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WI LLlAM SHAKESPEARE

AS ALEGRES COMADRES DE WINDSOR


*
MEDIDA POR MEDiDA
CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte
Câmara Brasileira do Livro, SP *
O SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO
*
Shakespeare, William, 1564-1616. O MERCADOR DE VENEZA
S539a As alegres comadres de Windsor ; Medida por medi-
da ; O sonho de uma noite de verão ; O mercador de Ve- *
neza ; A megera domada ; Sonetos / William Shakes- A MEGERA DOMADA
peare ; tradução de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros,
Oscar Mendes, Ivo Barroso ; notas introdutórias de Oscar Tradução de
Mendes. - São Paulo: Abril Cultural, 1978. F. Carlos de Alrneida Cunha Medeiros e Oscar Mendes
Sinopses, Dados Históricos e Notas de
I. Poesia inglesa 2. Teatro inglês (Comédia) I. Medei- F. Carlos de Alrneida Cunha Medeiros
ros, F. Carlos de Almeida Cunha. 11. Mendes, Oscar, 1902-
- Il I. Barroso, Ivo. IV. Título: As alegres comadres de Wind-
SONETOS
sor. V. Título: Medida por medida. VI. Título: O sonho de
uma noite de verào. VII. Título: O mercador de Veneza. IX.
Tradução de
Título: A megera domada. X. Título: Sonetos. Ivo Barroso
78-1154 CDD -82233
-821

Índices para catálogo sistemático:


I. Poesia : Literatura inglesa 821
2. Shakespeare : Teatro : Literatura inglesa 822.33 1978
3. Teatro shakesperiano : Literatura inglea 822.33 EDITOR: VICTOR CIVITA
DRAMA TIS PERSONAE

Doge de Veneza
Príncipe de Marrocos lPretendentes
Príncipe de Aragão , de Pórcia
Antônio, mercador de Veneza
Bassânio, amigo do último, também pretendente de Pórcia
Salânio
. ) A"rrugos d e A ntôruo
A "

Salanno d A"

Salério e e Bassânio
Lourenço, apaixonado por Jessica
Shylock, rico judeu
Tubal, judeu amigo de Shylock
Lancelote Gobo, bufão criado de Shylock
O Velho Gobo, pai de Lancelote
Leonardo, criado de Bassânio
Baltasar } C" d d P' "
Estefânio na os e orcia
Pórcia, rica herdeira
Nerissa, camareira de Pórcia
Jessica, filha de Shylock
Um Carcereiro
Magníficos de Veneza; Oficiais da Corte de Justiça, Criados
de Pórcia, um Mensageiro e outros Servidores

Cena: Ora em Veneza, ora em Belmonte, residência de Pórcia


em terra firme
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ATO PRIMEIRO

CENA I: Veneza. Uma rua.


Entram Antônio, Salarino e Salânio.

Antônio _ Na verdade, ignoro a razão de minha tris-


teza. Ela me obseda; dizeis que ela também vos obseda; po-
rém, como eu apanhei, nela tropecei ou a encontrei, de que
matéria é feita, de onde nasceu, estou ainda para saber. Ela
me torna tão estúpido que tenho grande trabalho para re-
conhecer-me.
Salarino _ Tua imaginação voga no oceano, onde teus
galeões 1 de velas majestosas, senhores e ricos burgueses das
ondas, ou, se quiseres, palácios móveis do mar, dominam os
pequenos navios mercantes que lhes fazem cortesmente reve-
rência, quando voam perto dele com suas asas tecidas.
Salânio _ Acredita-me, amigo: se corresse semelhantes
riscos, a maior parte de minhas emoções viajaria com mi-
nhas esperanças. Estaria, continuamente, arrancando pedaços
de capim para saber o lado de onde o vento estaria sopran-
do, observando as cartas, os portos, diques e enseadas; tudo
que me pudesse fazer temer, por conjecturas, um acidente
com meus carregamentos, tornar-me-ia triste.
Salarino .- Meu sopro, ao esfriar minha sopa, produ-
zir-me-ia uma febre, quando me surgisse o pensamento dos

1 A palavra original é argoises, que não é propriamt>nte o galeão,

navio de origem espanhola.


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danos que um ciclone poderia fazer no mar. Não me atreve- Salarino - Teria ficado até que te tivesse feito ficar
ria a ver escoar-se a areia da ampulheta, sem pensar nos alegre, se mais dignos amigos não me relevassem desta tarefa.
baixios e nos bancos de areia, sem ver meu rico Santo André, Antônio - Vosso valor é muito caro a meus olhos.
encalhado e inclinando o grande mastro abaixo dos costados, Tenho a certeza de que vossos assuntos pessoais vos recla-
para beijar seu sepulcro. Se fosse à igreja, poderia contem- mam e aproveitais esta ocasião para partir.
plar o santo edifício de pedra sem pensar imediatamente nos Salarino - Bom dia, meus bondosos senhores.
escolhos perigosos, que bastariam tocar o flanco de minha Bassânio - Bom dia, signiors, quando riremos? Dizei,
formosa nave para dispersar minhas especiarias pelo oceano, quando? Vós vos tornastes excessivamente retraídos. Terá
vestindo as ondas bramantes com minhas sedas; e, numa sido sempre assim?
palavra, sem pensar que eu, agora opulento, posso ficar redu- Salarino - Colocamos nossos lazeres às ordens dos
zido a nada num instante? Poderia pensar nestas coisas, evi- vossos. (Saem Salarino e Salânio.)
tando essa outra consideração de que, se sobrevivesse a se- Lourenço - Senhor Bassânio, como encontrastes Antô-
melhante desgraça, ficaria triste? Logo, não precisas dizer- nio, nós dois vos deixamos. Mas, na hora do jantar, recor-
me; sei que Antônio está triste porque está pensando em dai-vos, por favor, do lugar onde devemos encontrar-nos.
seus negócios. Bassânio - Não faltarei.
Antônio - Não, acreditai-rne; graças à minha fortuna,
Graciano - Não estás com bom aspecto, Signior An-
todas as minhas cargas não estão confiadas a um só navio, tônio. Tens preocupações em demasia com este mundo; per-
nem as dirijo para um só ponto; nem o total de meus bens dem-no aqueles que o compram à custa do excesso de cui-
está à mercê dos contratempos do presente ano. Não são, dados. Acredita-me, estás completamente mudado.
pois, minhas especulações que me fazem ficar triste. Antônio - Compreendo este mundo como ele é: um
Salarino Então, estás apaixonado. palco onde cada homem deve representar um papel e onde
Antônio - Nada disto! o meu é de ser triste.
Salarino - Nem tampouco apaixonado? Digamos en- Graciano - Quero então o papel de bufão. Que as
tão que estás triste, porque não estás alegre e que te seria rugas da velhice venham em companhia do júbilo e do riso!
por demais fácil rir, saltar e dizer que estás alegre porque Possa eu ter o fígado aquecido pelo vinho, de preferência
não estás triste. Agora, por J ano bifronte, a Natureza se a que mortificantes suspiros esfriem meu coração! Por que
diverte, às vezes, formando seres raros. Estes olharão per- um homem, cujo sangue corre ardente nas veias, deverá ser,
petuamente de esguelha e rirão, como papagaios, com o som como meu avô, talhado no alabastro?? Por que dormir, quan-
de uma gaita de fole; aqueles têm uma fisionomia tão avi- do pode estar acordado e apanhar icterícia de tanto per-
nagrada que não mostrariam os dentes para sorrir, mesmo manecer irritado? Escuta, Antônio, gosto de ti e minha ami-
que o próprio grave Nestor jurasse ter acabado de ouvir zade está falando. Há uma espécie de homens, cujos rostos
brincadeira risível. (Entram Bassânio, Lourenço e Graciano.) se assemelham à espuma sobre a superfície de uma água
Salarino - Está chegando Bassânio, teu nobilíssimo estagnada, que se mantêm numa imobilidade voluntária, com
parente, em companhia de Graciano e de Lourenço. Passa
bem; nós te deixamos em melhor companhia.
2 Na época, as imagens das igrejas eram feitas de alabastro.

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o fim de aparentar uma reputação de sabedoria, de gravidade das que minha juventude, às vezes pródiga demais, me dei-
e de profundidade, como se quisessem dizer: "Eu sou o Se- xou contrair. É a ti, Antônio, a quem mais devo em dinheiro
nhor Oráculo e quando abro a boca, que não ladre qualquer e em amizade, e com tua amizade conto para execução dos
cão!" Ú meu Antônio! Conheço esses que somente devem projetos e dos planos que me permitirão desembaraçar-me
a reputação de sábios ao fato de não dizerem nada e que, de todas as minhas dívidas.
se falassem, estou perfeitamente certo, comprometeriam a Antônio - Pois não, meu bom Bassânio, faze-me co-
saúde de seus auditores, forçando-os a chamar o próximo de nhecê-los; e, se não se apartam, como tu não te apartas, dos
imbecil. Fa!ar-te-ei mais ainda, uma outra vez, sobre o as- caminhos da honra, fica certo de que minha bolsa, minha
sunto. Mas, não pesques com a isca da melancolia, a repu- pessoa, meus últimos recursos estarão todos a teu serviço
tação, esse engodo dos tolos! ... Vem, bondoso Lourenço ... para tal fim.
Até logo! Acabarei minha exortação depois do jantar. Bassânio - No tempo em que era estudante, quando
Lourenço - Está bem; nós, então, vos deixaremos até perdia uma flecha, lançava outra de igual alcance, na mesma
a hora do jantar. Serei um desses sábios mudos, pois Gra- direção, observando-a mais cuidadosamente, de modo que
ciano nunca me deixa falar. descobrisse a primeira; e, assim, arriscando duas, encontrava,
Graciano - Bem; faze-me companhia ainda durante muitas vezes, as duas. Se te estou citando este exemplo de
dois anos e não mais reconhecerás o som de tua própria voz. infância, é que está de acordo com o pedido, cheio de can-
Antônio .- Adeus! Vou tomar-me falador, seguindo dor, que vou fazer-te. Devo-te muito e pelas faltas de minha
essa escola. juventude livre em excesso, o que te devo está perdido; mas,
Graciano - Tanto melhor, obrigado; pois o silêncio se consentes em lançar outra flecha na direção em que lan-
só é recomendável numa língua defumada ou numa virgem çaste a primeira, como vigiarei o vôo, não duvido que, ou
que não seja venal. (Saem Graciano e Lourenço.) voltarei a encontrar as duas, ou, quando menos, poderei res-
Antônio - Tudo isso tem algum sentido? tituir-te a última aventurada, ficando pela primeira teu de-
B~ânio - Graciano é o homem de Veneza que sabe vedor reconhecido.
dizer o maior número de ninharias. Seus raciocínios são como Antônio - Tu me conheces bem, e, portanto, perdes
dois grãos de trigo perdidos em dois alqueires de palha teu tempo comigo em circunlóquios. Causa-me mais danos
miúda; terias que procurá-Ios um dia inteiro para encontrá- colocando em dúvida a absoluta sinceridade de meu afeto,
los, e, quando os tivesses achado, não valeriam o trabalho que se tivesses dilapidado minha fortuna inteira. Dize-me,
que deram para ser procurados. pois, simplesmente, o que devo fazer, o que posso fazer por
Antônio - Exato; dize-me agora: quem é essa dama ti, segundo teu critério, que estou disposto a realizá-lo. As-
por quem fizeste voto de empreender uma secreta peregri- sim, fala.
nação, da qual me prometeste hoje falar? Bassânio -- Há em Belmonte uma rica herdeira; é bela,
Bassânio - Não ignoras, Antônio, até que ponto dis- mais bela ainda do que esta palavra possa exprimir, em
sipei minha fortuna, exibindo um fausto excessivo, que meus razão de suas maravilhosas virtudes. Várias vezes recebi
parcos recursos não me permitiram sustentar. Não me aflige mensagens sem palavras de seus olhos encantadores. Ela se
ser obrigado a cessar esse plano de vida, visto que meu inte- chama Pórcia. Não é inferior em nada à filha de Catão,
resse principal consiste em sair com honra das enormes dívi- a Pórcia de Bruto. Nem ó vasto Universo ignora o que vale;

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porque os quatro ventos lhe levam pretendentes de renome palácios de príncipes. O bom pregador é aquele q.ue s~gue
de todos os confins. A radiosa cabeleira pende-lhe das têm- seus próprios preceitos; para mim, acharia mais fácil ensmar
poras como um tosão de ouro e transforma sua residência a vinte pessoas o caminho do bem, do que ser uma de~sas
de Belmonte numa praia de Cólquida, onde uma multidão vinte pessoas e obedecer a minhas própria~ !ecome~daçoes.
de Jasãos desembarca para conquistá-Ia. Ó meu Antônio! O cérebro pode promulgar leis contra a parxao; porem, uma
Se tivesse meios de manter uma rivalidade com eles, meu natureza ardente salta por cima de um frio decreto; a louca
espírito me pressagia um tal êxito que não poderia deixar de juventude é semelhante a uma lebre franqueando a,s .redes
sair vencedor. do estropiado bom conselho. Contudo, este rac~ocmlO. de
Antônio - Sabes que toda minha fortuna está no mar nada me serve para ajudar-me a escolher um mando. AI de
e que não tenho dinheiro nem meios de reunir imediatamente mim! Que disse eu: "Escolher"! Não posso ne~ escolher
a soma que teria sido necessária. Assim, vai, investiga o al- quem me agrade nem recusar quem detes,tar: assim, a vo~~
cance de meu crédito em Veneza; estou disposto a esgotar tade de uma filha viva deve curvar-se a vontade do pai
até a última moeda para prover-te com os recursos que te morto. .. Não é duro, N erissa, que eu não possa escolher
permitam ir a Belmonte, residência da bela Pórcia. Vai, nem recusar ninguém?
procura, enquanto eu procurarei de meu lado encontrar o Nerissa - Vosso pai foi sempre virtuoso e os homens
dinheiro e, não duvido que o encontre, seja por meu crédito, sábios têm ao morrer, nobres inspirações; é, pois, evidente
seja em consideração por minha pessoa. (Saem.) que a lote:ia que imaginou com estes três escrínios de o~r~,
de prata e de chumbo (e~ virtude _da q~al q~em lhe adiví-
nhar o pensamento obter a vossa mao), so sera melhor com-
CENA lI: Belmonte. Sala da casa de Pórcia. preendida pelo homem que seja digno de vosso amor. Mas,
Entram Pórcia e Nerissa. sentis alguma ardente afeição por um desses pretendentes
principescos que já vieram?
Pórcia - Palavra de honra, Nerissa, meu pequeno Pórcia - Por favor, recita-me a lista dos nomes deles;
corpo está bem cansado deste grande mundo. segundo os tiveres enumerados, fa~-~e-ei a ?escijçã~ _deles
Nerissa - Teríeis razão para estar cansada, prezada e minha descrição fará com que adlvm?es mm~a ~felçao.
senhora, se vossas misérias fossem tão numerosas quanto vos- Nerissa -- Em primeiro lugar, ha um pnncrpe napo-
sas prosperidades. Entretanto, pelo que estou vendo, a indi-
litano. . ,
gestão faz adoecer tanto quanto a"fome. Não é pequena dita,- Pórcia - Sim, um verdadeiro potro, pOIS so tem um
em verdade, estar colocado nem muito para cima, nem muito assunto: falar do cavalo que possui. Gaba-se, como se fora
para baixo; o supérfluo fica mais depressa de cabelos bran- um grande mérito, de poder ferrá-I o pessoalm~nte! Tenho
cos, porém, o simples bem-estar vive mais tempo. muito medo de que a senhora mãe dele não haja dado um
Pórcia - Boas máximas e bem expressas. passo em falso com algum ferreiro.ê
Nerissa - Seriam bem melhores, se fossem bem se- Nerissa - Em seguida, há um conde palatino.
guidas.
Pórcia - Se fazer fosse tão fácil quanto saber o que é
3 Os napolitanos eram ;famados cavaleiros no tempo de Sha-
preferível, as capelas seriam igrejas e as cabanas dos pobres, kespeare.
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Pórcia - Vive a franzir as sobrancelhas, como um devolvê-Ia quando estivesse em condições. Creio que o fran-
homem que quisesse dizer: "Se não me quiserdes, declara i- cês ficou como fiador e comprometeu-se a devolver em
vos". Ouve estórias engraçadas e não ri. Tenho medo de que dobro.5
ele se torne filósofo Iacrimoso+ quando ficar velho, visto que Nerissa - Que achais do jovem alemão, sobrinho do
em plena juventude é de uma tristeza imoderada. Preferiria duque da Saxônia?
casar-me com uma caveira com um osso entre os dentes a Pórcia - Acho-o repugnante pela manhã, quando está
com qualquer um desses dois. Deus me livre de ambos! sóbrio, e mais repugnante ainda, quando está embriagado
Nerissa - Que dizeis do senhor francês, Monsieur pelas horas da tarde; nos seus melhores momentos, vale pou-
Le Bon? co menos do que um homem e, nas piores horas, vale pouco
Pórcia - Deus o criou, e, portanto, deve passar por mais do que um animal. Se me acontecer, por desgraça, o
homem. Em verdade, sei que o escárnio é um pecado. Po- pior que possa acontecer-me, saberei arranjar-me, para que
rém esse homem! ... Tem Vm melhor cavalo do que o napo- possa desembaraçar-me dele.
litano; supera o conde pala tino no mau costume de franzir Nerissa - Se ele se oferecer para tentar a prova e esco-
as sobrancelhas; é todos os homens sem ser um homem; se lher o escrínio certo, não poderíeis recusá-lo como esposo,
um tordo canta, ele começa imediatamente a fazer cabriolas; sem que vos recusásseis a executar a vontade de vosso pai.
seria capaz de bater-se com a própria sombra; se me casasse Pórcia - Assim, pelo temor de que possa acontecer o
com ele, casar-me-ia com vinte maridos. Se me desdenhasse, pior, põe, por favor, uma grande garrafa de vi?ho do .Reno
eu o perdoaria, pois, mesmo que ele me amasse loucamente, sobre o escrínio contrário, pois, mesmo que o diabo estivesse
eu não poderia corresponder-lhe. dentro se essa tentação estiver por cima, bem sei que ele a
Nerissa -- Que dizeis, então, a Falconbridge, o jovem escolheria. Farei tudo o que puder, Nerissa, desde que não
barão de Inglaterra? me case com uma esponja.
Pórcia - Bem sabe que nada lhe digo, porque não nos Nerissa - Nada tendes a temer, senhora, nenhum des-
compreendemos um ao outro. Não fala latim, francês nem ses senhores será vosso. Eles me informaram de que estão
italiano, e podes jurar diante de um tribunal de justiça que resolvidos a regressar para os próprios países e que não pre-
não possuo nem um penny de inglês. f: o retrato do homem tendem mais importunar-vos com pedidos, a não ser que,
distinto, mas, ai!, quem pode conversar com uma pintura para obter-vos, só exista como único meio a escolha dos
muda? E como se veste de maneira estranha! Penso que escrínios imposta por vosso pai.
comprou o gibão na Itália, os calções na França, o boné na Pórcia - Mesmo que tivesse de viver até a idade da
Alemanha e as maneiras em toda a parte. Sibila 6 morreria casta como Diana, a não ser que fosse con-
Nerissa - Que pensais do lorde escocês, vizinho do quistada de acordo. com o testamento de meu pai. Estou
barão inglês?
Pórcia - Que está dotado de uma caridade de bom
vizinho, porque recebeu uma bofetada do inglês e jurou 5 Para os contemporâneos de Shakespeare, era uma referência
muito clara. Trata-se de uma alusão ao auxílio que a França
prometera dar à Escócia contra a Inglaterra.
4 O filósofo era Heráclito de Éfeso, que chorava vendo os esfor- 6 Viver até a idade da Sibila, ou viver muito, segundo a promessa
ços insensatos das pessoas que desejavam ficar ricas. de Apoio.
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Shylock - Antônio será fiador? Bem.
encantada vendo esses pretendentes tão razoáveis, porque a
ausência de qualquer deles não me faz suspirar e peço a Bassânio - Podeis servir-me? Quereis comprazer-rne?
Deus que Ihes dê uma boa viagem. Conhecerei vossa resposta?
Nerissa - Estais lembrada, senhora, de um veneziano, Shylock - Três mil ducados por três meses e Antônio
sábio e bravo, que aqui esteve, quando vosso pai era vivo, como fiador.
em companhia do Marquês de Montferrat? Bassânio - Qual é vossa resposta?
Pórcia - Sim, sim, era Bassânio! Creio que assim se Shylock - Antônio é bom.
chamava ele. Bassânio - Ouvistes algum dia qualquer opimao em
Nerissa - Exatamente, senhora; de todos os homens contrário? _
vistos até hoje pelos meus humildes olhos, em minha opinião, Shylock - Oh! Não, não, não, não. Minha intençao,
é o mais digno para uma bela dama. dizendo que é bom, é fazer-vos compreender que _o te?ha
Pórcia - Lembro-me bem dele e recordo-me de que na opinião de solvente. Contudo, os r:cu~sos dele sao ~IPO-
era digno de teus elogios. (Entra um Criado.) Então, que téticos· tem um galeão destinado a Trípoli, outro a caminho
há de novo? das Indias; soube, além disto, no Rialto,7 que tem u~. ter-
Criado - Os quatro estrangeiros estão-vos procurando, ceiro no México, e um quarto rumo à Inglaterra. POSS~Iam~a
senhora, para se despedirem de vós. Acaba de chegar o cor- outros espalhados em longínquas regiões. Mas, os ~avlos nao
reio enviado por um quinto, o príncipe de Marrocos. Traz a passam de tábuas, os marinheiros, de homens. ~a ratos na
notícia de que Q príncipe, seu senhor, aqui chegará esta noite. terra e ratos na água, ladrões na terra e ladroes do mar,
Pórcia - Se pudesse desejar as boas-vindas a este quin- quero referir-me aos piratas. Depois, há o perigo ?as águas,
to de tão bom grado, quanto me disponho a dizer adeus aos dos ventos e dos recifes. Não obstante, o homem ~ s?l;ente.
outros quatro, sentir-me-ia feliz com a chegada dele. Mesmo Três mil ducados? Penso que posso aceitar a prormssona.
que tivesse as qualidades de um santo e o aspecto de um Bassânio - Ficai certo de que podeis,
diabo, eu o preferiria para confessor a tê-lo como marido. Shylock - Quero ficar certo e, para certificar-me, pre-
Vamos, Nerissa. Vai na frente, rapaz. No momento em que
CiSO refletir. .. Posso falar com Antônio?
fechamos as portas a um pretendente, outro bate querendo Bassânio - Se quiserdes, podereis jantar conosco.
entrar. (Saem.)
Shylock - Sim, para sentir o cheiro de porco! Para
comer na casa em que vosso profeta, o Nazareno, fez entrar
o diabo por meio de exorcismoslê Quero comprar convos~o,
CENA llI: Veneza. Uma praça pública.
Entram Bassânio e Shylock, vender convosco, falar convosco, passear convosco e assim

