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Personagens:
CENA I
Ruído tempestuoso de trovões e relâmpagos
CAPITÃO Contramestre!
Entram marinheiros.
CONTRAMESTRE Só quando o mar tiver paciência. Fora daqui! Que importa a essas
ondas o prestígio do rei? Para os camarotes! Silêncio! Chega de
atrapalhar.
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GONÇALO Está bem. Mas não te esqueças de quem trazes a bordo.
CONTRAMESTRE Não há ninguém que eu ame mais do que a mim mesmo. Não és
conselheiro? Usa tua influência. Se puderes silenciar os ventos e
acalmar a tempestade, deixaremos os cabos de lado. Se não
puderes, agradece aos céus por teres vivido tanto e fica em teu
camarote, pronto para o que der e vier (aos marinheiros) Coragem,
meus bravos! (aos nobres) Fora daqui, já disse. Sai.
GONÇALO Este sujeito me inspira muita confiança. Não tem o menor jeito de
afogado. Tem cara de quem vai morrer na forca. Que os fados
tratem mesmo de enforcá-lo. Que a corda que o destino lhe reserva
seja bastante forte para os salvar. Mas se ele não nasceu para
enforcado, estamos em péssima situação. Saem.
Retorna o contramestre.
CONTRAMESTRE Baixem a vela superior. Mais baixo. Mais baixo. Depressa. Até a
altura da vela grande. (gritos no interior do navio). Que gritaria dos
infernos! Eles fazem mais escândalo do que a tempestade e as
nossas manobras.
SEBASTIÃO Que a peste devore a tua garganta, seu cão danado! Pára de latir e
blasfemar!
GONÇALO Ele não há de morrer afogado, eu garanto. Nem que o navio fosse
frágil como uma casca de noz e mais furado que mulher vadia.
MARINHEIROS Tudo acabado! Vamos rezar, vamos rezar! Está tudo perdido! Saem.
GONÇALO Pois ele há de ser enforcado, ainda que cada gota de mar proclame
o contrário e as águas se abram para devorá-lo.
Sai o Contramestre.
GONÇALO Daria agora mil braças de mar por uma nesga de terra estéril, cheia
de urtigas e espinhos, não importa o que fosse. Que se cumpra a
vontade dos céus. Mas eu ainda preferia morrer em terra.
Sai.
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CENA II
PRÓSPERO Pois não aconteceu nada de mal. E nada fiz que não fosse por
ti, minha querida, por ti, minha filha, que não sabes quem és,
não sabes de onde venho, nem suspeitas que eu seja mais
que Próspero, senhor desta pobre gruta, teu pai.
PRÓSPERO Há doze anos Miranda, há doze anos teu pai era um príncipe
poderoso. Era Duque de Milão.
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MIRANDA Então, senhor, não és meu pai?
PRÓSPERO Tua mãe era um modelo de virtude, e garantiu que eras minha
filha. Teu pai era Duque de Milão, e sua única herdeira era uma
princesa legítima.
MIRANDA Oh, céus! Que negra desventura nos trouxe de lá? Ou terá
sido um acaso feliz?
PRÓSPERO Antonio, meu irmão e teu tio - escuta, como pode um irmão
ser tão pérfido? Ele, a quem eu amava quase tanto quanto a ti,
quem confiei os negócios do meu Estado - que, era, na época,
o melhor de todos, e Próspero o mais digno entre os duques,
dedicado como nenhum outro às Arts liberais, cujo estudo me
consumia tanto que deixei os encargos de governo para meu
irmão. Fui me tornando estranho a meu Estado, absorto,
exilado em meus estudos secretos. E o traidor do teu tio -
Estás escutando?
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ao meu tronco principesco, para sugar o meu verdor. Não
estás escutando.
