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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

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Coordenadora Geral da Universidade


TERESA DIB ZAMBON ATVARS

LE'EDMMMM
I T O R
E
íl
Conselho Editorial

Presidente
MÁRCIA ABREU

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GRECIELY CRISTINA DA C O STA - MARIA INÊS PETRUCCI ROSA
TAIS IR MAHMUDO KARIM
Thierrv Guilbert

As EVIDÊNCIAS Do
DISCURSO NEOLIBERAL
NA MÍDIA

Tradução
Guilherme Adorno
Luciana Nogueira
Luís Fernando Bulhões Figueira
Mónica G. Zoppi Fontana

�EDITOR�

'i:INWl=M-
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELO
SISTEMA DE B IBLIOTECAS DA UNICAMP
DIRETORIA DE TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO
Bibliotecária: Helena Joana Flipsen - CRB-8' / 5283

G943e Guilberc, Thierry


As evidências do discurso neoliberal na mídia/ Thierry Guilberc.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2020.

1. Imprensa. 2. Neoliberalismo. 3. Análise do discurso.


!.Título.
CDD • 070
- 320.51
ISBN 978-65-86253-19-l -401.41

Título original: L'"évidence" du discours néolibéral: Ana{yse dans la presse écrite

Copyright© Thierry Guilberc


Copyright © 2020 by Editora da Unicamp

CAPES Print - Processo 1042993P


Projeto: As linguagens da cultura: Entre arte, língua e conhecimento através dos tempos

As opiniões, hipóteses, conclusões e recomendações expressas


neste livro são de responsabilidade do(s) autor(es) e não
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SUMÁRIO

PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA, por Mónica G. Zoppi Fontana 7

NOTA AO LEITOR BRASILEIRO ..... 11

INTRODUÇÃO 13
Os três polos "democráticos". 17
Poder político e mídia 17
Poder da opinião ou opinião do poder? 19
O que é o discurso neoliberal? .. 20
Discurso neoliberal, liberal, ultraliberal, capitalista? 20
Sete "evidências" liberais a desconstruir:
O contexto ideológico.... .. .
. ...... . 24
As tópicas neoliberais 27
A análise do discurso neoliberal ... 31
O ponto de vista da análise do discurso .. 31
A escolha do ''suporte". 32
Contextos sócio-históricos: "Crises sociais".. 33

1. A DISSIMULAÇÃO IDEOLÓGICA 37
1. 1 Ideologia ou propaganda? 39
1.2 A dupla dissimulação .. 42
1.2.1 O sagrado constitutivo e o sagrado mostrado .. 43
1.2.2 A ''racionalidade" do discurso .. 45

2. O QUE NOMEAR QUER DIZER .. 51


2.1 Nominalizar é pressupor... 53
2.2 Nomear os atores .. 59
2.3 Nomear o acontecimento .. 62
3. A OPINIÃO PENSA QUE... OU O CAVALO DE TROIA . 65
3.1 As pesquisas de opinião 65
3.2 A figura da opinião .. 69
3.2.1 O sentido da opinião 69
3.2.2 Uma dupla opinião . 72
3.3 A constituição de opiniões compartilhadas 74

4. UM "QUADRO NATURAL" 81
4.1 Qiadros primários 82
4.2 A manipulação dos quadros 83
4.2.1 A ''naturalidade" do DNL .. 84
4.2.2 ':A tempestade das subprimes". 87

5. O BOM MODELO .. 93
5.1 A competição .. 94
5.1.1 A comparação com o vizinho... 98
512 A "exceçãofrancesa" .. 102
513 O "bom aluno" 109
5.2 A guerra dos chefes . . . ......... ......... ..................................... ........... 109

6. ARGUMENTAÇÃO OU MANIPULAÇÃO?. 113


6.1 Retórica da persuasão 113
6.2 Figuras argumentativas 114
6.3 Moldes argumentativos .... 118
6.3.1 Associar ou amalgamar? 119
6.3.2 A escolha ou afalsa alternativa? . 126

CONCLUSÃO ... 131


Não ditos sobrepostos 131
O consenso da "comunicação"... 132
A metalinguagem da comunicação.. 133
O metadiscurso do consenso ... 134
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA

No momento de apresentação deste livro, o mundo - e a


América Latina, em particular - vive uma nova onda de
imposição de medidas econômicas neoliberais por parte de
governos conservadores eleitos pelo voto popular. Os direi­
tos conquistados historicamente ao preço de muita luta e
organização são desrespeitados e extintos por meio de uma
ação orquestrada que envolve atores políticos (os poderes
executivo e legislativo, os lobbys poderosos que se articulam
para impor seus interesses na definição de políticas públi­
cas), atores jurídicos (o papel do aparelho judicial para re­
frear a reivindicação de direitos e de reparação de danos
pela via do Direito) e, principalmente, os meios de comu­
nicação de massa, que agem para a naturalização de medi­
das impopulares como "soluções necessárias" ou "reformas
urgentes" para evitar um "mal pior". Chile, Equador, Ar­
gentina, Uruguai, França e Espanha, para mencionar só al­
guns dos muitos países que se encontravam, ao final de
2019, tomados por ondas de protestos multitudinários
contra as medidas de austeridade neoliberais, são claros
exemplos atuais dos funcionamentos discursivos descritos
na obra de Thierry Guilbert, que ganha assim relevância e
vigência indiscutíveis.
O grande mérito do livro As evidências do discurso neoli­
beral na mídia é mostrar, por meio de uma pesquisa bem
fundamentada teoricamente e amplamente documentada, o

7
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MIDIA

modo como os meios de comunicação,sobretudo a impren­


sa, intervêm na cena política, naturalizando o inaceitável e
apresentando como necessário e evidente o que é uma opção
de política econômica que privilegia o lucro do capital finan­
ceiro e defende novas formas de exploração do trabalho. As
análises do autor, que remontam a publicações da imprensa
francesa datadas de 1995 a 2010,são preciosas no sentido de
demonstrar como uma memória é construída pela repetição
e pela difusão de enunciados ao longo do tempo. O efeito de
evidência e naturalização é resultado dessa repetição insis­
tente,ininterrupta,hegemônica: assim se constrói um supos­
to consenso. A perversidade desse funcionamento está em
atribuir à "opinião pública" aquilo que foi tão bem articulado
e imposto ao longo do tempo. Em nome da "opinião públi­
ca", personagem que permite justificar as medidas mais im­
populares,as pessoas perdem seus empregos,ficam sem tra­
balho, são submetidas a condições de quase escravidão e a
todo tipo de humilhação. O Estado é desmantelado e a edu­
cação, a saúde e a cultura sofrem um ataque frontal, tendo
seus orçamentos reduzidos ao ponto de inviabilizar a atenção
à população.
As práticas neoliberais já foram objeto de estudo e pes­
quisa, principalmente em seus aspectos econômicos, políti­
cos,sociais,jurídicos e administrativos. A originalidade des­
ta obra é trazer a dimensão da linguagem para o centro da
cena: o discurso neoliberal e sua eficácia ideológica para
produzir identificações nos indivíduos e para moldar suas
demandas e desejos. É pela linguagem que a dimensão sub­
jetiva das "reformas" neoliberais pode ser observada e seus
impactos na vida das pessoas podem ser analisados. O dis-

8
PREFÁCIO A EDIÇÃO BRASILEIRA

curso neoliberal intervém como força material na produção


de um consenso imposto sem alarde e sub-repticiamente.
Assim, na luta contra o capital, na sua versão neoliberal glo­
balizada, os embates de deslocamento ideológico ganham
um papel fundamental. Eis a relevância e a urgência de com­
preender o funcionamento do discurso neoliberal, de des­
montar os dispositivos linguísticos que organizam a formu­
lação de seus enunciados e, sobretudo, de reconhecer a série
histórica de repetições que constituem uma memória con­
sistente e aparentemente inconteste, por meio da qual são
produzidos os efeitos de naturalização e evidência, que,
como diz o autor desta obra, se apresentam como os "sagra­
dos" do discurso econômico atual.
A análise do discurso, na condição de disciplina que
aborda o funcionamento social da linguagem e a determina­
ção histórica dos processos de significação, fornece o marco
conceituai apropriado para a reflexão teórica e a análise em­
pírica do discurso neoliberal na conjuntura atual. Ela nos
possibilita, com base na pesquisa apresentada pelo autor,
compreender o quanto de continuidade e repetição há nes­
sas investidas cíclicas da ordem neoliberal contra os anseios
de justiça social e dignidade da população. Revelando os
mecanismos de construção de sua eficácia ideológica, esta
obra abre também uma brecha para a luta contra o discurso
neoliberal, mediante a desnaturalização das evidências que
ele produz e projeta. E esse é seu maior trunfo.

Mónica G. Zoppi Fontana

9
NOTA AO LEITOR BRASILEIRO

A versão francesa deste livro foi publicada por uma editora


engajada (Les Éditions du Croquant), com o duplo propó­
sito de divulgar os resultados de minha pesquisa e de popu­
larizar certa maneira de abordar o discurso econômico na
imprensa, a da análise do discurso. A imprensa não é apenas
um reflexo do que está acontecendo em um país. Com seu
discurso, ela cumpre um papel ativo, por exemplo, na apre­
sentação e na representação das "reformas" neoliberais. Com
reflexos,portanto, no que os cidadãos pensam sobre elas.
Os exemplos analisados neste livro datam de 1995,
2003,2006 e 2010. Poderíamos pensar que as coisas muda­
ram muito hoje,mas este não é o caso: na França,por exem­
plo,no mês de dezembro de 2019 vimos implementada no­
vamente a "reforma" das aposentadorias, o que deu lugar
novamente a protestos e contestação por parte da população.
A imprensa e os meios de comunicação desempenham exa­
tamente o mesmo papel hoje,tal como então. Se o passo do
tempo não muda praticamente nada, acho que o mesmo
acontece com o deslocamento espacial: o papel ativo do dis­
curso da mídia é certamente o mesmo em outros países,
como no Brasil; as "reformas" neoliberais ocorridas nos últi­
mos anos e as reações das pessoas, infelizmente, mostram­
nos a relevância e a atualidade deste livro.
Espero, então, que este meu livro possa trazer uma pe­
quena ajuda aos jovens, e não tão jovens, pesquisadores(as)

11
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MIi •ii\

brasileiros(as) que querem entender como o disrnrso neoli­


beral consegue se passar como óbvio, como os ridadit<>s aca­
bam votando em candidatos que o repetem e corno tal dis­
curso se tornou predominante.
Finalmente, gostaria de agradecer calorosamcn te i\ minha
querida amiga Mónica Graciela Zoppi Fontana e i\ Editora
da Unicamp pela oportunidade de dar a conhecer o meu tra:­
balho no Brasil - terra da análise do discurso e país tão que­
rido do meu coração há tantos anos. Gostaria também de
agradecer sinceramente a toda a equipe que traduziu o livro
e que me permitiu revisar o texto: obrigado Luciana, Luís e
Guilherme, foi um verdadeiro prazer trabalhar com vocês.

1hierry Guilbert

12
INTRODUÇÃO

E todos eles se sentiam presos a uma armadilha


mais poderosa que eles próprios. Alguns detestavam
os algarismos que os impeliam a assim proceder, e
outros tinham medo e ainda outros gostavam dos
algarismos porque eles lhes forneciam um refúgio
contra os tormentos de sua consciência.
As vinhas da ira, de J. Steinbeck'

"São apenas palavras", diz a "sabedoria popular". 1 Como


todo adágio, este comporta uma parte de verdade e outra de
falsidade e, como todo enunciado de valor geral, subentende
um "dever fazer". 2 O emprego desse adágio tem assim por
objetivo lembrar, por um lado, que não podemos - e sobre­
tudo que não devemos - confiar nas palavras, porque elas po­
dem enganar, e, por outro, que não é preciso lhes atribuir
(tanta) importância, porque elas não têm o valor dos atos.
Ora, se épreciso desconfiar das palavras, negar-lhes toda
importância seria uma atitude contraditória: é justamente
porque elas podem enganar que as palavras merecem toda a
nossa atenção. E se é verdade que a significação de um
enunciado ultrapassa amplamente o sentido das palavras
que o compõem, é preciso então tomar o enunciado por
aquilo que ele é, isto é, um ato.

• Trad. Herbert Caro e Ernesto Vinhaes. Rio de Janeiro, Record, 2013 (N. da R.)
Encontramos esse lugar-comum de diversas formas, em diversos suportes e diferentes épocas, por exemplo: a famosa "língua de
madeira" da esfera politico-midiática; este ver,o de Moliere: "Eu vivo de boa sopa, e não de linguagem bonita"; este provérbio brasi­
leiro: "A palavra não tempera a sopa"; ou ainda esta canção popular do século XX: "Palavras, palavras".
Thierry Guilbert. Le discours idéo/ogique ou la force de /'evidence. Paris, L'Harmattan, 2007, pp. 200-201.

13
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAi NA MIi •ii,

É esse ponto de vista sobre a linguagem - o da "a ru\lisc


do discurso"- que eu seguirei aqui, interessando-mr 1wla atua­
lidade social recente. Minhas análises se ligam ao q11r dizem
as palavras dos jornalistas - notadamente durnntc \·rises so­
ciais"- e tratam de artigos provenientes dos prindpaiH jornais
de referência franceses e de seus sites na internet. Esses arti�os
fornecem, à sagacidade de um leitor prevenido,. numerosos
exemplos da força de persuasão das palavras do "disn1rso neo­
liberal" - expressão à qual retornarei mais adiante. Encontra­
mos aí esse discurso de forma concentrada, por exemplo, nas
expressões seguintes (das quais algumas serão estudadas aqui):
"a necessidade da reforma'', "os usuários feitos reféns", "a ex­
ceção francesa'', "a flexibilidade do trabalho", "os planos so­
ciais", "os encargos patronais", "o déficit das contas públicas"
ou ainda "o rombo da Previdência" [ trou de Ia Sécu] . 3
Podemos desde já observar que poucos jornalistas esco­
lhem não retomar essas fórmulas feitas e que menos ainda
são aqueles que as evitam ou as questionam. "Q,!lal a impor­
tância disso?", poderiam me retorquir. A primeira resposta a
essa questão é que a escolha das palavras e das expressões
não é anódina, pois as palavras empregadas propõem uma
determinada leitura do mundo. A segunda resposta concer­
ne à democracia. Os jornalistas, e mais amplamente os meios
de comunicação, têm que assumir, teoricamente, um duplo
contrato e uma dupla responsabilidade: informar seus leito­
res de modo "objetivo"4 e desempenhar o papel de um "quar-

Para uma desmistificação dessa expressão, ver Julien Duval. Le mythe du "trou de la Sécu". Paris, Raisons d 'Agir, 2006.
4 Nao entraremos aqui no falso debate sobre a objetividade. É evidente para toda análise de discurso que a objetividade absolu·
ta nclo existe. Ver, a esse respeto, um artigo muito esclarecedor de Jacques Bouveresse. "Noam Chomsky et �s calomniateurs".
Le Monde Diplomatique, maio de 2010, pp, 14·15.

14
INTRODUÇÃO

to poder",5 isto é,usar a função crítica que lhes cabe. O jor­


nalista é, portanto, ao mesmo tempo o intermediário entre
seus leitores e o "acontecimento" e o intérprete desse "acon­
tecimento".
O jornalista não é um simples "transmissor de informa­
ções", ele não faz só transmitir informações que encontraria
em campo,informações já prontas que estariam à sua espera
para serem reveladas e difundidas ao público. Não somente
é ele - e mais geralmente a redação - que seleciona o que
será digno de ser nomeado "informação", como também é
ele que a coloca em palavras,em frases,em discurso e,assim
fazendo, dá sentido ao acontecimento. Pois um aconteci­
mento não existe em si mesmo: são os atores e os jornalistas
que fazem existir um "fato bruto",enquanto acontecimento.
O acontecimento não é, pois, um fato, mas a colocação em
palavras desse fato. 6 Antes de transmitir e para transmitir
esse fato em informação, o jornalista começa por selecioná
-lo e decifrá-lo: ele detém, por suas competências e seu sta­
tus, o direito de extrair da massa dos fatos um "sentido" que
não estaria acessível a todos.
A maioria dos textos considerados aqui é composta por
editoriais e artigos de opinião, dito de outro modo, artigos
de comentário. Esse gênero jornalístico particular7 está logi­
camente menos submetido à exigência da objetividade e
tem precisamente por função liberar o sentido do aconteci-

Os três primeiros poderes são os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.


Segundo M. Foucault (L'ordre du discours. Gallimard, 1971, p 59), um acontecimento não tem existência material, ele não é "nem
substância nem acidente, nem qualidade nem processo", mesmo que proceda da ou se produza na materialidade. São os atores
(e os jornalistas) que o fazem existir de maneira discursiva como acontecimento. Fala-se de "processos de construção do
acontecimento".
Guilbert, 2007, pp. 36-44.

15
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBf RAI NA MIi >I ,.

mento. Desse ponto de vista, os editorialistas e os articulis­


tas são frequentemente qualificados,com justi\·a, me parece,
como "formadores de opinião".
Além do mais, os jornalistas têm também um papel di­
dático,ª o de fornecer ao leitor os elementos necessários à
compreensão dos acontecimentos (rememoração dos fatos,
do contexto, colocação em perspectiva); mas aí, ainda, a
apresentação desses elementos está necessariamente im­
pregnada de certa visão de mundo, no mínimo pela escolha
das palavras.
Esses elementos, rapidamente resumidos, mostram
quanto a responsabilidade do jornalista é essencial na de­
mocracia - da qual um dos princípios fundamentais é o de
que os cidadãos sejam suficientemente informados para to­
mar decisões conscientes, quando consultados. Essa res­
ponsabilidade é tanto maior hoje que,em face da complexi­
dade do mundo atual,o cidadão não tem outra possibilidade
a não ser se voltar para os meios de comunicação para se
informar.
Assim, a problemática de pano de fundo desta obra é
esta: como os meios de comunicação desempenham seu pa­
pel de contrapoder e de informação? Sem dúvida, essa ques­
tão coloca implicitamente uma outra: os meios de comuni­
cação ainda desempenham esse papel essencial de
contrapoder em nossas democracias?

B Ver Jean-Claude Beacco & Sophie Moirand. "Autour des discours de transmission de connaissances". Langages, n. 117, 1995,
pp. 32-53.

16
INTRODUÇÃO

Os três polos "democráticos"

Embora essa obra tematize - e tente levantar -, de um


ponto de vista crítico, algumas das (falsas) evidências lingua­
geiras nas quais somos constantemente mergulhados, há uma
"evidência" que é bom lembrar, mesmo que brevemente, para
melhor compreender o que segue: desejemos ou não, o fun­
-cionamento atual das democracias ditas modernas repousa
sobre três pilares que formam um triângulo interacional. Os
três vértices desse triângulo, os três polos,9 são o poder polí­
tico (que representa teoricamente os cidadãos), os meios de
comunicação (que representam teoricamente o contrapoder
do qual acabamos de falar) e a opinião pública ( que repre­
senta teoricamente o que pensa o conjunto da população).
Tais são, portanto, teoricamente, a representatividade e o
papel respectivos de cada um dos polos; ora, antes mesmo
de nos debruçarmos sobre suas inter-relações, é fácil consta­
tar o quanto esse mecanismo democrático se enfraqueceu
no que concerne aos polos político e midiático, e quanto ele
é falseado a propósito do polo "opinião pública".

Poderpolítico e mídia

O poder político é eleito, mas sua representatividade


apresenta problemas democráticos e éticos - ao menos do
ponto de vista da representatividade social ou da feminina.
Da mesma forma, a função crítica da imprensa parece difícil
de ser exercida quanto mais os grupos monopolistas são po-

Metáfora emprestada de Jacques Bouveresse. "Karl Kraus, le monde intellectuel et la presse". Pour une analyse critique des
médias. Le débat pub/ic en danger. Bellecombe-en-Bauges, Éditions du Croquant, 2007, pp. 71-94.

17
AS EVIDÊ NCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAi NA MilllA

derosos nos meios de comunicação,1° e quanto mais a publi­


cidade questiona a pluralidade da informação. 11 Além disso,
está hoje demonstrado que poder político e meios de comu­
nicação são fortemente entremeados. As origens sociocultu­
rais,os percursos de formação,os modos de vida e a visão de
mundo dos "grandes jornalistas" e dos políticos,seus habitus,
portanto, são frequentemente muito próximos. 12 Assim, a
informação parece girar num circuito fechado: produzida
para e por aqueles que dela tiram um benefício direto. Como
toda mercadoria. A interação político-midiática é tão forte
que muitas vezes é difícil saber se a informação é criada pelo
político ou pelo jornalista. 13
Como informar quando a função crítica é tão maltrata­
da, e -0 que dizer, então, do contrato de objetividade? Pode­
mos compreender o mundo atual se a única representação
que é dada dele nos meios de comunicação é justamente
aquela do discurso neoliberal?14 Se as palavras utilizadas en­
cerram apenas uma única visão de mundo, dominante,por­
tanto,partidária?

10 Sobre esses grupos, ver lgnacio Ramonet. Nouveaux pouvoirs, nouveaux maitres du monde. Un monde sans cap. Québec, Édi­
tions Fides, 2001 [1996]; Serge Halimi. Les nouveaux chiens de garde. Paris, Liber/Raisons d'Agir, 1997; "L'empire des médias".
Maniêre de voir, n. 63, Le Monde Diplomatique, 2002.
11 Os artigos da imprensa são submetidos desde os anos 1980 ao ditame das 'expectativas dos leitores", o que reduz ainda mais
a pluralidade. Ver Patrick Champagne. "Le journalisme à l'économie" Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 131-132,
2000, pp. 3-7; e Julien Duval. 'Concess1ons et conversions à l'économie". Actes de la Recherche en Sciences Sociales
n. 131-132, 2000, pp. 56-75.
12 �irnid!lde-entrepode!,olilic.oe proprietários de meios de comunicação, ver "Combat pour les médias". Maniére de
voir, n. 80, Le Monde Diplomatique, avril-mai 2005, sobretudo Marie Bénilde. "En France, une affaire de families", pp. 36-39.
13 Ver Halimi, 1997; e Evelyne Pinto (dir.). Pour une analyse critique des médias. Bellecombe-en-Bauges, Éditions du Croquant,
2007.
14 Ver Duval, 2000; e Guilbert, 2007. Nossas análises (a primeira, sociológica; a segunda, discursiva) convergem: a imprensa
francesa (do jornal Figaro ao Libération passando por Le Monde, Le Point, Le Nouvel Observateure L'Express) tem uma estrutu­
ra socioeconômica e um conteúdo ideológico que favorecem a difusão de uma visão neoliberal do mundo atual.

18
INTRODUÇÃO

Poder da opinião ou opinião do poder?

Agora é possível precisar, à luz do que precede, a questão


principal de que trata esta obra: como os meios de comuni­
cação conseguem impor a evidência do discurso neoliberal?
A utilização da opinião pública ocupa um lugar central
entre os procedimentos utilizados. Exporei no Capítulo 3
por que a opinião pública não é, em nenhum caso, aquilo
q�e ela supostamente representa. 15 Alguns questionamentos
podem, todavia, ser já colocados: em que aspectos a soma
das opiniões individuais constitui uma opinião comum?
Como realizar uma soma de opiniões, senão simplificando,
reconfigurando, formatando as opiniões particulares? Além
disso, uma opinião, mesmo comum (admitamos), não per­
manece aquilo que ela é: uma opinião?
Sabemos, desde a Antiguidade, que geralmente a opi­
nião é apenas a expressão daquilo que transmitem de modo
imediatq nossos sentidos e nossa afetividade, mais do que o
que nos diz o tempo da reflexão e do exame. Ora, os entre­
vistadores interrogam-nos sobre tudo e qualquer coisa; o
pobre entrevistado é intimado a ter uma opinião sobre te­
mas como: o melhor candidato socialista para a eleição pre­
sidencial, o incremento do tempo de contribuição para a
aposentadoria, o moral dos franceses, a proibição da burca
no espaço público, o aumento da delinquência, a inseguran­
ça, as causas da fome no mundo etc.

15 Ver Éric Landowski. La société réfféchie. Paris, Seuil, 1989; Patrick Champagne. Faire f'opinion. Paris, Minuit, 1990; Jeannine Ri·
chard·Zappella "Variations interrogatives dans la question de sondage" (pp. 5-18) e "Mobilisation de l'opinion publique par les
sondages" (pp. 60-75). Mots, n. 23, 1991; e minha contribuição a esse debate (Guilbert, 2007).

19
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA M IDIA

A opinião pública é considerada aqui como um artejàto,


uma construção fictícia, quer nos autoproclamcmos seus
porta-vozes,quer a mensuremos por meio de pesquisas. Isso
posto, é necessário acrescentar que a opini�_.2._pública é uma
a:!.1J.Iª_c_q/etiva: aí está seu único modo de existência. Não se
trata aqui de negar essa realidade, mas de levá-la em conta.
Pois essa crença é utilizada de um ponto de v.ista retórico e
argumentativo pelos jornalistas e pelos políticos. Mostrarei,
também no Capítulo 3, como a utilização da opinião, alter­
nadamente ponto de apoio e cavalo de Troia do jornalista,
permite que ele transmita os dogmas neoliberais como evi­
dências, dito de outro modo, impô-los sem causar espanto,
de maneira invisível, e de constituí-los assim em opiniões
compartilhadas.

O que é o discurso neoliberal?

Discurso neoliberal, liberal, ultraliberal, capitalista?

"Neoliber�'16 e "neoliberalismo",t�rmos frequentemen­


te utilizados n� obra,podem incomodar,e até se prestar a
polêmica. Ambos são ora inexistentes,ora considerados como
não pertinentes por um certo número de autores. No entan­
to, numerosos são os analistas que notam que uma "nova"
forma de liberalismo apareceu desde os anos 1970,marcan­
do assim uma radicalidade: essa "nova doutrina" prega de

16 Termo proposto no Colóquio Walter Lippmann, ocorrido em agosto de 1938 em Paris; seu ato oficial de nascimento seria devido
a L. Rougier e F Hayek com a ocorrência "tradition néolibé@le" segundo Nathalie Krikorian. "Européanisme, nationalisme, libé­
ralisme dans les éditoriaux de Louis Pauwels (Figaro-Magazine, 1977-1984)". Mots, n. 12, 1986, p. 184.

20
INTRODUÇÃO

maneira mais afirmativa do que antes "a_supressão ou ao


menos a redução" da intervenção do Estado na economia, e
até a supressão ou a redução do Estado como tal.
Para alguns, por não ser novo esse discurso doutrinal,o
prefixo "neo" é inútil: os termos liberalismo econômico e capi­
talismo bastariam amplamente, portanto, para nomear essa
doutrina. 17 Maurice Allais, prêmio Nobel de economia,18
considerava, aliás,que o próprio termo liberalismo é impró­
prio: tratar-se-ia apenas de um "empreendimento hegemô­
nico" que se confere um "certificado de respeitabilidade",um
"disfarce" bem distanciado do liberalismo.
Poderíamos dizer ainda que neoliberalismo é um o:xímo­
ro, dito de outro modo, uma aliança de termos contraditó­
rios que paralisa o pensamento,19 e que,além do mais,utili­
zar esse termo é retomar os próprios termos do adversário,
meio mais seguro de sofrer sua violência simbólica. Parece
então mais sensato, para aqueles que julgam essa doutrina
sensivelmente diferente do liberalismo clássico, utilizar o
termo ultraliberalismo. 20
Enfim, podemos ver aí uma "visão empreendedora"
aplicada ao conjunto das atividades humanas,uma visão que

17 Respectivamente (e apesar do titulo para o primeiro), Alain Bihr. La novlangue néolibérale. La rhétorique du fétichisme capitalis­
te. Lausanne, edição Página 2, Cahiers libres, 2007: e Pascal Durand (dir. J . Les nouveaux mots du pouvoir. Abécédaire critique
Bruxelles, Aden, 2006. Ver também o site <http://divergence.be>.
18 "La mondialisation, le chômage et les impé@Ms de l'hurnanisme", Unesco, "Science et hurnanisme", abril de 1999, pp. 9-10, ci­
tado em René Passet. L'illusion néo/ibé@le Paris, Flamrnanon, 2000, pp 21-22 (coleção Champs)
19 Segundo a equação semântica: neo + liberalismo = novo + conservadorismo. A tese segundo a qual os oximoros paralisam o
pensamento é desenvolvida por Olivier Reboul. Discours et idéologie. Paris, PUF, 1980.
20 Eis aqui três ocorrências: uma em Le Nouvel Observateur de 7/12/95 sob a pluma de Roland Joffrin ("Le spectre de Maastricht"):
"A Europa apareceu como o meio de alinhar pela força a sociedade francesa sobre as normas ultraltberais em vigor em escala
mundial" (destaque do autor), as duas outras em Le Monde Dip/omatique de janeiro de 1996, uma no editorial de lgnacio Ramo­
net "A esperança": "Uma única instrução extraída da terminologia darwiniana cara aos ultraliberais: 'adaptar-se', isto é, renunciar,
abdicar, se submeter", a ou!@ no artigo de Serge Halimi "Os meios de comunicação e os miseráveis": "Alain Touraine, sem dú­
vida porque ele acabava de cometer um panfleto ultraliberal' (destaque do autor nos dois treçhos).

21
AS EVIDÊ NCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MifJIA

"tende a subordinar toda coisa a suas dimensões estritamen­


te econômicas" ou batizá-la simplesmente de "economis­
mo". 21 O importante aqui é que esses pontos de vista con­
vergem no que consideram o aspecto ideológico dessa visão
de mundo e do discurso que o acompanha, o qual é perfei­
tamente resumido por P. Breton: "Um vasto empreendi­
mento está hoje em obra para persuadir as multidões mun­
diais do interesse que haveria em estender o setor mercantil
a todos os setores da sociedade e a se livrar o máximo possí­
vel de todas as estruturas de regulação coletiva que não per­
tencessem a esse setor, e em primeiro lugar o Estado". 22
A própria existência de publicações críticas e "rebel­
des"23 contra o neoliberalismo é o sintoma de um conflito e
de uma reação à tentativa de dominação ideológica de um
grupo sobre outro. 24
Os termos discurso neoliberal (doravante DNL) e discur­
so econômico serão considerados aqui como intercambiáveis.
Eles significam um conjunto de enunciados mais ou menos
coerentes, que têm em comum a promoção de uma visão em­
preendedora e puramente econômica da vida e de todas as
atividades humanas. Esse discurso exorta, com efeito, a tor­
nar produtivo, no sentido econômico, o que não pode sê-lo:
a Escola e a Universidade, o Hospital e a Justiça. Suas pala­
vras-chave são "eficácia econômica", "rentabilidade financei-

21 Respectivamente: Durand, 2006; Duval, 2000: Philippe Merlant. "Un projet alternatif à l'économisme". Transvmales Science/
Culture, n. 3 (nova série), 2002.
22 Philippe Breton. La parole mampulée. Paris, La Découverte & Syros, 1997, p. 46.
23 Segundo o próprio termo de lgnacio Ramonet, diretor e editorialista do Monde Diplomatique em 1995.
24 Esse conflito é sinônimo de guerra para os zapat1stas e o comandante Marcos: "Na nova ordem mundial, não há nem democra·
eia, nem liberdade, nem igualdade, nem fraternidade. Trata-se de uma guerra planetária, a pior e a mais cruel, que o neolibera·
lismo conduz contra a humanidade" (Comandante Marcos, Le Monde Dip/omatique, agosto de 1997).

