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A Tempestade1

Tradução: Geraldo Carneiro

Personagens:

ALONSO, Rei de Nápoles


SEBASTIÃO, seu irmão
PRÓSPERO, o legítimo Duque de Milão
ANTONIO, seu irmão, Duque de Milão usurpador
FERNANDO, filho do Rei de Nápoles
GONÇALO, um velho e honesto conselheiro
NOBRES: Adriano, Francisco
CALIBAN, um escravo selvagem e deformado
TRÍNCULO, um bufão
ESTÉFANO, um mordomo bêbado
Capitão de navio
Contramestre
Marinheiros
MIRANDA, filha de Próspero
ARIEL, um espírito etéreo
Personagens da mascarada, representada por Ariel e outros Espíritos
Íris
Ceres
Juno
Ninfas
Ceifeiras
Outros Espíritos a serviço de Próspero

1 SHAKESPEARE, William. Trad. Geraldo Carneiro. Ed. Relume Dumará, 1991.


Para Poéticas de Atuação I/ Alice K./ 1o. Sem. 2023.
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ATO I

CENA I
Ruído tempestuoso de trovões e relâmpagos

Entram o capitão e o contramestre.

CAPITÃO Contramestre!

CONTRAMESTRE Aqui, capitão. Tudo bem?

CAPITÃO Tudo. Apressa os marinheiros. Manobra rápido, senão vamos


encalhar. Depressa. Sai.

Entram marinheiros.

CONTRAMESTRE Vamos, meus bravos! Coragem! Coragem! Força! Baixem a vela de


popa. Atenção para o apito do capitão! Pode soprar, vento, até
explodir. É só me deixar espaço para navegar.

Entram Alonso, Sebastião, Antiønio, Fernando, Gonçalo e outros.

ALONSO Cuidado, meu caro contramestre. Onde estão o capitão?


Controla os homens.

CONTRAMESTRE (aos nobres) Por favor, permanecei lá embaixo.

ANTÔNIO Contramestre, onde está o capitão?

CONTRAMESTRE (a Antônio) Não essas ouvindo a voz dele? (aos nobres)


Estais atrapalhando o nosso trabalho. Ficai em vossos camarotes.
Aqui, só estais ajudando a tempestade.

GONÇALO Um pouco de paciência, amigo.

CONTRAMESTRE Só quando o mar tiver paciência. Fora daqui! Que importa a essas
ondas o prestígio do rei? Para os camarotes! Silêncio! Chega de
atrapalhar.

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GONÇALO Está bem. Mas não te esqueças de quem trazes a bordo.

CONTRAMESTRE Não há ninguém que eu ame mais do que a mim mesmo. Não és
conselheiro? Usa tua influência. Se puderes silenciar os ventos e
acalmar a tempestade, deixaremos os cabos de lado. Se não
puderes, agradece aos céus por teres vivido tanto e fica em teu
camarote, pronto para o que der e vier (aos marinheiros) Coragem,
meus bravos! (aos nobres) Fora daqui, já disse. Sai.

GONÇALO Este sujeito me inspira muita confiança. Não tem o menor jeito de
afogado. Tem cara de quem vai morrer na forca. Que os fados
tratem mesmo de enforcá-lo. Que a corda que o destino lhe reserva
seja bastante forte para os salvar. Mas se ele não nasceu para
enforcado, estamos em péssima situação. Saem.

Retorna o contramestre.

CONTRAMESTRE Baixem a vela superior. Mais baixo. Mais baixo. Depressa. Até a
altura da vela grande. (gritos no interior do navio). Que gritaria dos
infernos! Eles fazem mais escândalo do que a tempestade e as
nossas manobras.

Retornam Sebastião, Antonio e Gonçalo.

Outra vez! Que fazeis aqui? Quereis que abandonemos tudo e


naufraguemos? Quereis ir para o fundo?

SEBASTIÃO Que a peste devore a tua garganta, seu cão danado! Pára de latir e
blasfemar!

CONTRAMESTRE Pois então, vem trabalhar.

ANTÔNIO Vai se enforcar, desgraçado! Filho da mãe, baderneiro insolente!


Nosso medo de morrer é menor do que o teu.

GONÇALO Ele não há de morrer afogado, eu garanto. Nem que o navio fosse
frágil como uma casca de noz e mais furado que mulher vadia.