Shylock - Três mil ducados? Bem. 7 Além da ponte célebre, Rialto era a Bolsa o.u Câmara de Co-
Bassânio - Sim, senhor, por três meses. mércio, ponto de reunião d~s .mercadores venezianos e onde eram
Shylock - Por três meses? Bem. feitas as transações comerctars.
Bassânio - Por cuja soma, segundo já vos disse, Antô- B Referência•
ao evange lh'o de São Marcos (V, 1-13) na história
nio será fiador. do endemoninhado de Gerasa.
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sucessivamente; mas, não quero comer convosco, beber con- Antônio - Nunca o faço.
vosco, nem orar convosco. Quais são as notícias do Rialto? Shylock - Quando Jacó levava a pastar os carneiros
Quem está chegando? (Entra Antônio.) de seu tio Labão, graças ao que por ele fez sua prudente
Bassânio - É o Signior Antônio. mãe, esse Jacó foi o terceiro patriarca de nosso santo Abraão;
Shylock - (À parte.) Como se parece com um hipó- sim, foi o terceiro ...
crita publicanol? Eu o odeio, porque é cristão, muito mais Antônio - Que tem ele com isto? Emprestava a juros?
ainda, porém, porque, em sua vil simplicidade, empresta di- Shylock - Não, não emprestava a juros, não empres-
nheiro grátis e faz assim baixar a taxa da usura em Veneza, tava diretamente a juros, como diríeis. Escutai bem o que
S.e algum dia conseguir agarrá-lo, saciarei o velho ódio que fazia Jacó. Labão e ele haviam-se comprometido a que todos
sinto por ele. Ele odeia nossa santa nação e até no lugar os cordeiros acabados de nascer listados e malhados seriam
onde se reúnem os mercadores me ridiculariza, bem como o salário de Jacó. Quando, no final do outono, os machos
minhas operações, meus legítimos lucros que ele chama de em cio iam atrás das fêmeas e a obra da geração se efetuava
juros. Maldita seja minha tribo, se eu o perdoar! entre os lanudos seres, o astuto pastor tirava a casca de
Bassânio - Shylock, estais ouvindo? certas varinhas, e, no momento em que se verificava o tra-
Shylock - Estou fazendo o cálculo do capital que balho da Natureza, apresentava-as às ovelhas lascivas, que
tenho disponível no momento, e, por uma avaliação feita de concebiam naquele momento, e na época de parir davam
memória, vejo que me é impossível reunir imediatamente a à luz cordeiros de cores variadas, que passavam para o poder
soma de três mil ducados. Que importa? Tubal, rico hebreu de Jacó. Esta era uma maneira de prosperar e sua ambição
de minha tribo,. fornecer-me-á o que precisar. .. Mas, de- foi abençoada, pois o lucro é uma bênção quando não é
vagar. " Por quantos ~eses desejais essa quantia? (Dirigin- roubado.l?
do-se a Antônio.) Que a sorte vos proteja, meu bom signior. Antônio - Jacó, senhor, tinha em vista um lucro aven-
O nome de Vossa Senhoria estava justamente em nossos turoso, que não estava em seu poder conseguir, mas que era
lábios. criado e regulamentado pela mão de Deus. Será um argu-
Antônio - Shilock, embora não tenha costume de em- mento para justificar o juro? Vosso ouro e vosso dinheiro
pr~star nem de pedir emprestado a juros, entretanto, para são ovelhas e carneiros?
satisfazer as urgentes necessidades de um amigo, romperei Shylock - Não saberia dizer; faço com que se repro-
um hábito. (A Bassânio.) Já está ele a par de quanto desejas? duzam tão depressa também; mas, tomai bem nota do que
Shy)ock - Sim, sim, três mil ducados. digo, signior,
Antônio - E por três meses. Antônio - Notai isto, Bassânio, o diabo pode citar as
Shy)ock - Havia esquecido. .. Três meses, assim me Escrituras para justificar seus fins. Uma alma perversa que
dissestes. Aliás, vossa promissória... Ah! vejamos ... apela para testemunhas sagradas é como um velhaco de riso-
mas ... escutai! Acabais de dizer, parece-me, que não em- nho semblante, como uma bela maçã podre no âmago! Oh!
prestais, nem pedis emprestado a juros. Como a falsidade pode revestir-se de belo exterior!

9 Alusão à parábola do fariseu e do publicano contada no evan- 10 Esse estratagema de Jacó está narrado no primeiro livro da
gelho de São Lucas (XVIII, 10-14). ' Bíblia, o Gênesis (XXX, 2S, 43).

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Shylock - Três mil ducados é uma soma bem grande.
Três meses de doze. " Então, preciso ver; o juro ... vossa afeição, esquecer as afrontas com que me manchastes,
Antônio - Então, Shylock, seremos contemplados por socorrer vossas necessidades presentes, sem nada c~brar po~
vós? meu dinheiro e não quereis ouvir-me! Meu oferecimento e
Shylock - Signior Antônio, muitas e muitas vezes, no generoso. .
Rialto, vós me maltratastes a propósito de meu dinheiro e Bassânio - Seria, com efeito, pura generoslda~e.
dos lucros que o faço produzir; mesmo assim, tudo suportei Shylock - Pois desejo provar-vos esta generosidade.
com paciente encolher de ombros, porque a resignação é a Vinde comigo a um notário, lá assinareis simplesment: uma
virtude característica de toda nossa tribo. Vós me chamastes caução. E, por brincadeira, será estipulado que, se nao p~-
de infiel, cão assassino e cuspistes em meu gabão de judeu; gardes em tal dia, em tal lugar, a soma. ou as somas combi-
tudo isto, pelo uso que fiz do que me pertence. Muito bem; nadas, a penalidade consistirá numa libra exata de_ v~ssa
parece que hoje necessitais de meu auxílio. Avante, pois! bela carne, que poderá ser escolhida e cortada de nao Im-
Vindes a mim e me dizeis: "Shylock, teríamos necessidade porta que parte de vosso corpo que for de meu agrado: .
de dinheiro". Dizeis isto, vós que expelistes vossa saliva sobre Antônio - Por minha fé, estou de acord~; assinarei
minha barba e que me expulsastes a pontapés, como enxota- a caução e direi que há muita generosidade no Judeu.
ríeis de vossa porta um cão vagabundo. Pedis dinheiro. Que BassaDIO - Não deveis assinar semelhante documento
A.

devo dizer-vos? Não deveria responder: "Um cão tem di- por minha causa; prefiro continuar na necessidade em que
nheiro? É possível que um cão tinhoso vos empreste três me encontro. . _ h'
mil ducados?" Ou, então, devo inclinar-me profundamente Antônio - Vamos, nada receeis, meu amigo. Nao a
e, com um tom servil, prendendo minha respiração num .
pengo de que venha a faltar com o prometido,
. _ pois, nestes
murmúrio de humildade, dizer-vos isto: "Arrogante senhor, dois meses, ou seja, um mês antes da expiraçao do ~razo,
cuspistes sobre mim na última quarta-feira; vós me expul- espero receber três vezes o triplo do valor _desta cauç~o._ ,
sastes a pontapés em tal dia; noutra ocasião me chamastes Shylock - Oh! pai Abraão, como .sao esses :nstaos.
de cão; por todas essas amabilidades, devo emprestar-vos
tanto dinheiro?" A crueldade dos atos que praticam os ensm~ a s~speltar das
intenções do próximo! Por favor, respond~l-me isto: se por
Antônio - Tenho bem vontade de chamar-te nova- acaso ele faltar ao pagamento no dia co~b!nado, que. ganha-
mente as mesmas coisas, de cuspir-te de novo e dar-te, tam- ria eu exigindo o cumprimento da condição? Uma libra. de
bém, pontapés. Se queres emprestar esse dinheiro, empres- carne humana não tem tanto preço, nem pode aproveitar
ta-o, não como a teus amigos, pois já se viu alguma vez tanto quanto a carne de carneiro, de boi ou de cabra. Re-
que a amizade haja exigido de um amigo sacrifício de um pito-o, é para conquistar-lhe as boas graç~s ,que lhe ~stou f_a-
estéril pedaço de metal? Não! Antes disto, considera esse zendo esta amistosa oferta. Se quiser aceita-Ia, bem, s_cnao
empréstimo como feito a teu inimigo, de quem poderás con- quiser, adeus. Mas, em reciprocidade por meu afeto, nao me
seguir castigo com maior facilidade, caso não cumpra a injurieis, por favor. _
palavra empenhada.
Antônio - Sim, Shylock, assinarei essa cauçao. ,.
Shylock - Ah! Vede como vos deixais dominar pela
Shylock - Então, esperai-rne daqui a po~co n.o notário;
paixão! Tinha vontade de reconciliar-me convosco, merecer
dai-lhe as instruções necessárias para esse divertido doeu-
300
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mento e, quando chegar, eu vos embolsarei imediatamente a dar-me por esposa a quem me conquistar segundo os meios
os ducados. Quero dar uma vista d'olhos em minha casa que que vos disse, vós, príncipe afamado, teríeis tantos direito~
deixei sob a perigosa guarda de um servidor descuidado e, à minha afeição como quaisquer dos pretendentes que VI
imediatamente, estarei convosco.
até agora.
Antônio - Apressa-te, amável judeu. (Sai Shylock.) Príncipe de Marrocos - Isto é suficiente para que eu
Esse hebreu acabará por virar cristão, está-se tornando bom.
vos agradeça. Levai-me, por obséquio, para o lugar ond.e se
Bassânio - Não me agradam termos delicados e alma encontram os escrínios, a fim de que eu experimente minha
de vilão.
fortuna. Por esta cimitarra que degolou o Sofi!' e um prín-
Antônio - Vamos; nada poderá acontecer de desagra- cipe persa, que venceu três batalhas sobre o sultão S?limão,12
dável. Meus navios voltarão um mês antes do dia combi- seria capaz para conquistar-te, minha dama, de fulminar com
nado. (Saem.)
a vista os olhos mais ameaçadores, de superar em bravura
o coração mais intrépido da Terra, de arrancar das mamas
da ursa os ursinhos e, mesmo, de insultar o leão quando
ATO SEGUNDO estiver rugindo atrás de uma presa. Porém, ai agora! Se Hér-
cules e Licas 13jogam dados para saber quem é o maior dos
CENA I: Belmonte. Sala na casa de Pórcia. dois, a maior jogada pode cair por acaso na mão do mais
Fanjarra de cornetas. Entram o Príncipe de Marrocos, fraco e AIcides será vencido pelo próprio pajem. Assim
seguido de séquito; Pórcia, Nerissa e outros
acompanhantes. poderia eu, guiado pela cega fortuna, perder o que poderia
conseguir um menos digno, e morreria então de dor '.
Príncipe de Marrocos - Não me desdenheis por causa Põrcía - Tendes que aceitar vossa sorte. Assim, ou
de minha tez, libré escura do sol de bronze de que sou vizi- renunciai a toda escolha, ou jurai, antes de escolher que,
nho e perto de quem fui criado. Trazei-me o mais branco se escolherdes mal, jamais no futuro falareis de casamento
ser nascido ao Norte, onde o fogo de Febo funde apenas com qualquer dama. .. Refleti, pois.
os pedaços de gelo; e por vosso amor, faremos incisões para Príncipe de Marrocos - Aceito as condições. Vamos,
saber qual o sangue mais vermelho, o dele ou o meu. Posso conduzi-me à minha sorte.
garantir-vos, senhora, este rosto aterrorizou os bravos. Juro Pórcia _. Vamos primeiro ao templo. Depois do jan-
pelo amor que me inspirais que as virgens mais admiradas tar, consultareis a sorte.
de nossos climas também o amaram'. Não quereria, pois,
mudar de cor, a não ser que pudesse com isto conquistar
vossos pensamentos, minha gentil rainha. 11 O Soji era o xá da Pérsia. Palavra que significa o sábio, ilustre

Pórcia - Em minha escolha, não sou unicamente guia- e hábil.


12 Solimão Il, o Magnífico, que viveu na última ~écada d? século
da pela impressão superficial de um olhar de donzela; além XV até meados do século XVI. Shakespeare tinha dois anos,
disto, a loteria de meu destino tira-me o direito de uma pre- quando ele morreu. .
ferência voluntária. Mas, se meu pai não tivesse limitado 13 Licas levou a túnica de Nesso a Hércules da parte de Deja-

minha liberdade e obrigado com sua prudência engenhosa nira. Furioso, Hércules o agarrou pelo pé e atirou ao mar Egeu,
onde se transformou em rochedo.
302
303
Príncipe de Marrocos - Que a fortuna então seja-me para dar-me conselho de ficar na casa do judeu. É o diabo
propícia! Pode tornar-me o mais feliz ou o ~ais de'sgraçado quem me dá o conselho mais amigável. Vou fugir, demônio;
dos mortais. (Fanfarra. Saem.) minhas pernas estão a vossas ordens. Vou raspar-me. (Entra
o velho Gobo, trazendo uma cesta.)
Gobo - Meu jovem senhor, por obséquio: qual o ca-
CENA lI: Veneza. Uma rua. minho para ir à casa do senhor judeu?
Entra Lance/ote Gobo. Lancelote - (A parte.) Oh! céus! E o verdadeiro autor
de meus dias! Como está com a vista turva, quase cego,
Lancelote - Certamente, minha consciência me fará
não me pode reconhecer. Vou fazer uma experiência com ele.
abandonar a casa do judeu meu amo. O demônio me toca Gobo _ Meu jovem senhor, por obséquio: qual o ca-
no cotovelo e me tenta, dizendo: "Gobo.l- Lancelote Gobo,
minho para ir à casa do senhor judeu?
bondoso Lancelote", ou "bondoso Lancelote Gobo usa tuas Lancelote - Virai à vossa mão direita na primeira es-
pernas, toma_impulso e foge!" Minha consciência diz: "Não;
quina; mas, na última esquina de todas, tomai à esquerda e,
presta atençao, honrado Lancelote; tem cuidado honrado
depois, na esquina que se segue a esta última não vireis nem
Gobo", ou, como já disse antes, "honrado Lancelote Gobo à direita, nem à esquerda, mas desce i indiretamente para a
não fujas; despreza a idéia de pôr os pés no mundo". Porém'
o demônio imperturbável ordena que me avie: "Anda!", ex~ casa do judeu.
Gob'o _ Pelos santos de Deus! Vai ser um caminho
cl~ma o demônio. "Vai-te!", diz o demônio. "Em nome do difícil de encontrar. Podereis dizer-me se um tal Lancelote,
Ceu~ tom~ uma, decisão enérgica e parte", diz o demônio.
que vive com ele, ainda lá está ou não?
Entao.: mm.ha consciência, inclinando-se ao pescoço de meu Lancelote - Falais do jovem Senhor Lancelote? (À par-
cor~çao, diz estas prudentíssimas palavras: "Meu honesto te.) Prestai-me bem atenção. Vou fazer agora correr as lá-
aml~o Lancelote: tu, que és filho de um homem honrado ... "
grimas.l'' Falais do jovem Senhor Lancelote?
(~ena melhor dizer o filho de mulher honrada, porque, para Gobo - Não é um senhor, mas o filho de um pobre
dizer verdade, m~u pai teve_ certo vício, certa inclinação, homem; o pai dele, embora seja eu quem o diga, é um pobre
~erto gosto especial ... ) Entao, minha consciência me diz: homem, extremamente pobre, e, graças a Deus, com boa
Lancelote, não te mexas!" "Mexe-te!", diz o demônio.
"Consciência," digo eu, "estais dando um bom conselho." disposição para viver.
Lancelote _ Muito bem; seja o pai dele o que for,
~e me deixar dirigir por minha consciência, ficarei com o
falemos do jovem Senhor Lancelote.
Jud:u. meu a~o, que Deus perdoe minha observação, é uma Gobo _ Simplesmente Lancelote, senhor, para servir
especie ,de. diabo; se fugir de casa do judeu, devo obedecer
ao demônio, qu~, salvo vosso respeito, é o diabo em pessoa. Vossa Senhoria.
Lancelote - Mas, por favor, ergo, ancião, ergo vos
Certamente, o Judeu é o próprio diabo encarnado' e em
suplico: estais falando do jovem Senhor Lancelote?
consciência, minha consciência é uma consciência b~m 'dura Gobo - De Lancelote, se for do agrado de Vossa
Honra.
14 Gobbo significa o corcunda. Conservamos a palavra, que é
tradicional, aportuguesando-a. 15 A frase é: now will I raise the waters.
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Lancelote - Ergo, do Senhor Lancelote! Não faleis do! Que barba arranjaste! Estás com mais cabelo em teu
do Senhor Lancelote, pai, pois, o jovem gentil-homem, de queixo do que Dobbin, cavalo de minha carroça, na cauda.
acordo com os fados e os destinos e outras locuções heteró- Lancelote - Parece, então, que a cauda de Dobbin
ditas, como as Três Irmãs, e semelhantes ramos da erudição, cresce ao contrário. Estou certo de que ele tinha mais pêlo
faleceu ou, como diríamos em termos mais simples, partiu na cauda do que eu no rosto quando o vi pela última vez.
para o céu. Gobo - Meu Deus, como estás mudado! Como estais
Gobo - Irra! Queira Deus que não! O rapaz era o passando, teu amo e tu? Trouxe um presente para ele. Como
único bastão de minha velhice, meu único arrimo. estais passando agora?
Lancelote - Será que me pareço com um porrete ou Lancelote - Bem, bem; mas, quanto a mim, como
ou uma viga, com um bastão ou uma escora? Não me resolvi fugir do emprego, não pararei até que esteja a boa
reconheceis, pai? distância da casa dele. Meu amo é um perfeito judeu. Dar-
Gobo - Ai de mim! Não vos reconheço, jovem fidalgo; lhe um presente! Dai-lhe um baraço. Estou morrendo de
mas, por favor, dizei-me: meu rapaz (Deus proteja sua alma) fome ao serviço dele. Podeis contar todos os ossos que tenho
está vivo ou morto? nas costelas. Pai, estou contente com vossa vinda; entregai-
Lancelote - Não me estais reconhecendo, pai? me vosso presente para um tal Senhor Bassânio, que, por
Gobo - Ai! Senhor, estou quase cego, não vos conheço. certo dá aos servidores magníficas librés novas! Se não entrar
Lancelote - Na verdade, mesmo que tivésseis vossos para 'o serviço dele, fugirei para tão distante, até aonde vai
olhos, poderíeis muito bem não reconhecer-me; bem hábil é a Terra de Deus ... Oh! rara felicidade! Ei-lo chegando em
o pai que reconhece o próprio filho! Vamos, velho, vou dar pessoa. Dirijamo-nos a ele, pai, porque vou virar judeu, se
notícias de vosso filho. Dai-me vossa bênção; a verdade vem continuo servindo em casa do judeu. (Entram Bassãnio,
sempre ~ luz; um crime não pode ficar oculto muito tempo, Leonardo e outros acompanhantes.)
mas, o filho de um homem pode; porém, a verdade é desco- Bassânio - Podeis fazê-lo assim, mas, apressai-vos, pois
berta no fim.
a ceia deve estar pronta, o mais tardar, às cinco horas.
Gobo - Por favor, senhor, levantai-vos: estou certo Mandai entregar estas cartas, encomendai as librés e solicitai
de que não sois Lancelote, meu filho. a Graciano que venha imediatamente à minha casa. (Sai um
Lancelote - Por favor, não digamos mais disparates
Criado.)
sobre este assunto, mas concedei-me vossa bênção. Sou Lan- Lancelote - Abordai-o, pai.
celote, que era vosso rapaz, que é vosso filho, que será
Gobo - Deus abençoe Vossa Senhoria!
sempre vosso menino.
Bessânio - Muito obrigado. Desejais alguma coisa co-
Gobo - Não posso acreditar que sejais meu filho.
Lancelote - Não sei o que devo acreditar a este res- mlgo.?
.
.
Gobo - Aqui está meu filho, senhor, um pobre ra-
peito; mas, eu sou Lancelote, o criado do judeu, e estou
certo de que Margarida, vossa esposa, é minha mãe. paz ...
Gobo - Com efeito, o nome dela é Margarida e afir- Lancelote - Um pobre rapaz, não, senhor, mas o criado
marei sob juramento que, se és Lancelote, és, sem dúvida, do rico judeu que desejava, senhor, como meu pai vos espe-
minha própria carne e meu próprio sangue. Deus seja louva- cificará ...