22
INTRODUÇÃO

ra", "retorno sobre o investimento". 25 Os teóricos do neoli­


beralismo dizem defender a livre-iniciativa e o mercado
contra o intervéncionismo do Estado que seria um freio ao
mercado privado, único verdadeiro produtor de riquezas, de
bem-estar, e até de democracia.
Uma precisão importante: a expressão "discurso mais ou
menos coerente" empregada anteriormente não é fortuita.
Ela significa que esse discurso não é homogêneo e que é
preciso se precaver para não unificar demais a visão que ele
propõe. E mais, considerar o discurso neoliberal como um
discurso coerente é ser tolo três vezes. Inicialmente é crer na
"transparênêia da linguagem'', acreditar que as falas não fa­
zem outra coisa a não ser exprimir os pensamentos de seus
autores, que esses são, ao mesmo tempo, sinceros e total­
mente senhores de seus enunciados,26 ou ainda que a lingua­
gem apenas veicula informações. 27 Em segundo lugar,é ad­
mitir que o neoliberalismo - e o discurso que o acompanha
- é uma teoria coerente, realista e viável. 28 Por fim, é ser
mistificado por essa aparência de racionalidade com a qual o
discurso econômico se recobre e pela qual ele se justifica (ver
Capítulo 1).

25 Ver Albert Jacquart. J'accuse /'économie triomphante. Paris, Calmann-Lévy, 1995; Viviane Forrester. L 'horreur économique. Paris,
Le Livre de Poche, 1996; Pierre Bourdieu. Contre-feux, Propos pourservir à la résistance contre l'invasion néolibérale. Paris, Liber­
·Raisons d'agir, 1998 e Contre-feux 2, poor un mouvement social européen Paris, Liber-Raisons d'agir, 2001; Passet, 2000; Du­
rand, 2006.
26 Como escreveu tão bem JoséOrtegayGasset "[...] é a linguagem que às vezes consegue exprimir comomáximodeill)!oximação
algumas das coisas que se passam em nós. Nada além disso. Ao contrário, quando o homem se põe a falar, ele o faz l)Olque
acredita que vai poder exprirrn r tudo o que pensa E eis ai a ilusão! A linguagem não permite tanto" (José Ortega y Gasset.
'Préface pour le lecteur trançais'. la révoffe des masses. Paris, Les Belles Lettres, nova edição, 2010 (1937], p. 48).
27 P Watzlawick (1978) estima que, numa conversa ordinária, somente 1/5 do que é dito é informação "pura"; os locutores consa­
grariam os 4/5 restantes a comunicar, isto é, a utilizar a linguagem para se constituir como su1eitos e para estabelecer a relação
com o outro.
28 R. Passet não véaí nada de coerente: 'Odogma não está inscrito em nenhumcódigo. Ele não corresponde a nenhuma escola acadê­
mica de pensamento, mesmo se reivindica para si um liberalismo duvidoso" (Passet, 2000, p. 19).

23
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MllllA

Sete "evidências" liberais a desconstruir: O contexto idro/�1!;ico

As palavras empregadas para fundar a doutrina formam


o contexto ideológico: o conhecimento delas é indispensável
para desmontar as "evidências econômicas"211 e discursivas
do DNL.
A primeira dessas "evidências" é que essas palavras, car­
regadas de representações e de conceitos herdados do passa­
do, estariam em adequação com a realidade econômica de
hoje. Ora, já em 1925 , J. M. Keynes mostrava os limites de
uma tal herança: "Nós mudamos, insensivelmente, nossa vi­
são da vida econômica, nossas ideias daquilo que é razoável
e daquilo que é intolerável. E o fizemos sem mudar nossas
práticas ou nosso manual teórico. Daí nascem todos os nos­
sos problemas". 30
O discurso que legitima a doutrina não evoluiu senão
para se radicalizar apresentando-se como um retorno às
"fontes" do liberalismo econômico e do laissez-faire, en­
quanto o mundo (relações sociais, estruturas socioeconômi­
cas) e as prioridades (sociais e ambientais) evoluíram forte­
mente desde o século XIX.
Em segundo lugar, a própria noção de "livre mercado" é
um mito. Segundo Neil Fligstein, mesmo as "empresas em
rede" do Vale do Silício precisam do Estado, no mínimo
para formar seus futuros engenheiros:

29 Vero "Manifested'économistesatterrés" [Manifestodeeconomistasaterrorizados] de 1/9/2010, que tem PhilippeAskenazy, Thomas


Coutrot, André Orléan e Henri Sterdyniak na sua origem, e cujo objetivo é tanto desconstruir as "falsas evidências" econômicas
quanto expor 22 propostas. Ver também Passet, 2000.
30 John Maynard Keynes. Suis-je un libéral ?. Marseille, Agone, 1999 (1925]. p. 52 (coleção Contre-feux)

24
INTRODUÇÃO

[... ] essa cantilena [do livre mercado] não corresponde em


nada à realidade do funcionamento da economia estaduni­
dense. Na América como na Europa, o Estado e as empresas
estão intimamente ligados e a capacidade relativa das econo­
mias capitalistas para criar riquezas, rendimentos, bens e ser­
viços depende diretamente dessa relação. 31

Em terceiro lugar, a aparição do "livre mercado" não


tem nada de "natural".32 É perturbador ver o quanto a análi­
se que K. Polanyi fez, em 1944, do que se passou antes da
guerra, corresponde ao que se reproduziu a partir dos anos
1980 nos Estados Unidos e depois na Europa: "[ ... ] o laissez­
faire não tinha nada de natural; os mercados livres não po­
deriam jamais ter visto a luz dó dia se se tivesse simples­
mente deixado as coisas por elas mesmas. [ ... ] o laissez-faire,
ele mesmo, foi imposto pelo Estado". 33
Dois outros dogmas fundamentais da doutrina, ligados
a essa "naturalidade" do mercado, devem ser novamente
questionados. De um lado, a "seleção natural" dos mercados
que "supõe que não se deve nem proteger nem ter pena da­
queles que investem seu capital ou sua força de trabalho na
direção errada". 34 Com efeito, essa seleção assim apresenta­
da é desmentida, por exemplo, pela "crise financeira" do ou­
tono de 2008: o leitor certamente lembra que os bancos es­
tadunidenses e europeus reagiram após a quebra do Lehman

31 Neil Fligstein. "Le mythe du marché". Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 139, 2001, p. 12.
32 Alain Mine, por exemplo, escreve: "O capitalismo não pode ruir, é o estado natural da sociedade. A democracia não é o estado
natural da sociedade, o mercado �m" (citado por Jacques Robin. "L'affrontement entre le tout-économisme et l'ere information­
nelle". Transversales Scíence/Culture, n. 3 [nova série], 2002, p. 33).
33 Karl Polanyi. La grande transformation. Paris, Gallimard, 1983 [1944]. p. 189.
34 John Maynard Keynes. The Endoflaissez-faire. Marseille, Agone, 1999 [1926], pp. 17-19 (coleção Contre-feux).

25
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MIDIA

Brothers voltando-se sistematicamente para o Estado para


"desencalhá-los".
De outro lado, a noção de "eficácia" foi desviada, assu­
mindo uma acepção gananciosa e mercantil. O fato de estar
"no lugar certo e na hora certa com os meios de produção
adequados" tornou-se, segundo Keynes, "a necessidade da
perseguição individual e sem restrições do lucro como ver­
dadeira motivação para produzir o máximo de esforços", as­
sim: "Um dos motivos humanos mais poderosos, o amor ao
dinheiro, é assim acoplado à tarefa de distribuir recursos
econômicos da maneira mais bem calculada para aumentar
as riquezas". 35
Enfim, sexta e sétima "evidências", a metáfora tomada
emprestada de Adam Smith segundo a qual haveria "uma
mão invisível" que regularia o mercado e seu corolário, a "ra­
cionalidade do mercado", tornados tópicos e crenças, são
hoje dois argumentos justificadores e dois dogmas indiscu­
tíveis. Elas são, no entanto, apenas uma tentativa de explica­
ção "racional e sistêmica" ("é preciso que haja uma razão, um
princípio diretor") para os comportamentos dos "atores do
mercado". Essa tentativa de explicação não parece convin­
cente, pois os fatos, aí de novo, mostram, claramente, que
esses "atores" não dão prova de racionalidade e que os verda­
deiros "reguladores" do mercado são o oportunismo e as
emoções. 36

35 Idem, ibidem.
36 Ver Passet, 2000, o parágrafo intitulado "Les moutons de Panurge". [Expressão que significa: pessoa influenciável, que se deixa levar
pelos outros semrefletir; "maria vai comas outras". (N. da l)]. Ver também, por exemplo, a ruina tão súbita quanto irracional da Bolsa
"dos países emergentes" do Sudeste Asiático em 1999.

26
INTRODUÇÃO

As tópicas neoliberais

O mesmo trabalho de desconstrução deve ser efetuado


perante o neoliberalismo, pois, o que quer que se diga, esse é
apenas um simples retorno às fontes: novos conceitos foram
integrados à doutrina inicial.
Assim, os matemáticos de Chicago, que souberam se
impor na ciência econômica, desenvolveram aí uma grande
tecnicidade matemática e acabaram por impor mais geral­
mente, na esfera econômica dessa vez, a ideia de uma racio­
nalidade matemática "necessária" em economia. 37 Esse
"avanço" se traduziu pela eficácia e pela engenhosidade da
financeirização da economia, a despeito de toda considera­
ção ética (ver Qµadro 1).
A segunda ideia central do neoliberalismo é o reforço
do dogma da redução, e até da supressão, do Estado e de seu
papel regulador. Os principais dogmas econômicos são
agrupados na expressão Washington consensus: 38 "disciplina
orçamentária", "liberação das trocas comerciais e dos merca­
dos financeiros", "privatizações", "proteção dos direitos de
propriedade", "desregulamentação".
Enfim, a tópica neoliberal essencial, a meu ver, continua
sendo a "eficácia": diretamente ligada ao papel hegemônico
dos matemáticos na economia, ela reativa "a busca indivi-

37 Yves Dezalay & Bryant Garth. "Le Washington consensus. Contribut1on à une sociologie de l'hégém001e du neolibéralisme"
Actes dela Recherche en Sciences Sociales, n. 121-122, 1998, pp 3-22.
38 O Consenso de Washington, noção forjada por Williamson em 1990, designa "os pontos comuns a todas as reformas prescritas
como remédios às dificuldades financeiras da América Latina". Ela se expande em 1994 a "uma convergência universal entre as
doutrinas e as políticas econômicas" (Dezalay & Garth, 1998, p. 3). Segundo Passet, "o Consenso de Washington - fruto direto,
no inicio dos anos 1980, de uma cúpula do G7 -, cujos 'dez mandamentos' enumeravam os béneficios da livre circulação dos
capitais no mundo acompanhada de uma total libérdade para empreender, ao mesmo tempo denunciavam as tentações vindas
do Diabo dissimuladosob as formas do 'Estado-providência"' (René Passet. "Porter l'espérance". TransverSoiesScience/Cuiture,
n. 3 [nova série], 2002, p. 24).

27
AS EVI DÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MlillA

dual, e sem restrição, pelo lucro", da doutri na lilll'ral, e se


traduz concretamente por uma exigência de rentabilidade a
curto prazo que produz efeitos sociais e ecológicos diretos.
Esse pensamento econômico hoje glohalizado, mas
também "desistoricizado" e "constituído em modelo e me­
dida de todas as coisas",39 propagou-se dos domínios eco­
nômicos aos domínios sociais, políticos, esportivos, midiáti­
cos, educativos, ecológicos... Os economistas na origem do
discurso neoliberal escolheram, no início dos anos 1980,
um duplo modo de difusão: ao mesmo tempo (pseudo)
científico, entre pares de uma mesma disciplina e de um
mesmo meio social, e midiático (rádio, televisão, cinema,
revistas, jornais ... ), permitindo assim ter acesso ao conjunto
da sociedade. 40
Tratava-se de difundir, pelo viés dos meios de comuni­
cação, uma doutrina fácil de compreender. 41 Mas as institui­
ções não ficaram de fora: assim Buchanan, "um discípulo de
Chicago,[ ... ] recebe o Nobel como 'pai' da corrente da public
choice". A teoria que desenvolve esse economista retoma a
rejeição do establishment e transpõe os "postulados da eco­
nomia neoclássica à análise das escolhas políticas". Dito de
outro modo, ela rejeita a intervenção e a regulação estatais. 42
O neoliberalismo torna-se então uma doutrina político-e­
conômica. Uma "contraofensiva ideológica", que visa ao
keynesianismo,pode assim se desenvolver no terreno midiá-

39 Pierre Bourdieu & Loic Wacquant. "La nouvelle vulgate planétaire". Le Monde Diplomatique, ma1 2000.
40 Milton Friedman, prémio Nobel de economia em 1976, desempenhou um papel muito importante na difusão dessa ideclogia: ver
Dezalay & Garth, 1998, e Gérard Dostaler. "Milton Friedman, croisé du libéralisme". Altematives Économiques, n. 228, 2004, p 76.
41 Notadamente utilizando o Wa/1 Street Journal (Dezalay & Garth, 1998), jornal econômico e financeiro mais vendido no mundo.
42 Dezalay & Garth, 1998, p 11.

28
I N TRODUÇÃO

tico, destilando "mensagens simples, bem identificáveis, fá­


ceis de difundir". 43 O objetivo é, claramente, o de constituir
a doutrina neoliberal em novos conhecimentos partilha­
dos - em evidência, portanto.
Trinta anos mais tarde, essa ideologia acabou por modi­
ficar os comportamentos dos indivíduos44 no mundo inteiro
e por transformar profundamente as estruturas do "campo
jornalístico". 45 Esse pensamento circular se autojustifica
apoiando-se em seus próprios dogmas. 46 Assim, a globaliza­
ção da economia que ele impôs47 parece lhe dar razão. As
decisões preconizadas dizem se curvar às "restrições econô­
micas internacionais", as quais foram ditadas precisamente
por esse pensamento econômico retransmitido pelos meios
de comunicação e pelos principais organismos internacio­
nais: Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mun­
dial, Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento
Econômico (OCDE), União Europeia etc. 48

43 Feulner, um dos diretores da Heritage Foundation, inventa um termo para definir esse tipo de mensagem: "the brief-case tesf'.
Análises e recomendações tão concisas quanto possível que devemos poder ler e integrar no carro a caminho de um encontro
(ibidem, nota 22).
44 Michel Vilette. "Vendre ou se vendre. Notes sur une altitude 'libérale' devant la vie". Regards Sociologiques, n. 21, 'Le néolibéra­
lisme". 2001, pp. 87-98.
45 Para uma análise das reestruturações financeiras e sociológicas desse "campo", ver Dezalay & Garth, 1998; Champagne, 2000;
Ramonet, 2001.
46 A nocão de "discurso constituinte", um tipo de discurso que se constitui se autojustificando, pode ser aplicada ao discurso
neoliberal, ver Guilbert, 2007. Para um retorno a essa noção, ver Dominique Maingueneau & Frédéric Cossutta. "L'analyse des
discours constituants". Langages, n. 117, 1995, pp. 112-125.
47 Frédéric Lebaron. "L'impérialisme de l'économie". Actes de la Recherche en Sciences Socia/es, n. 121-122, 1998, pp.104- 1 07.
48 As medidas de tipo "ajuste estrutural" impostas ao governo grego por alguns desses organismos na primavera de 2010 fornecem um
exemplo muito esclarecedor disso.

29
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MilJIA

Qyadro 1
O papel discursivo das matemáticas na economia

As matemáticas foram determinantes na (re)formação do campo


econômico (notadamente pela Escola de Chicago), tanto no nível socio­
lógico quanto no simbólico: elas apresentam a dupla vantagem de dis­
tinguir facilmente os economistas "legítimos" dos "keynesianos" e de
conferir ao discurso econômico um valor científico. 49 Elas mascaram,
além disso, o caráter convencional e ideológico das escolhas econômicas
sob a evidência da "racionalidade indiscutível" que, em nossa cultura oci-
. dental, está ligada aos números e às cifras. 50
A crença na "virtude das matemáticas", como naquela de um "neo­
darwinismo autorregulador", produziu a exigência de uma rentabilidade
a curto prazo, que é um dos principais traços da doutrina neoliberal e que
tem consequências sobre a estrutura da economia atual. 51 Assim a reali­
dade parece, em retorno, confirmar os dogmas do DNL.
A ideologia neoliberal e o discurso neoliberal apoiam-se, portanto,
no conceito de rentabilidade a curto prazo e no quadro matemático e
econômico geral para produzir a tópica da eficácia, "eficácia, da qual ela
se dá uma definição estreita e abstrata, identificando-a tacitamente à
rentabilidade financeira". 52 Assim, os conceitos-nômades da economia
investem domínios nos quais eles não tinham até então nenhum sentido
(notadamente nos serviços públicos) e produzem consequências lamen­
táveis para os investimentos a longo prazo, tanto humanas quanto eco­
lógicas. 53

49 Dezalay & Garth, 1998.


50 Marshall Mcluhan. Pour comprendre les médias. Paris, Seuil, 1976 [1964] (coleção Points).
51 A importância dos mercados e da especulação deu aos acionistas um poder que lhes permite exigir, dos conselhos de adminis·
tração, taxas de rentabilidade tão enormes quanto imediatas (Ramonet, 1995; Bourdieu, 1998 & 2001; Passet, 2000).
52 Bourdieu, 1998, p. 46.
53 Patrick Viveret. "Le rapport d'étape". Transversales Science/Culture, n. 70, "Reconsidérer la richesse", 2001, pp. 4·36.

30
INTRODUÇÃO

A análise do discurso neoliberal

O ponto de vista da análise do discurso

Ao não se inscrever na análise político-econômica, esta


obra não irá mais longe nesta apresentação. Trata-se aqui de
analisar o funcionamento desse discurso, estudando como
essas teses são expressas e os efeitos consideráveis desse dis­
curso em nossas representações coletivas.
Esse ponto de vista é o da análise do discurso, disciplina
francesa e anglo-saxã,54 que considera que é artificial e erra­
do dissociar "o que é dito" (o conteúdo) da "maneira de di­
zer" (a forma) ou, para exprimir essa ideia de outro modo,
que a "maneira de dizer" diz alguma coisa a mais sobre aqui­
lo que é (realmente) dito e sobre as representações "pessoais"
. daquele que fala ou escreve.
Já em 1947, o filólogo judaico-alemão V. Klemperer,
tendo estudado clandestinamente os efeitos de sentido da
língua nazista de 1933 a 1945, tinha adotado esta visão:
"Aquilo que alguém quer deliberadamente dissimular, aos
outros ou a si mesmo, e também aquilo que carrega em si
inconscientemente, a língua revela. Tal é também, sem dúvi­
da, o sentido da sentença: 'O estilo é o homem'; as declara­
ções de um homem são mentirosas em vão; o estilo de sua
linguagem põe seu ser a nu". 55

54 Para uma apresentação a um só tempo sintética e rica dessa disciplina francesa nascida em 1969, ver Francine Maziére. L'anafyse
des discours. Paris, PUF, 2005 (coleção Que sais-je). Para uma apresentação da abordagem anglo-saxã, ver Adele Petitclerc &
Philippe Schepens. "Criticai Discourse Analysis I". Semen, n. 27, Université de Besançon, 2009.
55 Viktor Klemperer. LTI, la tangue du Ili Reich. Paris, Albin Michel, Pocket, 1996 [1947], p. 35 (coleção Agora).

31
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MIOIA

A análise do discurso se distancia das análises de con­


teúdo: ela se interessa pelos discursos tais como eles foram
formulados e não por resumos, sem, contudo, negligenciar as
contagens, assistidas por computador, de palavras e de ex­
pressões para a análise de grandes corp ora.
Ela se distancia igualmente das análises lexicais - geral­
mente nominais - sobre o discurso econômie0 atual, mesmo
sendo estas tão úteis e necessárias; 56 assim eu me interesso
sobretudo pelos níveis superiores à palavra, dito de outro
modo, à frase, ao parágrafo e ao texto. E isso por duas razões
principais: primeiramente, porque uma palavra, uma expres­
são ou uma frase só tomam sua significação (seu valor) em
um contexto sociocultural e frástico dado e, em segundo lu­
gar, porque o nível da frase e do texto permite, muito melhor
que a palavra, desvelar os procedimentos discursivos e argu­
mentativos, implícitos nas evidências, utilizados pelos enun­
ciadores.

A escolha do "sup orte"

A opção por estudar editoriais e artigos de opinião pode


parecer paradoxal. Com efeito, os editoriais e artigos de opi­
nião são textos opinativos, eles não têm que dar prova de
neutralidade. O papel dos editorialistas e dos articulistas é
emitir uma opinião sobre um acontecimento e dar sentido a
ele de acordo com um ponto de vista que corresponde à li­
nha editorial do jornal, o que faz delesformadores de opinião.
Pode parecer curioso buscar analisar o funcionamento da

56 Por exemplo: Éric Hazan. LOR, La propagandedu quotidien. Paris, Liber/Raisons d' Agir, 2006: Durand, 2006: René Mouriaux (dir)
Lexique usuel critique de /'idéologie dominante économique et sociale (Lucides). Paris, lnstitut d'histoire sociale/CGT, 2009.

32
INTRODUÇÃO

evidência em um gênero jornalístico tão orientado. Ora, mi­


nha tese é que a força de evidência do gênero "artigo de
opinião" procede justamente do paradoxo entre sua assina­
tura e os argumentos utilizados, entre um dizer individual e
uma apresentação coletiva, 57 entre um ponto de vista parti­
cular e a utilização do senso comum. Esse paradoxo, no sen­
tido forte do termo, 58 "constrange" o leitor a assumir respon­
sabilidade pelo sentido dos enunciados e produz uma
corresponsabilização do dizer (aquilo que é efetivamente
percebido e compreendido e não o simples sentido das pa­
lavras utilizadas), como se o editorialista ou o articulista dis-
. mas somos nos, que f:a1amos".
sesse: "S ou eu quem d1go,

Contextos sócio-históricos: "Crises sociais"

O contexto sócio-histórico é essencial para compreen­


der e analisar um discurso. Ele permite reposicionar o dis­
curso na relação que os enunciadores tinham com os acon­
tecimentos e as falas dos outros enunciadores. É fácil notar
que certos momentos de crises sociais parecem se impor aos
meios de comunicação59 e, mais precisamente, aos comenta­
dores, obrigando-os de alguma forma a tomar posição no
debate; esses acontecimentos formam aqui os planos de
fundo contextuais indispensáveis à compreensão dos exem­
plos analisados.

57 Assim, o pronome que domina nesses artigos não é eu, como poderíamos esperar, mas nós (ou ainda um a gente que tem valor
de nós); para uma analise mais aprofundada, ver Guilbert, 2007.
58 A noção de paradoxo esta no centro das teses desenvolvidas por Watzlawick, 1978; ver também Paul Watzlawick, Janet Helmick
Beavin & Don D. Jackson. Une logique de la communication. Paris, Seuil, 1972. No paradoxo, a mensagem contraditória "diz
respeito a si mesma" e "barra a própria possibilidade da escolha" (Watzlawick et ai., 1972, pp. 217 e 226).
59 Sophie Moirand propôs chamar esse fenômeno de "momento discursivo" (Sophie Moirand. "Moment discursif". ln: Patrick Cha­
raudeau & Dominique Maingueneau (org.). Dictionnaire d'analyse du discours. Paris, Seuil, 2002, p. 389.

33
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MIDIA

Foi assim com as manifestações e greves de novembro e


dezembro de 1995 que se seguiram ao anúncio por Alain
Juppé, então primeiro-ministro, de uma "reforma" da segu­
ridade social e do sistema de aposentadorias dos funcioná­
rios públicos.
Os meses de maio e de junho de 2003 conheceram um
acontecimento comparável: numerosas greves e manifesta­
ções após o anúncio feito por François Fillon, então minis­
tro da Função Pública, de uma forma de descentralização de
alguns funcionários da educação nacional para as coletivida­
des locais e de uma nova "reforma" do sistema de aposenta­
doria dos funcionários públicos, "reforma" estrategicamente
separada desta vez das carreiras dos transportes públicos
(RATP e SNCF).'
O movimento dos estudantes no inverno de 2006 con­
tra o Contrato de Primeiro Emprego (CPE), no qual eles
viam um contrato de emprego precarizado, foi também lar­
gamente comentado. 60
Será também interessante analisar o sentido atribuído
pelos meios de comunicação à "crise financeira" durante o
outono de 2008.
As manifestações da primavera e do outono de 2010
que recusavam uma nova "reforma" da Previdência foram
igualmente muito comentadas.

• RégieAutonomedesTransportsParisiens[EmpresaPúblicaAutônomadosTransportesParisienses]eSociétéNationaledesChemins
de Fer [Sociedade Nacional de Ferrovias]. Os grevistas dessas duas empresas bloquearam os transportes durante as greves de 1995.
(N. da T.)
60 lgnacio Ramonet ("Malade la France?", editorial, Le Monde Dip/omatique, abril de 2006), apresenta assim o CPE: "Como no caso
do CNE [Contrato de Novos Empregos], o empregador se vê reservada a possibilidade, durante os dois primeiros anos, de
romper o contrato sem formalizar motivação por escrito".

34
I N TRODUÇÃO

1995, 2003, 2005,61 2006, 2007,62 2009,6 3 2010... Os


movimentos de contestação às "reformas neoliberais" se su­
cedem num ritmo sustentado. De onde vem então esse sen­
timento difuso de que ninguém reage,64 de que ninguém
pode fazer nada, ou pior, de que essas "reformas" são tão
"necessárias" quanto "inevitáveis"?
Discurso e ideologia funcionam em concerto, justifi­
cando-se um ao outro (ver Capítulo 1). O discurso parece
ser um formidável meio de persuasão ideológica e tem um
papel primordial nos mecanismos de predisposição dos su­
jeitos para aceitar a imposição simbólica dos dominantes. 65
Em 1947, Klemperer observa:

[A língua nazista] muda o valor das palavras e a frequência


delas, [ ... ] ganha com a língua seu meio de propaganda mais
poderoso, o mais público e o mais secreto [ ... ] .
Todos, partidários e adversários, aproveitadores e vítimas,
eram guiados pelos mesmos modelos. [ ... ]
[ ... ] a língua não se contenta de [ ... ] pensar no meu lugar, ela
dirige também meus sentimentos, ela rege todo meu ser mo-

61 Em maio de 2005, 54% dos franceses reJeitaram por referendo a Constituição para a Europa; a opinião da maioria dos meiosdeco­
municação era totalmente divergente da opinião dos franceses.
62 Em dezembro de 2007, a proclamação da reforma das univer�dades (LRU), considerada por estudantes do ensino superior e médio
como a porta aberta para uma pnvat1zaçâo progressiva da universidade.
63 O inverno e a primavera de 2009 foram igualmente ricos em movimentos sociais diversos contra as "reformas" governamentais:
manifestações massivas de cidadãos convocadas pelos sindicatos, movimentos dosprofessores universitários e dos estudantes, do
"mundo médico", de parteiras, de agentes penitenciários, entre outros.
64 Corinne Gobin (org.). Conffits redistributifs et égalítaires: Des objets invisibles pour l'actualíté?. Actes du 4e. Congres de
/�ssociation Be/ge des Sciences Politiques{ommunauté Fram;aise (ABSP-CF), Louvain-la-Neuve, 24-25 de abril de 2008. Cf.:
<http://www.absp-cf.be>. Ver também R. Cussó; A. Oufresne; C. Gobin; G. Matagne & J.-L. Siroux (org.). Le conffitsocial éludé.
Louvain-la-Neuve, Academia Bruylant/ABSP-CF, 2008 (coleção Science Politique).
65 Ver Guilbert, 2007, pp. 84-86. O termo "predisposição", assim como a expressão "imposição simbólica", são emprestados de P.
Bourdieu (Ce que parler veut dire. Paris, Fayard, 1982).

35
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MIDIA

ral tão mais naturalmente quanto eu me remeto inconscien­


temente a ela.
As palavras podem ser como minúsculas doses de arsênio:
nós as engolimos sem tomar cuidado, elas parecem não fazer
nenhum efeito, e eis que, depois de algum tempo, o efeito
tóxico se faz sentir. 66

Parece-me que atualmente, mesmo se as circunstâncias


são diferentes, se produz o mesmo fenômeno: a língua car­
rega essas "evidências neoliberais". Nós as engolimos sem
tomar cuidado desde o fim dos anos 1980; hoje os efeitos se
fazem sentir na aceitação das políticas implementadas e nos
discursos. Meu postulado é que os meios de comunicação
são em grande parte responsáveis pela naturalização dessas
ideias, ou seja, por sua conformação natural e evidente e por
sua "aceitação".
O objetivo desta obra será atingido se o leitor puder
aqui encontrar elementos de reflexão que lhe permitam
apreender, com a ajuda de algumas ferramentas críticas, os
editoriais e artigos de opinião escritos ou orais, isto é, refutar
essas "evidências econômicas".