PRÓSPERO Para que não houvesse nenhum véu entre o papel que
desempenhava e o seu próprio desempenho, decidiu tornar-se
senhor absoluto de Milão. Quanto a mim, pobre coitado -
minha biblioteca era um ducado suficientemente grande -, ele
considerou que eu não era capaz de governar; sedento de
poder, aliou-se ao Rei de Nápoles, comprometendo-se a
pagar-lhe um tributo anual, prestar-lhe homenagem e
submeter sua coroa de Duque à coroa real, fazendo com que
o ducado, até então insubmisso - ai de ti, Milão! - se curvasse
à mais infame servidão.
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PRÓSPERO Repara bem nas condições e nas consequências desse pacto.
Dize-me se é possível chamar um homem desses de irmão.
MIRANDA Ah, por piedade! Eu, que não tenho memória desse pranto, hei
de chorar de novo agora. Tua lembrança enche-me os olhos
de lágrimas.
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em meio ao rugido do mar, e suspirar na direção do vento que,
de compaixão, devolvia nossos suspiros - e nos fazia penar.
PRÓSPERO Oh, foste o anjo que me salvou. Tu sorrias, inspirada por uma
força celeste, enquanto eu, curvado às minhas desventuras,
cobria o mar de lágrimas amargas. Tu me deste o alento que
eu já não tinha, para enfrentar tudo o que fosse vir.
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PRÓSPERO Fica sabendo ainda mais: pelo mais estranho acaso, a
generosa Fortuna, que hoje me ampara, trouxe meus inimigos
para estas costas; e, graças à minha magia, descobri que o
meu apogeu se encontra sob o domínio de uma estrela
auspiciosa, cuja influência, se eu não a buscasse, ofuscaria
para sempre a minha sorte. E agora chega de perguntas.
Estás querendo dormir. É um bom sono, deixa que se aposse
de ti. Sei que não podes resistir. (Miranda dorme). Aparece,
meu servidor. Agora estou pronto. Aproxima-te, Ariel. Vem.
Entra Ariel.
ARIEL Salve, grande mestre! Salve, meu grave senho! Venho atender
as tuas vontades, seja pra voar, para nadar, para mergulhar no
fogo, para cavalgar as nuvens encrespadas. Ariel e todos os
seus poderes estão à espera de tuas ordens.
PRÓSPERO Meu admirável espírito! Quem terá sido forte o bastante para
não perder a razão nesse alvoroço?
ARIEL Não houve ninguém que não sentisse a febre da loucura e não
cometesse gestos de desespero. Afora os marinheiros, todos
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se lançaram tomar raivoso e abandonaram o navio, que nesse
instante se rendia às minhas chamas. O filho do Rei,
Fernando, com os cabelos arrepiados - pareciam caniços, não
cabelos - foi o primeiro a mergulhar gritando: “O inferno está
vazio, e todos os demônios estão aqui!”
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ARIEL Já passa do meio-dia.
ARIEL Peço que te lembres dos valiosos serviços que te prestei. Não
disse mentiras, não cometi erros. Nunca foi rancoroso nem
resmungão. Tu me prometeste descontar um ano inteiro.
ARIEL Não.
PRÓSPERO Esqueceste, sim. Onde foi que ela nasceu? Anda, fala.
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ARIEL Em Argel, senhor.
PRÓSPERO Ah, foi mesmo? A cada mês preciso recordar-te o que foste, já
que te esqueces. Esta maldita feiticeira Sycorax, por seus mil
malefícios e feitiços, que enchem de terror os ouvidos
humanos, foi banida de Argel, como bem sabes. E não lhe
tiraram a vida por uma única razão. Não é verdade?
PRÓSPERO Coisa estúpida, é o que quero dizer. Sim, esse Caliban que
agora tenho a meu serviço. Sabes muito bem em que
tormento te encontrei. Teus gemidos faziam uivar os lobos,
comoviam os ursos furiosos. Era um tormento de
amaldiçoado, que Sycorax já não podia desfazer. Foi minha
arte, quando cheguei à ilha e ouvi teus lamentos, que fez com
que o pinheiro se abrisse e te deixasse sair.
ARIEL É este o meu nobre senhor! O que devo fazer? Manda. O que
devo fazer?