306 307
Gobo - Tem, como se disséssemos, uma grande infec- Lancelote - Vamos embora, pai. Não sei pedir um
çã016 de servir ... emprego, não; nunca tive língua em minha. cabeça. Bem; se
Lancelote - Para ser breve, a verdade é que sou ser- há um homem na Itália que, para prestar Juramento, possa
vidor do judeu e tenho um desejo, como meu pai vos espe- mostrar mais bela palma em que apoiar um livro, terei toda
cificará ... a classe de boas fortunas. Vede: eis aqui somente esta linha
Gobo - Ele e o patrão, salvo o respeito devido a Vos- da vida. Aqui há uma pequena provisão de mulheres. Ai!
sa Excelência, não combinam muito um com o outro ... 17 Quinze mulheres; mas, isso não é nada! Onze viúvas e nove
Lancelote - Para ser breve, a perfeita verdade é que donzelas constituem uma parte modesta para um homem.
o judeu, tendo-me maltratado, força-me, como meu pai, que E logo escapar por três vezes ao afogamento e estar prest~s
é um velho, vos explicará com facúndia ... a perder minha vida na borda de uma. cama d~ plumas. EIs
Gobo - Tenho aqui um prato de pombos que dese- aqui um bom número de pequenos riscos! POIS bem: se a
jaria oferecer a Vossa Senhoria e minha solicitação é ... Fortuna for mulher, forçoso será convir que se mostra b?a
Lancelote - Para ser breve, a demanda é para mim pequena neste horóscopo. Pai, vamos embora; vou despedir-
de grande ímpertinênciatê assim como poderá Vossa Exce- me do judeu num abrir e fechar de olhos. (Saem Lance/ote e
lência saber através deste honesto velho, que, embora seja eu o velho Gobo.)
quem o diga, é pobre, velho e além do mais, é meu pai ... Bassânio - Por favor, meu bom Leonardo, pensa nisto:
Bassânio - Que fale um só pelos dois. Que desejais? uma vez compradas e devidamente distribuídas todas essas
Lancelote - Servir-vos, senhor. coisas, volta a toda pressa, pois esta noite dou uma festa a
Gobo - Eis aí o único defeito de nosso pedido, senhor. meus melhores amigos. Vamos, depressa.
Bassânio - Eu te conheço bem; está deferida tua peti- Leonardo - Porei todo meu zelo no que ordenais.
ção. Shylock, teu amo, falou hoje comigo e propôs fazer-te (Entra Graciano.)
progredir, se progresso supõe o abandono do serviço de um Graciano - Onde está teu amo?
rico judeu para fazeres parte dos servidores de um pobre Leonardo - Ali, senhor; está passeando. (Sai.)
gentil-homem como eu. Graciano - Signior Bassânio! ...
Lancelote - O velho provérbio 19 é muito bem parti- Bassânio - Graciano!
lhado entre meu amo Shylock e vós, senhor: vós tendes a Graciano - Quero fazer-te um pedido.
graça de Deus, senhor, e ele, a riqueza. Bassânio - Já está concedido.
Bassânio - Falaste bem. Vai despedir-te de teu velho Graciano -Não me podes negá-lo. Quero ir contigo
amo e procura saber onde moro. Dêem-lhe uma libré mais a Belmonte.
brilhante do que aos camaradas; não esqueçam. Bassânio - Se necessitas, está bem. Mas, escuta, Gra-
ciano: és muito petulante, brusco e ríspido em excesso quando
falas. Estes modos te assentam muito bem e não representam
16 He hath a great injection, em lugar de ajiection, defeitos para olhos como os nossos; mas, para aqueles que
17 Are scarce cater-cousins, <?useja, são apenas primos em quarto
grau. não te conhecem, são considerados livres demais. E~ te peço
18 The suit is impertinent por irrelevant. que tenhas o cuidado de moderar, com algumas fnas gotas
19 O velho provérbio é: The Grace oi God is gear enough. de modéstia, a efervescência de teu espírito, a fim de que tua

308 309
louca conduta não me faça ser mal julgado nos lugares aonde palavra. Encantadora pagãl?' Deliciosa judia! Se algum cris-
vou, o que arruinaria minhas esperanças. tão não fizer patifaria para possuir-te, ficarei bem desapon-
Graciano - Signior Bassânio, ouve-me: se não me vires tado. Mas, adeus! Estas lágrimas tolas quase afogaram mi-
adotar um ar grave, falar com reserva, jurar moderadamente, nha coragem viril. Adeus!
trazer no meu bolso livros de oração, tomar um ar compun- Jessica - Adeus, bondoso Lancelote. (Sai Lance/ate
gido, e, mais ainda, quando forem dadas as graças, esconder Gobo.) Ai! Que pecado odioso cometo tendo vergonha de
os olhos assim com meu chapéu.w suspirar e dizer: "Amém!" ser filha de meu pai! Mas, embora seja filha dele pelo san-
enfim, observar todos os hábitos da civilidade, como um ser gue, não o sou pelo caráter. Ó Lourenço! Se mantiveres tua
que procura manter um aspecto solene para agradar a pró- promessa, terminarei todas estas lutas, convertendo-me ao
pria avó, jamais confies em mim. cristianismo e casando-me contigo. (Sai.)
Bassânio - Está bem, veremos qual será teu compor-
tamento.
Graciano - Mas, faço exceção para esta noite. Não CENA IV: Veneza. Uma rua.
me julgarás pelo que fizer hoje. Entram Graciano, Lourenço, Salarino e Salânio.
Bassânio - Não, seria lamentável. Antes pedirei a teu
engenho para que mostre esta noite o mais belo traje de Lourenço - E isso: escapuliremos na hora da ceia;
alegria, pois contaremos com amigos que querem divertir- poremos um disfarce em minha casa e voltaremos em menos
se ... Até logo! Ainda tenho algumas coisas para fazer. de uma hora.
Graciano -'- E eu preciso procurar Lourenço e os Graciano - Não fizemos preparativos suficientes.
outros; porém, tornaremos a encontrar-nos na hora da Salarino - Ainda não contratamos os porta-archotes.
ceia. (Saem.) Salânio - Torna-se vulgar, quando não é elegante-
mente preparado; seria melhor, na minha opinião, que de-
CENA Il l: Veneza. Sala na casa de Shylock. sistíssemos.
Entram Jessica e Lancelote Gobo. Lourenço - Não passa de quatro horas. Temos ainda
duas horas para nos preparar. (Entra Lancelote Gabo com
Jessica - Sinto que deixes meu pai assim; nossa casa uma carta.) Amigo Lancelote, quais são as novidades?
é um inferno e tu, um alegre diabo, tiravas um pouco do Lancelote - Se for de vosso agrado romper este ca-
cheiro de tédio que havia nela. Entretanto, espero que passes rimbo, provavelmente podereis saber.
bem. Aqui está um ducado que te dou. Esta noite, durante Lourenço - Conheço a mão; por minha fé, é uma
a ceia, Lancelote, irás ver Lourenço, que é convidado de teu bela mão e mais branca do que o papel em que escreveu.
novo patrão; dá-lhe esta carta... secretamente! E, agora, Graciano - Notícias de amor, sem dúvida.
adeus; não desejaria que meu pai me visse falando contigo. Lancelote - Com vossa permissão, senhor.
Lancelote - Adeus!. .. As lágrimas são minha única Lourenço - Aonde vais agora?
Lancelote - Ora, senhor, convidar meu antigo amo,
20Até bem próximo de nossos dias, comia-se de chapéu na ca-
beça. Só era tirado na hora da ação de graças. 21 Pagan, em inglês, tem também o significado de prostituta.
310 311
o judeu, para cear esta noite com meu novo amo, o cristão. Jessica - Estais chamando? Que quereis?
Lourenço - Espera; toma isto... Vai dizer à gentil Shylock - Fui convidado para cear fora, Jessica. Aqui
Jessica que não faltarei. Fala-lhe em segredo, anda. (Sai estão minhas chaves. Mas, por que deveria ir? Não é por
Lance/ote Gobo.) Cavalheiros, quereis fazer os preparativos amizade que me convidam; querem adular-me! ~es~o a~-
para a mascarada desta noite? Já tenho um porta-archote. sim, irei, mas por ódio, para comer à custa do cnstao pro-
Salarino - Sim, ora essa! Preciso ocupar-me disso. digo .. , Jessica, minha filha, toma conta de minha casa ...
Salânio - E eu também. Tenho verdadeira repugnância em sair; estão preparando
Lourenço - Encontrai-me a Graciano e a mim, den- qualquer coisa contra meu repouso, pois, esta noite, sonhei
tro de uma hora, no alojamento de Graciano. com sacos de dinheiro.
Salarino - Sim, está bem. (Saem Sa/arino e Salãnio.) Lancelote - Por favor, senhor, ide embora. Meu jo-
Graciano - Essa carta não era da bela Jessica? vem amo aguarda impaciente vossa presença.ê?
Lourenço - Preciso dizer-te tudo! Ela me fala do meio Shylock - E eu a dele.
pelo qual devo raptá-Ia da casa do pai, do ouro e das jóias Lancelote - Eles conspiraram juntos... Não quero
com que ela se muniu, da roupa de pajem que já está pronta. dizer que vereis uma mascarada, mas se a virdes, nã? ~erá
Se algum dia o judeu, pai dela, for para o céu, será graças sido em vão que meu nariz começou a sangrar na ultima
à encantadora filha; quanto a ela, jamais a desgraça teria segunda-feira da Páscoa.P às seis horas da manhã, quando
coragem de barrar-Ihe o caminho, a não ser que seja sob o sangrou, há quatro anos, na quarta-feira de Cinzas de tarde.
pretexto de que -se trata de filha de um judeu infiel. Vamos, Shylock - Como! Há máscaras?.. Escuta-me bem,
vem comigo; vai lendo isto, enquanto estivermos a caminho.
Jessica. Aferrolha minhas portas e quando escutares o ta,:?-
A bela Jessica será meu porta-archote. (Saem.)
bor ou o silvo ridículo do pífaro de pescoço torto,24 nao
trepes nas janelas, nem ponhas tua cabeça na via públic.a
para contemplar esses loucos cristãos de. semblante.s enverru-
CENA V: Diante da casa de Shylock.
Entram Shylock e Lancelote Gobo.
zados, porém, ao contrário, tapa os OUVidosde minha .ca,s~,
quero dizer, minhas janelas. Não deixes que o barulho mU~ll
Shylock - Está certo. Verás como teus olhos notarão da dissipação entre em minha austera casa! ... Pelo bastao
de Jacó,25 juro que não tenho qualquer vontade de cear fora
a diferença entre o velho Shylock e Bassânio. Ó Jessica!
Não vais comer tanto quanto em minha casa. Ó Jessica!
Nem dormir, nem roncar, nem rasgar tua libré! Ó Jessica! 22 Lancelote diz: ... doth exp ect your reproach.
Estou chamando! 23 Black-Monday , em inglês, assim chamada, por~ue houv; uma
Lancelote - O Jessica! tempestade a 14 de abril de 1360 (segunda-feira de P.ascoa),
Shylock - Quem te mandou chamar? Não disse que quando Eduardo 111se encontrava diante de ParIS e muitos de
chamasses ninguém. seus soldados morreram de resfriado.
24 O tocado r de flauta deixa cair a cabeça para um lado.
Lancelote - Vossa Excelência tinha o hábito de re-
25 Jacob's stai], em inglês, referindo-se ao bastão ~o peregrino,
preender-me porque jamais fazia qualquer coisa sem receber
pois São Jaime (St. James) ou Jacó era o padroeiro dos pere-
ordens. (Entra Jessica.) grinos. Referência ao Gênesis (XXXII).
312 313
hoje de. noite; ma~, irei... Vai na minha frente, rapaz, e Graciano - B de espantar que ele não chegue na hora,
podes dizer que nao tardarei.
pois os amantes correm sempre na frente do relógio.
LanceIote - Irei na frente, senhor. Olhai pela janela, Salarino - Oh! As pombas de Vênuse' voam dez vezes
senhora, apesar das recomendações em contrário.
mais depressa quando se trata de selar laços de amor recém-
contraídos do que para guardar intacta a fé jurada.
Vereis um cristão passar
Graciano - B sempre assim. Quem, pois, levantando-se
Digno de judia 01har.26
(Sai.) de um festim, tem ainda o apetite tão forte como na hora
em que se assentou? Onde está o cavalo capaz de voltar
ShyIock - Que está dizendo esse imbecil da família
de Agar?27 Hein? sobre as pegadas de sua fatigante jornada com o fogoso brio
da partilha inicial? Todas as coisas deste mundo são perse-
Jessica - Ele só me disse: "Adeus, senhora!" Na- guidas com maior ardor do que gozadas. Como se parece
da mais.
com um jovem ou com um filho pródigo a barca empavesada
ShyIock - B um bom rapaz, mas come demais, lento que sai da baía natal acariciada e beijada pela brisa cortesã!
para o trabalho como um caracol e dorme de dia mais do E quando, semelhante também ao filho pródigo, volta com
q~e um gat~ montês. Os zângãos não podem pertencer à os flancos avariados pelas borrascas, as velas em farrapos,
minha col,,?ela. Logo, assim, me separo dele e o deixo para extenuada, arruinada, esgotada pela brisa cortesã!
para que sirva a certa pessoa, a quem quisera que ajudasse Salarino - Está chegando Lourenço. Retomaremos este
a gastar o dinheiro emprestado ... Vamos, Jessica, ide para assunto mais tarde. (Entra Lourenço.)
dentro; talvez, volte daqui a pouco; faze como disse fecha as Lourenço - Caros amigos, desculpai-me pela minha
p~rt~ atrás de ti. Quem guarda, logo encontra. Eis um pro- demora! Não fui eu, mas os meus negócios que vos fizeram
vérbio qu.e nunca envelhece para um espírito econômico. (Sai.) esperar. Quando vos quiserdes tornar ladrões de esposas,
Jessíea - Adeus! Se a Fortuna não me for contrária prometo-vos, também, ter a paciência de esperar t~nto
teremos perdido, eu, um pai, e vós, uma filha. (Sai.) , tempo por vós. Aproximai-vos: aqui mora meu par, o
judeu. Olá! Quem está aí? (Aparece Jessica, na janela, ves-
tida de pajem.) .
CENA VI: A mesma. . Jessica - Quem sois vós? Dizei-rne para que me certí-
Entram Graciano e Salarino, mascarados. fique, embora possa jurar que reconheço vossa voz.
Lourenço - Lourenço, teu amor!
Graci:mo - Este é o alpendre, debaixo do qual Lou- Jessíca - Lourenço, certamente, e meu amor, essa é a
renço desejava que nós esperássemos.
verdade, pois quem amo eu tanto? Quanto a saber se sou o
SaIarino - Quase já passou da hora combinada. teu ninguém mais do que tu pode dizê-lo, Lourenço.
, Lourenço - O céu e teus pensamentos são testemu-
nhas de que és.
26 Era uma. frase proverbial wortn a Jew's eye. Era o preço
pago pelos Judeus para gozarem de imunidade de mutilação ou Jessica - Olha aqui, apanha este escrínio; vale bem a
morte.
27 Agar era escrava de Abraão, logo, Shylock quer dizer escravo.
28 O carro de Vênus era puxado por pombas.
314
315
pena. Estou contente que seja noite e que não me possas
Graciano - Sinto grande prazer com estas notícias;
ver, pois sinto-me completamente envergonhada com meu
nada desejo com mais prazer do que estar sob as velas e em-
disfarce. Felizmente, o amor é cego e os amantes não podem
barcar hoje de noite. (Saem.)
ver as encantadoras loucuras que eles próprios cometem; se
pudessem, até Cupido coraria, vendo-me assim transformada
em rapaz.
CENA VII: Belmonte. Sala na casa de pórcia,. .
Lourenço - Desce, porque deves servir-me de porta- Fanjarra de cornetas. Entra Pórcia com o Principe de
archote.
Marrocos e respectivos séquitos.
Jessica - Como! Vou ter que iluminar minha vergo-
nha? Ela já está por si mesma muito, excessivamente visível. P'·orCla - Vamos , abram as cortinas e mostrem os dife-
Porém, meu amor, é uma função própria para fazer-me des-
rentes escrínios ao nobre príncipe! ~co~hei, agor~. de
cobrir, quando deveria manter-me na obscuridade.
Príncipe de Marrocos - O pnrneiro, qu: e our~'
Lourenço - Não estás oculta, meu encanto, com
esse gracioso traje de pajem? Mas, vem logo: a noite tem esta inscrição: "Quem me escolher, ganhara o que mUl~
foge rapidamente e estamos sendo esperados na festa de d . " O segundo de prata, traz esta promessa.
Bassânio. tos esejam. '. , .1 ue merecer". O
"Quem me escolher, conseguira aqUl.o q. _ _ I
Jessica - Vou fechar as portas, dourar-me com .
terceiro, d e, chumbo vil tem uma inscnçao tao vu. gar
alguns ducados mais e daqui a pouco estarei contigo. (Sai quanto seu me tal: a . "Quem me escolher, deve dar eh arriscar
d
da janela.]
tudo o que t em." Como vou saber se estou escol en o o
Graciano ~ Por meu capuz, é uma gentia e não uma
judia. certo? ,. Se
P'·orCla - Um deles contém meu retrato, pnncipe.
Lourenço - Que seja eu maldito, se não a amo de
o escolherdes, serei toda vossa. . .. . I
todo o meu coração! Ela é discreta, até onde possa julgar; P' . de Marrocos - Que um deus dirija meu jui-
ela é bela, se meus olhos não estão me enganando; é fiel, rmClpe . . _ Q diz este es-
amento! Vejamos; vou reler as mscnçoes. ue .
como já me deu prova. Por isto, sendo bela, discreta e sin-
g ,. de chumbo? "Quem me escolher, deve dar e hurnbo!
cera, reinará constantemente em meu coração. (Entra Jessica, CrImo tem" Deve dar ... A troco de quê? De chum o.
embaixo.) Então, resolveste vir? .. Em marcha, senhores, em tudo o q~e . troco de chumbo? Este escrínio ameaça:
marcha. Nossos companheiros de mascarada já estão nos Tudo arriscar em d vanta-
os homens que tudo arriscam só o fazem_ espera~ o d .
esperando. (Sai com Jessica e Salarino. Entra Antônio.) com ensadoras. Uma alma de ouro nao se deixa se uzir
Antônio - Quem está aí?
gpeonrSum :etal vil: nada quero dar, nada arriscar pelo chum bo.
Graciano - Signior Antônio! , . . I? "Quem me esco 1h er,
Que diz a prata com sua cor virgina : I P' ra
Antônio - Então, onde estão todos os outros? Já são er" Aquilo que merecer. a
conseguirá aquilo que merec . _.. I
nove horas? Todos os nossos amigos estão à tua espera. Não um ouco Marrocos, e pesa teu valor com mao Imparc~a :
haverá mascarada hoje de noite; o vento é bom e Bassânio
Se e~tás a~aliado segundo tua própria es~ma, m;~e~::a":t~~~
vai embarcar imediatamente. Enviei vinte pessoas para que , muito não basta para fazer-te c egar a .
te procurassem.
porem'tudo
e, con, duvidar de_ meu mérito seria, de minha parte,
316 317
uma desistência pusilânime! Aquilo que eu merecer! Ora, é Príncipe de Marrocos - Oh! inferno! Que temos aqui?
esta dama o que mereço. Mereço-a por meu nascimento e Uma caveira.êl tendo nas órbitas vazias um papel escrito.
por minha fortuna, por meus atrativos e por minhas quali- Vamos lê-lo:
dades de educação, e muito mais ainda, mereço-a pelo meu
amor. Pois bem: se não buscasse mais longe, escolhendo este N em tudo que luz é ouro,
escrínio? Vejamos novamente o que diz esta insígnia gravada Dizer muita vez ouviste,
em ouro: "Quem me escolher ganhará o que muitos homens Muito homem vendeu a vida
desejam". Ora, refere-se à dama! Todo o mundo a deseja; Só para me contemplar.
dos quatro cantos da Terra vêm para beijar o relicário da Tumbas d'ouro guardam vermes.
santa mortal que aqui respira. Os desertos da Hircânia.ê? as Se ousado foras quão sábio,
vastas solidões da imensa Arábia estão, agora, convertidos em Corpo jovem, mente velha,
grandes caminhos para os príncipes desejosos de visitar a Tal resposta não terias.
bela Pórcia, O império das águas, cuja cabeça ambiciosa Adeus! Perdeste teu prêmio.
escarra na face do céu, não é barreira bastante para deter os
ardores dos estrangeiros; todos a atravessam como um arroio Bem perdido, sem dúvida, e esforços perdidos. Adeus,
para ver a bela Pórcia. Um destes três escrínios contém sua então chama ardente! Salve, coração de gelo! Pórcia, adeus!
celeste imagem. Será provável que esteja no escrínio de Estou com o coração tão dolorido que não posso mais pro-
chumbo? Seria um sacrilégio ter uma idéia tão baixa; seria longar esta penosa despedida. Assim, partem os que perdem.
um metal vil demais para guardar incluso o sudário dela na (Sai com o séquito. Fanfarra de cornetas.)
· . 1
obscuridade de sua tumba. Pensarei que essa imagem esteja Pórcia - Que alívio!... Fec hai as cortmas, vamos.
entre muros de prata que são dez vezes menos apreciados do Espero que todos os que têm a mesma cor escolham-me co-
que o ouro? Oh! pensamento horrível! Jamais uma jóia tão mo ele! (Saem.)
rica foi engastada num metal inferior ao ouro. Há na Ingla-
terra uma moeda de ouro, na qual a figura de um anjo> está
gravada, mas somente é a superfície que está gravada, en- CENA VIII: Veneza. Uma rua.
quanto que aqui está interiormente, num leito de ouro, dei- Entram Salarino e Salânio.
tado um anjo. Entregai-me a chave. Escolho este, aconteça o
Salarino - Sim, homem, vi Bassânio embarcar. Gra-
que acontecer!
ciano partiu com ele, e estou certo de que Lourenço não está
Pórcia - Aqui está a chave. Tomai-a, príncipe, e se
minha imagem aí estiver, eu serei vossa. (O príncipe abre o no navio deles.
Salânio - Esse" judeu ordinário despertou o doge com
escrinio de ouro.)
os gritos. Ele saiu com Shylock para revistar o navio de
Bassânio.
29 A Hircânia, célebre pelos seus tigres e pela rudeza de seus
habitantes, ficava na antiga Pérsia, ao Sul e ao Sudeste do mar
Cáspio. 31 Em inglês, carrion-Death, ou seja, um crânio em putrefação,
30 Ou, antes, o arcanjo São Miguel vencendo o dragão. símbolo da Mortalidade.