CONTRAMESTRE Alinhar no rumo do vento. Emparelhar as velas. Para alto-mar. Para


alto-mar.
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Entram marinheiros ensopados.

MARINHEIROS Tudo acabado! Vamos rezar, vamos rezar! Está tudo perdido! Saem.

CONTRAMESTRE O quê? Vamos ficar de goela fria? (bebe um trago)

GONÇALO O Rei e o Príncipe estão rezando. Vamos acompanhá-los, pois


estamos na mesma situação.

SEBASTIÃO Estou perdendo a paciência.

ANTÔNIO Esses bêbados estão brincando com nossas vidas. (ao


contramestre) Seu pinguço sem-vergonha! Tomara que te afogues
debaixo de dez marés!

GONÇALO Pois ele há de ser enforcado, ainda que cada gota de mar proclame
o contrário e as águas se abram para devorá-lo.

VOZES Misericórdia! Estamos naufragando! Adeus, mulher! Adeus, meus


filhos! Adeus, irmão! Estamos naufragando!

Sai o Contramestre.

ANTÔNIO Vamos afundar ao lado do Rei.

SEBASTIÃO Vamos nos despedir dele.

Saem Antônio e Sebastião.

GONÇALO Daria agora mil braças de mar por uma nesga de terra estéril, cheia
de urtigas e espinhos, não importa o que fosse. Que se cumpra a
vontade dos céus. Mas eu ainda preferia morrer em terra.

Sai.

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CENA II

Entram Próspero e Miranda.

MIRANDA Se com tua arte, meu querido pai, fizeste


rugir as águas selvagens, faz com que acalmem.
Era como se o céu derramasse breu fervendo,
não fosse o mar, subindo ao firmamento,
para apagar-lhe o fogo.
Ah, sofri com aqueles que vi sofrer. Um admirável navio,
que decerto conduzia gente nobre,
fez-se em pedaços. Morreram todos, pobres criaturas.
Seus gritos feriram meu coração.
Se eu fosse um deus poderoso,
faria o mar se consumir dentro da terra,
antes que engolisse o bravo navio
carregado de almas.

PRÓSPERO Sossega. Chega de espanto. Diz ao teu coração que nenhum


mal foi cometido.

MIRANDA Ah, dia infeliz!

PRÓSPERO Pois não aconteceu nada de mal. E nada fiz que não fosse por
ti, minha querida, por ti, minha filha, que não sabes quem és,
não sabes de onde venho, nem suspeitas que eu seja mais
que Próspero, senhor desta pobre gruta, teu pai.

MIRANDA Nunca pensei em saber mais que isso.

PRÓSPERO Chegou a hora de dizer-te mais. Ajuda-me a tirar o manto


mágico. (coloca o manto no chão). Fica aí, símbolo de minha
arte. (a Miranda). Enxuga os olhos, fica sossegada. O horrível
espetáculo do naufrágio, que despertou a tua compaixão, eu o
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criei, graças à minha arte. E fui bem previdente, pois de todos
o que ouviste gritar em meio às águas, naufragando diante de
teus olhos, nenhuma criatura se perdeu: ninguém perdeu um
fio de cabelo. Senta-te. Agora precisas saber mais do que
sabes.

MIRANDA Diversas vezes começaste a revelar quem sou. Mas sempre


me deixaste no começo, abandonada em vagos pensamentos,
dizendo: “Espera. Ainda é cedo.”

PRÓSPERO Apura os ouvidos, pois chegou o momento exato. Obedece e


presta atenção. Podes lembrar-te de um tempo anterior à
nossa vinda para esta gruta? Não creio que possas. Ainda não
tinha três anos.

MIRANDA Sim, senhor eu me lembro.

PRÓSPERO De quê? Podes lembrar-te de outra casa, ou de outra pessoa?


Alguma outra imagem gravou-se em tua lembrança?

MIRANDA É tão distante. Não é uma imagem clara, que a memória


pudesse aprisionar. Parece um sonho. Já tive um dia quatro
ou cinco mulheres que me cuidavam?

PRÓSPERO Tiveste, Miranda. E outras mais. Mas como ela imagem


conservou-se em tua memória? O que mais vês nas sombras
do passado e no abismo do tempo? Se te lembras de coisas
anteriores à chegada, deves lembrar-te de como chegaste a
esta ilha.

