Você está na página 1de 326

Núcleo Interdisciplinar do imaginário e Memória - NÍME Laboratório de Estudos do Imaginário - LABI

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

imaginário e améri ca latina


número 7
São Paulo - 2001
ISSN 1413'666x
11 Apresentação

13 Entre a fíuidez e a unidade: o que é local no hip-hop brasileiro?


Goetz Ottmann

35 Atravessando fronteiras: movimentos migratórios na história


do Brasil
Helenilda Cavalcanti e Isabel Guilien

69 Como Era Gostoso o Meu Francês: um marco na represen-


tação do índio no ionga-metragem de ficção
Ana Lucla Lobato

83 Depoimento de artista
Coca Rodriguez Coelho

84 Frida Kahio: personagem de si mesma


Lígia Assumpção Amaral

119 Ei discurso de ios lideres espirítuaies de Abya Vaia (América)


Gloria Alicia Caudillo Félix

163 Desde Ia memória a! registro en ios relatos zapatistas


Ezequie! Maldonado

173 Reconhecimento do pape! da afetividade na ação zapatista


Laura Beatriz Ramírez Garcia

195 TrujiHo: mito y emblemática de una dictadura


Paola Torres de Ia Cruz

211 itinerários creyentes de! consumo neo esotérico


Renée de Ia Torre e José Manuel Mora

241 La construction simbólica de ias ciudades y ios sexos.


Hombresy mujeres en ia genesis de Aviia y Évora
Maria Cátedra Tomas

273 A metáfora do nacional


lolanda Maria Alves Évora

289 £7 reconocimento y Ia identidad humana


Mijail Malishev

315 Resenhas
I M A GI N A R I o
Revista do Núcleo Interdisciplinar do Imaginário e Memória - NIME
e do Laboratório de Estudos do Imaginário - LABI
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

imãgmáríú e âmérícã M i m
númem 7
São Pau/ú - 2001
ÍSSN 1413-m6x
Publicação do Núcleo Interdisciplinar do Imaginário e
Revista
Memória (NIME) e do Laboratório de Estudos do Imagi-
Imaginário nário (LABI) - Departamento de Psicologia da Aprendi-
N° 7 - 2 0 0 1 zagem, do Desenvolvimento e da Personalidade (PSA)
do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
ISSN 1413-666X (IP-USP)

Conselho Editorial: Bernadete Castro Oliveira, Claudia de Almeida Ortega,


Coca Rodriguez Coelho, Denise Dias Barros, Denise Polli
Felix, Fernanda Amalfi, Leila de Sarquis, Magali Franco
Bueno, Marcelo Gomes Justo, Márcia Maria Cabreira
Monteiro de Souza, Maria de Lourdes Beldi de Alcântara,
Maria Luisa Sandoval Schmidt, Maria Regina Toledo
Sader, Tatiana Freitas Stockler das Neves.

Conselho Consultivo: Adalberto Santana (UNAM - México), Antonio Cândido,


Billie Richard De Walt (University of Pittsburg - USA),
Francine Sailiant (Universidade de Lavai - Canadá), Jorge
Ramirez Cazadilia, Paulo Vanzolini (ICB - USP), Maria
Luisa Sandoval Schmidt (Instituto de Psicologia - USP),
Maria Regina Toledo Sader (Geografia - USP), Renato
da Silva Queiroz ( Antropologia - USP), Sylvia Leser de
Mello (Instituto de Psicologia - USP).

Editor: Maria de Lourdes Beldi de Alcântara

Projeto Gráfico: Liana Cardoso Soares


Capa e Ilustração: Liana Cardoso Soares
Ilustração de Capa: 2001, sem título - tinta acrílica sobre tela - 90 x 128 cm
Fotografia da Ilustração: Rômulo Fialdini
Produção Gráfica da Capa: Espaço Editorial
Editoração Eletrônica: Espaço Editorial
Equipe de Traduçãa. Otacílio Nunes e Antivan Mendes
Revisão-. Espaço Editorial
Revisão da Prova\ LABI - NIME
Secretaria: Denise Polli Felix
América Latina
Endereço para correspondência
Laboratório de Estudos do Imaginário (LABI)
Iristituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP)
Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, trav. 4, Bloco 17, Sala 18
CEP 05508-900 - São Paulo - SP - Brasil
Fone: ( O x x l l ) 3818-4386 (Ramal 22)
Fax: ( O x x l l ) 3818-4475
e-mail: labi@edu.usp.br Imaginário/NIME-LABI, Instituto de
website: www.imaginario.com.br Psicologia, Universidade de São
Paulo, n° 7. São Paulo, 2001.

Anual

ISSN 1413-666X

1. Antropologia
2. Arte
3. Geografia
4. Psicologia
5. Sociologia
•I
h

la messagete
a mensageira
Michel Butor

J' apporte Eu trago às


à vos rivages vossas margens
les chemins os caminhos
des Antipodes dos Antípodas
et je múris e amadureço
en reflux no meu refluxo
les dialogues os diálogos
de la Frontière da Fronteira
sumario

Apresentação 11

Entre a fíuidez e a unidade: o que é local no hip-hop brasileiro? 13


Goetz Ottmann

Atravessando fronteiras: movimentos migratórios na história do Brasil 35


Helenilda Cavalcanti e Isabel Guilien

Como era gostoso o meu francês: um marco na representação do


Índio no ionga-metragem de ficção 69
Ana Lúcia Lobato

Depoimento de artista 83
Coca Rodriguez Coelho

Frida Kahio: personagem de si mesma 84


Lígia Assumpção Amaral

Ei discurso de ios iideres espirituaies de Abya Yaia (América) 119


Gloria Alicia Caudillo Félix

Desde ia memória ai registro en ios reiatos zapatistas 163


Ezequiel Maldonado

Reconhecimento do papei da afetividade na ação zapatista 173


Laura Beatriz Ramírez Garcia
Trujillo: mito y emblemática de una dictadura 195
Paola Torres de Ia Cruz

Itinerários creyentes dei consumo neoesotérico 211


Renée de Ia Torre e José Manuel Mora

La construction simbólica de Ias ciudades y los sexos ...241


Hombres y mujeres en Ia genesis de Ávila y Évora
Maria Cátedra Tomas

A metáfora do nacional 273


lolanda Maria Alves Évora

El reconocimento y Ia identidad humana 289


Mijail Malishev

Resenhas 315
ottmann,g o e t z .Imaginário - usp, n° 7, pág. 13-34, 2001

apresentação*
' Esta apresentação foi escri-
ta em setembro de 2001.

A tradição dos oprimidos nos ensina que o "estado de exceção"


em que vivemos é na verdade a regra geral.
(...)
O assombro com o fato de que os episódios que vivemos
no século XX "ainda" sejam possíveis,
não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento,
a não ser o conhecimento de que a concepção de história da qual emana
semelhante assombro
é insustentável.

Walter Benjamin

O momento de finalização deste número da revista Imaginário coin-


cide com um momento de crise internacional, cujos desdobramen-
tos são imprevisíveis. No calor da vivência dessa crise, acirram-se
as percepções em torno do esboroamento da política dos Estados,
que tem sua contrapartida na dispersão de poderes que se articu-
lam transnacional e transculturalmente. Assim, os efeitos polares
s o m e m nas nuanças do surgimento de outras vozes.

Nossas preocupações, durante este ano de trabalho do NIME/LABI,


centraram-se sobremaneira na abordagem crítica da produção de
c o n h e c i m e n t o a c a d ê m i c o sobre o "Terceiro Mundo". D e s d e a
assunção da importância da literatura como meio de acesso à expe-
riência desses lugares, passando pelo questionamento do conheci-
mento produzido pelo chamado mundo desenvolvido sobre os paí-
ses e x c l u í d o s da e s f e r a decisória do poder-saber, v i m o s nos
direcionando para a valorização dos saberes das culturas não
hegemônicas. Esta valorização implica tomar ciência, discutir e di-

11
ottmann,g o e t z .Imaginário - usp, n° 7, pág. 13-34, 2001

vulgar um conjunto de pesquisas, reflexões teóricas e manifesta-


ções culturais que fogem ao padrão hegemônico.
Neste sentido, este número contempla, principalmente, uma produ-
ção latinoamericana, que trazemos a público no intuito de contribuir
para a ampliação dos parâmetros de análise e compreensão da re-
alidade que nos toca.

12
ottmann, goetz. Imaginário - usp, n° 7, pág. 13-34, 2001

entre a fluidez e a unidade


o que é locai no hip-hop brasileiro'^

Goetz Ottmann

Visualmente, os artistas de hip-hop de São Paulo só diferem margi-


nalmente de seus correspondentes em Nova York, Paris, Berlim ou
Sydney. Eles trajam imagens espelhadas transmitidas por uma in-
dústria de cultura jovem global, sua linguagem corporal faz lembrar
clips da MTV e seu repertório exibe semelhanças com expressões
artísticas encontradas em outros lugares^ A despeito dessa seme-
' Essa semeihança deu origem
lhança global, Micael Herschmann (2000) afirma que o hip-hop brasi-
à leitura conservadora de que
leiro representa um caso evidente de reinterpretação do global pelo culturas importadas ievam a
local (Herschmann, 2000: 23). De fato, ele e outros observadores da uma imitação superficiai (ver,
cultura jovem global (por exemplo, Canclini, 1990; Rose, 1994; Yudice, por exemplo, Ândroutso-poutas
1994; Stapleton, 1997; Androutsopoulos e Scholz, 1999) indicam vá- and Scholz. 1999).

rios modos como os artistas e os públicos locais transformam um


produto cultural importado global em um produto distintamente local.
Quais são, então, os elementos locais no hip-hop brasileiro? Até hoje,
poucas explicações tentaram escavar "o local" contido na cultura hip-
hop de São Paulo. Este artigo pretende preencher essa lacuna, tor-
nando visíveis alguns dos temas religiosos e políticos nitidamente
locais que sublinham a aventura do hip-hop paulistano.

Meu primeiro contato próximo com o rap paulistano ocorreu durante


um trabalho de campo em 1996. No decorrer de vários meses, ficou
cada vez mais óbvio que os atributos da cultura hip-hop global es-
condiam uma moldura de significado local. Dois anos depois, tive a
oportunidade de explorar em maior profundidade esses elementos
locais da cultura hip-hop de São Paulo. Por meio de entrevistas

13
ottmann, goetz. Imaginário - usp, n° 7, pág. 13-34, 2001

com rappers, ativistas de hip-hop, políticos de partidos e de observa-


ção participante, deduzi que a cultura hip-hop de São Paulo contém
u m a m u l t i d ã o de s í m b o l o s políticos e r e l i g i o s o s p o p u l a r e s
reelaborados, assim como modos de ação coletiva empregados du-
rante as duas décadas anteriores. Longe de ser arbitrária, a
ressimbolização e a assimilação cultural ocorrem num coní/ni/i/m cul-
tural que produz uma moldura de significado constantemente
reelaborada que serve como base interpretativa para novas importa-
2 Sobre a proximidade entre ções culturais. O caso do hip-hop paulistano é particularmente inte-
conteúdo religioso e conteúdo
ressante na medida em que demonstra muito claramente a herança
político em movimentos utópi-
cos, ver, por exemplo, Craig
de duas décadas de política inspirada na igreja católica progressista,
Calhourn (2000). bem como uma secularização do pensamento liberacionista^. Nesse
sentido, os dados empregados neste artigo reforçam as afirmações
de Herschmann de que os manos brasileiros se apropriaram de par-
3 De fato, o argumento de
tes de uma cultura hip-hop difundida globalmente, reelaborando seu
Herschmann é remanescente
do debate teórico em torno dos
conteúdo para adaptá-lo a um contexto local (Herschmann, 2000:23).
"novos movimentos sociais" Todavia, onde Herschmann gostaria de romper com o mito de unida-
durante as décadas de 1980 e de que, de acordo com o autor, constituía um aspecto significativo da
1990 (ver, por exemplo, Nash, "velha" política dos movimentos sociais, eu gostaria de enfatizar a
2000). Em vez de reiterar esse
importância permanente desse mito. Enquanto Herschmann sublinha
debate, este artigo focaliza os
símbolos da cultura popular a fluidez contida na "nova" política cultural do rap do Rio de Janeiro,
loca! e dos produtos dissemi- este artigo focaliza a importância persistente dos "velhos" movimen-
nados globalmente que cons- tos sociais no cerne do movimento hip-hop paulistano. Na verdade,
tituem a voz profética do hip~ embora a cultura política fluida certamente seja parte integrante do
hop paulistano contemporâ-
rap, é difícil imaginar o hip-hop sem unidade mítica. Essa unidade,
neo, uma voz fortemente mol-
dada por conceitos religiosos todavia, está baseada em termos muito diferentes daqueles que ca-
secularizados. racterizam o hip-hop feito nos EUA ou na Europa^.
Com certeza, já é mais do que hora de fazer um estudo aprofundado
do hip-hop brasileiro. Uma tal empreitada, todavia, iria muito além
do âmbito deste artigo. Portanto, devido aos recursos limitados que
foi possível reunir para produzir o artigo, vou me concentrar na ten-
Thaide e DJ Hum também
constituem parte importante da dência central do movimento hip-hop, corporificada pelos Racionais
cena hip-hop paulistana. Eles MCs e por Tiiaide e DJ l-lurrf. Escolho essas bandas porque elas
faziam parte do grupo funda- são possivelmente as mais prolíficas bandas de hip-hop de São Paulo
dor do movimento hip-hop, dis-
e, no caso dos Racionais, é a mais bem-sucedida banda de hip-hop
cutido abaixo, e divulgaram ati-
vamente a mensagem do hip-
do Brasil. Para oferecer uma perspectiva dos rappers que atuam
hop nos meios de comunica- fora do movimento, eu me referirei ao exemplo do Kaya e dos Doctor
ção de massa. MCs, duas bandas de rap razoavelmente conhecidas.

14
ottmann, goetz. Imaginário - usp, n° 7, pág. 13-34, 2001

identidades recontextualizadas
"A mudança tem de acontecer na base e crescer a partir daí."
(Thaide, 27/6/98)

Nos Estados Unidos, o hip-hop é freqüentemente mitologizado em


termos de uma dureza quase sobrenatural, sustentando o "gangsta
rap" ou um passado ancestral distante envolvendo o "Griot", um con-
tador de histórias das sociedades africanas (ver, por exemplo,
Androutsopoulos e Scholz, 1999, seção 4). Os rappers, supostamen-
te informados por essa tradição oral africana e vocalizando os res-
sentimentos de afro-americanos subalternos, são transformados
em uma autêntica força política de uma diáspora africana. Além do
mais, o hip-hop é ligado ao destino de afro-americanos que vivem em
dificuldade no cinturão de ócio urbano abandonado por uma socieda-
de pós-industrial (Rose, 1994)^ Gravado com uma identidade afro-
^ Sobre o tópico da homologia
americana, o rap é transformado em um espetáculo de identidade
em música, ver, por exemplo.
política cuja mensagem essencialista tende a expulsar e alienar uma Simon Frith. "Music and identity',
ampla gama de etnicidades (Flores, 1994)®. Portanto, no Brasil, onde in Questions of cultural identity.
a multidão de políticas de identidade afro-americana adota caminhos edited by Stuart Hall and Paul

muito diversos (ver, por exemplo, Ribeiro, 1977; Herschmann, 2000), Du Gay, London: Sage, 1996.

esses temas ressoam de forma muito diferente e dão origem a


reinterpretações locais de símbolos do hip-hop.
® Stewart Hall argumenta que
Diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos, raça, etnicidade esse teor essencialista está sen-
e cor são temas subordinados no hip-hop brasileiro (ver também do gradualmente suplantado por
uma nova abordagem mais ca-
Herschmann, 2000: 68, 185). Certamente, muitos dos fãs de rap e
paz de chegar a um acordo com
de hip-hop que eu entrevistei no Brasil se definiam em termos de a diferença (Hali, 1996:474).
cor, e as letras de rap freqüentemente se referem à dominação ca-
pitalista branca. Além disso, rappers como KLJ (Racionais) levam
muito a sério sua herança afro-brasileira e, até certo ponto, repetem
noções contidas na política de identidade afro-americana. Todavia,
a etnicidade não constitui a identidade fundamental no hip-hop
paulistano. Antes, o tema da etnicidade entra no hip-hop paulistano
pela porta dos fundos, constituindo um sujeito quase incidentalmente
negro: o mano. Ele é primordialmente um residente na periferia, e
portanto uma vítima do sistema que se esforça para combatê-lo.
Portanto, temas contidos no hip-hop radical dos EUA que fazem
referência a uma etnicidade derivada de um Nacionalismo Negro da

15
ottmann, goetz. Imaginário - usp, n° 7, pág. 13-34, 2001

década de 60, com freqüência construído de forma simplista, ocupam


uma posição secundária no hip-hop paulistano^ Em vez disso, o tema
^ Refiro-me. por exemplo, à
de uma recusa (efêmera) da Comunidade Negra a integrar a socie-
declaração em forma de rap de
Sister Souljah's apoiando a dade Branca, que ainda tem alguma vigência no hip-hop dos EUA, é
segregação sexual entre bran- expressado predominantemente em termos de uma recusa a subme-
cos e negros. ter-se às regras do sistema capitalista. A seguinte declaração ideoló-
gica tirada de um rap dos Racionais demonstra claramente esse sen-
timento anti-sistema e anticonsumista não específico de cor:

Seu comercial de TV não me engana. Eu não preciso de status nem


fama. Seu carro e sua grana já não me seduz... e nem a sua puta de
olhos azuis. Eu sou apenas um rapaz latino-americano apoiado por
mais de 50.000 mano. Efeito colateral que o seu sistema fez (Raci-
onais MCs, Sobrevivendo no inferno, parte 4, verso 3).

Claramente, a cultura européia do hip-hop produz um rap de crítica


social semelhante. De fato, 2 0 % do rap europeu, de acordo com
Androutsopoulos e Scholz, "tem como foco a auto-representação e
® É interessante notar que em-
a crítica social" (1999: seção 4.1). Todavia, na Europa a cena hip-
bora o "gangsta rap" america- hop dominada pelos migrantes tende a focalizar questões políticas
no seja representado no Bra- locais, como a xenofobia, o destino do Gastarbeiter [trabalhador
sil, não há nenhum equivalen-
imigrante] e a migração. Só na Itália, de acordo com Androutsopoulos
te desse gênero na Europa
(Androutsopoulos and Scholz,
e Scholz, são vocalizadas preocupações mais gerais com corrupção,
1999). criminalidade e consumismo^ Em São Paulo, a política local está
estreitamente ligada à política baseada nas questões dos movimen-
tos sociais inspirados nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)
das décadas de 1970 e 1980. Incorporando muitas das questões
que agitavam os bairros pobres durante meados da década de 1980,
esse rap mitologizou a vida dos manos óa periferia, contando histó-
® Em uma entrevista Thaide rias de violência, brutalidade policial, romance, pobreza e falta de
explica que essa forma de rap
alternativas^. Thaide (Thaide e DJ Hum) deixa claro que o discurso
d i m i n u i u e m 1984 e 1985
{Pode Crê, vol. 4/94: 17). De
dos movimentos sociais inspirados nas CEBs influenciou profunda-
acordo com a pesquisa de mente os rappers contemporâneos. Quando se pede a ele um exem-
Ph.D. inédita de Bettina Kluge, plo concreto, ele logo reitera o discurso do movimento social da
essa continuidade da política
década de 1980 formulando a política baseada nos termos de uma
revolucionária existe também
no hip-hop chileno na forma da
história genérica de um velho trabalhador de 60 anos que trabalhou
Frente Lirica Combatiente. a vida inteira, mas continua a não ter água, eletricidade, asfalto ou

16
ottmann, goetz. Imaginário - usp, n° 7, pág. 13-34, 2001

acesso ao transporte público. Além do mais, a declaração acima


alude a outra corrente importante no rap e no hip-hop paulistanos
contemporâneos: a politização de uma pureza enraizada em uma
pobreza glorificada - um tema central no catolicismo popular brasi-
leiro (Lehmann, 1996). E embora os Racionais MCs, por exemplo,
adotem uma estética que não difere daquela do "gangsta rap" dos
Estados Unidos, a mensagem antiviolência profundamente moral
deles os situa em um gênero inteiramente diferente.
Embora na superfície os temas do rap paulistano ecoem as letras
de rap escritas por artistas dos Estados Unidos, é difícil não ver que
o hip-hop mais importante de São Paulo contém um sabor caracte-
risticamente religioso. Isso põe o rap paulistano claramente à parte
de seus correspondentes americano e europeu. Por exemplo, em
sua análise do padrão temático e discursivo do rap europeu (na
França, na A l e m a n h a , na Itália, na G r é c i a e na E s p a n h a ) ,
o estudo se baseia em uma
Androutsopoulos e Scholz (1999) não fazem nenhuma menção a análise de 50 canções em cada
conceitos ou símbolos religiosos^®. Da mesma forma, os rappers ! íngua.
americanos não são conhecidos por compor imagens religiosas em
seus textos^^ Em São Paulo, as letras, a decoração de palco e as
É preciso observar que eu
capas de discos freqüentemente se referem a símbolos religiosos
não estou preocupado com o
populares fundidos com as idéias centrais percebidas do hip-hop. rap proseíitfsta de certas deno-
Nesse sincretismo, os símbolos religiosos são muitas vezes usados minações religiosas.

para expressar ou tornar visível a pureza no coração do hip-hop. Os


Racionais são particularmente propensos a esse tipo de simboliza-
ção. Por exemplo, a capa inteira de seu CD Sobrevivendo no infer-
no (1997) constitui uma referência à Bíblia. A capa da frente desta- Essa referência bíblica é
ca a cruz, sustentada por um salmo (Refrigera minha aima e guia- ampiamente citada na cuitura

me pelo caminho da justiça - 23:3), e outro salmo fecha o CD (e popular. Por exempio,
Tarantino constrói em Pulp
mesmo que eu ande no vale da sombra e da morte não temerei mal
fiction uma cena inteira em tor-
algum porque tu estás comigo - 23:4)^^. Essas referências são re- no desse salmo.
correntes na letra em que Deus dota o mano de força para levar
uma vida honrada. Embora esses temas religiosos sejam particular-
mente visíveis nas letras dos Racionais MCs, eles não constituem Devo a Betíina Kiuge a indi-
exceção. De fato, uma ampla gama de bandas de rap brasileiras, cação de que essas referênci-
as reíigiosas podem, de fato,
entre elas algumas das analisadas por Herschmann (2000) recor-
constituir uma categoria muito
rem a imagens religiosas vinculando noções de paz e justiça a um
c a r a c t e r i s t i c a m e n t e latino-
princípio superior^^ americana.

17
ottmann, goetz. Imaginário - usp, n° 7, pág. 13-34, 2001

Em muitos sentidos, portanto, o hip-hop paulistano funde o legado de


várias décadas de política popular local radical e com freqüência
messiânica com a profecia de uma diáspora afro-americana celebran-
do a chegada de uma nova nação negra, e o transforma em um espe-
táculo comercialmente bem-sucedido. Um espetáculo, todavia, que
até hoje retém algumas antigas reivindicações de autenticidade prç-
pagadas por movimentos sociais inspirados nas CEBs uma década
antes; reivindicações de autenticidade enraizadas na pureza da po-
breza subalterna e no antimaterialismo prescrito espiritualmente.

"nova" política cultural

"O rap é a voz do hip-hop, sua mensagem e seu conteúdo. O hip-


hop é o movimento, a força política e a vontade de fazer a mudança.
Foi a mensagem do hip-hop que transformou a periferia, que mudou
o modo como os manos interagem e se comportam" (Thaide e DJ
Hum, T J i m ^ y
o nome MH^O tem relação
com o período extremamente
chuvoso durante o qual esse
Para Micael Herschmann, os ativistas de hip-hop e de funk constitu-
movimento foi formado. No final em uma nova linhagem de atores na política brasileira. Tendo abolido
da década de 1980, o hip-hop a unidade utópica que sustentava a "velha" política dos movimentos
não mais era a última moda e sociais, esses novos atores, organizados em redes descentralizadas
muitos artistas tinham deixado
e ligados à produção e ao consumo cultural, assumem uma política
o cenário. Muitos dos rappers,
breakers e grafiteiros remanes- de identidade fluida (Herschmann, 2000: 18). Na verdade, o hip-hop
centes estavam genuinamente paulistano faz parte de um "novo" projeto político que tem como cen-
interessados em hip-hop. Isso tro a cultura. Todavia, como a seção seguinte demonstra, essa "nova"
facilitou a formação do movimen-
política cultural está estreitamente ligada á política utópica de es-
to no início de 1989. Além dis-
so, Milton Sales, co-fundadordo
querda das décadas de 1970 e 1980. E embora a política do hip-hop
movimento, afirma que o MH^O pareça enormemente frágil - ou talvez fluida, o hip-hop paulistano
foi inspirado basicamente pela floresce com base em uma unidade utópica que parece emanar de
promessa de sucesso financei- um movimento impalpável que reúne ativistas, artistas e políticos.
ro, que só mais tarde deu lugar
a uma consciência hip-hop. Não foi por coincidência que o o movimento que molda o
hip-hop em São Paulo, se consolidou às vésperas da posse de Luiza
Erundina, candidata do Partido dos Trabalhadores, como prefeita
de São Paulo. O final da década de 1980 pôs a nu a fragmentação
de uma esquerda baseada em sindicatos, na igreja católica pro-

18
ottmann, goetz. Imaginário - usp, n°7, pág. 13-34, 2001

gressista e nos movimentos sociais. Essa constelação política era


até então importante na medida em que a busca febril de represen-
tantes do PT por um novo eleitorado acrescentava um valioso apoio
ao movimento hip-hop. Intelectuais como Marilia Pontes Sposito
estavam atentos à importância e ao potencial sociocultural do hip-
hop e começaram a legitimar politicamente o movimento^^. Essa pro-
Ver, por exemplo, Sposito,
dução acadêmica não só construiu o hip-hop no espaço de uma
M. P. (1994), "A sociabilidade
oposição inspirada na igreja progressista, mas também legitimou juvenii e a rua: novos conflitos
iniciativas como "Rap na escola", uma tentativa da administração e ação coletiva na cidade",
Erundina de revolucionar o sistema educacional. Esses e outros Tempo Social, vol,5(1-2) 161-
178,1993, publicada em 1994.
projetos lançados pela Secretaria da Educação municipal atraíram
significativa cobertura da imprensa e apresentaram o hip-hop a um
público mais amplo. Além disso, no contexto político do começo da
década de 1990, havia disponibilidade de apoio financeiro para vá-
rios projetos, tais como o Programa de Direitos l-lumanos/Projeto
Rappers do Geledés ou o Instituto da IVlulher Negra, que começou a
publicar a revista de rap Pode Crê em 1992.

Durante a década de 1990, o conceito de política cultural desfrutou


de crescente popularidade nos círculos do PT, e o hip-hop foi visto
como um novo meio para mobilizar a juventude brasileira, politica-
mente passiva. Em 1994, o hip-hop entrou na esfera da política na-
cional na pessoa do senador Eduardo Suplicy (PT), que recitou le-
tras de rap dos Racionais MCs durante uma sessão do Congresso.
Além disso, ao longo da segunda metade da década de 1990, as
bandas de hip-hop foram convidadas a se apresentar em vários
eventos eleitorais do PT. Essa solicitação levou os Racionais a cum-
prir um papel mais visível na campanha eleitoral de Luiza Erundina
para o cargo de prefeito em 1996, assim como na campanha eleito-
ral para a Presidência de Lula em 1998. Em São Paulo, esse cres-
cente interesse político no hip-hop produziu várias iniciativas con-
juntas com políticos locais. Vicente Cândido, membro da Câmara
Municipal, representa um desses casos. O próprio mandato de Cân-
dido se baseou em apoio dos católicos progressistas - um apoio
que era cada vez mais escasso devido às correntes conservadoras
na hierarquia da Igreja. Para Vicente, o rap é uma forma de renovar
uma velha esquerda em desintegração. "A cultura", ele afirma, "é o
novo pilar que constituirá um novo modo de organização. É aquele

19
ottmann, goetz. Imaginário - usp, n° 7, pág. 13-34, 2001

pilar até agora desprezado pelo PT. A cultura, e em particular a cultu-


ra jovem, tem o poder de organizar as massas e melhorar a imagem
do PT, transformando o partido novamente em um partido do povo."
Ele não tem prurido em dizer que vê o rap como um instrumento que
permitirá ao PT recuperar seu brilho anterior. "A política cultural é a
política do futuro, se a esquerda quiser sobreviver", ele explicou^®.
Vicente parece visualizar um
Foi por essas razões de política cultural que Cândido se comprome-
cenário fluido, no qual o PT cons-
tantemente redireciona suas ali- teu a representar os interesses do hip-hop na política municipal.
anças para novos movimentos
Nos círculos do hip-hop, todavia, esse crescente interesse político
emergentes mais sintonizados
com o momento sociocuitura! de
partidário no rap e no hip-hop tem sido recebido com suspeita. Por
uma nova clientela. exemplo, o discurso do senador Eduardo Suplicy recebeu sérias crí-
ticas de muitos ativistas de hip-hop. Thaide explicou essa reação:
"Os membros do PT tentaram privatizar o movimento hip-hop para
seus próprios objetivos, mas eles não têm nada a dizer que faça mui-
to sentido na periferia. Se o PT quer nos usar, eles vão ter de come-
çar a investir em nós. Eles certamente sabem quanto poder o movi-
mento tem - ele está crescendo muito mais depressa do que os movi-
mentos deles." Em outras palavras, Thaide aponta, em certo sentido,
que a nova aliança política deles se baseia numa falta de reciprocidade.
Esse sentimento ganha ressonância quando se leva em conta o
impacto programático muito limitado que o hip-hop teve na política
do PT. Os interesses do hip-hop, na medida em que são claramente
definidos, entraram na política partidária predominantemente na for-
ma de reivindicações de mobilização de recursos, redirecionando-
se recursos culturais para projetos que beneficiassem iniciativas de
hip-hop. Por exemplo, para políticos como Vicente Cândido, o hip-
hop representa uma oportunidade para suplementar com recursos
independentes fundos de campanha escassos. Em troca, os ativistas
do movimento conseguem obter recursos públicos para projetos
socioculturais em seus bairros. Embora a paisagem política geral
tenha mudado substancialmente desde então, essa relação faz lem-
brar a política baseada em questões dos movimentos sociais duas
décadas antes. Naquela época como agora, a ausência de uma res-
posta programática coerente a acontecimentos políticos torna uma
tentativa de entrar na política partidária um esforço passageiro. O
fato de a arena política ser mal usada para politizar o processo de
tomada de decisão política governamental indica que a principal

20
ottmann, goetz. Imaginário - usp, n° 7, pág. 13-34, 2001

função do hip-hop no campo da política do PT é a de fazer lobby. Os


militantes de hip-hop, como faziam antes os atores do movimento
social, dão acesso a uma base popular, uma base que foi politica-
mente negligenciada desde a opção preferencial pelos pobres da
igreja católica progressista (ver, por exemplo, Levy, 2000). Portan-
to, a colaboração dos ativistas de hip-hop e dos partidos políticos
só se diferencia marginalmente das experiências de movimentos
sociais durante as décadas de 1970 e 1980.
Não obstante, a relação entre o hip-hop e os partidos políticos con-
tém elementos que reforçam a autonomia do primeiro. Muitos dos
movimentos sociais das décadas de 1970 e 1980 eram estreitamente
ligados a uma identidade inspirada pela igreja católica progressis-
ta. A identidade dos artistas de hip-hop, por outro lado, está intrica-
damente ligada a circuitos de produção e consumo cultural. Isso
introduz uma diferença de perspectiva crucial. Enquanto a identida-
de dos movimentos sociais inspirados na Igreja progressista depen-
dia, em última instância, de aprovação institucional, uma aprovação
que diminuiu regularmente desde o começo da década de 1980, no
hip-hop brasileiro a identidade é constituída por um processo
interativo que envolve artistas, comunidades de fãs e ativistas do
movimento. Desse modo, o hip-hop deriva sua legitimação do ambi-
ente cultural de gosto, onde cada banda é comercialmente forçada
a construir uma identidade distinta para delimitar sua própria comu-
nidade de fãs. Embora isso possa ter complicado o desenvolvimen-
to de uma linha programática, o que deu origem a um "campo com-
plexo de posições de pessoas politizadas com pouca coerência
programática" (Fraser, 1997:13), também cria uma base autônoma.
Além do mais, a experiência do hip-hop se diferencia de suas
antecessoras por meio de um melhor acesso a recursos. Enquanto
os movimentos sociais eram dependentes de subsídios do setor
político ou das ONGs, eles sofriam cronicamente de escassez de
recursos. Os artistas de hip-hop desfrutam de uma independência
financeira muito maior. Conseqüentemente, para as bandas mais
conhecidas, o chamariz de uma carreira política ou de uma consul-
toria política assalariada constitui apenas uma opção atraente. Além
disso, algumas bandas, como os Racionais, dispõem de capital sim-
bólico suficiente para atrair financiamento para projetos de desen-

21
ottmann, goetz. Imaginário - usp, n° 7, pág. 13-34, 2001

volvimento comunitários de fontes não-políticas. Nesse sentido, o


status dos artistas de hip-hop na cultura de gosto, aliado à auto-
suficiência financeira, torna-os parceiros políticos muito diferentes
dos atores de movimentos sociais anteriores.
Em conseqüência, o relacionamento entre Vicente, sua equipe de
apoio de ativistas hip-hop e membros do movimento ainda está lon-
ge de ser estabelecido. Não obstante o fato de que as bandas de
hip-hop agem como veículos mobilizadores que atraem uma nova
clientela para as áreas de influência do PT, nem Vicente nem ne-
nhum outro representante do PT foi capaz de reivindicar proprieda-
de sobre o movimento ou sobre bandas individuais. A revelação
autoconfiante de Vicente realça então um aspecto tanto quanto oculta
outro. Por um lado, ele deixa muito claro que o movimento hip-hop é
um mero instrumento de mobilização, facilmente descartável uma
vez que o movimento tenha se exaurido. Por outro, e a declaração
de Thaide citada antes alude a esse fato, a declaração de Vicente
oculta que a base de seu mandato, que antes extraía apoio basica-
mente da ala esquerda da igreja católica e de sindicatos de traba-
lhadores, está rapidamente se fragmentando. Conseqüentemente,
sua reorientação para a política cultural contém um elemento de
urgência, uma urgência que reforça ainda mais a posição dos
ativistas de hip-hop. E quando sua equipe de apoio hip-hop afirma
"ser dona" de Vicente e ter "um nível de controle significativo" sobre
sua ação, essas afirmações talvez se baseiem em maior ou menor
grau numa noção utópica.

Uma estratégia recente decorrente dessa colaboração com o PT dá


a impressão de que os ativistas de hip-hop começaram a penetrar e
explorar em maior profundidade o meio da representação política
formal. Em 1998, eles selecionaram um candidato a deputado fede-
ral e promoveram sua candidatura em Guarulhos, município vizinho
de São Paulo. Esse passo, argumentavam os ativistas de hip-hop,
daria ao movimento acesso ao nível federal e, portanto, melhoraria
sua capacidade de representar os interesses de sua clientela. Quan-
do perguntei a eles como manteriam o controle sobre o deputado
federal depois de eleito, Lady Rap respondeu: "Nós não vamos dar
a ele chance de criar asas."

22
ottmann, goetz. Imaginário - usp, n° 7, pág. 13-34, 2001

unidade e discordância no hip-hop paulistano o Movimento H,p ( M H ^ ) -


o primeiro movimento de hip-
Esse tipo de unidade "vaga" - ou fluida - que sustenta o envolvimento hop formal de São Paulo, foi
fundado em 1989. Milton Sales
do MH^O na política local é fortemente influenciado por artistas-
- uma das forças motrizes por
chave do movimento. Embora não seja fácil discernir a agenda polí- trás do M H , 0 - retruca que a
tica do movimento, o que dá a impressão de que o hip-hop e o seg- fundação do movimento foi ins-
mento católico do PT são categorias fortemente sobrepostas, uma pirada basicamente pela pro-

observação mais de perto da disputa que ocorre no movimento es- messa de sucesso financeiro,
que só mais tarde deu lugar a
clarece um pouco as questões que constituem as principais bases
uma consciência hip-hop. Ele
da unidade hip-hop em São Paulo. Mais do que representantes do elabora mais esse ponto: "Du-
PT como Cândido estariam dispostos a aceitar, os ativistas de hip- rante o final da década de 1980,
hop constantemente promovem o trabalho de desenvolvimento co- o hip-hop não mais era a última
moda e os artistas cada vez
munitário e especialmente de desenvolvimento sociocultural na agen-
mais deixaram o cenário. Mui-
da do movimento. De fato, esse compromisso com a comunidade tos dos rappers, breakers e
local tornou-se um dos aspectos mais importantes a definir as fron- grafi-teiros remanescentes, to-
teiras do movimento, e para fazer parte do movimento as bandas de davia, estavam genuinamente

hip-hop precisam se engajar em alguma espécie de trabalho de interessados em hip-hop." Por-


tanto, em um sentido importan-
desenvolvimento comunitário.
te, foi o fracasso comercial do
Essa pressão proveniente dos ativistas do movimento é particular- projeto do rap que reuniu um
núcleo duro de ativistas de hip-
mente sentida na declaração seguinte. Durante nosso encontro em
hop devotados - entre eles Mil-
1988, Milton Sales - misto de organizador de festas Black Power, ton Sales, que se tornou pro-
fundador do M H p ^ ^ e ex-produtor dos Racionais - afirmou que os dutor de rap, Mano Brown (Ra-
Racionais MCs mostraram uma certa falta de solidariedade ("os cionais), Thaide {Thaide e DJ

Racionais pisou na bola") e aos poucos se afastaram do movimen- Hum) e Nelson Triunfo (Brea-
kers) - que estabeleceram a
to. No cerne de suas preocupações está o fato de que os Racionais
agenda do movimento. Hersch-
mostraram apenas um entusiasmo frouxo quando foram solicitados mann evita totalmente uma dis-
a contribuir com projetos de desenvolvimento de base comunitária. cussão do M K O .
Embora Milton Sales não queira reivindicar nenhuma autoridade
dentro do hip-hop paulistano, suas palavras parecem exercer um
importante poder simbólico. Não obstante certa fratura que se abriu
entre ativistas e membros da banda e certa perda de poder de ato-
res importantes como o próprio Sales^®, os ativistas ainda influenci- Os Racionais decidiram se
am a direção geral do movimento, e pelo menos de boca os rappers desligar do selo de seu ex-em-
dão atenção a suas demandas. Esse poder regulador dos ativistas presário (Sales). "Zambia", e

do movimento pode ser demonstrado ainda citando-se o caso do lançar a própria empresa, sob
o nome "Cosa Nostra". A
rapper Gabriel O Pensador, do Rio de Janeiro. Em 1994, a Pode
Zambia, todavia, ainda está en-
Crê (vol. 2/3: 38), a mais importante revista do rap paulistano du- volvida na distribuição de CDs
rante o começo da década de 1990, publicou um artigo pedindo a dos Racionais,

23
ottmann, goetz. Imaginário - usp, n° 7, pág. 13-34, 2001

expulsão de Gabriel O Pensador do movimento. O rapper era acusado


de privatização e mercantilização da cultura hip-hop, além de incorre-
ção ideológica - em outras palavras, de colher os benefícios comerci-
ais do hip-hop sem aderir a seus objetivos políticos e sem reinvestir
parte do capital no movimento^^. Essa iniciativa, apoiada pelos princi-
Herschmann fala sobre essa
disputa ao se referir a questões
pais membros do movimento, como Milton Sales, Mano Brown e DJ
de raça e de classe Hum, mostrou-se bem-sucedida e delimitou claramente as fronteiras
(Herschmann, 2000:187). do movimento hip-hop. Assim, os ativistas do MH^O tendem a cumprir
um papel estratégico de mediação entre os rappers e a esfera política
formal, e vigiam o compromisso das bandas com a política do movi-
mento. De fato, essa mediação obriga os artistas a reinvestir pelo me-
nos uma parte do capital acumulado em projetos de desenvolvimento
comunitário ou em política redistributiva. Uma recusa a fazê-lo põe em
risco a ligação de uma banda com o movimento hip-hop.
De modo semelhante, o desenvolvimento do nome de uma banda
de rap no caso de São Paulo, com freqüência baseado em mensa-
gens anticonsumistas e anti-sistema, dá origem a expectativas dos
consumidores que são facilmente transformadas em pressão por
parte destes. Isso, por sua vez, reforça certa continuidade e unida-
de nos círculos do hip-hop. O caso dos Racionais demonstra clara-
mente que as bandas de hip-hop têm de responder às expectativas
dos consumidores para preservar suas reivindicações de autentici-
dade e credibilidade. Os Racionais MCs, os mais destacados e in-
fluentes representantes do movimento hip-hop brasileiro, se apre-
sentam em público como soldados da periferia, como os sumos sa-
Raio X Brasil, Um homem cerdotes de uma irmandade que brande espadas, convocando a
na estrada (1993), dos Racio- uma cruzada contra a violência insensata gerada pelo sistema de
nais, vendeu 250 mil cópias,
um Brasil moralmente falido. Construindo com sucesso seu nome
enquanto Sobrevivendo no in-
ferno (1997) vendeu 500 mil
em torno de uma recusa a submeter-se às regras das empresas
cópias só em 1997. ao passo gravadoras multinacionais, os Racionais se transformaram na ban-
que os CDs mais vendidos de da de hip-hop de maior vendagem no Brasil. Em 1997, seu CD
Thaide e DJ Hum - Humilda-
autoproduzido Sobrevivendo no inferno vendeu aproximadamente
de e Coragem são nossas ar-
mas para lutar {1994) e Pres-
200 mil cópias um mês depois de ter sido lançado e mais 300 mil
te atenção (1997) - venderam cópias durante os meses seguintes - e isso sem o impulso da pro-
100 mil cópias cada um. paganda multinacional^^! Nos últimos dois anos, a popularidade deles
cresceu muito. Uma indicação para uma premiação da MTV em 1998
e a exposição nos mercados de hip-hop da Europa e dos Estados

24
ottmann, goetz. Imaginário - usp, n° 7, pág. 13-34, 2001

Unidos contribuíram para o fato de que os Racionais se tornaram


um ícone do hip-hop nacional e estão prestes a ser aceitos pelo
''mainstrean1\ Por isso, os Racionais constituem o ponto focai da
cena hip-hop paulistana.
Todavia, nos círculos do hip-hop, os Racionais foram acusados de
terem se vendido. A "deserção" de Ice Blue de seu bairro pobre para
as áreas arborizadas do centro da cidade, o "consumo conspícuo" de
Mano Brown, assim como a redução da participação dos Racionais
em atividades comunitárias alimentaram essa crítica^^ Ela revela al-
Um artigo de Cinthia
gumas das pressões provenientes das comunidades de fãs e de co-
Rodriguez, publicado em Épo-
mentaristas da mídia exigindo igualmente um grau de responsabili- ca (Ano 1, n® 12,10 de agosto
dade e continuidade em troca do sfafus óos Racionais de profetas do de 1998). polemizou essa
hip-hop. Os fãs parecem estar particularmente preocupados com o questão.

sucesso comercial de seus ídolos e temem uma defecção clandesti-


na para o c a m p o das classes e n d i n h e i r a d a s , o c a m p o dos
"playboyzinhos". Tendo em mente essas tensões, não é de surpreen-
der que Mano Brown, em seu discurso à multidão depois de ter rece-
bido o prêmio da MTV para o melhor clipe do ano (13/8/98), tenha
gasto um valioso tempo no ar garantindo sua fidelidade aos pobres.
"Mesmo que nós fiquemos ricos e ganhemos muito dinheiro, vamos
ser sempre da periferia." Assim, as incursões comerciais dos Racio-
nais na cultura hip-hop são cuidadosamente monitoradas e constitu-
em questões importantes para determinar a credibilidade da banda
na comunidade de seus fãs. Nesse sentido, a comunidade de fãs
absorve noções e identidades disseminadas localmente e as
reposiciona para avaliar a autenticidade e as reivindicações das ban-
das de rap que afirmam ser representativas da cultura hip-hop.

unidade e patronagem fazendo escolhds em


uma industria competitiva
Claramente, as comunidades de fãs e os ativistas do movimento
estabelecem limites à fluidez do hip-hop paulistano. Na medida em
que as reivindicações de autenticidade dos rappers os ligam à peri-
feria pobre urbana - seu principal grupo de consumo está localiza-
do em outro segmento de mercado eles têm de levar a sério qual-
quer crítica que possa causar danos à sua integridade como porta-

25
ottmann, goetz. Imaginário - usp, n° 7, pág. 13-34, 2001

vozes dessa periferia. Enquanto as comunidades de fãs estão


preocupadas com questões que validam as afirmações de auten-
ticidade das bandas, os militantes do movimento tentam delimi-
tar o espectro político do hip-hop. O aspecto decisivo dessa ne-
gociação é o do reinvestimento de capital, que exige que as ban-
das reinsiram recursos em projetos que promovam os objetivos
políticos do movimento. Se os artistas se aventuram além des-
ses limites ideológicos, eles não mais são considerados MCs e
se tornam meros músicos profissionais. Além disso, esse fecha-
mento arbitrário politicamente motivado delimita o repertório es-
tético disponível aos artistas do hip-hop paulistano. Como con-
seqüência, os rappers têm de escolher entre a censura política
do movimento, as preferências estéticas de suas comunidades
de fãs e a censura imposta por profissionais de marketing. Em-
bora as três escolhas envolvam inevitavelmente uma moldagem
do resultado criativo e inibam o desenvolvimento da forma esté-
tica, algumas podem envolver uma maior perda de capacidade
de ação e de significado que outras.

Antes de delinear os mecanismos restritivos que resultam de


um sólido sistema de patronagem, é importante indicar que as
identidades no movimento hip-hop são até certo ponto fluidas.
Um exemplo é o de Thaide e DJ Hum, dois "avós" do hip-hop
que estabeleceram sua própria marca. Embora a identidade dos
Racionais MCs tenda a apelar a um sujeito subalterno pobre - o
mano - para constituir uma identidade hip-hop, e portanto entre
numa trajetória essencialista, Thaide e DJ Hum adotam uma
perspectiva construtivista que abraça a tolerância, a humildade
e o respeito. Ao contrário dos Racionais MCs, por exemplo, eles
se recusam a assumir o papel de "a voz dos manos". Antes,
eles constroem um sujeito moral que tem de se empenhar pela
pureza seguindo o caminho do hip-hop - um sinônimo, de acor-
do com Thaide, de "vontade de levar a cabo a mudança". Aqui,
a identidade dos devotos do hip-hop é ligada diretamente a uma
noção de ativismo a p r e s e n t a d a como intrínseca ao hip-hop.
Durante um de nossos encontros, Thaide elaborou esses ele-
mentos centrais explicando o simbolismo empregado na capa
do disco Brava gente (1996):

26
ottmann, goetz. Imaginário - usp, n° 7, pág. 13-34, 2001

"Ela contém três elementos fundamentais. Os trilhos de trem com


Thaide e DJ Hum [no meio da] neblina significam o caminho do hip-
hop. O caminho que é bom, mas tem de vez em quando momentos
ruins. A caixa, o símbolo mais tradicional do hip-hop, representa a
música. A jarra representa o elemento mais puro: a água. Isso quer
dizer o caminho que nós estamos pisando, o caminho do hip-hop, o
caminho da pureza, o caminho da música. Nós todos somos p u r o s . " ^ ^
Entrevista publicada em
Pode Crê {1994, vol. 2/4: 18).
Portanto, ao enfatizar a obrigação moral contida no hip-hop, eles
não só evitam um fechamento essencialista de seu projeto em torno
do sujeito negro subprivilegiado mas estabelecem um projeto, ape-
sar de vago, para a mudança sociocultural baseado no autodesen-
volvimento e na participação em um movimento pela mudança. As-
sim, o hip-hop de Thaide e DJ Hum representa uma tentativa de
transformar a agitação cultural em uma evolução sociocultural dra-
mática. Desse modo, seu projeto se contrapõe à auto-representa-
ção narcisista que prospera com base na sensação de poder extra-
ída da difamação de outros, uma característica freqüentemente
criticada no rap americano (ver, por exemplo, Samuels, 1991)^3. To-
Membros do Movimento Ne-
davia, esse grau de fluidez não deveria nos seduzir a perder de
gro das décadas de 1950 e
vista o fato de que os artistas de rap atuam em um dos mercados 1960, como por exemplo o
comerciais mais competitivos e de que bandas de hip-hop como músico de jazz Chariie Haden,
Thaide e DJ Hum ajudaram a definir o gênero. criticam o Hood-rap por sua
identidade negativa destrutiva.
Na metade da década de 1990, a intensa competição forçou as ban-
das a escolher entre a forte base ideológica corporificada pelo MH^O
ou aventurar-se além dos limites do movimento tendo em vista um
segmento de consumidores diferente. O Kaya - uma banda empre-
endedora e, de acordo com a mídia, uma das dez melhores bandas
de hip-hop de São Paulo em 1997 - oferece um exemplo de banda
de rap ambiciosa não preparada para abrir mão do controle sobre
seu estilo musical próprio. A decisão de permanecer fora do movi-
mento, diz Júnior, o cantor de 18 anos líder do Kaya, foi tomada
durante um breve contato com representantes do movimento hip-
hop: "Um cara chegou e queria que nós comprometêssemos a nos
apresentar em todo lugar. Eu perguntei a ele quem tocaria e ele
disse que aconteceria. Então eu disse a ele que nós não estávamos
interessados. Você precisa ter uma certa organização, você não

27
ottmann, goetz. Imaginário - usp, n° 7, pág. 13-34, 2001

pode apenas sentar e esperar que as coisas a c o n t e ç a m . A per-


Minha interação com expoen-
cepção da falta de organização e de senso empresarial casada a
tes do movimento hip-hop re-
forçaria a declaração de Júnior. uma aversão pela política levou a banda a se aventurar fora dos
limites do movimento.
O passo do Kaya fora da força centrífuga dos Racionais MCs e do
movimento hip-hop não é necessariamente a norma, como aparece
na seguinte declaração de Júnior:

"Muitos grupos não têm idéia de negócio. O som deles é horrível, as


letras são ruins e a maioria não tem idéia do que os ouvintes pode-
riam querer ou gostar. Em vez disso, eles se prendem a seu ideal de
rap ou hip-hop e ficam só copiando os Racionais MCs. Para eles,
rap é simplesmente os Racionais. Musicalmente eles não têm abso-
lutamente nenhuma idéia. Mesmo os primeiros discos dos Racio-
nais são musicalmente subdesenvolvidos. Eles só se desenvolve-
ram com o tempo. Muitas bandas nos bairros nunca chegam a esse
estágio, elas se aferram a suas atitudes limitadas e não são capa-
zes de assimilar idéias novas."