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Salarino - Chegou muito tarde; o navio já se havia
r teu amor por meio de demonstrações que acreditares as
feito à vela. Mas, fizeram entender ao doge que Lourenço e va . d I' .
mais decisivas". E então, com os olhos cheios e agrimas,
sua apaixonada Jessica haviam sido vistos juntos numa gôn-
ele virou o rosto, estendeu a mão por trás, e, com uma, t:r-
doia. Além disto, Antônio garantiu ao doge que eles não esta-
nura singularmente expressiva, apertou a mão de Bassânio.
vam no navio de Bassânio.
E assim, separaram-se. .
Salânio - Nunca ouvi um furor tão desordenado, tão ' Salânio - Acho que sua única razão de viver nesta
estranho, tão extravagante, tão incoerente como o que o cão Terra é Bassânio. Vamos procurá-Io, por favor, e sacudir-lhe
judeu fez ressoar pelas ruas: "Minha filha! Oh! meus duca- a melancolia que dele se apoderou, arranjando-lhe qualquer
dos! Oh! minha' filha! Fugiu com um cristão! Oh! meus duca- divertimento.
dos cristãos! Justiça! Lei! Meus ducados e minha filha! Um Salarino - Sim, vamos. (Saem.)
saco cheio, dois sacos cheios de ducados, de duplos ducados
que me foram roubados, por minha filha! ... E jóias! ...
Duas pedras, duas ricas e preciosas pedras roubadas por mi- CENA IX: Belmonte. Sala na casa de Pórcia,
nha filha! Justiça! Procurem minha filha! Ela está com as Entram Nerissa e um Servidor.
pedras e os ducados!"
Salarino - Também, todos os rapazes de Veneza o Nerissa - Depressa, depressa, por favor! Puxa as cor-
acompanham, gritando: "As pedras dele, a filha, os ducados!" tinas imediatamente. O Príncipe de Aragão prestou juramento
Salânio - Que o bom Antônio seja exato em pagar na e vem fazer a escolha daqui a pouco. (Fanfarra de cornetas.
época certa, senão pagará por isto! Entram o Príncipe de Aragão, Pórcia e ;~spectivos sé~uit?s,~
Salarino - Ora, estás me fazendo recordar a este res- Pórcia - Olhai: aqui estão os escnnros, nobre pnncipe;
peito, que, ontem, falando com um francês, disse-me ele se escolherdes aquele que contiver meu retrato, nossa festa
que, nos estreitos mares que separam a França da Inglaterra, nupcial será celebrada imediatament~, mas, ~e falh~rdes,
devereis, meu senhor, sem nada mais dizer, partir daqui logo
naufragara um navio de nosso país, ricamente carregado.
Pensei em Antônio, quando ele me contou isto e, em silên- em seguida. . _ ,
Príncipe de Aragão - Meu juramento me impoe tres
cio, fiz votos que não lhe pertencesse.
coisas: primeiro, jamais revelar a qualquc:r, pessoa ~ual .0
Salânio - Faríamos melhor contando a Antônio o que escrínio que escolhi; depois, se errar o escnmo certo, Ja~als
ouvimos; mas, com todo cuidado, para não o afligirmos. cortejar uma donzela com o fito de casar-m~ com el~; fm~l-
Salarino - Não há melhor homem pisando na Terra. mente, se falhar na minha escolha, devo deixar-vos Imedia-
Vi quando Bassânio e Antônio se despediram. Bassânio lhe tamente e partir. . .
dizia que, tanto quanto possível, apressaria a volta. Ele res- Pórcia - São as injunções que devem ser obedecidas
pondeu: "Não faças tal, Bassânio, não precipites as coisas por por quem quer que seja, que aqui venha para afrontar os
minha causa, mas espera o necessário tempo para que possam azares da sorte por minha insignificante pessoa, .
amadurecer. Quanto à caução que o judeu recebeu de mim, Príncipe de Aragão - Já estou preparado para isto.
que ela não preocupe teu espírito de apaixonado. Fica ale- -
Fortuna, responde agora às esperanças de meu coraçao .... ,
gre; consagra todos os teus pensamentos a conquistar e pro-
Ouro, prata e chumbo vil. "Quem me escolher deve dar e
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arriscar tudo o que tem." Será melhor que fiqueis com mais cabeça de um idiota? É tudo quanto valho? Meus méritos
belo aspecto antes que eu dê ou arrisque alguma coisa. Que não merecem melhor preço?
diz o escrínio de ouro? Ah! Vejamos! "Quem me escolher Pórcia - Ofender e julgar, misteres distintos, de natu-
conseguirá o que muitos homens desejam." O que muitos reza oposta.
homens desejam! Esse "muitos" deve, sem dúvida, designar Príncipe de Aragão - Que está aqui?
a louca multidão que escolhe de acordo com a aparência,
que só entende aquilo que lhe mostram os olhos ofuscados, Provei sete vezes fogo:
que não penetra no interior das coisas, mas, como o gavião, Seja o siso assim provado
constrói o ninho na intempérie, sobre o muro exterior, no De quem nunca errou na escolha.
meio e no próprio caminho dos perigos. Não quero escolher Alguns há que sombras beijam
o que muitos homens desejam, porque não quero colocar- E só sombras têm de gozo.
me ao nível dos espíritos vulgares e misturar-me às filas de Há, sei, na Terra imbecis
multidões bárbaras. Então, agora, tu, palácio de prata, dize- Que também são prateados.
me uma vez mais qual é a divisa que mostras: "Quem me Toma por mulher quem queiras,
escolher conseguirá aquilo que merecer". E está muito bem Minha cabeça é a tua.
dito, porque quem intentará enganar a Fortuna e pretender Vai-te então: eu te despeço.
elevar-se em honras, se não tiver méritos para tanto? Que
ninguém tenha a presunção de investir-se de uma dignidade Quanto mais aqui ficar, mais farei papel de imbecil.
imerecida. Oh! se os impérios, as hierarquias, os empregos só Vim para fazer minha corte com uma cabeça d~ tolo, ~as,
fossem obtidos pela corrupção, se os homens puros só fossem parto com duas. Adeus, meu encanto! Manterei meu Jura-
comprados ao preço do mérito, quantas pessoas que estão mento e suportarei pacientemente minha desgraça! (Saem o
nuas estariam vestidas, que dirigem e seriam dirigidas! Quan- Príncipe de Aragão e séquito.) . .
to joio de baixeza não deveria ser separado do bom trigo da Pórcia _ Assim, a falena se deixou queimar pela luz.
honra! E quanta honra não seria apanhada entre os escom- Oh! esses idiotas de reflexões profundas! Quando se decidem,
bros e as ruínas feitas pelo tempo para ser restituída ao antigo
têm o espírito de tudo perder pelo talento.. .. .
esplendor! .. , Mas, façamos nossa escolha. "Quem me esco-
Nerissa - Não é uma heresia o antigo prover. b10. "Ca-
lher, conseguirá aquilo que merecer." Fico com o que mere-
ço. Dai-me a chave deste escrínio para que abra aqui a porta sr.mento e mortalha, no céu se talha". ,
de minha fortuna! (Abre o escrínio de prata.) Pórcia - Vamos, fecha a cortina, Nerissa. (Entra um
Pórcia - (À parte.) Pausa longuíssima para o que en- Servidor.) . , . ?
Servidor - Onde esta minha senhora.
contrareis aí dentro.
Príncipe de Aragão - Que é isto? O retrato de um Pórcia - Aqui estou. Que desejas?
idiota careteante que me apresenta um rolo! Vou lê-lo, És Servidor _ Senhora, acaba de descer em vossa porta
muito pouco parecido com Pórcia! Nada pareces com o que um jovem veneziano que vem na frente avisar a chegada de
esperava, com o que eu merecia! "Quem me escolher, con- seu amo. Traz da parte dele homenagens substancI~ls, con-
seguirá aquilo que merecer." Nada mais merecia do que a sistindo, além dos cumprimentos e das palavras mais corte-
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ses, de presentes de rico valor. Nunca vi um embaixador do que o bom Antônio, o honesto Antônio. .. Oh! se pudesse
amor que esteja tão apropriado para as funções. Jamais um encontrar um epíteto digno de acompanhar-lhe o nome! ...
dia de abril anunciou tão deliciosamente a chegada do faus- Salarino - Vamos, chega ao ponto final!
toso verão quanto este batedor a chegada do senhor. Salânio - Ah! Que estás dizendo? Ora essa, o final
Pórcia - Basta, por obséquio! Quase tenho medo de é que ele perdeu um navio. .
que me digas daqui a pouco que ele é um de teus parentes, Salarino - Desejaria que esse fosse o final de suas
quando te vejo gastar o espírito dos grandes dias em elogios pudas. •
com ele. Vem, vem, N erissa; estou com pressa de ver esse Salânio - Deixa-me dizer bem depressa amem, para
correio do gentil Cupido que se apresenta sob tão bons au- que o diabo não destrua o efeito d~ minha prece, porque
gúrios. ei-Io chegando sob a figura de um Judeu. (Entra Shylock.)
Nerissa - Fazei, senhor -Amor, que seja Bassânio! Que há, Shylock? Que novidades há entre. os ~ercadores?
(Saem.) Shylock -- Sabeis, melhor do que mnguem, a fuga de
minha filha. •
Salarino - E verdade; por minha parte, sei quem e
ATO TERCEIRO o alfaiate que fez as asas com as quais ela voo.u. .•
Salânio - E Shylock, por seu lado, sabia que a ave ja
CENA I: Veneza. Uma rua. tinha penas; é natural nas aves abandonar o ninho quando
Entram Salânio e Salarino.
têm penas. .
Shylock - Está condenada por causa disto.
Salânio - Quais são as notícias, agora, no Rialto?
Salarino - Sem dúvida, se o diabo for o juiz.
Salarino - Ora, está correndo ainda o rumor, sem que Shylock - Rebelarem-se, assim, minha carne e meu
seja desmentido, de que um navio ricamente carregado, per-
sangue! • . S .
tencente a Antônio, naufragou no estreito, nos Goodwlns.se Salânio - Que é isto? Que e Isto, velha carcaça? era
julgo ser assim chamado o lugar. f: um baixio perigoso e que essas coisas se rebelam em tua idade?
fatal, onde jazem enterradas as carcaças de muitos navios de Shylock - Estou-me referindo à minha filha, que é
alto bordo, segundo dizem, se meu compadre, o rumor, for minha carne e meu sangue.
pessoa honrada, fiel a sua palavra. Salarino - Há mais diferença entre tua carne e a dela
Salânio - Desejaria que fosse tão mentiroso quanto a do que entre o ébano e o marfim; entre teu sangue e o d~la,
mais intrigante comadre que tenha jamais ingerido gengibreêê do que entre o vinho tinto e o vinho do Reno ... Mas, dize-
ou feito crer às vizinhas que chorava pela morte de seu ter- nos: sabes ou não se Antônio teve qualquer perda no mar?
ceiro marido. Mas, para não cair no prolixo e não obstruir o Shylock - Ainda um mau negócio para mim! Um
grande caminho da simples conversa, é mais do que verdade falido, um pródigo, que mal se atreve a mo~trar a ~a?eça no
Rialto! Um mendigo que habitualmente vinha exibir-se na
praça! .. , Cuidado com a caução dele! Gostava de chamar-
32 Goodwins são bancos de areia perigosos a Nordeste da em-
bocadura do Tâmisa. me de usurário. Cuidado com a caução! Gostava de empres-
33 Era opinião generalizada que as velhas gostavam de gengibre. tar dinheiro por cortesia cristã. Cuidado com a caução!
324 325
Salarino - Ora essa, estou certo de que, se não estiver Shylock - Ora essa! Um diamante que me custou, em
em regra, não lhe tirarás a carne. Para que serviria ela? Francfort, dois mil ducados, perdido! Até agora a maldição
Shylock - Para cevar os peixes. Se para mais nada não havia caído sobre nossa nação; até agora nunca a hayia
servir, alimentará minha vingança. Ele me cobriu de opró- sentido. .. Dois mil ducados perdidos com esse diamante,
brio, impediu-me de ganhar meio milhão; riu-se de minhas sem contar outras jóias preciosas, muito preciosas! .. , Dese-
perdas, ridicularizou meus lucros, menosprezou minha nação, jaria que minha filha estivesse aos meus pés, mort.a, com as
dificultou meus negócios, esfriou meus amigos, esquentou jóias nas orelhas! Desejaria que ela estivesse aqui, amorta-
meus inimigos; e, que razão tem para fazer tudo isto? Sou lhada, aos meus pés, com os ducados no caixão! ... Nenhuma
um judeu. Então, um judeu não possui olhos? Um judeu não notícia dos fugitivos? Não, nenhuma! ... E não sei quanto
possui mãos, órgãos, dimensões, sentidos, afeições, paixões? foi gasto na procura. Sim, perda sobre perda! Partido o
Não é alimentado pelos mesmos alimentos, ferido com as ladrão, com tanto e tanto para encontrar o ladrão! E nenhu-
mesmas armas, sujeito às mesmas doenças, curado pelos mes- ma satisfação, nenhuma vingança! Ah! Só meus ombros su-
mos meios, aquecido e esfriado pelo mesmo verão e pelo portam desgraças acabrunhadoras, soluços, só para meu peito,
mesmo inverno que um cristão? Se nos picais, não sangra- lágrimas, só para minhas faces!
mos? Se nos fazeis cócegas, não rimos? Se nos envenenais, Tubal - Sim, outros homens têm desgraças também.
não morremos? E se vós nos ultrajais, não nos vingamos? Se Antônio, segundo soube em Gênova ...
somos como vós quanto ao resto, somos semelhantes a vós Shylock - Como! Como! Como! Desgraça? Desgraça?
também nisso. Quando um cristão é ultrajado por um judeu, Tubal - Perdeu um galeão vindo de Trípoli.
onde coloca ele a humildade? Na vingança. Quando um Shylock - Graças a Deus! Graças a Deus! E. verdade?
judeu é ultrajado por um cristão, de acordo com o exemplo E. verdade?
cristão, onde deve ele colocar a paciência? Ora essa, na vin- Tubal _ Falei com alguns dos marinheiros que se sal-
gança! A perfídia que me ensinais, eu a colocarei em prática varam do naufrágio.
e ficarei na desgraça, se não superar o ensino que me destes. Shylock - Obrigado, bondoso Tuba!! Boas novas! Boas
(Entra um Servidor.) novas! Ha, ha! Onde? Em Gênova?
Servidor - Cavalheiros, meu amo Antônio está em casa Tubal - Disseram-me que vossa filha gastou em Gê-
e deseja falar com ambos. nova oitenta ducados numa noite.
Salarino - Andamos de um lado para outro atrás dele. Shylock - Tu me apunhalas ... Jamais verei meu ouro.
(Entra Tubal.) Oitenta ducados de uma vez! Oitenta ducados!
Salânio - Está chegando um outro da mesma tribo. Tubal - Vieram a Veneza, em minha companhia, di-
Não se encontraria um terceiro da mesma espécie, a não ser versos credores de Antônio que juravam que ele não podia
que o próprio diabo virasse judeu. (Saem Salãnio, Salarino evitar a bancarrota.
e Servidor.) Shylock - Sinto-me muito contente. Eu o farei pade-
Shylock - Então, Tubal? Quais são as novidades de cer torturá-lo-ei. Estou encantado.
Gênova? Encontraste minha filha? , Tubal - Um deles mostrou-me um anel que recebera
Tubal - Parei em vários lugares onde se falava dela. de tua filha em troca de um macaco.
mas não a pude encontrar. Shylock - Maldita seja! Tu me atormentas, Tuba!. Era