MIRANDA Não, não me lembro disso.

PRÓSPERO Há doze anos Miranda, há doze anos teu pai era um príncipe
poderoso. Era Duque de Milão.

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MIRANDA Então, senhor, não és meu pai?

PRÓSPERO Tua mãe era um modelo de virtude, e garantiu que eras minha
filha. Teu pai era Duque de Milão, e sua única herdeira era uma
princesa legítima.

MIRANDA Oh, céus! Que negra desventura nos trouxe de lá? Ou terá
sido um acaso feliz?

PRÓSPERO As duas coisas, minha menina. Como disseste, a desventura


nos tirou de lá, mas, por uma feliz circunstância, viemos dar
aqui.

MIRANDA Oh, sangra meu coração ao pensar nos sofrimentos que te


causei e se apagaram da minha lembrança. Eu te peço,
continua.

PRÓSPERO Antonio, meu irmão e teu tio - escuta, como pode um irmão
ser tão pérfido? Ele, a quem eu amava quase tanto quanto a ti,
quem confiei os negócios do meu Estado - que, era, na época,
o melhor de todos, e Próspero o mais digno entre os duques,
dedicado como nenhum outro às Arts liberais, cujo estudo me
consumia tanto que deixei os encargos de governo para meu
irmão. Fui me tornando estranho a meu Estado, absorto,
exilado em meus estudos secretos. E o traidor do teu tio -
Estás escutando?

MIRANDA Com toda a atenção, senhor.

PRÓSPERO Conhecedor da arte dos favores, de como concedê-los e


negá-los, transformou meus súditos em seus; isso é, ou punha
outros em seu lugar, ou os moldava às suas conveniências.
Então, senhor de todos os poderes, fez com que todos
dançassem conforme a sua música. Agarrou-se como a hera

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ao meu tronco principesco, para sugar o meu verdor. Não
estás escutando.

MIRANDA Oh, meu senhor, estou sim.

PRÓSPERO Assim, desatento às coisas do mundo, dedicado à solidão e


ao aperfeiçoamento do espírito, que, embora me impusesse o
isolamento era uma forma superior de saber, despertei em
meu irmão uma natureza perversa. E a minha confiança sem
limites recebeu em troca uma falsidade sem fim. Investido no
governo, não apenas senhor das minhas rendas, mas das
barganhas e negócios do poder, com alguém que inventa uma
falsa história e, de tanto repeti-la, acaba cometendo o erro de
acreditar na própria mentira - ele acabou acreditando que era
o verdadeiro Duque. Esqueceu-se de que era meu substituto
e assumiu a máscara da soberania, com todas as
prerrogativas.
E assim, sua ambição foi crescendo - Estás ouvindo?

MIRANDA Tua história, senhor, curaria um surdo.

PRÓSPERO Para que não houvesse nenhum véu entre o papel que
desempenhava e o seu próprio desempenho, decidiu tornar-se
senhor absoluto de Milão. Quanto a mim, pobre coitado -
minha biblioteca era um ducado suficientemente grande -, ele
considerou que eu não era capaz de governar; sedento de
poder, aliou-se ao Rei de Nápoles, comprometendo-se a
pagar-lhe um tributo anual, prestar-lhe homenagem e
submeter sua coroa de Duque à coroa real, fazendo com que
o ducado, até então insubmisso - ai de ti, Milão! - se curvasse
à mais infame servidão.

MIRANDA Pelos céus!

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PRÓSPERO Repara bem nas condições e nas consequências desse pacto.
Dize-me se é possível chamar um homem desses de irmão.

MIRANDA Seria pecado desconfiar da honra de minha avó: os bons


ventres podem gerar maus filhos.

PRÓSPERO Vamos agora às condições do pacto: o Rei de Nápoles, meu


inimigo inveterado, aceitou a proposta de meu irmão, que era
a seguinte: em troca da vassalagem e de não sei quanto
tributo, ele deveria expulsar-nos sem demora do ducado,
entrando Milão desimpedida, com todas as honras, a meu
irmão. Então, aliciado um exército traidor, em certa noite
predestinada, Antônio abriu as portas de Milão; e, na calada
das trevas, os homens encarregados da missão arrebataram-
nos de lá, a mim e a ti, que choravas.