PRÓSPERO Desperta. Vamos visitar Caliban, meu escravo que nunca nos
responde com palavras amáveis.
PRÓSPERO Vem cá, já disse. Tenho outro trabalho para ti. Vem, tartaruga.
Não queres vir?
Entra Caliban.
CALIBAN Que o mais pestilento orvalho jamais colhido por minha mãe
com penas de corvo num pântano podre caia sobre vós dois!
Que o vento sudoeste sopre sobre vós e vos cubra de
pústulas purulentas!
PRÓSPERO Por causa disso, podes ficar certo, esta noite sentirás
câimbras e fisgadas de tirar o fôlego. E, enquanto a noite for
propícia a pesadelos, ouriços andarão sobre ti. Ficarás mais
crivado de picadas que os favos de mel, e cada picada será
mais penetrante que uma ferroada de abelha.
CALIBAN É hora de comer o meu jantar. Esta ilha é minha, porque foi de
Sycorax, minha mãe. E tu a tomaste de mim. Quando
chegaste, tu me fazia afagos e gostavas de mim.
Tu me deste água com frutas e me ensinaste o nome da luz
maior, que ilumina o dia, e da luz menor, que ilumina a noite. E
então gostei de ti e te mostrei todas as virtudes da ilha: as
fontes de água doce, os poços salgados, as terras férteis e as
terras áridas. Que eu seja maldito por ter feito assim! Que
todos os feitiços de Syracox, sapos, besouros e morcegos se
abatam sobre ti! Porque eu, que sou teu único súdito, era
antes meu próprio rei. E aqui me aprisionaste neste rochedo,
enquanto te apossas do resto da ilha.
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PRÓSPERO Escravo mentiroso, que só caminha à custa de chicote, nunca
de agrados! Embora fosses imundo, tratei bem de ti e
abriguei-te em minha própria gruta, até o dia em que tentaste
violar a honra de minha filha.
CALIBAN Ho, ho, ho. Foi pena que não consegui. Tu me impediste.
Senão, teria povoada esta ilha de Calibans.
PRÓSPERO Sai daqui, cria de feiticeira! Vai buscar lenha. E é melhor andar
depressa, porque tens que cumprir outras tarefas.
Não te moves, coisa ruim? Se não fizeres o que mando, hei de
atormentar-te com câimbras de velho e torturar teus ossos.
Farei com que lances rugidos de amedrontar as feras.
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Entra Ariel, invisível, cantando sua canção. Fernando o
acompanha.
FERNANDO A canção faz lembrar meu pai, que se afogou. Este som não é
humano, nem pertence à terra. Agora, eu o escuto acima de
mim.
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PRÓSPERO (a Miranda) Levanta as cortinas franjadas de teus olhos e diz o
que vês à distância.
MIRANDA Eu diria que é uma coisa divina. Nunca vi no mundo nada mais
nobre.
FERNANDO Falas a minha língua? Céus! Sou o primeiro entre os que falam
esta língua: se me encontrasse no lugar em que é falada, eu
seria rei.
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FERNANDO Seria o mesmo homem simples que agora sou, admirado de
ouvir-te falar de Nápoles. (olhando para o céu) Ele me escuta
e, por isso, choro. Eu sou agora o Rei de Nápoles, e com
meus olhos, desde então em pranto, contemplei o naufrágio
do Rei meu pai.
MIRANDA Por que meu pai fala assim, de forma tão grosseira? Este é o
terceiro homem que jamais vi, e o primeiro por quem suspirei.
Que a piedade incline meu pai na direção dos meus desejos.
MIRANDA Ah, querido pai, não imponhas tão severa prova, pois ele é
amável e valente.
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Em face de outros homens, este é um Caliban, e outros, em
face dele, são anjos.
MIRANDA Ânimo, senhor. Meu pai é melhor do que aparenta ser. Não
costuma falar e agir dessa maneira.
PRÓSPERO (a Ariel) Serás tão livre quanto os ventos das montanhas. Mas
deves seguir rigorosamente as minhas ordens.
ARIEL Ao pé da letra.
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