66 Klemperer, 1996 (1947], pp. 36 e 40-41.

36
A D I SS I M U LAÇÃO I D E O L Ó G I CA

Uma acomodação que estipularia nossa segurança


sem nos dá-la, e que [ ... ] estabeleceria a servidão.
Memórias, Retz

O discurso neoliberal (DNL) ou discurso econômico é ca­


racterizado por sua evidência, a qual torna sua invisibilidade
aparente, pois a evidência se vê, mas não se percebe. No en­
tanto, diferentes autores, 1 de modo diverso, perceberam-na,
entre os quais R. Passet: 2 "O dogma não está inscrito em
nenhum código. [... ] Ele flutua no ar do tempo sob a forma
de afirmações constantemente retomadas e marteladas. Essa
martelagem ocupa o lugar de demonstração, tamanha a for­
ça de afirmações que se pretendem evidentes".
Não há dúvida de que as circunstâncias sócio-históricas,
"o ar do tempo", desempenharam um papel eminente na
constituição da invisibilidade do DNL. Com efeito, ao fim
dos anos 1980, a "queda do muro de Berlim" e a "ruína do
bloco soviético"3 representaram um triunfo para o neolibe­
ralismo: ele pôde enfim se vangloriar de ser o único sistema
econômico que funciona e pôde se orgulhar de que "o fim da

Ver lgnacio Ramonet. "La pensée unique" [O pensamento único], Le Monde Diplomatique, editorial, 1aneiro de 1995, mas tam­
bém Forrester, 1996; Bernard Noêl. La castration menta/e Paris, POL, 1997; Breton, 1997; Bourdieu, 1998 & 2001; Passei, 2000;
Durand, 2006 "La censure invisible". Para uma análise mais aprofundada dessa nação de evidência, ver Guilbert, 2007.
Passei, 2000, p. 19.
Retomo essas fórmulas da linguagem corrente, na medida em que elas refletem uma visão sócio-histórica partilhada, mas a utiliza­
ção das aspas significa que eu não as assumo.

37
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MIDIA

história"• lhe deu razão. A realidade dos fatos vindo de al­


guma forma validar o dogma, ele seria ao mesmo tempo seu
próprio resultado e o resultado inelutável da História. Den­
tre outros,5 Bourdieu avisava: " É preciso romper com a nova
fé ou a inevitabilidade histórica que professam os teóricos
do liberalismo... ". 6
Entretanto,essas circunstâncias sócio-históricas favorá­
veis não são suficientes, me parece, para explicar essa invisi­
bilidade. O DNL é ideológico ao mesmo tempo porque
promove uma visão de mundo comprometida e porque con­
segue não se mostrar tal como é. Ele não aparece nos meios
de comunicação como um discurso,mas como falas esparsas
provenientes do senso comum ou de leis econômicas esta­
belecidas e indiscutíveis. Evidências, numa palavra. Contu­
do, ele é antes de tudo um discurso, isto é, um conjunto de
proposições que refletem uma posição "mais ou menos coe­
rente", e é como discurso que deve ser estudado igualmente.
Para melhor compreender os fatores dessa evidência­
invisibilidade,esse discurso pode ser aproximado de "A car­
ta roubada", de Edgar Allan Poe. 7 Nesse conto, o ministro
D., que roubou a cartaJ:illllPrometedora para o rei, escolheu,
para escondê-la da forma mais segura, colocá-la em evidên­
cia, à vista de todos, em seu apartamento. Essa escolha, que
pode parecer paradoxal, mostra-se muito bem pensada.
Com efeito1 o delegado e os policiais que procuram em vão

4 Segundo o titulo de Francis Fukuyama, La fin de l'histoire et /e dernier homme [O fim da história e o último homem). Paris,
Flammarion, 1991.
Ver os autores citados na nota 1 acima, mas também Jacquart, 1995; Breton, 1997; e Noam Chomsky. Responsabilité des intellec­
tuels. Marseille, Agone, 1998 (coleção Contre-feux).
Bourdieu, 1998, p. 31.
Edgar Allan Poe. "La lettre volée". Oeuvres en prose. Paris, La Plêiade, pp. 45-64.

38
A DISSIMULAÇÃO IDEOLÓGIÇA

a carta há dias, embora utilizem métodos comprovados, a


veem, mas nenhum a enxerga. Por quê? Porque ela não tem
o aspecto que eles procuram,ª mas um aspecto habitual, co­
mum, evidente. Porque o escamoteador mudou o aspecto
esperado da carta 1 porque ele modificou a forma e a apre­
sentação dela� porque a encenação que ele propõe é tomada
como realidade. É aí que percebemos toda a habilidade do
simulador: em vez de esconder seu espólio em um pé de
mesa oco ou sob um piso de madeira removível,ele deixou a
carta "bem suja e amassada" à vista de todos em "um mise­
rável porta-cartões",9 conferindo-lhe assim um aspecto anó­
dinq,a fim de que ela seja vista sem ser percebida, de que ela
se torne literalmente invisível.
A evidência do discurso funciona da mesma maneira, o
DNL está bem presente, e até onipresente, principalmente
na maioria dos jornais escritos: nós o vemos, o lemos,o ab­
sorvemos, mas não o percebemos. A questão então é: por
que não o percebemos? Como esse discurso ideológico con­
segue se apresentar como evidente?

1 .1 Ideologia ou propaganda?

Uma distinção semântica e lexical prévia é necessária e


fornece um primeiro elemento de resposta. Se podemos de­
finir grosseiramente tanto a ideologia quanto a propaganda
como sistema de ideias com vocação proselitista, temos a

'"[O delegado] jamais acreditou que fosse provável ou possível que o ministro tivesse deixado sua carta justo sob o nariz de todo
o mundo, como para melhor impedir qualquer individuo de percebê-la', explica Dupin, que desvela o estratagema" (idem, p. 61).
Idem, p. 62.

39
AS EVIDÊNCIAS DO DI SCURSO NEOLIBERAL NA MIDIA

tendência de confundi-las quando, no entanto, sena útil


distingui-las. Com efeito, parece-me que propaganda e
ideologia diferem principalmente por seu grau de dissimu­
lação. Uma observação de Milan Kundera é bastante escla­
recedora a esse respeito: "[ ... ] a principal vantagem da pro­
paganda totalitária em relação à das sociedades liberais é
que aqueles que estavam sujeitos à primeira acabavam em
geral muito rapidamente por não acreditar mais em nenhu­
ma palavra dela". 10
Eu adiro totalmente à análise que Pascal Durand faz
dessa observação: "Uma linha de divisão é traçada, separan­
do propaganda e ideologia. A primeira avança sem máscara;
a segunda, mascarada". 11
Todo regime possui o "monopólio da violência física",
segundo a expressão de Hannah Arendt, e os regimes tota­
litários, por definição, fazem uso dele de modo particular.
Mas aquilo em que pensamos menos frequentemente é que
os regimes totalitários possuem, além do monopólio da vio­
lência física, o monopólio da violência simbólica. Rousseau
escrevia já no Contrato social que t@do poder, mesmo o mais
tirânico, necessita de um discurso proselitista com o objetivo
de obter a submissão da maioria. 12 Poderíamos acrescentar
que o déspota busca dar sentido a seu regime, impondo um
projeto comum13 por intermédio do discurso. Ora, deve-se

10 Retomo, por minha vez, essa frase citada por Jean-Claude Michéa (Impasse Adam Smith. De f'impossibilité de dépasser/e capi­
talisme sur sa droite. Paris, Climats, 2002, p. 19) e retomada por Pascal Durand (2006, La censure invisibfe, p. 39).
11 Idem, ibidem.
12 "O mais forte nunca é forte o bastante para ser sempre o mestre se não transforma sua força em direito, e a obediência em
dever", Jean-Jacques Rousseau. Ou contrai social. Paris, 10/18, 1973 (1754]. p. 64.
13 É essencial ao homem dar um sentido ao mundo e uma lógica a suas ações, segundo Hannah Arendt, "ldéologie et terreur: Un
nouveau type de régime". Les origines du totalitarisme: Le systéme totalitaire. Paris, Seuil, 1972 (1952], pp. 203-232 (coleção

40
A DISSIMULAÇÃO IDEOLÓGICA

notar que, em-um regime totalitário (à diferença do regime


democrático), o discurso de propaganda não tem que se dis­
simular; ele, ao contrário, se exibe. E_aqueles que o discurso
de propaganda não consegue persuadir, os incrédulos, os não
convencidos, os últimos recalcitrantes, o exército e a polícia
"secreta" encarregam-se deles. Infelizmente, a história nos
oferece numerosos exemplos disso.
Assim, não somente os regimes totalitários precisam,
para se manter, de um discurso de propaganda, como, ade­
mais, eles o assumem plenamente. A Alemanha nazista ti­
nha seu "ministério da Propaganda", e Goebbels portava o
título oficial de "ministro da Propaganda"; o termo não era,
aliás, pejorativo antes da Segunda Guerra Mundial. 14 -Hoje,
propaganda tomou uma conotação pejorativa e se aplica aos
discursos dos regimes totalitários. Desse ponto de vista, a
expressão "propaganda totalitárià' é redundante, pois a pro­
paganda é o discurso assumido do poder totalitário.
Podemos, por outro lado, imaginar "Discursos ou cursos
de propaganda neoliberal" em nossas democracias? Os dis­
cursos neoliberais não são raros, e existem certamente, em
nossas escolas de comércio e de economia, uma difusão ativa
e/ou discursos proselitistas relativos à ideologia neoliberal,
mas qual ministro da Economia e qual "Grande Escola"·
teriam a coragem de intitulá-los assim?

Points essais). Ver também a esse respeito as noções de "pontuação" e de "ordem da realidade", Paul Watzlawick. La réalité de
la réalité. Confusion, désinformation, communication. Seuil, 1978 (coleção Points).
14 Para uma história dessa palavra, ver Breton, 1997: Almeida (d') Fabrice. "Propagande, histoire d'un mot disgracié". Mots, n. 69,
juillet 2002, pp. 137-148: e Mattelart Armand. La communication-monde, histoire desidées et des stratégies. Paris, La Découver­
te, 1991
• As Grandes Escolas (Grandes Écoles) são estabelecimentos de ensino superior de grande prestigio na França. (N. da T.)

41
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MIDIA

É forçoso constatar que, ao contrário dos regimes tota­


litários, importa aos poderes econômicos e políticos em nos­
sas "sociedades liberais" assegurar não somente o consenti­
mento voluntário dos cidadãos, isto é, criar e perpetuar o
consenso,15 mas também criar uma adesão "natural" ou o que
poderíamos chamar "uma sociedade de aquiescência à evi­
dência". 16 Do ponto de vista discursivo, a ideologia do poder
na democracia é, portanto, necessariamente dissimulada,
pois se supõe que ela não existe: ela deve se impor a todos
como o senso comum compartilhado. 17
É portanto lógico, somando tudo, que n�o se perc:.�ba o
discurso ideológico neoliberal: como todo discurso ideológi­
co, ele se dissimula enquanto tal. O objetivo deste livro pode
então ser reformulado: fornecer elementos de informação
suficientes ao leitor para modificar seu olhar, para que aqui­
lo que lhe parecia evidente, sendo dissimulado pela ideologia,
se revele propagandista - dito de outro modo, para que a
"evidência neoliberal" lhe apareça como propaganda. 18

1 .2 A dupla dissimulação

O segundo elemento de resposta, mais linguístico, à


questão da invisibilidade do DNL é que todo discurso

15 Segundo E. Durkheim, a noção de consenso é central para a coesão de uma sociedade. Trata-se aí de um CO/lsenso social "ra­
cionalmente aceito". A questão é saber em que medida essa adesão é livre e racional.
16 Noél, 1997, p 145.
17 A famosa "ideologia dominante" dos anos 1970 é um pleonasmo, segundo R. Barthes. Para Reboul (1980, p 13), "a burguesia
lilleral tem também suas fórmulas-armadilhas, tão ma� perigosas na medida em que elas se dissimulam sob a aparência da
objitividàdeeda neutralidade".
18 Minha intenção não é amalgamar os regimes políticos sob os quais vivemos aos regimes totalitários que assolaram o século XX ou
que nos assolam ainda atualmente.

42
A DISSIMULAÇÃO IDEOLÓGICA

ideológico funciona segundo um processo de dupla dissi­


mulação.19

1.2.1 O sagrado constitutivo e o sagrado mostrado

As motivações profundas do poder sãoJ ao mesmo tem­


po, da ordem do sagrado e do tabu: elas não devem ser toca­
das, nem mesmo evocadas. Essas motivações sagradas (fonte
das noções de sacrilégio e de sacrifício)20 e tabus são, contu­
do, fáceis de penetrar, assim como a carta roubada é visível,
mas não percebida: o sagrado constitutivo do poder (consti­
tutivo no sentido do que o faz ser aquilo que ele é) é a busca
do poder e/ou a conservação do poder.
Uma vez que todo poder utiliza a linguagem para evitar
recorrer constantemente à violência física generalizada, ele
precisa de um discurso para assentar e conservar seu poder.
Mas esse discurso não pode consistir em proclamar: "Eu
quero manter o poder". A função da primeira dissimulação
é� pois, mascarar, pelo discurso, esse tabu sagrado do poder.
Como? Podemos estimar que, desde que o poder existe, o
princípio permaneceu o mesmo, apenas os temas mudaram:
trata-se de apresentar um outro sagrado no lugar do sagrado
constitutivo e reclamá-lo para si. Dito de outro modo, fazer
desse novo sagrado o motivo anunciado de todas as ações e
decisões do poder. Esse novo sagrado, eu o chamo de sagra­
do mostrado. O poder pode·, por exemplo, prometer alimen­
tação e proteção para todos, a fim de ganhar o controle do
clã; valer-se da crença em Deus e da estrita observação do

19 Faço uma rápida exposição aqui. Para mais detalhes, ver Guilbert, 2007.
20 Sacrilégio significa 'destruição do sagrado"; sacrifício, 'aceitação/submissão ao sagrado". Sobre esse ponto. ver Reboul, 1980.

43
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

Livro, a fim de assentar o poder da Igreja apostólica romana;


colocar à frente a fraternidade, a liberdade,a "fratura social",
o trabalho,o poder de compra ou ainda a segurança, a fim de
ser eleito à presidência da República.
Toda uma miríade de sagrados pode ser exibida para
justificar as ações e decisões passadas, presentes ou futuras:
a Liberdade, a Razão, a Justiça, o Amor, a Nação, Deus, a
Moral, a Fraternidade, o Ocidente... Assim, segundo Ber­
nard Noel,os poderes atuais exibiriam a "clareza econômica"
e a "transparência" da comunicação:

[ ... ] caçar o obscuro para que advenha em todos os lugares a


transparência. Nesse sentido, os "negócios" representam esse
sacrifício simbólico do poder e de suas corrupções tenebrosas
em proveito da clareza econômica, que não poderia se aco­
modar com privilégios nem com favores. O poder, é claro,
não é, contudo, sacrificado, mas ei-lo de alguma forma diluí­
do em sua própria clareza, a tal ponto que ele se torna invisí­
vel na visibilidade geral. 21

O sagrado constitutivo, Q poder econômico real, é, pois,


"diluído" ou dissimulado Pf!..lo e no sagrado mostrado da
"transparência".
No entanto, há uma regra a ser respeitada quando alu­
dimos a um sagrado mostrado: assegurar-se ou fazer de
modo que o caráter sagrado desse valor seja partilhado pelo
conjunto da comunidade à qual ele se dirige - tal é a condi­
ção síne qua non da eficácia do discurso. O poder pode então

21 Noel, 1997, p. 145.

44
A DISSIMULAÇÃO IDEOLÓGICA

presumir que esse sagrado mostrado que joga com o pathos -


isto é, com os afetos e as emoções - provocará quase meca­
nicamente a adesão e/ou o consentimento da maioria dos
sujeitos, cidadãos, consumidores etc. aos quais está dirigido.
A primeira dissimulação é,pois,uma substituição,um passe
de mágica: substitui-se o mote da busca do poder por um
valor mobilizador, partilhado e evidente (que cada um se
dispõe a pensar como essencial), isto é, incontestável. Essa
primeira dissimulação é também uma encenação que se su­
põe que representa a realidade.

1 .2.2 A "racionalidade" do discurso

A segunda dissimulação é mais sutil e puramente dis­


cursiva. Ela visa mascarar a primeira dissimulação ou, pelo
menos,atenuar seu aspecto ostentatório,evitar que a mano­
bra seja percebida, que o estratagema seja visível demais.
É nesse nível,aliás,que discurso ideológico e propagan­
da se diferenciam. O discurso de propaganda faz apelo a um
· sagrado mostrado: a "Grande Alemanha\-4 "ditadura do
proletariado","Trabalho, Família e Pátria" etc.,mas esse dis­
curso é totalmente assumido. Ele não precisa ser atenuado:
ele deve,ao contrário,exibir-se enquanto tal. A segunda dis­
simulação concerne,pois,apenas ao discurso ideológico que
não pode se apresentar tal como é, que não pode assumir o
aspecto de propaganda. Daí o recurso à evidência: a partir do
momento em que ele se apresenta como senso comum ou
evidência,aparentemente, não é mais um discurso. 22

22 lnverS<1mente, a evidência deixa de ser evidente a partir do momento em que ela é percebida.

45
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MIDIA

Então,como atenuar o aspecto propagandista do discurso


do poder na democracia? A segunda dissimulação toma a
forma de um discurso racional e retira daí toda sua força
simbólica e argumentativa. Ela se situa,pois,no nível da apa­
rência ou da forma de apresentação do discurso. Ela tem por
objetivo,de alguma forma, mascarar o apelo ao sagrado mos­
trado sob uma aparência de neutralidade racional. Assim como
o escamoteador da carta roubada modificou o aspecto da car­
ta sujando-a e amassando-a para lhe dar uma aparência ordi­
nária e evidente, a segunda dissimulação mascara o aspecto
esperado do discurso ideológico,seu aspecto proselitista, sob
uma forma que parece racional,portanto,neutra e objetiva. 23
É essa dupla dissimulação que faz a evidência do discur­
so ideológico. Essas duas formas de dissimulação comple­
tam-se e articulam-se: é porque a manobra ostentatória (e
dissimuladora) é ela mesma dissimulada sob uma forma de
apresentação racional que o discurso assume seu aspecto
evidente. É porque o apelo às paixões é legitimado e moda­
lizado pelo recurso à racionalidade que se pode "aderir natu­
ralmente" a esse discurso.
Três exemplos me permitirão ilustrar como essa dupla
dissimulação se concretiza nas palavras e nos discursos. O
primeiro exemplo é extraído das reações aos movimentos
contra a reforma das aposentadorias de 2003: "É preciso,
portanto,esperar que o Estado seja um cemitério recoberto
de cadáveres sem sepultura que infestam o ar para agir?". 24

23 A racionalidade é igualmente um valor partilhado que transcende as épocas e que apresenta a vantagem de não ser suspeita de
ideologia.
24 Denis Jeambar. "Droit dans le mur" [Direito na parede]. Editorial, L'Express, 22/5/2003.

46
A DISSIMULAÇÃO IDEOLÓGICA

O editorialista faz apelo ao sagrado mostrado do Estado


(ameaçado). Essa pergunta retórica - que carrega em si sua
própria resposta, negativa - conduz a uma "evidência racio­
nal": se não queremos isso, não temos escolha, é preciso agir
agora. Esse apelo à ação constitui em si mesmo um traço de
racionalidade. O primeiro e o segundo nível de dissimulação
estão, pois, entremeados numa mesma frase. Mas não deve­
mos nos enganar: o discurso não visa defender o Estado,
pois, além dessa metáfora mórbida que tem por objetivo
dramatizar a situação das finanças públicas, o artigo conti­
nua por uma segunda pergunta retórica, apelando de novo à
racionalidade, depois preconiza, com uma soberba desde­
nhosa - e indecente -, uma reforma neoliberal das aposen­
tadorias dos assalariados do setor público: "Acreditamos
realmente que poderemos obter sempre mais? A balbúrdia
em torno da reforma das aposentadorias (aguardada há 1 5
anos!) parece um capricho de filhos de ricos; o circo a pro­
pósito da destruição das conquistas sociais; [parece com] as
errâncias de filhos pródigos". 25
Com certeza, a tomada de posição final não é dissimu­
lada, mas se ela parece relativamente "lógica" é porque é pre­
parada pela apresentação inicial e evidente da situação.
O segundo exemplo data do movimento comparável
contra a reforma das aposentadorias de 1 995. No que diz
respeito ao primeiro nível de dissimulação, dois sagrados
mostrados são invocados: a "nação francesa" e o "princípio
republicano": "A nação francesa está fundada sobre o princí-

25 Idem, ibidem.

47
AS EVIDÊNCIAS DO D ISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

pio republicano,o qual se evapora se não é reinventado sem


cessar. Ora, há mais de 20 anos, a República está muda". 26
A segunda dissimulação, racional, é produzida pela rela­
ção lógica sugerida entre os dois valores partilhados: a nação
depende da vitalidade do princípio republicano. O raciocínio
exibido tem assim a aparência de um silogismo truncado. 27
A premissa maior não pode ser negada: a nação francesa está,
sim, fundada sobre o princípio republicano; entretanto, o
leitor é conduzido, pela observação que segue a premissa maior,
a preencher os não ditos e a tirar as conclusões do raciocínio.
O silogismo é falso, uma vez que é sobre essa observação que
se articula a premissa menor. No entanto, mesmo eludida, a
conclusão é evidente para o leitor: há /evaporação do prin­
cípio republicano/ portanto la nação francesa está em perigo/.
O que faz a evidência dessa formulação é, ao mesmo tempo,
seu aspecto racional e seu aspecto truncado, o qual produz
uma forma de coenunciação. Pois é o próprio leitor que tira
a conclusão do raciocínio, ele partilha defacto com C. Imbert
a responsabilidade dessa conclusão.
A metáfora do parágrafo seguinte, que lembra os mesmos
sagrados do precedente, mas enfeitados desta vez com uma
maiúscula, só faz então confirmar a conclusão do leitor. En­
fim, a segunda frase reúne, sem explicação, dois temas neoli­
berais: o "excesso de impostos" e o "assistencialismo": "Nosso
Estado sem Nação torna-se um leme sem quilha. Uma dire­
ção sem alma, próprio apenas para recolher imposto e distri­
buir subsídios". 28 Não se trata, portanto, de defender o Esta-

26 Claude lmbert. 'La volonté" [A vontade]. Editorial, Le Point, 18/11/1995.


27 Uma premissa maior + uma premissa menor introduzida pela conjunção ou, mas sem a conclusão.
28 Idem, ibidem

48
A DISSIMULAÇÃO I D EOLÓGICA

do, como gostaríamos de acreditar num primeiro momento,


mas de chamá-lo à "renovação" da ordem republicana, isto é,
à "reforma", e de denunciar os impostos e as assistências so­
ciais consideradas como desvios ("Uma direção sem alma").
No próximo exemplo, que concerne novamente à "re­
forma" das aposentadorias em 2003 (encontramos o mesmo
tipo de argumento em 1995 e 2010), um só e mesmo valor
concentra a dupla dissimulação: a racionalidade matemáti­
ca. 29 O apelo ao sagrado mostrado e à objetividade-evidên­
cia misturam-se aqui graças ao léxico contábil e matemático
(em destaque, abaixo): é em nome do bom senso e da razão
econômica que a evidência da "reforma" é estipulada. Vemos
isso principalmente no início ("clareza matemática") e no
fim do trecho ("necessidade de ajustar"). A dupla dissimula-
ção permite assim � editorialista do Libératirm de não falar
em seu nome próprio: ele começa por relatar os argumentos
do poder político (1), depois integra aqueles à sua própria
enunciação em nome da Razão (2). É então surpreendente
ver quanto o editorialista chega a manter uma distância pe­
rante a responsabilidade de seu dizer (ver cap. 3), o qual é,
no entanto, posicionado claramente em favor da "necessida­
de" da "reforma" governamental:

Para o governo (1), a reforma possui uma clareza matemática:


trata-se de equilibrar um orçamento fazendo a parte das receitas
e das despesas. Basta aumentar umas (contribuições mais longas)
e baixar as outras (aposentadorias menores e mais tardias). Mas

29 Bourdieu: "Um trabalho constante foi feito, associando intelectuais, jornalistas, homens de negócios, para impor como óbvia
uma visão neoliberal que, na essência, veste de racionalizações ec011ómicas os pressupostos mais clássicos do pensamento
conservador de todos os tempos e de todos os países" (1998, pp. 34-35).

49
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

essa aritmética permanece abstrata enquanto estiver isolada e


distante da questão mais geral do tipo de redistribuição dese­
jada para a França e do sistema tributário que a acompanha.
Os opositores à reforma pressentem que o esforço demandado
não será identicamente partilhado por todos.
Os sindicatos não têm nenhuma dificuldade em opor a isso o
"vivido" dos futuros aposentados, seu envelhecimento e a pe­
quena pensão que aguarda muitos dentre eles. Em conse­
quência, Bernard Thibault' fala inclusive em "melhorar o ní­
vel das aposentadorias". Nada pode estar mais distante da
necessidade de ajustar as contas (2 ) [ ... ] 30

Podemos enfim observar, nesse longo fragmento, que,


ao léxico racional,se misturam "expressões de evidência" que
confortam a obviedade "racional" desse discurso: "basta",
"não têm nenhuma dificuldade em", "(fala) inclusive",31
"nada pode estar mais distante"...
Esse processo de dupla dissimulação é o princípio geral
da evidência dos discursos ideológicos. No entanto, é possí­
vel e útil ir mais longe na análise, pois esse funcionamento
geral se inscreve em procedimentos discursivos mais preci­
sos,mas que têm um alcance persuasivo não negligenciável.
Como a evidência ideológica não deve ser percebida, o dis­
curso joga, por exemplo, com o implícito,isto é, com o que
se diz sem realmente dizê-lo, mas dizendo-o assim mesmo.

• Líder sindicalista francês da Confédération Générale du Travai! (Confederação Geral do Trabalho), de 1999 a 2013. (N. da T.)
30 Gérard Dupuis. "Statu quo". Editorial, Libération, 12/5/2003.
31 A palavra "inclusive" significa aqui /mais do que isso/e comporta osubentendido confirmado pelafraseseguinte:/provaqueele não
entendeu nada/.

50
2
O Q UE N O MEAR Q UER DI ZER

Mesmo não sendo forçosamente o nível mais adequado para


analisar os movimentos discursivos, abordaremos primeiro,
antes que a frase, aquilo que se mostra como o mais "natural"
quando nos interessamos pela linguagem: as palavras - e os
grupos de palavras.
Teoricamente, o jornalista tem a responsabilidade de
transmitir uma informação objetiva exercendo seu espírito
crítico (ver Introdução). Essas duas exigências não são in­
compatíveis e se equilibram por sua confrontação: exercer
seu espírito crítico é tentar provar o uso da objetividade, mas
é também falar de si reportando os elementos informativos
com sua própria visão de mundo. Os artigos que têm por
função comentar a atualidade são, então, a p riori, muito mais
subjetivos que os artigos ditos factuais ou informativos. O
editorialista tem não somente a possibilidade, mas o direito
(e o dever) de dar sentido ao acontecimento. Assim, llOfflear
o acontecimento é já formular implicitamente uma opinião
sobre um acontecimento particular e é, mais geralmente,
enunciar sua própria visão do mundo.

51
AS EVI DÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

<2.1iadro 2
As palavras do neoliberalismo

O neoliberalismo na condição de discurso, o discurso neoliberal, foi


caracterizado por algu ns autores, no fim dos anos 1990, como um dis­
curso que não se mostra pelo que ele é.
V. Forrester faz um levantamento de algumas palavras da "propa­
ganda eficaz":1 "forças vivas da nação" - e sua varianie "forças vivas" -,2
"a empresa cidadã", "empregabilidade",3 e algumas pressuposições e eu­
femismos: "aliviar a empresa'', "custo por hora diminuído. . . encargos so­
ciais aliviados.. . proteção social também". 4 A autora observa igualmente
as palavras que "estão notadamente ausentes": "Por outro lado, quantos
outros termos se banham do charme do desuso: 'benefício' certamente,
mas também, por exemplo, 'proletariado', 'capitalismo', 'exploração', ou
ainda 'classes', doravante impermeáveis a toda 'luta'!"5 .
<2.1ianto a B. Cassen,6 ele milita "pela reconquista do sentido das
palavras". Seria necessário fazer "'vomitar o não dito' das palavras do li­
beralismo". Além disso, ele constata: "O combate se desenvolve em
grande parte sobre o terreno da ideologia, utilizando para esse fim prin­
cipalmente a arma terminológica".
Os sociólogos P. Bourdieu e L. Wacquant constatam uma "nova
vulgata planetária'':7 "Como todas as mitologias da era da ciência, a nova
vulgata planetária apoia-se sobre uma série de oposições e equivalências,
que se sustentam e se respondem". Ao "mercado" são atribuídas virtudes
que, de modo simétrico, são defeitos para o Estado: o mercado é asso­
ciado à "liberdade", ele seria "aberto, flexível, dinâmico, movente", ele
encarnaria "o futuro, a novidade, o crescimento, a diversidade, a autenti­
cidade", enquanto o Estado é associado às "restrições", se diz "fechado,
rígido, imóvel, fixo", ele encarnaria o "passado, o imobilismo, o arcaísmo,
a uniformidade, a artificialidade".

Forrester, 1996, p. 27.


Idem, pp. 60 e 101.
ld€m, pp 99 e 142.
4 Idem, p 108.
5 Idem, pp. 25-26.
Bernard Cassen.Contre la dictature des marchés. Paris: La Dispute/Syllepse, 1999. Cassen era então presidente da Associação
pela Tributação das Transações [Financeiras] para A1uda aos Cidadãos (Attac)
Bourdieu & Wacquant, 2000.

52
O QUE NOMEAR QUER DIZER

Os autores observam que "esta nova vulgata planetária [ ... ], produ­


to de um imperialismo propriamente simbólico", utiliza "esses lugares­
comuns, no sentido aristotélico de noções ou de teses com as quais argu­
mentamos, mas a propósito das quais não argumentamos". 8 Esses
lugares-comuns "estão presentes em toda parte ao mesmo tempo e são
poderosamente retransmitidos por essas instâncias pretensamente neu­
tras do pensamento neutro, que são os grandes organismos internac io­
nais, os "laboratórios de ideias" conservadoras, as fundações de filantro­
pia, as escolas do poder, e a grande mídia, distribuidores incansáveis
desta língua franca chave-mestra, feita para dar aos editorialistas apres­
sados e especialistas entusiasmados da importação-exportação cultural,
a ilusão do ultramodernismo".
Esses três exemplos são, portanto, o traço essencial do discurso
neoliberal (DNL): t�ta-se de um discurso que se apresenta como evi­
dente, indiscutível e munido de "irrefutabilidade". 9

2.1 Nominalizar é pressupor

Geralmente encontramos no começo de um artigo de


opinião uma forma linguística específica que se chama no­
minalização. Ela se compõe assim: Determinante + Nome +
Complemento do nome; alguns exemplos: "a reforma da
aposentadoria"; "o rombo da Previdência", "o déficit das
contas públicas" ou "o preço do barril de petróleo".
Essa forma é considerada pelos linguistas como a redu­
ção de uma frase a um grupo de palavras. Por exemplo, "o
déficit das contas públicas" é a redução da sentença: "� con­
t� públicas estão em déficit". Vê-se que, na operação, o ver­
bo desaparece, origem do termo nominalização. Existe um
duplo interesse em utilizar essa forma.

