Você está na página 1de 106

MILTON CHAMARELLI FILHO

Mestre em Lingüística pela UFMG e Professor Assistente da


Faculdade de Letras da Universidade Federal do Acre

Análise do Discurso, Semiologia


Icônica e Semiótica:
artigos inéditos

1a Edição
Rio de Janeiro
2000
1
Copyright  Milton Chamarelli Filho

Editoração: Vanderli M. Amorim


Cel 9944 3812

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Chamarelli Filho, Milton.


Análise do Discurso, Semiologia Icônica e
Semiótica: artigos inéditos / Milton Chamarelli Filho
Bibliografia.
ISBN 85-901572-1-0
1. Análise do Discurso 2. Imagem 3. Semiótica
I. Título. II. Série.
CDD-401-41
-302.23
-410

2000

Índices para catálogo sistemático:


1.Análise do Discurso: Comunicação: Linguagem 401.41
2. Imagem: Análise: Comunicação 302.23
3. Semiótica 410

Proibida a reprodução total ou parcial.


Os infratores serão processados na forma da lei.

2
Sumário

1. Prefácio .............................................................................. 5

2. Uma Breve Reflexão sobre o Método em Filologia .............. 9

3. Apontamentos Marxistas para uma Análise do Discurso


Publicitário ......................................................................... 19

4. Os Atos de Fala Indiretos Em “O Carteiro e o Poeta” ......... 37

5. Para Onde Vai a Leitura Feita na Escola .............................. 51

6. Resumo da Dissertação a Constituição de Slogans: uma


Abordagem Semiolingüística. .............................................. 55

7. Sobre a Descrição Como Etapa Necessária ao Trabalho de


Análise Semiológica de Fotografias (Versão Preliminar)
(texto apresentado ao Grupo de Semióticas Visuais e
Semiologia Icônica da FALE-UFMG) ................................ 69

8. Da Imagem-Movimento à “Imagem-Ato”: Uma Possível


Reflexão Sobre as Imagens (pro)cinematográficas ............ 79

9. Imagens em Contraponto: Um Estudo de Semiologia Icônica


Aplicado a Fotografias de Imprensa .................................. 97

3
Prefácio

Os textos aqui reunidos representam um pouco do que se


pode chamar de um percurso intelectual. Os temas neles
abordados, ao mesmo tempo que testemunham e refletem o meu
interesse por áreas tão próximas como a Análise do Discurso e a
Semiótica, são também parte de um compromisso pessoal e
profissional, na medida em que se convertem em textos para serem
discutidos e até reconstituídos dentro das instâncias acadêmicas.
Em sua maior parte, os textos tratam da aplicação de
conceitos nas áreas acima mencionadas. Mas nem por isso o
aspecto teórico-conceitual deixa de ser discutido neles.
Em certa medida, os textos são um pouco do que eu
esperei encontrar em muitos dos texto que li nessas áreas: não
algo pronto, já com uma aplicação preparada, mas com uma
delineação dos caminhos que me levariam a construi-los.
Talvez isso reflita um pouco da preocupação didática e
da dificuldade que encontramos no trabalho de sala de aula, ao
nos defrontarmos com a tarefa de apresentar teorias já
constituídas e aplicadas, com a dificuldade adicional da falta de
tempo de apontar para os fatos que levaram as teorias a se
debruçar sobre eles.
Alguns textos, como se poderá notar, apresentam um
caráter bem experimental; o que, de certa forma, faz com eles
apontem tanto para uma relutância em me deixar seduzir pelos
paradigmas de pesquisas “vigentes” como também para uma certa
vocação em não deixá-los “sozinhos” com o saber “de fonte”
onde foram hauridas as teorias para produzi-los. É uma tarefa
inconseqüente, se tomada do ponto de vista da ciência, mas é
coerente com a consciência.

5
Gostaria ainda de dizer que tenho uma dívida impagável para
com os professores que, em diferentes épocas, me fizeram muito
refletir, pessoalmente ou por meio dos seus textos, sobre as
questões aqui esboçadas. Sou assim particularmente agradecido
aos professores Maria Cristina de Avelar Esteves (UFMG), Luiz
Cláudio Vieira Oliveira (UFMG) e Lúcia Santaella (PUC-SP).

Milton Chamarelli Filho

6
“O que nos salva é a possibilidade de
um novo desenvolvimento e nosso
poder de tornar verdadeiro mesmo o
que é falso, repensando nossos erros e
recolocando-os no domínio do
verdadeiro.”

MERLEAU-PONTY, Maurice. O primado da


percepção e suas conseqüências filosóficas.
Campinas, 1989. p. 56.

7
UMA BREVE REFLEXÃO SOBRE O MÉTODO EM
FILOLOGIA

Considerações Iniciais

O presente trabalho tem como finalidade fazer uma


reflexão sobre o aspecto metodológico dos trabalhos filológico
e lingüístico quanto aos critérios de escolha dos seus objetos e
de como esses critérios se refletem nas suas práticas.
Poderíamos começar definindo o estatuto da filologia como
o de um campo de estudo a quem coube a prerrogativa de lavrar
textos, em geral literários, procurando validá-los ou autentificá-
los, dentro de uma perspectiva documental. A presença de uma
disciplina que teve e tem por fim a reconstituição dos significados
de um texto situa-se, ao longo de uma tradição de estudos da
linguagem, em função de uma natureza instrumental, legitimando
os fatos lingüísticos por ela estudados.
Se à filologia pode-se atribuir o poder de “chancela”
sobre o dito, presume-se que o seu objeto de estudo, em função
do qual é dirigida a sua atenção, representava uma espécie de
“simulacro” do seu próprio poder de validação. Esse
questionamento remete-nos, por certo, a própria delimitação
da constituição do seu discurso sobre o objeto que, ao entrar
em confluência com o discurso da história, acaba por justificar
posições já elaboradas por esta.
Longe de elaborarmos uma perspectiva diacrônica sobre
as recensões que foram feitas às concepções e métodos
filológicos, gostaríamos de colocar uma questão que toca o
cerne do trabalho filológico, qual seja, o trabalho sobre o
significado de um texto.

9
Talvez, a maior contribuição da lingüística, depois de mais
de meio século de posições racionalistas, seja o reconhecimento
da enunciação e a sua diferenciação do enunciado, objeto de estudo
da tradicional lingüística da língua. Se o dado externo ou social
não parecia ser a preocupação que fundamentava a teoria e a práxis
lingüísticas, é certo afirmar que as teorias sobre a enunciação e
análise do discurso trouxeram para o foco de estudo da linguagem
aqueles elementos até então desprezados como não constitutivos
de cientificidade.
Sendo assim, poderíamos agora perguntar: como
reconhecer o signifição das formas lingüísticas se não sabemos as
condições históricas e sociais em que foram produzidas? A
pergunta é por demais abrangente e, para acenar para uma
possibilidade de resposta, que vise antes de mais nada à reflexão,
propomo-nos, ao longo do texto, a ponderar três aspectos pertinentes
ao método filológico:
1. o estatuto filológico;
2. as formas de organização de um discurso sobre o texto;
3. a divergência entre interpretar e compreender como
tensão necessária à realização de um quadro teórico que
leve em conta o texto como produção e produto histórico-
social.

2. O Trabalho Filológico
Uma das tarefas da filologia consiste em colocar em um
sistema idealizado uma forma lingüística, após ter sido feita toda
uma série de comparações, visando à institucionalização dessa
forma. Esse trabalho que teve, em via de regra, seu início no
século XIX foi o propulsor da investigação filológica, que viu
na descoberta do sânscrito e na sua comparação com o grego
clássico e o latim, o elemento mediador para se chegar à proto-
língua, o indo-europeu.
10
Como herdeira da tradição evolucionista, a metodologia
diacrônica presente nos trabalhos filológicos foi tributária dos
modelos das ciências naturais, passando as línguas a serem vistas
como organismos que cumpriam um ciclo evolutivo. Essa
concepção de língua legou-nos junto à tradição cartesiana o
princípio da universalidade da linguagem, o que pode ser ilustrado
tanto pelas leis que conduziam as mudanças lingüísticas como
pelos postulados da gramática universal.
Observando-se, hoje, a história da lingüística através de
uma perspectiva na qual se pode traçar, razoavelmente uma distinção
entre a lingüística da língua e lingüística do discurso1 chega-se
à caracterização de que aquelas concepções desconsideram a
presença do homem enquanto condição para a linguagem como
elo de sociabilidade. As concepções sobre a lingüística da língua
nem mesmo estão distantes do ponto de vista que coloca a
linguagem como instrumento de comunicação2 . Vemos assim
que a filologia se enquadra dentro desse grande bloco que pode
ser chamado de “lingüística da língua”, nele situada como
antecessora da lingüística geral.
Mesmo com a mudança para o enfoque sincrônico, a
investigação lingüística estava longe das preocupações sociais e
tentava estabelecer seu “status” científico, procurando no seu
objeto de estudo, a langue, a sistematicidade.
Com a delimitação de novos objetos e método da
emergente lingüística, a filologia ocupou então uma posição
menos relevante dentro do que se passou a ser chamado de estudo
da linguagem, visto que seu procedimento era diacrônico (termo

1
MAINGUENEAU, D. 1993 p.11.

2
E aqui cabe lembrar Benveniste: “Não atingimos nunca o homem
separado da linguagem e não o vemos nunca inventando-a”. Cf.
BENVENISTE, 1988. p.285.

11
equivalente também dentro do ponto de vista teórico no início do
século a não-sistemático) como e se voltava, basicamente, para o
texto escrito. Fato que também pode ser considerado importante
já que a lingüística passou a lançar seu olhar para os textos orais.

3. O Texto
Uma caracterização que nos parece importante é a forma
pela qual se concebeu o texto dentro da filologia, o texto como
forma ideal. Com isso, supõe-se uma cisão do que ele é enquanto
produto histórico e do quanto ele foi enquanto produção dentro
de uma determinada época e circunstância. Tal suposição incide
na história da filologia em dois momentos da sua história:
“A admiração pelas grandes obras literárias do passado encorajou
a crença de que a própria língua na qual elas tinham sido escritas
eram em si mais “pura”, mais “correta” do que a fala coloquial
corrente de Alexandria e de outros centros helênicos. As
gramáticas escritas pelo filólogos tinham então dupla finalidade:
combinavam a intenção de estabelecer e explicar a língua dos
autores clássicos com o desejo de preservar o grego da corrupção
por parte dos ignorantes e iletrados. Segundo com a descoberta
do sânscrito, que mesmo não tendo uma relação direta com o
trabalho de reconstituição de sentidos de um texto, implicou a
comparação de formas lingüísticas situadas em função do fator
temporal, através do qual elas poderiam ser relacionadas.”3
A adoção do ponto de vista filológico de preservar as
línguas como entidades intangíveis traduziu-se, a nosso ver, em
um problema de método: a explicação da literatura clássica, a
interpretação através da língua ou de um modelo de língua que
se supunha incorruptível, ou seja, o fato de uma aproximação

3
LYONS, 1979. p.9.

12
entre língua e obra implicava, antes, uma separação (como
função basicamente ideológica) da língua como uma entidade
puramente abstrata e do texto como realidade puramente física,
e não significativa.
Se um texto pode ser tomado como um signo ou uma composição
de signos como fragmentos materiais de uma realidade4 , ele traz
consigo, portanto, as marcas dessa realidade. Assim, o texto evoca
e é evocado pelo traço histórico-cultural que o compôs.
O signo-texto, ao remeter ao que lhe é externo, interpreta
a realidade em que estava inserido, confrontando-se nele índices
de valores contraditórios. Como o trabalho filológico confinava-
se à conformação aos valores “positivos” da história, os valores
contraditórios ou “negativos” foram sendo apagados e as vozes
dissonantes que se faziam ouvir no signo forma caladas. Como
isso ocorreu?

4. As Formas de Organização de um Discurso sobre o Texto


Achamos necessário voltar a um ponto que consideramos
relevante para continuarmos essa reflexão sobre o método filológico,
que é a característica que lhe confere, pela sua natureza instrumental,
um poder sobre o dito. Esse poder advém de um saber que se apoia
em um conhecimento institucionalizado, representado pela filologia.
Sabe-se que a filologia circunscreveu seu estudo aos textos
considerados clássicos e que, ao fazê-lo, criou um círculo vicioso,
já que condiciona sua observação a resultados, de certa forma,
previsíveis. Quando ela é assim utilizada, podemos dizer que fez
um trabalho de controle5 do discurso. Mas esta não é a única

4
BAKHTIN, 1992. p.31.
5
Quanto à utilização deste termo, ver FOUCAULT, M. A ordem do
discurso. Tradução de Sírio Possenti. Inédito.

13
forma de se exercer um controle sobre o discurso. Vejamos a
forma de controle sobre o discurso que, talvez, mais tenha
incidido no trabalho filológico: o comentário.
O comentário é a forma de incidência sobre o texto original,
visando à construção de discursos novos (de forma a torná-lo
aberto, diferente) e visa a dizer o que pode ou não ser dito,
circunscrito pela possibilidade do que se dizer. Segundo Foucault:
“O comentário conjura o acaso do discurso,
manifestando-o: permite dizer coisa diferente
do próprio texto, mas sob a condição de que
seja este mesmo texto que seja dito e, de um
certo modo, concluído.”6
Vê-se que o comentário, ao retomar o texto original, o
fará de forma a delimitar as suas possibilidades interpretativas,
elegendo aquelas interpretações institucionalmente previsíveis7
e “certificadas”.

5. Texto, Mudando de Enfoque


Nossa tentativa de aproximação do trabalho filológico,
sabemos, é apenas uma breve síntese ou reflexão em função
das contribuições que a teoria da enunciação ou a pragmática
vieram trazer a partir da década de 70. Vamos agora mudar o
enfoque, tentando estabelecer alguns pontos de contato entre a
concepção de texto, dentro da filologia, e o conceito de índice
da ainda distante semiótica.
Acima, chamamos o texto de signo-texto. Se o fizemos foi
por entender que não só os seus elementos constituintes

6
Ibidem.
7
Quanto ao domínio da antecipação, ver: BRANDÃO, 1994.p.80.

14
remetem por si só a uma realidade como, em composição, eles
são índices de uma realidade como unidade.
O signo-texto, entendido em seu valor cultural e como
produto cultural, dentro das circunstâncias históricas e sociais
que o carateriza na história da filologia, não apenas foi visto
como uma espécie de índice, mas foi criado para ser visto como
tal. Isso talvez signifique que ele era não só visto como um
elemento de constatação como para ser constatado por outros.
Vejamos que na tradicional tríade peirceana é ao índice que
é atribuído o valor de constatação, no sentido de que só me é revelado
algo, se esse algo já foi revelado a outrem8 . Em um sentido mais
abrangente, pode-se dizer que a operacionalização de formas
lingüísticas como índices da história literárJia só fez com que
se repetissem, de certa forma, os discursos permitidos.

6. Interpretar vs. Compreender9


Se o trabalho filológico consiste em interpretar ou
compreender, isso eqüivale a dizer que ele pode centrar-se em
dois diferentes aspectos: o primeiro tem por fim resgatar o texto
do obscurecimento que se interpõe entre ele, texto, e a posteridade,
contextualizando os elementos lingüísticos dentro da história da
língua; o segundo, a partir de um novo ponto de vista, pode fornecer
meios de reflexão sobre a contextualização dos fatos lingüísticos
e construção do sujeito a partir do reconhecimento dos modos de
organização discursiva10 .

8
COELHO NETO, 1994.
9
Quanto a essa distinção, ver ORLANDI, E. “O inteligível, o
interpretável, o compreensível.” In: Texto & leitura. São Paulo,
Cortez, 1989.
10
CHARAUDEAU, 1992.

15
Os dois procedimentos mencionados acima definem
linhas demarcatórias sobre o entendimento que temos do texto,
ou seja, o texto como um veículo através do qual os sujeitos
interagem, inscrevendo-se, historicamente, como produção e
produto de uma interlocução.
Se podemos afirmar, com Gertz, que “compreender é
saber que o sentido pode ser outro”11 , por analogia, o que
poderíamos dizer da interpretação?
Como o processo de interpretação é construído sobre
estereótipos, sendo necessária a sua repetição, visando à
reprodução de valores da classe dominante, ou a sua constatação,
há de se esperar que em um espaço de interdiscursividade, como
no campo de atuação de uma disciplina, haja elementos
suficientemente ratificadores que sustentem a ideologia, e isto
pode ser feito tanto na filologia como na história como em qualquer
área do conhecimento que lide com o homem e a linguagem
transformados em linguagem.
O processo de interpretação, também por ser repetitivo,
torna-se anônimo, o que faz com que ele seja tramitável como
opinião generalizada. Por outro lado, o processo de compreensão
exige reflexão, desconstrução; exige saber como os sujeitos estão
inscritos historicamente no texto para que ele possa, assim, ser
compreendido.

7. Considerações Finais
Acredito que este trabalho represente apenas o início de
uma reflexão sobre o texto, ainda que faltem dados históricos
que possam fundamentar o nosso ponto de vista. Neste sentido,

11
apud ORLANDI, 1989.

16
acredito que exista toda uma pesquisa a ser feita que venha colher
dados sobre a concepção de texto dentro da filologia e sobre as
metodologias concernentes a estas concepções.
O fato de olharmos essas fatos de forma genérica possibilita-nos,
por outro lado, lidar com essas tramas mais tênues, mas que nem
por isso, deixam de fazer parte das linhas gerais que alinhavam o
trabalho em uma primeira instância, ou seja, a instância da hipótese.
Além da ausência de dados históricos, haveria uma maior
necessidade de observar, dentro da história da filologia, até que
ponto os procedimento de controle do discurso, dentre os quais só
apontamos para um, interferem e interferiram tanto na recepção
do texto filológico como na sua “retradução”. Saber, por exemplo,
se outros procedimentos tangenciaram especificamente obras que
passaram à posteridade é um outro ponto importante.
Por fim, vejo que a distinção, entre o que é interpretável
e o que é compreensível, requer uma análise mais acurada, no
sentido saber se, empiricamente, há variáveis que podem vir a ser
postuladas para níveis diferentes de produção e recepção de textos.

17
Referências Bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e filosofia da


linguagem. São Paulo, Hucitec,
1992.
BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral I.
Campinas, Pontes, 1988.
BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do
discurso. Campinas, Pontes 1994.
CHARAUDEAU, Patrick. Grammaire du sens et de l’expression,
Paris, Hachette, 1992.
COELHO, Teixeira. O que é indústria cultural. São Paulo,
Brasiliense, 1994.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Tradução de Sírio
Possenti. Inédito.
LYONS, John. Introdução à lingüística teórica. São Paulo, Cia.
Ed. Nacional, 1979.
ORLANDI, E. “O inteligível, o interpretável, o compreensível.”
In: Texto & leitura. São
Paulo, Cortez, 1989.
MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do
discurso. Campinas, Pontes,
1993.

18
APONTAMENTOS MARXISTAS PARA UMA ANÁLISE
DO DISCURSO PUBLICITÁRIO1

1. Problematização

Considerando-se os tipos de abordagem que são feitas sobre


o discurso publicitário (doravante DP), tendo em vista que a
análise desses discursos se faz em função dos produtos ou
serviços mormente semelhantes entre si, vimos sugerir uma
distinção que nos parece necessária não só para introduzi-la
dentro de um quadro teórico no qual poder-se-ia sustentar como,
também, torná-la operacionalmente efetivo para a realização
desse trabalho. Essa distinção diz respeito ao fato de que podemos
analisar o DP como um “produto”.
Este termo, por sua vez, não deve ser confundido com um produto
ou serviço que é oferecido ao seu comprador ou usuário. Falamos
de um produto de linguagem. Talvez, fosse melhor falarmos de
um tipo de produto, real, concretizado em função de fatores e
circunstâncias que o condicionam como um produto histórico e
social. Passamos, assim, a lidar com dois caminhos paralelos, e
esse novo direcionamento pode nos indicar que: hipótese 1. a
análise que pode ser feita sobre um produto de um DP (envolvendo

1
O presente texto foi elaborado com a finalidade de se tornar um projeto de
mestrado. Seu título inicial era: Análise do discurso publicitário: quando
a linguagem também pode ser consumida. Apesar da metodologia ser
completamente diferente, a idéia se manteve. As linhas que direcionaram
a elaboração da dissertação estão aqui presentes. Os pontos de vistas
abordados aqui contidos ainda continuam me intrigando, mesmo que eles
não mais sejam objeto da minha preocupação. Se o “tom” do texto é um
tanto quanto didático, isso se deve ao fato mencionado acima, i.e., dele ter
sido elaborado como um projeto.

