em
Direito na Université Catholique de Louvain – Bélgica. Mestre em Ciências
Jurídicas pela UFPB.

Johannes van Aggelen


Doutor em Doutor em Direito pela Universidade de Nijmegen – Países-Bai-
xos (1976); Doutor em Direito Civil pela Universidade McGill University
– Canadá (1989). Ex-servidor da ONU. Contato: vanaggelenjohannes@
gmail.com.
A GUERRA NA UCRÂNIA E O DIREITO INTERNACIONAL: debates atuais 443

Liliana Lyra Jubilut


Mestre e Doutora em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo
(USP) e tem LL.M. em International Legal Studies pela NYU School of Law.
Foi Visiting Scholar na Columbia Law School e Visiting Fellow na Refugee
Law Initiative – University of London. É Professora do Programa de Pós-
-Graduação em Direito da Universidade Católica de Santos, instituição em
que coordena o Grupo de Pesquisa “Direitos Humanos e Vulnerabilidades”
e a Cátedra Sérgio Vieira de Mello, em parceria com o Alto Comissariado
das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). No âmbito da Organização
Internacional para Migrações (OIM) é membro do Migration Research Lea-
ders Syndicate e é Migration Research and Publishing High-Level Adviser.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

É, ainda, Membro da Global Academic Interdisciplinary Network (GAIN),


do Pacto Global para Refugiados, coordenada pelo ACNUR, do Academic
Council on the Global Compact for Migration e da Women in Refugee Law
network. Trabalha com a temática das pessoas refugiadas desde 1999.

Flávia Oliveira Ribeiro


Bacharel e Mestranda em Direito pela Universidade Estadual Paulista
(UNESP), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Campus Franca. É
membro do Grupo de Pesquisa “Direitos Humanos e Vulnerabilidades” da
Universidade Católica de Santos e do “Núcleo de Estudos de Direito Inter-
nacional de Ribeirão Preto” (NEDIRP) da Universidade de São Paulo (USP),
campus Ribeirão Preto. Bolsista CAPES no ano de 2022 – Código de Finan-
ciamento 001.

Quévia Linamara de Almeida Camboim


Mestranda em Ciências Jurídicas (PPGCJ/UFPB). Auxiliar em Administração
da Universidade Federal da Paraíba. Advogada. E-mail: quevia.camboim@
academico.ufpb.br.

Janayna Nunes Pereira


Doutoranda em Ciências Jurídicas (PPGCJ/UFPB). Mestre em Ciências Jurí-
dicas (PPGCJ/UFPB). Advogada. Presidente da Rede Estadual de Advogadas
em Sororidade da OAB/PB. E-mail: janaynanunes.advogada@gmail.com.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

SOBRE O LIVRO
Tiragem não comercializada
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12,3 x 19,3 cm
Tipologia: Times New Roman 10,5 | 11,5 | 13 | 16 | 18
Arial 8 | 8,5
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal | Supremo 250 g (capa)
A GUERRA NA UCRÂNIA E O
DIREITO INTERNACIONAL
Debates Atuais
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Em 24 de fevereiro de 2022, a Rússia iniciou as chamadas “operações mili-


tares especiais” no território da Ucrânia. Em consequência disso, desdobra-
ram-se inúmeros eventos que abalaram a ordem jurídica internacional em
vigor e causaram danos materiais e imensurável sofrimento humano. Já
matou e feriu milhares de combatentes e civis, além de ter deslocado
milhões de pessoas. A obra aborda os principais debates acadêmicos até
agora suscitados sobre a presente Guerra na Ucrânia, sob a ótica do Direito
Internacional da Manutenção da Paz e Segurança Internacionais; do Direito
Internacional Humanitário; do Direito Internacional Penal; e do Direito Inter-
nacional dos Direitos Humanos e dos Refugiados. Organizado a partir
desses quatro eixos, a presente obra consiste em 23 análises de 30 autores
e autoras nacionais e internacionais. São estudos fundamentais para melhor
compreender o atual estágio desse conflito armado em relação ao direito
internacional público.

ISBN 978-65-251-5184-7

9 786525 151847

Você também pode gostar