Júnior ilustra o que significa estar "fora do movimento". Do ponto de


vista dele, os Racionais e o movimento impõem certos limites ao de-
senvolvimento criativo do rap e do hip-hop nos bairros. Ao sublinhar a
importância política do hip-hop e delimitar claramente seu projeto, os
Racionais impõem sua linha ideológica por meio de um discipulado.
Conseqüentemente, os shows organizados pelos Racionais ou pelo
movimento recebem predominantemente bandas que aderem à sua
linha ideológica. Portanto, o senso empresarial de Júnior exclui o Kaya
desses eventos e separa a banda dos canais de marketing boca-a-
boca, pelos quais os Racionais são conhecidos. Júnior se queixa des-
se potencial de marketing inexplorado que resulta da "falta de coopera-
ção" dos Racionais, já que foi essa falta de oportunidade de marketing
que levou o Kaya a buscar a proximidade da indústria cultural.
O sucesso e a estabilidade financeira encorajam muitas bandas a
buscar um contrato com gravadoras multinacionais. Todavia, com
esse distanciamento dos selos pequenos e independentes, como
Zambia (Milton Sales) e Cosa Nostra (Racionais MCs), associados ao

28
ottmann, goetz. Imaginário - usp, n° 7, pág. 13-34, 2001

movimento hip-hop, os artistas enfrentam o perigo de perder o controle


sobre seu produto. Por essa razão, segundo Júnior, a razão de as
bandas preferirem as multinacionais é o fato de elas oferecerem con-
tratos transparentes. Selos pequenos tendem a se concentrar no pa-
gamento resultante de quebra de obrigações contratuais e são menos
propensas a abrir mão de um contrato. Júnior, tendo assinado um con-
trato de gravação com um pequeno selo independente, passou exata-
mente por essa situação: "Nós assinamos um contrato de três anos
com um selo para produzir um CD e promovê-lo. Eles nos garantiram
que o CD seria lançado um ano depois da assinatura do contrato. Nada
aconteceu. A empresa simplesmente se recusou a lançar o CD." A
banda, todavia, permaneceu amarrada à empresa. Júnior levou a em-
presa aos tribunais e conseguiu livrar o Kaya de seus vínculos
contratuais. Segundo Júnior, poucas bandas de hip-hop nos bairros
estão preparadas para fazer isso. A maioria prefere manter uma atitu-
de lowprofile e conseqüentemente arrisca sua carreira.
Em certas circunstâncias, o enredamento de uma banda com a in-
dústria da cultura pode definir significativamente o resultado criati-
vo. O caso do Dr MCs ilustra esse cenário. Os Dr MCs se formaram
durante a metade da década de 1980 e se tornaram imediatamente
um sucesso. Gravaram vários CDs e se tornaram profissionais.
Quando, durante a metade da década de 1990, o rap sofreu um
declínio de popularidade na mídia e as principais emissoras para-
ram de tocar rap, os membros da banda entraram numa crise eco-
nômica. Em 1996, eles se aproximaram de um especialista em
marketing e assinaram um contrato de gravação com a Kaskata
Records, um pequeno selo agressivo que abastecia vários merca-
dos marginais. Assim, seu produto sofreu uma mudança dramática.
"Antes de 1996, o rap dos Dr MCs era mais agressivo e menos co-
mercial", me diz J. Depois de 1997, a produção deles se tornou
cada vez mais voltada para o mercado. Carlos, o empresário da
banda, afirma que: "Agora os Dr MCs são o centro ou até a centro-
direita do movimento. Eles não compartilham o esquerdismo extre-
mado e os objetivos radicais dos Racionais ou do Thaide, mas acei-
tam qualquer coisa que ajude o movimento." J. acrescenta que "nós
não criticamos coisas para promover nossa carreira. Se você criti-
ca, deve ser capaz de oferecer uma solução. Se você diz "isso está

29
ottmann, goetz. Imaginário - usp, n° 7, pág. 13-34, 2001

errado", você tem de ser capaz de dar um jeito. Nós tentamos ser
mais positivos em nossas letras e focalizar assuntos sobre os quais
temos alguma coisa a dizer."^^ Carlos ilustra mais esse ponto quan-
Essa tende a ser a justifica-
tiva padrão para expücar a fal-
do argumenta que os Dr MCs se transformaram em profissionais
ta de engajamento social críti- que se adaptam. Ele distingue claramente a "sua" banda dos Raci-
co de bandas orientadas co- onais, os quais, diz ele, são "imprevisíveis" e "não-profissionais".
mercialmente. Evidentemente, embora Carlos busque destacar a ligação dos Dr
MCs com o movimento hip-hop, ele apresenta a banda como os
representantes "saudáveis", "seguros" e publicamente mais aceitá-
veis do movimento.
Embora o álbum mais recente dos Dr MCs tenha sido um sucesso
comercial, com quase 800 mil cópias vendidas, a preocupação deles
com questões de marketing minou sua identidade nos círculos do hip-
hop. O que se ouve é que a música de maior sucesso é uma versão
rapeada de um sucesso da MPB da década de 1970, uma mistura que
recentemente levou a um contrato de gravação com uma importante
gravadora multinacional. Para Thaide, todavia, os Dr MCs perderam a
dignidade. E os adeptos do hip-hop que eu entrevistei durante 1998,
sem exceção, rotularam de "comercial" o produto dos Dr MCs.

conclusão
o exemplo do hip-hop paulistano demonstra claramente que, agradar
igualmente as comunidades de fãs, os selos de gravação e os ativistas
de hip-hop, mantendo ao mesmo tempo uma certa "novidade", eficácia
empresarial e integridade política, está longe de ser fácil. De fato, mui-
tas bandas arriscam significativamente sua integridade como profetas
hip-hop, quando assinam o primeiro contrato de gravação. Isso ocorre
basicamente porque o movimento hip-hop paulistano constrói uma pro-
fecia "autêntica", em termos de uma pureza enraizada em uma rejeição
do sistema capitalista. Assim, em vez de construir sua posição na co-
munidade hip-hop, evocando a imagem do "motha fucka" duro como,
por exemplo, no "gangsta rap" americano, ou de invocar respeito, rei-
vindicando um papel privilegiado numa mitologia negra ancestral, ou
de "diminuir" os concorrentes em suas letras, como é freqüentemente o
caso no rap europeu e americano (ver, por exemplo, Androutsopoulos
and Scholz, 1999), o hip-hop paulistano afirmou ser "a voz da periferia
sem voz". Certamente, bandas como os Racionais MCs assumiram

30
ottmann, goetz. Imaginário - usp, n° 7, pág. 13-34, 2001

algumas das representações de "gangsta rap" brasileiro, criando uma


imagem de durões. Todavia, seu impulso principal se baseia em um
projeto de crítica social com fortes conotações morais e espirituais, um
projeto que ecoa a política popular brasileira das décadas de 1970 e
1980. Embora secularizados e livres das amarras da Igreja, os Racio-
nais MCs em muitos sentidos ensaiam o "grito dos excluídos", o tema
pastoral da progressista Arquidiocese de São Paulo durante a década
de 1990. E a relação íntima do movimento hip-hop com um segmento
do PT, influenciado pela política da igreja católica progressista, torna
ainda mais visíveis essas ligações com um espectro de política popular
estreitamente ligado à teologia da libertação secularizada.
Além do mais, ao se focalizar o contexto imediato das bandas de hip-
hop associadas ao MH^O, fica claro que a identidade do movimento
hip-hop é o resultado de um processo de negociação que envolve ar-
tistas, ativistas e também comunidades de fãs. Os ativistas de hip-hop,
como Milton Sales, por exemplo, tendem a enfatizar a importância do
desenvolvimento comunitário, um compromisso com as bases e uma
rejeição da indústria cultural convencional. As comunidades de fãs, por
outro lado, monitoram cuidadosamente os hábitos de consumo de seus
profetas, observando criticamente qualquer sinal de afrouxamento do
compromisso com sua origem comum: a pobreza urbana. Para as ban-
das de hip-hop, e especialmente para as novas, essas expectativas se
mostram difíceis de negociar. Embora bandas bem-estabelecidas, como
Thaide e DJ Hum, tenham conseguido se demarcar de uma maneira
suficientemente diferente dos Racionais, mas ainda dentro das frontei-
ras gerais do movimento, bandas novas muitas vezes se aventuram fora
desses limites para responder a um novo segmento de consumidores. O
Kaya, por exemplo, fez experiências com letras que supostamente tor-
nariam a banda um ícone new age sensível, aspirando a criar adeptos
entre as mulheres jovens^®. Todavia, no ambiente do hip-hop paulistano
Júnior gostaria de criar uma
e em vista da presença dominante dos Racionais MCs, essas aventuras
banda sustentada por 50 mil
se mostram difíceis. Além disso, o exemplo dos Dr MCs demonstra cla-
"minas", em oposição aos 50
ramente como o sucesso comercial convencional pode minar a posição mil "manos" reivindicados pe-
de uma banda nos círculos do hip-hop. los Racionais.

Claramente, a fluidez proposta por Herschmann (2000), que utiliza o


conceito numa tentativa de legitimar o hip-hop brasileiro na mídia, ate-
nua essas nuanças. O "gangsta rap" com seu ethos-ou, de preferên-
cia, pathos - do macho endurecido fora do alcance da lei e da ordem.

31
ottmann, goetz. Imaginário - usp, n° 7, pág. 13-34, 2001

certamente tem muitos seguidores no rap brasileiro e tende a fugir de uma


integração indiscriminada num continuum Móo da política de identidade
neo-latino-americana. Além disso, a polaridade introduzida por Herschmann
entre "velha" política dos movimentos sociais e "nova" política cultural ten-
de a ruir no caso do hip-hop paulistano. O exemplo acima demonstrou que
o movimento hip-hop paulistano está baseado em uma unidade mítica
que delineia claramente as fronteiras do movimento. Embora um grau limi-
tado de fluidez exista de fato no movimento, suas fronteiras são traçadas
com precisão. Isso certamente deu origem á um comportamento "não-
cooperativo" e a procedimentos não-democráticos. Todavia, por outro lado
e basicamente como resultado dessa identidade muito rígida, o movimen-
to demonstrou uma surpreendente capacidade de resistência ao se opor
ao esforço de cooptação por parte de empresários e de políticos. No con-
texto da legendária desigualdade brasileira, conceitos como fluidez 'po-
dem facilmente ser usados para apagar identidades e diluir o impacto de
movimentos culturais ou políticos que polarizam o ambiente político. Esse
é particularmente o caso num ambiente cultural de gosto onde a integração
da subcultura no mainstream sinaliza o fim de sua significância sociocultu-
ral e política (ver, por exemplo, Heinzelmaier, Grossegger e Zentner, 1999).
Durante a década de 1990, o hip-hop se tornou uma força política pe-
quena, mas sonora na política municipal de São Paulo. Embora às
vezes parecesse que o movimento hip-hop tomaria o mesmo curso de
movimentos sociais precedentes, alguns dos quais foram facilmente
cooptados e assumidos por partidos políticos, aparece de forma cada
vez mais clara que o hip-hop dispõe de uma maior resistência que
seus antecessores políticos. Enquanto os movimentos sociais das dé-
cadas de 1970 e 1980 tendiam à integração estrutural e/ou ideológica
em partidos políticos, o movimento hip-hop foi capaz de manter sua
identidade e a maior parte de sua autonomia. Essa capacidade de re-
sistência dos ativistas de hip-hop em face de interesses político-parti-
dários deriva em parte de sua imbricação com o mercado e de seu
papel como produtores de uma identidade reproduzida nos meios de
comunicação de massa. Como os artistas dependem de seu relaciona-
mento com as comunidades de fãs para conquistar status e recursos,
eles são menos propensos a se ligar a interesses político-partidários, o
que torna a cooptação menos provável. Embora uma certa falta de
capacidade organizacional, coerência e direção programática pareça
inibir a capacidade do movimento hip-hop para cumprir um papel na
política institucional, os ativistas de hip-hop criaram uma força política.

32
ottmann, goetz. Imaginário - usp, n° 7, pág. 13-34, 2001

ainda que embrionária, para ocupar o espaço político formal. O que,


então, é local no hip-hop paulistano? Neste artigo eu postulei que os
temas religiosos populares, embora em forma secularizada, têm um
papel central permanente no movimento de hip-hop de São Paulo.

Resumo; Penalizando as mais importantes bandas de hip-hop de São


Paulo, este artigo ilustra como uma cultura jovem global é
recontextualizada para se adaptar a condições locais. Uma rápida
comparação com o hip-hop dos Estados Unidos e da Europa demons-
tra que o hip-hop paulistano se desenvolveu de uma forma claramen-
te diferente. O autor argumenta que as aspirações de autenticidade
afro-americanas, assim como a mitologia do "gangsta-rap", influenci-
aram apenas superficialmente o rap local. Na verdade, o hip-hop local
segue o estilo e o conteúdo da política popular brasileira das décadas
de 1970 e 1980 e apresenta elementos religiosos secularizados que
lembram a política da Igreja Católica progressista daquelas décadas.

Palavras-chave: antropologia, globalização, cultura de massa, pro-


dução cultural, juventude, política popular, Igreja Católica.

Abstract: Focusing on São Paulo's most important Hip-Hop bands, this


article illustrates how a global youth culture is recontextualised to fit
local conditions. A brief comparison with Hip-Hop in the USA and in
Europe demonstrates that Paulistano Hip-Hop has developed along very
different lines. The article argues that Afro-American authenticity claims
as well as a 'gangsta-rap' mythology has only superficially influenced
the local Hip-Hop movement. Rather, local Hip-Hop is distinctively
influenced by the Brazilian popular politics of the 1970s and 1980s and
has adopted important secularised religious elements reminiscent of
the politics of the progressivo Catholic Church during those decades.

Key words: anthropology, globalisation, mass culture, cultural


production, youth, popular politics, Catholic Church.

33
ottmann, goetz. Imaginário - usp, n° 7, pág. 13-34, 2001

bibliografia
ANDROUTSOPOULOS, J. and SCHOLZ, A. On the Recontextua/isation of Hip-
Hop in European Speech Communities, http://www.archetype.de/hiphop/
ascona.htnnl. 1999.
CANCLINI, N. Garcia. "Consumption is Good for Thinking", Diálogos de Ia
Comunicaclón, 30. Lima, June 1991.
. Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar y Sallr de Ia
Modernidad. México: Grijaibo, 1990.
DECKER, J. L. "The State of Rap: Tinne and Place in Hip-Hop Nationalism". In
ROSS, A. and ROSE, T. (eds.). MIcrophone Flends: Youth Music and Youth
Culture. NY: Routiedge, 1994.
EYERMAN, R. and JAMISON, A. Music and Social Movements: Moblllzing Traditions
In the Twentieth Century. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
FLORES, J. "Puerto Rican and Proud, Boyee!: Rap Roots and Amnésia". In
ROSS, Andrew and ROSE, Trisha (eds.). MIcrophone Flends: Youth Music
and Youth Culture, New York: Routiedge, 1994.
FRASER, N. Justice Interruptus: Criticai Reflections on the "Postsoclallst"
Condition. NY and London: Routiedge, 1997.
FRITH, Simon. "Music and Identity". In HALL, Stuart, and GAY, Paul Du, (eds.).
Questions of Cultural Identity. London: Sage, 1996.
HEBDIDGE, D. Subculture: The Meaning of Style. London: Methuen, 1979.
HEIZELMAIER, B. GROSSEGGER, B. and ZENTNER, M. Jugendmarketing: Setzen
Sle Ihre Produkte In Szene. Ueberreut: Ueberreuter Wirtschaftsverlag, 1999.
HERSCHMANN, Micael. O Funk e o HIp-Hop Invadem a Cena. Rio de Janeiro:
Ed. UFRJ, 2000.
LEHMANN, D. Struggie for the Spirlt: Rellglous Transformatlon and Popular
Culture In BrazH and Latln Ameríca. Oxford: Blackwell Publishers, 1996.
LEVY, C. "CEBs in Chrisis: Leadership Structures in the São Paulo Area". In
BURDICK, J. and HEWITT, W. E. Westport, (eds.). The Church at the
Grassroots In Latín Ameríca. Conneticut: Praeger, 2000.
NASH, K. Contemporary Polltical Soclology: Globallsatlon, Polltics, and Power
Malden Mass and Oxford: Blackwell Publishers, 2000.
ROSE, T. "A Style Nobody Can Deal With: Politics, Style and the Postindustrial
City in Hip-Hop". In ROSS, A. and ROSE, T, (eds.). MIcrophone Flends:
Youth Music and Youth Culture, New York: Routiedge, 1994.
SAMUELS, D. "The Rap on Rap", New RepubHc, November, 1991.
STAPLETON, K. R. "From the Margins to the Mainstream: the Political Power of
Hip-Hop". Media, Culture & Sodety Vol. 20, p. 219-234, 1998.
THORNTON, S. "Moral Panic, the Media and British RaveCultre". In ROSS, A.
and ROSE, T, (eds.). MIcrophone Flends: Youth Music and Youth Culture.
New York: Routiedge, 1994.
TOMLINSON, J. Globallsatlon and Culture. Cambridge: Polity Press, 1999.
VIANNA, H. O Mundo Funk Carioca. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
YUDICE, G. The Funkification of Rio", In ROSS, Andrew and ROSE, Trisha, (eds.).
MIcrophone Flends: Youth Music and Youth Culture. New York: Routiedge, 1994.
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

atravessando fronteiras,
movimentos migratonos na historia do brasil

Helenilda Cavalcanti e
Isabel Guilien^
' Pesquisadoras da Funda-
ção Joaquim Nabuco. Re-
cife " PE,
Os movimentos migratórios perpassam a história do Brasil, tra-
zendo em seu bojo conflitos de alteridade. Como chama atenção
Bosi, a colonização não pode ser entendida como uma simples
corrente migratória: "Ela é a resolução de carências, de conflitos
da matriz e uma tentativa de retomar, sob novas condições, o
domínio sobre a natureza e o semelhante que tem acompanhado
universalmente o chamado processo civilizatório" (Bosi, 1992:13).
Contudo, esse processo é configurado por um cenário de intole-
rância, ambição e morte, no que se refere aos contatos entre os
diferentes grupos sociais e étnicos que constituirão o mundo cul-
tural e social brasileiro.

O colonizador - português - , ao invadir o território dos vários povos


que aqui habitavam, implantava um regime de posse e dominação,
onde se tornou o senhor das terras e dos corpos, impondo sua lei a
ferro e fogo. A visão do invasor em relação aos habitantes do novo
mundo não se referia a um "eu", mas a um "outro", que era entendi-
do como coisa de que ele poderia dispor ao seu bel-prazer. Eram
considerados como selvagens sem alma, não-humanos, ou de ou-
tra espécie, como supunham alguns olhares europeus estudados
por Todorov (1993). Com o advento da modernidade - que carrega
consigo os princípios de igualdade e liberdade - , ao colonizado é
destinado o lugar do outro mais humanizado, portanto, aquele que

35
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

deve ser arrancado da natureza, do regime das necessidades para


ascender ao patamar da cultura. Este é o pecado original da coloni-
zação, ou seja, a desqualificação da cultura do outro.
Nosso objetivo é traçar um quadro histórico dos movimentos mi-
gratórios no Brasil, não exclusivamente do ponto de vista da colo-
nização e do povoamento, mas levando em consideração o signi-
ficado da migração para os sujeitos que migram, salientando que
nesse ato há uma reconstrução de diversas práticas culturais e
identitárias, nas quais a questão da alteridade é crucial. Nosso
entendimento prima por demonstrar que esse processo foi marca-
do por conflitos e rupturas, nos quais novas ressignificações cul-
turais ocorrem. Acima de tudo, a História do Brasil é uma história
r e c o b e r t a de d i v e r s i d a d e s e c l i v a g e n s . N e s s e d e s a f i o de
ressignificar essa experiência, convidamos o leitor a questionar a
concepção de história como uma única via dentro da qual se cons-
trói a unidade nacional.

I - a diáspora de índios e negros na uolo izciçao


No projeto de colonização, na busca de domínio e de conquista da
nova terra e de agenciamento de capital humano e simbólico, ob-
serva-se uma diversidade de situações nas quais o fenômeno mi-
gratório se inscreve produzindo diferentes tipos de rupturas e con-
tradições. Enfatizamos que não se pode encerrar a discussão ape-
nas nos seus aspectos econômicos. É preciso também entender
que o curso da colonização torna obrigatório para os sujeitos a for-
mação de uma nova cultura e identidade, na qual contornos e im-
pressões culturais antigas devem ser apagados, com o propósito
de povoar e fixar o homem à terra.
O ato de subjugar os índios, expulsando-os e dispersando-os de
seu território, a importação do negro africano para o trabalho cativo,
igualmente a fuga em direção a regiões mais interioranas, o movi-
mento de ocupação do sertão com a criação de gado e com a busca
frenética por ouro, fazem os recortes da ocupação territorial, mar-
cando os deslocamentos de populações, desde os primórdios do
Descobrimento, com reflexos até os dias atuais.

36
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

Sérgio Buarque de Holanda lembra que os portugueses, preocupa-


dos em assegurar alguns povoamentos, como os situados entre a
baía de Todos os Santos e a baía do Rio de Janeiro, forçaram mi-
grações de índios da costa para que servissem de defesa contra os
ataques dos outros gentios (Holanda, 1993: 72). Mas não podemos
generalizar os movimentos migratórios dos grupos indígenas exclu-
sivamente como uma reação à presença do colonizador.
Do mesmo modo que o europeu buscava no Novo Mundo o Paraíso
terrestre e via nessas terras a imagem do Éden, os Tupi-Guarani esta-
vam em deslocamento e andavam em busca de sua Terra sem Mal
(Holanda, 1969; Clastres, 1978). Essa aventura coletiva dos Tupi-
Guarani, que significava uma longa ascese, pois não eram movidos
por forças econômicas, em geral não foi entendida pelos cronistas que
a descreveram, como Claude d'Abbeville, marcando os descompasses
culturais dos (des) encontros com o colonizador, e construindo um "ce-
nário altamente conflitivo de humanidades" (Martins, 1997).
Aqui o que nos interessa salientar é a diáspora dos homens por es-
sas lonjuras adentro. Perseguidos e acusados de cometer atrocida-
des e de praticar o canibalismo, alguns grupos indígenas haviam
desaparecido já em fins do século XVI. Os Tupinambá, do grupo Tupi-
Guarani, que originalmente ocupavam os Estados da Bahia, Rio de
Janeiro e São Paulo, passam a ser vistos no Norte do Brasil, hoje o
atual estado do Maranhão. A dispersão dos Tupinambá vem confir-
mar o processo de ruptura que deu origem à formação do povoamen-
to do território brasileiro, por meio do qual outras reterritorialidades
foram iniciadas, com mudanças de natureza e conexões indefinidas.
Lembramos ainda, nesse sentido, a migração forçada dos negros
africanos. Escravizados, arrancados do continente africano para
atender ao projeto prático da colonização do Novo Mundo, os ne-
gros vivem intensamente essa ruptura. A história da escravidão ne-
gra no Brasil não se construiu sem conflitos, soluções de compromis-
so, avanços e recuos. Em sua complexidade, não pode ser entendida
linearmente, pois em muitos momentos a própria noção de "liberda-
de" era um alvo em constante movimento. Pensamos nos inúmeros
quilombos que ocuparam os sertões, cidades, engenhos, fazendas,
garimpos, florestas. Na história dos quilombos, não há regras e mo-
delos; ao contrário, torna-se patente a diversidade dos modos

37
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

como essas soluções para a fuga da escravidão foram inventadas e


experimentadas pelos próprios sujeitos, ao se confrontarem com as
especificidades do momento histórico e do lugar (Reis e Gomes, 1996).
A diáspora negra é, sem dúvida, um desenraizamento forçado pela
escravidão. A convivência entre senhores e escravos não se deu sem
muitos conflitos. Há quem sustente que essa convivência tenha pro-
duzido uma cultura largamente compartilhada por ambos, a exemplo
de Gilberto Freyre (1985). Há outros que enfatizam a formação de
uma cultura subalterna entre os escravos e seus descendentes, que
teria como base a cultura originária africana (Carneiro, 1958; Ramos,
1942). Ou, pelo menos, de reinterpretações africanas dos signos de
origem européia com os quais tinham que conviver no mundo da escra-
vidão colonial. Se, de um lado, a primeira posição nos lembra a capa-
cidade humana de compartilhar culturas e de trocar signos, a outra
aponta para os traços subterrâneos da cultura originária do grupo
migrante, com profundos vestígios visíveis em seus descendentes.
Mas, nesse novo território, essas sobrevivências culturais não são
mais as mesmas, pois refletem outros contextos históricos. É nesse
quadro que podemos entender como os escravos vão definir suas
estratégias culturais e identitárias diante da escravidão.
A cultura que se desenvolveu no novo solo era complexa, extrava-
sando as compartimentalizações das teorias sociais. Não só pela
diversidade das culturas originárias trazidas pela imigração da-
queles que vinham de outros locais, mas também porque aqui sur-
giram outras, advindas dessas culturas originárias em conflito. A
história do Brasil é a história de gente desenraizada, em constan-
te movimento de encontros e desencontros, dos quais se tem como
resultado não uma cultura ou identidade nacional — a unidade
nacional em termos culturais e identitários é uma fantasia, mas
múltiplas identidades, nas quais a diferença emerge com traços
de ambigüidade e incerteza.

II - a busüd de controle sobre os inovimentos


popülauonais no seuulo XIX
Durante o século XIX, houve um aumento da populaçao dos ho-
mens livres pobres, caracterizada pelo constante movimento em dire-

38
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

ção ao interior do país. Podemos remontar sua origem ao período


colonial, na busca do ouro nos séculos XVII e XVIII, bem como no
alastrar das fazendas de criação de gado e pequenas agriculturas
de subsistência pelo sertão. Movimentos que se intensificaram, à
medida que as bases econômicas no século XIX se diversificaram
com a produção do café, cacau, algodão e borracha, propiciando
a constituição de novas fronteiras agrícolas, fontes de novas ri-
quezas. É importante considerarmos, para entender o movimento
que adentrava pelo interior, o modo de vida "típico" das popula-
ções rurais, que v i v i a m de uma a g r i c u l t u r a itinerante e do
extrativismo como alternativa econômica. Esses homens livres po-
bres formavam pelo sertão uma espécie de fronteira móvel, que
estava recoberta por um imaginário de liberdade, representada na
literatura nacional com farta recorrência, ainda que grandemente
idealizada no que concerne à descrição de uma vida auto-sufici-
ente nas grandes fazendas. Ao mesmo tempo, o modo de vida das
populações interioranas era criticado pela elite intelectual, que
nelas via um dos óbices para o progresso do país. Monteiro Lobato,
ao construir o personagem Jeca Tatu nas primeiras décadas do
século XX, é um exemplo emblemático dessa crítica, à qual se
soma a figura do jagunço e do fanático religioso.

Para a itinerância das populações rurais, poderíamos, portanto, apon-


tar as mais variadas razões: esgotamento da terra, fuga do recruta-
mento, secas e flagelos naturais, recusa a se inserir num esquema
de dominação política etc. Essas razões apontam para a luta pela
elementar sobrevivência, bem como a busca de sonhos e de uma
vida livre dos mandonismos locais.
Simultaneamente ao crescimento populacional dos homens livres po-
bres, as elites governantes enfrentavam o problema da abolição da es-
cravidão, sendo evidente a necessidade de uma solução para o proble-
ma da mão-de-obra. No entanto, havia uma série de restrições à utiliza-
ção desse segmento social, por serem considerados indolentes,
indisciplinados, propensos à vadiagem e refratários ao trabalho organi-
zado. No bojo desses acontecimentos, o governo brasileiro define duas
estratégias para solucionar o problema da mão-de-obra.
A Lei de Terras de 1850, que transferia as terras devolutas para o
controle dos estados, impedia a abertura de novas posses e esta-

39
cavalcanti, helenilda e g u i l i e n , isabel. I m a g i n á r i o - usp, n° 7,pág.35-68,2001

il|

belecia que novas propriedades d a terra só se formarimfuedianfiifcliaÉ


I compra. Segundo Martins, a Lei d e Terras transíorni» as terniíscei
j:
devolutas em monopólio do Estada que, por sua v ^ z , eacontrolafíloolá
j! por uma forte classe de fazendeiras. Dessa f o r m ^ , Pafateíaces83ce®
à terra, era necessário que os h o m e n s pobres l i v r a s dipbilizssiHizi
sem sua força de trabalho para a grande fazendeiroj\omesne9esi
tempo que se abolia o cativeiro d o s homens, inici^ava-siocative^vjiveii
da terra (Martins, 1979).
Mediante os problemas que a inserção dos trabalhnadoKnacionaiooni
traziam para o mercado de trabalho, principalmente nc^jediz r e i ^ i
peito à produtividade dessa mão-de-obra, os g r a ndestadeínistleii
optaram pela imigração em massa de um contingenteiieeiibertibel
de estrangeiros. Esses imigrantes, em sua v a r i e d a d e dgpovos viuvas li-
dos das regiões mais diversas da Europa, a s s o l a d o s p^a pobressiora
pela desapropriação material e cultural, vêm para o Brasil não s ò i òssói
aventura de "fazer" a América, como largamente s e propap.o m o w r a
mento imigratório, de modo mais amplo, pode s e r ^ M é conuax®
"uma forma de resistência às duras condições de vidajmposias p e q s pà^
penetração do capitalismo no c a m p o . . . c o n f o r m e a ofervação ooâot
Alvin para a migração italiana (Alvinn, 1986: 18), o cquespica, poí] ,,, [i-
tanto, que eles não foram submissos às c o n d i ç õ e s deiaMho inio-oii
postas no Brasil, nem que se colocaram no m e r c a d o detapassasoassi
va. Para os objetivos deste trabalho, importa destacar(le a conoíffo-aiii
^ Foucault, ao a po-
ção de desenraizamento, implícita no movimento migrífiofaz-s-mzi
pulação como umasr'"^^\iestáo
centrai da gov8rnarm^'®^'^fiíalfcla"
novamente presente na nossa história, marcando, n umertoentlcfeitmi
de, afirma que "a co ^^'^'ituicão os descompasses da nossa formação.
cie um saber de govo-v^-^^- o e ab-
solutameníe indissc^r^^^^avel da
As estratégias acima apontadas, a Lei d e Terras d e lôSfleoncenrtceÉ
Constituição de pro- vo à imigração, que possibilitaram a abolição da escravfoea traiEií tii
cessos referentes á popula- sição para o trabalho livre nos moldes planejados pelaíte,fora£i(Doi
ção em sentido latCDt^^^^ áaquflo a r q u i t e t a d a s p a r a e x e r c e r o c o n t r o l e sobre? a p3pyiaçã»»Ej)içffl
<ÍUe chamamos
Concomitantemente, a elite governante define estratégiggpaia exexeew
de economia" (ffl)i ^^^^Jcaulí,
1984: 290). Goverrr^^'^%Gnía- cer o controle sobre o segmento dos homens p o b r e s liVB,rosenííteBá
^'dade nada mais é * que a do de discipliná-los, conquistá-los para u m a vida ordeiraeiatoriosa)™
prática de gerira A população se constituiu, dessa forma, n u m c a m p o de lÉn/ençãoo^ãfle
® para tanto, é
de saber, quando se projetou, no horizonte dessa alite iimda e ssa®
drinhar e produzir ilíí ^^ saber
cravidão, ou seja, quando o problema d a m ã o - d e - o b r a psoj a s t e s a i
f^Bcessário à des-
sa gerência. um dado da economia política e não mais da "economiq|f]iéstica""Eíirf

40
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

Já a partir da Lei de Terras de 1850, os movimentos populacionais


ganharam visibilidade. Em fins do século XIX, o fluxo de migração
interna se intensifica, principalmente na região do Nordeste, demons-
trando a necessidade de intervenção do Estado. À medida que a
própria lei buscava indisponibilizar as terras devolutas no sentido
de resguardar mão-de-obra livre para o trabalho assalariado,
desestruturava a economia de subsistência camponesa. Entre vári-
as outras razões que explicam essa desestruturação mencionamos
a valorização monetária das propriedades, decorrente da Lei de
Terras, que propiciou o desenvolvimento comercial de algumas cul-
turas, como a do café e a do algodão, razões que apontam para um
fechamento das terras livres, impondo limitações à reprodução da
condição de homens pobres livres.
É nessa confluência histórica que o constante e tradicional movimento
das populações pelo sertão se tornou o alvo dos dispositivos de segu-
rança, ou seja, os movimentos da população se transformavam num
problema, cuja solução não mais passaria por medidas assistenciais,
como ocorria nos anos de grandes secas, mas apontavam para a ne-
cessidade de elaborar estratégias de controle e sujeição. As relações
com o controle da população são mais do que evidentes, e a
historiografia sobre os trabalhadores pobres livres bastante abundan-
te, mostrando que se trata de um problema já pensado, na verdade,
pensado pelos próprios agentes sociais do século XIX, que buscavam
no espaço social a governamentabilidade da população.
Vale salientar que, em quase todos esses movimentos nos quais a
população nordestina esteve presente, ela foi induzida a "arribar" de
suas terras e local de origem em troca de trabalho e melhoria de vida.
Estudos comprovam que muitos desses indivíduos, que se valeram de
seu espírito de aventura e coragem, ficaram reduzidos ao esqueci-
mento e ao abandono dos serviços de assistência a eles prometidos.

III - a transição para o trabalho livre e a questão do


aproveitamento da mão-de- obra nacional
As últimas décadas do século XIX podem ser caracterizadas como
um período de grandes movimentos migratórios em conseqüência
de mudanças econômico-sociais ocorridas no país, de modo que o

41
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

fenomèno da migração interna ganhou visibilidade, caracterizando-


se como um problema nacional. O fenômeno chegou ao conheci-
mento do público quando ocorreu a grande seca de 1877-1878,
momento em que os flagelados da seca invadiram as cidades litorâ-
neas, provocando medo e impondo-se como um problema a ser re-
solvido pelas elites locais (Greenfield, 1989; Neves, 1996).
No entanto, o fenômeno migratório desse período não pode ser as-
sociado exclusivamente ao fenômeno das secas, que o naturaliza.
As transformações de ordem política, econômica e social ocorridas
na região acarretaram o fortalecimento do poder dos grandes pro-
prietários rurais, pela valorização das terras ocorrida a partir da Lei
de 1850 e o crescimento da agricultura comercial. Essas transfor-
mações provocaram a liberação de mão-de-obra rural, deixando os
pequenos produtores rurais sem terra e, por conseguinte, sem op-
ções de trabalho. É dessa forma que se pode entender como o Nor-
deste vem a se tornar uma região de excedente de mão-de-obra,
com a redução cada vez maior do acesso a terras disponíveis para
a agricultura de subsistência, progressivamente ocupadas com as
culturas comerciáveis.
Havia, em tese, mão-de-obra nacional em excedente, que poderia
ter sido utilizada na região cafeicultora. Entender por que se prete-
riu o trabalhador nacional em favor do imigrante estrangeiro tem
sido uma das questões mais debatidas pela historiografia. Explica-
ções de cunho variado foram apontadas para justificar a inviabilidade
da utilização dessa mão-de-obra, principalmente a da região Nor-
deste. Apontaram-se os custos do transporte entre as regiões e,
Ainda que a referência à re-
sobretudo, a dificuldade de se arregimentar esse trabalhador, como
gião Nordeste não se aplique ao ainda a forte oposição da elite local com relação à transferência
século XIX, uma vez que o Nor- para o sul desse contingente populacional, que significava perda
deste éuma construção discur- de mão-de-obra local e, conseqüentemente, de poder político. To-
siva datada das décadas de 20
davia, a razão maior que norteou a não-aceitação dessa mão-de-
e 30 deste século, o seu uso,
neste trabalho, tem como obje- obra nacional foi a considerada pela lucratividade do trabalhador
tivo facilitar a compreensão dos estrangeiro, por ser subsidiado, substituindo, de forma compensa-
processos que tratamos. Para tória, o escravo no processo produtivo.
entender o Nordeste como uma
invenção discursiva, ver; É importante lembrar que no século XIX ocorreu um grande fluxo mi-
Albuquerque Júnior, 1999. gratório das populações das províncias da região Nordeste,^ principal-
mente aquelas originárias do Ceará, em direção à Amazônia, atraídas

42
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

pelo ciclo da borracha. A seca de 1915 tem sido apontada como um


momento de inflexão nesse movimento em direção à Amazônia. Em
primeiro lugar, pela crise da produção da borracha e, em seguida, pelo
fato de São Paulo aparecer como terra promissora para os migrantes.
Não é sem razão que os personagens migrantes do romance de Ra-
quel de Queiroz, O Quinze, no desfecho da narrativa, façam a opção
por São Paulo como local de destino, sinalizando que esse era um
movimento que não se realizava apenas no plano literário.
No entanto, é só a partir da década de 1930 que ocorre o decrésci-
mo da corrente migratória dos estrangeiros, marcando uma mudan-
ça na composição da classe operária. O movimento migratório, na
ocasião, avoluma-se, principalmente o de origem rural, alimentan-
do os canteiros de obras e as fábricas das cidades. Nesse momen-
to, a elite brasileira, diante da necessidade de reativar o mercado
de trabalho, dispondo de vasta oferta de mão-de-obra nacional, e
tendo em vista a necessidade de obter maior controle social da classe
trabalhadora, passa, então, a reconstruir a imagem do trabalhador
nacional tão fortemente espoliada pelo vírus da escravatura. Tal
reconstrução imaginária é alimentada pela representação de que
esse contingente da população se encontra menos contaminado por
idéias contestatórias, e que, ã diferença do braço estrangeiro, pode
trabalhar por baixos salários, aceitando qualquer tarefa sem reclamos
e sem o risco das paralisações coletivas. Ao se inserir no mercado de
trabalho fabril e ao provocar mudanças na composição da classe ope-
rária, imputou-se ao trabalhador nacional a responsabilidade pelo de-
créscimo da "consciência de classe", sinalizada pelo enfraquecimento
do sindicalismo e pelo fortalecimento político do populismo.
É importante lembrarmos que tais argumentos se encontram presen-
tes também na produção historiográfica, demonstrando a presença de
um pré-conceito acadêmico, cunhado principalmente nas décadas de
1950 e 1960, quando se discutia o desenvolvimento e a questão das
desigualdades regionais. Como exemplo, citamos Durham (1978), para
quem os movimentos migratórios apenas podem ser entendidos do
ponto de vista do capitalismo industrial e agrícola do país, enquanto
movimento fornecedor de mão-de-obra desqualificada e barata de que
a indústria precisava. As modificações dos padrões de comportamento
que o migrante realiza, interna e culturalmente, são entendidas como
reflexos das alterações que ocorrem na ordem estrutural.

43
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

A historiografia negligenciou, igualmente, a análise dos conflitos


internos à classe operária, como as disputas pelo mercado de tra-
balho entre os próprios trabalhadores. Negligenciou também os pre-
conceitos quanto à origem étnica, regional e social dos trabalhado-
res recém-incorporados ao mercado, os quais foram forjados como
argumentos para assegurar o lugar social e o emprego tão disputa-
dos, conforme alerta Albuquerque Jr. (1990).
Com efeito, o fenômeno da migração de trabalhadores nordestinos
para o Centro-Sul supera a mão-de-obra estrangeira em torno dos
anos 30. Contribuiu para a absorção do trabalhador nordestino no
mercado de trabalho, o decreto-lei que limitava a 1/3 o percentual de
estrangeiros por empresa. É bom lembrar que, sob a ameaça da Se-
gunda Guerra Mundial e após esse registro, a imigração estrangeira
torna-se, internamente, um problema para a segurança nacional, es-
timulando, dessa forma, a procura maior pelo braço dos nacionais.
Ao mesmo tempo, no Nordeste havia condições que favoreciam a
migração: forte pressão demográfica e alta concentração fundiária.
Desse modo, o Nordeste, por seu processo histórico-social-político
e econômico, transforma-se numa área caracterizada por transferir
mão-de-obra rural para os centros urbanos mais dinâmicos do país,
perdendo, assim, a capacidade de retenção de população e se trans-
formando em uma área com altos índices de pobreza e de perdas
de população (Guimarães, 1994). A migração para os centros mais
dinâmicos da economia do país representa, para quem migra do
Nordeste, uma forma de fugir e reagir à exploração e à dominação
dos proprietários rurais, e uma esperança de liberdade, na busca
de novas relações na cidade.
Todos esses entremeies, que resultaram numa representação de-
terminadã^e homogênea do migrante, rotulados como paraibanos e
baianos, contribuem para que possamos compreender melhor, his-
toricamente, o protótipo de migrante que se justapõe á imagem do
trabalhador nordestino - errante, pau-de-arara, mão-de-obra bara-
ta, preguiçoso, indolente, construtor de cidades, dentre outros.
Nosso trabalho, neste momento, bifurca-se na intenção de enten-
dermos a migração para a Amazônia e, posteriormente, a migração
para São Paulo. Aqui, faz-se necessário lembrar o porquê dessa
escolha em trabalhar com essas duas vertentes da migração bra-

44
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

sileira. Foram eles movimentos que contribuíram de forma significa-


tiva na representação da mão-de-obra nacional. Ao mesmo tempo,
lembramos que esses movimentos foram ressignificados no processo
produtivo e pelos propósitos, não-declarados, dos indivíduos que
se deslocaram pelo país com seus caminhos plurais. Nesse senti-
do, buscamos entender os movimentos migratórios não mais do ponto
de vista macro do povoamento, mas fazendo emergir a história do
migrante na busca de trabalho, e no que isso contribuía para a
pluralidade de novas práticas culturais, favorecendo dessa forma
múltiplos cruzamentos socioculturais. Nas palavras de Canclini, "nin-
guém dá conta de todos os itinerários, nem de todas as ofertas ma-
teriais e simbólicas desconexas que aparecem... nesses cruzamen-
tos" (Canclini, 1998).
Enfatizamos nossa recusa em aceitar o uso de categorias explicativas
abrangentes e convencionais, utilizadas por muitos autores das Ci-
ências Sociais, para explicarem o movimento dos migrantes nor-
destinos, as quais muitas vezes deslocam a realidade embutida em
suas motivações. As explicações, apenas do ponto de vista da es-
trutura, deixam de lado a criação de determinados sentidos que essa
população dá ao processo de sair e de voltar. Esses movimentos de
desterritorialização e os processos de reterritorialização das popu-
lações levadas a migrar estão ramificados e presos uns aos outros.

IV - bravos e mansos migrantes nordestinos


nos sefingais amazônicos
Em decorrência das transformações ocorridas no Nordeste do país
no final do século XIX, a migração aparecia no horizonte dos ho-
mens livres e pobres como uma alternativa para os problemas que
teriam de enfrentar: seca, poucas terras disponíveis, baixa remune-
ração salarial, ou mesmo como única alternativa para a sobrevivên-
cia. O importante a observar é que a migração sofreu um processo
de naturalização, como se ocorresse em conseqüência da seca, e
não provocada por problemas sociais.
Do mesmo modo, não foi a migração nordestina canalizada exclusi-
vamente em direção aos centros mais dinâmicos da economia no
Centro-Sul. Para a sua história, há que considerar uma forte corren-

45
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

te que se dirigiu para a região de fronteira, principalmente a amazô-


nica, em busca de terras e de condições para a reprodução da con-
dição camponesa. Essa corrente manteve-se por todo o final do
século XIX e século XX, com períodos de maior ou menor intensida-
de. Teve início na década de setenta do século XIX, quando a pro-
dução de borracha na Amazônia oferecia oportunidades de traba-
lho e alimentava os sonhos de rápido enriquecimento trabalhando
nos seringais, e se mantém com fluxo crescente até a crise da bor-
racha, ao final da Primeira Guerra Mundial.

Em busca de novos seringais, à medida que o consumo de borra-


cha crescia, milhares de migrantes nordestinos devassaram os rios
da Amazônia, ocuparam terras e rios ainda desconhecidos, expul-
saram os índios dessas terras, alargaram as fronteiras do país com
sua efetiva ocupação, a exemplo do ocorrido com o Acre. Belém e
Manaus, naqueles anos, disputavam para ser consideradas verda-
deiras capitais européias. A extração e o comércio da borracha fi-
nanciava a apresentação de óperas nos teatros, animadas conver-
sas nos cafés, onde se desfilava trajando a última moda parisiense.
Todo esse luxo não se deixava macular pela miséria que imperava
nos seringais. Ali, a vida era regida por um implacável sistema de
escravidão por dívida, conhecido ainda hoje na Amazônia como avi-
amento. Em troca do sonho de rápida fortuna, os migrantes tinham-
se dirigido aos seringais à custa dos patrões e, tão logo chegavam,
descobriam que deviam o transporte, e muitos também um adianta-
mento que receberam. Para poderem trabalhar, compravam do bar-
racão dos seringais todos os mantimentos necessários, bem como os
instrumentos de trabalho. Durante os meses em que aprendiam os
segredos da extração da borracha, continuavam a se abastecer nes-
se barracão. Enfim, era uma dívida praticamente impagável, mantida
por uma rígida vigilância para que não fugissem dos seringais.
Durante os anos 1920 e 1930, a migração para a Amazônia, oriunda
da região Nordeste, decresceu sensivelmente e se dirigiu às regiões
onde a possibilidade de acesso á terra apresentava-se com mais faci-
lidade. As colônias agrícolas, a exemplo das que se implantaram ao
longo da linha da estrada de ferro Bragantina, no Pará, ou mesmo para
a Fordiândia e Belterra, extensas propriedades da Ford, onde se en-

46
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

saiava o cultivo de seringueiros no sistema de grandes plantations,


foram os locais para os quais preferencialmente se dirigiam os migrantes.
A migração de trabalhadores nordestinos cresceu novamente du-
rante a Segunda Guerra Mundial, incentivada pelo Estado Novo.
Fruto de uma série de acordos assinados com os Estados Unidos,
organizou-se uma campanha para incentivar a migração, objetivando
incrementar a produção de borracha, pois as grandes plantações
asiáticas tinham sido tomadas pelos japoneses, e necessitava-se
suprir as forças aliadas com esta e outras matérias-primas estraté-
gicas. Conhecida como a Batalha da Borracha e os migrantes como
Soldados da Borracha, a campanha foi um verdadeiro fiasco, tanto
em termos de arregimentação de trabalhadores, quanto em produ-
ç ã o ( G u i l i e n , 1 9 9 9 ) . Vale d e s t a c a r q u e os m i g r a n t e s f o r a m
conclamados a ir para a Amazônia, não só para cumprir um dever
patriótico, mas também para conseguir terras, pois as autoridades
governamentais iniciaram vários projetos de implantação de colôni-
as agrícolas e acenaram com a distribuição de lotes de terra por
todo o Nordeste, o que naturalmente não ocorreu.

