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Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Noemia de Morais Santos


Carla Antloga
(Organizadoras)
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Empreendedorismo feminino:
um olhar para o real

Editora CRV
Curitiba – Brasil
2022
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Revisão: Os Autores

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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
CATALOGAÇÃO NA FONTE
Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506

Em55

Empreendedorismo feminino: um olhar para o real. / Noemia de Morais Santos, Carla


Antloga (organizadoras). – Curitiba : CRV, 2022.
274 p.

Bibliografia
ISBN Digital 978-65-251-3668-4
ISBN Físico 978-65-251-3667-7
DOI 10.24824/978652513667.7

1. Empreendedorismo 2. Trabalho – mulheres I. Santos, Noemia de Morais, org. II. Antloga,


Carla, org. III. Título IV. Série.

2022-27336 CDD 658.421


CDU 65.016.7
Índice para catálogo sistemático
1. Empreendedorismo – 658.421

2022
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
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Sydione Santos (UEPG)
Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)

Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
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Sumário
Prefácio ............................................................................................................. 9
Pedro Henrique Lopes Borio

Parte 1
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Capítulo 1
Abordagem histórico-conceitual sobre empreendedorismo feminino
no Brasil........................................................................................................... 15
Noemia de Morais Santos
Carla Antloga
Reni Elisa da Silva

Capítulo 2
O empreendedorismo nos “projetos de vida” do “novo” ensino médio:
uma análise exploratória do PNLD 2021 ......................................................... 33
Cícero Muniz

Capítulo 3
Empreendedorismo na educação superior: análise comparativa
por gênero e modalidade de ensino das características do
comportamento empreendedor ....................................................................... 59
José Sérgio de Jesus
Mauro Célio Araújo dos Reis
Veruska Albuquerque Pacheco

Parte 2

Capítulo 4
“Guerreiras cor de rosa”: Instagram e discursos endereçados às
mulheres empreendedoras.............................................................................. 83
Carla Antloga
Raíssa Nayara Mota Pereira Costa

Capítulo 5
Empreendedorismo social feminino, inovação social e sustentabilidade ...... 101
Graziela Dias Alperstedt
Mariana Fraga

Capítulo 6
Desdobramentos do empreendedorismo negro: da motivação à falta
de crédito ....................................................................................................... 121
Lucas Sena Silva
Capítulo 7
Diga o seu trabalho, e lhe direi de que gênero é: a representação
discursiva das empreendedoras transgêneras entre reivindicação
identitária e luta transfeminista ...................................................................... 145
Nayla Júlia Silva Pinto
Paolo Francesco Cottone
Rafael Oliveira
Alexander Hochdorn

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Capítulo 8
Trabalho e mulheres: do mais ao nada — do formal ao (não) emprego ....... 173
Gisele Dantas
Marina Maia
Carla Antloga

Parte 3

Capítulo 9
Contribuições da psicodinâmica do trabalho para o empreendedorismo
realizado por mulheres .................................................................................. 203
Noemia de Morais Santos
Carla Antloga
Ronaldo Gomes-Souza

Capítulo 10
História de vida como método de pesquisa para estudar o
empreendedorismo realizado por mulheres .................................................. 219
Hilka Pelizza Vier Machado

Capítulo 11
Uma empreendedora em primeira pessoa .................................................... 229
Fernanda Amaral

Capítulo 12
Empreendedorismo feminino como “opção”: inclusão social e
políticas públicas ........................................................................................... 253
Paulo Henrique Souza Roberto

Índice remissivo ............................................................................................. 269


Prefácio
The size of your dreams must always exceed your current capacity to
achieve them. If your dreams do not scare you, they are not big enough.
(Ellen Johnson Sirleaf — ex-Presidente da
Libéria e Prêmio Nobel da Paz, 2011)
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É com grande satisfação que recebi o convite para prefaciar esta obra
coletiva, que se distingue por abordar temática relevante e atual, com enfo-
ques e contribuições de profissionais das mais variadas áreas: Sociologia,
Psicologia, Direito, Administração, Economia, entre outras.
Tal abordagem multidisciplinar, decerto, enriquecerá a compreensão
sobre um assunto complexo, do qual muito se passou a falar ultimamente,
mas pouco se sabe, efetivamente, com abrangência e profundidade.
Daí a importância de o livro procurar dar visão ampla e transversal,
que ajuda, didaticamente, a entender conceitos — pouco familiares para não
especialistas — sobre as estruturas e as dinâmicas que permeiam as relações
socioeconômicas, notadamente quanto ao inestimável papel empreendedor
das mulheres.
Assim, não poderia vir em melhor momento o presente trabalho, inti-
tulado ‘Empreendedorismo feminino: um olhar para o real’ — criteriosa-
mente organizado pelas professoras doutoras Noemia de Morais Santos e
Carla Sabrina Xavier Antloga. Graças ao diligente empenho de ambas, a obra
consegue lançar luz sobre facetas e interpretações matizadas acerca do tema,
com base em apanhados históricos, conceituais e metodológicos.
Pós-doutora em Psicologia pela USP, Carla Antloga teve Noemia Santos
como sua primeira orientanda no curso de doutorado em Psicologia Clínica e
Cultura da Universidade de Brasília (UnB). O livro não só se beneficiou dessa
estreita parceria, mas também é em si um dos resultados do trabalho conjunto
que desenvolveram durante o doutoramento de Santos.
Ao não se aterem à sequência rígida e linear, os capítulos se encadeiam
harmoniosamente para conduzir o(a) leitor(a) a “apreender” e a “dissecar” a
problemática ali exposta sob distintos ângulos, à luz de múltiplos fatores, a
saber: a vasta taxonomia do conceito, a começar pela noção de “empreende-
dorismo por necessidade” e “por oportunidade”; o exame da reformulação
do ensino e da aprendizagem de competências direcionadas ao empreendedo-
rismo, em suas acepções positiva e negativa; a análise comparativa de gênero
sobre “comportamento empreendedor”; o “discurso imagético” de mulheres
empreendedoras nas mídias sociais, com realce para o Instagram; o vínculo do
empreendedorismo feminino com iniciativas em matéria de sustentabilidade e
10

de inovação social; eventuais similitudes nos desafios enfrentados por mulhe-


res e empreendedores afrodescendentes no tocante, por exemplo, à inclusão
financeira e ao acesso a crédito; estudo da representação de empreendedoras
transgênero; correlação de determinados tipos de empreendedorismo com
aspectos de precariedade, informalidade do mercado de trabalho e flexibi-
lização das leis trabalhistas; olhar sobre a psicodinâmica do trabalho, ante
percepções acerca do caráter penoso e/ou satisfatório do exercício laboral.
O livro é rico em colocar em perspectiva debates e reflexões sobre

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desafios específicos usualmente enfrentados por mulheres empreendedoras,
em particular no intrincado contexto brasileiro. Invariavelmente, os autores
recordam que o Brasil — à semelhança de outros países — foi marcado e
continua influenciado por séculos de prevalência de sistema patriarcal, que,
em parte, explicaria as atuais persistentes desigualdades sociais e “iniqui-
dades de gênero” no acesso a oportunidades. Externam a avaliação — com
a qual coincido — de que lidar com tais desafios constitui responsabilidade
compartilhada por afetar o conjunto da sociedade.
A sociedade brasileira, apesar do longo caminho ainda a percorrer, tem
dado mostras de acrescida maturidade quanto à conscientização da importância
de se proporcionar melhores condições às mulheres: quer em sua inserção no
mercado de trabalho — e particularmente que lhes permita conciliá-lo com a
maternidade —, quer no fomento de negócios próprios, com assessoramento
aprimorado, inclusive com o respaldo de serviços como o SEBRAE.
Isso inobstante as áreas de atuação das mulheres, que raramente podem
“dar-se o luxo” de “escolher livremente” as atividades às quais vão se dedicar.
Fato é que muitas ainda sofrem as consequências de anos de cerceamentos,
estereótipos e formas sutis de violência econômico-social, que as impelem a
gerir “miniempreendimentos” precários, por força da nua e crua mera neces-
sidade de sobrevivência.
Independentemente de ideologias ou fórmulas preconcebidas, depreen-
de-se da leitura dos textos que o mundo atual — cada vez mais interdepen-
dente — terá de identificar soluções adaptadas a cada contexto, em prol de um
“empreendedorismo salutar”, que propicie dosar com equilíbrio as reformas
porventura necessárias nas legislações trabalhistas. Tal exercício será tão
mais eficaz quanto maior for a participação transparente e democrática de
segmentos da sociedade. Já na seara internacional, essa dinâmica benfazeja
parece guardar semelhança — mutatis mutandi — com o processo de con-
certação prévio, sobretudo entre países com percepções partilhadas, inclusive
nas entidades multilaterais e plurilaterais pertinentes.
Em termos gerais, consultas públicas — em distintas iniciativas de refor-
mas de políticas públicas — podem, em muito, facilitar e legitimar o alcance
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 11

por cada sociedade de objetivos próximos ao “ideal”, como em relação à pre-


servação de conquistas e direitos sociais, com foco nas mulheres. Ao mesmo
tempo, as sociedades se veem hoje na contingência de atualizar métodos de
“capacitação técnica” — ante as exigências das transformações econômico-
-tecnológicas —, o que não deveria, contudo, implicar o comprometimento
dos reconhecidos benefícios de formação humanística abrangente, capaz de
apurar o senso crítico e ético dos(as) jovens empreendedores(as).
Outro debate inescapável, mais evidenciado na fase aguda da covid-19
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— e tangencialmente abordado no livro —, diz respeito à conveniência de


se perenizar, no pós-pandemia, supostas “vantagens” do ensino a distância
“indiscriminado” e do recém disseminado “trabalho remoto” (home office).
Já no cenário internacional, vale recordar que o Brasil sempre teve atua-
ção destacada nas instâncias diplomáticas afetas ao tema, desde a realização,
em 1975, da Primeira Conferência Mundial sobre a Mulher, na cidade do
México, a cargo da Organização das Nações Unidas (ONU).
Naqueles moldes, a ONU chegou a organizar ao todo quatro importan-
tes conferências em quatro continentes [de novo em Copenhague (1980);
Nairóbi (1985); e Pequim (1995)] para impulsionar arcabouço normativo e
modalidades efetivas de proteção dos direitos das mulheres. Tais reuniões
constituíram um marco fundamental no processo gradual de eliminação das
formas de discriminação contra a mulher. Resultaram, ainda, em compromis-
sos e instrumentos internacionais, com mecanismos de acompanhamento em
vigor destinados a fazer cumprir as metas acordadas.
Atualmente, despontam os esforços globais para se atingir os “Objetivos
de Desenvolvimento Sustentável” (ODS) da Agenda 2030, também pactuada
no âmbito da ONU. Trata-se de plano de ação ambicioso para elevar con-
sistentemente as condições de vida da população mundial, em 17 quesitos
aferíveis. Como apontado no capítulo 8, vários desses ODS convergem para
os propósitos de reduzir as desigualdades de gênero, e de fortalecer, na prática,
o empoderamento feminino.
Como Embaixador do Brasil em Ottawa, me sinto em “posto de obser-
vação” privilegiado sobre o tema. Tenho acompanhado de perto a participa-
tiva atuação do Canadá, nas esferas doméstica e internacional, em apoio a
iniciativas de empreendedorismo feminino e de outros grupos historicamente
menos favorecidos.
O assunto tem sido naturalmente objeto de conversações e de troca de
apreciações em reuniões bilaterais entre delegações do Brasil e do Canadá. Por
vezes, é alvo também de esforços de coordenação entre os dois países em foros
internacionais correspondentes, consoante os respectivos interesses nacionais.
12

Evidentemente, não me compete emitir juízo de valor ou me pronunciar


sobre o “desempenho” deste ou daquele país no avanço do tema. O que posso
afirmar é que experiências alheias — por mais válidas que sejam — não devem
a priori ser automaticamente “emuladas” ou “transplantadas” para a realidade
brasileira, ainda que sirvam ocasionalmente como subsídios em eventuais
exercícios de formulação e de aperfeiçoamento de nossas políticas públicas.
Embora seja útil ter olhar crítico sobre o tratamento do tema no contexto
nacional, é forçoso reconhecer que efetivamente houve avanços consideráveis,

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nas últimas décadas, nos sistemas de proteção e de incentivo ao “empreen-
dedorismo feminino virtuoso” no Brasil. Claro que há ainda muito por fazer.
Trata-se, fato, de hercúlea tarefa coletiva inacabada, que demanda contínua
determinação e visão estratégica de longo prazo. O desafio permanente com-
pete ao poder público e à sociedade como um todo, independentemente de
conjunturas e governos.
É nesse espírito, assim, que reitero os agradecimentos pela oportuni-
dade de fazer esses breves comentários. Enalteço com prazer a iniciativa das
professoras doutoras Noemia Santos e Carla Antloga. Faço votos para que
logo chegue o dia em que o título deste trabalho não mais tenha razão de ser,
quando alcançaremos — oxalá — “estado de indistinção” nos critérios de
gênero, ao menos no que diz respeito ao acesso equânime a oportunidades.
Assim, onde hoje se lê “empreendedorismo feminino”, que se leia, em futuro
próximo, simplesmente “empreendedorismo”.
Ottawa, 15 de julho de 2022.

Pedro Henrique Lopes Borio


Diplomata e Embaixador do Brasil no Canadá
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Parte 1
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Capítulo 1
Abordagem histórico-conceitual sobre
empreendedorismo feminino no Brasil
Noemia de Morais Santos1
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Carla Antloga2
Reni Elisa da Silva3

A palavra entrepreneur vem da língua francesa e foi utilizada pela pri-


meira vez por Richard Cantillon, economista franco-irlandês, responsável
pela escrita do Essai sur la Nature du Commerce en Général e considerado o
pai da economia empresarial. Para o teórico, o empreendedor é o mecanismo
central da máquina produtiva, responsável pela aquisição, produção e troca
de mercadorias. Como tal, é quem admite para si a incerteza e os riscos da
condução de negócios.
Ao adentrar o estudo do empreendedorismo, contrapõem-se a necessidade
e a oportunidade. Embora não dicotômico, nem excludente, de algum modo
o empreendedorismo reflete os contextos de inequidade sobressalentes no
Brasil, porque a maneira como é praticado aqui se difere daquelas aplicadas
em outras situações, como, por exemplo, a estadunidense (american dream,
self-made, milionário, masculinizado, embranquecido, normatizado).
Porém, antes de problematizar as particularidades do empreendedorismo
feminino, descreve-se essa atividade por oportunidade e necessidade, bem
como os tipos de empreendedorismo mais referenciados na literatura cientí-
fica sobre a área.

Empreendedorismo por necessidade e por oportunidade

Conforme elucida Silva (2015), o empreendedorismo por necessidade


ocorre quando os empreendedores são motivados pela falta de alternativa
satisfatória de trabalho e de renda, como em momentos de elevado índice de
desemprego, de demissão ou por falta de alternativas de geração de renda.
Nesses contextos, trabalhadores buscam outros meios de sobrevivência e
esbarram na possibilidade de criar seu próprio negócio, tomando tais decisões

1 Universidade de Brasília.
2 Universidade de Brasília.
3 Universidade de Brasília.
16

orientadas pela necessidade. Esses empreendedores, em geral, limitam-se à


geração de renda para si e para seu núcleo familiar, sendo iniciativas simples
e pouco inovadoras.
De outro modo, o empreendedorismo por oportunidade, como estabelece
o mesmo autor, ocorre quando os empreendedores são movidos pela percepção
de um nicho de mercado em potencial, sendo orientados por oportunidade
existente. Nesses casos, existe o desejo de ser dono de um negócio, de modo

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que essa pessoa se planejou antes de se lançar como empreendedor, estando
sempre atenta às oportunidades. Assim, esse tipo de empreendedor tende a
acumular capital e alimentar-se de informações sobre o seu nicho, até chegar
o momento de deixar o emprego do momento para dedicar-se integralmente
ao seu empreendimento.

Empreendedorismo Cooperativo

O empreendedorismo cooperativo, por sua vez, caracteriza-se pela orga-


nização de indivíduos através de uma cooperativa, de modo a assegurar a
autonomia, a identidade e o desenvolvimento de cada membro, além de suprir
suas necessidades econômicas, sociais, culturais e afins. Os objetivos econô-
micos e sociais são comuns. Nessa forma de empreendedorismo, os membros
decidem de forma coletiva sobre os negócios, havendo, assim, participação
econômica e autogestão pelos empreendedores envolvidos, tendo também
direito à participação nos resultados do negócio (Zucatto & Silva, 2014).
Nesse sentido, é um modo de empreendedorismo conjunto, com vistas a
formar uma empresa cooperativa.
No empreendedorismo cooperativo os empreendedores devem se com-
prometer em trabalhar para o bem comum e de forma democrática, ter a
vontade de partilhar riscos e recompensas com os demais empreendedores,
além de entender como a cooperação aumenta o valor do negócio. Assim,
além de proprietários do negócio, os membros da cooperativa são também
usuários dos seus bens e serviços.
Ademais, além de investidores, os proprietários são empregados, forne-
cedores e/ou consumidores. É importante ressaltar, também, que o empreen-
dedorismo cooperativo se apresenta como agente do desenvolvimento social
e econômico para fortificar as populações mais pobres, em especial as que
vivem no meio rural (Zucatto & Silva, 2014).
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 17

Empreendedorismo Corporativo/Interno

Acerca do empreendedorismo corporativo, também conhecido como


intraempreendedorismo, Rodrigues e Teixeira (2014) o caracteriza como o
empreendedorismo que ocorre dentro de empresas já existentes. O empreende-
dorismo corporativo é um processo de desenvolver e identificar oportunidades
para criar por meio da inovação. Essa forma de empreendedorismo tem como
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um dos objetivos aumentar a rentabilidade da empresa, fazendo-a buscar maior


agilidade e flexibilidade, ou seja, maior competitividade com outras empresas.
Os referidos autores argumentam, também, que esse tipo de empreende-
dorismo surge quando um funcionário ou grupo de funcionários que detém
características empreendedoras adota uma postura semelhante àquela do dono
do negócio, posicionando-se como empreendedor e gerando vantagens, ino-
vação e oportunidades de crescimento para si e para o negócio dentro do
mercado em que a empresa está inserida. Assim, com o empreendedorismo
corporativo, busca-se a maximização dos resultados por meio de um con-
junto de práticas, ações e procedimentos dentro da empresa existente, como
lançamento de produtos ou incremento daqueles existentes e de sistemas de
criação. Com isso, geram-se novas soluções para proporcionar crescimento
da empresa e adaptação desta ao mercado, uma vez que as necessidades dos
consumidores se modificam ao longo do tempo.
Portanto, o empreendedorismo corporativo ocorre dentro do próprio
ambiente do negócio, tendo como um dos principais focos reconhecer oportu-
nidades à frente das empresas concorrentes, gerando inovação e maximização
dos resultados.

Empreendedorismo Social

O empreendedorismo social pode ser definido como um processo pelo


qual as pessoas usam do negócio para buscar soluções para problemas de
ordem social, como destruição ambiental, violação de direitos humanos, anal-
fabetismo, doenças, tendo como objetivo melhorar a vida na sociedade (Filho
& Pamponet, 2015).
Os processos e atividades do empreendedorismo social têm sua força e
criatividade voltadas para o impacto social que vão gerar. Tal impacto está
intimamente relacionado à capacidade de gerar benefícios para o maior número
de indivíduos que são afetados por problemas específicos e causar mudanças
significativas na estrutura da sociedade (Cáceres, 2018).
Assim, esses empreendedores buscam o empreendedorismo social como
meio de responder suas próprias aspirações e também para contribuir com
18

o desenvolvimento social. Como exemplo, podemos citar indústrias que se


utilizam de matéria-prima reciclada, que antes seria despejada diretamente
no lixo, para fabricação de todos os seus produtos. Essas indústrias reduzem
o impacto ambiental provocado pelo lixo, geram emprego e renda e movi-
mentam a economia.

Empreendedorismo Digital

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De acordo com Pinto e Martens (2021), o empreendedorismo digital
tem como base a criação de um empreendimento centrado principalmente
em meios digitais ou na transformação de negócios existentes, utilizando
novas tecnologias. Como exemplo, têm-se as instituições bancárias digitais,
que estão conquistando a preferência dos clientes por dispensarem a presença
física para a realização de negócios. Os serviços das empresas digitais também
demandam menos investimentos e a produção de serviços automatizados se
torna mais barata.
No empreendedorismo digital, alguns dos recursos, ou mesmo todos,
que seriam físicos no negócio, passam a ser digitais. Assim, esses empreen-
dedores utilizam tecnologia para permitir o crescimento de seus negócios
para além dos limites físicos. Além de plataformas e infraestrutura digital,
algumas empresas passaram a fazer uso da inteligência artificial como meio
de facilitar e agilizar a comunicação com inúmeros clientes.
Desse modo, o empreendedorismo digital tem como uma de suas princi-
pais características a utilização da tecnologia como meio de empreender. Os
colaboradores desses empreendimentos digitais, em geral, podem trabalhar
em escritórios ou mesmo em home office, tendo facilidades como assinatura
digital de documentos e reuniões por meio de plataformas online.

Empreendedorismo Inovador

O empreendedorismo inovador trata-se de uma inovação pioneira e trans-


formadora, na qual o empreendedor lidera um processo de mudança que vai
além dos domínios do seu próprio negócio e da sua própria esfera de atuação.
Como exemplo, temos aqueles negócios impulsionados através da tecnolo-
gia, como a criação de empresas startups, cujo foco é o desenvolvimento de
produtos inovadores (Kautnick, 2020).
Nesse tipo de empreendedorismo almeja-se novas oportunidades de mer-
cado, buscando localizar, mobilizar, combinar e explorar outros recursos em
resposta às oportunidades de negócios. O empreendedor inovador fornece um
produto ou serviço baseado em novas tecnologias, não sendo aquele que copia
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 19

um produto ou serviço disponível no mercado com pequenas modificações


conforme seus próprios interesses comerciais.
O empreendedor inovador pode ser caracterizado, também, como aquele
que consegue transformar ideias inovadoras em produtos, serviços ou tecnolo-
gias de alta demanda e comercializáveis, de modo que a inovação desempenhe
um papel específico como instrumento para obter rendimentos inovadores.
Podemos citar, como características desses empreendedores, a busca de opor-
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tunidades direcionadas ao conhecimento e à tecnologia e a formação acadê-


mica em áreas de base tecnológica, além da atuação em ambiente que viabiliza
não apenas a transferência de conhecimento como também o acesso a recursos
financeiros (Kautnick, 2020).

Empreendedorismo Sustentável

O empreendedorismo sustentável integra, simultaneamente, os princípios


econômico, social e ambiental às suas estratégias. Baseia-se nos pilares do
desenvolvimento sustentável ao buscar, por meio de suas atividades, ações
que integrem e beneficiem a sociedade e o ambiente natural (Orsiolli & Nobre,
2016). Adicionalmente, o empreendedorismo sustentável pode também ser
compreendido como fonte de inovação, na medida em que procura romper
com os métodos tradicionais de produção, estruturas e padrões de consumo.
Essas mudanças possibilitam soluções que reduzem o impacto ambiental e
geram benefícios para a sociedade.
Orsiolli e Nobre (2016) explicitam que o empreendedorismo sustentável
concentra-se em criar valores sustentáveis com base nos fatores econômico,
social e ambiental e que a integração entre esses fatores contribui para a
sobrevivência da empresa em longo prazo, à medida que seus valores são
compartilhados entre seus colaboradores.
Alguns critérios que podemos citar do empreendedorismo sustentável
são: objetivos econômicos de crescimento, investimento e orientação à inova-
ção, claras perspectivas para o desenvolvimento da empresa em longo prazo,
orientação sustentável como parte integrante do sistema de valor da empresa,
uso de meios de transporte ecológicos, redução de emissão de resíduos e des-
perdício de materiais, gerenciamento ecológico dos processos de produção,
redução dos níveis de emissão, exclusão da toxicidade, gênero e questões
gerais e uso eficiente de energia consumida, desenvolvimento ativo das com-
petências dos empregados, troca de experiências com atividades culturais de
economia local/regional, gestão participativa nos objetivos do negócio, apoio
às atividades da comunidade.
20

Empreendedorismo Público

No que tange ao empreendedorismo público, Nunes (2019) o define como


um processo no qual características empreendedoras são introduzidas nas
organizações públicas. O empreendedorismo público remete à evolução das
atividades realizadas por dado órgão público, principalmente sobre arranjos
institucionais e desenvolvimento e otimização de tarefas, bem como inovações
capazes de solucionar e/ou minimizar conflitos ligados ao uso do bem público.

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Além disso, esse tipo de empreendedorismo busca novos caminhos e
ferramentas que oportunizem aos gestores públicos a capacidade de vencerem
seus inúmeros desafios, por meio de ações empreendedoras na esfera pública,
construindo novas maneiras para maximização da produtividade e efetividade
organizacional. Nota-se também que o empreendedorismo no setor público é
um fator fundamental para promover a eficiência e fazer com que a prestação
do serviço público seja melhor, já que enfatiza o processo de inovação no
atendimento às demandas da sociedade.

Empreendedorismo Familiar

No empreendedorismo familiar, há a presença de membros de uma


mesma família no acompanhamento de tarefas gerenciais e/ou operacionais.
Costuma haver, também, a interação entre membros de diferentes gerações
no negócio, um fator que pode levar a conflitos no seio familiar, devido às
mudanças nas relações de poder e problemas nos processos sucessórios entre
os membros da família (Borges, 2012). Desse modo, entende-se o empreende-
dorismo familiar como uma associação entre a instituição família e o processo
empreendedor de seus membros, estando o controle acionário nas mãos do
núcleo familiar, que controla a administração e gestão do negócio, bem como
sua direção estratégica e processo sucessório.

Antecedentes Históricos do Empreendedorismo no Brasil

A história do trabalho no Brasil é fortemente marcada pelo resultado


de anos de colonialismo e pela escravidão, fatores que reforçam a grande
desigualdade social ainda presente. A atividade de empreender, no Brasil,
reflete tal desigualdade, especialmente se observarmos o empreendedorismo
feminino: ou a mulher tem recursos privilegiados para montar seu negócio ou
tem como uma de suas poucas alternativas tornar-se empreendedora (Ferreira,
Bastos & D’angelo, 2018).
Para a maior parte das mulheres que empreendem no Brasil, o empreende-
dorismo foi o modo de inserção no mercado de trabalho, quer por inequalidades
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 21

ainda existentes e/ou por ajustes para gerir trabalho e vida familiar. De qual-
quer forma, grande parte dessas mulheres empreende por necessidade, não por
oportunidade. Sendo assim, o empreendedorismo torna-se mais um exemplo
de divisão sociossexual do trabalho de Figueiredo, Nascimento Melo, Matos
e Machado (2015).
Face à realidade, construiu-se uma narrativa descolada da história e dos
fatos, na qual se responsabiliza os indivíduos por seu sucesso, como se não
houvesse antecedentes sociais, econômicos e culturais. Assim, mantém-se
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o status quo e segue-se mascarando as formas pelas quais a elite brasileira


assegura seus privilégios, garantindo o empreendedorismo por oportunidade
a homens brancos e financeiramente privilegiados (Siqueira, Nunes e Morais,
2018), sendo relevante pontuar que o empreendedorismo feminino no Brasil
não se iniciou em 1990, ao contrário, sempre existiu.
Ao visitar nosso passado e nossa história, bem antes da redemocratização
brasileira e estabilização da moeda, na década de 1980 e 1990, especifica-
mente, além da inserção da figura feminina no mercado de trabalho, observa-se
que sempre houve uma mulher, via de regra, pobre, periférica e muitas vezes
negra tentando se manter financeiramente. Tem-se, então, o empreendedorismo
feminino fortemente acentuado pelo coeficiente de necessidade.
A partir da obra A História da Inovação e do Empreendedorismo no Bra-
sil, de Stanley Loh (2016), em que o autor reconta a nossa história e como o
empreender esteve sempre presente no trabalho do brasileiro, alguns aspectos
relevantes sobre o assunto merecem reflexão.
Antes mesmo da chegada dos europeus ao Brasil, bem como do deno-
minado Descobrimento, os povos nativos realizavam atividades comerciais
tendo como base produtos agropecuários, como mandioca, feijão e milho,
assim como frutos do mar, aves e outros animais. Após a chegada dos portu-
gueses, a atividade comercial se intensificou com expedições financiadas por
D. Manuel, Rei de Portugal, em busca de pau-brasil. O pau-brasil, então, foi
substituído pela cana-de-açúcar, e esse comércio trouxe consigo as primeiras
imigrações, tanto de portugueses, franceses e holandeses, como dos escravi-
zados trazidos do continente africano.
Segundo Loh (2016), a partir de 1700 surgiu a categoria denominada
como mascates, sendo estes, talvez, os precursores dos comerciantes e
empreendedores de hoje. À época, a atividade era realizada por brasileiros
mestiços, negros livres, índios sem terras e mulheres. Essa atividade, realizada
por minorias da época, enfrentava forte preconceito e discriminação, entretanto
tornou-se uma das poucas “opções” para essa parcela da população. Prova-
velmente, esse contexto seja o marco do surgimento do empreendedorismo
por necessidade no Brasil.
22

Cabe ressaltar, conforme apontado pelo mesmo autor, que, aqui, o sistema
patrimonialista e o controle da Coroa Portuguesa não sustentavam atividades
empreendedoras, diferentemente do que aconteceu na colonização estaduni-
dense, empreendedora em sua essência.
Após essa fase, surgiram as denominadas Bandeiras e Entradas. Com
o objetivo de encontrar ouro e pedras preciosas, o movimento, a despeito de
inúmeras vidas indígenas ceifadas, levou, supostamente, o desenvolvimento
e comércio para o interior do Brasil.

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Ainda segundo Loh (2016), a chegada da Família Real portuguesa no
Brasil, em 1808, trouxe consigo certo desenvolvimento econômico e social,
com destaque para a construção de estradas, empresas públicas — como
a criação do Banco do Brasil, o primeiro banco do país —, a abertura do
comércio interno e da exportação de matéria-prima brasileira a outros países.
Desse modo, a sociedade brasileira da época experimentou um franco desen-
volvimento, ainda que acompanhado de alto custo de impostos ao povo, com
vistas a financiar a família real aqui.
A pressão inglesa sobre o reino português contribuiu para a Independên-
cia do Brasil em 1822, resultado de ideais antes defendidos na Inconfidência
Mineira, fomentados pela sociedade da época, já insatisfeita com a marcante
desigualdade social brasileira. Após a Independência, no Império de D. Pedro
II foi fomentada a vinda de mais estrangeiros para o Brasil, implicando em
mais demanda por produtos e serviços. Além disso, o Brasil se colocou como
fornecedor de matéria-prima para a Inglaterra. Acentuou-se mais o desenvol-
vimento econômico, a construção de estradas de ferro, a criação de empresas
de gás, a distribuição da eletricidade e a criação de vias de transporte, assim
como a importação de produtos antes não disponíveis ao povo que aqui vivia.
O tardio fim da escravidão no Brasil marcou ainda mais o número de
pessoas sem terra, trabalho e sustento, provocando a criação de pequenos tra-
balhos, “bicos”, entre outros, o que poderia ser categorizado como o início da
informalidade no trabalho, tão presente hoje em nossa economia. À margem
da terra, da propriedade de bens, do acesso à educação e da formação, havia,
já naquela época, um coeficiente crescente de brasileiros que viviam como
era possível, em busca de sustento e manutenção própria e dos seus.
Ainda na obra de Loh (2016), é relatada uma nova onda de imigração
de alemães e italianos, entre 1824 e 1875, bem como a chegada de japoneses
e espanhóis no início do século XIX.
Mais tarde, despontaram atividades agrícolas e pecuárias no Brasil, res-
saltando a nossa marcante tendência a atividades de produção de alimentos a
despeito de uma Revolução Industrial já pujante na Europa.
A Era Vargas trouxe consigo a criação do Instituto Brasileiro de Geo-
grafia e Estatística (IBGE), Correios, Petrobrás, sem falar no estabelecimento
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 23

de regras e direitos para os trabalhadores brasileiros. Com alguns direitos


garantidos, essa população passou a adquirir produtos e serviços não antes
acessíveis. Em 1931, instituíram-se os cursos de nível superior no Brasil,
nascendo, assim, a pesquisa e a ciência brasileiras. No ano posterior, 1932, o
trabalho realizado por mulheres foi regulamentado no país.
Nessa época, apesar de ser um país subdesenvolvido, com 2/3 de sua
população analfabeta, 70% ainda habitando o meio rural, o Brasil demonstrava
certo grau de industrialização, o que impulsionou, também, o crescimento da
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atividade empreendedora.
Loh (2016), por fim, defende que o Brasil de 1950 era uma promessa,
denominado como país do futuro. Alicerçado pelas ideias de Juscelino Kubits-
chek, o país parecia, finalmente, a caminho do desenvolvimento. Esperava-se
que o país substituísse a atividade agrícola pela atividade industrial, ou, pelo
menos, que fosse impulsionar esta última. Foi nesse contexto que o Brasil
abriu as portas para o capital estrangeiro. Aqui, a predominância da parceria
comercial inglesa foi substituída pela estadunidense. O capital dos Estados
Unidos proporcionou o desenvolvimento de nossas matérias-primas, desen-
volvimento científico e tecnológico. Todo esse desenvolvimento foi pago
com café, ouro, açúcar, cacau, borracha, ferro e tudo o mais que pudesse
interessar àquele país.
Havia, então, um grande plano desenvolvimentista para o Brasil em
cinco áreas: energia, transporte, alimentação, indústria e educação. A capital
foi transferida do Rio de Janeiro para Brasília, a cidade planejada e criada
para essa finalidade, localizada no eixo central do país. Foram construídas,
também, a rodovia Belém-Brasília, possibilitando o trânsito de pessoas
e mercadorias entre o Centro e o Norte. No mesmo período, foi criada a
Fundação Universidade de Brasília, relevante instituição de ensino e pes-
quisa do país.
Entretanto, o golpe militar, o desequilíbrio econômico e a alta inflação
minaram os planos de crescimento de grande parte da população. No período
pós-golpe, embora houvesse intenso crescimento e acumulação de capital
por parte da elite, esse recurso não era acessado pela massa de trabalhadores,
isto é, os salários seguiam estagnados, posto que a manifestação, a sindica-
lização e a luta por direitos eram proibidas, aumentando, mais uma vez, as
desigualdades sociais.
Após a redemocratização do Brasil, o governo enfrentou inflação alta,
aumento da dívida externa e inflação. Por sua vez, a criação do Plano Real
trouxe certa estabilidade econômica, bem como as políticas públicas pos-
teriores ocasionaram uma importante base para o desenvolvimento recente
do país, incluindo aí a atividade empreendedora, conforme notamos nos
dias de hoje.
24

Neoliberalismo e trabalho das mulheres

Em termos laborais, o neoliberalismo se alinha, desde sua insurgência,


com o desenvolvimento de um perfil de sujeito individualista e narcisista (Sen-
net, 1999). No projeto neoliberal, desenvolveram-se estratégias para produzir
o sentimento de vergonha de depender e consequentemente a dissolução de
laços de confiança, do sentimento de comprometimento e compromisso mútuo
e também da noção de solidariedade (Sennet, 1999).

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Ao pretender dissolver as fronteiras entre exploradores e explorados,
por meio da propagação da ideia de mérito, o sistema neoliberal atingiu espe-
cialmente as classes mais frágeis, e, de maneira muito particular, as mulheres
(Cisne & Gurgel, 2008; Falquet, 2013).
Em nossa sociedade, as mulheres são culturalmente inseridas em um con-
texto que lhes ensina que o “ser mulher” depende da construção de laços, de
parcerias e de cuidados, especialmente para com os homens, filhos e pessoas
mais velhas da família. Apesar de o cenário estar evidentemente em mudança,
mulheres ainda são timidamente encorajadas a cuidar de outras mulheres de
maneira horizontal. (Montenegro, 2018).
Por um lado, o neoliberalismo aprisiona economicamente as mulhe-
res, uma vez que fragiliza possível suporte socialmente estruturado para que
elas desenvolvam atividades de valor econômico, principalmente as mulhe-
res de menor poder aquisitivo — embora seja responsabilidade do Estado
fornecer tal suporte — (Falquet, 2013). Por outro lado, o sistema cria um
descompasso entre aquilo que apresenta para a mulher como característica
de sua mulheridade (Molinier, 2004) e aquilo que é necessário para que ela
avance economicamente.
Isto é, incentiva-a a um lugar de fragilidade, docilidade e preocupação com
o outro, ao mesmo tempo em que alimenta que só se poderá ir longe e alcançar o
sucesso profissional e a liberdade financeira, caso esteja disposta e ser arrojada,
disruptiva e inovadora, o que pressuporia altas doses de virilidade, individua-
lidade e mesmo de narcisismo (Mathieu & St-Jean, 2013). Tal descompasso
é ainda mais evidente se examinarmos o caso das mulheres empreendedoras
e as demandas para que elas possam ser bem-sucedidas em suas empreitadas.

Empreendedorismo e trabalho feminino

Empreendedorismo é um termo para o qual não existe um único conceito.


De acordo com a literatura (Eisenmann, 2013; Gedeon, 2010), tal termo usado
em meados da década de 1980, por Howard Stevenson (Stevenson, 2006),
professor da Harvard Business School, definiu empreendedorismo como a
busca de oportunidades a despeito dos recursos disponíveis (livre tradução).
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 25

Partindo de uma análise taxonômica acerca das teorias sobre empreen-


dedorismo, Gedeon (2010) definiu a atividade como um conceito multidi-
mensional que inclui: a) possuir uma pequena empresa (Teoria do Risco);
b) ser inovador (Teoria Dinâmica); c) atuar como líder (Teoria dos Traços)
ou d) iniciar uma nova empresa (Teoria Comportamental). O autor define,
também, que o empreendedorismo inclui identificar oportunidades para dire-
cionar o mercado para o equilíbrio (Escola Austríaca) ou causar desequilíbrio
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através da “destruição criativa” (Teoria Schumpeteriana).


Considerando a análise realizada por Gedeon (2010), assume-se que
empreender associa-se à criação de novos valores com base em recursos
escassos. Alguns autores, inclusive, associam maior escassez de recursos e
melhores resultados a um tipo mais arrojado e sofisticado de empreendedo-
rismo (Brandstatter, 2011; Koelinger, Minitti, & Schade, 2007).
O empreendedorismo, como atividade, não é novidade em termos de mer-
cado. Pessoas sempre abriram suas próprias empresas e tiveram seus próprios
negócios. O que o configura como um fenômeno que desperta tanto interesse,
atualmente, é a promessa de liberdade que ele carrega em si: empreender sig-
nifica depender exclusivamente de si mesmo para realizar o que quer que seja
e, assim, tornar-se alguém que venceu, apesar do sistema. O termo conjuga,
a um só tempo, todas as melhores fantasias vendidas pelo neoliberalismo:
iniciativa, autogestão, independência e geração de riqueza tornam-se parte de
um ser e de um fazer capazes de resgatar o mais desnorteado dos trabalhadores.
Especificamente no caso das mulheres trabalhadoras, tornar-se empreen-
dedora carrega, de maneira mais potente, a promessa de salvação e empode-
ramento, bem como se configura como uma espécie de “curva” nos destinos
dos trabalhos para as mulheres. O santo graal das atividades remuneradas
promete liberdade, ausência de chefia, autonomia, tempo com os filhos, pos-
sibilidade de inovação e de expressão de si mesma. O crescente aumento, no
Brasil, de mulheres que empreendem (Costa, Breda, Bakas, Durão, & Pinho,
2016), parece se relacionar, para além da marcante necessidade de se obter
renda, a tais promessas (Machado, St-Cyr, Mione, & Alves; 2003; Silva,
Mainardes, & Lasso, 2016).
Machado, St-Cyr, Mione & Alves (2003) afirmam que a decisão de
empreender, para as mulheres, tem como principais fatores a perda do emprego
e/ou problemas com o trabalho anterior; diferentemente dos homens, que
empreendem mais por vontade que por necessidade. Já Natividade (2009)
indica que o principal fator para a mulher empreender é a subsistência.
Jamali (2009), Krakauer, Moraes e Berne (2018) defendem que empreender
é uma saída para as mulheres frente à discriminação de gênero no mercado
de trabalho.
26

Para Costa, Breda, Bakas, Durão e Pinho (2016), a inclusão das mulheres
no mercado de trabalho e no mundo do empreendedorismo tem tido notável
expansão. Também Tonelli & Andreassi (2013) destacam o aumento da entrada
das mulheres no segmento.
Entretanto, uma questão parece se contrapor ao significado disruptivo
associado ao “empreender” com sucesso: as mulheres empreendem em territó-
rios “femininos”, como cuidados, educação, vendas de produtos para mulhe-
res (cosméticos, roupas) ou para crianças e dificilmente querem ou podem

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se arriscar em territórios “masculinos”. Isso ocorre por razões distintas, que
vão desde preconceito, passando por medo de não serem capazes, até pela
dificuldade de acesso a financiamento e recursos (Costa, Breda, Bakas, Durão
& Pinho, 2016).
Embora os dados sobre empreendedorismo produzidos no Brasil possam
ser considerados frágeis, algumas mensagens que eles transmitem são bem
consistentes. Por exemplo, a de qual é o estereótipo associado ao gênero.
Mesmo instituições especializadas incorrem em tais estereótipos, como
apresenta Carvalho (2017a) ao revelar que em cursos de capacitação para
empreendedoras ainda estão presentes “ideias de que as mulheres são sen-
síveis, intuitivas, receptivas, cuidadosas e possuem ternura, interioridade e
profundidade; enquanto que os homens são racionais, objetivos, assertivos,
materialistas e possuem expressividade” (Carvalho, 2017b, p. 18).
Socialmente falando, as mulheres têm dificuldade de exibir as caracterís-
ticas associadas aos homens (o que não significa que não as possuam), pois,
socialmente, o esperado é que a mulher seja discretamente uma vencedora
ou mesmo uma guerreira que não usufrua de facilidades (razão pela qual é
quase naturalizada a dificuldade que as mulheres têm para acessar recursos
financeiros em bancos, por exemplo), como destaca Natividade (2009).
Apesar de o perfil estar mudando, a situação de opacidade destinada à
mulher também aparece no empreendedorismo, e supõe-se que a linguagem
destinada a ela na mídia esteja permeada por estereótipos que reforçam o lugar
da boa moça, mas, ao mesmo tempo, prometem a tão sonhada liberdade para
a mulher. Ou seja, o empreendedorismo abarca a condição das mulheres em
nossa sociedade com a fantasia que lhes é vendida sobre o que significa ter
poder, ser disruptiva e criativa.

Empreendedorismo Feminino Brasileiro

De acordo com Silva, Lasso e Mainardes (2016), o perfil da empreen-


dedora brasileira é caracterizado, em grande parte, por mulheres de 30 e 49
anos, casadas e com diploma universitário. Entretanto, os autores não fazem
identificação quanto à raça dessas mulheres. O estudo também mostrou que as
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 27

empreendedoras costumam administrar empreendimentos de pequeno porte,


de caráter familiar e que, como principais problemas enfrentados por elas, é
possível citar a dificuldade de balancear as atividades domésticas com as do
trabalho e de conseguir empréstimo no banco, assim como o pouco suporte
familiar que elas recebem.
Ademais, o Relatório Especial sobre Empreendedorismo Feminino no
Brasil, realizado pelo Sebrae, em 2019, aponta que o Brasil ocupa a sétima
posição em empreendedorismo realizado por mulheres, apesar de 44 desses
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negócios serem denominados como empreendedorismo por necessidade. O


mesmo relatório também aponta que as mulheres recebem menos e valores
menores de financiamento, apesar de a taxa de inadimplência delas ser menor
e a taxa de juros que elas pagam ser maior.

Tabela 1 – Mulheres e Acesso a linhas de crédito

Empresárias (*)

As mulheres Empresárias tomam menos empréstimos nos bancos


(a proporção que toma empréstimo é menor e o valor médio do empréstimo é menor)

Proporção de empresas que Valor médio dos empréstimos


toma empréstimo nos bancos tomados nos bancos

43% R$80.563

40%
R$67.492

Homens Mulheres Homens Mulheres


Fonte: Sebrae (2017). Nota? (*) MEI+ME+EPP.
As mulheres estão à frente de negócios menores, com menor investimento e têm menor acesso às linhas de crédito mais
vantajosas (p.ex.: crédito direcionado)

O discurso sobre empreendedorismo feminino presente nas instituições


é aquele que elogia esse empreendedorismo por suas características de gestão
e diferenciais de multitasking, o que reforça a performance de gênero relativa
ao desempenho de múltiplos papéis (tripla jornada de trabalho) (Souza, 2020).
Esse discurso endossa a estrutura social de divisão sexual do trabalho e de
construção de papéis de gênero assimétricos, isto é, como bem aponta Jona-
than (2011), a multiplicidade de papéis não é algo natural do comportamento
feminino, ao contrário, demanda e desgasta essas mulheres.
É sabido como o trabalho doméstico é imenso, árduo, repetitivo e invisí-
vel, de modo que quanto maior o número de integrantes na estrutura familiar
28

— filhos, idosos, portadores de necessidades especiais —, maior e mais pesada


será a atividade de trabalho para as mulheres no lar (Federici, 2017).
Embora o trabalho reprodutivo seja passível de executar junto à ativi-
dade empreendedora, o empreendedorismo como alternativa para as mulheres
pode ser uma falácia, considerando que muitas vezes não promove inclusão
e independência, tornando-se apenas mais uma ferramenta de pressão social,
sugerindo que as mulheres disponham de condições equânimes em relação
aos homens, inverdade para qualquer mulher que trabalha (Scott, 2005).

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Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 29

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Capítulo 2
O empreendedorismo nos “projetos de
vida” do “novo” ensino médio: uma
análise exploratória do PNLD 2021
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Cícero Muniz1

A década de 1990 marcou um ponto de inflexão e virada na estrutura


econômico-produtiva mundial: a crise do modelo fordista, o influxo do cres-
cimento do poder de partidos sociais-democratas, sindicatos e movimen-
tos operários, o surgimento da globalização e da reestruturação produtiva
produziram transformações políticas, econômicas, técnicas e tecnológicas
que modificaram a estrutura de produção mundial. Em desdobramento, tais
transformações oportunizaram uma redefinição dos rumos mundiais através
do resgate de uma doutrina que fora concebida em meados do século XX e
gestada ao longo desse ínterim: o neoliberalismo.
Entendido enquanto uma nova fase do capitalismo, o neoliberalismo se
destaca como um fenômeno polimorfo, dotado de plasticidade e que se plasma
em cada realidade histórico-social a partir das transformações macrossociais
(mudanças na estrutura e forma dos Estados e demais instituições, modifi-
cações nos mercados de trabalho etc.) em conjunção com alterações micros-
sociais (nas representações sociais, nas mentalidades e, principalmente, nas
subjetividades dos agentes sociais). A despeito da falta de univocidade acerca
de sua caracterização e conceito, há um consenso entre os estudiosos acerca
de suas linhas gerais, notadamente no que diz respeito às suas consequências
e impactos (Andrade, 2019; Chamayou, 2020; Dardot et al., 2021).
O neoliberalismo proporcionou o substrato político-ideológico e o ins-
trumental econômico que reforçou as transformações pró-capital por essas
mudanças. Assim, em paralelo às invenções e aplicações científico-tecnológi-
cas e comunicacionais, ocorreram as transformações institucionais, ideológicas
e nas práticas dos agentes sociais. Neste cenário, a educação e a escola não
ficaram incólumes. Instituição de “gestão” das escolas, criação de mercados
locais de educação, aplicação de lógicas econômicas à pedagogia, reformas
“modernizadoras” buscando “eficiência” na escola etc. são manifestações

1 Universidade de Brasília.
34

e indicadores da penetração do neoliberalismo no espaço e nas instituições


escolares (Laval, 2019).
Visando consolidar o homem flexível e o trabalhador autônomo enquanto
ideal pedagógico e generalizar a concorrência em todas as esferas e níveis
sociais (Dardot & Laval, 2016; Dardot et al., 2021; Harvey, 2011) é que o
“mundo neoliberal” vai promovendo essas alterações e consolidando a escola
neoliberal, que é

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[...] a designação de certo modelo escolar que considera a educação um
bem essencialmente privado, cujo valor é acima de tudo econômico. Não
é a sociedade que garante o direito à cultura a seus membros; são os indi-
víduos que devem capitalizar recursos privados cujo rendimento futuro
será garantido pela sociedade. Essa privatização é um fenômeno que atinge
tanto o sentido do saber e as instituições que supostamente transmitem os
valores e os conhecimentos quanto o próprio vínculo social. À afirmação
da plena autonomia dos indivíduos sem amarras. Salvo as que eles próprios
reconhecem por vontade própria, correspondem instituições que parecem
não ter outra razão de ser que não seja servir a interesses particulares. [...].
(Laval, 2019, p. 17).

Essa “escola neoliberal”, cada vez mais determinada pela inovação e pela
formação da força de trabalho, vai sendo constante e paulatinamente modifi-
cada em função das mudanças no trabalho, formando agentes sociais cada vez
mais dirigidos e determinados pela diretriz da “empregabilidade individual”,
em contraposição à formação profissional qualificada para o emprego regulado
sob relação salarial e a vida cidadã (Laval, 2019).
Na escola neoliberal, um aspecto importante é a forma como a educação
e a escolarização vão promovendo processos de cultivo de subjetividades
neoliberais racionalizadoras, imbuídas de cálculo, planejamento, compreen-
são socioemocional e capacidades cognitivas que expressem um “espírito
empreendedor” (Dardot et al., 2021). Essa promoção se dá através tanto dos
processos de reformas educacionais quanto da mercadificação do ensino e da
escola — promoção essa sempre acompanhada de paulatina aplicação desses
mesmos processos (Laval, 2019).
Essas reformas são aplicadas e defendidas sob o argumento de que com-
bateriam o desemprego, as crises econômicas e auxiliariam na melhoria da
qualificação da força de trabalho e, por conseguinte, da eficiência produtiva.
Assim, por um lado, vai sendo deslindado um contexto de adequação do
ensino, do currículo e do perfil da educação nacional à aplicação de lógicas
econômicas à pedagogia, movimento mais geral que se assenta em discursos
“modernizadores” de busca de “eficiência” na escola, profissionalização e
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 35

adequação ao mercado de trabalho, por exemplo; e, por outro lado, através


de uma reforma “modernizadora”, como se pretendeu a Reforma do Ensino
Médio (Lei nº 13.415/2017), no caso brasileiro. Esse foi um arrazoado, por
exemplo, mobilizado no debate em prol da defesa e aprovação desta Reforma,
que introduziu, por sua vez, mudanças no currículo e, por consequência, na
forma de elaboração e nos tipos e usos de livros didáticos no país (Bodart &
Feijó, 2020).
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Compreendemos, então, que a análise dessa questão se faz crucial para


o entendimento dos objetivos não declarados da reforma, do porquê da pro-
dução de materiais didáticos de “projetos de vida” e da forma como a edu-
cação pública, através desses elementos anteriores, vai sendo cada vez mais
apropriada pela ética neoliberal. Nesta senda, os livros didáticos Projetos de
Vida se constituem como objetos de investigação pertinentes, pois, a priori,
parecem não possuir ligação direta com o currículo pedagógico-disciplinar
da Base Nacional Curricular comum (BNCC), quando, de fato, representam
bem um dos traços da essência da Reforma do Ensino Médio e da conforma-
ção da BNCC.
Este trabalho possui como objetivo compreender o discurso e a represen-
tação do empreendedorismo nos livros didáticos Projetos de Vida do PNLD
2021, e a forma como eles são mobilizados enquanto ferramenta para estimular
uma aprendizagem de habilidades e competências. Especificamente, também
buscamos a) deslindar a representação cristalizada do fenômeno nas obras; e
b) analisar o discurso empregado para a inculcação das práticas empreende-
doras nos educandos. Dessa forma, e com base no exposto acima, pretende-se
responder a seguinte questão: como o empreendedorismo é representado e
mobilizado como princípio educativo nessas obras?
Para isso, primeiro, orientaremos nosso raciocínio a partir de uma breve
análise da relação entre neoliberalismo e empreendedorismo e sua forma
de intrusão na educação e na escola. Em seguida, ponderaremos sobre a
relação entre a Reforma do Ensino Médio, empreendedorismo e o Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD), a partir da adoção dos livros didáticos
Projetos de Vida. Depois, faremos uma análise exploratória de duas obras
— Caminhar e Construir, de Meller e Campos (2020), e Projeto de Vida:
construindo o futuro, de Danza e Silva (2020), visando identificar os discur-
sos e as representações acerca do empreendedorismo nessas obras. Por fim,
vamos observar os paralelos entre esse cenário social, político, econômico e
histórico e a forma como determinadas propostas de projetos de vida acenam
a um processo de “autoconstrução de subjetividades empreendedoras” nos
alunos de Ensino Médio.
36

Neoliberalismo, empreendedorismo e mudanças na educação

O neoliberalismo2 é uma doutrina político-ideológica e econômica que


surgiu no horizonte euro-americano na década de 1940, a partir da colaboração
de economistas, filósofos e ideólogos que visavam desenvolver uma teoria
que buscasse, por um lado, se opor ao fascismo e ao regime da União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e, do outro, contrapor a ascensão da
social-democracia, do trabalhismo, do keynesianismo e da força política dos

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sindicatos e operários. Fenômeno complexo e produto de inúmeras variáveis,
o neoliberalismo passa a marcar o horizonte das experiências sociais a partir
da década de 1980, consolidando-se primeiro no Norte global (Inglaterra,
EUA e Alemanha) e depois se espraiando para o Sul global, em especial no
Brasil (Anderson, 1995; Chamayou, 2020; Dardot & Laval, 2016; Dardot
et al., 2021; Harvey, 2011).
Anderson (1995) indica que o neoliberalismo objetivava a estabilidade
monetária como meta maior, através da combinação de disciplina orçamentária
(contenção de gastos com bem-estar), restauração e manutenção de uma taxa
“natural” de desemprego — que gerasse um contingente de trabalhadores à
procura ou sem trabalho, o que minaria a força dos sindicatos — e reformas
fiscais. Tudo isso, em conjunto, significaria um estímulo aos agentes econô-
micos, já que a desestruturação dos níveis de renda, o recuo da proteção social
e o firmamento das desigualdades socioeconômicas serviram de alavanca à
dinamização das economias.
Harvey (2011) pondera que o neoliberalismo é, primeiramente, uma
teoria das práticas político-econômicas. Ela propõe que o bem-estar humano
é melhor provido quando o mercado passa a ser a instituição central da vida
social e, com isso, libera-se “[...] as liberdades e capacidades empreendedoras
individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos
direitos a propriedade privada, livres mercados e livre comércio [...].” (p. 12).
Nessa trilha, a liberdade de mercado e comércio antecedem e, por conseguinte,
asseguram, as liberdades individuais — estas entendidas enquanto liberdade
de empreender, produzir, competir, concorrer e trocar no âmbito do mercado.
Por sua vez, Dardot e Laval (2016) chamam a atenção para o dado de
que o neoliberalismo não é apenas um tipo de ideologia e política econômica.
Não excluindo essas dimensões, mas indo mais além, os autores francófonos

2 Não pretendemos aqui entrar na seara acerca da definição de “neoliberalismo”, discutida ao largo da literatura
especializada. Concordamos que o conceito é bastante polissêmico e plástico, acompanhando os diferentes
olhares e perspectivas teóricas e de análise (Andrade, 2019). E, a partir da finalidade deste trabalho, não
cabe uma tentativa de esgotamento da questão. Dessa maneira, optamos por uma definição operacional e
que sirva mais enquanto uma chave analítica para a compreensão das mudanças estruturais no trabalho e
seu desdobramento nos agentes.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 37

aduzem que o fenômeno institui um sistema normativo pautado na lógica


do capital que visa e impacta todas as relações sociais e esferas da vida. Ou
seja, ao contrário de uma “visão economicista” predominante até então, o
neoliberalismo não se reduz aos processos análogos de reestruturação e rear-
ranjo estatal, globalização econômica, financialização e privatizações, mas
implica também um processo que vai redesenhando as gramáticas sociais e
os fundamentos normativos e valorativos que dão substrato e orientação às
condutas dos agentes sociais, isto é, uma “nova racionalidade”.
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Chamayou (2020) aduz, por seu turno, que o neoliberalismo pode ser
interpretado enquanto uma matriz de valores e normas que visa a produção
e a consolidação de uma governabilidade do capital sob novos termos. Para
isso, se faz necessário lançar mão de um autoritarismo combinado a um Estado
forte, pois só essa fórmula possibilita a instituição e a naturalização da gra-
mática neoliberal. “Liberdade” então se traduz enquanto liberdade de e no
mercado, e esta só pode ser assegurada através de um intervencionismo con-
tínuo, lastreado em uma política autoritária, que governe não só os processos
e procedimentos do Estado e das instituições sociais, como também introduza
à fórceps a lei e a ordem do mercado nas mentes, corações e subjetividades.
Apesar das diferenças, esses autores concordam que o neoliberalismo
é um fenômeno desafiador para seus analistas, devido à sua complexidade e
capacidade de aprimoramento diante das contradições do real. Não obstante,
há uma linha geral de análise no que toca aos seus desdobramentos, implica-
ções e consequências. A partir dessas diferentes análises, podemos observar
que, como produto, temos a conformação, em nível superestrutural, do indi-
vidualismo enquanto matriz geradora e resultado desse deslocamento das
fontes valorativas das condutas sociais e suas subjetividades engendradas; e
no nível da agência e das consciências sociais, a responsabilidade individual
enquanto liberdade ambígua, pois é inculcada nesse nível mais como dever
do que direito.
Este último aspecto — nível da agência e das consciências sociais dos
agentes sociais — pode ser melhor destacado e observado quando atentamos
que a partir do neoliberalismo se engendram processos macro e microssociais
de “financialização” de tudo (Harvey, 2011). Na busca de sua subsistência e
reprodução social, o agente se vê encurralado num jogo financeiro, no qual
ele necessita se remodelar enquanto sujeito no mundo, tornando sua agência
interessada e meticulosamente ponderada; inovar em suas práticas e manusear
conhecimentos e tecnologias cada vez mais inéditas e de tempo de giro mais
rotativos; qualificar-se e adquirir novos conhecimentos etc. Para isso, faz-se
necessário investimento. E daí a estratégia financeira muitas vezes mobili-
zada é o consumo via crédito, que gera o endividamento e a captura de suas
necessidades pelo sistema bancário-financeiro, de um lado, ou o consumo via
38

subsídios sociais de caráter não redistributivo, mas financeiro inclusivo, do


outro (Dardot & Laval, 2016; Gago, 2018). Logo, o jogo financeiro de crédi-
to-e-dívida processa uma captura em dois termos: na subsunção a uma lógica
racional-financeira do capital de endividamento-crédito e consumo-e-dívida.
Desse intricado concatenar de processos e mecanismos, resulta-se uma
subjetividade que é capturada e moldada pelo ethos do preço, fazendo um
sujeito produtivo calculador, competitivo (no mercado, com outros indivíduos
e consigo mesmo) e concorrente, porque ele é, simultaneamente, um produto

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e produtor, no mercado. Aqui se constrói aquilo que Harvey (2011) denomina
de “mercadificação”, ou seja, o mercado é instituído pelas forças do capital,
em movimentos macroestruturais e, em outros processos concatenados micro-
subjetivos, este mesmo mercado é constituído como ética para todas as ações
humanas (Chamayou, 2020; Dardot & Laval, 2016).
No que tange à escola, Laval (2019) aponta que esses processos se pro-
jetaram tanto de “fora para dentro”, através da captura dos órgãos de gestão e
fiscalização do ensino, das mudanças nas diretrizes e formas de financiamento
estatal, na determinação de políticas internacionais por órgãos como a Orga-
nização Mundial do Comércio (OMC), a Organização para a Cooperação do
Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Banco Mundial, o Fundo Monetário
Internacional (FMI), entre outros; e de “dentro pra fora”, através da pene-
tração de discursos empresariais favoráveis à livre iniciativa, à captura das
subjetividades escolares através da mercadificação do ensino e da introdução
de mecanismos de mercados nos espaços escolares, que vão cada vez mais
figurando-a como uma “empresa”.
Observando-se o caso nacional, a aplicação do receituário neoliberal
ocorre a partir do governo Collor (1990-1992), sob a justificativa de dinami-
zar e internacionalizar a economia nacional. A seguir, com o governo FHC
(1994-1998; 1998-2002), ele se consolida em solo nacional a partir do esta-
belecimento do Real, do controle da hiperinflação iniciada na década anterior
e do projeto de modernização institucional do Estado brasileiro, mediante
liberação da economia e privatizações (Saad Filho & Morais, 2018). Como
saldo a esse primeiro momento, as décadas de 1990 e 2000 apresentam um
menor crescimento econômico se comparadas aos períodos anteriores, devido
à desregulação e flexibilização que foram sendo promovidas sob a justificativa
de torná-lo mais maleável ao processo de integração global das economias
nacionais. Essas mudanças comprometeram o mercado de trabalho quanto
à geração de empregos, resultando em ampliação do desemprego, da preca-
rização das condições de trabalho e dos postos de trabalho informais, o que
levou, por sua vez, a uma forte reestruturação do mercado de trabalho nacional
(Alves, 2011; Lima, 2010; Pochmann, 2008).
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 39

Com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006; 2007-2010) e,


depois, de Dilma Rousseff (2011-2014; 2015-2016, quando sofreu impeach-
ment), parecia ter-se instalado um interregno do regime neoliberal no Brasil.
Sob um cenário no qual diversos governos de esquerda ou centro-esquerda
alçaram-se eleitoralmente ao redor da América Latina, parecia-se ter o quadro
político apropriado para o combate ao neoliberalismo no país. Contudo, tão
logo instituiu-se o primeiro governo Lula, passou-se à manutenção do tripé de
políticas econômicas neoliberais instituído anteriormente, agora combinado e
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coexistindo com políticas novo-desenvolvimentistas3 (Saad Filho & Morais,


2018). Dessa forma,

[...] o neoliberalismo impôs restrições adicionais à economia, que entra-


nharam a estagnação e reduziram a possibilidade de acomodar mudanças
sociais sem instabilidade política. A liberalização das importações, e a
maior integração internacional levaram a economia brasileira a se especia-
lizar em uma gama mais restrita de bens relativamente pouco sofisticados.
Essas medidas esvaziaram a base industrial, fomentaram a reprimarização
e aumentaram a dependência do país e do comércio e investimentos exter-
nos, bem como da tecnologia estrangeira. O emprego industrial diminuiu,
e a capacidade produtiva caiu em setores importantes, principalmente na
indústria de bens de capital. A economia perdeu dinamismo e potencial
de criar empregos. Apesar de ter mantido algumas empresas produtivas e
financeiras estratégicas, o Estado brasileiro tornou-se menos apto que antes
para lidar com os problemas de coordenação, reestruturação, crescimento
econômico, criação de empregos e distribuição de renda. (Saad Filho &
Morais, 2018, p. 131).

Em resumo, os autores demonstram que neoliberalismo criou um padrão


de emprego centrado em vagas de baixa produtividade, informais, precárias,
e em serviços urbanos de baixa remuneração para as mulheres; e, como resul-
tados das políticas públicas no neoliberalismo, temos enquanto saldo alto
desemprego, trabalho precário e crescente pobreza relativa/absoluta.
Essas transformações afetam a educação e as escolas, promovendo a sua
ressignificação. Em consequência, se dão alterações no espaço escolar e nas
políticas de formação das(os) futuras(os) trabalhadoras(es), com a implementa-
ção de mudanças que geram a desinstitucionalização, ou seja, adequabilidade
às demandas e a fluidez das respostas, tornando a escola uma produtora de

3 Em sua obra, Saad Filho e Morais (2018) atribuem esse novo-desenvolvimentismo aos governos do PT,
também denominado, por eles, de “neoliberalismo desenvolvimentista”. Perry Anderson (1995), por sua
vez, também aponta que foi com os governos da América Latina que se iniciou a variante “neoliberalismo
progressista”, através da adoção do receituário neoliberal por partidos e governos de esquerda, e a sua
combinação com estratégias desenvolvimentistas.
40

serviços que se erige no modelo de “empresa educadora”; a desvalorização,


isto é, a erosão dos fundamentos e finalidades escolares, a hegemonização da
eficiência produtiva e da inserção profissional como finalidades absolutas e o
imperativo do valor econômico sobre os outros; e desintegração, através da
introdução de mecanismos de mercado na escola, produzindo o surgimento de
uma “concepção consumidora da autonomia individual” em lugar da formação
humanista, cultural e cidadã (Laval, 2019).
Em consonância, vai se constituindo e consolidando os substratos valo-

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rativos e psicossociais que engendram uma captura das subjetividades exis-
tentes anteriormente, e sua reelaboração e conformação a essa nova realidade
“incontornável”. Por tabela, o cultivo dessas novas subjetividades, autorres-
ponsáveis, autoexploráveis e afeitas à competição e a concorrência cristalizam
a subjetividade neoliberal (Chamayou, 2020; Dardot & Laval, 2016; Dardot
et al., 2021; Gago, 2018; Han, 2018; Harvey, 2011).
A forma mais destacada dela se encontra no empreendedorismo. Este
é recuperado após os anos 1980 com o surgimento do Neoliberalismo, que
promove o resgate da figura do empreendedor e de sua função social. Este
seria novamente alçado ao lugar de solução para a crise (econômica, do tra-
balho, da produção etc.) e, por isso, deveria ser estimulado pelos governos e
agentes privados em sociedade. Assim, vai se estabelecendo paulatinamente a
disseminação de uma “forma empresarial modelo”, que passaria a ser a regra
universal em sociedade, transformando os elementos sociais (especialmente
os trabalhadores) em “empresas”, pois são elas os agentes de transformação
econômica e produção de riqueza (Chamayou, 2020; Dardot & Laval, 2016;
Gago, 2018; Han, 2018).
Nessa trilha, no Brasil, não se desdobraria de maneira distinta. Aqui, o
empreendedorismo vai crescendo ao longo desse período, como uma “alter-
nativa” à dificuldade de contratação no mercado de trabalho, à mudança no
perfil da força de trabalho ocupada — cada vez menos relações formais e
assalariadas e cada vez mais relações de trabalho flexíveis (terceirização,
trabalhos temporários, por conta própria etc.) —, ao acréscimo no número
de trabalhadores autônomos — que, diante de sua insegurança e precarie-
dade de condições de vida e trabalho vão buscar no empreendedorismo a via
possível de inserção social e profissional — e à diversificação nos regimes
contratuais do trabalho não-assalariado (Vale et al., 2014; Vasconcellos &
Delboni, 2015). Diante disso, temos como resultado um aumento do nível de
ocupação no mercado informal e a explosão da abertura de novos negócios
no Brasil, sobretudo micro e pequenos negócios e, com isso, o surgimento de
empresas sem empregados (Pochmann, 2008). Entretanto, essa migração se
baseia, via de regra, em formas de autoemprego e auto exploração, que não
permitem o usufruto de direitos assegurados aos trabalhadores assalariados,
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 41

o que colocaria esses trabalhadores em uma “zona de precarização” (Vascon-


cellos & Delboni, 2015).
Dessa forma, essas transformações vão sendo, com o passar do tempo,
tratadas como horizonte para as mudanças e reformas, sobretudo do campo
educacional. É preciso reformar-se o ensino para que ele dê conta não apenas
de esclarecer intelectualmente essas transformações para as(os) futuras(os)
trabalhadoras(es), mas, acima de tudo, prepará-las(os) para inserirem-se e
atuarem de modo eficiente e eficaz nesse novo arranjo produtivo, a partir das
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“novas” modalidades de produção e trabalho.