MIRANDA Ah, por piedade! Eu, que não tenho memória desse pranto, hei
de chorar de novo agora. Tua lembrança enche-me os olhos
de lágrimas.

PRÓSPERO Escuta um pouco mais, e chegaremos ao assunto que nos


ocupa agora, sem o qual este relato seria desnecessário.

MIRANDA Mas por que não nos mataram naquele momento?

PRÓSPERO Boa pergunta, menina. Minha história suscita essa questão.


Eles não ousaram, minha querida, tal era o amor que meu
povo me dedicava: não quiseram selar o acontecimento de
forma tão sangrenta: preferiram pintar seus maus propósitos
com cores mais suaves. Em suma, embarcaram-nos num
navio, que navegou algumas léguas mar adentro. Haviam
preparado um barco de carcaça podre, sem instrumentos,
sem vela, sem mastro. Até os ratos, por instinto, tinham-no
abandonado. E lá nos deixaram, para chorar o nosso pranto

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em meio ao rugido do mar, e suspirar na direção do vento que,
de compaixão, devolvia nossos suspiros - e nos fazia penar.

MIRANDA Ah, quanto embaraço devo ter-te causado nessa hora!

PRÓSPERO Oh, foste o anjo que me salvou. Tu sorrias, inspirada por uma
força celeste, enquanto eu, curvado às minhas desventuras,
cobria o mar de lágrimas amargas. Tu me deste o alento que
eu já não tinha, para enfrentar tudo o que fosse vir.

MIRANDA Como chegamos à terra?

PRÓSPERO Por graça da divina Providência. Tínhamos alguns


mantimentos e um pouco de água doce, que, num gesto de
caridade, Gonçalo, o nobre napolitano que fora designado
para chefiar a missão, nos havia dado, além de ricas vestes,
roupa branca e outros utensílios que, mais tarde, nos foram de
grande valia. Amavelmente, sabendo que eu amava meus
livros, ele me trouxe alguns volumes de minha biblioteca, que
eu prezava mais que o meu ducado.

MIRANDA Ah, se algum dia eu pudesse ver esse homem!

PRÓSPERO Agora vou me levantar. (coloca novamente o manto). Fica


sentada e escuta o desenlace dos nossos padecimentos no
mar. Chegamos a esta ilha, e aqui, como teu mestre, pude
fazer com que progredisses mais que outras princesas, que
encontram mais tempo para futilidades, de professores menos
cuidadosos.

MIRANDA Que os céus te paguem! E agora, senhor, peço que


esclareças, pois isto ainda me açoita o pensamento: por que
levantaste esta tempestade?

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PRÓSPERO Fica sabendo ainda mais: pelo mais estranho acaso, a
generosa Fortuna, que hoje me ampara, trouxe meus inimigos
para estas costas; e, graças à minha magia, descobri que o
meu apogeu se encontra sob o domínio de uma estrela
auspiciosa, cuja influência, se eu não a buscasse, ofuscaria
para sempre a minha sorte. E agora chega de perguntas.
Estás querendo dormir. É um bom sono, deixa que se aposse
de ti. Sei que não podes resistir. (Miranda dorme). Aparece,
meu servidor. Agora estou pronto. Aproxima-te, Ariel. Vem.

Entra Ariel.

ARIEL Salve, grande mestre! Salve, meu grave senho! Venho atender
as tuas vontades, seja pra voar, para nadar, para mergulhar no
fogo, para cavalgar as nuvens encrespadas. Ariel e todos os
seus poderes estão à espera de tuas ordens.

PRÓSPERO Escuta, espírito. Executaste a tempestade conforme te


ordenei?

ARIEL Em todos os detalhes. Assaltei o navio do Rei, ora na proa, ora


nos flancos, no convés, em cada camarote espalhei o
espanto. Às vezes me dividia para flamejar em lugares
diversos: no mastro superior, na vergas, no mastro de proa.
Reparti-me em várias chamas, depois me reuni numa só. Os
raios de Júpiter, precursores dos terríveis trovões, não eram
mais rápidos nem fulgurantes. Os fogos e estrondos de
enxofre pareciam assediar o poderoso Netuno, amedrontando
suas ondas atrevidas. Sim, seu terrível tridente tremeu.

PRÓSPERO Meu admirável espírito! Quem terá sido forte o bastante para
não perder a razão nesse alvoroço?