19
a sua relação com a produção, distribuição, circulação e consumo)
poderia ser feita, também, sobre a linguagem que tipifica esse
discurso; hipótese 2. o que pode ser “consumido”, através dos
DPs, não seriam apenas os produtos, entendidos como objetos,
mas também a própria linguagem que é veiculada pelos discursos,
isto é, o próprio discurso.
Aqui poderia ser acrescentado, ao lado da noção de
“consumo”, a noção de “similaridade” entre as mesmas instâncias
de produção: aquelas que existem no âmbito da produção dos
objetos e aquela que existe na produção de discursos.

2. Justificativa
Como resultado das relações sociais que são reproduzidas
e como produto de uma sociedade, o DP visa a reproduzir as
relações de produção ao transformar o “consumo individual em
consumo produtivo, no sentido de que os valores de uso
transformam-se ou caracterizam-se como meios de se conseguir
algo. Meios que, por sua vez, podem ser entendidos como meios
de produção.
No DP, há uma dupla apropriação dos meios de produção:
a apropriação dos meios de produção que faz construir produtos
simbólicos, tenda como meta, nessa construção, a criação da
possibilidade da satisfação de uma necessidade aparente ou forjada,
e a apropriação dos meios de produção da linguagem, fato que se
relaciona diretamente com a perda inicial representada pelo
desenvolvimento social das metrópoles e pelo surgimento de novos
valores que acabaram caracterizando o papel de um homem
citadino. Homem este que não mais passa a lidar com atividades
agrárias, mas industriais, e como resultado, dessa mudança, o
“aparecimento” da sua voz, à medida que se amplia por outros
canais de propagação, acaba por deparar-se com as próprias
limitações físicas de uma voz restrita à facticidade doméstica.

20
Desse paradoxo, se é que assim podemos chamá-lo, resulta,
historicamente, uma perda, uma perda da fala. Talvez, aqui se possa
falar de uma “afasia social” como uma perda simbólica da fala do
homem como um resultado histórico.
Insinuar-se através dessa perda talvez seja uma das
características mais fortes do DP. Uma fala a qual passa a ser
imputada à fala de outrem, à voz do senso comum (da validação
e do pressuposto). Enfim, uma fala roubada, no sentido que
Roland Barthes dá a esta expressão, referente à questão do mito.
A dimensão histórica parece, portanto, necessária para a
explicação do DP. Assim, podemos presumir que a perda dos
meios de produção da linguagem (vista pela perspectiva da
indústria cultural do século XX) é paralela e é resultante da perda
dos meios de produção dos produtos.
A questão da inocência, da não-persuasão, aparece assim
como um contraponto às formas mais sutis de convencimento.
Não são apenas os recursos técnicos que fazem com que a
propaganda seja “inocente” ou elaborada, mas a própria concepção
que se tem sobre ela. Ou seja, a noção de uma propaganda mais
persuasiva está ligada diretamente às formas mais competitivas
do mercado, da concorrência entre os produtos ou serviços da
mesma natureza.
O novo na publicidade não é o esteticamente não
publicável, mas uma outra forma de se mostrar a relação entre o
homem e a imagem que dele se faz.
O discurso publicitário está, eminentemente, circunscrito
à época do seu aparecimento, e o seu tempo de vigência, à
condição de uso do produto (a evolução na qualidade de materiais,
serviços prestados e o conseqüente anacronismo destes) e
condição de uso da linguagem entre formas mais ou menos
preferidas, mais ou menos privilegiadas no cotidiano.

21
Historicamente, na medida em que ocorre a Revolução
Industrial e tendo como conseqüência o surgimento das grandes
metrópoles, os aspectos quantitativo e qualitativo da fala do
homem crescem em importância, diminuindo, por outro lado, o
poder de alcance da sua voz. Assim, face aos aspectos históricos
e sociais, o DP parece refletir as relações que são construídas
dentro da sociedade. Como estamos talvez ainda vivendo com
fenômeno das sociedades chamadas de massa, é provável que os
fenômenos deriváveis desse tipo de sociedade não só caracterizam
a forma de se fazer publicidade, mas transfiram, também, a sua
estruturação para a estruturação da linguagem.
Faz-se necessário, portanto, perceber quais as ligações
existentes entre os meios de produção de produtos e meios de
produção de linguagem, as relações de “perda de fala” e dimensão
mítica do DP e as formas de linguagem privilegiadas no DP.

3. Questões
1. Há fatores que condicionam a concretização de
determinados tipos de DP? Ou seja, que fatores podem fazer
com que o DP possa transcender o próprio âmbito do anúncio
que o inseriu, difundindo-se como “moeda corrente”, como o
uso de uma gíria ou expressão idiomática? Mais especificamente,
por que há enunciados publicitários que passam a fazem parte
do nosso dia a dia?
2. Qual a extensão do seu uso? Isto é, é possível fazer um
levantamento de fatores, tais como classes, faixa etária, sexo?
Ainda dentro dessa questão poder-se-ia perguntar: durante quanto
tempo esses enunciados perduram na fala dessas pessoas. Esse
“perdurar” pode ser confundido com o índice de “recall”,
utilizado pelos publicitários?
3. Há características lingüísticas peculiares a este tipo de DP?

22
4. Alguns exemplos que fazem parte do corpus
“Bonita camisa, Fernandinho!” (Camisas USTOP)
“Bombril tem mil e uma utilidades” (Bombril)
“...mas não é nenhuma Brastemp” (Lavadora Brastemp)
“O Importante é levar vantagem em tudo” (Cigarro Vila
Rica)
“...mas isso não é o importante, o importante é que o
Banco Real dá dez dias sem juros no cheque especial”
(Banco Real)
“Tomou Doril, a dor sumiu” (Doril)
“Denorex parece, mas não é” (Denorex)
“Você lembra da minha voz” (Shampoo Coloram)

5. Considerações a respeito da hipótese 1


• O processo ideológico constitutivo que caracteriza a
produção de bens materiais caracteriza, também, a
produção discursos quanto às circunstâncias em que este
foi produzido. Assim, se há uma instância de produção
caracterizada por quem produziu o que para quem, haveria,
também, na instância de produção de discursos, as mesmas
circunstâncias.
• Os fins visados pela distribuição também sofrem
determinações semelhantes: a que tipo de público é destinado
tal produto e por quais meios este produto será distribuído; a
que tipo de receptor é destinado um enunciado de publicidade
e por quais canais de mídia esse enunciado será veiculado.
• O consumo encontra a sua instância última através da
compra, uma apropriação. O consumo de um discurso
também seria um ato de apropriação.

23
6. Considerações a respeito da dimensão mítica do discurso
publicitário
Considerando os pontos acima levantados, quais sejam,
os possíveis fatores que condicionam o DP, especificamente os
exemplos que mencionamos no item 4, parece-nos que algumas
questões podem ser sugeridas, se passarmos a observar algumas
dessas questões em função do conceito de “mito”, segundo
Roland Barthes. Antes de mais nada, convém avaliarmos:
• qual a especificidade do discurso que estamos estudando?
• por que se poderia fazer essa ligação entre discurso
publicitário e a questão do mito? Por que se poderia afirmar
que o DP apresenta uma dimensão mítica?
• sendo este tipo de discurso mítico, por que ele representaria
uma espécie de “fala roubada”, conforme o termo utilizado
por Barthes?
A princípio, a questão é histórica. Se o DP se apresenta
como uma insinuação à perda inicial que o condicionou como
uma instauração do processo de sublimação de uma voz, toda a
sua forma de aparição será uma forma de relacionar-se a essa perda.
Em âmbito geral, poder-se-ia dizer que o DP, devido a
essa característica de insinuação ou sublimação apresenta uma
dimensão mítica, já que ele é um resultado de um processo
histórico de “roubo de fala”, ou seja, na medida em que ele
pretende ser um catalisador das aspirações de uma determinada
classe, a burguesia, ele se instaura através das representações
imaginárias dessa classe. Mas não sabemos em que momento
histórico ele passa não só a anunciar o produto para, em seguida,
persuadir ao dar o seu aval em função da própria marca ou
serviço tidos como credenciados. É possível que situado entre
dois períodos tenhamos uma delimitação, isto é, antes e depois
de credenciamento abalizado pela instituição publicitária,

24
períodos característicos do ponto de vista publicitário: um
período em que atenção não apenas do produtor da mensagem
como daquele que a assistira recairá sobre o produto e um
período em que a ênfase da mensagem publicitária passa a ser
dada em função da recepção da mensagem.
Em outro artigo deste trabalho2 , vamos postular que haja
um terceiro momento histórico da publicidade, mas sobre o qual
não nos deteremos no momento.
Voltando à questão do mito. Segundo Barthes, o princípio
do mito é o de transformar a história em natureza. Naturalizá-
lo é torná-lo comum. Essa naturalização do mito diz respeito à
sua própria função. Barthes nos diz: “Qual a função específica
do mito? Transformar um sentido em forma. Isto é, o mito é
sempre um roubo de linguagem.” Através da sua apropriação
na fala, o seu “roubo”, instaura-se um processo mítico. O
sentido do DP passa do significado à forma naturalizada do
significante, neutralizando os pontos de vista adversos para
privilegiar os pontos de vista do senso comum. Uma fala,
presumivelmente, roubada de um outrem, que, a rigor, não existe
ou só existe como forma idealizada da publicidade.

7. Quanto à constituição do corpus do trabalho


Poder-se-ia perguntar aqui qual o critério direcionou a
constituição do corpus. A princípio, convém notar que o
trabalho de análise do discurso consiste primeiro em reconhecer,
nos discursos que estão sendo analisados, uma dimensão
institucional. Assim, temos o discurso didático, o discurso da
política, etc.

2
Cf. “Entre a historicidade e a a-historicidade do discurso publicitário:
um estudo de semiologia icônica aplicado a fotografias de imprensa”.

25
No caso da análise do discurso publicitário, especificamente,
tem-se visto uma orientação de trabalhos que fazem o recorte do
corpus em função de características semelhantes, sejam elas em
função do objeto produto e seus congêneres, sejam elas em função
dos veículos através dos quais são veiculados. É claro, portanto,
que estes trabalhos de análise têm situado o seu eixo de
observação sobre uma perspectiva, qual seja, que os discursos e,
mais especificamente, os discursos em função dos objetos como
no caso da do discurso publicitário, são encarados como
apresentando um caráter institucional em relação à representação
cultural que estes mesmos objetos podem suscitar, inscrita
historicamente em uma sociedade. Nesse sentido pode-se falar
de falar de uma orientação sincrônica ou até diacrônica para o
estudo do discurso publicitário, quando, por exemplo, poder-se-
ia verificar os tipos de peças publicitárias produzidas sobre um
determinado tipo de objeto atualmente e no passado.
Quanto ao estudo que nos propomos fazer, a mesma
metodologia a qual fizemos referência acima não poderia ser
seguida, isto porque o DP, na sua versão “consumível” é, antes,
um produto de linguagem e não uma espécie de linguagem que
se faz sobre um objeto. A nossa opção não invalida aquela, muito
pelo contrário, complementa-a, desde que pensemos que
diferentes pontos de vista sobre a forma de se persuadir um
consumidor podem co-exitir (essa observação para ser muito mais
flagrante no rádio, onde o jingle não apenas resiste como também
ainda é uma das formas mais importantes de se fazer publicidade
através este veículo).
Desta feita, propomos colocar o DP ao lado das demais
tipos de discursos que têm sido estudados. Se existe uma
preocupação com a dimensão institucional, entendida, talvez,
como fundadora dos discursos (o que se estende ao caso do
discurso publicitário), há também uma preocupação da nossa
parte em verificar essa dimensão, entendida e estendida não

26
apenas no âmbito do produto, da linguagem, institucionalmente,
entendida como produto de linguagem, ou de outra forma, de
uma linguagem transformada, também, em produto para ser
consumido.

8. Da importância da consideração histórica nos estudos sobre


a linguagem
Hoje, quando observamos as primeiras publicidades
produzidas, principalmente para televisão, percebemos uma certa
“ingenuidade” em relação às formas de persuasão “vigentes”.

É certo, para nós, que essas formas de persuasão estão

conectadas aos imaginários coletivos, lida com eles; transporta


para o discurso as formas de representação social cridas pela classe
que detém o capital. Sendo assim, torna-se necessário que uma
teoria de análise de discursos tenha que postular, na sua
investigação, níveis mais profundos de análise e criar critérios
elementares e subsidiários para a compreensão de discursos, já
que a realidade social, para o pesquisador, apresenta-se como uma
complexa compartimentalização dos saberes.
Como um fenômeno de cultura de massa, o discurso
publicitário passa ser um objeto de estudo através do qual pode
ser observado por mais de uma ciência humana, mostrando-se
enredado por toda uma complexidade de fatores que são peculiares
a esse tipo de cultura.
Talvez possamos afirma que a publicidade é influenciada
diretamente, como produto de uma cultura de massa dentro de uma
sociedade capitalista, pelos fatores econômicos. Sendo assim, ela
estaria à mercê de uma relação de oferta e procura que a determinará
como um produto dessa relação, compartilhando com ela as
determinações que por ela, lei da oferta e da procura, são geradas.

27
Se se pode falar de uma “ingenuidade” da publicidade,
essa diz respeito muito mais a uma concepção de relação de
influência sobre o consumidor que, por sua vez, é determinada
pela forma das relações de produção de bens materiais que é
mantida, concretamente, entre aqueles que possuem e aqueles que
não possuem os meios de produção.
À medida em que a realidade social torna-se mais
complexa, torna-se também necessário que se postule níveis e
categorias de análise (isto porque se, se pode perceber publicidades
distintas em concepção (ou seja, são proporcionalmente complexas
à realidade social que as insere), em diferentes épocas, torna-se
necessário, portanto, que o fator histórico seja considerado.
O estudo do DP reivindica para si não apenas o estudo
do discurso no âmbito da história lato senso, mas também o
estudo do discurso no âmbito das histórias interpessoais.

9. Sobre a reprodução das relações de produção e a


organização da matéria significante
A partir das observações feitas acima, talvez, possamos
afirmar:
1. que a matéria significante da organização discursiva constitui-
se em função de um primeiro nível sincrônico, através do qual o
produto de linguagem sofre as determinações análogas ao que o
produto sofre no plano mercadológico;
2. que a matéria significante da organização discursiva constitui-
se diacronicamente, à medida em que a sua estruturação se dá no
espaço e no tempo da própria história da constituição do sujeito.
Como vimos acima, o discurso publicitário encontra-se
arraigado à época que o engendra, e é nessa constituição da matéria
significante que o discurso se organiza em função dos índices
discursivos de sua época.

28
10. Produto vs. produto de linguagem
Acreditamos que já esteja clara a distinção que fizemos
entre produto, aqui entendido como produto ou serviço, e
“produto de linguagem”, enunciado que representa, no nível
discursivo, as coerções análogas ao que produto sofre dentro de
algumas etapas: produção, circulação e consumo. Assim, estamos
falando do caráter de representatividade que cada um tem dentro
da sua esfera de circulação.
Se assim não fosse feito, estaríamos simplesmente
falando que um pode substituir o outro como se, ao
apresentarmos um produto, estivéssemos querendo mostrá-lo
em sua singularidade de objeto, por exemplo, uma de pó de
café tal qual ela se apresenta para quem a vê. Mas, se assim o
fizéssemos, estaríamos mostrando um objeto e não o que pode
ser evocado por ele, a sua propaganda.
A propaganda institucionaliza o objeto ou serviço na
linguagem. Estes passam a existir enquanto quantidade de
informação memorável. Não são raras as ocasiões em que
lembramos de um produto através da propaganda que o introduziu.
Encontramos então uma convergência entre produto e “produto
de linguagem”: um produto de linguagem x’ que remete ao produto
mercadológico x, não podendo remeter nem a y — enquanto
produto de outra marca —, já que a produção de ambos (produto
e produto de linguagem) se faz por uma construção de identidade
(construção: do produto, em ralação aos seus concorrentes, e do
produto de linguagem, em relação, também aos seus concorrentes,
com o fim de singularizá-lo). Um DP ou um discurso publicitário
consumível (DPC) é, antes de mais nada, um discurso singularizado
pelo que de proeminente existe na singularização do objeto-
produto enquanto representatividade, daí o seu caráter de
apropriação e, ao mesmo tempo, um discurso coletivizado pelo
público alvo a quem é dirigido.

29
Toda essa linha de pensamento pode levar-nos à
constatação de que ambos os produtos são destinados ao
consumo. Mas, se assim ocorre, poderíamos supor que aquele
que “consome” um produto de linguagem, consumiria o produto
propriamente dito. Havemos de ressaltar que os “consumos”
ocorrem em âmbitos distintos, e pode-se sustentar, razoavelmente,
que o comportamento de compra não está, necessariamente,
relacionado ao comportamento linguageiro. Talvez seja
necessário fazermos a distinção entre produto e bem de consumo,
estando o primeiro circunscrito às possibilidades materiais da
circulação do produto e o segundo relacionado às possíveis
aspirações de uma determinada classe. Daí, talvez, podermos
afirmar que o bem de consumo seria uma espécie de termo
intermediário entre o produto e o produto de linguagem,
servindo como possível “síntese de aspirações” de uma
determinada classe e permitindo que essa síntese funcione como
uma espécie de chancela para a garantia de certos nomes no
funcionamento discursivo.

11. Consumo de produto da linguagem


A discussão sobre produto de linguagem e produto pode
nos remeter à discussão sobre consumo individual e consumo
produtivo. A produção de um produto pode estar relacionada ao
consumo individual ou ao consumo produtivo de um produto.
Quando o produto possui um valor de uso, ele destina-se a um
consumo individual. Quando ele é criado para gerar outros
valores de uso, ele destina-se ao consumo produtivo. Essas
distinções não ficam claras no DPC, já que um discurso publicitário
pode, mas não necessariamente, implicar um consumo produtivo,
quando, por exemplo, no âmbito das trocas interlocutivas, um
discurso, especificamente um DPC torna-se um elemento de troca
entre os locutores.

30
Consome-se um produto de linguagem. Este é o fato. E
este consumo, no caso do DPC, não é apenas um consumo
passivo, como pode ser o caso de tantas outras publicidades. O
DP é consumido, é apropriado para uma posterior propagação.
Que finalidade existe neste consumo-propagação, já que
podemos presumir que aqueles que “consomem” um produto
de linguagem, propagam-no, mas não necessariamente
compram o produto indicado pelo discurso?
Se estamos trabalhando com o pressuposto de que o
produto de linguagem esteja relacionado, por representatividade,
ao produto mercadológico, supomos que a forma de circulação
deste produto esteja relacionada ao mercado ou à forma de como
a economia estabelece a distribuição de bens. Assim, se o consumo
do produto está relacionado a uma satisfação de uma necessidade,
o consumo de um produto de linguagem parece estar ligado à lógica
de circulação do dinheiro enquanto capital. A finalidade a qual se
destinaria o discurso seria, também, a circulação.
Voltamos, então, à pergunta feita acima. Que finalidade
existiria no consumo de publicidade (“consumo” agora
entendido dentro do âmbito daqueles que consomem-propagam,
porém não compram o produto anunciado pela publicidade que
os veicula)? Uma tentativa de resposta seria a de que, com esse
tipo de publicidade, tenta-se fazer um tipo de publicidade de
baixo custo, ou melhor, de fazer publicidade através de outrem,
ratificada por uma das formas mais eficazes de se fazer
publicidade, isto é, através da opinião (indireta) de outrem.
Observe-se que o enunciado da publicidade sofre um tipo de
reificação. Enunciado, até então, circunscrito à esfera da
publicidade e atualizado pelo público.
Uma outra tentativa de resposta, também de caráter
preliminar, seria de que o produto, assim como o produto de
linguagem, é direcionado a um público-alvo, o que faz, com isso,
31
a delimitação de um seguimento do mercado, delimitando, ao
mesmo tempo, um seguimento do público que “consome” esse
discurso. ROCHA (1985: 68) chama “operação classificatória”
ao fator seletivo o fato de os anúncios identificarem e serem
identificados pelo seu público. No caso do DPC, o público
também identifica para quem será selecionado o enunciado a
ser proferido, conforme a situação de enunciação.