Eu analiso esse procedimento argumentativo no Capitulo 6.


Forrester, 1996.

53
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MIDIA

O interesse estilístico dessa forma é reduzir uma frase ou


uma sentença a um grupo de palavras e,assim, permitir jun­
tar muitas ideias em uma mesma frase. O interesse argu­
mentativo é,por um lado, impedir que a sentença verbal seja
negada, ao fazê-la desaparecer por sua substituição por um
grupo nominal e, por outro, apresentar a relação entre dois
termos (Nome + Complemento do Nome) como necessaria­
mente existente. Assim,como a nominalização,"o chapéu de
Pierre" impõe a existência de uma relação necessária entre
"chapéu" e "Pierre", "o déficit das contas públicas" impõe a
existência de uma relação necessária entre "déficit" e "contas
públicas". Torna-se, então, muito mais difícil negar essa re­
lação do que em uma frase do tipo: sintagma nominal +
sintagma verbal.
O procedimento da nominalização permite, assim,fixar
um s.entidojá lá, um sentido que precederia a tomada da pa­
lavra ou a formulação (pôr em palavras) do jornalista. 10 Esse
procedimento se apoia igualmente sobre uma visão ingênua
do papel dos jornalistas como simples transmissores de in­
formações. É necessário igualmente precis::ir o papel essen­
cial do artigo o ("o déficit das contas públicas", "o rombo da
Previdência"... ): na condição de artigo definido (diferente
do artigo indefinido), ele determina o conjunto da nomina­
lização e, sobretudo, indica, segundo a gramática,"que uma
pessoa ou uma coisa já foi identificada". O artigo definido e
a nominalização unem-se, assim, para produzir a impressão
de que falamos de uma coisa já estabelecida,já lá, e que não
podemos colocar em dúvida. O interesse argumentativo que

10 A repetição dessas fórmulas rígidas e seu aspecto habitual reforça ainda mais essa impressão. Ver o Capitulo 4.

54
O QUE NOM EAR QUER DIZER

existe em colocar essas nominalizações no início do edito­


rial é, então, o de apresentar o acontecimento como porta­
dor de um sentido nele mesmo, antes mesmo que comece o
comentário do jornalista.
Por exemplo, afirmar, com uma sentença autônoma -
''As contas públicas estão em déficit" -, não é o mesmo que
começar uma frase por uma nominalização - "O déficit das
contas públicas é... deve... ". No primeiro caso, a sentença
pode ser refutada; no segundo, a discussão - se existir dis­
cussão - tem todas as chances de incidir sobre o resto da
frase,isto é, sobre o sintagma verbal. 11 Por exemplo,na frase:
"o déficit das contas públicas é abissal", a discussão incidirá
sobre a "profundidade" abissal ou não do déficit e não sobre
a existência de um real déficit ou sobre a pertinência de uti­
lizar o termo "déficit". A afirmação /as contas públicas estão
em déficit/, contida na nominalização "o déficit das contas
públicas", não será discutida, ela será considerada como
aceita. A nominalização impõe, então, um quadro para a
conversação,12 porque ela pressupõe que exista uma relação
determinativa entre o nome e o complemento do nome: o
complemento determina o nome; dito de outro modo,
o complemento do nome pertence ao nome e vice-versa.
Eis um exemplo por ocasião do movimento social de
novembro-dezembro de 1995: "Os franceses sabem agora a
que se ater. O país desaba sob opeso da dívida pública. É hora
de sacrifícios". 13

11 O sintagma verbal é nomeado "predicado" na gramática clás�ca. sendo a nominalização o "tema" ou "tópico".
12 É o caso das pressuposições em geral. Ver Oswald Ducrot. Le dire et /e dit. Paris, Minuit, 1984.
13 Charles Rebois. 'Sauver l'essentiel" [Salvar o essencial]. Editorial, Le Figaro, 4-5/M995.

55
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

Trata-se das primeiras palavras do editorial. A nomi­


nalização se encontra no trecho: "o peso da dívida pública".
A discussão incide sobre a existência de uma dívida públi­
ca_, sobre o "fato" de que /a dívida tem um certo peso/, ou
seria antes o caso de se perguntar se esse peso (apresentado
como existente) é suportável ou não? O verbo desabar não
deixa nenhuma dúvida sobre a resposta. O editorialista
pressupõe, então, que /a dívida pública existe e que ela tem
um peso determinado/ e indica explicitamente que isso é
insustentável.
É preciso igualmente sublinhar o papel das duas frases
que enquadram esse enunciado. A primeira,enunciada sozi­
nha, seria enigmática: o que significaria esse pronome rela­
tivo "a que [se ater]"? Ela tem, então, por função criar uma
expectativa no leitor e introduzir a segunda frase. 14 A tercei­
ra frase é conclusiva: uma vez "estabelecida coletivamente" a
realidade do peso insustentável, não há opção a não ser se
render à evidência: é preciso aceitar os "sacrifícios". Daí a
dramatização do título: "Salvar o essencial", isto é, aceitar
"sacrificar" o conjunto do sistema de proteção social man­
tendo apenas uma proteção mínima.
O editorialista do Fígaro continua assim (segundo pa­
rágrafo):

Em 13 de novembro, o primeiro-ministro pedirá aos parla­


mentares para aprovarem as medidas para reduzir o deficit da

14 E de falar no lugar dos franceses. Ver o Capitulo 3, "A opinião pensa que...'.
• CSG é a Contribuição Social Generalizada, um imposto para todos os assalariados na forma de uma taxa retida na fonte, de acordo
com os rendimentos recebidos. (N. da T.)

56
O QUE NOMEAR QUER DIZER

Previdência: expansão e aumento da CSG,· franquia sobre as


folhas de seguro-saúde, aumento das taxas hospitalares, tran­
sição para 40 anos de contribuição para a aposentadoria dos
funcionários públicos . . . Somente essa enumeração, que não
é exaustiva, faria descer às ruas a metade dos assalariados, se
cada um não tomar consciência da importância do abismofi­
nanceiro e da urgência de uma s.olução para salvar o essencial.

A nominalízação comporta um complemento do nome


que tem uma função de determinação e produz uma pressu­
posição de existência: determinar esse rombo como sendo
aquele da Previdência pressupõe que ele exista e preexista ao
que se vai dizer. Mas "a urgência de uma solução",emprega­
da no trecho, corresponde a uma outra forma de nominali­
zação,pois esta acrescenta à pressuposição a enunciação im­
plícita de um deverfazer.
Se o editorialista pode assim lançar um deverfazer ao
fim desse parágrafo (/cada um deve tomar consciência da
importância e da urgência/),utilizando duas novas nomina­
lizações, é certo que ele soube instalar como uma evidência,
desde o começo do seu texto, a "realidade" do peso "insus­
tentável" da dívida. Mas essa evidência é igualmente produ­
zida pelo funcionamento da segunda nominalização: "a ur­
gência de uma solução". Desta vez,o complemento do nome
é denominado de relação (e não de determinação como nas
nominalizações estudadas anteriormente): dito de outro
modo, a preposição de não tem o mesmo valor nos dois ca­
sos. No caso de "a urgência de uma solução", ela coloca em
relação o nome e o complemento. Ela indica que esses dois
elementos devem ser colocados em relação e que "o comple-

57
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

menta é o objeto dessa relação". 1 5 Ela subentende, então,


uma relação de obrigação: a "solução" deve ser "urgente".
O relatório que Jacques Attali entregou ao governo em
outubro de 2010, para tomar um exemplo mais recente, ti­
nha por título "O relatório sobre a liberação do crescimen­
to". Assim, a nominalização não indica que "a liberação"
pertence "ao crescimento", nem "o crescimento" à "liberali­
zação"; ela indica que "o crescimento" deve ser "liberado", ou
seja, o que precisa ser liberado é o crescimento. Existe, então,
uma pressuposição e um subentendido:
Pressuposto: lo crescimento não é livre/
Subentendido: /épreciso/deve-se liberar o crescimento/

Essa nominalização comporta, então, um dever fazer


implícito que encontramos em "a modernização da função
pública", "a modernização da França", "a liberalização do
mercado de trabalho" etc. A palavra à qual se refere o com­
plemento é portadora da ideia de uma relação obrigatória
com o complemento. Aliás, de um ponto de vista estrita­
mente gramatical, "a urgência" necessita de um complemen­
to, assim como "a importância" e "a liberalização".
Q!ianto à pressuposição, podemos notar que ela é muito
potente, pois induz a certos implícitos e a uma conclusão:
(1) o crescimento estaria de alguma maneira obstruído; (2)
ele buscaria apenas se desenvolver; (3) existiriam, então,
amarras, "freios" ao crescimento - e é isso o que seria preciso
demonstrar -; é necessário reformar o país para lhe permitir,

15 Jean Dubois (org.) Dictionnaire de linguistique et des sciences du /angage. Paris, Larousse, 1999, o. 100.

58
O QUE NOMEAR QUER DIZER

enfim, tomar a forma e a envergadura que ele tem, de algu­


ma maneira, em potência.

2.2 Nomear os atores

Um outro meio de dar um sentido implícito ao aconte­


cimento reside na maneira de nomear os atores e, mais pre­
cisamente, no que diz respeito aos acontecimentos conside­
rados aqui, de nomear os defensores das e os opositores às
"reformas". Uma comparação das diferentes maneiras de
nomear os atores, segundo os jornais e nos mesmos perío­
dos, permite revelar não somente a posição de cada jornal
em relação às propostas governamentais e aos outros jornais,
mas igualmente as escolhas discursivas operadas por eles.
Esses elementos quantitativos são apresentados em porcen­
tagens,1 6 a fim de permitir uma comparação não distorcida
pelo número variável de artigos.
Seguem as denominações dos atores17 levantadas no
jornal Le Figaro:
- 30 ocorrências em 1 995: ferroviários 30%, funcioná­
rios públicos 27%, grevistas 23%, protegido 13%, ci­
dadão 3%, batalhões da função pública 3%;
- 53 ocorrências em 2003: educadores 38%, "profes" 1 1 %,
grevistas 11 %, funcionários públicos 19%, privilegiados

16 Porcentagens de ocorrências de uma palavra numa lista produzida pelo levantamento das denominações mais frequentes no
corpus que compreende 184 artigos, isto é, a exaustividade dos artigos de opinião para cada um dos jornais considerados, du­
rante o período dos movimentos de 1995 e 2003.
17 Assim que uma denominação é encontrada em uma publicação, ela é procurada nas outras.

59
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO N EOLIBERAL NA MÍDIA

4%, militantes 4%, contestatários 2%, manifestantes


2%, aristocratas 4%, cidadão 2%, ferroviários 4%.

Por reagrupamento, 73%, em 1995, e 79%, em 2003, das


ocorrências do Figaro designam os atores por sua profissão
ou seu estatuto. Essas denominações representam uma re­
dução dos atores a seu estatuto tanto quanto uma apresen­
tação parcial e enviesada de suas reivindicações (comparar
cidadão18 e grevista), porque elas dão a entender que as rei­
vindicações são corporativistas.19 Entre esses termos, alguns
estigmatizam os atores segundo seu estatuto real ou fanta­
sioso (funcionários públicos, privilegiados, aristocratas), outros
os marginalizam (contestatários, manifestantes, militantes). A
nomeação "profes" em 2003 se associa ao processo de fami­
liaridade e ironia. Le Point utiliza denominações parecidas
para nomear os atores, segundo a profissão ou o estatuto,
mas acrescenta nomeações ligadas à sua "capacidade de in­
cômodo" (duas ocorrências de mestres cantores em 2003). O
conjunto dessas denominações permite, então, condenar os
opositores e, sobretudo, não evocar o verdadeiro motivo de
suas ações.
O que poderíamos chamar os "não atores" são pouco
nomeados; quando o são, eles são logicamente designados
como não participantes do movimento ou como vítimas;
encontramos no jornal Le Figaro, em oposição aos primei­
ros, as denominações seguintes:

18 A única ocorrência de "cidadão" no Figaro em 1995 é a seguinte: "o cidadão inconsequente"


19 Relacionado ao conjunto do corpus de 1995, o número de ocorrências de "ferroviários" e "funcionários públicos" é muito espe­
cifico do Figaro. O cálculo estatístico do "intervalo reduzido" para essas palavras é de 2,8 e 2,5 (estima-se que um termo que
alcance o índice 2,5 seja 'muito significativo" para definir o posicionamento de uma publicação).

60
O QUE NOMEAR QUER DIZER

- 7 ocorrências em 1995: usuários (3), expostos (3),ví­


timas (1);
- 2 ocorrências em 2003: usuários, funcionários públi­
cos não grevistas.

As ocorrências dos "não atores" estão ausentes no jornal


Point, o que confirma o foco do jornal sobre os atores.
No outro extremo do que os jornalistas chamam "o ta­
buleiro de xadrez" político-midiático, as denominações uti­
lizadas pelo jornal L'Humanité apresentam-se assim:
- 17 ocorrências em 199 5: grevistas 29%,manifestantes
6%, ferroviários 12%, funcionários públicos 12%, ci­
dadãos 41%;
- 26 ocorrências em 2003: professores 38%, funcioná­
rios públicos 19%, manifestantes 19%, em greve 4%,
cidadão 8%,ferroviários 12%.

As denominações são menos numerosas e sensivelmen­


te diferentes daquelas do jornal Le Figaro (sobretudo em
1995, com 41% para cidadãos). Pode nos surpreender cons­
tatar que L'Humanitéutiliza, como Le Figaro, denominações
referentes à profissão ou ao estatuto dos atores. Ora, uma
pesquisa qualitativa rápida mostra que um jornalista do Fi­
garo e um jornalista de L'Humanité não ligam as mesmas
conotações a "funcionário público" e "ferroviários". 20 Além

20 Por exemplo, em 1995, "funcionário público", nomeação aparentemente neutra, está oposta, em Le Figaro, a "assalariado": "o
alinhamento, a termo, do regime de aposentadoria dos funcionários públicos sobre aquele dos assalariados" CTS/ll/1995): o
funcionário público é, além disso, amalgamado aos "descontentes": "É mais do que necessário reviver, por um efeito contagioso,
todos os descontentes. Alternadamente, os estudantes, os funcionários públicos, os ferroviários e as mulheres ocuparam as ruas"
(27/11/1995); e aos "agitadores irresponsáveis": "Os estudantes se criaram em 1968 e os funcionários públicos em 1936, enquan­
to o franco desce e o desemprego cresce" (l/12/1995). Ao contrário, as conotações que o L'Humanité atribui ao termo "funcio­
nário público" são claramente progressistas: "Não, senhor Ministro, os 'excluídos' não pedem as conquistas dos funcionários pú-

61
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

disso, ao contrário do Figaro, todas as denominações que


marginalizam ou estigmatizam os atores estão ausentes,
tanto em 1995 como em 2003 - o que confirma um posicio­
namento diferente. Aqui, o acontecimento é visto do ângulo
da confrontação e da mobilização/determinação dos atores.
A utilização das denominações estatutárias e profissio­
nais pode parecer inevitável, no entanto, uma outra escolha
era possível. As denominações do jornal Le Monde Diploma­
tique, em 1995, não se referem nunca ao estatuto e muito
pouco à profissão (ferroviários 11%), mas referem-se às ações
(grevistas 39%, manifestantes 17%) e aos indivíduos em toda
a sua legitimidade (cidadãos 33%). Em 2003, não somente a
profissão dos atores aparecia uma única vez (uma só ocor­
rência defuncionários públicos), como, ademais, estes não fo­
ram praticamente nomeados (uma ocorrência de cidadãos).
Esses levantamentos mostram que os enunciadores colocam
a informação e seu comentário em um outro plano: o da
definição dos princípios e dos valores ou ainda aquele das
análises e das reivindicações, como indicam os títulos "Mor­
rer no trabalho", "Ciência das pesquisas", "Financiar de ou­
tro modo as aposentadorias".

2.3 Nomear o acontecimento

O mesmo trabalho quantitativo foi efetuado sobre a no­


meação do acontecimento. 21 Como para a nomeação dos

blicos. porque estas conquistas são válidas para todos!" (4/12/1995), "Os ferroviários, os agentes da RATP, os funcionários
públicos fizeram bem de arrebatar a manutenção da aposentadoria após trinta e sete anos e meio de trabalho" (20/12/1995).
21 Ver Guilbert, 2007, p. 31.

62
O QUE NOMEAR QUER DIZER

atores, encontra-se uma forte homogeneidade nos jornais


da imprensa: as ocorrências de reforma e de aposentadoria
acumulam mais de 55% das denominações do acontecimen­
to em 2003 no conjunto de todos os jornais combinados;22 o
termo conflito obtém, por outro lado, menos de 2%. A maior
parte dos jornais e revistas de notícias tem tendência a reto­
mar fórmulas prontas que parecem neutralizadas por sua
utilização constante e repetitiva. Essas formulações, como as
nomeações, não são, no entanto, neutras, mas evidentes: elas
são ideológicas sem ter esse aspecto.
É impossível contabilizar todas as nomeações do acon­
tecimento, porque há numerosas que são implícitas - algu­
mas vezes, é difícil de identificá-las como tais. No entanto,
as denominações comportam sempre um comentário ou
uma avaliação subjetiva; no exemplo que segue, um comen­
tário sobre o tema do arcaísmo permite nomear o aconteci­
mento e os atores e, ao mesmo tempo, dar sentido ao acon­
tecimento:

[ ... ] esta frente desenha os contornos de uma França arcaica


voltada para soluções do tipo italiano (endividamento, infla­
ção, clientelismo) antes do que para soluções do tipo alemão
(negociação social e rigor de gestão). Bastaria que esta/rente
do arcaísmo e do descontentamento se estendesse amanhã até as
decepções do chiraquismo. 23

22 O termo "reforma" é, no entanto, uma especificidade de Le Monde relativamente ao resto do corpus. O cálculo estatístico do
"intervalo reduzido" para esta palavra é de 4,3 (vale lembrar que estimamos que um termo que alcança o índice de 2,5% é
"muito significativo" do posicionamento de uma publicação).
23 Jacques Julliard. "Le come-back des syndicats" [A votta dos sindicatos]. Le Nouvel Observateur, 7/12/1995 [chiraqu·1smo: reme­
te à política de Jacques Chirac (N. da T.)J.

63
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

Para concluir este capítulo sobre as nomeações, eu gos­


taria de acrescentar um elemento suplementar: se a nomea­
ção atribui uma significação implícita, ela tem igualmente
uma visada perfarmativa. Dito de outro modo, o- locutor
tenta constituir, com as palavras, a realidade tal qual ele a
concebe. Ele não visa transformar a própria realidade, mas a
representação dela que faz o leitor: os funcionários públicos
tornam-se "sem emprego" (L'Express), "privilegiados" (Le
Figaro, Le Point) ou "aristocratas" (Le Figaro). Suas ações
perdem seu estatuto de greve ou de manifestações e se trans­
formam em tomada do "país como refém'' (Le Point, L'Ex­
press). Além do mais, e isso reforça sua eficácia enunciativa,
as denominações, como as nominalizações, não são assumi­
das pelo editorialista; elas aparecem em seu texto como ver­
dades evidentes, como se ele lesse etiquetas colocadas sobre
as coisas, os acontecimentos ou os homens.

64
3
A O PI N I ÃO PEN SA Q UE . . .
O U O CAVALO D E TROIA

.f} noção de opinião pública1 é, pelo menos, problemática e


equivocada (ver a Introdução): a natureza de sua existência
é ambígua, tanto para a argumentação utilizada quanto para
o que diz respeito às pesquisas ditas de opinião. 2

3.1 As pesquisas de opinião

Eis o extrato de uma pesquisa do Ifop' para Le Figaro,


datada em 22 de junho de 2010 e intitulada "Os franceses e
a reforma da Previdência", na qual foi apresentada a seguin­
te questão: 3 "Sobre o assunto da aposentadoria, você diria
que o governo é... ?". As respostas propostas eram as seguin­
tes:

- Determinado a manter o sistema de repartição francês.


- Responsável em relação às gerações que virão.

Sobre essa noção de opinião pública, ver Landowski, 1989, e Champagne, 1991.
Sobre as pesquisas de opinião ou enquetes, um trabalho linguístico foi realizado no inicio dos anos 1990 (cf. a revista Mots, n.
23, 1991, "Les discours des sondages d'opinion", coordenado por Jeannine Richard-Zappella, Michel Tournier e Pierre Fiala,
principalmente os seguintes textos: J. Richard-Zappella et ai. "Présentation": J. Richard-Zappella. "Variations interrogatives dans
la question de sondage", pp. 5-18, e "Mobilisation de l'opinion publique par les sondages", pp. 60-75: e P Achard. "La structure
énonciative du discours d'opinion", pp. 39-58.
• Institui Français d'Opinion Publique [Instituto Francês de Opinião Pública]. (N. da T.)
Por falta de espaço para analisar a enquete na integra, apenas a segunda questão será estudada aqui.

65
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLI BERAL NA MÍDIA

- Corajoso em suas escolhas.


- Atento às questões ligadas ao caráter penoso de certos ofí-
cios.
-Justo em suas escolhas.
- Aberto ao diálogo.

Para cada proposição, duas opções possíveis: "Preferen­


cialmente sim" e "Preferencialmente não". O que mostra
este exemplo?
Primeiramente, podemos observar que os questionados
são intimados a ter uma opinião, não lhes sendo dada a es­
colha de não a ter,pois a opção "sem opinião" não existe. Em
seguida, podemos observar que a enquete está voltada para
as "disposições" do governo, e não para o debate de fundo. 4
Ainda podemos observar que o "acaso" faz com que as
proposições correspondam precisamente aos argumentos
governamentais, os quais estão qualificados positivamente
("determinado, responsável, corajoso,atento,justo, aberto").
Por que não há proposições do tipo: "Você diria que o go­
verno hesita em manter... "?5
Além disso, essas proposições exibem sagrados parti­
lhados6 ("gerações futuras", "sistema de repartição", "justi­
ça"... ). Em resumo,a enquete coloca-se sobre o terreno mo­
ral, orientando as respostas.
O encadeamento das questões é igualmente interessan­
te: se ponderamos, na primeira proposição, que "o governo

4 É um traço 1ornalistico. Cf. François Demers. "De certains 'raccourcis' mass·médiatiques comme 'argument politique"', Hermes,
n. 16, Argumenta/ians et Rhétoriques li (capitulo IV: "Rhétorique et argumentations dans la communication politique"), 1995.
Os psicólogos sociais mostraram que é maisfácil dizer "�m" que "não", e mais ainda se começamos dizendo ·�m". Ver Breton, 1997.
Ver "A dupla dissimulação", no Capitulo 1.

66
A OPINIÃO PENSA QUE . OU O CAVALO DE TROIA

está determinado a manter o sistema de repartição" (o entre­


vistador faz a hipótese de que todos os entrevistados sabem
a que corresponde esse "sistema"),7 como não ter a impres­
são de se contradizer se opinar que esse governo não é res­
ponsável em relação às gerações futuras (na segunda propo­
sição)? De fato, o resultado para essas duas primeiras
proposições é relativamente próximo: 61% e 58% de respos­
tas favoráveis. A terceira proposição, direcionada para a "co­
ragem", por ser menos ligada às precedentes, recebe somen­
te 48% de respostas favoráveis.
Nas três últimas proposições, por elas manterem tam­
bém uma ligação entre si, as escolhas dos entrevistados têm,
então, poucas chances de variar, obtendo, respectivamente,
60%, 67% e 70% das opiniões desfavoráveis.
O estudo rápido dessa parte da enquete mostra que a
referência constante à opinião pública nos discursos políti­
co-midiáticos, via pesquisas de opinião, provoca, no míni­
mo, um problema quíntuplo:
- primeiro, o entrevistado não tem nem os elementos
nem o tempo de formar sua própria opinião no mo­
mento em que é interrogado, ele é convocado a dar
sua opinião sobre um assunto que, na maior parte das
vezes, apenas conhece pelo que é dito na mídia;8

O que coloca evidentemente um problema. A propósito dessa hipótese que evade os efeitos de polissemia, ver Jeannine Ri­
chard-Zappella. 'Qu'est-ce qu'un noyau dur7 Ou comment les médias se constituent en tribunal du sens'. ln: Paul Siblot &
Françoise Madray-Lesigne (dir.). Langage et Praxis, Actes du Coloque à Montpellier, 24, 25 et 26 mai 1990. Montpellier, Praxilin­
gue, 1993, pp. 170-179. A autora analisa uma pesquisa de 1988 que demandava, pela primeira vez, para uma amostra represen­
tativa (na forma de questões abertas), uma definição de certos termos do campo político. Por exemplo, "Estado-providência",
"ganhos sociais' e "desregulamentação" receberam, respectivamente, 42%, 10% e 36% de não respostas ("não se pronuncia­
ram"). E não foi divulgado o resultado das respostas "ruins".
8 Podemos nos perguntarse, na melhor das hipóteses, as enquetes não medem apenas o impacto da comunicação politico-midiática
sobre as opiniões dos entrevistados em relação a um assunto dado.

67
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

- segundo, o problema posto é pré-pensado, a pesquisa


não representa, em nenhum caso, nem individual­
mente, nem coletivamente, o que pensam espontanea­
mente os franceses, mas indica, na melhor das hipóte­
ses, apenas a opinião de uma amostra representativa
sobre um ponto de vista preestabelecido (as respostas
propostas);
- terceiro, as, respostas são acumulativas: o questionado
dá sua opinião sobre uma série de proposições (prees­
tabelecidas), escolhendo dentre elas as três possibili­
dades canônicas: "concordo, não concordo, sem opi­
nião" (reduzidas a duas nos exemplos anteriores),
respostas redutoras que aglutinam, necessariamente,
opiniões sensivelmente diferentes, de modo que falar
sobre o que pensa o conjunto dos entrevistados não
tem sentido;
- quarto, há, na concepção e na condução das pesquisas
de opinião, um efeito de ocultação e de eliminação
das particularidades das opiniões individuais, o qtte
cria convergências fictícias; o encadeamento das
questões e das respostas, por exemplo, não é fortuito,
mas proposital;9
- quinto e por conseguinte, ao não representar o que
pensam os franceses, a opinião pública das enquetes
não deveria desempenhar em nenhum caso, na de­
mocracia, o papel geralmente atribuído à maioria,
que emerge das urnas e que supostamente dita a po­
lítica de um governo.

9 O exemplo acima mostra bem isso. Seria preciso estudar igualmente, do ponto de vista linguístico, o fechamento das respostas
propostas etc. Sobre esse assunto, ver J. Richard-Zappella. Mots, n. 23, 1991.

68
A OPINIÃO PENSA QUE . OU O CAVA LO DE T ROIA

3.2 A figu ra da opinião

A opinião__ pública, no entanto, tornou-se um objeto de


crença, até mesmo um verdadeiro "oráculo" consultado para
(;.stabelecer uma política de governo. Ela é o objeto de umª_
autêntica devoção por parte de certos jornalistas e homens
políticos e, dado que realmente existe a seus olhos, ela deter­
mina seus dizeres e suas práticas que, por sua vez, validam a
�r.ença na existência de uma opinião pública. Assim, pouco
a pouco, pode-se considerar que a opinião pública se tornou,
para muitos cidadãos, uma crença compartilhada. 10 Acr�di-
. ta-se na Opinião pública como acredita-se na Nação, em
Deus, na Pátria, na Liberdade etc. �mprestamos uma exis­
tência material a uma ideia, mesmo que essa materialidade
exista apenas nas palavras: ela é uma "realidade discursiva",
assim como a Nação, Deus, a Pátria, a Liberdade etc. tam­
bém o são. Posto que a Opinião adquiriu uma existência
discursiva e se tornou um sagrado mostrado (ver o Capítulo
1), o analista não pode não levá-la em conta - ainda mais
porque tal crença se traduz, nas práticas dos atores, por meio
de discursos e atos.

3.2.1 O sentido da opinião

Parece, assim, útil distinguir duas formas de utilização e


de atitudes perante a opinião pública. A primeira, como vi­
mos, se quer científica e concerne às pesquisas de opinião. A
segunda corresponde à atitude de certos jornalistas e ho-

10 Essa crença não é, certamente, nova, mas podemos considera rqueas pesquisas de opinião creditaram "cientificamente" suaexistên·
eia. Atribuímos, geralmente, a aparição da opinião pública ao Iluminismo e, mais precisamente, a Voltaire, no caso Jean Calas.

69
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

mens políticos que se proclamam porta-vozes da Opinião e


que consideram, seriamente, possuir "o sentido inato da opi­
nião pública". 11
Os homens políticos e os jornalistas, em virtude dessa
clarividência, arvoram-se, geralmente, em verdadeiros juízes
das enquetes: tal pesquisa é fiel ou não à "realidade" que so­
mente eles conhecem. Landowski, que estudou essa questão
de um ponto de vista semiológico, acrescenta que existe,
aliás, uma assimetria comprovada entre o grupo dos "porta­
vozes da opinião" e o grupo dos "pesquisadores", isto é, há
uma "proeminência, em termos de credibilidade1 do discurso
de autoridade sobre o discurso experimental". 1 2
Verdadeiros alquimistas da comunicação, os "porta-vo­
zes", como os "experimentadores", conseguiram transmutar
a "opinião" fictícia em uma personagem real antropomorfa:
dotada de características humanas, a opinião pensaria, acre­
ditaria, se indignaria, seria tomada pelo entorpecimento, por
melancolia, cólera, cansaço etc.
Aqui está um exemplo, certamente carregado de ironia,
no qual estão entremeados resultados de enquetes e "intui­
ções" editoriais:

A queda das vendas no varejo no mês de outubro, a mais es­


petacular já registrada, apesar das explicações pontuais (os
atentados, a clemência climática), recobre exatamente a queda
da popularidade dos dirigentes políticos (a mais espetacular etc. )
e a opinião dosfranceses sobre eles mesmos (cinzenta), mas também

11 Jean de Coquet. "Le sens inné de /'opinion publique" [O sentido inato da opinião pública]. Le Figaro, 10/10/1978, citado em
Landowski, 1989, p 22.
12 Landowski, 1989, p. 35.