ARIEL Não houve ninguém que não sentisse a febre da loucura e não
cometesse gestos de desespero. Afora os marinheiros, todos
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se lançaram tomar raivoso e abandonaram o navio, que nesse
instante se rendia às minhas chamas. O filho do Rei,
Fernando, com os cabelos arrepiados - pareciam caniços, não
cabelos - foi o primeiro a mergulhar gritando: “O inferno está
vazio, e todos os demônios estão aqui!”

PRÓSPERO Muito bem, meu espírito! E isso se passou perto da praia?

ARIEL Bem perto, meu mestre.

PRÓSPERO Mas, Ariel, eles estão vivos?

ARIEL Nem um fio de cabelo perderam. Não há mancha nenhuma em


suas roupas, que estão mais novas do que antes. E, conforme
ordenaste, dispersei-os em grupos pela ilha. Fiz o filho do Rei
chegar a terra por seus próprios meios, e o deixei num recanto
deserto da ilha, a refrescar o ar com seus suspiros, sentado,
os braços tristemente cruzados, assim.

PRÓSPERO O que fizeste do navio Real, dos marinheiros e do resto da


frota?

ARIEL O navio do Rei está escondido na enseada, no remanso onde


certa vez me chamaste para colher o orvalho das
tempestuosas Ilhas Bermudas. Os marinheiros se amontoaram
no porão e, como acrescentei feitiço ao seu cansaço, deixei-
os dormindo. Quanto ao resto da frota que dispersei, os
barcos se reuniram e navegam melancolicamente pelo Mar
Mediterrâneo, no rumo de Nápoles, supondo que
contemplaram o naufrágio do navio do Rei e a morte de sua
magnífica pessoa.

PRÓSPERO Ariel, tua tarefa foi perfeitamente cumprida. Mas ainda há o


que fazer. Que horas são?

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ARIEL Já passa do meio-dia.

PRÓSPERO Hum. Duas ampulhetas, pelo menos. Temos que aproveitar o


tempo precioso que nos resta até as seis horas.

ARIEL Mais trabalho? Já que me reserva outras tarefas, permite que


te lembre de uma promessa que ainda não cumpriste.

PRÓSPERO O quê? Estás de mau humor? O que queres pedir?

ARIEL A minha liberdade.

PRÓSPERO Antes do prazo? Nem pensar.

ARIEL Peço que te lembres dos valiosos serviços que te prestei. Não
disse mentiras, não cometi erros. Nunca foi rancoroso nem
resmungão. Tu me prometeste descontar um ano inteiro.

PRÓSPERO Já te esqueceste de que tormento te libertei?

ARIEL Não.

PRÓSPERO Esqueceste, sim. Consideras fatigante percorrer o lodo das


profundezas do mar, correr no vento gelado do norte, fazer-me
serviços nas veias da terra calcinada pelo gelo.

ARIEL Não, senhor.

PRÓSPERO Estás mentindo, coisa maligna. Já esqueceste a asquerosa


feiticeira Sycorax, que de tão velha e tão malvada, era
encurvada feito um arco?

ARIEL Não, senhor.

PRÓSPERO Esqueceste, sim. Onde foi que ela nasceu? Anda, fala.
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ARIEL Em Argel, senhor.

PRÓSPERO Ah, foi mesmo? A cada mês preciso recordar-te o que foste, já
que te esqueces. Esta maldita feiticeira Sycorax, por seus mil
malefícios e feitiços, que enchem de terror os ouvidos
humanos, foi banida de Argel, como bem sabes. E não lhe
tiraram a vida por uma única razão. Não é verdade?

ARIEL Sim, senhor.

PRÓSPERO Como estava grávida, trouxeram essa bruxa de olhos fundos


para cá, e aqui os marinheiros a deixaram. Na ocasião,
segundo me contaste, meu escravo, tu eras servo dela. E,
como eras um espírito excessivamente delicado para executar
suas ordens baixas e abomináveis, e recusaste os seus
preceitos arrogantes, ela, com o auxílio de ministros mais
poderosos, confinou-te num pinheiro fendido. Assim,
aprisionado nesta fenda, permaneceste doze dolorosos anos.
Nesse meio tempo, ela morreu, deixando-te lá, gemendo feito
roda de moinho. Até essa época, esta ilha não abrigara
qualquer forma humana - a não ser o filho que nasceu dela,
um bicho sardento, parido de bruxa.