PNLD, Reforma do Ensino Médio e “Projetos de Vida”

As escolhas dos livros didáticos no Brasil seguem as normatizações


propostas pelo Ministério da Educação e suas secretarias (notadamente a
Secretaria da Educação Básica do Ministério da Educação). Essas normati-
zações versam sobre o caráter da produção do livro didático, bem como sua
pertinência e adequação aos objetivos pedagógicos propostos de forma global
ao ensino no país. Nesse escopo é que é instituído o Programa Nacional do
Livro Didático (PNLD)4.
Como política pública, o PNLD existe desde 1985. Contudo, suas ori-
gens remontam ao ano de 1938, com Decreto-lei 1.006 (Comissão Nacional
do Livro Didático), que instituiu a relação entre Estado e livro didático. O
Programa tem como objetivo “subsidiar o trabalho pedagógico dos profes-
sores por meio da distribuição de coleções de livros didáticos aos alunos da
educação básica. [...]”. O PNLD é executado em ciclos de trienais, para os
seguintes segmentos: a) anos iniciais do ensino fundamental; b) anos finais do
ensino fundamental e c) ensino médio. Seu financiamento se dá pelo Fundo
Nacional para o Desenvolvimento da Educação (FNDE). Cabe ressaltar que o
Programa abrange todas as escolas federais, bem como os sistemas de ensino
estaduais e municipais e do Distrito Federal5.
O PNLD seleciona os livros didáticos que serão utilizados no triênio a
partir da seguinte logística: 1) há a abertura do edital, pela Secretaria de Edu-
cação Básica do MEC. É neste momento que se inicia o processo de escolha;
2) as editoras, então, submetem suas obras para apreciação; 3) em seguida, há
a avaliação das obras por pareceristas (consultores ad hoc) e pelo Instituto de
Pesquisas Técnicas (IPT), onde são selecionadas as obras que virão a compor

4 Para essas e outras informações, consultar o Portal do MEC: http://portal.mec.gov.br/index.php?Itemid=66


8id=12391option=com_contentview=article. Acesso em: 2 jun. 2021, às 8h.
5 A única exceção, nessa linha, é o Estado de São Paulo, que não participa do Programa por possuir um
programa de escolha do livro didático próprio. Para mais informações, visitar o sítio do FNDE: http://www.
fnde.gov.br/programas/livro-didatico/livro-didatico-funcionamento. Acesso em: 2 jun. 2021, às 13h.
42

o futuro Guia; 4) em seguida, dá-se a publicação do Guia do Livro Didático,


tanto em forma impressa quanto digital, disponibilizado na internet. Ele con-
tém informações sobre o processo de escolha, sobre os livros escolhidos e
ficha de avaliação, além de resenhas dos livros selecionados pelos consultores;
5) ocorre então o encaminhamento e divulgação do Guia nas escolas de todo
país; e, por fim, 6) há as escolhas dos livros de cada área disciplinar, de acordo
com o PPP (e currículos) exercidos nas unidades escolares.
Com a aprovação da Reforma do Ensino Médio em 2017 — primeiro

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como Medida Provisória nº 746/2016 e depois como Lei nº 13.415/2017,
ambas sem amplo debate com a sociedade —, houve a modificação dessa
estrutura, devido às mudanças no ensino médio — especialmente seu currí-
culo, que influi na forma de confecção e escolha dos livros didáticos (Bodart
& Feijó, 2020).
Quanto a isso, destaca-se os seguintes pontos: 1) a modificação da estru-
tura por campo disciplinar para “áreas do conhecimento”; 2) a instituição da
área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas; 3) a flexibilização do estatuto
disciplinar da Sociologia, Filosofia, Arte e Educação Física, que passam a ser
denominadas de “estudos e práticas”; 4) a determinação da Base Nacional
Comum Curricular; e 5) a instituição do “projeto de vida” como componente
do currículo (Lei nº 13.415, 2017). Neste último ponto, cabe destacar o que
aduz a lei: “§7º Os currículos do ensino médio deverão considerar a formação
integral do aluno, de maneira a adotar um trabalho voltado para a construção
de seu projeto de vida e para sua formação nos aspectos físicos, cognitivos
e socioemocionais.” (Lei nº 13.415, 2017) (Grifos nossos).
Concatenadas, essas “inovações” trouxeram uma mudança na elabora-
ção e produção dos livros didáticos. Se antes da aprovação da Reforma nós
tínhamos a produção de livros escolares por área disciplinar para a educação
básica, após ela houve uma mudança que se clarificou com o lançamento do
Edital PNLD 20216: uma readequação dos livros didáticos, de um “modelo”
disciplinarmente dividido para outro composto em função das áreas de conhe-
cimento e suas tecnologias (Bodart & Feijó, 2020) e uma diversificação dos
livros didáticos que são publicadas no escopo do programa: a adição dos
“projetos de vida” e dos “projetos integradores”. Essas obras visam estratégias
diferentes, mas com um objetivo comum, que é a adequação a uma espécie
de “pedagogia das competências e habilidades” (Laval, 2019), em seu cará-
ter mais tecnicista, só que sob nova roupagem. Inspirado no paradigma das
competências subjetivas neoliberais, essas obras intentam cultivar um novo
perfil de educando — e, posteriormente, trabalhador(a).
6 Para maiores detalhes, ver: https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/consultas/
editais-programas-livro/item/13106-edital-pnld-2021. Acesso em: 10 abr. 2022.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 43

Enquanto os “projetos integradores” visam ao processo de concatenação


do saber científico-pedagógico disciplinar em prol de temas supostamente
aglutinadores do saber — diluindo assim a importância e o aprofundamento
disciplinar no currículo praticado, os “projetos de vida” buscam desempenhar
práticas e formas de consciência que cultivem um perfil de aluno egresso mais
interligado às atuais condições da sociedade contemporânea e do mundo do
trabalho — a saber, de desagregação do mercado de trabalho formal, aumento
do desemprego e a “solução” do empreendedorismo.
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É sobretudo esse segundo tipo que nos chama atenção, pois a efetivação
do “projeto de vida” não apenas em nível de princípio, mas também como
dispositivo da Reforma, na forma de componentes curriculares e materiais
didáticos, representa a explicitação do fulcro da principal motivação e objetivo
da Lei nº 13.415/2017: a operacionalização da Teoria do Capital Humano por
meio da naturalização da pedagogia de habilidades e competências (Bodart
& Feijó, 2020; Dardot & Laval, 2016; Dardot et al., 2021; Laval, 2019). Não
à toa, ao nosso ver, a construção da ideia de “projeto de vida” vir à lume
pautada no léxico neoliberal de propósito, eficiência, projeto, sucesso etc.
que se substancia tão bem na noção de empreendedor e empreendedorismo.

Imagens e representações do empreendedorismo nos livros


“Projetos de Vida”

A partir do que foi definido nas seções anteriores, nesta seção iremos
nos aprofundar nos discursos e representações sobre “empreendedorismo”
presentes nos livros didáticos de “projetos de vida”.
Para tanto, os procedimentos metodológicos foram estabelecidos da
seguinte forma: primeiro, a seleção dentre os livros aprovados pelo PNLD
2021. Dos 24 livros selecionados, compomos uma amostra de dois livros,
de acordo com o critério de que esses apresentaram capítulos e/ou seções
próprios e explícitas sobre “empreendedorismo”, além da acessibilidade ao
autor7; Em seguida, utilizando-se a análise de conteúdo, identificou-se as
visões/abordagens que essas obras possuíam sobre o empreendedorismo,
colhendo citações que representassem os discursos e as representações do
fenômeno, destacando a construção deles e o direcionamento ideológico, a
nível do discurso e conteúdo. Por fim, através da decomposição e exposição
7 Frisamos que a escolha também se deveu a uma questão de acesso: devido à pandemia de covid-19, ao
tempo exíguo para acesso através da plataforma do Simec e a impossibilidade de apreciação de cópias
físicas das obras, como nas edições anteriores do programa. Tivemos, ainda, dificuldade em apreciar todas
as obras listadas no Guia do PNLD 21, pois este se resumiu a um guia sumarizado das obras, o que dificultou
o processo de identificação e seleção das obras pertinentes para esta análise. Dessa forma, conseguiu-se
apenas avaliar cinco (05) obras do total de aprovadas.
44

de enxertos do discurso, objetivou-se a análise do material selecionado. Para


tanto, lançamos mão da Análise de Conteúdo (Bardin, 2009) combinada à
Análise do Discurso (Orlandi, 2007).
Nesse escopo, a análise de conteúdo foi mobilizada com a finalidade de
analisarmos os enunciados dos discursos presentes nos livros didáticos, bem
como o seu encadeamento, com vistas a descrever os conteúdos das mensagens
que serão analisadas a posteriori (Bardin, 2009). A análise do discurso, por
sua vez, tem por objetivo permitir a reflexão sobre a forma como a linguagem

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está materializada na ideologia, e como esta se manifesta (Orlandi, 2007) no
discurso e nas narrativas encontradas nos livros didáticos. Para isso, mobiliza-
remos os conceitos de “empreendedorismo”, “negócio” e/ou “projeto”; e para
operacionalizarmos essas análises, buscando revelar “o dito em relação ao não
dito”, “o que o sujeito diz em um lugar como o que é dito em outro lugar” e
“o que é dito de um modo com o que é dito de outro modo” (Orlandi, 2007).
Cabe destacar que, com a utilização da análise do discurso, não buscamos
um “sentido verdadeiro” a respeito da discussão, mas, sim, destacar o real
sentido que o conceito assume nas publicações investigadas.
No que diz respeito ao escopo deste artigo, dentre o total de livros didá-
ticos de projeto de vida aprovados, destacamos dois deles por apresentarem,
de forma mais acabada, capítulos que abordassem o tema, a saber: Caminhar
e Construir, de Meller e Campos (2020), e Projeto de Vida: construindo o
futuro, de Danza e Silva (2020).
Meller e Campos (2020) trazem uma obra focada no processo de autoco-
nhecimento e autocompreensão para a construção do si do aluno. Isso se des-
taca através de um forte tom psicologizante de aconselhamento e orientação à
lá coaching. Já em sua apresentação esse ponto se destaca: “Você tem em mãos
um livro elaborado para lhe ajudar a refletir sobre quem é você, o que você
deseja para sua vida atual e futura e como concretizar seus objetivos.” (p. 3).
A obra está organizada em três módulos, cada qual dotado de uma temá-
tica específica: autoconhecimento, contato e convivência com as pessoas e
relações no mundo do trabalho. Por sua vez, cada módulo se subdivide em
quatro seções, denominadas “percursos”. No primeiro módulo, o eixo transver-
sal é o processo de autoconhecimento e autocompreensão, enquanto paralelos,
mas concatenados, visando à autopercepção de seus aspectos cognitivos e
socioemocionais, tanto intra quanto interindividuais. No segundo módulo, a
discussão se desloca para o plano da cultura e dos valores. Assim, uma vez
autocompreendido, o estudante em vias de construção de seu projeto de vida
pode referenciá-lo às esferas mais gerais da sociedade, dotando-lhe de pro-
pósito e finalidade a partir de suas decisões. Por fim, no terceiro módulo, há
a apresentação da fonte dotadora de sentido e finalidade: o trabalho. É nessa
parte que aflora com mais corpo e nitidez a questão do empreendedorismo.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 45

O “trabalho” é apresentado como o eixo estruturador, se interconec-


tando com outras dimensões como a identidade, a formação profissional, as
transformações produtivas e organizacionais e a necessidade de planejamento
para o trabalho através da autocompreensão. Frisa-se que o elã que alinhava
os elementos ao eixo são as habilidades, atitudes e valores, as escolhas e a
ação de empreender.
No percurso 9, tema 1, o trabalho é duplamente identificado como fonte
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de sentido diretivo e/ou passatempo. A qualificação positiva do trabalho desen-


volvido virá com a constituição de propósito para as atividades laborativas:

Um ponto importante para considerarmos em relação ao trabalho como


elemento que constitui nossa identidade é a questão do seu propósito.
Se pensarmos que o trabalho é o impacto que produzimos sobre o mundo
por meio de nossas ações, cabe pensarmos em como cada um de nós quer
impactar o mundo. Em outras palavras, é preciso saber claramente quais
são os propósitos e as motivações por trás das nossas escolhas e opções.
Assim, pensar em uma escolha profissional ou em um projeto de vida
envolve pensar nos fenômenos do mundo aos quais queremos nos dedicar.
(Meller & Campos, 2020, p. 149).

O mundo do trabalho é um espaço acessível através da construção de


um projeto dotado de propósitos e interesses. Logo, se você não está imbuído
desse propósito, ou o mundo do trabalho tem seu acesso dificultado a você
ou a sua inserção nele será dessignificada e deslocada, devido à ausência de
motivação para se sustentar o seu constante engajamento. Portanto, a respon-
sabilidade pelo (in)sucesso no acesso ao mundo do trabalho é individualizado
a cada agente social, cabendo apenas aos seus capitais (habilidades e compe-
tências, sejam elas físicas, intelectuais e emocionais) e à sua capacidade de
racionalizar (planejar em minúcias seu projeto de vida) essa decisão. Aqui,
destacamos três elementos estruturantes do neoliberalismo atuando como
dispositivos estruturadores: a individualização, a autorresponsabilização e o
governo de si mesmo (Dardot & Laval, 2016; Dardot et al., 2021; Chamayou,
2020; Laval, 2019; Han, 2018).
Quanto ao mercado de trabalho, os autores apresentam diversas formas
de inserção nele: trabalhador de empresa privada, dono de próprio negócio,
trabalho em ONG e trabalho em cooperativa. Apresentando um breve perfil de
cada uma das inserções, Meller e Campos trazem as principais características
e atividades produtivas desenvolvidas em cada uma dessas inserções. O que
chama atenção de pronto é a colocação da abertura de negócio próprio no
rol das demais atividades de trabalho reguladas ou não reguladas. Vejamos
o que dizem os autores:
46

Tornar-se proprietário de uma pequena empresa é o desejo de vários bra-


sileiros atualmente. Em muitos casos, esse desejo de empreender é uma
alternativa que as pessoas encontram para sanar a falta de emprego
no país. Assumir o projeto de montar um negócio próprio implica uma
série de responsabilidades e necessidades, que devem ser ponderadas
e planejadas.
Abrir um negócio pode ser algo menos complexo, que envolve apenas a
mão de obra do proprietário, como a prestação de alguns tipos de serviço,

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ou ser algo mais elaborado, que necessita de mais estrutura física, con-
tratação de funcionários etc. Seja como for, os empreendedores precisam
lidar com a gestão do negócio e a preocupação com a estabilidade. Dife-
rentemente de quando você é empregado e tem um salário fixo todo
mês, como dono de seu negócio você assume os riscos de administrar
pessoas, processos, suas próprias despesas e lucros. (Meller & Campos,
2020, p. 154, grifos nossos).

Comparado com as demais formas apresentadas, observa-se uma maior


qualificação positiva da inserção via abertura do próprio negócio, sobretudo
porque ela representaria um desafio que motivaria a pessoa que escolheu
essa inserção a prosperar. Ademais, essa qualificação positiva perpassa o
esclarecimento e a assunção, por parte do estudante que está construindo
seu projeto de vida, de que empreender é a única alternativa ao desemprego,
mas com a implicação de que a responsabilidade e os riscos correlatos não
são dispensáveis e que estão incluídos no processo, pois são cruciais para o
empreendimento. Ou seja, há uma escolha, mas que implica compulsoriedades.
Um ponto a se destacar é que nesse campo do “próprio negócio” os auto-
res trazem ao leitor outras formas possíveis de empresas, como o Microem-
preendedorismo Individual8:

Você já ouviu falar em MEI? Sabe o que é? É a sigla para Microempreen-


dedor Individual. Essa é uma forma para quem trabalha por conta própria
regularizar sua situação perante o governo, podendo emitir notas fiscais
(o que é necessário para receber pagamentos por serviços prestados para
empresas ou para o setor público) e, ao mesmo tempo, passar a ter direito
aos benefícios do INSS, como aposentadoria, auxílio-doença e salário
maternidade. Também tem sido comum muitas empresas fazerem contratos
com profissionais constituídos como MEI, evitando registrá-los dentro das
normas da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Por um lado, isso
diminui os custos para a empresa; por outro, deixa os trabalhadores em

8 O Microempreendedor Individual é uma modalidade de “empreendedorismo” que permite a profissionais


desenvolverem suas ocupações e/ou atividades sob a forma de uma “empresa individual”: uma figura jurídica
de uma pessoa sem sócios e/ou não possuir outras sociedades, que não pode abrir filiais, que tenha uma
renda anual não superior a 81 mil reais. Sobre o assunto, ver Campanha et al. (2017).
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 47

uma situação de direitos trabalhistas reduzidos ou precarizados. (Meller


& Campos, 2020, p. 154).

Aqui, começamos a observar uma tentativa de equilíbrio na qualificação


das formas de inserção no mercado de trabalho via empreendimentos. Apesar
de destacar a autonomia e o controle que o MEI possui sobre seu próprio
trabalho, mais algumas garantias legais de proteção e seguridade social, os
autores começam a trazer elementos de ponderação a essa forma de inserção,
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ao destacar a sua utilização como uma forma de burla à fiscalização e registro


do trabalho, além da fragilização das garantias legais e sociais de segurança
e reprodução pela precarização decorrente da sua aplicação.
Mais adiante, após pontuar a influência cada vez mais determinante da
tecnologia nas transformações econômicas e no mundo do trabalho, que levam
a uma mudança na qualificação (de técnica para cognitiva/socioemocional),
Meller e Campos (2020) traçam os limites e as intersecções entre a flexibili-
zação e desregulamentação do mercado de trabalho, as formas de emprego e
os negócios das empresas.

Com a flexibilização da lei, o trabalhador registrado em carteira, que conta


com todas as garantias previstas na Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT), sancionada em 1943 pelo presidente Getúlio Vargas e adaptada ao
longo dos anos, passa a ser substituído, em muitos setores, por colabo-
radores, consultores, parceiros. Na prática, isso significa a terceirização
da economia, a contratação de outras “empresas”, ou melhor, de pessoas
que possuem registro como empresa, em substituição aos funcionários
contratados pelo regime de trabalho previsto pela CLT. Em certo sentido,
o trabalhador passa a ser dono do próprio negócio e estabelece contrato
com outras empresas às quais presta serviço. Entretanto, nessa relação, que
não é regida pela CLT, ele deixa de contar com os mecanismos de proteção
previstos na legislação que regula a relação empregador-empregado. Esse
fenômeno ficou conhecido como pejotização, no qual os trabalhadores
passam a ser empresários, a ser proprietários de uma empresa, que é uma
pessoa jurídica (PJ), e responsáveis por ela. Assim, começam a utilizar
mais o Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) da empresa nos
contratos de trabalho do que seu Cadastro de Pessoa Física (CPF). (Meller
& Campos, 2020, p. 179, grifos dos autores).

Nota-se nessa passagem uma abordagem mais ponderada sobre causas e


efeitos das formas de inserção no mercado de trabalho, com um tom implícito
de crítica ao processo de pejotização. Aqui, essa tomada de empresarialidade
ocorre devido à desconstrução do trabalho regulado e dotado de legislação
e segurança, de um lado, e à precarização, do outro. Ou seja, muitas vezes,
48

“[...] a contratação de outras “empresas”, ou melhor, de pessoas que possuem


registro como empresa [...]” significa, na verdade, um processo de precarização
via empresarialidade (Silva, 2018).
Adentrando especificamente sobre o empreendedorismo e seus signi-
ficados, o Tema 3 do Percurso 11 irá nos trazer uma definição operacional
do que é empreendedorismo, relacionando-o com o mercado de trabalho e a
construção do projeto de vida:

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Empreender é um verbo da língua portuguesa que significa decidir e tentar
realizar algo, geralmente desafiador, difícil, trabalhoso, como uma jornada,
uma travessia arriscada, uma longa viagem, uma tarefa complexa.
O substantivo empreendedorismo é uma palavra bastante usada nos últi-
mos anos, em diferentes situações e contextos, para se referir, de modo
geral, às ações relacionadas ao mundo dos negócios. Trata-se, portanto,
de um conceito que envolve montar e gerir uma atividade (um negócio,
uma empresa) e exige algumas competências, ou perfil, de quem está
disposto a seguir por esse caminho. É uma ação que requer um certo
espírito de aventura, coragem, vontade. Mas não só isso. Também implica
definir objetivos e metas; elaborar projetos e planos; ter capacidade para
realizá-los; estudar o cenário para identificar oportunidades; saber o que
fazer, como e aonde se quer chegar.
O empreendedorismo tem sido bastante valorizado e visto como uma saída
para os novos tempos, caracterizados pela precarização do trabalho e redu-
ção da oferta de emprego. É também estimulado pelos governos pelo seu
potencial de geração de trabalho, emprego, renda e impostos. Ao empreen-
der, toda uma cadeia de valor é posta em marcha. São firmados contratos
de aluguel ou compra e venda de imóveis e acionados profissionais espe-
cializados (contadores, advogados, técnicos, arquitetos etc.), consultores
e prestadores de serviços de variadas áreas, fornecedores, indústrias etc.
Além da possibilidade de contratar pessoas e, assim, gerar emprego e renda.
Esse discurso tem atraído muita gente por diferentes razões. Uma delas
é a ideia da aventura, de vencer um desafio e ser recompensado por sua
coragem, destreza e mérito (que tem relação com a meritocracia, a recom-
pensa de quem se esforçou, estudou e trabalhou duro para conquistar
algo). Há também a ideia de ter seu próprio negócio, sem patrão, com
liberdade para decidir como fazer as coisas. (Meller & Campos, 2020,
p. 183, grifos dos autores).

Aqui vemos os autores deslindarem uma compreensão mais arrazoada e


explícita de empreendedorismo, que leva em consideração o nível individual
(cognição, capacidades socioemocionais e agência) e o nível organizacio-
nal (planejar e executar um negócio). Novamente, há uma carga grande na
capacidade individual, pois o estudante, dotado de certas “competências e
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 49

habilidades”, seria capaz de superar as adversidades do mercado de trabalho,


mediante o cálculo e o planejamento das ações (Dardot & Laval, 2016; Laval,
2019). Frisamos que Meller e Campos (2020) apresentam aqui uma visão
otimista, senão romantizada, do empreendedorismo, sobretudo ao destacar
que ele seria a forma de superação do desemprego e da oferta de trabalho.
Na verdade, como mostram pesquisas recentes (Assunção, 2008; Dardot &
Laval, 2016; Lima, 2010; Santos, 2018; Vasconcellos & Delboni, 2015), o
discurso e as formas de empreendedorismo e empresarialidade, sobretudo
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nos estratos mais baixos de capital e da sociedade, na verdade mascaram os


efeitos das políticas neoliberais de corrosão do estatuto do trabalho regulado,
da seguridade e previdências sociais sob a forma de autoemprego, trabalho por
conta própria e/ou informal, que, a despeito de sua mistificação de “liberdade”,
“autonomia” e afins, traz em seu âmago, na verdade, a empresarialidade como
desdobramento do desemprego, do desamparo estatal e da precarização que
impele à sobrevivência, nem que seja “se virando por conta própria”.
Mais à frente, ainda na mesma página, os autores relacionam empreen-
dedorismo e desemprego, ao trazer o primeiro como uma saída ao segundo.
Segundo eles, “[o] empreendedorismo também tem sido uma saída para aque-
les que desistiram de procurar emprego e decidiram agir por si mesmos. [...].”
(Meller & Campos, 2020, p. 183). Ou seja, aqui se clarifica a representação de
que o empreendedorismo vem sendo tomado pelas sociedades sob o neolibera-
lismo como a única alternativa ao desemprego, muitas vezes se configurando
como uma “política de ativação do mercado de trabalho” (Silva, 2018).
Se aprofundando na ideia de empreendedorismo, os autores trazem
adiante a sua relação com a crise e com o trabalho informal. Quanto ao pri-
meiro, atestam os autores que “[m]uitas pessoas que decidem empreender
não são mobilizadas pela visão de uma oportunidade de negócio ou voca-
ção empreendedora, mas pela necessidade, o que tem sido descrito como
‘empreendedorismo por desespero’” (Meller & Campos, 2020, p. 185). Aqui,
compreendemos que se a crise oportuniza o desenvolvimento de novos negó-
cios, como o discurso empresarial sempre enfatiza, nem sempre esses negó-
cios são “empreendedorismo por oportunidade”, mas, sim, muitas vezes,
“empreendedorismo por necessidade” (Vale et al., 2014) — como o caso dos
ambulantes retratados, tendo em vista o agravamento da situação econômi-
co-social, a ausência de um emprego estável, regulado e dotado de proteção
social. Quanto ao segundo, os autores deslindam uma relação que muitas
vezes se confunde.

Uma prática adotada como complementação de renda e associada, em certa


medida, ao “tino comercial” e ao senso de oportunidade, características
do empreendedor, é a adesão ao sistema de uma grande empresa como
50

revendedor direto de seus produtos, como ocorre no ramo de cosméticos,


por exemplo. Em muitos casos, são pessoas que se valem de seus empregos
fixos e rede de contatos para oferecer produtos geralmente por meio de
catálogos que são exibidos aos clientes, que selecionam e encomendam
o que querem.
Na maior parte desses casos, os revendedores, em grande maioria mulhe-
res, assumem os riscos da inadimplência. Eles também se arriscam ao
investirem na formação de estoques de produtos com pouca saída, em

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resposta a estratégias de incentivo das empresas que vendem esses produ-
tos aos revendedores, como oferecimento de bônus, promoção, prêmios.
É um trabalho informal, sem nenhum contrato ou formalização de parceria
comercial (o revendedor não precisa ter uma empresa constituída para
firmar contrato de prestação de serviço). Esse tipo de emprego informal
[sic] pode fornecer renda complementar, ou até mesmo ser fonte exclu-
siva de renda das pessoas, mas, de modo geral, o grande beneficiário é o
fornecedor dos produtos, por contar com um exército de vendedores não
contratados e, assim, ter um custo muito mais baixo. (Meller & Campos,
2020, p. 186).

Assim, na citação destacada, percebemos que o trabalho informal com-


partilha de muitos aspectos e qualidades do empreendedorismo, com a dife-
rença de que nem sempre ele é a principal atividade remunerada da pessoa
(“complementação de renda”), nem circunscrito à forma empresa ou, ainda,
dotado de propósito e planejamento. Ademais, isso não significa que não há
porosidade entre o trabalho informal e o empreendedorismo, já que ambos
requerem “tino comercial”, “senso de oportunidade” e “assumir riscos”. Essa
ambivalência e fluidez nas fronteiras que delimitariam uma forma de inserção
da outra traz a compreensão de que, na realidade brasileira, há um entrecruza-
mento, quando não uma sobreposição, entre o discurso de empreendedorismo
e o trabalho informal (Lima, 2010).
Por fim, Meller e Campos (2020) enfocam na influência que a tecnologia
e a informática, através da programação, trouxeram aos negócios (startups)
e ao mercado de trabalho (escassez do emprego regulado e mudanças ocupa-
cionais). A saída seria o planejamento e o desenvolvimento, por exemplo, das
seguintes “competências e habilidades”: “[...] [a] flexibilidade, a capacidade
de reinventar-se, o aprendizado contínuo e a criatividade [...]” (p. 190), como
uma estratégia de adaptação e resposta constantes às modificações impelidas
pela mudança do quadro social, econômico e tecnológico. Ou seja, o deslindar
de um projeto de vida que habilite o agente social à constante identificação e
implementação de oportunidades de negócio.
Por seu turno, Danza e Silva (2020) apresentam também uma obra focada
no processo de autoconhecimento, escolhas pessoais/profissionais e a tomada
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 51

de decisão, visando ao planejamento e à transformação de si mesmo dos


leitores-alunos. Tal qual Meller e Campos (2020), aqui também se destaca
uma abordagem mais subjetivista, calcada no tom psicologizante de aconse-
lhamento e orientação à lá coaching. A diferença entre as obras parece resi-
dir na forma de enquadramento da construção do projeto de vida: enquanto
Meller e Campos (2020) contrastam as mudanças externas ao indivíduo e sua
necessidade planejamento, autocompreensão e autoconstrução de propósito
produtivo, Danza e Silva (2020) nos parecem realizar um caminho diferente,
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ao demonstrar como essa autoconstrução do projeto de vida se desdobra em


oportunidades e atividades produtivas.
A obra está organizada em três partes, cada qual dotada com seis seções
(rotuladas de “blocos”). Na primeira parte, o eixo transversal é o processo de
autoconhecimento e sua relação com as relações de intimidade e os desejos/
aspirações individuais. Na segunda parte, a discussão caminha para o plano
da dimensão interpessoal, envolvendo os sentimentos, as escolhas individuais
e a construção do protagonismo. Por fim, na terceira parte, a identidade é
entrelaçada com os desejos e aspirações profissionais e a busca de realizações.
A nossa discussão se apresenta de forma mais estruturada e identificável na
Parte 2 da obra.
Nesta seção, há a identificação de que o percurso da vida só é possível
de sentido se houver um planejamento. Este não deve ser rígido, mas, ao
contrário, flexível, passível de “recalibragem” e “recálculo”. A flexibilidade
aqui aparece como uma característica transversal ao bom projeto de vida,
pois permite a sua abertura à mudança e criatividades (i. é a adaptabilidade)
necessárias à plasticidade de finalidade e oportunidades de realização de dese-
jos, interesses e/ou aspirações. Assim, “[p]lanejamento e flexibilidade devem
caminhar de mãos dadas rumo à construção do projeto de vida, ajudando você
a prever possíveis desafios em sua trajetória e a criar desvios de percurso que
permitam sua realização” (Danza & Silva, 2020, p. 119). É ainda nesta seção
que o debate sobre empreendedorismo será apresentado. Em par com a ideia
de “inovação”, os autores dizem que

[e]mpreendedorismo e inovação são dois termos de destaque nos últimos


anos, tanto no âmbito educacional quanto no empresarial. A percepção de
que falta criatividade para encontrar soluções para os problemas cotidia-
nos e globais, bem como para trilhar novos caminhos diante dos desafios
e imprevistos, conferiu importância a esses conceitos, que acabaram se
tornando requisitos no mercado de trabalho. Que tal um olhar crítico
sobre eles?
Inovar é criar algo que não existe ou transformar algo já existente, com
a finalidade de trazer melhorias para pessoas, organizações e sociedade
em geral. Para que possa ser considerado inovador, um produto precisa
52

apresentar melhorias significativas. Porém, nem tudo o que é novo é uma


inovação. Um exemplo disso são os produtos tecnológicos que se tornam
rapidamente ultrapassados por causa da obsolescência programada.
Já empreender é a união de tomadas de iniciativa, (re)organizações de
mecanismos sociais e econômicos e aceitação de riscos. Então, apesar de
o termo estar comumente associado à criação de empresas ou produtos,
trata-se de uma ação vinculada a outras áreas, como a social. Assim, o
empreendedorismo social é uma forma de trazer benefícios e transforma-

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ções sociais, sem necessariamente visar ao lucro, embora também possa
gerá-lo aos fundadores. (Danza & Silva, 2020, p. 121, grifos dos autores).

“Empreendedorismo” e “inovação” aparecem aqui como pares associados


que visam, quando mobilizados pelos seus agentes possuidores, desenvolver
modificações no ambiente social, isto é, elaborar novos produtos que possam
atender às necessidades e desejos dos demais agentes, sendo, de preferência,
artefatos capazes de serem encaixados e mobilizados em prol da produção.
Ao final da seção, o tema empreendedorismo retorna de modo mais des-
tacado, através da proposta de “vivência coletiva” sobre “Feira de empreen-
dedorismo e inovação”. Aqui, se articula de maneira mais clara a forma como
o planejamento e as escolhas individuais podem ser mobilizadas em prol da
transformação pessoal e interpessoal. Mais especificamente, na forma como
determinados percursos formativos podem propiciar inserções no mercado
de trabalho. A proposta se assenta sob a seguinte ideia:

[o] empreendedorismo é uma iniciativa de realização de ideias inovado-


ras voltadas à solução de demandas ou problemas no âmbito social ou
do mercado.
No Bloco 5 da Parte 2, você e os colegas elaboraram um plano de negó-
cios, em que propuseram a criação de um produto ou serviço buscando
atender aos critérios de inovação, interesse social e viabilidade. É chegada
a hora de elaborar e apresentar um plano de negócios a partir de demandas
reais da comunidade escolar na Feira de empreendedorismo e inovação.
A proposta desta vivência é reservar um momento para ouvir as pessoas da
comunidade, quais são seus desejos e necessidades, e usar seus conheci-
mentos para propor possíveis empreendimentos em uma feira de empreen-
dedorismo onde, distribuídos em diferentes estandes, grupos apresentam
produtos ou serviços à comunidade, que vai avaliar as propostas e opinar
sobre elas. (Danza & Silva, 2020, p. 135, grifos dos autores).

A seguir, os autores descrevem a forma como a proposta deverá ser mon-


tada e executada. Observamos aqui a aplicação de uma “aprendizagem por
projetos” que visa à inculcação de um conjunto de disposições (“competências
e habilidades”) que permitam a conformação subjetivo-psíquica e atitudinal
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 53

de sujeitos que constantemente calculem racionalmente as informações ao


seu redor para prospectar desejos e necessidades dos outros, e traduzi-los em
mercadorias, serviços e/ou negócios (Dardot & Laval, 2016; Laval, 2019).
Assim, Danza e Silva (2020) trazem o conceito de empreendedorismo
muito mais diluído em relação a Meller e Campos (2020). Para eles, a ideia
surge menos como uma determinante externa que visa à conformação do
agente e do seu processo de vida. Na verdade, o empreendedorismo seria
um desdobramento da autoconstituição do projeto de vida referenciado no
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planejamento e nas escolhas, estas atravessadas pela flexibilidade.


Ao fim e ao cabo, ambas as obras analisadas possuem muitas semelhan-
ças, apesar dos seus elementos de distinção. Significar o “projeto de vida”
enquanto uma estratégia racional e calculada de planejamento dotado de fle-
xibilidade permite aqui a busca do alcance de uma dupla promessa do sujeito
neoliberal: o conhecimento/a compreensão de si para se construir “livremente”
e, com isso, melhor se esculpir e moldar para escolher, “livremente”, onde,
o que e quando irá produzir.

Considerações finais

No cenário social neoliberal atual, onde as normas são o individualismo, a


(auto) responsabilização e autonomia (entendida enquanto “autogestão de si”),
floresce um novo tipo de sujeito, o neoliberal, ressignificado a partir do homo
faber anterior. Enquanto sujeito produtor, ele não se confunde e nem coincide
com o trabalhador assalariado ou o trabalhador informal, pois ele é objetiva
e subjetivamente distinto na forma, já que é dotado de autoconhecimento e
planejamento que lhe legam uma capacidade de cálculo e racionalização con-
sonantes ao quadro social mais geral, permitindo que desenvolvam projetos
de vida com propósito, produtivos e adaptáveis às variadas oportunidades de
negócio que esse cenário socioeconômico flexível e em constante mudança
podem oportunizar.
Nesse aspecto, a Reforma do Ensino Médio (Lei nº 13.415/2017) auxi-
lia na institucionalização desse processo, no sentido subjetividade-estrutura
social, ao “inovar” com a criação do dispositivo “projeto de vida” e, subse-
quentemente, seus livros didáticos. Tomados como fonte de saber e intentando
um processo de “conheça-se e faça você mesmo”, essas obras fomentam nos
alunos o discurso do empreendedor/empreendedorismo enquanto competên-
cia formativa, esta necessária e indispensável para a inserção no mercado de
trabalho, este cada vez mais marcado pelo desemprego e pela precarização.
Assim, as chances de sobrevivências estão unicamente restritas às ativida-
des “empreendedoras”, que devem ser cultivadas como propósito de vida
e profissional, através do planejamento e das escolhas feitas ao longo da
54

trajetória individual dos alunos. Ou seja, os projetos de vida seriam sinônimos


de trajetórias profissionais relacionadas à autoconstrução da subjetividade
empreendedora neoliberal.
Nessa trilha, a adição desse material didático aos currículos e práticas de
ensino possivelmente aponta para a corroboração do processo estrutural de
desconstrução da cidadania salarial e de suas instituições — em prol de uma
subjetividade neoliberal — que tornem esses estudantes futuros autoempre-
gados dóceis, acríticos e afinados ao ethos de competição, individualismo,

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concorrência, autorresponsabilização e individualismo que vêm sendo con-
formado nos horizontes sociais.
Esse processo se opera, a partir do que foi aqui exposto, dos sentidos
empregados e desejados do empreendedorismo enquanto um princípio edu-
cador, a partir da senda dos “projetos de vida”. Nesse aspecto, identificamos
que o “empreendedorismo” é tecido enquanto uma encruzilhada articuladora
de todos esses traços e movimentos, desde o processo de autoconhecimento/
compreensão, passando pela construção de si e chegando ao propósito/fina-
lidade, que é a constituição do próprio projeto de vida. Daí compreendemos
que o “sucesso profissional e de vida” é indissociável da (boa e eficiente)
autoconstrução do projeto de vida.
Para tanto, se faz mister seguir as orientações dadas e construir um pla-
nejamento, não rígido, mas flexível, e dotado de cálculo e perspicácia para
que se constitua uma trajetória bem-sucedida de relações no mundo do tra-
balho. Dessa maneira, é indispensável as “habilidades e competências” bem
esculpidas e adquiridas, sobretudo aquelas de caráter cognitivo e emocional.
Em suma, deslinda-se um “empreendedorismo” baseado em uma perspectiva
racional, calcada em habilidades e competências habilmente acumuladas e
forjadas com propósito e finalidade, que qualifiquem, tornem produtivo, efi-
ciente e eficaz o sujeito.
Assim, para nós, a despeito da manutenção de um ideal e diretrizes que
sugerem um egresso dotado de conhecimento científico, crítico, reflexivo e
imbuído de um ethos de cidadania plena na Reforma, o que observamos agora
é o reforço do cultivo de uma lógica de habilidades e competências de caráter
neoliberal, voltada à individualização e ao individualismo, autorresponsabi-
lização, competição e concorrência, através da inserção e institucionalização
desse perfil de projetos de vida. Portanto, nota-se um caminho oposto ao que
vinha sendo delineado até a promulgação da Reforma. Outro ponto importante
é que os projetos de vida trazem à formação do discente elementos e sabe-
res que não necessariamente visam ao currículo formal, tal qual os projetos
integradores o fazem. Por fim, eles buscam um deslocamento do processo
formativo de uma dimensão e dinâmica coletivo-coletivo para uma cada vez
mais coletivamente pretendida, mas individualmente realizada.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 55

Por fim, gostaríamos de suscitar alguns pontos sobre este trabalho.


Decerto que a amostra aqui mobilizada foi muito restrita e não quantitati-
vamente representativa. Por isso, cremos na necessidade de expandir essas
análises e reflexões às demais obras do segmento, visando compreender em
caráter mais abrangente e comparativo se o instrumento “projeto de vida” se
deslinda a favor da pedagogia de “habilidades e competências neoliberal”, ou
se esse é um traço que salta à observação de alguns dos autores aprovados.
Dessa forma, desejamos confrontar essas reflexões junto às demais obras, a
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fim de verificar se de fato essa constatação é transversal ou marginal ao escopo


dos projetos de vida do PNLD 2021. Observamos, ainda, a necessidade de
olhar para o currículo proposto pela BNCC e, especificamente, para as possi-
bilidades de currículo propostas para os componentes curriculares de “projeto
de vida” que estão sendo implementados nas matrizes curriculares, assim
como para o edital presente e as edições futuras, para melhor compreender
algumas das relações que observamos e deslindamos aqui. Possivelmente, a
partir desses esforços, poderemos, em trabalhos futuros, ter uma visão mais
robusta e ampliada sobre o fenômeno que por ora só podemos analisar nos
termos propostos.
56

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Capítulo 3
Empreendedorismo na educação superior:
análise comparativa por gênero e
modalidade de ensino das características
do comportamento empreendedor
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José Sérgio de Jesus1


Mauro Célio Araújo dos Reis2
Veruska Albuquerque Pacheco3

Introdução

Cada vez mais as instituições de ensino têm percebido a importância


da formação empreendedora nos estudantes, tendo em vista o impacto que
o empreendedorismo tem na sociedade, seja como de ferramenta propul-
sora de desenvolvimento econômico, seja do ponto de vista de instrumento
potencializador de desenvolvimento social. Assim, é crescente a inserção de
disciplinas com o enfoque em empreendedorismo nos currículos de formação
de cursos de graduação, não somente em cursos de gestão.
Sabe-se que o ensino passou por mudanças significativas em função
do advento da pandemia do covid-19, iniciada em 2019. Em função das
restrições impostas, as instituições de educação superior se viram diante do
desafio de manter as atividades letivas, o que culminou na implementação
de aulas a distância, algumas de forma síncrona, outras de forma assíncrona.
Nas disciplinas de formação para o empreendedorismo, em especial, de viés
prático, o desafio foi ainda maior. Como a utilização das TICs poderia pro-
piciar a prática tão necessária na formação dos estudantes? Como engajá-los
em atividades em equipe de forma remota? Como utilizar metodologias
ativas de ensino durante o processo?
Tendo como pano de fundo essas reflexões, duas questões centrais
nortearam o presente estudo: há diferenças nas aquisições de competências
empreendedoras durante a formação de aula presencial e de aula remota? Há
diferenças no desenvolvimento de competências empreendedoras entre os

1 Centro Universitário Projeção.


2 Centro Universitário Projeção.
3 Centro Universitário Projeção.
60

estudantes dos gêneros feminino e masculino? Considerando tais questões,


o objetivo geral deste estudo é analisar comparativamente características do
comportamento empreendedor (CCE) presentes em estudantes de graduação
de instituições privadas relativas às variáveis tipo de ensino e gênero.
Para atender ao objetivo geral, têm-se como objetivos específicos: des-
crever as CCE de estudantes cursantes do ensino presencial; descrever as
CCE de estudantes cursantes do ensino remoto; e identificar diferenças entre

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as CCE de estudantes do gênero feminino e masculino.
Assim, o presente texto encontra-se estruturado da seguinte maneira:
na próxima seção, apresenta-se o referencial teórico que serviu de arca-
bouço para a pesquisa, abrangendo brevemente elementos sobre o ensino
de empreendedorismo, as características do comportamento empreendedor
e o empreendedorismo feminino. Em seguida, apresenta-se a metodologia
adotada para a realização do estudo, caracterizado como estudo de caso, de
caráter quantitativo. Na sequência, tem-se a apresentação dos resultados da
pesquisa e seu cotejamento com a teoria. Por fim, apresentam-se as consi-
derações finais, sintetizando os principais achados e apontando limitações
e perspectivas de estudos futuros.

Referencial teórico

Para ampliar a discussão acerca do ensino de empreendedorismo é


fundamental buscar na literatura existente um marco teórico que fundamente
o debate. Para tanto, foi realizada a revisão necessária para estruturar este
referencial em dois temas que sustentam a interpretação dos dados empíricos
da pesquisa e que busque o alcance dos objetivos da investigação. Em um
primeiro momento, discute-se o ensino de empreendedorismo e, na segunda
parte, o empreendedorismo feminino.

Ensino de empreendedorismo

A melhoria da autoeficácia, o desenvolvimento de visão na criação e


identificação de oportunidades para a criação de novos negócios são habi-
lidades fundamentais a serem desenvolvidas no ambiente de ensino do
empreendedorismo (Higgins et al., 2013; Nabi et al., 2017). A importância
no ensino para desenvolvimento de tais habilidades justifica-se em função
da atividade empreendedora interferir diretamente na economia, aliada à
inclinação do comportamento empreendedor para o desenvolvimento de
inovações (Shumpeter, 1934).
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 61

Pesquisas voltadas à educação para o empreendedorismo enfatizam o


papel dos contextos de aprendizagem no desenvolvimento das competên-
cias empreendedoras dos alunos. No entanto, outros estudos defendem que
muito embora exista o ambiente, este nem sempre fornece, necessariamente,
recursos suficientes ou possuem espaços adequados para o desenvolvimento
amplo dessas competências, ou que proporcionem apoio suficiente para
obtenção de melhores resultados no aumento da compreensão do empreen-
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dedorismo pelos alunos (Stenholm, Ramström, Franzén, & Nieminen, 2021).


Destaca-se que, há mais de 60 anos, o primeiro curso de empreen-
dedorismo foi ministrado nos Estados Unidos e, ao longo de mais de seis
décadas, disseminou-se pelo país em questão, chegando até outros países.
Juntamente com essa disseminação cresceu o interesse acadêmico sobre o
tema e a discussão sobre metodologias específicas para o seu ensino (Lima
et al., 2015).
Nessa perspectiva, percebe-se que o aumento no interesse pelos pro-
cessos e metodologias de ensino do empreendedorismo tornou-se crescente
a partir de estudos como os de Dornelas (2001), que já apontavam a neces-
sidade e possibilidade de desenvolvimento de tais atividades, alegando
que a capacidade empreendedora é habilidade inata ao ser humano (Vieira
et al., 2013).
No Brasil, é possível perceber que o ensino de empreendedorismo
cresceu sob um viés para o desenvolvimento social, pois oferta-se esse
conhecimento para alunos de diversos cursos, tais como Física, Filosofia,
Jornalismo, Ciências da Computação, diferentemente de outros países onde
o ensino de empreendedorismo é matéria exclusiva dos cursos de adminis-
tração (Martins & Honório, 2017).
Cabe destacar, ainda, que a escola contemporânea vem buscando por
novas formas e modelos capazes de dinamizar o processo de ensino e apren-
dizagem em todos os seus segmentos. Entre esses modelos, surgem metodo-
logias ativas como a gamificação, a sala de aula invertida, a aprendizagem
baseada em projetos (ABP), a rotação por estações de aprendizagem, a
aprendizagem baseada em equipes ou team based learning (TBL), entre
outras. Tais metodologias são estratégias que buscam propiciar ao aluno
autonomia e protagonismo para o processo de aprendizagem (De Paula,
Bispo & Avelar, 2021).
Azevedo e Fernandes (2019), em sua análise da literatura sobre o ensino
de empreendedorismo, identificaram a necessidade da utilização de meto-
dologias ativas para a formação de competências e habilidades durante o
processo de formação dos alunos a fim de que sejam capazes de reconhecer
e definir problemas, propor soluções de forma estratégica, desenvolver a
62

criatividade para seu exercício profissional, a capacidade adaptável às dife-


rentes situações ambientais, bem como a capacidade para elaborar, imple-
mentar e consolidar projetos.
Essas são mudanças e adaptações que exigem a introdução de tecno-
logias no ambiente de ensino e facilidade de acesso, para que, então, se
provoque diariamente todos os envolvidos nos processos educacionais a
repensar sistematicamente novos modos e metodologias de atuar com o

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estudante neste novo cenário. Este é um grande desafio para as instituições
de ensino: sair dos moldes tradicionais para construir e aplicar novos mode-
los que sejam dinâmicos e eficazes no processo de ensino e aprendizagem
(Pacheco, Andrade & Reis, 2017).
Com o desenvolvimento das habilidades empreendedoras, o aluno
poderá alcançar melhor desempenho em suas atividades e, assim, obter
mais condições de sucesso em seu empreendimento, em sua rotina pro-
fissional, acadêmica ou pessoal. Desse modo, as unidades de ensino têm
papel fundamental na promoção de processos focados em desenvolver essas
habilidades e competências nos seus alunos, afastando-se da concepção
de ensino predominantemente teórico para uma realidade fomentadora de
práticas empreendedoras, um espaço ideal para ensaios profissionais que
gerem valor tanto para o crescimento pessoal e profissional, como também
para a sociedade em seu entorno (Febrianto, Kusdiyanti & Tsong, 2021).
Segundo a European Commission (2008), o ensino de empreendedo-
rismo deve estar focado em três pilares, a saber: desenvolvimento, conscien-
tização e incitação do espírito empreendedor entre os estudantes; formação
de estudantes para abrir uma empresa e gerir o crescimento do negócio;
e, desenvolvimento de habilidades empreendedoras para identificação
de negócios.
No entanto, de acordo com Dolabela e Bodian (2018), a atividade e
o comportamento empreendedor abrangem todos os tipos de pessoas, ou
seja, todos aqueles que atuam no setor de empresas particulares, no terceiro
setor, em governos, pequenos e grandes negócios, aqueles que são gestores,
empregados, proprietários, estudantes e mesmo os desempregados. Segundo
os mesmos autores, o empreendedorismo não representa somente a atividade
empresarial com o objetivo de obtenção de renda e lucro, mas vai além,
diz respeito a uma forma de ser, podendo estar presente em qualquer ativi-
dade humana, pois consideram empreendedor, em qualquer área, alguém
que sonha e busca transformar o seu sonho em realidade (Carvalho & De
Oliveira Gouvêa, 2020).
Outrossim, para que o ensino do empreendedorismo alcance esse nível
de entendimento e maturidade, a aprendizagem deve ser conduzida de forma
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 63

eficaz e eficiente, desenvolvida sob um viés de empatia de maneira a com-


preender as capacidades e reais necessidades dos alunos na busca pelo
caminho profissional. Assim, a instituição educacional conseguirá imple-
mentar a aprendizagem do empreendedorismo de forma significativa, uti-
lizando de recursos promotores de criatividade e inovação, permitindo aos
alunos desenvolver habilidades para criação de produtos, serviços, rotinas,
que solucionem problemas pessoais ou comunitários, gerando valor para a
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sociedade do entorno (Febrianto, Kusdiyanti & Tsong, 2021).


Stenholm, Ramström, Franzén e Nieminen (2021) enfatizam a impor-
tância do ensino intencional do empreendedorismo nas instituições, de
maneira que os professores, por estarem na linha de frente do processo de
ensino e aprendizagem, precisam estar bem conscientes de quais habilidades
desenvolver e por meio de quais metodologias trabalhar. Dessa maneira,
propiciam que os alunos alcancem satisfatoriamente os resultados de apren-
dizagem esperados, melhorando suas competências empreendedoras, tornan-
do-se profissionais com uma ampla visão do que seja empreendedorismo,
indo além dos conceitos voltados unicamente para a criação de empresas e
obtenção de lucro pessoal.
Em sua revisão de literatura, De Almeida, Cordeiro & Da Silva (2018)
destacam iniciativas de órgãos internacionais que abordam uma visão dife-
renciada de ensino do empreendedorismo nas instituições educacionais a
partir do envolvimento dos alunos em experiências práticas, enfatizando a
importância do papel do professor nesse processo. Segundo os autores, um
entendimento a partir das proposições apresentadas na revisão sugere que
as disciplinas, cursos e programas de ensino em empreendedorismo, foquem
tanto na teoria quanto na atividade prática, ou seja, é preciso unir ensino
e aprendizagem teórica com a prática de desenvolvimento das aptidões e
habilidades dos alunos.
Assim, olhando para o futuro do ensino nas instituições educacio-
nais, compreendendo a importância do desenvolvimento de habilidades
empreendedoras nos alunos, observa-se a necessidade pela busca de um
maior incentivo à formação empreendedora na educação superior. No Bra-
sil, especificamente, é necessário que as instituições de ensino alimentem
o know how de seus alunos por meio de conteúdos, saberes e práticas ino-
vadoras, a fim de facilitar a aquisição de tantos outros saberes específicos a
cada área de formação empreendedora. Para tanto, o ensino superior deve
tecer um olhar para além de seus limitantes, praticando o exercício de estar
atento às necessidades de sua comunidade, do mercado em seu entorno, das
oportunidades, fraquezas e potencialidades, buscando conteúdos, saberes,
experimentações e soluções (Carvalho & De Oliveira Gouvêa, 2020).
64

Empreendedorismo Feminino e Comportamento Empreendedor

A atividade empreendedora tem sido apontada, tanto no meio acadêmico


como no âmbito econômico e social, por meio da formulação de políticas
públicas, como um dos principais motores do crescimento e desenvolvimento
econômico. Com isso, ao longo dos anos, a condução de pesquisas sobre
empreendedorismo tem se desenvolvido cada vez mais. Contudo, ainda se

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mostram incipientes, mas urgentes e necessárias, as investigações incluindo
questões relacionadas a gênero, visto que as mulheres encontram diferentes
desafios e barreiras no momento de empreender. Percebe-se, portanto, a neces-
sidade de incremento na pesquisa baseada em gênero a fim de desenvolver o
aperfeiçoamento do campo de pesquisa sobre empreendedorismo feminino
(Meyer, 2018).
Dados do Sebrae (2021) destacam a importância do tema, apontando que,
no Brasil, no terceiro trimestre de 2020, existiam 25,6 milhões de donos de
negócio, sendo que 8,6 milhões eram mulheres (33,6%), e 17 milhões eram
homens (66,4%). Outra constatação foi que as mulheres donas de negócio
apresentavam maior grau de escolaridade, eram mais jovens, trabalhavam mais
por conta própria, trabalhavam menos horas no negócio, estavam há menos
tempo na atividade atual, pelo menos 49% são chefes de domicílio, tinham
estruturas de negócio mais simples, contribuíam mais para a previdência na
atividade atual, trabalhavam mais no setor de serviços, e ganhavam menos.
Estudos anteriores já apontaram que mulheres empreendedoras são glo-
balmente conhecidas por trabalharem exaustivamente, mantendo determi-
nação necessária para atingir seus objetivos na realização de seus trabalhos,
no entanto, ainda necessitam de reconhecimento frente as suas habilidades
para o empreendedorismo, que, por vezes, são reconhecidas nos homens. Em
alguns casos, o nível de confiança é considerado inferior ao dos homens, no
entanto as mulheres alcançam o mesmo nível de sucesso que os homens no
negócio e, como forma de fortalecimento do empreendedorismo feminino,
necessitam receber mais atenção por parte das políticas de governo (Gray,
2010; Itani et al., 2011).
Uma motivação geral para o desenvolvimento do comportamento
empreendedor, seja em homens ou mulheres, diz respeito ao desejo ou ten-
dência de organizar, manipular dominar, o que vem ao encontro do desejo
das pessoas de iniciar seu próprio negócio. Isso fortalece a ligação positiva
entre a motivação empreendedora e a decisão de se tornar um empreendedor
(Johnson, 1990; Collins et al., 2004). Ou seja, indivíduos com alta motivação
empreendedora, consequentemente irão se esforçar mais para evitar o fracasso
de seus negócios do que aqueles com baixa motivação (Carsrud et al., 2017).
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 65

Essa motivação que gera ações para a transformação, para a mudança,


para correr riscos guarda características relacionadas ao empreendedorismo
como um todo. No entanto, quando se trata especificamente do empreen-
dedorismo feminino, há outra realidade a ser observada, a qual vai além da
obtenção de lucro, e refere-se também ao empoderamento, à visibilidade, ao
reconhecimento e ao acolhimento. Diferentemente de tempos atrás — quando
o potencial empreendedor das mulheres era subjugado por questões socio-
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culturais, e as mulheres eram vistas como destinadas a papéis secundários


na economia — hoje, o mundo despertou para as qualidades e competências
femininas que as levam a gerir, como em um círculo virtuoso, os mais dife-
rentes negócios com excelência e propósitos bem delineados, incentivando
outras mulheres (Sebrae, 2019).
Mulheres empreendedoras demonstram comportamentos essenciais de
liderança, de adaptação e são capazes de realizar diversas atividades ao mesmo
tempo com excelência e ótimo desempenho, visando sustento, enriqueci-
mento, melhoria de vida, crescimento na carreira e independência financeira
(GEM, 2010). Outros comportamentos também observados na literatura sobre
o empreendedorismo feminino são: a persistência, que representa a capacidade
de agir diante de obstáculos significativos a fim de superá-los enfrentando um
desafio ou mesmo mudando de estratégia; o esforço, que está relacionado aos
sacrifícios pessoais ou empenho significativo para atingir os objetivos; com-
prometimento e exigência quanto à qualidade e eficiência; e resiliência para
seguir empreendendo e recriando seus negócios, tornando-os competitivos e
rentáveis (Matte et al., 2019).
Essas e outras características empreendedoras são atitudes e comporta-
mentos que contribuem para alcançar o sucesso. Empreendedores raciocinam
de forma diferenciada, principalmente quando são desafiados à tomada de
decisão mesmo em ambiente inseguro e de alto risco (Dolabela, 1999; Hisrich,
Peters & Shepherd, 2014).
Acerca desses comportamentos desenvolvidos pelo empreendedor, um
modelo clássico apontado como referência na literatura ainda hoje é o de
MClleland (1972). Tal modelo apresenta um conjunto de dez características
comportamentais que devem ter os empreendedores: realização, que abrange
a busca de oportunidades, a persistência, o comprometimento, a exigência de
qualidade e eficiência e a capacidade de correr riscos calculados; o planeja-
mento, abrangendo a busca de informações, o estabelecimento de metas e o
planejamento e monitoramento sistemáticos; e poder, que envolve a indepen-
dência e autoconfiança, a persuasão e redes de contato, conforme ilustrado
na Figura 1.
66

Figura 1 – Características do Comportamento


Empreendedor – McClelland (1972)

Realização Planejamento Poder


Busca de oportunidades
e iniciativa Estabelecimento de

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metas Persuasão e redes
de contatos
Persistência

Comprometimento Busca de informações

Exigência de qualidade
e eficiência Independência
Planejamento e e confiança
monitoramento
Correr riscos calculados sistemático

Fonte: Albuquerque e Barbosa (2018).

Todas essas características comportamentais, de acordo com Pacheco,


Dos-Reis, Azevedo e Lopes (2020), são fundamentais ao desenvolvimento
dos estudantes de graduação. Nesse sentido, atesta-se a importância de as
instituições de educação superior trabalharem de forma mais aprofundada
por meio de metodologias de ensino que fomentem no aluno o desenvol-
vimento de postura dotada de iniciativa para exploração de oportunidades,
implicando na implementação de um conjunto de ações a serem atingidas a
médio e longo prazo.
Esta breve revisão da literatura permitiu a identificação das CCE, o que
fundamenta a definição do percurso metodológico da pesquisa, bem como a
interpretação dos resultados, com a análise comparativa entre tipo de ensino
(presencial e remoto) e desenvolvimento das competências empreendedoras
entre homens e mulheres.

Metodologia

Para escolher a metodologia adequada para o trabalho científico, ou


seja, o caminho a ser percorrido, faz-se necessária a compreensão científica
da linha de pensamento adotada, com a definição dos aspectos essenciais
deste procedimento, tais como as abordagens ontológica e epistemológica; a
descrição do método utilizado; os instrumentos de coleta de dados; a escolha
do público-alvo. Esta pesquisa adotou uma abordagem ontológica objetivista,
considerando, portanto, que instituições (organizações e valores) agem como
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 67

forças externas e constrangedoras de comportamentos, e culturas agem como


forças constrangedoras de comportamento, porque as pessoas internalizam
suas crenças e valores, como definido por Bryman (2008).
Além disso, o estudo seguiu uma perspectiva epistemológica positivista,
uma vez que considera que apenas o conhecimento confirmado pelos sentidos
pode ser considerado como genuíno. O propósito da teoria é gerar hipóteses a
serem testadas; o conhecimento advém da coleta de fatos que pavimentam a
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base para o desenvolvimento de leis; e a ciência deve ser conduzida de forma


value free4 (Bryman, 2008).
Segundo Bryman (2008, p. 31), “método de pesquisa é simplesmente a
técnica para coleta de dados, que pode envolver um instrumento específico”,
sendo que para este estudo adotou-se o método quantitativo. A metodologia
estatística, então, serviu como pesquisa de coleta de dados e sistematização
para a interpretação dos dados, sendo possível realizar a análise comparativa
da variância das médias das respostas nas duas fases da pesquisa.
Por ser caracterizada também como estudo de caso, foram utilizados
questionários, que, como aponta Gil (2006), é o instrumento de coleta de dados
constituído por uma série ordenada de perguntas, que devem ser respondidas
por escrito e preferencialmente na presença do entrevistador. A construção
do questionário consistiu em traduzir os objetivos da pesquisa em perguntas
claras e objetivas.
A investigação foi realizada em duas fases, sendo a primeira em 2019, em
uma Instituição de Educação Superior (IES) do Distrito Federal do tipo Centro
Universitário que possui experiências em atividades ligadas ao empreende-
dorismo, localizada em uma região administrativa distante 25 km do centro
de Brasília/DF, denominada como IES. Na ocasião, foram aplicados 123
questionários, em turmas matriculadas no 1º e 2º semestre de 2019. Nessa
primeira fase, os alunos respondentes foram dos cursos de Administração,
Gestão de Recursos Humanos e Ciências Contábeis. Os respondentes eram
75 mulheres e 48 homens.
Na segunda fase, foram novamente aplicados 108 questionários aos alu-
nos matriculados no 2º semestre de 2021, nos cursos de Administração, Gestão
Pública, Ciências Contábeis, Gestão de Recursos Humanos, Gestão Financeira
e Comunicação Social — Publicidade e Propaganda. Os respondentes nesta
segunda fase foram 63 mulheres e 45 homens.
Para a coleta dos dados por meio do questionário, e já visando seu
estudo interpretativo, houve divisão das dimensões em categorias de aná-
lise, de acordo com os objetivos específicos deste trabalho, objetivando a

4 Livre de valores.
68

sistematização dos dados, sendo o instrumento dividido em duas partes;


i) Parte A — dados gerais dos discentes; ii) Parte B — 30 questões sobre as
características do comportamento empreendedor, com o propósito de anali-
sar 10 características desse comportamento, conforme modelo definido por
McClelland (1987). A identificação do tipo de ensino aplicado se deu pelo
marco temporal, pois respondentes de 2019 cursaram na modalidade presen-
cial, enquanto os respondentes de 2021, em razão da pandemia, cursaram no

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formato remoto. Apresenta-se a seguir, na Tabela 1, a estrutura do instrumento
utilizado, composto por 30 itens, indicando, para cada conjunto de caracte-
rísticas, os itens correspondentes na escala.

Tabela 1 – Mapeamento das Características do Comportamento


Empreendedor (McClelland, 1987) no instrumento de coleta de dados
CCE Categoria Descrição Item Item Item
1 Busca de oportunidade e iniciativa 1 11 21
2 Persistência 10 20 22
3 Realização Comprometimento 9 19 23
4 Exigência de qualidade e eficiência 8 18 24
5 Correr riscos calculados 7 17 25
6 Estabelecimento de metas 6 16 26
7 Planejamento Busca de informação 5 15 27
8 Planejamento e monitoramento sistemático 4 14 28
9 Persuasão e redes de contatos 3 13 29
Poder
10 Independência e autoconfiança 2 12 30

Fonte: Elaborado pelos autores, com base em McClelland (1987).

Conforme pode ser visualizado na Tabela 1, as 5 primeiras Características


do Comportamento Empreendedor relacionam-se ao conjunto de realização,
ao passo que as CCE 6 a 8 ao conjunto planejamento, e as CCE 9 e 10 ao
conjunto de poder.
Foi usada uma escala do tipo Likert para as respostas ao questionário,
sendo que o respondente escolhia uma entre as categorias a seguir a que
melhor expressava a sua opinião: 1 — nunca pratico este comportamento;
2 — raramente pratico este comportamento; 3 — algumas vezes pratico este
comportamento; 4 — a maioria das vezes pratico este comportamento; e, 5
— sempre pratico este comportamento.
Na primeira fase, o questionário foi aplicado impresso em sala de aula,
e, na segunda, virtualmente, mediante questionário online do Google Forms®.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 69

Todos os preceitos éticos foram devidamente respeitados, garantindo a parti-


cipação voluntária, o anonimato dos respondentes e o tratamento por agrupa-
mento dos dados. Todos os respondentes assinaram o Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido em todas as etapas da pesquisa.
Os dados foram digitalizados em planilha Excel®, o que permitiu a análise
estatística descritiva e inferencial dos resultados, extraindo as médias de cada
item analisado, como a aplicação de testes e análise de variância das médias,
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conforme apresentados na discussão dos resultados.

Resultados e discussão

Nesta seção, apresenta-se a interpretação dos resultados obtidos a partir


das respostas dos questionários aplicados, buscando fazer a discussão dos
dados e a ilação com o marco teórico que dá sustentação à pesquisa.
Os resultados estão organizados sob três perspectivas. O primeiro item
apresenta a percepção global de todos os estudantes do seu próprio compor-
tamento empreendedor. O segundo apresenta a análise entre os resultados
dos estudantes que desenvolveram características empreendedoras por meio
do ensino presencial, que ocorreu na primeira fase da pesquisa, e os alunos
que realizaram as atividades empreendedoras, no período da pandemia, com
metodologia remota. O terceiro item apresenta a análise comparativa dos
resultados entre os estudantes do gênero masculino e do gênero feminino, o
que permitiu evidenciar se houve diferença significativa entre gêneros. Ao
final, apresenta-se a interpretação dos resultados, com breve discussão dos
achados da investigação.

Percepção dos estudantes do seu Comportamento Empreendedor

Primeiramente, entende-se como relevante compreender se há diferenças


de percepção dos estudantes no desenvolvimento das CCE no ensino presen-
cial ou remoto. Nos dois grupos pesquisados (2019 e 2021), a IES ofertou
a disciplina de empreendedorismo na modalidade presencial em 2019, e na
modalidade remota em 2021. O instrumento de coleta permitiu identificar
como esses alunos agem diante das situações pertinentes às 10 Características
do Comportamento Empreendedor propostas por McClelland (1987).
A Tabela 2 apresenta as médias das CCE nos dois grupos, além de
demonstrar a percepção por gênero, permitindo a análise global do grau de
concordância dos respondentes com relação à sua prática de cada comporta-
mento empreendedor.
70

Tabela 2 – Média das CCE por grupo (2019 e 2021) e gênero


Todos Masc. Fem. Todos Masc. Fem.
Nº CCE
2019 2019 2019 2021 2021 2021
1 Busca de oportunidade e iniciativa 3,26 3,26 3,27 3,41 3,41 3,48
2 Persistência 3,76 3,76 3,79 3,81 3,81 3,93
3 Comprometimento 3,97 3,97 3,98 3,95 3,95 4,06
4 Exigência de qualidade e eficiência 3,99 3,99 3,99 4,02 4,02 4,14

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5 Correr riscos calculados 3,54 3,54 3,54 3,66 3,66 3,85
6 Estabelecimento de metas 3,52 3,52 3,53 3,56 3,56 3,62
7 Busca de informação 3,73 3,73 3,74 3,89 3,89 4,02
8 Planejamento e monitoramento sistemático 3,32 3,32 3,35 3,47 3,47 3,62
9 Persuasão e redes de contatos 3,36 3,36 3,38 3,44 3,44 3,42
10 Independência e autoconfiança 3,55 3,55 3,55 3,52 3,52 3,48

Fonte: Dados da pesquisa.