70
A OPINIÃO PENSA QUE . OU O CAVA LO DE TROIA

o aumento do desemprego, o que nos faz duvidar da realida­


de de umfenômeno depressivo, de algum modo, psicossomático. 1 3

Fazer desse ser fictício uma personagem real acarreta


numerosos problemas para o filósofo, para o analista de dis­
curso, mas também para o cidadão. Qµal é o objetivo desse
antropomorfismo? Como essa personagem mítica contem­
porânea é utilizada para persuadir? Certamente, trata-se,
com frequência, de um argumento de autoridade emprega­
do para apoiar um discurso político ou um comentário edi­
torial, mas essa resposta é suficiente? Tal estratagema cobre
todas as visões e utilizações possíveis da opinião?
A Opinião tendo (quase) forma humana é substituída,
de bom grado, por outros termos equivalentes nos jornais.
Aqui estão as ocorrências, por exemplo, de 1995: a/uma opi­
nião, (as) opiniões, a Opinião, a/uma enquete, (as) enquetes,
os franceses, francês/francesa, a França, o/nosso país, a na­
ção, os cidadãos, nossos concidadãos, a/uma maioria de/dos.
No exemplo a seguir, quando se substitui "os franceses"
por "a opinião pública" (claro, modificando a pessoa grama­
tical do verbo), nota-se que o sentido do enunciado não é
alterado em nada, o primeiro é bem utilizado no sentido do
segundo: "Osfranceses descobriram a extensão das reformas
a serem realizadas com urgência". 14
Uma apuração precisa, datada em 1995, mostra que
L'Humanité, mas também Le Figaro, Paris-Normandie e, em

13 Gérard Dupuy. "Vague à l'âne" [Vazio da alma]. Editorial, Libération, 11-12/11/1995.


14 Pierre Pinson. "Prise de conscience" [Tomada de consciência] Editorial, Paris-Normandie, 19/12/1995.

71
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA M ÍDIA

menor medida, L 'Expansion usam com grande frequência o


termo "opinião", e seus equivalentes, para legitimar seu di­
zer. Se Le Point e Le Monde estão na média, o Libération se
situa bastante abaixo. A taxa mais baixa é obtida por Le
Monde Diplomatique, que se refere muito pouco à opinião
pública (três vezes menos que a média geral).
A análise dessa apuração mostra, para além dos núme­
ros e da classificação dos jornais, que, no debate sobre as
reformas, a maior parte dos jornalistas só "fala em nome da
o,.Pinião"; eles utilizam e constituem a figura da opinião. De
fato, a fi_gura da opinião permite que eles não somente enun­
ciem suas próprias opiniões, deixando o que é dito a cargo
da coletividade (ou daquela apresentada como tal), mas
também tentem "ganhar a opinião". Dito de outra maneira,
formar a opinião. Trata-se, então, tanto de constituir a opi-
nião quanto de usá-la para, afinal, obter legitimidade. Para
explicitar essa interdependência, é importante operar uma
outra distinção.

3.2.2 Uma dupla opinião

O termo opinião comporta numerosos sentidos ou


acepções. Distinguirei aqui apenas duas. 15
Em uma primeira acepção, a opinião pública é a figura
à qual se refere a esfera político-midiática - eu a chamo de
"opinião-virtual" ou artefato. Ela constitui um dos vértices do
triângulo interativo junto com a esfera política e a mídia (ver
Introdução). É a essa opinião virtual que se referem os en-

15 Além disso, eu igualmente distingo "a opinião física" (Guilbert, 2007, pp. 134-135). Childs (1965, apud Landowski. 1989) identifi­
cou até urna cinquentena de significações diferentes para o termo "opinião".

72

..
A OPINIAO PENSA QUE OU O CAVALO DE TROIA

trevistadores e os adivinhos. A opinião virtual é uma crença,


uma realidade discursiva- ela existe apenas nas palavras e nas
representações imaginárias designadas por essas palavras. Ela
é ainda um ser fictício vestido de traços antropomórficos: ela
pensa, se entristece, resmunga, não tem moral•..
Em uma segunda acepção, o termo retoma a "opinião
real" ou. "_realia",16 ou, dito de outro modo, as crenças e os
c_onhecimentos compartilhados por uma coletividade dada.
Toda coletividade requer "uma Base Comum que consiste
em um saber socioculturalmente partilhado":17 tais represen­
tações são necessárias para a vida em comum, para a partilha
e para a comunicação. 18 Portanto, não se trata aqui de negar
a existência das ideias compartilhadas em uma coletividade
dada. Ao contrário, são precisamente as crenças e os con4e­
cimentos compartilhados - a opinião real ou doxa - que se
trata de constituir utilizando a opinião virtual e fazendo
acreditar na existência desta última.
O parágrafo seguinte visa explicitar esse pr�cesso e
mostrar que essa primeira utilização da opinião - recorrer à
opinião pública como argumento de autoridade - não é, na
mídia, nem a mais corrente, nem a mais eficaz, nem1 sobre­
tudo, a mais perigosa de um ponto de vista democrático. 19

16 Georges-Elia Sarfati. "De la philosophie et l'aotropologie à la pragmatique: Esquisse d'uoe théorie lioguistique de la doxa"
Cognition, langue et culture, éléments de théor1sation didactique Umversité Paris VII - Grupo de Estudos em Psicolinguistica e
Didática (Geped), 2000, PP 39·S2.
17 Teun Vao Dijk. "Politique, idéologie et discou�·- Semen, n. 21, Univer�té de Besaoçoo, 2006, p. 76.
18 Isso é atestado, desde há muito tempo, pelos linguistas e cientistas que trabalham com a linguagem. Ver, por exemplo, Watzla­
wick, 1978; e Romao Jakobson. Essais de /inguistique générale. Paris, Minuit, 1963.
19 Todorov, durante uma entrevista, respondeu assim a uma questão sobre a "manipulação da opinião": "A mídia é, frequentemente,
colocada a serviço de um fim que não tem nada de nobre: aumentar seu poder [de opinião]. É uma apropriação indevida do llumi·
nismo que nos priva de nossa autonomia. Nós acreditamos ser livres, mas estamos submetidos à propaganda que nos é desti·
lada pelas nossas pequenas telas, por nossos jornais. Eles são pluralistas, mas no interior de um quadro predeterminado".
(Tzvetan Todorov. "Un mouvement d 'émancipation" Magazine Uttéraire, n. 450, 2006, p. 33).

73
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

Ao contrário, é o uso da crença na opinião buscando consti­


tuir os conhecimentos compartilhados que é preponderante.
Dito de outra maneira, é importante compreender a utiliza­
ção discursiva que certos jornalistas fazem da opinião real.

3.3 A constituição de opiniões compartilhadas.

Trata-se de um outro meio de utilizar a opinião que


consiste, para o jornalista, em não falar em seu próprio
nome, mas no nome da opinião, sem, no entanto, nomeá-la
explicitamente. Como o cavalo de Troia de Ulisses, a opi­
nião permite infiltrar-se sem arrombar as mentes. Assim
como o presente recebido pelos troianos não é percebido
como perigoso, a opinião coletiva não é percebida como a
fala do adversário, mas como aquela do senso comum - ela
parece inofensiva. Outra metáfora explicativa, que não é
contraditória com a trapaça antiga, é aquela da encenação: o
jornalista se apaga como locutor (aquele que fala) e toma a
voz do "senhor todo-mundo", uma voz que fala em nome de
todos. Ele esconde, assim, suas próprias opiniões, apresen­
tando-as, sobretudo, como opiniões compartilhadas.
No entanto, no exemplo seguinte, a opinião apresentada
como partilhada é realmente aquela de "todo mundo"? No
Libération: "Essa reforma é indispensável. Todo mundo, ou
quase, o reconhece, com a exceção, possivelmente, da FO;
ou talvez não". 20

• Force Ouvriére [Força Operária] é uma confederação sindical francesa. (N. da T.)
20 Serge July. "Le flip social" [A virada social]. Editorial, Libération, 10/6/2003.

74
A OPINIÃO PENSA QUE . OU O CAVALO DE TROIA

Assim, o jornalista dá a impressão de que não faz mais


do que lembrar o que cada um de nós sabe ou já pensa. No
entanto, a ideia que é emitida é bem pessoal. Ela não pro­
vém de uma verdadeira fala coletiva. Há engano e usurpação
da representatividade, porque o jornalista se apresenta como
porta-voz ou relator de uma opinião coletiva, como se nós
tivéssemos lhe dado a permissão.
Aqui um outro exemplo, no qual a prudência rivaliza
com a clarividência:

Simples e prudentemente, constatamos que, como de hábito,


a equação é de uma simplicidade bem francesa. (1) Todo mun­
do está de acordo em considerar necessária uma reforma, única
capaz de salvar um sistema de aposentadoria por redistribui­
ção em perigo evidente. (2) Cada um está de acordo em que
essa reforma se aplique aos outros, claramente privilegiados,
mas não a si mesmo, futuro condenado da aposentadoria. 21

Essa forma de apresentação coloca um duplo problema.


Um problema "epistêmico" em primeiro lugar: o autor do
artigo precisa a fonte de avaliação ("todo mundo","cada um'',
"nós") que, por definição, ele não conhece. Como poderia
conhecer,além do mais,o que "todo mundo" sabe,considera?
É evidentemente impossível conhecer a opinião de "todo
mundo". 22 A não ser que "todo mundo" retome os realia ou
conhecimentos compartilhados por todos os indivíduos de

21 Pierre Georges. "Au plus malin" [Ao mais astuto]. Crônica, Le Monde, 13/5/2003.
22 Por isso a existência das pesquisas de opinião. O leitor pode consultar, acima, as dúvidas formuladas a propósito da aferição da
"opinião" pelas pesquisas.

75
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA M ÍDIA

uma comunidade dada (do tipo: "a Terra gira em torno do


Sol"). Essa segunda hipótese - segundo a qual, com seu
"todo mundo", o editorialista se refere à opinião real, e ele
incluído nela - provoca, então, um outro problema.
Esse segundo problema pode ser qualificado de "ético".
De fato, quando os editorialistas apresentam suas próprias
ideias como conhecimentos compartilhados (a hipótese
mais verossímil), eles realizam um golpe. Não somente fa­
lam em nosso nome sem nossa permissão, como apresentam
uma opinião comum ou um conhecimento "compartilhado"
que não sabem se é verdadeiro ou não. Os fatos - que, como
se diz, são teimosos - mostram, aliás, que milhares de pes­
soas que se manifestaram nas ruas em 2003 (ou em 1995,
2006, 2010), e que são, igualmente, elementos desse "todo
mundo", não compartilham essa opinião positiva sobre as
reformas da aposentadoria. No entanto, foi essa opinião po­
sitiva que o jornalista emprestou a "todo mundo".
Compreende-se bem por que o articulista usa esse pro­
cedimento: essa forma de apresentação confere muito mais
autoridade a suas opiniões ("necessidade de reformas", "sis­
tema de distribuição em perigo", "justiça dessa reforma") do
que se ele escrevesse "eu penso que essa reforma é justa, ne­
cessária... ". Contudo, há mais. De um ponto de vista geral,
essa formulação não permite ao jornalista apenas fazer uso
da crença na opinião pública para validar "suas" ideias; ela
permite, ademais, mascarar sua singularidade e constituir es­
sas ideias como opiniões compartilhadas. Apresentar uma
opinião pessoal como uma opinião compartilhada é o meio
discursivo empregado pelo jornalista para mascarar sua opi­
nião pessoal e para a convertê-la em opinião compartilhada,

76
A OPINIÃO PENSA QUE . OU O CAVALO DE TROIA

isto é, para criar uma nova realia, uma nova doxa. Dito de
outro modo, a opinião, assim apresentada e assim carregada
da autoridade de uma voz coletiva, não tem mais o aspecto de
uma opinião subjetiva. Ela se torna uma evidência, algo ób­
vio, um senso comum.
Ainda é preciso acrescentar um outro fator não despre­
zível a esse procedimento: a repetição midiática. Ela é uma
grande força de construção das evidências: "Em nossas so­
ciedades midiáticas, repetição vale demonstração". 23 A repe­
tição é tão característica e constitutiva do discurso neoliberal24
que P. Bourdieu lhe conferiu um nome: "envelopamento
contínuo". 25 Ela é constitutiva no sentido em que transforma
(constitui) as opiniões "individuais" vindas da ideologia neo­
liberal em conhecimentos compartilhados e em consenso, por­
tanto, em evidência; além disso, ela acaba por inibir todo
pensamento crítico.
Desde os movimentos de 1995 e de 2003, as evidências­
que-cada-um-conhece sobre a aposentadoria foram tão repe­
tidas na mídia que paulatinamente se constituíram em evi­
dências. Pudemos constatar o resultado em 2010: qual jornal
teria ousado sustentar que a "reforma" da aposentadoria não
era "necessária"26 ( ver Ô!iadro 3)? O debate se deslocou para
o tipo de reforma a adotar.

23 Ramonet, 2001, p. 25.


24 Ver Introdução. Segundo Passet (2000, p. 89), "a repetição imperturbável, de dois séculos, dos mesmos argumentos lhes confere a
força das evidências longamente lapidadas".
25 "Imposta por um efeito de enve/opamento contínuo, esta doxa acaba por se apresentar com a força tranquila do que é óbvio"
(Bourdieu, 2001, p. 90). Encontramos a mesma ideia em Ramonet (2001, p. 23): esta "doutrina que, insensivelmente, envolve
todo raciocínio rebelde, o inibe, o paralisa e acaba por sufocá-lo".
26 Como prova dessefuncionamento trago a nominalização (ver o capitulo 2): "A necessidade da reforma" utilizada por (quase) todos
os atores.

77
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

Qyadro 3
O envelopamento contínuo em 2010

A reforma da aposentadoria: Urgente, única, inevitável27


A grande mídia aquece a voz. Neste outono, o governo deveria
submeter ao parlamento a " grande reforma" da aposentadoria, a fim de
" salvar" o regime de redistribuição. Mas a batalha social, política, e mi­
diática já começou.
" Urgência" da reforma
" Há urgência!", exclama Alain Genestar no France Info, em 20 de
fevereiro de 2010. É " uma reforma inevitável", insiste Patrick Bonazza
em Le Point de 25 de fevereiro. " Incontornável", diz Jean-Pierre Bel,
" indispensável", acrescenta François Ernenwein, " inelutável", replica
Jacques Camus. 28 Para Alain Duhamel, "a reforma da aposentadoria é a
mais urgente, a mais necessária" (RTL, 23 de março de 2010). Mesmo
ponto de vista de Luc Ferry: " É vital, e se ainda há uma reforma a se
fazer, é esta. É preciso notar que trabalharemos mais" (lejddfr, 26 de
março de 2010).

Tal procedimento de "utilização/constituição da doxa"29 é


então este: o enunciador lança mão de uma opinião apresen­
tada como compartilhada a fim de constituir uma nova (e real)
crença compartilhada. Dito de outro modo,ele usa a crença na
opinião pública virtual para ajudá-lo a criar,peçaporpeça, uma
opinião realmente compartilhada ou doxa.
Esse procedimento - consciente ou não30 - é complexo,
pois se a opinião pública é virtual, ela é igualmente, como

27 Denis Perais e Mathias Reymond. "La réforme des retraites ? Urgente, unique, inévitable". Acrimed.org, 3/5/2010. Disponível em
<https://www. acrimed.org/La-refonme-des-retraites-Urgente-unique-inevitable>. Acesso em 27/1/2020.
28 Respectivamente, La Nouvelle République du Centre-Oeust, 16/6/2009; La Croix, 22/3/2010; e La République du Centre,
16/6/2009
29 Para uma apresentação mais completa desse procedimento, ver Guilbert, 2007.
30 A questão não é essa. A Análise de Discurso mostrou, há alguns anos, que os gêneros de texto, como o editorial ou o artigo de opi­
nião, impõem fonmas de escritura particulares. No entanto, a parte individual não é completamente negada: a utilização/constitui-

78
A OPINIÃO PENSA QUE ... OU O CAVA LO DE TROIA

crença compartilhada,uma opinião real. Ela existe aos olhos


dos que nela acreditam. Há uma relação dialética ou uma
inter-relação nesse procedimento: é frequentemente difícil,
até mesmo impossível, distinguir a constituição da opinião
real e a utilização da opinião virtual. É,aliás, o que dá força
de evidência a esse procedimento. Se pudéssemos distinguir,
com clareza, o "todo mundo" inventado do "todo mundo"
utilizado, não teríamos o efeito de evidência. É relativamen­
te artificial tentar fazê-lo.
Acrescento que, mesmo quando a opinião real é clara­
mente empregada,por exemplo,no caso da retomada de um
estereótipo, essa utilização não é apenas uma simples reto­
mada carregada de autoridade coletiva, mas igualmente o
reforço de uma opinião compartilhada e,certamente,o índi­
ce de uma tentativa de constituição de uma nova opinião
compartilhada; isso pode ser facilmente constatado no em­
prego e na deturpação dos provérbios ou das formas prover­
biais: 31 "Qµem, por fim, decidirá o sucesso ou o insucesso?
Esse governo renovado e pronto para a batalha? Ou o cida­
dão inconsequente que vai querer o leite e o dinheiro do lei­
te?". 32 Ou na retomada de estereótipos: ''A alucinante greve
dos transportes públicos que se fortalece,o risco de extensão
do conflito a outras atividades, se ousamos dizer, do setor pú­
blico,remetem à lembrança dos conflitos do ano passado". 33
"Se ousamos dizer", em incisa, é uma glosa ou um co­
mentário da palavra atividades que se insere na nominaliza-

ção da opinião não é desenvolvida da mesma maneira, nem nas mesmas proporções, segundo os diferentes jornais (ver acima
"O sentido da opinião").
31 Guilbert, 2007, pp. 193-206).
32 Claude lmbert. "La confiance" [A confiança]. Editorial, Le Point, 11/11/1995.
33 Michel Schifres. "Quelques idées simples" [Algumas ideias simples]. Editorial, Le Figaro, 30/11/1995.

79
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

ção "atividades do serviço público", rompendo a unidade


linguística (ver o Capítulo 2). É a relação de determinação
entre "atividades" e "serviço público" que está em foco. O
subentendido irônico aqui é a retomada de um conheci­
mento compartilhado (aceito ou não, ele permanece um co­
nhecimento compartilhado) relativo à "preguiça dos funcio­
nários públicos": "a palavra atividades não é adequada
quando falamos do setor público", parece dizer esse comen­
tário. Ele faz eco, então, à menção de um outro conheci­
mento compartilhado, "conflitos de anos anteriores"; o que a
significação não explicita é que o movimento é duplamente
ilegítimo: de um ponto de vista social, é inconveniente; de
um ponto de vista histórico, é anacrônico e arcaico.
O que chamamos de opinião pública não é a opinião
dos franceses sobre um assunto em particular, mas quer a
adesão ou não dos pesquisados às respostas preparadas pelos
institutos de pesquisa, os quais são muito próximos do po­
der político, quer a opinião pessoal de um homem político
ou de um jornalista, formulada como uma opinião coletiva.
Por meio desses dois tipos de encenação ou verbalização da
opinião, por meio de tais retomadas da Opinião, é ainda e
sempre a opinião real que é visada, isto é, a opinião de cada
cidadão. O objetivo é modificar as opiniões individuais e as
representações compartilhadas, impondo uma determinada
visão de mundo, sem nenhum debate democrático.

80
4
UM " QUADRO NATURA L"

O banco, ou a companhia, é que assim quer, in­


siste, exige [ ... ] .
- É, mas o s bancos são dirigidos por homens.
- Não, vocês estão enganados, completamente
enganados. Um banco é mais do que um homem.
[ ... ] É um monstro, sim senhor. Os homens fize­
ram os bancos, mas não os sabem controlar. [... ]
O monstro não é homem, mas pode arranjar
muitos homens para fazer valer a sua vontade.
As vinhas da ira, de J. Steinbeck*

O "d_iscurso neoliberal", como todo discurso ideológico,não


se dá a ver como discurso partidário (cf. Capítulo 1). Ele
busca a evidência. Em outros termos, ele não assume o as­
pecto prosélito que esperaríamos e se apresenta como um
discurso apolítico ou não ideológico: ele seria tão somente a
expressão_ do bom senso e da racionalidade. Em resumo, ele
se "desideologiza". 1 Dentre os procedimentos utilizados
para alcançar isso, o que vou apresentar agora necessita al­
gumas explicações preliminares.

Trad. Herbert Caro e Ernesto Vinhaes. Rio de Janeiro, Record, 2013. (N. da R.)
"Assim o liberalismo, como teoria e sobretudo como ideologia, é apresentado mais frequentemente como o ponto de vista "agora
realista" sobre o mundo, como um olhar "desideologizado" (Breton, 1997, p. 17).

81
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA M ÍDIA

4.1 Quadros primários

Minha hipótese é que o discurso neoliberal (DNL) se


apresenta como um "quadro primário natural", segundo a
terminologia de E. Goffman. 2 Esse autor indica que em
toda situação, sobretudo quando ela é nova, inabitual - e,
acrescento, complexa -, nós nos perguntamos: "O que se
passa aqui?". Com esse questionamento, buscamos atribuir
um sentido à nossa percepção da situação. As respostas que
fornecemos a essa pergunta fundamental são chamadas
quadros "primários" porque elas "não fazem referência a uma
interpretação prévia ou "originária"3 e porque esses quadros
correspondem a uma distinção primordial. Existem dois
quadros primários: ou percebemos a situação como não ten­
do nem causa nem intenção humanas, ou analisamos a si­
tuação como sendo "conduzida" socialmente ou como tendo
uma origem humana.
Por exemplo, atribuímos geralmente à situação "avalan­
che" um quadro natural (excesso de neve). A maioria das
catástrofes naturais (embora a percepção dessas catástrofes
tenha evoluído com a "crise ecológica") e das doenças reme­
te ao quadro natural de percepção da realidade. Por outro
lado, à situação "vírus de computador" aplicamos um quadro
social ou conduzido (alguém mal-intencionado concebeu
esse vírus que entrou no meu computador). Percebemos ge­
ralmente os abastecimentos como muito importantes ou
insuficientes, os acidentes de trânsito, as guerras e os confli-

Erving Goffman. Les cadres de /'expérience. Paris, Minuit, 1981 [1974].


Idem, p. 30.

82
UM "QUADRO NATURAL"

tos, entre outros eventos, como consequências de decisões


tomadas pelos homens.
Há, no entanto, casos em que ficamos na dúvida: para
situações como "incêndio na floresta" ou "acidente ferroviá­
rio", esperamos um complemento de informação para poder
decidir. É preciso acrescentar que a definição desses quadros
é cultural: ela varia segundo as épocas e as civilizações - por
exemplo, as "curas milagrosas".

4.2 A manipulação dos quadros

Ocorre igualmente que um acontecimento seja "mal en­


quadrado4" - erros de enquadramento, portanto. Pode-se,
por exemplo, estimar com toda boa-fé que tal acidente este­
ja ligado ao destino - logo, quadro natural -, quando, na
realidade, foi um conjunto de circunstâncias, nas quais in­
tervêm os homens, que o tornou possível. Mas, por outro
lado, e com toda má-fé, pode ser vantajoso e lucrativo deixar
pairar a dúvida sobre o aspecto conduzido ou não de um
acontecimento. Pode-se deixar pensar que o quadro de per­
cepção adequado para perceber "a queda do muro de Berlim"
é da ordem da fatalidade ou de um "fatalismo histórico". A
metáfora do "fruto maduro demais que cai sozinho" é então
uma maneira de apresentar esse acontecimento como um
quadro natural.

4 Idem, p. 317.

83
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

4.2.1 A ''naturalidade" do DNL

É essa forma de apresentação que o DNL utiliza muito


frequentemente e é, a meu ver, uma de suas características
principais: ele substitui por um quadro natural um quadro
conduzido no qual as práticas humanas, econômicas e neo­
liberais se inscrevem necessariamente. Ao não se afirmar tal
como realmente é, ele é mais eficaz de um ponto de vista
argumentativo: ele pode então se apresentar como o destino
da História, como a única alternativa histórica, 5 e se livrar
sobretudo dessa noção "arcaica" de ideologia.
Assim, Viviane Forrester observa: "[ ... ] todas [as lógicas
desdobradas] parecem participar do mesmo campo, tomar o
estado atual das coisas por seu estado natural, pelo ponto
mesmo onde a História nos teria esperado". 6 E Pierre Bour­
dieu acrescenta: ''A visão neoliberal [ ... ] consegue se apresen­
tar como evidente, como desprovida de toda alternativa". 7
A manipulação dos quadros primários é, pois, uma es­
tratégia preciosa para os defensores do DNL. Os enquadra­
mentos naturais conferem "três características essenciais"
aos discursos nos quais eles se inserem:

(i) sendo naturais, eles parecem verossímeis, (ii) não tendo


"causa nem intenção", eles parecem neutros, (iii) determina­
dos por um universo "puramente físico", parecem inevitáveis.

"La nouvelle alternative: Libéralisme ou barbarie" (Bourdieu, 1998, p. 32). Ver no Capitulo 6, o enquadramento por alternativa enca­
minha, por deriva manipuladora, a 'falsa alternativa".
6 Forrester, 1996, p. 27.
Bourdieu, 1998, p. 34.

84
UM "QUADRO NATURAL"

São os traços da evidência [ ... ]: a certeza, a neutralidade, a


inevitabilidade. É possível jogar com os quadros apresentan­
do um discurso de maneira racional com todas as garantias
aparentes dos índices de credibilidade: o ato de crença "na
evidência da coisa mostrada", em sua naturalidade, fornece
um quadro natural à situação.ª

Eis aqui um primeiro e curto exemplo de manipulação


do quadro primário: "Mergulhados numa globalização
cega e sem regulação, sofremos os 'humores' do tempo". 9 O
enunciado responde à pergunta goffmaniana "O que se
passa aqui?". A manipulação joga não com uma substitui­
ção franca, mas com uma apresentaçãofalaciosa da situação.
O articulista apresenta um fenômeno conduzido ("uma10
globalização econômica") como um evento natural ("cego",
portanto, sem intenção) e não conduzido ("sem regulação")
que se impõe a todos como o clima ("os humores do tem­
po"). Vemos, aliás, que o agente - aquele que é descrito
como estando na origem da ação, aqui "os humores do
tempo" - não é nem um ser humano, nem uma organização
humana. Os homens (nós = os humanos) nada fazem a não
ser sucumbir aos elementos. Ora, a globalização não é nem
natural nem autocriadora. 11 É, pois, o sujeito essencial, mas
"altermundista", da regulação da globalização da economia
que é ocultado aqui.

8 Guilbert, 2007, p. 184.


9 Claude Allégre. "Pour une société de la confiance" [Por uma sociedade da confiança]. Artigo, L'Express, 5/6/2003.
10 O determinante indefinido uma é igualmente muito revelador aqui.
11 Lebaron, 1998.

85
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA M ÍDIA

Qpadro 4
Origem do laissez-jaire

O termo teria sido inventado no século XVII por François Qpes­


nay, mas é apenas no século XIX que uma teoria se desenvolverá sob o
nome de laissez-faire, graças a um contexto histórico facilitador. 12
O dicionário Littré data a expressão no século XVIII e a "atribui
particularmente" a Gournay - a exemplo de Dupopt de Nemours (no
Dicionário de economia política de Guillaumin): "ele [ ...] conclui que não
se deveria jamais sobretaxar nem regulamentar o comércio; ele extraiu
daLeste axioma: laissezfaire et laissez passer [deixe fazer e deixe passar]".
A noção de laissez-Jaire é uma demonstração da circularidade e da
racionalidade aparente do DNL. A partir do momento que aceitamos a
premissa da "naturalidade" do mercado, é efetivamente "racional'"'deixar
o mercado fazer". Keynes dá a seguinte definição de laissez-jaire:
Doutrina que, quaisquer que sejam os fundamentos - divinos,
científicos ou naturais -, afirmava que o campo da ação do Estado devia
ser estritamente definido e que a vida econômica devia ser deixada, o
menos regulamentada possível, aos talentos e ao bom senso de cidadãos
privados movidos pelo honrado objetivo de fazer seu caminho na vida. 13
Polanyi assimila mercado autorregulador e laissez-jaire: "Simples
pendor por métodos não burocráticos em seu nascimento, [o liberalismo
econômico] se desenvolveu em uma verdadeira fé na salvação secular do
homem graças a um mercado autorregulador".14
O liberalismo, do qual o laissez-jaire é o princípio, é proveniente de
crenças: como doutrina filosófica, apoia-se nos economistas que repre­
sentam o "pretexto científico" e naquilo que eles "supostamente teriam
dito".15 Mas esses argumentos estão ausentes, segundo Keynes, dos es­
critos de Ricardo, Smith ou Malthus.

12 Keynes, 1926, pp 7-8; e Polanyi, 1944, pp. 184-185.


13 Keynes, 1926, p. 8.
14 Polanyi, 1944, p. 184.
15 Keynes, 1926, pp. 10-15.

86
UM "QUADRO NATURAL"

4.2.2 "A. tempestade das subprimes"

O segundo exemplo tem por contexto sócio-histórico a


"crise financeira" do outono de 2008. O que está em jogo
então concerne precisamente à regulação, isto é, à condução
da economia e das finanças: a questão diz respeito à defini­
ção do quadro primário no qual evolui a economia. Se o
neoliberalismo preconiza deixar fazer ao mercado, alguns se
permitem pensar que é justamente porque se deixou ao
mercado fazer, desde o questionamento da paridade ouro­
dólar,16 que "a bolha financeira explodiu". 17
No entanto, não foi essa a questão tratada pela maioria
dos meios de comunicação. Muitos preferiram apresentar o
acontecimento como um quadro natural, negando ou ocul­
tando assim o papel dos atores bancários e financeiros na
catástrofe, como foi o caso de Henry Paulson, um dos prin­
cipais atores do "drama" enquanto secretário do Tesouro
americano, que declarou: "Os tempos estão difíceis para nossos
mercados financeiros". 18 O que é um puro enquadramento
natural (e falacioso) da situação.
Eis como Le Monde, por sua vez,19 considera a "crise fi­
nanceira" em seu lide: "Um ano depois de ter se levantado
nos Estados Unidos, a tempestade das subprimes arrasa o sis­
tema bancário mundial e ameaça a economia real". 20

16 Delazay & Garth, 1998.


17 Ver o "Manifeste d'économistes atterrés" [Manifesto de economistas aterrorizados], 2010.
18 Informativo Agência France-Presse, 17/9/2008, destaque meu.
19 Essejornal foi escolhido aqui porque suas explicaçõesme parecem emblemáticas dasdeclaraçõescontemporâneassobrea "crise" e
igualmente por sua reputação de veiculo sério.
20 Pierre-Antoine Delhommais, Claire Gatmois & Anne Michel. "La crise en questions" [A crise em perguntas]. Le Monde, 17/9/2008.