326 327
minha turquesa.ês Eu a adquiri de Lia quando era solteiro;
proprietário e a propriedade! Assim, sendo v~ssa, não sou
não a teria dado por uma selva de macacos. vossa. Se a coisas não andarem bem, que seja a Fortuna
Tubal - Porém, Antônio está, sem dúvida alguma, quem pague os vidros quebrados e não eu. Falo demais, é,
arruinado. porém, para ganhar tempo, aumentá-Io, arrastá-I o e retardar
Shylock - Sim, é verdade; não há dúvida. Anda, Tubal; vos a escolha.
arranja-me um policial; contrata-o com quinze dias de ante- Bassânio - Deixai-me escolher, pois minha situação é
cedência. Se não pagar, quero ter o coração dele, pois, uma como se estivesse no tormento.
vez fora de Veneza, poderei fazer toda a sorte de negócios Pórcia - No tormento, Bassânio? Confessai, então,
que quiser. Vai, Tubal, e encontra-me em nossa sinagoga. qual é a traição que está misturada com vosso amor.
Vai, bom Tuba!. Em nossa sinagoga, Tuba!! (Saem.) Bassânlo - Nenhuma, exceto essa horrenda traição da
inquietude que me faz temer pela posse de meu amor. Existe
tanta afinidade e relação entre a neve e a chama como entre
CENA lI: Belmonte. Sala na casa de Pórcia, a traição e o meu amor.
Entram Bassânio, Pórcia, Graciano, Nerissa e
Pórcia - Sim, mas tenho medo de que faleis como um
Acompanhantes.
homem forçado a falar pela tortura.
Bassânio - Prometei-me a vida e confessarei a verdade.
Pórcia - Por favor, não vos apresseis; espera i um ou
Pórcia - Pois, então, confessái e vivei.
dois dias antes de consultar a sorte, pois, se escolherdes mal,
Bassânio - Dizendo-me: confessai e amai, teríeis resu-
perco vossa companhia; assim, pois, aguardai um pouco. Al-
mido toda minha confissão. Oh! delicioso tormento, visto que
guma coisa me diz (mas não é o amor) que não quereria
minha atormentadora me sugere as respostas para a libera-
perder-vos, e sabeis pessoalmente que semelhante sugestão
ção! Vamos, conduzi-me aos escrínios e à minha fortuna.
não pode partir do ódio. Mas, para que possais melhor com-
Pórcia - Pois, então, seja assim. Estou encerrada num
preender (e, contudo, a única linguagem de uma donzela é
seu pensamento), eu desejaria reter-vos aqui um ou dois me- deles; se me amais, descobrireis onde me encontro. Nerissa,
ses, antes que vos arriscásseis por mim. Eu poderia ensinar- e todos vós, permanecei a distância. .. Fazei ouvir música
vos como escolher bem; mas, então, seria perjura e não o enquanto ele estiver fazendo a escolha! Assim, se ele p~rder,
serei jamais. Podeis, pois, fracassar; porém, se fracassardes, acabará como um cisne desaparecendo durante a melodia. E,
far-me-eis deplorar não haver cometido o pecado de perjú- para que a comparação seja mais justa, meus olhos serão a
rio. Malditos sejam vossos olhos! Encantaram-me e partiram- corrente que ele terá por úmido leito de morte. Ele pode
me em duas partes: uma é vossa e outra é meia vossa; quero ganhar; então, que será a música? Pois bem, então a música
dizer, minha; mas sendo minha, é vossa e desse modo, sou ocupará o lugar dessas fanfarras que retumbam, quando os
súditos leais saúdam um rei que acaba de ser coroado, ou
toda vossa. Oh! cruel destino que coloca uma barreira entre o
será como esses sons harmoniosos que, ao amanhecer, desli-
zam nos ouvidos do noivo adormecido para chamá-Io ao ma-
34 A turquesa tinha grande valor para indicar a saúde de seu trimônio. .. Agora se aproxima com não menos majestade,
possuidor. Conforme brilhasse mais ou menos, indicava boa ou mas com bem mais amor que o jovem Alcides, quando resga-
má saúde. Além disto, avisava algum perigo que se aproximasse. tou o virginal tributo pago por Tróia em prantos ao monstro
328
329
do mar.35 Sou a vítima destinada ao sacrifício e as outras aqui
branco quanto o leite! Só se adornam com essas excrescências
presentes são as esposas dárdanasês que, com o terror no sem-
do valor para se tornarem temíveis ... Contemplai a beleza e
blant~, ~êm contemplar o resultad~ da e~presa. " Vai, Hér- vereis que é adquirida a peso; uma espécie de milagre se
cules. VIve e VIVereI... Tenho muito rnars ansiedade contem-
verifica que tornam ainda mais levianas aquelas que têm
pl~n~o esse combate do que tu que estás lutando. (Começa a
maior quantidade. Assim, estas tranças de ouro com os cachos
musl~a que acompanha a canção a seguir, enquanto Bassânio
examma os escrínios.) enrolados em serpentina, que volteiam lascivos com o vento,
sobre uma cabeça de pretensa beleza, examinados de perto
são quase sempre viúvos de outra cabeça, cujo crânio que os
CANÇÃO
sustentou jaz no sepulcro. O ornamento não passa, pois, da
Onde nasce a fantasia? praia enganadora do mais perigoso mar; o brilhante véu que
No coração, na cabeça? cobre uma beleza indiana.ê? numa palavra, uma verdade su-
Como se gera e se nutre? perficial de que se serve um século pérfido para enganar os
Responde, responde. mais sensatos. Por isso, eu te repilo completamente, ouro,
É concebida nos olhos alimento de Midas e tu também, pálido e vil agente entre o
De olhares nutre-se e ~orre homem e o homem. .. Porém, tu, fraco chumbo, que fazes
No berço mesmo onde jaz. uma ameaça em lugar de uma promessa, tua palidez38 causa-
À morte dela dobremos. me mais emoção do que a eloqüência e eu te escolho! Que
Eu começo: blan, blen, blão! seja feliz a conseqüência desta escolha!
Pórcia - (À parte.) Como se dissipam nos ares todas
Todos - Blan, blen, blão! as outras emoções, inquietações morais, desespero desvairado,
.Bassânio. - As mais brilhantes aparências podem en- temor temeroso e ciúme de olhos verdes! Ó amor! Modera-te,
cobrir as mais vulgares realidades. O mundo vive sempre acalma teu êxtase, contém a chuva de alegria, limita teu
enganado pelos ornamentos. Em justiça, qual é a causa ardor! Sinto excessivamente tua ventura; atenua-a, a fim de
Impura e corrupta a.~ue uma voz persuasiva não possa, apre- que não chegue a sufocar.
se~t~~do-a com habilidade, dissimular o odioso aspecto? Em Bassânio - Que encontro aqui? (Abrindo o escrínio
religião, qual o erro detestável que não possa, santificado por de chumbo.) O retrato da bela Pórcia! Qual foi o semideus
uma fro~te aust~ra e apoiado em textos adequados, esconder que soube aproximar-se tanto da criação? Estes olhos se mo-
a, g~osserIa debaixo de belos ornamentos? O mais simples dos vem ou parece que estão em movimento porque deixam atô-
VICIOS.sempre ~e a~resenta sob os aspectos da virtude. Quan- nitos os olhares dos meus? Aqui estão os lábios entreabertos,
tos co~ardes ha cujos corações são tão falsos quanto escadas separados por uma respiração aromática; tão doce barreira
de areia, que u~am nos rostos barbas de um Hércules e de
um Marte bravio! Sondai-os interioI;mente: têm o fígado tão 37 Beleza indiana era o antônimo de beleza para os contempo-
râneos de Elisabete; Shaêespeare se baseia nos Essais, de Michel
Montaigne. •
~ ~.hake~peare se refere a Hesiona, filha de Laomedonte rei de
38 Paleness é o que se lê em Shakespeare; e não plainness, como
36rol~, sa va por Hércules de ser devorada por um monst~o.
Dardanas ou troianas, do antigo nome de Tróia, Dardânia. sugerem outros comentadores. Pale é um epíteto comum para
o chumbo.
330
331
jamais separou tão doces amigos! Em seus cabelos, o pintor minha pessoa equivale a zero; avaliando em grosso, vedes
imitou a aranha e teceu uma rede de ouro para prender os uma jovem sem instrução, sem saber, sem experiência, feliz
corações dos homens em maior número do que os insetos de estar, ainda, em idade de aprender, mais feliz de haver
se enredam nas teias .de aranha. Mas, os olhos, como pôde nascido com bastante inteligência para aprender, feliz prin-
vê-Ios para pintá-Ios? Um só terminado bastaria, parece-me, cipalmente por confiar seu dócil espírito à vossa direção para
para encantar-lhe os dois e detê-Io assim em sua tarefa. Olhai, que o dirijais como seu dono, seu governador e seu rei. Minha
contudo: tanto mais a realidade de meu entusiasmo calunia pessoa e o que me pertence são transferidos para vós e em
esta sombra com seus elogios insuficientes, quanto esta som- vossos convertidos; há pouco eu era senhora desta bela resi-
bra se arrasta penosamente longe da realidade. .. Aqui está dência, senhora de meus servidores, rainha de mim mesma;
o papel que contém e resume minha fortuna: (Lê.) e agora, no momento em que falo, esta casa, estes servidores
e eu mesma são vossos, meu senhor. Eu tudo vos entrego com
Tu que a aparência desdenhas, este anel. Se alguma vez dele vos separardes, se o perderdes
Boa sorte e escolhe bem. ou o derdes, que seja isso presságio de ruína de vosso amor
Já que esta sorte te coube, e dar-me-á motivo de recriminar contra vós.
Contenta-te, outra não busques. Bassânio - Senhora, vós me privastes de todo meio
Se te sentes satisfeito, de expressão; só meu sangue vos responde em minhas veias
Se a sorte crês uma bênção, e há em minhas faculdades uma confusão semelhante à que
Corre para tua dama se manifesta depois de algum discurso eloqüente, pronuncia-
E dá-lhe um beijo de amor. do por um príncipe popular entre a multidão cheia de satis-
fação, quando desses murmúrios de conjunto sai aquele ruído
Bilhete encantador! Bela dama, com vossa permissão ... indistinto em que nada mais há do que uma alegria demons-
Venho, com esta nota na mão, dar e receber. Um competidor, trada e não demonstrada ao mesmo tempo. Quando este anel
lutando com um outro pelo prêmio, crê haver vencido aos tiver deixado este dedo, será que a vida me abandonou. Oh!
olhos do público, quando ouve os aplausos e as aclamações então podereis dizer ousadamente: Bassânio morreu!
universais; pára, com o espírito perturbado, o olhar fixo, não Nerissa - Senhor e senhora, chegou o momento para
sabendo se essa tempestade de aplausos é, sim ou não, para nós, espectadores, que vimos o coroamento de vossos desejos,
ele. Assim, eu estou diante de vós, três vezes bela dama, duvi- de gritar: Felicidade! Felicidade completa para vós, senhor
dando da verdade do que estou vendo, até que ela haja sido e senhora!
confirmada, assinada, ratificada por vós. Graciano - Meu Senhor Bassânio e vós, nobre dama:
Pórcia - Vós aqui me vedes, Senhor Bassânio, tal qual eu vos desejo toda felicidade que podeis anelar, porque estou
sou. Quanto a mim, não alimentarei qualquer desejo ambi- certo de que vossos desejos não se opõem à minha felici-
cioso de ser melhor do que sou; mas por vós quisera poder dade. No dia em que Vossas Excelências resolverem solenizar
triplicar-me vinte vezes; quisera ser mil vezes mais bela, mil a troca de vossa fé, eu vos peço que me permitais, também,
vezes mais rica; e, enfim, somente para elevar-me mais do casar-me.
que vós me estimais, quisera em riquezas, virtudes, em beleza, Bassânio - De. todo meu coração, se conseguires en-
em amigos, exceder todo cálculo. Porém, a soma total de contrar uma esposa.

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Graciano - Agradeço a Vossa Senhoria; vós me enCOQ- Salério, a quem encontrei no caminho, pediu-me tanto que
trastes uma. Meus olhos são tão rápidos quanto os vossos, o acompanhasse que não pude dizer não. _ .
senhor. Vós contemplais a ama, eu contemplo a criada. Vós Salério - É verdade, senhor, e tinha razoes para isto.
amais, eu, também, amo, pois a passividade não é de meu O Signior Antônio manda cumprimentar-vos. (Entrega uma
agrado como não é do vosso. Vossa fortuna dependia desses carta a Bassânio.)
escrínios e as circunstâncias faziam que a minha também Bassânio - Antes que eu abra esta carta, dizei-me,
dependesse deles. Fiquei alagado de suor para agradar, mi- por favor, como está passando meu excel:nte amigo. ,
nha garganta secou de tanto fazer juramentos de amor e, Salério - Se está doente, senhor, sera somente de espi-
enfim, se uma promessa for um fim, consegui desta bela rito. Se está passando bem, será somente de espírito. A carta
dama a promessa de que me concederia seu amor, se tivés- dele poderá dizer-vos em que estado se encontr~. .
seis a sorte de conquistar-lhe a ama. Graciano - Nerissa, cuidai dessa estrangeira; dai-lhe
Pórcia - E verdade, N erissa? as boas-vindas. Tua mão, Salério! Quais são as notícias de
Nerissa - Sim, senhora, se for de vosso agrado. Veneza ? Como está passando o mercador real, esse bom
Bassânio - E tu, Graciano, estás de boa-fé? Antônio? Sei que ficará contente com nosso êxito. Somos os
Graciano - Sim senhor, de toda boa-fé. Jasões conquistamos o velocino de ouro.
Bassânio - Nossas bodas serão muito honradas com S~ério - Por que não conquistaste o tosão que ele
o vosso casamento. perdeu? . . , .
Graciano - (A N erissa.) Apostaremos mil ducados com Pórcia - Há nessa carta sinistras noticias que fazem
eles para quem tiver o primeiro filho. com que as faces de Bassânio percam a cor. Sem ?úvida, a
Nerissa - Como! Que aposta tão baixa! morte de um amigo caro! No mundo, nada podena mudar
Graciano - Certo, neste jogo só se ganha quando se a tal ponto os traços de um homem resoluto. Como! De
aposta bem baixo.ê? Mas, quem está chegando? Lourenço e mal a pior? Permiti, Bassânio, sou vossa metade e devo com-
sua infiel? Como! Meu velho amigo veneziano Salério? (En- partilhar generosamente do efeito que as notícias desta carta
tram, Lourenço, Jessica e Salério, mensageiro de Veneza.) vos possam causar.
Bassânio - Lourenço e Salério, sede aqui bem-vindos, Bassânio - O doce Pórcia! Esta carta contém algumas
se é que meus títulos nestes lugares não são por demais novos das palavras mais desoladoras que jamais mancharam qual-
para que me permitam desejar-vos as boas-vindas. Com vossa quer papel. Encantadora dama, quando pela primeira vez vos
permissão querida Pórcia, estou dizendo a meus amigos e a confessei meu amor, eu vos disse francamente que toda. a
meus compatriotas que eles são bem-vindos. minha riqueza circulava em minhas veias, que eu era gentil-
Pórcia - O mesmo digo eu, senhor; sejam inteira- homem. Eu então' vos falava a verdade. Contudo, cara dama,
mente bem-vindos. dando-me o valor de nada, ides ver quanto eu me gabava
Lourenço - Agradeço a Vossa Senhoria. .. Por minha ainda. Quando estimava minha fortuna em nada, eu .deveria
parte, senhor, meu propósito não era vir aqui visitar-vos; mas, ter dito que era menos do que nada, porque, verdadeiramen-
te, sou devedor de um amigo que me é caro e fiz com que
esse amigo se tornasse 'devedor do pior inimigo que possuía
39 Stake down, em inglês, com sentido obsceno. para poder arranjar-me recursos. Aqui está uma carta, se-

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gai a garantia, duplicai os seis mil, triplicai-o, mas não deixeis
nhora, cujo papel é como o corpo de meu amigo, sendo cada que semelhante amigo perca um só fio de cabelo por causa
palavra uma chaga aberta por onde a vida lhe sangra ... Mas, de .Bassânio! Vinde primeiro à igreja comigo, dai-me o nome
é verdade, Salério? Fracassaram todas as expedições envia- de esposa e depois ide para Veneza ao encontro de vosso
das por ele? Nem uma só chegou ao fim? De Trípoli, do amigo. Jamais repousareis ao lado de Pórcia com uma alma
México, da Inglaterra, de Lisboa, da Barbaria, das lndias, inquieta. Tereis dinheiro suficiente para pagar vinte vezes
nem um só navio conseguiu escapar ao contato terrível dos essa pequena dívida; quando ela for paga, trazei aqui vosso
rochedos, funestos aos mercadores? amigo. Durante esse tempo, Nerissa, minha camareira e eu
Salério - Nem um só, meu senhor. Além disto, parece viveremos numa viuvez virginal. Vamos, vinde, vai ser pre-
que, mesmo tendo o dinheiro para reembolsar o judeu, este ciso que partais no dia de vosso casamento. Dai boa acolhida
não o aceitaria. Jamais vi alguém revestido de forma humana a vossos amigos; mostrai-Ihes semblante alegre. Como custas-
mais ávido e mais ansioso pela perda de um homem. Impor- tes tão caro, caramente eu vos amarei. Mas, deixai-me ler a
tuna o doge noite e dia, declarando que não existirá segu- carta de vosso amigo.
rança em Veneza, se justiça lhe for negada. Vinte mercado- Bassânio _ (Lê.) "Meu caro Bassânio, meus navios se
res, o próprio doge e os Magníficos-? da mais alta estirpe perderam totalmente; meus credores se mostra~ cruéis; mi-
tentaram todos persuadi-lo, porém, nenhum deles conseguiu nha situação é precaríssima, meu recibo subscnto ao Judeu
dissuadi-lo de seus argumentos iracundos: quebra de palavra, não foi satisfeito no prazo devido e como não lhe pagando é
justiça, contrato assinado. impossível que continue vivo, todas as tuas dívidas comigo
Jessica - Quando estava com ele, eu o ouvi jurar ficarão saldadas, desde que te possa ver antes de morrer.
diante de Tubal e de Chus, seus compatriotas, que preferia Contudo, faze o que te parecer mais agradável; que esta car-
a carne de Antônio a vinte vezes o valor da soma que lhe era ta não te obrigue avir, se tua amizade não for suficiente para
devida; e sei, senhor, que, se a lei, a autoridade e o poder não
a isso induzir-te."
se opuserem, mal irá passar o pobre Antônio. Pórcia _ Oh! meu amor, terminai depressa vossos ne-
Pórcia - E vosso querido amigo quem se encontra em
gócios e parti.
semelhante dificuldade? Bassânio _ Como estais dando a permissão para que
Bassânio - O mais caro de meus amigos, o melhor parta, vou apressar-me; mas, até que volte, nenhum. leito
dos homens, a mais generosa das almas, o mais infatigável a será culpado pela minha demora, nenhum repoUso se inter-
prestar serviços, homem em quem brilha a antiga honra ro-
porá entre vós e mim. (Saem.)
mana mais do que em qualquer outra pessoa que respira na
Itália.
Pórcia - Que soma deve ele ao judeu? CENA Ill: Veneza. Uma rua.
Bassânio - Deve, por mim, três mil ducados. Entram Shy/ock, Salarino, Antônio e o Carcereiro.
Pórcia - Como? Nada mais? Pagai-Ihe seis mil e ras-
Shylock _ Carcereiro, vigia-o. Não me faleis de cle-
mência. .. Aqui está o. imbecil que emprestava dinheiro
40 Magníficos, que ainda hoje é empregado no Brasil em relação
aos .membros de um Conselho Universitário, eram os supremos grátis! Carcereiro, vigia-o.
magistrados de Veneza. 337