O mesmo não pode ser dito com relação aos planos de colonização
da Transamazônica, na década de 1970 deste século. Apesar do fra-
casso, a distribuição de lotes de terras levou milhares de nordestinos
a migrar para a região em busca da tão sonhada terra própria. Esses
mesmos trabalhadores rapidamente se viram abandonados na flo-
resta, sem assistência técnica para levar adiante uma pequena agri-
cultura na Amazônia. Em pouco tempo, a única opção que lhes resta-
va era o abandono dos lotes, tão duramente conquistados.
Quando se trata de avaliar a experiência da migração em termos
populacionais, há um impressionante dado demográfico sempre con-
siderado: o crescimento populacional da Amazônia, no período de
1870-1910, foi significativo, e chega-se a apontar a cifra, não muito
realista, de 500.000 migrantes. Já para o período de 1920-1940,
houve uma depopulação. A população total passou de cerca de
323.000 pessoas, em 1870, para mais de 1.200.000, em 1910, o
que, em termos relativos, colocava a região com um crescimento
demográfico mais dinâmico do que o da média brasileira e até da
região Sudeste (Santos, 1980: 118). No entanto, alguns anos de-
pois, especificamente para o Acre, os dados censitários, em 1940,

47
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

apontam que a população da região teria sofrido uma queda de


cerca de 13%, tomando-se os dados de 1920.
Ao se dedicar a pensar a formação econômica da Amazônia, Cel-
so Furtado considera a migração nordestina para a região como
única solução para a produção da borracha, cuja extração se ba-
seava exclusivamente na extensão da mão-de-obra e na expan-
são da área produtiva. E conclui que, "excluídas as conseqüênci-
as políticas que possa ter tido e o enriquecimento fortuito de redu-
zido grupo, o grande movimento de população nordestina para a
Amazônia consistiu basicamente em um enorme desgaste huma-
no em uma etapa em que o problema fundamental da economia
brasileira era aumentar a oferta de mão-de-obra" (Furtado, 1963:
164). É quase invariavelmente na linha do "desgaste humano",
apontada por Celso Furtado, que os dados censitários são cons-
tantemente arrolados e a experiência da migração nordestina para
a região dos seringais, reduzida.
Ora, não há como estabelecer discordância com alguns desses argu-
mentos, já que, efetivamente, a brutalidade do sistema de aviamento
implantado nos seringais acarretou uma dilapidação do capital huma-
no arregimentado para ocupar a Amazônia nos moldes extrativistas.
Não é preciso aqui nos estendermos em descrições sobre as misérias
vividas nos seringais, a violência praticada pelos proprietários, a espo-
liação, fome e miséria que acompanharam o cotidiano desses homens
que viveram a ilusão do ouro negro, como se tornou conhecida a extra-
ção da borracha. Euclides da Cunha descreveu, em páginas magis-
trais, a dor de se ver só na floresta, sem possibilidade de voltar atrás,
no conto Judas Asvero, e o sistema de aviamento que aprisionava o
seringueiro, em Os seringais, páginas essas que têm causado mais
impacto do que muitas análises demográficas (Cunha, 1994).
Ao inserirmos aqui Euclides da Cunha, fazemo-lo no sentido de lem-
brar que o problema consiste em, ao se fazer a história, relegar o
migrante-seringueiro à eterna condição be vítima e tornar irredutível
sua experiência, ou seja, pensar que, ao se falar sobre os horrores
que os migrantes viveram, se disse tudo. E pior, que esses horrores
nenhum significado tiveram para a história, podendo ser esqueci-
dos sem ônus algum, como se sua história pudesse ser reduzida ao
"desgaste humano".

48
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

Os migrantes tiveram que enfrentar, num ambiente em tudo diferen-


te daquele por eles conhecido, uma série de problemas sociocultu-
rais, cujas soluções resultaram num modo de vida próprio. Tão logo
chegava ao seringal, era chamado de bravo aquele que desconhe-
cia os segredos da floresta, para, ao longo dos anos, tornar-se manso
aquele que tinha se adaptado ao modo de vida dominante. Para
sobreviver, o migrante necessitava aprender os diversos segredos
da floresta, os tipos de madeira utilizados para os fins mais diver-
sos, os frutos que podia coletar para complementar sua dieta ali-
mentar, os cuidados da roça necessários naquele ambiente e diver-
sos daqueles a que estava acostumado, se fosse agricultor. Devia
aprender, também, os modos de se pescar na Amazônia, depen-
dendo do peixe que se quer consumir, ou mesmo do local onde se
vai pescar, ou da época do ano. Precisava, igualmente, aprender os
hábitos dos animais que podiam ser caçados, se quisesse variar
sua alimentação. Desse modo, o migrante, ao chegar ao seringal,
não só precisava aprender o processo de trabalho, mas reordenar
grande parte das suas relações socioculturais com significados ínti-
mos nem sempre perceptíveis.
Em muitos depoimentos recolhidos, o ato de migrar pode ser entendi-
do como resistência, não só à exploração e à dominação existentes
no local de origem, e que produzem a exclusão social, mas sobretudo
de se ver fixado, emoldurado nesse lugar social e simbólico. Migrar é
exercer o desejo de mudar, de não se conformar (Póvoa Neto, 1994).
Enricar, arrumar recursos, ficar rico, são expressões recorrentes nos
d e p o i m e n t o s recolhidos. Ilusão ou não, este é s e m d ú v i d a o
impulsionador da grande maioria dos migrantes, numa clara expres-
são do desejo de abolir a exclusão social.

"...e a gente tinha aquela garra de prosperar de querer ter e diziam


que o Pará tinha muita mata. Chegamos à colônia Augusto
Depoimento de um migrante
Montenegro, de lá foi para Belterra e acabou no planalto: nós querí- nordestino em Santarém, PA,

amos prosperar."^ apud: Leroy, 1991, pág. 53.

Nos depoimentos recolhidos por Samuel Benchimol, em 1942, a


saída do Nordeste é sentida com muito pesar, pois, para a grande

49
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

maioria, não fosse a seca, nunca haveria a necessidade de migrar.


Em alguns depoimentos, contudo, destaca-se uma nítida percep-
ção das condições de sujeição do trabalhador, como parte das es-
truturas de poder vigentes no Nordeste. Por isso, alguns migraram
e não quizeram mais voltar:

"Eu não possuo nada. Pra que voltar para a terra dos outros? Lá só
se vive na sujeição. Se se tira três alqueires de farinha, um é pro
dono da terra. Em tudo ele tem um terço. Quero trabalhar pra mim
mesmo. Não gosto de viver alugado" (Benchimol, 1992: 157).

Os sentimentos em relação à terra natal são bastante ambíguos, pois


tanto revelam a desilusão e a revolta social contra a sujeição, como um
intenso desejo de ficar um tempo, enricar e poder voltar com uma con-
dição melhor. No entanto, a experiência como lavrador nordestino, que
todo ano espera a chuva no dia de São José, para saber se haverá
seca ou inverno, ou como criador de gado, ou até mesmo como citadi-
no que se deixou levar pela aventura, não lhe dá sustentação alguma
diante da natureza amazônica, pois seus referentes naturais não mais
são válidos. Para o bravo que se aproxima do seringal, não há voz da
experiência que o oriente no dia-a-dia de trabalho. A perda do referencial
espaço-temporal e sua reconstrução necessária para o migrante fa-
zem com que toda experiência apareça como fragmentária:

"Achava tudo esquisito, diferente dos costumes lá da minha terra.


Tive muita vontade de voltar, mas de nada adiantava, porque não
tinha com que. O jeito que tive foi eu me amansar na terra. Desde
esse tempo virei seringueiro" (Benchimol, 1992: 131).

É importante observar que manso significa não só ter o conheci-


mento da natureza amazônica, mas tem também uma conotação de
sujeição, já que, uma vez que não pôde voltar, o jeito que encontrou
foi se "amansar na terra".
A oposição entre seca e fartura de água ocupa um lugar emblemático
no processo de hibridação cultural. Tal oposição faz com que, aos
migrantes, as diferenças naturais e culturais se exacerbassem, já que
tornar-se manso significava colocar em confronto os desejos que o

50
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

motivaram a migrar e a vida cotidiana na Amazônia. Nesse contexto,


o Nordeste a que se refere o migrante não é mais o Nordeste real,
mas aparece mitificado, o lugar simbólico da origem. O sofrimento
ocasionado pela seca é imediatamente esquecido no momento em
que o migrante precisa reformular seus referenciais ambientais e a
abundância de água aparece como um empecilho aos movimentos,
ao andar livre. Essa relação com o espaço tomado pelas águas, os
segredos de se locomover pelos rios e igarapés, foi, sem dúvida, um
dos elementos naturais que os migrantes mais estranharam.
O processo de adaptação é doloroso, longo. Amansar-se significa
não só adquirir o saber necessário para a sobrevivência, mas sub-
meter-se à terra e aos novos costumes. C o m o afirmou um dos
migrantes entrevistados por Benchimol: "Quem não se alisa, mor-
re." Mas não é só o homem que se amansa, também a terra selva-
gem, à medida que a civilização e a modernidade nela imprimem
suas marcas: "O Acre agora está manso. O avião está passando
todo dia arriba de nós" (Benchimol, 1992: 166).

Os homens se amansaram na terra, desvendaram seus segredos,


casaram e tiveram filhos. Ao final do boom da borracha, muitos
migrantes recobraram sua experiência de agricultores, adaptaram-
se aos costumes e se estabeleceram na calha do Solimões. Refe-
rindo-se aos bravos que chegavam em 1942, um migrante sintoni-
zou seu passado com as perspectivas de futuro para os bravos:

"Mais cedo ou mais tarde eles se desiludem como eu. Quando se


desenganarem, não podendo voltar para o Ceará, como eu e todos
os outros, vêm povoar as beiras dos rios e dos lagos. Se misturam
com as caboclas, têm filhos delas e não saem mais daqui"
(Benchimol, 1992: 156).

Alguns desses migrantes, que nunca tinham vindo para a Amazô-


nia, já sentiam familiaridade com o ambiente e com o trabalho, como
se migrar fosse uma herança passada de pai para filho:

"O meu velho veio oito vezes ao Amazonas. Quando em casa faltava
dinheiro, ele dizia que ia arranjar dinheiro e batia para cá. Dois, três

51
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

anos depois voltava com os recursos pra gente viver. Esteve no Juruá,
Javari, Acre, Madeira, Xingu. Conhecia bem o Amazonas todo. Ele
sempre contava histórias daqui que nos entusiasmavam. De forma
que quando eu cresci sempre desejei conhecer o Amazonas, pois da
primeira vez era muito pequeno. Mas o velho, todo o dinheiro que
levava daqui era para ser derrotado no Ceará. Eu agora vim ocupar o
lugar dele, desde que ele morreu" (Benchimol, 1992: 135).

Mesmo porque, ainda que se volte, o sertão é tido como uma terra
ingrata que sempre os expulsa. Lá, para parcela significativa dos
entrevistados, "só se vive na sujeição". A volta é, em muitos casos,
colocada como a possibilidade de uma nova derrota:

"Voltei duas vezes à Paraíba, porque eu queria ver meus pais. Vol-
tei só para perder o dinheiro que eu arranjava aqui" (Benchimol,
1992: 127).

Sobretudo, há que destacar essa familiaridade com a migração para


a Amazônia, esse destino posto no horizonte, que nada mais é do
que a expressão dos trajetos socioculturais do circuito histórico que
percorrem o Nordeste e a Amazônia. Sob a lógica do pensamento
sedentário, esse circuito foi descrito como um atavismo social, he-
rança das tribos indígenas, ancestrais nômades de todos os brasi-
leiros. No entanto, para os bravos que chegavam à Amazônia na-
queles anos de guerra, restava a esperança de se darem bem na
terra, "enricar" no seringal, ou conseguirem terras para sustentar a
família que veio junto.
É fácil imprimir-se um sentido bucólico às migrações: sonho de refa-
zer a vida, ou fugir do mandonismo local. Ainda que verdadeiras, tais
colocações não podem ocultar o constante desemprego e subemprego
a que grande parte da população deste país tem sido submetida. A
extrema mobilidade da população trabalhadora é um dado a ser en-
carado não bucolicamente, pois revela que se perseguem sonhos,
mas também a elementar sobrevivência. Podemos resgatar fragmen-
tos de vidas de homens que saíram do Nordeste no início do século
para os seringais, destes para a coleta de castanhas, daí para os
garimpos de diamantes, num permanente recomeçar a vida. Destas

52
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

vidas não há história, apenas referências pontuais. São pessoas que,


parafraseando Thompson, não planejaram suas vidas, como hoje pla-
nejamos nossas carreiras, pois viviam em plena instabilidade, ao sa-
bor das circunstâncias que poderiam encontrar pelo caminho.^
^ "Sabendo o que os espera,
Homens que foram à procura de outro destino em outras regiões do aiguns jovens saem de casa
país. Talvez homens que não tenham querido submeter-se aos sis- e, uma vez na vida, ganham a
estrada para "ver o mundo".
temas de dominação consagrados no Nordeste, postos como legí-
Deste modo, as oportunida-
timos pelo discurso da elite. Homens cujas vidas foram esvaziadas des são aproveitadas à medi-
de sentido para conferi-lo aos movimentos do capital, da expansão da que surgem, com pouca re-
da fronteira. O desenraizamento, entendido também como exclu- flexão sobre as conseqüênci-
as, assim como a multidão im-
são, reflete-se na história pela perda do passado, de um direito a
põe seu poder nos momentos
um passado que não seja simples memória, que se apresenta de de insurreição direta, saben-
forma fragmentária e pontual, destituída de significado. do que o seu triunfo não vai
durar mais do que uma sema-
Não é tarefa do historiador racionalizar o esquecimento. "O cronista que na ou um dia" {Thompson,
narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os peque- 1998, pág. 21-22).
nos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu
pode ser considerado perdido para a história" (Benjamin, 1985: 223).
Todo movimento dos migrantes que foram para os seringais, seja fugin-
do do mandonismo local, seja perseguindo desejos de enriquecer, movi-
mento claro de recusa à sua inserção no movimento do capital, foi qua-
lificado por muitos historiadores como economicamente improdutivo. Seria
necessário, mais uma vez, relembrar o prefácio de Thompson para A
formação da classe trabalhadora inglesa, de que eles viveram como ex-
pectativa o que para nós é história, e que, portanto, é preciso pensar
essa experiência com olhos menos condescendentes?

Especificamente no caso que estamos discutindo, os migrantes que


se dirigiram para a Amazônia nos anos da Segunda Guerra Mundial,
os Soldados da Borracha, viram-se abandonados de qualquer as-
sistência tão logo terminou a campanha, e não tiveram cumpridas
as promessas apregoadas no momento da arregimentação. Muitos
não conseguiram recursos para voltar para suas casas e acabaram
se amansando na Amazônia. No entanto, não deixaram de reivindi-
car os direitos trabalhistas a que achavam que faziam jus, principal-
mente o direito de aposentadoria. Ao longo de muitos anos, só na
década de 1980, o governo federal concedeu a aposentadoria aos
Soldados da Borracha, como trabalhadores rurais.

53
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

V - o s nordestinos e as mil faues de Sao Paulo


São Paulo é a cidade das indústrias... São Pauio e a ciaaae da
miséria... São Paulo é a cidade da resistência... Essas três qualida-
des: indústria, miséria e resistência, que cresceram paripassu com
a população, representam o que se poderia chamar de característi-
cas básicas da urbanização das cidades do Terceiro Mundo
(Goldsmith, 1994). Na Grande São Paulo, vivem cerca de 12% dos
160 milhões de habitantes do Brasil, dentre os quais parcela signifi-
cativa é de migrantes nordestinos ou seus descendentes. Convi-
vem com outros migrantes, oriundos de outras regiões e etnias di-
versas, estrangeiros e nacionais, que, na heterogeneidade da geo-
grafia humana, apontam para uma sociedade plural. No seu solo,
diferentes mundos e diferentes povos confrontam-se, diferentes sub-
jetividades e identidades são construídas, dando lugar a cruzamen-
tos socioculturais dentro de um contexto de "heterogeneidade
multitemporal" (Cancline, 1997).
É importante salientar que a migração se encontra articulada com
processos macros. No momento em que regiões "pobres" possuem
uma reserva de "força de trabalho" humana que tende a migrar para
regiões relativamente mais "ricas" em empregos, temos aí um fenô-
meno que, para Sayad (2000), constitui-se em um indicador de de-
senvolvimento desigual, que separa as regiões de imigração das de
emigração. Entre esses dois pólos, há uma assimetria de relações
de força: as materiais e, grosso modo, econômicas, e as simbólicas,
isto é, de prestígio, que opõem duas categorias de regiões: os do-
minantes e os dominados. Encontramos aí uma relação de domina-
ção localizada no cerne do próprio princípio dessa transferência,
constituindo, sobretudo, o padrão de medida dessa dominação. A
migração dos nordestinos para São Paulo, ao longo de sua história,
aponta para essa dupla relação desigual, presidida pela lógica da
exclusão do sistema econômico, que é ampliada, hoje, dentro da
escala maior da economia mundial.

O primeiro grande surto migratório em direção à cidade de São Paulo


aconteceu ao longo de 1930-1950. Em decorrência de sua expan-
são industrial, que se concretiza após a Segunda Guerra Mundial,
São Paulo consegue atrair um expressivo contingente de popula-
ções do meio rural das cidades interioranas do próprio Estado e

54
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

de outros centros urbanos. No entanto, ainda pairava sobre o tra-


balhador nacional a pecha de vadiagem e de imprestabilidade para
o trabalho. No período da migração (1930-1950), essas represen-
tações são abafadas, em função de novos e mais dinâmicos seto-
res da economia urbana. Com o aproveitamento da mão-de-obra
nacional, o sistema produtivo localizado no Centro-Sul e o próprio
movimento dos trabalhadores nacionais, que se deslocam em busca
de trabalho e de novas relações sociais, modificam a classe dos
trabalhadores, formada, dentre outros segmentos, por grande nú-
mero de migrantes nordestinos.
Entre 1970 e 1990, a população da Grande São Paulo mais que du-
plicou. Na década de 1970, o crescimento foi de 445 mil habitantes
por ano. Entre 1980 e 1990, cresceu em torno de 486 mil habitantes
por ano (Goldsmith, 1994). Nesse crescimento, registra-se um povo-
amento múltiplo, heterogêneo, no qual se encontram trabalhadores
de diferentes origens, vivendo experiências de conflitos e disputas,
sobretudo pelo contexto generalizado de corrida ao trabalho.
Reafirmamos que as transformações em torno da economia do país
não ocorreram sem a participação da classe trabalhadora envolvi-
da. Na década de 1970, já se assistia a uma dinâmica dos movi-
mentos sociais que iam além dos partidos políticos e sindicatos. No
final da década de 1980, a sociedade estava marcada por várias
crises: a crise econômica, a crise das formas tradicionais de fazer
política, a crise das clássicas organizações centralizadoras (parti-
dos, sindicatos) e a crise do encaminhamento dos grupos de es-
querda. Em conseqüência, surge uma série de iniciativas na forma
de fazer política na vida cotidiana. É uma redescoberta do cotidiano
que começa a enriquecer os diversos movimentos sociais, as orga-
nizações não-governamentais preocupadas em interagir com os di-
versos grupos sociais e com a classe trabalhadora. A razão desse
novo processo tem, dentre outros motivos, o desejo de realizar na
prática da vida cotidiana, por meio da sobrevivência, o sonho de
uma sociedade livre e mais humana (Warren e Krischke, 1987).
Nos meados de 1980 e 1990, o setor produtivo do país, concentra-
do principalmente no Centro-Sul, sofre fluxos e refluxos. Na metade
dos anos 90, o incentivo à privatização da economia e à menor par-
ticipação do Estado na regulamentação da economia de mercado

55
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

internacionalizado permitiu que o imperativo econômico retirasse


do setor produtivo da economia empresas nacionais que não con-
seguiam competir com as novas exigências do mercado globalizado,
levando um contingente de 10,375 milhões de trabalhadores do país
ao desemprego, segundo dados do SEADE/DIEESE, (27/6/99: 6),
principalmente os mais pobres e menos escolarizados.
No Nordeste, ocorriam também mudanças na estrutura produtiva.
Nesse processo de reacomodação da ordem econômica do país
configurada nas suas últimas décadas, o Nordeste também passa
por transformações. Tânia Bacelar de Araújo analisa essa nova si-
tuação do Nordeste, salientando que "visões consagradas sobre a
região do Nordeste que a caracterizava como uma "região proble-
ma", uma "região de miséria" e uma "região de seca", com agencia-
dores produtivos conservadores, vão tomando outra conformação
com novos focos de dinamismo regional" (Araújo, 1997). São man-
chas ou focos de dinamismo concentrados em alguns setores pro-
dutivos e em regiões de desenvolvimento específico, que favore-
cem a economia de exportação e acompanham o trajeto seletivo da
globalização em detrimento da população trabalhadora mais geral.
Portanto, compreender as mil faces de São Paulo e as diversas sub-
jetividades e identidades que aí se formam nos instiga a perceber os
desencontros entre as regiões de imigração e as de emigração. Leva-
nos, igualmente, a ver as diversas territorialidades que são construídas
na metrópole paulistana, dentro da qual se tenta conciliar uma diver-
sidade étnica e sociocultural trazida por diferentes povos e, de modo
particular, pelo segmento social dos migrantes nordestinos.
A frase de um migrante vindo do Estado de Alagoas, desabrigado,
em São Paulo, ao falar de sua experiência como migrante, sintetiza
com perspicácia essa tensão entre mundos diversos que ele tenta
conciliar: "A sociedade nos despreza, mas a cidade não." A sua
frase traz a lúcida percepção do desencontro entre o migrante "cons-
trutor de cidade" e a sociedade para a qual ele migra. São diferen-
ças que, em vez de serem pensadas dentro de um dualismo
esquemático, no qual os migrantes vindos do interior do Nordeste e
o centro de São Paulo seriam tomados como redutos do atraso e do
progresso, aparecem, todavia, para colocar em cena as contradi-
ções e os dilemas do confronto entre culturas. A frase citada tam-

56
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

bém traz em si o inconformismo desses sujeitos sem rosto e sem


nome, com respeito à negação da sociedade a um espaço na cida-
de. Seus movimentos para ficar na cidade apontam táticas de espe-
ra, uma vigília para captar no vôo possibilidades de ganho. O notá-
vel disso tudo é a liberdade de poder sonhar por um lugar. A subje-
tividade aí articula-se entre sonhos e práticas, para inaugurar a pos-
sibilidade de o sujeito se localizar.
Um oportuno artigo publicado pela Folha de SrPaulo, da autoria de
Marcelo Rubens Paiva, revela que integrantes da tribo Pankararu,
que viviam em Paulo Afonso, Pernambuco, ao serem expulsos de
suas terras, migraram para São Paulo e se agruparam na favela de
Real Parque, na zona sul (2/3/1997: 4). Essa realidade do êxodo
dos Pankararu ilustra, à semelhança de outras etnias, o drama de
populações nordestinas que, ao saírem de suas terras por circuns-
tâncias contraditórias, tentam fincar uma base na metrópole de São
Paulo, que eles ajudaram a construir com seu trabalho.
Por sua vez, esse encontro com o espaço da modernidade é uma
mistura das diferenças e implica, permanentemente, revelar as fa-
ces de muitas realidades que se cruzam nos lugares menos espera-
dos, mas que são parte de uma realidade maior que transforma re-
ciprocamente vidas e cenários. De modo geral, a migração é um
encontro de alteridades, em que cada um tem representações e
imagens do outro, elaboradas no arcabouço mental e material em
que estamos inseridos, e que também envolve trocas e possíveis
mudanças, porque vivemos juntos, com diferentes papéis, sob dife-
rentes tensões. São Paulo é, de modo emblemático, uma cidade de
todos os territórios, ou, pelo menos, mostra-se um campo fértil para
a construção desses territórios, o que, sem dúvida, não se realiza
sem que ocorra um sem-número de conflitos.
Dentro dessa perspectiva, ao pensarmos o movimento migratório
nordestino em direção à cidade de São Paulo, localizamo-lo a par-
tir de práticas históricas sociais, como um movimento com implica-
ções no mercado de trabalho, com impactos igualmente na cultu-
ra, tendo a participação dos próprios migrantes como agentes des-
ses processos.
Para analisarmos essas questões, utilizaremos a experiência de
um grupo de migrantes nordestinos que se deslocou do povoado

57
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

de São Severino, município de Gravatá, Pernambuco, para a pe-


riferia de São Paulo, e m Pirituba. As o b s e r v a ç õ e s sobre esse
grupo social f a z e m parte de uma pesquisa realizada no período
de 1995 a 1997, cujo objetivo era estudar o imaginário dessa
população c o m relação às suas práticas de saída da pobreza
(Cavalcanti, 1999).
No espaço do povoado de São Severino, vivem aproximadamente
250 pessoas. As famílias estudadas eram naturais da região do mu-
nicípio de Gravatá. Essa população encontrava-se distribuída em
cerca de 50 casas ao longo de uma rua, a "Ruínha", como é chama-
da pelos seus moradores.
As constantes menções ao povoado tinham como referência ima-
gens de fracasso, desunião e castigo, que se avolumavam à medi-
da que eles não viam possibilidade de trabalho para se manter. A
maioria das famílias entrevistadas (25) relacionavam, quase sem-
pre, suas dificuldades ao lugar, à falta de trabalho ou ao trabalho
que devorava o trabalhador. Expressões como as que seguem pon-
tuavam os discursos dos moradores do povoado:

"Aqui tudo é parado...nada acontece, tudo é igual...Os homem... os


homem daqui, acabou-se, os homem saíram" [Seu Severino Estácio,
75 anos, agricultor, aposentado].

"Aqui o lugar é fraco. Não tem movimento nenhum... não tem servi-
ço. Os serviço que tem é tudo uns serviços matador... trabalho ma-
tador" [Manuel Estácio, 38 anos, agricultor e comerciante].

Mas o que chamava mais a atenção era o movimento migratório da


população mais jovem em direção à cidade de São Paulo. Em todas
as residências, existe a história de um ou mais membros da família
que moravam no povoado e que deixaram o lugar. O imaginário da
população encontrava-se impregnado da imagem de um "Sul Maravi-
lha", tão divulgada pelos meios de comunicação e pelos cientistas
sociais de que o "Sul", São Paulo, "não pode parar"; "São Paulo é a
capital do trabalho"; São Paulo, é [era] "a máquina dos possíveis".
Paralelamente, essa crença no "Sul Maravilha" era reiterada por meio

58
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

de cartas, telefonemas, envio de ajuda em dinheiro para os familiares


do povoado. A associação entre "Sul Maravilha", trabalho e consumo
faz explodir o imaginário de outros possíveis, numa invasão da imagi-
nação nos quatro cantos do povoado. O imaginário saía, então, de
um contexto maior, cultivado pelas histórias que circulavam, associa-
va-se a um contexto particular de sonhos, ilusões e símbolos de ter
uma vida melhor, de superar o destino do "serviço matador", do servi-
ço com a enxada, e irrompia no terreno das coisas concretas pelo
mbvimento de saída, de preparação para viver essa idéia propagada,
que se presumia possível.

"... Porque lá é muito bom... viver lá é duro... mas é bom. Aqui não
tem... aqui, você não tem nada na vida. Agora você pode dizer as-
sim: 'Essa só pensa em São Paulo'. Mas... em São Paulo? Porque
lá é bem melhor do que aqui. Você queria ficar aqui? Num lugar
parado, só vendo o tempo passar... sem ter em que trabalhar... Aqui
quando vai trabalhar, é a semana inteira arrancando mato... mato
assim, olhe! Esse mato assim... pra ganhar quinze real por semana,
quando ganha, não é, mãe?..." [ Zuleide, 22 anos, empregada do-
méstica. Já viajou três vezes para São Paulo].

Os jovens desempregados no campo, pertencentes àquelas famíli-


as do povoado que não têm quaisquer bens próprios, têm a sua
situação agravada e são os mais vulneráveis à decisão de sair do
lugar. As famílias excluídas de ter quaisquer "bens de raiz", aqueles
que Martins caracteriza como "os que dão sentido ao trabalho do
homem do campo" (Martins, 1997: 68), no caso, a terra, apenas as
acompanham aqueles "bens residuais" e "cotidianos", "apetrechos
de sobrevivência". Deixam ver nas visões de fracasso, com respeito
ao lugar, um confronto sutil de base histórica, em que são revela-
das, por meio de suas percepções, as contradições do capital no
campo: "A gente morre logo... porque não se alimenta direito... e
trabalha muito"; a falta de trabalho é porque "os ricos ficam com os
terrenos parados demais. A terra precisa de movimento..." para ge-
rar trabalho. No confronto de uma frase com outra, sutilmente é en-
contrada a negação da realidade e a geração de um possível, no
caso, percebido pelo desejo de sair.

59
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

Os que vão e voltam, ou que ficam no* trânsito entre ir e vir, trazem
impressões marcantes acerca dessa terra distante, que servem de
meios comparativos na medição das condições práticas para crer,
pensar e lidar com a possibilidade de sair, com os medos da dor do
desenraizamento.

"Lá não deu pra mim, não... Aqui teu achando melhor na minha agri-
cultura. Achei tudo muito diferente. O sistema de falar daqui pra lá...
é diferente. Logo, primeiramente achei logo isso aí, fora do meu
sistema de falar daqui. Eu ia pedir lá, qualquer coisa, eu tinha que
fazer a vez de mudo... Eu ia pedir, eles diziam: 'O que você está
pedindo?' [Fala em tom forte]. Eu apontava com os dedos..." (Santo,
47 anos, agricultor. Ficou cinco anos no Rio de Janeiro).

"São Paulo é um desmantelo de cidade! Que faz o cabra ficar nervo-


so" (Severino, 25 anos, pedreiro, agricultor. Viajou duas vezes para
São Paulo).

No povoado, os diversos grupos de trabalhadores considerados agri-


cultores, ou ligados ao trabalho do campo, não tiveram chance de aper-
feiçoar habilidades. Eles costumam enfatizar que na região "não existe
ninguém pra ensinar nada". O que sabem ou fazem, dizem ter aprendi-
do de forma espontânea, sem disciplina, que eles classificam de "adoi-
dado". O ato de sair é uma tentativa de mudar o destino reservado à
sua condição de agricultores sem terra e sem qualquer qualificação,
presos a um circuito de vida de pouca variação e dinamismo.
O repertório de imagens de frustrações encontradas nos discursos das
pessoas do povoado vai dando, então, lugar à fantasia de que pode
haver um outro lugar melhor. As notícias de que alguém se deu bem
em São Paulo ajudam a criar no imaginário das pessoas a imagem de
São Paulo como o lugar dos possíveis, onde sonhos são projetados. A
expectativa é firmada pela imagem daqueles que conseguiram fixar-se
em São Paulo e se deram bem, arranjaram emprego, conseguiram tra-
balho e desenvolveram uma profissão mais especializada.
As conversas sobre São Paulo, que são constantes, com a telefonis-
ta sempre trazendo notícias diárias a respeito dos parentes distan-

50
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

tes, enchem os corações e as esperanças daqueles que ficam. É um


dinheiro que vai chegar, são notícias sobre quem vai retornar, quem
vai embora, quem arranjou trabalho... Todo esse vozerio influencia os
sonhos e a imaginação das crianças e adolescentes e dos jovens
trabalhadores, que observam o sofrimento e o ritmo de vida dos seus
parentes e vizinhos e passam também a sonhar em ir embora. Lá,
pensam, terão trabalho, comida todo dia, roupa, diversão.
As imagens de "cansaço", "velhice", "falta de energia", "lugar para-
do", "enxada", "arrancar mato", "fome", entram em contraste com
outras produções de imagens, como "ter uma profissão", "ganhar
dinheiro", "ter diversão", "ter roupa diferente", etc., e operam nas
motivações em direção a um futuro diferente para quem se aventura
a sair. Essas novas imagens operam na produção de visões de futu-
ro, nos sonhos coletivos e individuais.
Muitos dos que migraram de São Severino para São Paulo fizeram-
no sem intermediação com outros centros urbanos maiores, além
da sede do município de Gravatá. Então, por meio dessas imagens,
cada um vai montando a caricatura de uma realidade que imagina
existir. A base dessa construção parte, principalmente, da leitura
ambígua das representações veiculadas por outros, numa fusão com
as crenças sobre os horizontes imaginados além dos limites do po-
voado, horizontes que vão sendo continuamente corrigidos e modi-
ficados, mobilizando lembranças e experiências. Realidade e ilu-
sões misturam-se estreitamente à tentativa de uma representação
que está em conexão com outras, para falar de algo que os toca. E,
muitas vezes, o que os toca é a possibilidade de um distanciamento
do lugar de origem, permitindo ressignificar o mundo subjetivo des-
figurado pelas limitações da pobreza, que se cruza com a expecta-
tiva de um espaço para trabalhar e viver melhor.

"...a gente pensa que só existe aquele lugar, que não existe mais
outro. A gente pensa que a gente saindo dali, a gente está perdida,
mas não é assim. Cada vez que você sai dali, você está se movi-
mentando mais, você está vendo as coisas de outro jeito, da manei-
ra e de outro jeito, você está vendo que o lugar ali não é só ali.
Então, quando eu morava lá, eu dizia: "Ai, meu Deus, se eu sair
daqui um dia eu sei que fico perdida". Mas não é assim... com a

61
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

gente, em tudo na vida, em tudo. Você se liberta, você é libertada...


saindo daqui pra qualquer lugar, vou sem medo. O medo que eu
tinha lá, quando eu morava lá, pra mim não existe, acabou..." [Lúcia
Ferreira de Melo, 31 anos, casada, quatro filhos, dona de casa e
comerciante. Migrante há quinze anos em São Paulo].

No depoimento acima, percebemos como essa migrante elabora suas


perdas do lugar de origem e as supera, organizando-se e desco-
brindo novas possibilidades de fazer as coisas, ampliando perspec-
tivas de crescimento para si, revisando suas táticas antigas para
lidar com diferentes situações. O migrante nordestino vindo do cam-
po, para transpor os obstáculos que o impedem de viver no solo
urbano de uma metrópole como São Paulo, necessita de determi-
nação, tenacidade e vontade firme de vencer.

"Pra gente conseguir alguma coisa, tem que trabalhar muito... eu


não posso pensar hoje e amanhã. Não. É todo dia, naquela mesma
hora... você dizendo: "aquilo ali eu quero!" [Sueli, 33 anos, dez anos
como migrante em São Paulo].

Essas qualidades são descobertas e atualizadas no próprio contato


com as dificuldades, aproveitando-se as oportunidades que surgem
entre uma situação e outra, capitalizando vantagens por atalhos,
aproveitando as ocasiões para agir. Ele precisa adaptar suas "manei-
ras de fazer" — de caminhar, de produzir a fala, etc. O novo sistema
social intervém, regulando as ações num primeiro nível, isto é, o
migrante vai acomodando-se às novas regras, conhecendo um rol de
experiências novas que exigem a leitura de códigos da cidade e da
sociedade. Ele procura nas experiências de êxito e fracasso dos seus
conterrâneos orientação para compreender esse novo ambiente es-
tranho. Mas o migrante vai introduzindo aí uma maneira de tirar par-
tido do sistema, por meio de outras regras, o que constitui um segun-
do nível imbricado no primeiro (De Certeau, 1997: 92). Eles vão cri-
ando e recriando situações dentro de suas próprias referências, num
ato de fazer e refazer constante, reelaborando respostas para en-
frentarem as novas situações que surgem. Alguns c o n s e g u e m
reapropriar-se dos espaços e dos objetos por meio das fendas deixa-

62
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

das pelo mercado, por exemplo, criando, mediante táticas extraídas


de suas práticas culturais, formas de sobreviver, de mover-se, outros
usam suas táticas para conservar suas tradições ou para escapar ao
não-conformismo, inventando dentro delas saídas possíveis.
As condições externas influenciam substancialmente nas condições
internas para o migrante enfrentar a migração. O migrante de São
Severino prefere ir para Pirituba, porque lá se encontra estruturada
uma forte rede de solidariedade de parentes e amigos para recebê-
lo, sem a qual a vida em São Paulo seria penosa e difícil de se
sustentar. Contar com a cooperação do grupo de amigos e parentes
significa dispor de um mecanismo de segurança fundamental para
viver como grupo em terra não-conhecida.

"...Eu sofri muito aqui... Quando eu cheguei aqui falavam que nor-
destino não prestava morar aqui em São Paulo, não. Falavam...
quando vêm lá do Norte, não têm coragem de trabalhar... vai roubar.
Falavam muito pra mim. Aí, eu dizia: "Eita! Aqui é fogo mesmo!". Em
todo lugar que eu ia, falavam: 'Nordestino não tem coragem de tra-
balhar, vai é roubar aqui'... A conversa do paulista... você conversa
com ele, ele só quer botar você pra trás, não quer botar pra frente,
só pra trás, na conversa, né? A conversa dele é: 'O que é que você
veio fazer aqui? Você já veio do Norte passando fome, o que é que
você veio fazer aqui? Vai morrer lá na sua terra, não venha morrer
aqui, não!' Eles querem botar os outro pra trás. Aí, o cara novato vai
na conversa dele, aí, termina voltando... Agora, nessa região por
aqui é tudo do Piauí, Paraíba, Pernambuco, Bahia, Ceará... A gente
conversa muito... Pra mim é mesmo que tá na casa da minha mãe e
meu pai... O cara aqui tem que trabalhar e trabalhar com cabeça.
Dinheiro a gente sua pra ganhar... um dinheiro... Aprendi a fazer de
tudo aqui... tenho amizade com o pessoal do sindicato... com cole-
gas de firmas...Falo com a polícia., com bandido... Eu moro há mais
de quinze ano aqui, conheço todo mundo e não tenho intrigado. Tem
que saber viver" [José Ferreira de Melo, "Neguinho", 35 anos, casa-
do, metalúrgico, há quinze anos em São Paulo].

O depoimento acima deixa perceber a dor do desenraizamento com-


partilhada entre parceiros migrantes de diversos povos da região Nor-

53
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

deste, na sua tentativa de superação das inúmeras barreiras para


fixar-se em terra estranha. Deixa perceber ainda o ser "in-between",
isto é, "tendo que viver na terra dos outros; entre eles e com eles, só
se pode viver, mais ou menos aberta e profundamente, um pouco à
sua maneira, em quase todas as esferas da existência" (Sayad, 2000:
19). E, como revela o depoimento acima, o migrante parece reafirmar
que, apesar de tudo, se é fiel a si mesmo, às suas origens, procuran-
do conservar entre os seus pares a identidade de sua cultura, em um
contexto que parece levar, ao contrário, a rupturas.
Na metrópole paulista, o encontro com diferentes mundos de riqueza e
pobreza, com o mercado de trabalho urbano diversificado, o consumo
e as novas exigências e regras de conveniência, pressiona o migrante
do interior para que ele reestruture seu modo de pensar a vida e o
trabalho, racionalizando as possíveis vantagens que venha a obter ao
entrar na nova realidade urbana. A passagem de uma ocupação agrí-
cola para uma urbana é pensada como uma possibilidade de ascender
socialmente. Contudo, há uma diferença entre as condições encontra-
das pelo migrante mais antigo em relação aos migrantes mais novos.
Os migrantes mais antigos, que superaram uma seleção rigorosa para
se fixarem, tiveram uma conjuntura favorável quanto ao mercado de
trabalho, moradia, comparados com os migrantes mais recentes, que
vêem fechadas as portas para se engajarem em ocupações não-quali-
ficadas. Encontramos, então, uma diferença entre a migração daque-
les que ajudaram a construir a cidade de São Paulo, em relação aos
novos migrantes que lutam por um espaço na capital paulista.
O salto da lavoura para o trabalho urbano produz basicamente um
olhar para fora, um olhar de "sonhos de posse" (Fanon, 1979), so-
nhos estimulados pela associação entre "Sul Maravilha" e trabalho,
pois trabalho significa, nesse mesmo contexto, "segurança". Entre-
tanto, a realização desses "sonhos de posse" muda quanto à questão
da globalização e da crise financeira do país, refletida já na migração
de retorno e na dificuldade dos novos migrantes de São Severino de
se instalarem em São Paulo, onde, ao longo do tempo, avolumam-se
com outros povos às margens de uma sociedade excludente e alta-
mente dividida pela dicotomização da riqueza e da pobreza.
A sociedade brasileira, ao enfatizar os sonhos de um bem-estar
material a todo custo comparados aos países do Primeiro Mundo,

64
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

produz a ilusão, nos indivíduos, de que o destino está concebido


por ele próprio. A solidariedade e a reciprocidade passam a fazer
parte do passado, pois o importante é ser tecnicamente eficiente e
esperto. Ter vontade e realizá-la, ser senhor da vontade, induz a
classe dominante a desenvolver um amor narcísico por si e o res-
peito por seus pares e iguais, e o desprezo e a intolerância pelos
desiguais, pelos diferentes. Mas essa confiança no mercado come-
ça a ficar insustentável, trazendo consigo um vazio de propósitos.
Cenas de violência atingem toda a sociedade e despertam uma
guerra sem fundamentação ideológica, vazia de legitimidade, como
chama a atenção Enzensberger (1995).

Dentro desse clima de desconfiança e falta de propósitos coletivos,


surge o drama de conviver com o diferente, com o outro que não é
referido como um sujeito igual a um de nós, mas sim como outra
coisa que deve ser eliminada (Todorov, 1993). Algumas "tribos" ur-
banas, como os grupos de skinhead, são o exemplo mais radical da
manifestação desses ressentimentos represados contra o diferen-
te, à medida que propõem uma limpeza étnica, tendo como base um
discurso próximo da ideologia fascista. Seus protagonistas são ge-
ralmente jovens, que desprezam a integração cultural e cultuam a
violência. Portanto, uma violência que tem alvos específicos: os ne-
gros, os judeus, os índios e os nordestinos.
Nessas circunstâncias, a população trabalhadora, na qual o migrante
se encontra, percebe que não há como confiar no próximo, quando
assiste a sua geração enfrentar diariamente a morte, uma situação
de guerra civil molecular, que é traduzida pelo líder do movimento
hip hop, Mano Brown: "A minha geração, a grande maioria morre.
Sou um sobrevivente!". Outro integrante do Grupo Rappa, Marcelo
Yuka, proclama sua indignação contra a exclusão social, ao
esbravejar aos quatro cantos a realidade dos negros brasileiros, ao
dizer que: "Todo camburão tem um pouco de navio negreiro."

Essa intolerância parece ser gestada dentro de cada um de nós,


como uma forma de compensar a própria impotência e é, também,
uma resposta ao cerco da modernização, que ameaça retirar os
poucos benefícios de grupos ameaçados como, por exemplo, a pos-
sibilidade de emprego na cidade.

65
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

Essas travessias impõem aos migrantes nordestinos uma nova per-


cepção dos vários contextos de sua exclusão no solo urbano, por
entre os quais, eles procuram ajustar-se, adaptando suas práticas
às novas conjunturas, tentando experimentar ser outro num univer-
so de inúmeras diferenciações, onde a experiência do criar e inven-
tar as situações preenche e estrutura o desejo de sobreviver.

Resumo: Este trabalho buscou ressignificar os movimentos migrató-


rios que estão presentes na História do Brasil, sob o ponto de vista do
migrante. Centrou-se a análise nos movimentos de trabalhadores
nordestinos que se dirigiram para a Amazônia durante a Segunda
Guerra Mundial, e a São Paulo nas décadas de 1980 e 1990. Em am-
bos os momentos, privilegiou-se a discussão dos processos subjetivos
que os migrantes enfrentaram para estabelecer novas territorialidades,
bem como o desenraizamento decorrente da migração.

Palavras-chave: migração interna; desenraizamento.

A b s t r a c t : The purpose of this work is to reassess migrancy


displacements in Brazilian history according to the migranfs point of
view. Special attention has been given on the displacements of
northeastern workers bound to the Amazon region during World War
II, and to São Paulo, in the 80's and 90's. In both cases, emphasis
was placed on the subjective processes that migrants had to face in
order to establish new territorialities, as well as unrooting resulting
from migration.

Key words: internai migration; unrooting.

56
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

bibliografia
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Munis. "Paraíbas e Bahianos. Órfãos
do Campo, Filhos Legítimos da Cidade". Travessia, ano 3, 8, p. 27-
32, 1990.
ALEGRE, Sylvia Porto. "Fome de Braços - Questão Nacional. Notas sobre
o Trabalho Livre no Nordeste do Século XIX". Cadernos do Centro de
Estudos Rurais e Urbanos, n° 2, p. 67-91, 1991.
ALVIM, Zuleika M. F. Brava Gente! Os itaiianos em São Pauio. São Paulo:
Brasiliense, 1986.
ARAÚJO, Tânia Bacelar de. "Herança de Diferenciação e Futuro de
Fragmentação". Estudos Avançados. Dossiê Nordeste, vol. 11, n° 29, p.
07-36, 1997.
BENJAMIN, Walter. "Sobre o Conceito de História". In Obras Escoiiiidas !.
São Paulo: Brasiliense, 1985.
BOSI, Alfredo. Diaiética da Colonização. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 1992.
CANCLINI, Néstor Garcia. Cuituras IHibridas. Estratégias para Entrar e Sair
da l\/íodernidade. São Paulo: Edusp, 1998.
CARNEIRO, Edson. O Quilombo dos Paimares. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1958.
CAVALCANTI, Helenilda. imaginário Sociai e Práticas de Saida da Pobre-
za: O Povoado de São Severino "dos i\/1acacos". São Paulo: Tese de
doutorado em Psicologia Social na USP, 1999.
CERTEAU, Michel de. A invenção do Cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994.
CLASTRES, Hélène. Terra sem i\/lai. São Paulo: Brasiliense, 1978.
CUNHA, Euclides da. Um Paraiso Perdido. Rio de Janeiro: José Olympio,
1994.
DURHAM, Eunice R. A Caminiio da Cidade. São Paulo: Perspectiva, 1978.
ENZENSBERGER, Hans Magnus. Guerra Civii São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Bra-
sileira, 1979.
FOUCAULT, Michel. "A Governamentalidade". In i\/licrofisica do Poder Rio
de Janeiro: Graal, 1984.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzaia. Rio de Janeiro: José Olympio,
1985.
GOLDSMITH, William W. "São Paulo, Cidade Mundial: Indústria, Miséria e
Resistência". In KOWARICK, Lúcio (org.). São Pauio Passado e Pre-
sente: As Lutas Sociais e a Cidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

57
cavalcanti, helenilda e guilien, isabel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 35-68, 2001

GRAMAM, Douglas H. e HOLLANDA FILHO, Sérgio Buarque de. Migrações


Internas no BrasH. São Paulo: IPEA-USP, 1984.
GREENFIELD, Gerald Michael. O Comportamento dos Migrantes e as Ati-
tudes das Elites durante a Grande Seca de 1877-1878. Cadernos de
Estudos Sociais, vol. 5, n° 2, p. 219-240, 1989.
GUILLEN, Isabel Cristina Martins. Errantes da Seiva. Histórias da i\/ligração
Nordestina para a Amazônia. Campinas: Tese de doutorado em Histó-
ria, UNICAMP, 1999.
GUIMARÃES, Leonardo, introdução à Formação Econômica do Nordeste:
da Articuiação Comerciai à integração Produtiva. Recife: Massangana,
1989.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraiso. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1969.
. Raizes do Brasii Rio de Janeiro: José
Olympio, 1993.
LEROY, Jean Pierre. Uma Ciiama na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1991.
MARTINS, José de Souza. O Cativeiro da Terra. São Paulo: Livraria Editora
Ciências Humanas, 1979.
____. Fronteira. A Degradação do Outro nos Confins
do i-iumano. São Paulo: Hucitec, 1997.
NEVES, Frederico de Castro. "A Seca e o Homem. Políticas Antimigratórias
no Ceará". Travessia, vol. 9, n° 25, p. 18-24, 1996.
PÓVOA NETO, Helion. "A Produção de um Estigma: Nordeste e Nordesti-
no no Brasil". Travessia, vol. 7, n° 19, p. 20-22, 1994.
RAMOS, Artur. AAcuituração Negra no Brasii. São Paulo: Companhia Edi-
tora Nacional, 1942.
REIS, João José e GOMES, FIávio dos Santos. Liberdade por um Fio. Histó-
ria dos Quiiombos no Brasii São Paulo: Companhia das Letras: 1996.
SAYAD, Abdelmalek. "O Retorno: Elemento Constitutivo da Condição do
Imigrante". Travessia. Ano 12, número especial, 2000.
SOUZA DE, Itamar. l\/ligrações internas no Brasii. Petrópolis: Vozes, 1980.
THOMPSON, E. P Costumes em Comum. Estudos sobre a Cuitura Popu-
iar Tradicionai. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
TODOROV, Tzvetan. Nós e os Outros. A Reflexão Francesa sobre a Diver-
sidade i-iumana. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1993.
WARREN, Use Scherer e KRISCHKE, Paulo J. (orgs.). Uma Revoiução no
Cotidiano? Os Novos l\/lovimentos Sociais na América do Sui São Paulo:
Brasiliense.