87
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

O título do artigo é claramente uma interrogação "gof­


fmaniana": "A crise em perguntas" ou "O que se passa aqui?".
O lide é revelador da orientação da percepção: a escolha das
, .e
meta10ras ("a tempestade se 1evanta" , "arrasa" , depo1s
· "amea-
ça") e da forma passiva ("ter se levantado") mostra uma per­
cepção natural e não conduzida do acontecimento. O artigo
coloca então, desde o início, que a crise é o resultado da
força das coisas, um fenômeno "natural" que era imprevisível,
contra o qual não podemos fazer muita coisa. O artigo pros­
segue assim:

A crise é, de uma maneira mais geral ainda, a consequência


dos excessos observados no mercado de crédito nos Estados
Unidos. Nos anos 1990, a política monetária muito flexível -
isto é, das taxas de juros muito baixas, que tornaram o crédi­
to muito barato - conduzida pelo presidente do Banco Cen­
tral americano (FED), Alan Greenspan, tinha levado à
formação de uma bolha especulativa na Bolsa de Nova York,
notadamente sobre os valores da internet. Esta acabou estou­
rando na primavera do ano 2000.

Podemos notar claramente uma ruptura: a condução


aparece enfim ("excessos", "política monetária", "conduzida",
"levado à"). Mas, por um lado, o aspecto natural não desapa-
receu comp1etamente ("a cnse . " , "acabou estourando") e, por
outro, não é a ausência de regulação do mercado que é ques­
tionada, mas o tipo de regulação (flexível demais). Assim,
não se questionam os fundamentos do sistema e da doutri­
na, mas a dose adequada do laissez-faire.

88
UM "QUADRO NATURA�

Eis a segunda pergunta: 21

2. Por que a crise não acaba?


A crise dura porque ela diz respeito doravante ao conjunto
dos créditos, e não mais apenas ao quadro estrito dos créditos
imobiliários de risco americanos. Todos os tipos de créditos
( automóveis , para o consumo etc.) que haviam sido securiti­
zados são a partir de agora atingidos, ou seja, um mercado de
várias dezenas de milhares de bilhões de dólares, muito supe­
rior àquele compartimento apenas das subprimes ( 1.300 bi­
lhões). Da mesma maneira, ela não afeta mais apenas os esta­
belecimentos que haviam concedido créditos imobiliários de
risco nos Estados Unidos. Ela atinge todos os atores finan­
ceiros que investiram, pelo viés da securitização, nos merca­
dos de crédito [ ... ] .

Vemos aqui que a metáfora implícita é da ordem de um


quadro natural que remete a uma doença,um incêndio ("são
a partir de agora atingidos"), uma inundação ("comparti­
mento") que se espalha. Pouco importa a metáfora exata:
trata-se de alguma coisa perigosa, difusa e incontrolável, da
qual é preciso, assim mesmo, tentar se proteger (ver a forma
impessoal da pergunta).
Após ter apresentado, nas perguntas seguintes, toda
uma série de "raciocínios racionais" e números supostamen­
te tranquilizadores,22 o artigo retoma a explicação natural:

21 Esse longo artigo comporta oito perguntas, das quais não tratarei in extenso por falta de espaço.
22 Exemplo: "Um crash [da bolsa de valores] corresponde a uma baixa de mais de 10% de um índice numa sessão. Ora, [...] os
piores episódios de pânico até aqui traduziram-se por baixas relativamente canalizadas a menos de 7%". A noção de crash é
apresentada aqui como uma verdade tisica ou matemática, fazendo da economia uma ciência exata.

89
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

5. Por que o resto do mundo é atingido?


Contrariamente ao que se podia esperar no início, a crise
das subprimes não se limitou ao território americano. "Os Es­
tados Unidos conseguiram exportar seus problemas para to­
dos os lugares do mundo", observa um gerente. O Sr. Sti­
glitz observa que, numa economia globalizada, era ilusório
pensar que a nuvem das subprimes não atraversaria asfrontei­
ras dos Estados Unidos.
A aceleração da globalização financeira, ao longo das últimas
décadas, tornou inevitável esse tipo de contaminação. Todo
choque em um país - a fortiori nos Estados Unidos - se faz
inevitavelmente sentir em todo o planeta. Uma espécie de efei­
to borboleta.

Encontramos as formas passivas e/ou impessoais e o lé­


xico ligado à metáfora da contaminação e das catástrofes
naturais; enquadramento natural da crise mais uma vez. Esse
colapso financeiro poderia, entretanto, ter sido apresentado
de outro modo, escrevendo simplesmente que o mundo in­
teiro conheceu essa "crise" porque alguns banqueiros e atores
financeiros influentes haviam comprado e revendido, de ma­
neira desleal, produtos financeiros não confiáveis.
Um último trecho:

Enfim, de forma mais geral, a instabilidade do sistema bancá­


rio e o temor de assistir a um colapso em cascata de estabeleci­
mentos de crédito pesam sobre o moral de todos os agentes
econômicos. Esses últimos preferem esperar, antes de tomar
decisões, que a tempestade se acalme. Donde um risco de para­
lisia da economia.

90
UM "QUADRO NATURAL"

Esse parágrafo continua na mesma linha, pois, embora


introduza os homens, estes não são nem atores nem "agen­
tes", mesmo econômicos, mas vítimas desse fenômeno "na­
tural". Destacamos aqui o léxico, mais afetivo que racional,
da indecisão ("temor", "pesam sobre o moral", "preferem es­
perar, antes de tomar decisões").
Por meio da apresentação do acontecimento e das pala­
vras que são escolhidas para dar sentido à situação, o quadro
é e permanece aquele de uma economia que escapa ao con­
trole dos homens. Nunca se considera pensar de outro modo
que não seja pelo prisma econômico.
É uma constante, mesmo quando o tema da regulamen­
tação é abordado, como constatamos no lide deste outro ar­
tigo de Le Monde: "O poder público nunca abandonou to­
talmente as finanças. O setor bancário é inclusive o mais
regulamentado! Mas aos bancos centrais lhes faltam instru­
mentos 'antibolhas"'. 23 Uma vez mais, o quadro de raciocínio
econômico não é posto em questão. Bem ao contrário, a úl­
tima frase contém um subentendido prescritivo: /é preciso
inventar novos instrumentos/.
No máximo considera-se, nos meios de comunicação de
maneira mais geral, 24 a necessidade de um enquadramento
mais do que de uma regulação do "sistema". Trata-se de re­
presar a inundação ("natural") mais do que buscar suas cau­
sas (humanas).

23 Yves Mamou. "Le retour de l'État, la solution aux dérapages du marché? Six économistes répondent" [O retorno do Estado, a
solução para as derrapagens do mercado? Seis economistas respondem]. Le Monde, 18/10/2008.
24 A avaliação da crise pelos governos foi mais significativa ainda, uma vez que, para retomar o léxico da inundação, ela levou a acres­
centar novas "liquidezes", em vez de "desidratar o mercado".

91
5
O BOM MODELO

Poucos direitos nos restam a partir do momento


em q{ie submetemos nossos sistemas nervoso e
sensorial à manipulação particular daqueles que
procuram lucrar arrendando nossos olhos, ouvi­
dos e nervos. Alugar nossos olhos, ouvidos e ner­
vos para os interesses particulares é o mesmo que
transferir a conversação comum para uma em­
presa particular ou dar a atmosfera terrestre em
monopólio a uma companhia.
McLuhan1

Todos procuramos dar um sentido para a nossa percepção


do mundo. �� essa necessidade é uma especificidade huma­
na - a consciência de si, do outro e do mundo obrigam a
encQntrar um sentido para a existência -,2 a)._guns de nós
fazemos disso profissão. Assim, o trabalho de articulista ou
d�-�4itor consiste, todos os dias ou todas as semanas, em dar
s�ritido ao acontecil!!.��to ou à notícia.
Para tanto, o capítulo anterior mostrou que os jornalis­
tas usam amplamente os dois grandes quadros primários3
(natural ou social), dividindo os acontecimentos em uma
das duas categorias de acordo com a sua própria "leitura" do

Mcluhan, 1976, p. 91 [Osmeios de comunicação como extensões do homem. 18. reimpr. Trad. Décio Pignatari. São Paulo, Cultrix,
2014. (N da R.)].
Watzlawick (1978, pp. 67-70) fala, para esta operação de "pontuação" ou de "ponto de vista", isto é, o fato de "impor uma ordem" à
"sequência de comunicação", mesmo e sobretudo quando ela parece não a ter: "O fato de ordenar as sequências num sentido ou
outro é o que podemos chamar, sem exagero, de realidades diferentes".
Goffman, 1981.

93
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA M ÍDIA

mundo. Mas outras esquematizações que são convenientes e


podem ser chamadas de secundárias existem. São represen­
tações fixadas mais ou menos inscritas na língua na forma
de "sintagmas lexicalizados" ou de fórmulas prontas, fórmu­
las que, uma vez tão utilizadas e reutilizadas, são polidas
pelo uso e apresentam uma espécie de pátina de hábito e de
evidência inofensiva. Há um duplo intere6se em usá-las:
por um lado, evitar recorrer a explicações mais comple­
xas; por outro, mascarar as reais questões colocadas pelos
oponentes das " re10rmas
1: "
.
Esse princípio, que consiste em colar sobre os aconteci­
mentos da atualidade esquemas preexistentes, não é exclusi­
vo do DNL. O que caracteriza esse discurso, no entanto, é a
escolha ou a seleção desses esquemas: estes pretendem jus­
tificar e reforçar a evidência de tópicas neoliberais.

5.1 A competição

A tópica neoliberal principal, comum a todas as esque­


matizações, é a competição. Não é necessário demonstrar
seu aspecto (neo)liberal. Historicamente, a competição (e a
concorrência, que é sua variante comercial) está no coração
da doutrina: é ela que deve ajustar os preços4 à qualidade do
produto ou do serviço prestado - a competição suposta­
mente baixaria os preços -; é ela que deve permitir a melhor
alocação dos recursos dos indivíduos; é ela também que deve

4 Sobre isso, ver Frédéric Lebaron. "Uma utopia realista". Le savant, /e pofitique et la mondiafisation. Bellecombe-en-Bauges,
Éditions du Croquant, 2003 (coleção Savoir/agir).

94
O BOM MODELO

r1!gular o mercado de trabalho, promover o progresso técni­


co e permitir que cada um dê o melhor de si etc. 5
Mais recentemente,com "o advento" do tema da globa­
lização,a competição,mais do que um "fator de sucesso eco­
nômico", tornou-se uma imposição externa determinante.
Encontramos regularmente na mídia, como um elemento
do quadro geral da globalização, essa ideia de competição
internacional - e sua variante bélica, "a guerra econômi­
ca internacional". Mas os editores parecem preferir6 ou bem
as formas eufemísticas ("o cenário econômico mundial"; "o
mercado mundial"; "à escala mundial"),7 ou bem as formas
implícitas ("a conjuntura econômica"; "a situação econômi­
ca"; "um contexto econômico difícil"; "o peso econômico [da
Europa]"; "as/das realidades econômicas").ª À ideia de ne­
cessidade econômica é acrescentada a de constrangimento e
ameaça à coletividade. Isto é ,. o subentendido de que nós não
temos escolha no mundo em que nós vivemos se quisermos
sobreviver. Pode-se ver como o tópico da "competição inter­
nacional" é então considerado como um cenário natural in­
superável (ver Capítulo 4).
A competição internacional permite a alguns meios de
comunicação e a alguns homens políticos "explicarem" alter-

Mesmo se isso é negado pelos fatos (aumento de preços, estresse no trabalho, desemprego em massa etc.), a crença na virtudeda
competição continua. Watzlawick (1978) mostra muito bem que é difícil abandonar nossas crenças e que as falhas tendem, ao con­
trário, a reforçH1s cornplexificando a doutrina.
A posição dos JQfnalistas sobre o termo "mundialização", em 1995 e 2003, é ambtvaleote: o termo em � é evitado na rnaiona
dos jornais. Encontrei-o respectivamente 16 e 18 vezes - sendo 10 e 12 vezes em Le Monde Dip/omatiql/€ e 3 vezes em Le Nouvel
Observateur que fazem uso critico do termo. No entanto, é o quadro geral de referência encontrado no fundo de todas as ex­
pressões que cito a seguir. Desse modo, pode-se deduzir razoavelmente que, em 1995, como em 2003, o tenno é muito marca­
do, segundo os editores, para ser usado diretamente, daí essas formulações eufemisticas e/ou implícitas.
Expressões encontradas, em 1995 e em 2003, respectivamente em: (1) L'Express; (2) L'Expansion; (3) Le Nouvel Observateur e
Le Point Uornais franceses classificados como de esquerda e de direita. (N. da T.)J.
8 Respectivamente: (1) L 'Express, Le Nouve/ Observateur, Le Point e Le Monde; (2) Le Figaro; (3) Paris-Normandie; (4) Le Point, (5)
Le Point e Le Monde [jornais franceses classificados como de esquerda e de direita. (N. da T.)].

95
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

nadamente a "necessidade" de voltar aos benefícios sociais,


de baixar os "encargos" das empresas, de reduzir os déficits, de
cortar empregos, de realocar empresas para países nos quais
a força de trabalho é excessivamente explorada, de aumen­
tar a receita dos acionistas, de não implementar uma regula­
ção e/ou impostos sobre os mercados financeiros - ou de
demonstrar "a impossibilidade" de fazê-lo por causa dessa
competição -, de recuar a idade de aposentadoria, de vender
empresas nacionais para investidores privados . . .
No entanto, o que é importante do ponto de vista da
evidência do DNL é que essas propostas não são defendidas
exclusivamente pelos quadros dominantes. Não é incomum
ouvir da boca de "pequenos empreendedores", executivos ou
artesãos em particular, durante transmissões radiofônicas,
quando os ouvintes têm a palavra, a justificativa de uma me­
dida governamental neoliberal pelo tópico da "competição
internacional". Como explicar que esses cidadãos, que não
estão diretamente envolvidos nessa competição internacio­
nal, assumam tal discurso?
Para entender isso, é necessário retornar à noção de pe­
rigo ou ameaça incluída na ideia de competição internacio­
nal. Ela deve ser comparada à noção de risco, que é em si um
elemento do aparato doutrinário do liberalismo: de acordo
com um estereótipo liberal bem conhecido, aquele que teve
"sucesso" é aquele que assumiu riscos. 9 Mas, ao contrário

O modelo do sucesso, da "história de sucesso" [success story]. é o homem que assume nscos tanto nos comerciais franceses
quanto nos filmes americanos "realistas", dos Garotos de Ouro [Golden Boys] dos anos 1980 aos "aventureiros das start-ups"
(Le Point, 15/9/2000, "La leçon des choses" [A lição das coisas)) dos anos 1990, em seguida, para os comerciais traders da
década de 2000. Assim, Michela Marzano (Extension du domaine de la manipulation: De /'entreprise à la vie privée. Paris, Pluriel,
2008, pp. 18·23) observa que, diferentemente do herói antigo, o herói moderno, se está disposto a assumir riscos, não está
pronto para o sacrifício: "Quem iria censurá-lo por isso? O problema é que ele não parece ter muito escrúpulo quando se trata
de sacrificar os outros. A dimensão do sacrifício está presente hoje, mas deve-se notar que ela nunca é nomeada em discursos

96
O BOM MODELO

dessa visão encantada, Bourdieu10 vê, em nossa sociedade


totalmente orientada para o crescimento e o consumo, uma
generalização do risco e da insegurança social (precarização
das condições de trabalho,11 participação dos assalariados
nos lucros, crise econômica crônica... ): como se a filosofia
liberal "tivesse encontrado na política neoliberal o meio para
se tornar realidade". A insegurança social e a insegurança
profissional levam efetivamente à competição de todos con­
tra todos. 12
Podemos, portanto, vincular essa ideia de competição às
restrições justificadoras e ao que Bourdieu chama de "exal­
t[ação] do advento da sociedade de risco", que engloba "o
mito da transformação de todos os empregados em pequenos
empreendedores dinâmicos" e competitivos. Com isso, temos
que "constituir em normas das práticas dos dominados as
regras que são impostas a eles pelas necessidades da econo­
mia - e das quais os dominantes têm o cuidado de se eximir".13
A integração dessas normas dos dominantes pelos do­
minados pode ser vista, igualmente, como uma "nova forma
de alienação" .14 Vilette analisa o exemplo dos jovens recém­
formados que entram "no mercado de trabalho":

ou profecias gerenciais (idem, p. 21, ênfase nossa). Esta última observação deve ser comparada com a "dupla dissmulação" do
discurso ideológico (ver Capitulo 1)
10 Bourdieu, 2001, p. 47.
11 Ver Laurent Willemez. Le droit du travai/ en danger: Une ressource collective pour des combats individueis. Bellecombe-en­
·Bauges, Éditions du Croquant, 2006 (coleção Savoir/Agir); e Marzano, 2008.
12 A estrutura dos "open- spaces" [espaços abertos], onde todos veem e ouvem o que seus colegas fazem, foi concebida com esse
propósito.
13 Bourdieu, 2001, pp. 47-48.
14 Idem, p. 48. Bourdieu especifica: os "dominantes-dominados", "isto é, os executivos" são "sobrecarregados, estressados, amea­
çados de demissão, mas estão, contudo, atrelados à empresa" (idem, p. 49).

97
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

[.;.] mesmo que tenhamos "horror da economia", um impe­


rativo categórico logo se impõe [ ... ]: é preciso se vender.
Eu digo claramente "se vender" porque o processo de vender
a personagem que somos, ou pelo menos o que parecemos, é
o primeiro. É necessário ter encontrado um primeiro empre­
gador, é um pré-requisito para qualquer atividade ativa nos
mercados. É preciso se vender antes de vender. 15

Desse modo, a visão competitiva que impõe o DNL de­


fine o "quadro" da maioria das atividades e dos comporta­
mentos humanos, disseminando-se em todas as camadas da
sociedade16 e no mundo inteiro.
Volto, então, a meu questionamento inicial: como o dis­
curso permite impor a competição como uma evidência? O
tópico da competição pode ter muitas faces diferentes.
Apresento, a seguir, alguns exemplos de esquematização
sem a pretensão da exaustividade.

5.1 .1 A comparação com o vizinho

A competição, muito presente no DNL, não é apenas


internacional, longe disso. Ela também é valorizada no âm­
bito individual: muitos comerciais naturalizam a competição,
mostrando e exaltando o vizinho que comprou um carro mais
bonito, que é mais esperto em seu comportamento de con­
sumidor ou que provoca o olhar invejoso de sua comitiva.

15 Vilette, 2001, p. 89.


16 Mesmo "oslideres dos Estados tendem a se ver como concorrentes em uma competição em que os juízes são as grandes empresas
internacionais'. (Lebaron, 1998, pp. 106-107).

98
O BOM MODELO

O que chamo de "esquematização da comparação com


o vizinho" também é encontrado nos editoriais e artigos de
opinião da imprensa. É o próprio arquétipo da valorização
da tópica neoliberal da competição,porque funciona em to­
dos os níveis: individual e coletivo, nacional e internacional,
regional e europeu.
Temos,a seguir,quatro exemplos da utilização da com­
paração com o vizinho para o mesmo período:

É necessário um tal aparato para que o governo volte à tradi­


ção de transcrever os acordos interprofissionais nacionais na
lei? Qµe o diálogo tenha sido renovado permanece evidente­
mente positivo. Mas estamos longe, muito longe de um ver­
dadeiro pacto nacional para o emprego e contra a exclusão,
como somente alguns dos nossos vizinhos europeus são capazes de
imaginá-lo.17

Entre greves e manifestações, profundamente convencidos


de que o pior ainda está por vir, um olho preso na folha de
pagamento, o outro sobre as guias de impostos ou o cálculo
de pontos da aposentadoria, a maioria dos nossos concida­
dãos está se perguntando: o país está indo tão mal? Certa­
mente não. Mas, por ter acreditado na exceção francesa sem
perceber que, ao redor, nossos vizinhos se ajustavam gradual­
mente à globalização da economia, aqui ela é brutalmente cha­
mada à ordem e forçada, em uma conjuntura medíocre, a
andar rápido. O calendário não espera mais. Ainda assim, é
necessário saber como explicar isso. 18

17 Coletivo. "Une nouvelle occasion manquée" [Uma nova oportunidade perdida]. Editorial, Le Monde, 23/12/1995.
18 Christine Ockrent "les cruautés du calendrier" [As crueldades do calendário]. Editorial, L'Express, 30/11/1995.

99
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA M ÍDIA

Há um ano, por falta de uma boa política econômica, a Fran­


ça se juntou ao pelotão defundo do crescimento na Europa. 19

A igualdade faz parte do lema da República.' Sem dúvida


ainda há muito a ser feito para que essa palavra tenha seu
pleno significado. Mas, pelo menos, pode-se esperar que, em
tempos de dificuldade cada um concorde em participar do
esforço coletivo. No fundo, como pode um funcionário pú­
blico justificar-se por se aposentar antes do que seu vizinho,
assalariado do setor privado?2º

Os primeiros três exemplos mostram a competição no


âmbito transnacional e, mais especific amente, europeu, 21
enquanto o último a coloca no âmbito individual, embora o
processo permaneça o mesmo. A comparação é usada pelo
editor para lamentar uma constatação que ele seria "obrigado"
a levantar. O primeiro extrato lamenta, portanto, a falta de
consenso no país; o segundo, uma "exceção" tipicamente na­
cional (ver parágrafo abaixo), que impediria o país de "se
adaptar" às restrições da globalização; o terceiro, uma má
política econômica, usando uma metáfora esportiva; o quar­
to finalmente lamenta que os funcionários não reconheçam
seu status de "privilegiados".

19 Coletivo. "Retour en France" [De volta à França]. Editorial, Le Monde, 15/5/2003.


• Referência ao lema: "Liberdade, Igualdade e Fraternidade". (N. da T.)
20 Michel Schifres. "Quelques idêes simples" [Algumas ideias simples]. Editorial, Le Figaro, 30/11/1995.
21 A Europa é frequentemente usada como um quadro de comparacão; por exemplo, em 5/9/2010 no site Figaro.fr temos um artigo
intitulado: "Retraites: La France à la traine de l'Europe" [Aposentadorias: A França atrasada na Europa]. Entre 1995 e 2003, notei
um aumento significativo (30%) no número de ocorrências do lema europ- (que se declina assim: Europa, europe{-us, -ia, -ias),
europeu(s) e UE, Corte Europeia de Justiça, Europe-puissance). Ele representa cerca de metade das ocorrências (95 ocorrências
de 195) dos quadros supranacionais. Aqui estão as outras formas encontradas em 2003 na ordem crescente: globalização (1),
planetárias (2), planeta (2), universo (2), nações (2), internacional (4), mundialização (18), pais (25), mund- (-o, -ial, -iais) (44).

100
O BOM MODELO

O vizinho faz as vezes de medida de referência ou mo­


delo. É à luz do que o vizinho representa que a conduta do
país ou do indivíduo deve ser julgada. Sendo o vizinho o
exemplo a seguir, parece "evidente" que a conduta do país
ou do indivíduo não seja gloriosa. Mas cabe ao leitor chegar
a essa conclusão. O editor toma o cuidado de não escrever
isso explicitamente: assim, o leitor, mais uma vez, é corres­
ponsávelpelo dizer, isto é, pela mensagem captada. Especial­
mente porque outros métodos de evidência precedem ou
acompanham tais comparações com o(s) vizinho(s). Esse é
o caso de questões retóricas que tomam a forma de uma
questão apenas para melhor desferir uma afirmação; o se­
gundo exemplo joga com a urgência do calendário e com o
"tópico da pedagogia", em que a reforma é equitativa, mas
"ainda é necessário saber como explicá-la"; o quarto abre
para uma tautologia ou um truísmo, isto é, uma informação
que não o é (o leitor já sabe que ''A igualdade faz parte do
lema da República"), a fim de provocar implicitamente uma
conexão lógica com o resto do trecho e, finalmente, uma
conclusão novamente tirada pelo leitor. Essa conclusão tem
o valor de um deverfazer. 22 los funcionários devem aceitar,
por princípio republicano, uma reforma que vise garantir a
igualdade de todos/. Essa última dimensão pode ser qualifi­
cada como pragmática, no sentido de que procura agir sobre
o outro; o editor prescreve aqui uma mudança de atitude,
uma reação apropriada ou ainda uma modificação da per­
cepção da realidade.

22 Para uma análise mais detalhada desse procedimento, ver Guilbert, 2007.

101
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

5.1.2 A ''exceçãofrancesa"

Esta fórmula surge frequentemente nos artigos quando


se trata de justificar as "reformas". Ela pode assumir outras
.e10rmas, por exemp1o: " o mode1o soc1"al 1rances
.e. , a .e1rancesa", A ,, "'

"a deficiência francesa", "o homem doente da Europa". Essas


expressões dizem respeito a um lugar-comum neoliberal se­
gundo o qual haveria um "mal francês", 23 feito de "bloqueios"
e "rigidezes", em termos de "adaptação" do nosso "modelo
social" e da "modernização do Estado". Qualquer que seja a
fórmula escolhida, é sempre possível ver duas enunciações
fundidas em uma só. Em outras palavras, há um duplo nível
de leitura e compreensão para esses enunciados: uma enun­
ciação explícita que afirma que a França é diferente de ou­
tros países e uma enunciação implícita que lamenta essa di­
ferença; há, novamente, essa visão pragmática que busca
agir sobre o outro, fazer o leitor reagir.
O exemplo proposto se dá no final do inverno de 2006,
após os protestos contra o Contrato de Primeiro Emprego
(CPE). O caso foi vencido pelos manifestantes, que obtive­
ram o compromisso do primeiro-ministro, Dominique de
Villepin, de não fazer cumprir a lei, embora ela tivesse sido
aprovada; daí o tom de despeito evidente no editorial a se­
guir, do qual apresentamos extensos extratos:

Há, de fato, algo mais preocupante: é constatar, a partir da


aparição desse contrato mal amarrado e mal defendido do

23 Fórmula retirada do título do livro Lemal(rançais, de Alain Peyrefitte, publicado em 1976, entre dois cargos ministeriais: Ministro
da Renovação e Planejamento, depois Ministro de Assuntos Culturais e Meio Ambiente (1973-1974), sob o governo Pompidou, e
Ministro da Justiça no governo Barre (1977-1981).

102
O BOM MODELO

primeiro emprego, a tensão da desastrosa "exceção francesa".


Uma deriva ferrenha, subestimada pelo otimismo oficial que
elude a marginalização da França no concerto europeu. Tam­
bém é subestimada por aqueles que fazem dessa "exceção" seu
patrimônio, sem ver bem aonde os leva. E, junto com eles, a
França.
A "exceçãofrancesa" é a repulsa secular à reforma. É a inclinação
para o confronto estéril entre dois campos: a esquerda e a
direita, deslocadas hoje pela realidade moderna, mas que, no
entanto, não deixam de empilhar suas antigas munições em
seus bunkers em ruínas.
O pior desta "exceção" é, evidentemente, a concordância com o
statu quo, por cansaço ou inconsciência, de uma parte majo­
ritária da opinião. Lembre-se desta cifra, mais uma, que ali­
menta a assombração de "declinólogos": à questão da enque­
te realizada em 20 grandes países - "O sistema da
livre-iniciativa e da economia de mercado é o melhor para o
futuro?"-, a França ocupa o último lugar de respostas positivas.
Na verdade, é o único dos 20 países em que o "não" supera o
" . ,,
Slm ( 1 )

[... ]
Para votar não à reforma, a "exceçãofrancesa" votou não à Eu­
ropa. Pode-se medir, neste escrutínio revelador, a força com­
posta por manifestantes de todos os tipos. Acrescentemos
que, há vários anos, de 20% a 30% dos franceses não votam,
15% votam na extrema-direita e 10% na extrema-esquerda:
tantos "cidadãos inúteis que não participam da vida política, a
não ser para contestá-la" (2). Tal déficit de participação demo­
crática (e sindical) é outra característica da diferençafrancesa.
[. .. ]

103
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO N EOLIBERAL NA MÍDIA

Agora, pior do que o abismo entre poder e opinião, é o abismo


crescente entre a França e as grandes democracias do Ocidente. 24

(1) Pesquisa do instituto Globa1Scan, citada por Le Figaro de 25-


26 de março de 2006.
(2) Jacques Marseille.

O tom é alarmista, certamente por despeito,25 mas tam­


bém serve para fazer o leitor reagir. A alternativa à compe­
tição "feliz", quando a pessoa não está mais em condições de
vencer, é evitar parecer muito diferente dos vizinhos ("a
marginalização da França no concerto europeu"), em outras
palavras, evitar a síndrome do "patinho feio" do conto de
Andersen: os sentimentos de vergonha e/ou de rejeição26 ("o
abismo crescente entre a França e as grandes democracias
ocidentais"). Esta, parece-me, é a principal função pragmá­
tica da exceção francesa: produzir, no leitor, um sentimento
de vergonha e receio de ser rejeitado, a fim de propiciar o
despertar salutar do neoliberal que dorme (necessariamen­
te) nele - de fato, se "a maioria da opinião" seguiu o movi­
mento social, foi apenas "por cansaço ou inconsciência".
No entanto, o autor relaciona a questão da exceção à
crença neoliberal na economia de mercado, baseando-se em
uma pesquisa de dimensão europeia. Aqui, novamente, a
França é uma exceção ("A França ocupa o último lugar"). O
funcionamento da estratégia argumentativa é claro: não so­
mente não é necessário se destacar, mas se "20 grandes países"

24 Claude lmbert. 'Le fossé" [O abismo]. Editorial, Le Point, 30/3/2006.


25 Isso vem da constatação de que os jovens parecem preferir a solidariedade à competição?
26 Ver Boris Cyrulnik. Les vilains petits canards (Paris, Odile Jacob, 2001) e Mourir de dire la honte (Paris, Odile Jacob, 2010). O
jornalista joga com sentimentos muito íntimos e muito poderosos.