336
Antônio - Contudo, escuta-me, bom Shylock. CENA IV: Belmonte. Sala na casa de Pórcia,
. Shylock - Quero que as condições de meu contrato Entram Pórcia, Nerissa, Lourenço, Iessica e Baltasar.
seJa~ cumpridas; jurei que seriam executadas. Chamaste-me
d~ cao quando não tinhas razão alguma para fazê-I o; porém, Lourenço - Senhora, embora estejais presente, eu de-
VIsto q~e .so~ um cão, tem cuidado com meus dentes. O doge claro que tendes da divina amizade uma idéia nobre e verda-
~e fara justiça. Espanto-me, inútil carcereiro, de que sejas deira; vós a mos trais valentemente pela maneira como aceí-
tao fraco para sair com ele quando pede. tais a ausência de vosso esposo. Mas, se sabeis a quem
Antônio - Por favor, escuta-me. fazeis esta honra, a que leal cavalheiro prestais auxílio,
Shylock - Quero que sejam cumpridas as condições do a que amigo devotado de meu senhor, vosso marido, estou
co~trato: e não ~uero ouvir-te; logo, não me digas mais nada. certo de que vos mostrar eis mais envaidecida de vosso tra-
N.ao faras de mim um desses pobres coitados, de olhar con- balho do que se se tratasse de qualquer outro benefício or-
~flt? q~e s~codem a cabeça, se enternecem, suspiram e cedem dinário.
as IDstancI~s dos cristão~. Não me sigas. Não quero ouvir Pórcia - Jamais lamentei haver feito o bem e não me
palavras, so quero que sejam cumpridas as condições do con- arrependerei hoje; porque entre companheiros que vivem e
trato. (Sai.) passam a vida juntos, e cujas almas partilham igualmente o
, . SaIarino - E, sem dúvida, o cão mais impenetrável jugo da afeição, deve existir uma verdadeira harmonia de
traços, de maneiras e de gostos; é o que me faz pensar que
a piedade que haja algum dia tratado com homens.
esse Antônio, sendo amigo predileto de meu senhor, deve
, .Ant~ni? .- Deixerno-lo; não o fatigarei mais com com ele se parecer. Se for assim, como me custou pouco
súplicas .IDuteIs. Pretende minha vida e sei bem a ra-
resgatar da garra de uma infernal crueldade essa imagem de
z~o; mUI~as vezes salvei-lhe das garras os devedores que meu amor! Porém, esta linguagem se aproxima excessiva-
vinham . Implorar-me auxílio; esta é a razão pela qual
me odeia. mente da adulação pessoal; logo, deixemos isto e falemos de
outra coisa. Lourenço, entrego em vossas mãos a direção e o
SaIarino - Estou certo de que o doge não considerará governo de minha casa até a volta de meu senhor. Quanto a
esse contrato válido.
mim, dirigi ao céu o voto secreto de viver em oração e em
Antônio - O doge não pode impedir o curso da lei. contemplação, tendo Nerissa como única companhia, até a
As garantias que os estrangeiros encontram em nosso meio volta de seu marido e de meu senhor. Há um mosteiro a duas
em Vene~a, não poderiam ser suspensas sem que a justiça do milhas daqui; vamos residir lá. Peço-vos que não recuseis
Estado ficasse comprometida aos olhos dos mercadores de este cargo que meu amor e certas necessidades me obrigam
todas as nações cujo comércio faz a riqueza da cidade. Assim, agora a impor-vos.
aconteça o que acontecer. Estes desgostos e estas perdas exte- Lourenço - De todo o meu coração obedecerei a
nuaram-me de tal modo, que mal terei uma libra de carne todas as vossas justas ordens.
para entregar, amanhã, a meu sanguinário credor. Vamos, Pórcia - Meus servidores já estão a par de minhas
carcereiro, vamos embora... Queira Deus que Bassânio intenções. Obedecerão não só a vós como a Jessica, como se
venha ver-me pagar-lhe a dívida e o resto pouco me importa! fora o Senhor Bassânio e eu mesma. Assim, passai bem, até
(Saem.)
nosso próximo encontro.
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Lourenço - Que os belos pensamentos e as horas ale- Nerissa - Então, vamos virar homens?
gres vos acompanhem! Pórcia - Nada disso! Que pergunta, se tu a fizesses
Jessica - Desejo a Vossa Graça todas as satisfações diante de um intérprete malicioso! Vamos! Vou contar-te
do coração! todo meu plano quando estiver em meu coche, que nos es~era
Pórcia - Agradeço vosso voto e tenho prazer em dese- na porta do parque. Apressemo-nos, pois ainda temos vinte
jar-vos o mesmo. Adeus, Jessica. (Saem Jessica e Lourenço.) milhas para fazer hoje. (Saem.)
Agora, Baltasar, desejo ver-te, hoje, como sempre te vi: leal
e honrado. Toma esta carta, emprega todos os esforços huma-
nos possíveis para chegar depressa a Pádua; entrega-a em CENA V: A mesma. Um jardim.
mão própria ao Doutor Belário, meu primo. Em seguida, Entram Lancelote Gabo e Jessica.
toma cuidadosamente os papéis e as roupas que ele te der e
leva-os, por favor, com toda pressa imaginável ao barco que Lancelote - Sim, de verdade; pois, vedes, os pecados
faz o serviço de Veneza. Não percas tempo com palavras, do pai devem recair sobre os filhos; portanto, eu vos garanto
parte; lá chegarei antes de ti. que tremo por vossa causa. Sempre fui franco ,c?nvosco ~ esta
BaJtasar - Senhora, parto com toda a pressa possível. é a razão pela qual agito diante de vós a matena. A~maI-vos,
(Sai.) pois, de coragem, porque, creio, na verdade, que estais con~e-
Pórcia - Vem, Nerissa; tenho entre as mãos uma em- nada. Só resta uma esperança a vosso favor e mesmo aSSIm
presa, da qual ainda nada sabes; veremos nossos esposos mais ainda é uma espécie de esperança bastarda.
depressa do que eles pensam. Jessica - E que esperança é essa, dize-me por favor?
Nerissa - E eles nos verão? Lancelote - Na verdade, a esperança de que não sejais
Pórcia - Sim, Nerissa; mas, sob tal roupagem, que filha do judeu. , .
acreditarão que estejamos providas do que nos falta. Aposto Jessica - Essa seria, com efeito, uma especie de esp:-
o que quiseres que, ao chegarmos ambas vestidas como rapa- rança bastarda; visto que, se assi~ fosse, os pecados de mt-
zes, eu serei o mais belo cavalheiro dos dois, usarei a adaga nha mãe deveriam recair sobre mim. .
com a mais arrogante graça, saberei imitar melhor a voz da Lancelote - Então, tenho, na verdade, muito rned~
idade flutuante entre a infância e a virilidade e mudar vanta- de que estejais condenada, não só por parte. de ~osso paI
josamente nosso passo miúdo na maneira do andar viril; como como por parte de vossa mãe; assim, quando evito C:Ila, vo~so
falarei de brigas como um valente 'rapaz fanfarrão e como pai, caio em Caríbdis, vossa mãe. Como vedes, estais perdida
não direi belas mentiras! Quantas damas honradas, procu- de ambos os lados.
rando meu amor, ficarão doentes e morrerão com meus rigo- Jessica _ Serei salva por meu marido; ele me tornou
res! ... Poderei a todas evitar? Em seguida, arrepender-me-ei cristã. . .
e larnentar-me-ei de que, depois de tudo, elas tenham morri- Lancelote _ Maior razão ainda para que seja mais
do por minha causa. E direi tão bem outras vinte mentiras censurado; já 'éramos cristãos suficientes, o necessário para
diminutas, que os homens jurarão que há mais de um ano que pudéssemos viver ao lado uns dos outros. Este furor de
deixei a escola!. .. Há em meu espírito mil gentilezas, para criar cristãos fará subir o preço dos suínos; se n~s tor~arm~s
uso desses tolos e delas me aproveitarei. todos come dores de porco, muito em breve, nao sera mais

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possível, mesmo a preço fab I
(Entra Lourenço.) u oso, fazer toicinho de grelha. em termos sensatos. Vai dizer a teus camaradas que ponham
a mesa, que sirvam os pratos que nós vamos jantar.
,. Jessica - Lance Iote, vou contar
estas dizendo, Ele está chegando. a meu marido o que Lancelote - E a mesa, senhor, que será posta e os
. Lourenço - Daqui a pouco pratos que serão servidos. Quanto à vossa vinda para jantar,
ti, Lancelote, se continuas a f I vou fic~r com ciúmes de senhor, será como decidam vosso capricho e vossa fantasia.
cantos. a ar com minha mulher pelos
(Sai.)
Jessica - Ah! não tendes necessí . Lourenço - Oh! cara sagacidade! Bela sequencia de
conosco, Lourenço Lancelot . cessídade de ficar inquieto palavras! O idiota meteu na cabeça todo um exército de boas
E!e me diz c1arame~te que nã~ ~áeu .est~~os. em desacordo. palavras, e conheço numerosos imbecis muito altamente colo-
ceu, porque sou filha de um . d mIsencordIa para mim no cados que estão cheios das mesmas tolices que ele e que pelo
bom membro da Repúbli ju eu, e acha que não sois um prazer de lançar uma palavra divertida chegam a desconcer-
cristãos, fazeis aumenta;C~ porque convertendo os judeus em
Lourenço _ S' d
preço. o porco.
tar toda uma conversação. Como vai teu bom humor, Jessica?
E agora, meu bem, dize tua opinião: que achas da esposa do
_ era para mim mais fâ '1' "
d essa açao diante da R 'bl' aCI JustIfIcar-me Senhor Bassânio?
. epu ica do que' I'
rotundidade da negra A ' vos exp icardes a Jessica _ Acima de todo adjetivo. Será muito justo
vós, Lancelote. . moura esta com um filho feito por
que o Senhor Bassânio leve uma vida exemplar, pois, tendo
LanceIote - Tanto melhor tal bênção em sua esposa, encontrará aqui na Terra as ale-
gordura o que perde em virtude: ;e ela torna a ga..nhar em grias do Céu; se não encontra essas alegrias na Terra, ser-
medo da moura. sto prova que nao tenho lhe-á perfeitamente inútil ir procurá ..las no paraíso. Sim, se
Lourenço - Como' , f' '1 dois deuses fizessem uma aposta celeste, sendo o prêmio duas
com as palavras' Creio q e aCI ~ todos os imbecis brincar mulheres terrestres e que Pórcia fosse uma delas, seria pre-
. ue o mais .
dentro em breve o silê . gracioso ornamento será ciso necessariamente acrescentar alguma coisa à outra, pois,
, . nCIOe que a palav '
mento para os papagaios V ra sera somente um neste mundo grosseiro, não existe ninguém igual a ela.
que se preparem para : amos, rapaz, vai lá e dize-Ihes
o jantar. Lourenço - Tens em mim, como marido, o que ela é
Lancelote - Já se pre como mulher.
estômago. pararam, senhor, pois todos têm
Jessica - Certamente; pedi-me, também, opinião a
Lourenço - Bondoso De " C '
Vamos, vai e díze-lhes uso orno. es bom gracejador! este respeito.
LanceIote _ O . que prep;u-em o jantar. Lourenço - E o que farei mais tarde. Vamos primeiro
. jantar esta tarnbé jantar.
dizer a mesa. m pronto; deveríeis
Jessica - Não, deixai-me elogiar-vos, enquanto estou
Lourenço - Então rapaz A

LanceIote _ Absol rt ' queres por a mesa? com apetite.


Lourenço M' u amente, conheço meu dever Lourenço - Não, reserva teus elogios para a sobre-
- ais uma briga de paI , Q . mesa; o que então disseres, digerirei com o resto.
trar de uma vez toda . avras. ueres mos-
dade, por favor, de co;p:~~~~a de theutalento? Tem a bon- Jessica - Está bem, vou preparar-vos um bom prato
er um omem sensato que fala com isto. (Saem.)
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ATO QUARTO
uma afetuosa cortesia. Esperamos todos uma boa resposta,
CENA I: Veneza. Uma corte de Justiça. judeu. . h. _
Entram o Doge, os Magníficos, Antônio, Bassânio, Gra- Shylock - Informei Vossa Graça de rrun a~ mtenço,es.
ciano, Salério e Outros. Jurei por nosso santo Sabá que exigiria a execuçao da cIau-
sula penal de meu contrato. Se me ~ec?s~des, qu~ o dano que
Doge - Então, Antônio já está aqui? disso resultar recaia sobre a constituição e as Iiberdades de
Antônio - Pronto, às ordens de Vossa Graça. vossa cidade! Perguntar-me-eis por que pre~iro ~omar uma
Doge - Sinto pena de ti; mas, foste chamado para libra de carne podre ao invés de receber tres mil ducad?s.
responder a um inimigo de pedra, um miserável desumano, A isto não tenho o que responder senão que é porque assim
incapaz de piedade, cujo coração seco não contém uma só quero' A resposta vos parece boa? Se minha casa for per-
gota de misericórdia. turbada por um rato e se quiser dar dez mil ducad~s p~ra
Antônio - Soube que Vossa Graça tudo fez para mo- desembaraçar-me dele, que pode ser alegado contra. Veja-
derar o rigor de suas perseguições; mas, continuando ele ina- mos: é ainda uma boa resposta? Há pessoas que não podem
balável e não havendo nenhum meio legal para livrar-me dos ver um leitão assado, outros que ficam loucos quando olh~m
ataques do ódio que me tem, oponho-lhe minha paciência à um gato, outros que, quand~ a gaita de::fole lhes soa ao ~a:lz,
fúria, e armarei meu espírito de toda quietude para suportar não podem reter a urina: pOISa sensaçao, soberan~ da palxao,
a tirania e a raiva dele. dita-lhes o que devem amar ou detestar. Or~, aqui esta a re~-
Doge - Mandem chamar o judeu para comparecer posta que me pedis: do me~~o modo q~e nao pode ser expli-
perante o tribunal. cado, por qualquer razão sohda, o motivo pelo qual es~e.tem
Salério - Está esperando na porta; ei-lo aqui, senhor. horror de um porco assado, aquele de um gato ~amlhar e
(Entra Shylock.) inofensivo, este outro de uma gaita de fole qu~ est~ ,tocando
e porque todos, cedendo forçosamente a uma inevitável fra-
Doge - Deixai-o passar para que ele permaneça diante
queza, fazem sofrer por sua vez o que lhes fez sof~er, do mes-
de nossa face. Shylock, creio, como todo o mundo, que só te-
nhas querido manter este papel de perverso até a hora do mo modo não posso e não quero dar outra r~~o qu~ uma
raiva refletida e um horror inveterado por Antomo, a fim de
desenlace, e que então mostrarás uma piedade e uma indul-
explicar por que sustento este processo ruinoso contra ele. Es-
gência mais estranhas do que Supõe tua aparente crueldade.
tais satisfeito com minha resposta? .,
De sorte que, em lugar de exigir a penalidade combinada,
Bassânio - Não é uma resposta, homem insensível,
ou seja, uma libra de carne desse pobre mercador, não so-
que possa escusar o encarniçam~nto de tua crueldade.
mente renunciarás a essa condição, mas ainda, tocado pela
Shylock - Não estou obngado a agradar-vos com mi-
ternura e pela afeição humanas, tu te considerarás quites com
nha resposta.
a metade do principal; tu terás em conta com olhar de pie-
Bassânío - Todos os homens matam os seres de que
dade os desastres que acabam de cair-lhe nas costas e que
bastariam para abater um mercador real, para arrancar comi- não gostam? ._
Shylock'- Existe um homem que odeie o que nao
serações a peitos de bronze, a corações de mármore, a turcos
inflexíveis, a tártaros que jamais praticaram os deveres de quer matar? ódi
B~ânio - Em princípio, nenhuma ofensa gera o 10.
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Shylock - Como! Desejaríeis que uma serpente vos Não há força nos decretos de Veneza! Quero justiça. Será
picasse duas vezes? que a conseguirei? Respondei.
Antônio - Pensai, rogo-vos, que estais discutindo com Doge - Em virtude de meu poder, estou autorizado a
o judeu. Seria o mesmo que se tivésseis ido instalar-vos na dissolver o tribunal. a não ser que Belário, sábio doutor que
praia e dissésseis à maré que diminuísse a altura habitual; mandei buscar para determinar esse caso, não chegue hoje.
poderíeis, também, perguntar ao lobo porque obriga a ovelha Salério - Senhor, há lá fora um mensageiro recente-
a balar atrás do cordeiro; poderíeis do mesmo modo proibir mente chegado de Pádua com uma carta do doutor.
lIOS pinheiros das montanhas que balançassem as altas copas Doge - Mandem buscar as cartas! Mandem entrar
quando são agitados pelas rajadas do céu; poderíeis igual- o mensageiro.
mente levar avante o mais duro trabalho, mas não consegui- Bassânio - Tranqüiliza-te, Antônio! Vamos, amigo, co-
ríeis jamais comover (pois, existe alguma coisa mais dura?) ragem! O judeu terá minha carne, meu sangue, meus ossos,
esse coração judeu. Assim, suplico-vos que não lhe façais no- tudo, mas tu não perderás por minha causa uma só gota de
vos oferecimentos, não procureis outros meios. Sem mais sangue.
tardar e sem mais discutir, fazei o que deveis fazer necessaria- Antônio - Sou a ovelha negra do rebanho, a mais
mente: pronunciai minha sentença e concedei ao judeu a adequada para a morte. O fruto mais fraco cai primeiro em
pretensão que deseja. terra. Que assim seja comigo. Não podes dedicar-te a nada
Bassânio - Para pagar os três mil ducados, aqui tens melhor, Bassânio, do que a viver para escrever meu epitáfio.
seis! (Entra Nerissa, vestida como ajudante de advogado.)
Shylock - Mesmo que cada um desses seis mil duca- Doge - Vindes de Pádua da parte de Belário?
dos fossem divididos em seis partes e mesmo que cada uma Nerissa - Sim, senhor. Belário saúda Vossa Graça.
dessas partes fosse um ducado, eu não os receberia; quero o (Apresenta-lhe uma carta.)
cumprimento de meu contrato. Bassânio - Por que afias tua faca tão seriamente?
Doge - Que misericórdia podes esperar, se não mos- Shylock - Para cortar o que esse arruinado deve, de
tras nenhuma? acordo com o estipulado.
Shylock - Que sentença devo temer, não havendo feito Graciano - Não é em teu couro, mas em tua alma,
mal algum? Tendes entre vós numerosos escravos que com- áspero judeu, que afias tua faca! Nenhum metal, nem ainda
prastes e que empregais, como se fossem burros, vossos cães qualquer machado de verdugo, é tão afiado quanto teu acera-
e vossas mulas, em trabalhos abjetos e servis, porque vós os do rancor. Nenhuma súplica pode abalar-te?
comprastes. Posso dizer-vos: dai-lhes liberdade, casai-os com Shylock - Não, nenhuma que possa ser imaginada por
vossas herdeiras? Por que estão suando debaixo de tanto tua inteligência.
peso? Por que as camas deles não são tão macias quanto as Graciano - Oh! condenado sejas, cão inexorável! E
vossas? Por que não lhes servis os mesmos alimentos que os que tua vida acuse a justiça! Quase me fizeste vacilar em
vossos? Vós me respondereis: "Os escravos nos pertencem". minha fé, e acreditar junto com Pitágoras que as almas dos
Muito bem, do mesmo modo eu respondo: "Esta libra de car- animais passam para os corpos dos homens. Teu espírito
ne que reclamo, custou-me muito dinheiro, é minha e eu a mesquinho animava outrora um lobo que foi enforcado pela
conseguirei. Se ela me for negada, anátema contra vossa lei! morte de um homem e cuja alma feroz, desprendida da força,