Observa-se que os comportamentos 1, 5, 6, 8, 9 e 10 são praticados com


menor frequência, enquanto os comportamentos 2, 3, 4 e 7 são evidenciados
como prática majoritária dos respondentes, em ambos os grupos (2019 e
2021). Por sua vez, as características de comprometimento (média de 3,97
em 2019 e 3,95 em 2021) e exigência de qualidade e eficiência (média de
3,99 em 2019 e 4,02 em 2021) são percebidas com maior frequência pelos
alunos. Por outro lado, também se verifica que há uma busca de informações
no sentido de obter conhecimento para a prática empreendedora.
Percebe-se, ainda, que não há ausência nos grupos de algum comporta-
mento empreendedor, como também não se evidencia que os respondentes
tenham uma prática permanente e constante de determinado comportamento.
A Tabela 3 demonstra como os alunos se veem, por conjunto de CCE, de
acordo com McClelland (1987).

Tabela 3 – Média dos conjuntos das CCE dos grupos (2019 e 2021) e gênero
Conjunto de CCE Todos 2019 Masc. 2019 Fem. 2019 Todos 2021 Masc. 2021 Fem. 2021
Realização 3,71 3,71 3,72 3,77 3,77 3,89
Planejamento 3,52 3,52 3,54 3,64 3,64 3,75
Poder 3,45 3,45 3,46 3,48 3,48 3,45

Fonte: Dados da pesquisa.


Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 71

Percebe-se que, ao agrupar as CCE pelos conjuntos propostos por


McClelland (1987), a categoria “realização” evidencia maior frequência de
sua prática (média de 3,71 em 2019 e média de 3,77 em 2021). Por outro
lado, a categoria “poder” é que possui as menores médias (3,45 em 2019 e
3,48 em 2021). A seguir, realiza-se a análise comparativa do comportamento
empreendedor percebido pelos estudantes nos anos pesquisados.

Análise comparativa das CCE de estudantes cursantes dos ensinos


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presencial e remoto

A pandemia do novo coronavírus, iniciada no final do ano de 2019 e acen-


tuada a partir de 2020, trouxe inúmeras consequências para toda humanidade,
provocando mudanças de práticas, de metodologias e comportamentos. As
Instituições de Educação Superior tiveram que adaptar o seu modelo pedagó-
gico presencial para uma nova práxis, com o uso de ferramentas tecnológicas,
para que os estudantes continuassem seus cursos superiores de forma remota,
em razão do isolamento social.
Dessa forma, é relevante analisar como a mudança de tipo de ensino,
presencial ou remoto, impactou no desenvolvimento do comportamento
empreendedor dos alunos. Afinal, a autonomia exigida para o ensino remoto,
bem como o distanciamento físico e as eventuais dinâmicas pedagógicas pre-
senciais poderiam influenciar de alguma forma no comportamento dos alunos.
A Tabela 4 possibilita a comparação e análise das médias da percepção dos
respondentes relacionadas às CCE nos dois períodos, presencial e remoto.

Tabela 4 – Comparação das CCE entre ensino presencial e remoto


Ensino Ensino
CCE
presencial remoto
1 Busca de oportunidade e iniciativa 3,26 3,41
2 Persistência 3,76 3,81
3 Comprometimento 3,97 3,95
4 Exigência de qualidade e eficiência 3,99 4,02
5 Correr riscos calculados 3,54 3,66
6 Estabelecimento de metas 3,52 3,56
7 Busca de informação 3,73 3,89
8 Planejamento e monitoramento sistemático 3,32 3,47
9 Persuasão e redes de contatos 3,36 3,44
10 Independência e autoconfiança 3,55 3,52

Fonte: Dados da pesquisa.


72

Para análise comparativa entre as médias dos dois períodos investigados,


foi realizada a Análise de Variância, sendo que a hipótese nula afirma que os
valores médios entre as percepções das CCE são iguais entre os dois tipos de
ensino, conforme Tabela 5.

Tabela 5 – Análise de Variância das CCE entre ensino presencial e ensino remoto
ANOVA

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Fonte da variação SQ gl MQ F valor-P F crítico
Entre grupos 0,025443 1 0,025443 0,430096 0,520237015 4,413873
Dentro dos grupos 1,064802 18 0,059156
Total 1,090245 19

Fonte: Dados da pesquisa.

Nesses resultados, verifica-se que o valor de p é de 0,520237015, sendo,


portanto, superior ao nível de significância de 0,05. Desse modo, não é possí-
vel rejeitar a hipótese nula e concluir que as médias entre o ensino presencial e
o ensino remoto são iguais. Para confirmação do resultado, foi aplicado o teste
t, para duas amostras, presumindo variâncias diferentes, sendo que P(T<=t)
uni-caudal é igual a 0,260118, o que também é superior ao nível de confiança
de 0,05, apontando que não há diferença entre as médias.
Fica evidenciado que na IES em estudo o ensino de empreendedorismo
não sofreu modificação entre a metodologia de ensino presencial e remota, na
percepção dos alunos, vez que as médias são iguais estatisticamente.
Após aproximadamente dois anos na vivência com o ensino remoto,
vivenciou-se a transformação abrupta da presencialidade no ambiente acadê-
mico da IES para um novo tipo de presencialidade — agora virtual. Embora as
aulas tenham continuado síncronas, mas mediadas por tecnologia, foi neces-
sário desenvolver no aluno a necessidade de manter a sua produtividade.
A questão de gênero no empreendedorismo está cada vez mais presente
na discussão acadêmica, especialmente considerando que a mulher, desde que
passou a ingressar no mercado de trabalho, não deixou de lado seus outros
papéis. Ou seja, ainda persiste para a mulher necessidade de se desdobrar
nas funções de mãe, provedora, trabalhadora, empreendedora e também líder
familiar. Dessa forma, é importante analisar como homens e mulheres se
percebem com relação ao seu comportamento empreendedor. Há diferenças
significativas entre o comportamento empreendedor masculino e o feminino?
Para discutir sobre esse fenômeno, apresenta-se a seguir a análise comparativa
entre gêneros no grupo pesquisado.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 73

Análise comparativa das CCE dos estudantes dos gêneros feminino e


masculino

A mulher sempre ocupou papel central na sociedade e na economia, mas


por muito tempo foi (e ainda é, em muitos contextos) invisibilizada por uma
sociedade machista e misógina, em que o homem teve a centralidade do poder e
de mando, sendo considerado o provedor e com grande espírito empreendedor.
Todavia, a mulher tem conquistado, especialmente, a partir da pós-mo-
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dernidade, um espaço social e de empoderamento, fortalecendo o seu papel de


liderança e de empreendedorismo. Na área do empreendedorismo, a mulher
foi (e ainda é) alvo de preconceito e até mesmo descrédito, como se ela não
tivesse a capacidade de empreender e cuidar de negócios de sucesso.
A universidade tem sido um espaço de construção de discussão e desenvol-
vimento de habilidades empreendedoras, sendo que algumas instituições ofer-
tam disciplinas específicas sobre o tema, com o foco na prática e no fomento
de novos empreendimentos ou preparação para gestão dos já existentes.
Dessa forma, realizar a análise comparativa da percepção do compor-
tamento empreendedor entre os gêneros feminino e masculino, com grupos
distintos de respondentes, de forma longitudinal, englobando dois períodos
diversos, possibilita a discussão sobre como as mulheres se comportam no
empreendedorismo, quais suas atitudes e ações diante de situações de desafios
que exigem ousadia, proatividade, conhecimento e preparação. Homens e
mulheres se percebem com características do comportamento empreendedor
diferentes? Há um grupo mais empreendedor que outro?
Para analisar essas questões, a Tabela 6 apresenta as médias das respostas
dos alunos nos anos de 2019 e 2021, separadas por gênero.

Tabela 6 – Comparação das CCE entre mulheres e homens


CCE Masc. 2019 Masc. 2021 Fem. 2019 Fem. 2021
1 Busca de oportunidade e iniciativa 3,26 3,41 3,27 3,48
2 Persistência 3,76 3,81 3,79 3,93
3 Comprometimento 3,97 3,95 3,98 4,06
4 Exigência de qualidade e eficiência 3,99 4,02 3,99 4,14
5 Correr riscos calculados 3,54 3,66 3,54 3,85
6 Estabelecimento de metas 3,52 3,56 3,53 3,62
7 Busca de informação 3,73 3,89 3,74 4,02
8 Planejamento e monitoramento sistemático 3,32 3,47 3,35 3,62
9 Persuasão e redes de contatos 3,36 3,44 3,38 3,42
10 Independência e autoconfiança 3,55 3,52 3,55 3,48

Fonte: Dados da pesquisa.


74

Para análise comparativa entre as médias do comportamento empreende-


dor entre homens e mulheres, foi realizada a Análise de Variância, sendo que
a hipótese nula afirma que os valores médios entre as percepções das CCE
são iguais entre dois gêneros, conforme Tabela 7.

Tabela 7 – Análise de Variância entre CCE de homens e mulheres


ANOVA

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Fonte da variação SQ gl MQ F valor-P F crítico
Entre grupos 0,16306 3 0,05435331 0,853689 0,4738753 2,866265551
Dentro dos grupos 2,292076 36 0,06366878
Total 2,455136 39

Fonte: Dados da pesquisa.

Nos resultados, verifica-se que o valor de p é de 0,4738753, sendo,


portanto, superior ao nível de significância de 0,05. Dessa forma, não é pos-
sível rejeitar a hipótese nula e concluir que as médias entre comportamento
empreendedor de homens e mulheres são iguais.
Assim, é possível afirmar que entre os alunos do gênero feminino e
masculino nos anos de 2019 e 2021 da IES não se identificam diferenças
estatísticas significativas entre o comportamento empreendedor percebido nos
dois grupos. Há que se ressaltar que o resultado aponta para o fortalecimento
das mulheres enquanto empreendedoras, tendo em vista que elas se percebem
com as mesmas características que os homens, mesmo em comportamentos
que não possuem maiores frequência na sua prática, como é o caso da persua-
são e redes de contatos (média feminina de 3,38 em 2019 e 3,42 em 2021; e
média masculina de 3,36 em 2019 e 3,44 em 2021) e busca de oportunidade
e iniciativa (média feminina de 3,27 em 2019 e 3,48 em 2021; e média mas-
culina de 3,26 em 2019 e 3,41 em 2021).
Com relação à procura por oportunidades, percebe-se um ligeiro aumento
da frequência da prática empreendedora em ambos os gêneros, o que pode
se configurar como ação decorrente da crise econômica provocada pela pan-
demia, que obrigou as pessoas a buscarem geração ou mesmo a manuten-
ção de renda.

Discussão dos resultados

Os resultados apontam para duas conclusões importantes para o ensino


de empreendedorismo nos cursos superiores da instituição pesquisada: i) não
houve alteração na percepção dos estudantes acerca do seu comportamento
independentemente do tipo ensino, se presencial ou remoto; e ii) não há
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 75

diferença significativa entre as características do comportamento empreen-


dedor de homens e mulheres.
A crise gerada pela pandemia levou as pessoas a buscarem novas formas
de organização social, profissional e pessoal, o que demandou um processo de
adaptação e superação dos desafios impostos especialmente pelo isolamento
social. A universidade teve que se reestruturar enquanto instituição social,
com a oferta de novas modalidades de ensino, bem como novas tecnologias
aplicadas ao processo ensino e aprendizagem. As relações sociais se alte-
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raram, passando a se desenvolver de forma remota, mediada por ferramen-


tas tecnológicas.
O ensino de empreendedorismo, como apontam Stenholm, Ramström,
Franzén, & Nieminen, (2021), exige um ambiente adequado para o desenvol-
vimento de competências empreendedoras, podendo resultar em melhoria do
desempenho individual dos alunos, bem como no fomento a novos negócios
(Higgins et al., 2013; Nabi et al., 2017). O ensino presencial, com os espaços
físicos adaptados a esse fim, proporcionava experiências vivenciais, com o uso
de metodologias ativas que tornam o aluno protagonista da sua aprendizagem,
como observa De Paula, Bispo e Avelar (2021).
Com a pandemia, essa lógica se modificou e professores e alunos tive-
ram que construir outros ambientes (presenciais individuais ou virtuais) que
pudessem garantir o desenvolvimento das mesmas competências empreen-
dedoras. A pesquisa demonstra que, na percepção dos estudantes da IES em
questão, não houve diferença no comportamento empreendedor entre o ensino
presencial ou remoto.
Por outro lado, há uma percepção empírica de que mulheres empreen-
dedoras trabalham muito, são determinadas e lutam para serem reconhecidas
como tão habilidosas quanto os homens, haja vista que, muitas vezes, são
enxergadas até com desconfiança mesmo quando têm o mesmo sucesso que
empreendedores do gênero masculino, como percebido por Gray (2010) e
Itani et al. (2011). O desejo de abrir o próprio negócio independe de gênero,
sendo a motivação empreendedora que balizará a tomada de decisão (Johnson,
1990; Collins et al., 2004). Os motivos para empreender são os mesmos entre
homens e mulheres, como o sustento da família, o enriquecimento, a melhoria
de vida ou a autonomia financeira.
O estudo evidencia, de forma apropriada, que não há diferença entre a
percepção de homens e mulheres com relação ao comportamento empreende-
dor. Ambos os gêneros têm o mesmo nível de iniciativa e de prática compor-
tamental empreendedora. Esse resultado demonstra que as mulheres ocupam
um espaço de desejo, de obstinação e determinação para enfrentamento de
obstáculos, com práticas mais acentuadas ou menos presentes de caracterís-
ticas empreendedoras na busca de agir com persistência, comprometimento,
76

qualidade e eficiência, tornando-as mais preparadas para gerir seus negócios,


sua carreira ou mesmo a sua vida pessoal com mais competitividade, renta-
bilidade e sucesso.
Considerando que as mulheres ainda são, na maioria das famílias,
sobrecarregadas com atividades do cuidado, da gestão da família e, portanto,
desafiadas sistematicamente a lidar com os desafios impostos pelo conflito
trabalho-família (Da Silva et al., 2019), o resultado encontrado mostra que,

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ainda que atuando em um cenário menos favorável ao empreender do que o
dos homens, as características empreendedoras das mulheres não divergem.
O resultado converge também com o estudo de Bandeira et al. (2020), que
apontou que as motivações para a abertura do próprio negócio segundo o sexo
foram semelhantes entre si.
Por fim, compreende-se que o ensino de empreendedorismo nos cursos
superiores amplia o campo de atuação das pessoas, desenvolve o comporta-
mento empreendedor e estrutura ações para o alcance dos objetivos profissio-
nais e pessoais, independentemente da metodologia aplicada, se presencial ou
remota. Por sua vez, as mulheres têm características empreendedoras iguais
àquelas percebidas pelos homens, passando a ocupar um papel social que as
empodera enquanto empreendedoras, mesmo com todos os desafios da socie-
dade ainda patriarcal. Há um longo caminho a ser percorrido pelas mulheres
empreendedoras, mas, certamente, elas se reconhecerem no mesmo nível de
comportamento empreendedor que os homens é uma grande conquista.

Considerações finais

Os resultados aqui apresentados apontam para dois aspectos centrais. De


um lado, evidenciaram que a modalidade de ensino não interfere em como
os estudantes percebem suas características empreendedoras. Tal resultado se
mostra muito interessante, reforçando as potencialidades do ensino a distância,
que ainda encontra muita resistência, seja de docentes, seja de estudantes, e
que carece de amadurecimento para que seja um pilar importante na educação
superior. A pandemia, a despeito de todos os impactos negativos que trouxe,
parece ter propiciado o fortalecimento dessa modalidade de ensino no Brasil.
O outro achado da pesquisa aponta para a ausência de diferenças signifi-
cativas na percepção dos estudantes e das estudantes acerca de seu comporta-
mento empreendedor. Os resultados fortalecem a necessidade de avançarmos
enquanto sociedade na promoção da igualdade entre gêneros. Entende-se,
assim, a importância de se fortalecer as políticas e programas de apoio ao
empreendedorismo, desmistificando a ideia de que mulheres e homens diver-
gem na motivação e no comportamento empreendedor.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 77

Entende-se que o presente estudo, ainda que de caráter exploratório,


permitiu avançar nas pesquisas sobre o ensino de empreendedorismo, abrindo
um espaço relevante para novas investigações.
Como perspectiva de novos estudos, sugere-se a ampliação do escopo
da investigação, dilatando amostras e expandindo a pesquisa em outras ins-
tituições de ensino, tanto de natureza pública quanto privada, possibilitando,
assim, a comparação entre estudantes de diversas instituições. A realização
de pesquisas qualitativas, aprofundando e refinando os dados acerca do com-
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portamento empreendedor de mulheres, também se mostra uma possibilidade


futura de estudo.
Espera-se que os resultados aqui apresentados possibilitem a conscien-
tização da importância do ensino de empreendedorismo nas instituições de
educação superior, que acompanhem as mudanças que vêm acontecendo no
mundo e que impactem na forma de ensinar essa disciplina tão relevante.
Espera-se ainda que possam ter contribuído para reforçar a necessidade de
avançar na perspectiva de caminhar para uma sociedade mais equânime nas
relações entre homens e mulheres no cenário do empreendedorismo.
78

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Parte 2
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Capítulo 4
“Guerreiras cor de rosa”: Instagram e discursos
endereçados às mulheres empreendedoras
Carla Antloga1
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Raíssa Nayara Mota Pereira Costa2

Agradecimentos especiais ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Psico-


dinâmica do Trabalho Feminino — Psitrafem e às pessoas que colaboraram
mais diretamente com este trabalho: Cleide Antloga, João Machado, Júlia
Schirmer, Marina Maia, Maurício Sarmet, Noêmia Morais, Raíssa Costa,
Paulo Henrique Roberto, Vithor Rosa Franco.

O objetivo deste capítulo é propor reflexões sobre o discurso imagético


presente no Instagram sobre as mulheres empreendedoras. Nesse sentido,
reflete-se sobre de que forma tal discurso pode perpetuar micro violências de
gênero contra as mulheres articuladas com outras já postas pelo dilema capital-
-trabalho. Mais especificamente, interessam-nos as empreendedoras de micro
e pequeno porte, responsáveis pela condução da maior parte dos empreendi-
mentos no Brasil e no mundo (Nogami & Machado, 2011; Silva et al., 2016).
Para fins de demarcação teórica, apoiamo-nos na obra de Foucault, na
qual entende-se por discurso um conjunto de enunciados que se apoiem numa
mesma formação discursiva, que, por sua vez, é composta por ordem, corre-
lação, funcionamento e transformação, num conjunto de regularidades que
determinam sua homogeneidade e fechamento (Foucault, 1969).
Desta feita, discurso não se configura exclusivamente como atos de fala,
frases e não se reduz a objetos linguísticos, apresentando-se, outrossim, como
uma formação regular, manifesta em um sistema de positividade (Foucault,
1969). O discurso se apresenta também por meio de imagens, sons, numa rede
de enunciados ou de relações que possibilitam a existência de significantes.
O discurso se caracteriza por outro aspecto relevante que é o de operar
por meio das instituições, consolidando por meio delas leis gerais, regras,
e mesmo movimentos, circunscrevendo este conjunto num tempo, espaço,

1 https://orcid.org/0000-0002-1924-0096. Campus Universitário Darcy Ribeiro, Instituto de Psicologia, Gleba


A, Departamento de Psicologia Clínica, CEP 70.910-900. antlogacarla@gmail.com.
2 Universidade de Brasília.
84

uma área social, econômica, geográfica ou linguística, dada as condições de


exercício da função enunciativa (Foucault, 1960, p. 43).
As práticas discursivas caracterizam-se como um elo entre o discurso
e a prática no campo social, ou seja, por prática entende-se a fabricação, o
ajuste, a aplicação e a produção do discurso, tanto nas instituições quanto
nas relações sociais. Saberes, funções e formas de comportamento de uma
época, de uma área do conhecimento, são influenciados, quiçá determinados,

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pelas práticas discursivas. Por outro lado, tais saberes e funções também são,
em si, produtores das práticas discursivas, que se manifestam em diferentes
contextos, inclusive nas redes sociais.
Conforme Debord (1967), a modernidade trouxe a produção de imagens
e a valorização da dimensão visual da comunicação, inclusive como instru-
mento do exercício do poder e de dominação social em todas as sociedades
onde há classes sociais. Para o autor, as classes sociais derivam da desigual-
dade social do trabalho, principalmente da divisão entre trabalho manual e
trabalho intelectual.
Tal reflexão se relaciona, de maneira muito direta, com os dados de
pesquisa sobre empreendedorismo feminino no Brasil: apesar do frisson
existente no tocante ao empreendedorismo, verifica-se que a maior parte das
mulheres empreende por necessidade, e não por vontade, e que a maior área
de concentração dos negócios ainda é em cuidados, estética e alimentação,
áreas tradicionalmente destinadas às mulheres na divisão social do trabalho.

Redes sociais e seu papel no empreendedorismo feminino

O uso das redes sociais, no Brasil e no mundo, faz parte do compor-


tamento cotidiano da maior parte das pessoas, independentemente de faixa
etária, gênero, inserção profissional (Sheldon & Bryant, 2016). O avanço
de tais tecnologias para comunicação, entretanto, é marcado por dicotomias
singulares. Por exemplo, apesar de terem o potencial de ampliar largamente
redes de relacionamentos e de poderem, também, ser fonte de informações
diversas e de troca de experiências, o uso das redes sociais comumente é
marcado por “mais do mesmo”, ou seja, tanto os usuários privilegiam acessar
mais do que já preferem, quanto as próprias redes, por meio de algoritmos,
definem que os usuários receberão conteúdos vinculados a tudo o que já
buscaram (Cotter, 2019).
Os algoritmos definidos para que o usuário receba mais informações
acerca do que possa lhe interessar não se relacionam apenas com o que ele,
especificamente, faz no perfil profissional, por exemplo. Quaisquer tipos de
informação que forem buscadas na rede têm potencial de serem vinculadas
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 85

ao algoritmo, o que faria com que todo conteúdo pesquisado por uma mulher
empreendedora, por exemplo, inclusive fora de sua temática de negócios,
terminasse por ser direcionada a ela.
De certa forma, vive-se, nas redes sociais, o dilema apresentado por
Umberto Eco (2006) em Apocalípticos e Integrados: os integrados seguem
consumindo a informação destinada à “massa”, informação esta que é ela-
borada de maneira a se amalgamar com a subjetividade do usuário, ditando
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formas de ser, jeitos de fazer e estar no mundo. Com a potencialização e sofis-


ticação dos algoritmos (Cotter, 2019; Highfield & Leaver, 2015), o processo
se torna cada vez mais complexo e articulado.
Além disso, verifica-se também que, apesar de haver muitas pesquisas
sobre as mídias sociais, bem como plataformas de compartilhamento de con-
teúdo, algumas plataformas ainda são menos estudadas que outras (Highfield
& Leaver, 2015; Moe & Larsson, 2013), como no caso do Instagram. Isso
pode estar relacionado à dificuldade que se tem de coletar dados, face às
políticas de privacidade e termos de uso da plataforma, que muitas vezes
justificam bloqueios de usuários que tentam coletar um volume maior de
dados de maneira automática, por exemplo.
Atualmente, o Instagram é a rede social mais acessada no mundo (Auxier
et al., 2019). Além disso, é considerada a rede mais amigável para uso em
celular, sendo que, inclusive, uma parte das ações na plataforma só pode
ser executada pelo aplicativo instalado no telefone (Auxier et al., 2019). A
influência das redes sociais no comportamento das pessoas já foi discutida por
diferentes autores e, embora não haja consenso quanto à, necessariamente,
promoção de mal-estar, há uma compreensão geral de que as redes influenciam
inclusive preferências individuais.
Além de ser uma rede que “abastece” os usuários de conteúdo, o Insta-
gram é extremamente “manejável”, ou seja, é possível, com muita facilidade,
realizar postagens, diretamente do celular, sem muita elaboração, como é
necessário, por exemplo, no YouTube (Cotter, 2019). Tal fator é preponde-
rante para seu uso e, além disso, é uma plataforma que tem um seguimento
business, em que se pode ter uma conta para negócios, com recursos básicos,
sem custo adicional.
Por essas razões, os negócios de pequeno porte utilizam, frequentemente,
o Instagram como ferramenta de vendas, uso esse que se potencializou durante
a pandemia de covid-19 em 2020 (Bern, 2020).
Apesar de ser uma mídia social com algumas possibilidades de conteúdo,
a maior parte do Instagram é imagética. A imagem é o que aparece primeiro
no aplicativo (o texto, quando extenso, inclusive fica oculto, sendo necessário
clicar em “mais” para se acessar o restante do conteúdo). Assim, ao acessar o
86

aplicativo, quer seja para pesquisar sobre algo, quer seja apenas por distração,
um grande volume de imagens chega até o usuário.
Estudos realizados sobre a influência do conteúdo do Instagram na sub-
jetividade vêm sendo desenvolvidos nos últimos anos, mas a maior parte
deles trata de adolescentes, autoestima, autoimagem e questões semelhantes
(Djafarova & Rushworth, 2017; Fardouly et al., 2017; Prichard et al., 2020;
Want, 2009). Naqueles que abordam a influência sobre o comportamento

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de mulheres, evidencia-se que, por um lado, a rede tem potencial de facili-
tar a conexão com outros usuários e o contato entre pessoas com interesses
semelhantes. Por outro, o conteúdo disponível pode motivar mal-estar, sen-
sação de insuficiência, impotência e não pertencimento (Prichard et al., 2020;
Want, 2009).
Independentemente da discussão sobre a influência das mídias sociais na
subjetividade, o Instagram é uma ferramenta para as mulheres empreendedoras
e, durante a pandemia de covid-19, ele passou a ser também o contexto laboral.
Para psicodinâmica do trabalho, falar de trabalho também é falar de
subjetividade, uma vez que se entende que os sujeitos se tornam quem são
por meio da realidade de trabalho que experienciam, por meio do confronto
com o real (Dejours & Molinier, 2011; Sznelwar et al., 2011). O trabalho,
em si, acontece mediante uma realidade objetiva, o contexto, que é composto
por três esferas: condições de trabalho, organização do trabalho e relações
socioprofissionais de trabalho. Ao analisar o Instagram, verifica-se a ocor-
rência dessas dimensões, ainda que virtualmente.
As condições de trabalho, caracterizadas pelas condições objetivas,
podem ser verificadas na própria plataforma, que apresenta suas condições e
limitações. Além disso, o fato de se usar a ferramenta para trabalhar define o
uso de outros elementos, como câmera, microfone, celular, espaço silencioso
ou com ruído, interação com toda a tecnologia envolvida, estrutura apro-
priada (como notebook, cadeira, aparelho telefônico). Assim, o Instagram se
configura, como plataforma, como uma condição de trabalho e define outras
condições necessárias para se trabalhar.
A dimensão da organização do trabalho, caracterizada pelo fluxo, prazos,
metas e resultados esperados, tal qual as condições de trabalho, não só existe
na virtualidade da rede social, como é também definida por ela. Toma-se, por
exemplo, a questão de métricas relacionadas às redes sociais, que determina
o tipo de postagem, a qualidade e a organização do conteúdo, a frequência da
postagem, entre outros, que influenciam os prazos, as metas e os resultados
do trabalho em si. Se o Instagram é utilizado como uma plataforma de ven-
das, e o perfil não for adequadamente mantido e trabalhado, isso influencia
diretamente no resultado do negócio.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 87

Em termos de relações socioprofissionais, a relação com o cliente é o


aspecto mais marcado, pois o marketing e as vendas são realizados ou na
própria plataforma, ou impulsionados por ela. Nesse sentido, como não há
limites de horário ou de espaço de trabalho (considerando que o Instagram é
operado pelo celular), também não há limite na relação com o cliente.
Assim, é possível hipotetizar que a exposição ou, mais precisamente, a
interação com o Instagram possa influenciar comportamentos dos usuários,
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especialmente quando se analisa a plataforma como um contexto de trabalho.


No caso das mulheres empreendedoras, que o utilizam como ferramenta de
trabalho, de maneira direta, importa verificar a qualidade e as características
do discurso a elas direcionado.
Mas porque nos interessamos, mais especificamente, pelas mulheres
empreendedoras? De muitas formas, o empreendedorismo aparece, para as
mulheres, como uma forma de resolver o dilema entre trabalho reprodutivo
e trabalho produtivo. Ou seja, há uma ideia corrente de que, ao empreender,
trabalhando de casa, ou com um horário supostamente flexível, a mulher pode
continuar cuidando das tarefas que socialmente lhes são destinadas, como os
cuidados com casa e prole.
Há, assim, um discurso que é violento por ser cínico, por ignorar as
contradições em que vivem as mulheres que empreendem e por negar-lhes o
direito ao contraditório, já que elas são responsabilizadas por seu fracasso,
inclusive mais que por seu sucesso.
Pouco se fala, por exemplo, das razões envolvidas na intensificação da
atividade empreendedora nas últimas décadas e da sua valorização, especial-
mente considerando as mulheres (Costa et al., 2016).
O contexto de expansão do empreendedorismo alinha-se com a perspec-
tiva econômica neoliberal, segundo a qual é necessário, para a sobrevivência
no e do sistema, o desenvolvimento de um perfil de sujeito individualista e
narcisista (Sennet, 1999). No projeto neoliberal, desenvolveram-se estratégias
para produzir o sentimento de vergonha de depender e, consequentemente,
há a dissolução de laços de confiança, do sentimento de comprometimento
e compromisso mútuo e também da noção de solidariedade (Sennet, 1999).
Ao pretender dissolver as fronteiras entre exploradores e explorados,
por meio da propagação da ideia de mérito, o sistema neoliberal atingiu espe-
cialmente as classes mais frágeis e, de maneira muito particular, as mulheres
(Cisne & Gurgel, 2008; Falquet, 2013).
Especialmente nos países menos desenvolvidos, mulheres são cultural-
mente inseridas em um contexto que lhes ensina que o “ser mulher” depende
da construção de laços, de parcerias e de cuidados, especialmente cuidados
para com os homens, filhos e pessoas mais velhas das famílias.
88

Por um lado, temos que o neoliberalismo aprisiona economicamente


as mulheres, posto que fragiliza todo o suporte socialmente estruturado,
que deveria ser fornecido pelo Estado, e de que estas poderiam dispor para
desenvolverem atividades de valor econômico, principalmente as mulheres
de classes mais baixas (Falquet, 2013). Por outro, o sistema cria um descom-
passo entre aquilo que apresenta para a mulher como característica de sua
mulheridade (Molinier, 2004) e aquilo que é necessário para que ela avance
economicamente, ou seja, incentiva um lugar de fragilidade, dulcilidade e

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preocupação com o outro, ao mesmo tempo em que alimenta que só se poderá
ir longe e alcançar o sucesso profissional e a liberdade financeira caso esteja
disposta e ser arrojada, disruptiva e inovadora, o que pressuporia altas doses
de virilidade, individualidade e mesmo de narcisismo (Mathieu & St-Jean,
2013). Tal descompasso é ainda mais evidente quando se examina o caso das
mulheres empreendedoras e as demandas para que elas possam ser bem-su-
cedidas em suas empreitadas.
O trabalho realizado por mulheres no capitalismo está associado, em
grande parte, à esfera reprodutiva, ou seja, às mulheres são destinadas as
tarefas de cuidado e manutenção da vida. Tais tarefas demandam das mulheres
determinado investimento de tempo e uma logística tal que, muitas vezes, as
impede de realizar atividades fora de casa da mesma forma que os homens.
Soma-se a isso o fato de que, no mercado formal de trabalho, as mulheres
recebem menores salários que os homens e ocupam a maior parte dos postos
de trabalho em meio período e tem-se o que já está evidenciado em diferentes
relatórios e pesquisas sobre empreendedorismo (Barbosa et al., 2011; Elam
et al., 2019).
Tendo em vista que a desigualdade histórica de gênero no mercado
de trabalho (Falquet, 2013), bem como na sociedade de um modo geral, as
mulheres precisam buscar fontes alternativas de recursos financeiros para sua
sobrevivência (Alperstedt et al., 2014). No fim, tem-se um cenário em que a
maior parte das mulheres empreende por necessidade, e não por oportunidade.
O crescente número de mulheres empreendedoras, sendo em volume
maior que o de homens em alguns contextos e regiões (Silva et al., 2016),
corrobora essa ideia e permite questionar se seria esse um movimento real de
equidade de gênero, como comumente é registrado na literatura (Cappellin,
2008) ou uma “fuga” das mulheres do mercado de trabalho, ainda tão desigual.
O empreendedorismo, principalmente o feminino, tem sido “glamouri-
zado” e romantizado nas últimas décadas. Nas mídias sociais, por exemplo,
trata-se da empreendedora como alguém que é dona do próprio caminho,
que é resiliente, corajosa e que obteve sucesso profissional, que depende
apenas dela ou mesmo do próprio esforço para ser bem-sucedida. Porém, a
interseccionalidade do trabalho reprodutivo com as configurações próprias
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 89

do trabalho no capitalismo torna o quadro do empreendedorismo feminino


ainda mais desigual.
O reflexo de tal interseccionalidade pode ser observado no tipo de
empreendimento: verifica-se que a maior parte dos negócios conduzidos por
mulheres, no Brasil e no mundo, pertencem a categorias que são extensão
das atividades domésticas ou de cuidado, além daquelas que se vinculam aos
estereótipos de “trabalho de mulher”, como beleza, moda, decoração e festas.
A temática de violência no trabalho, quando combinada com a questão de
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gênero, apresenta-se ainda mais complexa. As violências perpetradas contra as


mulheres no ambiente de trabalho são múltiplas e silenciosas, o que se reflete
em fenômenos como o teto de vidro, por exemplo. Entretanto, talvez a prin-
cipal contradição, que reside até mesmo em áreas como a psicodinâmica do
trabalho ou a ergonomia da atividade, seja a de não considerar trabalho grande
parte das atividades que, na nossa sociedade, estão destinadas às mulheres.
Apesar do termo ser “trabalho reprodutivo”, para o senso comum, as ativida-
des de cuidado e manutenção da vida não são percebidas exatamente como
trabalho e, portanto, são desvalorizadas.
Além disso, as atividades de empreendedorismo feminino que envolvem
as redes sociais são comumente percebidas como de menor valor. Um exemplo
é o uso pejorativo do termo “blogueirinha” para fazer referência a mulheres
engajadas nas redes sociais em prol de um negócio ou uma causa. Mesmo
que obtenham recursos financeiros dessa atividade, tal trabalho é rebaixado
e simplificado.
Não obstante, talvez a questão mais complexa seja a da empreendedora
de pequeno porte, posto que, na maior parte dos casos, ela empreende por
necessidade, dentro de casa, e não pode abandonar as atividades domésticas.
O fato de empreender por necessidade já reflete um cenário em que sair para
trabalhar, para a mulher, é muito mais complicado que para um homem.
Somado a isso, quando se trata de famílias heteronormativas, sabe-se que os
homens ganham salários melhores que as mulheres e, portanto, há preferência
para que estes saiam para trabalhar, e não a mulher.
A invisibilidade do trabalho doméstico soma-se à invisibilidade que
também existe no processo do trabalho de empreender, em uma intersec-
cionalidade perversa. Quando se trata de empreendimentos, especialmente
os de pequeno porte, a maior parte do trabalho é feita por uma única pessoa,
em geral, o proprietário. No caso das mulheres, que empreendem mais por
necessidade do que por oportunidade, geralmente não é possível terceirizar
atividades, nem de casa, nem do empreendimento.
As mulheres têm mais dificuldade em acessar recursos para empreender
e iniciar seus negócios e é comum, provavelmente em função do trabalho
doméstico e de cuidado (além da própria falta de recursos), que também
90

tenham dificuldades em se capacitar para gerir o empreendimento, mesmo


que isso possa ser feito online.
Especialmente no ano em que este capítulo está sendo escrito, o mundo
enfrenta a pandemia do covid-19, situação que afetou de maneira significativa
as mulheres (Lemos et al., 2021; Macêdo, 2020). Embora não tenham sido
identificados estudos específicos sobre mulheres empreendedoras, supõe-se que
também nesse segmento a situação para as mulheres tenha sido mais crítica, já
que redes de suporte, incluindo escolas e pais, por exemplo, deixaram de atuar.

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As principais violências residem na individualização das dificuldades e
das soluções, na pressuposição de que a única possibilidade é a resiliência,
nas contradições do discurso que não permitem um contraditório.
A questão de políticas públicas de apoio ao empreendedorismo feminino
é uma das mais críticas, já que pouco se fala da ausência delas no Brasil. Con-
forme já mencionado, a maior parte do discurso relativo ao empreendedorismo
feminino circula ao redor da individualidade, resiliência, beleza.
Em que pese o fato de o Instagram ser um dos principais meios de
comunicação para o ativismo social, isso ainda não abarca o caso das mulhe-
res empreendedoras.
Em adição ao cenário já posto, tem-se as questões acerca do conteúdo
que é “bombardeado” em uma das principais plataformas de trabalho e vendas
dessas empreendedoras, o Instagram. Assim, retomamos aqui o objetivo nessa
pesquisa: propor reflexões sobre o discurso, escrito e imagético, presente no
Instagram, e endereçado às mulheres empreendedoras, propondo também
reflexões sobre a forma como esse discurso pode perpetuar micro violências
de gênero contra as mulheres.
Para cumprir tal objetivo, selecionamos um método quantiqualitativo
para coleta e análise de dados, conforme sugerido por Mendes (2013a).

Método

A apreensão de conteúdo disponível nas mídias sociais enfrenta cada


dia mais barreiras que vão sendo criadas pelas próprias plataformas (Cotter,
2019). Além disso, a qualidade e a complexidade da informação disponível
requerem que os estudos que pretendam a análise de tais informações sejam,
segundo Mendes (2013b), inter, pluri ou transdisciplinares. No que se refere
especificamente à análise do discurso produzido nessas plataformas, Mendes
(2013) defende que é preciso repensar as análises clássicas, considerando-se
o caráter extremamente dinâmico do material a ser analisado.
Para a realização da coleta de dados desta pesquisa, utilizou-se como
referência de método o estudo de Highfield e Leaver (2015) para mapea-
mento de hashtags no Instagram. Para decidir como seria feita a busca das
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 91

informações, foram testados alguns caminhos. Não há como obter um ranking


oficial de quem são as maiores influenciadoras digitais na temática. As listas
extraoficiais, publicadas em diferentes veículos de comunicação, apesar de
não serem confiáveis (já que, por exemplo, alguém poderia pagar para ter
o nome na lista), são referência sobre o que ou sobre quem as pessoas têm
comentado no Instagram.
Por sua vez, as hashtags podem ser usadas para identificar do que se
trata um post e para aumentar as chances de que uma busca leve até o post
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com a determinada hashtag.


Uma análise preliminar do material disponível no Instagram, no período
de uma semana, permitiu-nos concluir que as maiores influenciadoras das
listas não usam hashtags em seus posts, ou os usam de maneira “lúdica”, sem
um real objetivo de serem encontradas em buscas. Talvez, por já terem certo
reconhecimento de credibilidade na rede, não se preocupam tanto em aparecer
nas buscas como as mulheres que estão iniciando seus negócios. Como as
hashtags são etiquetas, supõe-se que as pequenas empreendedoras subam as
hashtags com base na finalidade de engajamento, e não de maneira aleatória.

Coleta de dados

Selecionamos as hashtags com maior volume de publicações e, nesse


contexto, os posts definidos pelo Instagram como mais relevantes. Se uma
mulher decide colocar em seu post as hashtags #mulheresempreendedoras
e #empreendedorismofeminino, pode-se inferir que ela quer ser encon-
trada por essa busca, e não necessariamente pelo produto ou serviço que
ela vende.
Entre o final de agosto e o início de setembro de 2020, durante dez dias,
realizou-se a busca pelas hashtags #mulheresempreendedoras e #empreen-
dedorismofeminino, em dois perfis de Instagram distintos e não vinculados
a pesquisadoras na área, uma vez que o algoritmo definido pela rede pode-
ria encaminhar conteúdo vinculado ao perfil. Foram selecionados, nos dois
perfis distintos, por dia, sempre no mesmo horário, os dois posts definidos
pela rede como mais relevantes em cada hashtag e descartadas imagens
repetidas. Assim, ao final da coleta, havia um total de 40 posts contendo
imagem e texto, que foram submetidos à análise de juízes, com base em
categorias pré-estabelecidas.

Análise sob a ótica dos juízes

Foram selecionados três juízas e dois juízes para realizar a análise do


conteúdo coletado. Conforme Penn (2022), a análise de imagens pode ser
92

realizada com base em categorias apriorísticas, desde que vinculadas a uma


teoria específica que, no caso deste estudo, são a concepção foucaultiana de
discurso e a psicodinâmica do trabalho. Assim, definiu-se como categorias
para análise das imagens: 1) mensagem conotativa — palavras evocadas pela
imagem; 2) atividade de trabalho evocada a partir da imagem; 3) negócio
identificado a partir da imagem; 4) se há uma pessoa na imagem, qual é a
postura física que se apresenta; 5) se há pessoa, como a expressão facial pode
ser descrita; 6) qual é a conotação dos itens presentes na imagem; 7) locação

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da imagem (se escritório, praia, restaurante).
O Instagram é uma plataforma definida como imagética, de maneira que
a imagem é preponderante em relação ao texto, diferentemente do Twitter
e do Facebook. Por essa razão, optou-se por se realizar somente a análise
das imagens.
Foi recomendado aos juízes que descrevessem com o máximo de deta-
lhamento o que verificassem nas imagens, para que depois fosse estabelecido
o consenso.
Ao final das análises, houve uma reunião para se estabelecer consenso
acerca do conteúdo das 40 imagens, de maneira que a descrição apresentada
nos resultados se refere ao consenso acerca do conteúdo das 40 imagens
pertencentes a cada categoria de análise.

Resultados

Nesta sessão, apresenta-se a descrição das imagens e a análise a que


se chegou após consenso dos juízes. As imagens analisadas pelos juízes são
apresentadas no anexo 1 e o consenso acerca de cada categoria é apresentado
resumidamente na Tabela 1 para as hashtags #empreendedorismofeminino
e #mulheresempreendedoras. A decisão de analisar o conteúdo proveniente
das duas hashtags ao mesmo tempo foi sugerido pelos juízes, devido à simi-
laridade de conteúdo.

Tabela 1 – Análise das imagens referentes às hashtags


#empreendedorismofeminino e #mulheresempreendedoras
Categoria 1
As imagens remetem a conquistas, serenidade, confiança, sucesso, trabalho
Mensagem conotativa e
interessante, conquistas, juventude, beleza, magreza, elegância, feminilidade,
palavras evocadas pelas
positividade, garra, força de vontade e esperança.
imagens
Nas 40 imagens, cada uma analisada por 5 juízes, foram marcadas apenas 30
Categoria 2 ocorrências quanto à atividade de trabalho que aparecia na imagem. Em 170
Atividade de trabalho evocada análises, não se identificou a atividade de trabalho envolvida. Entre as atividades,
a partir das imagens aparecem tarefas administrativas, leitura, venda de produtos, serviços em cuidados
de beleza e divulgação em mídias sociais.
continua...
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 93

continuação
Nas 40 imagens, cada uma analisada por 5 juízes, foram marcadas apenas
Categoria 3 20 ocorrências quanto ao empreendimento que aparecia na imagem. Em 180
Empreendimento identificado análises, não se identificou o negócio envolvido. Entre os negócios que podem ser
a partir das imagens identificados, estão publicidade, marketing, moda, comércio de presentes, serviços
relacionados à estética e cosméticos.
Categoria 4
Em 6 das 40 imagens analisadas não apareceram pessoas. Nas 34 imagens em
Se há uma pessoa nas
que se verificavam pessoas, todas eram mulheres, com a postura física remetendo a
imagens, qual é a postura
poder, relaxamento, calma e confiança.
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física que se apresenta


Categoria 5
Nas 32 imagens em que aparecem pessoas, a expressão facial mais recorrente é a
Se há pessoa, como a
de sorriso (100 ocorrências nas análises), seguida por seriedade (35 ocorrências nas
expressão facial pode ser
análises) e sedução (35 ocorrências nas análises).
descrita
A maior parte dos itens presentes nas imagens era composta por roupas e
Categoria 6 acessórios, seguido por artigos de decoração. Em apenas 5 imagens aparecem itens
Conotação dos itens que remetem a alguma atividade de trabalho, como objetos de escritório, mesa de
presentes nas imagens trabalho e cadeira. Os itens presentes nas imagens remetem a luxo, despojamento,
sucesso, casualidade, beleza, feminilidade.
Categoria 7
Locais que remetem a organização, limpeza, tranquilidade.
Locação das imagens

Discussão

Dar visibilidade às diferentes modalidades de trabalho, para além daque-


las comumente estudadas, é uma necessidade premente quando se fala de
trabalho feminino. Mais que isso, é importante discutir as interseccionalidades
envolvidas nas diferentes modalidades de trabalho e avaliar, ao mesmo tempo,
as peculiaridades de cada contexto.
Durante a pandemia de covid-19, mais que nunca, a virtualidade passou
a fazer parte do cotidiano dos trabalhadores e se constituiu, por muitos meses,
como a única forma de fazer negócios ou trabalhar.
Para as mulheres empreendedoras de micro e pequeno porte, usar a
rede se tornou uma necessidade. Entretanto, verificamos uma clara discre-
pância entre a realidade de trabalho dessas mulheres e aquilo que aparece
no Instagram quando buscamos palavras associadas a seus negócios, o que
foi realizado por meio da busca de conteúdo relacionado às duas hashtags
mais mencionadas em relação ao tema: #empreendedorismofeminino
e #mulheresempreendedoras.
Embora tais hashtags não estejam diretamente relacionadas aos negócios
específicos com que as mulheres trabalham, grande parte das empreendedo-
ras usa tais sinais como forma de afirmar sua identidade e as identidades de
seu negócio, ou seja, não é um negócio qualquer. É um empreendimento de
uma mulher.
94

Embora os empreendimentos gerenciados por mulheres estejam em


franco crescimento no Brasil, especialmente durante a pandemia (Dórea,
2021), verifica-se que às mulheres ainda são associados empreendimentos
denominados como “de natureza feminina” (Costa et al., 2016), como ativi-
dades de cuidado, venda de roupas e cosméticos. E, de fato, são os setores em
que se encontra o maior número de mulheres empreendendo.
Entretanto, a forma como a vida dessas mulheres é “narrada” na maior

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rede social do mundo, parece bem diferente da realidade e fomenta o este-
reótipo de que “as mulheres são sensíveis, intuitivas, receptivas, cuidadosas
e possuem ternura, interioridade e profundidade; enquanto os homens são
racionais, objetivos, assertivos, materialistas e possuem expressividade” (Car-
valho, 2017, p. 18).
A análise geral das imagens deu origem ao título deste capítulo, “A guer-
reira cor de rosa”. A realidade das mulheres que têm pequenos empreendimen-
tos está longe de ser a ideal, e evidências apontam para sobrecarga, dificuldade
de conseguir financiamento, solidão e exaustão no trabalho, necessidade de
conciliar muitos papéis simultaneamente e, especialmente, empreendimentos
que são realizados por necessidade, e que se mesclam com a vida doméstica
(Machado et al., 2003).
O que é visto nas redes sociais, quando se menciona empreendimentos
femininos, se assemelha a um “conto de fadas”: cenas de espairecimento,
ou de sucesso, de organização e de controle, como se verifica nas categorias
resultantes da análise.
Na Categoria 1, “Mensagem conotativa e palavras evocadas pelas ima-
gens”, verifica-se que as imagens remetem a conquistas, serenidade, confiança,
sucesso, trabalho interessante, conquistas, juventude, beleza, magreza, ele-
gância, feminilidade, positividade, garra, força de vontade e esperança. Os
termos evocados pelas imagens mostram mais do mesmo quando se trata de
estereótipos associados ao trabalho feminino e, também, carregam uma ideia
de que todo empreendimento leva ao sucesso. Além disso, nas imagens, a ideia
de sucesso aparece associada a beleza, feminilidade, juventude e magreza.
Na Categoria 2, “Atividade de trabalho evocada a partir das imagens”,
verifica-se que considerando o total de 40 imagens analisadas por 5 juízes,
foram encontradas apenas 30 ocorrências quanto à atividade de trabalho que
aparecia na imagem. Em 170 ocorrências não se identificou a atividade de
trabalho envolvida. Entre as atividades, aparecem tarefas administrativas,
leitura, venda de produtos, serviços em cuidados de beleza e divulgação em
mídias sociais.
Apesar de o conteúdo buscado na pesquisa estar explicitamente vincu-
lado a atividades laborais, as imagens efetivamente relacionadas a trabalho
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 95

aparecem residualmente, considerando as indicadas como mais relevantes


pelo Instagram, que foram as selecionadas para esta pesquisa.
Considerando o Instagram como uma “prática discursiva” (Cotter, 2019;
Prichard et al., 2020) e considerando não só a necessidade de o utilizar para
seus empreendimentos, mas também a intensidade do uso deste em função
da pandemia, entende-se que pode haver uma importante influência do con-
teúdo sobre as práticas e as expectativas das mulheres. A contradição entre a
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realidade de trabalho e o que é narrado pelo Instagram, entretanto, não admite


contraditório: quem ousaria mostrar o lado obscuro do real de seu trabalho?
A opressão social que recai sobre as mulheres desenvolve-se também nesse
contexto. As mulheres, que empreendem mais por necessidade que por von-
tade e, no geral, em condições adversas, são expostas a um conteúdo que lhes
mostra residualmente o trabalho como uma categoria. Há pouco conteúdo
efetivamente vinculado a um fazer, um ofício.
A Categoria 3, “Negócio identificado a partir das imagens”, retrata 40
imagens, cada uma analisada por 5 juízes, das quais foram marcadas apenas
20 ocorrências quanto ao empreendimento que aparecia na imagem. Em 180
análises, não se identificou o negócio envolvido. Entre os identificados estão
publicidade, marketing, moda, comércio de presentes, cosméticos e serviços
relacionados a estética.
O discurso que se apresenta na quase completa ausência dos empreendi-
mentos nos posts leva a hipotetizar que o trabalho realizado pelas mulheres
empreendedoras não é tão valorizado quanto o estilo de vida que elas devem
ter. Em uma das imagens há dicas sobre marketing em cores pastéis rosadas,
o que remete à feminilidade, à delicadeza, características associadas às mulhe-
res, mesmo quando empreendem. Na divisão sexual do trabalho, o Instagram
parece colaborar com informações que sinalizam para a mulher quem ela tem
que ser, mas pouco sobre o seu fazer.
Na Categoria 4, “Se há uma pessoa nas imagens, qual é a postura física
que se apresenta”, notou-se a recorrência de posturas que remeteram a poder,
relaxamento, calma e confiança, características que parecem ser o avesso da
realidade que a pequena empreendedora enfrenta, considerando que as pes-
quisas apontam para sentimentos de cansaço, exaustão, desânimo e descrença
(Hughes, 2003).
Na Categoria 5, “Se há pessoa, como a expressão facial pode ser des-
crita”, constatou-se que a expressão facial mais recorrente foi a de sorriso (100
ocorrências nas análises), seguida por seriedade (35 ocorrências nas análises)
e sedução (35 ocorrências nas análises). O sorriso é uma das características
fortemente associadas à feminilidade e ao bem-estar e, mais uma vez, tem-se
a narrativa de leveza em relação à atuação das mulheres empreendedoras. A
96

ocorrência da expressão de seriedade, na análise dos juízes, ocorreu menos


da metade das vezes, em comparação com a de sorrir.
Na Categoria 6, “Conotação dos itens presentes nas imagens”, percebeu-
-se que a maior parte dos itens presentes nas imagens era composta por roupas
e acessórios, seguido por artigos de decoração. Em apenas cinco imagens
aparecem itens que remetem a alguma atividade de trabalho, como objetos
de escritório, mesa de trabalho e cadeira. Novamente, o empreendimento em
si, ou mesmo um ambiente de trabalho não são frequentes e os itens que se

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destacam remeteram mais a um contexto doméstico ou relacionado à apa-
rência da mulher, como roupas e acessórios, sendo que estes não estavam
necessariamente vinculados a um empreendimento.
Na Categoria 7, “Locação das imagens”, buscou-se a locação em que as
imagens se passavam. Os locais das fotos remetem a organização, limpeza e
tranquilidade, o que também se opõe à realidade de trabalho experimentada
pelas empreendedoras.

Considerações finais
Quais responsabilidades éticas podem ser imputadas às redes sociais?
Essa é uma ampla discussão, mas que precisa ser colocada na mesa. As
narrativas e a imagética apresentadas no Instagram apresentam um mundo
“cor-de-rosa”, que não se materializa para grande parte das empreendedoras.
Quando o trabalho de empreender é narrado como algo lúdico, leve e que
garante sucesso, reforça-se uma ideia de que, quando a situação não está tão
leve, positiva, organizada e próspera, o problema é individual; é da mulher
que não se sacrificou o suficiente, banalizando-se condições sociossexuais,
econômicas e culturais que obstaculizam e dificultam o trabalho.
Somado a isso, há um reforço do lugar da mulher no mundo do trabalho e
na sociedade: ela deve suportar todas as adversidades, sendo uma “guerreira”,
em um contexto em que pouco (ou nada) se responsabiliza o Estado e a própria
sociedade pela carência de suporte e políticas públicas para o trabalho das
mulheres, não só no que tange ao empreendedorismo, mas em um cenário
global. Especialmente no Brasil, onde têm-se questões tão críticas quanto à
desigualdade de gênero no trabalho, importa trazer à tona as contradições, e
não colaborar com seu ofuscamento.
Este capítulo objetivou a proposição de reflexões sobre o discurso, no
Instagram, sobre as mulheres empreendedoras. Por todo o exposto, entende-
mos que micro violências de gênero contra as mulheres são, sim, reforçadas
pelo conteúdo referente às empreendedoras nessa rede social.
Por fim, entendemos que se fazem necessários estudos adicionais sobre
a influência do Instagram na vida das empreendedoras, especialmente consi-
derando sua importância nos negócios feitos por essas mulheres.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 97

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Capítulo 5
Empreendedorismo social feminino,
inovação social e sustentabilidade
Graziela Dias Alperstedt1
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Mariana Fraga2

Introdução

O empreendedorismo tem se destacado como um importante fenômeno


cujo crescimento tem sido atrelado ao fomento da economia mundial e bra-
sileira nas últimas décadas. Soma-se a isso o seu caráter impulsionador da
mobilidade social vertical (Vasconcellos, 2014). Pesquisas revelam que a
participação das mulheres no empreendedorismo tem aumentado nos últimos
anos em várias partes do mundo. De acordo com o relatório do Global Entre-
preneurship Monitor (GEM), baseado em pesquisas realizadas em 43 países e
publicado em novembro de 2021, em quase todas as economias pesquisadas
as mulheres superaram os homens no que se refere ao empreendedorismo
individual em 2020.
Embora isso possa representar oportunidades econômicas para quem
necessita de um trabalho mais flexível e de uma renda adicional, também pode
sinalizar a ausência de oportunidades mais atraentes no mercado de trabalho.
Questões subjacentes ao empreender feminino também trazem, em seu bojo,
dificuldades de acesso ao financiamento na mesma proporção que os homens,
além da falta de apoio familiar (Alperstedt, Ferreita, & Serafim, 2014).
No Brasil, dados do SEBRAE (2021) mostram que, apesar do cres-
cimento em números absolutos, as mulheres são responsáveis por apenas
34% do total dos negócios brasileiros (formais e informais), apresentando
remuneração menor se comparadas aos homens, apesar de sua escolaridade
média ser superior. Tal resultado representa 10,1 milhões de empreendedoras,
o mesmo do último trimestre de 2019, afetado pelas consequências derivadas
da Pandemia de covid-19.
O empreendedorismo feminino é abordado a partir de diferentes aspec-
tos na literatura científica e na mídia jornalística, englobando os obstáculos

1 Universidade do Estado de Santa Catarina.


2 Universidade de Brasília.
102

vividos pelas empreendedoras, como a falta de capital, assim como questões


mais subjetivas, relacionadas à inovação, à tomada de decisão, à forma de gerir
o grupo e às dificuldades intrínsecas ao fato de serem mulheres, entre outras
(Gomes, Santana, Araújo & Martins, 2014; Ahl, 2006; Teixeira & Bomfim,
2016; Alperstedt, Ferreira, & Serafim, 2014). Nesse sentido, existem peculia-
ridades que estão atreladas à vida de cada mulher e, mais particularmente, às
dificuldades enfrentadas e aos propósitos manifestados por elas ao empreender.

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Em meio à crescente participação das mulheres no mundo do empreen-
dedorismo, aumenta, ao mesmo tempo, a preocupação com o estado de sus-
tentabilidade do planeta. Problemas de ordem social, ambiental e econômica
se avolumam, o que tem levado muitos teóricos e práticos a refletirem sobre
a definição de sucesso e o desempenho nos negócios, enaltecendo o impacto
dos empreendimentos não somente em termos de ganho econômico, mas,
sobretudo, de suas consequências para a sociedade. Mergulhados em um con-
texto de enormes e contínuos desafios, empreendimentos de todo tipo e setores
estão cada vez mais sendo chamados a desempenhar papéis direcionados à
resolução dos importantes problemas aos quais estamos submetidos (Kolk
&Van Tulder, 2010). Diante desse contexto, um tipo particular de empreen-
dimento, os empreendimentos sociais, têm se destacado, uma vez que sua
natureza é indissociável da ideia de inovação social e sustentabilidade (Melo
Neto & Froes, 2002).
Embora o gênero masculino ainda represente a maioria no campo no
empreendedorismo social (ES) (Onozato & Horochovski, 2006), pesqui-
sas alertam para o crescimento da participação feminina nesse segmento
(Nishimura, Alperstedt, & Feuerschütte, 2012; Vaz, Teixeira, & Olave, 2015).
Entretanto, a literatura sobre o empreendedorismo social feminino ainda é
escassa. Ao considerar não somente a ausência de trabalhos na área, mas, prin-
cipalmente, a urgência de dar luz a empreendimentos que estejam engajados
em fornecer respostas aos importantes problemas em que estamos imersos,
este capítulo busca contribuir para a temática, por meio de sua relação com
a sustentabilidade e com a inovação social, apresentando exemplos da reali-
dade brasileira.
Para isso, estruturamo-nos em quatro seções, além desta introdução.
Num primeiro momento, abordamos as mulheres e o empreendedorismo. Na
sequência, tratamos do ES e sua relação com a inovação social e com a sus-
tentabilidade. Em seguida, abordamos o empreendedorismo social feminino,
a partir de exemplos do contexto brasileiro que ilustram sua relação com a
sustentabilidade e inovação social. Na última seção, tecemos as considerações
finais, as limitações do estudo e as sugestões para uma agenda de pesquisa.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 103

As mulheres e o empreendedorismo

Atualmente, o empreendedorismo tem se destacado em diversos países.


O governo não é o único a incentivar esse movimento, mas também as orga-
nizações e as entidades multinacionais e nacionais (Silva, Furtado, & Zanini,
2015; Teixeira & Bomfim, 2016). Neste cenário, ressaltamos o número de
mulheres que decidem abrir o seu próprio negócio. Muitas delas buscam no
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empreendedorismo uma igualdade de oportunidades.


Em 2016, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio mostrou que
as mulheres são a maioria quando se trata de grau de escolaridade e inserção
nas universidades — fato que ocorre em outros países, além do Brasil (Azis,
Haeruddin & Azis, 2018). Porém, apesar de serem mais qualificadas, pou-
cas mulheres conseguem atingir cargos de liderança. Em 2021, entre os 193
países independentes do mundo, apenas 22 eram governados por mulheres
(ONU Mulheres). No Brasil, em 2016, as mulheres em cargos de liderança
nas grandes empresas representavam 19% do total, índice abaixo da média
global de 24% (International Business Report, 2016). O empreendedorismo,
portanto, é uma das possibilidades de inserção das mulheres em um contexto
de igualdade e tem se tornado uma espécie de revolução pacífica capaz de
afetar o cotidiano das pessoas em inúmeros países através da ascensão socioe-
conômica das mulheres.
No entanto, por vezes, as mulheres não ganham esse reconhecimento.
Ahl (2006), em um dos artigos mais lidos sobre a temática feminina na base
de dados EBSCO, analisou 81 artigos sobre o empreendedorismo feminino
e revelou uma disposição dos autores em tornar as empresas geridas por
mulheres inferiores ou iguais às masculinas. A tendência observada fez com
que a autora questionasse se a ciência não deveria tomar uma nova direção.
O fato é que, mesmo com a inserção feminina crescente, a área dos
negócios ainda apresenta baixa inserção de mulheres. Ao encontro disso, a
opção pelo empreendedorismo aparece como uma tentativa de vencer obs-
táculos, como a carga horária inflexível e as diferenças salariais (Alperstedt,
Ferreira, & Serafim, 2014; Ferreira, Rese, & Nogueira, 2013; Azis, Haeruddin
& Azis, 2018).
Existem, ainda, características intrínsecas ao empreendedorismo que
estão relacionadas às particularidades de cada local. A partir de uma lógica
social construtivista, o empreendedorismo é considerado um fenômeno “orde-
nador”, que emerge através das interações sociais (Achtenhagen & Welter,
2011). Essas interações, por sua vez, podem ocorrer em menor ou maior grau,
uma vez que a proporção entre homens e mulheres empreendedoras pode
ser influenciada pela estrutura social e cultural, pelos costumes e até mesmo
104

pela estrutura tecnológica oferecida (Alperstedt, Ferreira & Serafim, 2014;


Acs et al., 2011).
Neste contexto em que as mulheres se tornam cada vez mais relevantes
para a conjuntura econômica e social, o aumento da consciência sobre as
condições femininas ao redor do globo tem desempenhado também o entendi-
mento sobre a pobreza de toda a família (Agbényiga & Ahmedani, 2008). Ao
se considerar as particularidades culturais de cada país, é possível observar a

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influência do meio na construção da trajetória empreendedora das mulheres.
E, nesse sentido, o ES vem tomando força em função das crescentes demandas
advindas das comunidades, especialmente em países como o Brasil (Melo Neto
& Froes, 2002; Cruz, 2013). Embora esse não seja um fenômeno novo, ele
agora se reveste de um “novo paradigma de desenvolvimento”, capitaneado
por um “capitalismo consciente”, e, muitas vezes, tratado como uma subdis-
ciplina do campo de empreendedorismo (Certo & Miller, 2008).

Empreendedorismo social, inovação social e sustentabilidade

Se há um conceito polissêmico na literatura, é o conceito de empreen-


dedorismo social, pois seus contornos são ambíguos e polivalentes (Estivill,
2014: Dacin, Dacin, & Matear, 2010; Weerawardena & Mort, 2006). Apesar
de alguns autores o tratarem como uma questão nova, ele é bastante antigo
e sua natureza remete à economia social (esfera internacional) e à economia
solidária (esfera nacional) que, apesar de diferentes, contrapunham-se à socie-
dade capitalista industrial que emergiu no bojo do século XIX (Cruz Filho,
2012; Salomon e Anheier, 1992, Anheier, 2005).
Para Filho (2022), a economia social pressupõe o desenvolvimento de
atividades econômicas com objetivos sociais, realizadas a partir de quatro tipos
organizacionais: as cooperativas, as organizações mutualistas, as fundações e
as associações de grande porte. Já a economia solidária, desenvolvida, sobre-
tudo, a partir da década de 1990, caracteriza-se pela manifestação popular na
direção de melhores condições de trabalho e pela diminuição do desemprego
e da pobreza, representando um sistema alternativo ao capitalismo e a suas
disfunções, ao que Singer (1998) atrelou às transformações sociais.
Entretanto, nos últimos anos o interesse pela temática vem crescendo
(Hoogendoorn, Pennings, & Thurik, 2010), sendo abordada a partir de várias
perspectivas (Rametse & Shah, 2013) cujo consenso em torno de seu signifi-
cado ainda está longe de ser alcançado (Dacin, Dacin, & Matear, 2010; Wee-
rawardena & Mort, 2006). Desse modo, novos debates surgiram para tratar
o ES, ligados aos negócios sociais, negócios de impacto e definições afins,
abordados a partir de diferentes formatos organizacionais e nomenclaturas,
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 105

e atrelados ao Novo Espírito do Capitalismo (Boltanski & Chiapello, 2020).