104
O BOM MODELO

pensam que "o sistema da livre-iniciativa e da economia de


mercado é o melhor" é porque isso é mesmo evidente.
1àmbém se pode notar que o autor faz da exceçãofran­
cesa uma personagem, uma figura antropomorfa: comparar a
nominalização "a tensão da desastrosa 'exceção francesa"'
com "a tensão sobre a desastrosa 'exceção francesa'". A pre­
posição de tem toda a sua importância: 27 faz de "a tensão"
um sentimento ou uma reação atribuída à personagem exce­
çãofrancesa. Algumas linhas antes do final do artigo, encon­
tramos essa figura com capacidades humanas: "Para votar
não à reforma, a 'exceção francesa' votou não à Europa". A
exceçãofrancesa designa então um grupo cujo retrato se pre­
cisa: trata-se da maioria dos franceses (54%) que votou "não"
no referendo sobre a Constituição para a Europa em 2005,
ou seja, os "cidadãos inúteis" aludidos por Jacques Marseille
citado por Claude lmbert. 28 Usar a expressão exceçãofrance­
sa para designar um grupo humano que pode ser identifica­
do com clareza suficiente é criar a "realidade" da existência
de uma "exceção francesa". A visão é propriamente perfor­
mativa aqui: o discurso tem por objetivo produzir uma rea­
lidade pelo simples fato de enunciá-la.
Temos aqui um outro exemplo, este de 2003, de utilização
da expressão exceçãofrancesa - durante o movimento de pro­
testo após o anúncio da "reforma Fillon" da Previdência - em
que a ideia de exceção é "justificada" historicamente:

Mais uma vez, eis a França em crise. Como se elafosse cultural­


mente programada para dançar à beira do abismo. Como se esse

27 Ver Capitulo 2.
28 Parece, de fato, que o autor está "competindo" com essa França.

105
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

complexo corpo social estivesse parametrizado para se dividir


quando sua unidade parece adquirida. Nenhum outro país oci­
dental se comporta assim: os problemas sociais nunca são lá,
como aqui, um tudo ou nada. O psicodrama nacional é uma
exceção gaulesa, cujas raízes são profundas, e as consequências,
perigosas. Sem dúvida, é preciso buscar em nossa história esse
gosto pela ruptura que coloca frequentemente uma parte dos
franceses na rua. O fantasma revolucionário de 1789 ainda
ronda as mentes. Esse povo se crê grande e corajoso quando
ruge. Sem medir suas cruéis contradições: os sans-culottes se
levantaram contra o absolutismo; os "sem desemprego" que
hoje fazem o país de refém por repetidas greves contestam,
na verdade, um poder democraticamente eleito, isto é, a prin­
cipal conquista da Revolução. 29

Constata-se, em primeiro lugar, que a variante "exceção


gaulesa", no título e no corpo do artigo, não é inofensiva. O
adjetivo "gaulês" refere-se a dois tipos de conotação: aos ha­
bitantes "irredutíveis" da "pequena cidade gaulesa" de Uder­
zo e Goscinny' e/ou ao que se chama gauloiseries, isto é, um
traço rude e vulgar atribuído tipicamente ao povo francês. O
autor, portanto, joga com estereótipos e conhecimentos
compartilhados para estigmatizar os oponentes da reforma:
o povo francês seria, por natureza, opositor e/ou rude e vul­
gar. Contudo, as referências históricas relacionadas a esse
adjetivo não são mobilizadas, uma vez que nenhum elo é

29 Denis Jeambar. "Exception gauloise" [Exceção gaulesa]. Editorial, L'Express, 5/6/2003.


• Referência à série de revistas Asterix. (N da R.)

106
O BOM MODELO

estabelecido pelo autor entre tal adjetivo e as razões históri­


cas apresentadas que supostamente justificariam tal exceção.
O autor, como muitos outros - porque esse "argumento"
da "natureza do povo francês" esteve muito presente na mí­
dia por ocasião dos movimentos de protesto contra as refor­
mas neoliberais -, demonstra o que os filósofos chamam de
essencialismo, isto é, atribui a um grupo de indivíduos, no
caso aos opositores, uma essência particular que explicaria
suas ações, uma natureza que os impulsionaria a agir assim.
Ora, admitir que é sua natureza que os leva a agir desta ou
daquela maneira - como um pássaro constrói seu ninho, um
lobo protege seus filhotes etc. - significa que as razões para
se manifestar perdem seu fundamento político. Essas razões
não se baseiam mais em reflexões, mas, de certo modo, em
reflexos ou reações. Assim, ocultam-se as razões para a opo­
sição,30 e o debate sobre o assunto é escamoteado.
Essas conotações essencialistas, ligadas ao gaulês, mas
também à exceção, são especificadas desde o início do tre­
cho ("como se ela fosse culturalmente programada para",
"como se esse complexo corpo social estivesse parametriza­
do"). Porque a exceção pretende ser explicativa: os movi­
mentos sociais, a "resistência à reforma previdenciária" e "a
revolta antirreforma"31 estariam ligados a uma natureza
particular da França; natureza definida por Alain Duha­
mel: "A cada dez anos, em média, a França é assim tomada
por uma grande febre, tanto coletiva quanto contraditória,
que serve como vertedouro e expurgo de raivas, medos e

30 Eu desenvolvo mais detalhadamente este ponto na Conclusão.


31 Claude lmbert, Le Point, 6/6/2003 e 4/7/2003.

107
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA M ÍDIA

frustrações". 32A França e o povo francês conheceriam uma


espécie de ciclo natural que os faria arrotar "a cada dez
anos, em média" - a modulação pseudocientífica tem sua
importância argumentativa.
A utilização de "exceção gaulesa", juntamente com ou­
tros termos do próprio artigo ("em crise", "abismo", "conse­
quências perigosas"), tem como objetivo alarmar e provocar
esse duplo sentimento de vergonha e desconforto ("nenhum
outro país ocidental se comporta assim") e, consequente­
mente, uma reação de rejeição aos manifestantes. A conti­
nuação do artigo faz apelo ao sagrado da Revolução ("1789")
para demonstrar que os privilegiados de "hoje" não são
aqueles que pensamos. Muitos outros procedimentos lin­
guageiros na última frase33 permitem ao autor enunciar sua
própria opinião como uma sabedoria racional e contra a
doxa, isto é, como o ponto de vista corajoso, sábio e racional
de quem não se satisfaz com ideias já prontas.
Não nos enganemos: lamentar a falta de consenso ou a
falta de diálogo não é apenas um desejo de estabelecer a "paz
social". Pelo contrário, esse lamento inscreve-se no discurso
ideológico neoliberal, no discurso de evidência atual, na me­
dida em que tenta mascarar os diferentes pontos de vista
sobre as "reformas" e, mais genericamente, as visões de mun­
do antagonistas, de manifestantes e dirigentes. 34 Se desig­
narmos os primeiros como "um povo que ruge" pela tradição
revolucionária ou como resmungões por natureza, negamos

32 Alain Duhamel. "La société de déf1ance" [A sociedade da desconfiança]. Crônica, Le Point, 9/12/1995.
33 O pressuposto de "fazer de refém" incluído na subordinada relativa, o decalque "sans-cufottes"/"sans chómage" [sem desem­
prego]. as simetrias temporais, os marcadores de evidência "sem dúvida', "de fato"...
34 Essa ideia é desenvolvida também na Conclusão.

108
O BOM MODELO

sua capacidade de pensar e imaginar outras soluções. 35 Esse


discurso, implicitamente, significa que há apenas uma solu­
ção para os problemas colocados: somente os dirigentes
mostram bom senso e racionalidade, e o povo deve se render
a essa evidência.

5.1 .3 O "bom aluno"

A contrapartida da "exceção francesa" é o tópico do


"bom aluno" e sua variante "o bom/mau aluno da classe eu­
ropeia". O "bom aluno" é apenas o outro lado do mesmo
procedimento pragmático e argumentativo e funciona com
o mesmo princípio da "exceção": basta entender esse princí­
pio para inverter os valores pragmáticos implícitos: arrepen­
dimento/elogio, vergonha/honra, mudança de atitude/pre­
servação ou consolidação de "boas maneiras"...
Esse mascaramento das questões colocadas pelas oposi­
ções na rua pode assumir formas mais clássicas e, portanto,
mais evidentes ainda, das quais temos aqui um exemplo.

5.2 A guerra dos chefes

Esse procedimento está muito próximo dos procedi­


mentos de argumentação, mas é uma esquematização, pois
se baseia na atualização de uma estrutura de percepção
preexistente que supostamente explicaria um acontecimen­
to pelos motivos que animam aqueles a quem os jornalistas

35 Ver Thierry Guilbert. "Conflits sociaux et médias: L'invisibilité de l'évidence" Conflits redistributifs et égalitaires: Des objets invi·
sibles pour l'actualité1. <http://www.absp-cf.be>, 2008.

109
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

consideram como os "principais protagonistas". Como em


uma tragédia antiga ou em um filme francês ou estaduni­
dense dos anos 1950,o destino das pessoas ou o desfecho da
história36 é condicionado pelas decisões de seus chefes e
pelo resultado da batalha de seus egos.
A seguir temos um exemplo desse funcionamento,
ocorrido em 2006, por ocasião da contestação do Contrato
de Primeiro Emprego (CPE):

1 1 de março, sobre o Atlântico


A evacuação da Sorbonne deu origem a uma queda de braço
entre Dominique de Villepin e Nicolas Sarkozy. • O ministro
do Interior, viajando para as Antilhas, não aprovava a evacua­
ção, considerando que nada de muito sério havia acontecido
no local. A intervenção da polícia levaria, segundo ele, ao
fechamento da universidade e à transferência dos problemas
para outras faculdades. Mas, ao telefone, o primeiro-ministro
foi insistente e obteve uma decisãofavorável. Qyando a opera­
ção terminou, Sarkozy aproveitou a sorte de um desfecho
beneficioso. Ele estava no voo de volta com uma quinzena de
jornalistas e se atribuiu o sucesso da manobra: "Despertar Vil­
lepin às 4 horas [da manhã], teria sido dureza!"" Um conse­
lheiro de Matignon"' se contentou em enfatizar: "Sarkozy
reescreveu a História, como sempre!". 37

36 Essa esquematização inscreve o discurso em uma narrativa, uma história e até um conto. 'As lógicas da comunicação e do ca­
pitalismo triunfante" como narrativa é uma tese desenvolvida por Christian Salmon. Storytelling, /e machine à fabriquer des
histoires et à formater les esprits. Paris, La Découverte, 2007.
• De Villepin era então primeiro-ministro, e Sarkozy, o ministro do Interior. (N. da T.)
" Expressão francesa: 'ç'aurait été vache". (N. Da T.)
"' O Hôtel Matignon é a residência oficial do primeiro-ministro da França. (N. da T.)
37 Natacha Czerwinski, Elise Doàn, Corinne Lhail< & Éric Mandonnet. "CPE, l'histoire secréte' [CPE, a história secreta]. L'Express,
23/3/2006.

110
O BOM MODELO

O acontecimento, que atingiu todo o país e mobilizou a


energia de milhões de pessoas (manifestantes, ativistas e
agentes da lei), é reduzido pelos jornalistas a duas persona­
gens principais,38 às suas rivalidades ("queda de braço") e a
seus sucessos e fracassos pessoais ("obteve uma decisão fa­
vorável", "se atribuiu o sucesso"). Aqui a "guerra dos chefes"
mobiliza uma esquematização secundária que poderia ser
denominada: "o chefe e o pretendente". A crise em torno do
Contrato de Primeiro Emprego (CPE) é assim reduzida à
oposição entre dois homens pela cabeça do "Reino da Fran­
ça" e em busca de alianças com os principais "barões" (os lí­
deres sindicais e patrões). Assim, encontramos no começo
do mesmo artigo:

14-15 de janeiro, Matignon


Ele telefona então para François Chéreque e apresenta o
novo contrato. "Você terá jovens contra você, como no CIP!",
responde o secretário-geral da CFDT. [ ... ] "E nós não vamos
deixar os jovens sozinhos". O tom aumenta, o primeiro-mi­
nistro esquenta: "Você se manifestará com os esquerdistas
porque gosta disso!". Villepin fala tão alto - é o hábito dele
- que o sindicalista é obrigado a afastar o aparelho do ouvido.
Os secretários-gerais da FO, Jean-Claude Mailly, e da CGT,
Bernard Thibault, foram ainda mais maltratados.

Mas o Chefe sabe como poupar sua aliada:

38 O artigo foi escrito, é verdade, em pleno "caso C/earstream", que opunha - mas não era novamente uma "guerra de chefes"? - os
dois homens políticos.

111
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

"Somente Laurence Parisot pôde ter um - pequeno - trata­


mento especial: a presidente da Medef é recebida pelo chefe
de governo, no sábado".'

A "guerra de chefes" tornou possível, em 1995 e em 2003,


comentar e "explicar" as dissensões entre os sindicatos. 39
Essa esquematização tem a função de mascarar as reais
questões colocadas pelos opositores ou pela existência de
uma oposição na rua. Não se pergunta por que um certo
número de cidadãos está em desacordo e não lhe é dada a
palavra. Essa esquematização repousa nas disposições pes­
soais dos atores, 40 e não nas concepções e reivindicações so­
ciais. Além disso, ela é reconfortante porque retoma mais
uma vez um esquema já conhecido e propõe uma explicação
simples, de fácil compreensão. Então, novamente, a aparên­
cia de constatação produz a evidência: as coisas são como
são ditas e como são mostradas.

• Respectivamente: CIP(ContratodelnserçãoProfissional);CFDT (Confederação Francesa Democrática doTrabalho), sindicato refor­


mista; FO (Força Operária)e CGT (Confederação Geral do Trabalho) são mais combativas; Medef (Movimento das Empresas da Fran­
ça), o sindicato majoritário de empresários, era próximo do poder da época (N. da l)
39 Guilbert, 2007.
40 Demers, 1995.

112
6
ARGUMEN TAÇÃO OU M A N I PULAÇÃO?

Este capítulo apresenta um conjunto final de ferramentas


para analisar os procedimentos pelos quais as evidências do
discurso neoliberal (DNL) funcionam: procedimentos ar­
gumentativos e retóricos.

6.1 Retórica da persuasão

Considera-se geralmente que é com o advento da de­


mocracia na Grécia antiga que a fala se torna uma arte para
convencer. Isso pode ser visto como um progresso da civili­
zação, uma vez que a fala é instituída como "alternativa à
violência" física: ela é usada em vez da ordem e da coerção
(ver Capítulo 1). Mas, pouco a pouco, a fala perdeu "sua
vocação primeira: imprimir ao verbo a capacidade de con­
duzir a convicção"1 para se tornar retórica, ou seja, a arte da
persuasão, da bela palavra, do bem falar. QQu� _ � retórico,
então, não é necessariamente verdade,mas está bem e bela­
mente dito.
Assim, �!�tingue-se a convicção, que apela à racionalida­
de filosófica e/ou científica, da persuasão, que apela aos sen­
timentos e/ou à manipulação. É com a retórica da persuasão

1 Breton, 1997, p. 37.

113
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

que estamos lidando no DNL. A argumentação e a retórica


são, portanto, colocadas a serviço do DNL e pretendem le­
var a admitir, eliminar as resistências, sem convencer racio­
nalmente, mas dando a impressão de que os argumentos
utilizados são racionais.
Desse ponto de vista, os _procedimentos retóricos são
procedimentos de produção de evidências: eles dizem sem
dizer, ou seja, sem se mostrarem tais como são, sem dizer
explicitamente o que dizem. Os argumentos utilizados ou
topai· são, portanto, apresentados como princípios gerais
aceitos pela coletividade; o importante é que eles sejam "ca­
racterizados por sua plausibilidade inerente, que se transmite
aos discursos nos quais eles aparecem''. 2 Trata-se, portanto,
de apresentar um discurso plausível e "racional" para, assim,
jogar novamente com o aspecto ou a aparência do discurso.

6.2 Figuras argumentativas

Para persuadir, a retórica utiliza argumentos ou topai·:


"princípios gerais que servem de apoio ao raciocínio". 3 Esses
topai" comportam três características_: (1) "eles nunca são afir­
mados" mas "utilizados"; (2) "eles podem ser criados do
nada"; (3) eles são, na maior parte do tempo, "apresentados
como autoevidentes". 4 O argumento utilizado/criado age
como um ''prêt-à-penser' [pronto para pensar] que visa cons-

Christian Plantin. ln: Charaudeau & Maingueneau (org.), 2002, p. 580.


Jean-Claude Anscombre. Théorie des topoi. Paris, Kimé, 1995, p. 39, apud Georges-Elia Sarfati. Éféments d'ana/yse des discours.
Paris, Nathan, 2001 [1997]. p. 32 (coleção 128).
4 Sarfati, 2001, p. 32.

114
ARGUMENTAÇÃO OU MANIPULAÇÃO?

tituir as opiniões individuais, assim como a "utilização/


constituição da doxa".
Entendemos, então, que não é uma questão, para o retó­
rico, de argumentar explicitamente, mas de produzir um
enunciado para induzir um certo sentido. 5 Isso significa que
a responsabilidade pelo dil';curso é, novamente, compartilha­
da, Assim, se a responsabilidade pelo enunciado cabe ao
emissor, a responsabilidade pela produção do sentido recai so­
bre o receptor.
O princípio dessa desresponsabilização do emissor é o
seguinte: ao contrário do que geralmente se acredita, o re­
ceptor do discurso não precisa identificar a intenção do
emissor para compreender o sentido de um enunciado retó­
rico,� mas perceber a decalagem (a "tensão") entre a signifi­
cação das palavras pronwiciadas e sua adequação ao contex­
to. É essa decalagem qu·e provoca a irrupção do sentido. Por
exemplo, quando compreendemos "o rombo da Previdência''
[le trou de la Sécu] como uma metáfora, percebemos, de iní­
cio, uma tensão entre o sentido das palavras utilizadas (o
sentido literal) e a situação: verificamos, então, que o emis­
sor certamente não fala de um buraco na parede, no chão ou
no teto de um edifício, e deduzimos que se trata de um bu­
racofigurado, portanto, de um déficit contábil.
Vê-se como o DNL _pode tirar partido dessa "desres­
ponsabilização": o emissor, não tendo que explicitar sua in­
tenção para produzir uma significação, não precisa, então,
mostrar explicitamente suas opiniões. Ele dá, assim, a im­
pressão de fazer uma constatação, de modo que o sentido

5 Idem, ibidem. Sarfati acrescenta: "Seu valor ideológico prevalece sobre sua consistência lógica".
6 Jean-Marie Klinkenberg. "L'argumentation dans la figure". Cahiers de Praxématique, n. 35. Montpellier. 2000, pp. 59-86.

115
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA M ÍDIA

parece surgir de si mesmo. Ou seja, trata-se da própria defi­


nição de evidência - e do bom senso ou do senso comum.
Além disso, graças a esses enunciados aparentemente de
constatação, graças a esses enunciados que parecem apenas
descrever a realidade, o locutor do DNL dá a entender que
qualquer locutor sensato chegaria às mesmas deduções.
Eis um exemplo:

Porque, longe de serem temerosas e imóveis, asforças vivas do


país estão apenas esperando para se mobilizar em torno de uma
ambição coletiva, na qual reforma seja sinônimo de progres­
so - a evolução da opinião sobre a Previdência mostra isso,
pois não é o princípio de uma reforma que é contestado, mas
esta reforma em particular. 7

Nesse trecho, a forma verbal "x apenas estão esperando


para" é uma forma de constatação. Ela sugere um consenso
sobre a "reforma" da Previdência em 2003. No entanto, a
evidência também se baseia em outra constatação, existem
"forças vivas no país" e são essas "forças" que produzem con­
senso. Mas o sintagma "as forças vivas do país" é particular,
no sentido de que ele remete a um referente vago, indefini­
do. Gliem,precisamente,que grupo de franceses,essas pala­
vras designam? Ficamos na dúvida. Não apenas é impossí­
vel, fora de contexto, determinar com precisão o referente a
que "as forças vivas" remetem, como nem o contexto da
enunciação (interlocutores, condições etc.), nem a posição
do enunciador nos permitem determiná-lo. No entanto - é

7 Jean-Marie Colombani. "La fracture sociale" [A fratura social]. Editorial, Le Monde, 27/5/2003.

116
A RGUMENTAÇÃO OU MANIPULAÇÃO?

aqui que reside toda a eficácia argumentativa desse procedi­


mento -, esse sintagma dá, ao mesmo tempo, a sensação de
uma concordância e de uma discordância temáticas: ªforças e
vivas têm, assim, em comum o traço de significado /ener­
gia/, mas associamos a forças muito mais os adjetivos "bru­
tais", "tranquilas", "titânicas" do que os adjetivos "vivas",
"alertas" ou "ardentes", de certa forma redundantes. Esse
sentimento contraditório produz uma tensão que devemos
resolver buscando uma significação. Essa negociação do
sentido leva a /forças particularmente enérgicas/ e, dessa
maneira, a uma certa categorização do mundo: opõe-se im­
plicitamente as forças vivas do país a "forças não vivas" ou,
ainda, as forças particularmente enérgicas ("ambição", "pro­
gresso") a forças inertes ("temerosas" e "imóveis").
Essa categorização de cidadãos vem da retórica liberal
da Revolução Francesa. Sieyes definia dois tipos de cida­
dãos: os "cidadãos ativos" e os "cidadãos passivos". Os pri­
meiros eram as forças produtivas, os "verdadeiros acionistas
da grande empresa social", enquanto os segundos eram con­
siderados "máquinas de trabalho", consequentemente como
"passivos"9 e excluídos do direito de voto. 10 Além disso,Jac­
ques Marseille, retomado por Claude lmbert,11 reforça ain­
da mais essa categorização, pois denunciou, em 2006, como
"cidadãos inúteis" os que perverteriam, de certa forma, o es­
tatuto de cidadão ativo que lhes é concedido ao não aceita-

8 Chamamos a primeira de isotopia e a segunda de alotopia.


9 Sieyés citado em Histoire universelle Quillet, tomo 11, p. 11.
10 Luce-Marie Albiges. "Les citoyens actifs". L'histoire J)àr l'lmage, edição especial "Révolution Française", janeiro 2011. Disponível
em: <http1/www.histoire-image.org/s1te/lettre_info/hors-serie-revolution-francaise.php>.
11 Claude lmbert. "Le fossé" [O abismo]. Editorial, Le Poinl, 30/3/2006. Ver Capitulo 5, item "A exceção francesa". O trecho citado
por C lmbert é o seguinte: "cidadãos inúteis que não participam da vida política, a não ser para contestá-la".

117
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA M IDIA

rem o consenso (neoliberal). É difícil dizer com certeza que


J.-M. Colombani compartilha um ponto de vista semelhan­
te em seu editorial.12 No entanto, é razoável pensar que "as
forças vivas (do país)", expressão polida pelo uso, significa
"as boas vontades (do país)", mas que essa última formula­
ção,menos habitual, é muito mais polêmica, porque implica
muito diretamente a existência de "más vontades".
O que importa aqui é que o leitor deduza, com base
nessa apresentação de evidência (reforçada pelo trecho final,
relacionado ao "julgamento da opinião"), certa categorização
puramente ideológica13 da sociedade francesa, mas que não
se apresenta como tal.

6. 3 Moldes argumentativos

As figuras argumentativas estudadas acima estão situa­


das no nível das palavras ou dos grupos de palavras, mas
também podemos observar o que chamamos de movimen­
tos ou "moldes" argumentativos, 14 ou seja, situarmo-nos no
nível das "argumentações" de seções inteiras de textos, até
mesmo de discursos, que mostram práticas de conjunto. Es­
ses moldes argumentativos, também chamados de enqua­
dramentos,15 têm uma verdadeira .finalidade argumentativa:

12 Especialmente porque o livro de J. Marseille foi publicado mais tarde. No entanto, essa ideia não é nova.
13 Para uma análise mais precisa do termo "forças vivas", em relação com a distinção de Sieyes, ver Thierry Guilbert. "Forces vives".
ln: R. Mouriaux (ed.). Lexique usuel critique de l'idéofogie dominante économique et sociale (Lucides). Paris, Institui d'Histoire
Sociale-CGT, 2009, pp. 60-62.
14 Simone Bonnafous & Pierre Fiala. "Présentation". Mots, n. 58, 1999, pp. 7-10.
15 Philippe Breton. "La 'préférence manipulatoire' du président du Front National". Mots, n. 58, 1999, pp. 101-125.

118
ARGU MENTAÇÃO OU MANIPULAÇÃO ?

seu objetivo é estabelecer estratégias para persuadir,16 e não


para convencer.
Esses enquadramentos argumentativos têm sua deriva
manipulatória.17 Apresento apenas os dois tipos encontra­
dos com mais frequência nos artigos estudados - logo, os
mais típicos do DNL.

6. 3.1 Associar ou amalgamar?

O "enquadramento por associação" consiste em reagru­


par elementos de uma mesma categoria para que o leitor
conclua que eles têm algo em comum. 18 Esse sentimento de
semelhança não é explicitamente declarado; é ao leitor que
cabe, novamente, a responsabilidade pela dedução. Esse en­
quadramento argumentativo tem o efeito de produzir um
sentido sem discussão: ele coloca em relação o sentido de um
evento particular com os nossos conhecimentos partilhados;
o leitor chega a uma dedução implícita. Por exemplo, em 12
de setembro de 2001, o Lihération publicou a manchete: "O
efeito Pearl Harbor" aproximando este evento histórico dos
ataques de 1 1 de setembro e sugerindo um "despertar" brutal
dos Estados Unidos.
A aproximação também pode se situar no plano das
ideias:

16 Ruth Amossy. L'argumentation dans /e discours: Discours politique, littérature d'idées, liction. Paris, Nathan Université, 2000,
pp, 24-25.
17 Breton (1999) vincula os enquadramentos à sua deriva manipulatória: enquadramento qualificante/por reversão, por associação/
amálgama, por alternativa/fa Isa alternativa. Para oenquadramentodissociativo, propusacrescentara dissociação arbitrária(Thierry
Guilbert. "Approche d'un type de discours constituant: L'analyse du discours néolibéral dans l'éditorial". J. Richard-Zappella (dir. ),
Amiens, 2005 [tese de doutorado))
18 Breton, 1999, p 105.

119
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

Seria útil, nestes tempos conturbados, que todos os franceses


relessem o texto político mais importante já escrito: a Decla­
ração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que é o preâm­
bulo, lembremos, de nossa Constituição. [ ... ] Não discutimos
o direito de greve. Exceto por sua prática, quando viola estes
outros direitos fundamentais, naturais e imutáveis, que são o
direito ao trabalho e à liberdade do outro. [ ... ] O. artigo IV da
Declaração de 1 789 é violado por todos aqueles que procu­
ram paralisar o país e tomam por reféns os assalariados que
querem trabalhar, os alunos ou os estudantes que desejam
fazer suas provas, os cidadãos que querem se deslocar. 19

"Direito de greve","direito ao trabalho" e "liberdade do


outro",são aproximados como fazendo parte de um mesmo
universo nocional: "os direitos fundamentais, naturais e
imutáveis". Segundo o enunciado, todos eles são inaliená­
veis. Essa aproximação é usual, mas inexata, porque nem o
direito ao trabalho nem o direito de greve constam no "ar­
tigo IV da Declaração de 1 789", citado na sequência, mas
unicamente a definição de liberdade. Esse artigo, segundo
o autor, seria "violado por todos aqueles que procuram pa­
ralisar o país e tomam por reféns os assalariados que que­
rem trabalhar". A dedução, desta vez explícita, repousa so­
bre uma aproximação falaciosa, mas podemos falar em
manipulação?
Segundo Breton, a manipulação é "[ ... ] um método de
apresentar e disseminar uma opinião de tal maneira que seu
receptor acredite que está de acordo com ela e, ao mesmo

19 Denis Jeambar. "Droit au travail" [Direito ao trabalho]. Editorial, L'Express, 12/6/2003.

120
ARGUM ENTAÇÃO OU MAN I PULAÇÃO?

tempo, não possa fazer outra escolha a respeito". 20 Essa de­


finição é próxima da que se poderia dar sobre um discurso
que funciona pela evidência ideológica, 21 isto é, pela dissi­
mulação (ver Capítulo 1), no entanto, Breton acrescenta aí
uma característica importante: a impossibilidade da escolha.
O exemplo acima é manipulatório, então? Existe uma
escolha diante de uma argumentação desse tipo? Em face de
tal avalanche de sagrados mostrados (ver Capítulo 1): a De­
claração dos Direitos Humanos, a liberdade, mas também o
trabalho e os jovens? Esse movimento argumentativo que
acumula tantas "boas razões" pode aparecer como o da ra­
cionalidade (o direito) oposto à emotividade e ao egoísmo
da rua. Esse enquadramento por associação certamente joga
com a evidência, mas ainda não constitui uma deriva mani­
pulatória, uma vez que o enunciador explicita as aproxima­
ções que opera.
Em contrapartida, a deriva manipulatória do enquadra­
mento por associação, chamada "amálgama", é uma associa­
ção "sem explicação, sem justificativa", "como se a demons­
tração tivesse sido feita em outro lugar". 22 A associação é
apresentada sem explicação e é "infalsificável": 23 não se pode
refutá-la, torná-la falsa, pois ela não é enunciada. É o caso
deste exemplo: "Em uma economia de mercado, não há dia
em que os atores não devam se adaptar às muitas flutuações
da conjuntura: concorrência, oportunidades, clima ... ".

20 Breton, 1997, p. 73.


21 Isso não significa que tocos os argumentos de um discurso ideológico são sistematicamente manipulatórios.
22 Breton, 1999, pp. 111 e 115.
23 No sentido de Karl Popper; uma demonstração cientifica deve ser "falsificável", no sentido de que deve conter toe os os elementos
explícitos que permitam, eventualmente, refutá-la.