12. “Tempo de vida” da publicidade: a sua constituição no


DPC
Poderíamos resumir que o “tempo de vida” de uma
publicidade se dá em duas etapas: o tempo do seu planejamento
e o tempo da sua execução. O critério para delimitarmos é dado
em função da efetivação da veiculação para um público. Sabemos,
porém, que a produção de uma publicidade é divida em tarefas,
tarefas que são elaboradas por setores das agências de publicidade
que, por sua vez, são gerados e condicionados pelo crescimento
do mercado. À medida em que o mercado cresce (tornando-se
mais complexo), há uma demanda de profissionais mais
especializados para que possam interpretar fatores do mercado
e as aspirações do público e traduzi-los em aspirações de classe,
ou seja, à medida que a demanda cresce, torna-se necessário
que haja uma divisão social do trabalho dentro das agências.
Sendo assim, maior será a divisão do trabalho social dentro da
agência quanto maior for a necessidade de interpretação dos
fatores que, possivelmente, podem contribuir para uma melhor
performance do produto.
Nosso trabalho não consiste em verificar qual a
contribuição de cada setor e a tarefas das agências: pesquisa de
mídia, pesquisa de mercado, etc. mas o de tentar apreender as
fundamentações do trabalho publicitário, naquelas instâncias que
podem englobar as fases que nelas estão pressupostas.

32
Chamamos, então, de “tempo de vida da publicidade” o
período demarcado entre o sue planejamento e a sua execução:
um período de concepção-constituição e outro de execução. Para
o público, a publicidade existe, principalmente, como execução.
Para o publicitário enquanto indivíduo, a publicidade existe,
principalmente, como criação (pelo menos, não pela publicidade
que ele concebeu), já que ele não se deixaria convencer por um
discurso que ele criou para convencer outrem. Para o publicitário
enquanto publicitário, a publicidade existe, principalmente, como
um compósito de criatividade e técnica.
Para o analista, por outro lado, a publicidade constitui-se
uma das formas de interpretação dos imaginários socioculturais e
cabe a ele a interpretação desses imaginários, postulando categorias
e fatores invariantes para a apreensão do seu objeto de estudo.
Voltando à noção de “tempo de vida da publicidade”,
sugerimos aqui que sejam considerados apenas dois períodos,
como já vimos: o planejamento e a execução. Mas será este
“tempo de vida” “válido” para todas as publicidades? Se o seu
tempo de existência pode ser definido, principalmente, em função
da sua execução para o público, como podemos caracterizar o
DPC que atualiza a publicidade? Dois períodos não poderiam
ser sustentados, considerando-se que o DPC ultrapassa o seu
próprio desgaste. Sugerimos também que para este tipo de
publicidade sejam considerados, além dos dois períodos já
mencionados, um terceiro período, introduzido aí devido à sua
lógica de estruturação: a reificação. Assim passaríamos a ter:

Fases Planejamento Execução Reificação

Âmbitos Agência Mídia Público

33
A reificação seria o terceiro “período de vida” do DPC,
representado não só pelo seu consumo, mas também pela sua
reprodução.

13. A instituição: discurso publicitário


A institucionalização do discurso publicitário é um fato.
O espaço que ocupa na sociedade, sua representatividade, quem
o planeja e o executa, quem o recebe, criam, por fim, uma “esfera
social”, criando um intercâmbio entre fatos que projeta, no
universo de representatividade da linguagem, os valores da
sociedade em que está inserido.
Como instituição, portanto, ele passa a gozar de uma
credibilidade não estável como outras instituições. Sua credibilidade
é, necessariamente, construída; cada anúncio cria a sua própria
credibilidade, procurando, transferir ao produto algo de crível.
O fato de o DPC ser repetido no cotidiano mostra uma
certa pertinência no âmbito da fala, na medida em que quem o
observa “absorve-o”, “consome-o”, e tem uma perspectiva de que
pode reproduzi-lo em determinadas circunstâncias enunciativas.
A repetição do discurso daí decorrente não seria possível se não
existisse ao menos algo de crível, talvez, no nível inconsciente.
Lida-se, aqui, não só com valores não ditos ou interditos,
mas também com formas eficazes de se dizer alguma coisa. Para
que possa haver uma construção identitária há uma construção
identitária do receptor, uma “ressonância”, uma “sintonia de
conteúdo” com o que se diz na sociedade.
Assim, uma forma de se dizer é também uma forma de se
reconhecer, de mostrar-se em consonância com o que está sendo
dito por outrem. Seria algo próximo ao dizer algo que faça parte
de uma formação discursiva. Seria uma maneira de individualizar
uma forma coletiva. E o DPC é a própria forma dessa individuação.

34
Referências Bibliográficas

BARTHES, R. Mitologias. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1993.


BAKHTIN, M (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da
linguagem. São Paulo, HUCITEC, 1992.
CALAZANS, F. Propaganda subliminar multimídia. São Paulo,
Summus Editorial, 1992.
CHAUÍ, M. O que é ideologia. São Paulo, Brasiliense, 1987.
ENGELS, F. Princípios do comunismo. Ed. Cátedra, 1987.
FIORIN, J.L. Linguagem e ideologia. São Paulo, Ática, 1990.
HARNECKER, M. Os conceitos elementais de materialismo
histórico.
MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso.
Campinas Pontes, 1993.
NETTO, J.P. O que é marxismo. São Paulo, Brasiliense, 1989.
RIBEIRO, J. et al. Tudo que você queria saber sobre propaganda
e ninguém teve paciência para explicar. São Paulo, Atlas,
1995.
ROSSI-LANDI, F. A linguagem como trabalho e como mercado.
São Paulo, DIFEL, 1985.

35
OS ATOS DE FALA INDIRETOS EM “O CARTEIRO E
O POETA”

1. Introdução
Há algumas questões que nos parecem pertinentes aos
pontos de vista adotados ao longo deste trabalho, sendo, talvez, a
mais crucial, da qual as demais são decorrentes, aquela que diz
respeito à adequação do “recorte teórico” em função do texto com o
qual nós trabalhamos. Essa compatibilização encontrou seu meio-
termo numa ampliação do espectro de alguns conceitos como o de
ato de fala indireto ou na não utilização de categorias que estão
inevitavelmente imbricadas dentro dos quadros teóricos aos quais
fazem referência. Esse fato é justificado na medida em que: 1º
tivemos que lidar com noções diversas, embora não necessariamente
divergentes, em função dos pontos para os quais recaem a sua
observação; 2º procuramos tornar essa “reunião de noções” a mais
sincrética possível, no sentido de que a nossa proposta deveria situar-
se como uma análise a qual se poderia recorrer, sem, no entanto,
fugir dos ângulos pelos quais ela poderia ser observada.
As implicações da realização de um trabalho que tenha
como meio ou fim um texto literário são suficientemente sutis
para que nos situemos entre a aplicabilidade de um conceito e o
que através das nossas inferências como leitores podemos dizer
ou imaginar sobre esse mesmo texto. Se, por um lado, um texto
literário nos induz a reconhecer nele “múltiplas vozes”, por vezes,
ele nos cala como um projeto acabado, ou segundo Charaudeau:
“L’effet de fiction répond au désir de se voir vivre dans une
histoire qui a un début et une fin, autrement dit de se voir vivre
dans une unité du moi” 1 .

1
CHARAUDEAU, 1992. p. 760.

37
Temos aqui a tarefa de explicar a teoria dos atos de fala,
dos atos de fala indiretos, especificamente, sobre o texto “O
Carteiro e o Poeta”, mas antes convém advertir que não fizemos a
análise de todos os atos, isto porque não só tornaria este trabalho
inviável como também o demoveríamos de um objetivo traçado
preliminarmente. Ou seja, procuramos reconhecer o macroato2 de
fala como categoria textual e dois atos que estão a ele subordinados,
cabendo, portanto, de que a Teoria dos Atos de Fala sempre lidou
com enunciados dentro da sentença e nunca além desta.

2. O Pano de Fundo
Como quadro e moldura que representam uma obra
plástica, embora em proporção e valores diversos, como
diferentes e talvez necessários um ao outro, inscrevem-se prólogo
e epílogo, por um lado, e narrativa, por outro, como instâncias à
parte e, ao mesmo tempo, implicados para a compreensão da
obra. Nesses espaços é que se vão delimitar duas condições, duas
possibilidades: o espaço da “falta”, caracterizado no prólogo e
no epílogo, onde o “autor”, um escritor frustrado, lança-se a um
trabalho quase caricatural de descrição da vida do poeta Pablo
Neruda; o espaço da realização, onde são projetadas e traduzidas
as impossibilidades do que muito genericamente estamos
chamando de “autor”. Impossibilidades do “dizer” e do
“escrever” que, sublimadas através das muitas metáforas, passam
a contemplar o ato origináriooe paradeiro de indagação do
“autor” a um redator literário sobre o conhecimento da poesia
cujo título é “Retrato a lápis de Pablo Neftalí Jiménez Gonzáles”.
Desencadeador de todo o processo narrativo parece-nos
a indagação estar ligando “dois mundos” a justificá-los: a
ausência de conhecimento , reconhecimento; anonimato e beleza,

2
VAN DIJK, 1996. p. 93.

38
a riqueza dos novos significados recriados pelas metáforas. Quem
poderia, senão a figura de um poeta, lidar com esses dois pólos?
E é nesse agenciamento que a narrativa progride suprindo toda
uma “moldura”, desenhada no início do romance.

3. O Insucesso de um Ato de Fala


No momento em que a Teoria dos Atos de Fala3
fundamentava-se como uma teoria sobre a significação ou sobre
a significação em função do uso da linguagem, procurava-se
caracterizar a pertinência do contexto face à significação de um
enunciado. Esse fato ganhou uma proporção considerável dentro
dos estudos lingüísticos, considerando-se a forma de como era tratado
o estudo da linguagem até a década de 60. Implicar um
contextualização ou levar em conta fatores externos já parecia ser
um grande avanço, para uma lingüística cujo alcance se inscrevia
dentro das possibilidades da língua entendida como sistema.
Ante a questões que envolvem problemas eminentemente
teóricos, questões que dizem respeito ao estabelecimento e
distinção de categorias, que fogem ao âmbito desse trabalho,
nosso objetivo é o de utilizar os postulados básicos da Teoria
dos Atos de Fala para que possam servir como um quadro de
referência. Sendo assim, podemos dizer que:
• todo ato de fala (doravante AF) está inserido em um contexto4 ,
em função do qual se caracteriza discursivamente.
• há condições que são reunidas no ato enunciativo e, sem as
quais, ele não pode ser entendido, o que pode provocar um
“insucesso” tanto se para aquele que o proferiu como para aquele

3
Quanto à bibliografia consultada sobre Atos de Fala, ver final desse
trabalho.
4
Estamos considerando contexto como tudo que envolve a situação de
fala, incluindo : imagens, intenções, etc.
39
para quem foi proferido não reconhecerem as condições em
que o ato foi produzido.
São, sumariamente, estes os pressupostos que fazem com
que os AF possam servir como mediadores entre linguagem e
realidade 5 , tomando-se por base a sua reprodução e a sua
compreensão. Há, portanto, uma dupla reciprocidade de
condições já que a linguagem instaura uma nova realidade, ao
mesmo tempo em que a realidade apresenta as circunstâncias
em função das quais os ato se realiza. Acreditamos que tenham
sido estas algumas das intuições que guiaram o empreendimento
teórico da Escola de Oxford, quando se procurava, a partir da
noção de uso, saber o que os interlocutores de uma determinada
comunidade lingüística fazem com a linguagem.
Dentro desta proposta, Austin estabelece uma primeira
distinção entre enunciados constatativos e performativos6 ,
considerando uma classe de verbos como o ponto de partida para
esta categorização. Assim, há verbos que descrevem uma
situação, logo o enunciado em que está inserido é passível de
constatação. Ao contrário, verbos performativos, que realizam
uma ação ao serem proferidos, instauram um processo
enunciativo, não cabendo inquirir nesses processos sua
veracidade ou não: “o que se pode fazer, a respeito de enunciados
do tipo, é verificar se eles tiveram sucesso”7 .
Para que um AF obtenha “sucesso” é necessário que as
condições sob as quais ele realizados sejam percebidas e

5
Quanto à discussão sobre os atos de fala como mediadores entre linguagem
e realidade, ver MARI, H. “Para uma integração entre linguagem e
realidade”. Cadernos de Pesquisa. BH: NAPQ-UFMG, 1995. p.3.
6
AUSTIN, 1970. p.40.
7
MACHADO, “A Pragmática”. Curso Os atos indiretos de linguagem.
Alguns conceitos baseados em Maingueneau. Inédito.
40
compartilhadas pelos interlocutores, talvez, muito mais para aqueles
que são levados a reconhecer os “rituais improvisados” que são
instaurados pelos atos de fala indiretos (AFI). É nele que se situa a
prova mais cabal entre fronteiras de significado e significação, onde
o sentido que por ele se constitui é derivado do enunciado que o
introduziu. A depender do contexto em que está inserido, o efeito de
um AFI pode ser múltiplo e variado. Assim, um pedido de informação
sobre horas permite inferências do tipo: “ele(a) está mandando-me
embora”, “está na hora de nós sairmos”, etc. É certo que estes atos
não podem dar margem a qualquer interpretação porque a própria
interpretação está cinscunscrita ao seu contexto de uso, ao
conhecimento que os falantes têm de sua língua como um meio de
expressividade, ou ao reconhecimento das regras de um jogo (ou ainda
de uma representação cênica), na qual seus participantes assumem
papéis para o cumprimento de um contrato8 . É provável que existam
assim dois valores de uso comum em um pedido do tipo “você pode
informar as horas?”, com um sentido literal e outro conotado. Formas
como estas deixam de ser interpretadas literalmente numa relação à
constância da situação que as convencionou.
O que estamos considerando como o AF “mais
fundamental”, através do qual toda a narrativa é direcionada,
encontra-se no epílogo. Procuramos somente transcrevê-lo: “Você
não lembra - disse-lhe de um texto que impressionou por seu título
algo curioso: Retrato a lápis de Pablo Neftalí Gonzales?”9
Nesse momento, esse ato, indireto, pode ser entendido
na medida na medida em que se o que se procura saber do
interlocutor de Jiménez não é exatamente se ele conhece a poesia,
“um texto”, mas sim o local onde a poesia está inserida, isto é, na

8
CHARAUDEAU, P. Grammaire du sens et de l’expression. Paris,
Hachette, 1992.
9
ver contexto em que está inserido: SKÁRMETA, 1996. p. 126, ou o que
chamamos aqui de Pano de Fundo.
41
narrativa. Há assim um aspecto de contigüidade entre a poesia, dentro
da pergunta, e toda a narrativa: a primeira é a parte pelo todo que
representa a segunda.
Este ato, no entanto, não obteve sucesso, já que ele foi
assim respondido (narrado em discurso indireto): “Meu amigo
levantou o açucareiro e o reteve um instante tentando puxar da
memória. Logo negou com a cabeça.”10 Interpretou a indagação
do “autor”11 literalmente, como se por ela tivesse sido solicitada
uma informação. Desconheceu-lhe a força ilocucionária como
uma das condições para o reconhecimento do ato, tal como foi
proferido.
Não nos parece arbitrária a nossa “escolha” do AFI acima
mencionado como um ato principal, visto que ele remete a uma
esclarecedora passagem da obra:
“No dia 18 de setembro de 1973, La Quinta Rueda
publicaria uma edição especial por ocasião do
aniversário da independência do Chile, em cujas páginas
centrais e em robusta letras capitais estaria incluído o
poema vencedor. Uma semana antes da tensa data, Mario
Jiménez sonhou que o “Retrato a lápis de Pablo Neftalí
Jiménez González” ganhava o cetro e que Pablo Neruda
em pessoa lhe estendia a flor natural e o cheque.”12
Vejamos que esta passagem é narrada no futuro do pretérito ou
no imperfeito, que aqui caracterizam ações não concluídas ou
que podem não vir a ser concluídas. Mas, de fato, não são. Note-se
ainda que “La Quinta Rueda” é a revista para a qual Mario enviou

10
Ibidem. p. 127.
11
Sobre as distinções feitas entre autor e narrador, embora com outra
nomenclatura, ver CHARAUDEAU, 1992.
p. 758-60.
12
SKÁRMETA, 1996. p. 110.

42
sua poesia, e é também a revista na qual o “amigo do autor” trabalha
como editor, porém, como já vimos, sem conhecer a poesia, como
um índice de toda a história narrada.

4. “La mise en narration”13


Mesmo que não trabalhemos agora especificamente com
a noção de ato de fala indireto, é importante que situemos a
análise dentro do quadro da “mise em narration”, descrita por
Charaudeau, por ser esquemática e por conseguir captar
regularidades da narração que a colocam dentro do quadro geral
da comunicação linguageira. Vê-se que, ao contrário do que é
feito por outras teorias, Charaudeau não compartimentaliza fatos
de língua como se eles não estivessem dentro de uma capacidade
geral para a linguagem. O liame entre língua e literatura encontra
aqui seu ponto de apoio para que as teorias sobre ambas não
distingam critérios sobre a mesma linguagem.
Dentro do que Charaudeau chama de partenaires et
protagonistes de la mise en narration14 encontra-se a posição
que os atores envolvidos na narração podem ocupar, sendo a
tarefa de um auteur-écrivan 15 a de delinear o seu projet
d’’ecriture16 , que, segundo o autor:
“peut être annoncé par les auters eux-mêmes dans les
préfaces, préambules, avertissements, ou même titres
d’ouvrages. La plupart du temps, s’agissant surtout
d’ouvres littéraires, le projet d’écriture est explicité après
coup dans des essais critiques ou des entreteiens de

13
CHARAUDEAU, 1992. p. 755.
14
Ibidem. p. 755
15
Ibidem. p. 758
16
Ibidem. p. 758

43
toutes sortes.”17

Nosso projet d’écriture é, ao mesmo tempo,


determinado, visto que ele é desencadeado pelo ato de
indagação do “autor”, ato que que faz lançar um olhar por sobre
toda a narrativa, e é determinante, pois faz abrir a obra em dois
espaço e tempo, funda a narrativa. Vejamos o que é dito no
último parágrafo do prólogo:
“Beatriz Gonzáles, com quem almocei várias vezes
durante suas visitas aos tribunais de Santiago, quis que
eu contasse para ela a história de Mario “não importa
quanto demorasse nem quanto inventasse”. E assim,
por ela desculpado, incorri em ambos os defeitos.”18

Esse pedido de Beatriz pode ser tomado como um ato de


indireção, no sentido de que ela não está apenas lhe pedindo
para contar uma história, mas em virtude das condições que o
colocam como inepto para o “escrever, ela está testando as suas
habilidades de escritor ou delegando-lhe uma responsabilidade
para a qual ele deve estar preparado. Dessa forma, a sua “demora”
e sua “invenção” remetem a dois planos da obra: no primeiro,
onde sublima as suas frustrações através das metáforas na
narrativa, e pela própria narrativa (seu espace interne19 ) - a
invenção; no segundo, onde ele corresponde (literalmente) ao
pedido de Beatriz (espace externe20 ) - demora:
“Sei que mais de um leitor impaciente há de estar se
perguntando como é que um rematado frouxo como eu
pôde terminar este livro, por pequeno que seja. Uma

17
Ibidem. p. 758
18
SKÁRMETA, 1996. p. 10.
19
CHARAUDEAU, 1992. p. 756.
20
Ibidem. p. 755.
44
explicação plausível é que levei quatorze anos para
escrevê-lo.”21

Definamos então “les compo santes de la “mise en


narration”22 : o espace externe é também caracterizado dentro
da obra através do prólogo e do epílogo, os quais desempenham
um papel fundamental para a sua compreensão; o espace interne
é representado pela narrativa propriamente dita; o auteur-
individu23 que inicia:
“Na época em que eu trabalhava como redator cultural
de um jornalzinho de quinta categoria.”24

e que termina o romance:


“Aproximou o açucareiro de meu café mas eu o cobri
rapidamente com a mão.”25

o auteur-écrivan que apresenta seu projet d’écriture:


“Enquanto outros são mestres da narrativa lírica em
primeira pessoa, da novela dentro da novela, da
metalinguagem, da distorção de tempos e espaços,
continuei adstrito a metáforas grandiosas acarretadas
pelo jornalismo.”26

e a figura do narrateur-conteur27 :

21
SKÁRMETA, 1996. p. 9.
22
CHARAUDEAU, 1992. p. 757.
23
Ibidem. p. 757.
24
SKÁRMETA, 1996. p.7.
25
Ibidem. p. 127.
26
Ibidem. p. 9.
27
CHARAUDEAU, 1992. p. 759.