Esses empreendimentos e seus empreendedores operam na interface entre
os aspectos econômico e social (Barki, Rodrigues & Comini, 2020), e não
obrigatoriamente estabelecem diálogos com os empreendimentos tradicio-
nais anteriormente citados. O que se pode afirmar é que se trata de um campo
híbrido cujo desenvolvimento se dá na interseção de, pelo menos, duas
lógicas institucionais tradicionais: a econômica e a social. Sharma (2014),
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inclusive, aponta o ES, a partir da manifestação de iniciativas internas de


organizações públicas e empresas lucrativas, além de Organizações Não
Governamentais (ONG). Há, ainda, a atuação de iniciativas informais que
se mobilizam para angariar recursos com vistas à resolução de um problema
social. A definição do ES, em pesquisas relevantes sobre o tema, converge
como a busca de uma missão social com base no uso de estratégias sociais
(Bacq & Janssen, 2011).
Assim, observamos muitas divergências sobre o que significa empreender
socialmente. Embora o foco deste capítulo não seja discutir essas diferentes
vertentes atreladas aos tipos organizacionais e seus paradigmas, algumas
ressalvas são importantes.
Oliveira (2004), por exemplo, destaca que, para caracterizar o ES, tor-
na-se necessário que a ação seja coletiva e o resultado dela promova um
produto ou serviço para a sociedade com o objetivo de resolver um problema
social. A partir dessa definição, desconsidera-se a responsabilidade social
empresarial e a filantropia, uma vez que a responsabilidade social empresarial
busca um retorno para a empresa e a filantropia está voltada para a caridade,
não estando atreladas a uma transformação social. Melo Neto e Froes (2004)
concordam que a responsabilidade social empresarial e a filantropia não se
caracterizam como ES. Nessa perspectiva, apontam para o fato de que o papel
do empreendedor social é o de gerar transformação, que vai além da caridade
e da cidadania.
Embora tanto a filantropia quanto o ES possam ser ações individuais e
voluntárias, elas possuem objetivos diferentes, porque o filantropo, em geral,
é quem possui uma base financeira forte e busca resolver momentaneamente
uma problemática social utilizando um meio assistencialista (Melo Neto &
Froes, 2004). O empreendedor social, em suma, é um agente de transformação
social. Apesar de a responsabilidade social empresarial também poder repre-
sentar uma ação coletiva, envolvendo várias instituições, sua finalidade está
voltada para as estratégias, para os objetivos e para os interesses da empresa
(Oliveira, 2004). O ES, por sua vez, remete à ideia de sustentabilidade, por
visar à transformação de um problema social e/ou ambiental.
106

Assim, o empreendedorismo social estaria relacionado à ideia de melho-


ria das condições sociais, ao mesmo tempo em que persegue uma realização
pessoal de seus empreendedores (Dornelas, 2007). As organizações criadas
são direcionadas a atacar um problema social que possa, ao mesmo tempo,
ser sustentável do ponto de vista financeiro. O empreendedor social, desse
modo, seria um agente de mudança social, voltado ao desenvolvimento de
práticas inovadoras e sustentáveis. Observa-se, dessa maneira, a relação entre

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empreendedorismo social e sustentabilidade como evidente na literatura.
No que se refere à natureza dos atores que empreendem socialmente,
diversas formulações teóricas e investigações realizadas revelam que ela é
heterogênea. Podem ser empreendedores individuais ou coletivos que bus-
cam inovações em produtos, serviços ou estruturas que atendam diretamente
ou sejam intermediários na solução de um ou mais problemas sociais e/ou
ambientais. Independentemente da questão do retorno financeiro, admi-
te-se que a característica mais marcante dos empreendedores sociais é a
capacidade de gerar valor social significativo (Picciotti, 2017) por meio de
seus empreendimentos.
Outro elemento que caracteriza a relação entre empreendedorismo social
e sustentabilidade é identificado na natureza dos problemas que são abordados
e, consequentemente, os contextos sociais e geográficos em que as iniciativas
de empreendedorismo são lançadas e conduzidas (Picciotti, 2017). Muitos
problemas gerais, como o combate à pobreza, a proteção à saúde, a redução
das desigualdades sociais e o desenvolvimento de comunidades locais são
alvo do empreendedorismo social, o que explica o fato de grande parte dos
estudos relatar casos de iniciativas em países em desenvolvimento. Isso porque
tais questões são mais prováveis e profundamente enraizadas e difundidas
nesses países (Haugh & Talwar, 2016; Tobias et al., 2013; Pless & Appel,
2012; Sodhi & Tang, 2011).
Essas práticas inovadoras ligadas aos empreendimentos sociais também
se relacionam às inovações sociais, ainda que este conceito encontre enormes
controvérsias na literatura, que se apresenta ainda fragmentada, desconectada
e dispersa entre diferentes áreas. Cabe salientar, entretanto, que a base da
inovação social não é o problema social para o qual ela está direcionada, mas
as transformações sociais que ela engendra a partir da proposição de novas
alternativas e novas práticas sociais para grupos sociais, as quais dependem
não apenas dos empreendedores, mas de um ecossistema mais amplo. Nesse
sentido, as inovações sociais buscam a melhoria do bem-estar coletivo par-
tindo de uma novidade e de ações intencionais orientadas para um resultado
desejado (Cajaiba-Santana, 2014), envolvendo empreendedores individuais
e coletivos, além de um contexto estrutural e institucional de apoio.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 107

Empreendedorismo social feminino, sustentabilidade e inovação


social no Brasil

Os motivos pelos quais as mulheres se envolvem em atividades empreen-


dedoras são diversos: englobam a busca por novos desafios, sonhos e deri-
vam, por vezes, de desafios existentes no mercado de trabalho (Cineglalia
et al., 2021; Alperstedt, Ferreira & Serafim, 2014). De toda a forma, a inclu-
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são produtiva de mulheres através do empreendedorismo pode favorecer o


desenvolvimento de inovações sociais, na medida em que elas são agentes
transformadoras de seus territórios e comunidades (Neves, Guedes & dos
Santos, 2010).
Nessa perspectiva, muitos são os exemplos de iniciativas que emergiram
no Brasil ao longo dos anos, com o objetivo de aliar empreendedorismo social,
sustentabilidade e inovação social. Para retratar algumas dessas iniciativas,
definimos, a partir de dados secundários constantes nos sites das iniciati-
vas pesquisadas, quatro categorias de análise para empreendimentos sociais
femininos a fim de identificar diferentes formas de atuação dos empreendi-
mentos sociais e sustentáveis. São eles: i) sustentabilidade e transformação
social; ii) emancipação e empreendedorismo periférico; iii) empoderamento
e empreendedorismo de mulheres negras; e iv) protagonismo e mudança de
paradigmas. Os empreendimentos classificados dentro dessas categorias são
apresentados na sequência.

Sustentabilidade e transformação social

O empreendedorismo social vem contribuindo para o desenvolvimento


sustentável no Brasil, promovendo transformações sociais, a exemplo do
aumento da qualidade de vida e da melhoria dos indicadores de desenvolvi-
mento humano (Neves, Guedes, & dos Santos, 2010). Tais empreendimentos
são representados por empreendedores sociais que buscam transformar suas
realidades através de articulações, mobilizações e sensibilizações, atuando
coletivamente em grande parte do tempo (Gehlen, 2006).
Como exemplo disso, a Rede Cooperativa de Mulheres Empreendedo-
ras (ASPLANDE), criada em 1997, busca fortalecer a geração de renda de
empreendedoras de diferentes atividades econômicas, tais como artesanato,
culinária, reciclagem e serviços gerais. A ASPLANDE atua no estado do Rio
de Janeiro, através de parcerias, intercâmbios, capacitações, assessorias e
divulgação de produtos e serviços. Atualmente, é constituída por 25 empreen-
dimentos que se reúnem mensalmente e se organizam a partir dos princípios
da economia solidária, uma forma alternativa à economia capitalista, baseada
nos princípios de igualdade e solidariedade, através do desenvolvimento de
108

empreendimentos coletivos que incentivam as liberdades individuais e a coo-


peração (Singer, 2002). Dessa forma, a ASPLANDE se articula de forma
participativa e autogestionada, estimulando o processo de aprendizagem orga-
nizacional coletiva, a superação dos conflitos nas relações interpessoais e a
valorização da diversidade humana em todos os seus aspectos.
Da mesma forma, a Rede de Mulheres Indígenas do Amazonas (MAKI-
RA-ËTA) também se fundamenta nos princípios da economia solidária. A
MAKIRA-ËTA é um empreendimento de mulheres de diferentes povos do

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estado do Amazonas, que busca, dentre outras pautas, promover o desenvol-
vimento socioeconômico sustentável. Um dos objetivos é estimular o desen-
volvimento local equilibrado e o fortalecimento das culturas tradicionais por
meio da venda de artesanatos, de medicinas naturais e da gastronomia local.
Outro empreendimento sustentável protagonizado por mulheres e com-
prometido com a transformação social é a cooperativa Justa Trama. A marca
também é um empreendimento de economia solidária e uma das maiores
cadeias produtivas de fibra agroecológica do Brasil. Fundada por Nelsa Nes-
polo, no estado do Rio Grande do Sul, a organização também opera em Mato
Grosso do Sul, Minas Gerais, Ceará e Rondônia. A Justa Trama é uma cadeia
que atua desde o plantio do algodão até a comercialização de peças de confec-
ção. A organização busca promover a transformação social sustentável, não
só através da valorização do trabalho e do comércio justo e solidário, mas
também pela preocupação com o meio ambiente, com o consumo consciente
e com a distribuição justa de renda entre seus colaboradores.
O empreendedorismo sustentável e a inovação social sob a ótica dos
casos citados se beneficiam da economia solidária. Esta busca dirimir as
desigualdades sociais através da inclusão das mulheres no mercado de tra-
balho e estimular o desenvolvimento sustentável da sociedade, a partir de
empreendimentos preocupados com o meio ambiente e com a cadeia produ-
tiva (Cineglalia et al., 2021). Portanto, a transformação social está no cerne
da existência dessas organizações, as quais promovem benefícios internos e
externos; internos no sentido de gerar renda, autonomia financeira e autoestima
às mulheres empreendedoras; e externos, pois edificam novas possibilidades
de se relacionar com a sociedade.

Emancipação e empreendedorismo periférico

Existe uma ampla literatura que investiga as possibilidades emancipató-


rias do empreendedorismo (Al-Dajani, Carter, Shaw, & Marlow, 2015; Baska-
ran & Mehta, 2016; Bezerra & Andreassi, 2021; Bruton, Ketchen & Ireland,
2013; Goss et al., 2011). O empreendedorismo como emancipação possibilita
avanços relativos à liberdade e a autonomia das estruturas convencionais do
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 109

mercado de trabalho, muitas vezes pouco acessíveis à população periférica


(Al-Dajani et al., 2015). No contexto do mercado de trabalho, são as mulheres
periféricas as mais marginalizadas, muitas vezes atuando em subempregos
precarizados e até mesmo na informalidade. Dessa forma, o empreendedo-
rismo serve como um dispositivo de emancipação e de desenvolvimento social
e sustentável (Bezerra & Andreassi, 2021).
Nessa esteira, muitos são os exemplos de mulheres que promoveram
inovações sociais mediante empreendimentos da e para a periferia. A Grana
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Pretta é uma empresa de educação financeira voltada para as classes C, D e


E que promove a emancipação financeira, a partir de soluções para pessoas
e microempreendedores, em sua maioria mulheres (Grana Pretta, 2022). A
fundadora, Amanda Dias, é uma mulher periférica que criou a empresa há
cinco anos e desenvolveu um curso chamado “Jornada da Emancipação”,
o qual fomenta a capacitação e a segurança financeira como uma forma de
autocuidado (Grana Pretta, 2022). A empresa atua, principalmente, nos estados
de São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Distrito Federal.
A Grana Pretta é uma das iniciativas apoiadas pelo projeto Empreen-
dedoras Periféricas, criado em 2020 pelo instituto GPA em parceria com a
Fundação Tide Setubal. A iniciativa tem como objetivo oferecer apoio técnico
e financeiro a mulheres empreendedoras oriundas de comunidades periféricas
e marginalizadas. Além do curso de formação e da orientação das empresárias,
a iniciativa aporta os empreendimentos selecionados com recursos financeiros.
Entre 2020 e 2021, o projeto assessorou 45 empreendedoras de oito estados
brasileiros: Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Distrito Federal,
Rio de Janeiro e São Paulo (Instituto GPA, 2022).
Outro negócio de impacto social que atua na inclusão social feminina
a partir dos princípios da emancipação e sustentabilidade é a Badu Design.
Fundada por Ariane Santos, a empresa recolhe resíduos descartados pela indús-
tria têxtil e transforma em acessórios, como bolsas, necessaires e mochilas.
Além disso, a iniciativa desenvolve projetos de transformação dos resíduos
em conjunto com outras empresas. Segundo a empreendedora da Badu, a
empresa é composta por mulheres em situação de vulnerabilidade tanto da
cidade como do meio rural, e busca promover o empoderamento feminino
através da independência e da autonomia (Pólen, 2022).
Almejando autonomia e emancipação no meio rural, em 2006, foi fun-
dada a iniciativa Mulheres Organizadas Buscando Independência (MOBI),
fruto da parceria entre a Cooperativa de Agricultores Familiares de Poço
Fundo e Região (COOPFAM) e o Instituto Federal do Sul de Minas. A orga-
nização visa aumentar a inserção das mulheres rurais no ciclo produtivo do
café, caracterizado pela predominância masculina e pela ausência de espaço de
protagonismo e autonomia das mulheres. Atualmente, as mulheres da MOBI
110

produzem o “Café Feminino”, um dos três tipos de café orgânico comerciali-


zados pela COOPFAM (Prosas, 2022). Além desse produto, a MOBI passou
a produzir e comercializar rosas orgânicas e artesanatos regionais.
Inovações sociais emergem em contextos de vulnerabilidade social como
forma de estabelecer novas práticas sociais a partir das potencialidades peri-
féricas marginalizadas (Sartori, Ferraz & Souza, 2018). No entanto, mesmo
sendo uma alternativa potente na criação de novas realidades, o empreen-
dedorismo periférico ainda enfrenta muitos desafios, principalmente no que

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tange “às barreiras sociais, econômicas e culturais” (Sartori, Ferraz & Souza,
2018, p. 52). Outro aspecto importante é a permanência e continuidade desses
empreendimentos ao longo do tempo, e a relação complexa entre autonomia
e dependência de recursos de projetos e de investidores (Butzin et al., 2014).

Empoderamento e empreendedorismo das mulheres negras

Do ponto de vista do empreendedorismo feminino é essencial a com-


preensão de que não há uniformidade nas lutas vivenciadas pelas mulheres.
É importante destacar que os desafios provenientes das opressões de gênero
se interseccionam com outros marcadores sociais, como o racismo, as desi-
gualdades socioeconômicas, a LGBTfobia, entre tantos outros (Akotirene,
2019). Para Oliveira et al. (2021), “considerar as mulheres como um grupo
homogêneo pode reforçar estereótipos que perpetuam desigualdades eco-
nômicas, sociais ou políticas” (Oliveira et al., 2021, p. 17) e, muitas vezes,
invisibilizar a esfera social do tripé da sustentabilidade.
De acordo com o estudo Empreendedorismo Negro no Brasil (2019),
mais da metade das pessoas negras que empreendem no Brasil são mulheres.
A maioria não possui ensino superior e empreende “por falta de emprego e
oportunidades”. No entanto, a pesquisa identifica que 36% dos empreendi-
mentos trabalham com inovação e/ou com soluções tecnológicas para suprir
um público não atendido pelas soluções atuais (Empreendedorismo Negro
no Brasil, 2019). Esses dados demonstram que, apesar da baixa escolaridade
das empreendedoras negras, grande parte delas está promovendo inovações
sociais e novas referências, principalmente, para as populações sistematica-
mente preteridas.
O Instituto Feira Preta é um exemplo de empreendedorismo por mulhe-
res negras. Fundado por Adriana Barbosa, o instituto deriva dos 17 anos de
trajetória de Adriana, a qual iniciou a marca como um brechó de economia
sustentável. Atualmente, a marca organiza o festival Feira Preta e um mar-
ketplace de vendas online. A conjunção dessas diversas iniciativas tem por
objetivo promover a multipluralidade criativa e cultural afro. O instituto desen-
volve um trabalho de mapeamento, capacitação, aceleração e incubação do
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 111

empreendedorismo negro. Atualmente, o marketplace comercializa produtos


de cerca de 110 empreendimentos negros (Feira Preta, 2022).
Outro braço importante do Instituto Feira Preta é o hub de inovação
Preta Hub. A iniciativa trabalha a relação do empreendedorismo negro com a
cultura e a economia “a partir de um olhar honesto e propositivo, entendendo
seus papéis fundamentais na mudança estrutural de uma sociedade — e um
mercado — que precisa absorver esta população” (PretaHub, 2022). Portanto,
a organização se coloca como parte integrante do processo de empoderamento
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e inclusão de pessoas negras no ecossistema empreendedor, buscando um


desenvolvimento sustentável com oportunidades mais justas e equilibradas
para essa população (PretaHub, 2022).
Pensando no desenvolvimento sustentável sob uma perspectiva de uma
sociedade mais justa e equânime, surgiu o Instituto de Igualdades do Brasil
(IDP_BR). A organização sem fins lucrativos, fundada pela empreendedora
negra Luana Génot, se compromete com a aceleração da promoção da igual-
dade racial no Brasil, ao promover ações em frentes diversas. Uma das prin-
cipais ações da organização é a criação do Selo “Sim à Igualdade Racial”,
ferramenta que evidencia quais práticas devem ser adotadas pelas organizações
para estimular a igualdade racial, criando um percurso dividido em níveis
evolutivos. O selo, além de criar um compromisso das organizações com a
promoção da igualdade, reconhece as empresas e suas práticas positivas, “ser-
vindo também como um direcionador para consumidores e stakeholders, de
maneira geral” (Sim à Igualdade, 2022). Ressalta-se que a adesão do selo vem
crescendo em organizações com bastante expressividade no âmbito nacional
e internacional.
Na mesma esteira de promoção de empoderamento e empreendedo-
rismo negro está a associação de afroemprendedorismo Odabá. A empresa,
criada pela empreendedora negra Onília Araújo, busca promover a ascensão
econômica das pessoas negras através do afroempreendedorismo, educação
financeira, mentorias para empreendedoras negras e consultorias em recursos
humanos. A organização se estrutura a partir de três eixos de atuação: quali-
ficação empreendedora, eliminação das crenças limitantes e valorização da
produção cultural (Obada, 2022).
Nesta seção, julgamos importante evidenciar o conceito de empode-
ramento como parte fundamental do empreendedorismo social, da susten-
tabilidade e da inovação social. Segundo a escritora negra Joice Berth, o
empoderamento está profundamente ligado ao resgate das potencialidades
dos sujeitos vitimados pelos sistemas de opressão, principalmente a partir da
libertação social coletiva (Berth, 2019). A pensadora Nelly Stromquist enfatiza
que existem, pelo menos, quatro dimensões do empoderamento que podem
beneficiar as mulheres: “a dimensão cognitiva (visão crítica da realidade),
112

psicológica (sentimento de autoestima), política (consciência das desigual-


dades de poder e a capacidade de se organizar e se mobilizar) e a econômica
(capacidade de gerar renda independente) (Berth, 2019, p. 35; Stromquist,
2002). Portanto, o empoderamento é um aspecto ora individual, ora coletivo,
que se revela na capacidade de articular novas possibilidades e novas realida-
des, tornando frutífero o terreno do empreendedorismo e da inovação social.

Protagonismo e mudanças paradigmáticas

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O empreendedorismo social busca solucionar dilemas sociais, ambientais
e econômicos, e dentre outros aspectos, criar soluções destinadas a populações
impactadas negativamente pelas mazelas do sistema vigente (Pasqualotto, Sá
Freire & Gonçalves, 2017), tais como as empreendedoras negras, as mulheres
lésbicas, bissexuais e transsexuais — que possuem múltiplos marcadores
sociais de opressões. Nesse sentido, o empreendedorismo social representa
um caminho para a autonomia social e financeira, ao mesmo tempo que gera
transformações sociais e mudanças de paradigmas (Pasqualotto, Sá Freire &
Gonçalves, 2017).
A empresa social Concreto Rosa nasceu, em 2015, a partir das dificulda-
des da fundadora de ser reconhecida no mercado de trabalho, em boa parte,
por ser uma mulher negra e lésbica (Itaborahy, Kalume & Ribeiro, 2017). A
Concreto Rosa é uma empresa social de reforma e construção civil que visa
inserir a mão de obra feminina no mercado da construção civil, majoritaria-
mente ocupado por homens. A iniciativa é referência em prestação de serviço
acessível e busca estimular o trabalho das mulheres de forma justa e igualitária
(Concrerosa, 2022).
Outra organização social que vem quebrando paradigmas é a Crua, uma
marca de absorventes de pano “feitos para corpos menstruantes”. Idealizada
por duas mulheres bissexuais, a Crua nasce a partir de uma problemática: o
impacto dos absorventes de plástico na natureza, pois levam de 100 a 400
anos para se decompor (Crua, 2022). No percurso, as idealizadoras foram
percebendo outras problemáticas que envolvem a menstruação, como a repro-
dução de uma linguagem excludente, que invisibilizam outros sujeitos como
homens trans e pessoas não binárias nas narrativas sobre menstruação. Além
da produção e comercialização dos produtos, a Crua promove projetos com
o objetivo de tornar acessíveis conhecimentos sobre saúde pública, focado
em educação menstrual, por meio de oficinas e experiências artísticas em
comunidades de baixa renda.
Nessa mesma busca, a partir da promoção da diversidade e da inserção
de pessoas trans no mercado de trabalho, Gabriela Augusto fundou a Trans-
cendemos, empresa de consultoria que intenciona ajudar organizações a se
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 113

tornarem mais inclusivas. A iniciativa atua nas seguintes frentes: pesquisa,


diagnóstico, aprendizagem, estratégia, comunicação e ainda possui um banco
de talentos para conectar pessoas LGBT+ às vagas de empresas.
O empreendedorismo social promove a sustentabilidade e a inovação
social, à medida que auxilia a legitimação social de mulheres lésbicas, bisse-
xuais e transexuais, por exemplo, e criam fissuras nas barreiras que impedem
seus desenvolvimentos sociais e econômicos. Atualmente, o Brasil está entre
os países que mais cometem crimes por preconceito de gênero e homofobia,
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e “apesar dos registros alarmantes de violações contra a integridade física


e moral desta população, acredita-se que os números estão muito além da
realidade” (Pasqualotto, Sá Freire & Gonçalves, 2017, p. 190). Portanto, o
empreendedorismo social e sustentável promove uma mudança paradigmática
a partir do protagonismo e da criação de novas narrativas e inovações sociais,
necessárias para uma sociedade mais inclusiva.

Considerações finais

Este capítulo buscou contribuir para a literatura sobre o empreendedo-


rismo social feminino, considerando sua relação com a sustentabilidade e a
inovação social, além de apresentar exemplos da realidade brasileira. Obser-
vamos que, em muitas situações, os conceitos de inovação social e empreende-
dorismo social são confundidos em função das imprecisões acerca da relação
entre os conceitos e das diferentes perspectivas sobre o papel de cada um.
Dos campos da economia social e solidária, passando pelo papel das
empresas e do setor público, notamos, em termos teóricos e práticos, enormes
controvérsias em torno dessas temáticas. Isso dificulta a tarefa de definir com
precisão esses fenômenos, pois envolve diferentes visões paradigmáticas, com
divergências no campo político, econômico e social. Em ambos os casos se
observa, todavia, uma busca na direção de respostas aos problemas sociais
e/ou ambientais, associados à sustentabilidade.
Nesse sentido, seria possível afirmar que o empreendedorismo social
aposta em inovações sociais que, por sua vez, concretizar-se-ão a partir das
transformações sociais promovidas, o que é mais difícil de verificar no curto
prazo. Tais inovações sociais, entretanto, não estão associadas apenas ao
empreendedorismo, seja individual ou coletivo, mas ao contexto institucio-
nal mais amplo e aos ecossistemas de apoio, podendo ser vistas como pro-
cessos. Tais processos se iniciam quando os problemas são identificados e
interpretados e quando atores diversos começam a agir sobre eles, chegando
até o instituído, mudando, por exemplo, políticas públicas. Entretanto, mui-
tas das abordagens modelizam o fenômeno, acabando por descartar avanços
importantes, como as conquistas das mulheres que ocorreram em meio a um
114

longo processo permeado por desafios diante da ordem social estabelecida,


transformando o ambiente instituído.
É isso que este trabalho busca fornecer, mostrando que, apesar das barrei-
ras geradas, existe um número crescente de mulheres protagonizando inicia-
tivas sociais, contribuindo para a transformação social e ajudando a construir
novos paradigmas na busca por uma sociedade mais justa e igualitária que
atinja um estado de sustentabilidade.
Para analisar os empreendimentos sociais, definimos quatro categorias:

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i) sustentabilidade e transformação social; ii) emancipação e empreendedo-
rismo periférico; iii) empoderamento e empreendedorismo de mulheres negras;
e iv) protagonismo e mudança de paradigmas. Tais categorias se diferenciam
em suas formas de atuação, mas estão interconectadas pelo fio condutor do
empreendedorismo feminino, sustentabilidade e inovação social. O desdo-
bramento destas categorias se revela a partir da importância de evidenciar
diferentes mulheres, suas realidades e interseccionalidades.
Finalmente, destacamos que o presente trabalho apresenta limitações que
podem ser esclarecidas na medida em que novas pesquisas sejam realizadas.
Os dados aqui apresentados foram extraídos de fontes secundárias acerca de
iniciativas empreendedoras que podem se caracterizar como empreendimentos
sociais, mas cujas transformações esperadas ainda estão em curso.
A partir disso, uma agenda de pesquisas futuras sobre a temática poderá
incluir análises mais específicas sobre a evolução de cada um dos problemas
endereçados por essas mulheres e as transformações ocorridas no tempo e
no espaço, envolvendo pesquisas em campo que englobem não apenas os
empreendimentos e seus empreendedores, mas sua relação com o contexto
institucional mais amplo e seus ecossistemas de apoio.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 115

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Capítulo 6
Desdobramentos do empreendedorismo
negro: da motivação à falta de crédito
Lucas Sena Silva1
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Introdução

O empreendedorismo negro tem ganhado relevante espaço na economia


brasileira e já representa uma parcela significativa do Produto Interno Bruto
nacional (PIB). Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
revelam que a população negra movimenta aproximadamente R$ 1,7 trilhão
anualmente, montante equivalente a 24% do PIB do Brasil em 2019 (Exame,
2020). Além de produzirem uma parcela expressiva da economia nacional, os
negros são maioria entre os empreendedores. Ser maioria, porém, não signi-
fica igualdade de condições para empreender. A trajetória do empreendedor
negro é permeada por dificuldades que ultrapassam as barreiras da simples
competição mercadológica. Ainda que de forma sutil, o racismo ganha novos
formatos e passa a performar, para além dos espaços sociais, nos ambientes
institucionais, financeiros e econômicos.
Com atenção a isso, o objetivo central deste texto é contextualizar o
empreendedorismo negro a partir da ideologia empreendedora e correlacio-
ná-lo à discussão sobre motivação para empreender e sobre o acesso ao cré-
dito. Nesse sentido, a resposta a estas questões auxiliará na construção das
páginas que se seguem: Como a ideologia empreendedora reverbera entre
os negros? Quais são os motivos que levam os negros a empreender? Qual
é a importância do acesso ao crédito? Diante dessas indagações, além desta
introdução e da conclusão, este estudo se divide em mais três partes espe-
cíficas, cada uma direcionada a um questionamento, a saber: 1.2) ideologia
empreendedora entre os negros; 1.3) motivos para empreender: necessidade
versus oportunidade: como a raça se insere neste debate?; 1.4) o crédito e a
falta dele: o entrave principal.

1 Universidade de São Paulo.


122

Ideologia empreendedora entre os negros

a) De escravizado a empreendedor

A inserção da população negra na sociedade capitalista se deu de maneira


difícil e parcial (Ribeiro, 2013). A tardia inclusão dos negros na economia
capitalista brasileira foi marcada por invisibilidade, proletarização e escantea-

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mento. Uma das “justificativas” utilizadas para a exclusão e a pobreza desses
povos era a ideia de que o ex-escravizado seria despreparado para assumir
a função de trabalhador livre (Ribeiro, 2013), imagem forjada pelas elites
brancas da época (Paixão, 2013).
Embora estivesse em curso uma mudança gradativa para a economia
capitalista e para o consequente trabalho livre, o cenário pós-abolição com-
preendia o negro como sujeitado às relações de compra e venda. Especialmente
no início da industrialização brasileira, a mão de obra negra era desvalorizada
em prol da substituição pelo trabalho imigrante, preferencialmente europeu
e branco (Ribeiro, 2013). Assim, do ponto de vista histórico, o trabalho ser-
viu como ferramenta de opressão e aprisionamento da população negra, o
que culminou na invisibilidade dos trabalhadores negros. A ideia de que o
negro não servia para o trabalho livre se baseava na tentativa de se justificar
o injustificável: a escravização, que perdurou por longos séculos de trabalho
forçado (Ribeiro, 2013).

Desde sua chegada, os africanos escravizados foram utilizados não apenas


na produção de açúcar, café, algodão, minérios e outros produtos de expor-
tação, mas também na agricultura de abastecimento interno, na criação de
gado, nas pequenas manufaturas, no trabalho doméstico, estiveram nas
áreas rurais e urbanas. “Nas cidades eram eles que, até uma altura avan-
çada do século XIX, se encarregavam do transporte de objetos, dejetos
e pessoas, além de serem responsáveis por uma considerável parcela da
distribuição do alimento que abastecia pequenos e grandes centros urba-
nos” (Reis, 2000, p. 81 apud Ribeiro, 2013, p. 252).

Lélia Gonzales (1983) chama de divisão racial do espaço o critério pelo


qual são considerados os lugares raciais na sociedade brasileira. Para a autora,
que teve gigantesca importância na construção do debate teórico das relações
raciais e das desigualdades raciais, o lugar natural do negro era entendido de
maneira simetricamente oposta ao lugar natural do branco. O lugar natural
ao qual Gonzales se refere são os espaços reservados socialmente a partir da
cor do indivíduo. Isto é, enquanto os espaços reservados aos brancos diziam
respeito àqueles com proteção policial, boa estrutura e bons espaços, o lugar
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 123

do negro era o dos conjuntos habitacionais, das favelas, das invasões. O


lugar natural deve ser lido como o lugar onde a estrutura das desigualdades e
da discriminação impunha àqueles seres considerados inferiores, desiguais,
excluídos e não cidadãos.
Da abolição à inclusão no mundo capitalista, os percalços enfrentados são
processos ainda presenciados, cujas estatísticas revelam as consequências de
um imbróglio histórico, assim nomeado por Monteiro. O imbróglio histórico,
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imposto à população negra, resultou em imobilidade social, mesmo com a


transição para o trabalho livre e assalariado. O imobilismo social foi uma
consequência direta da ausência de oportunidades no mercado de trabalho
assalariado, que privilegiava a mão de obra de imigrantes brancos (Monteiro,
2013; Ribeiro, 2013). Como aponta Monteiro (2013, p. 63), “a pequena inicia-
tiva privada negra, com suas especificidades históricas, permaneceu invisível
nesse processo, restando reduzida a quase tão somente formas econômicas
de subsistência”.
As dificuldades resultantes dos estigmas raciais retardaram a emergên-
cia de uma classe de empresários industriais composta por pretos e pardos
(Monteiro, 2017). A demora para o crescimento quantitativo em termos de
negros na qualidade de empregador decorre das políticas de branqueamento
da população, as quais tiveram enorme impacto no desenvolvimento econô-
mico do país.

A conclusão parece óbvia: o negro e seus descendentes, enquanto empre-


sários ou empregadores, não são vistos como “protagonistas” do processo
de industrialização do país e nem tiveram oportunidade para tal, uma vez
que o Brasil tomou como diretriz ser capitalista, mas branco. (Monteiro,
2017, p. 153).

Porém, as mudanças sociais e a procura pelo desenvolvimento econô-


mico fizeram emergir uma população em busca de meios para a manutenção
da vida. No caso dos negros, o transcurso entre trabalho escravo à prática
empreendedora representa um processo de enfrentamento aos obstáculos
impostos, os quais também se utilizaram do mito da democracia racial. A
democracia racial serviu de base para formar a percepção de que a população
negra estava equiparada à branca em todos os setores da sociedade, coabitando
sem preconceitos ou discriminações. Contudo, na prática, ocorria a exclusão
da mão de obra negra do trabalho nascente, que se afirmava capitalista e
branco, e ensejava a imagem de que as populações negras não eram hábeis
ao trabalho remunerado, pois seriam acometidas por inferioridade técnica
(Monteiro, 2017).
124

Por esse motivo, e não motivado por uma incapacidade cultural e biológica
inata; a população descendente dos antigos escravos, após a abolição;
viu-se à margem da história da república, tanto no meio urbano, como no
meio rural. Nas cidades os negros foram largados à penúria gerada pelo
subemprego e pela falta de assistência social, sanitária e educacional. No
campo, mormente nas áreas estagnadas da nação (Norte e Nordeste), essa
mesma população permaneceria submetida às práticas de contratação da
força de trabalho fundada em condições semiservis. (Paixão, 2013, p. 297).

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Além da falta de oportunidades no mundo do trabalho remunerado, restou
o caminho da informalidade e do subemprego, elementos determinantes para
o desestímulo à ascensão econômica desses povos. Nesse sentido, a população
negra não era vista como empreendedora, mas teve de se fazer empreendedora
para sobreviver.

Os negros livres, artesãos e pequenos empreendedores que exerciam suas


atividades, principalmente nas grandes cidades como o Rio de Janeiro,
embriões das futuras empresas capitalistas de afro-brasileiros, foram não
apenas deslocados das atividades mais qualificadas, como também foram
sendo colocados em regiões mais distantes dos centros urbanos onde as
dificuldades eram maiores até para comercialização das mercadorias pro-
duzidas. Ou seja, todo um mecanismo visando à inibição das atividades
econômicas precedentes da comunidade afro-brasileira foi colocado em
prática com graves consequências para essa comunidade. Seus membros
eram requeridos pela sociedade da época apenas como escravos, ex escra-
vos e massa de mão-de-obra barata e desvalorizada em todos os sentidos.
Empreender, jamais! (Monteiro, 2001, p. 24).

Contrariando o mecanismo de inibição das atividades econômicas,


empreender tem sido a maneira pela qual a população negra busca emergir e
contornar as adversidades, ainda que o exerça fora dos padrões considerados
pelo pensamento branco. O autoemprego, aliás, é uma realidade para quem
está à margem e tenta se inserir no mercado de trabalho, embora, muitas vezes,
isso represente a não obtenção de direitos básicos, como a previdência ou as
garantias da formalidade.
Desde o início da década de 2000, observa-se uma forte tendência de
crescimento no número de empreendedores, especialmente de afroempreen-
dedores. Não à toa, o ex-diretor do Sebrae, Luiz Barreto (2014) condiciona
o aumento expressivo desse número à intensa inclusão social proporcionada
pela entrada de 40 milhões de pessoas na classe média entre 2002 e 2012.
Barreto destaca que, nesse período, 80% do contingente de novos mem-
bros foi formado por pessoas negras e que a renda desse público dobrou em
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 125

comparação à classe C. Para ele, isso significa que a desigualdade estava se


reduzindo (Barreto, 2014).
A participação dos negros nas atividades econômicas brasileiras saiu da
sub-representação, mas ainda enfrenta obstáculos. Segundo Oliveira, Pereira e
Souza (2013), as relações étnicas constituem-se um obstáculo para o estabele-
cimento de empresários negros. Tais obstáculos se fazem notórios nas relações
com os fornecedores, com os clientes, com os concorrentes e funcionários
(Oliveira, Pereira & Souza, 2013). Segundo descrevem as autoras, em 2000,
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os homens brancos representavam mais da metade do total de empreendedores


no Brasil, 58%, os homens negros 14%, e as mulheres negras apenas 4% (Oli-
veira, Pereira & Souza, 2013). No entanto, esse dado mudou completamente
a partir de 2003, com um crescimento exponencial no total de afroempreen-
dedores. Hoje, eles representam mais da metade do total de empreendedores,
informação que precisa destacar o fato de as mulheres negras ocuparem 52%
desse total. Atinente a esse aumento, o incentivo à ideologia empreendedora se
mostra um fator determinante para a procura generalizada por trabalho, renda
e subsistência. No próximo subtópico, aborda-se o crescimento da ideologia
empreendedora e o papel do Sebrae como estimulador desse discurso.

b) O Sebrae e a ideologia empreendedora

A partir de 1990, o Estado brasileiro fomenta mais incisivamente o dis-


curso do empreendedorismo e cria incentivos institucionais para qualificar os
empreendimentos e os empreendedores (Colbari, 2015). Esse reforço pode
ser notado através dos órgãos, programas e leis criados para institucionali-
zar não apenas a prática empreendedora, como também para assegurar aos
empreendedores o mínimo de garantias legais. O Sebrae é um exemplo do
esforço institucional para estimular a economia brasileira a partir da dinâmica
da busca do desenvolvimento. O órgão, fortalecido em 1990, no governo
Collor, após quase ser extinto por causa da dificuldade de articulação com
o governo e devido aos cortes no orçamento durante a década de 19802,
passou de Cebrae para Sebrae e inaugurou um novo momento para a cultura
empreendedora no país.
A criação do Sebrae (com “s”) ocorreu via decreto n.º 99.570, de 9 de
outubro de 1990, que complementa a Lei n.º 8029 do mesmo ano. O decreto

2 Durante a década de 1980, o Cebrae passou por realocações, desmontes e, por conta da política de
contenção de gastos públicos, teve seu orçamento cortado e seu quadro de funcionários reduzido em
40%. Em 1989, começou-se a discutir a extinção do Cebrae, pois o órgão era visto com insatisfação em
relação ao seu formato político-institucional e estrutura interna. O órgão enfrentava também dificuldades
de articulação com o governo. Apesar disso, em 1990, no primeiro ano do governo Collor, o órgão sofreu
algumas modificações para acompanhar a abertura da economia brasileira e passou a não mais ter vínculo
com a estrutura governamental, passo que evitou sua extinção (Melo, 2008, p. 74).
126

n.º 99.570 desvinculou da Administração Pública Federal o Centro Brasi-


leiro de Assistência Gerencial à Pequena Empresa (Cebrae), criado em 1972,
por iniciativa conjunta do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
e Social (BNDES) e do Ministério do Planejamento, transformando-o em
Sebrae, instituição privada, sem fins lucrativos, que possui natureza jurídica
de Serviço Social Autônomo, denominado Sistema “S”. Desvinculada da
Administração Pública Federal, a entidade teve seu status legal alterado para
“serviços autônomos” e passou a ser órgão privado, mas sem fins lucrativos.

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Sua composição, além de abarcar as relações público-privadas, estende-se
para uma organização de atuação aberta, autônoma, descentralizada, diver-
sificada, nacional e federalizada (Colbari, 2014). Desde então, o Sebrae tem
sido um divisor de águas e um órgão pujante na construção e mobilização de
indivíduos em empreendedores (Alves, 2016).
O Sebrae, portanto, é a via institucional para fundamentar a cultura do
empreendedorismo no país, pois atua como parceiro do governo federal na
prestação de assistência técnica no ramo do empreendedorismo e, além da
sua sede em Brasília, está presente em todas as unidades da federação. O
surgimento do Sebrae é precedido pela composição do Cebrae, em 1972,
“como um instrumento de política econômica voltada ao fortalecimento da
empresa privada nacional” (Colbari, 2014). O histórico da década de 1970
ainda não presenciava a institucionalização do empreendedorismo. O Cebrae
fortalecia a empresa privada, porque prestava assistência técnica, apoio ao
crédito e incentivo à capacitação gerencial com o propósito de modernização
da gestão, embora não construísse políticas públicas ao setor (Colbari, 2014).
O Sebrae se tornou o principal órgão brasileiro no fomento ao empreende-
dorismo. Desde o Cebrae, o foco da atuação do órgão voltava-se às pequenas
e médias unidades produtivas do sistema de produção (Dias, 2012). Como
mecanismo de intermediação entre o Estado e a produção capitalista, a agên-
cia investiu na valorização das pequenas empresas e incentivou a criação de
políticas públicas voltadas à busca do crescimento econômico, especialmente
para a inclusão dessas empresas no debate jurídico.
Como apontam Nassif, Ghobril e Amaral,

[a] missão das instituições que incentivam o empreendedorismo é con-


vencer as pessoas que as características empreendedoras podem ser
desenvolvidas através de um aprendizado especial. Para que isso ocorra
precisa-se alterar o ensino tradicional, praticado na maioria das escolas e
faculdades, para não formarem empregados sem criatividade e distantes
das experiências práticas vivenciadas no mundo real. (Nassif, Ghobril &
Amaral, 2009, pp. 154-155).
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 127

O papel do Sebrae ganha contorno justamente para incentivar a ideologia


empreendedora entre os brasileiros. A retórica do empreendedorismo ecoa na
estrutura do mercado como referencial ideológico (Colbari, 2007). A insti-
tucionalização da prática e dos valores relacionados ao empreendedorismo
incentiva novos arranjos ocupacionais, dos quais a flexibilidade, a reestrutu-
ração produtiva e a promoção das pequenas e médias empresas são arranjos
incentivados (Colbari, 2007). O Sebrae, então, exerce importante papel na
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construção desses novos arranjos, porque é dessa instituição que advêm os


estímulos às práticas empreendedoras e às micro e pequenas empresas.
O estímulo ao empreendedorismo ocorre por meio de um ambiente
jurídico mais favorável à formalização de empresas, desburocratização e
simplificação tributária. Em relação a esses fatores, a regulação do Microem-
preendedor Individual (MEI) como uma categoria jurídica desburocratizada,
com redução da carga tributária e com a possibilidade de formalização e cadas-
tro online, mostra-se um exemplo das tentativas para impulsionar a cultura
empreendedora. A figura do MEI foi criada pela Lei Complementar n.º 128,
de 2008, e tinha como propósito primordial estimular a formalização, espe-
cialmente via simplificação do processo de legalização de empreendimentos.
Porém, a construção legal dessa nova categoria jurídica tinha também
o propósito de sanar a ausência de emprego formal, mas não garantia efeti-
vamente sustento, como apontam Damião, Santos e Oliveira (2013, p. 198):

A Lei Complementar 128/2008 do “Empreendedor Individual” foi criada


com o propósito de simplificar o processo de legalização de empreendi-
mentos e estimular a formalização daqueles que atuam na informalidade.
Não obstante, a criação desses empreendimentos está associada à
ausência do emprego formal, onde o “empreendedor”, na verdade
um trabalhador comum, se vê obrigado a empregar o seu labor numa
atividade que lhe garanta o próprio sustento. Os resultados são negó-
cios que surgem e crescem excluídos do sistema, sem recolhimento de
tributos, obediência a normas técnicas e ainda, sem o conhecimento
do mecanismo da organização racional.
A conseqüência é a precarização do trabalho e por vezes o insu-
cesso daqueles que conseguem se formalizar. Portanto, o estímulo ao
“empreendedor individual” é ideológico economicamente, pois o indivíduo
não tem formação técnica para desenvolver uma organização racional,
não possui crédito em condições competitivas e o empreendimento não
está associado às novas combinações schumpeterianas, em conseqüência,
tais empreendedores se tornam elos frágeis na cadeia de valor, seja pela
exploração da oferta como pelo oportunismo da demanda (grifos nossos).
128

Pode-se dizer que a ideologia empreendedora falha na tentativa de ser


o elo de geração de emprego e renda, uma vez que o incentivo legal para a
prática empreendedora precisa também se ater aos processos de flexibilização
dos direitos trabalhistas e ao apagamento das garantias mínimas. Bem assim,
o discurso empreendedor faz parte do processo de reestruturação produtiva e
das recentes transformações no mundo do trabalho, algo que Martins e Costa
(2014) consideram um deslocamento do Direito do Trabalho para o Direito

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Empresarial. Entretanto, vale notar que o discurso empreendedor pode se
tornar invariavelmente um mecanismo de precarização do trabalho. A preca-
rização significa a deterioração das condições de trabalho e está relacionada
à perda de direitos trabalhistas ou de estabilidade do vínculo empregatício.
Tendo em vista que o discurso empreendedor comporta-se dentro da
ideologia neoliberal, o empreendedorismo tem sido utilizado ideologicamente
para suprir a capacidade governamental de desenvolver políticas sociais e criar
empregos. No Brasil, em especial, o neoliberalismo ganhou destaque a partir
da década de 1990, quando o mercado de trabalho passou a ser influenciado
pelo discurso neoliberal baseado na liberdade de mercado e na redução do
Estado (Oliveira, Castro & Santos, 2017). Assim, a ideologia empreendedora
obedece aos ditames do mercado, ganhando este último prevalência no mundo
capitalista. Cabe, então, ao Estado “apenas a intervenção a fim de garantir
condições mínimas para que o empreendedor cresça e, com ele, cresça a
economia do país” (Oliveira, Castro & Santos, 2017, p. 5).
Porém, o risco que se apresenta nesse contexto é a transferência de
responsabilidade em relação à questão do desemprego e garantia da renda ao
indivíduo e não mais ao Estado (Oliveira, Castro & Santos, 2017). Num país
onde o empreendedorismo por necessidade configura-se uma das principais
motivações para empreender, há de se ter atenção ao processo de perda de
direitos, flexibilização e precarização advindos da mera reprodução da ideo-
logia empreendedora.
Nas palavras de Oliveira, Castro e Santos (2017, p. 17),

O que seria então a saída para a superação da pobreza, do desemprego e


da exclusão social acaba sendo apenas mais uma maneira do Estado neo-
liberal se isentar de suas obrigações e de relegar para o âmbito privado
problemas que, na realidade, são sociais. O trabalhador individualizado
é alijado de seus direitos sociais e da proteção estatal e tem sobre si toda
a responsabilidade pelo seu sucesso e inclusão produtiva. O empreende-
dorismo, então, mostra se como mais uma face perversa do capitalismo,
aumentando a pauperização desses indivíduos, iludindo os com uma ideo-
logia de “patrão de si mesmo” e “todos podem ser empresários” numa
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 129

tentativa de manter a produção capitalista, o desenvolvimento do capital


e a hegemonia dos mercados, deixando de lado os problemas sociais e
ignorando as consequências nefastas que a precarização tem trazido para
a vida dos trabalhadores.

Não obstante o discurso empreendedor, cabe agora a análise dos motivos


que levam as pessoas negras ao caminho do próprio negócio, assunto que será
abordado a seguir.
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Motivos para empreender: necessidade versus oportunidade —


como a raça se insere neste debate?

A motivação para empreender é um dos elementos centrais para explicar


por que os indivíduos recorrem ao trabalho por conta própria. Alguns estudos
sobre empreendedorismo apontam que, entre as motivações mais comuns, os
sujeitos, que iniciam no autoemprego, fazem-no ou por necessidade ou por
oportunidade. A relevância da distinção entre essas motivações se mostra
importante em termos práticos para a formulação de políticas específicas para
cada perfil (Block & Wagner, 2010).
Marisa Cebola e Sara Proença (2018), ao realizarem uma revisão da lite-
ratura sobre as principais teorias da motivação, analisam algumas motivações
para o autoemprego, das quais cabe citar as motivações de realização familiar
e societal e as motivações de recursos e rendimento. Em geral, as motiva-
ções que levam os indivíduos a empreender estão relacionadas à natureza do
empreendedor, a qual se evidencia pela busca de independência, autorrealiza-
ção e sucesso financeiro (Cebola & Proença, 2018, p. 102). Esses elementos
podem ser chamados de “realizações” e a procura por tais conquistas tem a
ver com o desejo próprio ou familiar pela segurança econômica (Cebola &
Proença, 2018, p. 102).
As motivações de realização familiar e societal se relacionam com o
ambiente familiar e se consolidam como um aspecto central para o desen-
volvimento pessoal ou desejo de realização, especialmente quando o núcleo
familiar serve de propensão para as atividades empreendedoras. Desse modo,

é possível perceber que o desejo de independência e autonomia, o desen-


volvimento de novas competências numa determinada área de negócio, a
necessidade de realização pessoal, o reconhecimento por parte da socie-
dade, a segurança e a oportunidade de criar postos de trabalho para os
membros da sua família, são factores relevantes para a tomada de decisão
do empreendedor (Cebola & Proença, 2018, p. 102).
130

As motivações de recursos e rendimentos estão atribuídas ao surgimento,


ainda que involuntário, de novos empreendedores. Além disso, é comum
que eles surjam em momentos economicamente desfavoráveis, nos quais o
desemprego aumenta (Cebola & Proença, 2018). Tal qual define o GEM, essas
pessoas podem ser chamadas de “empreendedores por oportunidade”. Elas
seriam aquele tipo de indivíduo que se motiva pela necessidade de garantir
uma fonte de renda e a utiliza para desenvolver uma oportunidade de negócio
que, de alguma forma, garanta-lhe subsistência (Cebola & Proença, 2018).

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No entanto, o empreender por oportunidade possui uma divisão tênue
em relação ao empreendedorismo por necessidade. Segundo aponta o GEM
(2018), o empreendedorismo por necessidade corresponde à criação de negó-
cios por causa da falta de outras possibilidades para gerar renda e ocupação;
já os “empreendedores por oportunidade” são os indivíduos que iniciam seus
empreendimentos por meio da identificação de uma oportunidade de negócio.
O ponto linear entre ambos os conceitos é o fato de que o empreendedor
por necessidade pode, contrariamente ao que o conceito aponta, enxergar uma
oportunidade de negócio e perquirir tal caminho como estratégia para obter
renda. Esse fator representa, aliás, uma tensão entre as motivações, aspecto
que denota a complexidade delas (Vale et al., 2014, p. 316-317). Há casos em
que a necessidade pode ser o pontapé inicial para a oportunidade, mas essa
diferenciação é importante para se perceber aqueles que abrem negócios ape-
nas para fugirem das adversidades do desemprego e dos problemas na renda
e aqueles que, por mais que tenham dificuldades com a renda, observam no
mercado um nicho em potencial e investem nele sem necessariamente preci-
sarem do retorno imediato para a subsistência, sendo o aumento da renda uma
consequência e não obrigatoriamente a causa. Desse modo, apesar de serem
por vezes antagônicas, a necessidade e a oportunidade podem ser motivações
simultâneas e combinadas no início da trajetória de empreendedores (Williams,
2008, Williams & Round, 2009, Williams, Round & Rodgers, 2009).
Como bem definem Block e Wagner (2010, p. 155),

[t]he difference between the two types of entrepreneurs is in the motiva-


tion of the entrepreneurs to start their venture. Opportunity entrepreneurs
are viewed as entrepreneurs who start a business in order to pursue an
opportunity, while necessity entrepreneurship is more need-based.

As oportunidades são subjetivas, mas podem ser definidas como aquelas


situações nas quais os bens e serviços vislumbrados possuem um valor de
produção que gere maior rendimento ao empresário. Block e Wagner (2010)
afirmam que as oportunidades são descobertas não pela sorte, mas por duas
razões particulares. A primeira está relacionada à descoberta da oportunidade
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 131

por meio de uma informação prévia adquirida pela experiência ou educação


— ter tal informação pode ser o diferencial para enxergar uma oportunidade
de negócio e investir em um nicho que gerará retorno financeiro futuramente.
A segunda razão é explicada por meio de conhecimentos específicos que
podem ser utilizados para descobrir valor em determinada oportunidade. Esta
segunda explicação possui ainda mais subjetividade, porém, ao fim e ao cabo,
a decisão sobre explorar ou não uma oportunidade demanda habilidades que
precisam ser desenvolvidas pelo próprio empresário, assim como a decisão
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sobre enfrentar os riscos e custos (Block & Wagner, 2010).


Vale observar que o empreendedorismo por necessidade pode advir
comumente de segmentos socioeconômicos desfavorecidos, nos quais a
necessidade está atrelada à subsistência e a busca pela manutenção social
e econômica. O sucesso do empreendedor, portanto, depende não apenas
da visão de que as oportunidades se colocam e devem ser abraçadas, mas
do fato de que há obstáculos que se impõem previamente às oportunidades
(Chrysostome, 2010). A falta de capitais financeiro e humano, a necessidade
de sobrevivência, a ausência de informações e a desqualificação educacio-
nal são obstáculos que se colocam para quem inicia um negócio pela via da
necessidade (Acs & Kallas, 2007).
Entre os empreendedores por necessidade, o desemprego pode ser atri-
buído a um dos fatores mais comuns que levam as pessoas a abrirem seus
próprios negócios. Nassif et al. (2009) alertam sobre o aumento do desemprego
e da informalidade serem necessidades citadas por empreendedores iniciais.
Há uma relação entre desemprego e empreendedorismo que invariavelmente
se traduz por meio da necessidade de se encontrar outras formas de garantir
acesso à renda e à subsistência.
Avaliando os empreendedores por oportunidade e necessidade, embora
sem distinguir a raça, o GEM (2018) apontou que as motivações dos empreen-
dedores iniciais se mantiveram em crescimento quando comparados os núme-
ros, a partir de 2015. De 2014 para 2015, o total de empreendedores que
começaram a empreender por necessidade quase dobrou, saltando de 29,1%,
em 2014, para 42,9% em 2015 (GEM, 2018, p. 12). Segundo o GEM (2015),
esse aumento acentuado explica-se pela retração da economia brasileira,
cujo PIB recuou 3,8%. A diminuição do PIB também foi sentida no total
de empreendedores iniciais por oportunidade, que saiu de 70,6%, em 2014,
para 56,5%, em 2015. O crescimento na quantidade de empreendedores por
necessidade acompanhou o aumento no total geral de empreendedores, que
foi de 34,4% para 39,3% entre 2014 e 2015 (GEM, 2015).
Os achados do GEM são sugestivos para traçar um panorama geral das
motivações que guiam os empreendedores iniciais. Contudo, falham por não
disponibilizarem maiores informações acerca das variações por raça e cor.
132

Quando presentes, os dados do GEM sobre raça ou cor estão detalhados de


maneira insuficiente. Por exemplo, na publicação, de 2018, do Instituto Brasi-
leiro da Qualidade e Produtividade (IBQP), intitulada “Análise dos resultados
do GEM 2017 por raça/cor”, referem-se apenas à motivação “oportunidade”,
como é possível aferir no gráfico a seguir:

Gráfico 1 – Empreendedorismo por oportunidade por raça GEM 2017

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Gráfico 1 - Evolução da distribuição percentual da motivação dos empreendedores iniciais
por oportunidade segunto a cor/raça - Brasil - 2013:2017

100 Branca Preta ou Parda

90
78
80 73
70
65
70 59
66
60 69
50 57
54
40 51

30
20
10
0
2013 2014 2015 2016 2017
Fonte: GEM Brasil 2017

Fonte: (IBQP, 2018, p. 6).

Apesar de não apresentar o dado sobre empreendedorismo por necessi-


dade, o gráfico 1 revela que, de 2013 a 2017, os brancos estiveram empreen-
dendo mais por oportunidade do que os negros. O momento de maior
proximidade ocorre em 2016, quando a diferença é de apenas 2% entre brancos
e negros. Chama atenção o fato de o percentual de empreendedores pretos
e pardos que empreendem por oportunidade cair de 2016 para 2017 e o de
brancos crescer de maneira acelerada. O IBQP tenta explicar essa diferença
atribuindo à crise econômica o fato de negros terem maior dificuldade para
empreenderem por oportunidade.

Entre 2013 e 2016, período para o qual existem dados, a proporção de


empreendedores que abriu seu negócio por oportunidade apresentou ten-
dência de queda em ambos os grupos (brancos e negros). No mesmo
período, a proporção de empreendedores negros por oportunidade foi sem-
pre inferior à dos brancos (Gráfico 1). Para 2017 tivemos uma retomada
ao empreendedorismo por oportunidade no grupo de cor branca (70%),
para indivíduos negros ainda não se percebeu uma retomada mais evidente.
Apesar do grupo de brancos já demonstrarem uma queda desde 2013, o
grupo de cor preta parece sentir com mais peso a crise em 2015 e está
demorando mais tempo para se recuperar. (IBQP, 2018, p. 6).
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 133

De fato, os negros são os que mais empreendem por necessidade, ou seja,


são os indivíduos que mais recorrem ao empreendedorismo para suprirem
alguma necessidade, em geral, atribuída ao mercado de trabalho ou à renda.
É isso que aponta a pesquisa realizada pela PretaHub, em parceria com o JP
Morgan e o Plano CDE, no estudo “Empreendedorismo Negro no Brasil em
2019”, publicado no final de 2019. A investigação apresenta três segmentações
de perfis do empreendedor negro: necessidade, vocação e engajamento. Entre
os empreendedores por necessidade, 46% começaram a empreender por falta
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de emprego e 83% não possuem funcionários ou parceiros. Além disso, esta


segmentação afirma enfrentar o desemprego e ter dificuldade de acesso ao
mercado de trabalho. O perfil necessidade decide, em geral, iniciar o próprio
negócio através de incentivos de familiares, amigos e parceiros de trabalho.
A pesquisa aponta também que esse perfil enfrenta a barreira da falta de
autopercepção como empreendedor (PretaHub, 2019, p. 6), ou seja, dentre as
muitas pessoas que começam a empreender por necessidade, grande parcela
não se considera empreendedora.
No estudo, a segmentação vocação representa o que a literatura costuma
chamar de “oportunidade”. Os dados destacados pela pesquisa demonstram
que 51% desses empreendedores “por vocação” sempre quiseram empreender,
95% querem evoluir e ampliar seu negócio em um ano, e 85% viram sua renda
evoluir. A proximidade com a definição oportunidade deriva do fato desse
perfil possuir “familiaridade com a atividade e desejo de ser autônomo, às
vezes somados a dificuldades em se adequar no mercado de trabalho” e “sonho
e percepção de oportunidade” (PretaHub, 2019, p. 7). Isto é, os empreende-
dores por vocação iniciam seus negócios a partir de uma oportunidade que
enxergam no mercado e a aproveitam para buscarem complemento à renda.
Além desse ponto, os afroempreendedores por vocação têm a “necessidade
de mostrar valor independente da raça, dissociando o próprio trabalho como
empreendedor da luta contra o racismo”. Este último aspecto é determinante
para diferenciá-los da próxima segmentação — o perfil engajado.
Os engajados podem se assemelhar aos empreendedores por vocação,
mas se diferenciam por identificarem seus negócios como uma “cura da dis-
criminação e oportunidade de trabalho” (PretaHub, 2019, p. 8). São parecidos
aos empreendedores por vocação, porque também identificam seus negócios
pelo senso de oportunidade e possuem desejo de empreender, porém esse
desejo é incentivado pela necessidade de autoafirmação, especialmente para
o público afro. Os empreendedores engajados são considerados afroempreen-
dedores. Nesse caso, o prefixo afro funciona como engajamento às atividades
empreendedoras, as quais estão direcionadas aos bens e serviços com teor
racial. Entre essa segmentação, 29% trabalham em rede e priorizam outros
negros, 31% acreditam que a articulação entre cultura negra e seus negócios
134

é a maior fonte de qualidade para seus produtos, e 36% trabalham com ino-
vação (PretaHub, 2019, p. 8).

O crédito e a falta dele: o entrave principal

As políticas de acesso ao crédito começaram como iniciativas do governo


Fernando Henrique Cardoso, mas se consolidaram na agenda governamental
nos governos seguintes, de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff.

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Antes desses governos, as iniciativas de oferta de crédito estavam concentradas
no interesse dos bancos, que, além de possuírem uma estrutura excludente
e pouco desenvolvida, concediam crédito somente aos que tinham status de
cidadão (Silva, 2011), do qual o negro era excluído.
Em especial a partir de 1995, com as políticas de microcrédito sendo
criadas e aplicadas pelos policy makers, elas tinham a função de servirem
como uma nova estratégia de desenvolvimento social (Barone et al., 2002).
A ideia inicial era simples: garantir geração de renda por meio da oferta de
pequenos empréstimos à população pobre que trabalhava por conta própria
(Barone & Sader, 2008). Além do microcrédito, havia também o microcrédito
produtivo orientado, o qual era especializado em um segmento da econo-
mia, os micro e pequenos empreendimentos, formais e informais (Barone
& Sader, 2008).
As políticas públicas de acesso ao crédito tinham também a intenção de
incluir uma parte considerável da população no sistema financeiro nacional,
pois as taxas de exclusão financeira eram alarmantes. Ainda hoje, a inclusão
financeira continua sendo um desafio para os construtores de políticas, mas,
em termos de legislação, o governo tem apostado em estratégias normativas,
das quais cabe citar as seguintes iniciativas:

Quadro 1 – Principais legislações de microcrédito no Brasil


Legislação Disposição
Dispõe sobre o direcionamento de depósitos à vista captados pelas instituições financeiras para
Lei n.º 10.735/ operações de crédito destinadas à população de baixa renda e a microempreendedores, autoriza
2003 o Poder Executivo a instituir o Programa de Incentivo à Implementação de Projetos de Interesse
Social — PIPS, e dá outras providências.
Lei n.º
Institui o Programa Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado — PNMPO.
11.110/2005
Lei Complementar
Institui o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte.
n.º 123/2006
Alterou a LC n.° 123/2006 e criou a figura do Microempreendedor Individual (MEI). Considera-se
Lei Complementar
MEI o microempresário que tenha auferido receita bruta, no ano-calendário anterior, de até R$ 81
n.° 128/2008
mil — valor atribuído pela LC 155/2016.
continua...
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 135

continuação
Legislação Disposição
Dispõe sobre a prestação de auxílio financeiro pela União aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Lei n.º Municípios, no exercício de 2009, com o objetivo de fomentar as exportações do país, e sobre a
12.087/2009 participação da União em fundos garantidores de risco de crédito para micro, pequenas e médias
empresas e para produtores rurais e suas cooperativas.
Programa Crescer
— Programa Criado em 2011, pelo PNMPO, objetivava ampliar o acesso de empreendedores formais e
Nacional de informais ao microcrédito por meio de bancos públicos federais.
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Microcrédito
Resolução BACEN Altera e consolida as normas que dispõem sobre a realização de operações de microcrédito
n.º 4.000/ 2011 destinadas à população de baixa renda e a microempreendedores.
Dispõe sobre as operações de microcrédito, inclusive as de microcrédito produtivo orientado,
Resolução CNM
realizadas pelas instituições financeiras e sobre o direcionamento de recursos para essas
n.º 4.854/2020
operações.
Lei n.º
Revoga a Lei n.º 11/110, e reformula o PNMPO.
13.636/2018

Fonte: Elaborado pelo autor com base nas normas mencionadas.

As iniciativas legais citadas no quadro 1 serviram de estímulo ao cres-


cimento no número de linhas de crédito, de recursos investidos pelo governo
e no total de pessoas que tiveram acesso a essas legislações. Contudo, as
medidas governamentais apresentam dificuldades em ecoarem em públicos
específicos. Marcelo Paixão (2003; 2017) traçou os perfis dos microempreen-
dedores afro-brasileiros e concluiu que, por conta de a maior parte desses
empresários ser também pobre, a captação de recursos que financiem suas
atividades se torna mais difícil. Não apenas a pobreza, mas especificamente
o fator racial é entendido subjetivamente como um empecilho quando se trata
de acesso ao crédito bancário.
Paixão (2017) aferiu que o racionamento de crédito é um motivo que
mina a capacidade empreendedora de afrodescendentes. Uma vez que o acesso
ao crédito é condição essencial para impulsionar as atividades empresariais
no mundo capitalista, o não acesso ao crédito resulta em um sério entrave ao
estabelecimento de empresários e empreendimentos negros. Nesse sentido, a
pesquisa realizada pelo economista, em parceria com o Banco Interamericano
de Desenvolvimento, coletou dados de aproximadamente mil empreendedores
nas cidades do Rio de Janeiro e Salvador, e teve como objetivo “conhecer
o seu perfil socioeconômico, a caracterização de seus estabelecimentos e
a forma pela qual aqueles MEI acessavam o sistema de crédito produtivo”
(Paixão, 2017, p. 1).
A partir do perfil racial dos entrevistados, constatou-se que 47,5% eram
pardos, 29% brancos, 20,5% pretos e 3% amarelos ou indígenas. Em relação
à percepção acerca das situações de discriminação de cor ou raça, 96,6% dos
136

microempreendedores brancos, responderam nunca terem sido vítimas de


discriminação ao longo da vida; no entanto, quando respondido por pardos,
o percentual foi de 89,7%, número que caiu para 62,1% quando relatado por
pretos (Paixão, 2017, p. 7). A percepção de discriminação confirma o fato de
que a discriminação racial está mais presente entre a população negra, espe-
cialmente entre os pretos, basta notar que a diferença entre brancos e pretos
se aproxima dos 35 pontos percentuais (Paixão, 2017, p. 7).
No que tange ao acesso ao crédito, dentre os entrevistados, apenas 4,3%

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contratam empréstimo, crédito ou financiamento com frequência, 19,5% con-
tratam eventualmente. Chama atenção a quantidade de MEI que tentaram e
não conseguiram, ou não haviam buscado acesso ao crédito. Nas palavras de
Paixão (2017), “mais de ¾ dos MEI indagados em nosso levantamento afir-
maram que, ou tentaram e não obtiveram sucesso; ou não buscaram acesso
ao crédito produtivo” (Paixão, 2017, p. 9). Os brancos e pardos são os que
mais frequentemente utilizam crédito produtivo, cada um 4,7%, enquanto os
pretos, 2,1% (Paixão, 2017, p. 9).
Ao aferir os valores solicitados e aprovados pelos MEI às instituições
financeiras públicas, Paixão (2017) constatou que, em média, os brancos
solicitam R$ 10,7 mil, os pardos R$ 6 mil e os pretos R$ 5,5 mil. Entre os
valores liberados, os negros estão em desvantagem em relação aos brancos.
Dentre os que conseguiram crédito, a média de valores obtidos demonstra
uma grande disparidade entre brancos e negros. Na medida em que o valor
médio conseguido por brancos corresponde a R$ 9.708,71, o dos pardos a R$
4.734,94, e dos pretos a R$ 3.899,56 (Paixão, 2017, p. 11).
No tocante ao montante de juros pagos para a obtenção de crédito, tam-
bém é possível demonstrar que pretos e pardos são os que mais pagam juros
ao solicitar e conseguir acesso ao crédito. A média de juros paga por pardos
é de 3,48%, por pretos 2,34%, e por brancos 2,28% (Paixão, 2017, p. 14).
Paixão (2017) atribui essas altas taxas de juros aos mecanismos de seleção
adversa e de risco moral.

Do lado da oferta do crédito, as dificuldades dos bancos para o acesso a


um amplo conjunto de informações dos potenciais prestamistas levam à
realidade da seleção adversa (avaliação de elevado risco do empreendi-
mento proposto, mesmo que na realidade as coisas possam ser diferentes)
e do risco moral (avaliação de elevado risco de se estar negociando com
um agente econômico inidôneo ou irresponsável, mesmo que na realidade
este potencial prestamista seja justamente o contrário). (Paixão, 2017, p. 2).

Por fim, dentre os motivos para o racionamento de crédito, os MEI bran-


cos foram os que mais relataram seleção adversa, 46,3%, especialmente acerca
da restrição cadastral ou falta de garantias; os pardos 26,5% e os pretos 26,5%.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 137

O risco moral, neste caso, discriminações de distintas naturezas, foi relatado


por 6,1%, todos pretos (Paixão, 2017. p. 17).

Conclusão

O objetivo geral deste capítulo concentrou-se em contextualizar o


empreendedorismo negro a partir da ideologia empreendedora e correlacio-
ná-lo à discussão sobre motivação para empreender e sobre o acesso ao crédito.
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Viu-se que, historicamente, o trabalho forçado serviu como mecanismo de


opressão e aprisionamento da população negra, o que culminou na invisibi-
lidade e marginalização de suas demandas diante do capitalismo brasileiro.
Além disso, quando observadas as motivações para empreender, os negros
são os que mais empreendem por necessidade, embora sejam também aqueles
que mais sofrem com racionamento e falta de crédito.
A despeito de a ideologia empreendedora ser utilizada para transferir ao
indivíduo algumas obrigações do Estado em relação à geração de emprego
e renda, ela se trata também de um viés de desenvolvimento defendido pelo
estado neoliberal, o qual a reverbera como alternativa para a ascensão econô-
mica. No tocante à população negra, a ideologia empreendedora foi recebida
como meio de superação dos problemas da exclusão, a qual essa população
é constantemente submetida. Por ter sido excluída do capitalismo brasileiro
— aliás, do lucro dele, que advinha de trabalho escravizado —, a população
negra não era considerada pelas elites brancas como empreendedora. No caso
dos negros, então, a adesão a essa prática seguiu o transcurso para o trabalho
livre que, mesmo envolto na invisibilidade das demandas raciais, marcou-se
pela habilidade de contornar tais percalços.
Essa habilidade, com o passar do tempo, transformou-se em empreende-
dorismo negro, compreendido com base em três fatores principais: geração de
renda, ressignificação e ativismo. A geração de renda se justifica pelo fato de
movimentar uma parcela significativa do PIB brasileiro, gerar riqueza e servir
como mecanismo de formulação de oportunidade de acesso à renda. Igualmente
importante é seu caráter transformador, que ressignifica as mazelas do passado
em chances de emergir e contornar as adversidades —, ainda que o faça em
grande parte por necessidade. Além desses, pode ser compreendido com base
no ativismo e também pode ser ativismo. Quando compreendido com base no
ativismo, o que ganha eco é a defesa por pautas que valorizam o empodera-
mento negro. Por outro lado, como ativismo, o empreendedorismo negro ganha
centralidade pois resiste ao racismo estrutural por meio da autoafirmação e,
quando engajado, coloca-se como instrumento de redistribuição dentro do capi-
talismo, isto é, gera riqueza por e para mãos negras. Na figura 1, apresenta-se
uma síntese dos pilares que traduzem o empreendedorismo negro.
138

Figura 1 – Empreendedorismo negro e seus pilares

Ressignificação
Geração Ativismo
de renda

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Empreendedorismo
negro

Fonte: Elaborado pelo autor.