68
lobato, ana lucia - usp, n° 7, pág. 69-81, 2001

como era gostoso o meu fíancês um marco na


representação do indio no longa-metragem de ficção

Ana Lucia Lobato

O índio tem estado presente na tela desde os primórdios do cinema


brasileiro. Momentos em que é abordado amiúde se alternam com
outros em que fica ausente da cena, por vezes até por uma década.
Durante um longo período dessa história, que já vai a mais de cem
anos, a imagem do índio no longa-metragem brasileiro de ficção se
manteve inalterada no seu cerne; uma mudança significativa só irá
ocorrer na década de 1970. Meu foco, neste artigo, será Como Era
Gostoso o Meu Francês, o filme da virada, mas, antes, a fim de
clarear as inovações por ele trazidas, faz-se necessário traçar um
rápido perfil da produção que o antecedeu.
As grandes estrelas indígenas do cinema ficcional brasileiro foram, por
vários anos, as personagens de José de Alencar, expoente da vertente
indianista da literatura brasileira. Do momento em que nosso cinema
se inicia até 1971, ano em que foi produzido O Meu Francês, foram
realizados 15 filmes de longa-metragem que tomaram o índio como
tema, dos quais nove se basearam na obra de José de Alencar, sobre-
tudo Iracema e O Guarani, o que significa mais da metade da produção
em questão. A profusão de filmes baseados nesses dois romances é
um indicativo de seu papel de destaque no imaginário nacional. José
de Alencar, na verdade, significa muito mais do que um grande escri-
tor, constituindo-se num dos ideólogos da nacionalidade brasileira. Os
filmes baseados nesse autor, realizados até o final da década de 1940,
não sobreviveram até os nossos dias. Apesar de termos apenas algu-

59
lobato, ana lucia - usp, n° 7, pág. 70-81, 2001

mas notícias sobre essa produção, sua importância para o tema em


tela nos leva à obra de José de Alencar.
O que está em questão em torno dos pares românticos de O Guarani
— o índio Goitacá Peri e Cecília, filha de fidalgos portugueses — e
Iracema — a índia Tabajara Iracema e o fidalgo português Martim
Soares Moreno — é a constituição da nação. O indianismo de José
de Alencar vai desempenhar um papel fundamental na construção
da identidade brasileira, exigência gerada pela ruptura da colônia
com a metrópole. Os índios têm um papel fundamental na moldagem
da brasilidade e, embora, como argumenta Alfredo Bosi, fosse ra-
zoável que ele ocupasse, no imaginário pós-colonial, o papel de
rebelde, já que era o habitante originário do território invadido pelo
colonizador, o índio de José de Alencar entra em íntima comunhão
com o colonizador (Bosi, 1992: 177). Peri e Iracema fazem parte
daquele grupo de índios, colocados na categoria de "índios bons";
eles sucumbem de paixão por brancos — sentimento estranho ao
seu universo^ —, colocando-se à mercê dos mesmos, numa condi-
^ Eduardo Viveiros de Castro e
ção que Machado de Assis, em artigo a respeito de Iracema, lança-
Ricardo B. de Araújo (1977)
analisam o amor romântico, do por ocasião de sua publicação, descreveu como uma espécie de
mostrando que esse sentimen- servidão voluntária, uma "doce escravidão" (Machado de Assis, apud
to é uma construção própria de Bosi, 1992: 179). O comentário feito a respeito da personagem de
um determinado tipo de socie-
Iracema vale para Peri, seu equivalente do sexo masculino.
dade e surge num contexto
bem específico, o da socieda- Peri abandona sua gente a fim de servir Ceei, aprende a falar português,
de ocidental moderna. torna-se cristão para poder salvar sua adorada senhora. Iracema che-
ga mesmo a se voltar contra seu povo para proteger e se unir a Martim,
inimigo dos Tabajara. Peri é a representação do bom selvagem; ele é
forte, altivo, belo, livre, nobre, fala português. Na verdade, suas quali-
dades positivas pertencem ao mundo civilizado, sua força e coragem
reproduzem os valores medievais dos romances de cavalaria (Ortiz,
1988:265). Este é o índio que entra em comunhão com o colonizador e
que vai constituir a nação brasileira; a união de Peri e Ceei na floresta,
que gera a brasilidade, simboliza o cruzamento de uma determinada
cultura com uma natureza domesticada (Ortiz, 1988: 262).
Não se fala em violência do colonizador face às populações indíge-
nas que habitavam o Novo Mundo. Afinal, como lembra Bosi (1992:
179-180), a prosa de Alencar não é uma crônica realista, não tendo,
por conseguinte, nenhuma preocupação com a verossimilhança: ela

59
lobato, ana lucia - usp, n° 7, pág. 71-81, 2001

tece o mito. Os conflitos entre o colonizador e os índios são atribu-


ídos à ferocidade de alguns povos indígenas, ferocidade essa reco-
nhecida por Peri^ e Iracema.
^ Enquanto Peri é tido como um
Parafraseando um dito que se popularizou na cultura brasileira, Peri homem valoroso, os Aimoré são
e Iracema são "índios de alma branca": seu encontro com o coloni- descritos como selvagens, bár-
baros, sinistros, obcecados pela
zador só é possível porque eles têm consciência de sua inferiorida-
idéia da vingança, "único princí-
de e respeitam a hierarquia quando se unem ao branco. Conside- pio de direito e justiça que reco-
rando que estamos sob a égide do conceito de raça, Peri e Iracema, nheciam". O próprio Peri afirma
não podendo "branquear" o corpo, se dispõem a uma espécie de que "conhecia a ferocidade des-
"branqueamento cultural" e "com isso" se habilitam à união com o se povo sem pátria e sem reli-
gião, que se alimentava de car-
colonizador, contribuindo para a formação de uma nação mestiça,
ne humana e vivia como feras,
que se quer cada dia mais branca. no chão e pelas grutas e caver-
nas..." (Alencar, 1997; 76).
O paradigma romântico mantém sua hegemonia durante grande parte
do século XX, permanecendo como substrato até mesmo das vi-
sões contidas nos filmes que não se constituem em versões de José
de Alencar, os quais, entretanto, não apresentam modificações subs-
tanciais. Destaco, dentre esses filmes, Descobrimento do Brasil
(1937), dirigido por Humberto Mauro, um de nossos maiores cine-
astas, que é uma encenação da fundação da nação, baseada na
carta de Pero Vaz de Caminha. Os índios se mostram inteiramente
afinados com o projeto do colonizador, bem como receptivos à
cristianização; tudo se passa como se os portugueses e os índios
fossem partícipes de um mesmo projeto, é como se estivessem à
espera do colonizador que chega para ensiná-los a se tornarem
adultos, uma civilização madura.
Casei-me com um Xavante, chanchada dirigida por Alfredo Palácios,
em 1957, é o único filme que de certa maneira valoriza a forma de
vida dos índios, retratada como tranqüila, harmônica, edênica, por
oposição à civilização com suas mazelas. Isso não impede, entre-
tanto, que os índios sejam ridicularizados por seu primitivismo, por
sua proximidade com o mundo animal.
Sintetizando o perfil do índio da ficção cinematográfica até o final
da década de 1960: antes de mais nada é um solo comum a idéia de
que os índios são seres selvagens, primitivos, ainda na infância da
humanidade; faz-se distinção entre o mau e o bom selvagem, sendo
que este último é aquele que assume uma condição de inferiorida-
de face ao branco, que se dispõe a abrir mão de sua cultura e ab-

59
lobato, ana lucia - usp, n° 7, pág. 72-81, 2001

sorver a cultura do colonizador, mantendo-se apenas como uma


raça distinta que contribui para a formação da nação.
Em nenhum dos filmes há preocupação em retratar grupos indíge-
nas específicos, em mostrar a diversidade das culturas indígenas,
mas sim falar do índio genérico. Mesmo quando são mencionados
determinados grupos indígenas, esse fato não passa de um efeito
de superfície, uma vez que o nome do grupo acaba reduzido a um
rótulo sem qualquer conteúdo. Não se recorre ao conhecimento sobre
o universo dos diversos povos indígenas brasileiros, acumulado pela
antropologia, e a caracterização dos índios, sejam Xavante ou
Nhambiquara, é completamente distanciada da realidade.
A idéia de que os índios são seres primitivos vai se cristalizando na
sociedade brasileira como um todo, e no ambiente cinematográfico:
Brasil Ano 2000 (1968), direção de Walter Lima Jr., vai acionar o
significante índio para dar corpo a um dos significados que o filme
quer trabalhar, a noção de primitivo, que se contrapõe à sua ques-
tão central: a modernidade. O índio não é o tema do filme, ele mais
uma vez é evocado em meio à discussão da identidade nacional.
Apropriando-se do significado "primitivo" impingido aos grupos indí-
genas, o filme constrói a teoria, segundo a qual esse dado endêmico,
renitente, é a fonte de todos os nossos males. Ser primitivo, quali-
dade atribuída aos índios, significa falta de avanço em termos da
tecnologia, critério usado pela visão "evolucionista" para distinguir
as sociedades civilizadas das primitivas, sendo que estas últimas,
em algum momento de sua trajetória, alcançariam o estágio da civi-
lização. Já a teoria elaborada pelo filme se mostra mais perversa,
pois considera o primitivismo algo que está no nível da essência,
impossível pois de ser superado.
O que prevalece até esse momento é a visão do colonizador, numa
palavra: os índios não têm voz na produção cinematográfica reali-
zada nesse período. É importante lembrar que nenhum dos longa-
metragens de ficção brasileiros, que tomaram o índio como tema,
foram realizados por cineastas indígenas, essa filmografia fala do
"outro". Não temos índios diretores de cinema no Brasil, eles se
constituem num grupo social que, até o presente momento, não teve
a possibilidade de se auto-representar cinematograficamente.

59
lobato, ana lucia - usp, n° 7, pág. 73-81, 2001

a virada
Como Era Gostoso o Meu Francês, dirigido por Nelson Pereira dos
Santos, em 1971, é o filme que rompe com o paradigma que se
sedimentara ao longo da historia do cinema brasileiro, representan-
do uma guinada no que diz respeito à representação do índio.
Diferentemente de Descobrimento do Brasil, o filme de Nelson Pe-
reira vai optar por um outro momento do encontro entre colonizador
e colonizado, onde o que está em pauta é o conflito e não a comu-
nhão. No século XV, um francês que se encontrava a serviço da
colonização é capturado pelos índios Tupinambá e transformado
em cativo. De acordo com os costumes do grupo, o cativo será
canibalizado, mas antes de sua execução se torna um de seus mem-
bros, recebe uma mulher, além de participar do trabalho, da guerra
e das atividades religiosas. Passadas oito luas, o Francês, mair, é
morto e canibalizado pelos Tupinambá.
A incursão pela história e pela antropologia e o mergulho no univer-
so cultural dos Tupinambá permite ao filme libertar-se dos precon-
ceitos e abordar a situação a partir da ótica dos Tupinambá. Nesse
sentido, O Meu Francês vai funcionar como um contraponto a cer-
tas formas de entender a realidade brasileira, a partir de esquemas
explicativos definidos a prion, como uma resposta à visão amarga e
sem saída de Brasil Ano 2000.
Ao contrário do que se passa na tradição alencariana, a índia
Tupinambá age em consonância com seus valores culturais, ela não
se assemelha a Peri e Iracema, que são uma espécie de vazio cul-
tural prontos a serem preenchidos pelos valores colonizados.
O Meu Francês, com a preocupação de remeter o espectador ao
interior da cultura Tupinambá, se baseou em ampla pesquisa
etnográfica, tendo como cenário uma aldeia Tupinambá reconstruída
de acordo com os registros existentes sobre aquele período, o mes-
mo acontecendo com o figurino, com a trilha sonora, de modo que a
música que se ouve no filme tomou como referência a música indí-
gena. Foram escolhidos, para representar o papel de índios, atores
morenos, com o tipo físico semelhante ao dos Tupinambá, que fo-
ram preparados, passando por um processo de "indianização": cor-
te de cabelo, depilação total do corpo e pintura com urucum, para
dar uma tonalidade avermelhada.

59
lobato, ana lucia - usp, n° 7, pág. 74-81, 2001

É O primeiro filme de ficção brasileiro a entrar em território indígena,


no sentido pleno da palavra. Nos domínios Tupinambá, a língua
que se fala é o tupi, sendo que a versão para essa língua indígena
ficou a cargo do cineasta Humberto Mauro, que dirigiu, como men-
cionei anteriormente. Descobrimento do Brasil, o primeiro longa-
metragem de ficção em que os índios se expressam através de uma
língua indígena. As implicações do uso do tupi nos dois filmes é
muito distinta. No caso de O Meu Francês, esse é um dado funda-
mental para a representação dos Tupinambá, já que o filme é falado
majoritariamente em tupi, e também em francês e português, utili-
zando-se de legenda.
Os índios Tupinambá não serão colonizados, é o Francês quem
passa por um processo de tupinização, aprendendo a viver de acor-
do com os costumes Tupinambá, participando de diversas ativida-
des como o trabalho na agricultura, aprendendo a usar arco e fle-
cha, chegando mesmo a perseguir, junto com um índio Tupinambá,
um português que passava nas proximidades da aldeia, atingindo-o
com sua flecha.

O Francês é despido, seja no sentido literal deste termo, passando


a andar nu como os índios, seja no que diz respeito a seus valores
culturais em geral, na forma de cortar o cabelo, de se enfeitar, de
falar, já que tem que aprender a língua dos Tupinambá para poder
se comunicar com o grupo. O espectador, ao lado do Francês, vai
sendo iniciado na vida cultural Tupinambá, através de cenas em
estilo documental, que nos dão a conhecer seus valores, sua lógica
interna, possibilitando questionar o perfil do índio traçado nas di-
v e r s a s c a r t e l a s q u e p o n t u a m o f i l m e , e n t r e e l a s o t e x t o de
Villegaignon inserido logo no início do filme e que comenta a res-
peito da França Antártica, região do Brasil onde os franceses tenta-
ram se instalar, o que segue:

"... O país é deserto e inculto, não há casas, nem tetos, nem quais-
quer acomodações de campanha, ao contrário, há muita gente arisca
e selvagem, sem nenhuma cortesia, muito diferente de nós em seu
costume e instrução, sem religião, nem conhecimento da honestida-
de, do justo e do injusto, verdadeiros animais com figura de homem."

59
lobato, ana lucia - usp, n° 7, pág. 75-81, 2001

Como Era Gostoso o Meu Francês não é inovador apenas no seu


aspecto semântico, mas também em sua sintaxe. Dirigido por Nel-
son Pereira, que fizera parte do Cinema Novo, o filme incorpora
uma série de conquistas do movimento que revolucionou o cinema
brasileiro em termos políticos e lingüísticos. Ele apresenta também
outras marcas, como fruto que é de um momento em que esse mo-
vimento cinematográfico já havia se desarticulado, e seus diretores
buscavam novos rumos, tentando responder à conjuntura política
que se instalara com o golpe militar e aos impasses colocados pelo
mercado. Esse fato contribui para distanciá-lo de Brasil Ano 2000,
que fora produzido no período final do Cinema Novo.
Para exemplificar suas estratégias lingüísticas^ remeto à seqüên-
Para uma análise mais deta-
cia de abertura, onde está inserido o texto de Villegaignon, mencio- lhada dos procedimentos lin-
nado acima, na qual o filme se utiliza do que Eisenstein (1983) cha- g ü í s t i c o s e e s t i l í s t i c o s de
mou de "montagem vertical", procedimento radicalizado pelo cine- Como Era Gostoso o Meu
ma moderno a partir de 1960, de modo que a voz do colonizador é Francês, remeto à minha tese
de doutorado defendida na Es-
confrontada a uma outra versão daquela situação que nos é trazida
cola de Comunicação e Artes
pela imagem. O narrador não desmente explicitamente a fala do da USP, no ano de 2000, que
locutor que dá as "últimas notícias da França Antártica", mas a colo- figura na bibliografia.
ca em xeque através do tom adotado, que parodia os discursos ofi-
ciais representados pelos cinejornais, veiculados antes da exibição
de longa-metragens durante 30 anos.
O filme, embora continue mantendo presente a voz do colonizador,
dá cada vez mais força á voz dos índios, perspectiva que vai ganhan-
do peso ao longo da narrativa. Assim, embora o filme trate das aven-
turas ou desventuras do Francês, ele o faz, predominantemente, a
partir do ponto de vista dos índios, visão mediada por sua relação
com Seboipep. O título é por demais sugestivo nesse sentido, pois
ainda que evoque a personagem do Francês, ele é objeto do senti-
mento de Seboipep, é ela quem fala, quem se reporta ao "seu Fran-
cês", informando-nos como se sente em relação a ele. As várias
acepções da palavra "comer" presentes no filme, dizendo respeito
tanto à deglutição propriamente dita como á relação sexual, são ex-
pressadas de forma magistral no título, que é um verdadeiro achado.
A fim de incorporar em sua retórica o seu conteúdo, indo além do
mero argumentar em prol da cultura Tupinambá, O Meu Francês se
utiliza do que Pasolini chamou de "subjetiva indireta livre", a trans-

59
lobato, ana lucia - usp, n° 7, pág. 76-81, 2001

posição para o cinema do que na teoria do romance se denomina "dis-


curso indireto livre", situação em que não há uma clara distinção entre
a visão do narrador externo e a da personagem; sua vivência, sua
maneira de dizer as coisas, de sentir e de perceber o mundo acaba
impregnando o discurso do narrador. A subjetivação é alcançada, não
através do ponto de vista ótico da personagem, mas da mise-en-scène,
do comportamento idiossincrático da câmera, da montagem, recursos
usados pelos cineastas modernos, gerando o que Pasolini chamou de
"cinema de poesia" (Pasolini, 1976). Esse recurso estilístico é utilizado
de forma plena em uma das seqüências mais belas do filme, em que
Seboipep conduz o Francês no ensaio de sua morte^.
Essa seqüência foi analisada
em artigo publicado na revista Tal estratégia narrativa contribui para que o espectador seja trazido
Cinemais 7, constante da para o interior da cultura Tupinambá, que se reconheça nos
bibliografia.
Tupinambá, sentindo-se como um deles, como parte daquela situa-
ção (Avellar, 1986: 159). O filme seduz o espectador para o univer-
so Tupinambá, o que ocorre mesmo na seqüência mencionada aci-
ma, em que o Francês vive um momento radical: se prepara para a
morte, seguida de devoração. A câmera explora a natureza exube-
rante da região, metaforizando a profunda integração daqueles ho-
mens com seu habitat; a intenção do narrador é explorar a
plasticidade da cena, tirar partido de sua beleza, à semelhança do
que ocorrera com o Francês, que se deixa, pouco a pouco, seduzir
por aquele local paradisíaco e por seus habitantes.
Nesse sentido, é importante refletir sobre o diálogo do filme com o
relato de Hans Staden, Viagem à Terra do Brasil, no qual se baseia o
roteiro. Em primeiro lugar, Nelson Pereira alterou a nacionalidade do
prisioneiro dos Tupinambá de alemão para francês. Quais as implica-
ções decorrentes de ser um integrante da cultura francesa, apesar de
considerado português por seus captores, que entra em contato com
os Tupinambá? O que teria significado tal alteração, no que diz res-
peito á representação dos Tupinambá? Os franceses, em razão de
sua participação direta no processo de colonização, criaram determi-
nados vínculos com esta parte do Novo Mundo e seus habitantes,
tendo deixado uma série de relatos preciosos sobre essa experiên-
cia. Tais fontes, como não poderia deixar de ser, foram de fundamen-
tal importância para a elaboração do filme de Nelson Pereira, entre
os quais se destacam os escritos de Abade Thevet e Jean de Léry.

59
lobato, ana lucia - usp, n° 7, pág. 77-81, 2001

Os viajantes franceses têm uma visão muito especial das terras re-
cém "descobertas", falando de uma terra de beleza, fertilidade e
alegria, cuja positividade, todavia, é ameaçada pela prática da an-
t r o p o f a g i a , ao m a r a v i l h o s o c o n t r a p o n d o - s e o real a s s u s t a d o r
(Perrone-Moisés, 1996:90). Jean de Léry mostra-se especialmente
fascinado por estes "alegres trópicos", declarando em Viagem à Terra
do Bras/l apreciar vários aspectos da cultura Tupinambá, como por
exemplo, sua fidelidade para com os amigos ou aliados, mencio-
nando mesmo o fato de só haver decidido retornar à França por
temor às represálias que poderia vir a sofrer da parte de Villegaignon,
que se opunha aos seguidores da reforma. Não fosse isso, teria
preferido permanecer entre os Tupinambá, que, em suas palavras,
viviam em situação muito mais apreciável que os franceses naquele
momento. O filme não só altera a nacionalidade do prisioneiro de
alemão para francês, como também retrata os Tupinambá aproxi-
mândo-se da visão dos viajantes franceses.
Enquanto os Tupinambá são retratados como um grupo social coe-
so, solidário com os seus membros, bem como fiéis a seus aliados,
os franceses, por sua vez, têm atitudes bastante questionáveis face
a seus conterrâneos. É o caso do velho comerciante que vai perio-
dicamente á aldeia Tupinambá a fim de negociar com os índios e
que age sem quaisquer escrúpulos, recusando-se a desfazer o equí-
voco quanto á nacionalidade do Francês, em razão de seus interes-
ses comerciais, já que pretendia se beneficiar da permanência do
Francês entre os índios.
O Francês, diferentemente de Hans Staden, que reclama das con-
dições em que vive, de estar nu, não se indispõe com a vida do
grupo e, á medida que o tempo passa, demonstra ter prazer na vida
que leva em meio aos Tupinambá, deixando de lado por algum tem-
po sua preocupação com a fuga. Embora em alguns momentos des-
taque aspectos de sua "cultura superior", ele se mostra bastante
envolvido com a cultura do grupo, bem adaptado á situação, não se
mostrando tão desejoso de partir. Os índios, apesar de o terem in-
corporado ao grupo, como marido de Seboipep, deixando-o bastan-
te á vontade, não permitem que esqueça sua condição de inimigo,
de cativo que possibilitará vingar a morte do ex-marido de Seboipep,
Tapiruçu, levada a cabo pelos portugueses.

59
lobato, ana lucia - usp, n° 7, pág. 78-81, 2001

Hans Staden atribui o fato de haver permanecido vivo por um longo


período, até ser resgatado por franceses, ao poder que dizia pos-
suir e com o qual amedrontava os índios, e que seria proveniente
de seu Deus. Em várias passagens de seu relato, conta que amea-
çava os índios com represálias que viriam de seu Deus Todo-Pode-
roso, caso os índios decidissem nnatá-lo. Em Como Era Gostoso o
Meu Francês, por outro lado, o fato de o prisioneiro ser mantido vivo
por um período de vários meses se deve tanto a razões culturais,
coisa que o próprio Hans Staden menciona em seu relato, quanto
ao fato de o Francês possuir um suprimento de pólvora e saber
utilizá-lo, o que interessava aos Tupinambá que conheciam o poder
destruidor do canhão, utilizado contra eles pelos portugueses e do
que também pretendiam se valer na guerra que travariam contra os
portugueses e seus aliados Tupiniquim. O Francês vai á guerra ao
lado dos Tupinambá. Finda a guerra, o chefe Cunhambebe declara
que seu prisioneiro está pronto para ser morto e canibalizado.

canibalismo: tema e metáfora


Um aspecto crucial do filme que merece destaque é o fato de, apesar
de ter como enredo uma situação de canibalismo, símbolo por exce-
lência da barbárie e primitivismo dos povos indígenas, o filme não cai
nesse lugar comum. Para isso contribuem tanto o roteiro, como as
estratégias narrativas mencionadas acima, que buscam fazer com
que o espectador vivencie um pouco do cotidiano Tupinambá, parti-
lhando sua vida alegre, colorida e prazerosa, como queria Jean de
Léry. O canibalismo Tupinambá, a que eram submetidos seus inimi-
gos, ganha outra dimensão quando confrontado á atitude do coloni-
zador que, como é lembrado em uma carteia que encerra o filme, vai
massacrar as populações tupi que habitavam a costa brasileira:

"Lá no mar pelejei, de maneira que nenhum Tupiniquim ficou vivo.


Estendidos ao longo da praia, rigidamente, os mortos ocuparam cerca
de uma légua. Mem de Sá, Governador Geral do Brasil, 1557."

A ironia é que a cultura Tupinambá, cuja instituição central era a


vingança, religião e motor da vida social, que permitia estabelecer a

59
lobato, ana lucia - usp, n° 7, pág. 79-81, 2001

relação entre passado e presente (Carneiro da Cunha e Viveiros de


Castro, 1985), foi exterminada, em menos de dois séculos, por uma
cultura que professa a religião do perdão.
A antropofagia, aspecto tão central da sociedade Tupinambá, além
de ser, muito apropriadamente, tema do filme, funciona como metáfo-
ra da relação entre colonizador e colonizado. Nesse sentido, é medi-
ada pela concepção trazida pelo Modernismo, que simboliza uma
reação da produção cultural brasileira, uma recusa a continuar colo-
nizada. Para isso, era preciso digerir a cultura do colonizador e, em
seguida, retrabalhá-la a partir de nossas referências culturais. A an-
tropofagia é uma resposta ao colonialismo cultural, sugerindo um outro
caminho, no qual é necessário "comer" a cultura do outro, para em
seguida devolvê-la com outra feição, com a marca da brasilidade.
O canibalismo Tupinambá é metáfora da resistência, do desejo de
manter sua cultura íntegra, enfim, da condição de vencedor e, por-
tanto, superior. Nesse contexto, ser "primitivo" é ser um forte, um
guerreiro, um vingador, é não abrir mão de seu ser, de sua identida-
de, é se recusar a ser engolido passivamente pelo outro, diluindo-
se nas entranhas do colonizador; o que é enfatizado é o desejo de
permanecer diferente, de não se tornar "o mesmo". A condição de
índio não tem o significado de "fantasma de origem" que se associa
ao atraso, á incompetência, ao insucesso como em Brasil Ano 2000,
mas remete a um momento glorioso, em que os Tupinambá viviam
felizes, altivos e belos, "comendo o inimigo como um jaguar"^
5 Hans Staden (1988: 132) re-
Como Era Gostoso o Meu Francês se constitui indiscutivelmente lata que certo dia estava ao lado
num marco no que diz respeito à representação dos índios pelo de Cunhambebe, enquanto este
comia um pedaço de carne hu-
cinema brasileiro. O filme polemiza a visão dos povos indígenas
mana de uns "mame-lucos" ini-
disseminada na sociedade e incorporada por nossa cinematografia, migos que haviam sido mortos,
sugerindo uma nova forma de pensar a relação entre índios e euro- e que estava em um cesto à sua
peus no início do processo de colonização e, por extensão, ao lon- frente. Diante do convite de Cu-
nhambebe para que comesse
go de nossa história. O filme fornece ao espectador informações
um pouco, Hans Staden per-
capazes de pelo menos embaralhar a visão corrente quanto á bar-
guntou-lhe se um homem de-
baridade e falta de lógica da ação dos índios, mostrando sua vida via devorar outro homem, ao
social, sua música, seus costumes, buscando envolvê-lo com a ló- que o chefe Tupinambá, dando
gica tribal, convidando-o a partilhar suas convicções guerreiras e antes uma mordida na perna
que comia, retrucou: "Sou um
sua forma harmoniosa e lúdica de inserção no meio ambiente exu-
jaguar. Está gostoso."
berante que era, nos idos do século XVI, a costa do Rio de Janeiro.

59
lobato, ana lucia - usp, n° 7, pág. 80-81, 2001

É O primeiro longa-metragem brasileiro de ficção que tem a preocupa-


ção de entrar no universo indígena, mais especificamente Tupinambá,
dando ao espectador elementos que lhe permitem entender a lógica e
as razões do "outro". A força do filme, no sentido de possibilitar essa
adesão ao ponto de vista dos Tupinambá, reside, em grande medida,
no trabalho do narrador, no modo como busca o envolvimento do es-
pectador através da retórica narrativa, onde se inscreve a lógica tribal.
Acredito mesmo que, quanto à imagem do índio no longa-metragem bra-
sileiro de ficção, se possa falar em "antes" e "depois" de Como Era Gos-
toso o Meu Francês. Enquanto Brasil Ano 2Ó00, ao se valer do significante
"índio" para conotar primitivismo, acaba reiterando a visão negativa de
nossa origem indígena, Como Era Gostoso o Meu Francês festeja nos-
sa ascendência Tupinambá. O filme recorre, para tratar da colonização,
a esse grupo indígena aguerrido, que, na verdade, não se deixou coloni-
zar. Em sua leitura da questão da identidade, O Meu Francês, afinado
com o Modernismo, se filia à linhagem Tupinambá e se apazigua com
nossa origem "primitiva". Ao contrário de Descobrimento do Brasil, que
reitera a primeira missa como ritual de fundação do país, e, á semelhan-
ça do Modernismo, que institui a canibalização do bispo Sardinha como
momento inaugural de um Brasil descolonizado, o filme de Nelson Perei-
ra confere à devoração de Jean, o Francês, um papel semelhante ao do
personagem histórico devorado pelos índios Caeté. O retorno á história
do contato entre os Tupinambá e o colonizador ilumina o presente, pos-
sibilitando que se vislumbre um futuro para o país.

Resumo: Este artigo tem como objetivo abordar as inovações


trazidas pelo filme Como Era Gostoso o Meu Francês (1971), dirigi-
do por Nelson Pereira dos Santos, no que diz respeito à representa-
ção do índio no longa-metragem brasileiro de ficção.

Palavras-chave: índios, representação, cinema, longa-metragem,


ficção.

Abstract: This article aims at dealing with the innovations presented by


the film Como Era Gostoso o Meu Francês (How Tasty Was My Littie

59
lobato, ana lucia - usp, n° 7, pág. 81-81, 2001

Frenchman), directed by Nelson Pereira dos Santos in 1971, in terms of


the portrayal of the indians in the Braziliann full-length fiction film.

Key words: indians, portrayal, cinema, full-length film, fiction.

bibliogrc^tia

ALENCAR, José de. O Guarani. São Paulo: Ática, 1997 [1857].


. Iracema. Porto Alegre: L&PM, 1997 [1865].
AVELLAR, José Carlos. "O Som do Silêncio". In O Cinema Diiacerado. Rio
de Janeiro: Alhambra, p. 158-179, 1986.
BOSI, Alfredo. Diaiética da Coionização. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 1992.
CASTRO, Eduardo Viveiros de e ARAÚJO, Ricardo B. "Romeu e Julieta e a
Origem do Estado". In VELHO, G. (org.). Arte e Sociedade. Rio de Ja-
neiro: Zahar Editores, 1977.
CUNHA, Manuela Carneiro da e CASTRO, Eduardo Viveiros de. "Vingança e
Temporalidade: os Tupinambás", Anuário Antropoiógico 85. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, p. 57-78, 1986.
EISENSTEIN. "Um Curso sobre o Tratamento". In: XAVIER, Ismail (org.).
Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal / Embrafilme, 1983.
LÉRY, Jean. Viagem à Terra do Brasii. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exérci-
to Editora, 1961 [1578].
LOBATO, Ana Lucia. "O Ponto de Vista em Como Era Gostoso o i\/ieu Fran-
cêé\ Cinemais, Rio de Janeiro, n° 7, set.-out., 153-173, 1997.
. índios da Teia: a Representação do índio no Longa-
i\/letragem Brasiieiro de Ficção. São Paulo: Tese de doutorado defendida
na ECA/USP, 2000.
ORTIZ, Renato. "O Q>uarani um Mito de Fundação da Brasilidade". SBPC,
Ciência e Cuitura, vol. 3, n° 40, mar., p. 261-269, 1988.
PASOLINI, Pier Paolo. "Le Cinéma de Poésie". In Uexpérience Héretique.
Paris: Payot, p. 15-35, 1976.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. "Alegres Trópicos: Gonneville, Thevet e Léry"
Revista da USR Dossiê Brasii dos Viajantes. São Paulo: USP, n° 30,
jun.-jul.-ag., p. 84-93, 1996.
STADEN, Hans. Duas Viagens ao Brasii. Belo Horizonte / São Paulo: Itatiaia /
Edusp, 1974 [1557].

59
V
* V
91 t *

^ i
• m ' m

II
coelho, coca rodrigues - usp, n° 7, pág. 82-83, 2001

depoimento de artista

Coca Rodriguez Coelho^


1 Artista plástica e pesquisado-
ra do NIME-USP.
Toda obra de arte é única.
Para que isto seja entendido, longe das de-
terminações que tem uma crítica, é interes-
sante expor o artista na forma de depoimen-
tos, sentindo-se assim um desdobrar das re-
lações internas da sua obra de arte. É quan-
do o espaço da obra passa a ser também o
s e u fazer. Um trabalho artístico que mostra
claramente o seu processo é o do artista plás-
tico Ubirajara Ribeiro. Em "Investigação so-
bre Procedimentos Técnicos para Pintura de
Folha de Taióba", vemos que o cotidiano foi
paralisado para ser contemplado. Tudo é cap- Nota: Na exposição "Segmen-
tado, tudo é incorporado, como um diário ínti- tos" na Galeria Múltipla em ju-
nho de 2001, foi apresentada
mo, um mapa individual (pedaços de papel,
uma série de pinturas, com
pinceladas, estudos de cor, de tinta, recortes este procedimento da obra,
de livros, letras, textos) com uma intenção cla- como um estudo, atrás das te-
ra: impor uma nova ordem, mas dentro de limi- ias, tais como: "Campos de cor

tes precisos, tanto na forma de apresentação, versão fvlonet e versão Goya",


e outras.
como na pintura e aquarelas impecáveis.

Depoimento do artista:
crédito da foto:
Horst Merkel
"Estas obras têm a ver conn a minha preo-
cupação atual. O artista de hoje se perdeu título da obra:
e está precisando se organizar para resol- Investigação sobre Procedi-
mentos Técnicos Para Pintura
ver o seu estado caótico. Como um paci-
de Folha de Taioba - 2000
ente ele tem que reaprender a pintar. Por
este motivo é interessante para mim regis- técnica:
Pintura. Colagem e As-
trar o procedimento de uma obra. Acho esta
sembíagem.
documentação muito importante, só assim
vai-se reconstruir o artista que se perdeu." dimensões: 69 x 136 cm.

83
W:

m
iff

\
t

Onze dias antes de sua morte, em cadeiras de rodas, participa de uma manifestação de protesto.
Frida Kahio
. - m l

m ^
•If *

CASA AZUL
Cozinha de Frida Kahio.
Coyoacan, México.
Auto - retrato com cabelo cortado. Óleo sobre tela 40 x 28 cm. 1940.
Coleção Museu de Arte Moderna. Nova Iorque, N. I.

Antonio Kolko. Frida em pijama chinês, 1948.


Frida e a cesárea (inconclusa). Óleo sobre tela 73 x 62 cm. 1931.
Coleção Museu Frida Kahio. México, D. F
r

K o - u o

- v o r

cZC

F
r
i
d
a

K
â i C O ' m c m o d j u a a -

slíJU
h
I A M o f i ^
o

Diário
auto-retrato íntimo
Auto - retrato. Carvão sobre papel 62 x 47 cm. 1932.
Coleção Museu Frida Kahio. México, D. F
amaral, lígia assumpção - usp, n° 7, pág. 84-118, 2001

frida kahio: personagem de si mesma*


* Este artigo corresponde a um

Lígia Assumpção Amaral recorte da pesquisa que resul-


tou em minha tese de Livre-
Instituto de Psicologia/USP Docência (AMARAL 1998).

"A angústia e a dor - o prazer e a morte, não são mais


que um processo de existir."

Frida Kalilo

Inicio explicitando o subtítulo: quero com ele dizer que o " c o r p o


dolorido" de Frida a faz — muitíssimas vezes em sua obra —
personagem de si mesma.
Mas antes compartilho o fato de que o ano de 1987 recém iniciara
quando, fascinada, entrei em contato com a obra de Frida Kahio, ao
receber de presente um livro sobre sua vida, de autoria de Hayden
Herrera, que descortinou-me o universo expressivo dessa grande
pintora mexicana. Acaso? Talvez.
Choque, fascínio, admiração, desconcerto, identificação, enigma...
Pobres são as palavras para descrever minhas sensações frente a
essa "descoberta". Por ela me apaixonei e sobre sua vida e sua
obra debrucei-me entusiasticamente, desde então. Hoje, ao ser con-
vidada a escrever um artigo, sinto-me sem saber o que selecionar
para compartilhar com o leitor em tão poucas páginas. São anos e
anos, livros e mais livros, revistas, reproduções, vídeos, visitas a
museus... embaralhando-se em minha mente e em minha casa.

O número da revista está dedicado à América Latina, e meu primei-


ro movimento é no sentido de situar Frida a partir de grandes ver-

91
amaral, lígia assumpção - usp, n° 7, pág. 84-118, 2001

tentes políticas e artísticas vigentes no México em que nasceu, vi-


veu e morreu. Mas, como sinto que ela não pode e não deve ser
pensada como uma simples ilustração de um contexto sociocultu-
ral, escolho (após muito tempo frente à folha em branco) privilegiar
um recorte de cunho biográfico. Todavia, mais do que sintetizar sua
vida-obra, desejo lançar, na alma do leitor, a semente do desejo de
melhor conhecer essa maravilhosa mulher.
fdiemos pois, de frida
Pensei, inicialmente, em apresentá-la através de alguns adjetivos
u t i l i z a d o s por s e u s b i ó g r a f o s : " f e m i n i s t a " , " a t i v i s t a política",
"mexicanista", "surrealista", "pioneira"...
Depois decidi compartilhar os títulos e subtítulos de alguns dos li-
vros que falam sobre a artista e que, de alguma forma, a nomeiam,
desde simplesmente "Frida" até "O pincel da angústia", passando
por "Mulher, ideologia e arte", "Fantasia de um corpo ferido", "Uma
vida aberta", "Dor e paixão"...
Seja por trás dos adjetivos, seja por trás dos títulos, o que se vislum-
bra é uma mulher plena de ambivalência: energia e fragilidade, en-
tusiasmo exaltado e dor, coragem e recuo, conquistas e retroces-
sos, altos e baixos, exposição e resguardo. E como pano de fundo,
por um lado, certa "impermeabilidade" a elogios e críticas e, por
outro, a constante presença da DOR.
De sua biografia alguns pontos se sobressaem: a ascendência mes-
clada; a deficiência precoce, o escamoteamento inicial e as calças
compridas; o acidente, a subseqüente limitação, a eleição pelas
vestes de tehuana\ as ligações e os rompimentos; a vivência de
traições; a busca incessante de amores; a entrega á Arte; a identifi-
cação com os marginalizados e com os dramas humanos; o cons-
tante rodear-se de pessoas, o "narcisismo"...
Com esse pano de fundo, convido-os a fazer comigo um breve per-
curso pela vida-obra de Frida Kahio, detendo-nos, especialmente,
na vivência e retratação da DOR e da SOLIDÃO.
Pontuo, antes, três frases que nos falam de "bastidores". Nas pala-
vras de Raquel Tibol (1985: 10):

* Esta citação e q s posteriores Nos quadros de Frida o óleo se mescla com o sangue de seu monó-
foram por mim traduzidas. lOQü i n t e r i o r . *

92
amaral, lígia assumpção - usp, n° 7, pág. 84-118, 2001

E:

Não é a tragédia o que preside a obra de Frida. Isso foi muito mal
entendido por muita gente. A treva de sua dor é apenas o fundo
aveludado para a luz maravilhosa de sua força biológica, sua sensu-
alidade, sua sensibilidade finíssima, sua inteligência esplendorosa.

Disse Diego de Rivera, conforme a autora citada.


Ou ainda, à pergunta: "Saòes que és bonita e por isso te pintas?",
formulada por Maria Monteforte Toledo, Frida respondeu:

Não. É que estou quase sempre só e me pareço com muita gente e


com muitas coisas.

um pouco de muita vida


De acordo com todas as biógrafas e estudiosas consultadas, a 6 de
julho de 1907 nasce Magdalena Carmen Frieda Kahio Calderon, na
"Casa Azul" da Rua de Londres, em Coyacan, cidade do México. É
a terceira filha de Matilde Calderón y Gonzáiez KahIo e Guillermo
(Wilhelm) KahIo — este em seu segundo casamento.
Frida porém insiste, durante toda sua vida, em afirmar que nasceu
em 1910, ano memorável na história mexicana. Por sua versão,
portanto, teria nascido com o espoucar dos tiros do movimento
zapatista (Zamora, 1987: 7) — veremos mais à frente o profundo
sentido dessa reivindicação, uma vez que, desde muito jovem, Frida
irá se ligar a ideários socialistas e de caráter libertário.
Matilde, sua mãe, nascida na cidade do México é, pelo lado mater-
no, descendente de um general espanhol e, pelo paterno, de nati-
vos mexicanos. Guillermo, o pai, nasceu em Baden-Baden, na Ale-
manha, filho de um casal de judeus húngaros que para lá emigra-
ram. Após a morte da mãe, Guillermo, aos dezenove anos, embarca
com destino ao México, ali se firma profissionalmente, como fotó-
grafo, ali se casa por duas vezes e ali vem a morrer.
Durante muitos anos, Frida grafa seu terceiro prenome com "e"
(Frieda), mas com o advento do nazismo, na década de 1930, deixa
de fazê-lo (Herrera, 1985: 22). A parcial ascendência alemã será
desde então causa de uma dentre suas inúmeras ambivalências.

93
amaral, lígia assumpção - usp, n° 7, pág. 84-118, 2001

Em sua obra de 1936 "Mis abue/os, mis padres y yd\ dispõe os


rostos dos avós maternos sobre uma paisagem montaniiosa e os
dos paternos flutuando sobre o oceano. Anos depois, na década de
1950, Frida faz outra versão de sua ascendência, que fica inacabada.
Na infância cursou os anos elementares na Escola Alemã, ali per-
manecendo até ingressar na Escola Preparatória.

"frida pata de paio": um corpo desconfortável


Em 1913, 1914 ou 1916 (os biógrafos divergem quanto à data), Frida
contrai poliomielite, ficando com ligeiro encurtamento e atrofia na perna
direita — que ela disfarça usando duas ou três meias, uma sobre a ou-
tra, para engrossar a parte mais delgada (Zamora, 1985: 11). Coxeia.
Em função disso, as crianças de Coyacan zombam dela. Para supe-
rar o sofrimento que essas zombarias lhe causam, Frida circula pe-
las ruas e jardins fazendo verdadeiras acrobacias em bicicleta ou
patins, conforme relatam algumas de suas biógrafas, como Raquel
Tibol (1985: 15).
A esse respeito sua amiga de infância Aurora Reys declara: "Éra-
mos bastante cruéis por causa de sua perna. Quando passava em
sua bicicleta gritávamos: Frida, pata de paio, e ela costumava revidar,
furiosa, com muitas maldições" (Apud Herrera, 1985: 26).
Todas as biógrafas afirmam, também, que numa fase posterior usa-
rá "roupas de homem": calças compridas, colete, paletó... escolhen-
do-as, inclusive, para ser retratada.
Em 1922, ingressa na Escola Nacional Preparatória, com vistas a
formar-se em Medicina. É uma das trinta e cinco moças num contin-
gente de dois mil rapazes! (Zamora, 1985: 14).
Passa a integrar um grupo de estudantes, todos eles extremamente
politizados e ávidos de conhecimentos, que buscam nas leituras e em
longas discussões sobre as mesmas conhecer cada vez mais, e me-
lhor, questões relacionadas a temas tão variados como: política, artes
plásticas, filosofia, literatura... (Zamora, 1985: 16). São os Caciiuciias.
Nessa ocasião "espreita" Diego Rivera, que ali está para pintar o
afresco "Criação". Diverte-se, com as colegas de escola, provocan-

94
amaral, lígia assumpção - usp, n° 7, pág. 84-118, 2001

do ciúme em Lupe Marin, a então mulher do pintor (Zamora, 1985: 30).


Ao que tudo indica, nessa fase, Frida não mostra pelo homem Rivera
mais que enorme curiosidade, assim como por sua obra muralista.
Em 1924 e 1925, tem aulas de desenho dadas por um tipógrafo
(vizinho da "Casa Azul") e cobiça a caixa de tintas do pai que, além
de fotógrafo oficial do Governo, é pintor. Nesse ate//er\he é dada
sistematicamente a tarefa de copiar obras de Zorn, especialmente
como treino para gravação em metal (Zamora, 1985: 250).

um corpo mutilado e uma obra que se inicia


o ano de 1925 trará consigo o colorido da tragédia no fato que mudaria
sua vida: a 19 de setembro sofre um acidente, quando — pela colisão
do ônibus (onde está em companhia do namorado Alejandro Gómez
Árias) com um bonde — tem o corpo atravessado pelo corrimão.
Em algumas ocasiões, Frida afirmou que o ferro entrou pela vagina e
saiu pelas costas, atravessando sua coluna vertebral. Depoentes rela-
tam como mais acima ainda que na região pélvica a trajetória do corri-
mão por seu corpo (Zamora, 1985: 24). De qualquer forma, o trauma
físico é fortíssimo, e ela passa um mês no Hospital da Cruz Vermelha.
É exatamente nesse período que recebe de presente, e para sua
"distração", a cobiçada caixa de tintas do pai. Começa então a pin-
tar. A esse respeito irá construir várias versões, no decorrer de sua
vida. Uma delas é a de que:

Como era jovem, a desgraça não adquiriu um caráter trágico naquele


momento: acreditei ter energia suficiente para fazer qualquer coisa
que substituísse o estudar para ser doutora. Sem prestar muita aten-
ção, comecei a pintar (...) minha mãe mandou fazer um cavalete num
carpinteiro — se assim se pode chamar o equipamento especial que
se prendia à cama onde eu estava reclinada, uma vez que por causa
do gesso não podia me sentar (Apud Herrera, 1987: 63).

Pela conveniência dessa condição de imobilidade, "escolhe" pintar


retratos — que virão a ser, todavia, a própria tônica de toda sua
obra, com especial ênfase nos auto-retratos — mais de quarenta.

95
amaral, lígia assumpção - usp, n° 7, pág. 84-118, 2001

se não incluirmos as obras em que também aparece, embora não


se caracterizem como auto-retratos propriamente ditos.
Quanto ao acidente, somente um ano depois Frida o reproduz plas-
ticamente. É um desenlio, quase esboço, em estilo de obra ex-votiva
— sem regras de perspectiva etc. — tão caro ao povo mexicano.
Interessantemente muitos anos depois — mais precisamente em
1943 — encontra um retábulo com tema tão parecido com o aciden-
te que sofrerá que são precisos apenas alguns retoques para fazer
sua a experiência: acrescenta alguns escritos no bonde e no ôni-
bus, coloca sobrancelhas unidas na vítima e compõe uma dedicató-
ria dos pais, dando graças pelo milagre de sua sobrevivência.
Em seu percurso de pintora, sua primeira obra "séria" é o Autorretrato
con traje de terciopelo, de 1926. De acordo com suas declarações,
foi pintado como presente a Árias, o namorado à época do aciden-
te, numa tentativa de reconciliação. Explica a ele, em bilhete que
acompanha o quadro, que o mar ao fundo é ''um símbolo de vida —
de minha vidá' (Herrera, 1987: 60) e pede que o coloque numa altu-
ra baixa para que possa olhá-la nos olhos. Formalmente, o quadro
reflete tanto o interesse de Frida pela pintura italiana renascentista
como por Modigliani.

um amor para sempre


Em 1928 ingressa no Partido Comunista Mexicano e é ativista. Atra-
vés da fotógrafa Tina Modotti, reencontra Rivera. Apaixonam-se. E
o profundo amor de Frida por Diego a acompanhará por toda sua
vida, ainda que entremeado por romances e paixões (Herrera, 1987:
77). Em 21 de agosto de 1929, casam-se.
A festa é organizada pela amiga Tina. Lupe Marin — a primeira
mulher de Rivera — se dispõe a fazer alguns dos pratos favoritos
de Diego. A respeito dessa dia, uma das filhas de Lupe relata que:

O drama começou no preciso momento em que Lupe não conse-


guiu mais reprimir seus ciúmes e a emoção triunfou sobre suas boas
maneiras; irada, desafiou Frida fazendo-a notar seus defeitos físi-
cos: "Tu tens as pernas fracas; eu, ao contrário, veja que pernas

96
amaral, lígia assumpção - usp, n° 7, pág. 84-118, 2001

tenho". Em seguida, levantou as saias da noiva e mostrou aos con-


vidados o defeito de Frida, conseqüência do ataque de poliomielite
ocorrido em sua infância (Rivera & Colle, 1994: 12).

Consta que, todavia, depois do casamento consumado. Lupa ajuda


Frida sistematicamente na aprendizagem dos afazeres domésticos,
especialmente o de como cozinhar.
Nessa vertente doméstica, vários de seus biógrafos enfatizam que o
prazer em receber amigos e em preparar grandes festas é também
uma das características do casal Frida/Diego, a ela cabendo sempre
o entusiasmo maior (Rivera & Cole, 1994). Em outras palavras: rode-
ar-se de pessoas será uma constante em sua não muito longa vida.
Na vertente política deixa, temporariamente, o Partido Comunista quan-
do Rivera dele é expulso, mas se mantém convictamente socialista.
Em 1930, ao que tudo indica, ocorre o primeiro de vários abortos
espontâneos de Frida. E, na verdade, seu expresso desejo de ser
mãe jamais virá a ser realizado.
Em novembro desse ano partem para os Estados Unidos, mais espe-
cificamente para São Francisco, onde Diego realizará algumas obras.
Em 1931, conhece Dr. Leo Eloesser, que será daí para frente seu
conselheiro médico. É ele quem primeiro diagnostica escoliose e
achatamento de disco em sua coluna. Nesse período aumentam as
dores, assim como a deformidade da perna direita. Além disso, du-
rante essa sua estada nos EUA, Frida sofre intensamente devido a
uma ferida que tem no pé. É nesse momento que surgem as primei-
ras suspeitas de sífilis. Pela segunda vez, e á semelhança da re-
presentação plástica do acidente, ainda em esboço-desenho, retra-
ta seu sofrimento físico.
O ano seguinte, 1932, estará também marcado pela morte e pela
tragédia. Estão em Detroit (novamente em função de compromissos
profissionais de Diego) e aí Frida vive, em julho, seu segundo abor-
to. Poucos meses depois, morre sua mãe.
Em 1933, Nova York será o novo porto de Frida e Diego, e este
pinta o famoso mural do Rockefeller Center. Mas no final do ano
voltam para o México, instalando-se em San Angel.