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quando ainda estavas no ventre de tua mãe profana, intro- Pórcia - Conheço a causa a fundo. Quem é o mer-
duziu-se em ti. Teus desejos são os de um lobo: sanguinários, cador e quem é o judeu?
famintos e rapaces. Doge - Antônio e tu, velho Shylock, aproximai-vos
Shylock - Desde que tuas injúrias não apaguem a
ambos.
assinatura de minha caução, só farás mal aos teus pulmões
Pórcia - Vosso nome é Shylock.
perorando tão forte. Mostra teu espírito, bom jovem, senão
vais cair em irremediável ruína. Aguardo aqui a justiça. Shylock - Shylock é meu nome.
Doge - Esta carta de Belário recomenda a nosso tri- Pórcia - O processo que intentais é de natureza estra-
bunal um jovem e sábio doutor. Onde está ele? nha· mas de tal maneira legal que a lei veneziana não pode
Nerissa - Espera perto daqui, para saber se quereis imp~dir ~ue prossigais. Sois vós que estais à mercê dele,
recebê-Io. não é?
Doge - Com todo meu coração. Três ou quatro dos Antônio - Sim, segundo ele diz.
presentes saiam e lhe façam escolta de cortesia até aqui. En- Pórcia - Reconheceis este recibo?
quanto espera, a Corte ouvirá a carta de Belário. Antônio - Sim.
Um Secretário - (Lendo.) "Vossa Graça haverá de Pórcia - O judeu deve mostrar-se misericordioso.
saber que no momento em que recebo vossa carta estou muito Shylock - Em virtude de que obrigação? Dizei-me.
doente; mas, no momento mesmo em que vosso mensageiro Pórcia - A qualidade da clemência é que não seja
chegava, eu recebia a amável visita de um jovem doutor de forçada; cai como a doce chuva do céu sobre. o chão que está
Roma, cujo nome é Baltasar. Falei-lhe da causa pendente por debaixo dela; é duas vezes bendita; bendiz ao que a con-
entre o judeu e o mercador Antônio. Consultamos juntos nu- cede e ao que a recebe. É o que há de mais poderoso no que
merosos autores; conhece minha opinião, melhorada pela é todo-poderoso; assenta melhor do que a coroa no monarca
própria ciência (cuja extensão não saberei bastante elogiar), assentado no trono. O cetro bem pode mostrar a força do
e terá ocasião de mostrá-Ia em vossa presença no meu nome, poder temporal, o atributo da majestade e ~o re~pel~o que
A

de acordo com o pedido de Vossa Graça. Suplico-vos que não faz tremer e temer os reis. Porém, a c1emencla_esta aClm~ d~
presteis atenção à sua extrema juventude como razão para autoridade do cetro; tem seu trono nos coraçoes dos rel~; e
recusar-lhe uma apreciação respeitosa, pois' jamais vi tão um atributo do próprio Deus e o poder terrestre se apro;,~a
velha cabeça sobre tão jovem corpo. Eu o recomendo à vossa tanto quanto possível do poder de Deus, quan?o ~ c1e~encla
benévola acolhida, tendo a certeza de que a prova ultrapas- tempera a justiça. Portanto, judeu, embora a JustlÇ~ seja teu
sará meus elogios." ponto de apoio, considera bem isto; nenhum de n?s. encon-
Doge - Estais ouvindo o que escreve o sábio Belário. trará salvação com estrita justiça; rogamos para s~lI.cltar cle-
E creio, segundo me parece, que aqui está chegando o dou- mência a este mesmo rogo, mediante o qual a solicitamos, ,a
tor. (Entra Pórcia, personificando Baltasar.) Dai-me vossa todos ensina que devemos mostrar-nos cIeme~~es pa~a ~os
mão. Vindes da parte do velho Belário? mesmos. Tudo o que. acabo de dizer é para mitigar a JUSÍl!a
Pórcia - Sim, senhor. de tua causa; se persistes, este rígido Tribunal ~e Veneza, fiei
Doge - Sede bem-vindo. Ocupai vosso lugar. Estais à lei, nada mais tem a fazer do que pronunciar a sentença
inteirado do litígio atualmente pendente ante o tribunal? contra este mercador.
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Shylock - Que meus atos caiam sobre minha cabeça! mana que tenha bastante eloqüência para fazer-me mudar.
Exijo a lei, a execução da cláusula penal e o combinado em Ao conteúdo de meu contrato, eu me atenho.
meu documento. Antônio - Suplico ao tribunal de todo meu coração
Pórcia - Não está ele em situação de reembolsar o que tenha por bem ditar seu veredicto. .
dinheiro? Pórcia - Pois bem, aqui está então: deveis oferecer
B~io - Sim, ofereço entregar-lhe aqui, perante o à faca vosso peito. .
tribunal. Mais ainda, dobro a soma. Não sendo isto suficiente, Shylock - Oh! nobre juiz! Oh! excelente Jovem!
obrigar-me-ei a pagar dez vezes a quantia, dando como garan- Pórcia - Com efeito, o objeto e o fim da lei estão em
tia minhas mãos, minha cabeça, meu coração. Não sendo relação estreita com a penalidade que este documento mos-
ainda suficiente, é notório que a maldade se impõe sobre a tra que pode ser reclamada. .. ,. ,
inocência. Eu vos peço, pisai uma só vez a lei debaixo de Shylock - Perfeitamente certo. Oh! JUIZsábio e íntegro!
vossa autoridade. Fazei um pequeno mal para realizar um Sois muito mais velho do que denota vosso semblante!
grande bem e dominai a obstinação desse demônio cruel. Pórcia - Desnudai, portanto, vosso peito.
Pórcia - Não pode ser; não há força em Veneza que Shylock - Sim, o peito; é o que diz o contrato, não é
possa alterar um decreto estabelecido; um precedente tal in- assim, nobre juiz? "O mais perto do coração", tais são exa-
troduziria no Estado n,!merosos abusos; não pode ser. tamente as palavras.
Shylock - Um Daniel veio para julgar-nos! Sim, um Pórcia _ Exatamente. Há alguma balança aqui para
Daniel! Ó jovem e sábio juiz, quanto te honro! pesar a carne?
Pórcia - Deixai-me ver a caução, por favor. Shylock - Tenho uma já pronta. .
Shylock - Aqui está, reverendíssimo doutor, aqui está. Pórcia - Mandai buscar/também, um cirurgiao, Shy-
Pórcia - Shylock, oferecem-te aqui três vezes teu di- lock, para vedar-lhe as feridas, a fim de impedir que sofra
nheiro. uma sangria e morra.
Shylock - Um juramento, um juramento! Fiz um ju- Shylock - Isto está especificado na caução? .
ramento ao céu! Vou fazer minha alma ficar perjura? Não, Pórcia - Não está especificado; mas, que Importa?
nem por toda Veneza! Seria bom que o fizésseis por caridade.
Pórcia - Está bem; já passou o prazo de pagamento Shylock - Não penso assim; não está consignado no
e pelas estipulações consignadas no .contrato, o judeu pode contrato.
legalmente reclamar uma libra de carne, que tem direito Pórcia - Vamos, mercador. Tendes alguma coisa a
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de cortar o mais perto do coração desse mercador. Se com- dizer?
passivo, recebe três vezes a importância da dívida; deixa-me Antônio - Pouca coisa. Estou armado e bem prepa-
rasgar a caução. rado. Dá-me tua mão, Bassânio; adeus! Não te entristeças
Shylock - Quando receber o pagamento de acordo o ter-me acontecido essa desgraça por tua causa, pois a For-
com seu teor. Parece que sois um digno juiz; conheceis a tuna se mostra neste caso mais indulgente que de costume.
lei; vossa exposição foi sólida. Eu vos intimo em nome da Habitualmente, ela força o infeliz a sobreviver à própria ri-
lei, de que sois um dos mais dignos pilares, a procederdes queza para contemplar com olhos macerados e fronte enru-
o julgamento. Juro por minha alma que não há língua hu- gada uma interminável pobreza. Pois bem: ela me livra do

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lento castigo de semelhante misena. Recomenda-me a tua Shylock - Sapientíssimo juiz! Isto é que é uma sen-
nobre esposa; conta-lhe, com todos os detalhes, qual foi o tença! Vamos, preparai-vos!
fim de Antônio; dize-lhe quanto gostava de ti; fala bem de Pórcia - Espera um momento. Ainda não é tudo. Esta
mim depois de minha morte e quando tua história tiver caução não te concede uma só gota de sangue. Os termos
terminado, insta com ela para que declare se Bassânio não exatos são: "uma libra de carne". Toma, pois, o que te con-
teve um amigo. Não te arrependas de perder teu amigo, que cede o documento; pega tua libra de carne. Mas, se ao cor-
ele não se arrependerá de pagar tua dívida; pois se o judeu tá-Ia, por acaso, derramares uma só gota de sangue cristão,
cortar bem profundamente, vou pagar tua dívida com todo tuas terras e teus bens, segundo as leis de Veneza, serão
o meu coração. confiscados em benefício do Estado de Veneza.
Bassânío - Antônio, estou casado com uma mulher Graciano - Oh! juiz emérito! Atenção, judeul , .. Que
que me é tão cara quanto minha própria vida; mas, a vida, juiz reto!
minha mulher, todo o mundo, não me são tão caros quanto Shylock - A lei é essa?
tua vida. Tudo sacrificarei, tudo perderei para libertar-te Pórcia - Verás pessoalmente o texto; pois ja que pe-
desse diabo. des justiça, fica certo de que a obterás, mais do que desejas.
Pórcia - Se vossa esposa aqui estivesse e vos ouvisse Graciano - Oh! doutor juiz! Atenção, judeu!... Oh!
fazer um oferecimento semelhante, bem pouco vos agra- juiz sábio!
deceria. Shylock - Aceito, então, o oferecimento. .. Pagai-me
Graciano - Declaro que tenho uma esposa a quem três vezes o valor da caução e deixai que o cristão seja
amo; pois bem, quisera que estivesse no céu, a fim de que posto em liberdade.
intercedesse com algum poder divino para transformar o B~ânio - Aqui está o dinheiro.
coração desse feroz judeu. Pórcia - Devagar. O judeu terá justiça completa ...
Nerissa - Fazeis bem de expressar semelhante voto Devagar! Nada de pressa. Ele só terá a execução das cláu-
na ausência de vossa esposa. Se ela aqui estivesse, a tran- sulas penais estipuladas.
qüilidade de vosso lar ficaria perturbada. Graciano - Oh! judeu! Um juiz íntegro! Um juiz sábio!
Shylock - (A parte.) Eis o que são os maridos cris- Pórcia - Prepara-te, pois, para cortar a carne; não
tãos. Tenho uma filha; preferiria que ela se tivesse casado derrames sangue e não cortes nem mais, nem menos, do que
com alguém da raça de Barrabás a vê-Ia casada com um uma libra de carne; se tiras mais, ou menos, do que uma
cristão. (Em voz alta.) Estamos perdendo tempo. Por favor, libra exata, mesmo que não seja mais do que a quantidade
terminai vossa sentença. suficiente para aumentar ou diminuir o peso da vigésima
Pórcia - Uma libra de carne desse mercador te per- parte de um simples escrópulo, ou, então, se a balança se
tence. O tribunal te adjudica essa libra e a lei ordena que desequilibrar com o P$!SO de um cabelo, tu morrerás e todos
ela te seja dada. os teus bens serão confiscados.
Shylock - Corretíssimo juiz! Graciano - Um segundo Daniel! Um Daniel, judeu!
Aqui te tenho, agora, em meu poder, infiel!
Pórcia - E podes cortar-lhe essa carne do peito. O tri- Pórcia - Que está esperando o judeu? Toma o que
bunal o autoriza e a lei o permite. te pertence.
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Shylock - Dai-me o meu capital e deixai-rne ir embora. Shylock - Não, tomai minha vida e tudo mais. Não
Bassânio - Já o tenho preparado para ti; aqui está. escuseis isso mais do que o resto. Apoderai-vos de minha casa
Pórcia - Ele o recusou em tribunal pleno. Só terá o quando me tirais o apoio que a sustém; vós me tirais a vida,
que lhe é devido por estrita justiça. quando me privais dos meios de viver.
Graciano - Um Daniel, repito-te! Um segundo Da- Pórcia - Que perdão podeis conceder-lhe, Antônio?
niel! Agradeço-te, judeu, pois, graças a ti, foi que aprendi Graciano - Uma corda grátis! Nada mais, pelo amor
essa palavra. de Deus.
Shylock - Não conseguirei nem mesmo o capital? Antônio - Peço a meu senhor, o doge, e ao tribunal,
Pórcia - Só terás o crédito estipulado. Leva-o, judeu, que a multa seja reduzida à metade de seus bens. Contentar-
responsabilizando-te por teus riscos e perigos. me-ei com o simples uso da outra metade para entregá-Ia,
Shylock - Pois bem: que o diabo se encarregue, então, quando ele morrer, ao cavalheiro que, recentemente, lhe
da liquidação. Não permanecerei aqui mais tempo discutindo. raptou a filha. Peço que sejam impostas, além disto, duas
Pórcia - Espera, judeu; tens, entretanto, que prestar condições a esta graça: a primeira, que se converta sem de-
contas à lei. Está escrito nas leis de Veneza que, se ficar mora ao cristianismo; a segunda, que faça aqui, perante o
provado que um estrangeiro, através de manobras diretas tribunal, uma doação legal de tudo o que possua, no momen-
ou indiretas, atentar contra a vida de um cidadão, a pessoa to de sua morte, ao seu genro Lourenço e à sua filha.
ameaçada ficará com a metade dos bens do culpado; a outra Doge - Ele fará o que dizes, ou, caso contrário, revo-
metade irá para a caixa privada do Estado, e a vida do ofen- garei o perdão que pronunciei aqui recentemente.
sor ficará entregue à mercê do doge que terá voz soberana. Pórcia - Estás satisfeito, judeu? Que tens a dizer?
Ora, afirmo que tu te encontras no caso previsto, pois está Shylock - Estou satisfeito.
claro por prova manifesta que, indiretamente e mesmo dire- Pórcia - Escrivão, redigi uma ata de doação.
tamente, atentaste contra a própria vida do réu. Tu incorreste Shylock - Peço-vos que me deixeis ir embora daqui.
na pena que acabo de mencionar. Ajoelha-te, pois, e implora Não me sinto bem. Enviai-me a ata para minha casa 'que eu a
a clemência do doge. assinarei.
Graciano - Suplica que te permitam ir enforcar-te. Doge - Podes partir, mas não faltes à tua palavra.
Entretanto, como todas as tuas riquezas estão confiscadas em Graciano - Quando te batizares, terás dois padrinhos.
proveito do Estado, não te sobra nem a quantia para com- Se fosse eu o juiz, terias tido dez mais para te levarem para
prares uma corda; portanto, deves ser enforcado por conta a forca e não para a pia batismal. (Sai Shylock.)
do Estado. Doge - Convido-vos, senhor, a virdes jantar comigo.
Doge - Para que bem vejas a diferença de nossos Pórcia - Peço humildemente perdão a Vossa Graça.
sentimentos, eu te perdôo a vida antes que peças. Quanto a Preciso voltar esta noite mesma para Pádua e necessito partir
teus bens, a metade pertence a Antônio e a outra metade vai imediatamente.
para o Tesouro público. Teu arrependimento pode ainda fazer Doge - Deploro que não disponhais de tempo para
comutar a confiscação numa multa. ficardes. Antônio, recornpensai a este cavalheiro, pois, se-
Pórcia - Sim, quanto ao que respeita ao Estado, po- gundo penso, muito lhe deveis. (Saem o Doge e o séquito.)
rém, não quanto ao que se refere a Antônio. Bassânio - Digníssímo cavalheiro, meu amigo e eu

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acabamos de livrar-nos, graças à vossa sabedoria, de uma me deu este anel; e quando ela o pôs em meu dedo, fez-me
penalidade cruel ... Como honorários, aceitai os três mil du- jurar que jamais o venderia, daria ou perderia.
cados que estavam destinados ao judeu; nós nos apressamos Pórcia - Esta desculpa faz com que os homens eco-
em vo-los oferecer por um tão gracioso serviço. nomizem muitos presentes. A não ser que vossa esposa seja
Antônio - Além do mais, ficamos para sempre vos louca, sabendo como fiz jus a esse anel, não poderia ela guar-
devendo afeição e devotamento. dar-vos ódio eterno pelo fato de ser-me ele dado por vós. Está
Pórcia - Está bem pago quem se sente satisfeito. Eu bem. A paz esteja convosco. (Saem Pórcia e Nerissa.)
me sinto satisfeito por ter conseguido vossa liberdade e, em Antônio - Bassânio, dá-lhe o anel. Que seus serviços
conseqüência, estou perfeitamente pago. Minha alma nunca e minha amizade compensem a recomendação de tua esposa.
foi mais mercenária. Eu somente vos peço que procureis reco- Bassânio - Vai, Graciano, corre e alcança-o; dá-lhe
nhecer-me, quando de novo vos encontrar. Desejo que pas- o anel e traze-o, se puderes, à casa de Antônio. Vai depressa!
seis bem e agora eu me despeço. (Sai Graciano.) Vamos ambos para casa. Amanhã de manhã
Bassânio - Prezado senhor, permiti-me que insista bem cedo, voaremos para Belmonte. Vem, Antônio. (Saem.)
ainda convosco. Aceitai alguma lembrança nossa, como tri-
buto, não como salário. Concedei-nos duas coisas. Por favor:
não mas negueis e perdoai-me. CENA lI: A mesma. Uma rua.
Pórcia - Tanto insistis que resolvo ceder. (Dirigindo-se Entram Pórcia e Nerissa.
a Antônio.) Dai-me vossas luvas. Eu as usarei como recor-
Pórcia - Informa-te da casa do judeu; apresenta-lhe
dação vossa. (Dirigindo-se a Bassânio.) E por vossa afeição,
aceitarei esse anel ... Não retireis vossa mão; não ficarei com esta ata e faze-o assiná-Ia. Partiremos hoje de noite e chega-
mais nada. Vossa amizade não me negará esse pedido. remos em casa um dia antes de nossos maridos. Este donati-
vo será muito bem recebido por Lourenço. (Entra Graciano.)
Bassânio - Este anel, meu caro senhor, é uma baga-
Graciano - Felizmente vos encontro, meu bom senhor.
tela. Ai, sinto vergonha de presentear-vos com coisa tão sem
Meu senhor Bassânio, depois de mais ampla reflexão, vos
importância. envia este anel e solicita a honra de vossa companhia para
Pórcia - Nada mais desejo do que o anel. Sinto ver- jantar.
dadeira atração por ele. Pórcia - É impossível. Quanto ao anel, eu o aceito
Bassânio - Tem para. mim importância bem acima com o mais vivo reconhecimento; dizei-Ihe assim, eu vos
do valor real. Mandarei buscar e vos darei o anel mais pre- peço. Rogo-vos, também, que mostreis a meu jovem ajudante
cioso que houver em Veneza; quanto a este, eu vos peço, a casa do velho Shylock.
desculpai-me. Graciano - Com todo o prazer.
Pórcia - Vejo, senhor, que sois liberal em oferecimen- Nerissa - Desejaria, senhor, dizer-vos uma palavra.
tos. Primeiro, ensinastes-me a mendigar e, agora, está-me (À parte para Párcia.] Quero ver se consigo tirar de meu
parecendo, vós me ensinais como se deve responder ao men- marido o anel que o fiz jurar jamais abandonar.
digo. Pórcia - (A parte para Nerissa.) Tu o conseguirás,
Bassânio - Prezado senhor, foi minha esposa quem posso garantir-te. Eles jurarão por tudo no mundo que deram