Entre os motivos que levam os negros a empreender, destacam-se a


necessidade e a oportunidade. Empreender por oportunidade significa ini-
ciar um negócio após visualizar uma estratégia para obter renda que não
necessariamente traga resultados a curto prazo. Porém, ressalta-se que as
oportunidades são subjetivas e não necessariamente são adquiridas por uma
habilidade inata ao empreendedor. Num contexto de hiperdesigualdade, como
o brasileiro, o acesso aos conhecimentos ou aos recursos necessários para
se visualizar uma oportunidade de negócio nem sempre estão ao alcance de
todos. Observando isso, o empreendedorismo por necessidade, aquele no
qual o sujeito começa a empreender para gerar renda ou ocupação, atinge
em grande parte os negros. 46% dos empreendedores negros por necessidade
começaram a empreender por falta de emprego (PretaHub, 2019). Além des-
ses, o engajamento é uma motivação que também influencia o empreendedor
negro a empreender, sobretudo gerando oportunidades de afroempreender.
Logo, estimula-se o engajamento por meio da autoafirmação racial atrelada
ao desejo de empreender.
De acordo com o estudo de Paixão (2017), no que concerne o acesso ao
crédito, percebe-se uma tendência de maior desvantagem à inclusão financeira
de empreendedores negros. O Itaú Unibanco também realizou uma pesquisa
com abordagem semelhante à de Paixão (2017) e constatou que os empreen-
dedores negros alegam possuir pouco ou nenhum relacionamento com institui-
ções financeiras. Além do desconhecimento ou da falta de educação financeira,
o banco explicou que há outras dificuldades que podem estar relacionadas
à presença do racismo, como a desvalorização dos produtos produzidos por
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 139

pessoas negras frente aos produzidos por brancos. Dessa forma, por conta da
herança racista que ainda reverbera, embora sejam maioria, os empreendedores
negros são acometidos por dificuldades que não fazem parte da vivência de
outros empreendedores.
Como sugestão de caminhos futuros, pretende-se expandir o estudo aqui
desenvolvido por meio da obtenção de dados próprios e atualizados ao cenário
atual e pós pandêmico. A realização deste capítulo enfrentou adversidades tais
como a falta de informações atualizadas sobre o tema e pouca literatura que
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abarcasse os problemas enfrentados pela população negra quando esta decide


empreender. Entretanto, apesar do gap encontrado, ressalta-se a relevância
de estudos que contemplem a raça como mecanismo sine qua non para a
fidedigna compreensão da realidade econômico-social.
140

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Capítulo 7
Diga o seu trabalho, e lhe direi de que
gênero é: a representação discursiva
das empreendedoras transgêneras entre
reivindicação identitária e luta transfeminista
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Nayla Júlia Silva Pinto1


Paolo Francesco Cottone2
Rafael Oliveira3
Alexander Hochdorn4

Introdução

O tópico da presente pesquisa é centrado no posicionamento discursivo


entre atores sociais, cuja identidade de gênero se difere de uma perspectiva
dicotômica dos sexos e contextos profissionais caracterizados por acepções
principalmente heteronormativas, como o mundo do trabalho e, especial-
mente, o setor da empresa. Foram pesquisadas as margens de agenciamento,
dentro das quais uma pessoa em transição entre os gêneros reivindica uma
representação do self, diante das peculiares estruturas simbólicas e normati-
vas de contextos específicos de interação. Com a finalidade de identificar os
processos por meio dos quais se desenvolve uma representação do self como
identidade generizada, foi analisado o grau de agenciamento diante das prá-
ticas de posicionamento em contextos empresariais.
O objetivo deste estudo foi compreender o quanto as pessoas transgêneras
reproduzem determinados idealtipos sexualizados diante das coordenadas
simbólicas do contexto, das interações cotidianas e da especificidade dos
meta-artefatos linguísticos que circunscrevem áreas de significados declinados
no feminino ou no masculino. As representações do self e do outro, em uma
perspectiva pós-moderna, estão articuladas ao longo de produções discursi-
vas entre interações cotidianas e superestruturas culturais e normativas. O
discurso, conforme essa perspectiva, é entendido como artefato de mediação
que gera significados compartilhados.
1 Faculdade Anhanguera.
2 Universidade de Padova.
3 Universidade de Brasília.
4 Universidade de Padova.
146

As dimensões do trabalho empresarial, foco do presente estudo, se


apresenta numa perspectiva teórica de tipo socioconstrucionista (Berger &
Luckmann, 1995; Mead, 1972), como um contexto impregnado por mecanis-
mos organizativos e hierarquias de poder. Conforme uma ótica bourdieusiana,
consideram-se as diferentes afirmações do tentar coletivo como campos sociais,
ou seja, geradores de habitus culturais que produzem e reproduzem idealtipos
comportamentais e normas de conduta socialmente compartilhadas e legitima-
das. Por isso, a pesquisa deve responder às conceitualizações de um paradigma

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interessado na complexidade dos universos simbólicos, conforme o qual:

O mundo não é externo ao conhecimento, não é objetivo nem objetivável,


mas toma forma como horizonte comum das nossas perspectivas. Cada
indivíduo é centro de um campo de significação, produz um próprio hori-
zonte de sentido e uma peculiar representação da realidade. (De Monticelli,
1998, p. 128).

No caso do presente estudo, como afirmado por Kirsten Schilt (2006),


existem profissões generizadas, “blue-collar occupations” and “women’s pro-
fessions” (ocupações de cor azul e profissões das mulheres) (p. 445), que são
hegemonicamente monopolizadas pela presença de um gênero específico.
Alguns destes trabalhos, com demasiada dificuldade, são ocupados por ambos
os gêneros. Estas profissões parecem, na verdade, excluir um ou outro gênero,
levando em conta que as posições de poder, sobretudo nos contextos de matriz
neolatina, são ocupadas principalmente por homens (Bimbi, 2009).
Essa perspectiva de disparidade parece nascer de uma distinção de papéis
que vê o homem como protagonista agente do público e a mulher como com-
parsa passiva dentro dos muros domésticos. Enquanto o homem visa possuir
as competências e as habilidades para gerar mudanças no tecido social e his-
tórico, as mulheres teriam, portanto, a tarefa atribuída pelo homem de cobrir
os papéis do cuidado. Nasce, dessas considerações, um paradigma típico
do bem-estar ocidental e eurocêntrico (Bimbi, 2009), que se baseia em uma
bipartição de dois sistemas existenciais antinômicos, porém compensadores:
o homem breadwinner versus a mulher caregiver (Kittay, 2011).
As pessoas trans, mesmo colocando em “xeque” a rígida dicotomia,
encontram trabalho entre as ocupações socialmente legitimadas só com enorme
dificuldade. Não por acaso, muitas profissões que desempenham representam,
de alguma forma, ambientes que convalidam a sua diversidade, em que o
estigma torna-se um símbolo de prestígio (Goffman, 1983).
Um dos temas centrais, assunto deste capítulo, aborda exatamente a
inserção de transgêneras(os) no mundo do trabalho e as problemáticas rela-
tivas à prostituição.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 147

Revisão da literatura

Entre as contribuições mais recentes sobre o assunto, um artigo publicado


por Connell (2010) põe em discussão o conceito de “fazer gênero”, entendido
como atuação de um gênero no palco da vida cotidiana (Fenstermaker, West
& Zimmerman, 2022). Segundo Connell, a construção de fazer gênero ten-
deria a reforçar as diferenças e, portanto, as desigualdades entre os gêneros:
“O fazer gênero é sobretudo uma teórica da interação; esta pressupõe um
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contexto cultural dentro do qual é possível mudar o binarismo dos gêneros”


(Connell, 2010, p. 52).
A pesquisadora sustenta que a utilização desse termo, de conotação gof-
fmaniana, seja pouco atuável, sobretudo pela dimensão sempre mais fluida
das realidades sociais, em que as identidades com dificuldade se afirmam por
meio de percursos ou “roteiros” socialmente preestabelecidos sem considerar
a peculiaridade de contextos que estão situadas e culturalmente circunscritas:
“Os indivíduos devem atuar o próprio gênero em relação a específicas coor-
denadas culturais” (Connell, 2010, p. 51).
A pesquisa, realizada em um corpus de 19 entrevistas com mulheres
transgêneras, enfatiza o quanto o posicionamento em ambientes de trabalho
ressente fortemente da própria identidade de gênero, a qual produz as desi-
gualdades que habitualmente intercorrem entre mulheres e homens:

As pessoas transgêneras não são necessariamente os únicos atores sociais


envolvidos no undoing o redoing gênero; de fato, mais são os tentativos de
mudar o binarismo de gênero, mais o terreno comum resulta descoberto
por pessoas transgêneras e outros que opõem-se à desigualdade de gênero.
(Connell, 2010, p. 51).

A respeito dessa perspectiva analítica, articulam-se a maioria das pro-


duções científicas que se ocupam, no âmbito das ciências sociais, de gêneros
em transição e do mundo do trabalho. Schilt e Westbrook (2009) publicaram
uma pesquisa etnometodológica, estudando, por um lado, as interações entre
os assim chamados gender normals e as pessoas transgêneras em contextos de
trabalho e, por outro lado, a representação midiática das transgêneras. A partir
das 54 entrevistas realizadas, junto a uma análise de discursos jornalísticos
por meio do software ATLAS-ti, emergiu que transgêneras(os) enfrentam um
percurso de transição geralmente mais curto se inseridas(os) em contextos
de trabalho “generizados”, isto é, profissões culturalmente preestabelecidas a
uma identidade de gênero específica (Schilt & Westbrook, 2009). A pesquisa
evidencia a relevante correlação entre heteronormatividade e dicotomia sexual,
a respeito da quebra da coerência e estabilidade de uma hegemônica concepção
148

binária de gêneros. Mesmo Schilt (2006) evidenciou como os homens trans-


gêneros (FtM) representam as disparidades que geralmente caracterizam as
interações intergênero em contextos de trabalho. Os resultados teriam suge-
rido que não era tanto o percurso de transição em si a gerar desigualdade,
como no caso das mulheres transgêneras. Dessa forma, uma vez completada
a passagem do feminino ao masculino, os homens transgêneros teriam uma
posição social mais favorecida em ambientes de trabalho.
As pesquisas que se interessam por aspectos de trabalho não podem

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desconsiderar o mercado da prostituição europeu, que, por muito tempo, teve
também como protagonistas as mulheres transgêneras — em muitos casos,
originárias do Brasil (Di Folco & Marcascano, 2001; Farais de Albuquerque
& Jannelli, 1994). Segundo Vidal-Ortiz (2009), a identidade das transgêne-
ras se articularia a partir de outros aspectos normativos da dicotomia sexual
e em relação à própria orientação sexual. Ser transgênera, desempregada
e clandestina representa uma realidade que, muitas vezes, tem a ver com
migrantes sul-americanas, sobretudo brasileiras, as quais constituem uma
percentagem significativa da prostituição na Europa. Por anos, as pessoas trans
ficaram relegadas a uma condição de desvio e o comércio ilegal tornou-se,
frequentemente, a única possibilidade de reivindicar um papel ocupacional
próprio: “Muitas vezes não se dá para as mulheres transgêneras um emprego
em trabalhos econômicos formais [...] esta perspectiva negativa reduz as suas
possibilidades de trabalhar fora de um sistema econômico de rua, como o faz”
(Vidal-Ortiz, 2009, p. 100). Essa última pesquisa enfatiza o lado mais ostra-
cista de uma discriminação social e cultural das mulheres trans, que, muitas
vezes, se veem obrigadas a vender o próprio corpo e a própria imagem para
uma clientela masculina majoritariamente heterossexual.

Metodologia

Em relação ao que foi evidenciado na revisão da literatura e no que


se refere aos objetivos do presente capítulo, é necessário formular e definir
um processo metodológico que possa responder à estrutura e à organização
da realidade que se quer observar. Sendo a pesquisa centrada nos processos
discursivos e nas práticas de interação por meio das quais os atores sociais se
posicionam a respeito da identidade de gênero diante do contexto, adotar-se-ão
instrumentos qualitativos para a análise de material textual.
A presente pesquisa articula-se ao estudo das práticas de interação, enten-
didas como os processos que determinam as representações que os atores
sociais têm de si mesmos e do outro. O conceito do posicionamento — ator-
-ator, atores-contextos — coloca as pessoas em uma interação fluida que é
veiculada pela linguagem enquanto instrumento dos intercâmbios culturais,
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 149

sociais e relacionais. Surge, dessas considerações, o conceito da representação


discursiva, entendida como a representação social que se gerou no posiciona-
mento entre atores, reificada pelos repertórios linguísticos que instituem uma
prática discursiva distintiva e legitimada (Harré & Van Langenhove, 1991).
Os quadros de observação, a coleta do corpo dos dados e a sucessiva
escolha dos instrumentos metodológicos deverão cumprir, por um lado, uma
função descritiva do contexto e da realidade do objeto da pesquisa, e, por
outro, constituir uma matriz estruturada que possa responder analiticamente
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às perguntas já colocadas pelo presente projeto. Por isso, estas abordagens


gnosiológicas serão delineadas ad hoc segundo as peculiaridades dos diversos
contextos com as respectivas estruturas normativas e fundamentos simbólicos.
As representações do self e do outro, conforme uma perspectiva inte-
ressada em estudar os processos de interação, podem ser compreendidas
através da estrutura e da função da linguagem. As práticas comunicativas
geram repertórios discursivos que delineiam um conjunto de conhecimentos
mediados e compartilhados. Esse sistema ontológico complexo e circular
(entre indivíduos, sociedade e cultura) prolifera-se nos contextos e nas situa-
ções cotidianas (Mantovani, 2008). O contexto define os parâmetros de ação
segundo os quais os atores sociais se posicionam. O quadro simbólico, em
que estão implícitas as interações no cotidiano, torna-se parte integrante nos
processos de construção da identidade.
O dado textual, portanto, não surge de uma realidade empírica, mas
de uma coprodução discursiva entre quem observa e quem é observado. Os
modelos narrativos, nos quais são centradas as análises, emergem de um
posicionamento entre todos os agentes que definem uma determinada situação
social. Por isso, os discursos apresentam-se como artefatos, isto é, “dispo-
sitivos de mediação, socialmente construídos e culturalmente cristalizados,
através dos quais os atores interagem com o mundo e agem neste” (Mantovani,
2008, p. 73). Observa-se a estrita interconexão entre dados, interpretações e
interferências do observador, do contexto e, enfim, dos resultados que sentem
o efeito de toda uma série de variáveis fluidas, mutáveis e implícitas. Perder
de vista essas ligações levaria a uma imprecisão epistemológica e a uma
impropriedade metodológica que infligiria a confiabilidade dos construtos
epistemológicos, comprometendo irreversivelmente a realização e, portanto,
o êxito da pesquisa.

Ferramenta: Transana (Transcription & Analysis)

O programa qualitativo para a análise dos dados textuais, Transana,


possibilita uma série de funções técnicas e conceituais que permitem desfru-
tar deste suporte informático nas diversas fases da elaboração do corpo dos
150

dados. O programa foi criado a fim de construir repertórios por meio dos quais
se coordenam diversas tipologias de material discursivo — subdivididos em
séries de documentos de texto relativos a diversos corpos de dados textuais,
as coleções. O programa, ademais, reserva funções particulares, como a sin-
cronização dos arquivos de áudio ou de vídeo com a onda audiométrica e a
transcrição, dotada dos símbolos fonéticos mais comumente usados pelos
analistas da conversação: “Em todas as fases da análise é mantida uma estreita
‘aderência’ entre texto, transcrições, categorias utilizadas e sintagmas áudio

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vídeo” (Malfatti, 2007, p. 2).
As diversas produções textuais podem, para as características de sin-
cronização direta do programa, ser associadas a grupos de palavras-chaves
(áreas conceituais) e extraídas por meio de motores de pesquisa integrados ao
software, com a finalidade de criação das unidades de texto correspondentes
a partes específicas do arquivo audiovisual:

Os instrumentos para a análise integram a criação de sintagmas chama-


dos clip, aos quais se atribuem palavras-chaves. Os clips são contidos
em coleções que podem ser reproduzidas em sequência, simulando uma
montagem. Em uma coleção podem ser inseridos clips que proveem
de qualquer arquivo audiovisual (episódio) inserido na base de dados.
(ibidem, p. 2).

Combinando as categorias de significado com diferentes palavras-chaves,


o programa permite realizar uma pesquisa qualitativa complexa e em vários
níveis. Essa função convém particularmente para a análise do corpus no que se
refere aos modelos das interações sociais, que, efetivamente, desenvolvem-se
do micro ao macro.

Corpo das entrevistas

O corpo compõe-se por 10 entrevistas narrativas, sendo que os encontros


foram articulados como processos de interação dialógica. O conteúdo resul-
tado da entrevista ressente de posicionamento discursivo tanto do entrevis-
tado quanto do entrevistador. Esse instrumento, de fato, permite recolher o
posicionamento entre sistemas de significado produzidos por mais agentes.
Isso permite observar ativamente a modalidade de mediação por meio dos
quais dois interlocutores atribuem um sentido partilhado para uma situação.
Além disso, o observador tem a possibilidade de guiar o entrevistado para
específicos objetivos.
Todas as entrevistas foram realizadas, transcritas e analisadas de forma
anônima prévia Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelo último autor.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 151

Tabela 1 – Entrevistadas(os)
Sexo Gênero
Entrevistada(o) Origem Idade Empresa Duração Língua
genético social

1 Sujeito Milão/Itália masculino mulher 35 Salão de beleza 87min28s Italiano


2 Sujeito Milão masculino mulher 30 Salão de beleza 98min18s Italiano

3 Sujeito Milão masculino mulher 33 Salão de beleza 72min5s Italiano


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Belo
Italiano
4 Sujeito Horizonte/ masculino mulher 45 Cabeleireira 91min55s
(básico)
Brasil

Belo Italiano
5 Sujeito masculino mulher 41 Salão de beleza 85min38s
Horizonte (básico)

6 Sujeito Verona/Itália intersexual não binário 52 Imobiliária 50min4s Italiano

Italiano/
7 Sujeito Merano/Itália intersexual mulher 55 Dona de canil 120min12s
Alemão

8 Sujeito Verona masculino não binário 49 Ensino particular 34min40s Italiano

Mantova/
9 Sujeito masculino mulher 44 Advocacia 70min52s Italiano
Itália

10 Sujeito Verona feminino homem 38 Oficina mecânica 40min12s Italiano

Resultados

O sentido do discurso: Norma, cultura e poder

Este nível de análise se interessa pelas interações com os sistemas nor-


mativos, as hierarquias de poder e as representações culturais superordenadas.
As interações com as macroestruturas emergem cada vez que as produções
discursivas do entrevistado fazem referência a dimensões de status e papel,
como também aos sistemas de valor mais amplos.
Focaliza-se a atenção analítica naqueles momentos de interação nos quais
se faz referência, seja explícita ou implícita, à matriz macro do contexto
social. De fato, essas dimensões regulam todas as interações e, portanto, as
representações nas situações cotidianas diante do self, do outro e do contexto.
Torna-se particularmente importante, neste nível, a norma ideológico-contex-
tual que caracteriza a construção de um evento discursivo. Portanto, quanto
mais o contexto se subordina a uma ordem institucionalizada, mais resultará
a definição narrativa da realidade reificante.
A organização das estruturas sintáticas prevê, de fato, um processo de
negociação de significados simbólicos que se tornarão concretos e, portanto,
reais por meio da legitimação normativa de um conjunto de regras sociais
152

e cenários culturais. Para Goffman (1983), o conceito de cenário indica um


lugar físico como também uma situação social, ou seja, um palco em que
tomam forma as representações individuais e coletivas da realidade social.
Neste nível de análise, foi considerado o conjunto de variáveis inseridas
na estrutura simbólica do contexto, que denotam um evento discursivo de uma
compreensibilidade ou, para retomar Suchman (1987), uma speakability, ou
seja, “dizibilidade”, que transcende uma mera habilidade cognitiva em que
a compreensão do texto consistiria simplesmente em uma compreensão da

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semântica. Com efeito, o mesmo enunciado pode assumir conotações diferen-
tes conforme o contexto de interação. Mais do que o significado da palavra,
nesta perspectiva de análise, se quer captar o sentido da fala. Pessoas que par-
tilham um mesmo contexto, em um dado momento histórico, constituem um
próprio gênero narrativo (Wodak, 1989) que se expressa por meio do conteúdo
semântico e através da matriz ideológica do discurso. Dessas análises, emerge
uma forte intertextualidade nos diversos repertórios discursivos produzidos
em um mesmo contexto. Essa intertextualidade é implicitamente transversal
a propósito de todos os discursos produzidos no contexto empresarial.
Existe, então, uma forte correlação entre aspectos de conteúdo que unem
as várias produções discursivas em um comum denominador temático. A
estrutura linguística, em vez, difere dependendo do papel, do nível de ins-
trução e das experiências pessoais; isso confirma que uma mesma situação
dentro do mesmo contexto produz uma representação parecida da realidade,
cuja formulação muda dependendo do interlocutor. Portanto, o conteúdo pode
ser isolado a respeito do grau de interdiscursividade nas várias entrevistas,
apesar de estilos comunicativos muito diversificados.
Em particular, o mundo do trabalho torna-se uma forma reguladora da
vida social, gerando papéis pré-construídos. Os contextos de trabalho, apesar
de alegar margens de ação para definição contextual mais flexível, apresenta,
igualmente, um conjunto de parâmetros normativos, idealmente funcionais
para maximizar a produtividade (em termos de lucro e impacto comercial) da
própria especificidade profissional. Portanto, os hábitos do trabalhador e da
trabalhadora preveem, por definição, um específico habitus de gênero, que,
muitas vezes, responde à lógica axiomática do dualismo sexual.
Fazem parte disso os gestos e os costumes, incluindo os mais efêmeros,
como produtos e objetos destinados para um ou outro dos dois macrocenários
dos gêneros.
Trecho 1: Sujeito 1

Sendo que tinha que vender um produto que fosse uma sombra ou outra
coisa, para alguns era oportuno ter uma identidade precisa, ou você é
homem ou é mulher.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 153

A dicotomização dos gêneros, de fato, não tem a ver somente com as


instituições totais ou, em geral, os contextos de elevado funcionamento nor-
mativo, mas com cada região de fachada da interação social. O dualismo
sexual, de fato, prevê que exista uma representação dos contextos de trabalho
que não respondem exclusivamente às lógicas econômicas (em sentido de
produtividade e, portanto, de lucro), mas também, e, sobretudo, às regras do
contexto. Isto é, aquele conjunto normativo de comportamentos, atitudes e
crenças difusas que criam ontologias hegemônicas de significados e, devido
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a isso, geram idealtipos de identidade. O que Van Dijk (2006) define como
prática retórica estereotipada, em geral, não emerge explicitamente do texto,
mas insinua-se implicitamente na estrutura do discurso e, então, no sentido
comunicativo. O significante xenófobo, por exemplo, na gíria jornalística, com
dificuldade será expresso através de precisas definições semânticas; pode ser
percebido somente através de um conhecimento compartilhado da estrutura
do texto. A ação simbólica, por isso, não se encontra dentro das palavras,
mas nas entrelinhas. Devido a isso, o sentido destes eventos discursivos pode
ser entendido somente conhecendo o contexto em que estes eventos foram
produzidos. A generização normativa que emerge do extrato acima é expressa
através de uma associação entre um determinado produto comercial, “uma
sombra”, e uma representação dicotômica dos gêneros: “uma identidade pre-
cisa!”. Retoricamente, essa correspondência ideológica é enfatizada pela
contraposição dos substantivos “homem” e “mulher”, lexicalmente expressa
por meio da dupla conjunção “ou-ou”.
Mas o sentido desse enunciado não emerge somente do significado
semântico. Este último, como ensinam Berger e Luckmann (1995), é sim
linguisticamente circunscrito, mas torna-se um ato de compreensão partilhada
quando se considera o contexto cultural em que foi produzido o enunciado. O
fato de que alguns produtos de consumo são generizados não está no artefato
em si — a “sombra” —, mas no valor simbólico atribuído para este objeto.
É, portanto, um costume e, assim, um hábito, que algumas práticas de decoro
fossem fortemente associadas a um universo de significados, declinados ao
feminino. A partir do momento em que a antinomia sexual foi reificada em
nível cultural, como construção simbólica monolítica “ou você é homem ou
você é mulher”, será excluída peremptoriamente qualquer outra Weltans-
chauung possível a respeito das representações dos gêneros.
Portanto, essa dicotomia e os seus reflexos, em todos os níveis da inte-
ração social, são definidos nem tanto ou, pelo menos, não somente, pelas
diretrizes linguísticas, mas pelo horizonte histórico em que se geram os even-
tos discursivos.
Torna-se compreensível para qualquer um que lê o extrato acima que
uma sombra é um objeto feminino e que, portanto, quem o vende deve ser
154

necessariamente identificável, como enfatiza mesmo a entrevistada, com uma


precisa afirmação de gênero. Especular a respeito da etiológica distinção dos
sexos é fruto de um processo de negociação simbólica, historicamente enrai-
zada e, portanto, socialmente legitimada (Bourdieu, 2010).
O próximo trecho, extraído da mesma entrevista, sujeito 3 disserta sobre o
seu atual trabalho como maquiadora em uma importante sociedade midiática.
Ela mesma enfatiza valores, como a tolerância e a paridade, que os profis-
sionais desse trabalho reservam para quem, muitas vezes, é ostracizado se

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inserido em outras panorâmicas sociais, ou seja, aquelas às quais a interlocu-
tora referiu-se anteriormente. A interlocutora qualificou-se como esteticista,
profissão correntemente afiliada à esfera feminina ou também homossexual
e, devido a isso, mais afim de seu percurso existencial.
Trecho 2: Sujeito 3

É um ambiente onde as regras existem, mas são só e somente regras de


trabalho, as pessoas são muitos elásticas, várias. É um ambiente bas-
tante livre, não tem uniformes, não tem estereótipos para respeitar, é um
ambiente muito permissivo, digamos, naquele aspecto me sinto a vontade.
Enfim, me senti muito bem em relação a outros trabalhos que fiz.

A inserção em uma categoria social pode condicionar as escolhas de deci-


sões no sentido afetivo e funcional. Viver como pessoa transgênera significa ter
que endereçar os próprios interesses profissionais em direção a destinos mais
corroborantes em relação à própria diversidade. É perceptível que transgêne-
ras(os) encontrarão dificuldade para achar um emprego em organizações de
trabalho como entidades públicas, bancos ou exercícios comerciais (Di Folco
e Marcasciano, 2001). O mundo do espetáculo, devido às suas características
anticonformistas, revelou-se, desde sempre, muito permissivo e tolerante a
respeito de estilos de vida em outros casos discriminados (Goffman, 1983). A
interlocutora enfatiza conceitos como tolerância e aceitação através da redun-
dância semântica (Van Dijk, 2006) de adjetivos de valor como “elásticas”,
“livre”, pronunciado com ênfase e com tom acelerado “muito permissivo”,
reforçado pelo advérbio qualitativo “muito”, prolongado na vogal final e o
adjetivo numeral “várias”. Sucessivamente a esses atributos, são contrapos-
tos os substantivos “uniformes” e “estereótipos”, que parecem caracterizar
contextos ecológicos mais convencionais: “em relação a outros trabalhos que
fiz”. O único sistema normativo ao qual esses ambientes referem-se são as
competências e as habilidades profissionais a respeito das quais uma pessoa
pode ser julgada: “são só e somente regras de trabalho”. Essa afirmação é,
por isso, determinada por um pleonasmo sintático dos advérbios “somente”
e “exclusivamente”, que Van Dijk (2006) considera das práticas linguísticas,
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 155

implicitamente estratégicas para conotar a comunicação de intencionalidade.


Essas planificações linguísticas implicitamente estratégicas nascem de espe-
cíficos processos cognitivos, conotadas de intencionalidade (Van Dijk, 2006).
A perspectiva sócio-histórica (Wodak 1989) e o modelo tridimensional
de Fairclough (2006) são particularmente sensíveis para a evidência de certas
recorrências linguísticas, não tanto em referência a funções cognitivas genera-
lizáveis, como em respeito ao contexto em que algumas posições semânticas
se repercutem para resultar intertextuais. O aspecto interdiscursivo institui-
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ria um verdadeiro gênero narrativo ou estilo discursivo, adotado por quem


compartilhou uma mesma situação social, enraizado dentro de específicas
diretrizes espaços-temporais (Fairclough, 2006; Wodak, 1989).
Foi decidido realizar uma entrevista com essa pessoa por tratar-se de um
caso muito particular que oferece reflexões sobre campos diferentes, pelo fato
de ter tido um filho antes de retificar o próprio sexo, pelo contexto geográfico
cultural monolítico e fechado de um pequeno vale e com peculiares estruturas
ideológicas, sociais e políticas. Como a entrevista aconteceu dentro do traba-
lho-família, a interlocutora referiu-se, mais de uma vez ao longo da narração,
ao assunto trabalho, um hábito, por muitas vezes, proibido para pessoas que
não respondem às lógicas heteronormativas do contexto social. Emerge, de
fato, da narração, que 40 anos atrás, em um contexto sociocultural como o do
Sul Tirol, para as pessoas homossexuais e, em geral, todos os atores que recu-
savam uma concepção heterossexista, o único emprego que podiam recobrir
era o da hotelaria, em particular, a profissão de cozinheiro.
Trecho 3: Sujeito 7

Para mim era aquilo que comecei também a fazer, a começar a fazer a
coisa de cozinheiro, porque cozinheiro, preciso dizer que, naquela época,
muitíssimos cozinheiros eram homossexuais. Podia-se dizer mais da maio-
ria, uma grande maioria dos cozinheiros de certos trabalhos, podia mesmo
dizer, com certeza, que, se não for homossexual, pelo menos é bissexual.

A interlocutora, falando da sua adolescência, conta a respeito das expe-


riências de trabalho, sobretudo das tipologias profissionais que ela, como
externa a uma concepção heteronormativa, podia recobrir. Entre estes, além
de trabalhar em fazendas agrícolas, existia a possibilidade de encontrar traba-
lho no âmbito da hotelaria. Em particular, o cozinheiro teria sido, segundo a
entrevistada, a figura principal associada à homossexualidade: “uma grande
maioria dos cozinheiros de certos trabalhos [...] se não for homossexual, pelo
menos é bissexual”. Essa escolha profissional teria apresentado, de fato, uma
alternativa a respeito do duro trabalho nos campos e, ao mesmo tempo, um
terreno avaliador a respeito da sua diversidade sexual: “comecei também a
156

fazer [...] a coisa do cozinheiro”. Como no trecho anterior, a entrevistadora


descreve essas dimensões de trabalho como particularmente abertas para
escolhas existenciais que transladam as representações sociais dominantes.
O que a interlocutora do trecho anterior definiu como um “ambiente bastante
livre”, descreve-se, nesta entrevista, como uma ribalta em que as acepções
identitárias consideradas transgressivas tornam-se modelos de comportamento
socialmente acreditados: “com certeza que, se não for homossexual, pelo
menos é bissexual”.

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Deduz-se, então, a partir de uma análise crítica das entrevistas, que as
narrações sobre a experiência de trabalho constituem um gênero discursivo
distinto e intertextual. Esta recorrência de significantes não se expressa tanto
pela reprodução de esquemas lexicais, característicos de uma determinada
narração, mas através das atribuições de sentido aos enunciados: um comum
momento de vida em que se articula uma específica semiótica, que, como
enfatizado por Fairclough (2006), mas também por Wodak (1989), emerge
de sistemas de valor sobre ordenados e circunscritos dentro de postulados
espaços-temporais. Tais atribuições de sentido insinuam-se, por isso, impli-
citamente, na narração, e o sentido pode ser percebido somente quando se
considera o contexto de interação (Van Dijk, 2006).
O próximo trecho vem de uma entrevista realizada com uma empregada
que trabalha na divisão administrativa de uma empresa que produz brinquedos
para crianças na periferia de Milão. A interlocutora, como na passagem ante-
rior, refere-se aos valores meritocráticos de uma cultura do trabalho que parece
adotar critérios de avaliação interessados exclusivamente nas habilidades
profissionais. Enquanto o contexto artístico-mediático do trecho precedente
foi descrito pela interlocutora como um clima que convalida a própria diver-
sidade, um contexto de empresa mostra diversas peculiaridades ideológicas.
Trecho 4: Sujeito 2

Tem um pouco de conflito entre pessoa e trabalho, porque no nível pro-


fissional me estima, mas, no nível pessoal, não apoia muito esta minha
escolha. Todavia, hoje em dia conseguiu aceitar minha decisão e há dois
anos e meio nossa relação se estabilizou.

A interlocutora enfatiza que existe um “conflito entre pessoa e trabalho”,


assumindo uma posição de desacordo a respeito do trecho anterior. Aquilo
que a entrevistada da passagem anterior descreveu com o enunciado “muito
elástico” agora se contrapõe por meio do adjetivo “pequeno” para enfatizar
a falta de separação entre trabalho e privado. Parece que os ambientes de
trabalho, também em um contexto macrourbano, refletem as categorias nor-
mativas e ideológicas do mais extenso panorama cultural. Yip (2008), a esse
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 157

propósito, dissertou sobre diferentes níveis de cidadania cuja dimensão íntima


não parece ser totalmente a respeito das experiências de trabalho da interlocu-
tora. A diversidade torna-se uma condição exagerada a respeito de qualquer
outro expediente da própria identidade, do momento em que o discurso “de
trabalho” resulta sobreposto ao “pessoal” (ibidem), como a entrevistada evi-
dencia por meio da redundância retórica do adjetivo “de trabalho”, ao qual se
contrapõe à dimensão “pessoal” na linha seguinte. O rendimento profissional
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desfruta de uma acepção positiva: “em nível de trabalho, me aprecia como


me aprecia em nível de trabalho”, enquanto a percepção a respeito da esfera
privada parece ser conotada de atributos negativos: “mas, no nível pessoal,
não apoia muita esta escolha”. Implicitamente, emerge o uso de um quiasmo
retórico, brincando com a inversão do predicado e do objeto acerca do con-
ceito de estima. Enquanto esta última está associada às suas competências
profissionais, a esfera privada fica relegada dentro das fronteiras ideológicas
do estigma dado.
Essa passagem demonstra como a posição de trabalho torna-se um
aspecto crucial para reivindicar e afirmar uma própria identidade, mas que
há esta carência, todavia, de expedientes como identidade de gênero ou per-
tencimento cultural. Além disso, há aspectos, muitas vezes enfatizados por
sistemas de crenças e conhecimentos, não somente do sentido comum, mas
também a respeito do panorama científico que difunde paradigmas focados
em questões de gênero:

A sua habilidade de identificar-se publicamente como transgênero no tra-


balho atrapalha o assunto social de sexo, categoria sexual e gêneros que
correspondem um ao outro, avançando assim a hipótese que as teorias
interessadas ao doing gender, como concebidas inicialmente, não respon-
dem adequadamente as suas exigências. (Connell, 2010, p. 33).

A socióloga estadunidense enfatiza no seu artigo a estrutura social,


sobretudo a cultura do trabalho, como particularmente sensível a manter um
dualismo de gênero. Reivindicar uma identidade que supera certos idealtipos
da vida social representa, ainda antes de tornar-se transgressão, uma quebra
da continuidade de significado.
Enfim, também outros circuitos de agregação comunitária ressentem de
semelhantes lógicas organizativas da vida social. A representação do dualismo
sexual é horizontalmente difusa nos sistemas de valor e nos conhecimentos
partilhados entre atores sociais, além de verticalmente distribuída ao longo
das hierarquias de poder e das estruturas simbólicas que regulam a ordem de
um campo social.
158

O significante do discurso: Relações e afetos

A respeito do primeiro nível de investigação, focado no estudo das supe-


restruturas simbólicas e normativas, a passagem analítica seguinte visou captar
os processos de interação que se desenvolveram nos contextos cotidianos.
Esses processos são observados nos seus aspectos relacionais e analisados em
relação ao posicionamento funcional e afetivo enraizado dentro de diretrizes
espaço-temporais específicas (Wodak, 1989).

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A abordagem sócio-histórica da CDA é particularmente interessada na
pesquisa daquelas recorrências na estrutura discursiva que se referem às dinâ-
micas de gênero e aos horizontes afetivos. Supõe-se, de fato, que possa existir,
em nível de redundância intertextual, uma mesma modalidade de estruturar
um discurso, se caso ele tenha sido produzido por atores que participam da
mesma situação social. O gênero narrativo que emerge dessas formas retóricas
institui um estilo discursivo particular, um gênero narrativo através do qual
se narra. Essas narrativas são modeladas, não somente pelas diretrizes sim-
bólicas, as quais dão sentido ao discurso, mas também pela processualidade
das ações cotidianas. Estas últimas geram fragmentos de realidade partilhada,
constantemente renegociada nos diferentes contextos de interação. Esse corpo
de conhecimentos, que são distribuídos nas circunstâncias situadas do interagir
cotidiano (Goffman, 1983), instituirá um gênero narrativo próprio somente
se o significado de um discurso consegue difundir um sentido negociado,
partilhado e, portanto, legitimado dentro de um campo social específico. As
análises neste nível farão emergir o significante do discurso, ou seja, a circu-
laridade entre áreas de significado e universos de sentido.
O centro de análise neste nível é constituído pelas modalidades de intera-
ção nos contextos situados, ou seja, naquelas situações sociais que se caracte-
rizam por uma forte acepção cotidiana. Se as análises do primeiro nível focam
na relação entre a gênese de um evento discursivo e as diretrizes simbólicas
que definem o sentido, na maioria das vezes implícito, nessa passagem, tor-
nam-se importantes os posicionamentos dos atores e o hábito comunicativo,
além das modalidades de interação para produzir um determinado enunciado,
negociado no aqui e agora.
O artefato linguístico, que, no primeiro nível, assumiu uma função mera-
mente formal — o sentido não está nos textos, mas entre os textos —, ocupa
um papel muito mais tangível: o sentido que ficava implícito entre as linhas
da primeira passagem metodológica é expresso, aqui, nas interações cotidia-
nas por meio do recurso em formas mais descritivas e plásticas dos eventos
narrados, como as metáforas e as alusões alegóricas.
Portanto, foi possível perceber o elemento interativo das produções tex-
tuais e como se constitui como a emblemática representação de um evento
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 159

discursivo complexo, mutável e situado. Essa propriedade da linguagem de


construir áreas de sentido, mas também significados semânticos, permitiu
a adoção da ferramenta Transana, a fim de organizar os discursos em áreas
conceituais em relação aos focos de análise.
Os focos de análise, portanto, foram organizados em três áreas concei-
tuais a respeito da interação entre atores sociais e entre eles e o contexto:

1. Interação como posicionamento físico e discursivo;


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2. Interação a respeito dos horizontes afetivos;


3. Interação a respeito das coordenadas espaço-temporais no
aqui e agora.

As perguntas da pesquisa buscavam compreender a representação social


e pessoal das pessoas trans em relação à própria identidade, que mudam
dependendo da situação de interação e do quanto ressente de diretrizes afe-
tivas, relacionais e funcionais, produzidas em nível dos posicionamentos no
cotidiano. Por meio das funções “associativas” do programa Transana, foi
possível isolar aqueles elementos constitutivos da produção discursiva que
ligam diferentes correntes semânticas, que são semelhantes na estrutura e
referidos às experiências afins em relação a contextos observados.
Os focos da análise foram, devido a isso, associados a específicas pala-
vras-chave que o software reconhece com base na afinidade semântica. Esse
procedimento analítico permitiu particularizar 387 porções textuais, entre
todas as entrevistadas, que se referem a específicos contextos de interação no
aqui e agora e modelos de representações de gênero ̶ do dicotômico ao pro-
cessual. Estes trechos narrativos que o programa etiqueta como clip (pode-se
chegar do extrato de transcrição diretamente à sequência da fonte mediá-
tica), dividem-se dependendo do grupo de palavras-chave que se quer colocar
em correlação.
Em nível de apresentação, além dos trechos mais significativos selecio-
nados do corpus das entrevistas, relata-se, em seguida, alguns achados do
programa com os relatórios e os gráficos em forma de histogramas. A reflexão
analítica que caracteriza principalmente esse nível é dada pelo contexto, o qual
se supõe ter uma função determinante na definição de uma própria identidade
generizada. O que interessa, neste nível de análise, são, de fato, as regiões de
fachada (Goffman, 1983), ou seja, aqueles momentos e os lugares de inte-
ração nos quais se geram determinadas representações da realidade. Além
da visualização gráfica, o software elabora um relatório, isolando porções
de texto associadas a palavras-chave específicas. As temáticas-chave foram
definidas conforme o contexto e a situação social, que denota um fragmento
comunicativo de um sentido partilhado.
160

Portanto, essas temáticas de investigação estão articuladas ao redor de


aspectos relacionais (afeto, relação com o outro significativo), funcionais
(gestão do contexto de trabalho) e reguladores (conjunto de regras organiza-
tivas e funcionais).

1. Situação: estrutura — função — organização (62 porções de texto).


Representa o frame estrutural e funcional em que se geram as intera-

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ções no hic et nunc. Engloba todos os níveis de interação (do micro,
cotidiano, ao macro, cultura). A situação, descrita por Goffman
(1983) como uma “região de fechada” atuada nos lugares da vida
cotidiana, e, por Bourdieu (2010), como campo social, representa o
conjunto das acepções estruturais e funcionais em que estão enrai-
zadas as realidades pessoais e coletivas. O frame da situação pode
ser de natureza material (geográfica, arquitetônica) ou simbólica
(esquemas de ação e comportamento).
2. Experiência: vivida — direta — meditada (83 porções de texto). No
cotidiano, as regras de interação dos níveis macro e micro tornam-se
rotinas, ou seja, esquemas de ação cristalizados. Devido a isso, eles
são negociados, refinados e, portanto, redefinidos constantemente
nos processos de interação entre o self e o outro. A experiência a
respeito do self, da vida social e do contexto articula-se entorno do
grau de afiliação a respeito de uma determinada situação social. A
experiência, mais que o nascimento de práticas de aprendizagem
cognitiva, desenvolve-se em um constante posicionamento entre
o self e uma particular realidade para produzir um conhecimento
legitimado e compartilhado. Na língua francesa, o morfema que
expressa o conceito de conhecimento é representado pelo verbo
“connaître”, isto é, “conhecer” e, portanto, provar em interação.
3. Afeto: relacional — íntimo — parental (124 porções de texto). As
modalidades de conhecer o self, o outro e o contexto dependem do
investimento emotivo que se cria nas relações com a alteridade. Por
meio da afetividade, que influi nas tomadas de decisões e na defini-
ção da situação, podem-se criar mapas ontológicos que adquirem um
significado pessoal e íntimo e, portanto, emotivamente significativo.
Vygotsky (1990) dissertou sobre as áreas do desenvolvimento proxi-
mal em que as pessoas aprendem a respeito da proximidade emotiva
que o objeto conhecido assume para elas. O gênero, segundo essa
perspectiva, constrói-se nas interações com o outro significativo:
primeiramente, os pais e, logo em seguida, os colegas, as escolhas
íntimas, os modelos de representações, os colegas de trabalho etc.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 161

Gráfico 1 – Histograma das categorias semânticas elaboradas pelo Transana

0:00 10:00 20:00 30:00 40:00 50:00 55:51

Nota: acima: afeto, no meio: experiência, abaixo: contexto.


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Nos contextos de trabalho, a componente funcional e estrutural do frame


torna-se decididamente secundária. As regiões de fachada observadas neste
nível de análise, apesar dos campos sociais em que tomam forma, diferenciam-
-se tanto pela peculiaridade dos contextos individuais quanto pelas regras e
pelos decoros que os definem. De fato, o que frequentemente emerge da análise
da estrutura não sempre corresponde com o que surge da interação no aqui e
agora; muda-se o frame espaço-temporal, muda-se o sentido da interação e,
portanto, o significado atribuído a determinados procedimentos discursivos
dentro de uma situação social definida no aqui e agora.
O contexto de trabalho, caracterizado mesmo pela sua constância coti-
diana, é, muitas vezes, um gerador de relações e compartilhamento de afeto.
O próximo trecho traz a experiência de uma mulher trans de Milão na empresa
de gestão familiar em que, há anos, trabalha no setor administrativo.
Trecho 5: Sujeito 2

Se criou uma relação, não que aí você é um número, você é, de qualquer


forma, uma pessoa, dá risadas, brinca. Naqueles dez minutos, você con-
versa sobre como foi, como não foi e o que você fez, o que você não fez.
Então, de qualquer forma, se criou uma relação familiar, familiar, como
lhe dizia antes, no curso, de qualquer forma, destes oito anos, e mudaram
tantas coisas, então, eles também me viram mudar, o meu impacto sobre
eles mudou.

Textualmente, esse trecho, diante do anterior, é muito rico de conteúdos,


de significados que emergem semanticamente. Percebe-se que a interlocutora
articula seu discurso em torno de exemplificações episódicas para comunicar
a cotidianidade de um contexto de direção familiar, em que se entrecruzam
aspectos funcionais e pessoais. Ela sublinha a estreita confiança entre pares
desde o momento em que as dimensões da empresa são contidas, favorecendo
um clima acolhedor: “se criou uma relação, não que aí você é um número”.
O lexema “número” é associado a alguma coisa de abstrato, superordenado
e, assim, pouco cotidiano.
O afeto entre as pessoas envolvidas nesta ribalta profissional emerge do
componente pessoal no qual é conotado o próprio papel funcional na empresa:
162

“você é, de qualquer forma, uma pessoa”. Portanto, a personificação do pró-


prio status de trabalho favorece uma representação do contexto associado
a dinâmicas não inscritas às interações familiares: “se criou uma relação
familiar”. Esse clima íntimo gerou-se na continuidade e na constância de
uma interação prolongada no tempo: “no curso, de qualquer forma, destes
oitos anos”.
A expressão “de qualquer forma” alude a uma condição necessária, ou
seja, um princípio regulador — o tempo — na definição de relações signifi-

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cativas. Então, o tempo é uma constante, que define, na rotina cotidiana, os
posicionamentos entre agentes e contextos. Tal rotina emerge da repetição de
pequenas práticas de interação, caracterizadas por um pré-formato (Schegloff,
1991) de decoros discursivos, como os roteiros de uma peça teatral. Fazem
parte expressões cerimoniais como o cumprimento e as comuns perguntas
de abertura de um ato de conversa: “você dá risadas, brinca. Naqueles dez
minutos, você conversa sobre como foi, como não foi”. A mesma forma dis-
cursiva remete a recorrências expressivas, fundamentalmente sem conteúdo,
e o próprio significado é somente ínsito no próprio processo de um interagir
em curso. O conjunto destas práticas comunicativas e de posicionamento,
mesmo na reiteração cotidiana, gerou um clima de conhecimento recíproco
e, portanto, a aceitação de uma mudança tão forte como a transição entre os
gêneros. A interlocutora evidencia o tríplice significado das representações
— neste caso, a mudança de gênero — ou seja, as representações da situa-
ção: “mudaram tantas coisas”, a representação do self: “então, eles também
me viram mudar” e, enfim, a representação do outro: “o meu impacto sobre
eles mudou”.
Neste nível de análise, pode-se notar o quanto as interações no cotidiano
investem em significado afetivo e subjetivo nos processos discursivos pro-
duzidos nestes contextos. Um mesmo procedimento, visto do alto do quadro
superordenado como a expressão de uma norma, torna cotidiano um elemento
de mediação entre atores sociais que não só compartilham um mesmo con-
texto, mas o vivem. A interação torna-se um momento de vida pessoal que
vê envolvidos todos os atores que fazem parte daquele contexto. Neste nível,
assumem particular relevância as ligações com o outro significativo e o valor
do tempo que se exprime por meio das ações e dos afetos.
As hierarquias dos papéis e dos status são sim tangíveis, legitimadas e
conotadas a um preciso valor simbólico, mas, todavia, passam em segundo
plano em relação às exigências que se criam no hic et nunc. Considera-se que
a representação do outro é mediada por aspectos funcionais no contexto e nas
interações e o poder, que, ao invés de ser superestruturado, torna-se parte inte-
grante da vida cotidiana. Sua função, mais que simbólica, torna-se pragmática.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 163

Este segundo nível de análise foi centrado no processo do discurso no


hic et nunc. A narração, como emergiu das análises, é um falar na interação,
ou seja, um ato discursivo conotado de sentido partilhado, em que o con-
junto de significados, gestos e posicionamentos produzem os significados da
ação situada.

Discussão
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A pesquisa, objeto do presente estudo, foi focalizada sobre a construção


social, cultural e, enfim, linguística das identidades de gênero. Três aspectos,
em relação dialética, que delineiam as fronteiras de um construto de identi-
dade, e que, nos contextos observados, respondem a uma Weltanschauung,
baseada na distinção de hábitos individuais e coletivos em categorias predefi-
nidas de significado. Trata-se de áreas de sentido, que circunscrevem sistemas
de crenças e representações em sintonia com as diretrizes simbólicas do con-
texto. O contexto pode ser considerado um campo social em que são gerados
discursos partilhados e idealtipos legitimados — reflexos simbólicos que se
manifestam por meio de práticas e esquemas de ações (Bourdieu, 2010). O
gênero é um conjunto de hábitos, de crenças, de interações que desenham,
de uma parte, uma representação social e, de outra, uma representação do
self, aninhadas dentro de horizontes de significados declinados no feminino
ao invés do masculino.
Por meio do conceito de fazer gênero, as abordagens feministas de tipo
pós-moderno (Scott, 1995; Fenstermaker, West & Zimmerman, 2002) particu-
larizaram, de fato, um processo psicológico e cultural, replicado e, portanto,
afirmado nos diversos cenários do interagir social. Na especificidade dessas
situações sociais (Suchman, 1987), as regiões de fachada da vida cotidiana
(Goffman, 1983) tomam forma de sistemas de conhecimento distribuído,
modelados e remodelados dentro de um posicionamento constante entre agen-
tes que negociam significados, representações e valores no hic et nunc. A
análise tridimensional das modalidades de interação evidenciou o quanto a
construção dos gêneros em nível psicológico e a representação dos sexos em
nível social ressentem do efeito de uma estreita interseccionalidade, mais do
que interdependência, entre variáveis que pertencem a diversos níveis da reali-
dade dos eventos sociais: o construcionista, o interacionista e o sociocognitivo.
Para responder à pergunta da pesquisa, ou seja, compreender o quanto o con-
texto, a situação social e a linguagem definem uma representação dicotômica
do isomorfismo sexo-gênero, foi escolhido o contexto do empreendedorismo,
caracterizado por uma organização social e simbólica peculiar.
O estudo da tessitura normativa e cultural, da qual são impregnados
implicitamente os modelos discursivos (Fairclough, 2006), descreve um
164

aspecto particular que constitui a gênese dos processos de significação, isto


é, um sistema de práticas e ritos que delineiam as fronteiras simbólicas de
um determinado campo social. Este último funciona como parâmetro regu-
lador, ou seja, como estrutura estruturante, para retomar Bourdieu (2010),
com o fim de legitimar um conjunto de hábitos negociados e partilhados que
produzem um sentido de pertencimento a uma coletividade mais ampla. No
entanto, a vida social não ressente só do efeito da estrutura cultural com os
seus hábitos simbólicos, mas também da negociação constante e concreta

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desses procedimentos em nível da interação cotidiana, dos contextos no aqui
e agora, das práticas que se desenvolvem cada dia, como a relação com os
atores sociais significativos — familiares e amigos —, como também com o
outro generalizado — parceiros, funcionários, colegas etc.
O sistema de significados superordenados, a que interessa uma aborda-
gem sociocultural (Fairclough, 2006), evidencia somente em parte como a
gênese de discursos reproduz implicitamente sistemas de significantes legiti-
mados e institucionalizados. O sentido no discurso nota-se no próprio signi-
ficado mediado no momento da interação (Goffman, 1983). Assim, não só o
presídio como instituição total, mas também o trabalho e a família, delineiam
hábitos, nos quais tomam forma aquelas regiões de fachada da vida cotidiana
que derivam da complexa interdependência entre sentido abstrato (a norma)
e significados concretos (posicionamentos no aqui e agora).
A própria organização é sim culturalmente definida e o trabalho repre-
senta uma garantia para o funcionamento e a gestão da ordem social, em nível
de interações cotidianas, a da acepção implícita. Advinda de suas estruturas
simbólicas, torna-se apócrifa, quando o sentido atribuído aos eventos cotidia-
nos tem uma função pragmática e afetiva, fluída e processual.
Esse jogo de negociação constante entre esquemas de representações
socialmente compartilhadas e ações conotadas de sentido subjetivo produz
realidades individuais e coletivas, tornadas acessíveis por meio da gênese de dis-
cursos. Estes últimos são, por um lado, práticas de interações, como os sistemas
de poder que criam hábitos sociais e culturais (Bourdieu, 2010), enquanto, por
outro lado, submetem-se a uma ordem pragmática que se produz e reproduz na
interação entre sistemas de significados simbólicos, culturais e normativos (Fair-
clough, 2006) e patterns de organização psicológica e mental (Van Dijk, 2006).
A estrutura desses patterns, isto é, esquemas de planificação ideativos,
traduzem-se na ótica de uma abordagem sociocognitiva em ações institucio-
nalizadas e legitimadas por um aparato de comunicação, codificado por meio
de nexos lógicos e partilhados (ibidem). Esse universo de sentido, expresso
por meio de áreas de significação lexical e semanticamente circunscritas,
produz narrações, ou seja, repertórios discursivos, linguisticamente reificados
(Berger & Luckmann, 1995).
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 165

Nessa perspectiva, sexo, gênero, cultura, papel ocupacional, rede social


e valores afetivos emergem de uma interação tridimensional entre sistemas
de valores, posicionamentos cotidianos e processos psicológicos. A constante
influência recíproca desses procedimentos um sobre o outro reifica a ação
fluida e situada em dimensões quase fatuais e, por isso, conotadas de uma
concretude não empírica, mas tornada plástica na construção de sistemas de
crenças e de modelos de atitude coletivamente partilhados. O que confere ao
entrelaçamento das interações simbólicas um caráter tangível é a produção de
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discursos e narrações que descrevem momentos de vida, emoções, percepções,


afetos e lembranças.
Em consonância com os objetivos da pesquisa, foi investigada a gênese,
a estrutura e a função de um discurso generizado. Através de um uso estraté-
gico da linguagem, os sujeitos entrevistados conseguiram fazer gênero além
das lógicas binárias e unilineares que geralmente intercorrem entre sexo e
gênero. A transgeneridade, a transexualidade e o travestismo difundidos em
muitos países europeus e das Américas (Connell, 2010; Fenstermarker, West
& Zimmerman, 2002) refletem sistemas de sentido, interiorizados em nível
subjetivo por meio de uma tentativa de desestruturar a hegemônica represen-
tação antinômica dos sexos. Porém, estes últimos, sendo discursos e, então,
geradores de significados e significantes, ressentirão inevitavelmente dos
sistemas de crenças, os quais têm uma difusão mais ampla e, assim, de um
grau de legitimidade socialmente mais acreditado.
Contudo, o discurso, sendo linguisticamente delineado, cumpre uma
função reificante, visto que relega universos de significados dentro de preci-
sas diretrizes estruturais e normativas. Desse modo, do momento em que os
gêneros nas línguas neolatinas são definidos lexicalmente, as fronteiras que
semanticamente traçam os limites ontológicos do saber serão declinadas para
uma representação ou feminina ou masculina da realidade social, cultural e,
enfim, pessoal.
Por isso, a transição torna-se não somente um percurso, ou seja, uma
passagem entre um polo a outro da dicotomia sexual, mas um processo de
significação, que é delineado por um pluralismo de procedimentos funcionais,
como a linguagem, ou afetivos, em referimento à frequência das interações
com os outros atores sociais, como também estruturais, ou seja, os universos
ideológicos e os sistemas de valor. A interseccionalidade dessas variáveis
forma um conjunto de práticas sociais, culturais e relacionais que geram
sistemas de representações e construtos de identidade.
A identidade de gênero, como a identidade de trabalho, nacional, rela-
cional, é definida por e se define por meio de uma constante interação entre
repertórios de sentido, circunscrito por significados relacionais simbolicamente
reificados (Scott, 1998; Wodak, 1989).
166

Dessa forma, produz-se uma argumentação para delinear as referências


estruturais, funcionais e simbólicas que situam os percursos de transição entre
os gêneros dentro de uma perspectiva científica que integra os tópicos de um
paradigma construcionista (Berger & Luckmann, 1995; Bourdieu, 2010) com
as referências metodológicas de uma abordagem interessada nas representa-
ções sociais (Jodelet, 2002).
Os contextos de trabalho estão caracterizados, ainda que com menor

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intensidade, por uma institucionalização das práticas, ações e modelos de
comportamento. Esses contextos demonstram uma organização pragmática e,
portanto, funcional em termos de produtividade e rendimento econômico por
um lado, enquanto, por outro, obedecem a uma ordem normativa que reflete
a estrutura simbólica de um campo social mais geral.
São muitas as pesquisas que se interessam por percursos de transição
e trabalho, sobretudo aquelas relativas às desigualdades de gênero que se
criam nas interações cotidianas nesses ambientes. Entre os vários estudos,
lembra-se um artigo de Connell (2010) que criticou o conceito de fazer
gênero, que, segundo a autora, tenderia a reificar a disparidade entre os
gêneros, além de enfatizar certos processos de exclusão e discriminação que
a comunidade LGBTQIA+ sofre frequentemente. Schilt (2006) evidenciou
o quanto os contextos de trabalho apresentam-se como sistemas generizados
que seriam conotados por acepções meramente masculinas ou femininas. Ela
falou sobre blue-colored occupations e woman professions, em que a tran-
sição de mulher para homem comportaria um aumento de status, expresso,
às vezes, por um aumento de salário mesmo naqueles contextos de trabalho
principalmente ocupados por homens. Os resultados do estudo de Schilt
forneceram a pergunta de pesquisa para esta parte específica, afinal, preten-
deu-se investigar o quanto varia a margem de agenciamento a respeito de
práticas de reivindicação da identidade que, muitas vezes, não correspondem
ao modelo dicotômico dos gêneros. As situações profissionais presentes nas
entrevistas ressentem de uma marcada generização, que, como presumido
por Schilt (2006), exige um claro posicionamento em direção a um ou outro
polo do dualismo sexual. Esse aspecto foi claramente descrito na entrevista
com uma transgênera de Milão (Sujeito 1) que afirmava exatamente que
“era oportuno ter uma identidade específica, ou você é homem ou você é
mulher” (ver trecho 1).
Emergiu, nesta pesquisa, que os contextos em que uma pessoa transgê-
nera encontra um emprego são aqueles mais afins em relação à identidade de
gênero exteriormente indicada (no comportamento, nos gestos, na roupa). As
transgêneras, que se representam por costumes e comportamentos identifi-
cáveis com uma construção social voltada ao feminino, trabalham naqueles
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 167

setores que, por tradição, são ocupados por mulheres, como esteticistas
(Sujeitos 1, 2 3 e 5) ou cabeleireira (Sujeito 4). Ao contrário, um transgê-
nero FtM (Sujeito 10) trabalha como mecânico na sua oficina para carros,
trabalho que, desde sempre, teve os homens como protagonistas. As únicas
pessoas trans que não se posicionaram em direção a um dos dois polos de
gênero (Sujeito 6 e 8) trabalham no setor do ensino particular e da empresa
imobiliária e, portanto, dentro de dimensões mais apartadas e reservadas.
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Elas mesmas enfatizaram o quanto o contexto social e cultural, percebido


como hostil, levou-as a tomar decisões pessoais e de trabalho o mais longe
possível da esfera pública.
Por muito tempo, o trabalho foi considerado um privilégio para as pessoas
trans, uma vez que as dificuldades de inserção social, por vezes, não previam
nenhuma possibilidade de empreender uma atividade socialmente reconhe-
cida. A prostituição representava, portanto, o único meio de sustento para
quem iniciava um percurso de transição de gênero (Di Folco & Marcasciano,
2002; Vidal-Ortiz, 2009). A autobiográfica Princesa (Farais de Albuquerque
& Jannelli, 1994) narra claramente o obstinado percurso de transição da pro-
tagonista para concluir o próprio projeto de vida, a sua profunda e autêntica
aspiração existencial.
Se, na Europa e na Itália, sobretudo a partir do decreto 164 de 1982, a
transgeneridade e a transexualidade tiveram uma maior visibilidade e, assim,
um maior reconhecimento, o destino de quem vive o próprio percurso de tran-
sição associado a uma situação de clandestinidade, o levará, até hoje em dia,
a ganhar o próprio sustento por meio de atividades ilegais, como a exploração
da prostituição ou do tráfico de drogas.
Uma das pessoas trans entrevistada (Sujeito 7) falou das situações difíceis
no Alto Adige (ou Sul Tirol, região no norte da Itália caracterizada por uma
forte presença da cultura e língua alemã) e a impossibilidade de ser integrada
na própria comunidade e rede social. No seu caso, o único trabalho que ela e
as outras pessoas que viviam uma experiência parecida naquela região podiam
exercer eram de profissões de hotelaria, setor em rápida expansão naquela
época no Sul Tirol. Hoje em dia, a mesma interlocutora, para fugir das difi-
culdades ligadas ao trabalho, assim como outras transgêneras entrevistadas,
criou a sua própria empresa familiar junto com o marido. Desse modo, mais
do que as escolhas pessoais, as competências, a ambição, ou os níveis de
instrução, o que mais pode influenciar na inserção no trabalho é pertencer a
uma ou outra categoria de gênero. O trabalho torna-se aparado de iniciação,
isto é, instância social, que desenha por meio de práticas, ritos, e modelos de
conhecimento o papel convencional usado por homem e mulher.
168

Conclusão

O objetivo da presente pesquisa consistiu em investigar as margens de


agenciamento a respeito das pessoas cuja reinvindicação da própria identi-
dade de gênero não corresponde ao binarismo da distinção tradicional entre
os sexos, ou seja, a respeito de como conseguem negociar a própria identi-
dade trans com as coordenadas socioculturais de contextos profissionais e
trabalhistas, ainda hoje hegemonicamente predominados por formas de poder

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heteronormativas e fortemente patriarcais.
Foi também analisado como as pessoas trans entrevistadas superaram
os limites dicotômicos naquelas línguas latinas, como o italiano e o portu-
guês, que preveem um posicionamento linguístico entre apenas dois gêneros
gramaticais e lexicais. De fato, ao contrário das línguas germânicas e anglo-
-saxônicas, como o alemão ou o inglês, não existe o gênero neutro e os sufixos
dos adjetivos e alguns advérbios precisam ser declinados ou ao feminino
ou ao masculino. Em português, por exemplo, uma mulher fala “obrigada”
enquanto um homem “obrigado”. Em italiano, ademais, também há o preté-
rito dos verbos compostos com o auxiliar ser (essere), que são conjugados de
forma diferenciada a respeito do gênero do falante. Uma simples expressão
como “Fui para Milão” é traduzida como “Sono andata a Milano”, se for
uma mulher, e “Sono andato a Milano”, se for um homem.
Pode-se observar como as representações de sexo e gênero, em grande
medida, dependem dos sistemas de crenças e dos respectivos hábitos que
definem os campos sociais. Portanto, a variabilidade dos repertórios discur-
sivos é modelada pelas práticas de interação entre atores e situação social. Os
agentes que interagem dentro de um contexto temporalmente circunscrito e
simbolicamente definido tenderão a produzir discursos que mostram peculiares
afinidades, seja de conteúdo ou de estilo.
O conjunto dessas diretrizes linguísticas delineia um gênero narrativo
conotado por uma forte interdiscursividade entre significados explícitos e áreas
de sentido transversalmente distribuídas ao longo das produções textuais. De
fato, a correlação de conteúdo do último nível de análise demonstrou como
as estruturas normativas são lexicalmente associadas a experiências pessoais
e práticas de interação no cotidiano.
Dentro de um mesmo contexto situado, geram-se representações da rea-
lidade coletivamente partilhadas, que produzem esquemas de ação discursi-
vamente legitimados. As representações, para além de ser linguisticamente
circunscritas, definem as fronteiras ontológicas que regulam os sistemas de
interação e as modalidades de posicionamento.
Tais sistemas, para além das acepções estruturais, funcionais e sim-
bólicas, são impregnados de valores relacionais e afetivos que denotam os
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 169

posicionamentos de sentido subjetivo. Por isso, as práticas discursivas assu-


mem um significado, ou melhor, um sentido de mediação entre atores que
partilham uma mesma situação social. O fazer e desfazer gênero, por isso,
ultrapassa a sua simples função de papel, tornando-se, ao invés disso, um
processo plural e circular entre aspectos sociais, diretrizes normativas e recur-
sos relacionais. Essas modalidades de estar em relação com o outro e com
o contexto influem na representação do tempo, do espaço e dos significados
atribuídos ao self e à realidade social.
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A análise do corpo textual demonstrou que as representações e os respec-


tivos discursos dependem das modalidades de interação entre pessoas trans
e domínio heteronormativo. Os posicionamentos entre essas duas realidades
sociais são circunscritos por precisas fronteiras linguísticas, legitimadas por
sistemas normativos e culturais que regulam as situações cotidianas. Por isso,
o discurso torna-se uma matriz de significações que foi estudada no que se
refere à sua função pragmática (como sistema de comunicação), social (como
sistema de interação) e cultural (como sistema de reificação simbólica). Desse
modo, a intertextualidade emerge da estreita interseção entre variáveis estru-
turais (léxico), contextuais (semântica) e também simbólicas (semiótica).
Como afirmado na introdução deste capítulo, o sentido não é inscrito no
texto, mas se forma entre os textos. Em uma ótica construcionista, a produção
de qualquer ação humana nunca é fruto de um processo individual e isolado,
mas o resultado de práticas de interação que definem e redefinem os significa-
dos atribuídos à realidade. Assim, um discurso não pode ser considerado como
evento individual, mas como um complexo enredo entre sentidos, significantes
e significados, aninhados dentro do tecido invisível da interação social.
170

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Capítulo 8
Trabalho e mulheres:
do mais ao nada — do formal ao (não) emprego
Gisele Dantas1
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Marina Maia2
Carla Antloga3

O Estado e suas políticas de bem-estar social possuem diferentes concep-


ções, interpretações e abordagens. O Estado de bem-estar social, que serviu
para proteção aos cidadãos, teve sua ascensão após a Segunda Guerra Mundial
e seu declínio com a concepção neoliberal, que objetiva uma inclinação mais
individualista (Cronemberger & Teixeira, 2015).
Para Chauí (2007), a sociedade democrática institui direitos no campo
social, ao criar direitos e/ou ampliar direitos existentes. No entanto, segundo
Bourdieu (2014), o Estado não é neutro e está a serviço dos dominantes, pois
há ideologia na função dele.
A dominação masculina, fruto do patriarcado, incutiu uma supremacia
entre gêneros que alcançou todas as instâncias relacionais humanas, inclusive
as subjetividades (Beauvoir, 1980; Bourdieu, 1999; Federici, 2017; Lerner,
2019). A hierarquia entre gêneros produziu descompassos significativos entre
os direitos dos homens e os das mulheres, refletindo, por exemplo, na situação
de maior vulnerabilidade social de mulheres em diversas sociedades.
Tendo em vista o desenvolvimento de políticas de bem-estar social e
proteção contra as vulnerabilidades de setores específicos e da sociedade
como um todo, um pacto global foi realizado pela Organização das Nações
Unidas (ONU) para este milênio. Esse pacto engloba uma agenda de desen-
volvimento sustentável contendo objetivos e metas a serem atingidos até 2030
(ONU, 2021). Dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS),
vários convergem para o alcance da redução das desigualdades de gênero,
entre eles o ODS 1, o ODS 4, o ODS 5, o ODS 8 e o ODS 10. Dessa forma,
são estabelecidas, na arena política, lutas pelos interesses hegemônicos e
contra hegemônicos, isto é, uma tensão entre uma ação estatal de políticas de
proteção social mais inclusiva ou não, de concentração ou distribuição dos
recursos nas sociedades.
1 Universidade de Brasília.
2 Universidade de Brasília.
3 Universidade de Brasília.
174

O ODS 5 declara a necessidade de se “alcançar a igualdade de gênero e


empoderar todas as mulheres e meninas”. Destaca-se que o grupo das mulheres
não se constitui como homogêneo — há diferenciações significativas de raça,
etnia, classe, geração, entre outras questões. Nesse sentido, políticas locali-
zadas são necessárias. Está previsto, também nesse objetivo, “reconhecer e
valorizar o trabalho de assistência e doméstico não remunerado, por meio da
disponibilização de serviços públicos, infraestrutura e políticas de proteção
social, bem como a promoção da responsabilidade compartilhada dentro do

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lar e da família, conforme os contextos nacionais”.
Além da violência estrutural, que impacta significativamente as meninas
e as mulheres, há necessidade de se considerar os dados de outras violências,
que vulnerabilizam as condições de vida, inclusive a inserção acadêmica e
econômica. Esse aspecto também está contido no ODS 5, que consiste em
eliminar todas as formas de violência, de discriminação e práticas nocivas
contra todas as mulheres e meninas, incluindo o tráfico e a exploração sexual,
além de outros tipos de coações, como os casamentos prematuros, forçados,
de crianças e mutilações genitais.
Esses dispostos incluem o ODS 1, que versa sobre a perspectiva mais
ampla de distribuição dos recursos da sociedade, a necessidade da erradicação
da pobreza e de garantir que todos homens e mulheres tenham direitos iguais
aos recursos econômicos, acesso a serviços básicos, propriedade e controle
sobre a terra, herança, recursos naturais, novas tecnologias apropriadas e
serviços financeiros. Já o ODS 4 se direciona para a busca da inclusão, a eli-
minação das disparidades de gênero na educação, além de oferta da garantia
da igualdade de acesso a todos os níveis de educação e formação profissional
para os mais suscetíveis, o que inclui as pessoas com deficiência, os povos
indígenas e as crianças em situação de vulnerabilidade.
Incluindo a visão de meio ambiente e de sustentabilidade prevista de
modo relacionado nos objetivos, até 2030, estão previstos esforços para: a
redução das desigualdades; o empoderamento e a promoção da inclusão social,
econômica e política de todos; a garantia da igualdade de oportunidades,
independentemente de idade, gênero, deficiência, raça, etnia, origem, religião,
condição econômica ou outra situação. O ODS 10 prevê a eliminação de leis,
políticas e práticas discriminatórias e a promoção de legislação, políticas e
ações adequadas, bem como adoção de políticas fiscal, salarial e de proteção
social, entre outras.
O ODS 8, orientado para empregabilidade, dispõe sobre a promoção de
políticas orientadas para o desenvolvimento de apoio às atividades produtivas,
geração de emprego decente, empreendedorismo, criatividade e inovação,
incentivo à formalização e ao crescimento de empresas, acesso a serviços
financeiros e, até 2030, alcance de emprego pleno e produtivo e trabalho
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 175

decente para todos os homens e os segmentos não totalmente contemplados,


as mulheres, os jovens e as pessoas com deficiência.
Verifica-se que todos os objetivos propostos estão interconectados e bus-
cam ações integradas e coletivas no cumprimento das funções do Estado, com
enfoque para a redução das desigualdades de gênero. Para tanto, dependem dos
agentes públicos e da sociedade civil para o desenvolvimento e a ampliação.
Considerando a centralidade das questões de gênero para o desenvol-
vimento de políticas de bem-estar social, este capítulo tem como objetivo
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analisar a inserção das mulheres no mercado de trabalho, com foco nas garan-
tias e nas proteções sociais vigentes e comparar as legislações trabalhistas
de servidores públicos e de empregados da iniciativa privada com as das
empreendedoras individuais. Entende-se que a análise das legislações vigen-
tes é fundamental para compreendermos como garantir maior proteção para
mulheres, sobretudo para as empreendedoras no Brasil.