97
amaral, lígia assumpção - usp, n° 7, pág. 84-118, 2001

Após esse ano de relativa trégua, 1934 traz mais e mais sofrimento
para Frida. Por um lado, uma terceira gravidez, seguida de novo
aborto; por outro, a realização de cirurgia para amputação de vários
dedos de seu pé direito; por outro, ainda, a descoberta do romance
vivido por Diego com Cristina — sua irmã mais nova.

alguns pequenos amor es/grandes paixões


Frida sai, profundamente magoada, do casarão de San Angel e alu-
ga um apartamento, onde passa a viver sozinha. É nesse período
que tem um caso de amor com o escultor Isamu Noguchi. Ainda em
1935 vai pela primeira vez aos Estados Unidos sem Diego, viajando
em companhia de amigas.
Ao voltar para o México, em fins de 1935, início de 1936, volta tam-
bém para a casa de San Angel, reconciliada com Diego, após o
término do/omance entre este e a irmã Cristina. Nesse ano subme-
te-se a nova operação no pé direito. No mesmo período, engaja-se
ativamente na luta republicana espanhola, vendendo bônus, parti-
cipando de manifestações, distribuindo panfletos...
O ano seguinte é marcado pela chegada ao país de Leon Trotsky e
Natália Sedova, sua esposa, que haviam conseguido asilo político
por petição do casal Rivera. A convite de Frida, instalam-se na "Casa
Azul" de Coyacan, onde vivem até 1939.
Inicia-se então um intenso, mas breve romance entre Frida e Trotsky,
a quem a pintora presenteia com um Autoretrato dedicado a Leon
Trotsky, o qual é dedicado "com todo amof no dia do aniversário de
Trotsky, que é coincidente com o "aniversário" da Revolução Rus-
sa: 7 de Novembro.
Esse mesmo 1937 e os anos que s e seguiram são também vis-
tos pelos estudiosos da pintora como uma das fases mais profí-
cuas de seu fazer artístico. Ao que tudo indica, é nesse momen-
to que realiza suas primeiras "naturezas mortas", além de inú-
meras outras "naturezas vivas". Entre umas e outras, é também
desse ano El difuntito Dimas. A respeito dessa obra Aracelli Rico
(1987: 122) escreve:

98
amaral, lígia assumpção - usp, n° 7, pág. 84-118, 2001

Se a vida a atraía tanto quanto a morte, ela não deixava de sentir


pelos mortos uma ironia, onde misturavam-se o encanto e a malícia
(... nesse quadro que é) uma composição inspirada em antiga tradi-
ção do México Colonial (...) a figura do menino Dimas aparece ves-
tida de santo com uma palidez que contrasta com as brilhantes co-
res das flores que estão ao seu redor.

Segue-se um momento muito importante na carreira de pintora pois,


com o intuito de conhecer Trotsky, o já famoso surrealista André
Breton vai ao México em 1938, em companhia de Jacqueline Lam-
ba. Conhece Frida e, posteriormente, muitas de suas pinturas. En-
canta-se com a artista e com a obra, afirmando textualmente: "So-
mos privilegiados por presenciarmos, como nos dias gioriosos do
romantismo aiemão, o aparecimento de uma jovem dotada de to-
dos os dons da sedução" (Apud Kettenmann, 1992).
Em 1938 pinta Lo que me dio ei agua, mas data a obra de 1939. É
um trabalho simbólico que mostra vários acontecimentos de sua vida
e inclui elementos de outros trabalhos. Como é visto por Breton
como surrealista, este afirma que Frida havia ilustrado, sem saber,
a frase de sua personagem Nadja: "Sou o pensamento no baniio,
no quarto de espeiiios"
Seu entusiasmo concretiza-se no movimento de difundir a pintura
da artista. Assim, é por seu intermédio que Frida faz sua primeira
exposição fora do México, mais precisamente na Galeria de Julien
Levy em Nova York. O êxito é enorme e vende quatro de seus qua-
dros ao ator e colecionador Edward G. Robinson — são seus pri-
meiros trabalhos comercializados.
Deve a Breton, portanto, a projeção para além das fronteiras mexi-
canas, malgrado o pintor haver interpretado erroneamente, como
surrealista, sua obra — no que foi contestado, em parte, por críticos
de arte, assim como, veementemente, por ela mesma: "Pensaram
que eu era surreaiista mas eu não era. Pintava a miniia própria rea-
//;:/^í/(9"(Kettenmann, 1992: 48).
A esse respeito diz o crítico Bertram D. Wolfe:

... bastante liberta, também, dos símbolos e da filosofia freudiana


amaral, lígia assumpção - usp, n° 7, pág. 84-118, 2001

que obcecava os pintores oficiais surrealistas, o dela é uma espécie


de surrealismo 'naive', que ela inventou (...) Enquanto o surrealismo
se preocupa sobretudo com as informações dos sonhos, pesadelos
e símbolos neuróticos, na variante de Madame Rivera predominam
inteligência e humor (Apud Kettenmann, 1992: 41).

Nessa viagem aos Estados Unidos, tem um romance com o fotógra-


fo Nickolas Muray, a quem devemos algumas das mais belas fotos
de Frida.
Na seqüência da "investida" internacional, em 1939, se faz presen-
te com uma obra na Exposição "Mexique", organizada em Paris por
Breton. Seu auto-retrato The Frame— o rosto e o fundo azul foram
pintados sobre alumínio e, posteriormente (Zamora, 1987: 303), a
borda de flores e pássaros sobre vidro sobreposto — é o primeiro
trabalho de artista mexicano do século XX adquirido pelo Louvre.
Inicialmente parte do acervo do Jeau de Paume, na atualidade en-
contra-se no Centre G. Pompidou.
O ano de 1939 é, na verdade, mensageiro de conquistas e perdas
para Frida. Se, por um lado, expõe em Paris, na Galerie Renon et
Colle, faz sucesso, e é nesse momento de sua vida que entra em
contato com o grupo de surrealistas — dos quais, aliás, faz comentá-
rios irônicos, c o m o : ' ' M a r c e ! D u c h a m p (...) o único que tem os pés no
chão, nesse bando de malucos e filhos da mãe de surrealistas..(Apud
Kettenmann, 1992: 51); por outro, ao voltar para o México, instala-se
na "Casa Azul" de Coyacan e, logo após, é efetivado seu divórcio.

O inicio de uma longa historia de depressão

A partir daí, e por um período mais ou menos longo, as crises


depressivas são constantes, e Frida passa a alcoolizar-se com cer-
ta assiduidade. Mas pinta. E cria, nesse ano, após o divórcio, uma
de suas mais conhecidas obras: Las dos Fridas, exposta, em 1940
na "Exposição Internacional de Surrealismo", na Galeria de Arte Me-
xicana, dirigida por Inés Amor.
De acordo com seu depoimento, essa obra retrata as emoções en-
volvidas na crise e na separação. A parte de si que era respeitada e

100
amaral, lígia assumpção - usp, n° 7, pág. 84-118, 2001

amada por Diego é a Frida mexicana, com roupa tehuana, enquan-


to a outra veste um traje de estilo europeu. Os corações são expos-
tos e ligados por uma só artéria. A parte rejeitada, européia, corre o
risco de esvair-se até a morte.
Em seu "Diário" escreve:

Origem das duas Fridas. Recordação. Devia ter 6 anos quando vivi
intensamente a amizade imaginária com uma menina de minha ida-
de (...) Não me lembro de sua imagem, nem de sua cor. Porém sei
que era alegre e ria muito. Sem sons. Era ágil e dançava como se
não tivesse nenhum peso. Eu a seguia em todos os seus movimen-
tos e contava para ela, enquanto ela dançava, meus problemas se-
cretos. Quais? Não me lembro. Porém ela sabia, por minha voz, de
todas as minhas coisas... (Kahio, 1995: s.p.).

Ainda nessa mesma época, pinta o Autorretrato con coUarde espinas


yco//ór/{na simbologia mexicana o colibri é um talismã do amor) e o
Autorretrato con co/far de espinas. Este último é oferecido ao dr.
Eloesser, que a convencera a ir a São Francisco para um novo trata-
mento. Como agradecimento pela terapia que estabilizara seu esta-
do, dedica: "Para Dr Eloesser meu médico e meu meiiior amigo!'
Interessante assinalar que nesse momento, além dos problemas com
a perna e com a coluna, Frida tinha uma infestação de fungos na mão
direita, também tratada pelo mesmo médico. Assim, nessa obra, o brin-
co (em forma de mão, dado por Picasso) pode ser visto como compo-
nente de um "milagro", oferenda votiva concretizada em objeto de cera
ou outro material, oferecida em agradecimento por um milagre.
O médico "libertou-a", mas o símbolo (cristão) do sofrimento conti-
nua na coroa de espinhos. Porém, esclareça-se, desde logo, que
na cultura mexicana, pré-colombiana, os espinhos simbolizam, si-
multaneamente, dor e libertação da d o r — ressurreição. Aliás, tema
retomado no fundo de folhas: secas e em botão.
Como se vê, 1940, de forma semelhante ao ano precedente, traz
para Frida perdas e conquistas: o assassinato de Trotsky, freqüen-
tes crises depressivas, dores, um novo tratamento em São Francis-
co com dr. Eloesser; mas, em seu início, traz o reconhecimento pú-

101
amaral, lígia assumpção - usp, n° 7, pág. 84-118, 2001

blico de sua obra e, quase em seu fim, lhe reserva o segundo casa-
mento com Diego Rivera, realizado na mesma São Francisco.
Retorna, pois, ao seu grande amor, após inúmeras e, às vezes, fu-
gazes experiências amorosas com parceiros de ambos os sexos.
A morte de Guillermo Kahio, em 1941, é outro momento de intensa
dor para Frida, que sempre fora profundamente ligada ao pai. E, a
partir de então, o casal passa a morar na casa da família, a "Casa
Azul" de Coyacan.
Em 1942, faz parte de importante movimento nas artes mexicanas,
ao participar da fundação do "Seminário de Cultura Mexicana".
Um episódio interessante marca esse ano quando, por encomenda
da esposa do presidente, pinta uma natureza morta para a sala de
jantar presidencial. O cunho claramente sensual e feminino do qua-
dro faz com que seja rejeitado (Zamora, 1987: 321), mas sinaliza,
com precisão, a questão da fertilidade como alvo de profundo inte-
resse da pintora.
Ainda em 1942 dois aspectos precisam ser abordados. O primeiro,
circunscrito à vida pessoal de Frida, refere-se ao início de seu "Diá-
rio" — fonte quase inesgotável de descobertas (KahIo, 1995); o se-
gundo, remetido à vida cultural mexicana, está ligado à reforma do
ensino de arte, que culminou com a transformação do "Liceu de
Escultura" em "Escola de Pintura e Escultura", popularmente co-
nhecida como "La Esmeralda", onde ela viria a lecionar em 1943.
Mas, nesse ano, seu estado de saúde piora, e ela passa a dar as
aulas em casa. Os alunos, sob sua orientação, e em consonância
com suas idéias políticas, dedicam-se a pintar lugares públicos
(Bartra, 1987: 64). Assim, fazem a pintura decorativa de "pulquerias"
(cachaçarias) — uma tradição mexicana — como a de La Rosita.
Segue fazendo retratos, que lhe são encomendados com certa fre-
qüência, após seu reconhecimento maior por parte dos mexicanos, e,
naturalmente, auto-retratos (dezenas deles, no decorrer de sua vida),
dentre os quais dois muito significativos: Diego en mi pensamiento e
Pensando en Ia Muerte, onde há, sobre sua testa, a figuração de pen-
samentos: amor (concretizado no rosto de Diego) e morte (materializa-
da em uma caveira sobre fundo de troncos espinhosos).

102
amaral, lígia assumpção - usp, n° 7, pág. 84-118, 2001

a expliüitação &d DOR e da SOLIDÃO


Em 1944, surge (após os desenhos anteriormente mencionados,
referidos ao acidente e à perna ferida) sua primeira obra explicita-
mente autobiográfica no tocante a seu comprometimento corporal:
La columna rota.
Criado em um momento em que o estado de sua coluna se agravara
muito, de tal forma que precisava usar um colete de aço, esse qua-
dro de Frida é um grito de dor. Uma coluna jônica, fraturada em
vários pontos, substitui sua própria coluna dorsal fraturada e nos
fala de dor, literalmente nos fala de dor. A rachadura abissal de seu
corpo e as profundas gretas na árida paisagem compõem o cenário
interno/externo dessa dor, tornando-se, desta e da solidão, um sím-
bolo. Os cravos espalhados pelo rosto e pelo corpo nos levam, de
imediato, ao martírio de São Sebastião e são companheiros/cúmpli-
ces das lágrimas que vertem de um rosto que sofre, mas que se
mantém, assim como o corpo, rigidamente ereto.
Alguns de seus alunos declararam que Frida havia acrescentado o
panejamento da região púbica depois do quadro pronto, uma vez
que, inicialmente, também essa parte do corpo estava desnuda. Te-
ria dito, na ocasião, que não desejava desviar a atenção do obser-
vador de sua verdadeira mensagem: a dor de seu rosto (Zamora,
1987: 334).
Em 1945, segue com suas aulas, em casa, para os alunos da "La
Esmeralda", os quais decoram as lavanderias públicas de Coyacan.
É desse ano o quadro La máscara. Alguns estudiosos apontam para
o fato de muitos dos auto-retratos sugerirem que o rosto retratado é
uma máscara, atrás da qual se escondem os verdadeiros sentimen-
tos de Frida; e neste o princípio estaria invertido: a máscara em papier
maché, chorando no primeiro plano, estaria mostrando os sentimen-
tos que o rosto de Frida não revela (Kettenmann, 1992: 46).
Em 1946, recebe o Prêmio Nacional do Ministério de Educação Pú-
blica pelo quadro Moisés. É também nesse ano que vislumbra, es-
perançosamente, uma viagem a Nova York para um enxerto ósseo
na coluna, sob os cuidados do dr. Philip Wilson. Mas os custos de
viagem, cirurgia e manutenção são altos. Diego omite-se. Um casal

103
amaral, lígia assumpção - usp, n° 7, pág. 84-118, 2001

amigo — Una e Arcady Boytler — arca com as despesas, e Frida


vai em busca da tão sonhada operação.
Antes de partir, pinta La venadita ou El venado herido, na qual re-
presenta-se com o corpo de um jovem veado (Granizo, o modelo,
era macho) e com sua própria cabeça coroada com uma enorme
galhada. Obra que novamente nos lembra, por um lado, São Se-
bastião e seu martírio e, por outro, a simbologia da vida/morte/res-
surreição: galhos verdes (juventude interrompida ou esperança no
porvir?) e troncos mortos.
O quadro é oferecido, em gratidão, nas vésperas da viagem ao ca-
sal, acompanhado do seguinte poema (Zamora, 1987: 346):
Solito andaba el venado
rate, triste, y muy herido,
hasta que en Arcady y Lina
Encontro calor y nido.
Guando el venado regrese
fuerte, alegre y aliviado,
Ias heridas que ahora Neva
todas se le habrán borrado.
Gracias, nihos de mi vida,
Gracias por tanto consuelo,
en el bosque dei venado
ya se está aclarando el cielo.
Ahi les dejo mi retrato
pa' que me tengam presente,
todos los dias y Ias noches,
que de ustedes yo me ausente.
La tristeza se retrata
en todita mi pintura
pero asi es mi condición
ya no tengo compostura.
Sin embargo, Ia alegria
Ia llevo en mi corazón
sabiendo que Arcady y Lina
me quieren tal como soy
Acepten este cuadrito

104
amaral, lígia assumpção - usp, n° 7, pág. 84-118, 2001

pintado con mi ternura


a cambio de su carino
y de su inmensa dulzura.

A pintura nos fala do entrelaçamento entre a dor física e o sofrimen-


to psicológico, ambos tão presentes na vida e na obra de Frida!
Após a operação, ainda em Nova York, o título de sua obra seguinte,
Arbo! de Ia esperanza mantente firme, foi retirado de uma canção
popular, dentre as suas preferidas. Os corpos contrastam profunda-
mente entre si: um enfraquecido, violado, mutilado, sangrando, as
feridas do corpo misturando-se às fendas da paisagem, o olhar dirigi-
do para o abismo; o outro, altivo, vigoroso, ereto, olhando para o
futuro. Novamente a cisão, a dualidade. Não só nas duas protagonis-
tas, mas também no dia e na noite. Ao sol, é atribuído o corpo ferido,
à lua, a mulher altiva. Aliás, no dualismo asteca (sendo que nessa
visão a dualidade propicia o equilíbrio do mundo) HuitzHopochtH% o
deus branco, deus sol, personificação do dia, do verão, do Sul e do
fogo. A ele, são oferecidos sacrifícios de sangue humano. TezcatHpoca
é o deus do pôr-do-sol, personificação da noite, do Armamento, do
inverno, da morte, da água. Cabe à lua simbolizar o sexo feminino.
A respeito dessa obra, algumas frases de Frida:

Estou quase terminando o quadro que nada mais é que o resulta-


do da tal operação. Estou sentada à beira de um precipício — com
o colete em uma das mãos. Atrás estou deitada numa maca de
hospital — com o rosto voltado para a paisagem, um tanto das
costas está descoberto, onde se vê a cicatriz das facadas que me
deram os cirurgiões filhos de sua... recém-casada mamãe (Apud
Zamora, 1987: 347).

Do mesmo ano é outra obra, um desenho, em que ela se retrata


mais uma vez com o brinco dado por Picasso, um colibri incorpora-
do ao seu rosto e, mais uma vez, com lágrimas nos olhos. Essa obra
é feita para Marte Gómez, engenheiro agrícola, que viria a ser Mi-
nistro da Agricultura do México.
Em 1947, sofre mais um aborto, perpetuando a já tão familiar liga-
ção entre desejo e frustração.

105
amaral, lígia assumpção - usp, n° 7, pág. 84-118, 2001

No ano seguinte, reingressa no Partido Comunista Mexicano.


De acordo com alguns dos críticos de arte que estudam a obra de
Frida, é nesse período que a pintora passa a acentuar traços mascu-
linos em si mesma, como o buço claramente delineado em Autorretrato
con medallon. Todavia, essa característica já se encontra presente
muito antes, como no Autorretrato con co//aráe 1933, Autorretrato
con mono y Hstón sobre e! cuello, de 1940 etc. Penso que talvez o
mais importante a assinalar nessa obra seja, novamente, a presença
das lágrimas — apenas três — a escorrer pela face.
Em 1949, participa da exposição inaugural do "Salão de Ia Plastica
Mexicana", com o riquíssimo e impressionante quadro E!abrazo de
amor de E! Universo, Ia t/erra (México) yo, Diego y ei senor Xóioti

O começo ao Tim

o ano seguinte será de tormento, assim como parte de 1951. Frida


passa nove meses no Hospital ABC (inglês), com sucessivas infec-
ções, submetendo-se a sete cirurgias. Usa sucessivos coletes de ges-
so, que pinta com vários motivos e cores. Pinta também outras obras,
tendo, nessa época, trabalhado em novo quadro sobre sua família (ini-
ciado em 1949). Mas, como já mencionado, deixa-o inacabado.
Após os meses de hospitalização, e ao receber alta, passa a utilizar
cadeira-de-rodas. Toma regularmente comprimidos para amenizar
as fortes dores que sente e, com isso, cria dependência dos medi-
camentos.
Produz várias naturezas mortas e um importante auto-retrato desses
anos finais de sua vida: Autorretrato con ei Dr Juan Farrii Trata-se
de uma obra dedicada ao médico (que também era coxo) que a opera
e dela trata durante sua longa estada no hospital. É claramente mais
uma oferenda votiva (Zamora, 1987: 355), nos moldes das anterior-
mente mencionadas, com Frida pintando com seu próprio sangue,
tendo o coração como paleta. Diz ela em seu diário:

Estive doente durante um ano: 1950-1951. Sete operações na colu-


na. O dr. Farill salvou-me. Restituiu-me a alegria de viver. Ainda
estou numa cadeira de rodas e não sei quando poderei voltar a an-

106
amaral, lígia assumpção - usp, n° 7, pág. 84-118, 2001

dar de novo. Tenho um colete de gesso que, em vez de ser horrivel-


mente "maçador", me ajuda a suportar melhor a coluna. Não sinto
dores, só um grande cansaço... e, como é natural, por vezes deses-
pero. Um desespero indescritível. No entanto quero viver. Já come-
cei o pequeno quadro que vou dar ao dr. Farill e que estou fazendo
com todo meu carinho por ele (Kahlo,1995, s.p.).

Nesse ano de 1951, faz um desenho, Alas rotas— é um anjo em


chamas — no qual retrata a si mesma parada no meio de uma fo-
gueira. As chamas a envolvem e chegam até suas asas. A legenda
diz: "Te vás? No:
Em 1952, retoma sua faceta de ativista política e engaja-se em mo-
vimentos pela paz.
Em abril de 1953, tem sua primeira exposição individual no México,
na Galeria de Arte Contemporânea, dirigida por Lola Alvarez Bravo.
Muito fragilizada, comparece a essa primeira demonstração de peso
do reconhecimento de sua competência, mas comparece deitada
em sua cama.
Segue fazendo naturezas mortas, acrescentando-lhes mensagens
afixadas em bandeirolas ou "talhadas" nas próprias frutas.

a derradeira mutilação
Em 27 de julho de 1953 há a amputação, feita por dr. Guillermo de
Velasco y Polo, de sua perna direita até a altura do joelho. Em seu
diário, provavelmente por volta de agosto, encontra-se o desenho
da perna amputada como uma coluna rodeada de espinhos (ou se-
riam veias perdidas de seus caminhos?), com a legenda:

"Piás para qué los quiero


si tengo alas pa' volar"

Em fevereiro de 1954 escreve no diário:

Amputaram-me a perna há seis meses, deram-me séculos de tortu-


ras e há momentos em que quase perco a razão. Continuo a querer

107
amaral, lígia assumpção - usp, n° 7, pág. 84-118, 2001

me matar (...) nunca sofri tanto em toda minha vida. Vou esperar
mais um pouco... (Kahio, 1995, s.p.).

Em abril é internada no Hospital Inglês, provaveinnente por tentativa


de suicídio.
Nesse ano uma de suas últimas obras foi por ela denominada de El
marxismo dará sa/ud a /os enfermos. Nela está refletida a crença
utópica de que a convicção política poderá libertá-la — a ela e a
toda humanidade — da dor e do sofrimento. Apoiando-se em sua
ideologia, é capaz de prescindir das muletas. Disse a propósito desse
quadro: ''Pela primeira vez deixei de chorar!'
Com efeito, seu fervor político é tal que, convalescendo de uma
pneumonia (que a levara novamente ao hospital), onze dias antes
de sua morte, sai às ruas, na cadeira-de-rodas, empunhando carta-
zes em manifestação de protesto pela intervenção norte-americana
na Guatemala.
Ao que tudo indica, o último quadro pintado por Frida é o Viva Ia
vlda\ rubras melancias e a mensagem de vida talhada em uma de
suas fatias.
Paradoxalmente, o último desenho no diário é o de um anjo negro
acompanhado da seguinte frase: "Espero alegre Ia sallda y espero
no volver jamás."
Em 13 de julho de 1954, aos 47 anos, morre Frida KahIo na "Casa
Azul" de Coyacan.
E aqui retomo o Anjo em chamas àe 1951: "7è vás? No!' Isso por-
que, como nos conta Herrera (1987: 361), em 14 de julho:

... à uma e um quarto, Rivera e vários familiares retiraram Frida


do ataúde e a colocaram num equipamento automático que a con-
duziria, por trilhos de ferro, ao forno crematório. (...) no momento
em que Frida entrou no forno o intenso calor a levantou, e seu
cabelo ardente formou uma auréola ao redor de sua cabeça.
Siqueros afirmou que seu rosto parecia sorrir no centro de um
enorme girassol, no momento em que as chamas lhe incendia-
ram o cabelo.

108
amaral, lígia assumpção - usp, n° 7, pág. 84-118, 2001

finalizando
Posteriormente, alguns marcos registram, oficialmente, seu existir e
seu fazer: em 1958 é aberto o museu "Frida Kahio" na "Casa Azul";
em 1973, o Museu de Arte Moderna, do México, faz a exposição "A
duas décadas de sua prematura morte. Frida KahIo. Mundo de An-
gústia e Beleza"; em 1977, mais uma demonstração mexicana de
reconhecimento se concretiza na "Exposição Nacional de Homena-
gem a Frida KahIo", no Palácio de Belas Artes; o Museu Dolores
Olmedo mantém exposição permanente da maior coleção de obras
de Frida, reunidas num só espaço. Em 1984, Paul Leduc a imortali-
za no filme Frida Naturaleza Viva e alguns anos depois, Hershon,
Guerra e Von Bonin produzem, nos Estados Unidos, o documentário
"Portraits of an artist: Frida KahIo".
Assim, e desde muito, o mundo tem visto e revisto a meteórica pas-
sagem de Frida KahIo pelos meandros simbólicos da América Lati-
na, tentando para ela achar um "Leito de Procusto", uma gaveta
estilística onde encarcerá-la...
Penso que melhor (e na contramão de muito do que vem sendo
dito) é simplesmente dar um "berço" ao fazer artístico de Frida. Para
isso, há que se pensar no "maravilhoso" — do qual desejo falar um
pouco, a partir de Alejo Carpentier (1987).
O autor nos lembra que, no decorrer dos tempos, essa palavra per-
deu seu sentido inicial (verdadeiro?): de algo que evocava o extraor-
dinário, o insólito, o assombroso, o surpreendente, passou a ser aquilo
que é, mais que tudo, o admirável, o excelente. Temos até as "sete
maravilhas" do universo! Por extensão, a apropriação do maravilho-
so passou a dar-se através das idéias de belo, amável, agradável...
Se, todavia, recuperarmos a idéia original, teremos que o maravi-
lhoso pode ser tanto o belo como o feio, desde que seja a s s o m b r o -
so, insólito, surpreendente. Kappier (1986), por exemplo, nos fala
de "monstros, demônios e maravilhas no final da Idade Média". Cer-
tamente dessa vertente bebeu o surrealismo.
Mas no caso de Frida, penso, não se trata de surrealismo, pois este
buscava a sensação de singularidade, sim, porém uma singularidade
premeditada (como os gelatinosos relógios ou instrumentos musicais
de Dali). Um enigma sofisticadamente construído pelo artista em sua

109
amaral, lígia assumpção - usp, n° 7, pág. 84-118, 2001

busca do maravilhoso. Maravilhoso obtido pela deformação ou pela


justaposição de formas. Maravilhoso pela manipulação da realidade.
Estaria Frida buscando o maravilhoso do surrealismo ao construir
uma premeditada singularidade do mundo e de si mesma? Estaria,
para isso, lançando mão da justaposição de formas? Da manipula-
ção da realidade? Da coexistência do bucólico com o terrífico? De
um certo a r d e non-sensel... Os surrealistas julgaram que sim, Frida
afirmou que não.
Talvez Frida viesse a gostar de uma outra inserção estética, de um
outro berço, para seu fazer artístico. Falo do " r e a l m a r a v i l h o s o " ,
tão caro à literatura latino-americana. E o que, basicamente, o ca-
racteriza? O insólito no cotidiano, ao alcance da mão.
Enfatizo que o real maravilhoso supera em muito, no contexto aqui
pensado do insólito, o théâtre foraine, o side show, a fotografia
"esperpêntica" — sugestões pobres do maravilhoso.
É Alejo Carpentier quem nos diz que:

O maravilhoso começa a sê-lo de maneira inequívoca quando


surge de uma inesperada alteração da realidade (...), de uma re-
velação privilegiada da realidade, de uma iluminação não habitu-
al ou particularmente favorecedora das desconhecidas riquezas
da realidade, percebidas com especial intensidade em virtude de
uma exaltação do espírito que o conduz a um modo de "estado
limite" (1987: 140).

Mais do que o retratar um corpo mutilado, sofrido, o que caracteriza


o real maravilhoso na obra de Frida é o quanto de insólito, assom-
broso e surpreendente existe nessas figuras ambíguas que a repre-
sentam em algumas telas... O quanto de surpreendente existe na
retratação da DOR e da SOLIDÃO. Uma forma catártica de enfrentá-
la? Uma forma criativa de elaborá-la?
Talvez o real maravilhoso pudesse ser, de fato, uma resposta...
Mas, sobretudo, não teria Frida buscado o "berço" em si mesma, de
si mesma? Como se ela fosse o berço (porque mexicana) e a mão
que o balança (porque sofre)?

110
amaral, lígia assumpção - usp, n° 7, pág. 84-118, 2001

Ser mexicana, no registro aqui enfocado, significa nascer e ser cria-


da num "caldo" que mescla, no mínimo, três fortes conjuntos de valo-
res e crenças: a cultura pré-hispânica (muito da qual revestida de
"crueldade mística"); a cultura espanhola, concretizada no Barroco
(bastante sedimentada em valores de "fé, esperança e caridade"); a
cultura "moderna-revolucionária", materializada fundamentalmente no
Muralismo (de caráter muitas vezes panfletário, ou quase).
Quanto a essa "fragmentação" cultural mexicana, é possível pensar
num paralelo em relação à vida pessoal de Frida, seja por sua ori-
gem (européia e indígena), seja por suas condições físicas (especi-
almente no que se refere à fragmentação de sua coluna dorsal),
seja por sua oscilação, no investimento amoroso, entre o desejo
pelo feminino e pelo masculino. Fragmentação que é claramente
discernível em muitas de suas obras, pelo claro/escuro, pelo sol e
pela lua, pelos troncos ressequidos e pelos galhos em botão e, mais
explicitamente, pelo retratar do próprio corpo ferido.
Ou, como diz Ida Prampolini (1994:153):

Na obra de Frida, seu drama pessoal está sempre presente em pri-


meiro plano, porém sua obra é o "filtro" de uma realidade que a
mantém viva porque a riqueza, a fantasia, a vitalidade e a dor de
seu povo a sobrepassam e a transcendem.

É o corpo ferido bramindo: cortes, cicatrizes expostas, setas/espi-


nhos cravados na carne, fraturas... é a dor nos rostos impávidos,
lágrimas sulcando a face... a invadir as telas — sofrimento explicitado,
quase uma bofetada.
Assim, e não pretendendo esgotar as inúmeras possibilidades e não
desejando aprisioná-la em redes interpretativas, mas pensando na
vida que perpassou a obra construída por Frida, alguns aspectos
podem ser apresentados. Mas enfatizo, e reafirmo, sem a mínima
intenção de desenhar um perfil psicológico.
A proposta, além disso, não é enfocar isoladamente sua produção
artística ou corpo/alma feridos, mas a eventual expressão destes
naquela, usando para isso algumas pistas que a psicologia oferece,
mas lembrando, com Bachelard (apud Weber, 1966: 102), que não
pode haver uma psicanálise do fogo, da áaua... somente da Quei-
madura, do incêndio...

111
amaral, lígia assumpção - usp, n° 7, pág. 84-118, 2001

Ou, como diz René Huyghe (1986:87):

A arte surge, acima de tudo, como meio de expressão do homem.


(...) Ela não pode deixar de ser um meio de expressão da verdade
interior e subjetiva do artista. (...) Para que sua personalidade desa-
broche plenamente, aspira revelá-la aos outros e partilhar com eles
a riqueza que lhe dá valor. Ao mesmo tempo participando da luta
eterna da vida contra a morte, transfere para uma base mais durá-
vel que ele próprio tudo o que enriqueceu a sua existência mas tem
a mesma fragilidade que ele.

Postos esses aspectos amplos, gostaria agora de delimitar um pou-


co mais a abordagem de leitura que estarei privilegiando, a partir
daqui, no presente contexto. Tendo como base a teoria psicanalíti-
ca, irei recortando, de forma exploratória, alguns aspectos que emer-
giram frente ao olhar flutuante que dirigi à vida-obra de Frida.

Gostaria, aqui, em relação à psicanálise, de fazer minhas as pala-


vras de Bellemin-Noèl (1983: 19):

Compete-nos assinalar que ler com os óculos de Freud é ler numa


obra literária (aqui penso igualmente na obra plástica) — como ativi-
dade de um ser humano e como resultado desta atividade — aquilo
que ela diz sem o revelar, porque o ignora; ler o que ela cala
através do que mostra e porque o mostra por este discurso mais do
que por um outro. Nada é gratuito, tudo é significante; e o que acena
para Freud são os rebentos do inconsciente. O texto (a obra plásti-
ca) é, sem o saber nem querer, um criptograma que pode e deve ser
decifrado (Grifes do autor).

Passo, agora, a alinhavar algumas idéias pontuais, referidas à con-


dição corporal de Frida, que emergiram desse meu profundo mer-
gulho, nos últimos anos, na produção plástica dessa pintora. Idéias
que obviamente são, como todas as idéias, passíveis de contesta-
ção, contra-argumentação, refutação... Mas mesmo assim — ou será
exatamente por isso? — serão apresentadas.
Penso que, fundamentalmente, a forma de apropriação (pela via da

112
amaral, lígia assumpção - usp, n° 7, pág. 84-118, 2001

produção artística) de seu corpo dilacerado, configurou-se como


tingida por uma tonalidade de reparação, sendo esta entendida como
uma resposta psíquica à angústia.
Para consubstanciar essa idéia, e numa liberdade de interpretação,
perfilo-me com Hanna Segai (1952, parte 2), que levanta uma hipó-
tese bastante interessante ao pensar a criação como, de fato, a
recriação dos objetos mortos (assim como de objetos primitivos in-
corporados na primeira infância), isto é, a recriação, no momento
do fazer artístico, de objetos anteriormente destroçados. Isso
corresponderia a uma elaboração de luto que permitiria a integração
no ego dos objetos então (e assim) reparados.
E mais que isso, e conforme proposto por Melanie Klein, o êxito da
reparação supõe a vitória das pulsões de vida sobre as pulsões de
morte. O que se vê como uma constante bastante significativa no
fazer e no viver de Frida Kahio.
Ainda a partir do referencial psicanalítico, algumas outras idéias po-
dem ser esboçadas: ao que tudo indica, Frida desenvolveu arduamen-
te um esforço de integração egóica, seja no aspecto de incorporar aquele
corpo mutilado e ferido, dolorido, seja no de encontrar-se a si mesma
como sendo aquele corpo, corpo esse "perdido", em algum momento
de seu percurso anímico e então re-apropriado, dominado.
Q próprio exercício da sexualidade de Frida (de acordo com muitos
de seus biógrafos bastante presente em sua vida) aponta para esse
esforço inconsciente de integração. Fazendo um paralelo, para
consubstanciar essa idéia, lanço mão de algumas colocações de
Spira (1854:361) ao reportar-se a uma analisanda: "A razão pela
qual a paciente tem uma vida sexual aparentemente muito livre (...)
é a busca de seu duplo, do qual necessita para reintegrar-se..."
Aliás, a questão do duplo é quase uma constante na obra de Frida.
Presente ostensivamente em Las dos Fridas, mas não menos pre-
sente nas inúmeras obras onde (baseando-se inclusive no dualismo
asteca) duplos se sucedem. A lembrar também o quadro La másca-
ra, onde o duplo (inclusive nas próprias palavras de Frida) revela
verdades encobertas.
Por outro lado, e focalizando o que Fenichel chama de "orgulho
ascético", poderíamos pensar na entrega de Frida à causa do marxis-

113
amaral, lígia assumpção - usp, n° 7, pág. 84-118, 2001

mo ou da liberdade dos povos. Sem, obviamente, retirar um milí-


metro sequer de sua inteireza nessa luta, algumas pistas nos
permitem aventar a idéia de um movimento também no sentido de
ingressar numa união protetora, de ser protegida. E, talvez mais
que isso, poder sentir a magnitude de uma causa refletindo-se nela
mesma, mais ou menos como se expressasse que, ao dedicar-se
(ou mesmo sacrificar-se, como é o caso de sua participação na pas-
seata poucos dias antes de sua morte e no auge de seu sofrimento)
a uma grande causa, a grandeza dessa causa recaísse sobre ela.
Um outro ponto provocativo, nesta tentativa de leitura da vida-obra
de Frida, é a recorrência: por um lado, na produção dos auto-retratos
(como reasseguradores de uma identidade talvez ameaçada?) e, por
outro, na concretização pictórica, nua e crua, da dor e do sofrimento.
Penso, sobre isso, nas tentativas humanas de negar a angústia e o
sofrimento psíquico e, em especial, no mecanismo paradoxal de
buscar a angústia original, através da "preferência" pelas situações
que justamente atemorizam ou que anteriormente atemorizavam.
Seria quase como uma forma de "contra-fobia" pois, na vigência
dessa dinâmica, o que se busca é aquilo que antes se temeu:

...do mesmo modo que a criança, no jogo, vive de forma prazerosa


aquilo que teme na realidade (...) a repetição ativa do que foi sofrido
de forma passiva (...) Freqüentemente a busca de situações anteri-
ormente temidas se torna prazerosa precisamente pelo fato de se-
rem buscadas ativamente (Fenichel, 1966: 537).

Outra questão que se levanta, ao pensar-se a vida de Frida, onde


muitas vezes se vislumbram lampejos do que pode ser pensado como
mecanismo defensivo — com forte presença de onipotência (freqüen-
temente essenciais para sua sobrevivência psíquica) — é sua morte.
Em meu entender, seja com substratos de experiências vivenciais
constatáveis "objetivamente", seja por inferências a partir de suas
declarações e de seus "relatos" artísticos, a experiência de sentir-
se perseguida surge com freqüência em seu viver. Assim, é possí-
vel pensar que, antecedido pouco tempo antes por maisucedida ten-
tativa de suicídio, seu morrer — além obviamente de uma exaustão

114
amaral, lígia assumpção - usp, n° 7, pág. 84-118, 2001

de dor e sofrimento, e uma terrível experiência de se ver cada vez


mais mutilada e dependente — aponta para o sucesso do movimen-
to/desejo de controle.
Otto Fenichel (1966: 411), reportando-se a Freud, reconhece que o
suicídio "pode ter o significado de promover antecipadamente, de for-
ma ativa, o que, de outra forma, poderia ocorrer de forma passiva."
Mas falar da morte, apenas em termos estritamente pessoais não
me parece suficiente, sendo até empobrecedor. Assim, alinhavo na
seqüência algumas idéias sobre isso, para que não esqueçamos
uma das facetas do pano de fundo da vida de Frida.
A relação do povo mexicano com a morte é muito especial — eles
como que a cortejam, com músicas, doces, bailados... Diferentemen-
te de nós, brasileiros, eles não a temem — ao menos como idéia ou
abstração — e a apresentam bem precocemente às crianças.
Tive oportunidade de passar o Dia de Finados lá, e essa é uma
experiência da qual, certamente, jamais me esquecerei: o cemitério
repleto de gente; crianças correndo por todos os lados; comida,
bebida e música à solta. Cantoria, muita cantoria. Fotografias dos
mortos, em solenes porta-retratos enfeitados de flores, sendo qua-
se como imagens de santos em profanos altares — embora nem tão
profanos, dada a religiosidade corrente!
Além disso, a morte está sempre absolutamente ligada à vida atra-
vés da idéia de ressurreição, de revitalização...
Mas a morte é também veículo de denúncia e expressão de crítica,
como as célebres caveiras de José Posada, através das quais criti-
cou duramente, em milhares de desenhos e gravuras, várias facetas
da sociedade mexicana de antes da revolução de 1910.
Por essas e outras razões, penso que no México a palavra de ordem
poderia ser "exorcizar": o medo, a doença e, paradoxalmente, a mor-
te. Talvez a mais clara concretização desse movimento seja o famoso
"Dia do Grito", tradição antiga na cultura mexicana, momento em que,
por uma hora, ao findar de um dia de setembro, as pessoas gritam,
gritam, gritam... para exorcizar tudo que as oprime e incomoda e, ao
gritar, recuperam, como povo, liberdade e satisfação.
Quero, com as idéias acima expostas dizer que a presença da mor-
te ou do mórbido na produção de Frida (e certamente em sua vida)

115
amaral, lígia assumpção - usp, n° 7, pág. 84-118, 2001

não deixa de ter esse triplo aspecto: morte/vida, exorcismo de "fan-


tasmas" e denúncia — todos eles tão presentes na realidade cotidi-
ana do povo mexicano.
Ainda em relação ao pano de fundo da vida de Frida, e reportando-
me a suas características mais ligadas à manifestação artística — e
em especial sobre o muralismo — , duas outras idéias me ocorrem.
Em primeiro lugar, a de que esse movimento (sem, obviamente, discu-
tir em profundidade tal manifestação artística mexicana) busca retraduzir
tanto a arte pré-hispânica como a colonial. Penso que reflexos indivi-
duais disso se fazem presentes na vida e na obra de Frida, concretiza-
dos em suas escolhas de vestes indígenas e de animais ancestrais,
paralelamente a viver como a "sefiora" da casa; na busca e inserção
de simbologias astecas em seus quadros e na opção pela linguagem
dos retábulos, tipicamente herança do catolicismo colonial.

A outra idéia é a de quanto é inegável que esse movimento — e quem


viu algumas de suas produções pode bem entender o que desejo dizer
— passou a oferecer ao espectador um "texto" composto, eu diria, por
mensagens inequívocas, que o fazem de imediato leitor de uma longa
e quase linear narrativa, seja histórica e doutrinária (com Diego Rivera),
seja profética (com Siqueiros), seja messiânica (com Orozco). É como
se a religião (em seus sentidos de fé e ritual) e a política encontrassem
ali um terreno profícuo para estranhas e intrigantes junções.

Considero que, guardadas as devidas proporções, a obra de Frida


traz essa mesma potencialidade de junção, esse mesmo caráter
"panfletário", essa mesma característica de "texto"; porém, todas
centradas nela mesma e não em temas ou situações sociais. Não se
trata da Humanidade, trata-se, mais que tudo, de s u a humanidade.
Assim é que Frida Kahio é personagem de sua cultura mas, acima
de tudo, personagem de si mesma!

Resumo: O artigo propõe alguns recortes da vida e da obra de Frida


Kahio, importante artista plástica mexicana, incluindo-se reflexões sobre
sua forma de apropriação da deficiência física com que conviveu muito
precocemente e por toda sua breve existência. Assim, são enfocados

116
amaral, lígia assumpção - usp, n° 7, pág. 84-118, 2001

dados biográficos e produções artísticas que, entrecruzando-se a partir


do eixo do sofrimento físico/psicológico, tentam oferecer ao leitor ele-
mentos de familiarização com Frida Kahio e nele semear o desejo de
conhecer, em maior profundidade, essa fascinante mulher que, mais que
personagem de sua cultura, é personagem de si mesma.

Palavras-chave: Frida KahIo; América Latina; arte.

Abstract: This paper proposes some frames on the life and work of
Frida KahIo, an important Mexican artist, including some thoughts
on the way she appropriated her physical disability from an early age
and throughout her short existence. Thus, the focus on the artisfs
bibliographical data and artistic productions, with interconnections
at the axis of physical/physiological suffering, aims at offering the
readers some elements of familiarity with her, aiso arising the wish
of knowing this fascinating woman who, more than a character of
her culture, is a character of herself.

Key Words: Frida KahIo; Latin America; art.

DibiiOtjrafia

AGOSTINHO, Cristina. As Duas Fridas. Belo Horizonte: Dimensão, Cole-


ção Arte / Vida, 1996.
AMARAL, L. A. Deficiência, Vida e Arte. São Paulo: s.n., Tese (Livre-
Docência), Instituto de Psicologia/USP, 1998.
BACKER, Yona (org.). Frida Kahio Unmasi<ed: Portraits by Various
Piiotograpiiers. New York: Throckmorton Fine Arte, 1995.
BARTRA, Eli. i[^ujer, ideoiogia yArte: ideoiogia y Poiitica en Frida Kaiiio y
Diego Rivera. Barcelona, La Sal, Ediciones de le Dones, 1987.
BELLEMIN-NOÉL, Jean. Psicanáiise e Literatura. São Paulo, Cultrix, 1983.
CARPENTIER, Alejo. A Literatura do i\/1araviihioso. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1987.

117
amaral, lígia assumpção - usp, n° 7, pág. 84-118, 2001

CARTER, Angela. "Introdução". In ImagesofFridaKahio. Londres: Redstone


Press, 1990.
CLÉZIO, J. M. G. Le. Diego et Frida. Paris: Gailimard, 1993.
FENICHEL, Otto. Teoria Psicoanalitica de Ias Neurosis. Buenos Aires: Paidós,
1966.
HERRERA, Hayden. Frida: una Biografia de Frida Katiio. México: Editorial
Diana, 1985.
HERRERA, Hayden. Frida Kaiiio: tiie Paintings, New York: HarperCoIlim, 1993.
HUYGUE, René. O Poder da imagem. São Paulo: Martins Fontes, 1966.
JAMIS, Rauda. Frida Kahio. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
KAHLO, Frida. O Diário de Frida Kaiiio: um Auto-Retrato intimo. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1995.
KAPLER, Claude. i\/ionstruos, Demonios y i\/laraviiias a Fines de ia Edad
i\4edia. Madrid: Akal, 1986.
KETTENMANN, Andréa. Frida Kaiiio. Trad. Maria Ordónez-Rey. Berlin:
Benedikt Taschen, 1992.
MARIN, Guadalupe Rivera e CORCUERA, Marie-Pierre Colle. Las Fiestas
de Frida y Diego: Recuerdos y Recetas. México: Promexa, 1994.
MARTIN, Isabel. "Apresentação". In Frida Kaiiio: Postcard Bool<. México:
Taschen, 1992.
PRAMPOLINI, Ida R. "Nacionalismo e Internacionalisnno en el México Mo-
derno". In BULHÕES, M. Amélia e KERN, M. Lúcia B. (org.). Artes Piás-
ticas na América Latina Contemporânea. Porto Alegre: Editora da Uni-
versidade/UFRGS, p. 12-21, 1994.
RICO, Araceli. Frida Kaiiio: Fantasia de un Cuerpo i-ierido. México: Plaza y
Janés, 1987.
SCHNEIDER, Luis M. (org). Frida Kaiiio & ignacio Aguirre: Cartas de una
Pasión. México: Trabuco y Clavel, 1994.
SEGAL, Hanna. "A Psycho-Analitical Approach to Aesthetics". int. J. Psycii.,
vol. 2, n° 33, 1952.
TIBOL, Raquel. Frida Kahio: una Vida Abierta. México: Oásis, 1985.
WEBER, Jean-Paul. La Psicoiogia dei Arte. Buenos Aires: Paidós, 1966.
ZAMORA, Martha. Frida: eiPinceide ia Angustia. México: Marta Zamora, 1987.
(org.). The Letters of Frida Kahio (Cartas Apasionadas).
San Francisco: Chronicle Books, 1995.

revista
Voices ofmexico, n° 30, p. 49-68, 1995.

118
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

ei discurso de los líderes espirituales de abya yala


(americdj

Gloria Alicia Caudillo Féiix


Departamento de Estúdios Ibéricos y Latinoamericanos
Universidad de Guadaiajara
IVléxico

introducción

El Encuentro Mundial de Embajadores religiosos celebrado en La


Paz, Bolívia, dei 19 al 23 de junio de 1992, se inscribe en un proceso
de revitalización religiosa de los pueblos indígenas, en el que han
desempefiado un papel importante los líderes tradicionales. Su
liderazgo -como senala Ricardo Melgar Bao- trasciende Ias fronteras
étnicas al extender su influencia a otros sectores de Ia sociedad y
se refuerza en encuentros y reuniones nacionales y continentales
en los que han participado durante los últimos anos
La circularidad de ideas y solidaridades de estos tradicionales
intelectuales indígenas ha trascendido Ias fronteras nacionales tan-
to en Ia región andina como mesoamericanaJ
^ Ricardo Melgar Bao, "Las
El resurgimiento de Ia religiosidad indígena, manifestada en Ia utopias indígenas en América,

creciente influencia de los líderes religiosos, se deja sentir de manera lectura de un ano nefasto" en
Memória. N® 62, enero de
más fuerte en el área mesoamericana, entre los Mayas y Otomíes
1994, p. 30.
de México y los Mayas de Guatemala. En el área andina también se
observa Ia revitalización de Ia religiosidad indígena, manifestándose
en una influencia creciente de los chamanes y curanderos entre Ia
población mestiza y en Ia reconstrucción de Ia Iglesia Andina de
Perú y Bolivia. En Ecuador, líderes como Alberto Taxso, además de

119
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

cumplir un papel espiritual tradicional, irrumpen en Ia sociedad na-


cional para innpugnar el orden opresor, y en el C o n o Sur los
mapuches, en el Consejo de Todas Ias Tierras, buscan revitalizar su
cultura, al otorgar un papel primordial a los líderes tradicionales
En Io general, esta generación de intelectuales indígenas que ejercen
liderazgos de diverso alcance sabe que Ia politicidad de sus pueblos
multiplica sus espacios de acción en los campos festivos y de lucha
y aún en los escindidos âmbitos religiosos.^
' idem.
La cercania dei Quinto Centenário también opero como un detonador
de Ia religiosidad indígena, y a través de sus especialistas religio-
sos reavivo tradiciones ancestrales con Ia finalidad de reafirmar su
identidad ante Ia escalada festiva que, con motivo de los 500 anos
desato Espana en interacción con los gobiernos latinoamericanos.
De esta manera, a Ia acción de Ias organizaciones políticas indígenas
que implementaron Ia campana Quinientos anos de resistencia indígena
ypopular, se sumó Ia valoración de sus culturas ancestrales reafirmadas
y reavivadas a través de Ia tradición oral por sus líderes espirituales. El
12 de octubre de 1990, en el marco organizativo de Ia Campana para
oponerse a Ia celebración dei Quinto Centenário, en Iximché, Guatemala,
se reunieron más de cuatro mil indígenas para compartir, dice Rigoberta
Menchú, "no sólo el sufrimiento, sino también Ia alegria".
LIegaron 300 sacerdotes mayas muy respetados, pues en ellos se con-
® Rigoberta Menchú Tum y centra conocimiento, experiencia y autoridad -con el común objetivo de
Comitê de Unidad Campesina, reivindicar nuestra cultura, costumbres y luchas. Mientras alguien
El ciamor de Ia tíerra. Luchas
danzaba cargando a Santo Tomás (el patrono de Chichicastenango),
campesinas en Ia historia
reciente de Guatemala.
Ias velas encendidas eran regadas con cuxa(aguardiente) y los
Hirugarren Prentsa, Gipuskoa, asistentes conversaban sobre religión y Ia situación dei país. Fue una
1992, p. 122. manifestación dei orgullo de ser indígena.^
En Ias culturas indígenas, los líderes religiosos son depositários de
un poder basado, como senala Colombres, en "una proximidad a Io
sobrenatural, y en un conocimiento de Ias fuerzas mágicas que rigen
el universo'"^. Son los intermediários entre el mundo sagrado y el
^ Adolfo Colombres. La hora dei
bárbaro, (Bases para una
profano y buscan restablecer el equilíbrio entre el bien y el mal.
antropologia social de apoyo). Senala William F. Hanks que en el mundo maya
México, Premiá, 1982. p. 304.