45
“Em junho de 1969 dois motivos tão felizes quanto triviais
levaram Mario Jiménez a mudar de ofício.”28

Considerando-se a perspectiva sobre a qual estamos


trabalhando, adotamos o quadro de “La mise en Narration”,
modificando-o em função dos nossos propósitos:

I II
A A
T T
O O

D D
E E

F F
A A
L L
A A

* I ato de fala - indagação do autor-indivíduo, ver nota 9


* II ato de fala - indagação de Beatriz, ver nota 18

5. O Macroato De Fala Como Categoria Textual29


Já justificamos o motivo de “ampliarmos” o espectro do
AFI, isso permitiu uma convergência entre este conceito e o de
macroato de fala, sem os descaracterizarmos das suas
especificidades.
Uma das mais importantes noções a respeito do macroato é
a de que ele é tomado do ponto de vista da compreensão que se tem
sobre a fala e/ou texto. Os atos são vistos não pela singularidade de

28
SKÁRMETA, 1996. p.11.
29
VAN DIJK. 1996. p. 93.

46
quem os proferiu, mas em função do objetivo segundo o qual ele foi
produzido. Segundo Van Dijk:
“Com relação aos atos de fala individuais da seqüência,
essa macroestrutura funciona como resumo; ela define
qual o objetivo final do enunciado, por exemplo: em
termos de interação e propósito global.”30

O macroato de fala que analisamos é aquele encontrado


ao final do romance (ver citação de” O insucesso de um ato de
fala”); é a partir dele, como um ato de indireção, que se pode ler
a obra como uma tentativa de emancipação sobre a “falta inicial”
representada pelas impossibilidades do dizer e do escrever, de
Mario Jiménez. Estas impossibilidades são convertidas em atos
de indireção quando, num primeiro momento, Mario utiliza os
versos (do personagem) Pablo Neruda para conquistar Beatriz.
Os versos , porém, foram escritos para Matilde (mulher do poeta)
ou para outras mulheres, logo o primeiro “sentido” da existência
deles não era outro senão um ato de escritura, e não de conquista,
por ele derivado. O segundo ato está ligado diretamente ao efeito
que por ele poderia ter sido produzido, que é o de Mario escrever
um poema dedicado ao seu filho, mas cuja intenção é a do seu
reconhecimento como poeta, e, em outra instância, do autor como
escritor de renome.

6. Apêndice - À Forma De Uma Resenha


Em “O Carteiro e o Poeta”, de Antonio Skármeta é narrada
a história de Mario Jiménez, filho de pescador, que à procura de
fugir do cotidiano que caracterizava a sua vida, é aconselhado

30
Ibidem. p. 94.

47
pelo pai a procurar um emprego. Mario consegue um emprego de
carteiro na enseada de San Antonio, onde residia.
Ao novo carteiro caberia a tarefa de entregar as correspon-
dências (diárias) a tão somente uma pessoa,
o poeta chileno Pablo Neruda, morador da Ilha Negra, local
vizinho à enseada.
O contato com o poeta permitiu que eles se tornassem
amigos e que Jiménez, por sua vez, se valesse dessa amizade para
tentar conquistar o amor de Beatriz González (uma estalajadeira),
através das poesias de Neruda.
Sendo Neruda conhecido, renomado, politizado, é convidado a
candidatar-se à presidência de seu país. Aceita-o num primeiro
momento, depois abre mão para a candidatura de Salvador
Allende. Este ganha as eleições e convida Neruda a ocupar o
cargo de embaixador, em Paris. Mario e Beatriz casam-se. Neruda
ganha o Prêmio Nobel de Literatura.
Nasce o filho de Mario e Beatriz e a ele o pai dedica um
poema. Conspirações e boicotes começam a surgir contra o governo
Allende. Nesse mesmo momento, Neruda adoece e volta para Ilha
Negra. Uma junta militar toma o poder. Pablo Neruda é levado
para Santiago, onde morre, em função de forte febre. Jiménez é
levado para prestar depoimentos, depreendendo-se daí que
começara um forte período de retaliação.

48
7. Referências Bibliográficas

ALSTON, W. P. “Teorias da significação”. In: Filosofia da


linguagem. Rio de Janeiro, Zahar, 1992.
AUSTIN, J. L. “Première conférence”.In: Quand dire, cést faire.
Paris, Éditions du Seuil, 1970.
CHARAUDEAU, P. “La misse en narration”. In: Grammaire du
sens et de l’expression. Paris, Hachette, 1992.
KOCH, I. G. V. A inter-ação pela linguagem. São Paulo,
Contexto, 1992.
MACHADO, Ida Lúcia. “ A Análise de discurso da “2a. geração”,
com ênfase para a semiolingüística. In: Cadernos de
Pesquisa. Belo Horizonte, NAPQ-UFMG, 1995.
____. “Exemplos referentes a atos de fala ficcionais — mise en
‘narration’, segundo a teoria de Charaudeau. Curso Os atos
Indiretos de linguagem.. Belo Horizonte, 1996.
––––. “A pragmática”. Curso Os Atos Indiretos de Linguagem.
Belo Horizonte, 1996.
MARI, H. “Para uma integração entre língua e realidade”. In:
Cadernos de pesquisa. Belo Horizonte, NAPQ-UFMG, 1996.
SEARLE, J. S. “Expressions meaning and speech acts”, in Speech
acts: an essay in the philosophy of language. California,
Cambridge at the
University Press, 1969.
SKÁRMETA, A. O carteiro e o poeta. Rio de Janeiro,. Record,
1996.
VAN DIJK, Teun A. “Contexto e cognição (frames do
conhecimento e compreensão dos atos de fala)”.In: Cognição,
discurso e interação.
São Paulo, Contexto, 1996.

49
PARA ONDE VAI A LEITURA FEITA NA ESCOLA?

O que pretendemos caracterizar aqui como leitura feita na


escola é aquela introduzida pelos vários compêndios autorizados
a transitar dentro da sala de aula: o livro didático. Sem ferir as
expectativas a quem é destinado (fato, por sua vez que já implica
o recorte e a seleção do material didático elaborado) o processo
de leitura acaba por corroborar o que os veículos de comunicação,
a grande mídia, faz: o de sedimentar os sentidos, circunscrevendo
a possível interpretação dos fatos. Instâncias à parte, na sala de
aula se encontra a figura do professor que, administrando o que o
próprio sistema lhe impõe, acaba por configurar e “aprisionar” os
diversos sentidos que podem ser atribuídos a um texto, no momento
em que se dá a sua constituição pela interação entre os sujeitos.
É dessa forma que passamos a vislumbrar que condições de
produção se instauram na prática de leitura na sala de aula. A
princípio, o texto não é esse objeto feitichizado. Antes dele existe o
autor que o produziu em determinadas condições. Esse autor, por
certo, previu um leitor a quem ele, autor, se dirige e de quem faz
uma imagem. Como a metodologia dos livros didáticos prevê, o
resultado da leitura enquanto avaliação deve ser feito de forma
imediata. Não se percebe que relações históricas supõem o texto, o
autor, o leitor, enquanto enredados por essas relações. O fragmentário
do a-histórico dominante estabelece a “necessidade” do que se
poderia chamar não só de uma leitura superficial como uma leitura
em função de determinados valores.
Dentre as possíveis leituras para um texto há aquelas que
são previstas. Leituras previstas para valores de classe que
supostamente determinam a forma pela qual apreendemos a
realidade. O que faz a escola senão repetir os discursos? Não
obstante, há o que se poderia chamar de direcionamento de futuras
51
leituras dos alunos, quando se podem encontrar os mesmos valores
ali implícitos ou explícitos pela “doutrina da resignação”.
Conduzindo assim à intertextualidade, como constituição do
sentido, pela “fossilização” dos vários discursos que se repetem
na nossa sociedade. Os diversos textos produzidos fazem alusão
e remetem a outros textos e assim por diante. Percebe-se, dessa
forma, que os textos, sejam eles falados, sejam eles escritos tem
uma falsa autonomia, já que todos estão sob a condição da
determinação das formações ideológicas.
Que tipos de textos, portanto, damos ao conhecimento
dos nossos alunos? Vejamos alguns exemplos:
“Tudo, aqui, é bonito e bom. A campainha tem um som
agradável e na parede há um crucifixo pendurado. Parece
que estamos numa igreja: entra-se sem chapéu, fala-se
em voz baixa, responde-se à chamada. Oh, como passa
depressa o tempo na escola! “A escola é como uma
igrejinha que espera os seus fiéis: espera seus fiéis todas
as manhãs, esta alegre igrejinha...Entram os fiéis, um a
um, com um livrinho na mão: vão sentar-se todos nos
bancos, ó surpresa, como na igreja. O estudo, crianças,
de uma certa forma, é também uma reza.”1

A quem devemos redenção?


A ideologia da resignação prevê antes que possamos nos
submeter a julgamentos de valores e a que tipo de comportamento,
previsíveis em função das situações estereotipadas nos livros
didáticos. Dentro de uma própria perspectiva deste não seria em
vão dizer que esses mesmo estímulos fazem condicionar e

1
Apud ECO, Umberto. Mentiras que parecem verdades. São Paulo,
Summus, 1980. p. 50.

52
direcionar as respostas na medida em que a conduta é tomada
como modelo, sem que outras condutas possam ser relativizadas
como decorrentes dos processos histórico-sociais, como resultado
da divisão de classes.
Assim, podemos então volta à pergunta do nosso título.
Entenda-se “onde” como lugar, não propriamente físico, mas
institucional. Quem, de que posição fala para quem, com que
finalidade? Estabelece-se assim a seguinte ciranda: o livro
didático supõe determinadas respostas, as quais são confirmadas
pelo professor que, por sua vez, faz parte de uma instituição - a
escola - que está inserida dentro de uma sociedade burguesa,
como produto desta sociedade. Ao “comungar” com a resposta
prevista, o aluno reproduz, dentro do que pode ser refletido pelo
seu imaginário, o discurso e o mantém, garantindo-o como
propagação, perenizando-o, fazendo com ele mesmo se subjugue
à sua própria condição.
Nesse sentido, a uniformização da leitura é o grande carro-
chefe do que pode ser chamado de interpretação de textos. Mas
interpretação para não dizer confirmação do que fora antes
interpretado.
A escola passa, portanto, a não considerar as possíveis
leituras como também o próprio percurso de leitura do leitor.
Considerar-se-iam que outros conhecimentos os alunos possuem,
em que dinâmica do processo histórico e social estão inseridos,
para que possam, na constituição dos sentidos dos textos,
estabelecer as suas leituras.
Para tanto, não basta que apenas a escola dê acesso às
diversas técnicas e a todo um conhecimento que permita ao aluno
fazer uma leitura proficiente. A escola deve dar condições de
apropriação deste conhecimento.
A leitura que o aluno faz na escola vai para a própria
escola, intermediada, a princípio, pelo professor, que de seu lugar

53
institucionalmente garantido, como autoridade, autoriza ou
desautoriza sentidos, legisla pela imagem que dele fazem e acaba
por sucumbir como um elemento mediador de toda uma
ideologia.

54
A CONSTITUIÇÃO DE SLOGANS EM PUBLICIDADES
TELEVISIVAS: UMA ABORDAGEM
SEMIOLINGÜÍSTICA*

1. JUSTIFICATIVA
Considerando-se que a tônica do estudo sobre o discurso
publicitário recai, freqüentemente, sobre os aspectos que envolvem
a produção desse discurso, e, considerando-se que os próprios
critérios de constituição do corpus e instrumentalização para análise
de textos publicitários são desenvolvidos, sobretudo, em função
do âmbito da produção, vimos propor uma forma de abordagem
que permita a compreensão desse discurso através de dois critérios:
aqueles representados pela teoria Semiolingüística e os da recepção
de publicidades através de uma apropriação2 .
Apropriar-se de um discurso pode representar para quem
o faz: a submissão, o reconhecimento pelo enaltecimento de sua
autoria, a evocação de um autoridade ou de uma pseudo-
autoridade, a identificação do que se diz com quem se fala numa
determinada situação. Estas várias representações caracterizam os
casos de discursos citados nos quais um enunciador se apropria
da “fala” de outrem para utilizá-la em seu discurso, seja para
persuadir, seja para agradar. Na televisão, num período de dezoito
anos (de 1979 a 1997), pode-se observar um caso de apropriação
de publicidades semelhante ao que já era conhecido pelo público
brasileiro principalmente através dos “jingles” do rádio (sendo os
exemplos mais significativos aqueles que fizeram parte do repertório

* Dissertação de Mestrado Defendida em 29 de Outubro de 1998.


2
Na literatura sobre Estética da Recepção, os termos apropriação e
recepção são, basicamente, comutados. Cf.: “O ponto de vista da
recepção, das formas de apropriação da literatura por seus leitores, tem
ultimamente motivado um novo interesse pela história da literatura”
(STIERLE, 1979. p.133).
55
comercial deste veículo nos anos 40 (SIMÕES,1990, p.182): a
repetição de publicidades.
Muito mais do que uma repetição, este fato se constitui um
dos efeitos mais nítidos da influência da publicidade televisiva (e
também radiofônica). Enunciados que transitam da esfera da mídia
para o público passam a fazer parte de um repertório fraseológico
que se estende além da lembrança do próprio produto que a
mensagem publicitária veicula. Vejamos, desde já, os enunciados que
compõem o nosso corpus3 :
“Pra (sic) quem gosta de levar vantagem ...” (cigarro
Vila Rica)
“Você se lembra de mim? Ei, ei! Você se lembra da minha
voz? Já faz tempo, né? Muita coisa mudou prá (sic)
melhor, assim como o shampoo Colorama.” (shampoo
Colorama)
“Não basta ser pai, tem que participar.” (Gelol)
“Bombril tem 1001 utilidades.” (Bombril)
“(...)Não é nenhuma Brastemp.” (Brastemp)
“Isso não tem importância,, o importante é que o Banco
Real dá dez dias sem juros no cheque especial” (Banco
Real)
“Denorex aquele que parece, mas não é.” (Denorex)
“Tomou Doril, a dor sumiu” (Doril)
“51. — 51? sabe que a senhora me deu uma boa idéia?”
“Bonita camisa, Fernandinho.” (camisas US TOP)

3
Publicidades: fontes pesquisadas - Arquivo da Propaganda (São Paulo)
e Associação Nacional Memória da Propaganda (Rio de Janeiro). Todos
os enunciados acima correspondem a trechos das publicidades observadas,
na íntegra, em vídeo ou “foto-boards”. As partes sublinhadas representam
stricto senso o nosso objeto de estudo. Cf. anexos.

56
No cotidiano, esses enunciados podem instituir, por vezes,
um princípio tanto orientador da compra (efeito pretendido pela
publicidade) como, simplesmente, uma forma de agradar e ser
reconhecido por parte daquele que o profere em uma situação
cotidiana (conseqüência de um efeito semelhante ao primeiro,
embora em outra situação enunciativa). Mesmo que estejam na
condição de discursos citados, não são utilizados como tal. Em
verdade, não existe o recurso à autoridade ou o enaltecimento
de uma autoria, nem mesmo o recurso parodístico cuja fala do
outro é apropriada para ironizá-lo ou ridicularizá-lo. É uma
apropriação e pode, metaforicamente, representar uma forma
de consumo (BAUDRILLARD , 1983,p. 174, 175, 182, 193).
Aqui entendemos este fato como o percurso transcorrido entre
duas instâncias: a produção e a recepção de mensagens, em que
a segunda pode representar um espaço posterior de circulação
dos enunciados, veiculadas, antes, pelas publicidades.
Grosso modo, pode-se dizer que a forma de difusão
dessas publicidades assemelha-se à forma de propagação da gíria
por dois motivos que estão imbricados: se por um lado, um
determinado grupo de pessoas pode se identificar através dos
enunciados, por outro, essa identificação é o “resultado” de uma
representação dos imaginários lingüísticos (formas lexicalizadas)
ou imaginários socioculturais que transitam como formas de
construções discursivas estereotipadas na nossa sociedade.
A questão de apropriação ou consumo de discursos
publicitários não é, tão pouco, inédita, e o problema de defini-la
diz respeito ao modo como esse fato ocorre. Não se está
“comprando” um bem, a princípio quantificável, que pode ser
mensurado por pesquisas de opinião e verificado por agências
publicitárias. O que se observa nesses casos é que pode existir
uma adesão aos enunciados, sem que para isso haja adoção de
uma idéia ou a compra de um produto, conforme coloca O.
Reboul para os casos de constituição de slogans.

57
A maneira como ocorre a apropriação nos coloca na relação
direta da utilização de um instrumental teórico que nos permita a
verificação da incidência de um fato que se repete, a princípio de
uma maneira não uniforme e que não corresponde à reincidência de
um mesmo fator: produto, agência, etc., mas que, por outro lado, se
conforma em um efeito de sentido (observável) semelhante: a
repetição de enunciados por parte do público.
Observar esse fato, em função de uma teoria adequada, é crucial
para a realização deste trabalho, já que o seu campo de aplicação está
situado entre dois pólos: entre os aspectos da produção de discursos e
os de sua recepção, isto porque os atos de linguagem que aqui estão
em jogo não apenas podem apresentar características constituintes
quanto à sua formação, como devem essa formação à forma pela qual
são recebidos. Se, por um lado, eles encerram uma direcionalidade do
publicitário para o público, por outro, são recebidos por um público
que se torna nova fonte emissora, ao emiti-los. Aqui pode ser observada
a situação em que um dos parceiros envolvidos na comunicação do
cotidiano pode proferir um enunciado publicitário, desde que não só
ele (enunciador) possa ser reconhecido na condição de enunciar
(repetindo a publicidade) – como tendo “direito à palavra”
(CHARAUDEAU, 1996, p.25) –, como esse “enunciar” seja
pertinente (CHARAUDEAU, 1995, p.99) à situação enunciativa.
Se, por um lado, a finalidade da troca no gênero propagandista
corresponde a um fazer-fazer (fazer-agir do consumidor), por outro
lado, muda a finalidade da troca quando a repetição do enunciado da
publicidade é proferida na conversação, tendo aí um objetivo não
mais factivo, mas sedutor, ou seja, uma finalidade de um fazer-prazer4 .