ARIEL Sim, Caliban, seu filho.

PRÓSPERO Coisa estúpida, é o que quero dizer. Sim, esse Caliban que
agora tenho a meu serviço. Sabes muito bem em que
tormento te encontrei. Teus gemidos faziam uivar os lobos,
comoviam os ursos furiosos. Era um tormento de
amaldiçoado, que Sycorax já não podia desfazer. Foi minha
arte, quando cheguei à ilha e ouvi teus lamentos, que fez com
que o pinheiro se abrisse e te deixasse sair.

ARIEL Eu te agradeço, mestre.


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PRÓSPERO Se resmungares mais, farei romper um carvalho para encravar-
te em suas entranhas ásperas, até que tenhas uivado durante
doze invernos.

ARIEL Perdão mestre. Hei de obedecer às tuas ordens. Cumprirei de


bom grado minhas funções de espírito.

PRÓSPERO procede assim. E, ao fim de dois dias, eu te darei a liberdade.

ARIEL É este o meu nobre senhor! O que devo fazer? Manda. O que
devo fazer?

PRÓSPERO Vai transformar-te em ninfa do mar. Torna-te invisível para


todos os olhares, a não ser o meu e o teu. Anda, assume esta
forma e volta aqui. Vamos, depressa! (sai Ariel) Acorda, meu
coração, acorda. Já dormiste bastante. Acorda.

MIRANDA Hum. Tua incrível história deixou-me com sono.

PRÓSPERO Desperta. Vamos visitar Caliban, meu escravo que nunca nos
responde com palavras amáveis.

MIRANDA É um vilão, que não me agrada ver, senhor.

PRÓSPERO Ainda assim, não podemos dispensá-lo. Ele nos acende o


fogo, providencia lenha e nos presta serviços proveitosos. E-
hê, escravo! Caliban! Fala, ó lasca de barro!

CALIBAN Há bastante lenha aqui dentro.

PRÓSPERO Vem cá, já disse. Tenho outro trabalho para ti. Vem, tartaruga.
Não queres vir?

Entra Ariel transformado em ninfa do mar.


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Bela aparição! Meu precioso Ariel, deixa-me falar no teu
ouvido.

ARIEL Assim será feito, meu senhor. (sai)

PRÓSPERO Escravo peçonhento, que o diabo em pessoa gerou no ventre


de tua perversa mãe, vem cá!

Entra Caliban.

CALIBAN Que o mais pestilento orvalho jamais colhido por minha mãe
com penas de corvo num pântano podre caia sobre vós dois!
Que o vento sudoeste sopre sobre vós e vos cubra de
pústulas purulentas!

PRÓSPERO Por causa disso, podes ficar certo, esta noite sentirás
câimbras e fisgadas de tirar o fôlego. E, enquanto a noite for
propícia a pesadelos, ouriços andarão sobre ti. Ficarás mais
crivado de picadas que os favos de mel, e cada picada será
mais penetrante que uma ferroada de abelha.

CALIBAN É hora de comer o meu jantar. Esta ilha é minha, porque foi de
Sycorax, minha mãe. E tu a tomaste de mim. Quando
chegaste, tu me fazia afagos e gostavas de mim.
Tu me deste água com frutas e me ensinaste o nome da luz
maior, que ilumina o dia, e da luz menor, que ilumina a noite. E
então gostei de ti e te mostrei todas as virtudes da ilha: as
fontes de água doce, os poços salgados, as terras férteis e as
terras áridas. Que eu seja maldito por ter feito assim! Que
todos os feitiços de Syracox, sapos, besouros e morcegos se
abatam sobre ti! Porque eu, que sou teu único súdito, era
antes meu próprio rei. E aqui me aprisionaste neste rochedo,
enquanto te apossas do resto da ilha.

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PRÓSPERO Escravo mentiroso, que só caminha à custa de chicote, nunca
de agrados! Embora fosses imundo, tratei bem de ti e
abriguei-te em minha própria gruta, até o dia em que tentaste
violar a honra de minha filha.

CALIBAN Ho, ho, ho. Foi pena que não consegui. Tu me impediste.
Senão, teria povoada esta ilha de Calibans.