Los chamanes son seres misteriosos y están rodeados por un aura

120
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

de potencialidades que nunca se revelan pero que siempre están


presentes en Ia posibilidad de que ocurran hechos extrafíos.^
^ William F. Hanks,
"Copresencia y aíte-ridad en Ia
Nuestra intención en este capítulo es analizar el documento elabora- práctica ritual maya" en De
do por los líderes espirituales en el Encuentro Mundial de Embajadores palabra y obra en el nuevo
mundo. 3 La formación dei
Religiosos celebrado en Bolívia, con Ia finalidad de penetrar en Ia
otro. Madrid, Espana Sigío XXI,
interioridad de su discurso y detectar los elementos conceptuales y 1993, p. 80.
simbólicos que elaboran a partir de una determinada cosmovisión y
en su papel de intermediários entre un mundo cultural y otro.

análisis dei texto


El documento se titula Deciaración de ios iideres espirituaies de ios
puebiosdeAbya Yaia^ y en el observamos antes que nada el valor de
® El documento está publicado
Ia palabra, de Ia oralidad. "Líderes espirituales" busca condensar o en el Anuario Indigenista, 1992,
cohesionar en una frase Ias características comunes o Ia identidad de VOL XXXI. México, Instituto
quienes participan en el evento. "De los puebios" nos remite por un Indigenista Interamericano, pp.
lado a Ia necesidad de legitimarse como representantes colectivos y 411-417.

por otro a Ia búsqueda de un término -puebios- que defina y de cohesión


a los grupos que dicen representar. "De Abya Yala" nos conduce a Ia
pertenencia común a un territorio determinado que es América, pero
que es renombrada desde el origen con un nombre indígena (de Ia
lengua kuna de Panamá que significa "tierra de vida"). El término Abya
Yala en lugar de América ha sido asumido por Ias organizaciones indí-
genas latinoamericanas para oponerse simbolicamente al nombre ofi-
cial o dominante, con Ia finalidad de legitimarse como puebios originários
asentados en ese territorio, y remite a un espado y un tiempo originales
en estrecha relación con el presente y el futuro.

Una vez expuestos en el título los elementos que les dan unidad o
cohesión y les otorgan una identidad común y una potencialidad,
los autores dei documento se remiten a nombrar especificamente a
los que participan, con el fin de mostrar su diversidad y en ese sen-
tido relacionan el todo con Ias partes. Pero no se nombra a los líde-
res de manera individual, sino a Ias colectividades que representan:

Los representantes de Ias nacionalidades indígenas: Maya Kacchikel,


Maya Quiché, Nanu-Otomí, Kuna, NáhuatI, Tarahumara, Guaymi,

121
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

Teribe, Aimara, Quechua, Innu, Cherokee, Chiquitano y de Ias cultu-


ras Afro-Caribena y Afro-brasilena, con ocasión de Ia celebración
dei Ano Nuevo en Tiahuanaco, a 500 anos de saqueo, profanación e
invasión colonial, y reunidos en el Encuentro Mundial de Ennbajadores
Religiosos, exponemos, declaramos y demandamos:

Podemos ver que primero se nombra a los pueblos indígenas, pero


ahora asumiéndolos como nacionalidades con el fin de legitimarse
como naciones originarias pertenecientes a diferentes culturas y
después se menciona a Ias culturas Afro-caribena y Afro-brasilena
para mostrar Ia diferencia entre unos pueblos y otros. No es Io mismo
ser naciones originarias de un territorio que culturas venidas de otros
lugares. Además, se nombra primero a los indígenas y después a
Ias culturas africanas. El evento es ubicado, no en Ias fechas
normales en que se realiza, sino en un tiempo y un e s p a d o liminar,
el Ano Nuevo en Tiahuanaco, que implica el fin de un ciclo y et inicio
de otro, pero que también remite al tiempo original, porque en ese
lugar surgió el dios creador Tunupa o "Dios de Ia Puerta".^
^ Sobre eí dios Tunupa o "Dios
de ia puerta" llamado por los El ciclo ritual en el que se celebra el evento engarza con los 500
Incas Viracocha, consultar el anos, medida de tiempo que ha sido funesta y desfavorable porque
texto de Geoffrey W Conrad y ha implicado Ia irrupción dei desorden a través de Ia tríada "saqueo,
Arthur A. Demarest. Religión e
profanación e invasión colonial". El uso de Ia palabra profanación es
Império. México, CNCA-
Alianza Editorial Mexicana,
significativa porque en el documento no sólo hay una referencia a Ia
1990 y el libro de Maria acción depredadora y foránea colonial, Io que nos remite un discurso
Rostworowski, Estructuras político propio de los líderes Índios, síno un discurso religioso mani-
andinas dei poder. Lima. Peru. festado en Ia relación implícita que se establece entre Io sagrado y Io
lER tercera edición, 1988.
profano. El uso de Ia tríada «saqueo, profanación e invasión» también
nos conduce a un desorden cósmico, porque el abajo, el aqui y el
arriba fueron invertidos por Ia acción destructiva foránea o extranjera.
En ese tiempo y e s p a d o potencial que abre un ciclo y empieza otro,
se da el Encuentro Mundial de Embajadores Religiosos, en el que Ia
oralidad o el uso de Ia palabra también tiene una potencialidad para
conjurar el desorden, por eso se recurre a Ia tríada, «exponemos,
declaramos y demandamos» y al hacerlo, los líderes espirituales se
situan como intermediários de sus pueblos, se ubican en Ia zona
liminal, en el umbral, para hablarle y exigirle al mundo:

El umbral es a Ia vez el hito, Ia frontera que distingue y opone dos

122
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

mundos y el lugar paradójico donde esos mundos se comunican,


donde se puede efectuar el trânsito dei mundo profano al mundo
sagrado.^
® Mlrcea Eliade. Lo sagrado y
!o profano. México, Labor.
Un elemento de observación importante en estos primeros párrafos, Novena Edición, 1994, p. 28,
es que se habla de un Encuentro Mundial y hasta ahora sólo se han
referido a los pueblos de Abya Yala en el que se incluyen a los de
origen africano. Por otro lado, el hecho de que se mencione primero a
los pueblos indígenas y se les ubique como nacionalidades en relación
con Ias culturas africanas, nos hace pensar en una mayor legitimación
y en un liderazgo indígena frente a los demás participantes religiosos
y que tiene que ver con su ubicación en dos centros espaciales: Ia
pertenencia como pueblos originários, a un territorio que es Abya
Yala y también el, espado sagrado en el que se celebra el evento.
Esta primera parte es el preâmbulo dei documento, que está organi-
zado en cuatro partes: La primera se titula "Nuestra Historia", que
nos remite al pasado; Ia segunda nos conduce al presente y se titu-
la "Nuestra realidad"; Ia tercera Neva por título "Nuestro pensamiento"
y en ella se vincula pasado y presente y se expone Ia potencialidad
dei pensamiento indígena y Ias acciones a desarrollar para reinte-
grar en el futuro Ia armonía cósmica al mundo. En Ia cuarta y última
parte, titulada "Propuestas", se plantean Ias medidas concretas a
implementar a corto plazo.
Es significativo que el documento esté organizado en cuatro partes,
ya que este número remite a los cuatro lados dei mundo que implica
® Juan Eduardo Cirlot,
orden, organización y construcción (Io material) pero el centro de Ia Diccionario de Símbolos.
argumentación discursiva está en Ias tres primeras partes y este Colombia. Labor. Décima
número impar implica actividad y dinamismo (Io espiritual)®. La unión Edición. 1994. p. 156.
dei tres con el cuatro nos remite al siete que implica período o ci-
clo^^ Remite también a los cuatro lados dei mundo y a los tres nive-
^ Ibid.. p. 330.
les cosmológicos: el arriba, el abajo y este mundo y en este sentido
el texto está organizado como una mesa ritual de un chamán en Ia
que se delimitan los tres campos y los cuatro rumbos relacionados
con un e s p a d o y un tiempo sagrados.^^
Ver el libro de Douglas
En Ia primera parte, titulada "1 .Nuestra Historia" se hace una revisión Sharon, El Chamán de los
dei pasado, ubicándolo por etapas: El 1.1 está dedicado al origen, cuatro vientos, México, Sigio
XXI, Segunda Edición. 1988.
el 1.2 a Ia colonia y el 1.3 sitúa Ia época republicana. La parte
dedicada al origen senala

123
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

1.1 En ei proceso histórico, nosotros, habitantes originários de Abya


Yala desde Alaska hasta Ia Tierra dei Fuego, desarrollamos un sis-
tema de vida y concepción dei mundo en donde se mantenía el
equilíbrio en Ia relación hombre-sociedad-naturaleza,caracterizado
por Ia reciprocidad y Ia redistribución.

Observamos que no se habla de un pasado fundante o mítico de


manera clara, pero sí hay una referencia ai pasado original, que se
inscribe en un proceso histórico en el que se busca recuperar, por
médio de Ia memória o de Ia tradición oral, Io que es importante
para el presente indígena y al mismo tiempo rehacer Ia historia propia
trastrocada por Ia colonización. Pero esa recuperación de Ia historia
también tiene como intención reivindicarse, dignificarse y mostrar al
m u n d o sus valores culturales. Por eso hay una referencia a Ia
capacidad que tenían para desarrollar un sistema de vida y una
visión dei mundo en armonía con el universo.
Al referirse al nosotros, son incluidos sólo los pueblos originários de
Abya Yala (América), a quienes se adjudica el haber logrado desarrollar
una relación armónica — un orden mitificado y perfecto — entre el
h o m b r e . Ia s o c i e d a d y Ia naturaleza, b a s a d o s en dos valores
principales: Ia reciprocidad y Ia redistribución, que implica una relación
de equilibrio entre el todo (concentración) y Ias partes (dispersión).
El siguiente párrafo senala

Nuestra concepción se traducía en una convivência armónica y en un


profundo respeto a Ias diferencias. El padre sol, Ia luna y los astros eran
parte de una misma totalidad donde el orden y el equilibrio imperaban.

Su capacidad de abstracción se concretaba en una relación armónica


entre el todo y Ias partes, tanto entre los hombres como con el Cos-
mos. Al destacar el respeto a Ias diferencias que se daba entre los
pueblos originários, los autores buscan jaiar desde el pasado ca-
racterísticas culturales que consideran útiles para Ias necesidades
dei presente y al mismo tiempo enfrentar el orden original con el
desorden actual. Al senalar que había un «profundo respeto a Ias
diferencias» polemizan en el pasado con el presente Occidental que
trata de imponer su cultura al mundo entero. Incorporan también
v a l o r e s y p r i n c i p i o s b á s i c o s de los p u e b l o s Índios, c o m o Ia

124
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

reciprocidad y Ia redistribución y los enfrentan implicitamente al


egoísmo individualista y Ia concentración de Ia riqueza occidentales.

Nuestro respeto a Ia vida y a Ia muerte, como el ciclo vital, era igual


para Ias aves, los peces. Ias estrellas, los lagos, los cerros, los
volcanes, Ias montafías, Ias lagunas, los rios, Ias rocas, el viento y
Ia vegetación de todo tipo.

El orden y equilíbrio logrado por los pueblos indígenas estaba basado


según el documento en el respeto a Ia vida y a Ia muerte inscrita en
una visión cíclica y traducida en el respeto a todo ser vivo. Observa-
mos en estos primeros párrafos que se hace una referencia al pasado
y al orden y el equilibrio logrado por los pueblos indios, g r a d a s al
respeto a Ias diferencias de todo ser viviente, incluídos los que para
nosotros son seres inanimados como Ias rocas o los cerros. Su
inscripción en Ia vida y Ia muerte implica que también los lagos, los
volcanes y Ias montafias entran en ese ciclo vital y pueden morir o
ser destruídos. La insistência en el respeto como valor, tiene como
objetivo mostrar que en esa época todo el Universo estaba en su
lugar y convivia de manera armónica. Todo estaba ordenado. Sefiala
Mircea Eliade que

Instalarse en un territorio viene a ser, en última instancia, el consagrarlo.


Guando Ia instalación ya no es provisional, como entre los nômadas,
sino permanente, como entre los sedentários, implica una decisión
vital que compromete Ia existencia de Ia comunidad por entero.
«Situarse» en un lugar, organizarlo, habitarlo son acciones que
presuponen una elección existencial: Ia elección dei Universo que se
está dispuesto a asumir al «crearlo». Ahora bien, este «Universo» es
siempre una réplica dei universo ejemplar, creado y habitado por los
dioses: comparte según eso Ia santidad de Ia obra de los d i o s e s . ^ ^
Mircea Eüade, Lo sagrado y
Io profano. Op. cit, p. 36.
En el siguiente párrafo se da un salto dei pasado original al presen-
te para mostrar Ia continuidad y Ia validez de su cosmovisión y su
sistema de vida en el momento actual:
"Nuestra propuesta es cosmo-céntrica. Décimos: todo tiene vida y
todo genera vida, porque Ia vida es energia."

125
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

Podemos ver que en esta primera parte Ia memória histórica


rescatada se remite a los pueblos indígenas y no se menciona Ia
cosmovisión de los pueblos africanos, que son excluidos dei
Nosotros, por Io que podemos sacar Ia deducción de que quienes
escribieron el documento fueron indígenas. Claro que se puede decir
que los pueblos africanos aún no llegaban a América, pero existían
en otra región dei planeta y también tienen su propia historia.
Se puede ver una concepción dualista de Ia realidad traducida en el
manejo de oposiciones y complementariedades de Ia relación
abstracto-concreto, vida-muerte, todo-partes, orden-desorden. La
repetición constante de Ia palabra vida en Ia última parte de este
primer apartado tiene como finalidad asociarla a los pueblos
originários y enfrentaria más adelante con Ia muerte que implico Ia
Negada de los colonizadores, de los extranjeros. Es interesante ob-
servar que el presente es vinculado con el pasado también a través
dei uso dei copretérito o imperfecto. Se refieren a "mantenía" y no
mantuvo, "imperaban" y no imperaron, "traducía" y no tradujo. Esta
estrategia narrrativa también se presenta en el texto de Guamán
Poma Nueva CorónicayBuen Gobierno, analizado por Rolena Ador-
no, quien recupera a Benveniste para analizar el concepto dei "pre-
sente en el pasado", en el que "Gradas al uso dei tiempo imperfecto,
el hablante crea Ia ilusión de traer a su propio marco de intervención,
acciones que se iniciaron en el tiempo pasado"^l
Rolena Adorno, Literatura de
resistencia en ei Peru Colonial. Podríamos senalar también que el uso dei tiempo imperfecto situa
México, Sigio XXI, 1991, p. 176. al pasado en el presente, Io actualiza a través dei emisor dei discur-
so que se asume desde el presente como parte de ese pasado
colectivo. El autor o autores dei texto, con el uso dei tiempo imperfecto
se situan en un tiempo y un espado potencial, para luego establecer
un punto de unión entre pasado y presente.
El vínculo temporal se evidencia más claramente cuando senalan
"nuestra propuesta es cosmocéntrica", declaración que también
remite a una actualización de Ia memória indígena. Pero además,
cuando establecen el vínculo entre un pasado y un presente poten-
cial, buscan conjurar Ia fragmentación provocada por Ia colonización.
En el texto observamos Ia recuperación dei pasado en función de
Ias necesidades dei presente. Se destaca Io que se considera vital

126
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

para reafirmar su identidad, mostrar que son los legítimos habitan-


tes de Abya Yala, demostrar que fueron capaces de desarrollar un
sistema de vida armónico y de mantener el equilibrio hombre-
sociedad-naturaleza con Ia finalidad de presentarse como opción
potencial de salvación dei planeta frente a Ia depredación occidental.
Al actualizar o fundir el pasado en el presente y presentar un mundo
en equilibrio y perfecto también hay una reiteración de Ia cosmogonia
y una fundación dei orden original, pero situado en un proceso his-
tórico y proyectado hacia el futuro.
Senala Rafael Perez Taylor que:

Guando en Ias formas tradicionales de interpretar el pasado, Ia


oralidad aparece como Ia forma auricular de transmitir el
conocimiento, ésta, siempre que sea contada bajo Ia forma de un
mito, de un cuento, de una leyenda o de una historia, contará con
tantas versiones como veces sea narrada, pues sólo Ia memória
puede recordar y olvidar acontecimientos según sean Ias
circunstancias. En si, podemos decir que el recuerdo dei pasado
mediante Ia oralidad, presupone que el narrador modificará su historia
cada vez que hable.^^
Rafae! Perez Tayior, Entre Ia
tradición y ia modernidad. An-
En este caso observamos que los autores recurren a Ia tradición tropologia de Ia memória
oral de sus pueblos para redefinir su memória, reafirmar su identidad colectiva.Barceíona,
Catalunya, Tesis de Doctorado,
y mostrar que ellos son sustentadores dei equilibrio y Ia armonía dei
1994, p. 29.
mundo. Y al estampar por escrito y en otra lengua su memória,
establecen un vínculo entre oralidad y escritura y entre cultura indí-
gena y cultura occidental.
Luego de presentarnos un pasado histórico mitificado en el que el orden
y el equilibrio imperaban, el documento se situa en Ia época colonial

1.2 En el proceso colonial, con Ia invasión y saqueo se produjo Ia


ruptura de nuestro sistema de vida y se impuso Ia religión euroasiática,
sin respetar Ia diferencia, fundándose en Ia ideologia de que los que
habitábamos estas sagradas tierras no teniamos alma.

Podemos observar el contraste entre el pasado original armónico y


ordenado y el colonial, caracterizado por Ia violência. Ia imposición

127
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

religiosa, Ia falta de respeto a Ias diferencias y Ia negación de los


otros, y que refleja el desorden. Este contraste también se expresa
en Ia forma de elaborar el discurso o de usar Ias palabras, ya que
para describir Ia época anterior el texto era fluido e interactuante y
ahora recurre a palabras fuertes y agresivas que implican
fragmentación y desorden, como "ruptura", "saqueo", "invasión" o
«impuso» con el fin de marcar Ia oposición entre una época y otra.
El manejo de Ia paradoja "los que habitábamos estas sagradas tierras
no teníamos alma" busca invertir el orden y mostrar que el mundo
sagrado y de valores es el de ellos y el profano y sin valores es el de
los colonizadores que irrumpen violentamente en un espado que no
les pertenece. Mediante Ia paradoja que elaboran basada en Ia
oposición "sagradas tierras" y "no teníamos alma" buscan mostrar
que se trata de Io contrario. Porque además, el líder religioso o chamán
es, como senala Mircea Eliade, "el gran especialista dei alma huma-
na: sólo él Ia "ve", porque conoce su forma y su destino".^^
Mircea Eliade, El
chamanismo y Ias técnicas ar- Los colonizadores rompen y fragmentan el sistema de vida indígena,
caicas dei éxtasis. México, imponen Ia religión y no respetan Ia diferencia. También observamos
FCE. Tercera reimpresión,
que se utiliza el tiempo pasado como «produjo», «impuso», para
1992, p. 24.
referirse a Ia acción de los colonizadores y se introduce el pasado
imperfecto como «habitábamos»o «teníamos» para referirse a los in-
dígenas, Io que muestra Ia ruptura o fragmentación dei poder colonial
frente a Ia continuidad y potencialidad de Ias culturas originarias. Pero
además, el texto enfrenta implicitamente dos concepciones dei pasado:
Ia dei poder dominante que Io ubica como algo lejano y muerto y Ia
indígena que Io representa como vivo y fusionado con el presente. El
manejo distinto de los tiempos también proyecta Ia necesidad de evi-
denciar Ia separación que debe haber entre Io sagrado indígena y Io
profano extranjero. Como nos senala Emile Durkheim

El mundo sagrado sostiene con el mundo profano una relación de


antagonismo. Uno y otro responden a dos formas de vida que se
excluyen, que, cuanto menos, no pueden ser vividas en el mismo
momento con idêntica intensidad.^®
Emile Durkheim, Las formas
elementales de Ia vida religio-
sa. México, Ediciones El texto sigue marcando Ia dinâmica agresiva de Ia sociedad coloni-
Coyoacán. 1995, p. 225. al para evidenciar Ia ruptura dei orden que implicó Ia Negada de los
conquistadores

128
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

Se ejerció ei genocidio y etnocidio, primero por Ia implantación de


Ias reducciones, encomiendas, mitas y obrajes, y luego por médio
de Ia inquisición: al norte con ei protestantismo y catolicismo y ai sur
con el catolicismo.

La falta de valores y Ia ideologia de los colonizadores se tradujo en


muerte debido al genocidio y etnocidio, por médio de relaciones
econômicas de explotación y a través de Ia intolerância religiosa
tanto de protestantes como de católicos. Aqui encontramos que el
Nosotros incluye a todos los pueblos indígenas de América o de
Abya Yala, ya que se menciona el norte y el sur.
Otro elemento que encontramos en el texto es el predomínio dei
discurso religioso, ya que, aunque en Ia época colonial se mencionan
relaciones de explotación, éstas se inscriben dentro de una dinâmica
religiosa que se expresa en el uso constante de palabras o frases
como «profanación», «Padre Sol», «religión euroasiática», «sagra-
das», «alma», «inquisición», «protestantismo» o «catolicismo».
Además, Ias palabras que remiten a Ia religión se relacionan con los
lados dei mundo: primero aparece el eje Este-Oeste con Ia religión
euroasiática que Nega y luego se expande al norte y al sur expresada
o concretada en el catolicismo y el protestantismo.
Esta invasión total a través de Ia religión rompe y se enfrenta con el
orden cósmico-religioso que existia antes de Ia Colonia. Y aunque
en Ia primera parte dei texto hay una referencia a un sistema de
vida y a relaciones hombre-sociedad-naturaleza, éstas se inscriben
prioritariamente en un orden cósmico y no se recuperan en Ia
memória histórica relaciones políticas, econômicas o sociales como
en otros documentos de organizaciones o de intelectuales indíge-
nas. En este texto. Ia argumentación se va tejiendo a través de un
discurso especializado religioso que interactúa con otros.

Este cristianismo, al margen de sus valores intrínsecos, sustentado


por países hegemônicos e imperialistas, sirvió de sustento para con-
solidar Ia dominaciôn y explotación.

Se parte dei discurso religioso como centro para cuestionar Ia


dominaciôn econômica y política a través de términos que remiten a

129
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

un discurso de izquierda latinoamericano. Lo negativo dei cristia-


nismo se asocia con imperialismo y dominación, pero se le da un
valor y esto nos remite por un lado a que los propios indígenas han
i n c o r p o r a d o m u c h o s e l e m e n t o s de Ia religión c r i s t i a n a a su
cosmovisión, y por otro, a que en el Encuentro participan represen-
tantes de distintas religiones:

Nuestros recintos sagrados familiares y nuestros centros


ceremoniales comunales fueron profanados, saqueados hasta el
punto de construir sobre ellos sus templos y capilias.

A q u i encontramos ya claramente Ia oposición sagrado-profano. Lo


sagrado remite a lo propio, a lo nuestro, al adentro que es profana-
do por el extrafio, el extranjero, el que Nega de fuera y penetra abrup-
tamente para invertir el orden y dejar abajo lo que estaba arriba.
También penetra para saquear y llevar afuera lo que estaba aden-
tro, provocando una alteración dei orden y una mezcla entre lo sa-
grado y lo profano que deben estar separados. Es lo impuro, lo in-
sólito, lo a n o r m a l , lo que t r a n s g r e d e Ias leyes naturales.^^ La
" Ver ei texto de Jean
profanación no sólo se remitió a los centros ceremoniales. Afectó a
Cazeneuve titulado Sociologia
dei rito. Argentina, Buenos todo lo que constituía su religiosidad.
Aires. 1972, p, 63.

Nuestros sábios fueron torturados, perseguidos, masacrados; fueron


considerados brujos idolatras y sacrificadores de vidas humanas,
condenándolos a sobrevivir en Ia clandestinidad. De igual manera,
nuestros libros sagrados, símbolos y códices, cuando no destruídos,
fueron expropiados y traladados fuera de nuestro Abya Yala. Nuestro
oro, plata y piedras preciosas robadas. Nuestro territorio usurpado.

No sólo los centros ceremoniales fueron desplazados al mundo de


abajo. También los sábios fueron obligados a ocultarse al ser repri-
midos y perseguidos, con lo que se desestructuró todo el sistema
r e l i g i o s o p r o p i o . La a c c i ó n d e p r e d a d o r a se c o m p l e t ó con Ia
destrucción y expropiación de libros, símbolos y códices en los que
estaba estampada su riqueza espiritual. Su riqueza material también
fue robada y Ia base de su reproducción material y espiritual, que es
el territorio, fue usurpado.

130
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

Al referirse a sus templos sagrados, a sus sábios y a sus libros,


símbolos y códices sagrados, quienes redactaron el documento,
pretenden mostrar que ellos contaban con todo un sistema religioso
estructurado con el fin de legitimarlo y oponerlo a otros. También
condensan en Ia palabra «sábios» a los diferentes líderes religiosos
de los pueblos indígenas de América y les otorgan potencialidad des-
de el p a s a d o , ya q u e no d e s a p a r e c i e r o n , sino e n t r a r o n a Ia
clandestinidad, están en el abajo, en el adentro, con una potencialidad
latente. Al cohesionarse en Ia palabra sábios, cuestionan o enfrentan
Ia concepción colonial de que eran idolatras, hechiceros o brujos.
También al senalar que los sábios fueron torturados, perseguidos y
masacrados y al mismo tiempo calificados de hechiceros, idolatras,
brujos y sacrificadores de vidas, buscan invertir el orden y mostrar a
través de Ia lucha de palabras, que los sacrificadores de vidas fueron
los espanoles y los sacrificados fueron ellos.

Es interesante observar también que Ia memória recuperada de nuevo


se remite a Ia historia indígena y no aparecen Ias condiciones de
dominación a que fueron sometidas Ias culturas africanas, ni se hace
referencia a su religiosidad, por Io que siguen siendo excluídas dei
texto y el "nosotros" se remite sólo a los pueblos indígenas de América
o Abya Yala. En el último punto de esta primera parte, referido al proceso
independentista, el documento se remite a mostrar Ia continuidad en
Ias relaciones de dominación y Ia fragmentación de sus territorios.

1.3 El proceso llamado independentista no altero el sistema coloni-


al. Al contrario, en el período republicano Ias relaciones de dominación
colonial se rearticularon y sofisticaron. Se fragmento nuestras
naciones ancestrales, se dividió nuestra Abya Yala, se impuso
fronteras creando Io que hoy se llaman países.

Para los autores dei texto. Ias relaciones de dominación colonial


perviven en Ia época independiente ya que al mismo tiempo que se
c o n c e n t r a el poder, se f r a g m e n t a el territorio o r i g i n a l con Ia
c o n f o r m a c i ó n de países. La inversión dei orden para q u i e n e s
elaboraron el documento termina de completarse ya que implicó no
sólo que Io que estaba arriba quedara abajo, sino que Ia relación
armónica entre el centro y Ia periferia terminara de desarticularse,
generando una alteración entre el todo y Ias partes.

131
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

Al referirse al proceso «llamado independentista» y a «Io que hoy


se llaman países», en el texto se hace una crítica a Ia concepción
histórica y al poder dominante. A «naciones ancestrales» le oponen
Ia creación artificial de países que no responden a Ia delimitación
territorial original y en esta medida impugnan Ia fragmentación de
un todo armónico articulado originalmente. Al senalar que se
«fragmento nuestras naciones ancestrales y se dividió nuestra Abya
Yala» también están legitimando y mostrando Ia pertenencia a un
territorio. En este último párrafo vinculan el pasado colonial y repu-
blicano con el presente cuando senalan «se impuso fronteras
creando Io que hoy se llaman países», con Ia finalidad de demostrar
Ia continuidad en un modelo de poder externo que fragmenta, divide
y no responde a Ias necesidades culturales de los pueblos indíge-
nas, pero que sigue imperando. Enfrentan el espado continuo y
armónico de Ia cosmovisión indígena con el espado fragmentado y
desestructurado de Ia dominación colonial y republicana.
Pero no sólo hubo una fragmentación territorial que rompió con el
orden original y una continuidad y rearticulación en Ias relaciones
de dominación que se volvieron más complejas: "La mentalidad de
los herederos de los colonizadores en los países de esta nueva
fase histórica fue homogeneizante y racista."
Desde Ia perspectiva dei documento, también en el plano ideológi-
co, se tendió a Ia concentración dei poder de una sola cultura a
través de Ia homogenización, y a Ia exclusión a través dei racismo,
Io que implica desorden, ya que no hay una relación armónica entre
el todo y Ias partes a través dei respeto a Ias otras culturas, sino
que el poder se sustenta en el dominio de una sola cultura y Ia
negación de Ias demás, a diferencia de Ia concepción indígena
basada en Ia «convivência armónica» y en el «respeto a Ias diferen-
cias», como senalan al principio dei texto.
Podemos ver en esta primera parte dei documento que hay una
referencia constante a un proceso histórico organizado en distintas
fases o etapas, pero ese proceso está inserto en una visión cíclica
dei tiempo en el que el pasado es repensado en función de Ias
necesidades dei presente para potenciarel futuro. Por eso, al exponer
el sistema de vida indígena, retoman Io que consideran fundamental

132
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

para sus necesidades presentes. El rescate dei equilíbrio entre hombre


y naturaleza y Ia convivência armónica a través dei respeto a Ias
diferencias tiene como finalidad mostrar Ia potencialidad de Ias cultu-
ras indígenas, en un momento histórico en que Ia depredación ecoló-
gica y Ia pluriculturalidad son temas en debate.
Por otro lado, Ia reflexión sobre el pasado prioriza Ia espiritualidad,
los elementos religiosos y Ia relación con el Cosmos, aunque sin
dejar de lado Ias relaciones de explotación y Ia dominación cultural
de que fueron objeto. Se observa también Ia reiteración constante
dei nosotros que desde el nuestra remite a Ia identidad indígena.
La segunda parte dei texto se titula «Nuestra Realidad» y en ella se
sigue manejando el discurso religioso como centro de Ia argumentación

En nuestra Abya Yala Ias iglesias católicas y evangélicas son Ias


predominantes. Nuestras religiones originarias siguen sometidas a
Ia clandestinidad y amenazadas de ser integradas a Ias religiones
dominantes.

Al referirse a «nuestra Abya Yala» el documento reitera un territorio


sagrado que les pertenece y en el que, paradójicamente predominan
otras religiones. También plantean Ia continuidad con el pasado cuando
sefialan que sus religiones siguen ocultas y condenadas a desapare-
cer bajo el peso de Ias religiones dominantes. Hay una búsqueda de
autonomia religiosa y al mismo tiempo Ia necesidad de salir de Ia
clandestinidad y mostrar sus potencialidades espirituales ante el mun-
do. Oponen religiones originarias a religiones dominantes para mos-
trar Ia legitimidad de unas y Ia imposición de Ias otras, y presentan Ia
paradoja de que Ias legítimas son clandestinas o están en el adentro,
mientras Ias ilegítimas dominan y están en el afuera, pero Io hacen a
través de Ia imposición y Ia negación de Ia diversidad religiosa

Por Ias imposiciones sicológicas e ideológicas vigentes, y por Ias


actitudes paternalistas, Ia mayoría de los indígenas son declarados
oficialmente católicos o evangélicos. Muchas veces el accionar de
nuestros hermanos indígenas en el seno de Ias iglesias y al interior
de Ias religiones es rechazado y estigmatizado.

133
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

A q u i observamos que el nosotros desaparece y hay una referencia


e x t e r n a a los i n d í g e n a s , o los n o m b r a n h e r m a n o s . Q u i e n e s
elaboraron el documento se deslindan dei grueso de los indígenas,
que son ubicados como católicos o evangélicos o que están incor-
porados a esas religiones y en este sentido, al mismo tiempo que
hacen una crítica a Ia dominación religiosa, se ubican dentro de un
nosotros mucho más restringido frente a los otros. Pero también
pretenden mostrar que Ia participación indígena en otras religiones
se debe a Ia imposición y al paternalismo y no se les permite mos-
trar su v e r d a d e r a e s p i r i t u a l i d a d , por Io q u e se s i t u a n c o m o
rescatadores religiosos de sus pueblos

Nosotros tenemos una potencialidad espiritual cósmica, social y


política, pero no tenemos potencialidad econômica a causa de Ia
usurpación, Ia explotación y el despojo de nuestras riquezas y de
nuestra identidad. Por eso nos tratan como pueblos que no tenemos
cultura y menos aún civilización. Historicamente hemos sido obligados
a pagar tributos y diezmos a Ias iglesias.

Observamos que en este párrafo ya aparece el nosotros de nuevo y


quienes escriben se ubican como parte de una colectividad más
amplia. La potencialidad Ia sitúan primero en su espiritualidad, pero
no dejan de lado Ia potencialidad social y política como parte de un
todo integrado, dei que está exenta Ia potencialidad econômica por
Io que están fragmentados. El uso dei término pueblos aqui no es
utilizado como concepto para legitimar Ia reivindicación de derechos
colectivos como en otros documentos de organizaciones indígenas,
pues Io hacen con Ia finalidad de mostrar que son pueblos que
pertenecen a una cultura y constituyen una civilización aunque esté
fragmentada por Ia dominación.
Al expresar que son negados, afirman que son pueblos con cultura
y civilización. En Ia negación está implícita Ia afirmación, y en este
s e n t i d o o b s e r v a m o s d e n u e v o el u s o d e p a r a d o j a s en su
argumentación. Al hablar de despojo y de Ia obligación histórica de
pagar tributos y diezmos, plantean Ia extracción econômica de que
han sido objeto por los colonizadores y por Ia Iglesia. También
plantean que les han sido extraídas sus riquezas y su identidad.

134
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

Esta imagen de extracción o succión nos recuerda el mito dei nakaq


(quechua) o dei karisiri (aymará) que atribuye a extranjeros, autori-
dades, sacerdotes o terratenientes, Ia capacidad de extraer Ia grasa
de los indígenas para emplearla ya sea en Ias campanas de Ia Iglesia,
o para pagar Ia deuda externa, para usaria en restaurantes de Lima
o para engrasar los cohetes que van a Ia Luna. Todas estas distin-
tas versiones dei mito que circula por toda el Area Andina, expresan
Ia percepción indígena de que han sido chupados o succionados
historicamente por los explotadoresJ^
Sobre el nakaq y otros mitos
andinos, ver el trabajo de Juan
Hay una invasión religiosa actual en los pueblos originários y afro-abya- Ansión, El pensamiento mítico
yalenses, utilizando nuestras vestimentas, instrumentos musicales en Ayacucho. Lima, Perú,
Pontifícia Universidad Católica,
ancestrales y cantos sagrados en ceremonias religiosas de iglesias.
1987, o los testimonios
recogidos por Abílio Vergara y
Observamos en este párrafo que al hablar de «invasión religiosa» Freddy Ferrua, en Ia Revista
Quehacer 45, nov-dic de
marcan Ia continuidad con Ia época colonial en donde el extranjero
1987.
invade un territorio s a g r a d o y e x p r o p i a o e x t r a e Ias r i q u e z a s
espirituales y materiales dei indígena para trasladadas fuera y
utilizarlas en su beneficio. De nuevo Io sagrado es profanado y uti-
lizado por extranos. La diferencia es que en Ia época actual aparecen
incorporadas por primera vez Ias culturas africanas a quienes se les
otorga Ia legitimidad de asentarse en un territorio pues se senala
que también son abya-yalenses. Aqui se utiliza el concepto de
pueblos originários, que se extiende a los afro-abya-yalenses para
argumentar que pertenecen al territorio, al adentro, a Io sagrado,
mientras que Ias iglesias son externas, son el afuera. El término
a f r o - a b y a - y a l e n s e s se o p o n e i m p l i c i t a m e n t e al t é r m i n o
afroamericanos, como Abya Yala se opone a América.
En el siguiente párrafo queda más clara Ia argumentación que van
tejiendo desde un principio en torno a Ias oposiciones adentro-afuera
y sagrado-profano. En el último párrrafo ya queda claro que quienes
pertenecen al adentro son los pueblos originários y afro-abya-
yalenses instalados en un territorio sagrado que es Abya Yala,
mientras el afuera corresponde a los colonizadores, los herederos
de los colonizadores y a Ias iglesias católicas y protestantes o evan-
gélicas. El término «países» también es extranjero y se opone a
«naciones originarias», que remite a Io propio.

135
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

Al interior de nuestras nacionalidades indígenas tenemos nuestros


centros ceremoniales, nuestras deidades, nuestros propios ritos,
nuestras huacas, g'álpu'l, y otros nombres sagrados, nuestro terrei-
ro de candomblé y vudú, y no iglesias, porque nosotros
comprendemos a Ia religión occidental como algo foráneo que no
responde a nuestra cosmovisión.

A Ia uniformidad y homogeneidad de Ia religión occidental, el docu-


mento le opone Ia diversidad y pluralidad de manifestaciones religi-
osas indígenas, al adentro o interior, le oponen Io foráneo de Ia otra
religión y a su propia religiosidad le oponen el concepto iglesias.
Estas oposiciones se inscriben en Ia relación sagrado-profano. Den-
tro de Ias manifestaciones religiosas son incluídas Ias que remiten a
culturas de origen africano, que ya son aceptadas e incorporadas a
Ias nacionalidades indígenas.

Es interesante observar que al hablar dei interior en este último


párrafo se repite ocho veces el nuestras y nosotros con Ia intención
de reafirmar su identidad hacia adentro y mostrar su pertenencia a
colectividades. En el nosotros ahora están incluídos también los
pueblos de origen africano. Pero al mismo tiempo que hay una
referencia al nosotros como identidad, pero también como unidad y
totalidad, se va mostrando Ia diversidad religiosa, estableciendo un
vínculo entre el todo y Ias partes, que es otro elemento cultural ca-
racterístico de los pueblos indígenas que se relaciona con el orden
cósmico. Pero también al repetir constantemente el nosõtros y el
nuestras y al nombrar Ias distintas manifestaciones religiosas, hay
una acción a través dei discurso que busca potenciar Ia realidad y
reafirmar su identidad. Se busca mostrar Io propio frente a Io extrafío
y al mismo tiempo reafirmarse hacia adentro.
Al marcar Ia división clara entre Ias manifestaciones religiosas propias
y Ia religión occidental que es ubicada como foránea, evidencian
Ias oposiciones irreconciliables y al mismo tiempo buscan separar
Io sagrado propio de Io profano externo, para de esta manera conju-
rar los efectos de Ia colonización y de Ia actual invasión religiosa.
Por eso en el siguiente párrafo reafirman su cosmovisión a partir de
elementos de identificación con los pueblos de origen africano

136
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

Nuestras deidades siempre se han articulado en relación con Ia madre


tierra y el padre sol y demás elementos dei cosmos. El sol es nuestra
energia universal, única y absoluta.

Se habla de deidades y no de dios, para hacer énfasis, por un lado


en una cosmovisión diferente, y por otro para incorporar Ias dife-
rentes m a n i f e s t a c i o n e s de Ias culturas indígenas y afro-abya-
yalenses, pero al mismo tiempo se muestra Ia unidad religiosa
nucleada en el culto al sol. En torno a esta concepción, Alfredo
L ó p e z A u s t i n e n s u e x c e l e n t e a n á l i s i s d e Ia c o s m o l o g í a
mesoamericana nos senala:

hay que tener presente que Ia tendencia a Ia multiplicación de los


dioses y Ia tendencia a Ia concepción de un dios totalizador no son,
en modo alguno, incompatibles. Pueden ser dos aspectos
complementarios de una transformación social que por un lado va
hacia Ia complejidad y por otro hacia Ia concentración dei poder.^^
Aifredo López Austin, Los mi-
tos dei Tla-cuache, México,
Por otro lado se establece una continuidad desde el origen hasta el UNAM, Tercera edíción, 1996,
presente para reafirmar su religiosidad y mostrar su autonomia en p, 192.

relación con Ia religión católica y al mismo tiempo para mostrar Ia


potencialidad de sus religiones que respetan el orden cósmico y
están en armonia con él. Parten de Ia relación dual femenino-madre
tierra y masculino-padre sol, pero senalan que el sol es su energia
universal única y absoluta, otorgándole un lugar central en el cos-
mos y el poder máximo dei que se desplaza todo poder. Y sólo a ese
poder se adscriben y Io acatan.

A Ia interacción armónica que establecen con el cosmos y que im-


plica orden, le oponen enseguida el desorden provocado por un
sistema ajeno a sus culturas

Occidente nos impuso un sistema alienante y retrógrado, que trata


de perpetuarse por médio de los gobiernos actuales, los cuales, a
través dei sistema capitalista y foráneo, niegan nuestra
autodeterminación. Han intentado eliminamos psiquica, espiritual y
fisicamente por médio de Ia imposición ideológica de culturas ajenas
a nuestro ser cósmico de Abya Yala.

137
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

Frente a Io propio y ordenado, aparece de nuevo Io foráneo y provo-


cador de desorden. Lo foráneo es Occldente, el sistema capitalista,
los gobiernos actuales, Ia cultura y Ia ideologia occidentales. Se
observa una inversión argumentativa que busca oponerse a Ia
concepción tradicional occidental que ve al indio conno atrasado,
primitivo y sin alma. Occidente es «alienante y retrógrado», es atra-
s a d o y p r i m i t i v o p o r q u e i m p o n e y no d i a l o g a ni r e s p e t a Ia
autodeterminación dei indígena, busca eliminar y se mantiene por
Ia fuerza y no por el c o n s e n s o , no respeta Ia pluralidad y es
homogeneizador, es dador de muerte y no de vida, es creador de
desorden frente al orden original.
Ante Ia imposición cultural cotidiana de Occidente el texto busca
mostrar Ia continuidad de Ia identidad y Ia resistencia indígena, así
como su potencialidad cultural:
"Pero mantenemos nuestra espiritualidad, nuestras raíces milenarias,
nuestros pensamientos prácticos, reflejados en Ia sabiduría cósmica."
Hay una repetición constante, argumentada de distinta manera, que
busca demostrar Ia estrecha relación con el Cosmos que tienen los
pueblos indígenas, por lo que son los portadores de Ia armonía y el
orden. Además dei recurso de Ia repetición, intercalan parráfos de
lo que implica Occidente con párrafos de lo que son los pueblos
indígenas, buscando evidenciar a través de un paralelismo basado
en oposiciones, o en palabras de Roman Jakobson un «paralelismo
a n t i t é t i c o » 2 ° q u i e n es portador de orden y a r m o n í a y quien de
Roman Jakobson, Arte ver-
desorden e imposición con Ia finalidad de separar uno dei otro.
bal, signo verbal, tiempo ver-
bal. México, FCE, 1992, p. 64. En ese manejo de oposiciones y de enfrentamiento entre lo que
implican Ias dos cosmovisiones también van presentando poco a poco
lo que Occidente piensa de los pueblos indígenas para mostrar que
los retrógrados, herejes, sin alma y sin valores son los dominadores,
tratando de evidenciar que Ia verdadera alternativa actual a un mun-
do depredado y fragmentado es Ia de ellos. Que ellos son los porta-
dores dei orden y Ia armonía. Hay un intento constante de evidenciar
quien es portador de orden y quien de desorden y al mismo tiempo de
generar una inversión a través de una serie de recursos
argumentativos. Esta argumentación se refuerza en el siguiente párrafo

No somos românticos, ni mucho menos nostálgicos, tampoco nos


mueve el revanchismo al tratar de dar vigência a nuestra espiritualidad

138
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

y nuestras culturas, porque creemos profundamente que Ia sabiduría


de Ias naciones originarias es factor preponderante para Ia salvación
de nuestro planeta y de toda Ia humanidad, sin egoísmos porque
nuestra espiritualidad originaria y afro-abya-yalense, se cimenta en el
equilíbrio, en Ia complementación, en Ia identidad y en el consenso.

Observamos que después de exponer poco a poco Ias diferencias


entre Occidente y Ia espiritualidad indígena y de ir invirtiendo Ia
concepción que se tiene de ellos, en este párrafo reafirman Io que
no son y polennizan con Io que dicen de ellos desde Occidente y al
mismo tiempo impugnan sus valores. En este párrafo argumentan
ya de manera abierta que ellos son Ia verdadera alternativa actual
para Ia salvación dei planeta porque no los mueve el egoísmo.
Buscan rescatar culturalmente a Ias naciones indígenas desde el
origen, actualizarlas y potenciarlas a futuro a través de Ia proyección
de sus valores espirituales a toda Ia humanidad. Al rescatarse a sí
mismos buscan también rescatar a todos.

Luego de argumentar que son Ia alternativa para Ia salvación dei mun-


do y de incluir en sus valores e identidad a los pueblos de origen africa-
no, exponen Ia fragmentación política a que está sometida Abya Yala y
sus habitantes originários para luego exponer su propia visión política

Las grandes fronteras que nos dividen son Ia falsa democracia. Ias
naciones artificiales, los gobiernos de turno ya sean de derecha,
centro, izquierda o ultras, que conservan el sistema opresor domi-
nante. Porque nosotros los originários de Ia sagrada Abya Yala he-
mos sido, somos y seremos teocráticos, cosmocéntricos, con un
respeto profundo al macro y micro-cosmos.

A Ia fragmentación provocada por un sistema opresor sustentado


en conceptos y ejercicio dei poder falso, artificial, venido de fuera y
por tanto profano, le oponen su visión político-religiosa de respeto
al todo y las partes dei cosmos y al poder sagrado. En este párrafo
aparecen directamente enfrentados Occidente y los pueblos indí-
genas desde sus distintas percepciones dei poder político. La visión
Occidental implica fragmentación dei tiempo y el espado, es falsa,
artificial y foránea y por tanto generadora de desorden, mientras Ia

139
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

visión indígena al respetar desde el origen al cosmos, desde un


territorio sagrado ubicado en Ia continuidad dei tiempo y el espado,
es productora de orden y por Io tanto constituye Ia verdadera alter-
nativa para un nnundo en equilíbrio.
Al cuestionar Ias fronteras que los dividen hacen una crítica al po-
der dominante y buscan interactuar de manera abierta y no clan-
destina ante Ia sociedad para poder tener influencia en ella y salvar
al mundo a través de sus valores espirituales

En Brasil, como en toda Abya Yala, a pesar de Ia colonización y Ia


esclavitud a que fueron sonnetidas Ias culturas originarias y Ias proveni-
entes de África, éstas si se expresan vivamente en toda Ia sociedad, ya
sea en centros indígenas o terreiros de camdomblé y otras
manifestaciones de espiritualidad afro-brasilenas; y hoy estos centros
ceremoniales son solicitados yfrecuentados por gran parte de Ia sociedad
brasilera, incluyendo negros y no negros, pobres y no pobres.

Al poner de ejemplo a Brasil y Ia influencia de sus religiones en toda


Ia sociedad, se busca invertir el orden en toda América o Abya Yala
y cambiar Ia dinâmica tradicional de Ias religiones dominantes que
se imponen a Ias indígenas y a Ias de origen africano. Pero Ia
inversión no se busca hacerla a través de Ia imposición o Ia invasión
como los hicieron los colonizadores, sino a partir de Ia libre elección
de quienes se acercan a ellas. La inversión también se da al plantear
que el foráneo llegue a los lugares ceremoniales y los respete y no
persista en Ia invasión religiosa que implica conceptualmente Ia
usurpación y extracción de sus manifestaciones religiosas para
trasladarlas a Ias iglesias occidentales. En este sentido, observa-
mos que hay un deseo de salir dei adentro o de Ia clandestinidad e
influir en el afuera o en Ia sociedad, pero al mismo tiempo se proyecta
Ia necesidad de autonomia y de que sean respetados sus territorios
sagrados y que sus manifestaciones religiosas no sean usurpadas
o Nevadas al afuera. Se puede observar a través dei discurso Ia
búsqueda de una inversión en Ia relación histórica tradicional dei
adentro y el afuera entre Ia religiosidad indígena y Ia Occidental.

Quienes elaboraron el documento a Io largo dei texto se han ido


trasladando de un mundo a otro, dei afuera al adentro y dei adentro

140
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

ai afuera, asumiendo un papel liminar o de intermediación con Ia


finalidad de cuestionar principalmente Ia dominación religiosa por parte
de Occidente que ha profanado su adentro sagrado, legitimar su
espiritualidad y mostrar su potencialidad para salvar al mundo y luego
invertir el orden extendiendo Ia influencia de Ia religiosidad indígena
en Ias sociedades y buscando acabar con Ia profanación de Io sagra-
do a través de Ia autonomia religiosa. Como nos dice Mario Califano

El chamán es un individuo inserto en el mundo, en parte igual que el


resto de los miembros de Ia comunidad y en parte diferente por el poder
que ha adquirido, que le brinda un conocimiento y experiencias que Io
separan de los demás. Por Io tanto, es partícipe de Ia cosmovisión
general étnica y que constituye el horizonte referencial general. Pero
está facultado para tratar una región particular de entes en razón de su
condición. Dicho de otro modo, el hecho de ser un personaje
transcategorial le posibilita desplegar un protagonismo doble.^^
Mario Califano, "Los rostros
dei chamán: nombres y esta-
Guando en el documento senalan que en Brasil Ias culturas originá- dos". en C h a m a n i s m o en
rias y africanas se expresan «vivamente en toda Ia sociedad» hacen Latinoamérica. México, P y V,
UIA, CEMCA, 1995. p. 134.
referencia implícita a que saien de Ia clandestinidad y adquieren
vida, pero que también dan vida a Ia sociedad. Ven en Ia religión el
vehículo de cambio para un mundo en armonía y en Io sagrado Ia
capacidad para desplazarse a Io profano. Sobre Ia «contagiosidad
de Io sagrado, escribe Emile Durkheim

por una especie de contradicción, el mundo sagrado se ve como incli-


nado por su misma naturaleza a expandirse hacia aquel mismo mun-
do profano que por otro lado excluye: a Ia vez que Io rechaza, tiende a
desplazarse hacia él a partir ya dei momento en que se le aproxima.^^
Emile Durkheim, Las formas
elementales de Ia vida religio-
Frente a Ia influencia religiosa paulatina de Ias culturas originarias y sa. op. cit. p. 296,
africanas dadoras de vida, el documento senala que sigue presente
Ia depredación y el desorden occidental, dador de muerte

Afirmamos que aún en Ia actualidad se practica el etnocidio, el genocídio,


el ecocidio y hasta el deicidio, por médio de los cuales se continúa
matando las culturas, los hombres, Ia naturaleza y a dios mismo.