Vínculos de trabalho brasileiros

Dentre os tipos de vínculos trabalhistas no Brasil, dois tipos de legislação


trabalhistas regulamentam a relação contratual entre empresa e empregado,
estabelecendo direitos e deveres para as partes estabelecidas pela Constituição
Federal de 1988 e por leis da Justiça do Trabalho: o regime celetista e o regime
estatutário. O regime de trabalho celetista é regido pela Consolidação das Leis
do Trabalho (CLT), Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, composta da reunião
de leis da época. Já o regime estatutário é regido pelas legislações federais ou
estaduais, como a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, denominada de
Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União, a qual situa-se como refe-
rente para as legislações estaduais. Nele, estão regulamentadas as relações de
direito administrativo entre o Estado e prestadores de cargos públicos através
da regência de um ordenamento, instituído por lei, constituído pelo vínculo
legal mediante cargo público e suas prerrogativas.
A CLT rege as relações privadas entre empresas do mercado, empresas
públicas e sociedades de economia mista e é o regime amplamente adotado
pelo sistema privado do país, sendo o principal instrumento de regulamentação
das relações individuais e coletivas do trabalho.
O conceito de empregado está previsto no próprio texto legal. O Art. 3º
da CLT traz, de forma expressa em seu texto, que “considera-se empregado,
toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador,
sob a dependência deste e mediante salário”, caracterizado pela pessoalidade,
não eventualidade, salário e subordinação jurídica. Os reajustes salariais são
definidos através de negociação coletiva, embora, recentemente, tenha passado
a haver previsão de negociação individual para trabalhadores com ganhos
176

acima de dois pisos do INSS, conforme a reforma trabalhista de 2017. Nesse


regime, há acesso a um Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS),
que tem a função de uma poupança aberta para proteção em caso de demissão
por justa causa.
A maior desvantagem da carreira celetista se refere à aposentadoria,
que sofre redução salarial na previdência social e acréscimo de cinco anos
quanto à idade prevista para o benefício. A lei atual de 2019 prevê 65 anos
de idade e 35 anos de contribuição para homens e 62 anos de idade e 30 anos

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de contribuição para mulheres.
Entre as vantagens estatutárias para servidores públicos estão: a estabili-
dade após três anos de serviço na forma de estágio probatório (que determina
que somente há demissão do servidor público após o período estipulado em
ocorrências de crime contra a administração pública, por Processo Admi-
nistrativo Disciplinar); licença capacitação, maternidade, paternidade, por
adoção; aposentadoria com valor integral do salário; gratificações; acompa-
nhamento de pessoa doente na família e adicionais variáveis de acordo com
a legislação específica.
Como desvantagem, há necessidade de aprovação de lei para aumento
salarial. Caracteriza-se pela profissionalidade, pelo exercício efetivo de uma
atividade profissional ao desempenhar uma função pública, definitividade, pelo
caráter de permanência no desempenho das atribuições do servidor público
e existência de uma relação jurídica de trabalho entre o exercente do cargo
público e a entidade beneficiária da prestação dos serviços. Alguns direitos,
como a estabilidade, têm sido discutidos; porém trata-se de uma condição dos
serviços considerados essenciais ao Estado, fator que garante a imparcialidade
e a autonomia da gestão do serviço público.
O vínculo de servidor temporário, previsto de forma excepcional, tem
tido crescente contratação no quadro de pessoal da administração pública. Para
Carvalho Filho (2010), os servidores públicos temporários são uma forma
excepcional de contratação e enquadrados nos casos expressamente previstos
em lei. São um agrupamento especial dentro da categoria geral dos servidores
públicos. Isso ocorre porque a previsão normativa da contratação temporária
de servidores está prevista constitucionalmente em seu artigo 37, IX.
Os dois regimes desestimulam o afastamento ou o absenteísmo dos seus
servidores ou empregados, entretanto, a desproteção e as perdas de auxílios
(alimentação, transporte, creche) para os empregados (celetistas) é muito
maior que dos servidores (estatutários).
Os riscos para segurança psíquica dos trabalhadores não estão previstos
nos dois regimes, principalmente no setor terciário, da área de serviços. A
legislação ainda caminha a passos lentos para o reconhecimento do nexo cau-
sal entre o adoecimento psíquico e o trabalho, pois há um sobrevalor sobre as
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 177

causas de adoecimento físico, concreto, mensurável, em relação ao psíquico,


invisível e não valorizado, mas tão incapacitante quanto doenças físicas.
Há uma grande restrição de doenças previstas em lei decorrentes do
trabalho que não abrange o real do trabalho. O foco da segurança do trabalho
está direcionado, essencialmente, para as condições de trabalho da indústria
e para a prevenção de acidentes de trabalho com foco no uso de dispositivos
de proteção, como Equipamentos de Proteção Individual (EPI).
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Comparação dos benefícios entre as legislações

Na vida moderna, o trabalho é central para a (sobre)vivência, porém,


as relações trabalhistas estão cada vez mais precarizadas. Há uma tendên-
cia de homogeneização dos regimes e reformas que deixam trabalhado-
res desprotegidos.
Aos trabalhadores celetistas, têm sido exigido tempo maior de contribui-
ção e apresentação de motivos para aviso prévio e demissão. Recentemente,
estipulou-se teto de aposentadoria, com perda dos benefícios e redução em
80% dos rendimentos. Ademais, não há estabilidade.
O mundo do trabalho atual tem uma radicalidade para interrupção do
período de trabalho, desconsiderando os vínculos e os laços de trabalho das
pessoas, os benefícios e a experiência nos rompimentos dos contratos. Em
caso de pensão, por exemplo, trabalhadores recebem somente 60% do total
dos rendimentos. Nos casos de afastamento por doença por mais de 15 dias,
há a suspensão do contrato de trabalho para o INSS, pois, pela interrupção,
deixa de ser empregado e tem suspensos os benefícios e há a redução dos
salários pelo teto. Existe uma tendência de negativa e corte dos benefícios
pelo sistema pericial nos atendimentos. Na maioria das avaliações, o serviço
pericial tem o seu funcionamento para contenção dessa demanda e uma visão
subjacente de busca de privilégios e de não trabalho, com prejuízos de uma
isenta avaliação e um reconhecimento das condições de trabalho.
Já os servidores regidos de modo estatutário contam com várias previsões
beneficiárias em lei, como afastamento para acompanhamento de pessoa da
família, afastamento para estudos, licença capacitação, gestante e licença
paterna com tempo maior, processo de readaptação após adoecimento, entre
outras. As contradições presentes nas diferenças de tempos não consideram
o fator humano. O tempo maior das licenças estatutárias favorecem os cui-
dados e a participação dos trabalhadores junto aos membros novos, idosos e
doentes e à família. Na Tabela 1, apresentamos uma comparação de direitos
trabalhistas fornecidos por meio da CLT e da Lei nº 8.112/90 para subsidiar
a proteção social dos trabalhadores.
178

Para inserir mais pessoas no modo de vida atual e no mercado de trabalho,


outros modos de colaboração precisam ser desenvolvidos, como por exemplo,
mais flexibilidade de tempo e períodos, jornadas adequadas às necessidades e
especificidades, visando um equilíbrio maior entre vida e interesses pessoais
e trabalho. Estudos apontam que, não somente o número de horas trabalhadas
não correspondem a uma maior produtividade, como têm evidenciado uma
correlação negativa/invertida (Gaspar, 2017).
As mulheres são as mais sobrecarregadas de trabalhos familiares e

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domésticos e do cuidado — culturalmente atribuídos a elas, o que dificulta
a conciliação entre o trabalho formal e o informal (Hirata, 2005; Kergoat,
2009). Para Cronemberger e Teixeira (2015), o Estado sempre se apoiou na
família, principalmente na parceria das mulheres, graças ao trabalho não pago
delas no espaço doméstico, mesmo em países de sistema de proteção social
mais complexo e protetivo. Com isso, o mercado informal e o empreende-
dor constituem modos de conciliação com as necessidades de cuidado e o
acesso à renda.
Fraccaro (2018) apontou a resistência da ocupação das mulheres nos
cargos de trabalho histórica e subjetivamente. Lerner (2019) evidenciou que a
participação das mulheres na vida pública foi cerceada nas sociedades ociden-
tais há quatro mil anos. A ascensão aos cargos de liderança ou chefia também
são bastante impeditivos para mulheres em função do trabalho doméstico
e reprodutivo.
Para Saffioti (1976), o mercado de trabalho sustenta-se sobre a mão de
obra excedente, que regula a empregabilidade e a remuneração de mulheres e
outros segmentos sociais, como negros, imigrantes, entre outros. São desen-
volvidos modos adaptados pelas mulheres para a conciliação das atividades.
Além disso, cada vez mais as empresas privadas têm estabelecido vínculos
com os trabalhadores de modo independente, como pessoa jurídica, o que
reduz os encargos trabalhistas usuais associados à CLT.
No período da pandemia, de 2020 a 2021, houve modificação da legis-
lação, que, favorável às empresas, permitiu a possibilidade de redução de
salário e de demissão e parcelamento da multa em 40% de abril a dezembro.
Comumente, o pagamento da multa, como o depósito do FGTS, é de 8%
mensal distribuído ao longo do ano.

Participação no mercado de trabalho formal

Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Con-


tínua (IBGE, 2019c), o número de mulheres no Brasil é superior, em 51,8%,
ao quantitativo de homens, 48,2%. Na Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (IBGE, 2019d), brasileiros, por autodeclaração, foram 42,7%
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 179

brancos, 46,8% pardos, 9,4% negros e 1,1% amarelos ou indígenas. As mulhe-


res passaram a ter um maior nível de instrução e essa trajetória escolar se
tornou desigual em função dos papéis de gênero pela entrada precoce dos
homens no mercado de trabalho.
Para o IBGE (2019a), a taxa de participação no trabalho aponta a maior
dificuldade de inserção das mulheres no mercado de trabalho. Os indicadores
utilizados no monitoramento do mercado de trabalho apontam para as desi-
gualdades entre homens e mulheres. A menor participação das mulheres no
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mercado de trabalho é influenciada pelo tempo de envolvimento no trabalho


não remunerado.
Na análise de sexo e raça, existe desigualdade entre mulheres e homens
brancos e entre mulheres e homens negros ou pardos. Em 2019, foi de 54,5%
a taxa de participação das mulheres com 15 anos ou mais de idade, enquanto
entre os homens essa média chegou a 73,7%.
O IBGE (2019a) identificou que a presença de membros crianças com
até 3 anos de idade no domicílio de pessoas de 25 a 49 anos impacta a deter-
minação da ocupação das mulheres no mercado de trabalho, mas não a de
homens, que é maior em qualquer situação; a diferença para as mulheres é
de 34,6 pontos. Nas famílias que possuem crianças nesse grupo etário, a pro-
porção de ocupação revelou-se de 54,6%, abaixo dos 67,2% das famílias que
não possuem crianças. Entre as mulheres, as negras ou pardas com crianças
de até 3 anos de idade têm os menores níveis de ocupação, em menos de
50% e, para as mulheres brancas, a proporção é de 62,6%. Para aquelas sem
a presença de crianças nessa faixa etária, os percentuais foram de 63% para
negras e pardas e de 72,8% para brancas.
O número de horas que os homens dedicam aos trabalhos domésticos
aumentou de 46% para 51%, porém o número de horas de trabalhos domés-
ticos das mulheres permanece o dobro do tempo (IBGE, 2018b). No Brasil,
em 2019, as mulheres dedicaram aos cuidados de pessoas ou afazeres domés-
ticos quase o dobro de tempo que os homens (21,4 horas versus 11 horas). As
mulheres negras ou pardas gastaram 22 horas semanais em 2019, ante 20,7
horas para mulheres brancas, enquanto, para os homens, não houve variação.
A maior desigualdade encontra-se representada na Região Nordeste.
Existe um acesso diferenciado ao serviço de creches e à contratação de
trabalho doméstico remunerado, por delegação das atividades de cuidados de
pessoas e/ou afazeres domésticos, sobretudo a outras mulheres, por mulheres
de estratos sociais com maiores rendimentos, o que impacta no número de
horas dedicadas aos trabalhos de cuidados, de 18,2 horas para 24,1 horas das
que não têm.
As mulheres ocupadas têm envolvimento em atividades de cuidados e/ou
afazeres domésticos, que impactam a forma de inserção delas no mercado
180

de trabalho pela necessidade de conciliação da dupla jornada entre trabalho


remunerado e não remunerado, o que as leva a ocupações em tempo parcial de
até 30 horas (⅓ delas), e, com isso, menor remuneração e oportunidades. Esses
índices são maiores entre as mulheres negras e pardas, com 32,7%, e 26%
para as brancas. As Regiões Norte, com 39,2%, e Nordeste, com 37,5%, apre-
sentaram as maiores proporções de mulheres ocupadas em trabalho parcial.
Há desigualdade de rendimentos do trabalho entre homens e mulheres,
menores nas Regiões Norte e Nordeste por serem rendimentos mais baixos e

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mais evidentes entre pessoas inseridas nos grupos ocupacionais como direto-
res e gerentes e profissionais das ciências e intelectuais, com diferença entre
61,9% e 63,6% ou 77,7%, ou pouco mais de ¾ do rendimento dos homens.
Nas Regiões Sudeste e Sul, as mulheres receberam 74,0% e 72,8% do rendi-
mento dos homens (IBGE, 2019a).
Já Sousa e Guedes (2016) avaliaram que, no Brasil, as relações de gênero
na divisão sexual do trabalho são assimétricas, bastante homogêneas, desi-
guais e desfavoráveis para as mulheres, não havendo muita heterogeneidade
entre as regiões.

Outros tipos de rendimento

Dados do IBGE (2021) apontaram que o aumento na taxa de desocupa-


ção foi registrado por oito unidades da federação, em 12%; logo, o índice foi
recorde na pandemia por toda a população, mas sobretudo para as mulheres.
No primeiro trimestre de 2021, a taxa de desocupação foi de 12,2% para
os homens e de 17,9% para as mulheres. Para as mulheres, a (re)inserção é
dificultada, apesar da escolaridade mais alta, em média, maior do que a dos
homens. Há mais rotatividade em função do tipo de ocupação temporária ou
pequena permanência no trabalho, uma constante reinserção, por conta do
mercado de trabalho e das responsabilidades com a casa.
Algumas famílias estão contempladas por políticas de transferência de
renda governamental federal, como o Programa Social Bolsa Família (PBF),
rebatizado como Auxílio Brasil, que se caracteriza por ser um rendimento
mensal habitual, no mês de referência, do Programa Bolsa Família, de transfe-
rência direta de rendimento com condicionalidades, de benefício para famílias
em situação de pobreza ou do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
(PETI), que tem como objetivo contribuir para a erradicação de trabalho
infantil no país, atendendo famílias cujas crianças e adolescentes com idade
inferior a 16 anos se encontram em situação de trabalho.
Outros tipos de rendimento podem vir de outros programas sociais ou
de transferências, como o rendimento mensal habitual, no mês de referência,
Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social (BPC-LOAS), que
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 181

garante um salário mínimo mensal à pessoa idosa, de 65 anos ou mais de


idade, ou à pessoa com deficiência incapacitada para a vida independente e
para o trabalho, sendo ambas impossibilitadas de prover sua manutenção ou
tê-la provida por sua família, pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS).
Está previsto também o seguro-desemprego, benefício integrante da
seguridade social, garantido pela Constituição Federal e que tem por fina-
lidade prover assistência financeira temporária ao trabalhador dispensado
do emprego, ou programa social de transferência de rendimento do governo
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federal, estadual ou municipal; doação ou mesada de não morador do domicílio


de rendimento recebido em dinheiro, sem contrapartida de serviços prestados,
de pessoa não moradora do domicílio e de pensão alimentícia, rendimento
recebido para manutenção dos filhos e/ou da pessoa, pago pelo ex-cônjuge,
de forma espontânea ou definida judicialmente.
Alguns benefícios estão centrados nas crianças e nas mulheres, enquanto
a maioria é geral, independentemente de sexo, gênero, raça, idade etc. Além da
violência estrutural, que impacta significativamente as meninas e as mulheres,
há necessidade de se considerar os dados de outras violências, que vulnera-
bilizam as condições de vida, inclusive a inserção acadêmica e econômica.

Mercado informal vs. empreendedorismo

A taxa de informalidade ficou em 53,3% no Nordeste e em 55,6% no


Norte — as únicas regiões que registraram taxa acima da média nacional de
39,6% (IBGE, 2021). Mesmo com uma significativa exclusão de um con-
tingente desempregado, mais mulheres adentraram o mercado de trabalho.
Com maior participação na vida social e econômica pelo acesso e aumento
da escolarização, o cenário tem se modificado. Novas gerações já nasceram
em um novo contexto, habituadas com as mudanças sociais e econômicas.
Empreendimento pode ser definido como a empresa, a instituição, a
entidade, a firma, o negócio ou o trabalho sem estabelecimento, desenvolvido
individualmente ou com ajuda de outras pessoas, como empregados, sócios ou
trabalhadores não remunerados, por um único, dois ou mais estabelecimentos
ou mesmo não haver local especificado (IBGE, 2014). Empreendedoras têm
tido acesso a maior apoio, profissionalização e reconhecimento com o surgi-
mento da opção de Microempreendedor Individual (MEI). Esse novo modelo
foi criado no final na década de 90, mas passou a vigorar com a sanção em
2008 (Sebrae, 2018) — uma política que visava a abrangência de uma par-
cela da população, pautada por uma inclusão financeira pelo maior acesso a
crédito e serviços bancários.
Além disso, estavam previstos direitos e benefícios previdenciários como
aposentadoria por idade, aposentadoria por invalidez, auxílio-doença, salário
182

maternidade, pensão por morte para família. Mesmo com menos direitos
assegurados pelo trabalhador empregado, o fato de ter acesso a um CNPJ e a
valores diferenciados para tributos poderiam ser mais favoráveis à atividade
econômica. O trabalhar por conta própria, o desenvolvimento e a formalização
de um negócio proporcionam um tipo de inclusão recente bastante positiva.
Entretanto, há limitações para enquadre como MEI, como, por exemplo,
a limitação de contratação de empregados, no caso, somente um, os critérios
de 20 anos de trabalho para homens e 15 para mulheres para aposentadoria,

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ausência de previsão por acidentes de afastamento por doenças ou acom-
panhamento. Outras limitações podem ser impeditivas da formalização em
função do cancelamento do cadastro, como o recebimento de algum tipo
de benefício previdenciário, do tipo salário-maternidade, o auxílio-doença,
o auxílio-idoso, a aposentadoria por invalidez ou o benefício de prestação
continuada da assistência social.
Em 2018, o Brasil teve a maior taxa de empreendedorismo total (38% ou
cerca de 52 milhões de pessoas) entre os países do BRICS, bloco do Brasil,
Rússia, China, Índia e África do Sul, segundo dados da Global Entrepre-
neurship Monitor (GEM, 2018). Na época, a oportunidade, mais do que a
necessidade, foi levantada como principal motivo para empreender, de acordo
com o Relatório de Empreendedorismo no Brasil (GEM, 2018).
De 49 nações, o Brasil foi identificado como o sétimo país com maior
número de mulheres empreendedoras (SEBRAE, 2019; GEM, 2021). Mulhe-
res empreendedoras brasileiras são 30 milhões, o que representa 48,7% do
mercado empreendedor, com crescimento de 40%, grande parte por necessi-
dade e não oportunidade, isto é, negócios menores que geram renda, mas que
são conciliáveis com os cuidados de casa.
Dados de 2020, a taxa de empreendedorismo total no Brasil caiu do 4º
lugar em taxa total de empreendedorismo no mundo para o 7º lugar, por estar
no menor patamar dos últimos oito anos, e caiu para 31,6%, o que representa
uma redução de 18,33% quando comparada com a taxa de 2019. A saída das
mulheres foi uma das responsáveis pela redução de mais de 18% na taxa de
empreendedorismo no Brasil em 2020, em função da mudança do perfil de
mulheres, da entrada de mais inexperientes e interrupção das que tinham mais
tempo de empreendedorismo por conta dos cuidados da casa e da família
(SEBRAE, 2021; GEM, 2021). Por outro lado, em dezembro de 2020, foram
registradas 1,49 milhão de novas formalizações de março a dezembro de 2020,
cerca de 11.316.853 de MEIs, um crescimento de 13,23%.
A pesquisa do IBGE (2014) revelou que o dobro dos empregadores
eram homens (1,1 milhão) e, em 2018 (IBGE, 2018), a taxa permaneceu a
mesma, 6% dos homens trabalhadores eram empregadores, enquanto a pro-
porção das mulheres ocupadas nessa posição era praticamente a metade, 3,3%.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 183

O rendimento médio dos empregadores também é maior e a categoria em


maior desigualdade no quesito sexo (IBGE, 2014). Também levantou que
a porcentagem de mulheres na posição de trabalhador familiar auxiliar é de
3,6%, caracterizada pelo não recebimento de salário — muito superior à dos
homens, de 1,5% (IBGE, 2018).
Grupos de escolaridade semelhantes tinham rendimentos desiguais, como
no comércio, homens com 11 anos ou mais de estudo ganhavam mais que as
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mulheres e muito mais nos trabalhos informais (IBGE, 2009; 2014). Krein e
Biavaschi (2015) apontaram que os obstáculos advêm das características da
dinâmica econômica e tendem a aprofundar a heterogeneidade e a segmentação
do mercado de trabalho no Brasil.

Conclusão

Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030


almejam esforços da sociedade em direção à erradicação da pobreza, educação
de qualidade, igualdade de gênero, trabalho decente e crescimento econômico,
redução das desigualdades, paz, justiça e instituições eficazes, entre outros.
O Estado e a sociedade civil organizada tendem a liderar as ações para o
fomento desses princípios.
As mulheres, sobretudo as mulheres negras, são um dos segmentos
sociais que, historicamente, foram mais vulnerabilizadas e necessitam, pois,
de políticas localizadas compensatórias que visem minimizar as desigualdades
de condições de vida, oportunidades de obtenção de renda monetária e acesso
a bens sociais, considerando, principalmente, as diferenças de raça, idade,
região e outras interseccionalidades.
A responsabilidade quase duas vezes maior por afazeres domésticos e
cuidados, pelo dobro do tempo, ainda é um fator limitador importante para
uma maior e melhor participação no mercado de trabalho, pois tende a reduzir
a ocupação das mulheres no mercado formal ou direcioná-las para ocupações
menos remuneradas, apesar de maior escolaridade (IBGE, 2014; IBGE, 2019).
O trabalho doméstico e de cuidados não é considerado nos indicadores como
trabalho produtivo e abrange muitas atividades de administração que não são
mensuradas, ou seja, que se constituem invisíveis.
A divisão sexual do trabalho privilegia segmentos da população em fun-
ção de uma desigual distribuição do tempo de vida entre os sexos/gêneros, por
meio de um sistema rígido e universalizante, em um mundo cada vez mais
complexo e de intensificação do trabalho. Ocupar uma parcela da população
com carga horária integral de até 44 horas semanais ou mais, em casos de
horas extras, frequente nos centros urbanos, além de manter uma parcela não
184

incluída e sem ocupação, impacta a qualidade de vida dos trabalhadores e dos


não empregados nos extremos.
Países desenvolvidos têm modificado a distribuição da carga horária
entre trabalho e horas livres a bem de toda a organização social. Mas apesar
da crescente visibilidade para as desigualdades, vivenciam-se lutas de concep-
ções e tendências contraditórias sob o regime capitalista, de mais para menos
protetivas, de reconhecimento ou não para os fatores impactantes nas vidas das

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pessoas. Ficou evidente que há mais proteção social na legislação do regime
estatutário do que no celetista, sobretudo para cuidados, como a maternidade.
Porém, há um permanente debate quanto à restrição dos direitos. A perspectiva
da promessa do capitalismo na visão neoliberal alimenta o sucesso individual
e a regulação do mercado, mas, para Loiola (2016), somente em detrimento
de um viver compartilhado essa perspectiva se modificaria, com mudanças
estruturais na organização mundial.
O conhecimento da realidade deste grupo por meio de indicadores é
essencial para a promoção de políticas públicas (IBGE, 2014) como acesso à
renda, à formalização e à disponibilidade de condições e horas para o traba-
lho formal e ao alcance do objetivo de adotar e fortalecer políticas sólidas e
legislação aplicável para a promoção da igualdade de gênero e o empodera-
mento de todas as mulheres e meninas em todos os níveis (ODS 5). Algumas
políticas têm sido pensadas ou desenvolvidas para minimizar essa divisão
de trabalho sexual e social, como criação de polos para reunião e formação
de mulheres, mas uma maior divisão dos trabalhos entre as pessoas é reque-
rida para maior justiça social e equidade de oportunidades e distribuição dos
recursos (Alcântara, 2019).
Há necessidade da ampliação de políticas sociais ao longo do tempo,
como políticas integradas, de oferta de creches e mais possibilidades no
mercado de trabalho, que permitam a distribuição de tarefas de cuidados
entre homens e mulheres, como tempo estendido de licença maternidade e
paternidade compartilhada para os cuidadores. Há países, por exemplo, que
concedem o dobro de tempo de proteção à maternidade. Tais políticas incre-
mentam as condições de vida da população, melhoram alguns indicadores
sociais das mulheres, mais especificamente na área da saúde e da educação,
porém encontram-se ainda insuficientes para serem colocadas em situação de
igualdade com os homens em outras esferas, como o mercado de trabalho, na
igualdade salarial e nos espaços de tomada de decisão (IBGE, 2021). Com o
conhecimento, o debate e o desenvolvimento de políticas gerais e localizadas,
poderemos alcançar a igualdade de gênero, empoderar as mulheres e meninas
(ODS 5) e cumprir com os compromissos para Agenda 2030.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 185

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Portal%20Sebrae /Anexos/GEM-Brasil-2009.pdf

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http://www.agenciasebrae.com.br/sites/asn/uf/NA/cai-participacao-feminina-
-no-empreendedorismo,eecb1729baf0a710VgnVCM100000d701210aRCRD
188
ANEXO

Tabela 1 – Comparação de direitos trabalhistas dos regimes de contratação brasileiros e outras legislações
Direito trabalhista MEI CLT Lei nº 8.112/90
Art. 19. Os servidores cumprirão jornada de trabalho
fixada em razão das atribuições pertinentes aos
De acordo com a Constituição Federal de 1988, a respectivos cargos, respeitada a duração máxima
Jornada de trabalho Autonomia dos horários de trabalho. jornada de trabalho de um trabalhador não deve do trabalho semanal de 40 horas e observados
ultrapassar 8 horas diárias e 44 horas semanais. os limites mínimo e máximo de 6 horas e 8 horas
diárias, respectivamente. (Redação dada pela Lei nº
8.270, de 17 de dezembro de 1991)

Hora extra Adicional por Serviço Extraordinário


Art. 59. A duração diária do trabalho poderá Art. 73. O serviço extraordinário será remunerado
ser acrescida de horas extras, em número não com acréscimo de 50% em relação à hora normal
excedente de duas, por acordo individual, convenção de trabalho.
Hora extra Não há previsão legal.
coletiva ou acordo coletivo de trabalho. Art. 74. Somente será permitido serviço
Acréscimo de 50% em relação à hora normal extraordinário para atender a situações excepcionais
de trabalho. Em caso de feriados e domingos, e temporárias, respeitado o limite máximo de duas
acréscimo de 100%. horas por jornada.

Poupança em casos de demissão sem justa causa.


Pode ser retirado em casos específicos. A empresa
deve depositar o equivalente a 8% do salário bruto Não há previsão legal em função da estabilidade do
FGTS Tem previsão de FGTS.
do trabalhador mensalmente. regime estatutário.
Em caso de rescisão sem justa, há acréscimo de
40% sobre o valor total do FGTS.
continua...

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continuação Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Direito trabalhista MEI CLT Lei nº 8.112/90
A estabilidade diz respeito às garantias para o
servidor no exercício do cargo público, não perderá
o cargo de forma imotivada.
Prevista somente para servidores públicos efetivos
Art. 21. O servidor habilitado em concurso público e
e empregados públicos celetistas contratados
empossado em cargo de provimento efetivo adquirirá
pela Administração Pública direta, autárquica e
estabilidade no serviço público ao completar três
fundacional, da União, Estados, Distrito Federal.
anos de efetivo exercício.
Não há previsão para Empresas Públicas e
Estabilidade Não há previsão legal. Art. 22. O servidor estável só perderá o cargo em
Sociedades de Economia Mista.
virtude de sentença judicial transitada em julgado
Exceção: haverá estabilidade em casos de
ou de processo administrativo disciplinar no qual lhe
empregados eleitos para sindicatos, eleitos para
seja assegurada ampla defesa.
CIPAS e casos de afastamentos previdenciários por
Mediante procedimento de avaliação periódica
acidentes e doenças relacionadas ao trabalho.
de desempenho, na forma de lei complementar,
assegurada a ampla defesa. (Emenda Constitucional
de 19/1998)
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real

Gratificação Natalina
13º Salário
Pago em duas parcelas. O valor é calculado
13º Salário Não há previsão legal. Art. 63. A gratificação natalina corresponde a 1/12
sobre a remuneração e as gratificações do ano
da remuneração a que o servidor fizer jus no mês de
correspondente.
dezembro por mês de exercício no respectivo ano.

Art. 76. Independentemente de solicitação, será


pago ao servidor, por ocasião das férias, um
Trabalhadores têm direito a 30 dias de descanso a
adicional correspondente a 1/3 da remuneração do
cada 12 meses trabalhados.
Férias Não há previsão legal. período das férias.
O valor das férias remuneradas tem um acréscimo
As férias poderão ser parceladas em até três
de 1/3 do valor da remuneração.
etapas, desde que assim requeridas pelo servidor, e
no interesse da administração pública.
continua...
189
continuação
Direito trabalhista MEI CLT Lei nº 8.112/90
190

Art. 207. Será concedida licença à servidora


gestante por 120 dias consecutivos, sem prejuízo da
remuneração. (Vide Decreto nº 6.690, de 2008)
Há possibilidade de prorrogação.
§ 1o A licença poderá ter início no primeiro dia
Há previsão de salário-maternidade, em que são
do nono mês de gestação, salvo antecipação por
necessários 10 meses de contribuição a contar do
prescrição médica.
primeiro pagamento em dia.
§ 2o No caso de nascimento prematuro, a licença
O salário-maternidade da microempreendedora
terá início a partir do parto.
individual será pago diretamente pelo Instituto
§ 3o No caso de natimorto, decorridos 30 dias do
Nacional do Seguro Social (INSS) e a contribuição
evento, a servidora será submetida a exame médico,
previdenciária devida pela MEI durante o
e, se julgada apta, reassumirá o exercício.
recebimento do salário maternidade será
A licença maternidade é de 120 dias, podendo § 4o No caso de aborto atestado por médico
descontada automaticamente do valor deste
Licença maternidade chegar a até 180 dias por meio de acordos e oficial, a servidora terá direito a 30 dias de repouso
benefício, referente ao mês inteiro em que ficar em
convenções coletivas. remunerado.
benefício.
Art. 209. Para amamentar o próprio filho, até a
Também podem ter direito ao salário-maternidade
idade de seis meses, a servidora lactante terá
o MEI do sexo masculino nos casos de falecimento
direito, durante a jornada de trabalho, a uma hora
da mãe (gestante), adoção ou guarda judicial para
de descanso, que poderá ser parcelada em dois
fins de adoção ocorrida a partir de 25/10/2013 (data
períodos de meia hora.
da publicação da Lei nº 12.873/2013), e a segurada,
Art. 210. À servidora que adotar ou obtiver guarda
nas hipóteses de parto natimorto, adoção e aborto
judicial de criança de até um ano de idade, serão
não criminoso.
concedidos 90 dias de licença remunerada. (Vide
Decreto nº 6.691, de 2008)
Parágrafo único. No caso de adoção ou guarda
judicial de criança com mais de um ano de idade, o
prazo de que trata este artigo será de 30 dias.
Licença de 5 dias corridos, podendo chegar a 20 Art. 208. Pelo nascimento ou adoção de filhos, o
Licença-paternidade Não há previsão legal. dias por meio de acordos e convenções coletivas a servidor terá direito à licença-paternidade de 5 dias
partir do nascimento. consecutivos.
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Em caso de demissão por justa causa, o seguro- O trabalhador pode solicitar quando é demitido sem
desemprego fica prejudicado como celetista, e MEI justa causa, de variação ao tempo de trabalho e Não há previsão legal em função da estabilidade do
Seguro-desemprego
entende-se que tem uma outra forma de renda, quantidade de parcelas, obedecendo a critérios pré- regime estatutário.
então não saca seguro-desemprego. estabelecidos pela legislação.
Todos os trabalhadores fazem jus ao vale-
transporte, podendo ser descontado até 6% do valor
da remuneração do trabalhador.
Decreto nº 10.854/2021 Decreto nº 2.880/1998
Art. 106. São beneficiários do vale-transporte, nos Regulamenta o auxílio-transporte dos servidores
termos do disposto na Lei nº 7.418, de 1985, os e empregados públicos da administração federal
trabalhadores em geral, tais como: direta, autárquica e fundacional do Poder Executivo
I — os empregados, assim definidos no Art. 3º da da União e altera o Decreto nº 95.247, de 17 de
Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo novembro de 1987.
Decreto-Lei nº 5.452, de 1943; Art. 1º O auxílio-transporte, de natureza jurídica
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real

II — os empregados do subempreiteiro, o indenizatória, e concedido em pecúnia pela


subempreiteiro e o empreiteiro principal, nos termos União, será processado pelo Sistema Integrado
do disposto no Art. 455 da Consolidação das Leis de Administração de Recursos Humanos (SIAPE)
Vale-transporte Não há previsão legal. do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, e destina-se ao custeio parcial de despesas
de 1943; realizadas com transporte coletivo municipal,
III — os trabalhadores temporários, assim definidos intermunicipal ou interestadual pelos servidores
no Art. 2º da Lei nº 6.019, de 1974; ou empregados públicos da administração federal
IV — os atletas profissionais, de que trata a Lei nº direta, autárquica e fundacional do Poder Executivo
9.615, de 24 de março de 1998; nos deslocamentos de suas residências para os
V — os empregados domésticos, assim definidos no locais de trabalho e vice-versa, excetuadas aquelas
Art. 1º da Lei Complementar nº 150, de 1º de junho realizadas nos deslocamentos em intervalos para
de 2015; e repouso ou alimentação durante a jornada de
VI — os empregados a domicílio, para os trabalho, e aquelas efetuadas com transportes
deslocamentos indispensáveis à prestação seletivos ou especiais.
do trabalho e à percepção de salários e os
necessários ao desenvolvimento das relações com
o empregador.
191

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Art. 107. O vale-transporte constitui benefício que


o empregador antecipará ao trabalhador para a
utilização efetiva em despesas de deslocamento
residência-trabalho e vice-versa.
Parágrafo único. Entende-se como deslocamento a
soma dos segmentos componentes da viagem do
beneficiário por um ou mais meios de transporte
entre a sua residência e o local de trabalho.
Art. 108. O vale-transporte é utilizável em todas
as formas de transporte público coletivo urbano
ou, ainda, intermunicipal e interestadual de caráter
urbano, estabelecidas na forma prevista na Lei
nº 12.587, de 3 de janeiro de 2012, operado
diretamente pelo Poder Público ou por empresa
por ele delegada, em linhas regulares e com tarifas
estabelecidas pela autoridade competente.
O auxílio é concedido em pecúnia aos servidores
(ocupante de cargo efetivo, cargo em comissão,
empregado público ou contratado temporário
vinculado a órgão da administração direta,
Benefício que pode ser concedido por meio de autárquica e fundacional), independentemente
Vale-alimentação Não há previsão legal.
acordos e convenções coletivas. da jornada de trabalho, desde que efetivamente
em exercício nas atividades do cargo, ou nos
afastamentos considerados de efetivo exercício, na
proporção dos dias trabalhados, salvo na hipótese
de afastamento a serviço com percepção de diárias.
Art. 68. Os servidores que trabalhem com
Adicional de São adicionais que podem ser concedidos a quem habitualidade em locais insalubres ou em contato
insalubridade e Não há previsão legal. trabalha em atividades de risco, insalubres ou permanente com substâncias tóxicas, radioativas ou
periculosidade periculosas. com risco de vida fazem jus a um adicional sobre o
vencimento do cargo efetivo.

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Não há previsão legal.


Para servidores, há o processo administrativo
Após a comunicação de desligamento pela empresa,
disciplinar que obedecerá o princípio do
o contrato permanece ativo por até 30 dias, com
Aviso prévio Não há previsão legal. contraditório, assegurado ao acusado a ampla
acréscimo de mais 3 dias por ano trabalhado,
defesa, com a utilização dos meios e recursos
limitado ao máximo de 90 dias.
admitidos em direito. (Constituição Federal, Art. 5º,
inc. LV e Lei nº 8.112/90, Arts. 143 e 153)

Concessões:
I — por um dia para doação de sangue;
II — pelo período comprovadamente necessário
para alistamento ou recadastramento eleitoral,
limitado, em qualquer caso, a dois dias;
III — por oito dias consecutivos em razão de:
Dispensa de prestação de serviço sem prejuízo
a) casamento;
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real

salarial em casos como: casamento (5 dias),


b) falecimento do cônjuge, companheiro, pais,
falecimento de parente próximo (cônjuge,
Dispensa de madrasta ou padrasto, filhos, enteados, menor sob
ascendente ou descendente, 3 dias), participação
prestação de trabalho Não há previsão legal. guarda ou tutela e irmãos.
em eleições como mesário ou quando for solicitada
em casos específicos Art. 98. Será concedido horário especial ao servidor
a presença em tribunal. Demais dispensas são
estudante, quando comprovada a incompatibilidade
reguladas por meio de acordos e convenções
entre o horário escolar e o da repartição, sem
coletivas.
prejuízo do exercício do cargo.
Art. 99. Ao servidor estudante que mudar de sede
no interesse da administração, é assegurada, na
localidade da nova residência ou na mais próxima,
matrícula em instituição de ensino congênere, em
qualquer época, independentemente de vaga.
Art. 59. § 1o — A remuneração mensal pactuada Art. 39, § 3º — Direito ao repouso semanal
Descanso semanal pelo horário previsto no caput deste artigo abrange remunerado, preferencialmente aos domingos, que
Não há previsão legal.
remunerado os pagamentos devidos pelo descanso semanal deve ser observado pela Administração Pública
193

remunerado e pelo descanso em feriados. Direta, Autárquica e Fundacional.


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194

Art. 7º, XV, CF — Prevê o direito ao repouso


semanal remunerado, preferencialmente aos
domingos, assegurando pelo menos um domingo de
descanso ao mês, um domingo para homens e dois
domingos para mulheres, conforme jurisprudência.
Art. 67 da CLT e Art. 1º da Lei nº 605, de 194 — A
duração do repouso semanal será sempre de 24
horas consecutivas.
Benefícios previstos para o(a) empreendedor(a): Trabalhadores estão assegurados pela Previdência Art. 183. A União manterá Plano de Seguridade
- Programa de Integração Social (PIS); Social, o que permite acesso a uma série de Social para o servidor e sua família.
- Pensão por falecimento do cônjuge/filho; benefícios pagos pelo Instituto Nacional do Seguro Art. 184. O Plano de Seguridade Social visa
- Pensão por falecimento dos pais; Social (INSS). dar cobertura aos riscos a que estão sujeitos o
- Pensão recebida por tutor de menor de idade, por servidor e sua família, e compreende um conjunto
morte do responsável; de benefícios e ações que atendam às seguintes
Benefícios previdenciários que serão cancelados: finalidades:
aposentadoria por invalidez, auxílio-doença ou I — garantir meios de subsistência nos eventos de
salário maternidade. doença, invalidez, velhice, acidente em serviço,
Benefícios assistencialistas que podem ser inatividade, falecimento e reclusão;
cancelados: seguro-desemprego, BPC-LOAS, II — proteção à maternidade, à adoção e à
Benefício do INSS Prouni, FIES, Bolsa Família etc. paternidade;
Para os dependentes: III — assistência à saúde.
Pensão por morte e auxílio-reclusão: esses dois Parágrafo único. Os benefícios serão concedidos
benefícios têm duração variável, conforme a idade e nos termos e condições definidos em regulamento,
o tipo do beneficiário. observadas as disposições desta Lei.
Carência para o auxílio-reclusão: 24 contribuições Art. 185. Os benefícios do Plano de Seguridade
mensais. Social do servidor compreendem:
Pensão por morte: na hipótese de o segurado estar I — quanto ao servidor:
falecido, na data de seu falecimento, obrigado por a) aposentadoria;
determinação judicial, a pagar alimentos temporários b) auxílio-natalidade;
a ex-cônjuge, ex-companheiro ou ex-companheira, a c) salário-família;
pensão por morte será devida d) licença para tratamento de saúde;
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pelo prazo remanescente na data do óbito, caso não e) licença à gestante, à adotante e
incida outra hipótese de cancelamento anterior do licença-paternidade;
benefício. f) licença por acidente em serviço;
• Duração de 4 meses a contar da data do óbito para g) assistência à saúde;
o cônjuge: h) garantia de condições individuais e ambientais de
- Se o óbito ocorrer sem que o segurado tenha trabalho satisfatórias;
realizado 18 contribuições mensais à Previdência ou II — quanto ao dependente:
- Se o casamento ou união estável tenha iniciado há a) pensão vitalícia e temporária;
menos de 2 anos antes do falecimento do segurado; b) auxílio-funeral;
• Duração variável conforme a tabela abaixo para o c) auxílio-reclusão;
cônjuge: d) assistência à saúde.
- Se o óbito ocorrer depois de realizadas 18
contribuições mensais pelo segurado e pelo menos
2 anos após o início do casamento ou da união
estável ou combinação de idades do dependente.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real

O benefício é devido até os 21 anos de idade, salvo


em caso de invalidez ou deficiência.
O Microempreendedor Individual (MEI) não Os estabelecimentos em que trabalharem pelo Decreto nº 977/1993
necessariamente perde os benefícios do Auxílio menos 30 mulheres com mais de 16 anos de idade Dispõe sobre a assistência pré-escolar destinada
Brasil. Se, mesmo após a formalização como MEI, terão local apropriado onde seja permitido às aos dependentes dos servidores públicos da
a família beneficiária continuar dentro do perfil de empregadas guardar, sob vigilância e assistência, os Administração Pública Federal direta, autárquica e
renda para recebimento dos benefícios do Programa seus filhos no período da amamentação. (Incluído fundacional.
Auxílio Brasil, não perderá o benefício. Eventuais pelo Decreto-lei nº 229, de 28 de fevereiro de 1967) Art. 7°. A assistência pré-escolar poderá ser
Auxílio-creche
perdas de benefícios estão relacionadas ao aumento § 2º — A exigência do § 1º poderá ser suprida por prestada nas modalidades de assistência direta,
de renda e contam com a regra de transição e não meio de creches distritais mantidas, diretamente ou através de creches próprias, e indireta, através de
com constituição de pessoa jurídica MEI. mediante convênios, com outras entidades públicas auxílio pré-escolar, que consiste em valor expresso
ou privadas, pelas próprias empresas, em regime em moeda referente ao mês em curso que o
comunitário, ou a cargo do SESI, do SESC, da LBA servidor receberá do órgão ou entidade.
ou de entidades sindicais.
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continuação
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196

Para atender essa previsão legal, o benefício poderá


ser negociado como outras formas de suprimento
de creches, por meio de acordos e de convenções
coletivas, amparados pela legislação.
Art. 81. Conceder-se-á ao servidor licença:
I — por motivo de doença em pessoa da família;
Licenças remuneradas:
II — por motivo de afastamento do cônjuge ou
• Licença-maternidade;
companheiro;
• Licença-paternidade;
III — para o serviço militar;
Licenças Não há previsão legal. • Licença para casamento;
IV — para atividade política;
• Licença óbito;
V — para capacitação; (Redação dada pela Lei nº
• Licença militar;
9.527, de 10 de dezembro de 1997)
• Licença médica.
VI — para tratar de interesses particulares;
VII — para desempenho de mandato classista.
Afastamento para servir a outro órgão ou entidade;
Não há previsão legal. A exceção é para exercer Afastamento para exercício de mandato eletivo;
Afastamentos Não há previsão legal. mandato eletivo. Em caso de prisão, o contrato de Afastamento para estudo ou missão no exterior;
trabalho é suspenso. Afastamento para participação em Programa de
Pós-Graduação Stricto Sensu no país.
O servidor será aposentado: (Vide Art. 40 da
Estão previstas aposentadorias especiais por
Constituição)
insalubridade, idade ou por tempo de contribuição.
§ 1º O servidor abrangido por regime próprio de
Previstas para o empreendedor: A lei atual (Lei de 13 de novembro de 2019) prevê
previdência social será aposentado: (Redação dada
a) Aposentadoria por idade: mulher aos 62 anos o mínimo de 65 anos de idade para homens e
pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019)
e homem aos 65, observado o tempo mínimo de de 62 para mulheres, associado ao mínimo de
Aposentadoria I — por incapacidade permanente para o trabalho no
contribuição de 15 anos para mulheres e de 20 anos contribuição de 35 anos para homens e de 30 anos
cargo em que estiver investido, quando insuscetível
para os homens, a contar do primeiro pagamento para mulheres. Outras previsões em processo de
de readaptação, hipótese em que será obrigatória a
em dia. Essa regra se aplica para aqueles que transição da lei.
realização de avaliações periódicas para verificação
começaram a contribuir para a Previdência a partir
da continuidade das condições que ensejaram a
de 13 de novembro de 20
concessão da aposentadoria, na forma
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19, data de publicação da EC nº 103/2019.
Há previsão na EC nº 103/2019 de regras de
de lei do respectivo ente federativo; (Redação dada
transição para os segurados que já contribuíam para
pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019)
a Previdência. O segurado que já contribuía para
II — compulsoriamente, com proventos
a Previdência antes de 13 de novembro de 2019
proporcionais ao tempo de contribuição, aos
poderá aposentar-se por idade quando preencher,
70 anos de idade, ou aos 75 anos de idade, na
cumulativamente, os seguintes requisitos:
forma de lei complementar; (Redação dada pela
I — 60 anos de idade, se mulher, e 65 anos de
Emenda Constitucional nº 88, de 2015) (Vide Lei
idade, se homem;
Complementar nº 152, de 2015)
II — 15 anos de contribuição para ambos os sexos.
III — no âmbito da União, aos 62 anos de idade,
A partir de 1º de janeiro de 2020, a idade de 60 anos
se mulher, e aos 65 anos de idade, se homem,
da mulher será acrescida em 6 meses a cada ano
e, no âmbito dos estados, do Distrito Federal e
até atingir 62 anos de idade em 2031.
dos municípios, na idade mínima estabelecida
Especificamente para esse benefício, mesmo que o
mediante emenda às respectivas Constituições
segurado pare de contribuir por bastante tempo, as
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real

e Leis Orgânicas, observados o tempo de


contribuições para aposentadoria nunca se perdem,
contribuição e os demais requisitos estabelecidos
sempre serão consideradas para a aposentadoria.
em lei complementar do respectivo ente federativo.
Auxílio-doença e Aposentadoria por invalidez: são
(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 103,
necessários 12 meses de contribuição, a contar do
de 2019)
primeiro pagamento em dia. É importante saber
§ 4º. Poderão ser estabelecidos por lei
que, em relação ao benefício auxílio-doença e
complementar do respectivo ente federativo
aposentadoria por invalidez, nos casos de acidente
idade e tempo de contribuição diferenciados para
de qualquer natureza ou se houver acometimento
aposentadoria de servidores cujas atividades sejam
de alguma das doenças especificadas em lei,
especiais.
independe de carência a concessão desses dois
benefícios.
Art. 230. A assistência à saúde do servidor, ativo
Há previsão legal de atendimento pelo SUS para ou inativo, e de sua família compreende assistência
Assistência à saúde Atendimento pelo SUS para toda a população.
toda a população. médica, hospitalar, odontológica, psicológica e
farmacêutica. Terá como diretriz básica o
197

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implemento de ações preventivas voltadas para a


promoção da saúde e será prestada pelo Sistema
Único de Saúde (SUS), diretamente pelo órgão
ou entidade ao qual estiver vinculado o servidor,
ou mediante convênio ou contrato, ou, ainda, na
forma de auxílio, mediante ressarcimento parcial do
valor despendido pelo servidor, ativo ou inativo, e
seus dependentes ou pensionistas com planos ou
seguros privados de assistência à saúde, na forma
estabelecida em regulamento. (Redação dada pela
Lei nº 11.302, de 2006)
§ 3o. Para os fins do disposto no caput deste artigo,
ficam a União e suas entidades autárquicas e
fundacionais autorizadas a: (Incluído pela Lei nº
11.302 de 2006)
I — celebrar convênios exclusivamente para a
prestação de serviços de assistência à saúde
para os seus servidores ou empregados ativos,
aposentados, pensionistas, bem como para seus
respectivos grupos familiares definidos, com
entidades de autogestão por elas patrocinadas
por meio de instrumentos jurídicos efetivamente
celebrados e publicados até 12 de fevereiro de
2006 e que possuam autorização de funcionamento
do órgão regulador, sendo certo que os convênios
celebrados depois dessa data somente poderão
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sê-lo na forma da regulamentação específica sobre
patrocínio de autogestões, a ser publicada pelo
mesmo órgão regulador, no prazo de 180 dias da
vigência desta Lei, normas essas também aplicáveis
aos convênios existentes até 12 de fevereiro de
2006; (Incluído pela Lei nº 11.302 de 2006)
II — contratar, mediante licitação, na forma da Lei
no 8.666, de 21 de junho de 1993, operadoras de
planos e seguros privados de assistência à saúde
que possuam autorização de funcionamento do
órgão regulador;

Fonte: Elaborado pelas autoras, baseado na legislação vigente.


Empreendedorismo feminino: um olhar para o real
199
200

Nota. Legislações de referência. A Lei Complementar nº 128/2008, que alterou


a Lei Geral da Micro e Pequena Empresa (Lei Complementar nº 123/2006),
criou a figura do Microempreendedor Individual (MEI), a Consolidação das
Leis do Trabalho (CLT), do Decreto-Lei nº 5.452/43 e da Lei nº 8.112/90,
regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das
fundações públicas federais, não considerando as alterações estaduais.

Nota. Os benefícios celetistas previstos são a remuneração pela prestação de

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serviço, o auxílio creche e o vale-transporte. Outros benefícios são concedidos
por meio de negociações de acordos e convenções coletivas.

Nota. No caso de MEI, com formalização antes de 1 de setembro de 2020,


está dispensado de alvarás e licenças de funcionamento, em função da Lei
da Liberdade Econômica. Celetistas podem ser MEI, mas não têm direito ao
seguro-desemprego. Servidores públicos federais não podem ser MEI, ser-
vidores públicos municipais ou estaduais devem verificar o seu estatuto para
analisar se há impedimento.
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Parte 3
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Capítulo 9
Contribuições da psicodinâmica do
trabalho para o empreendedorismo
realizado por mulheres
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Noemia de Morais Santos1


Carla Antloga2
Ronaldo Gomes-Souza3

Introdução

O conceito de Psicodinâmica do Trabalho (PdT) está presente na obra de


Cristophe Dejours, psiquiatra e médico do trabalho, responsável pela elabora-
ção de uma abordagem conceitual e metodológica testada empiricamente nas
mais diversas categorias profissionais, na França. Sua abordagem, considerada,
antes de tudo, uma práxis, refere-se à relação entre trabalho, saúde mental e
subjetividade (Dejours, 2011).
Tal práxis é composta pelo estudo da organização do trabalho e da inter-
-relação entre as dinâmicas de prazer e sofrimento que acontecem no contexto
laboral, e, apesar da dicotomia presente em seu pressuposto, está longe de ser
uma abordagem reducionista e cristalizante, pois ultrapassa os processos de
saúde-doença, visto que os objetos de estudo são os recursos que o trabalhador
mobiliza para realizar sua atividade (Duarte, 2014).
Para a PdT, o trabalho é central e estruturante não só da realidade, mas
dos modos de subjetivação (Dejours, 2011). Essa centralidade é responsável
pela definição dos diversos aspectos da vida cotidiana, pois é por meio da
atividade laboral que o sujeito vai se inserindo nas esferas sociais, econômicas
e afetivas.
Da relação com o trabalho, podem emergir sentimentos de prazer e/ou
sofrimento. Conforme apontam Oliveira, Nunes e Antloga (2020), a vivência
de prazer está associada à liberdade e ao reconhecimento, enquanto as vivên-
cias de sofrimento estão relacionadas à impossibilidade de se defender frente
aos aspectos negativos no âmbito laboral. Para Antloga et al. (2020), a pessoa

1 Universidade de Brasília.
2 Universidade de Brasília.
3 Universidade de Amazonas.
204

que trabalha é impelida a lidar com o real na realização das suas atividades.
Daí, surge uma diferença fundamental entre tarefa e atividade: a primeira é
sempre vinculada ao prescrito, ao que deve ser feito; a segunda vincula-se
ao real, à lida com os constrangimentos impostos pelo trabalho enquanto ele
está sendo desenvolvido.
É nesse sentido, devido ao seu caráter investigativo inter-relacional,
que a consistência epistemológica característica da PdT corrobora para a

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sua utilização na temática do empreendedorismo, fenômeno que consiste na
realização criativa e inovadora de projetos pessoais ou organizacionais, tendo
em vista os riscos e oportunidades (Baggio & Baggio, 2015).
Dejours (2017) reconhece que a centralidade do trabalho, hoje, abrange
5 dimensões: saúde mental, urbe, gênero, economia e epistemologia. Apesar
de enfatizar as relações sociais entre homens e mulheres (o gênero), o autor
não desenvolve outros caminhos que aprofundam essas relações para que
seja possível compreender o empreendedorismo realizado por mulheres.
Assim, percebe-se a presença de uma lacuna sobre como a teoria da PdT
pode alcançar a complexidade e a dinâmica das atividades do empreende-
dorismo feminino, ou como se articulam a organização do trabalho e seus
desdobramentos dentro da PdT, mais especificamente combinando gênero,
raça e classe social.
Portanto, objetiva-se, neste artigo, compreender o empreendedorismo
feminino, à luz da PdT feminino e de maneira interseccional, combinando
gênero, raça e classe social.

Livre Atividade

Para além da origem etimológica do termo Empreendedor, não há, atual-


mente, um consenso em relação a definição do termo que está presente na
literatura de maneira heterogênea (Dutra, Queiroz, Furukava, Costa & Silva,
2017). O empreendedorismo corresponde à criação e expansão de ideias inova-
doras, a partir de oportunidades identificadas em determinada atividade (Pinto
2016); isto é: fazer aquilo que é possível com as ferramentas disponíveis.
O ato de empreender é considerado, também, uma das mais relevantes
forças dinâmicas pelo Global Entrepreneurship Monitor (Reynolds, 2002).
O empreendedorismo pode ser entendido, ainda, como uma livre iniciativa
inserida no capitalismo, já que a motivação para empreender é o desejo de
liberdade e independência para com as estruturas convencionais de autoridade
e de geração de riquezas, além de desejos por autonomia, por expressar sua
própria criatividade, perseguir a inovação e ser seu próprio patrão (Rindova,
Barry & Ketchen, 2009).
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 205

Entretanto, para a Psicodinâmica do Trabalho (PdT), o discurso sobre a


suposta livre atividade é, em grande parte, falacioso: a promessa de liberdade
não se cumpre e os trabalhadores tornam-se chefes de si mesmos, internali-
zando um ideal de potência que não depende apenas de questões individuais
para ser cumprido.
Antunes (2015) destaca que o empreendedorismo tem se configurado
como uma forma disfarçada de trabalho assalariado, visto que o neolibera-
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lismo, por permitir a reestruturação produtiva das diversas formas de flexibili-


zação salarial, temporal, funcional ou organizativa, vem criando mecanismos
de sofrimento no trabalho contemporâneo.
Na perspectiva de prazer e sofrimento, autores da área de PdT como
Dejours, Abdoucheli e Jayet (1994) apontam que um trabalho livremente
escolhido ou livremente organizado pode oferecer fontes de satisfação; entre-
tanto, as pressões de uma determinada atividade tornam-se potencialmente
perigosas para a saúde mental de trabalhadores.
Observam-se como aspectos positivos da livre atividade a sensação de
liberdade, a possibilidade de tomada de decisões e a flexibilidade de horários.
Todavia, os aspectos negativos também assolam a integridade biopsicossocial
do empreendedor. Afinal, é um trabalho que exige um lidar com exigências
múltiplas e geralmente conflitantes, sob a constante sensação de opressão
pelas exigências internas e externas da organização do trabalho (Frese, 2009).
Guimarães-Júnior e Macedo (2013), em um estudo descritivo e explora-
tório sobre os efeitos da organização e das relações de trabalho na saúde física
e mental dos empreendedores que atuam de maneira formal, identificaram
que o sofrimento se manifesta por estresse, ansiedade, angústia e frustrações
resultantes do seu trabalho. É possível identificar como fontes destas mazelas:
a sobrecarga de tarefas, a ausência de tempo para agenciamentos pessoais,
as dificuldades de comunicação e de liderança, a angústia mediante o risco
do fracasso, as pressões por resultados oriundas das disputas do mercado,
entre outras.
Mais especificamente sobre a organização do trabalho para os trabalha-
dores que se engajam nas atividades do empreendedorismo, Guimarães-Jú-
nior (2019) ressalta que como barreiras: lidar com incertezas, burocracias
do governo, peculiaridades e padrões do mercado de trabalho; lidar com as
exigências dos clientes e funcionários; suportar sobrecarga; ser autogestor e
multifuncional; “(...) se relacionar com funcionários, clientes, associações,
sócios e parceiros” (Guimarães-Júnior, 2019, p. 170).
Segundo Guedes (2020) e Guimarães-Júnior (2019), as normas e leis
trabalhistas impostas pelo governo tornam-se partes essenciais do trabalho
prescrito do empreendedor e do real do trabalho, e outras partes das prescrições
206

específicas para cada atividade empreendida são constituídas pela subjeti-


vidade desse mesmo empreendedor. A partir dessa constatação é possível
perceber que são justamente essas categorias e características da organização
do trabalho dos empreendedores de planejar, executar, dirigir, controlar, admi-
nistrar, mediar, comunicar e gerir que os diferenciam do demais trabalhadores
(Guedes, 2020; Guimarães-Júnior, 2019).
Quando se analisa o empreendedorismo desenvolvido por mulheres,

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importa incluir a observância acerca das desigualdades de oportunidades e dos
prejuízos psicossociais potencializados pelas relações de poder no contexto
laboral, que foi construído por homens para privilegiar homens. Além disso,
as mulheres enfrentam dificuldades específicas no empreendedorismo, tais
como: a dificuldade de acesso a financiamentos, as dupla e tripla jornadas
(ou seja, as atividades profissionais bem como as atividades de cuidado com
a casa e dependentes), a solidão, a falta de suporte e a falta de formação
especializada. São, ainda, motivadas a empreender por razões específicas, tais
como: a necessidade de subsistência, a insatisfação e a falta de oportunidade
no mercado de trabalho, as poucas oportunidades de ascensão, dentre outros
(Camargo, Lourenço & Ferreira, 2017; Menezes & Oliveira, 2018; Teixeira,
Andreassi & Bofim, 2018).
Ao abordar a questão de gênero pelo viés da Psicodinâmica do Trabalho
(PdT), é necessário considerar que seus elementos não foram profundamente
discutidos por esta perspectiva (Antloga et al., 2020), sendo que nos estudos
consultados sobre o empreendedorismo feminino, as relações de gênero não
foram suficientemente exploradas, ressaltando o hiato entre gênero e mundo
dos negócios (Silva & Karpinski, 2021; Lima, Nelson & Nassif, 2016).
Se considerarmos o gênero como uma construção social, podemos ana-
lisá-lo como a representação do processo da produção de lugares de poder de
homens e mulheres na sociedade (Saffioti, 2013). Nesse viés, ficam evidentes
os mecanismos excludentes, hierárquicos e desiguais sustentados por uma
sociedade machista e patriarcal. Segundo Hirata e Kergoat (2007), por mais
que as condições das mulheres no trabalho tenham melhorado significativa-
mente, a distância entre elas e os homens permanece abismal, pois parte-se
da premissa de que o mundo corporativo é composto pelos homens e para
homens (Antloga, Maia & Cunha, 2021).
Daí a necessidade de criação de uma realidade feminina crível (Homem
e Calligaris, 2019), uma vez que, para trabalhar, a mulher enfrenta elementos
resultantes de uma sociedade ‘masculinizada’, tanto em aspectos práticos e
estatisticamente mensuráveis, como, por exemplo, salário; quanto em aspec-
tos subjetivos, como no discurso e no uso de termos e de seus significados,
conforme apontam Santos et al. (2020).
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 207

Alperstedt, Ferreira e Serafim (2014) destacam que as mulheres, por


conta da construção histórica atrelada ao gênero feminino, enfrentam difi-
culdades extras quando empreendem, tais como: compromissos conflitantes,
sentimento de culpa, isolamento e estresse dentro das relações interpessoais,
falta de experiência como empreendedoras, medo do risco financeiro e da
dívida, falta de referências externas e baixo nível assistencial. Em geral, são
mais desfavorecidas em seus empreendimentos porque o papel do empresário
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é frequentemente enxergado na sociedade como uma quase exclusividade


masculina (Baughn et al., 2006).
Antloga et al. (2020), em revisão sistemática sobre a Psicodinâmica do
Trabalho Feminino, apontam que além do trabalho prescrito, são esperadas
das mulheres características dóceis e maternais, certas posturas, vestimentas
e até comportamentos específicos, enquanto para os homens tais detalhes
são irrelevantes. Essa análise pode ser corroborada pelo fato de, histórica,
cultural e socialmente, ao gênero feminino ser atribuída a responsabilidade
pelas atividades domésticas e serem cobradas ações de cuidado
Silva e Blanchette (2017) acrescentam que quando a mulher adentra
ao mercado de trabalho, podemos observar que geralmente recai sobre ela
conciliar trabalhos de duas naturezas: 1) O produtivo, que é aquele no qual há
remuneração, ao gerar serviço ou produto material e/ou imaterial, que possa
ter um vínculo empregatício (formal ou informal) e gerar renda; e o 2) trabalho
reprodutivo, que é aquele em que não há remuneração, mas é considerado
socialmente útil, como atividades domésticas (limpar, cozinhar, lavar...), cui-
dar (das crianças, marido, idosos...), entre outros. Assim, é ignorado pelos
homens o fato de ter que lidar com os diferentes papéis e jornadas que as
mulheres exercem, precisando atuar com o trabalho produtivo (valorizado por
ser remunerado) e com o reprodutivo (útil, fundamental, mas não valorizado
pelos homens e pela sociedade em geral) além dos demais desafios peculiares
a partir da ótica do trabalho feminino.
Para trabalhar, algumas mulheres enfrentam os seguintes desafios: duplas
ou triplas jornadas de trabalho (trabalho dentro e fora de casa; produtivo e
reprodutivo); sobrecarga emocional; multiplicidade de tarefas; altos níveis de
exigência por desempenho; diferenças salariais; gestão da aparência; expec-
tativas em relação à maternidade, à sexualidade e à vida conjugal; questões
biológicas do corpo da mulher ignoradas ou tratadas como piada; práticas
machistas que dificultam a inserção; a permanência e a ascensão das mulheres
no mercado de trabalho (Jablonski, 1996; Rocha-Coutinho, 2003; Antloga
et al., 2020).
Em dadas realidades, o ambiente de trabalho é tão inóspito, desigual,
injusto e assediador que a mulher se vê compelida a deixar a atividade. Em
208

outras situações, a mulher desdobra-se para tentar manter a dupla jornada e,


não raro, acaba compelidas a se apresentarem bem-vestidas, maquiadas e de
salto alto no ambiente corporativo. Ademais, é surpreendente o número de
mulheres que são demitidas entre o hiato da licença maternidade até os dois
anos após o nascimento dos filhos (Viana, 2017; Agência O Globo, 2021).
As mulheres também recebem salários menores em relação aos homens,
são preteridas em promoções, ocupam menos espaços de poder, na política e

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na sociedade, mesmo tendo, em média, estudado e se capacitado tanto quanto
ou até mais do que os homens (Jaime, 2011).
Considerando que a tentativa de ocupar duplos espaços (dentro e fora de
casa) é custosa para as mulheres, cabe a reflexão sobre esses obstáculos serem
ou não uma tentativa extra de dominação dos corpos femininos (Homem &
Calligaris, 2019).