MIRANDA Escravo repugnante, que não guarda vestígio de bondade,


capaz de todas as abominações! Tive pena de ti. Penei para
fazer-te falar e ensinar-te a cada instante uma coisa ou outra.
Quando desconhecias o que eras, e apenas te exprimias por
grunhidos, eu recobri teus gestos de palavras, para que assim
pudesses decifrá-los. Mas, embora conseguisses aprender,
teu caráter infame era intolerável para as criaturas de boa
natureza. Por isso, foste merecidamente confinado neste
rochedo. Tu merecias mais que uma prisão.

CALIBAN Tu me ensinaste a falar e meu único proveito foi aprender a


amaldiçoar. Que a peste vermelha te carregue por teres me
ensinado a tua língua!

PRÓSPERO Sai daqui, cria de feiticeira! Vai buscar lenha. E é melhor andar
depressa, porque tens que cumprir outras tarefas.
Não te moves, coisa ruim? Se não fizeres o que mando, hei de
atormentar-te com câimbras de velho e torturar teus ossos.
Farei com que lances rugidos de amedrontar as feras.

CALIBAN Não, por favor.


(à parte) Tenho que obedecer. Sua arte é tão poderosa que
seria capaz de dominar Setebos, o deus de minha mãe, e
transformá-lo em seu vassalo.

PRÓSPERO Vamos, escravo. Fora daqui! Caliban sai.

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Entra Ariel, invisível, cantando sua canção. Fernando o
acompanha.

ARIEL Vinde às areias douradas


E de mãos dadas
Trocai beijos na bonança
Que a onda amansa;
Na leve dança o brilho,
Que aos gênios o estribilho
Já se anuncia Au Au
O cão vigia Au Au
E o galo, um orgulho só,
Se esgoela, cocoricó.

FERNANDO De onde virá esta música? Do céu ou da terra? Parou. Com


certeza pertence a algum deus da ilha. Eu chorava o naufrágio
do rei meu pai, sentado à beira-mar, e esta música me chegou
das águas, acalmando a fúria do mar e a minha dor com sua
doce melodia. Eu a acompanhei - ou, antes, ela me trouxe.
Mas já se foi Não, está começando de novo.

ARIEL Jaz teu pai a cinco braças;


Seus ossos dão em coral,
Seu olho a pérola passa;
O que era nele mortal,
O mar logo transformara
Em matéria rica e rara.
As andinas, ao seu lado,
Ding Dong
Dão-lhe o toque de finados
Ding Dong

FERNANDO A canção faz lembrar meu pai, que se afogou. Este som não é
humano, nem pertence à terra. Agora, eu o escuto acima de
mim.
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PRÓSPERO (a Miranda) Levanta as cortinas franjadas de teus olhos e diz o
que vês à distância.

MIRANDA O que é isto? Um espírito? Olha, parece desorientado! Que


bela figura, meu senhor. Mas é só um espírito.
PRÓSPERO Não, menina. Ele come, dorme e seus sentidos são iguais aos
nossos. O moço que estás vendo é um dos náufragos. E, não
fosse a dor que o desfigura um pouco, dirias que é um belo
rapaz. Ele perdeu seus companheiros e anda sem rumo a
procurá-los.

MIRANDA Eu diria que é uma coisa divina. Nunca vi no mundo nada mais
nobre.

PRÓSPERO (à parte) Tudo caminha conforme as minhas sugestões.


Espírito, belo espírito! Por causa disto, eu te libertarei dentro
de dois dias.

FERNANDO Sem dúvida, esta é a deusa a quem oferece esses cantos.


(a Miranda) Consente em dizer-me se habitas esta ilha e se
poderias ensinar-me como devo proceder aqui. Mas, meu
principal desejo, embora eu o revele por último oh maravilha, é
saber se és mortal ou não.

MIRANDA Não sou maravilha, senhor. Mas, certamente, sou mulher.

FERNANDO Falas a minha língua? Céus! Sou o primeiro entre os que falam
esta língua: se me encontrasse no lugar em que é falada, eu
seria rei.

PRÓSPERO O quê? O primeiro? Que seria de ti se o Rei de Nápoles te


escutasse?

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FERNANDO Seria o mesmo homem simples que agora sou, admirado de
ouvir-te falar de Nápoles. (olhando para o céu) Ele me escuta
e, por isso, choro. Eu sou agora o Rei de Nápoles, e com
meus olhos, desde então em pranto, contemplei o naufrágio
do Rei meu pai.