141
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

La muerte abarca todos los lados dei mundo, dei Cosmos y a todas Ias
manifestaciones de vida, incluído dios. Al ampliar los términos que remiten
a Ia muerte, los autores intentan mostrar metaforicamente Ia diversificación
de Ia depredación en el capitalismo. Es Ia muerte y el desorden frente a
Ia alternativa de orden y vida que expresa Ia sabiduría cósmica de los
pueblos indígenas. Al argumentar que se continua matando a Ias cultu-
ras, los hombres. Ia naturaleza y a dios mismo, el texto proyecta una
cosmovisión en Ia que el hombre forma parte de un todo más amplio y en
donde todo está interrelacionado dentro dei ciclo vida-muerte. El mismo
dios entra dentro de esta dinâmica. Desde esta perspectiva, el hombre
se asimila a Ia naturaleza y Ia naturaleza se asimila al hombre. Pero Ia
estrecha relación que se establece entre hombre-naturaleza-realidad
sobrenatural, también proyecta Ia función especial de sujetos liminares o
de intermediários que cumpien los chamanes en el mundo indígena.
Hugo Carrasco, al hacer un análisis sobre experiencia chamánica y dis-
curso mítico-simbólico mapuche senala que Mankián, un machi, es

un chamán poderoso, un conocedor de los secretos de Ia naturaleza y


mediador constante de Ia sobrenaturaleza. El modo de ser dei machi
es Ia metamorfosis permanente. Así como Ia naturaleza es metamorfosis
constante, en que un elemento deja de ser Io que es para pasar a ser
otro, y a su vez permitir Ia modificación de otros, el machi es también al
mismo tiempo humano, naturaleza y sobrenatural.^^

Hugo Carrasco, "Experiencia Luego de exponer que Ia muerte está presente en Ias diferentes
Dhamánica y discurso mítico- manifestaciones de una realidad múltiple de Ia que se forma parte, el
simbólico mapuche" en
texto prioriza Ia explicación de como se están matando Ias culturas
Comprensión dei pensamiento
indígena a través de sus
sxpresiones ver~ba!es. Quito, El etnocidio se realiza por médio dei lavado cerebral desde el siste-
Ecuador, Abya Yala, 1994, p. 69.
ma dominante y se consolida con el consumismo, motor dei sistema
capitalista vigente, destruyendo además nuestra calidad de vida tanto
a nivel físico como espiritual.

Hay, según el texto, continuidad en el etnocidio, pero ahora se


manifiesta de una forma más compleja, a través de un sistema do-
minante que de manera más velada infiltra valores y los envuelve
en una dinâmica consumista que afecta su integridad física y espiri-
tual. Hay una lucha constante entre Ia muerte que significa el siste-

142
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

ma dominante-ahora manifestado en el capitalismo-y Ia vida indíge-


na que es constantemente amenazada.
La continuidad etnocida se da también a través de Ia acción religiosa

Actualmente se dan también nuevas estrategias en Ias religiones


dominantes: por ejemplo, Ia creación de Ias llamadas: Pastoral Indí-
gena Evangélica, Pastoral Indígena Ecumênica, Pastoral Afro-Ame-
ricana; se prepara agentes de pastoral, catequistas indígenas,
predicadores evangélicos indígenas; se implementa Ia «nueva
evangelización» que no es más que otra forma de invasión, más
sofisticada, contra nuestra espiritualidad originaria, como nueva for-
ma de extirpación de idolatrias.

A Ias «nuevas» formas de invasión religiosa y a Ia ilegitimidad de


Ias religiones dominantes que tienen que crear y poner nombres le
oponen Ia continuidad de su espiritualidad orginaria. A «llamadas»
o ilegítimas le oponen «nuestras» o propias, a Io nuevo Io originário,
a Io creado o replanteado en Ia coyuntura le oponen Io que perma-
nece y a Ias diversas denominaciones en Ias que se dividen Ias
religiones dominantes, que implementan estrategias diferentes para
cooptar a los pueblos indígenas, le oponen Ia unidad y legitimidad
de «nuestra espiritualidad originaria».

Fero a pesar de Ia crítica contra Ias estrategias de Ias religiones do-


minantes, buscan establecer un puente con ellas y mostrar que en su
interior hay Ia potencialidad de respetar a Ias culturas indígenas

Sin embargo, valoramos los esfuerzos de hermanos que por ser


coherentes y comprometidos con Ia autodeterminación de los pueblos
Índios son perseguidos al interior de sus propias iglesias.

Van al adentro de Ias religiones para mostrar que en su seno no


sólo se encuentra Ia postura invasora y extirpadora de idolatrias,
sino el germen dei respeto a Ia autonomia indígena, aunque no
exento de conflictos y persecuciones. A través de «hermanos»
establecen puntos de identidad con quienes se comprometen con
ellos desde el afuera de Ias otras religiones.

143
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

Observamos un constante desplazamiento dei adentro al afuera.


En el adentro de sus culturas se identifican como parte de los pueblos
indígenas, pero también delimitan su papel de mediadores y espe-
cialistas religiosos. Se deslindan dei afuera al enfrentarse con,
palabras fuertes y cuestionamientos críticos constantes. Pero en
ese afuera también encuentran puntos de identidad con otros indí-
g e n a s con Ia f i n a l i d a d de d e v o l v e r l o s al a d e n t r o o con otros
«hermanos» que pueden coadyuvar a respetar Ia autonomia indí-
gena. Al hablar de autodeterminación de los pueblos Índios el docu-
mento asume una postura política y no se queda sólo en Ia dimensión
religiosa. Observamos que, aunque el documento prioriza el discur-
so religioso y Ia relación con el cosmos, no deja de lado el aspecto
político, el econômico o el cultural de Ia sociedad, proyectando una
cosmovisión que no separa los distintos elementos de Ia realidad.

Exigimos hoy que tengamos el respeto mutuo, independientemente


dei lugar que se nos ha impuesto en Ia sociedad dominante. Acumu-
lamos sobre nosotros cinco siglos de dominación y de irrespeto, y a
pesar de esto siempre hemos sido respetuosos de Ias iglesias y
religiones impuestas.

Al exigir respeto mutuo, plantean estar al mismo nivel en el plano


religioso retomando un valor central en el mundo indígena: el respeto,
que implica reciprocidad. Buscan salir dei abajo en el plano religioso,
aunque economicamente estén dominados, porque a través de Ia
religiosidad como arma de lucha, buscan Ia armonía. Tratan de mos-
trar que los portadores dei respeto como un valor firme y ancestral
son ellos y Io enfrentan al irrespeto y dominación de occidente. Utilizan
Ia palabra "acumulamos", propia de Ia ideologia capitalista, para mos-
trar Ias implicaciones dei sistema de dominación en los pueblos indí-
genas que los ha situado en el abajo y ha estado sustentado en Ia
dominación y falta de valores, mientras que quienes están abajo son
los verdaderos portadores de valores como el respeto. Utilizan de
manera complementaria iglesias y religiones para mostrar Ia doble
cara de Ia dominación religiosa: Ia institucional y Ia espiritual.

L u e g o de p r e s e n t a r a t r a v é s d e un p a r a l e l i s m o b a s a d o en
o p o s i c i o n e s Ia c o n t i n u i d a d , p o t e n c i a l i d a d y v a l o r e s de Ia

144
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

e s p i r i t u a l i d a d i n d í g e n a f r e n t e a Ia falta de v a l o r e s , r e s p e t o ,
innposición, foraneidad y depredación occidental, terminan el apar-
tado de "Nuestra realidad" sintetizando Ia dinâmica de Ia dominación
y de Ia resistencia espiritual indígena a través de un acto de
visualización. Esa dinâmica de ir describiendo Ias diferentes caracte-
rísticas de qnien "ha hecho el dano", para luego terminar con una
visualización, que en este caso se remitió a los colores, es propia
dei ejercicio chamánico de curación.^^
Ver ei texto ya citado de
Douglas Sharon. El Chamán
En síntesis, vemos que nuestra espiritualidad originaria supervive de los cuatro vientos.
en el nnarco de Ia prolongación dei colonialismo y de Ia evangelización.
Hoy esa prolongación se hace neocolonialismo y "nueva
evangelización" al interior dei mismo sistema capitalista. Y hoy Ia re-
evangelización tiene muchos colores en una sola propuesta: "Ia
cristiana"; estos colores son: católicos, evangélicos, metodistas,
luteranos, mormones, testigos de Jehová, adventistas, entre otros.

Luego de haber enfrentado Ias características de Ia imposición reli-


giosa — estrechamente vinculada a relaciones de dominación — y
Ia potencialidad, legitimidad y resistencia de Ias religiones originári-
as, el texto sintetiza Io que considera ser los elementos fundamentales
de Ia realidad actual. Al remitirse a «nuestra espiritualidad originaria»
buscan condensar simbólicamente Ia legitimidad. Ia pertenencia, el origen.
Ia continuidad. Ia resistencia. Ia identidad, el adentro, frente a «Ia
prolongación dei colonialismo y Ia evangelización» que remite a Ia
imposición. Ia dominación, Ia ilegitimidad, Io foráneo. Oponen Ia
continuidad y pervivencia de Io originário frente a "neocolonialismo" o
"nueva evangelización", que implica una nueva estrategia dentro de Ia
continuidad de una forma de dominación que tiene que diversificarse
para seguir existiendo, porque no es legítima y es artificial. Lo mismo o Io
viejo se presenta como nuevo a través de una diversidad de opciones o
distintos colores ofertados dentro dei capitalismo. Al poner entrecomilias
"Ia cristiana" se pretende hacer una crítica a Ia fragmentación religiosa
que ofrece muchas opciones, pero cada una pretende ser Ia original y Ia
única y por lo tanto están divididas. Hay una diversidad religiosa frag-
mentada que no remite a Ia unidad ni al colorido armónico de una sola
espiritualidad como Ia de los pueblos indígenas.

145
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

Oponen Ia unidad en Ia diversidad de Ia espiritualidad indígena frente


a Ia poca unidad o fragmentación de Ia espiritualidad cristiana. La
variedad de opciones a través de Ia visualización de los colores,
remite metafóricamente al consumismo dei capitalismo que oferta y
deslumbra, pero que es falso y foráneo. Sintetizan en una metáfora
visual el peligro de un deslumbramiento religioso que no responde
a Ia realidad indígena.

Se le dedica un párrafo especial a Ia religión católica porque tiene


especial peso en América Latina y es Ia mayoritaria. Se observa Ia
necesidad de conocer al otro para enfrentarlo, como el chamán busca
enfrentar el origen de un desequilíbrio

La propuesta católica se redefine en Ia Carta Encíclica Pastoral


llamada Centecinnus Annus que replantea Ia doctrina social cristiana
como nueva modalidad de etnocidio para unos nuevos 500 anos de
agresión a nuestra identidad.

Al insistir en que Ia iglesia católica redefine, replantea, o pretende


una «nueva modalidad de etnocidio» en «unos nuevos 500 anos de
agresión» plantea que en Ia coyuntura de cambio de un ciclo a otro,
se pretende continuar, mostrando como nuevo, el mismo proyecto
religioso dominante y extenderlo a largo plazo. Frente a Ia nueva
escalada dei proyecto religioso dominante, que viene dei pasado y
se lanza al futuro, presentan Ia potencialidad de Ia resistencia de los
pueblos originários: "Proseguimos y proseguiremos Ia lucha por Ia
autodeterminación política y espiritual de nuestros pueblos originários."
Frente a Ia escalada invasora y etnocida de Ia religiosidad foránea
que tiene que implementar nuevas estrategias para sobrevivir en
América, está Ia continuidad y permanencia de Ia lucha indígena
por Ia autodeterminación política y religiosa. El uso constante de Ia
palabra "originários" vinculada a pueblos, espiritualidad, naciones y
culturas, remite a Ia identidad, a Ia pertenencia, a Io propio, pero
también tiene Ia intención de conjurar a través de Ia palabra el peligro
de Io foráneo, Io ajeno, Io invasor. Se observa Ia paradoja entre Io
que implica ser p u e b l o s originários y tener que luchar por Ia
autodeterminación política y espiritual.

145
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

En el punto 3, titulado "Nuestro Pensamiento" recapitulan sobre su


pasado a partir dei presente y buscan potenciar el futuro a partir de Ia
autoreconstrucción espiritual. Al comenzar esta tercera parte senalan:

Estamos convencidos de que una evaluación histórica seria nos dará


Ia posibilidad de poder connprender nuestra situación actual, para
luego poder proponer algunas alternativas de cambio y de afirmación
de nuestras concepciones espirituales.

Observamos en este párrafo Ia conciencia de Ia neoesidad de recupe-


rar el pasado desde el presente para potenciar el futuro. Pero no es Ia
recuperación de un pasado mítico — aunque si mitificado — sino de un
pasado histórico sobre el que se reflexiona con Ia finalidad de buscar Ia
transformación de Ia realidad. La concepción cíclica dei pensamiento
indígena es valorada y vista como herramienta para potenciar el cam-
bio. Se observa el uso dei tiempo como herramienta de batalla por Ia
transformación social y el fortalecimiento espiritual. El concepto de
historia para ellos no es Ia que quedó atrás y en Ia que hay que empezar
de nuevo. Tampoco es Ia historia lineal o fragmentada como en
Occidente. Por eso terminan Ia idea sefialando: "La historia siempre ha
sido y es Ia parte vital para abrir un proceso de cambio".

Vemos de nuevo el uso dei imperfecto para mostrar Ia potencialidad


de Ia historia no como Io que fue sino como Io que ha sido, para
luego vincularia al es o al presente y lanzarla al futuro. De esta
manera podemos ver el pasado en el presente y en el futuro. Hay
una e s t r e c h a f u s i ó n de t i e m p o s en Ia q u e t o d o s i n t e r a c t ú a n
potenciándose. Si observamos atentamente Ia frase podemos visu-
alizar un desplazamiento conciente por el tiempo, que remite al pa-
pel que juegan los especialistas religiosos cuando pretenden curar
un mal o solucionar un problema social de su comunidad.^^
Sobre ei manejo dei tiempo
Pero Ia historia se remite a recuperar los principies cósmicos y de los chamanes, ver el capí-
espirituales y no Ias relaciones sociales, econômicas o políticas de tulo "Tiempo sagrado; Ias es-
taciones de Ia sesión" dei libro
los pueblos indígenas
ya citado de Douglas Sharon,
pp. 134-145.
Nuestra espiritualidad encierra en su cosmovisiòn el concepto de Ia
MADRE TIERRAy el PADRE SOL que resumen en su significado Ia
matéria, el tiempo y el espado.

147
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

Guando los autores dei documento comienzan su revisión histórica


y se remiten al tiempo original, es interesante observar que ya no
utilizan el tiennpo imperfecto, sino un tiempo largo i o infinito? que
t r a s c i e n d e y e n g l o b a a t o d o s d e s d e el p r e s e n t e . « N u e s t r a
espiritualidad» nos c o n d u c e a Ia identidad y a Ia pertenencia.
«Encierra en su cosmovisión» nos trata de mostrar que ellos son los
verdaderos depositários dei concepto MADRE TI ERRA y PADRE
SOL, con mayúsculas, que todo Io llena, que todo Io permea, que
todo Io resume. Buscan demostrar que en su interioridad y en su
espiritualidad se deposita el orden cósmico, y por Io tanto, forman
parte y viven en armonía con él. También proyecta Ia concepción
dualista indígena sustentada en oposiciones y complementariedades
como el arriba y el abajo, el. adentro y el afuera, Io femenino y Io
masculino. Luego de presentar el concepto dualista que sintetiza su
c o s m o v i s i ó n y e x p r e s a el orden cósmico, e x p o n e n Ia ruptura,
fragmentación y desorden que implicó Ia invasión extranjera:

Con Ia llegada de los occidentales se destruye el respeto y Ia


hermandad de los unos con los otros, el respeto a Ia naturaleza y a
Ia madre tierra, y como resultado de este irrespeto se dividen los
pueblos, se crea fronteras, se rompe Ia armonía y el equilíbrio dei
cosmos, el concepto de MADRE TIERRA y PADRE SOL es enterra-
do en el olvido, y como consecuencia lógica. Ias civilizaciones origi-
nárias con sus prácticas milenarias caminamos a un desconocimiento
y autodesprecio de Io nuestro y a una pérdida de nuestra identidad.

En este párrafo utilizan también el tiempo largo para mostrar Ia


continuidad y Ia permanencia de Ia dominación, pero marcan Ia
oposición entre el tiempo y el espacio contínuos que implica Ia
cosmovisión indígena en armonía con el cosmos, con el tiempo de-
limitado, el espacio fragmentado y Ia ruptura dei equilíbrio cósmico
q u e p r o v o c a el p r o y e c t o o c c i d e n t a l . A «Ia l l e g a d a d e los
o c c i d e n t a l e s » le o p o n e n «Ias c i v i l i z a c i o n e s o r i g i n a r i a s » . La
destrucción de los valores máximos indígenas, que es el respeto y
Ia hermandad entre los seres humanos y con Ia naturaleza, provoca
Ia fragmentación de pueblos y territorios y se olvida el concepto
básico MADRE TIERRA y PADRE SOL, que remite a Ia totalidad. La
fragmentación en el tiempo y el espacio que provoca Ia llegada de

148
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

los occidentales también implica rupturas conceptuales y prácticas


en los indígenas que forman un todo armónico con el cosmos. Como
los indígenas son uno con el cosmos, Ia ruptura de Ia armonía
también les fragmenta Ia memória y los conduce a Ia pérdida de
identidad cultural. Y al ser enterrados los conceptos indígenas, se
camina al futuro de manera oscura y fragmentada, por Io que es
necesario recuperar el pasado para tener claridad y unidad

Después de 500 anos de saqueo y robo, de imposición religiosa,


política, econômica y militar, estamos buscando nuevamente Ia
unidad dentro de Ia diversidad. Por otro lado, estamos buscando Ia
forma de generar un proceso de autoreconstrucción de Io nuestro
desde nuestra espiritualidad y con nuestros propios conceptos filo-
sóficos ancestrales y prácticos.

Al proyecto dominante dei periodo delimitado de 500 anos, susten-


tado en Ia imposición y Ia fragmentación, le oponen un viejo-nuevo
proyecto que recupere desde el origen, desde el tiempo largo, Ia
armonía entre el todo y Ias partes. Esa armonía sólo puede lograrse
si los indígenas se recuperan a sí mismos y rompen con su memória
fragmentada, vinculando conceptos y prácticas culturales. Hay un
deseo de a u t o n o m i a y de recuperación de Ia identidad que se
manifiesta en Ia repetición de nuestro, nuestra y nuestros. Al mani-
festar que están buscando nuevamente Ia unidad en Ia diversidad, se
lanzan al pasado desde el presente para proyectarse al futuro y trans-
formar Ia realidad. Lo nuevo indígena es continuidad desde el origen,
a diferencia dei proyecto occidental que se renueva y diversifica bus-
cando dar otra cara, porque no es legítimo, ni autêntico, ni original.

Desde su visión de conjunto, que desde Ia religiosidad se vincula


con los distintos planos de Ia realidad para explicar su situación de
pueblos oprimidos, senalan

Somos conscientes dei dano que causa a nuestros hijos el contacto


con Ias escuelas, colégios y universidades dirigidos desde Ia cultura
dominante, puesto que Ia educación no respeta nuestra identidad
sino que Ia destruye en lo más profundo de Ia conciencia.

149
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

La invasión no sólo es religiosa, política, econômica y militar, también


se da en el plano de Ia educación, que penetra en el adentro. Ia
interioridad. Ia profundidad indígena, mediante Ia imposición y afecta
su identidad.
Luego de hacer una revisión y síntesis de Ias potencialidades indíge-
nas que resumen en su interior el orden cósmico, de mostrar «el dano»
hecho por los occidentales mediante diversos m e c a n i s m o s de
dominación que provocan el desorden, y de vincular pasado y futuro
desde el presente para volver al orden cósmico original -que sólo será
posible a partir de Ia reconstrucción de Ia identidad indígena destruída
por los invasores- se situan en Ia coyuntura potencial para demandar
Io que consideran vital para recobrar Ia armonía dei cosmos

Estamos en Ia hora de luchar por Ia integralidad de Ias relaciones


hombre-naturaleza-cosmos. Por Io tanto exigimos:
- La devolución de nuestros territorios ancestrales,
- La desprivatización y desmercantilización de nuestros lugares sa-
grados y ceremoniales, y el derecho a que sean resguardados y
administrados por nuestros propios pueblos originários,
- El derecho a Ia autodeterminación política y econômica de nuestros
pueblos,
- El profundo respeto a Ia práctica de nuestra espiritualidad, base y
núcleo vital de nuestra organizaciôn econômica, política, social y
educativa,
- Respeto y valoraciôn de nuestra milenaria práctica ecológica, salud
y medicina de Ia madre tierra y sus elementos componentes que en
occidente llaman médio ambiente,
- La no utilizaciôn de nuestros símbolos y nombres sagrados para
fines comerciales, propagandísticos, mercantiles, militares,
armamentistas y folclóricos.

A partir de Ia visualización en conjunto de sus demandas, podemos


observar que Ia vuelta a Ia unidad y a Ia armonía y el fin dei desorden
y Ia fragmentación, pasa por Ia separación de Io sagrado y Io profa-
no que implica el fin de Ia invasión occidental en todos los planos de
Ia realidad y Ia recuperación de Ia autonomia indígena. El orden
cósmico sólo puede lograrse en Ia medida en que los indígenas

150
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

recuperen sus territorios originales, sus lugares s a g r a d o s , su


autonomia cultural, en fin su orden interno, pero también en Ia me-
dida en que, en el conjunto de Ia sociedad se respete su espiritualidad
y se respete valores de su milenaria sabiduría ecológica que de
salud a Ia madre tierra. La separación de Io sagrado y Io profano
sólo puede lograrse totalmente si en occidente dejan de usurpar y
apropiarse de símbolos y nombres sagrados indígenas.
Pero Ia recuperación total de Ia relación de a r m o n í a hombre-
naturaleza-cosmos se dará cuando Io sagrado indígena irrumpa en
Io profano occidental para salvarlo y transforme su espiritualidad y
sus valores armonizando el cosmos.

Esto será posible cuando, por Ia fuerza de nuestra práctica cultural y


espiritual, los gobiernos. Ias iglesias y religiones reconozcan los va-
lores de Ia identidad de nuestros pueblos y su potencialidad
transformadora de nuestra espiritualidad. Esto es Io que espera Ia
humanidad sumida en Ia peor crisis econômica y espiritual. Es nuestro
desafio devolver al mundo los valores y esperanza de un nuevo
amanecer. «QUE AMANEZCA, QUE LLEGUE LA AURORA» (Popol
Wuh, libro sagrado de los Maya)

La armonía cósmica y el nuevo-viejo orden no vendrá por arte de


magia, sino a través de Ia lucha cultural y espiritual indígena, por
transformar Ias conciencias de quienes desde el poder se cierran a
reconocer su potencialidad espritual e impiden Ia salvación de Ia
humanidad. Observamos en este último párrafo que luego de sepa-
rar Io sagrado y Io profano, invierten el orden y buscan irrumpir en
occidente, pero no para crear desorden, sino para volver al orden
cósmico. Se desplazan al mundo entero para salvarlo, porque se
sienten los depositários de los valores espirituales y culturales
originários y verdaderos. Al senalar que su desfio es «devolver los
valores y Ia esperanza de un nuevo amanecer» se desplazan también
por el tiempo y rescatan el pasado indígena para potenciar el futuro
y comenzar un nuevo orden. Luego de desplazarse por el tiempo y
el e s p a d o y proyectar desde el pasado original Ia potencialidad de
un nuevo orden, terminan el párrafo con una oración puesta con
mayúsculas para que todo Io llene, todo Io permee, todo Io ordene

151
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

"QUE AMANEZCA, QUE LLEGUE LA AURORA", una frase tomada


dei Popol Wuh. Invocam y se apropian, asumen Ia palabra dei Creador
y Formador, dei Corazón dei Cielo y el Corazón de Ia Tierra, de
Tepeu, Gucumatz, los progenitores, el principio dual dei universo, el
Dios Padre-Madre.2®
26 Consultar el texto "Popol
Vuh. El libro dei Consejo". en Luego de renovar e iluminar al mundo a través de Ia palabra origi-
Las literaturas indígenas, Mé- nal, cierran el ciclo ritual dei evento
xico, Promexa, 1985. pp. 325-
424.
En este Encuentro Mundial de Embajadores Religiosos, celebrado
en Ia sagrada tierra de Abya Yala y teniendo como sede anfitrión el
QULLASUYO, hemos sido honrados con Ia participación respetuosa
de hermanos de las religiones hindú, brahama, budista, shintoista,
judia e iglesias cristiana católica y evangélica y hemos recibido su
solidaridad a nuestros planteamientos.

En el párrafo podemos observar que en el evento participan repre-


sentantes de distintas religiones dei mundo, pero el texto está ela-
borado por líderes indígenas, que terminan las primeras tres partes
dei documento agradeciendo a los participantes no indígenas su
Quilasuyo era una de las presencia, respeto y solidaridad. Separan el término religiones e
cuatro partes en las que estaba iglesias para delimitar Ia diferencia entre Ia religión cristiana y las
organizado ei Cuzco en Ia épo- otras. El ciclo ritual Io cierran delimitando el e s p a d o sagrado macro
ca incaica, los otros tres eran
y micro en que fue realizado y ponen con mayúsculas el e s p a d o
Contisuyo, Chin-chasuyo y
Antisuyo. Ver el articuio de R.T. micro o centro desde donde se realizo el evento. Es interesante
Zuidema titulado "Una observar que al iniciar el documento ubican el tiempo de realización
interpretación alterna de Ia dei evento, situado en el fin de un ciclo y el inicio de otro, y terminan
historia incaica" en Ia antologia
senalando el e s p a d o en que se celebro. Q U L L A S U Y O Io ponen
de Juan M. Ossio, Ideologia
mesiánica dei mundo andino.
con mayúsculas porque es el e s p a d o sagrado, el centro desde don-
Lima. Perú, Editorial ignacio de se realizo el evento y desde el cual los líderes religiosos se
Prado, 1973, pp. 3-29. proyectaron al tiempo y al espacio.^^ En el texto observamos que
sólo tres términos fueron puestos con mayúsculas: Primero MADRE
TIERRA Y PADRE SOL, luego "QUE AMANEZCA, QUE LLEGUE
LA A U R O R A " y al final QULLASUYO. Madre Tierra y Padre Sol,
como ellos mismos Io senalaron, resumen Ia matéria, el tiempo y el
e s p a d o y también remite a Ia identidad espiritual indígena y a Ia
potencialidad de un nuevo orden, de un nuevo amanecer. Madre
Tierra y Padre Sol se repite dos veces para senalar Ia estrecha

152
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

relación que hay entre Ia espiritualidad indígena y el principio dual


ordenador dei universo. No puede existir uno sin el otro. Bajo esa
lógica, ellos son los únicos que pueden garantizar al mundo un nuevo
amanecer. Por eso, después con nnayúsculas se atreven a nombrar,
a o r d e n a r c o m o si f u e r a n d i o s e s , a s u m e n Ia d u a l i d a d y Ia
potencialidad dei resurgimiento cósmico a través de Ia frase con
mayúsculas "QUE AMANEZCA, QUE LLEGUE LA AURORA". Ese
ordenamiento dei mundo, ese nuevo orden potencial dado a través
de Ia palabra se hace desde un e s p a d o ritual, desde el centro de
una gran civilización, el QULLASUYO, nombrado con su nombre
original. Además, el evento es el principio de cambio de ciclo y de
orden t a m b i é n porque en él fueron e s c u c h a d o s , respetados y
apoyados por otras religiones e iglesias, Io cual remite a un momen-
to potencial de transformación.

Luego de cerrar el ciclo ritual y de mostrar Ias potencialidades y


limites para Ia conformación de un nuevo orden, terminan el docu-
mento con una cuarta parte en Ia que se abocan a senalar deman-
das concretas o prácticas que conduzcan a lograr una nueva relación
hombre-naturaleza-cosmos. Esta parte nos muestra que el cambio
no vendrá sólo por arte de magia o por Ia pura palabra, que Ia
potencialidad de transformación también parte dei trabajo y de Ia
lucha concreta y cotidiana. Que el ritual no sólo es dicurso, es también
acción. Por eso sefíalan: "Luego de nuestra exposición y declaración,
proponemos:" y van enumerando una a una Ias medidas a tomar
para lograr el cambio.

4.1 Pedir a los gobiernos, iglesias, instituciones y partidos políticos el


cese dei proselitismo al interior de nuestras comunidades indígenas.

La primera demanda concreta no se refiere sólo al fin de Ia invasión


religiosa, sino que involucra a todos Io actores que interfieren y
afectan Ia autonomia cultural indígena. Piden al afuera que deje de
invadir al adentro, a Io propio.

4.2 Que se respete Ia integridad de nuestra cosmovisión y de nuestras


prácticas espirituales.

153
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

Piden poner fin a Ia fragmentación indígena a través de Ia armonía


entre cosmovisión y práctica, de Io abstracto y Io concreto como un
todo, piden recuperar Ia unidad. No sólo es el cese de Ia invasión,
sino el respeto que garantice Ia autonomia espiritual indígena.

4.3 Que se de seguimiento al diálogo entre Ias religiones e iglesias


sobre Ia base dei respeto mutuo.

Pero esa autonomia que piden en el segundo punto no implica


autarquia sino interrelación de igual a igual con otras religiones e
iglesias en una verdadera relación intercultural.

4.4 Que no se utilice nuestra espiritualidad originaria para implantar


otras religiones.

La invasión no sólo es de afuera hacia adentro, sino es extracción dei


adentro hacia el afuera. Por eso Ia autonomia no sólo implica el fin
dei proselitismo espiritual en el interior de Ias comunidades, sino aca-
bar con Ia utilización de su espiritualidad fuera de sus comunidades.
Ellos son los únicos portadores de Ia espiritualidad originaria.

4.5 Realizar un trabajo de depuración de nuestra espiritualidad en


base a Ia sabiduría de nuestros consejos y ancianos.

La invasión está presente también en el interior de. Ia espiritualidad


indígena originaria y hacen un llamado a depuraria a través de Ia
sabiduría ancestral de líderes religiosos y ancianos. Se adjudican
un papel activo en el rescate de Ia espiritualidad indígena a través
de Ia revitalización dei papel de los ancianos y de los chamanes
transmisores de Ia sabiduría indígena a través de Ia oralidad. Hay
en los puntos sefialados un constante ir y venir dei adentro al afuera
y una vuelta dei afuera al adentro con el fin de recomponer Ia
correlación de fuerzas entre ellos y a Ia vez ir modificando el adentro
y el afuera para entablar una nueva relación de respeto mutuo, ^^o
una inversión cósmica en Ia que se revierta el desorden actual y
se vuelva a Ia espiritualidad originaria plena, d o n d e todo era
armonía y orden?

154
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

4.6 Que Ias religiones no se definan como Ias únicas portadoras de


Ia verdad y de Ia salvación, posición nociva para el desarrollo dei
diálogo constructivo.

Buscan no sólo un resurginniento desde adentro, sino un cambio de


actitud de Ias otras religiones con el fin de que se de un verdadero
intercâmbio de igual a igual entre ellas, buscando así potenciar desde
adentro y desde afuera a su religiosidad. Al pedir que Ias religiones
no se sientan únicas p o r t a d o r a s de Ia v e r d a d y Ia salvación,
pretenden abrir un e s p a d o potencial para mostrar y convencer al
mundo de sus valores espirituales.

Exigir Ia devolución de nuestros lugares sagrados y ceremoniales.


Que estos centros estén bajo Ia protección y administración de
nuestras autoridades originarias.

En los puntos analizados observamos que se pide, se nombra o se


exige. Se pide respeto de instituciones ajenas a Ias comunidades, se
nombra de manera impersonal a través dei «Que», se busca ordenar
Io desordenado, como cuando Dios Padre y Madre dijo «Que Amanezca,
que llegue Ia aurora» en el Popol Wuh y se exige Io que consideran ser
vital para lograr Ia autonomia espiritual. Se solicita, se nombra y se
exige, Ia palabra se diversifica con el fin de transformar Ia realidad,
pero también hay referencia a Ia lucha concreta a través de realizar, de
trabajar. Discurso y acción están estrechamente vinculados.

4.8 Nuestro pernnanente esfuerzo debe encaminarse al rescate glo-


bal de nuestra cosmovisión. Que trabajennos por Ia reunificación de
todos los aspectos de nuestra vida y de nuestras nacionalidades en
su integridad.

La insistência en Io nuestro es Ia búsqueda de un rescate de Ia


identidad integral de Ia memória fragmentada por Ia dominación.
Se busca unir Io disperso, Io fragmentado para volver al orden
original. Rescate global, reunificación e integridad son un llamado
a Ia unidad, a Ia vuelta al todo armónico, a través dei esfuerzo y
el trabajo.

155
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

4.9 Establecer en toda nuestra sagrada Abya Yala consejos de sábios


y sacerdotes originários: yatiris, amautas, kallawailas, altomisayoks,
shamanes, shailas, jaimanás, sukias, ajg'ijs, ajawas, yachacs... a fin
de que recuperem los ritos y ceremonias de Ia sabiduría ancestral, y
que Ia compartan con los más jóvenes. Solicitar a nuestros ancianos
un trabajo de equilíbrio y unificación en toda Abya Yala, pues
únicamente ellos pueden calmar Ia sed de sabiduría que tenemos.
En este sentido, celebramos Ia creación dei Consejo Quila dei Saber
Ancestral, constituído en Quilasuyo en el marco de este encuentro, y
decidimos rescatarlo como ejemplo para nuestros pueblos.

Buscan Ia unidad, paro dentro de Ia diversidad de Ia que se sienten


parte. Por eso mencionan todos los nombres de los líderes espirituales
que son englobados en Ia categoria de sábios y sacerdotes originários.
Buscan recomponer el liderazgo original de los especialistas religio-
sos y revalorar el papel de los ancianos como transmisores dei
conocimiento ancestral indígena. Hay una contrapropuesta a Ia
diversidad religiosa occidental que amparada en el cristianismo y
sustentando cada una que es Ia verdadera, ofrece propuestas frag-
mentadas y falsas. En Ia religiosidad indígena Ia diversidad está en
armonía con una sola espiritualidad y el liderazgo de sacerdotes y
ancianos tiene Ia finalidad de lograr una reconstitución total en un
territorio sagrado que les pertenece. El Encuentro en el que participan
también es potencial, pues en él se formó el Consejo Quila dei poder
ancestral como parte de Ia reconstitución de Ia espiritualidad indíge-
na en todo el Continente. La sabiduría y Ia capacidad de armonizar el
Cosmos se deposita en sacerdotes y ancianos. En los distintos puntos
van conjurando Ias trabas para el desarrollo de su espiritualidad y al
mismo tiempo van reconstituyendo Ia espiritualidad indígena en el
plano de cosmovisión y en ir armando Ias condiciones para ejercerla.
Por eso piden Ia devolución de sus lugares de culto y buscan
establecer Consejos a Io largo de Abya Yala.

4.10 Redactar una carta al Parlamento Europeo exigiendo de cada


uno de sus gobiernos Ia devolución de todo Io saqueado: nuestros
textos y reliquias sagradas, nuestro oro, plata y piedras preciosas,
códices y más elementos sagrados para nuestros pueblos.

156
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

La reconstitución de Ia espiritualidad indígena también pasa por Ia


devolución al adentro sagrado de todo Io extraído por Europa, por Io
foráneo profano. Es interesante observar a quién se dirigen y bajo qué
médio exigen Ia devolución de Io expropiado, pues sitúa a los redactores
dei documento como conocedores de Ias instituciones internacionales
de poder. Además manejan como vehículo de demanda Ia palabra es-
crita. Pero al mismo tiempo que se sitúan en Io más actualizado de Ia
realidad mundial, exigen reivindicaciones que les permita volver al origen
y reconstituirse desde el pasado para potenciar el futuro.

4.11 Frente a Ia muerte lenta de nuestros pueblos por Ia extorsión de


Ia deuda externa, exigir al Banco Mundial, al Fondo Monetário Inter-
nacional, a los gobiernos de los países europeos, al Vaticano, al
gobierno de Bush, y demás organismos financieros. Ia indemnización
a nuestra Abya Yala.

La reconstitución de Ia espiritualidad indígena no sólo implica Ia


devolución de sus lugares y objetos sagrados originários, también
pasa por Ia exigencia actual a todos los organismos y gobiernos
que consideran han participado en Ia extracción de Ias riquezas de
Abya Yala a través de mecanismos financieros. Se desplazan por
todo el m u n d o para pedir c u e n t a s a instituciones y g o b i e r n o s
colonialistas y neocolonialistas que han extraído distintos tipos de
riquezas de sus territorios originales y sagrados. La indemnización
Ia piden para sus pueblos, ya que ellos son los habitantes originários.
No hay apertura a otros grupos sociales afectados. Además, Ia
indemnización les daria potencialidad e c o n ô m i c a y con ello se
restituiría su integridad en todos los planos. Incorporan al Vaticano
como depositário de todos los tributos y diezmos que se han visto
obligados a pagar a Ia Iglesia a Io largo de Ia historia.

4.12 Para el seguimiento de este primer esfuerzo vemos Ia necesidad


de iniciar una coordinación permanente entre los sábios de nuestras
nacionalidades indígenas.

Observamos que no sólo se desplazan de un e s p a d o a otro y de un


tiempo a otro, también pasan dei discurso a Ia práctica, vinculan Io

157
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

abstracto y Io concreto. Saben que tienen que lograr Ia unidad y


entablar una lucha constante y concreta para llevar adelante Ias
propuestas. No buscan alianzas sino que se sienten los depositários
dei liderazgo de Abya Yala y los potenciadores de un proceso de
renovación espiritual en todo el Continente y en el mundo. Pero no
dicen entre nosotros los sábios sino que se sitúan como parte de Ias
nacionalidades indígenas, de un nosotros más amplio. Se legitiman
al mismo tiempo como representantes de sus pueblos.

4.13 Ser consecuentes con nuestras propuestas, declaraciones, de-


mandas y acuerdos, asumiendo un compromiso personal en Ia vida
cotidiana con todo Io que significa nuestra relación hombre-
naturaleza-cosmos.

Se observa el gran valor que dan a Ia oralidad, a Ia palabra, pero no


Ia desligan de Ia realidad y de Ia acción. Debe haber congruência
entre Io que se dice y Io que se hace. Del macro espacio-tiempo se
desplazan al micro espacio-tiempo y de Io colectivo a Io individual,
para proponer una transformación cósmica desde Io cotidiano y lo-
grar una nueva relación integral entre el todo y Ias partes.

4.14 Alertar a todas Ias organizaciones indígenas de Abya Yala so-


bre el plan de Espafia, los gobiernos nacionales y Ia República
Dominicana, de llevar a nuestros ancianos y ancianas a fin de reali-
zar un festival-show sobre nuestra espiritualidad y así justificar el
llamado "encuentro de dos mundos", "encuentro de dos culturas".

Se abren a otras o r g a n i z a c i o n e s indígenas, no para entablar


alianzas, ni para proponer alternativas de lucha conjunta, sino para
que impidan con su fuerza organizativa una invasión más a través
de Ia extracción, utilización y exposición de sus valores culturales,
representados en los depositários de Ia sabiduría ancestral origina-
ria. En realidad Ias propuestas se orientan en su totalidad al rescate
de Ia espiritualidad en todas sus dimensiones para devolver Ia
armonía cósmica a Abya Yala y por eso no plantean alianzas políti-
cas con otras organizaciones, salvo en problemas puntuales que
atanen al rescate cultural de los pueblos indígenas. Se busca entablar

158
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

a l i a n z a s con los e s p e c i a l i s t a s religiosos dei C o n t i n e n t e . Hay


una p e r m a n e n t e crítica simbólica o metafórica al capitalismo a
través de una serie de i m á g e n e s a Io largo dei texto. La i m a g e n
"festival-show" constituye una crítica c o m p l e m e n t a r i a a Ia visión
de Ia oferta y el c o n s u m o capitalista e x p u e s t o a través de Ia
metáfora de los colores de Ias religiones y es una resistencia a
q u e sea e x p u e s t o , o f e r t a d o y m a n i p u l a d o i d e o l ó g i c a m e n t e el
c o l o r i d o de Ia e s p i r i t u a l i d a d i n d í g e n a . " E n c u e n t r o e n t r e d o s
mundos" o "encuentro de dos culturas" Io ponen entre comilias
porque en realidad para ellos fue una invasión a diferentes ni-
veles manifestada en Ia profanación de su espacio sagrado y Ia
extracción de sus e l e m e n t o s s a g r a d o s y de sus riquezas. El úl-
timo punto busca contrarrestar Ia manipulación ideológica capi-
talista m e d i a n t e Ia difusión de Ia palabra indígena a todos los
rincones dei planeta.

4.15 Hacer todos los esfuerzos para dar a esta Declaración Ia mayor
difusión al interior de nuestras nacionalidades y publicar en todos
los nnedios de comunicación posibles, en Ia dimensión de los cuatro
puntos cardinales dei globo terrestre.
Que el corazón dei saber y el equilibrio que sostiene nuestra
espiritualidad animen nuestro trabajo y lucha nnilenarios.

Se busca difundir Ia Declaración a través de Ia oralidad entre los


pueblos indígenas, pero también ofrecerla por escrito a todo el mun-
do. Al mencionar los cuatro puntos cardinales hay Ia intencionalidad
de expandir su mensaje espiritual transformador al adentro y al
afuera, de reordenar el espacio a través de una invocación final a
partir dei centro en que se encuentran. Porque como senala Eduar-
do en £7 Chamán de /os cuatro vientos: l . e l hombre está dotado
para tomarlo todo desde su origen y abrazar y absorber todo, todo
Io que contiene el universo.
Douglas Sharon, El chamán
Terminan el documento con una oración que busca reafirmar el po- de los cuatro vientos. op.dt .,
tencial espiritual indígena para seguir vinculando pensamiento y P
acción. Están concientes de Ias dificultades que tienen que enfren-
tar y de Ia larga lucha que hay que dar para transformar Ia realidad
y lograr Ia renovación cósmica.

159
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

conclusiones
Situados en un espado y un tiempo potencial, liminar y ritual de fin
de un ciclo y comienzo de otro, los autores dei texto, a través de Ia
palabra, delimitan su identidad y renombran su territorio desde el
origen, con el fin de instrumentarlo como símbolo de vida y oponerlo
a Ia muerte que significo Ia llegada de los espanoles.
La proyección de un discurso religioso opera a través de Ias oposiciones
sagrado-profano, orden-desorden, vida-muerte, todo-partes y en torno
a ellas se van tejiendo una serie de recursos argumentativos como Ias
paradojas, Ias palabras duras y suaves o Ia confrontación de tiempos y
el enfrentamiento conceptual e ideológico, con Ia finalidad de mostrar
que los pueblos indígenas son los portadores de vida, de orden, de
armonía y de Io sagrado, mientras los occidentales son portadores de
Ia muerte, dei desorden, de Io profano y de Io impuro.
Los autores dei texto se trasladan dei mundo sagrado indígena al
mundo profano occidental y van invirtiendo paulatinamente el orden,
en una dinâmica en Ia que, al mismo tiempo que se describen a sí
mismos e incorporan en el nosostros a Ias culturas afro-abyalenses,
describen a los occidentales con Ia intención de mostrar que son
ellos los depositários dei orden cósmico y por tanto los únicos que
pueden salvar a Ia humanidad de Ia depredación y dei desorden.
A través de una observación visual también podemos ver que a Io
largo de Ia argumentación discursiva aparece una y otra vez el tér-
mino Abya Yala y en Ia última parte dei texto se repite cuatro veces.
Esta imagen es instrumentada como un símbolo que, repetido cons-
tantemente a Io largo dei texto, remite al espado y tiempo originales,
expresa el nosotros y el adentro, manifiesta Io sagrado y Ia totalidad
donde un orden original prevalecia. El mismo símbolo es utilizado
para mostrar Ia fragmentación y el desorden provocado por Ia llegada
de los extranjeros. Abya Yala también es una palabra indígena que
es utilizada desde el origen para legitimarse y que remite a Ia unidad
y a Ia identidad de los pueblos indígenas, ya que es un concepto
que ha sido retomado por los movimientos indígenas para referirse
a América. La repetición constante de Abya Yala se inscribe en un
discurso ritual en el que un símbolo aglutinador o «denso» es utili-
zado con distintos sentidos para mostrar una realidad dual en Ia
que se marcan Ias oposiciones y Ias complementariedades. Ias

160
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

alianzas y los enfrentamientos con Ia finalidad de trastocar el orden


en un tiempo y un espado potenciales.
Abya Yala nos conduce a un tiempo y un espado sagrado originales
en el que prevalecia Ia armonía y el orden. Es el símbolo a través dei
cual los autores dei documento organizan el espado y el tiempo sa-
grados para !uego mostrar Ia profanación y desorden que implico Ia
llegada de los conquistadores. A partir de esa irrupción de Io profano
en Io sagrado, los autores, situados en Ia zona liminal, en el umbral,
en el campo médio, en el centro dei Cosmos, se mueven de un lugar
a otro para mostrar Ias potencialidades y limites de Ia espiritualidad
indígena y Ias características de Ia invasión religiosa occidental y
buscan al mismo tiempo ir separando Io profano occidental de Io sa-
grado indígena para invertir el orden y lograr que Io sagrado se difun-
da hada Io profano, para volver al mundo original consagrado por los
dioses. Se busca una nueva relación entre Io sagrado y Io profano
para restaurar el equilíbrio cósmico. Pero esa nueva relación, esa
inversión que restaure el orden original, no vendrá por arte de magia,
ni sólo por Ia palabra o el discurso, o Ia oración. Requiere de Ia acción
a largo y corto plazo. Requiere de Ia lucha y dei trabajo cotidianos.

El símbolo Abya Yala se repite 12 veces a Io largo dei texto, y este


número remite al orden cósmico, a Ia salvación y a un ciclo. En torno a
Abya Yala se repiten constantemente otros conceptos, que también
son utilizados como símbolos. «Originários» remite al origen y a Ia
legitimidad indígena, «sagrados» a todo Io que tiene que ver con su
espiritualidad y «respeto» es su valor principal basado en Ia reciprocidad.
Otros elementos simbólico-metafóricos dei texto son el uso dei sonido
y el color, expresados a través dei ruido y Ia visualización y tienen
como función marcar los limites y Ias oposiciones entre el mundo
indígena y el mundo occidental. La operacionalización de una serie
de elementos simbólicos tiene como finalidad buscar el equilíbrio
dei poder y contrarrestar el desorden cósmico. El documento está
organizado como una mesa ritual que expresa o simboliza el tiempo
y los tres planos dei cosmos y el espacio y los cuatro puntos
cardinales, y en ella el chamán deposita una serie de símbolos que
utiliza a Io largo dei ritual para ir conjurando el desorden. El chamán
se sitúa en el centro, en el «campo médio», en el umbral o limite y
actúa como mediador entre el mundo sagrado y el profano con Ia
finalidad de trascender los opuestos y lograr Ia renovación espiritual.

151
félix, gloria alicia caudillo. Imaginário - usp, n° 7, pág. 119-162, 2001

El USO de los símbolos m á x i m o s - por eso están puestos con


mayúsculas-MADRE TIERRA Y PADRE SOL, que como ellos mismos
sefialan representa Ia matéria, el tiempo y el espacio, se hace des-
de el centro donde se encuentran, EL QULLASUYO, y desde ese
lugar llaman a Ia renovación dei mundo con Ia frase dei Popol Wuh
«QUE AMANEZCA, QUE LLEGUE LA AURORA».

Resumen: En este artículo se analiza un documento elaborado por


líderes espirituales de América (Abya Vala o «tierra de vida») en el
que los autores asumen el papel de intermediários entre el mundo
sagrado y el mundo profano e instrumentan símbolos y valores propios,
en estrecha interacción con el otro cultural. La intención es mostrar al
mundo que los pueblos indígenas son portadores de una espiritualidad
originaria estrechamente vinculada con el Cosmos, mientras que Ias
otras religiones y el sistema capitalista dominante han usurpado su
espacio sagrado y expresan una realidad ajena a sus culturas.

Palabras clave: Discurso, religiosidad, religiones, Iglesias, oralidad,


sagrado, profano, Abya Vala, cultura, cosmovisión, Occidente, capi-
talismo, identidad.

Abstract: This article deals with a document prepared by America's


spiritual leaders (Abya Vala, or "land of life'), in which the authors act
as intermediaries between the holy and the unholy making use of
specific symbois and values in dose relationship with the cultural
otherness. Its purpose is to show the world that Indian people are
carriers of an original spirituality closely related to the cosmos; other
religions, as well as the capitalist system, have usurped their holy
territory, thus expressing a reality alien to their cultures.