Empreendedorismo, Psicodinâmica do Trabalho e Classe Social

Nos estudos de Guedes (2020) podemos notar o processo de subjetivação


da ação empreendedora por mulheres na perspectiva da PdT. Dentre várias
análises, discussões, avanços e contribuições, ele enfatiza o quão o real do
trabalho do empreendedorismo feminino é marcado pela subjetividade das
empreendedoras e por pressões sociais. A dinâmica do trabalho reprodutivo
e produtivo atravessa os diferentes espaços que as empreendedoras ocupam.
Ao passo em que estão na atividade em tempo real do seu empreendimento,
seus planejamentos, pensamentos, preocupações e afetos estão nas atividades
integrantes do espaço doméstico, planejamentos diversos que impactam o
empreendimento, a casa e sua imagem enquanto mulher, mãe, filha e empreen-
dedora. Muitas dessas características que formam as subjetividades dessas
mulheres são apropriadas, adaptadas e renovadas dentro e fora do trabalho.
Assim, muitas vezes, elas se fundem, se confundem, se distanciam e aca-
bam constituindo métodos singulares, não somente de empreender e constituir
a organização do trabalho, mas de assumir um papel de empreendedorismo
que, para se manter e prosperar, pega emprestado as habilidades e caracte-
rísticas da empreendedora/mãe/filha/estudante/esposa/ nora/irmã/cidadã...
E o que aprenderem ao empreender também integrará, de forma complexa,
sistêmica, dialética e dialógica, os demais papéis assumidos pelas mulhe-
res empreendedoras.
Percebemos, então, que a organização do trabalho de empreender é
acentuada quando realizada por mulheres. Além das prescrições do governo
e do mercado de trabalho, conforme apontado nos estudos de Guimarães-Jú-
nior (2019), a própria dinâmica cotidiana das empreendedoras é elaborada e
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 209

reelaborada, constantemente, complementando as prescrições constituintes


dessa organização do trabalho alheia a elas. Dessa forma, além de atender às
demandas e necessidades fiscais, econômicas, governamentais e trabalhistas,
as mulheres se veem forçadas a reinventar prescrições para gerir, adminis-
trar, planejar e controlar seu empreendimento. A organização do trabalho
do empreendedorismo realizado por mulheres, portanto, é uma constante
adaptação, readaptação, apropriação e reapropriação das leis e normas de se
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empreender, tendo que superar essas prescrições e ser ainda mais inventiva e
criativa no real do trabalho para lidar com as pressões sociais de dar conta de
todos os seus papéis, atravessados pelos trabalhos produtivos e reprodutivos.

Questão de classes sociais

A questão de classes sociais, seu desenvolvimento no passado e as for-


mas presentes aparece, também, como um fenômeno a ser investigado pela
Psicodinâmica do Trabalho (PdT). Adotando a perspectiva do materialismo
histórico-dialético, cujas conexões com as dinâmicas de sofrimento dos tra-
balhadores estavam presentes desde o início da atividade laboral no Brasil,
torna-se possível analisar a estrutura dessas interconexões.
As classes sociais constituem grupos de pessoas que diferem umas das
outras pelos lugares que ocupam num sistema historicamente definido de
economia e produção social, ou seja, apresentam uma relação específica com
os meios de produção e desempenham uma função na organização do trabalho
de acordo com os métodos alcançáveis para a aquisição da parcela da riqueza
social (Stavenhagen, 1973). Ainda, as relações de classe se estabelecem pela
distribuição desigual de direitos, poderes e acessos sobre os recursos produ-
tivos básicos da sociedade (Wright, 2004), ou seja, constituem determinantes
sociais do nível de saúde, renda, condições trabalhistas, dentre outros.
Na contemporaneidade, a estrutura de classes forma complexos feixes
de poderes e direitos sobre os recursos produtivos, em vez de uma simples
e binária estrutura de direitos de propriedade (Santos, 2005). Partindo dessa
premissa, é possível abordar a questão de classe pela perspectiva intersec-
cional, afinal, fatores como o gênero e raça são considerados cruciais quando
se investiga as disparidades sociais, pois a interseccionalidade não só leva
em conta a multiplicidade dos sistemas de opressão, como também postula a
interação na produção e reprodução das desigualdades (Bilge, 2009).
Quanto à relação entre a Psicodinâmica do Trabalho (PdT) e a questão de
classe, é necessário considerar, como aponta Duarte (2020), que o estudo do
trabalho no Brasil é acentuadamente eurocêntrico, visto que para se estudar o
trabalho neste país, há que se levar em conta o seu passado histórico, marcado
por colonialismo e escravidão.
210

Segundo Bento e Santos (2020), estão presentes no Brasil as mazelas


resultantes da extrema desigualdade social, afinal, não se trata de um país
pobre e sem recursos, senão de um país que não distribui sua riqueza (Barros,
Henriques e Mendonça, 2000). De acordo com Garcia (2003, p. 4), o Brasil foi
fundado sobre o signo da desigualdade, injustiça e exclusão, constituído por
capitanias hereditárias, latifúndios, escravidão, genocídio indígena, autorita-
rismo e ideologia antipopular e racista das elites nacionais. As classes como
se constituem, até então, refletem os impactos do nosso passado de coloni-

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zação, exploração e escravidão, cujos resultados na atualidade envolvem o
subemprego e precarização do trabalho (Duarte, 2014).
Lima, Nelson e Nassif (2016) postulam que as classes sociais são equi-
padas com diferentes capitais sociais e culturais para empreender, conside-
ram que as barreiras de recursos são autorreprodutoras nas classes baixas,
dada a variedade de fatores que limitam o desenvolvimento de uma cul-
tura empreendedora.

Questão de cor

A abertura para a questão de cor na psicodinâmica do trabalho mostra-se


imprescindível para entender a pragmática do empreendedorismo feminino
no cenário brasileiro. Sua relevância é acentuada pelo impacto do racismo
estrutural nas dimensões histórica, política, cultural, econômica e psicológica
das mulheres negras. Ao adotar uma perspectiva interseccional, é necessário
levar em consideração a desigualdade, o preconceito e a discriminação vividos
pelas mulheres negras nos mais diferentes contextos e, principalmente, nas
atividades empreendedoras.
A miscigenação presente na gênese social da população brasileira não tem
sido suficiente para aliviar o peso da discriminação racial, que nos acompanha
desde o período escravagista, no qual as mulheres negras sofreram as mais
perversas formas de violência (Karasch, 2000).
É exatamente nessa relação histórica com as violências sistêmicas que
se instauram as barreiras e se acentuam as vulnerabilidades sociais. Segundo
Carneiro (2003), a aceitação da mulher negra no mercado de trabalho está
intimamente associada aos subempregos e trabalhos autônomos, refletindo
assim a fragilidade da manutenção de direitos em vários setores de sua vida,
o que corrobora com a afirmativa de Santos (2009) de que, para as mulheres
negras e/ou afrodescendentes, o mercado reserva posições menos qualificadas,
os piores salários, a informalidade e o desrespeito.
É perceptível que a mulher negra se encontra em dupla desigualdade
de oportunidades, sofrendo tanto pelo racismo institucional quanto por ser
mulher, o que resulta, muitas vezes, na inferiorização de si dentro do contexto
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 211

do empreendedorismo. Uma das barreiras apontadas pelos autores Siqueira,


Morais e Nunes (2018) refere-se à falta de estruturação e formalização da
atividade empreendedora; eles notam que o desafio não se dá somente na hora
de abrir a empresa, como também em sua manutenção.
A forma estrutural do racismo fornece a base para a existência de dinâ-
micas de prazer e sofrimento no que tange às vivências de trabalho da mulher
negra. Esta consideração é tanto necessária quanto desafiadora, visto que a
representatividade ainda é pouca e o discurso geralmente é excludente no que
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diz respeito ao empreendedorismo negro.

Considerações finais

Ao nos aprofundarmos nas pesquisas de Psicodinâmica do Trabalho


(PdT) temos contato com a escassez de material em termos de produções
literárias sobre o trabalho feminino, sobretudo nas especificidades das mulhe-
res empreendedoras que também estão inseridas na dinâmica dejouriana de
prazer e sofrimento. Em termos metodológicos, a PdT tem como uma de suas
ferramentas de pesquisa a formação de grupos de uma determinada atividade,
a escuta e intervenção (Takaki & Antloga, 2020).
Apesar do escasso aprofundamento, é possível, dada sua consistência
epistemológica, fazer uma leitura interseccional dessas dinâmicas atravessando
o gênero, a classe e a raça. Sobre o trabalho feminino, cabe destacar que a
PdT considera tanto o trabalho produtivo quanto o reprodutivo, posto que,
para a mulher, ambos se sobrepõem. Ainda, as subjetividades das mulheres
empreendedoras integram a própria organização do trabalho realizado por
elas, para além das normativas jurídicas, econômicas, administrativas; para
manter, cativar, defender, potencializar, difundir e prosperar. Suas subjetivi-
dades não compõem somente o real do trabalho todos os dias, mas também
invadem e formam as prescrições como prova de sobrevivência, existência
e resistência, impactando mais intensamente as dinâmicas das relações de
prazer e sofrimento e saúde e adoecimento das mulheres empreendedoras.
Na questão de classe, através do materialismo histórico-dialético, ana-
lisam-se as estruturas sociais, suas mazelas e potencialidades presentes no
contexto brasileiro contemporâneo. Partindo dessa premissa, concebe-se que
o empreendedorismo é, muitas vezes, considerado uma estratégia de sobre-
vivência, uma alternativa ao neoliberalismo.
A mulher, ao empreender, tem a sua potência limitada em termos de
negócios porque grande parte de suas práxis não são nomeadas como tra-
balho, havendo a ausência de legitimidade e reconhecimento. Assim, cabe
o questionamento sobre o quanto os livros de sucesso sobre o tema, vistos
212

como verdades “bíblicas” por seus leitores, podem contribuir verdadeiramente


para as mulheres.
No empreendedorismo, de um modo geral, a vida pessoal se funde com a
vida laboral. Tal questão específica é apontada em Santos et al. (no prelo), no
qual é enfatizado como essa práxis ocorre para as mulheres. Ainda no mesmo
capítulo, será explicado porque dificilmente as empreendedoras utilizarão
estratégias de mediação, sobretudo as coletivas, pois a grande maioria delas

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não forma um coletivo de trabalho, seja na própria atividade ou fora dela,
sendo notadamente exercido um empreendedorismo individual.
No mais, foram identificadas diversas problemáticas em relação ao reco-
nhecimento e à legitimidade das(os) empreendedoras(es), pois comumente
as mulheres já não são reconhecidas, afinal, é presente a expectativa de que
a mulher desenvolva atividades simultaneamente, bem como a normalização
da mescla das atividades produtivas e reprodutivas. Soma-se, ainda, o caráter
“feminino” de certos empreendimentos, o que torna dificultosa a inserção da
mulher no mundo dos negócios, já que está a priori “direcionada” socialmente.
É comum a presença de um certo cinismo no discurso empreendedor,
que se faz presente através de considerações meritocráticas e religiosas, como
também a narrativa de que a livre atividade não coaduna com os resultados
apresentados em estudos científicos da área.
Ao avaliar o empreendedorismo feminino no Brasil, especialmente aquele
por necessidade, vinculado a uma classe como regra geral, percebe-se o resul-
tado das diferenças de classe. Essa mulher, então, não tem emprego formal, e
nesse jogo de força ela está em uma posição desprivilegiada no que se refere
a gênero e classe, como reflete o materialismo histórico.
Nesse contexto, a PdT deve prestar atenção em quanta angústia e falta
de suporte essa mulher experimenta na tentativa de se manter. Regra geral,
insere-se ainda o número de filhos que mulheres menos favorecidas têm.
Então, essa atividade será exercida majoritariamente por sobrevivência e não
por oportunidade.
Assim, a PdT não pode fugir aos debates em relação à classe social e
ao gênero, tampouco ao debate racial, uma vez que tanto a negritude quanto
a branquitude também ditam uma posição no empreendedorismo. Portanto,
deve-se atentar aos modos de subjetivação de ser mulher e trabalhadora; ser
mulher pobre e trabalhadora; ser mulher pobre e trabalhadora branca/não
branca; ser mulher, pobre, trabalhadora, branca/não branca, com filhos/sem
filhos. A PdT precisa contribuir com o que ela sabe fazer de melhor e, assim,
analisar esse real.
É sabido, portanto, que para a PdT a circulação da palavra é essencial
(Duarte, 2014), bem como a construção de espaços públicos de discussão.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 213

Nesse sentido, para as mulheres que empreendem seria de grande valia o


estabelecimento de grupos psicoterapêuticos, já que muitas mulheres exercem
tal atividade sozinhas e não têm muitos espaços de fala, apoio e suporte, entre-
tanto, devido à solidão que marca a atividade, bem como à disponibilidade
exígua de tempo abre-se um paradoxo ainda sequer discutido.
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Wright, E. (2004). Social class. In G. Ritzer (Ed.), Encyclopedia of social


theory (pp. 718–725). Thousand Oaks: Sage.
Capítulo 10
História de vida como método de pesquisa
para estudar o empreendedorismo
realizado por mulheres
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Hilka Pelizza Vier Machado1

Introdução

Histórias particulares revelam saberes práticos que os meios de comuni-


cação em massa não fazem circular (Santamarina & Marinas, 1995). A História
de Vida é um método de pesquisa que procura gerar conhecimento a partir da
experiência do sujeito, propiciando ao investigador captar como os indivíduos
constroem a história e se modelam à sociedade, sendo também modelados por
ela (Granato, Lopes, Tarabal & Mello, 2020). Trata-se de um tipo de história
oral com uma visão mais subjetiva, na medida em que faz uso do relato integral
e singular do narrador, momento onde ele utiliza a sua capacidade de narrar
e lembrar que se materializa na fala (Meihy & Holanda, 2015).
Esse é um método de pesquisa interdisciplinar (Teixeira, Lemos, Costa;
Lopes & Tarabal, 2021), importante para compreender a relação dos indiví-
duos com a sociedade e com a cultura (Closs & Rocha-de-Oliveira, 2015).
Ele tem sido utilizado em diversos campos de estudo, como na Administração
(Closs & Rocha-de-Oliveira, 2015; Godoy, 2018; Teixeira et al., 2021), em
Recursos Humanos para compreensão de trajetórias profissionais de execu-
tivos brasileiros (Closs & Rocha-de-Oliveira, 2015), no Empreendedorismo
(Vogt & Bulgacov, 2019), entre outros.
Neste capítulo, especificamente, pretende-se discutir a aplicação desse
método para pesquisas com mulheres empreendedoras. Considerando que o
Empreendedorismo é um fenômeno com dimensões sociais, e empreendedores
são atores que criam empresas (Chasserio, Pailot & Poroli, 2014), histórias
de vida podem contribuir para melhor compreensão do desempenho do papel
empreendedor por mulheres, uma vez que homens ou mulheres empreende-
doras não são papéis definidos a priori, mas são conquistados em interações
(Bruni & Perrotta, 2014).

1 UniCesumar.
220

Para apresentação do capítulo, inicialmente, foram tecidas algumas con-


siderações sobre o método da História de Vida, ilustrando com observações
importantes para sua implementação. Em seguida, discorreu-se sobre alguns
usos possíveis da História de Vida em pesquisas com mulheres empreende-
doras, que representam possibilidades a serem exploradas na construção de
teoria sobre empreendedorismo e gênero.

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O método história de vida

Santamarina & Marinas (1995) apresentam três possibilidades de pro-


dução de histórias de vida. A primeira é a positivista documental, que aborda
um sistema ou uma formação social. A segunda é a interacionista, a qual se
configura como uma construção dual na produção de relatos. A terceira é a
dialética, na qual histórias de vida são entendidas como histórias de um sistema
e buscam compreender as determinações do sistema social.
Para Granatto et al. (2020), há uma diferença entre as histórias de vida
e as histórias oficiais. As de vida, para os autores, vão além de uma simples
sucessão cronológica de fatos essenciais. Eles salientam que o encadeamento
produzido na narrativa da História de Vida mescla fantasia e realidade, obje-
tividade e subjetividade, desejos e medos, real e imaginário. O importante,
para os autores, está em compreender o modo como o indivíduo se apropria
de sua história, “projetando nela sua subjetividade” (p. 523).
Quanto às modalidades de interpretação, Santamarina & Marinas (1995)
sugerem as seguintes possibilidades: estrutural (documento), cênica (conflito)
e hermenêutica (texto). Na perspectiva estruturalista, somente os elementos
considerados pertinentes são interpretados. É possível recorrer a uma plura-
lidade de situações e informantes para construção de um mapa. No modelo
hermenêutico, o foco recai sobre a análise de profundidade do texto, em busca
de sentidos no relato produzido. Centra-se, portanto, no texto, e o pesquisa-
dor busca nele descobrir sentidos ocultos, uma vez que a história se reduz ao
texto como produto de sucessivos sentidos. Por fim, na compreensão cênica,
a pretensão é interpretar a história à luz das origens, o que ocorre em três
níveis de análise: cenas vividas no passado, representadas pelos componen-
tes biográficos e sociais; cenas do projeto futuro dos sujeitos; e nas relações
sociais do presente.
Além disso, para Santamarina & Marinas (1995), alguns autores praticam
o método interacionista, que consiste na realização das entrevistas e a inter-
pretação dos resultados em cadeia. Outros optam por “construir um desenho
em que as categorias dos sujeitos são tomadas como variáveis independentes,
ou como espaços de enunciação” (p. 269).
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 221

A implementação do método requer habilidade por parte de pesquisa-


dores. Destacam-se, nesse sentido, dois aspectos importantes, os quais serão
discutidos a seguir, que se referem à escuta e à produção discursiva:
a) A escuta. A entrevista é um dos elementos essenciais para a História
de Vida. Saldaña e Omasta (2018) pontuam seu papel estratégico e a impor-
tância da postura do pesquisador, no sentido de prestar atenção ao relato, não
emitindo opiniões e não dando conselhos, por exemplo. É preciso lembrar
que histórias de vida podem revelar problemas de identidade, como conflitos,
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identificações, formação de gênero, bem como tensões entre a identidade


social e a identidade individual (Santamarina & Marinas, 1995). Dito de outro
modo, ao revelar sua história, o sujeito mostra sua identidade própria, a partir
de sua identidade familiar e social, evidenciando como ele foi produzido pelas
múltiplas contradições que atravessam os grupos aos quais pertence (Granato
et al., 2020).
Durante a entrevista, é importante que se construa uma relação de proxi-
midade entre pesquisador e entrevistado (Miranda, Cappelle, Mafra & Naves,
2014). Isso em razão da biografia revelar o modo como os indivíduos são
atores de sua própria história, sendo, ao mesmo tempo, “transformadores
das condições socio-históricas que a geram” (Granato et al., 2020, p. 14). A
proximidade entre ambos é importante pois, ao contar sua história, o sujeito
afirma-se “como ‘existindo’, ele pode “reconstruir seu passado, suportar o
presente e embelezar o futuro. Contar a vida é um modo de ‘refazer-se’, o que
é um importante aspecto das histórias de vida” (Granato et al., 2020, p. 14).
De fato, o método da História de Vida se configura como uma relação
entre pesquisador e sujeito, que reúne vínculos recíprocos de confiança e não
apenas uma mera obtenção de informações e dados do outro. Nessa relação,
pesquisador e sujeito se transformam e o pesquisador tem a oportunidade de
refletir e se desenvolver como um cientista da área (Granato et al., 2020).
Godoy (2018) salienta que o método da História de Vida pode contribuir para
que o pesquisador “tenha a oportunidade de transformar, recontextualizar e
amplificar seus conhecimentos, com isso, podendo alterar sua visão a respeito
do mundo e do seu próprio trabalho” (p. 161). Após a realização da entrevista,
outro aspecto desafiador é a produção discursiva, como comentado a seguir.
b) O desafio da produção discursiva. É possível coletar histórias de
vida, mas, como em todo processo de pesquisa qualitativa, o relato é produto
da interpretação (Santamarina & Marinas, 1995). No momento da interpreta-
ção, é preciso construir uma distância, a fim de imaginar o contexto da época
e, ao mesmo tempo, identificar os elementos que constroem a produção dos
sentidos, salientando a importância de considerar que os indivíduos reelaboram
os sentidos a partir das dimensões ideológicas coletivas das quais eles se dão
conta (Santamarina & Marinas, 1995).
222

Entre os desafios da produção discursiva, Saldaña e Omasta (2018) men-


cionam a grande quantidade de dados que é preciso condensar para produção
do relato. Além disso, o pesquisador precisa entender como os papéis são
desempenhados pelo indivíduo, por meio de rotinas, rituais e regras de con-
duta, e como ocorrem os seus relacionamentos. Para os autores, os rituais
constituem “passagens que demarcam transições de algum tipo (separação,
celebração etc.)” (Saldaña & Omasta, 2018, p. 44) e podem existir na rotina

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diária ou semanal. As regras, por sua vez, mantêm a ordem social e “são
baseadas em tradições, valores, atitudes e sistemas de heranças” (p. 45).
Por fim, é importante salientar a necessidade de distinguir redundâncias
e saturação, de modo a propiciar o fechamento do discurso. Relevante, ao
longo de todo processo, é a observância de aspectos éticos da pesquisa (San-
tamarina & Marinas, 1995).

Uso do método na pesquisa com mulheres empreendedoras

Com base em estudos anteriores sobre mulheres empreendedoras, foram


identificados, pelo menos, sete pontos estratégicos para uso do método da
História de Vida nesse campo, que serão descritos na sequência:
a) O primeiro aspecto diz respeito à descoberta de possíveis motiva-
dores da escolha empreendedora. Modelos empreendedores influenciam
intenções empreendedoras (Bosma et al., 2012). Com isso, é importante des-
vendar possíveis identificações no decorrer da vida do entrevistado, as quais
podem influenciar traços de comportamento, como honestidade e ousadia,
entre outros (Machado, 2009). Além disso, a socialização em família pode
revelar mentores, como os pais. Nesse sentido, Teixeira et al. (2011) apontaram
como os pais influenciaram os empreendimentos de seus filhos. Em síntese,
elementos antecedentes à criação do empreendimento podem explicar a opção
pelo empreendedorismo por mulheres, o que pode ser conhecido por meio de
histórias de vida.
b) A existência de empresa na família. Esse é um aspecto importante
que pode fornecer dois tipos de percepções distintas. Uma delas é o grau de
imersão em negócios da família, o que pode ter contribuído para o interesse e
o aprendizado de mulheres (Chasserio et al., 2014). Vogt e Bulgacov (2019)
também identificaram a importância da realização de trabalhos em empre-
sas da família para o aprendizado empreendedor. Por outro lado, a ausência
de um espaço nesses negócios pode ser determinante para a independência
feminina (Machado, 2011). Um dos contextos empreendedores familiares que
apresentam uma cultura de gênero que comumente não integra mulheres nos
negócios é o meio rural (Ekinsmyth, 2013).
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 223

c) Construção de autoconfiança. A autoconfiança representa um aspecto


crítico para mulheres empreendedoras (Kirkwood, 2009). Em pesquisa rea-
lizada junto a um grupo de 25 mulheres e 25 homens na Nova Zelândia,
Kirkwood (2009) identificou que, para algumas mulheres, a autoconfiança
cresceu ao longo do tempo em que estiveram à frente de seus negócios. Outras,
continuaram com a dificuldade de desenvolver a autoconfiança, e isso atrapa-
lhou o acesso a financiamentos, limitando as aspirações de crescimento dos
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empreendimentos. O estudo apontou que mulheres empreendedoras tendem a


apresentar menores níveis de autoconfiança do que os homens, influenciando
até mesmo a percepção delas como empreendedoras, além de ter afetado a
tomada de decisões e ações. Contudo, o autor salienta que ainda é limitada a
compreensão da autoconfiança para empreendedores. Nesse sentido, histórias
de vida podem contribuir para o entendimento do processo de construção da
autoconfiança, a partir de suas origens nas experiências vividas na infância,
adolescência e juventude (Kirkwood, 2016).
d) Submissão a situações desafiadoras. Esse é outro aspecto importante
para ser identificado na História de Vida. A superação de situações difíceis
vivenciadas por empreendedoras pode contribuir para a formação de um com-
portamento resiliente e perseverante, o que é importante para empreendedores,
especialmente mulheres (Machado, 2009). Miller e Le Breton-Miller (2016)
afirmam que enfrentar desafios favorece a criação de condições que motivam
respostas adaptativas, as quais, por sua vez, favorecem um aprendizado de
disciplina no trabalho, tolerância ao risco e criatividade.
e) Desejos e frustrações. Compreender desejos, sonhos e frustrações ao
longo das histórias de vida de empreendedoras é importante para demonstrar
tensões entre identidades sociais tradicionais, bem como identidades profis-
sionais e expectativas de instituições que influenciaram as representações
de gênero das mulheres nos papéis profissionais (Chasserio et al., 2014). Ou
seja, compreender como as empreendedoras desafiaram as regras impostas
no decorrer da História de Vida pode ajudar a entender como elas criam suas
identidades de gênero no papel empreendedor. Ekinsmyth (2013) ressalta
que expectativas de papéis de gênero, identidades e moralidades estabeleci-
das nas famílias são importantes para a construção das identidades de mães
empreendedoras. Chasserio et al. (2014) pesquisaram 41 empreendedoras na
França e identificaram três posturas em relação às normas sociais: a) algumas
aceitam essas normas definidas e agem de acordo com a expectativa social
de empreendedoras, como o papel de mães ou esposas, por exemplo. Outras
acomodam normas, balanceando conflitos, e outras desenvolvem seus pró-
prios modos de ser uma empreendedora, rejeitando regras estabelecidas e
inventando definições diferentes do que significa ser um empreendedor.
224

f) Aprendizagem. Vogt e Bulgacov (2019) identificaram a influência da


educação formal prévia no aprendizado empreendedor. Desta forma, identificar
se mulheres tiveram alguma formação voltada ao Empreendedorismo antes
de iniciar seus empreendimentos pode ser importante para compreensão do
aprendizado e do desempenho do papel por parte delas.
g) Desconstrução de arquétipos. Histórias de vida podem contribuir
para desmistificar o arquétipo da mulher empreendedora como maternal, que

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luta para equilibrar trabalho e família e que mantém sozinha as responsabili-
dades domésticas (Orser, Elliott & Leck, 2011). Revelar tensões na forma de
procurar manter equilíbrio entre trabalho e família pode ajudar a compreender
como essa busca é compartilhada entre homens e mulheres. Especialmente
no contexto brasileiro, estudos como o de Costa, Fiona, Durão e Pinto (2016)
demonstraram a dificuldade de empreendedoras em conciliar trabalho e famí-
lia. Além disso, histórias de vida podem contribuir para ir além dos dualis-
mos da masculinidade/feminilidades no campo do empreendedorismo, como
sugerem Orser, Elliott e Leck (2011).
De modo sucinto, essas são algumas possibilidades do uso do método
da História de Vida em pesquisas com mulheres empreendedoras. A partir
de uma relação de proximidade entre pesquisador e entrevistado (Miranda
et al., 2014), histórias de vida podem mostrar como mulheres constroem seu
perfil empreendedor, a partir de suas identidades familiar e social, eviden-
ciando como suas identidades são produzidas pelas múltiplas contradições
que atravessam os grupos aos quais elas pertenceram e pertencem (Granato
et al., 2020).

Considerações finais

Este capítulo teve como objetivo apresentar uma abordagem sobre a apli-
cação do método da História de Vida em pesquisas com mulheres empreende-
doras. Foram apresentadas algumas considerações sobre o método, destacando
dois aspectos importantes, referentes aos desafios da escuta e da produção de
sentidos. Em seguida, foram elencados pontos específicos a serem analisados
em histórias de vida, de modo a contribuir para a compreensão da formação de
identidades de papel empreendedor por mulheres, levando em consideração
que estes não são definidos a priori, mas conquistados em interações (Bruni
& Perrotta, 2014).
Esses dados demonstraram que o método da História de Vida representa
um parâmetro epistemológico para estudos em Empreendedorismo, que pro-
picia ao pesquisador desvendar a complexidade do empreendedorismo por
mulheres, especificamente quanto à influência dos processos de socialização.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 225

Nesse sentido, histórias de vida podem revelar a construção de características


empreendedoras por mulheres, como resiliência, autoconfiança e perseve-
rança. Outra possibilidade é a de compreender determinantes da atividade
empreendedora para as mulheres, por meio de modelos de identificação e de
mentores nas histórias de vida. Importante também é a oportunidade que essas
histórias propiciam para compreender a construção de arquétipos de gênero,
por meio de regras e normas, bem como de expectativas sociais. Por fim, em
conjunto, os sentidos produzidos em histórias de vida podem contribuir para
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que o pesquisador compreenda a influência das diversas instâncias relacionais


e institucionais no processo de aprendizagem e identidade empreendedora
de mulheres.
Importante ainda é mencionar, tal como salientado ao longo do texto, que
a prática do método propicia aos pesquisadores um desenvolvimento pessoal
e do seu trabalho como pesquisador (Godoy, 2018; Granato et al., 2020).
226

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Capítulo 11
Uma empreendedora em primeira pessoa
Fernanda Amaral1
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Introdução

Pela primeira vez, escrevo a introdução após finalizar o texto. Meus


artigos de resultados de pesquisa são todos desenhados previamente na minha
cabeça de modo que esta parte sempre sai primeiro e apresenta todos os tópicos
seguintes. Este relato de experiência, por outro lado, não tinha script, enfoque,
meta predefinida... Foi o texto mais íntimo e livre que já escrevi (e olha que
me aventuro volta e meia pelos contos e crônicas).
Nas páginas seguintes, converso com você, leitora amiga, leitor curioso,
sobre um enlace entre pessoal e profissional que culminou no lançamento e
na expansão da Certifique-se Soluções Acadêmicas LTDA, nascida em 2016,
criada no Distrito Federal (DF) e viajante precoce pelos quatro cantos do país
desde os primeiros passos. Penso que você se pegará dando uma pausa na
leitura em certos momentos para rememorar eventos parecidos da sua vida,
caso queira empreender também ou já o faça. Não pause agora para buscar
na internet o CNPJ, o site, a página de Instagram. Não há necessidade. Se
não me conhece, melhor ainda. Deixe eu me revelar para você assim como o
empreendedorismo se revelou para mim: gradualmente.

Comecemos do início

Quando se inicia o caminho para o empreendedorismo? O correto é


dedilhar desde minha infância até a vida adulta? A verdade é que o início
não é igual para todos. Algumas pessoas já nascem com a responsabilidade
de serem sucessoras de seus pais em grandes empresas ou em carreiras de
prestígio; outras descobrem seu caminho durante a caminhada. Todavia, para
a maioria, é na adolescência que tomamos as primeiras decisões que impacta-
rão o curso da nossa vida profissional. Então, comecemos pela adolescência.
Aos 17 ou 18 anos, o jovem está decidindo o “resto” da vida. Como lembra
o empresário Flávio Augusto2:
1 Certifique-se Soluções Acadêmicas — Secretaria de Estado e Educação do Distrito Federal.
2 Flávio Augusto da Silva (Rio de Janeiro, 7 de fevereiro de 1972) é um empresário e escritor brasileiro;
fundador da empresa Wise Up e ex-proprietário do Orlando City Soccer Club.
230

Adolescentes entram em depressão, têm crises de ansiedade, dúvidas e


incertezas no momento em que “têm” que tomar uma decisão. Nessa hora,
além das dúvidas naturais, sofrem pressão da família, amigos e sociedade.
Um pai médico corre o risco de pressionar seu filho a ser médico para
herdar o seu consultório, quando o filho deseja ser arquiteto. Todos os
dias, conflitos como esse acontecem exatamente nesse ponto de inflexão
da vida de um adolescente. (Silva, 2018, n.p.).

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Sobre esse importante momento de nossas vidas me permito fazer
uma crítica. Os pais, independentemente da classe social a que pertencem,
botam demasiada expectativa nos filhos, tardando muito a entender que o
destino a ser trilhado é único e individual. Quando a família é de classe
baixa, como a minha, observo uma tendência em colocar nos filhos a res-
ponsabilidade de uma subida de degrau na renda familiar (uma espécie de
superação da geração). Quando a família é de classe média, preparam os
filhos para serem seus sócios, muitas vezes. Classe alta prepara herdeiros,
como disse acima. Claro que as exceções são várias, mas meu incômodo
está nessa projeção aparentemente comum que pais fazem nos filhos. Estes
deveriam sempre poder descobrir, no seu tempo, o que faz sentido para si,
pois o que faz sentido nos move e nos faz prosperar, a despeito da idade
em que houve o start!
Na Universidade de Brasília (UnB) de Darcy Ribeiro3, todos os estudan-
tes passariam “pelo ciclo básico comum antes da opção pela carreira e pelo
tipo de formação universitária que almejavam” (Miglievich-Ribeiro, 2017,
p. 589). Que lindas são a utopia da escolha consciente e a naturalização do
protagonismo sobre a própria história! Assim como a UnB teve seu projeto
vetado pela burocratização, quantas mentes empreendedoras perdem tempo
persistindo na crença que nos é incutida de que só existe um caminho para
nos realizarmos profissionalmente?
Aqui no DF e nos arredores, especificamente, crescemos sob a cultura do
funcionalismo público. Alugar um imóvel com fiador servidor é sempre mais
fácil, e o caixa eletrônico do Banco de Brasília sempre oferece um crédito
consignado significativo com taxas atrativas para servidores assim que se
insere o cartão. A nossa Fundação de Amparo à Pesquisa (FAPDF) oferta bol-
sas de apoio à divulgação científica para quem trabalha com pesquisa, ensino
ou tecnologia (geralmente servidores) e que está cursando ou já tenha pelo
menos mestrado. Aah, e a estabilidade? Há um fetiche sobre a estabilidade.
Um dia, num piquenique com amigas, ouvi pelo menos de duas que queriam

3 Darcy Ribeiro (Montes Claros, 26 de outubro de 1922 — Brasília, 17 de fevereiro de 1997) foi um antropólogo,
historiador, sociólogo, escritor e político brasileiro.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 231

que o próximo [e se Deus quiser o último] namorado fosse servidor público,


pois, assim, teriam segurança financeira e férias agendáveis.
Eu estagiei durante o ensino médio no Tribunal de Contas da União. E
achava o máximo já ter um crachá! Aqui as pessoas andam com a foto pen-
durada no pescoço. E, quando solteira e com paciência para app de relaciona-
mento, já vi vários homens ostentando uma selfie com o brasão do Governo
do Distrito Federal ou do Governo Federal ou com a farda da polícia. A não
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ser que sua família seja enraizada em outras frentes, na contramão da cultura
local, arrisco dizer que alguma vez na vida um adolescente de Brasília pensará
em fazer um concurso público.
Minha família, moradora do entorno sul do DF, é do comércio. Minha
mãe foi vendedora até eu nascer, quando teve que abandonar o trabalho já
que não era compensativo seguir nele e pagar uma babá ou uma creche para
mim. Meu pai foi vendedor e gerente de loja até meus 14 anos. Inclusive,
tenho uma lembrança muito forte do dia em que foi demitido na véspera da
minha sonhada festa de debutante. Cresci ouvindo meu pai dizer que os irmãos
policiais militares tinham uma vida mais estruturada que ele e o irmão que
“optaram” por trabalhar em shopping. E de fato via que meus pais se sacrifi-
cavam muito para dar a nós (a mim e a meu irmão) acesso a escola particular,
internet etc. No dia em que meu pai chegou mais cedo em casa (só chegava
quase meia-noite, após fechar o caixa da loja que à época gerenciava), senti
pela primeira vez a vontade de jamais passar por tal situação. Decidi, naquele
instante, que cursaria a universidade pública, para não gerar mais despesas
ao futuro incerto que se apresentava com meu pai desempregado, e que,
ademais, seria servidora pública, a qualquer custo. Cheguei a fazer prova de
concurso aos 16 anos. Felizmente, não só não passei, como ainda me mudei
de estado aos 18 anos, quando meus pais já tinham se reestabelecido por meio
da abertura de um próspero comércio local.

Rompendo a bolha

Queria cursar Direito, depois queria Letras. Não passei no Programa de


Avaliação Seriada da UnB, tampouco no primeiro vestibular. E já inicio este
tópico com um adendo reflexivo. Existe um abismo entre a base de um aluno
que sempre estudou nas melhores escolas do DF e a daquele que estudou nas
privadas do entorno e nas privadas “2 estrelas” ou em algumas públicas. Os
professores, muitas vezes, são ótimos em qualquer um dos lugares citados.
Inclusive, como professora da Secretaria de Estado de Educação do Distrito
Federal (SEEDF), sei como o concurso é disputado e como o nível de qua-
lificação dos profissionais é alto. Mas a estrutura, os recursos, os acessos, as
232

influências culturais, os estímulos dos pares de um estudante de classe alta


abrem uma vantagem muito grande para estes em comparação aos demais.
Para dar conta do Cebraspe (banca responsável pelo vestibular da UnB), eu
precisaria fazer como o Flávio Augusto fez para entrar no Colégio Naval:
dedicação total e muita perseverança até alcançar a nota melhor que a dos
demais inscritos, mesmo custando anos de abdicação. Depois de tanto esforço,
o Flávio, na ocasião, teve um choque de realidade logo de início:

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O mundo militar é baseado em hierarquia, disciplina e rotina. Tudo é
muito padronizado: você passa a fazer parte de um corpo e sua indivi-
dualidade é desconstruída para nascer uma nova pessoa. Trocam o seu
nome e agora você recebe um número. Todas as reações são provocadas
através do que eles chamam de adestramento militar, que é baseado em
estímulo-resposta provocado por líderes que davam as ordens. Nesse
momento, o indivíduo perde qualquer autonomia e passa a ser um a mais
na tropa. (Silva, 2018, p. 41-42).

Ele acabou sendo expulso do colégio por não se adaptar. E daí trilhou
um caminho muito mais autoral: o empreendedorismo; e hoje é apenas um
dos maiores empresários do mundo. Bom, eu não fiquei anos tentando pas-
sar na UnB e acredito que se tivesse ficado e passado certamente não me
decepcionaria. Porém, sempre tive medo de ficar muito tempo focada em
algo que nem tenho certeza de quão benéfico é ou qual retorno financeiro
me dará; afinal, como bem disse o Thiago Nigro4, “o ativo mais escasso do
mundo é o tempo”.
Quando me pego imaginando como teria sido fazer a graduação na UnB,
reflito que, possivelmente, minhas referências, tendo em vista minha história
de vida, seguiriam com a força de sempre. Com certeza a influência da pes-
quisa iria entrar e ficar, pois é algo predominante em qualquer universidade
pública, mas o ideal de ser servidor público continuaria muito pulsante em
mim, e quem sabe eu nem estaria escrevendo este capítulo hoje e colaborando
com este livro sobre empreendedorismo feminino.
Meu cursinho pré-vestibular — o Exatas — promoveu uma excursão
para o vestibular da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), e eu
fui! Já estava pensando mais pela minha cabeça e decidida pelo curso de
Letras, a contragosto de todos que me diziam que meu destino era ter um
péssimo salário. Em alguns meses, eu estava mudando toda a minha vida,

4 Thiago Nigro (São Paulo, 7 de outubro de 1990) é idealizador e sócio proprietário do projeto O Primo Rico,
veículo de internet voltado para ensinar seu público sobre educação financeira e gestão de dinheiro. O canal
criado por Thiago atinge mais de centenas de milhares de pessoas por mês, sendo um dos maiores do país
nesse tema.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 233

literalmente: mudando-me sozinha para Mariana-MG, onde se localizava


meu campus, e rompendo, aos recém-chegados 18 anos, a bolha na qual
vivia até então.
Minha turma (a 08-2), para a minha surpresa, tinha no máximo umas
cinco pessoas de Mariana. A grande maioria era composta de mineiros de
diversas localidades, seguida de paulistas do interior de São Paulo e ainda
uma pessoa ou outra do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. As cidades vizi-
nhas (Mariana e Ouro Preto) tinham estudantes e trabalhadores dos quatro
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cantos do país. Se no DF o servidor público faz o dinheiro girar na cidade,


naquela região, era uma mistura de Vale do Rio Doce, Igreja Católica e
UFOP. Que lugar rico de ouro, culturas e histórias! Minha primeira república
era pertinho da casa de Alphonsus de Guimarães, minha segunda e minha
terceira num bairro de chácaras, e tinha um ribeirão no fundo das casas. A
última era na rua da Praça Minas Gerais, e meu relógio logo havia virado o
sino das igrejas.
Tudo para mim naqueles quatro anos de curso era um laboratório — cada
contato, cada prosa. Convivi com pessoas que numa mesa de bar jamais ini-
ciavam uma conversa por “onde você trabalha?”, pessoas muito mais conec-
tadas com o presente, com o aqui e o agora, e pessoas com pertencimentos
múltiplos — tanto chamavam de casa a provisória dos anos de graduação,
como chamavam de casa aquela de origem, onde possivelmente viviam os
pais. Mas a verdade é que ninguém voltou o mesmo para as suas cidades, nem
sequer nas férias. Todos foram minimamente transformados pelo contato com
tanta gente com sonhos e sotaques distintos.
Boa parte dos quatro anos em que vivi lá, namorei um homem totalmente
fora dos padrões almejados em Brasília pelo meu entorno. Era das artes, do
audiovisual, recebia por demanda e tinha que se reinventar a cada novo projeto. A
rotina estruturada que meus pais tanto almejavam para mim estava pouco a pouco
perdendo o brilho e saindo do pedestal (ou melhor: do oratório — para combinar
mais com Minas Gerais) a partir das novas influências de namoro e amizade.
Além disso, encantei-me pelo mundo da pesquisa, que se abriu para mim
por meio da minha primeira orientadora, a Maria Teresa Gonzaga Alves5. No
segundo semestre, já tinha bolsa de iniciação científica com ela e, a partir daí,
sempre fui conquistando outras. Aprendi com a última orientadora, a Ruth
Silviano Brandão6, que

5 Maria Teresa Gonzaga Alves é doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
e mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). É professora associada do Departamento
de Ciências Aplicadas à Educação (Decae), da Faculdade de Educação da UFMG, e líder do Núcleo de
Pesquisa em Desigualdades Escolares (Nupede).
6 Ruth Silviano Brandão, que foi professora de literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), é mestre e doutora em Estudos Literários pela mesma instituição e pós-doutora pela
Universidade de Paris VIII. Também atua como escritora e tradutora.
234

Escritores são, antes de tudo, leitores e buscam-se uns nos outros, no


espaço constelar da literatura e se leem e se escrevem. Duplicam-se.
Escrevem com suas leituras, que são também seus fantasmas, por isso a
escrita guarda, mesmo sem saber, a memória do Outro, nunca coincidindo
exatamente com o que se lê, pois são releituras, recriações. O texto nunca
é transparente, pois tem uma família, um DNA, dissemina-se por vários
escritos e os recolhe em suas páginas. (Brandão, 2010, p. 17).

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Claramente, o contexto da citação é o processo de escrita. Mas clara-
mente vou relacionar com a vida, em geral. Nossa leitura de mundo precisa
se ampliar para ser, de fato, de mundo. Caso contrário, será uma leitura de
família, uma leitura de classe, uma leitura de cidade, uma leitura de bairro.
O DNA simbólico e fantástico de uma pessoa é mais do que o sangue. São
os vínculos, as conexões, os contatos, as experiências. Como disse Paulo
Freire7, sempre assertivo,

É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque


tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo
esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir
atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar
adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo…
(Freire, 1992 apud Cabral, 2015, n.p.).

Com essa mudança de cidade e perspectivas, eu iria fazer de outro modo;


só não sabia disso ainda entre os 18 e 22 anos. Todas as minhas relações
sociais me levavam a perceber que eu até poderia ser servidora pública pos-
teriormente, como era o plano, mas antes eu poderia dar uma palestra ou um
curso, publicar um livro, abrir um café com sarau literário, participar de um
projeto cultural temporário, fazer pesquisa com subsídio público. A univer-
sidade pública brasileira respira pesquisa, e eu me apaixonei por ela. Mas,
por mais que eu tivesse rompido a bolha em que vivia em Brasília, eu ainda
não tinha sido apresentada ao empreendedorismo e jamais o seria com afinco
pela Universidade. Esta me preparou ou para ser professora de Português em
escola ou para ser professora do curso de Letras na universidade.

A universidade pública brasileira não forma empreendedores

Eu sei que alguém vai dizer que, na graduação, fez parte de uma
empresa júnior, fez estágio em uma startup ou que foi bolsista de extensão
7 Paulo Reglus Neves Freire (Recife, 19 de setembro de 1921 — São Paulo, 2 de maio de 1997), patrono da
Educação Brasileira, foi um educador e filósofo brasileiro. É considerado um dos pensadores mais notáveis
na história da pedagogia mundial, tendo influenciado o movimento chamado Pedagogia Crítica.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 235

em tecnologia, mas tais experiências não são a regra na maioria dos cursos.
É como se existisse um sistema de castas nas instituições em que cada curso
tem um status quo intransponível. Quem faz uma licenciatura, por exemplo,
só pode dar aulas e em instituições convencionais; conectar-se com uma men-
talidade inovadora e autoral é um caminho, na maioria das vezes, solitário.
E é uma pena, pois tomar decisões, assumir riscos, pensar estrategicamente,
ter liderança, ser competitivo e tantas outras competências do empreendedor
não é ruim para posição profissional alguma.
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A Orientação Empreendedora pode ser benéfica até para quem não quer
empreender; e a universidade nem precisa perder sua essência característica —
pesquisa, ensino e extensão — para dar visibilidade a isso. Todavia, de alguma
forma, o ensino do empreendedorismo é relacionado a uma concepção de mer-
cado que se teme trazer para a universidade. Assim, os meios de empreender
se concentram em determinadas carreiras, enquanto outras não estimulam as
mentes inquietas que certamente já existem entre os matriculados.
O Amyr Klink8 tem uma frase que nunca esqueço: “a gente quer ser
doutor, não fazedor”. No final dos anos 1970, ele cursava Economia na Uni-
versidade de São Paulo (USP). Em 2017, em seu livro, esta era a reflexão
sobre a graduação:

Ninguém nunca nos ensinou a montar um banco, nem uma banca de vender
pipoca. Como é que faz para abrir uma franquia? Eu não sabia nada de
nada. Era o antiempreendedorismo por excelência. Como entrar para o
concurso do Banco do Brasil e salvar sua pele para o resto da vida. Esta
era a espinha dorsal do currículo da USP. (Klink, 2016, p. 25).

Claro que o currículo já mudou totalmente. Claro que os tempos são


outros. Mas será que só eu, por morar em Brasília, conheço quem escolhe
curso pensando no concurso, quem escolhe curso pela quantidade de vagas
de trabalho no mercado, quem sai da instituição com o canudo na mão e diz
que teve que praticamente desaprender a teoria para entrar na prática? É bem
provável que a falta de um mínimo de enfoque empreendedor ocorra na insti-
tuição privada também, mas, por falta de conhecimento prático e propriedade,
mantenho o título do tópico nesse recorte da universidade pública.
Pois bem... No penúltimo semestre da minha graduação em Letras, con-
segui uma bolsa de intercâmbio para estudar um semestre na Universidade
de Guadalajara, no México. Eu poderia cursar as matérias mais simples e
viajar bastante, como bom intercambista, porém, além de viajar, decidi fazer

8 Amyr Klink (São Paulo, 25 de setembro de 1955) foi a primeira pessoa a fazer a travessia do Atlântico Sul
a remo, em 1984, a bordo do barco IAT. Navegador e escritor, já fez mais de 2.500 palestras no Brasil e
no exterior.
236

as matérias que eu jamais tinha visto nas grades curriculares do Brasil. Em


um semestre eu escrevi críticas, debati livros e programas de TV, desen-
volvi material didático para aulas de Português para estrangeiros... e uma
disciplina, especificamente, ministrada pelo professor Gabino Cárdenas9,
fez-me abrir [de forma fictícia, é claro] uma empresa na área da Letras jun-
tamente com três “sócias” e expor no pátio da instituição uma mostra dos
nossos produtos/serviços.
Voltei para o Brasil e para Brasília no começo de 2013. No final daquele

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mesmo ano passei no Mestrado em Educação da UnB e no concurso de pro-
fessor efetivo da SEEDF, mas um detalhe é importante: inscrevi-me para uma
carga horária de trabalho em que ganhava menos e havia poucas vagas: 20
horas semanais, pois apenas durante 4 horas do meu dia eu deveria estar no
serviço público. Eu voltei sabendo que queria ter tempo para decidir no que
empreender. Como diz Flávio Augusto, “há momentos na vida em que mais
importante do que saber o que se quer, é saber o que não se quer”. (Silva,
2018, p. 64-65).

A ascensão de uma ideia

Graças a Deus não hesitei em fazer matéria com a Eliane Mourão10 na


graduação. Sintaxe 1 e 2, Revisão de Texto 1 e 2 — todas com média 9 e
muita ralação, além de muitos insights. Nem as disciplinas de Pragmática ou
de Produção de Texto me chamaram tanta atenção para o contexto de uso da
comunicação e para a intencionalidade do autor como as de Sintaxe e Revisão
fizeram. A Eliane trazia exemplos reais, textos reais, situações reais e mostrava
como uma vírgula, um ponto, um “que” fazia diferença para o casamento da
intencionalidade do escritor com o que sua escrita comunica ao leitor.
Naquela época, eu já me dava conta de que pessoas e instituições são
avaliadas o tempo todo por seus interlocutores a partir do que dizem, mesmo
sabendo-se que esse dizer é um recorte do todo. Nem existia a cultura do
cancelamento ainda, mas eu já lia alguns parágrafos e pensava: será que os
destinatários entenderam o mesmo que eu? Porque, se tiverem entendido,
essa pessoa será questionada por X, Y e Z. Eu, definitivamente, enxergava
problema em vários textos, mas nem sabia se havia uma demanda de mer-
cado para revisão ou se eu poderia fomentar, a partir da sensibilização, o
surgimento dessa demanda. Depois, como dito, tive no intercâmbio uma nova

9 Gabino Cárdenas Olivares é graduado em Filosofia, mestre e doutor em Educação pela Universidad La
Salle e professor do Departamento de Letras da Universidad de Guadalajara.
10 Eliane Mourão é graduada em Letras, mestra em Estudos Linguísticos, doutora em Literatura Comparada
e pós-doutora em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É professora
efetiva do curso de Letras da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 237

visão sobre minha formação na Letras, ampliando as possibilidades e dando


vazão ao empreendedorismo.
No mestrado na UnB, iniciado em 2014, um ano após voltar ao Brasil
e à casa dos meus pais por um período breve, já que logo comecei a dividir
apartamento próximo à UnB com uma amiga, conheci meu nicho e suas carên-
cias. Se você chegou até esta parte do relato de experiência sem googlar meu
nome, procurar-me no Instagram, vasculhar o CNPJ da empresa... parabéns!
Você não sofre de ansiedade. Já eu... comecei a desenvolver ansiedade no
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mestrado, e ela me acompanha até então, muito mais controlada, felizmente.


A pós-graduação no Brasil é adoecedora (escrevi no Brasil porque não
tenho conhecimento de como é fora). A sociedade, de modo geral, enxerga
mestrado e doutorado como algo tão importante e superior que quem faz
fica inibido de reclamar. A universidade carece de políticas focais de saúde
mental e qualidade de vida voltadas para discentes. A universidade, muitas
vezes, protege orientadores que têm conduta abusiva com seus orientandos.
O estudante se vê num cenário de duplo silenciamento: por um lado família e
amigos que acham que qualquer queixa num mestrado ou doutorado é “recla-
mar de barriga cheia”, por outro os programas de pós-graduação — inflexíveis
com processos de troca de orientador e de data de defesa e surdos e cegos
para exploração, pressão desmedida, desvio de função, assédio, apropriação
intelectual e tantas outras dores silenciadas dos cursistas.
A transição entre graduação e mestrado é, por si só, um choque para a
maioria. Na graduação, nossa relação com a escrita é menos íntima. Não diria
superficial, pois já sabemos do rigor acadêmico, de critérios básicos para o
aceite de um paper etc. Contudo, ainda não encaramos a pesquisa e a escrita
como um trabalho que, como tal, exige disciplina, horário, postura. Quando
alguém adoece mentalmente por fatores associados ao trabalho, pode ir a um
psiquiatra e, a partir da avaliação deste, afastar-se (o “pode” aqui é relativo,
pois sei que há trabalhadores do setor privado que são demitidos se o fizerem).
Mas o ponto é: se a pessoa adoece na pós-graduação por fatores provocados
pela cultura organizacional desastrosa da Universidade, no entanto não tem
uma rede de apoio nem para escuta, quanto menos para soluções, o que ocorre?
A maioria segue a pesquisa, a duras penas, adquirindo doenças autoimunes
provocadas por stress, tornando-se ansioso, tendo ataques de pânico etc. A
escrita, nesse contexto, mostra-se um momento doloroso e desgastante ou
sequer é realizada, porque a pessoa pode desenvolver um bloqueio para tal.
Eu observei e vivenciei essa cultura. Passei por situações em que mais
de trinta folhas do meu texto foram destacadas e engavetadas na minha frente
(talvez tenha virado folha de rascunho), em que a qualidade da minha forma-
ção em Letras foi questionada quando errava ortografia, sintaxe ou regra de
ABNT (como se alguém fosse capaz de revisar o próprio texto...), em que, em
238

nome do “obedece quem tem juízo” e “quem é bolsista se submete a tudo”,


realizei trabalhos de cunho pessoal, que nenhuma relação tinham com meu
objeto: recolhi documentos para a progressão continuada de professor, busquei
professores de banca em aeroporto, enviei livros por correio. Além disso, o
trato era na base de “conquiste o respeito e a atenção”. Constrangimentos,
inflexibilidade, terror psicológico, falta de empatia, pressão, manipulação
eram rotina para mim. Claro que chorar era normal, pensar mil vezes antes
de passar por certo corredor também, e esconder-me no carro para não ser

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interrompida no meu trajeto até a sala de aula por algum “pedido” de “ajuda”
ocorreu algumas vezes. Desestabilização em véspera de defesa não é nada
perto do que eu e vários amigos vivenciamos.
Toda essa experiência horrível me fez muito forte e, ao mesmo tempo,
muito consciente de que eu queria seguir pesquisando e trabalhar com pes-
quisa, mas não necessariamente sendo uma servidora pública vinculada a uma
universidade cheia de egos. No fim do mestrado eu já tinha sido nomeada na
SEEDF e dava aula de Português na EJA no período noturno. Mas também no
final do mestrado crescia em mim uma vontade muito forte de empreender em
uma posição em que eu pudesse inspirar pesquisa e expirar apoio aos meus,
para sempre, colegas desse mundo muito doido chamado pós-graduação.
Foi nesse instante (nesse ponto de inflexão) que conectei os sonhos sub-
versivos dos amigos que fiz em Mariana, que nem pensavam em ser servi-
dores, às aulas maravilhosas da Eliane Mourão, à orientação empreendedora
do Gabino Cárdenas, ao conhecimento adquirido sobre o meu público-alvo e
à influência familiar para negócios e abri, em junho de 2016, a Certifique-se,
voltada, à época, apenas para revisão de língua portuguesa e normalização
ABNT, feitas por mim, e versão em inglês e espanhol, que ficava a cargo de
duas amigas.
Apesar de desde a graduação eu ter sido aquela que fica responsável
por “fechar o trabalho” e apesar de durante todo o mestrado eu ter revisado
artigos para amigos, tudo era feito de maneira informal, sem precificação, sem
consciência do meu valor. Até que minha amiga Luciana da Silva Castro se
ofereceu como “cobaia” para uma revisão criteriosa e remunerada. Ela não
queria uma simples revisão e adequação às normas e, por ser minha amiga,
teve coragem de expressar. Quantos clientes de revisão querem mais do que
o óbvio de seus revisores, mas não têm abertura para diálogo? A Lu queria
um olhar não viciado sobre seu texto. Ela queria alguém que apontasse o que
nem ela nem o orientador conseguiam mais, naquela altura do campeonato,
identificar como lacuna no trabalho. Ela precisava saber se sua intencionali-
dade tinha sido comunicada, se seus objetivos estavam suficientemente claros
e se o percurso de pesquisa estava acessível ao leitor. Ela precisava de alguém
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 239

que acolhesse o texto dela e até mesmo valorizasse aquele brilho que o modus
operandi no mestrado ofuscou. Por conhecer sua história, fui lendo, revisando,
fazendo sugestões e igualmente criando suposições muito plausíveis para cada
quebra que ela trazia no texto: “aqui foi quando ela descobriu a gravidez”,
“aqui foi um problema no trabalho”, “aqui foi a pressão para defender no
prazo”. O texto realmente tem um DNA. O revisor não é quem descobrirá
as cicatrizes do cliente, entretanto precisa ter um olhar humanizado sobre o
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texto para lapidar a joia.


A banca do trabalho dela seria decisiva para eu continuar fazendo revisões
informais, sem compromisso, apenas para amigos, ou para eu fazer da revisão
um “bico” ou, ainda, para eu, de fato, empreender na área. E o que aconteceu?
A banca foi só elogios! E eu vi no sorriso da minha primeira cliente um alívio
que eu queria muito que se repetisse em todos os estudantes de pós-graduação.
A família dela, então, estava radiante, transbordando orgulho. A atmosfera era
de gratidão; e dentro de mim havia a sensação de dever cumprido misturada
com uma grande excitação por fazer a diferença na vida de pesquisadores por
meio de revisão e outros serviços.
Pessoas demoram tanto tempo para descobrir a missão da empresa... A
minha se apresentava naturalmente. Uma amiga que já trabalhava na área,
mas talvez não tivesse tanta clareza assim do seu propósito, vindo a descobrir,
acredito eu, durante o seu mestrado e a partir de outras experiências laborais,
disse-me, quando comentei da ideia de empreender com a Certifique-se, que
se meu objetivo fosse ter uma renda extra talvez eu devesse investir con-
comitantemente em aula particular, pois a revisão aparecia de forma muito
espaçada ao longo do ano, concentrando-se mais em certos meses, o que fazia
com que o revisor não pudesse contar muito com aquele dinheiro. Graças a
Deus, eu não dei ouvidos e continuei empolgada em tornar este trabalho o
meu principal, e o serviço público, o meu “bico”.
Desde os primeiros passos da minha filha (risos), a condução foi para
o crescimento e a expansão com qualidade. Para tanto, percebi como fun-
damental que todas as revisoras tivessem pelo menos o título de mestre. É
que não adianta um diamante brilhar aos olhos de alguém que nem o reco-
nhece como joia. Em vez de ser lapidado, seria engavetado ou esquecido na
estrada. Da mesma forma, só quem já é pesquisador sabe que um texto para
um acadêmico não é só um papel com palavras. Um artigo, uma dissertação,
uma tese é como se fossem uma extensão do autor no mundo. São páginas
de esforço e sabedoria. O profissional responsável pela revisão precisa estar
atento para reconhecer o que está por trás das palavras e, assim, orientar
rescritas, realocações e outras modificações sem interferir na marca pessoal
do escritor.
240

Expandindo para fora do “quadradinho”

Todo o crescimento foi natural e orgânico. Poderia ter sido maior e mais
rápido se eu já tivesse estratégia e noção mínima de marketing. Apesar de a
missão da empresa estar clara desde o início, não havia um hábito organiza-
cional que levaria à construção de uma cultura e de uma marca forte.
Entre 2016 e 2017, eu concentrei tudo em mim. Entregava cartões de
visita, pregava anúncio em mural na UnB, alimentava redes sociais, fazia

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orçamentos e revisava os textos. Concentrar todas as demandas em si deve
ser algo temporário para quem quer empreender. Saber delegar é fundamental.
Passado esse período inicial, comecei a convidar outras profissionais da
Letras para dar suporte na revisão, na versão e na tradução nas línguas inglesa
e espanhola e acrescentei transcrição de áudio aos serviços oferecidos, visto
que muitos estudantes fazem entrevista, roda de conversa, grupo focal etc.
em suas pesquisas, mas estão atarefados demais para passar o áudio para a
escrita. Em 2019, incluí francês entre as línguas com as quais trabalhávamos,
e passamos a normalizar os trabalhos não somente conforme a ABNT, mas
também conforme outras normas, como APA e Vancouver. Eu acompanhava
a revisão de cada colaboradora e dava feedbacks detalhados nos primeiros
trabalhos, e feedbacks mais pontuais quando já tinham se revestido de todo
o olhar humanizado — diferencial da empresa.
Por rede social e “boca a boca”, a Certifique-se foi adentrando todas
as regiões do país e ainda alcançou brasileiros que estavam estudando fora,
especificamente no Uruguai, na Universidad de la Empresa, e em Portugal, na
Universidade do Minho. Eu sempre me impressionava com a falta de limite
territorial da Certifique-se. Mas imediatamente depois recordava a sensibi-
lização feita para que cada colaboradora, sobretudo as de revisão — serviço
que é o “carro-chefe” da empresa —, compreendesse a representatividade
daquelas 15 ou 200 páginas nas quais trabalharia para quem passou dias ou
anos escrevendo. A compreensão, a empatia e o fato de as colaboradoras
igualmente já terem feito mestrado corroborava para um agir sensível sobre
o texto, o qual era devolvido para os autores com uma série de balões com
comentários. Sugestões de reescrita, de acréscimos, de detalhamento... tudo
era comunicado. E se tornava cada vez mais comum o cliente reservar algumas
horas para finalizar o trabalho após nossas sugestões, mas acabar ficando três
dias debruçado sobre ele.
O grande problema com o qual me deparei nesse processo de captação de
colaboradores e de treinamento foi lidar com quem achava que sabia revisar.
Mesmo as pessoas formadas em Letras alimentam a crença errônea, às vezes,
de que a universidade e a prática em sala de aula com correção de redações,
por exemplo, são suficientes para revisar um texto acadêmico. Revisar texto
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 241

de pessoas com alto nível de instrução e bastante apego ao que escrevem (além
de uma certa vaidade) não é simples. Você tem que se apropriar do universo
da pesquisa, dos seus roteiros, do seu vocabulário e saber dialogar, mostrar
caminhos, convencer. Foi extremamente desgastante quando, além de passar
a “malícia” necessária a respeito do texto acadêmico e o olhar humanizado
sobre o texto, eu me propus a ensinar regras gramaticais. Se fosse por meio de
uma especialização ou um curso de formação continuada, tudo bem, entretanto
ensinar o básico para quem acredita que sabe revisar foi uma energia gasta
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desnecessariamente e ainda me rendeu sérios problemas pessoais depois, já


que um dos casos era com pessoa do meu convívio.
Foi difícil para mim a criação dos limites e pontos de corte necessários
entre a amizade ou a admiração e o profissional. Muitas vezes as relações
se misturavam, e quando eu tinha que ser somente a chefe a pessoa não
entendia e, algumas vezes, partia. Por mais que isso fosse bom para revelar
mais rápido vínculos fracos ou falsos de amizade, isso não é nada bom para
uma empresa. Hoje vejo que o treinamento precisa passar não somente por
questões técnicas de revisão, como normas gramaticais e de formatação, mas
também por habilidades elementares — como organizar o tempo, ter força de
vontade, saber pesquisar, lidar bem com críticas, comunicar-se com clareza
nos recados para o cliente etc.
Embora inexperiente no empreendedorismo, consegui expandir a empresa
consideravelmente e não ficar dependente de uma única instituição (a UnB,
onde tudo começou) ou uma única localidade (o DF, o quadradinho). A vanta-
gem de um trabalho em rede, com colaboradores em sistema remoto e clientes
que criam confiança por acompanhar o trabalho nas redes sociais ou por sentir
abertura para mandar um áudio de quatro minutos para mim (risos), é poder
desbravar locais distintos e distantes da sede física.
Mesmo não havendo vínculo empregatício com a empresa, tendo em vista
que as colaboradoras são freelancers, a Certifique-se se sente responsável por
garantir a elas uma continuidade de demandas. No momento em que escrevo
este artigo, em 2021, mesmo com a crise financeira do país que impactou a
renda dos clientes — professores e estudantes —, as cinco revisoras e três
tradutoras recebem demandas da Certifique-se todo mês, e acredito que em
breve contarei com mais outras profissionais.
O que temos de mais precioso no mundo de hoje é o nosso nome, ou seja,
a nossa marca pessoal. Escritores acadêmicos se leem, se citam, se encon-
tram em congressos, são até avaliados por programas de acreditação cujos
descritores principais são a quantidade de publicações e os locais onde estas
foram veiculadas. Logo, demonstrar para o leitor um cuidado com a escrita é
ter respeito por ele. E pagar por um serviço de revisão, normalização, versão,
242

tradução ou qualquer outro que oferecemos é investir na própria imagem, no


próprio prestígio.
Alguns clientes não chegam com tais percepções bem consolidadas.
São esses os que geralmente pedem desconto ou pesquisam outras empresas
ou profissionais autônomos antes de se decidirem. Mas alguns minutos de
conversa e um contato rápido com a marca e o profissionalismo já os fazem
entrar para o clube dos clientes conscientes, satisfeitos e divulgadores dos
serviços para amigos.