4
As finalidades de troca que eqüivaleriam aos objetivos comunicativos
estão, de certa forma, relacionadas aos contratos de comunicação, termo
utilizado por P. CHARAUDEAU para designar as constantes que
determinados tipos de textos possuem. As mudanças de finalidade de
troca (no nosso trabalho) , segundo a nossa hipótese, consistiriam numa
mudança de contrato.
58
Embora o direcionamento do fazer publicitário implique a
adoção de uma ação por parte do consumidor, ao “transformar,
por meio de um ato de persuasão, um consumidor de publicidade
em um consumidor efetivo de mercadorias” (SOULAGES,
1996. p.145), o que percebemos aqui é, ao mesmo tempo, um
efeito da publicidade com a inversão desses termos, ou seja,
pretende-se transformar um consumidor potencial de
mercadorias em um consumidor efetivo de publicidades, e nesse
fato há três implicações.
A primeira diz respeito à mudança da perspectiva sobre o
produto, quando a publicidade, na década de 50, vai passar a
priorizar a imagem de marca (LAGNEAU, 1981. p.56). A imagem
da marca trouxe consigo não só a importância do nome do produto
como algo previamente conhecido pelo público, como revelou,
também, que a ótica do consumidor (LAGNEAU, 1981. p.57) é
fundamental para a alteração das relações entre “linguagem
publicitária” e o ponto para o qual converge esta linguagem. Passa-
se então de uma relação que priorizava a produção das mensagens
publicitárias para uma preocupação com a sua recepção. Assim
nos diz Lagneau: “para ser eficaz, fez-se necessário que o anúncio
levasse em conta a percepção das palavras e das figuras pelos
receptores das mensagens. Com isto, o slogan se fez gracejo e a
figura, evocação” (LAGNEAU, 1981. p.57).
A segunda implicação corresponde à propagação das
publicidades através de comentários feitos pelo público sobre o
produto (fato a ser considerado pelo publicitário, embora, a
princípio não seja mensurável). Sendo esta, talvez, uma das
formas mais eficazes de se difundir um produto, uma idéia, a
publicidade se aproveitaria do expediente da repetição para: ou
introduzir os nomes dos produtos em expressões utilizadas pelo
público, ou aliar a imagem construída sobre o produto a uma
frase, através da qual este produto possa ser identificado. Assim,
segundo Péninou:

59
“Todas as “celebrações” publicitárias (do queijo, da
gasolina, do dentifrício, do sabão, da meia, do diamante,
da camisa, do isqueiro, da salsicha, da cerveja, da lâmina
de barbear) postulam que estes objetos possam, através
da publicidade, penetrar nas intermitências da
consciência, no ciclo da palavra e na motivação dos
apetites.” (PÉNINOU, 1974, p.113).
A terceira implicação desse fato diz respeito ao suporte
através do qual se propagaram as publicidades — a televisão,
instrumento este que “impõe” uma legitimidade aos seus
produtos, sejam eles de ordem da programação, sejam eles de
ordem comercial. Devido à sua grande influência, a televisão
passa a ser tomada como um critério avaliador, a forma pela
qual os telespectadores julgarão a qualidade dos produtos por
ela anunciados. Como coloca P. Charaudeau ao falar sobre a
legitimidade dos veículos de comunicação: “cada mídia tira sua
legitimidade de um: ‘é bem isto que é o mais importante, já que
todas as mídias o falam’” 5 (CHARADEAU, 1996, p.15).
Este parâmetro de legitimidade desenvolvido pela
televisão se estenderá, por sua vez, à própria criação publicitária,
na qual a qualidade dos produtos (comerciais) será avaliada não
pelas suas propriedades, mas pela sua relação “in praesentia”
no vídeo.
Assim, a mudança de perspectiva sobre o consumidor6 , a
consideração sobre a eficácia publicitária quanto aos comentários

5
Tradução feita por nós.
6
Dentre as implicações, esta deve ser considerada como preponderante
sobre as demais, visto que a alteração da perspectiva sobre o consumidor
permitiu passar de uma relação direta para uma relação hipotetizada.
Não seria mais necessário convencer o consumidor a comprar, mas
convencê-lo a consumir. O consumidor passa ser dado como um “a
priori” das relações comerciais, na qual a sua presença é pressuposta,
mas a sua pré-determinação de escolha ou de compra é desconhecida.
Ele é um desconhecido. Mas não basta apenas

60
do público e a importância da televisão como um veículo que transmite
ao seu público a legitimidade, permitiriam a efetivação de uma
publicidade dirigida, contando com as possibilidades já existentes nas
relações entre publicidade e receptor.
O fato que nos permite considerar o estudo dos enunciados
que fazem parte do nosso corpus, situados entre dois parâmetros
teóricos, diz respeito à própria maneira de como eles “incorporam”
uma “filosofia da publicidade”. Esta consistiria um modo de orientação
do consumidor virtual de publicidades ao se identificar através de formas
lingüísticas mediadoras entre a representação que os publicitários ou
agências dele fazem e a que ele deve fazer dos discursos publicitários.
Essas representações orientam-no na medida em que elas são formas
pré-construídas e “pensamentos acabados” que podem vir a preencher
espaços discursivos pretensamente vazios que são construídos através
de espaços enunciativos. Os enunciados que caracterizam essas
representações serão, antes de mais nada, destinados a uma
verificação de identidade através da linguagem.
Sendo a linguagem uma das formas essenciais de
identificação, (proveniência, faixa etária, classe social), não é
em vão que a publicidade procura tornar a sua linguagem a
primeira forma de especulação e de espetacularização, chamando,
antes, atenção para si, mesmo que esta seja chamada através da
imagem. Torna-se necessário, portanto, investigar essa linguagem
e qual o processo que a introduz dentro de um quadro de
representações. Comecemos, então, por este último.
A efetivação da publicidade dentro de um quadro de
práticas comerciais parece situar-se em três momentos: a criação,
a veiculação (dentro da produção) e a recepção. Vamos privilegiar
os aspectos da criação por ser um momento no qual são
acumuladas as representações do percurso da publicidade. É o
momento no qual o publicitário, presumivelmente, reflete sobre
sua prática, prevê as formas de transmissão e as possíveis
restrições ou possibilidades que poderão otimizar a sua criação e,
61
ainda, procura inferir um determinado comportamento do consumidor
virtual a quem a publicidade é dirigida.
Neste primeiro momento, o publicitário se coloca entre uma
demanda de exigências por parte dos anunciantes, colocando-se entre
dois universos discursivos (MAINGUENEAU, 1993, p.116): aqueles
já existentes de outros produtos (os universos discursivos da publicidade
especificamente) e aqueles que, de uma forma geral, ele considera
significantes para o seu trabalho. Como mediador dessa relação, ele
vai procurar aliar esses universos discursivos à forma de sua
publicidade. Para tanto, ele pode utilizar as formas discursivas que
podem circular no repertório das possibilidades pragmáticas dos
falantes como formas “pró-significantes”, em função de determinada
construção discursiva, ou utilizar formas lingüísticas pré-construídas
através das quais é introduzido o nome do produto. Em ambos os
casos, temos modos de orientação psicossocial. Passemos,
preliminarmente, à investigação das estratégias.
Delineiam-se assim duas estratégias em função das quais o
publicitário pode: ou utilizar fórmulas lexicalizadas, através dos
imaginários lingüísticos, ou retomar os imaginários socioculturais
através de enunciados. Considerando-se os exemplos do nosso
corpus, temos uma bipartição: para os casos de utilização das
fórmulas lexicalizadas, teremos a reprodução de expressões ou
sintagmas utilizados muitas vezes em situações do cotidiano.
Vejamos esses esquemas:

1. “Isso não tem importância, o importante é que______”


2. “______parece, mas não é”
3. “Toma______que isso passa”
4. “Não é nenhum(a)______”
5.“______mil e um(a)_______”
6. “______uma boa idéia”
Os esquemas acima representariam formas mais ou menos

62
fixas pelos quais o publicitário vai inserir o nome do produto no “espaço
discursivo vazio” (espaço de nomeação). Temos, assim, uma estratégia
cuja função principal é a introdução do nome do produto ao lado de
formas lingüísticas já conhecidas, cujo efeito de novidade resulta em
utilizar a mesma forma (fórmula) linguageira com a adição de outros
nomes que passam a fazer parte dessa forma e, por conseguinte,
sedimentam aí sua configuração dentro do enunciado. Assim temos:

1. “Isso não tem importância, o importante é que o Banco Real


dá dez dias sem juros no cheque especial.” (Publicidade do
Banco Real)
2. “Denorex aquele que parece, mas não é.” (Publicidade de
Denorex, Shampoo anti-caspa)
3. “Tomou Doril, a dor sumiu.” (Publicidade de remédio Doril)
4. “Não é nenhuma Brastemp.” (Publicidade da marca
Brastemp)
5. “Bombril tem mil e uma utilidades.” (Publicidade de
Bombril)
6. “51, uma boa idéia.” (Aguardente 51)

Nos casos em que há a retomada dos imaginários


socioculturais através de enunciados, a criação publicitária alude
não a expressões ou sintagmas “mais visíveis”, mas a formas
discursivas relacionadas aos estereótipos sociais:

7. “A imagem proporciona maior identificação que a voz.”


8. “Uma roupa diferente pode individualizar quem a usa.”
9. “Deve-se sempre procurar tirar proveito das situações com as
quais nos deparamos no cotidiano.”
10. “O comportamento dos pais não deve ser restrito à formalidade
das ações.”
A fim de contextualizá-las, vejamos como essas formas

63
de representação se caracterizam socialmente:
• A forma 7 representa um ponto de vista sobre a importância
e o efeito da imagem no século XX.
• A representação 8 diz respeito à de orientação mais básica
do universo da moda: a criação de uma identidade através da
utilização da roupa.
• Em 9, representa-se um caso de sintetização de aspirações,
no sentido de que a publicidade pretende expor um tipo de
comportamento que se, por um lado, é condenável como um
estereótipo de uma formação social, por outro, congrega pela
idéia do que seja comum a um grupo.
• O caso 10 retoma o “universo familiar” onde, em função
das atribuições do dia-a-dia, maior se faz a exigência de
atenção aos filhos. Assim, por exemplo, o comportamento de
um pai “exemplar” ultrapassa as limitações que a sociedade,
em que ele está inserido, impôs à sua conduta.
Vejamos como a publicidade especificou essas
representações conforme os exemplos do nosso corpus (repetimos
a numeração anterior):

7. “Você lembra da minha voz?” (Publicidade do shampoo


Colorama)
8. “Bonita camisa, Fernandinho.” (camisas US TOP)
9. “Pra (sic) quem realmente gosta de levar vantagens...”
(cigarro Vila Rica)
10. “Não basta ser pai, tem que participar.” (Gelol)

O que pode ser observado nos enunciados acima é que o


nome dos produtos não aparece nas orações que são repetidas
pelo público. Na estratégia anterior, o nome do produto aparece
em forma de sujeito, objeto ou predicativo, com o enunciado

64
atualizado pelo público. Nesta estratégia, os enunciados em que
aparece o nome do produto não são repetidos pelo público.
Semelhante às formas lexicalizadas, os imaginários
socioculturais, através das suas manifestações discursivas,
sedimentam sua forma de configuração pela publicidade. E é
essa manifestação discursiva, em sua dimensão psicossocial, que
nos propomos estudar.
Dentre os estudos feitos sobre uma série de expressões
que na língua se constituem por uma constância de sentido entre
palavras ou sintagmas (como no caso das gírias, provérbios, clichês
etc.), fomos encontrar, na teoria sobre o slogan, o perfil “adequado”
para as nossas publicidades. Não se tratava tão somente de “achar
um rótulo”, tratava-se de uma forma de “funcionamento” de um
enunciado que apresentava as mesmas características daquelas
observadas nas publicidades: a constância de sentido, a repetição
e a concisão. Encontradas essas características, como enquadrar
os exemplos do corpus dentro da teoria Semiolingüística?
Observando os pressupostos dessa teoria, verificamos que
deveríamos detectar uma série de constantes para que pudéssemos
consolidar a constituição de um corpus, mas não tínhamos, até
aqui, senão publicidades que apresentavam, como aspectos
comuns, o fato de serem repetidas/apropriadas pelo público. Vimos
que a teoria Semiolingüística funda-se sobre o ato de linguagem e
que este instaura quatro instâncias enunciativas: duas da emissão
e duas da recepção. Vislumbramos dessa forma a possibilidade de
verificarmos como os slogans se enquadravam dentro de uma teoria
que prevê a possibilidade da recepção como fundadora do ato de
linguagem. Aliamos assim a Semiolingüística a alguns postulados
da Estética da Recepção.
Como nosso trabalho não estava ligado ao levantamento
de variáveis, isto é, não tinha a finalidade de verificar “como”
ocorre a “apropriação” das publicidades do nosso corpus, passamos
65
a descrever os enunciados. Verificamos, no início, que havia uma
diferença primordial entre eles: uns eram formulados em termos de
construções lingüísticas estereotipadas e outros como construções
lingüísticas que remetiam aos estereótipos socioculturais. Mas o que
denominamos de estratégias fazia parte de uma construção muito
maior que estava ligada a uma forma de percepção do texto publicitário
por parte do telespectador e faz parte da competência lingüístico-
pragmática do produtor das mensagens: o publicitário. Entre os dois
posicionamentos teóricos, encontramos, em Reboul, a caracterização
desses dois espaços ocupados pelo slogan: “Mesmo quando conhece
um sucesso inesperado é porque o slogan responde a uma expectativa
coletiva, ou porque um longo trabalho de propaganda lhe preparou
o terreno”( REBOUL [s/d], p.45).
Assim teríamos as condições de realização de textos e
condições de realização de textos paralelas às condições de
realização de imagens. Chegamos então a duas estratégias.
Restava-nos, portanto, um problema: como sustentar que esses
enunciados existem efetivamente dentro de uma prática
linguageira dialógica? Sabemos que as pessoas os utilizam no
cotidiano, mas não há documentos que comprovem tal fato. A
pesquisa que desenvolvemos aqui serviu-nos como uma forma
de documentar e descrever um fenômeno “pequeno” se
considerarmos as amplitudes da publicidade enquanto fenômeno
sociocultural que condensa, na sua forma de produção,
representações diversas a quem é destinada, mas que é
sumariamente “consumida” em um ato que a faz singular na sua
forma de apropriação.
Uma questão teórica nos mantinha presos a um dilema:
se há, possivelmente, uma mudança de contrato comunicacional,
passando-se da esfera da publicidade para a esfera das trocas
linguageiras, como um enunciado pode existir nessa segunda
esfera sem as mesmas características, sem os seus efeitos
perlocutórios, o que pode ser resumido da seguinte forma: muda-se

66
o gênero (a finalidade de troca) porque muda-se o contrato ou por
que muda-se o contrato muda-se também de gênero? Estas perguntas
nos acompanharam durante todo o trabalho, considerando-se que o
contrato da publicidade gera uma finalidade de troca que corresponde
a um fazer-fazer. Este “segundo” fazer, enquanto resultado de uma
ação e enquanto resultado de um ato de linguagem (um slogan)
corresponde a uma apropriação. É um fazer que se dá pelo dizer,
não necessariamente pelo comprar: ao apropriar-se de uma fala, se
estaria “consumindo” essa fala.
O fato que caracteriza esse fazer se dá, portanto, pela
apropriação, passando da esfera das práticas monológicas para a
esfera das práticas dialógicas: ocorre a atualização de um
enunciado da publicidade. Mas esta atualização ocorre não mais
com objetivos factivos, mas sedutores, sendo importante um
fazer-prazer, buscar uma forma de identidade, de se estabelecer
um vínculo, ainda que sumário, entre mim e meus semelhantes.

Referências Bibliográficas

ARQUIVO DA PROPAGANDA. São Paulo, 1997. 1 Videocassete

67
(2,35 min) VHS son. color.
BAUDRILLARD, Jean. A publicidade. In: O sistema dos objetos.
São Paulo, Pers pectiva, 1983. p. 173-211.
CHARAUDEAU, P. Une analyse sémiolinguistique du discours. In:
Langages n° 117. Paris, Larousse, mars, 1995. p. 96-111.
___.Para uma nova análise do discurso. In: Discurso da mídia. Rio
de Janeiro, Oficina do Autor, 1996. p.5-43.
___.Le contrat d’information médiatique. La specificité de
l’information télévisée.
In: Anais do II encontro franco-brasileiro de análise do discurso.
Rio de Janeiro, CIAD, 1996b. p. 13-20.
LAGNEAU, Gérard. A sociologia da publicidade. Tradução de
Heloísa de L. Dantas. São Paulo, Cultrix/EDUSP, 1981. 92 p.
MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso.
Campinas, Pontes, 1989. 198 P.
PÉNINOU, Georges. Physique et métaphysique publicitaire.
Communications, Paris (15), 1970.
REBOUL, Olivier. O slogan. São Paulo, Cultrix, [s.d.] 165 p.
SIMÕES, R. Do pregão ao jingle. In: REIS, F. História da propaganda
no Brasil. São Paulo, T.A. Queiroz, 1990. p. 171-201.
SOULAGES, J.C (a). Discurso e mensagens publicitárias. In: Discurso
da mídia. Rio de Janeiro, Oficina do Autor, 1996. p. 142-154.
STIERLE, K. “Que significa a recepção dos textos ficcionais”. In:
JAUSS, H. R. et al A literatura e o leitor: texto de estética da
recepção. Coordenação e tradução de Luiz Costa Lima. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1979. 213 p.
VIZEU, C. A. 45 anos de propaganda na televisão. Teletape, 1995. 1
videocassete (57 min) VHS son. color.
XAVIER, Herberth. Uma boa propaganda a gente nunca esquece.
Estado de Minas, Belo Horizonte, 9 novembro 1997. Caderno de
Economia, p. 9.

68
SOBRE A DESCRIÇÃO COMO ETAPA
NECESSÁRIA AO TRABALHO DE ANÁLISE
SEMIOLÓGICA DE FOTOGRAFIAS

O presente texto tem por objetivo levantar alguns pressupostos


sobre o trabalho de descrição de imagens, a partir do trabalho piloto
realizado pelo Grupo de Semióticas Visuais e Semiologia Icônica da
Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais1 . Com
efeito, meu trabalho2 aqui será mais o tecer considerações a respeito
dessa etapa, procurando enfatizar os aspectos teóricos tanto
pertinentes às discussões do trabalho específico do Grupo (descrição
de uma publicidade da cerveja Antárctica) como também àqueles
que estão implicados na descrição de imagens fotográficas. Junto as
essas considerações de ordem teórica, propus-me a responder algumas
perguntas relacionadas, direta ou indiretamente aos subtópicos, não
com uma finalidade didática, mas como uma forma de reflexão
sobre a própria forma de como fizemos a descrição. Excetuando-
se as falhas e os pontos de vista pessoais, atribuo a feitura do texto
aos colegas que puderam escrevê-lo anteriormente.

1. A Escolha Do Texto3
Como escolher o texto com o qual trabalhamos? Partimos

1
O Grupo de Semióticas Visuais e Semiologia Icônica reúne pesquisadores
das mais diversas áreas e tem a coordenação dos Professores Doutores
Maria Cristina de Avelar Esteves e Luiz Cláudio Vieira Oliveira.
2
Utilizarei o plural de modéstia, o que, necessariamente, não quer dizer
que expresse a opinião do Grupo.
3
A utilização da palavra texto para os trabalhos de análise de imagens é
deliberadamente uma opção do grupo, no entanto sua formatação será
feita em itálico, já ao seu sentido não usual. A propósito, cf. BARTHES:
“Os lingüistas desconfiam cada vez mais da natureza lingüística da
imagem”. BARTHES, 1964. Cf. também JAMESON, 1996. p. 19.
69
de um saber etnográfico que nos permite, a partir do nosso
conhecimento de mundo (conotação cognitiva), relacionar a
imagem, enquanto representação sociocultural aos valores que
atribuímos a essa imagem (conotação ideológica). O que mais
exatamente nos chama atenção em uma imagem: algo que
envolve esse nosso saber perpassado de práticas culturais ou o
que nos interessa enquanto detalhe dessa imagem, que nos remete
para além dela? Em outros termos poderíamos dizer: estaríamos
nós interessados nessa “inversão perceptiva” que tenta
desconstruir a direcionalidade, o enquadramento, os objetos e as
poses captados pelo produtor da imagem? Nossa escolha já
implica um certo envolvimento com a forma de como as imagens
são previamente ou “metapreviamente” entendidas em seu
estatuto de significar, o que também pode ser dado pela nossa
cultura midiática que nos propõe essa relação de mediatizar
“construções sintéticas da realidade”?
Sob essa aparência tão uniforme e plana, acreditamos ver
na imagem a sublimidade: a tela da televisão é difusa em seus
milhares de pontos em dispersão; a fotografia, em sais de prata;
mas nessas substâncias, ou na forma de como elas estão
organizadas guardam-se fragmentos que podem apontar para
formas de representações socioculturais, desde de a mais inocente
cor a uma pose ou um gesto.
Voltando à questão. Como escolher o texto? E esta questão
nos remete à outra. Todo texto estaria investido de uma certa
conotação, já que, na verdade, é por ela que nos interessamos.
Barthes (1961) propõe essa questão: haverá um aquém da
imagem, uma imagem denotada? Acredito não haver graus de
mensurabilidade, de escalas que possam aferir textos mais ou
menos conotativos. Mas, com certeza, um texto, a depender dos
processos da sua construção, pode indicar-nos se eles está mais
polarizado para conotação ou denotação. Geralmente, escolhemos
textos menos denotados ou menos transparentes.
70
Escolhemos, assim, um texto que para nós era mais
polarizado conotativamente e que supomos “metapreviamente”
que ele poderia ser um objeto de análise mais producente. Porque
vimos nele o que, possivelmente, poderíamos relacionar como
uma projeção da representação da imagem na sociedade ou a
sua representação sociocultural às inferências prévias que
podíamos fazer dessa imagem.
Acima mencionamos a expressão “construções
condensadas de realidades”4 e gostaríamos, ao mesmo tempo, de,
ao explicitá-la (já que ela não tem um estatuto taxionômico)
relacioná-la ao processo de escolha deliberada de uma imagem
para análise.
Que tipos de saberes prévios dominam a produção dessa
imagem? As próprias circunstâncias enunciativas em que ela se
dá já a faz diferir daquilo que se poderia chamar, em um primeiro
momento de interpessoal, mas que, ao mesmo tempo é (ou pode
ser) subjetivo. Diríamos, a princípio, que sob a sua pretensa
objetividade repousa uma subjetividade que a permite guardar
marcas explícitas não de quem a enunciou, mas com que intenção
a enunciou. O sujeito está presente no ato de sua produção, mas
ausente na sua recepção, enquanto espaço de interlocução (para
usar a metáfora da linguagem verbal). Isto implica sempre um
certo camuflamento do sujeito na produção da imagem
fotográfica. Nenhuma fotografia é performativa, mas tão-somente
constatativa. Encontramos essa distinção na Filosofia da
Linguagem, cuja fundamentação implica a diferenciação dos atos
de fala: se realizam uma ação através da fala, ou se apenas
descrevem uma situação. Indo um pouco mais adiante, podemos