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os anéis a homens; porém, nós os desmentiremos, jurando o Lourenço - Numa noite como esta, a bela Jessica,
contrário mais alto do que eles. Vai, depressa! Já sabes onde qual uma megera, caluniou seu amante, que. a perd?ou '.
estou te esperando. Jessica - Eu vos enfrentaria toda a noite, se nao viesse
Nerissa - Vamos, prezado senhor, quereis mostrar- ninguém. Mas, escutai! Estou ouvindo passos de homem.
me a tal casa? (Saem.) (Entra Estejânio.)
Lourenço - Quem vem tão depressa no silêncio da
noite?
ATO QUINTO Estefânio - Um amigo.
Lourenço - Um amigo! Que amigo? Vosso nome, por
CENA I: Belmonte. Uma alameda conduzindo à casa de favor, amigo? , .
Pórcia. Estefânio - Estefânio é meu nome e trago a noticia
Entram Lourenço e Jessica. de que antes do raiar do dia, minha ama estará. aqui em
Belmonte; anda pelas vizinhanças, ajoelhando-se diante das
Lourenço - A lua está resplandescente. Numa noite
cruzes santas e orando pela felicidade de seu casamento.
como esta, enquanto o suave zéfiro beijava docemente as Lourenço - Quem está em companhia dela?
árvores silenciosas; numa noite como esta, Tróilo escalou os Estefânio - Somente um santo eremita e a camareira.
muros de Tróia e exalou a alma em suspiros diante das tendas Podeis dizer-me se meu amo já está de volta?
gregas, onde dormia Cressida!" Lourenço - Ainda não. Não tivemos notícias dele.
Jessica - Numa noite como esta, Tisbe, andando com Entremos, por favor, Jessica, e preparemo-nos para receber
passo temeroso através do orvalho, viu a sombra do leão, cerimoniosamente a dona da casa. (Entra Lancelote Gobo.)
antes que visse o próprio leão, e fugiu sobressaltada. Lancelote - Sol, lá! Sol, lá! Olá! Sol, lá! Sol, lá!43
Lourenço - Numa noite como esta, Dido, com um Lourenço - Quem está chamando?
ramo de salgueiro na mão, estava de pé na praia deserta e Lancelote - Sol, lá! Vistes o Senhor Lourenço? Se-
fazia sinais ao bem-amado para que voltasse para Cartago.
nhor Lourenço, sol, lá! Sol, lá! .
Jessica - Numa noite como esta, Medéia colhia as Lourenço - Pára com teus olás, homem; chega-te mais
ervas encantadas que rejuvenesceriam o velho Éson.42 para perto.
Lourenço - Numa noite como esta, Jessica fugiu de Lancelote - Sol, lá! Onde? Onde?
casa do rico judeu e com um amante pródigo fugiu de Lourenço - Aqui. .
Veneza para Belmonte. Lancelote - Dize-lhe que chegou um correio da parte
Jessica - Numa noite como esta, o jovem Lourenço de meu amo coma trompa cheia de boas notícias. Meu amo
jurou que a amava ternamente e roubou-lhe a alma com mil estará aqui antes do amanhecer. (Sai.)
juramentos de fidelidade, dos quais não havia um só sincero. Lourenço - Entremos, meu amor, e esperemos a che-
gada deles. Não, não vale a pena, por que deveríamos entrar?
Amigo Estefânio, anunciai, por favor, em casa, que vossa
41Imagem tirada de Troi/us and Cresseide, de Chaucer.
42Éson era pai de Jasão. A história de Medéia sugere a Lourenço
a própria história de Jessica. 43 Lancelote entra em cena imitando uma trompa.

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ama está para chegar e dizei a vossos musicos que venham homem que não tem música em si, nem s~ :mociona com a
aqui para o ar livre. (Sai Estefânio.] Como dorme docemente harmonia dos doces sons é feito para as traiçoes. os ~stra~age-
o luar neste canteiro+' Vamos assentar-nos aqui e deixemos mas e as rapinas; a alma dele tem movimentos sllenc~osos
os acordes da música deslizarem em nossos ouvidos! A calma, como a noite e as afeições tenebrosas como o Erebo. N~~ te
o silêncio e a noite convidam aos acentos de suaves harmo- fies jamais em semelhante homem! ... 46Escutemos a musica.
nias. Assenta-te, Jessica. Olha como a abóbada celeste está (Entram Pórcia e Nerissa.)
completamente incrustada com luminosos discos de ouro. Pórcia _ Essa luz que estamos vendo arde em meu
Até o menor daqueles globos que contemplas, quando se vestíbulo. Como aquela pequena candeia lança longe seus
movimentam, produzem uma melodia angelical, em perpétuo raios! Assim também resplandece uma boa ação num mundo
acorde com os querubins de olhos eternamente jovens!45 Uma mw. . d'
harmonia semelhante existe nas almas imortais; mas, en- Nerissa _ Quando a lua brilhava, não .vlamos a can ela.
quanto esta argila perecível cobri-Ia com sua veste grosseira, Pórcia _ Assim, uma glória maior eclipsa a menor. Um
não poderemos escutá-Ia. (Entram os Músicos.) Vamos, acor- ministro brilha tanto quanto um rei, até o momento em que
dai Diana com um hino! Que vossos mais doces sons impres- este aparece; então, todo seu prestígio se desvanece, ~~m~ um
sionem os ouvidos de vossa senhora e conduzi-a até em casa regato dos campos na imensidão dos mares .. , Música: Es-
com música! (Música.) cutemos!
Jessica - Nunca me sinto alegre quando ouço música Nerissa - São os músicos de vossa casa, senhora.
suave. Pórcia _ Nada é perfeito, estou vendo, senão em seu
Lourenço - A razão é que todos teus sentidos estão lugar próprio. Acho que soa bem mais harmoniosamente do
atentos. Presta somente atenção num rebanho selvagem e que durante o dia.
vagabundo, uma horda de potros jovens sem domar, fazendo Nerissa _ E o silêncio que lhe concede esse encanto,
loucas cabriolas, nitrindo e relinchando com grande estrépito, senhora. .
levados pelo ardor do sangue. Mas, se por acaso ouvem o som Põrcia _ O corvo canta tão bem quanto a cotovla,
de uma trombeta, ou qualquer ária musical venha ferir-Ihes quando nada há para escutar e creio que, se o roux!nol can-
os ouvidos, tu os verás, dominados pelo mágico poder da mú- tasse durante o dia, quando os gansos grasnam, nao pa~sa-
sica, ficarem imóveis como por unânime acordo e os olhos to- ria por melhor cantor do que a cambaxirra. Quantas ~Ol~as
marem uma tímida expressão. Por esta razão, o poeta imagi- há que só conseguem com a oportunidade da.s ~i~cun~t~nc~a~
nava que Orfeu atraía as árvores, as pedras e as vagas, pois o perfeito sazonamento de louvores e de perfeição! Ó silêncio!
não há coisa tão estúpida, tão dura, tão cheia de cólera, que a A lua dorme com Endimiã047 e não gostaria de ser acordada!
música, num momento, não lhe faça mudar a natureza. O (Pâra a música.)

44 Passagem célebre pela suavidade musical, em inglês: How 46 Segundo Shakespeare, quem não gosta de música é mau. Shy-
sweet the moonlight sleeps upon this bank! lock é o exemplo nesta peça. Em várias outras, aparece a mesma
45 Passagem que é reminiscência de Platão contida no décimo opinião. b .d d Ze
47 Endimião foi amado por Selene (a Lua), tendo o ti o e us
livro de De Republica. Plutarco e, depois, Montaigne têm a mes-
ma teoria da música das esferas. que ele conservasse a beleza num sono eterno.
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Lourenço - Ou muito me engano, ou essa é a voz de por ele, pois, pelo que pude saber, tomou grandes compro-
Pórcia. missos por vós.
Pórcia - Ele me reconhece como o cego reconhece Antônio - Gratidão que não excede o pagamento que
o cuco; pela voz desagradável. por ela recebi.
Lourenço - Prezada senhora, bem-vinda sejais à vossa Pórcia - Senhor, sois bem-vindo de todo o coração à
casa. nossa casa. Nossa gratidão deve ser mostrada de outro modo
Pórcia - Estivemos orando pela saúde de nossos ma- que não em palavras. Sendo assim, abrevio as cortesias ver-
ridos que, assim o esperamos, melhorará com nossas orações. bais.
Eles já voltaram? Graciano - (Dirigindo-se a Nerissa.) Pela lua que ali
Lourenço - Ainda não, senhora; porém, já veio um vês, juro que julgas mal. Por minha fé, eu o dei ao ajudante
mensageiro anunciando-Ihes a chegada. de um juiz. Quisera que aquele que está com ele ficasse cas-
Pórcia - Entra, Nerissa; ordena aos criados que nada trado, visto que tomas a coisa tão a sério, meu ~mor!
Pórcia - Já estão brigando! Qual é o motivo?
façam que possa revelar que estivemos ausentes. Ficai, Lou-
Graciano - Um círculo de ouro, um miserável anel
renço e vós, Jessica. (Ouve-se um toque de trombeta.)
que ela me deu e cuja divisa, dirigindo-se a todo o mundo
Lourenço - Vosso marido está chegando. Ouço-lhe o
como a poesia do cutileiro numa faca, dizia: "Ama-me e não
som da trombeta.s" Não somos indiscretos, senhora. Não te-
me abandones".
nhais qualquer temor de nós. Nerissa - Por que estás falando de divisa ou de valor?
Pórcia - Esta noite me faz o efeito de um pleno dia Quando te dei o anel, tu me juraste que o usarias até a ho-
doente. Somente que está um pouco mais pálida. É um dia ra da morte e que não o deixarias nem mesmo no túmulo.
igual aos dias em que o sol se oculta. (Entram Bassânio, An- Senão por mim, ao menos por causa de juramentos tão paté-
tônio, Graciano e seus acompanhantes.) ticos, deverias ter tido mais cuidados e procurado conser-
Bassânio - Teríamos o dia ao mesmo tempo que os vá-lo. Dá-lo ao ajudante de um juiz! Não, que Deus seja meu
antípodas, se aparecêsseis durante a ausência do sol. juiz! Estou certa de que o ajudante nunca usará barba no
Pórcia - Quem me dera ser. brilhante como a luz, ser rosto.
tão ligeira quanto ela! A mulher leviana se torna insuportá- Graciano - Usará, se viver bastante para chegar à ida-
vel ao marido e não quero que Bassânio seja para mim nada de adulta.
parecido. De resto, com a graça de Deus! ... Bem-vindo Nerissa - Sim, não há dúvida, se uma mulher puder
sejais, meu senhor.
virar homem.
Bassânio - Obrigado, senhora. Dai as boas-vindas a
Graciano - Por esta mão, juro que o dei a um jovem,
meu amigo; este é o homem, este é Antônio, a quem estou
quase uma criança, um pobre coitado, que não era mais alto
tão infinitamente agradecido.
do que tu, o ajudante do .juiz, um rapaz falador que me
Pórcia - Deveis de todo modo sentir grande gratidãc
pediu o anel como honorários. Não tive coragem de negá-Io.
Pórcia - Fizestes jus à censura, sou obrigada a dizer-
48 Naquele tempo cada viajante tinha um toque especial para vos francamente, ao desfazer-vos tão levianamente do pri-
fazer-se anunciar. meiro presente de vossa mulher, de um objeto colocado em

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vosso dedo com juramentos e unido desse modo pela fé à coisa considerada sagrada? Nerissa me ensina o que devo
vossa carne. Também dei meu anel a meu amor e o fiz jurar acreditar. Prefiro morrer, se não for uma mulher quem
que jamais dele se separaria. Aqui está presente e atrever- recebeu o anel. .
me-ia a afirmar, em nome dele, que não o daria, nem o tira- Bassânio - Não, por minha honra, senhora; por minha
ria do dedo por toda a riqueza que o mundo possui. Na vida nenhuma mulher o recebeu, mas um doutor em direito
verdade, Graciano, destes a vossa esposa um grande motivo mui;o civil que recusou receber três mil ducados e pediu-me
de desgosto, Se me houvessem dado desgosto igual, ficaria o anel. A princípio, recusei-lho e deixei-o part~r desconte~te,
louca. apesar de ter salvo a própria vida de me~ mais caro amigo.
Bassânio - (Ã parte.) Por Deus! Seria melhor que cor- Que poderia dizer, encantadora da~a? FUi f.orçado a mandar
tasse a mão-esquerda e jurasse que perdi o anel ao defendê-Ia. levá-lo a toda pressa atrás dele. Vi-me obrigado a c~~er ao
Graciano - O Senhor Bassânio deu o anel ao juiz, pois remorso e à cortesia. Minha honra não podia permitir que
o havia pedido a vosso marido. Aliás, bem merecia o presente a ingratidão a manchasse até esse ponto. Perdoai-me, ge?e-
que lhe foi feito. Foi então que o rapaz, ajudante do juiz, que rosa dama, pois juro pelas luminárias abençoadas da noite,
tivera o trabalho de fazer as escrituras, pediu o meu. Tanto que se lá ,estivésseis, creio que teríeis pedido que desse o anel
o servidor quanto o patrão nada quiseram aceitar, a não ser àquele digno doutor. .
os dois anéis. Pórcia - Não deixeis que esse doutor se aproxime
Pórcia - Que anel lhe presenteastes, meu senhor? Es- jamais de minha casa. Como ele está com a jóia de ~ue g~sta-
pero que não seja aquele que vos dei. va e que vós tínheis jurado guardar como recordação minha,
Bassânio - Se pudesse acrescentar uma mentira à mi- quero ser tão liberal quanto vós. Nada lhe negarei do que me
nha falta, eu negaria; mas, como vedes, o anel não está mais pertence, não, nem mesmo ~eu corpo ou a:é mes~o o leit~
em meu dedo, não o conservo. de meu marido! Estou resolvida a reconhecê-lo. Nao dormi-
Pórcia - A verdade não mais existe em vosso coração. reis fora de casa uma só noite, tomai conta de mim como
Pelo céu! Só entrarei em vosso leito, quando vir o anel. um Argos. Se assim não fizerdes, se me .deixa~des sozi~ha,
Nerissa - Nem eu no vosso, enquanto não vir de novo por minha honra, que é entretanto minha propnedade, ainda
o meu. terei esse doutor por çompanheiro de cama ',
Bassânio - Querida Pórcia, se soubésseis a quem dei Nerissa _ E eu, o ajudante dele! ASSim, toma bastante
o anel, se soubésseis para quem dei o anel, se pudésseis con- cuidado em não abandonar-me à minha própria guarda.
ceber porque dei o anel, com que repugnância entreguei o Graciano ~ Está bem, faze o que quiseres! Somente,
anel, quando nada poderia ser aceito a não ser o anel, mo- que eu não o surpreenda, porque esmigalharei a pena do
deraríes a vivacidade de vosso desagrado. jovem ajudante! ?
Pórcia - Se houvésseis conhecido a virtude do anel, Antônio - Sou a infeliz causa de todas estas querelas.
ou a metade do valor de quem vos deu o anel, ou até que Pórcia - Não vos preocupeis, senhor; sois de qualquer
ponto vossa honra estava empenhada em guardar o anel, modo bem-vindo. • . .
jamais vos teríeis separado do anel. Que homem teria sido Bassânlo _ Pórcia, perdoa-me essa falta que fuí obri-
tão irrazoável, se houvésseis querido defender vosso anel com gado a cometer. Diante de todos estes amigos que me escu-
semelhante zelo, para reclamar com tanta presunção uma tam, juro-te, por teus belos olhos, onde estou me vendo ...

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Pórcia - Olhai-os um pouco! Ele se vê duplamente reis através de que estranho acidente esta carta caiu em mi-
em meus dois olhos, um Bassânio para cada olho! Jurai por nhas mãos.
vossa dupla personalidade; é um juramento digno de crédito. Antônio - Estou mudo.
Bassânio - Vamos, tem a bondade de escutar-me ... Bassânio - Eras o doutor e não te reconheci?
Perdoa esta falta e, por minha alma, eu juro que jamais falta- Graciano - Eras o ajudante que deveria tornar-me
rei a um juramento que te haja feito. cornudo?
Antônio - Empenhei meu corpo pelos interesses de Nerissa - Sim, mas o ajudante não tem intenção de
vosso marido e, se não fosse essa pessoa que agora está com fazer-te tais coisas. Exceto, se virar homem.
o anel, a desgraça teria caído sobre mim. Ouso novamente Bassânio - Querido doutor, serás meu companheiro
comprometer-me e, desta vez, minha alma servirá como ga- de leito e, quando eu estiver ausente, deitar-te-ás com minha
rantia de que vosso senhor jamais violará voluntariamente o mulher.
prometido. Antônio - Encantadora dama, vós me devolvestes a
Põrcía - Sereis então fiador dele. Dai-lhe este anel vida e o meio de viver. Esta carta me dá a certeza de que
e dizei-Ihe para guardá-Io melhor do que o outro. meus navios chegaram a bom porto.
Antônio - Aqui está, Bassânio. Jura conservar este Pórcia - Que há Lourenço? Meu ajudante tem, tam-
anel. bém para vós, notícias reconfortantes.
Bassânlo - Pelo céu! E o mesmo que dei ao doutor! Nerissa - Sim, e as darei sem honorários. Aqui está,
Pórcia - Eu o recebi dele. Perdoai-me Bassânio ... para vós e para Jessica, um do nativo especial, feito pelo rico
Por causa deste anel, o doutor dormiu comigo. judeu de todos os bens de que for possuidor, quando morrer.
Nerissa - E perdoa-me, meu gentil Graciano, pois, o Lourenço - Belas damas, fazeis cair maná no caminho
próprio rapaz, ajudante do doutor, mediante este anel, dor- de pobres esfaimados.
miu comigo a noite passada. Pórcia - Já é quase dia e, portanto, estou certa de
Graciano - Como! Isso se parece com as reparações que ainda querereis conhecer os detalhes destes acontecimen-
feitas nas estradas reais, durante o verão, quando elas se en- tos. Vamos para dentro e, então, fazei-nos as perguntas que
contram em perfeito estado. Então, já estamos de cornos, sem quiserdes. Responderemos a todas, fielmente.
que houvéssemos merecido? Graciano - Então vamos. Para começar o interroga-
Pórcia - Não faleis tão grosseiramente. .. Estais todos tório que será respondido por minha N erissa sob juramento,
espantados. Muito bem, aqui está uma carta. Lede-a atenta- eu lhe perguntarei de que mais gosta ela: ficar de pé até a
mente. Vem de Pádua, enviada por Belário. Ficareis sabendo próxima noite ou aproveitar as duas horas que nos sobram
por intermédio dela que Pórcia era o doutor, Nerissa, aqui para ir deitar-se. Quanto a mim, quando o dia surgir, .deseja-
presente, o ajudante. Lourenço poderá atestar-vos que parti rei as trevas para que possa ir para a cama com o. ajudante
ao mesmo tempo que vós e que acabo de voltar. Entretanto, do doutor. Posso garantir-vos uma coisa: enquanto Viver, terei
não entrei em casa. Antônio, sede bem-vindo. Reservo para o maior cuidado em conservar escrupulosamente o anel de
vós melhores notícias do que podíeis esperar. Abri, logo, esta Nerissa. (Saem.) •
carta. Aí encontrareis que três ou quatro de vossos galeões
acabam de chegar ao porto, ricamente carregados. Não sabe-

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