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No Instagram, o cliente nota a identidade visual da marca; no WhatsApp,
há um catálogo personalizado com os serviços, o qual é enviado também em
formato PDF por e-mail logo quando da primeira abordagem. O orçamento é
bem explicado, sabe-se exatamente o que se está contratando. As formas de
pagamento são transferência, PIX e cartão de crédito, e tudo se inicia por meio
de contrato. Recusamos trabalhos com prazo curto e prezamos pela qualidade
em detrimento da quantidade. Como não expandir assim? Infelizmente, essa
organização não ocorreu desde o início. Foi gradual e acompanhou o meu pro-
cesso de tomada de consciência do meu valor, como se verá no tópico seguinte.

O custo do próprio valor

O Bruno van Enck11 tem uma frase clássica que finalmente internalizei:
“só existe uma profissão no mundo: vendedor”. E é verdade! Se pararmos
para pensar, todos nós fazemos diariamente uma curadoria do nosso lado
que deve estar em exposição. E para quê? Consciente ou inconscientemente,
para nos vender. Fazemos um recorte do mais atrativo, do que vale a pena
mostrar. Todas as relações, mesmo as entre pessoas sem qualquer transtorno
de personalidade, passam pela avaliação dos ganhos e das perdas, dos lucros,
dos riscos. Se nas relações sociais isso é comum, imagine nas relações de
trabalho! Somos um portfólio ambulante, mesmo quando não entregamos
currículo. E quem tem empresa, especificamente, tem ainda mais demarcado o
aspecto da venda. Não adianta ter milhares de seguidores em redes sociais, por
exemplo, se isso não for convertido minimamente em compra. O empresário
quer compradores para seus serviços ou produtos. A habilidade de vender, no
entanto, pode até ser intuitiva na conquista ou na relação entre pares, porém
nos negócios não é bem assim.
Para vender um serviço é preciso saber precificar e cobrar, é claro. Mas
o que faz o cliente adquirir ou não o que se vende não é o preço ou a forma
de pagamento. Saber vender é saber comunicar seu propósito, suas crenças

11 Bruno van Enck é economista, vendedor, fotógrafo e piloto de rally. Fundador da rede Barbearia Corleone,
gerencia seu negócio e emprega mais de 350 pessoas em São Paulo.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 243

e sua cultura organizacional de modo que a pessoa compre o benefício que


ela terá com aquele serviço e não o serviço em si. Você já ouviu falar que na
vida as pessoas não se apaixonam por você, mas sim pelas sensações que você
causa, ou seja: por quem a pessoa pode ser estando ao seu lado? Nas relações
de venda e compra vale o mesmo princípio. Não se trata do seu serviço, mas
sim do que o cliente sentirá ou terá ao contratá-lo, que vai desde benefícios
emocionais até autoexpressão.
Os serviços da Certifique-se, atualmente, são: revisão, normalização,
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versão, tradução, transcrição de áudios e vídeos, elaboração de slides, con-


fecção de elementos pré e pós-textuais, construção de mapas e tabelas, bem
como mentoria de escrita. Mas o que eu vendo é tranquilidade, segurança,
confirmação, apoio. A pessoa que contrata a Certifique-se, além de ter essas
sensações, acaba por expressar algo sobre si mesmo: está dizendo ao mundo
que tem cuidado com a escrita, que reconhece a importância de um texto que
comunica bem e que respeita os leitores, sejam eles uma banca de defesa,
sejam aqueles que estão fazendo levantamento bibliográfico em revistas.
A Nike é um bom exemplo de marca que se posiciona enquanto propor-
cionadora de bem-estar. Raramente ela fala sobre seus produtos, senão sobre
o que acredita, sobre quem ela apoia (grandes atletas), sobre esportes etc. A
Louis Vuitton, igualmente, comunica requinte, bom gosto, exclusividade. Para
muitos, ter uma bolsa dessa marca é um investimento. Os consumidores que
querem sentir o que a marca transmite e comunicar sua própria personalidade
por meio dela não estão preocupados com o preço. Eles não ficam comparando
o possível preço de custo do tênis de mil reais ou o da bolsa de quinze mil. O
preço é indiferente. O que importa é o valor — algo imensurável.
Nos primeiros meses da Certifique-se, eu não compreendia conceitos
como marca, arquétipo, branding, identidade visual, funil de vendas e tantos
outros que hoje entendo, mas logo conheci as irmãs Alcantara12, do Efeito
Orna, e pude explorar melhor a multipotencialidade minha e a da marca em
construção. A comunicação foi evoluindo, e a comunidade, crescendo, porém
nos bastidores eu incorria em um erro grave: embora já agregasse algum valor
à vida e ao momento dos clientes, o meu envolvimento sentimental com o
projeto me fazia flexibilizar demais os pagamentos, o que perdurou por cerca
de três anos. Havia, portanto, um choque entre o que eu dizia e o que eu fazia,
um erro na matrix. Se eu não tenho o cuidado adequado com o dinheiro que
recebo, dou descontos, não cobro mais em prazos de urgência, confio que a
pessoa pagará no dia acordado, entre outros detalhes, estou indiretamente

12 Bárbara, Débora e Julia Alcantara são três irmãs nascidas em Curitiba, sócias proprietárias das marcas Orna
e Orna Makeup. Juntas, criaram o Efeito Orna, um curso online no qual elas compartilham como criaram
suas marcas do zero e com um propósito e como qualquer pessoa pode igualmente criar e gerenciar sua
marca pessoal e empresarial.
244

comunicando que o meu valor é frágil. Ao mesmo tempo que eu alegrava


aquele cliente que não se organizou com prazos ou finanças para me pagar, eu
fomentava nele uma imagem de descrédito para a marca. E a marca pessoal
e empresarial que tem consciência de seu valor toma as medidas necessárias
para garantir que seja compensada financeiramente ou reconhecida nos termos
justos pelo serviço entregue.
Há um documentário chamado Fyre Festival: fiasco no Caribe, que mostra
os bastidores de um fraudulento festival de música nas Bahamas. O responsável

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fez um ótimo trabalho de marketing, no entanto não garantiu nem um terço do
que vendeu. Agora imagina você entregar exatamente o que prometeu, fazer a
diferença e não receber proporcionalmente? Se eu fizesse propaganda de um
serviço e entregasse outro seria picareta, mas se eu cumpro o que declaro e
não cuido do lucro eu sou só uma pessoa que não sabe o seu valor, mesmo.
Já revisei, na maior boa vontade, textos enormes para amigas sem cobrar
nada, já dei descontos inimagináveis, já recebi a primeira parcela de pagamento
de cliente após quatro meses da entrega e sob ameaça de ter que reclamar na
justiça o pagamento... Quanto mais próxima era a pessoa e mais desconto eu
dava ou mais filantropia eu fazia, mais se desconfiava da qualidade do serviço
e se interferia no processo, tornando o tempo maior ou menor a depender da
necessidade. Enfim... tem um monte de revisor por aí cometendo os mesmos
erros que cometi ou diferentes erros que só lhe acarretam dor de cabeça. E
há um monte de cliente desrespeitoso com os quais deveremos aprender a
lidar. Independentemente da motivação das pessoas, nada justifica agressões
verbais, calotes ou retrabalhos eternos em nenhuma empresa. Era preciso
superar essa cultura. Era necessário tomar posse do meu valor.
Embora tenha tido toda uma trajetória de crescimento acadêmico e pro-
fissional, eu, assim como muitas mulheres, era uma dependente emocional:
pessoa extremamente dócil, com excesso de empatia, muito solícita para as
necessidades e as demandas do outro, com dificuldade de dizer não e com uma
crença forte de poder salvar pessoas pelo exemplo e pela persistência. As justi-
ficativas e os gatilhos trabalhei com a Carla Antloga13, e hoje sou outra pessoa,
muito consciente do meu valor, dos meus limites, das minhas necessidades
e do que não abro mão. Essa mudança de chave me fez não só uma mulher e
uma empreendedora melhor como também uma verdadeira empresária.
Convivi com narcisistas no mestrado, no serviço público e nos ciclos
familiares e de amizade. Fui sugada, drenada, até que, com muita terapia,

13 Carla Antloga é doutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações, com ênfase em Qualidade
de Vida no Trabalho (PSTO-UnB), professora adjunta do Departamento de Psicologia Clínica (PCL) e do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura (PPG-PsiCC), coordenadora do Grupo de
Estudos em Psicodinâmica do Trabalho Feminino — Psitrafem, instagrammer, youtuber e a psicóloga que
me ajudou no processo revolucionário pelo qual toda mulher deveria passar: o autoconhecimento.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 245

entendi que trabalho não é filantropia, que existe hora de trabalho e hora de
descanso, que o urgente não pode atrapalhar a prioridade e que é preciso dizer
não e fechar portas para assediadores em qualquer lugar, não sendo diferente
em uma empresa.
Hoje, a Certifique-se conta com rotinas estruturadas, contratos revisados
por advocacia, notas fiscais geradas rapidamente por contabilidade, dia e
horário de atendimento fixos, diversas formas seguras de pagamento para o
cliente, e a partir do treinamento de novas colaboradoras vêm sendo planejados
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cursos de aperfeiçoamento para revisores de texto. Apropriar-se do seu valor


e demonstrar isso por ações é delimitar a cultura organizacional da empresa
e fazer seu branding, o que é fundamental para crescer mais e mais no mer-
cado. Como já bem disse Melinda Gates14, para nós, mulheres empoderadas,
“cada muro é uma porta”. A sociedade nos cria para o lar, para o cuidado,
para a resiliência, para o exemplo, mas a vida vai lá e ensina às que querem
aprender que é preciso se impor e se valorizar para crescer.

Breves comentários sobre questões de gênero no empreendedorismo

Antes de mais nada, é preciso dizer que para prosperar no empreendedo-


rismo é necessário ser mulher, não menina. Em vários momentos deste texto
me descrevi menina. O processo de aceitação de que o serviço público não era
a prioridade para mim tardou muito a acontecer, tanto por questões familiares
como por questões culturais. Meu terreno não era fértil para o desenvolvimento
de uma mulher — dona da sua vida e tomadora de suas próprias decisões.
Igualmente, a paixão que nutri pela Certifique-se nos primeiros anos me levava
a ter uma empatia exacerbada por clientes que não garantiam que pagariam
em dia. Fui, ainda, bastante filantrópica ao fazer revisões de graça ou com
desconto para tanta gente e ainda em prazos que naturalmente prejudicavam
a qualidade do trabalho. Havia um deslumbramento, uma cegueira, uma ino-
cência... um excesso de confiança no outro, um excesso de empatia... muito
cuidado, muita doação... E todas essas virtudes, quando não bem dosadas,
nos caracterizam como meninas e não como mulheres.
No livro Mulheres que correm com os lobos, da Clarissa Pinkola Estés15,
há um capítulo que trata justamente da iniciação de uma mulher. Equivoca-
-se quem pensa que a iniciação passa pela idade. Ela tem bem mais relação

14 Melinda French Gates é uma cientista da computação e filantropa norte-americana. É ex-funcionária da


Microsoft, cofundadora e também copresidente da Fundação Bill e Melinda Gates. Em 2020, foi considerada
a 5ª mulher mais poderosa do mundo, segundo a revista Forbes.
15 Clarissa Pinkola Estés (Indiana, 27 de janeiro de 1945) é uma psicóloga junguiana, poeta e escritora
norte-americana especializada em traumas pós-guerra. Seu livro Mulheres que correm com os lobos é
mundialmente conhecido, tenho sido traduzido para vários idiomas e comercializado em diversos países.
246

com as experiências vividas. Quando saímos do ninho precisamos nos cuidar


sozinhas, e nossa única parceira é a intuição. No texto, a personagem Vasalisa
tem sua iniciação a partir do momento em que “ela aprende a deixar morrer o
que precisa morrer” (Estés, 2018, p. 100), ou seja: valores e ilusões que não
mais se sustentam. Somos ensinadas a ser gentis e a não causar problemas.
Mas “a recompensa por ser boazinha, em circunstâncias repressoras, é a de ser
mais maltratada” (Estés, 2018, p. 104) e humilhada. Quantos trabalhos peguei
cujo prazo não era adequado? Durante quantas noites e quantos horários de

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almoço trabalhei para o Estado sem remuneração extra, quando poderia estar
trabalhando para minha empresa? Quantos clientes receberam suas solicitações
como quem recebe uma mercadoria, visto que eu não sabia o meu valor e,
logo, não o comunicava? O chefe, o cliente, o familiar, o namorado e qualquer
pessoa que se conecta a você e percebe sua ingenuidade pode se aproveitar
disso e protagonizar contigo relações das mais abusivas!
Na vida de todas nós surge uma hora em que a bondade, a doçura e a
inocência que nos foram ensinadas começam a nos impedir de reagir a novos
desafios ou a certas situações. “Nas suas entranhas, a mulher sabe que existe
um toque de morte ao insistir em ser aquela pessoa boa demais por muito
tempo.” (Estés, 2018, p. 102). O mundo não é maternal conosco, e precisamos
amadurecer. “Às vezes, a mulher está tão enredada sendo a mãe-boa-demais
de outros adultos que eles se grudaram às suas tetas e não pretendem deixar
que ela os abandone. Nesse caso, a mulher tem que afastá-los a coices e
continuar assim mesmo.” (Estés, 2018, p. 102). Se eu não me voltasse para a
Certifique-se e ficasse atendendo a demandas externas, como as de chefes e
professores narcisistas, ela sucumbiria. Se eu não começasse a colocar regras
para os clientes e a determinar os aspectos fundamentais para a qualidade
dos serviços, não teria uma corrente de clientes trazendo outros clientes. Era
arriscado demais continuar doce...
Quando a menina morre e a mulher nasce, deixa-se “de aceitar sem
questionamento cada sugestão, cada farpa, qualquer coisa que lhe apareça
pela frente. [A] mulher aos poucos aprende não só a olhar, mas a fixar os
olhos e vigiar com atenção, e cada vez mais a não ter paciência com gente
enfadonha” (Estés, 2018, p. 125). Ela analisa intenções e motivações, escolhe
quem caminha do seu lado e preserva-se. A partir de alguns trancos que a vida
me deu, consegui fazer essa necessária transição sem a qual seria impossível
ter prosperidade nos negócios e em várias relações. “Devo ir para esse lado
ou para o outro? Devo ficar ou partir? Devo resistir ou ser flexível? Devo
fugir disso ou correr na sua direção? Essa pessoa, esse acontecimento, essa
empreitada, é verdadeira ou falsa?” (Estés, 2018, p. 109). Essas são perguntas
que uma mulher faz; são perguntas que hoje eu faço ao avaliar situações a
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 247

partir de um distanciamento emocional seguro e levando em consideração


minha intuição.
A Marianne Williamson16 disse, certa vez, que “nosso maior medo é ser-
mos poderosas além da medida”. Eu não temo mais isso. Noto que a sociedade
não está preparada para a geração de mulheres empreendedoras e empodera-
das, todavia acabo usando as percepções difusas como aprendizagem e como
forma de fomentar o meu senso crítico.
Na minha própria família, que conta com vários microempresários de
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prestação de serviços, percebo que é ensinado aos filhos homens as deman-


das da empresa, enquanto às mulheres, não. Ademais, é marcante como em
uma reunião ao redor de uma mesa em que irremediavelmente fala-se sobre
negócios, o tema dinheiro soa natural na boca dos homens, mas não na boca
das mulheres. O homem que empreende e que busca enriquecer é o forte, o
determinado, o trabalhador, o sagaz, o que dá conta de tudo e faz acontecer!
Já a mulher é a subversiva. Algumas vezes, eu faço comentários sobre meus
projetos e minhas metas, a expansão, a produção, o lucro, no entanto, além
de não receber tantos olhares ou respostas com entusiasmo em seguida, a
conversa se redesenha cedo ou tarde para curiosidades sobre minha vida
pessoal. Especula-se se não vou parar de me especializar nunca, se não me
importo de estar solteira (quando estou solteira) ou se não penso em casar
e ter filhos logo (quando estou namorando). Outrora, essas posturas já me
incomodaram muito e colocaram-me em um lugar desconfortável de ter que
ou me diminuir para não me destacar ou me traduzir para quem não sabia me
ler. Estés (2018, p. 105) diz que

[...] mulheres criadas em famílias que não demonstram aceitar seus talen-
tos costumam tomar nas mãos empreendimentos extraordinariamente
grandes, repetidas vezes, sem saber por que motivo agem assim. Elas
acham que precisam ter três doutorados, que precisam ficar penduradas
do Monte Everest de cabeça para baixo ou que devem realizar todo tipo
de empreitada perigosa, demorada e dispendiosa para tentar provar às
suas famílias que têm valor. “Agora vocês me aceitam? Não? Está bem
(suspiro), vejam só essa.”

A família, o capital cultural, a cidade, o Brasil... tudo corrobora uma


vida ora de abafamento de potencialidades, ora de ações por impulso e com
finalidades de reconhecimento. À mulher é destinado um lugar que não é o
de empreender, o de se destacar, o de liderar, o de tomar decisões, e isso é
visível desde as relações familiares até as falas de políticos. Quem empreende,
como eu, e sobretudo em uma área sem relação com beleza ou cuidado, está

16 Marianne Williamson (Houston, 8 de julho de 1952) é uma escritora e líder espiritual estadunidense.
248

nadando contra a corrente. O naturalizado é a mulher que é braço direito do


homem, a mulher que está por trás do grande homem, a mulher-sombra. Esse
movimento de nos enclausurar em um lugar de não potência e de vulnerabi-
lidade é demasiado desgastante para nós. Perdemos tempo demais provando
nosso valor, conquistando o respeito que poderia nos ser dado, argumentando
sobre nossa competência enquanto poderíamos estar ganhando dinheiro. Em
suma, o estático, o dado, o posto está para o conformar-se — o caber em
uma forma; o trabalho feminino, por sua vez, está para o libertar-se, o que só

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acontece com metamorfose.

Hora de abandonar as crenças limitantes e desbloquear a


prosperidade

Prego que não se destaca não leva martelada, mas o que é o prego senão
um instrumento construído exatamente para isso? Não; essa metáfora não é
para falar sobre predestinação ou carma. Aqui, é preciso falar sobre essência.
Eu comecei o relato falando sobre a expectativa que meus pais tinham sobre
meu futuro no serviço público e todo o processo para só ter parte de mim
voltada para isso; e caminho para a conclusão com uma série de lembranças
de relações disfuncionais em que me vi injustiçada, não reconhecida, desres-
peitada, onerada, sugada. Em João 10:10 lemos: “Eu vim para que tenham
vida, e vida em abundância”. Viemos ao mundo para transbordar; para ter
amor, alegria, paz e segurança em abundância. A vida é repleta de aflições,
de turbulências. Para Deus e para Guimarães Rosa, o que ela quer da gente é
coragem. E coragem, definitivamente, não é fugir de marteladas, não é fugir da
dor, não é ficar na zona de conforto. A crença limitante da minha vida não era
ser servidora. Quando eu me dedico a isso, sempre sou convidada a assumir
cargos de liderança com os quais evoluo muito, inclusive financeiramente.
Minha limitação era achar que o certo era agradar, atender e ceder a todo
mundo, a fim de ser querida e reconhecida.
As reflexões que trago aqui servem para a vida, em geral, mas vou me
voltar para o empreendedorismo. É fato que, hoje em dia, toda empresa precisa
doar. A doação é como sementes que o empresário semeia hoje para colher
dinheiro no futuro. Empresas de esporte lançam aplicativos para acompanha-
mento de atividades físicas; é só baixar... Empresas do ramo da moda dão
consultorias sobre estilo em palestras. Empresas de marketing fazem tutoriais
para aprendermos a usar estrategicamente as redes sociais. Empresas de audio-
visual ensinam a editar fotos e vídeos na palma da mão. A dinâmica é dar e
receber. Os empresários dão seu tempo, seus conhecimentos, suas experiências
e recebem não só gratidão e admiração mas também clientes. Se eles derem
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 249

o próprio produto ou serviço, seja na íntegra, seja com descontos que tiram
totalmente seu lucro, se ocuparem todo seu tempo exercendo sozinhos a fun-
ção de vários funcionários, se tiverem a necessidade de controlar tudo, de dar
conta de tudo e de agradar a gregos e troianos, não terão tempo e disposição
para a semeadura que germina e promove a colheita. Ao contrário, colherão
adoecimento físico e mental, colherão dívida... quem sabe até falência.
Os meus clientes não são aqueles que se contentam com um trabalho
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mediano, que preferem o preço ao valor, que preferem o curto tempo à quali-
dade. Por estes, dou o meu melhor e oferto serviços que até se pode encontrar
em outros lugares, mas não com o toque e a autenticidade da Certifique-se. Ao
ofertar um serviço de qualidade e ainda doar tanta ajuda em forma de posts,
áudios e mensagens, sou muito amada, sou muito querida, sou muito honrada.
Mas sabe qual o preço de muitas pessoas gostarem de mim e do meu trabalho?
O preço é ter, igualmente, muitas pessoas que me detestam e torcem para a
minha queda. As crenças limitantes no “agradar todo mundo”, no vestir a capa
da super-heroína me fizeram, por muito tempo, botar demasiada energia no
que não precisava de tanta atenção e, por conseguinte, tardaram meu destaque,
meu holofote, a chegada do reconhecimento de quem interessa e do dinheiro
justo. Eu fui um prego fugindo do martelo; uma mulher se escondendo na
menina; eu fui a mulher-foca, do conto antigo.
Há muitos e muitos anos, mulheres com pele de foca transitavam entre
a terra e o mar, sendo o último sua verdadeira morada. Um homem solitário
e infeliz roubou a pele da mais distraída e jurou-lhe amor eterno e a pele de
volta em sete verões. Mesmo relutante, ela aceitou quitar o foca de seu nome
por um tempo e foi vivendo como humana, tendo inclusive um filho com esse
homem. Por mais que amasse a família, foi, pouco a pouco, definhando-se.
Disse a mulher ao marido: “Quero que me seja devolvido aquilo de que sou
feita”. E depois: “Só sei que preciso daquilo a que pertenço.” (Estés, 2018,
p. 297). A nossa essência, cedo ou tarde, grita. E se não dermos ouvidos, ela
esgoela em forma de ansiedade, depressão etc.

As focas têm uma certa qualidade canina: são afetuosas por natureza. Irra-
dia delas uma espécie de pureza. No entanto, elas também podem ser muito
rápidas para reagir, recuar ou retaliar quando ameaçadas. A alma também
é assim. Ela paira por perto. Ela alimenta o espírito. Ela não foge quando
percebe algo de novo, de incomum ou de difícil. (Estés, 2018, p. 300).

Assim como a mulher-foca, somos roubadas várias vezes na vida. “É a


falta de novos depósitos de energia, conhecimento, reconhecimento, ideias
e animação que faz com que a mulher sinta estar morrendo em termos psí-
quicos.” (Estés, 2018, p. 305). Mas nossa essência é corajosa e grandiosa e
250

persegue a abundância, mesmo porque somos merecedoras dela. Quando


fazemos o retorno ao próprio self, à própria casa, autoconhecendo-nos, reco-
nhecendo as crenças limitantes e substituindo-as por crenças melhores, vol-
tamos para o nosso eixo e colocamos nosso ego no seu lugar: o de submissão
à alma. Nesse momento, não nos importa mais não sermos amadas por todos.
Aceitamos a inveja, a cobiça e a negatividade alheias; concentramos energia
no que de fato interessa e que nos faz crescer, a gente e a empresa; rechaça-
mos a escassez e abrimo-nos para a prosperidade. Em tal ocasião, os ditados

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populares “o céu é o limite” e “foguete não da ré” viram uma verdade.

E bem, e o resto?

Agora, por que é que não me dei conta antes, respondi de outro modo,
disse não, disse sim? Talvez porque antes de entender da Letras eu fazia
tradução direta da palavra “pessoa”... adotava o sentido grego. Mas... não é
este propriamente o resto do capítulo. A suma das sumas é que a Fernanda da
Certifique-se sempre esteve, em potencial, dentro da Fernanda menina, filha,
amiga, profissional... A mulher empreendedora está dentro de cada mulher,
lá no seu íntimo, e pode emergir, seja das cinzas, seja do riso, a depender do
que ela faz com o que lhe fizeram.
Mulheres, Steve Jobs17, certa vez, disse: “se você olhar bem de perto,
a maioria dos sucessos que aconteceram da noite para o dia levaram muito
tempo”. Respeite os processos, abrace as dores, transforme problema em apren-
dizado e desafio. A vida lhes será leve! E vamos à História da Certifique-se...

17 Steven Paul Jobs (São Francisco, Califórnia, 24 de fevereiro de 1955 — Palo Alto, Califórnia, 5 de outubro
de 2011) foi um inventor e empresário no setor da informática. Notabilizou-se como cofundador, presidente e
diretor executivo da Apple Inc.https://pt.wikipedia.org/wiki/Steve_Jobs — cite_note-NYT-6 e por revolucionar
seis indústrias: computadores pessoais, filmes de animação, músicas, telefones, tablets e publicações digitais.
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 251

Referências
Brandão, R. S. (2010). O escritor é, antes de tudo, um leitor. Machado de
Assis em Linha, 3(5), 17-31.

Cabral, G. (2015). A esperança audaz: a pedagogia de Paulo Freire. Ul-


timato. https://www.ultimato.com.br/revista/artigos/353/a-esperanca-
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audaz-a-pedagogia-de-paulo-freire.

Estés, C. P. (2018). Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do


arquétipo da mulher selvagem. Rocco.

Freire, P. (1992). Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia


do Oprimido. Paz e Terra.

Klink, A. (2016). Não há tempo a perder: em depoimento a Isa Pessoa.


Foz; Tordesilhas.

Miglievich-Ribeiro, A. (2017). Darcy Ribeiro e UnB: intelectuais, projeto e


missão. Ensaio: avaliação e políticas públicas de educação, 25(96), 585-608.

Silva, F. A. (2018). Ponto de Inflexão: uma decisão muda tudo. Buzz Editora.
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Capítulo 12
Empreendedorismo feminino como “opção”:
inclusão social e políticas públicas
Paulo Henrique Souza Roberto1
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Introdução

Atualmente, vivenciamos um contexto marcado por imensas transfor-


mações tanto sociais quanto tecnológicas, como a que está ocorrendo desde
o ano de 2020 devido à pandemia da covid-19. Esse cenário trouxe mudanças
bruscas para o universo do trabalho, como a redução da intervenção do Estado
na manutenção dos empregos formais e o enxugamento no setor público para
políticas de combate à pobreza. Tais mudanças, por conseguinte, levaram a
uma evolução do desemprego em massa e a novas reconfigurações da estrutura
do trabalho, como a reforma trabalhista (Leister, 2020).
Perante a tentativa dos indivíduos de se manterem incluídos no mer-
cado de trabalho e diante da crescente demanda pela manutenção do poder
de compra, marcada pela necessidade de subsistência no capitalismo, surge
em nossa sociedade atividades como o empreendedorismo, que são ações
concretas exigidas para driblar a crise no mundo do trabalho e que advém de
poucas ou nulas oportunidades de inserção em ambiente de trabalho formal
(Vasconcelos, 2003).
Nesse cenário, esses trabalhadores e trabalhadoras colocam em prática
os seus saberes constituídos muitas vezes no ambiente familiar, repassados
de geração em geração, ou na participação de princípios culturais, obtidos
na construção coletiva em ambientes favoráveis a esse aprendizado. Essas
práticas que circundam o saber coletivo não estão vinculadas, necessaria-
mente, a uma ação profissional formalizada e são marcadas pela nula ou
pouca orientação de gestão. Essas circunstâncias minimizam a possibilidade
de empoderamento ou expansão de negócio, mas são marcadas pela incessante
busca pelo aumento do poder de compra e pela subsistência.
Nesse sentido, este trabalho busca inicialmente desmistificar a visão de
um empreendedorismo feminino visto como “opção” para mulheres trabalha-
doras. Por conseguinte, propõem-se a analisar as diferentes formas de aplica-
ção das políticas públicas para reforço dessas atividades, que são constituídas

1 Universidade de Brasília (UnB).


254

visando o desenvolvimento econômico e o fomento da participação feminina


empreendedora tida como objeto de inclusão social, particularizando o olhar
para os negócios demandados por necessidade.
Para isso, será descrito neste capítulo um breve panorama sobre a parti-
cipação da mulher brasileira no empreendedorismo, considerando-se o perfil
dessas trabalhadoras que “põem a mão na massa” para efeito de seus empreen-
dimentos. A partir disso, serão destacadas as principais políticas públicas de
manutenção de um empreendedorismo que dê condições de subsistência paras

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essas trabalhadoras.

Um breve panorama da participação da mulher brasileira no


empreendedorismo

Para contribuir com a compreensão do cenário do empreendedorismo no


Brasil e no mundo, a Global Entrepreneurship Monitor (GEM) vem desenvol-
vendo pesquisas que buscam compreender aspectos correlacionados à ação
empreendedora. Nesse sentido, vem realizando atividades relacionadas ao
processo de monitoramento e que se constituem por informar, por meio de
relatórios, situações atuais sobre empreendedorismo.
Nesse sentido, foi publicado em 2020 o Relatório Executivo do Empreen-
dedorismo no Brasil, no qual constam informações que podem contribuir para
a compreensão desse cenário. O Brasil se destacou entre os países pesquisados
pelo GEM (2020) e atingiu o maior número de empreendedores iniciais dos
últimos 20 anos, com aproximadamente 25% da população adulta envolvida
nessas atividades. O Brasil representa, então, a 4ª maior Taxa de Empreen-
dedorismo Inicial (TEA= 23,3%) entre os países de renda média e renda alta
no número de trabalhadores que empreendem.
O Brasil também apresentou a 4ª maior Taxa Total de Empreendedo-
res (TTE) no ano de 2020 (TTE=38,7%) ao registrar, aproximadamente, 53
milhões de brasileiros adultos que realizam alguma atividade empreendedora
com o envolvimento na criação de pequenos negócios, na consolidação de
um novo negócio ou na manutenção de um empreendimento já estabelecido.
Quando avaliada a questão de negócios iniciais em empreendedorismo
por faixa etária, percebe-se maior presença de mulheres com idades entre 25 e
34 anos empreendendo. O que chama atenção é que essa faixa etária coincide
com o período em que as mulheres no Brasil costumam constituir família.
Outro dado que chama a atenção é que o Brasil se manteve entre os 10
países em que os trabalhadores que assumiram o empreendedorismo por neces-
sidade obtêm renda média e alta. Esse dado pode apresentar uma perspectiva
pessimista em relação ao mercado de trabalho, no qual esses profissionais
percebem um cenário marcado pela dificuldade de ingresso e pela falta de
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 255

soluções para a manutenção do poder de compra. Desse modo, o empreende-


dorismo torna-se uma alternativa para essa realidade (GEM, 2020).
A pesquisa GEM também analisou a motivação para empreender a par-
tir de critérios de gênero. E os resultados indicaram que 53% das mulheres
decidiram empreender por conta da dificuldade de inserção em mercado de
trabalho formal. Em números exatos, a participação de mulheres em atividades
empreendedoras atingiu a 5ª colocação nos países pesquisados. Ao analisar as
condições de negócios iniciais absolutos, esse patamar diferencia-se substan-
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cialmente, alcançando o 3º lugar com 6,3 milhões de mulheres empreendedo-


ras, ficando atrás apenas dos Estados Unidos e China (GEM, 2020).
É visto que, apesar de o Brasil direcionar atenção para o empreendedo-
rismo diante de um alerta da flexibilização do mundo do trabalho, não houve
ainda uma intensificação imediata de práticas de fomento ao empreendedo-
rismo e nem mesmo de políticas e ações de microcrédito que otimizassem
essas práticas por trabalhadoras brasileiras.
Enquanto consequência, é vista a problemática participação das mulheres
nesse ramo, já que ela acontece principalmente pela necessidade, uma vez
que existe a dificuldade de colocação no mercado de trabalho formal. Dessa
forma, essas trabalhadoras se veem impulsionadas a atuar nesse sentido para
manterem sua subsistência, e isso se dá em grande escala pelo exercício da
prática profissional na informalidade.

O empreendedorismo feminino na prática

As experiências de empreendedorismo costumam ser marcadas pela


dificuldade em assumir uma postura gerencial, mesmo após a capacitação téc-
nica. Essas dificuldades se acentuam com mulheres que empreendem (Simião,
2003) e que, mesmo em espaços de ampla competitividade, tendem a assumir
uma postura altruísta em seus negócios. Isso as coloca no lugar de eternas
doadoras, já que são prática que se constituem como verdadeiros obstáculos
para efetivação de um negócio duradouro.
Os obstáculos são diferenciados e se dão no dia a dia dessas trabalhado-
ras na condução de seus empreendimentos. Se fazem presentes na rotina de
venda a crédito para pessoas próximas ou em constantes retiradas do caixa
para a compra de alimentos ou remédios. Esses comportamentos são tidos
como naturais, uma vez que, se há dinheiro em caixa e existe uma necessidade
real, ele poderá ser utilizado.
Por isso, a autora vê uma necessidade de mudança de atitude que inde-
pende de treinamento e conhecimento técnico. O que precisa existir é uma
mudança na visão de negócio, uma vez que a atividade empreendedora é
tida por essas mulheres em caráter complementar e não como uma opção de
256

trabalho (Simião, 2003). Tal cenário é preocupante, pois o empreendedorismo


acontece mais por necessidade do que por oportunidade.
Nesse sentido, tais empreendimentos sofrem pela pouca visão de negócio
focado no planejamento estratégico e na gestão empresarial e, por isso, ten-
dem a ter uma vida útil muito curta. Um exemplo importante na manutenção
desses empreendimentos seria o microcrédito aplicado à produção, o que seria
importante e eficaz na redução da pobreza e viabilizaria alternativas para a
minoração das atividades pontuais. Porém, na prática, isso não acontece, e

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quando se aplica às mulheres, se apresenta como um novo obstáculo devido
às garantias adicionais que algumas entidades financeiras exigem.
Isso acontece porque as mulheres ainda são consideradas financeiramente
dependentes de seus cônjuges e, assim sendo, os créditos para manutenção
e gestão do negócio são quase sempre negados, já que se exige garantias
adicionais para fomento de crédito e investimento. Fato é que a pobreza não
atinge só as mulheres, porém, outro fato é de que a mulher sempre teve pro-
blemas de acesso às políticas públicas de desenvolvimento e emancipação
econômica (Simião, 2013).
Essa relação assimétrica de poder existe e subsiste apesar do discurso
fadado da pós-modernidade, que insiste em colocar homens e mulheres num
parâmetro de igualdade. Porém, se existem barreiras de acesso às políticas
de desenvolvimento e emancipação, existe a violência simbólica (Bourdieu,
2002). Por isso, ainda cabe às mulheres saborear “a felicidade” da manutenção
do capital social, ou seja, a conservação dos laços de solidariedade e dos vín-
culos familiares, além do trabalho doméstico. O patriarcado foi internalizado
nos nossos corpos e na nossa psique, e tendenciamos a ver esses eventos, bem
como a divisão sexuada das coisas, como naturais e próprios da vida.
Nesse sentido, percebe-se algumas mudanças nesse cenário, no entanto,
direcionadas às mulheres mais privilegiadas economicamente. Essas pagam
um alto preço por isso, já que precisam conciliar dupla ou tripla jornada de tra-
balho, enfrentam estresse em ambientes de ampla competitividade, cobranças
pela ausência no lar e no cuidado dos filhos e a responsabilização pela fragi-
lidade dos vínculos familiares. A possibilidade de acesso à educação formal
e a ascensão social fundamentadas em posturas e pensamentos inovadores e
transgressores têm sido apenas vieses para a naturalização da sobrecarga de
trabalho (Barros, Pereira, 2008).
Essas transformações são realidades para uma parcela de mulheres eco-
nomicamente privilegiadas, porém um outro grande número de trabalhadoras
continua desprovidas dos mesmos artifícios das quais as classes dominantes
são possuidoras. Nesse sentido, para tornar o mundo do trabalho viável, é
necessário que haja mudanças culturais no sentido de redimensionar os papeis
sociais das mulheres (exemplos dessas mudanças seriam a socialização das
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 257

tarefas e atividades domésticas e de cuidado, o acesso igualitário à escola-


rização, paridade no exercício político, paridade de renda, entre outras. Isso
favoreceria as atitudes laborais também diante do empreendedorismo feminino
enquanto uma possibilidade de ascensão econômica e social.
O incentivo às iniciativas do cooperativismo também aparece como um
instrumento que viabiliza a reintegração de mulheres pobres ao trabalho. Nesse
sentido, deve haver sobretudo o apoio da sociedade civil organizada, das uni-
versidades e do poder público. Essa atuação conjunta pode facilitar o incentivo
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de políticas de crédito para os mais pobres e instrumentalizar uma política


real de erradicação da pobreza. Por isso, essas ações são fundamentais para o
sucesso da participação e da gestão feminina nesse tipo de empreendimento.
O desenvolvimento econômico e social através do cooperativismo agrega
valores sociais e práticas que fazem com que esses obstáculos de superação
da pobreza possam adquirir um contorno mais leve. Assim, a Recomendação
193 de Promoção de Cooperativas, oriunda da Conferência Internacional do
Trabalho em Genebra no ano de 2002, propõe a promoção e o fortalecimento
da identidade das cooperativas com base em princípios de autoajuda e nos
pilares democráticos dessas entidades.
Esse processo de promoção e fortalecimento do cooperativismo também
devem basear-se no espírito de responsabilidade nos processos de gestão e
autogestão, equidade nas relações estabelecidas no processo de formação de
redes e solidariedade. Além de princípios éticos de honestidade, transparência
nos processos e responsabilidade social.
Ademais, a Recomendação 193 prevê medidas que devem ser tomadas
para promover o potencial de cooperativas para incentivar seus associados a
criarem e desenvolverem atividades geradoras de renda e empregos decentes
e sustentáveis. Desse modo, devem desenvolver capacidades de recursos
humanos e conhecimento dos valores, vantagens e benefícios do movimento
cooperativo por meio de educação e formação. Também é necessário desen-
volver seu potencial comercial, inclusive suas capacidades empresariais e
gerenciais, para fortalecer sua competitividade no mercado. Assim, também
devem consolidar a previsão de oportunidades no sentido de propiciar acesso
a mercados e instituições financeiras com o aumento de poupanças e inves-
timentos para trabalhadoras com renda baixa e média.
A Conferência Internacional do Trabalho ainda discutiu a importância
de uma maior presença feminina na esfera política, pois só assim é possível
uma maior mobilização para a idealização de políticas públicas que atendam
as reais necessidades no âmbito da geração de emprego e na política de saúde
voltada para as especificidades de populações minoritárias. Essas políticas
públicas devem ter o intuito de minimizar a vulnerabilidade e suas barreiras
adicionais para que sejam superadas as situações de desigualdade social, e
258

não somente impressas pelas estratégias de redução de pobreza, como nas


políticas de geração de renda que são enfoques atuais.
Ou seja, impera o indicativo da necessidade de implementação de polí-
ticas públicas com foco feminino para sanar essas divergências históricas no
contexto de trabalho. Isso é premissa contrária ao otimismo correlacionado
ao discurso “de pleno desenvolvimento econômico e do trabalho no Brasil”, o
qual é marcado por um contexto real de dificuldades vivenciadas por mulheres
em ações empreendedoras, que tentam romper e, muitas vezes, conciliar as

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atividades profissionais com as exercidas no espaço privado — sem ajuda ou
incentivo do Estado — postergando a manutenção de seus negócios.
Nesse sentido, atentas às condições precárias de sobrevivência dessas
trabalhadoras, algumas organizações de âmbito nacional e internacional têm
promovido debates para o amplo desenvolvimento de políticas públicas que
atendam as minorias e suas especificidades. Para isso, partem do entendimento
da importância de adoção de medidas que contemplem essa população que
sofre com as múltiplas formas de discriminação, de exclusão social, política
e econômica no país.
A ocupação dessas trabalhadoras na categoria por necessidade desafia a
compreensão do empreendedorismo como “opção”. Não se escolhe empreen-
der, é uma questão de sobrevivência. Visualizar o empreendedorismo como
opção minimiza o entendimento do complexo cenário de desigualdades vivido
por trabalhadoras brasileiras, no qual muitas delas, diante da precariedade de
espaços profissionais, precisam empenhar sua força de trabalho em atividades
autônomas e precárias em direitos no âmbito do trabalho.

Perfil da mulher brasileira no cenário empreendedor

As mulheres têm participado ativamente do cenário empreendedor, ainda


que motivadas principalmente por questões de sobrevivência. Fato é que essas
trabalhadoras ainda estão em maior número inseridas em negócios iniciais
em detrimento dos empreendimentos estabelecidos (GEM, 2020). O relatório
de 2020, que tem sido abordado aqui, detalha essas informações e evidencia
a distância em percentual que o Brasil se encontra em relação à abordagem
das Taxas de Empreendedorismo Inicial (TEA), segundo gênero e classe.
No Brasil, em 2020, segundo o relatório GEM, praticamente não houve
diferenças no número de homens e mulheres no estágio de empreendedorismo
inicial. Em números absolutos, estima-se a existência de quase 3 milhões de
homens a mais do que mulheres no empreendedorismo estabelecido, isso
escancara a desigualdade de oportunidades de crescimento nesse tipo de negó-
cio. Porém, apesar das dificuldades no acesso ao mercado de trabalho, são as
mulheres que costumam acreditar em motivadores positivos, como o cuidado
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 259

da manutenção do poder de compra e sobrevivência para o ato de empreender,


enquanto os homens estão sempre motivados a enriquecer.
Segundo o relatório, a atuação maior de homens no empreendedorismo
na história pode ter contribuído para um percentual mais elevado desses traba-
lhadores no ramo. Porém, a inserção da mulher na atividade empreendedora,
assim como em outras posições no mercado de trabalho, vem crescendo ao
longo dos anos, mesmo que advindas de uma base menos privilegiada. Há
uma concentração maior de mulheres em “serviços domésticos”, que tendem
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a ter uma concorrência maior e causar um desgaste proeminente na saúde


dessas trabalhadoras. Isso acaba por acarretar negócios e empreendimentos
femininos menos longevos (GEM, 2020).
Ademais, considerando-se o tipo de motivação, no caso das mulheres,
para empreenderem, verifica-se uma participação maior de empreendedoras
por necessidade em comparação aos homens. Isso se deve ao fato de parte das
mulheres buscar o empreendedorismo como algo provisório e passageiro, ou
seja, quando encontram dificuldade no provento ou na subsistência de seus
membros familiares. Nesse sentido, costumam abandonar a atividade empreen-
dedora quando há uma melhora mínima da renda familiar (GEM, 2020).
No quesito continuidade dos empreendimentos, também deve-se consi-
derar, ainda, aspectos socioculturais marcados pelo maior envolvimento das
mulheres em tarefas domésticas. Segundo dados do IBGE, em 2020, no Brasil,
a taxa de realização de afazeres domésticos e/ou cuidado de pessoas realizado
por mulheres no Brasil foi de 92,1%, enquanto entre os homens foi de 78,6%.
Quando se trata de horas trabalhadas na realização de atividades domésticas,
o estudo indica que elas dedicaram, em média, 21,3 horas por semana com
afazeres domésticos e cuidado de pessoas em 2020, quase o dobro do que os
homens gastaram com as mesmas tarefas — 10,9 horas. Mesmo trabalhando
fora, as mulheres cumpriam em média 8 horas a mais com essas atividades
do que os homens também ocupados (IBGE, 2020).
Nesse sentido, o ato de empreender por mulheres tem suas particulari-
dades consonantes com a dupla jornada de trabalho. Geralmente, este é um
negócio de família, divido com o próprio lar e feito para facilitar o cuidado
dos filhos, quando os têm. Parece interessante o fato de se trabalhar em casa,
não tendo despesas como aluguel, ou o distanciamento de burocracias, e outras
despesas como taxas de água, saneamento e luz. No entanto, o fato de “traba-
lhar em casa” pode ser um obstáculo a mais, já que, em sua maioria, muitas
mulheres se sentem motivadas a empreender porque antes tinham dificuldade
de se estabelecer em mercado de trabalho formal devido à manutenção do
cuidado de outros entes familiares.
Empreender nem sempre permite que essas trabalhadoras encontrem con-
dições socioeconômicas favoráveis para dar continuidade aos seus negócios,
260

mas serve quase sempre para sua sobrevivência momentânea. Nesse sentido,
essa trabalhadora é condicionada a sair em busca de um emprego formal que
possa oferecer maior estabilidade financeira. E esse é o fator primordial reve-
lado nos dados sobre descontinuidade dos empreendimentos motivados por
necessidade, pois o estudo revela que mais de 40% das trabalhadoras desistem
de seus negócios motivadas pela possibilidade de inserção em empregos no
mercado de trabalho formal (GEM, 2020).
Ou seja, o ato de empreender por mulheres é, em suma maioria, motivado

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por sobrevivência e marcado por um contexto de insegurança para manter-se
no processo de gestão de seu próprio negócio e pela dificuldade de conciliar
essas atividades com o cuidado da casa e da família sempre em uma dupla
ou tripla jornada de trabalho — o que torna ainda mais difícil o exercício
dessas atividades.
É importante salientar ainda que a falta de orientação e capacitação
efetiva pode contribuir para a descontinuidade dos negócios chefiados por
mulheres. Ou seja, poucas, e porque não dizer, um quase nulo quantitativo de
mulheres empreendedoras conseguiu obter capacitação na condução dos seus
negócios pelos serviços disponíveis no âmbito governamental ou privado. Por
isso, no próximo tópico serão apresentadas as ações governamentais para o
fortalecimento do empreendedorismo feminino.

Ações governamentais para o fortalecimento do empreendedorismo


feminino

No ano de 2003, foi criada a Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM)


do Governo Federal, e a partir daí foram instituídas ações que potencializam
o debate acerca do trabalho feito por mulheres. A SPM, em 2003, estabeleceu
como objetivo principal o fortalecimento das dimensões de gênero e de raça
nas políticas públicas, dando ênfase àquelas que discutem o combate à pobreza
e geração de emprego para trabalhadoras em diferentes âmbitos (Secretaria
de Políticas para Mulheres, 2006).
Nesse sentido, foi de suma importância a criação da Comissão Tripartite
de Igualdade de Oportunidades e de Tratamento de Gênero e Raça no Tra-
balho pela SPM, que atuava em parceria com a Comissão Internacional do
Trabalho (CIT). Os arranjos elaborados pelas Comissões têm como objetivo
aproximar as relações das secretarias que trabalham na elaboração de políticas
para mulher.
Ademais, de forma conjunta, as Comissões traçaram estratégias úteis,
como a elaboração de Planos Plurianuais (PPA) para elaboração de material
técnico e político para a criação de políticas públicas que atendam à questão
do trabalho feminino. Essas ações reverberam até os dias atuais, mesmo que
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 261

de forma descentralizada, e representam um “recorte transversal de gênero


presente na formulação e implementação de políticas públicas para o trabalho
no país” (Secretaria de Políticas para Mulheres, 2006).
Tais ações tinham que, enquanto perspectiva, manter a discussão intermi-
nisterial, incorporando muitos dos ministérios em suas práticas governamen-
tais para desenvolver a promoção das mulheres no âmbito do trabalho. Claro,
existe uma lacuna entre o proposto em arranjos teóricos e o que acontece
na prática. Infelizmente, não é o que se detecta ano após ano nos planos de
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governo apresentados, nos quais poucos incorporaram os recortes de gênero


em suas propostas de ação eletivas. Porém, o que foi realizado atende uma
parcela da população e será apresentado no Quadro 1.
Entre as representações ministeriais do Governo Federal, o Ministério
do Trabalho detém um foco mais presente nessa preocupação, que é o inves-
timento para manutenção de empreendimentos iniciais ou recém-criados,
ainda que a política de transversalidade não esteja totalmente inserida no
rol de prioridades. Cabe avaliar alguns programas sob sua responsabilidade,
voltados para ação empreendedora:

Tabela 1 – Alguns dos Programas e projetos com incentivo ao


Empreendedorismo mantidos/financiados pelo Governo Federal
Programa Objetivos Público-alvo
Programa de
Estimular o desenvolvimento econômico e Micro e pequenas empresas, cooperativas,
Desenvolvimento
social do país, por meio da democratização associações de trabalhadores, profissionais
Centrado na Geração
do crédito produtivo assistido, capaz de liberais e microempreendedores de baixa
de Emprego, Trabalho e
gerar emprego, trabalho e renda. renda e populares.
Renda
Objetiva promover o fortalecimento
econômico das micros, pequenas e médias
Programa
empresas por intermédio do crédito e
Desenvolvimento De
da capacitação gerencial, tendo como Empreendedores
Micro, Pequenas e
público-alvo as micro, pequenas e médias
Médias Empresas
empresas, empreendimentos informais e
franquias empresariais.
Elevar o padrão de vida da população de
baixa renda e a geração de empregos Financiamento e
Programa Nacional de
no âmbito, dando oportunidade de novos Suporte a Grupos
Microcrédito
negócios, estimulando o empreendedorismo Específicos
e a bancarização.
Alterar de modo significativo a inter-relação
presente nos processos de desenvolvimento
Programa Nacional,
local e as condições de vida das mulheres
Trabalho e Suporte a Grupos
no que diz respeito à ambiência produtiva,
Empreendedorismo da Específicos
à autonomia econômica e financeira e à
Mulher
posição ocupada por elas no mercado de
trabalho.
continua...
262

continuação
Programa Objetivos Público-alvo
Trabalhadores (as) em risco de
Promover o fortalecimento e a divulgação
desemprego, desempregados, autônomos,
Programa Economia da economia solidária, mediante políticas
cooperativas, empresas autogestionárias,
Solidária em integradas, visando à geração de trabalho
associações, agências de fomento da
Desenvolvimento e renda, inclusão social e a promoção do
economia solidária e fóruns municipais e
desenvolvimento justo e solidário.
regionais de desenvolvimento.
Promover a qualificação social, ocupacional Trabalhadores que necessitem de

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e profissional do trabalhador, articulada qualificação e requalificação profissional
Programa Qualificação
com as demais ações de promoção da para sua inserção no mercado de trabalho
Social e Profissional
integração ao mercado de trabalho e de ou para manter seus empregos e pessoas
elevação da escolaridade. que desejam abrir negócio próprio.
Garantir a inclusão das mulheres no mundo
Programa Igualdade de
do trabalho, com acesso, ascensão e Mulheres inseridas na população
Gênero nas Relações de
demais direitos trabalhistas, em condições economicamente ativa.
Trabalho
de igualdade com os homens.

É importante salientar que alguns desses programas advêm do Programa


Integração das Políticas Públicas de Emprego, Trabalho e Renda da Comis-
são Intersetorial do Ministério do Trabalho e que têm sido um importante
mecanismo de discussão dos arranjos do trabalho atualmente. O que se nota
a partir do quadro 1 é que essas políticas possuem, na maior parte dos casos,
foco num grupo a ser atendido. O quadro exemplifica apenas uma parte das
políticas levantadas, mas esse padrão de objetivos, apoio e foco foi encontrado
na maioria das políticas de empreendedorismo analisadas.
Ocorre também que certos órgãos, como o Ministério do Desenvolvi-
mento Social e o próprio Ministério do Trabalho, possuem programas com
públicos-alvo específicos e bem delimitados e que não atendem uma parcela
da população de baixa renda. Por sua vez, órgãos de apoio afirmativo, tais
como a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), desenvolvem ações
com foco em grupos específicos e populações sub-representadas que muitas
vezes são excluídas, como as mulheres transexuais que, em suma maioria,
mantêm empreendimentos por conta própria.
Como evidenciado por Sarfati (2013), para que uma política pública
de empreendedorismo seja efetiva, se faz necessário o seu enquadramento
dentro do contexto econômico e social da localidade, no intuito de trazer de
fato resultados que promovam crescimento, desenvolvimento e emancipação
via o empreendedorismo. Nesse sentido, as políticas públicas de empreen-
dedorismo levantadas nesta pesquisa apresentam tanto um foco principal
quanto um foco num grupo a ser atendido por refletir as necessidades de
desenvolvimento do país.
Boa parte dos programas levantados agem no sentido de capacitar os
profissionais e empreendedores, em particular aqueles que atuam no processo
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 263

de gestão, almejando evidenciar as dificuldades expressas por esses traba-


lhadores, principalmente aqueles que iniciam suas atividades por necessi-
dade. Esse é outro ideal que integra as ações e programas governamentais
e se atenta para atender as demandas que esses trabalhadores enfrentam na
lida com seus clientes. Nesse contexto, acaba sendo um impeditivo para um
empreendedorismo próspero.
Os resultados também demonstram que boa parte das políticas públicas
sobre empreendedorismo no país mantêm um interesse em fomentar subsí-
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dios para os negócios já existentes no mercado. Esses aspectos podem estar


relacionados ao fato de que os micros e pequenos empreendimentos têm se
desenvolvido mais intensamente nos últimos anos (Sebrae, 2011). Sendo
assim, as ações desempenhadas pelo governo parecem ter, nesse momento, um
caráter mais direcionado à permanência desses empreendimentos no mercado.
Em contrapartida, são previstas ações mais modestas de incentivo à criação de
novos negócios, o que pode ser desenvolvido posteriormente quando se alcan-
çar uma maior solidez na atuação dessas empresas no ambiente de negócios.
Como evidenciado por Hisrich e Peters (2006), a maior causa de des-
continuidade dos empreendimentos está relacionada a falhas na gestão, de
modo que ações que visem melhorar a condução do negócio podem garantir
a permanência dessas empresas no mercado. Outro problema são as questões
étnico-raciais e de classe enfrentadas pelas mulheres em específico, já que elas
se encontram sob uma taxa de maior vulnerabilidade e têm pouca inserção
nos programas governamentais que estão sendo propostos. Isso é parte da
problemática, uma vez que as camadas que mais necessitam de um horizonte
para poderem empreender de forma assertiva não são acolhidas.
Dessas ações, apenas o Programa Economia Solidária em Desenvolvi-
mento vem fazendo atendimento integral às famílias em situação de vulnera-
bilidade, incluindo aquelas afastadas do contexto de trabalho formal a longo
prazo. É importante salientar também que essa é uma das políticas nas quais é
feita sugestão de prioridade pelo recorte étnico-racial e gênero. Nesse sentido,
deve haver maior preocupação dos ministérios, visando medir a sensibilidade
dos órgãos governamentais quanto à implementação da temática da transver-
salidade de gênero nos planos de governo enquanto prioridade.
A miopia nos planejamentos governamentais que não contemplam a
perspectiva de gênero tem custos sociais, políticos e econômicos que ainda
não foram computados em valores, mas são visíveis quando nos deparamos
com os diversos indicadores que abordam a condição da mulher no mercado
de trabalho, inclusive na via do empreendedorismo. Nesse sentido, escancara
a percepção cristalizada e ainda patriarcal dos legisladores que escolhem não
priorizar o debate sobre trabalho.
264

Cabe, no entanto, uma otimização das regras, a reorganização das normas


e práticas vigentes para acesso dos empreendedores a um número considerável
de políticas públicas com o enfoque no financiamento e no apoio em tecno-
logia e inovação que possam, de fato, favorecer as empresas já existentes e
possibilitar um arrojo àquelas que iniciaram recentemente suas atividades.
Sendo assim, é preciso reconhecer políticas cujo objetivo seja reduzir as
barreiras de entrada e saída.
É preciso adaptar as políticas públicas vigentes para que essas possam

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contemplar as questões de gênero de modo transversal e estratégico em razão
dos programas já propostos. Assim, pode-se contribuir de forma otimizada
para a superação das barreiras visíveis no campo político, econômico e social
em empreendedorismo feminino.

Considerações finais

O empreendedorismo feminino no Brasil é, por característica, motivado


por sobrevivência, e isso mostra uma faceta do nosso país que é excludente.
Isso porque as chamadas “autônomas” que produzem para o capital não são
formalmente assalariadas, o que as excluem da proteção social. Deve-se dei-
xar claro que esta análise não tem por si só a pretensão de desqualificar as
iniciativas empreendedoras que, eventualmente, são tidas como as únicas
oportunidades de renda e poder de compra dessas trabalhadoras, mas temos o
intuito de complexificar as discussões de algo que é complexo e remonta a toda
uma construção sobre trabalho neste país de histórico escravocrata e elitista.
Nesse sentido, é importante compatibilizar as políticas públicas para o
empreendedorismo em todas as instâncias governamentais observando-se a
força da participação feminina em negócios motivados por sobrevivência.
Ademais, cabe ressaltar a importância de implementar políticas públicas que
tenham reflexo nos negócios com essas características, ou seja, feitos muitas
vezes por mulheres pobres e negras, a partir de uma concepção de que elas
possam vir a ser agentes de transformação e progresso na economia brasileira.
Cabe ressaltar ainda que, embora as motivações empreendedoras por
sobrevivência e oportunidade possuam um público de mesma nacionalidade,
todos estão inseridos em diferentes estágios de vida e de compreensão de ges-
tão de seus negócios, assim como partem de lugares e processos diferentes.
Por esse motivo, devem caracterizar por si só o desenvolvimento de políticas
públicas diferenciadas, principalmente de fomento e microcrédito.
As políticas públicas precisam ser capazes de atender às demandas e
anseios existentes dessas trabalhadoras para impulsionar novas parcerias entre
negócios e, assim, ampliar o atendimento em âmbito governamental. Assim,
deve-se criar condições e ambientes favoráveis para estimular o crescimento e
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 265

a expansão de seus negócios. Desse modo, pode-se propiciar a continuidade de


seus projetos pessoais individuais e oferecer uma oportunidade para distanciar
essa trabalhadora do não lugar, do desconfortável lugar das desigualdades no
mundo do trabalho que são impressas no seu histórico de inserção autônoma.
Como recomendação para pesquisas futuras sobre empreendedorismo
feminino, sugerimos que a questão da emancipação continue sendo o cerne
da questão, especialmente no que diz respeito a uma abordagem de gênero
sobre a proposta de empreendedorismo como mudança social e como questão
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de sobrevivência de mulheres que ficam à margem do mercado de trabalho


formal. São necessárias também abordagens que enfatizem outros aspectos da
diversidade sexual e de gênero que contribuam para dar nuances mais plurais
ao fenômeno do empreendedorismo.
É importante ainda que outras pesquisas examinem as possíveis relações
de poder e gênero ao tomarem como objeto de investigação as atividades e
iniciativas empreendedoras em empreendimentos consolidados, visto que
o número de homens em atividades do tipo é imensamente maior. Nesse
sentido, a questão da subalternidade e do ato de empreender para sobreviver
escancara a vivência diferente das relações de poder ligadas às questões de
gênero correlacionadas a esse tipo de trabalho.
266

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98-102. FGV.
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Índice remissivo
A
Acesso ao crédito 121, 134, 135, 136, 137, 138, 140, 142
Administração 9, 15, 20, 29, 30, 31, 61, 67, 78, 80, 81, 97, 99, 115, 116,
120, 126, 140, 176, 183, 185, 189, 191, 192, 193, 195, 214, 216, 219, 226,
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227, 228, 267


Análise comparativa 9, 59, 66, 67, 69, 71, 72, 73, 74
Análise do discurso 44, 57, 90, 99, 217
Assistência à saúde 194, 195, 197, 198, 199
Atividade de trabalho 28, 92, 93, 94, 96

C
Características do comportamento 59, 60, 66, 68, 69, 73, 75
Coleta de dados 66, 67, 68, 90, 91
Comportamento empreendedor 9, 59, 60, 62, 64, 66, 68, 69, 70, 71, 72, 73,
74, 75, 76, 77, 80
Condições de trabalho 38, 86, 104, 128, 177
Condições de vida 11, 40, 174, 181, 183, 184, 261
Contextos de trabalho 147, 148, 152, 153, 161, 166

D
Dados da pesquisa 70, 71, 72, 74, 178
Desemprego 15, 34, 36, 38, 39, 43, 46, 49, 53, 104, 120, 128, 130, 131, 133,
181, 191, 194, 200, 253, 262
Desenvolvimento econômico 22, 38, 59, 64, 123, 126, 254, 257, 258, 261, 266

E
Empreendedorismo feminino 3, 9, 11, 12, 15, 20, 21, 26, 27, 30, 31, 60, 64,
65, 78, 80, 84, 89, 90, 97, 100, 101, 103, 110, 114, 115, 116, 117, 120, 185,
204, 206, 208, 210, 212, 232, 253, 255, 257, 260, 264, 265
Empreendedorismo no Brasil 20, 21, 30, 31, 79, 119, 141, 182, 254, 266
Empreendedorismo por necessidade 9, 15, 21, 27, 49, 128, 130, 131, 132,
138, 254
270

Empreendedorismo social 17, 29, 30, 52, 101, 102, 104, 106, 107, 111, 112,
113, 116, 117, 118, 119
Emprego 16, 18, 25, 34, 39, 46, 47, 48, 49, 50, 56, 57, 110, 127, 128, 133,
137, 138, 148, 154, 155, 166, 173, 174, 175, 181, 212, 257, 260, 261, 262,
266, 267
Ensino de empreendedorismo 60, 61, 62, 72, 74, 75, 76, 77, 78, 80
Ensino médio 33, 35, 41, 42, 53, 56, 231

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G
Gênero 9, 10, 11, 12, 19, 25, 26, 27, 30, 59, 60, 64, 69, 70, 72, 73, 74, 75, 83,
84, 88, 89, 90, 96, 97, 102, 110, 113, 118, 145, 146, 147, 148, 151, 152, 154,
155, 156, 157, 158, 159, 160, 162, 163, 165, 166, 167, 168, 169, 171, 173,
174, 175, 179, 180, 181, 183, 184, 185, 186, 187, 204, 206, 207, 209, 211,
212, 216, 220, 221, 223, 225, 245, 255, 258, 260, 261, 262, 263, 264, 265, 267
Geração de emprego 128, 137, 174, 257, 260, 261, 266, 267
Geração de renda 15, 16, 107, 134, 137, 258
Global Entrepreneurship Monitor 31, 79, 101, 117, 119, 141, 182, 185, 204,
217, 254, 266

H
Habilidades e competências 35, 43, 45, 54, 55, 62
Histórias de vida 97, 115, 219, 220, 221, 222, 223, 224, 225, 227
Homens e mulheres 66, 72, 73, 74, 75, 77, 78, 103, 174, 179, 180, 184, 186,
204, 206, 224, 256, 258

I
Idade 151, 174, 176, 179, 180, 181, 182, 183, 190, 194, 195, 196, 197,
230, 246
Identidade de gênero 118, 145, 147, 148, 157, 165, 166, 168
Ideologia empreendedora 121, 122, 125, 127, 128, 137

J
Jornada de trabalho 27, 185, 188, 190, 191, 192, 256, 259, 260

M
Mão de obra 46, 112, 123, 178, 217
Empreendedorismo feminino: um olhar para o real 271

Mercado de trabalho 10, 20, 21, 25, 26, 35, 38, 40, 43, 45, 47, 48, 49, 50,
51, 52, 53, 72, 88, 97, 101, 107, 108, 109, 112, 123, 124, 128, 133, 175, 178,
179, 180, 181, 183, 184, 205, 206, 207, 208, 210, 253, 254, 255, 258, 259,
260, 261, 262, 263, 265
Método da história 220, 221, 222, 224
Mulheres empreendedoras 9, 10, 24, 30, 31, 64, 65, 75, 76, 83, 86, 87, 88,
90, 93, 95, 96, 103, 107, 108, 109, 182, 187, 208, 211, 215, 219, 220, 222,
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223, 224, 227, 247, 255, 260


Mulheres negras 107, 110, 114, 125, 179, 180, 183, 210
Mulheres no mercado de trabalho 26, 108, 175, 179, 207
Mulheres que empreendem 20, 25, 87, 98, 213, 255
Mundo do trabalho 43, 44, 45, 47, 54, 96, 124, 128, 145, 146, 147, 152, 177,
253, 255, 256, 262, 265, 267

N
Necessidade 9, 10, 15, 16, 21, 25, 27, 45, 49, 51, 55, 57, 61, 63, 64, 72, 76,
77, 84, 88, 89, 93, 94, 95, 121, 128, 129, 130, 131, 132, 133, 137, 138, 174,
176, 180, 181, 182, 184, 206, 212, 222, 229, 244, 249, 253, 254, 255, 256,
258, 259, 260, 263
Negócios 10, 15, 16, 18, 25, 27, 40, 47, 48, 49, 50, 52, 53, 60, 62, 64, 65,
73, 75, 76, 80, 84, 85, 89, 91, 93, 97, 101, 102, 103, 104, 115, 117, 118, 127,
130, 131, 133, 134, 142, 182, 206, 211, 212, 215, 222, 223, 238, 242, 246,
247, 254, 255, 258, 259, 260, 261, 263, 264, 265
Neoliberalismo 24, 25, 33, 34, 35, 36, 37, 39, 40, 45, 49, 56, 57, 88, 128,
205, 211
Nível de análise 151, 152, 159, 161, 162, 163, 168

O
Oportunidade 9, 12, 15, 16, 21, 49, 50, 57, 68, 70, 71, 73, 74, 88, 89, 121, 123,
129, 130, 131, 132, 133, 137, 138, 182, 206, 212, 221, 225, 256, 261, 264, 265
Organização do trabalho 86, 203, 204, 205, 206, 208, 209, 211, 216

P
Pandemia 11, 31, 43, 59, 68, 69, 71, 74, 75, 76, 85, 86, 90, 93, 94, 95, 98,
99, 101, 178, 180, 253
Políticas públicas 10, 12, 23, 29, 30, 39, 64, 90, 96, 97, 113, 126, 134, 142,
184, 185, 251, 253, 254, 256, 257, 258, 260, 261, 262, 263, 264, 266, 267
272

População negra 121, 122, 123, 124, 136, 137, 139, 142
Previsão legal 188, 189, 190, 191, 192, 193, 196, 197
Projetos de vida 33, 35, 41, 42, 43, 53, 54, 55
Psicodinâmica do trabalho 10, 83, 86, 89, 92, 98, 99, 203, 205, 206, 207,
208, 209, 210, 211, 215, 216, 217, 218, 244

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Qualidade e eficiência 65, 68, 70, 71, 73, 76

T
Trabalho formal 43, 178, 184, 253, 255, 259, 260, 263, 265
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SOBRE O LIVRO
Tiragem não comercializada
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12,3 x 19,3 cm
Tipologia: Times New Roman 10,5/11,5/13/16/18
Arial 8/8,5
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal Supremo 250 g (capa)

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