4
Não vejo nenhum empecilho para que a expressão acima mencionada
possa ser traduzida como: ou imagem de massa, ou, imagem produzida
mecanicamente com a finalidade de ser difundida.
71
dizer que o fotógrafo primeiro testemunha um fato e,
secundariamente este fato passa a ser a imagem que o fotógrafo
deu a ele. Posteriormente, verifica-se, constata-se. Na linguagem
verbal, os enunciados performativos mudam ou fazem mudar o
estado das coisas; com os constatativos, pode-se apenas dizer se
são falsos ou verdadeiros, já que implicam uma certa
cumplicidade sobre a verdade que pode ser atestada pelo sujeito
a quem o enunciado é dirigido. Na fotografia esta cumplicidade
(para com o sujeito e também para com o Real) não existe: o
sujeito está ausente e a foto pretensamente substitui esse Real.
Mas a foto é este “múltiplo na unidade”. Para uma leitura
quotidiana ela é sempre a unidade, aquilo que pode ser apreendido
como algo sobre o qual se acaba de falar. Dessa forma, ela joga
com uma peculiaridade da linguagem digital - a arbitrariedade,
sendo analógica. Só que a primeira nos dá margem para múltiplas
manobras. Sabemos, com a nossa competência pragmática, como
determinados sentidos podem ou não ser mais adequados, se
podem ser contestados etc., em síntese, é o que faz da linguagem
ser estruturação e não código5 - na sua possibilidade de permitir
a inovação, sem provocar a ininteligibilidade. Mas encontramos,
na imagem, o sentido nela plasmado. O sentido da imagem não
é algo no qual posso intervir, devido a essa consubstancialização
- imagem e realidade - que me é proposta como verdade. Como
aparentemente na fotografia não há essa possibilidade de
intervenção, daí o seu efeito de realidade, acreditamos que o
enunciado - foto - possa valer por toda a enunciação -
acontecimento.
O segundo tipo de saber prévio corresponde à concepção
do efeito suscitado pela fotografia. Seria algo do tipo: ‘o que

5
Cf. HOUDEBINE, 1998.

72
lhes dou a ver é a forma de como eu quero que vocês vejam’.
Nesse sentido, a fotografia orienta-nos também como a linguagem
verbal; possui a sua retórica.
Entre dar a ver e ver efetivamente existe todo um saber,
toda uma técnica que é colocada em jogo. Nesse sentido, o ato
fotográfico assemelha-se um pouco ao ato de linguagem, no
sentido que este é uma aposta6 : pode ou não surtir o efeito
pretendido pelo enunciador, pelo produtor da imagem. Mas o
saber que é suposto considera a imagem que o receptor faz do
que foi fotografado e as circunstâncias enunciativas das quais
foi “retirado” (não querendo com isso dizer que haja algum efeito
mítico ou mágico com “retirar”). Assim, a fotografia representa
a realidade do fato, confundindo-se com o fato propriamente
dito. Ela é tão-só o enunciado, o resultado da enunciação. Algo
que passou por múltiplas “destilagens”, e como tal ela passa a
ser outra coisa que não o fato. Ela passa a entrar na ordem das
representações, das instituições, da institucionalização do sentido,
e, como tal, ela ganha também o seu estatuto de signo, porque só
se pode saber fazer signo o que pode fazer sentido. Um sentido
para outrem.
Escolhemos o objeto para a nossa análise, porque vimos
nele algo mais do que uma simples representação, se é que pode
existir . Nesse ponto parece haver uma espécie de semelhança
às avessas entre a percepção do fotógrafo e a do semiólogo: este
pretende apresentar, a partir do fato ou do objeto fotografado,
um possível efeito de sentido, aquele, ao contrário, pretende, a
partir do efeito de sentido, apresentar a forma de como o fato ou
o objeto foram percebidos.

6
Patrick Charaudeau afirma que o ato de linguagem é uma aposta na
medida em que o enunciador, a partir da sua intenção, tenta persuadir
seu interlocutor.

73
2. A Imagem De Massa Como “Construção Sintética
Da Realidade” - Uma Opção De Descrição
Dadas a pluralidade e a onisciência da imagem, optamos
por escolher a descrição de uma imagem da mídia, ou que
chamamos de “construção sintética da realidade”. O que esta
pode ser? Embora os escopos conceituais das palavra imagem e
da expressão construção sintética da realidade sejam muito
amplos, definiremos a segunda como uma imagem produzida:
não só mecanicamente, não só produzida a partir de um saber
técnico, não só difundida, mas como uma imagem que, qualitativa
e quantitativamente, em sua forma de composição, pode reunir
várias matérias significantes sob uma aparência monolítica.
Esta é uma definição incipiente se considerarmos: 1. os saberes
técnicos que estão envolvidos na sua produção; 2. os efeitos
que são visados na sua recepção; 3. a localização de um saber
hermenêutico que possa ser relacionado aos outros saberes
implicados na interpretação semiológica. Descreveremos esses
itens a seguir:
1. Não se trata, efetivamente, do conhecimento técnico para se
conhecer o gênio (KANT, 1995), ou do exato conhecimento
de regras, mas de um saber sobre um fazer técnico enquanto
projeção de uma descoberta em um campo científico - o
aprimoramento de recursos nas busca da criação de efeitos
visuais. Trata-se de uma fazer técnico e o que o margeia
enquanto fronteira entre a produção consciente/inconsciente.
Trata-se de decifrar uma prática cultural que está inscrita
paralelamente como uma forma de um segundo texto7 : aquele
que trata da representação da representação dos fatos.

7
As práticas socioculturais entendidas como texto representam formas de
observação filósofo J. Derrida.

74
2. Se a imagem de massa pode tornar-se legível, em que se
pese o conhecimento do seu referente ou o seu poder de
simulação, para ser identificada de relance, isto significa que
a sua forma de composição visa, por conseguinte, uma
legibilidade, mas diríamos que esta pressupõe intervenções
na sua produção como uma forma de “tratamento” dado à
imagem (os vários processos de seleção pelos quais a imagem
passa. É dessa forma de intervenção sobre a imagem que [se
tem] o produto fotográfico. O que é, então, para nós “natural”,
como forma de apresentação “a olho nu”, é, na verdade,
uma forma de apreensão da realidade, ou, em outros termos,
poder-se-ia dizer que a fotografia significa o que alguém
viu, antes de nós, e este mesmo alguém, dá-nos a ver a sua
forma de ver. Esse tipo de imagem metaforiza a realidade ao
desempenhar o papel de um “filtro cultural”, “instrumento”
através do qual a representação do sujeito é depurada até a
ordem das substâncias visuais perceptíveis: em verdade, uma
de ver sem saber que estamos sendo vistos. Dessa forma, a
imagem de massa passa a “funcionar” não apenas como
síntese da pluralidade das representações culturais, mas como
um “mecanismo de controle”8 (note-se que a imagem é vista
com naturalidade e objetividade, podendo até legitimar os
fatos) através do qual faz operar a seguinte inversão: a
imagem passa a ser “vista” como denotada e a representação
do sujeito como conotada. Este sujeito, histórico, é, agora,
narrativizado. Sua existência passa a fazer parte da ordem
das representações. Suas ações são construções estereotipadas,
produções em que o simbólico simula o real para se tornar
modelo de existência.
3. O saber semiológico não existe apenas como um

8
Cf. os exemplos das “teletelas” da obra 1984, de George Orwell.

75
conhecimento teórico que passa a ser instrumentalizado, a
partir do conhecimento do objeto e do fazer metodológico,
mas, na medida em que o conhecimento do objeto faz
pressupor vários outros saberes que ao conhecimento
semiológico pode relacionar-se. Assim sendo, a forma de
intervenção do analista implica um “inedistismo teórico”
que permite dimensioná-lo em uma perspectiva singular:
aquela que o faz relacionar os conhecimentos
interdisciplinares pressupostos e faz, sobre o objeto, a
projeção das suas hipóteses interpretativas.

3. Descrevendo O Texto
A descrição é ilimitada?! Acreditamos chegar a um
consenso de que a descrição é ilimitada. Por vários motivos, a
princípio porque as substâncias que performam o texto imagético
podem ser diferentes e, ao mesmo tempo, múltiplas em “graus de
percepção”. O que mais exatamente descrever: os objetos, as
formas, a pigmentação? Um problema que pode decorrer da forma
de nossa escolha é que a nossa forma de observação é orientada
pela forma de como, grosso modo, nós categorizamos os produtos
da nossa cultura. A partir desse fato, pode-se afirmar que toda
descrição será diferente, ou melhor, vai depender do ponto de vista
do observador. Dessa sua não limitação advém uma certa
infidelidade ou impossibilidade de se descrever com mais precisão,
por exemplo, nas experiências de práticas textual que motivam os
alunos a descreverem (levando-os à preocupação sobre o
fornecimento de pistas ou detalhes para o “leitor”) a posição de
objetos (aleatoriamente escolhidos sem o conhecimento de outro
aluno - orientando) previamente dispostos em cima de uma mesa
e, depois, colocados aleatoriamente. Mesmo que a descrição seja
feita por toda uma turma, dificilmente o aluno orientando
conseguirá identificar a forma de como os objetos foram

76
originalmente colocados. Esta experiência demonstra uma certa
precariedade da descrição. Poderíamos até afirmar aqui que,
quando descrevemos, estamos recriando ou senão criando uma
“outra espécie” de objeto: aquele que passa pela nossa mediação
e que será construído, ainda que tenhamos a máxima preocupação
de sermos fiéis à imagem, dentro de uma outra estruturação, a
linguagem verbal.
Quando se descreve uma imagem em grupo, podemos
observar que as nossas discussões não são direcionadas sobre
aquilo que vemos, mas sobre a forma de como podemos categorizar
a imagem. Quando passamos da observação de uma estruturação
analógica, na descrição, para um uma estruturação digital, que é a
língua, passamos de uma forma de observação não codificada para
uma forma de compreensão arbitrariamente codificada: a união
significante/significado. Nesse momento, nossos problemas são
mais de ordem técnica, porque uma descrição mais acurada requer
não só detalhamento, mas precisão sobre a forma de composição
da imagem, seja ela fotográfica ou não.
Afirmamos acima que a descrição é ilimitada. Melhor
seríamos dizer que ela é teoricamente ilimitada, isto quer dizer
que, a depender dos traços que podem ser apreendidos na
descrição, ela não tem fim. Contudo, a tarefa da descrição não
pode ser dada como aberta ou totalmente aberta. O limite da
descrição é colocado pelo próprio analista, em função do seguinte
fator: o limite do seu conhecimento técnico-avaliativo sobre o
texto. Quanto maior o seu conhecimento técnico na consideração
sobre as substâncias que compõem o texto, melhor será a sua
descrição. Esta afirmação por si só parece ser um tanto quanto
trivial, mas considerando-se que para o trabalho de descrição a
exaustividade torna-se uma prerrogativa, já que consiste na
possibilidade de elencar o maior número possível de elementos
que poderão ter um estatuto indicial, então a afirmação passa a
valer como pressuposto nessa etapa anterior da análise.
77
DA IMAGEM –MOVIMENTO À “IMAGEM-ATO”: UMA
POSSÍVEL REFLEXÃO SOBRE AS IMAGENS
(PRO)CINEMATOGRÁFICAS

“Todo registro ou signo da realidade tem uma


vida emprestada, quer dizer, representa algo
que está fora do registro e continua a existir
apesar do registro.”
SANTAELLA, L., NÖTH, W. A imagem:
cognição, semiótica, mídia. São Paulo,
Iluminuras, 1998. p.137.

Considerações Inicias
Em vários momentos, no estudo das Ciências Humanas
ou na Filosofia, particularmente naqueles estudos que se
debruçam sobre a forma de mediação que se estabelece entre o
ser e a realidade, na medida em que esta é um constructo que é
devolvido ao próprio ser que a formula como forma de realidade,
cresce em importância os estudos da Semiótica formulada pelo
filósofo, lógico e matemático Charles Sanders Peirce.
Em uma obra singular, em sua maior parte ainda
inédita, desponta a fecunda formulação das categorias do
pensamento e da natureza1 elaborada por Peirce. Talvez seja
conveniente supor que o desenvolvimento das categorias não
se reduza à própria semiótica, conforme a acepção que lhe
atribuiu Peirce, ou seja, como sinônimo de lógica2 , podendo
estender-se, também, à outras partes de sua vasta obra.

1
Cf. SANTAELLA, 1983. p.35-54.
2
Cf. CP 93 e 227. Cf. SANTAELLA, 1992. p.65 e p. 132-137.
79
A formulação das categorias remete a um grau de abstração
elevado do pensamento peirceano, de forma que ela parece cobrir
não apenas a observação da realidade fenomenológica ou a produção
de signos culturais, sob o prisma da investigação, como também nos
permite um lançar de olhos sobre produções teóricas e filosóficas
que se aproximam, em sua forma de elaboração, à ordenação triádica
das categorias (primeiridade, secundidade e terceiridade) instituída
por Peirce, e que este, de certa forma, herdou de Kant3 .
Deteremo-nos, aqui, a averiguar três aspectos, três conceitos
das obras do filósofo Gillles Deleuze, contidos em: Cinema I:
Imagem-movimento e Cinema 2: Image-Tempo 4 , que
reconhecidamente se aproximam das categorias peirceanas, ou
delas haure a maior parte dos seus princípios. São os conceitos:
imagem-afecção, imagem-ação e imagem-relação5 .
Mas, sob o aspecto da comparação, talvez não exista
nenhuma contribuição específica que possamos trazer senão
ratificar as posições já endossadas pelo próprio Deleuze.
A nossa questão não vai de encontro à postulação dos
conceitos deleuzeanos, mas procura tomá-los ou retomá-los a
partir de um parâmetro de não exclusividade dos conceitos na
forma que ele são explicitados pelo autor e na medida em que
eles são cotejados com as categorias. Ou seja, segundo o nosso
ponto de vista, os conceitos imagem-afecção, imagem-ação e
imagem-relação, não seriam exclusivos da produção
cinematográfica, mas preexistiriam já na fotografia, sob a forma de

3
CP. 369.
4
DELEUZE, 1985.
5
Não é intenção deste trabalho discutir as noções de imagem-pulsão e
imagem-reflexão, colocadas por Deleuze. Deixamos, para uma outra
ocasião, o cotejamento entre elas e a forma que podem assumir na
semiótica peirceana.

80
signos (pré-cinematográficos) em potencial.
O presente trabalho não tem, assim, a pretensão de ser
uma recensão tardia à obra de Deleuze, mas ser uma contribuição
ao entendimento semiótico da fotografia, considerando-se o fato
de que os desenvolvimentos sobre o cinema, na obra deste autor
são, na medida em que ele toma a semiótica peirceana como um
dos seus referenciais teóricos, colaborações indiretas para se
refletir sobre o processo de produção de signos que se norteia
por uma forma de produção, via de regra, semelhante6 .

Justificativa
A questão acima colocada nada apresentaria de relevante
se a considerássemos sob o ponto de vista do próprio
desenvolvimento da imagem. O cinema, como imagem produzida
dentro do paradigma fotográfico7 , herda da fotografia, assim
como os outros tipos de imagens que fazem parte desse
paradigma, a forma de produção sígnica ancorada na captação
física do referente.
Se bem entendemos o pensamento de Lúcia Santaella, a
quem coube a formulação da noção de paradigma, aplicada a
uma classificação das imagens, baseando-se em T. Kuhn (1962),
haurir as características de um outro meio não significa, no
entanto, ter como parâmetro todas as características do próprio
meio primogênito, mas fazer convergir formas similares de produção

6
Referimo-nos aqui às aproximações que podem ser estabelecidas entre
cinema e fotografia, em função do fato de que ambos são produzidos
através dos mesmos princípios: captação físico-química do referente,
através da utilização de um suporte sensível e de próteses que mediatizam
a relação sujeito-agente e objeto. Cf. SANTAELLA, L., NÖTH, W. 1998.
p.164-165.
7
Ibidem. p. 157-186. Cf. nota 6.
81
de imagens, em função dos princípios materiais disponíveis, a rigor,
em uma determinada época.
Assim, é bem possível que as características descritas
por Deleuze através dos conceitos de imagem-afecção, imagem-
ação e imagem-relação, nós bem as podemos encontrar como
“signos latentes” já na fotografia. E a maneira como pretendemos
mostrar que pelo menos algumas fotografias seriam
potencialidades da imagem-movimento é extraindo das
conceituações, que Deleuze traça para cada tipo de imagem, que
estas conceituações não são redutíveis à “forma” da sua
classificação, mas apontam também para um aspecto da realidade
fenomenológica que, ao mesmo tempo que é aprendido pela
classificação, lhe foge como um fenômeno paradoxalmente único
e repetível sob outras circunstâncias.
Em função do objetivo delineado acima, é provável que
possamos dizer que esse trabalho se justifica na tentativa de
observar o quanto o signo fotográfico possui de cinematográfico
e o quanto o signo cinematográfico torna-se expressão das
potencialidades já existentes na fotografia. Ou ainda, conforme
nos coloca o próprio Deleuze: “E como impedir que o movimento
já não seja, pelo menos virtual, e que a imagem já seja movimento
pelo menos possível?”8

A imagem-afecção
Deleuze identifica a imagem-afecção com a imagem em
primeiro plano, a imagem de um rosto9 , podendo este ser expresso
ou através do que ele denomina rosto reflexivo, aquele que, segundo
o autor “exprime uma Qualidade pura” ou de rosto intensivo ou “aquele

8
DELEUZE, 1985. p. 76.
9
“A imagem-afecção é o primeiro plano, e o primeiro plano é o rosto.”
Ibidem. p. 115.

82
que exprime uma Potência pura”10 . Antes, porém, de nos determos nessa
divisão, é importante mencionarmos um aspecto que consideramos
fundamental na classificação da imagem-afecção: a questão da admiração
que está ligada à questão do movimento.
A descrição da imagem que distingue a imagem-afecção
corresponde a uma correlação entre admiração e movimento, ou
seja: “a admiração indica mínimo de movimento para um máximo
de unidade refletora e refletida sobre o rosto”11 , compreendendo a
uma imagem tomada em primeiro plano, suprimida de movimento
e das coordenadas espácio-temporais que a caraterizariam.
Tomada em primeiro-plano, essa imagem-afeto, abole as
circunstâncias que a individualizam, e, como tal, ela passaria a
ser não mais a imagem que particulariza um tipo de situação,

10
Ibidem. p. 114-131.
11
Ibidem. p. 115. Esta afirmação remete-nos a uma possibilidade que parece
não ser restrita ao pensamento deleuzeano. Essa possibilidade corresponde
a uma certa “inversão de proporcionalidade” entre os termos cotejados na
fotografia, ou seja, poder de evocação da imagem/ perenidade do objeto.
Observe-se como esta questão é abordada por F. Colombo: “A força do
poder evocativo da fotografia aumenta na proporção inversa e em relação
à transitoriedade do objeto representado: se a tradição clássica da imagem
havia encontrado o seu ápice na figuração eterna de um objeto inalienável
do tempo, o ícone fotográfico deve o seu fascínio à possibilidade de
conservar o transitório, e remontar por conseguinte a instintos ainda mais
antigos.” Cf. COLOMBO, 1991: 47. A mesma “inversão de
proporcionalidade” também pode ser observada no seguinte trecho de R.
Barthes: “Poderíamos imaginar uma espécie de lei: quanto mais o trauma
é directo, mais a conotação é difícil; ou ainda: o efeito “mitológico” de
uma fotografia é inversamente proporcional ao seu efeito traumático.”
BARTHES, 1984. p.25. Em verdade, tanto F. Colombo quanto R. Barthes,
seguem a tradição lógica, ao colocarem em relação dois conceitos (aqui
representados pelos termos cotejados), quais sejam, os de denotação e de
conotação, também chamados extensão e compreensão, respectivamente.
Quanto à discussão dos conceitos e quanto ao uso da expressão
“proporcionalidade inversa”, cf. PEIRCE, 1990. p.127-148.