121
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA M ÍDIA

Trata-se aqui de definir "a economia de mercado" como


estando sujeita às "flutuações da conjuntura". Ora, se exis­
tem dois tipos de conjunturas, os quadros naturais e os so­
ciais (ver Capítulo 4), notamos aqui que o amálgama consis­
te precisamente em confundi-las.
A "concorrência" e as "oportunidades", por um lado, e o
"clima", por outro, pertencem ao mesmo tipo de conjuntura?
A conjuntura não é definida senão pelo amálgama, não é
explícita. Há, manifestamente, o desejo de manipular qua­
dros primários e mostrar a estrutura econômica como um
cenário natural, um cenário que se impõe aos homens como
o clima e ao qual, então, só resta "se adaptar".
O amálgama, assim definido, coincide então com a dis­
simulação dos discursos ideológicos (ver Capítulo 1). A cer­
teza e a evidência aos quais ele visa não são conquistadas
pela reflexão e pela prova, mas pela analogia e pela plausibi­
lidade. Seguem outros exemplos curtos, porque o amálgama,
por não se envolver em explicações, é invariavelmente curto:
"Como não ver que, com o tumulto da rua [dos manifestan­
tes] , é a democraciafrancesa e a própria dignidade da nação que
são assediadas? É hora de defendê-las. Uma grande causa
nacional, não?". 24
Nesse trecho que conclui o artigo, os dois termos amal­
gamados são tomados no mesmo movimento discursivo que
cria justamente o amálgama (exatamente como o pronome
las na frase seguinte): encontramos no mesmo plano, sem
qualquer explicitação, um valor político ("democracia") e um
valor moral ("dignidade"). O autor, portanto, apela ao senti-

24 Claude lmbert "L'épreuve" [A prova]. Editorial, Le Point, 16/5/2003.

122
ARGUM ENTAÇÃO OU MANIPULAÇÃO?

mento nacional, independentemente de qualquer raciocínio


lógico, para provocar uma reação de rejeição em relação ao
"movimento social".

Por mais relevantes que sejam, as demonstrações contábeis, as


lógicas demogr4ficas e asprioridades econômicas apresentadas por
Jean-Pierre Raffarin e seus ministros não são suficientes para
convencer os assalariados envolvidos e seus sindicatos. O
primeiro-ministro ainda terá que "suar a camisa" para apro­
var esta reforma. Porque ela é a chave de sua ação para mo­
dernizar o país e livrá-lo de seus fardos. 25

Uma nova etapa veio com a "esquerda plural" de Lionel Jos­


pin, [ ... ] ao integrar, à elaboração da política governamental,
os movimentos sociais sem representatividade democrática,
porém impulsionados somente pela legitimidade dos proble­
mas que eles colocavam: excluídos, minorias sexuais, ecolo­
gistas, antiglobalistas etc. 26

As enumerações são propícias ao que pode ser chamado


de "amálgamas de categoria". No primeiro trecho, que tam­
bém conclui o artigo, o amálgama está localizado sobre um
plano lógico-discursivo. As "lógicas demográficas" não são
do mesmo tipo que as "demonstrações contábeis" e "as prio­
ridades econômicas": o primeiro argumento tem múltiplas
causas (naturais ou não), enquanto os dois últimos resultam
de escolhas políticas; encontramos aqui a manipulação de
quadros primários. No movimento do texto, não é certo que

25 Gilles Dauxerre. "Pesanteurs" [Fardos]. Editorial, Paris-Normandie, 24-25/5/2003.


26 Alain-Gérard Slama. "La fabrication du désordre" [A fabricação da desordem]. Crônica, Le Figaro, 16/6/2003.

123
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

o leitor perceba esses elementos como heterogêneos. Os


substantivos usados ("demonstrações", "lógicas" e "priorida­
des") visam criar, ao mesmo tempo, um sentimento de ra­
cionalidade e de urgência, daí a "evidência" das "reformas"
propostas.
Na segunda enumeração, o amálgama é da ordem da
designação dos atores (ver Capítulo 2), mas sua função é
argumentativa: todos os seus elementos são classificados na
categoria "movimentos sociais sem representatividade de­
mocrática". Contudo, esse não era certamente o caso dos
"ecologistas" que, em 2003, tinham um partido, ministros e
representantes eleitos; talvez fosse justamente essa legitimi­
dade "representativa'' que o artigo tratava de lhes negar.
O amálgama também pode consistir em aproximar
eventos e pessoas que não mantêm objetivamente nenhuma
relação para sugerir uma convergência de opinião ou ponto
de vista. A manipulação por amálgama é então comprovada:

Mas eles [os militantes da Attac e de SUD] 27 aprenderam


com Bourdieu que podem forçar as sociedades liberais a se
autodestruir, empurrando-as para o erro, como Bin Laden ten­
tou com Bush, e impedindo-as de se reformarem, como tentam
os grevistasfranceses e os manifestantes contrários ao G8. 28

Trata-se, claramente, de estigmatizar os oponentes da


reforma e, mais ainda, os manifestantes contrários à ordem

27 Attac: Associação pela Tributação dasTransações [Financeiras] para Ajuda aos Cidadãos; SUO (Solidários, Unitários, Democráticos)
são associações de sindicatos, consideradas próximas de movimentos altermundistas.
28 Alain-Gérard Slama. "Les enfants de Bourdieu" [Os filhos de Bourdieu]. Crônica, Le Figaro, 2/6/2003.

124
ARGUMENTAÇÃO OU MANIPU LAÇÃO?

neoliberal - e a ideia de que um "outro mundo é possível" -,


amalgamando-os com os "terroristas islâmicos".
Os últimos quatro trechos abaixo incluem o que pode
ser chamado de "raciocínios implícitos no amálgama":

Esta [a descentralização], como já foi escrito aqui, era "neces­


sária para aliviar a pressão do Estado sobre os cidadãos e re­
duzir as intimidações administrativas, e não para criar tantos
Estados e intimidações quanto potentados regionais". 29

A França caiu em um colapso nervoso? De tempos em tem­


pos em sua história, em 1 789, em 1 830, em 1 848 ou mesmo
em 1968, ela se jogou fora junto com a água do banho. Era
sua maneira de fugir das reformas e das realidades. Chama-se
isso de uma revolução. 30

Ora, o governo se inscreve em uma lógica de resgate e de refor­


ma. Ele faz, além disso, um esforço de equilíbrio. Pelo menos
na declaração de suas intenções. O plano proposto esboça de
fato uma verdadeira modernização de nosso sistema de saúde. 31

Para evitar bater no muro das realidades econômicas e das obri­


gações orçamentárias, ele [Chirac] deve sempre permanecer
em constante movimento. 3 2

29 Alain-Gérard Slama. "La France cassée" [A França quebrada] Crônica, Le Figaro, 12/5/2003.
30 Franz-Olivier Giesbert "Si on disait la vérité?'' [Se disséssemos a verdade?] Crônica, Le Figaro, l/12/1995.
31 Jean-Marie Colombani. "Equilibre" [Equilibrio) Editorial, Le Monde, 17/11/1995.
32 Coletivo. "La méthode Chirac" [O método Chirac) Editorial, Le Monde, 14/6/2003.

125
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

O conector lógico "e" permite,por contiguidade,adicio­


nar ou criar a implicação: é introdutor de causa no primeiro
exemplo. O amálgama produz o seguinte sentido: lo Estado
é a causa das intimidações/, o que é uma tópica neoliberal
clássica. Nos outros três trechos "e" é introdutor de equiva­
lência,o amálgama induz as seguintes equações: respectiva­
mente,/as reformas = as realidades/,/reforma =.resgate/ e /
realidades econômicas = obrigações orçamentárias/. 33 O va­
lor implícito dessas afirmações é, portanto, que há apenas
uma política econômica possível - tópica neoliberal da qual
trato a seguir.

6.3.2 A escolha ou afalsa alternativa?

O enquadramento por alternativa é típico do DNL. O


discurso do economismo apresenta a economia de mercado
como a única solução possível,como o ponto em que a His­
tória nos esperaria. É ,de qualquer modo,o sentido do enun­
ciado "Não há alternativa",34 atribuído a Margaret Thatcher,
considerada,juntamente com Ronald Reagan,como um dos
dois "precursores" da implementação política dos dogmas
neoliberais. 35
O enquadramento alternativo propõe "a escolha entre
duas opções,uma sendo a que se quer defender,a outra sen­
do uma opção que se crê que o público rejeitará,inclinando­
se, assim, mais facilmente à opção proposta". 36 A definição

33 No último exemplo, o amálgama é reforçado pela nominalização (ver Cap. 2): o "muro" é constituído, por sua vez, de realidades eco·
nômicas e de restrições orçamentárias.
34 Este enunciado ("There is no alternative") é conhecido por seu acrónimo Tina.
35 Dezalay & Garth, 1998.
36 Breton, 1999, p. 107.

126
ARGUMENTAÇÃO OU MANIPULAÇÃO?

desse enquadramento coloca o problema da fronteira com


sua deriva manipulatória,a falsa alternativa; esta é tênue por­
que se trata de apresentar uma escolha viciada nos dois casos.
No caso de enquadramento por alternativa, as duas opções
não são apresentadas da mesma maneira: a opção preferida
pelo locutor é adornada com todos os seus ornamentos; no
caso da falsa alternativa, apenas uma das duas opções pode
ser escolhida, não há escolha real. O próprio tipo de falsa
alternativa é o enunciado político: "Eu ou o caos". Qµem
escolherá o caos? O princípio não é fundamentalmente di­
ferente entre a alternativa e a falsa alternativa,a passagem de
uma para a outra é sobretudo uma questão de gradação.
Eis aqui, uma vez que não é habitual, um trecho de um
discurso político de Jacques Chirac,então presidente da Re­
pública, em 2006,no momento em que a renúncia ao Con­
trato de Primeiro Emprego (CPE) está prestes a se efetivar:

[ ... ] Juntos, nós devemos pôr fim a esta situação chocante em


que as empresas, por temer a rigidez excessiva, preferem recu­
sar uma encomenda ou se deslocalizar a contratar, enquanto
tantas pessoas estão presas no desemprego e na precariedade.
Mas nós devemos responder também à aspiração dos assala­
riados por mais segurança num mundo do trabalho em per­
pétua evolução. [ ... ] A pior das soluções seria não fazer nada. 37

Embora esse discurso seja particularmente modalizado


("nesta situação chocante", "a rigidez excessiva"), 38 pode pa-

37 Declaração televisionada de Jacques Chirac, em 31/3/2006.


38 Essa expressão remete à tópica neoliberal da "flexibilidade do trabalho". A esse respeito, Frédéric Lebaron e Gérard Mauger
("Révoltes contre l'emploi au rabais", Le Monde Diplomatique, abril 2006, p. 3) citam J.-C. Trichet. presidente do Banco Central

127
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

recer que o presidente da República exerce aqui seu papel de


árbitro, que não toma partido. Ele mostra assim empatia, ao
mesmo tempo pelas "empresas" e pelos desempregados, la­
mentando por um lado a "deslocalização" das empresas e por
outro, a "prisão no desemprego e na precariedade". Esse dis­
curso pode mesmo aparecer, de certa forma, tingido de
preocupações sociais.
No entanto, quando se estuda o movimento argumen­
tativo desse trecho, percebe-se que ele define uma alternati­
va não explícita entre, de um lado, "a impossibilidade de
contratar" para as empresas em razão da "rigidez" e, de outro
lado, um termo totalmente ausente de seu discurso, mas
bem presente no espírito dos telespectadores: o CPE - con­
siderado pelos manifestantes e pelos opositores como um
"trabalho barato" para os jovens formados. Portanto, a falsa
alternativa não explicitada é: o desemprego ou a flexibilida­
de. Isto é, ser empregado com um contrato precário e com
baixo pagamento ou, então, não ter trabalho. 39
Como prova desse funcionamento, temos o papel do
conector lógico "também" no enunciado: "Nós devemos res­
ponder também à aspiração dos assalariados". Sua utilização
é bastante desajeitada, porque ela aponta o que a formulação
da frase precedente tentou justamente mascarar. "Também"
significa aqui "igualmente" e comporta uma pressuposição.
O enunciado pressupõe que é necessário responder antes de
tudo aos desejos das "empresas" e afirma que se deve igual-

Europeu: "O BCE não está substituindo os governos, os parlamentos dos 12 países-membros da zona do euro e os parceiros
sociais. Nós os encorajamos a avançar em direção a uma maior flexibilidade. [...] As economias que não podem mudar rapida­
mente, que são inflexíveis, que não são ágeis, são muito penalizadas".
39 Pode-se notar que essa falsa alternativa não é nova: é a do "livre" mercado de trabalho e resulta da "lei liberal" da oferta e da deman­
da. Nisso, ela é apenas uma consequência do (neo)liberalismo.

128
ARGUMENTAÇÃO OU MANIPU LAÇÃO?

mente levar em conta "a aspiração dos assalariados",40 enqua­


drando isso "num mundo do trabalho em perpétua evolu­
ção". Dito de outra forma , é necessário adaptar-se à evolução
do "mercado de trabalho" em direção a uma menor "rigidez",
"flexibilizando", portanto, "a lei trabalhista".
Sob a aparente empatia, esse discurso pode ser lido en­
tão como uma última tentativa de impor a "reforma" como
um deverfazer. "A pior das soluções seria não fazer nada".
Agora, a única coisa a fazer, segundo Chirac, é justamente
aceitar o ditame das empresas.
Eis outro exemplo - mais explícito, desta vez -, mas
igualmente manipulatório: "'Será, ele diz, a reforma ou o
declínio .. .'. Pois bem, esse ministro é a voz da razão!"41 Tra­
ta-se do discurso relatado de um homem político (destaca­
do em negrito pelo editor). O editor não somente é um
mero passador da proposta do governo por duas vezes (no
título e na abertura de seu artigo), como ainda comenta o
assunto de maneira muito positiva e enfática. A falsa alter­
nativa é comprovada aqui: /A reforma ou o caos/. Existe,
então, apenas uma política possível.

40 "A aspiração", e não as reivindicações. Os "empregados", e não os estudantes e os alunos que eram, contudo, os principais mani­
festantes. O discursoopera então um deslocamento lexical que tem toda sua importância argumentativa aqui. É fácil para Jacques
Chirac, que se baseia nas representações compartilhadas relativas aos assalariados como empregados pelas empresas, reduzir
sua "aspiração" ao fato de obter um trabalho ou de o manter. Daí a falsa alternativa: se você quer trabalho, aceite a flexibilidade.
41 Claude lmbert. "La réforme ou le déclin" [A reforma ou o declínio]. Editorial, Le Point, 2/5/2003.

129
CO N C LUSÃO

Ainda há muito a ser dito e escrito sobre os procedimentos


discursivos utilizados pelo discurso neoliberal (DNL) para se
tornar evidente na mídia. Uma das peculiaridades do neoli­
beralismo - que é, certamente, em parte, um mito - é sua
adaptabilidade, sua capacidade de recuperar e reciclar ideias1
e slogans, até mesmo os hostis à sua doutrina, desviando-os. 2
O cinema estadunidense e a publicidade desempenham um
papel especialmente importante nesses mecanismos de cons­
tituição de evidências neoliberais, que seria interessante exa­
minar. No entanto, o objetivo deste livro não é inventariar
todos os procedimentos utilizados, de maneira exaustiva, mas
mostrar alguns dos meios discursivos mais importantes e for­
necer ao leitor ferramentas para aguçar sua vigilância crítica
e para descobrir outros procedimentos por si só.

Não ditos sobrepostos

Gostaria de aproveitar esta Conclusão, antes de tudo,


para insistir sobre um ponto importante que o leitor talvez
tenha entendido parcialmente ou que pode ter sido uma
fonte de questionamento.

Muitas vezes, com uma consequente decalagem de tempo. Ver Passet, 2002.
Porexemplo, a retomadae o desvio de duas fórmulas dos anos 1990: "A fratura social" de M. Gaucher e 'O pensamento único" de 1.
Ramonet.

131
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

Todos os procedimentos descritos são compatíveis en­


tre si, ou seja, são não apenas articuláveis, mas também so­
breponíveis. Essa característica vem de faculdades próprias
da língua e do discurso: existem diferentes níveis e planos
linguísticos e discursivos. No entanto, os procedimentos
analisados não se situam nem nos mesmos níveis, nem sobre
os mesmos planos: alguns funcionam no nível da palavra
(nomeações), outros no nível do grupo de palavras (nomina­
lizações, esquematizações), outros ainda no nível da frase ou
de parágrafos inteiros (dupla dissimulação, amálgamas, falsa
alternativa, constituição de opinião). Esses procedimentos
utilizam também os diferentes planos semânticos, enuncia­
tivos, pragmáticos, comunicacionais e argumentativos. Por­
tanto, é comum e lógico, afinal, que um mesmo enunciado
contenha diversos procedimentos discursivos, e deve-se no­
tar que essa sobreposição de procedimentos reforça ainda
mais o efeito de evidência do discurso.
Além disso, destacar ou estar atento apenas a substanti­
vos, verbos ou adjetivos típicos do discurso neoliberal não é
inútil, mas em grande medida insuficiente, porque se corre o
risçu_ de perder a essência do que ele difunde e que se situa
em outro lugar, parece-me. É esse ponto que eu gostaria de
desenvolver à guisa de conclusão.

O consenso da "comunicação"

Meu tema compreende o que a mídia chama de comu­


nicação, isto é, a retórica do discurso político-midiático uti­
lizado notadamente por ocasião dos conflitos sociais. A aná-

132
CONCLUSÃO

lise situa-se aqui no nível da argumentação (a persuasão) e


da pragmática (os atos que se realizam com as palavras).

A metalinguagem da comunicação

Assim,parece-me que existe atualmente - e mais ainda


durante esses conflitos - uma outra dimensão dessa luta
ideológica subterrânea, da qual apresentei as principais ca­
racterísticas.
Em seus comentários escritos, radiofônicos ou televi­
sionados durante a vasta mobilização de novembro e de­
zembro de 1995 contra o "plano Juppé",os líderes de opinião
consideraram que ela se devia a um lamentável "déficit de
comunicação": com um pouco mais de "pedagogia",os fran­
ceses teriam aceitado a "reforma". Ao atribuir esse sentido
ao acontecimento, a mídia não apenas deslocou o objeto do
conflito,como também retirou toda a sua densidade: tudo se
resumia, então, à simples questão da "informação" dos cida­
dãos.3 Assim, o tópico da comunicação substituiu o conflito
social e seus fundamentos ideológicos.
É para esse fim que a mídia e os políticos utilizam esse
léxico particular que se pode chamar de "metalinguagem da
comunicação": "déficit de informação", "pedagogia", "ser
.
bom comunicador", "comunicar . ", "exp1·1car ,,, 1scutir
· . 4
"d ",
"parceiros sociais", "modernização das relações sociais"...
Essa leitura midiática do acontecimento, proposta a partir

Não se exclui pensar que alguns atores político-midiáticos são sinceros, que são incapazes de conceber uma oposição à ideologia
neoliberal com argumentos bem fundamentados.
4 Assim, em 2010, o ministro do Trabalho, Eric Woerth, não pretendia negociar a "reforma previdenciária" com os sindicatos, mas
discutir. De fato, a "verdade" pode ser negociada?

133
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA M ÍDIA

de 1995 para cada grande movimento social,5 produz uma


nova significação profunda dos conflitos sociais.

O metadiscurso do consenso

Essa significação é implícita e situa-se no nível superior


do discurso. Esse metadiscurso atravessa as diferentes for­
mas de discursos político-midiáticos mais ou menos neoli­
berais e, de certo modo, emana deles. É a quintessência
mesma do discurso ideológico neoliberal, na medida em
que procura impor a incontestabilidade das "reformas". Mais
especificamente, esse metadiscurso visa impor a impossibili­
dade psicolinguística de contestar essas reformas, 6 ou seja, a
impossibilidade de pensar e de formular uma contestação
estabelecendo um consentimento e um consenso "final" - o
consenso sobre "a inevitabilidade das reformas previdenciá­
rias"7 é um exemplo.
Em que consiste essa impossibilidade de contestar o
consenso? A primeira parte da resposta a tal pergunta foi
abordada ao longo deste livro: a assunção de um suposto
senso comum. Ou seja, persuadir identificando essa visão
neoliberal do mundo com o bom senso.
É a segunda parte da resposta, estreitamente relacionada
à primeira, que eu gostaria de desenvolver agora. Esse meta­
discurso, esse discurso subliminar que diz sem ser dito, nega
aos manifestantes a natureza profundamente política de sua

Maio-junho de 2003, "Crise do CPE" em 2006, outono de 2010 etc.


Ver sobre esse assunto Noel, 1997.
Assim, no outono de 2010, era praticamente impossível, na grande imprensa, contestar a ideia da "necessidade" de uma "reforma" da
Pr�idência. Elllb<Jfoquase tooosos 9rdicatose partidosda oposição tel\llamcriticadoa "refonma' goverl'ilmental, poucos se opuseram
a uma alternativa a essa ideia de "reforma necessária". A submissão a estrutura neoliberal parece-me então comprovada.

134
CONCLUSÃO

oposição. Não são duas visões de mundo que se opõem, mui­


to menos argumentos e ideias que se confrontam, porque não
se trata de justificar ou convencer, mas de explicar.
No nível "meta", o significado do pesar, recorrente na
metalinguagem da comunicação, pela "falta de pedagogia" -
pesar que é apresentado como simples constatação - é o de
que os opositores só se manifestam porque não "compreen­
dem" o que deveriam compreender.ª Esse metadiscurso pos­
tula implicitamente que, além dos conflitos, lamentáveis e
infelizes, existe um vasto "consenso" nos "meios autorizados"
em torno das "reformas". O objetivo do metadiscurso é con­
cretamente desarmar o confl.ito,9 indo além dele e impondo
esse sentido superior e implícito - mas percebido por todos
de maneira não consciente.
"Tão convencido ou exaltado por ter intelectualmente,
senão politicamente, razão, Alain Juppé corre o risco de ve­
rificá-lo à sua custa."1º
Pode-se ver quanto o metadiscurso, presente nesse tre­
cho, desloca o objeto do conflito de uma discussão de fundo
("ter razão intelectualmente") para o debate sobre a "comu­
nicação" (ter razão politicamente"). Se o problema de Juppé
é unicamente o de persuadir os opositores de que ele tem
razão, isso significa que não há discussão de fundo possível

Essa estratégia argumentativa também foi observada por Forrester 09%, p 109) - citada por La Tribune Desfossé (30/5/1994):
"Falar de contrapartida nesse domínio [diminuir os cortes de vagas de emprego em troca de subsid1os concedidos] denota uma
má compreensão da realidade econômica" -, e por Bourdieu (1998, p. 31): "'Os mercados financeiros' [...] que não pretendem
negociar, mas 'explicar"'.
Essa palavra é, evidentemente, bem pouco empregada �os jornalistas (ver o item "Nomear o acontecimento" no Capitulo 2).
10 Christine Ockrent. "Sous les pavés, \'Europe" [Sob o pavimento, a Europa]. Editorial, L'Express, 7/12/1995. [Podemos traduzir
pavés por pavimento, calçada... Faz-se aqui uma alusão irônica a um slogan de 1968: 'Sous les pavés, la plage!' - o pavé era a
pedra cúbica (o paralelepípedo), das ruas de Paris, que os manifestantes lançavam sobre a policia. (N. da T.)]

135
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

ou viável, porque a racionalidade já o decidiu categorica­


mente - de uma vez por todas.
O conflito é então reduzido a um mal-entendido, devi­
do à falta de informações, a uma incompreensão, ou até
mesmo a uma incapacidade de compreender. Alguns jorna­
listas o escrevem claramente: negam ao povo, aos funcioná­
rios, aos sindicatos, aos jovens, aos opositorei; em geral, a
capacidade de elaborar uma reflexão política própria. Assim,
Guy Sorman, pensador liberal, reativa a esquematização
tradicional, opondo a "emotividade" do povo à "racionalida­
de" dos dirigentes. Aqui estão os dois últimos parágrafos de
um de seus artigos, retirados da mesma publicação que o
trecho precedente e que lhe faz eco:

Dois discursos, portanto, chocam-se e dificilmente podem se


encontrar: o de cima defende as finanças e a lógica, o de bai­
xo é um tomar a palavra, uma exigência de dignidade, de re­
conhecimento, de inconsequência também. Sabe-se, graças
ao passado, que os humores coletivos acabam evaporando:
basta esperar, segurar e conter a violência.
Ainda não é proibido imaginar para o futuro formas de ges­
tão do setor público menos centralizadas, mais privatizadas,
que desarmariam os rancores antes que eles se cristalizem.
Mas a tentação da revolta,' do carnaval'' da sociedade nos
assombrará, sempre recorrente: caso de identidade nacional,
sem dúvida. 11

• Jacquerie, no original, refere-se à "Revolta dos Jacques", uma insurreição camponesa que teve lugar no norte da França, entre
28 de maio e 9 de Julho de 1358, durante a Guerra dos Cem Anos. (N. da T.)
" Carnaval, aqui, tem uma conotação negativa, significando desordem, baderna. (N. da T.)
11 Guy Sorrnan. "Le défouloir" [A revanche]. Artigo de opinião, L'Express, 7/12/1995.

136
CONCLUSÃO

O autor marca,assim,certa dissimilaridade de natureza,


uma "essencialização" (ver Capítulo 5) entre o grupo social
"de cima'' e o grupo social "de baixo".
O que é "destilado gota a gota", para retomar os termos
de Klemperer (ver Introdução), é que o conflito não tem
razão de ser,e que,não tendo razão de ser,a questão de saber
quem está certo ou errado, o que é ou não justo,é, portanto,
fora de propósito: por que discutir "o que é óbvio"? Qµando as
leis e os cálculos econômicos se impõem para todos e em
todos os domínios, o que resta a ser negociado? Pode-se
mudar a "verdade revelada"12 e a "realidade dos números"?
Pode-se ver claramente a circularidade do raciocínio: o que
o DNL diz serve para justificar o que ele destila implicita­
mente. A verdadeira questão dessa forma de apresentação
midiática do discurso neoliberal é, assim, conseguir impor
nas mentes a impossibilidade de contestar as "reformas", a
impossibilidade de pensar uma alternativa à doutrina neoli­
beral, ou seja, impor sua incontestabilidade ou, mais sim­
plesmente,sua "evidência''.
É por isso que os comentaristas lamentam tanto "a ex­
ceção francesa",a "cultura do conflito à francesa", a "incapa­
cidade dos franceses de negociar", a "perda de tempo em
conflitos inúteis de outra era", o fato de "acampar sobre po­
sições arcaicas",de "não entender que entramos em um novo
mundo" etc. E, inversamente, é por isso que os mesmos co­
mentaristas elogiam tanto a "cultura do consenso de nossos
vizinhos" e "a modernização das relações sociais".

12 Passet, 2002, p. 24.

137
AS EVIDÊNCIAS DO DISCURSO NEOLIBERAL NA MÍDIA

Esses enunciados e suas variantes, ouvidos reiterada­


mente, repetidos dia após dia, visam não apenas substituir
conflitos políticos por um "déficit de explicação", mas tam­
bém substituir negociações por discussões puramente téc­
nicas: ajustes contábeis para os conflitos sobre a Previdência
e a Seguridade social em 1995, 2003, 2010, adaptações jurí­
dicas para o referendo sobre a Constituição da Europa em
2005, modernizações estatutárias do Contrato de Primeiro
Emprego (CPE) em 2006 e a Lei de Reforma Universitá­
ria (LRU) em 2007.
No entanto, o que se busca, e que já o era há mais de 20
anos, é bem mais do que um simples consentimento ou um
simples consenso (mesmo o de Washington). O metadis­
curso procura ancorar nas mentes a convicção de que as "re­
formas neoliberais", também chamadas de "processos de
modernização", estão na natureza das coisas: a solução seria
ao mesmo tempo externa aos homens e independente da
vontade dos homens. Essa "realidade"13 se imporia a todos
como uma força natural. A solução para todos os nossos
problemas estava lá, à mão, soterrada desde sempre/já: a
ciência econômica a teria exumado, analisado e modelizado,
e nos restaria apenas aplicar seus modelos. Enfim, "bem in­
formados", teríamos apenas que aceitar a evidência: " [ ... ] a
humanidade alcançou, dissemo-nos, o estado natural ao
qual aspirava desde suas origens; havia apenas uma econo­
mia possível, a economia neoliberal; os fatos haviam acaba­
do de consagrar sua superioridade". 14

13 Para uma reflexão sobre a importância da palavra "realidade" no discurso neoliberal, ver Thierry Guilbert. "Réalités". /n: Mou­
riaux (dir.), 2009, pp. 106-107; ver também alguns amálgamas (Capitulo 6).
14 Passet, 2002, p. 24. Os "fatos" remetem à "queda do muro de Berlim".

138
CONCLUSÃO

É claro que a existência de publicações críticas - in­


cluindo este livro -, de movimentos e associações altermun­
distas e de manifestações contra as "reformas necessárias"
mostra que o objetivo da incontestabilidade desse metadis­
curso não é alcançado mecanicamente e que, felizmente,
ainda é possível resistir e pensar de forma diferente. Mas, e
quanto aos nossos "dirigentes", ou seja, àqueles que gover­
nam, dirigem, tomam decisões financeiras, econômicas ou
políticas que envolvem nosso futuro e o do planeta? Eles
não são os primeiros "alvos" desse "envelopamento contínuo"
ou, melhor, não são ao mesmo tempo os transmissores e os
primeiros destinatários desse discurso? Podem eles ainda se
livrar desses discursos enrolados em si mesmos? São eles
capazes ainda de imaginar soluções realmente alternativas?
São, pelo menos, capazes de as ouvir, senão de as compreen­
der, quando elas existem?
Nossos "dirigentes" passaram a crer na evidência do dis­
curso neoliberal: para eles, esse discurso não representa a
realidade, ele é a realidade. Será ele o nosso futuro?

139
SO BRE A EQ U I PE DE T RA D UÇÃO

Guilherme Adorno é professor dos Programas de Pós-gradua­


ção em Ciências da Linguagem e em Educação da Univer­
sidade do Vale do Sapucaí (Univás). Doutor e pós-doutor
em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), pesquisa principalmente nas áreas de análise de
discurso e história das ideias linguísticas, com especial inte­
resse em tecnologias de linguagem, materialismo, funciona­
mento jurídico, imbricação de diferentes materialidades sig­
nificantes e na autoria em diferentes práticas. Vice-líder do
grupo "O discurso nas fronteiras do social". Membro do
"Coletivo de trabalho: Discurso e transformação" (Contradit).

Luciana Nogueira é professora do Programa de Pós-gradua­


ção em Ciências da Linguagem (PPGCL/Univás). Doutora
em Linguística pela Unicamp (2015), é integrante do Con­
tradit. Atua, principalmente, na área de linguística, com ên­
fase em análise de discurso e semântica da enunciação. Atual­
mente, coordena o grupo de estudos "Discurso e processos
de identificação no neoliberalismo: Sujeito pós-colonial" e o
projeto de pesquisa "O discurso de gestão em diferentes es­
paços: A constituição do sujeito autoempreendedor - Fase II".
Sua pesquisa atual é dedicada ao estudo do discurso e do
sujeito nas relações de trabalho e do discurso neoliberal.

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