MIRANDA Ah, que desventura!

FERNANDO Sim, naufragou com todos os seus nobres. Entre eles, o


Duque de Milão e seu valoroso filho.

PRÓSPERO (à parte) O Duque de Milão e sua filha ainda mais valorosa


poderiam desmentir-se agora, se fosse conveniente. Logo à
primeira vista, seus olhos trocaram faíscas. Delicado Ariel, eu
te libertarei por isto.
(a Fernando) Um momento, rapaz! Temo que tenhas
confundido as coisas.
Um momento.

MIRANDA Por que meu pai fala assim, de forma tão grosseira? Este é o
terceiro homem que jamais vi, e o primeiro por quem suspirei.
Que a piedade incline meu pai na direção dos meus desejos.

FERNANDO Se és virgem e ainda não te aventuraste a amar, eu te farei


Rainha de Nápoles.

PRÓSPERO Alto lá, senhor! Um momento!


(à parte) Estão encantados um pelo outro. Mas devo
embaraçar esta conquista, para que a facilidade não
desmereça o prêmio.
(a Fernando) Mais uma palavra. Ordeno que me escutes.
Usurpaste um nome que não te pertence, e chegaste a esta
ilha como espião, para tomá-la de mim, que sou seu dono.

FERNANDO Não, eu asseguro. Por minha condição de homem.


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MIRANDA Senhor, nenhum mal poderia habitar um templo tão belo.
Se o espírito do mal morasse nele, o bem aspiraria a habitar
sua casa.

PRÓSPERO (a Fernando) Acompanha-me. (a Miranda) Não fales em defesa


dele: é um traidor. (a Fernando) Vem. Acorrentarei teu pescoço
aos pés. Beberás água do mar e, por alimento, terás
mexilhões de água doce, raízes secas e cascas de frutos. Vem
comigo.

FERNANDO Não. Resistirei a semelhante tratamento, até que meu inimigo


me domine.

Desembainha a espada, mas, por encanto, fica paralisado.

MIRANDA Ah, querido pai, não imponhas tão severa prova, pois ele é
amável e valente.

PRÓSPERO O quê? Queres ditar-me regras? Levanta tua espada, traidor.


Pareces atacar, mas não ousas, tamanho é o peso da tua
culpa. Desiste. Eu sou capaz de desarmar-te com esta vara,
derrubando-te a espada.

MIRANDA Eu te imploro, meu pai!

PRÓSPERO Afasta-te. Não te agarres ao meu manto.

MIRANDA Tem piedade, senhor. Eu lhe servirei de garantia.

PRÓSPERO Silêncio! Uma palavra mais me animaria a repreender-te, ou


mesmo a detestar-te. Que é isso? Defendendo um impostor!
Silêncio. Pensar que não há no mundo figura semelhante,
porque só viste a ele e a Caliban. Menina tola!

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Em face de outros homens, este é um Caliban, e outros, em
face dele, são anjos.

MIRANDA Então o meu amor é bem modesto. Não ambiciono ver


ninguém mais belo.

PRÓSPERO (a Fernando) Aproxima-te. Obedece. Tuas forças retornam à


infância. Estás perdendo o ânimo.

FERNANDO É verdade. Minhas forças, como num sonho, estão


acorrentadas. A perda de meu pai, a fraqueza que sinto, o
naufrágio de todos os meus amigos e mesmo as ameaças
deste homem, a quem me encontro submisso, nada me
afligiria se, de meu cárcere, eu pudesse contemplar esta
donzela uma vez por dia. Que reine a liberdade em todas as
outras faces da terra. Tenho espaço bastante nesta prisão.

PRÓSPERO (`à parte) Está fazendo efeito. (a Fernando) Vamos. -


Trabalhaste bem, delicado Ariel. (a Fernando) Acompanha-me.
(a Ariel) Escuta o que ainda deves fazer.

MIRANDA Ânimo, senhor. Meu pai é melhor do que aparenta ser. Não
costuma falar e agir dessa maneira.

PRÓSPERO (a Ariel) Serás tão livre quanto os ventos das montanhas. Mas
deves seguir rigorosamente as minhas ordens.

ARIEL Ao pé da letra.

PRÓSPERO (a Fernando) Vamos, acompanha-me. (a Miranda) Não o


defendas. Saem.

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