83
mas aquela que nos remete a uma generalização. E é através dessa
generalização, de uma comunhão, entre o signo e o seu receptor,
que se busca, por vezes, o elemento patético, no sentido mesmo de
“páthos” da tragédia grega, que comove, “que desperta nos outros
os sentimentos ou afetos de que estamos possuídos.”
Esse aspecto não passou despercebido a Deleuze, quando
ele menciona que:
“Eiseinstein criticava Griffith ou Douchenko pelo uso
dos seus primeiros planos deixarem ser conotados pelas
coordenadas espácio-temporais, sem atingirem o
elemento patético.”12

É lembrado também o fato de que sobre o rosto isolado,


que é a própria expressão da afecção, “nada se pode acrescentar”.
É o que coloca Balázs, citado por Deleuze:
“A expressão de um rosto isolado é um todo inteligível
por si mesmo, nele não temos nada a acrescentar através
do pensamento nem no que se refere ao espaço-tempo.”13

No momento em que nada há para se acrescentar, irrompe


o silêncio. A linguagem verbal é suprimida, porque ela não se faz
necessária. Há apenas o “espanto” ou a “admiração”, conservadas
nestas duas acepções, na palavra inglesa wonder, segundo Deleuze.
E é por esse aspecto, por esse duplo sentimento, que o cinema se
aproxima da fotografia, sob o aspecto da afecção.
R. Barthes, ao tratar da noção de conotação na imagem
fotográfica, questiona se poderia haver nesta uma “pura
denotação”, “um aquém da linguagem”14 , quando ele coloca:

12
Ibidem. p. 125.
13
Balázs apud Deleuze, p. 124.
14
BARTHES, 1984. p. 24.

84
“Se ela existe [a denotação] talvez não seja ao nível daquilo
que a linguagem corrente chama o insignificante, o neutro,
o objetivo, mas muito pelo contrário, ao nível das imagens
propriamente traumáticas: o trauma é precisamente o que
suspende a linguagem e bloqueia a significação.”15

Mais adiante diz Barthes:


“a fotografia traumática (incêndios, naufrágios,
catástrofes, mortes violentas, tiradas “ao vivo”) é aquela
de que não há nada a dizer.”16

Não iremos colocar, aqui, em questão os conceitos de


“denotação de conotação”. É necessário sublinhar apenas que
eles são utilizados por Barthes de forma semelhante ao poder de
significação que uma foto pode possuir. Para Barthes, esse poder de
significação representado pela conotação fotográfica, “à escala da
sociedade total”, tenderia a “integrar” e a tranqüilizar o homem17 .
Todas essas observações não seriam pertinentes se elas não
tivessem como base ou como pressuposição o fato de se que está
lidando com uma dimensão da imagem em que ela, por si mesma,
parece não depender de nenhuma outra circunstância ou
aspecto que venha a caracterizá-la. Somente podendo ser
concebida por uma forma singular de aparição e uma
instantaneidade próprias daqueles signos que possuem uma
existência tenra, transitória e efêmera.
As noções de rosto, primeiro-plano, afecção, denotação
(embora este seja um conceito aplicado, geralmente, à linguagem

15
Ibidem. p. 24. Observe-se, ainda, a descrição de trágico dada por C.
Rosset: “o trágico começa ou começaria quando não há (ou quando não
houvesse) mais nada a dizer nem a pensar”. Cf. ROSSET, 1989. p.65.
16
Ibidem p. 24. Grifo nosso.
17
Ibidem. p. 25.

85
verbal) , parecem convergir para aquilo que Peirce chama
primeiridade, que para ele é:
“uma instância daquele tipo de consciência que não
envolve qualquer análise, comparação ou processo
análogo nem consiste, no todo ou em parte, em qualquer
ato pelo qual uma consciência é distinguida da outra.”18

É conveniente supormos, portanto, que Deleuze ao


identificar a imagem-afecção à categoria fenomenológica da
primeiridade, procura mostrar que a expressão de rosto tomado
em primeiro-plano representa a própria expressão de uma
“Qualidade” ou de uma “Potência”. Mas nos convém dizer
também que, a título de comentário, à luz da semiótica peirceana,
a categoria da primeiridade seria uma pura qualidade de sentimento,
algo não materializado, “a pura qualidade desprendida de
qualquer objetualidade”, como nos diz L. Santaella19 .
Conforme o nosso ponto de vista, vejamos que os aspectos
que a imagem-afecção apresentam não seriam exclusivos do
cinema, porque as categorias fenomenológicas não se restringiriam
a um meio de produção de imagens único, apesar do fato de que
a forma da produção das imagens, desenvolvida por este meio,
dependa de fatores materiais que podem predominar sobre o tipo
de imagem por ele produzido, fazendo com que esta possa ser,
nos termos da semiótica peirceana, mais icônica, mais indicial
ou mais simbólica.
De forma que a primeiridade, na qualidade de uma
imagem-afeto não seria uma propriedade imanente da imagem
cinematográfica, mas uma dimensão do próprio signo da
realidade que não se reduz ao registro, mas que lhe transcende.

18
CP 1306.
19
SANTAELLA, 1998. p.43.

86
A imagem-ação
Deleuze coloca que a imagem-ação corresponde à
atualização das qualidades e potências através do meio20 .
A definição e o que ela se segue no esclarecimento de
Deleuze sobre a imagem-ação diz respeito ao Realismo, no
cinema. Definição que redunda na fórmula descrita por ele como
S - A - S’, ou seja, segundo o próprio autor: “da situação à situação
transformada por intermédio da ação”.
A ênfase aqui é deslocada de uma relação da imagem
para uma relação entre imagens, subordinadas a um princípio
organizador, o que ele chama “Englobante”. Seu estudo passa
de uma lógica do imanente para uma lógica do movimento.
Não é mais possível, aqui, referir-se à expressões “traços
de rosticidade” ou de “contornos rostificantes” (conceitos que
Deleuze utiliza para caracterizar “rosto intensivo” e “rosto
reflexivo”, respectivamente), ainda que estes conceitos guardem
noções de uma depuração sígnica que parece ser conduzida para
uma forma de ordenação, talvez também estabelecida pela lógica
das categorias ou por uma espécie de “reordenação interna dos
substratos lógicos”21 , como se pode observar nas diferenciações
entre “rosto reflexivo” e “rosto intensivo”22 .
Talvez possamos afirmar que, em um primeiro momento,
o estatuto da imagem, para Deleuze se defina como uma
“qualidade de sentimento”, sob a forma de afeto (misto de
admiração e espanto), percebida e atualizada, no momento em

20
A definição precisa de imagem-ação é “reação do centro ao conjunto”.
Cf. DELEUZE, 1985. p.265.
21
A expressão é utilizada por L. SANTAELLA em: “Por uma classificação
da linguagem visual”. In: Face revista de semiótica e comunicação. São
Paulo: EDUC, 1989. p. 43-67.
22
DELEUZE, 1985. p.114-131.
87
que ela é a expressão de um rosto ou daquilo que é tomado em
primeiro plano. Em um segundo momento, o estatuto da imagem
assume a própria dimensão da singularidade, imagem que,
segundo Deleuze, corresponde à atualização da qualidade23 e da
potência através do meio.
Aqui, o movimento dá o sopro de vida à imagem, e esta,
em função da mesma singularidade, retorna à fotografia na sua
forma de produção, e se desprende dela, ao fazer dessa imagem
uma imagem quase soberana.
Fazer da imagem um signo único seria retornar à
fotografia, um sinsigno, conforme a terminologia da semiótica
peirceana. O próprio Deleuze utiliza-o, quando afirma que:
“o synsigno é o conjunto de qualidades-potências
enquanto atualizadas num meio, num estado de coisas,
num espaço-tempo determinados.”24

Através, portanto, da sua dimensão de singularidade, que


corresponde ao seu próprio processo de produção de imagem,
é que o cinema, mantém com a fotografia a sua dimensão de
secundidade. O próprio traço de indicialidade desse tipo de
produção, na fotografia, é explorado através não apenas da
imagem “transparente”, mas naquele tipo de imagem que aspira
captar o ato em toda a sua fugacidade. Um ato-tomado que tão
simplesmente é, mas que será sempre o ato em seu momento,
único, singular.

23
Nota de COELHO NETTO: “Observa Peirce que um sinsigno só pode
existir através de qualidade, razão pela qual ele envolve um ou vários
qualissignos.” COELHO NETTO, 1990. P.61.
24
A respeito da grafia do termo synsigno, lê-se na nota de tradução na
obra de Deleuze (1985): “A distinção introduzida por Deleuze é também
realçada pelo recurso ao prefixo grego syn da preposição sun: “com”,
elemento designativo da idéia de reunião no espaço e no tempo” (p. 180).

88
A imagem-relação25
O conceito de imagem-relação, formulado por Deleuze,
corresponde à distinção entre “relação natural” e “relação
abstrata”, herdada da tradição filosófica26 .
A distinção corresponde à seguinte classificação:
imagens que podem ser unidas “segundo um hábito”27 , na relação
natural (daí advém o conceito de marca), ou imagens que podem
ser “arrancadas às suas relações naturais”28 , nas relações
abstratas, advindo daí o conceito de des-marca.
Deleuze, interpretando Peirce, não diz exatamente como
a sua subcategorização está relacionada, sob o aspecto da
retomada e o do signo que se afirma, aos tipos de imagem que
descreve. É provável que possamos também afirmar que as
relações que têm como base o símbolo avancem também no
sentido de uma diferenciação dos elementos que são reordenados
em cada tipo de imagem proposta por Deleuze.
Se para a imagem-afecção Deleuze formulou as divisões
rosto intensivo vs. rosto reflexivo, e se para a imagem-ação,
formulou a distinção entre synsigno e binômio, a formulação de
uma nova dicotomia (marca e des-marca) parece convergir para
a especificação de uma imagem-movimento. Esta formulação
fundamenta-se na própria concepção que Deleuze tem da
semiótica peirceana:
“Peirce insiste no seguinte: se a primeiridade é “um”
por si mesma, a segundidade dois, e a terceiridade três,
é inevitável que no dois o primeiro “retome” a seu modo

25
A menção de Deleuze à imagem-relação encontra-se no capítulo em que
o autor trata da crise da imagem-ação. Cf. DELEUZE, 1985. p. 242.
26
Ibidem. p.243.
27
DELEUZE, 1990. p.47.
28
Op. cit. p.266.

89
a primeiridade, enquanto o segundo afirma a
segundidade. E, no três, haverá um representante da
primeiridade, um da segundidade, enquanto o terceiro
afirma a terceiridade. Há, portanto, não só 1, 2 e 3, mas
1, 2 em 2 e 1, 2, 3 em 3.”29

Assim, parece-nos que na elaboração das noções de rosto


reflexivo temos a expressão de qualidade como signo “primeiro”
e o rosto intensivo remete-nos à secundidade, pelo aspecto serial
ou gradativo que assume as distinções feitas por Deleuze. O
conceito de synsigno parece retomar o aspecto da unicidade
enquanto o conceito de binômio avança para a noção de ação. A
noção de marca, por sua vez, remete à noção de continuidade,
como característica de um signo de terceiridade, e o que decorre
de um associação natural entre imagens, enquanto que a noção de
des-marca, que opera como um signo de terceiridade, ao comparar
imagens e ao estabelecer relações, possui como possibilidade ulterior
a primeiridade que se apresenta como a imagem de um todo.
Poderíamos dizer que a imagem, enquanto a expressão
de uma qualidade e a imagem enquanto atualização de qualidades-
potências, passa a coexistir, agora, com o movimento (movimento
que nos induz a pensar na relação de continuidade através da
própria relação sígnica entre signo, objeto e interpretante). —
relação de terceiridade. Convém à relação de terceiridade, segundo
a semiótica peirceana, o fato de um signo remeter ao seu objeto
em função de uma lei ou convenção.
A diferenciação elaborada por Deleuze, então, remete-nos
a dois tipos de construção da linguagem cinematográfica: a
linguagem do cinema clássico, que opera através de uma
sintagmaticidade das imagens, e a linguagem do estilo nouvelle
vague, na qual a imagem não se prende mais a uma ordem linear,

29
DELEUZE, 1985. p.243.
90
e na qual a constituição da significação não se dá mais por uma
serialidade de elementos que remetem, em seqüência, uns aos
outros, conforme a definição de “relação natural”, mas faz “variar
o todo segundo a repartição do movimento”, onde a imagem se
desprende das relações naturais, segundo Deleuze30 .
Paralela à questão da retomada e do avanço das
propriedades fenomenológicas de cada tipo de imagem está a
questão de que, mesmo que Deleuze tenha elaborado a sua
descrição de imagens, tomando por princípio a imagem
cinematográfica, ele, ao mesmo tempo expõe a sub-ordenação
das suas “imagens” como se fossem formas de ordenação e
“encapsulamento” das categorias31 , encontradas em Peirce.

30
DELEUZE, 1990. p. 47. Se Deleuze opõe a noção de des-marca à noção de
marca, colocando esta unida segundo uma relação natural e aquela unida
segundo uma relação abstrata, não estaria associando, indiretamente, a
segunda à linguagem verbal, já que esta se constitui não só conforme uma
linearidade, mas também por uma associação “natural” entre significante e
significado (categorias saussureanas)? Cf. SAUSSURE, 1991. p. 79-84. e
MARTINET, 1978. p.12.
31
Convém lembrar que Deleuze estabelece seis tipos de imagens, sendo a
imagem-percepção uma forma de imagem que opera dedutivamente sobre
as outras imagens. Deleuze coloca também que Peirce não deduziu as
categorias, e que para este não há elementos intermediários, mas signos
degenerados. Se podemos entender o encapsulamento de categorias não
restrito somente à forma de funcionamento de cada signo, ou seja, uma relação
“in-signos” mas também como uma relação entre-signos, dentro de semiótica
perciana, na forma dos processos de produção material que os desencadeia,
veremos, por exemplo, que não só não podemos isolar cada aspecto que as
categorias assumem na relação signo, objeto e interpretante, como também
não podemos isolar cada aspecto que as categorias assumem entre os processos
de produção. O que significa, portanto, que estas categorias não seriam
exclusivas da forma de como a imagem se apresenta no cinema, mas
pertenceriam a outros meios de produção de imagem também. Não
poderíamos dizer também que há uma afeccção, ou que as relações entre
uma imagem e um objeto se dão por uma relação convencional, na pintura
por exemplo, conforme nos mostra Gombrich?.

91
A noção da imagem-relação que mais se aproxima da
fotografia é a noção des-marca. Vejamos que uma imagem
fotográfica pode evocar uma relação abstrata, na medida em que
ela supõe uma mediação ou uma imagem, aqui entendida no
sentido deleuzeano como imagem mental32 , “que toma por objeto
relações, atos simbólicos, sentimentos intelectuais.”33 .
Nesse sentido, a imagem fotográfica, ao supor uma
relação não natural entre o seu signo e o seu objeto, remete-nos
também ao universo da imagem-relação, do cinema.

As imagens (pro)cinematográficas
Denominamos imagens (pro)cinematográficas, portanto,
as imagens em que o meio de produção material, através do qual
elas são geradas, incide na qualidade da imagem filogeneticamente.

32
Cf. DELEUZE, 1985. p. 244.
33
Ibidem. p. 244. Deleuze parece querer distanciar-se da acepção que o
termo “imagem mental” teria na semiótica peirceana, mas observe-se
que o seu conceito se aproxima, consideravelmente, do conceito de “juízo
perceptivo”, na obra de Peirce. A seguir colocamos duas afirmações que
parecem indicar esta convergência. A primeira é a de Deleuze (a referência
é desta mesma nota), e a segunda é de Lúcia Santaella. “Quando falamos
em imagem mental queremos dizer outra coisa: é uma imagem que toma
por objetos de pensamento, objetos que têm uma existência própria fora
do pensamento, como objetos de percepção.” “A tendência generalizante
dos julgamentos perceptivos é, contudo, apenas um dos lados da questão.
Do lado de cá, está a insistência peirceana de que o juízo perceptivo é
determinado por um objeto não-cognitivo, real, independente do
pensamento, uma condição externa que determina a interpretação, enfim,
um objeto de pensamento que tem uma realidade fora do pensamento.”
SANTAELLA, 1998. p. 115.
34
Referimo-nos aos títulos do artigo “A imagem pré-fotográfica-pós”, de
L. Santaella, e ao título do livro “Pré e pós Cinemas”, de A. Machado.

92
Ao nos apropriarmos do termo da Biologia, ou seja,
filogênese, ressaltamos apenas as propriedades que permanecem,
que são herdadas, que são o traço, que existem na fotografia,
conforme as técnicas de produção utilizadas a partir do
desenvolvimento do daguerreótipo, e da câmara obscura, de
Joseph Nicéphore. Não estendemos a “herança” à imagem digital,
e deixamos para outra ocasião o debate sobre ela.
A definição acima tem como suposição a repartição
do conceito de fotografia. Assim como Deleuze classificou a
imagem do cinema em três ou em seis possíveis tipos de imagens,
propomos que o signo fotográfico possa recobrir, então, três tipos
de imagens, correspondentes e respectivas à ordenação deleuzeana e
peirceana. Assim teríamos: uma foto (pro) cinematográfica de
afecção, uma foto ( pro) cinematográfica de ação e uma foto (pro)
cinematográficas de relação.

Considerações finais
Ao utilizarmos o termo imagem (pro)cinematográfica
(nome em função do qual não negamos a influência da
“metáfora intersticial” que parece caracterizar alguns meios
de produção sígnica do século XX e que faz inspirar autores
em títulos de livros ou artigos34 ) procuramos apontar que a
dimensão “pro” no signo cinematográfico é também a sua
forma de posteridade no signo fotográfico. A noção de
anterioridade só se aplica às possibilidades materiais
disponíveis que convergem para o surgimento de um meio de
produção de signos35 .
Sublinhamos apenas um aspecto da semiótica de Peirce que

34
Referimo-nos aos títulos do artigo “A imagem pré-fotográfica-pós”, de
L. Santaella, e ao título do livro “Pré e pós Cinemas”, de A. Machado.

93
diz respeito ao fato de as categorias (primeiridade, secundidade e
terceiridade) serem onipresentes no signo.
Se, por um lado, as categorias são onipresentes no signo, por
outro lado, elas perpassam diferenciadamente as relações que o signo
mantém com os seus elementos constituintes (i.e., representâmen,
objeto e interpretante), ou seja, a maneira de como o próprio signo
se deixe realçar: ou pelo aspecto fenomenológico nele visado, ou por
sua relação com o objeto mantida, ou pela relação com o interpretante
estabelecida, havendo assim uma espécie de predominância de uma
das categorias sobre as demais em função dessas relações.
Mesmo sendo este um fato notório na semiótica peirceana,
ou seja, a de que a ordenação das categorias segue uma forma de
ordenação lógica, o que observamos, cada vez mais, é que a forma
de ordenação das categorias fenomenológicas parece nortear os
trabalhos de muitos autores. Não foi por caso que P. Dubois36 ,
ordenou a história da fotografia, ou procurou caracterizar a sua
forma de produção sígnica em três momentos, para ficarmos apenas
em um exemplo.
É por esse viés, portanto, que foi conduzido este trabalho,
ou seja, com a intenção de apontar que em um signo, entenda-se o
signo fotográfico, perpassa não apenas a categoria fenomenológica
que nele predomina, a secundidade, mas que nele, também,
perpassam as duas demais categorias (a primeiridade e a
terceiridade): não menos importantes que aquela, mas essenciais
para a sua constituição enquanto signo.
Referências Bibliográficas

35
A utilização do prefixo grego e latino pro possibilitou-nos, ao mesmo
tempo, guardar a sua acepção de anterioridade e descartar a noção de
antecedência do prefixo latino pre (prae) que exprime não apenas a noção
de antecipação, mas também a de superioridade. Desta forma, aquele foi
parece ser mais pertinente à proposta do trabalho e mais coerente com a
noção de primeiridade na semiótica peirceana.

94
BARTHES, Roland. “A mensagem fotográfica.” In: O óbvio e o obtuso. Lisboa:
Edições 70, 1984. p.13-25.
COELHO NETTO, J. “Semiótica: Charles S. Peirce”. In: Semiótica,
informação e comunicação. São Paulo: Perspectiva, 1990. p. 51-80.
COLOMBO, Fausto. “A imagem e o amuleto”. In: Os arquivos imperfeitos.
São Paulo: Perspectiva, 1991. p.43-67.
DELEUZE, Gilles. Cinema: a imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense,
1985.
_______. Cinema II: imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.
DUBOIS, Philippe. “Da verossimilhança ao índice”. In: O ato fotográfico e
outros ensaios. Campinas: Papirus, 1998. p.23-56.
MARTINET, André. “A lingüística, a linguagem e a língua”. In: Elementos
de lingüística geral. São Paulo: Martins Fontes, 1978. p.1-24.
PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. São Paulo, Perspectiva, 1990.
ROSSET, C. Lógica do pior. Rio de Janeiro, Espaço e Tempo, 1989.
SANTAELLA, Lúcia. “Por uma classificação da linguagem visual”. In: Face.
São Paulo. 1989. p.43-67.
_______. “A cartografia das ciências”. In: A Assinatura das coisas. Rio de
Janeiro: Imago, 1992. p.101-140.
______. “A imagem pré-fotográfica-pós”. In: Imagens. Campinas: Ed. da
Unicamp, 1994 p. 34-40.
_______. A percepção: uma teoria semiótica. São Paulo: Experimento, 1998a.
120p.
SANTAELLA, Lúcia, NÖTH, Winfried. “Os três paradigmas da imagem”.
In: Imagem: cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras, 1998.
p.157-186.
SAUSSURE, Ferdinand de. “Natureza do signo lingüístico”. In: Curso de
lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1991. p.79-84.

95
IMAGENS EM CONTRAPONTO: UM ESTUDO DE
SEMIOLOGIA ICÔNICA APLICADO A FOTOGRAFIAS
DE IMPRENSA1

I. Considerações Iniciais

O presente trabalho tem por objetivo o estudo de


fotografias publicadas na revista Veja, de 21 de setembro de 1994.
Fotografias da então “candidata” a primeira-dama Ruth Cardoso,
sobre a qual é feita uma extensa reportagem, e fotografias de
Marisa Letícia Lula Casa da Silva, sobre a qual, na mesma revista,
é feita uma reportagem paralela, não-anunciada previamente, mas
que face ao contexto em que está inserida, nos fez pressupor uma
estratégia de imprensa que consiste no cotejo entre dois (ou duas)
grupos de imagens.
A escolha do corpus do nosso trabalho se justifica em
função da dupla dimensão espacial na qual se instaura a fotografia:
a sígnica e a referencial. Por se tratar de um elemento sígnico,
inserido na constituição histórica das representações sociais
brasileiras, procuramos observar como a fotografia pode
“argumentar” em função dessas representações.
Situamo-nos, portanto, não como interlocutores das
fotografias, mas como mediadores de uma relação que pode
acontecer através do tempo. Se nos é lícito fazer um estudo de

1
Comunicação apresentada no III Encontro Nacional de Interação em
Linguagem Verbal e Não-Verbal: Análise do Discurso Crítica. Brasília,
1998. Não foi possível publicar a versão integral do texto, que foi
inicialmente preparada para o Grupo de Semióticas Visuais e Semiologia
Icônica da UFMG.

97
imagens fotográficas, o que nos permite não é outra possibilidade senão
“a sua dupla posição conjunta de realidade e passado”2 .
Considerando-se que o estudo de imagens faz parte das
representações socioculturais e que, através da sua “leitura”, pode-se
fazer um inventário de conotadores que remetem a uma forma de
percepção da realidade, procuramos estabelecer nossa pesquisa dentro
dos parâmetros da Semiologia Icônica (desde os textos fundadores
de Roland Barthes (1961, 1964), Anne-Marie Houdebine (1994) e
através dos trabalhos da Sociosemiótica de A. Sempreni (1996).
O instrumental metodológico foi utilizado em função de dois
pontos-de-vista: o da Sociosemiótica de A. Sempreni (1996), segundo
o qual “os instrumentos e métodos analíticos serão evidentemente
escolhidos em função das características e propriedades do corpus”3 .
Corpus a partir do qual propomos um contraponto entre imagens
estabelecido entre índices de conotação com outro grupo de fotografias.
Trabalhamos também com o instrumental desenvolvido por Anne-
Marie Houdebine (1994), através do qual: 1. isolamos os extratos
icônico e lingüístico; 2. descrevemos cada extrato separadamente,
embora o segundo não seja de nosso interesse neste trabalho; 3.
procedemos à interpretação do extrato icônico conforme os aparelhos
conceituais das teorias mencionadas.

1.1 O “Pano De Fundo” Da Descrição


A menos de quinze dias das eleições presidenciais de
1994, no Brasil, era publicado mais um exemplar da revista Veja,
tendo como principal matéria uma reportagem, na seção Perfil,
sobre Ruth Cardoso, mulher do então candidato Fernando Henrique

2
BARTHES, citado por DUBOIS, P. O ato fotográfico. Campinas, Papirus,
1994. p.48.
3
SEMPRENI, A. Comment analyser les images, les medias, le publicité.
Paris, L’Harmmattan, 1996.
98
Cardoso. Antes de mais nada, é importante ressaltar algumas
características da revista citada: revista de circulação nacional, de
generalidades, que atinge um público principalmente de classe
média e classe média alta, tendo, portanto, uma parcela
considerável de responsabilidade sobre o fenômeno que se chama
formação de opinião, enquanto constituição da opinião pública.
Próximo ao pleito, em qualquer eleição, é sabido que se
entra no famoso “jogo do vale-tudo” à procura da captação dos
votos dos indecisos. São deixadas para esse momento de maior
disputa as estratégias mais fortes das campanhas dos candidatos,
onde qualquer deslize ou vantagem pode representar uma perda
ou um ganho significativos em relação a esses votos.
Em uma sociedade democrática ou que se pretende
democrática, é predizível que a mídia tenha um papel fundamental
quanto à informação veiculada pelos seus elementos: jornal,
televisão, revistas, etc. Além do mais, a mídia desempenha um
papel de criadora de hábitos, de formadora de opinião e gostos
comuns, dado ao número limitado de pessoas que controlam estes
veículos de comunicação.
Na mídia são introduzidas, portanto, as matérias
“informativas” sobre candidatos às eleições e é mais ou menos
nítido o fato de que a predileção por algum pretendente a um cargo
seja traduzida, dentro dos veículos, por “informações” que são,
manifestamente, tendenciosas; partindo desde elogios subliminares
até a segregação de fatos, de acontecimentos que envolvem o
candidato que se opõe àquele “escolhido” pela emissora de TV,
revista, jornal ou rádio. Nesse sentido, a quantidade de informação
(“válida”) dada para um candidato pode representar uma
propaganda com efeitos subliminares talvez tão eficazes quanto
àqueles manifestos pela propaganda oficial, cuja parcela legal de
tempo, do qual cada partido dispõe, é distribuída por sua
representatividade. Afora os horários de propaganda eleitoral
gratuita, não disporíamos, portanto, de outras informações sobre os

99
candidatos. Como não há propaganda gratuita em revistas e jornais,
nestes, a propaganda eleitoral convive com as matérias de
informação. De toda a forma, o “peso” que a informação representa
em cada veículo, guardada as devidas proporções de alcance e
limites, parece semelhante, através da mesma estratégia de informar.
Estamos denominando “estratégia de informar” as diferentes
maneiras de se abordar um mesmo fato. Por exemplo, o Jornal
Nacional, da Rede Globo de Televisão, no período que antecedeu
as eleições do 2º turno de 1992, apresentou da seguinte maneira as
formas de lazer dos candidatos à presidência Fernando Collor de
Melo e Luis Inácio Lula da Silva: primeiro aparece Collor em sua
biblioteca particular folheando livros, depois, Lula jogando bola.
Portanto, neste trabalho estamos diante de uma estratégia
de informar semelhante: a apresentação das futuras primeiras-damas
Ruth Cardoso e Marisa, apresentada sem sobrenome, que será o
principal enfoque deste trabalho.

1.2 Considerações Teóricas A Respeito Da Descrição


Trabalhamos aqui com um compósito de 5 fotos, divididas
em dois grupos. Três delas relacionadas à Ruth Cardoso e duas
relacionadas à Marisa. Mesmo em proporções diversas, os grupos
formam um contraponto significativo (o contraponto existe mesmo
em função desta falta de proporção).
Partimos da hipótese de que um contraponto entre imagens
é estabelecido a partir de uma estratégia de comparação entre duas
(ou dois grupos) imagens.
Na estratégia de contraponto, não é tanto o papel de índice
de conotação em função de um referente que é considerado, mas o
papel daquele em função de outros índices de conotação de outro
referente. Assim, um índice de conotação remete a outro. Aqui não
se está falando de contigüidade física ou de proximidade do referente,
mas de contigüidade de um índice em relação a outro. E, ao contrário

100
de uma visão especular, no sentido de imagem refletida, que poderia ser
estabelecida com o referente, só se pode falar aqui de uma visão especular,
de um “fantasma” que está a se deparar com a foto, e ela, sem ele ou
prescindindo dele, não pode ser interpretada. Sem o seu co-ocorrente,
pouco sentido a ela poderia ser atribuído.

1.3 Descrição
Foto 1 - Ruth Cardoso na Biblioteca do Cebrap
Nesta foto, Ruth Cardoso está de perfil, de frente para uma
estante contendo livros. A foto foi tirada, por trás de outra
estante. Esta delimita e centraliza a figura de Ruth Cardoso
na foto (aqui há dois enquadramentos: aquele que é feito
através da objetiva e o segundo que é feito através da estante).
Este segundo enquadramento lhe dá um certo “ar de
intelectualidade”. Ela usa blusa amarela, contrapondo-se
assim à tonalidade não muito clara do ambiente.

101
Foto 2 - Ruth Cardoso com nm buquê de flores
Ruth Cardoso está de perfil, em pé, sorrindo. Usa uma blusa
ou um vestido estampado, discreto, e um colar de pérolas. Atrás
dela há três homens. Ao lado direito de Ruth Cardoso delimita-
se um espaço entre a margem da foto e seu rosto. Neste espaço,
há três marcas da campanha de Fernando Henrique: um
“bottom” no lado esquerdo do peito de um homem que está
diagonalmente atrás dela, uma faixa amarela que pela tonalidade
assemelha-se a cor utilizada na campanha de FHC e, por fim,
um cartaz de Fernando Henrique no qual se percebe a sua foto
(nesta, ele aparece com a mão direita estendida, aberta — símbolo
gestual da sua campanha). Há aqui uma perspectiva de
afunilamento do campo de visão, uma visão em profundidade que
direciona nosso olhar: de Ruth Cardoso para Fernando Henrique.

102
Foto 3 - Ruth Cardoso e Fernando Henrique sentados no
sofá
Fernando Henrique e Ruth Cardoso estão de pernas cruzadas.
Ele veste terno e ela um vestido vermelho, sandalha preta e
relógio. Foram fotografados no apartamento de São Paulo. Pela
distância entre o sofá e a mesa que se situa atrás, há dois
ambientes. Aparecem aqui um vaso de plantas, uma passadeira,

103
algumas cadeiras e uma mesa de centro.
Foto 4 - Marisa Letícia Lula Casa da Silva ao lado de um
banheiro
Marisa está situada à direita da foto e tem o corpo voltado para
o lado esquerdo da foto. Encontra-se provavelmente na entrada
de um banheiro, já que na parede, colocada atrás dela, está
escrito “← ELE” com a seta indicando para a entrada da porta.
A característica que mais se sobressai neste ambiente é o aspecto
humilde do local: paredes e grades não pintadas, reboco caindo
abaixo do nome ELE. Para acentuar mais este aspecto,
acrescente-se o fato de há mais cinco pessoas na foto, das quais
três são crianças, só de “short” ou de bermuda. Um dos meninos
usa um “short” muito pequeno para o seu tamanho (o que está
situado mais à esquerda da foto). No fundo da foto, à esquerda,
atrás da construção, aparece um terreno sem vegetação, o

104
que permite deduzir um clima agreste, um local pobre. Marisa
está em pé, como que tivesse acabado de sair do banheiro,
parada entre duas grades, com os braços formando um ângulo
de aproximadamente 90 graus, tendo suas mãos quase juntas.
Usa óculos escuros e brinco. Os cabelos estão presos, fugindo
desalinho por cima da haste esquerda do óculos. Usa camiseta
preta e sobre esta uma blusa estampada semelhante à
padronagem “de oncinha”. Debaixo do seu braço esquerdo
há uma carteira. Em seu pulso usa um relógio e uma fita branca.
Usa calça “jeans”, cuja etiqueta legível, estando escrita
verticalmente da perna : PAKALOLO. Marisa está com a boca
entreaberta.

Foto 5 - Lula e Marisa em


uma mesa de bar
Lula está sentado como que
mostrando ou
demonstrando alguma
coisa para Marisa, já que
ele aponta com um faca em
direção a um
guardanapo no centro da
mesa. A mesa é forrada
com uma toalha branca e
sobre ela um pano
vermelho, de modo a
formar um losango
dentro de um retângulo,
c o m p o s i ç ã o
geometricamente
semelhante à bandeira do
Brasil. Quase no centro dessa toalha vermelha, há um cinzeiro
de plástico preto. Ao lado dos dois pratos, dois garfos. Na
frente da mesa, na parte inferior da foto, aparece uma cadeira

105
com leves escoriações na pintura. Lula usa um blusão
entreaberto e a manga do braço direito levantada. Seu braço
direito está por debaixo da mesa.
Marisa está usando “blazer” amarelo. Seus pés estão descalços,
estão cruzados como numa posição de descanso. Apóia seus
pés sobre um dos calçados, ficando o outro pé descoberto.
Atrás de ambos há uma parede de tijolinho com um quadro
contendo, provavelmente, uma gravura em papel.

II. Interpretação - O Contraponto


Como temos uma proporção de três fotos de Ruth Cardoso
para uma de Marisa, optamos por trabalhar as três primeiras fotos
daquela para com a primeira foto desta e a última foto da
reportagem sobre Ruth Cardoso com a segunda foto da
reportagem sobre Marisa. Como estamos trabalhando com um
contraponto, que assim foi chamado em função da depreensão
de uma estratégia comparativa entre imagens, propomo-nos
então, a procurar índices de conotação entre os grupos de imagens
comparadas.
O que pode remeter então à construção dos imaginários
socioculturais, dentro do contexto em que as fotos estão inseridas,
é passível de receber uma interpretação, a partir de um correlato
que remeta à construção de valores instituídos nesses imaginários.
Um índice remete a outro. Há uma “lógica de representações”,
um código de comportamento, um sistema de valores, uma forma
de percepção que estão todos subjacentes à construção das fotos
e que é, ao mesmo tempo, o que se mostra, o que se dá a ver.
Lidar com a forma de concatenação destes índices é
verificar um pequeno ponto de uma realidade social que se
apresenta tão complexa quanto “sui generis”, pois, ao mesmo
tempo em que cada um deles é a interação imediata com um fato
(aqui, no caso, as eleições presidenciais), eles fazem movê-lo

106
sob nossos olhos (a forma de como essas eleições são apresentadas,
já que a finalidade destas fotos não é tão somente informar). E aqui
convém falar um pouco sobre conotação na fotografia. Ao mesmo
tempo em que ela é uma mensagem sem código, como diria R.
Barthes, ela conota. Isto implica dizer que não há um código de
representação que se interponha entre ela e sua “leitura”. Por outro
lado, o tratamento que é dado a ela, tanto na produção quanto na
recepção, faz com que ela seja uma mensagem conotada. Umas das
formas de se constituir a conotação, entre os grupos de fotos
propostos, diz respeito à forma de como elas estão estruturadas em
seqüência, sua sintaxe: o encadeamento no qual uma coerência entre
fotos é articulada entre os grupos de fotos na reportagem sobre Ruth
Cardoso.
A princípio, nas fotos de Ruth Cardoso, há traços de
austeridade e de sobriedade que são revelados nos ambientes
onde ela foi fotografada, na roupa que ela usa, na forma de olhar,
na construção do seu passado, na composição do seu
comportamento e na caracterização do perfil do homem que está
ao seu lado. Estes, acreditamos, são traços comuns que remetem
à construção de um universo de significação dentro da
reportagem, permitindo fazer a comparação entre ela e Marisa.
Assim, por outro lado, Marisa apresenta uma roupa simples, tem
a maior parte do seu cabelo preso por elástico e uma outra parte
solta, em desalinho. Foi fotografada em um local pobre, agreste,
não aparece lendo. Dentre os objetos captados pela câmera
fotográfica que apresentou o mundo de Ruth Cardoso há
bibliotecas, flores, cordão de pérolas. Dentre os objetos captados
que apresentam o mundo de Marisa, há calça “jeans”, um
banheiro masculino e crianças pobres.
Um reforço dos traços de austeridade e sobriedade é
caracterizado pelo jogo de luzes das fotos de Ruth Cardoso, a
claridade discreta dos ambientes fechados, o jogo entre claro e
escuro. Já, ao contrário, na foto de Marisa, há nitidez de um

107
espaço revelado, como se a foto se colocasse como “isso é tudo
que eu tenho a dizer”.
Outro ponto de comparação diz respeito a última foto da
reportagem sobre Ruth Cardoso e a foto em que aparecem Lula e
Marisa em um restaurante. Nestas duas fotos o que mais nos chama
a atenção é seu caráter de encenação. Em ambas, os presidenciáveis
aparecem ao lado direito das suas esposas. Os traços aqui continuam
sendo os de austeridade e de sobriedade. Na primeira foto, Fernando
Henrique e Ruth aparecem sentados em um sofá, em uma sala ampla
e espaçosa com dois ambientes. Fernando Henrique aparece de terno
e gravata, tem as pernas cruzadas, sorri. Ruth, um pouco mais à
vontade, também está sorrindo, tem as pernas cruzadas.
Na outra foto temos Lula e Marisa em um bar simples ou
pizzaria. O que nos chama a atenção, comparando-se à foto a
qual acabamos de mencionar é que os traços de sobriedade e de
austeridade não estão aqui presentes. O fato de ser um local
simples, de Lula usar camisas de mangas arregaçadas, de haver
sobre a mesa um galheteiro com azeite (ou óleo composto de
baixo preço), de haver uma cadeira com arranhados em torno da
superfície do verniz ou da pintura, e o principal deles, o fato de
Marisa estar com os pés para fora do sapato, indicando uma
atitude “fora da etiqueta”, contribuem (são significantes) para
que possamos não evocar, ao “lermos” nestas fotos, os traços de
austeridade e de sobriedade. Em nenhuma foto, Ruth Cardoso
aparece à vontade, com os pés para fora do sapato. De alguma
forma, vamos encontrar os traços de austeridade e de sobriedade
em todas as fotos em que Ruth Cardoso aparece.

III. Considerações Finais


O maior problema ao se concluir um trabalho de aplicação
de conceitos da Semiologia Icônica é, com certeza, a noção de
que faltou algum ponto a ser abordado. A polissemia da imagem

108
dá margem a múltiplas hipóteses que vão sendo construídas,
desconstruídas e reconstruídas. Por ora, temos o receio de ingressar
no “frisson da análise”, e descambar para uma hipotetização para
fora do escopo que nos propomos a conjecturar. É um trabalho
subjetivo, embora não subjetivista, conforme lembra A. Sempreni
(1996). Mas acreditamos que é através desse “jogo”, que nos conduz
entre a percepção da imagem e a teoria, que passamos a construir o
objeto, a lapidá-lo. Esta tarefa é duplamente complicada para quem
se vê no papel de analista, já que ele, ao mesmo tempo, lida e vive
com valores nos quais está imiscuído, e tem por tarefa colocá-los à
luz de uma teoria. Principalmente complexo é lidar com a fotografia,
já que na sua própria constituição ela encerra uma espécie de
“paradoxo existencial” (paradoxo fotográfico descrito por R.
Barthes) através do qual, na verdade, nos vemos sem saber que
estamos sendo olhados ou capturados pelo olhar ou por uma
forma de olhar.
As hipotetizações, nossos “obstáculos epistemológicos”, fazem
parte deste trabalho, e é muito mais difícil não lidar com elas, pois aí
talvez estivéssemos imersos em uma redoma de um sistema de valores,
na qual não seria permitido ver senão o que é unicamente refletido
nesse sistema. Sistema no qual acreditamos como crença, nunca além
dele. O sistema de valores é fluido e perpassa todo significante. Mas a
tarefa não é a de mostrar os significantes imersos em toda a sua
complexidade, mas sim o de verificar até que ponto estes significantes
estão estruturados como uma lógica específica da realidade:
desconstituída e reconstruída pela Semiologia.

109
IV. Referências Bibliográficas

BARTHES, Roland. “Rhétorique de l’image”, in: Communications,


n° 4. Paris, Seuil, 1964.
___. “A mensagem fotográfica” in Teoria da cultura de massa. Rio
de Janeiro, Paz e Terra, 1982.
___. A câmara clara. Lisboa, Edições 70, [s/d].
DUBOIS, P. O ato fotográfico. Campinas, Papirus, 1994.
HOUDEBINE, A-M. Panzani revisitée. Paris. In: Mscope ° 8, 1994
___. Travaux de linguistique n° 5/6, Sémiologie. Université
d’Angers, 1994.
JOLY, M. Introdução à análise da imagem. Campinas, Papirus,
1996.
SEMPRENI, A. Analyser la communication. Commente analyser
les images, les médias, publicité. Paris, L’Harmmattan, 1996
Veja. Edição 1358, São Paulo. Abril, setembro de 1994.

110
Milton Chamarelli Filho
E-mail: phaneron1@hotmail.com.br e pulsaar@terra.com.br
111
Impresso na Fábrica de Livros
SENAI / XEROX / FUNGUNTEN
Escola de Artes Graficas SENAI-RJ
R. São Francisco Xavier, 417
Maracanã, Rio de Janeiro - RJ
Tel(0xx21) 568 4121 r/203/223

112

Você também pode gostar