Key words: speech, spirituality, religions, churches, oral tradition, sacred,


profane, Abya Vala, culture, world vision, west, capitalism, identity

162
maldonado, ezequiel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 163-172, 2001

desde Ia memória al registro escrito en los


relatos zapatistas^
^ La primera versión de este
texto fue ieída en el lii Cotoquio

Ezequiel Maldonadcf José Ma. Arguedas, en Ia


ENAH, ei 5 de marzo de 2001.

En el último Encuentro Continental de Escritores en Lenguas indí- 2 Profesor-investigador de ia


genas, octubre de 2000, fue moneda corriente Ia utilización dei tér- Universidad Autônoma Metro-
politana. plantei Azcapo-tzalco,
mino oralitura en referencia al carácter oral de una literatura
México.
practicada por los escritores indios de diversas nacionalidades. Por
ejemplo, Fredy Romeiro, quechua yanacona de Colombia, senaló:
"el desarrollo de Ia oralitura es fundamental en (el rescaté) de Ias
adivinanzas, los consejos, los cuentos, Ia interpretación de los
suenos. Ias historias i n m e d i a t a s . . . " ^ Sin embargo, no dejó de
2 Entrevista inédita de Carlos
extranarnos Ia reiteración de un término que adquiria carta de
Huamán a Fredy Romeiro en
naturalización en boca de quichuas y aimaras y aún de mayas. Al el Segundo Encuentro Conti-
respecto, Adolfo Colombres^ dice que el abandonar el concepto "li- nental de Escritores en Len-
teratura oral" por "oralitura" es relegar dicha producción en una guas Indígenas, en Chetumal,

categoria que dificilmente será incluída en el terreno artistico. Aun Quintana Roo. México, 12-14
de octubre de 2000.
el concepto Artes verbales propuesto por Walter Ong Io considera
limitado. Este ejemplo basta para un terreno minado en que se
mueven a quienes interesa un campo de Ia literatura que ha sido Adolfo Colombres,
excluido o subordinado por castas literarias. Ceíebración deUen-guaje. Bs.
As. Argentina, Ediciones dei
Es notable Ia difusión de una literatura india que en otra época se sol. 1997. p. 70-71.
m e n o s p r e c i ó y calificó c o m o propia de s o c i e d a d e s ágrafas;
contribuyó, en gran medida, su clasificación como documento an-
tropológico y su deslinde con Io artistico. El aspecto medular dei
rechazo fue su proyección oral. Ia fugacidad de palabras que el viento
se llevaria, en un médio donde se enalteció Ia perennidad de Io
escrito. Hoy Io fugaz frente a Io perenne ya no constituye critério

163
maldonado, ezequiel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 163-172, 2001

decisorio de Io literário y aun el perfil etnográfico se desplaza. Y es


precisamente su carácter oral Io que proyecta y da realce en Ia
actualidad a esta expresión. Sin embargo, son otros los calificativos
que permean su entorno como el llamar a quienes Ia practican con
el título de c u l t u r a s e m e r g e n t e s y a Ia c a r a c t e r i z a c i ó n de su
producción como Reservas culturales de Ia literatura oraP. Veamos
5 Stéphane Santerres-Sarkany.
algunas de las características de estas reservas culturales que los
I Que sé? Teoria de Ia literatura.
México, Presses Universitaires franceses ubican en poblaciones africanas, pero que resultan afi-
de France-Publicaciones Cruz, nes a Ia producción indígena latinoamericana:
1992. p- 46.

1) Ia espontaneidad, vinculada a su carácter popular y en expresiones


de Ia vida cotidiana; 2) el profesionalismo, donde los célebres griots,
recitadores y rezanderos pertenecientes a una casta, "representan Ia
acción popular simbólica y unen Ia literatura oral al orden mágico"; 3)
Ia memória colectiva y su vínculo con el saber tradicional de Ia
comunidad; 4) Ia extensión general de las literaturas orales, que rechaza
el prejuicio de Ia inexistência literaria en los pueblos africanos
® Ibid, p. 47-48.

' Vid. Carlos Monte-mayor, Los d i v e r s o s p u e b l o s dei p l a n e t a se han a p r o p i a d o de estas


Artey trama en el cuento indí- manifestaciones culturales, hechura original de nobles y clases en el
gena. México, FCE, 1998. p. poder, las han recreado y trasmitido. Si bien han existido relatores
15.
excepcionales o cuentistas de oficio que siguen determinadas pautas
culturales y que han sistematizado una forma dei contar tradicional
sin tergiversar Ia forma o estructura dei relato que seria como desvir-
tuar acontecimientos históricos o religiosos^, esta literatura oral es
® Gabriela Coronado Suzan,
patrimonio colectivo, parte integral de suefios y promesas, esperanzas
"La literatura indígena: una mi-
rada desde tuera" en Situación y resistências. "En ella se manifiesta Ia concepción de Ia vida indivi-
actual y perspectivas de Ia li- dual y social, es Ia memória colectiva. Puede ser usada para trasmitir
teratura en lenguas indígenas. su historia tanto legendaria o mítica, como reciente, para ensefiar las
México, Conaculta, 1993. p. 57.
normas de comportamiento dei grupo y sus formas de organización
social y religiosa, para comprender Ia relación dei hombre con Ia
® Subcomandante Insurgente
naturaleza (...) instrumento para Ia continuidad y cohesión de Ia unidad
Marcos. Relatos dei Viejo An-
tonio. México, Centro de Infor-
social..."® Memória colectiva y espacio fundamental de subsistência y
mación y Análisis de Chiapas, reproducción cultural de nuestros pueblos.
1998. 128 pp. Las siguientes
citas son t o m a d a s de esta
Los relatos zapatistas®, publicados en diários, revistas y, posterior-
edíción y las insertaré en el tex- mente, en libros, recrean Ia tradición de Ia oralidad. Son textos que,
to entre paréntesis. en primera instancia, considero, se contaron a colectivos y ahí se

164
maldonado, ezequiel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 163-172, 2001

probaron diversas fórmulas, suponemos vinculadas a Ia tradición


cultural dei grupo étnico, con una elevada intencionalidad artística.
Ese probar implico no sólo s u p r i m i r o a d i c i o n a r a n é c d o t a s o
personajes, sino recuperar Ia memória dei grupo en Ia devolución
de sus relatos. También en el seno dei grupo se discutiria si el
producto final, en el papel impreso, funcionaria para un grupo de
lectores más que de oyentes vinculado a una tradición letrada. El
riesgo de transitar en un médio donde Ia cultura libresca y una
tradición revolucionaria ortodoxa, que restringia espacios para Ia
poesia o Ia creación, implicaba serias descalificaciones: o se era
revolucionário o se era poeta. Zapatista a tus zapatos.
Los relatos, con Ia extraheza inicial, provocaron un agradable im-
pacto, sobre todo entre jóvenes memoristas y recitadores. Relatos
con un logro excepcional en un âmbito libresco, conservador e into-
lerante para manifestaciones no encuadradas en gêneros literários
existentes: conservan el tono. Ia frescura. Ia coloquialidad de un
relator frente a escuchas, indios o no indios. Esta oralidad fue
producida con el efecto de Ia repetición de aspectos clave que
imponen determinado ritmo y musicalidad. Si bien conserva una
estructura regular en el aspecto formal, su contenido cambia y se
adecua a Ias actuales transformaciones culturales. "Cada tradición
sirve un interés y es portadora de ciertas estructuras en el conjunto
de Ia cultura (...) si un cambio sobreviene en Ia estructura politica
(por ejemplo) es probable que... sea adaptado a Ia estructura a s i
modificada..."^® El discurso zapatista, especificamente los relatos,
^ Ibid, p, 58.
más que informar producen una c o m p l e j i d a d de s i m b o l o s con
significaciones novedosas. Hay una capacidad de recreación en Ias
historias dei viejo Antonio pero siempre con estrecho nexo identitario.
Relatos que surgen dei pasado se ligan con el presente y se
proyectan al futuro. Literatura oral, producto colectivo de varias
generaciones^\ Producción que los diversos pueblos han pulido,
" ibid, p. 57.
enriquecido y, en algunos casos, transformado.

Esta literatura hoy se p r o p a g a g r a c i a s al Ya B a s t a m a y a , al


Levantamiento finisecular de los indios zapatistas en enero de 1994,
con apropiación de Ia escritura hispana y cuyo objetivo pareciera
m u y d i f e r e n t e al d e s u s a n t e p a s a d o s . Si b i e n los i n d i o s
contemporâneos rescatan conocimientos ancestrales, cosmogonias.

165
maldonado, ezequiel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 163-172, 2001

creencias y costumbres, también redactan manifiestos, proclamas y


comunicados con una elevada intencionalidad política y donde los
destinatários, amen de Ia Tonita y ei Heriberto — ninos zapatistas —,
escuchas reales o ficticias, son un público nacional e internacional.
Este hecho, el dirigirse a destinatários que desconocen Ias lenguas
Índias, corre el riesgo de uniformar los relatos pero, considero, Io
salva Ia pericia de un mediador excepcional, un traductor no en sen-
tido primário de Ia expresión, sino el que interpreta y da cauce a un
pensamiento, como el relator Marcos. En el actual proyecto indígena
resulta fundamental el registro escrito de su tradición oral como sefíala
Gabriela Coronado: "es una muestra de legitimidad, ante los otros,
de Ia cultura y Ia lengua de los grupos étnicos. A su vez, y como
reflejo, es también un elemento de revalorización de Io propio..."^^
Ibidem, p. 61.
Los elementos de cultura apropiada son ajenos, en el sentido de
que su producción y/o reproducción no está bajo el control cultural
dei grupo, pero este los usa y decide sobre ellos. Como ejemplo, Ia
apropiación de grabadoras portátiles, cassettes, videos, cuyo uso
permite difundir música propia, consignas políticas^^, entrevistas y
Vid Guíllermo Bonfil et aí, La
testimonios. En el caso de los zapatistas es notable su habilidad
cultura popular. México, Pre-
mia Editora, 1987. p. 80. para apropiarse de los médios masivos como su presencia oportu-
na y coyuntural en Ia prensa, el uso de internet.
Una distinción fundamental entre oralidad y escritura literarias está
dada por Ias circunstancias históricas: Ia oralidad, ante Ia represión
sistemática. Ia salvaguarda dei grupo y Ia reproducción de su cultura,
se manifiesta como una creación colectiva mientras que Ia obra escri-
ta es una manifestación individual o por un especialista en el oficio de
Ias letras. A Ia primera se le concibe en el campo artesanal y producto
de sociedades primitivas, ágrafas les llaman, y Ias segundas como
expresión dei gênio individual de Ia sociedad burguesa.
La zapatista es una propuesta que no rechaza lengua y cultura do-
minantes a favor de Ias lenguas autóctonas sino que abre Ia pers-
pectiva dei bilingüismo entre los pueblos. Es, en los hechos, un
p r o y e c t o q u e a t i e n d e m á s a Ia r e s i s t e n c i a s e c u l a r q u e a Ia
c o n f r o n t a c i ó n . S e c o n c i b e c o m o " p r á c t i c a c o t i d i a n a en Ia
reproducción de los espacios socioculturales propios dei grupo,
espacios donde se garantiza Ia reproducción lingüística sin hacerse
evidente, sin mostrarse, sin provocar, en el silencio, reforzando y

165
maldonado, ezequiel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 163-172, 2001

trasmitiendo junto cori Ia lengua los espacios de reproducción de


los patrones culturales, Ia cohesión y Ia continuidad dei grupo"^"^. Es
Gabriela Coronado S., Op.
así como en el pasado ceden espacios públicos, iglesia y escuela,
a i , p, 68.
a cambio de obtener "privacidad", por ejemplo, en Ias labores do-
mésticas donde Ias mujeres, mediante Ia salvaguarda de lengua y
tradición, serán el eje productor y reproductor de su cultura.
El vínculo entre literatura oral y escrita h o y s e materializa y a l c a n z a
una difusión nunca antes vista en México. Poetas, narradores,
cuentistas índios proyectan su obra en espahol y en los diversos
idiomas a u t ó c t o n e s que, por d e s g r a c i a , a l g u n o s intelectuales
califican de anacronismo en un mundo globalizado y óonóe Io perti-
nente seria, de acuerdo a este critério, escribir en espanol y traducir
al inglês, al alemán, etcétera. Tal opinión atiende a Ia vieja consigna
de una "literatura nacional" que hacía caso omiso de creadores
zapotedos o nahuas. La proyección de Ia literatura indígena, Carlos
Montemayor Ia califica como uno de los acontecimientos relevantes
en el México dei S. XX, ha tenido su propio dinamismo y alcances
gracias al nexo entre intelectuales indígenas y mestizos que a tra-
vés de talleres, círculos de creación y becas gubernamentales han
avanzado en su proyecto. Sin embargo. Ia dimensión política y cul-
tural dei movimiento zapatista ha propiciado un clima aún más
favorable para el conocimiento de los creadores indios. Si bien Ia
oral es una creación colectiva fuertemente unida a Ia historia y con
funciones en Ia reproducción de Ias etnias, Ia escrita, aún en demérito
de Ias lenguas vernáculas, ha permitido ganar amplios espacios
sociales en una sociedad que ha pecado de intolerante y racista.

persistência dei elemento oral en los relatos dei viejG antonío


La fuerza narrativa de los relatos se basa predominantemente en el
uso de fórmulas o frases recurrentes que despiertan Ia atención dei
lector-oyente. Dichas fórmulas se componen de refranes y frases
hechas que se interpolan a una narración y, dada su raiz colectiva,
funcionan para fijar o enraizar Ias composiciones en una cultura
determinada y su identificación con un grupo sociaP^. En el caso de
5 Colombres, Op, D l , p. 86.
los relatos. Ia fórmula invariable se establece en una especie de
pórtico o entrada donde el Viejo y Marcos inician un diálogo en tor-
no a Ias condiciones metereológicas (Ia lluvia, el viento. Ias nubes.

167
maldonado, ezequiel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 163-172, 2001

ei cauce de los arroyos), Ia fauna de Ia selva chiapaneca (el jaguar,


el murciéiago, el venado cola blanca) y siempre, cual leit motiv, el
ceremonial de Ia fumadera, Ia forja de un cigarro que "enciende el
ritual de Ia palabra". Otras veces Ia fórmula posee una carga poéti-
ca excepcional o un elevado valor metafórico: "entre chupada y chu-
pada, el Viejo Antonio va hilando Ia historia" (p.29). Marcos utiliza el
verbo hilar en el sentido de tejer y este tejer, en el discurso oral, es
considerado por múltiples culturas como un tejido que se trama. "Y
tejer, coser, es unir, cosa propia de Ia oralidad y de Ia función audi-
tiva. La escritura y Io impreso, al igual que el mismo sentido de Ia
vista, por el contrario aísian, d e s c o s e n , destejen y descon-
textualizan"^^ Y aun el sentido dei tejido cobra otra dimensión en
' Ibidp. 71.
boca de Marcos, "...en Ias palabras dei Viejo Antonio se va tejiendo
una historia"(p.33). Y Ia trama cobra textura y color y los dibujos de
los primeros dioses, de los hombres y mujeres verdaderos y de los
murciéiagos adquieren consistência.
Ya en el relato, propiamente dicho, otra fórmula nos sitúa de entra-
da en el tiempo y en el espacio sagrados de los mayas: "En el prin-
cipio era el agua de Ia noche. Todo era agua, todo noche era.
Andaban los dioses y los hombres como loquitos, tropezando y
cayendo como viejitos bolos" (p. 22). Un espacio desacralizado con
una pirâmide social de consenso donde polemizan, pelean, bailan e
invariablemente se ponen de acuerdo dioses de Ia lluvia como los
Chaacob y mortales. Es Ia vieja fórmula de los cuentos europeos
dei "había una vez..." o el Cuentan que... el cual nos introduce de
lleno en Ia acción de relatar junto a Ia creación de expectativas.
En estas historias es inexistente un orden cronológico. El tiempo
inmemorial fluye en los relatos y resulta imposible asirse a una
cronologia determinada, como en Ia escritura. Así, "el pensamiento
paradigmático que rige Ia oralidad se preocupa poco por Ia relación
temporal entre los acontecimientos" En los relatos Io que cuenta son
los hechos mismos y su valor ejemplar, su mensaje liberador. En el
caso de Marcos, "recrea temas e interpela fórmulas lingüísticas dei
acervo colectivo, Io que no descarta que pueda imprimir a Ia
composición algún sello personal (por ejemplo, el sentido dei hu-
mor, Ia ironia y el trastocamiento temporal). Narra cada vez un
episodio, y si cuenta más de uno... no Io hace siguiendo un orden

168
maldonado, ezequiel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 163-172, 2001

temporal"^^ La intemporalidad aqui resulta una exigencia pues los


Ibid, p. 89.
cuentos, en su presentación original, están atados a Ia temporalidad
de comunicados políticos o testimonios.
En Ia literatura oral practicada por nuestros pueblos es posible de-
tectar tradiciones estables donde predominan Ias historias oficiales
únicas, respetadas y congeladas y tradiciones libres que dan pauta
a Ia improvisación, a Ia presencia de personajes de diferentes épo-
cas y esto desmitifica en buen grado Ia formalidad de Ia tradición
pasada y dei presente. La segunda. Ia libre, es Ia utilizada en los
relatos dei Viejo Antonio que da lugar a Ia improvisación renovado-
ra, como una manera de embellecer, humanizar y actualizar, por
ejemplo, el diálogo con los dioses. Es un torrente de frescura y
espontaneidad que atenta contra los dioses dei Olimpo y de Ia Repú-
blica de Ias letras. "La improvisación renovadora imprime a Ia
sociedad una gran dinâmica, pues los relatos más antiguos,
reinterpretados o no, se unen en un continuo mito histórico a
personajes y acontecimientos relativamente próximos e incluso
recientes"^®. Una improvisación que, en el pórtico de los relatos,
^ ibíd, p. 92.
documenta el canto particular de Mercedes Sosa y el Canto Gene-
ral de Pablo Neruda y que, en el túnel dei tiempo, a Ia historia que
Marcos aprendió en Ia escuela sobre Zapata el Viejo Antonio le
enmienda Ia plana: "No así fue", me dice. Yo hago un gesto de
sorpresa y sólo alcanzo a balbucear: "^No?". "No", insiste el Viejo
Antonio: "Yo te voy a contar Ia verdadera historia dei tal Zapata"
(p. 57). Y Ia historia dei tal Zapata se remonta al tiempo sin tiempo
donde se vincula con los dioses lk'al y Votán y de Ia fusión surge el
revolucionário Votán Zapata.

Este fenômeno, Ia improvisación. Ia experimentación verbal, es muy


cercano a Ia concepción occidental de Ia literatura, que se basa pri-
mordialmente en Ia creación personal y relega el patrimonio social
comunitário. Si bien, por boca dei Viejo Antonio — o dei portavoz
Marcos — habla Ia conciencia memoriosa de Ia comunidad, Ia voz dei
pueblo, de sus ancianos, no cabe duda que el relator se desprende
de viejas fórmulas y penetra el espacio de Io propiamente literário.
Sin embargo, otro elemento que Io enmarca en Ia literatura oral es
Ia posibilidad de que el relator hubiese probado sus textos con un
público mayoritario, y no sólo de Viejos Antonios. La lectura y

169
maldonado, ezequiel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 163-172, 2001

discusión grupai debió enriquecer a ambos, con modificaciones va-


rias, Ia ampliación de referencias o Ia inclusión de una determinada
secuencia. Los relatos seguramente constituyeron Ia experiencia
compartida, retroalimentación cultural, diria alguien o el regresar Ia
historia que alguna vez perteneció a Ia comunidad, pero con un
sello personal. Lo literário actúa así para reforzar Ia cohesión grupai.
Un ejemplo: «Cuenta el viejo Antonio que cuando era joven Antonio
y su padre era el viejo Antonio le contó Ia historia que ahora me
dieta al oído para que Ia mar Ia conozca de mis lábios. El viejo Anto-
nio me Ia cuenta así nomás, pero yo llamo a esta «La historia dei
león y el espejo» (p. 123).
Resulta generalizado el estereotipo que blancos y mestizos tienen
dei Índio: taimado y mentiroso, no es de fiar, no cumple su palabra,
traicionero, solapado, el engano es inherente a su personalidad, etc.
Los critérios sobre verdad y mentira pareciera que son únicos y que
Ia concepción blanco-mestizo dei mundo occidental y cristiano es
universal. Este critério absoluto en el blanco es relativo en el âmbito
indígena y funcionará como mecanismo de autodefensa en sus rela-
ciones externas. La reserva y Ia desconfianza, a veces hostilidad,
son actitudes que han permitido a los indios mantener distancia fren-
te a cax/aneso ladinos, aquellos que no son indígenas, y que por el
comercio o Ia búsqueda de informantes y folklore mantienen relacio-
nes. De esas reservas, o dei contar mentiras, como una característi-
ca de Ia oralidad no escapo Marcos; ya que en Ia significativa Historia
de ias preguntas, con todo y vuelta de tuerca, comenta: "Aprieta el
frio en esta sierra. Ana Maria y Mario me acompanan en esta
exploración (...) Ayer topé al viejo Antonio por vez primera. Mentimos
ambos. Él diciendo que andaba para ver su milpa, yo diciendo que
andaba de cacería. Los dos sabíamos que mentíamos y sabíamos
que lo sabíamos (... Hoy) me volvi a acercar al rio (... para) ubicar en
el mapa un cerro muy alto y por si topaba de nuevo al viejo Antonio. Él
ha de haber pensado lo mismo porque se apareció por el lugar dei
encuentro anterior (...) Como ayer, el viejo Antonio se sienta en el
suelo, se recarga en un huapac de verde musgo, y empieza a forjar
un cigarro. Yo me siento frente a él y enciendo Ia pipa. El viejo Anto-
nio inicia: 'No andas de cacería'. Yo respondo 'Y usted no anda para
su milpa'". En el diálogo hay una verdad implícita, una verdad interna.
Es una paradoja donde Ia mentira/verdad funciona como ropaje que
disfraza, todo lo que afirmo es mentira.

170
maldonado, ezequiel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 163-172, 2001

El manejo de los silêncios con una carga de significados cumple un


papel primordial tanto en el pórtico o en el inicio como en Ia trama
de los relatos. Es un múltiple juego de simbolismos que contrasta el
agobio dei ruido frente a Ia serenidad que pródiga el silencio, como
en Ia Historia dei ruido y el silencio: "Entonces los dioses se buscaron
un silencio para orientarse otra vez, pero no Io encontraban por
ningún lado al silencio, a saber dónde se había ido el silencio y con
razón porque mucho era el ruido que había... porque mucho era el
ruidero que se había... y como ya no había por dónde buscar un
silencio pues e m p e z a r o n a buscarse dentro de ellos mismos y
empezaron a mirarse adentro y ahí buscaron un silencio y ahí Io
encontraron y ahí se encontraron y ahí encontraron otra vez su
camino..." (p. 111). En esa línea, los zapatistas son pródigos en el
manejo metafórico y en el uso de paradojas: "Qué viva siempre Ia
palabra que nos calla. Qué siempre viva el silencio que nos habla".

El sentido dei humor, expulsado en los mitos y relatos ceremoniales,


es notable en Ias historias dei Viejo Antonio. Por ello no pierde fuerza
el relato ni arriba a Io intrascendente. Por el contrario. Ia risa es un
elemento de Ia vitalidad, atributo de los que están llenos de ânimo,
de los que están s e g u r o s de su razón, frente a f o r m a l i s m o y
chabacanería de Ia clase en el poder. En uno de los relatos, los
primeros zapatistas discutían sobre su indumentária y el tema de
los rostros cubiertos, como una medida no sólo para ocultar Ia
identidad sino para proteger a sus familias, se manejó el uso de
paliacates, de antifaces y un sinnúmero de prendas. Marcos propone
el "pasamontaiias" y genera una intensa polêmica: "Y cómo vamos
a hacer Ias mujeres con el pelo largo", pregunta y protesta Ana Maria.
"Que Io corten su pelo», dice Alfredo. "iN'ombre! ^ C ó m o crees? Yo
digo que hasta Ia falda deben llevar", dice Josué. "Que lleve falda tu
abuela", responde Ana Maria (p. 38).
Las circunstancias de tiempo y de lugar dei relato deben ser considera-
das. Esas madrugadas con lluvias interminables o las noches en que
es posible salir de cacería son elementos fundamentales en los rela-
tos, así como el espado o lugar donde se produjo el relato. La ceiba,
árbol sagrado maya, bien podría ser nombrado el árbol de las palabras.
La selva con una simbología específica posee un papel relevante en
los relatos dei viejo Antonio. Selva no sólo baluarte de Ia resistencia
zapatista sino espacio para Ia creación de una literatura oral.

171
maldonado, ezequiel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 163-172, 2001

Resumen: En el texto se analizan los Relatos dei Viejo Antonio,


cuyo autor o traductor cultural es el subcomandante Marcos, ubicados
en Ia frontera de una tradición oral y su concreción como obra escri-
ta. Se detectan rasgos estilísticos como Ia reiteración de fórmulas o
frases recurrentes, Ia inexistência de un orden cronológico, el ma-
nejo de Ia llamada improvisación renovadora y el que estos relatos
constituyen Ia experiencia compartida de nuestros pueblos.

Palabras clave: oralidad, escritura, literatura nacional, literatura in-


dígena, traductor cultural.

Abstract: This text deals with the narrativos of Old Antonio, whose
author or cultural translator is subcommander Marcos. The narrativos
are based on an oral tradition that was later on committed to writing.
Their style is marked by the repetition of formulas or recurring phrases,
the absence of a chronological sequence, the use of the so-called
renewed improvisation and the fact that they portray the common
experience of our people.

Key w o r d s : oral tradition, writing, national literature, indigenous


literature, cultural translator.

172
garcia, laura beatriz ramírez. Imaginário - usp, n° 7, pág. 173-194, 2001

reconhecimento do papel da afeíividade


na açao zapatista

Laura Beatriz Ramírez Garcia

A respeito de Chiapas, do Exército Zapatista de Liberación Nacio-


nal (EZLN) e de seu Subcomandante Marcos, muito se tem falado e
a partir de diferentes pontos de vista. Diria que isto se fez quase até
à exaustão - não porque considere que se tenha dito tudo sobre
eles, mas pelo fato de que o tema tornou-se passível de entrar e
sair de moda. No entanto, acredito na necessidade de insistir nesse
assunto, em função da seriedade que o envolve, como acontece
com todas as sinceras tentativas de transformação social.
Com o intuito de contextualizar o presente artigo, é importante resu-
mir quais os supostos fundamentais que se elaboraram na análise
completa, da qual ele faz parte:
1. Os Movimentos Sociais constituem fenômenos compostos por
elementos que correspondem tanto às instâncias de índole objeti-
va, coletiva, racional, como às de natureza subjetiva, individual,
emocional. Por isso, é indispensável que as abordagens que se
realizem sobre aqueles, visando à sua maior compreensão, de fato
assim os considerem, a fim de não perpetuarem a antiga cisão
estabelecida entre estas esferas, pela epistemologia dominante.
2. O Movimento Zapatista é um excelente exemplo de como fatores de
caráter afetivo dão consistência a uma poderosa força capaz de moti-
var, manter e desenvolver a existência de uma organização social.
3. No caso do EZLN, esses aspectos de ordem emocional transita-
ram por um processo que abrange desde a experiência - secular a

173
garcia, laura beatriz ramírez. Imaginário - usp, n° 7, pág. 173-194, 2001

partir dos antepassados de seus membros e ainda presente para


estes - relativa a terem sofrido uma humilhação com raízes e faces
múltiplas, até a vivência de fazer valer sua dignidade e assim alcan-
çar a verdadeira condição humana.
4. Essa dinâmica é expressa tanto na prática como no discurso do
EZ (Exército Zapatista), através das vias do confronto ou do encon-
tro solidário, conforme o lugar que os outros sujeitos, com os quais
se relaciona, ocupam na estrutura social. Conseqüentemente, tal
posição orienta, por sua vez, a atitude que os outros adotam em
relação aos Zapatistas, bem como a qualidade dos afetos surgidos
entre esses atores.
Uma vez esclarecido o anterior, agora é factível desenvolver o aqui
projetado, tendo como proposição inicial — fruto da exploração bi-
bliográfica e pesquisa de campo precedentes — que tanto a filoso-
fia de Espinosa, como a teoria crítica da Escola de Frankfurt, e a
prática social do Zapatismo (cada uma desde seus respectivos lu-
gares e guardando as devidas diferenças) estão preocupadas com
a questão da servidão humana.
Em decorrência, estas efetuam as correspondentes críticas, seja à
ética, seja às formas de conhecimento, seja ao modo de produção
da sociedade hegemônicos e procuram, nas suas maneiras carac-
terísticas, os caminhos que conduzam à emancipação dos homens,
todas, curiosamente, contemplando e até falando, em algum mo-
mento ou outro, sobre o ideal de felicidade.
Tento ir mais longe ao perceber nessas buscas, com suas peculiari-
dades, a tentativa de transpor a impregnada oposição, colocada
tradicionalmente entre Objetividade vs Subjetividade, Coletivo vs
Indivíduo, Razão vs Emoção.
Dentre a ampla produção do Espinosismo e da Teoria Crítica, pro-
curei esclarecer, especificamente, quais dos seus pontos resultam
especialmente pertinentes, para focalizar o Movimento Zapatista.
Retomarei apenas alguns daqueles que considero, no momento,
fundamentais.
Conforme Olgária Matos (1993), fonte essencial consultada para o
item referente à Escola de Frankfurt, observamos que os filósofos
que empreenderam esta corrente, ao indagarem a respeito da menci-

174
garcia, laura beatriz ramírez. Imaginário - usp, n° 7, pág. 173-194, 2001

onada libertação, salientam a necessidade de não esquecer o passa-


do e, principalmente, de identificar nele as marcas do sofrimento. Tal
reconhecimento deve ser efetuado não abstratamente, como julgam
que o Materialismo Histórico faz, "tornando mudo" o padecimento,
através de uma atitude "dissimuladora" que não leva em conta como
se singulariza em cada homem suas "feridas interiores" (pág. 56).

Nesse sentido, Adorno, ao refletir sobre a educação depois de


Auschwitz, chega a deduzir que a condição psicológica básica, que
está por detrás de atrocidades como as ocorridas nesse âmbito, é a
incapacidade de identificação de um humano com outro. Tal autor
considera a identificação como indispensável para se sentir com-
paixão — que sempre é despertada por um ser particular — e a
reconhece, junto com a não-repressão da própria angústia, como
crucial para a possibilidade de emancipação (pág. 57).

Paralelamente, é bastante curioso observar, tanto no processo do


EZ, como em seus documentos, como foi determinante para sua mo-
tivação a consciência do sofrimento, não unicamente próprio, mas
também o dos antepassados. O EZ realizou isto, não de forma difusa,
mas circunscrevendo esse padecimento na pessoa dos pais, dos avós
ou dos "seus mortos", pelos quais se tem uma profunda reverência.

Carta al consejo 500 anos de resistencia indígena

1° de febrero de 1994

...Hablamos con nosotros, miramos hacia adentro nuestro y miramos


nuestra historia: vimos a nuestros más grandes abuelos sufrir y luchar,
vimos a nuestros padres con Ia fúria en Ias manos, vimos que no todo
nos había sido quitado, que teníamos Io más valioso, Io que nos hacía
vivir, Io que hacía que nuestros pasos se levantaram sobre plantas y
animales, y vimos hermanos, que era Dignidade todo Io que teníamos,
y vimos que era grande Ia vergüenza de haberla olvidado, y vimos
que era buena Ia dignidad para que los hombres fueran otra vez
hombres, así volvió a habitar en nuestro corazón, y fuimos nuevos
todavia, y nuestros muertos nos llamaron, otra vez, a Ia dignidad y a
Ia lucha, (EZLN. Documentos y Comunicados, pág. 119).

175
garcia, laura beatriz ramírez. Imaginário - usp, n° 7, pág. 173-194, 2001

Quanto à compaixão, há um caso em que se expressa veladamente:


numa das múltiplas passagens relatadas por Marcos e que com-
põem a vivência do Zapatismo.

... Eran 16 horas de camino, y en Ia mitad había un rio y un poblado


muy pequeno, muy pobre. Ahí había un compahero zapatista que
nos cruzaba en cayuco por esas aguas, y tenía una hija como de
tres o Guatro anos que siempre Io acompahaba y nos llevaba una
cantimplora con café. Le preguntábamos como se llamaba y ella
contestaba: "Paticha", era como podia pronunciar su nombre que
era Patricia. Nos decía que cuando creciera iba a ser como su papá,
que seria sargento.

Paticha nunca fallaba, siempre venía junto. Una vez que se nos hizo
tarde pasamos Ia noche ahí y Paticha empezó com una fiebre como
a Ias seis de Ia tarde, Ia temperatura iba subiendo más. Buscamos
antipiréticos con los trabajadores de Ia salud dei pueblo, no había
nada en esse puesto, tampoco nosotros traíamos algo que sirviera
para eso. Le echamos agua fria. Ia bahábamos una y outra vez para
bajarle Ia fiebre y...nada. Debe haber sido una temperatura de 39
grados, y a esa edad nadie Ia aguanta. A Ias no sé cuantas horas de
Ia noche, Paticha se me murió en los brazos.

Paticha nunca tuvo acta de nacimiento, es decir que para el país


nunca existió, por Io tanto su muerte tampoco ocurrió. Y así han
habido miles de casos (Durán, 1994, pág. 28 e 29).

Por se tratar de um caso feminino, torna-se oportuno voltar à Prof^


Matos, quando indica que Horkheimer, em "Autoridade e Família",
distingue, na figura clássica de Antígona, de que maneira o senso
de compromisso com um ente familiar, ainda que morto, concede-
lhe a f o r ç a p a r a e n f r e n t a r o p o d e r a r b i t r á r i o . O m a i s v e l h o
frankfurtiano vai mais longe em seu raciocínio, chegando ao ponto
de afirmar que a mulher, havendo transformado o luto anterior, tor-
na-se o símbolo por excelência do antiautoritarismo, do princípio
não utilitário e do amor (pág. 59).
Penso que é exatamente isto que verificamos repetidas vezes na
informação encontrada a respeito das mulheres em Chiapas; alguns

176
garcia, laura beatriz ramírez. Imaginário - usp, n° 7, pág. 173-194, 2001

dos seus depoimentos são apresentados em seguida, apenas como


uma pequena amostra disso.

La Mayor insurgente Ana Maria, uno de los máximos mando milita-


res, a sus veitinueve anos, hace una descripción de Io que el EZLN
significa para ellas. En Ia entrevista que reporteras le hicimos en Ia
catedral de San Cristóbal durante el diálogo de paz, explico: "Muchas
mujeres se deciden a esto porque ven que no tienen ningún derecho...
esse olvido dentro dei olvido, se vive como un sacrificio, com una
gran tristeza..."

Cuál debe ser Ia sensación de Ia madre al alimentar cada dia a los


suyos con Ia misma escasez...como siempre son ellas Ias que se
sacrifican más. Ias dei plato menos lleno. Ias que luego sufren los
grados más alarmantes de desnutrición adulta. Rosário es una
muchacha de un pueblo indígena. Está embarazada por segunda
vez a sus dieciocho anos. El hijo mayor tiene casi dos anos y todavia
mama. Ella tiene que exponer sus pechos a Ia boca voraz dei
pequeno. Neva otro hijo en Ia barriga que le chupa todo Io que come...
Cuántos de sus hijos se "lograrán", como dicen aqui de los nihos
que consiguen pasar de los seis anos?

Ver "lograrse" a un hijo es una ilusión tremenda para estas ma-


dres, es su pequena victoria contra el entorno. El desgarramiento
de Ias mujeres que no consiguen salvar a sus retohos puede
convertirse en rebeldia: "Si no fuera tan pobre, mi hijo se hubiera
logrado, no tenemos para medicinas, ni buena alimentación, ni
nada", cuenta Filiberta, "por eso estoy en Ia lucha" (Rovira, 1996,
pág. 74).

... Las cuatro mil mujeres que invadieron San Cristóbal el 8 de Marzo
de 1996, provenían de los puntos más recônditos de Ia geografia
rebelde de Chiapas... com todos los colores dei mundo a cuestas,
colores intensos y sin recato, ofensivos ante el gris de Ia vestimenta
de los ladinos... estaban en marcha y de fiesta. Salían a conocer, a
encontrarse entre ellas y desafiar el mundo. Qué importaban el frio,
el largo camino o los hijos en Ia espalda...

177
garcia, laura beatriz ramírez. Imaginário - usp, n° 7, pág. 173-194, 2001

Una criatividad desbocada amanece entre estas índias que buscan


rimas en todas sus demandas. Todas a una: "Las mujeres tinen
ya consigna, queremos para todos una vida digna"..."Mujeres de
valiente corazón, pronto cambiaremos Ia nación"..."Las mujeres
zapatistas tomamos el candil y si fuera necesario tomaremos el
fusil" (pág. 233).

El acto fue maratónico, como todas las demostraciones de vi-


gor zapatista. "Estas indias ya se van, pero pronto volverán".
Olas de mujeres se dispersaban por las calles como poseídas
por una fuerza centrífuga que en Ia manãna había sido
centrípeta... Com el "corazón más fuerte", las nujeres indíge-
nas, regresaron a sus comunidades, a sus cocinas. Ahora ya
más seguras de que algo se ha roto en Chipas, y les ha permi-
tido a ellas salir, (pág. 234).

Também em Matos (1993), vimos que Benjamin, no seu ensaio "Pa-


ris, capital do século XIX", por outro lado, propõe um conceito de
revolução como restituição, uma vez que ela devolve aos homens
algo que lhes foi tirado. Este termo também se liga ao que ele cha-
ma de "instante da redenção", para o qual se requer "presença de
espírito". Desse modo, trata-se de uma experiência que implica cer-
ta sensibilidade, sendo conseqüentemente um tanto corpórea (pág.
68). Essa concepção do meio revolucionário como algo que concLuz
à reparação, principalmente de natureza moral, é noção poderosa
na luta do Zapatismo, ainda que este não fale mais em revolução de
uma forma explícita.

Algo disso se deixa ver num dos primeiros c o m u n i c a d o s lança-


dos pelos zapatistas. Este se publicou em razão de que foi anun-
ciada, por parte do governo federal, uma espécie de anistia, num
tom que salientava sua "generosidade" diante daqueles "delin-
qüentes". Na realidade, a anistia constituía-se e m estratégia que,
naquele m o m e n t o , mais convinha aos interesses do então poder
executivo, diante da pressão exercida pela sociedade civil nacio-
nal e internacional.

178
garcia, laura beatriz ramírez. Imaginário - usp, n° 7, pág. 173-194, 2001

"de qué nos van a perdonar?"

18 de enero de 1994

Senõres:

...Hoy hemos tenido conocimiento de Ia formalización dei "perdón"


que ofrece el gobierno federal a nuestras fuerzas. De qué tenemos
que pedir perdón? De no haber aceptado humildemente Ia gigatesca
carga histórica de desprecio y abandono? De habernos levantado
en armas cuando encontramos todos los caminos cerrados?...De
haber demostrado que Ia dignidad vive aún en los más empobreci-
dos dei país? De haber llamado ai pueblo mexicano todo a luchar,
de todas Ias formas posibles, por Io que en verdad les pertence?
...Quién tiene que pedir perdón y quién puede otorgarlo? Los que
durante anos y anõs, se sentaron ante una mesa llena y se saciaron
mientras con nosotros se sentaba Ia muerte, tan cotidiana, tan
nuestra, que acabamos por dejarle de tener miedo?... Los que nos
negaron el respeto a nuestro color, a nuestra lengua, a nuestro
costumbre?... Los que nos apresaron, torturaron, desparecieron y
asesinaron por el grave "delito" de querer un pedazo de tierra, no un
pedazo grande, solo un pedazo ai que se le pudiera sacar algo para
Negar al estômago?

Quién puede puede pedir perdón y quién puede otorgarlo? El presi-


dente de Ia república?...El ejército federal? Los grandes senõres de
Ia banca, Ia industria y Ia tierra? Los partidos políticos... Quién tiene
que pedir perdón y quién puede otorgarlo? (EZLN, Documentos y
Comunicados, pág. 89).

A partir daquela referência corporal, dirijo-me à reflexão de Marcuse,


especialmente em Eras e Civilização, onde menciona reiteradas
vezes que, quando o corpo não for mais instrumento de trabalho em
tempo integral, portanto, também, não alienado, trabalhando seja
para atender à "attraction passionnée'" ou à aptidão de cada um,
poderá haver uma plena manifestação do valorizado Impulso de Vida
(1999, pág. 188).

179
garcia, laura beatriz ramírez. Imaginário - usp, n° 7, pág. 173-194, 2001

Esta última situação supõe a existência prévia da chamada "socie-


dade madura", nas palavras do próprio Marcuse que, por sua vez
não parecem deixar claro qual seria o caminho para alcançá-la.
Nesse sentido, penso que seriam convenientes as formulações de
Espinosa, embora esta passagem entre marcos teóricos, que usu-
almente não são percebidos com algum nexo, possa parecer estra-
nha, ou não exatamente adequada.
Foi nesse filósofo, embora pertencente ao século XVII, que encon-
trei uma definição explícita de afeto, a matéria-prima do fenômeno
que estudo, onde se faz menção a esse corpo como algo não cindido
daquela outra parte que recebe o nome de alma, de maneira que
esse conjunto aparece sempre atingido pelas "afecções" (Ética III,
Demonstração xiv). Elas são definidas, segundo a interpretação
aguçada de Marilena Chauí (1983), não apenas como a possibilida-
de de sentir — como usualmente se faz —, mas também como for-
ças que segundo sua natureza cercearão ou potencializarão a ca-
pacidade de atuar do ser humano (pág. xvii).
Esta propriedade, assinalada por Espinosa é aquela que sempre ima-
ginei como extremamente relevante na afetividade dos homens e,
por essa razão, quando a descobri, assim concebida por este autor, e
também devido à sua repercussão, senti-me bastante identificada.
Estou me referindo ã dinâmica iniciada pela existência do Conatus,
esse poder imanente a cada homem — sobre o que Gilles Deleuze
reflete particularmente em "Expressionism in Philosofy: Spinoza" —
que é qualificado com precisão como "sensibilidade" e, em última
instância, como o "motor que anima o ser e o mundo". Essa mesma
força, que ao ter um bom encontro com o conatus de outrem, devido
à semelhança de suas relações internas e à consciência de tudo o
que partilham, gera uma "noção comum": momento que transforma
o conteúdo inicial com forma de paixão em ação, como descreve
Michael Hardt (1996, pág. 149-158).
Dessa maneira, ao se unirem as "multiplicidades", constitui-se a "mul-
tidão", agindo sempre para ampliar sua potência. Dito de outro modo,
o conatus óe cada um, ao vivenciar um encontro alegre, ou seja, um
encontro não conflitivo que o diminua ou aniquile, aumenta sua ca-
pacidade, mesmo que, em certas ocasiões, se deva renunciar a algu-

180
garcia, laura beatriz ramírez. Imaginário - usp, n° 7, pág. 173-194, 2001

ma t e n d ê n c i a particular, v i s a n d o d e s e n v o l v e r o poder c o m u m
(pág. 168-170). Lembremos ainda que este possui uma conotação
diferente da tradicional, pois no sistema espinosiano é entendido
como reunião de potências, onde cada uma conserva sua singulari-
dade e se torna "constituinte" de uma ação mais eficaz.^
• Este tema é discutido por
Se lançarmos um novo olhar sobre o EZLN, podemos observar aconte- Antonio Negri em sua obra A
cendo nele algo do que acaba de ser descrito, desde o momento do Anomalia Selvagem.

contato entre seu núcleo original e as comunidades indígenas, até seu


trabalho conjunto com aquela porção da sociedade nacional e interna-
cional interessada, também, na democratização de um país e na cons-
trução de uma ética autêntica para se viver em qualquer parte. Os
seguintes trechos foram escolhidos por pertencerem a dois dos cinco
documentos considerados pedras angulares do discurso zapatista^.
2 Outros trechos podem ser
e n c o n t r a d o s no riquíssimo
material que o EZ vem produ-
Guarta declaração da selva lacandona zindo, quase que cotidiana-
mente, ao longo dos seus atu-
1°de enero de 1996 ais sete anos de existência
pública.

Al pueblo de México, a los pueblos y gobiernos dei mundo:

...La guerra zapatista es sólo una parte de esa gran guerra que es Ia
lucha entre Ia memória que aspira a futuro... Esta lucha es por Ia
vida... Nuestra sangre y palabra encendieron un fuego pequehito en
Ia montaha...Hermanos y hermanas de otras razas y de otras lenguas
y mismo corazón protegieron nuestra luz y en ella bebieron sus res-
pectivos fuegos...

quinta declararação da selva lacandona

19 de juniio de 1998

Hermanos:

...Nuestra es Ia casa de Ia luz y Ia alegria. Asi Ia nacimos, así Ia


luchamos, así Ia creceremos. Nuestra es Ia tierra de Ia vida y Ia
esperanza. Nuestro es el camino de Ia paz que se siembra con
dignidad y se cosecha con justicia y libertad.

181
garcia, laura beatriz ramírez. Imaginário - usp, n° 7, pág. 173-194, 2001

...Vimos a esos todos que son los otros como nosotros,


buscarse...construir y lanzar iniciativas, los vimos crecerse. Los vi-
mos Negar hasta nuestras comunidades com ayuda haciéndonos
saber que no estamos solos.

...Vimos a hombres y mujeres nacidos en otros suelos sumarse a Ia


lucha por Ia paz, los vimos imaginar y realizar reclamos de justicia,
marchar como quien canta, escribir como quien grita, hablar como
quien marcha.

...Los vimos con todos los nombres con que José se nombra, con
los rostros de los todos que en todos los mundos lugar para todos
quieren... (EZLN, Página na Internet - Declarações, 1998).

Permitam-me abrir um longo parêntese, para colocar um exemplo


que considero mais integralmente capaz de mostrar que esse pro-
cesso explicado por Espinosa esteve presente já no início do
Zapatismo.
O comunicado Mandar Obedeciendo, cujo título se tornou uma das
palavras de ordem mais significativas para o Movimento Zapatista e
um dos lemas que o identificou cada vez mais no mundo afora, ex-
põe sua concepção e proposta do que há de ser a autêntica demo-
cracia. Também é onde começa a manifestar-se mais claramente
sua não pretensão "ao poder oficial". O texto é a própria explicitação
da maneira mais adequada de exercer um governo, procurando as-
sinalar aqueles que seriam os mais capazes de realizá-lo, aqueles
que o EZ reconheceria e, através dos quais, poderia abandonar a
condição de exército. Este comunicado constitui uma excelente
amostra de como é possível abordar os conteúdos emocionais do
discurso zapatista, a partir de perspectivas como a de Espinosa.

"Mandar Obedeciendo

26 de febrero de 1994

Al pueblo de México:

A los pueblos y Gobiernos dei mundo:

182
garcia, laura beatriz ramírez. Imaginário - usp, n° 7, pág. 173-194, 2001

A Ia prensa nacional e internacional:

Hermanos:

El CCCRI-CG de! EZLN se dirige con respetoy honor a todos ustedes


para decir su palabra, Io que hay en su corazónyen su pensamiento...

Las palabras justicia, libertad y democracia eran sólo eso: palabras.


Apenas un sueno que los ancianos de nuestras comunidades,
guardianes verdaderos de las palabras de nuestros muertos, nos
habían entregado en el tiempo justo en el que el dia cede paso a Ia
noche, cuando el odio y Ia muerte empezaban a crecer en nuestros
pechos...Cuanóo los tiempos se repetían sobre sí mismos, sin
salida...s/n manãna... hablaron los sin rostro, los que en Ia noche
andan, los que son montaha y así dijeron:

"Es razón y voluntad de los hombres y mujeres buenos buscar y


encontrar Ia manera mejor de gobernar y gobernarse, Io que es bueno
para los más para todos es bueno. Pero que no se acalien las vocês
de los menos, sino que sigan en su lugar, esperando que el
pensamiento y corazón se hagan común...así los pueblos de los
hombres y mujeres verdaderos crecen hacia dentro y se hacen gran-
des y no hay fuerza de fuera que los rompa o lleve sus pasos a otros
caminos...

Era esa voluntad mayoritaria el camino en el que debía andar el


paso dei que mandaba. Si se apartaba su andar de Io que era razón
de Ia gente, el corazón que mandaba debía cambiar por otro que
obedeciera. Así nació nuestra fuerza en Ia montanã, el que manda
obedece si es verdadero, el que obedece manda por el corazón
comun de los hombres y mujeres verdaderos. Otra palabra vino de
lejos para que este gobierno se nombrara "democracia", este camino
nuestro que andaba antes que caminaran las palabras...

Vemos que son los menos los que ahora mandan. Mandan sin
obedecer...se pasan el poder dei mando, sin escuchar a los m á s . . . /
vemos que esta sinrazón de los que mandan mandando es Ia que
conduce el andar de nuestro dolor y Ia que alimenta Ia pena de
nuestros muertos. Y vemos que los que mandan mandando deben

183
garcia, laura beatriz ramírez. Imaginário - usp, n° 7, pág. 173-194, 2001

irse lejos para que haya otra vez razón y verdad en nuestro suelo...
Es el mundo otro mundo...somos olvidados, encima nuestro caminan
Ia muerte y desprecio, somos pequenos, nuestra palabra se apaga, el
silencio lleva mucho tiempo habitando nuestra casa. LIega ya Ia hora
de hablar para nuestro corazóny para otros corazones, de Ia noche y
Ia tierra deben venir nuestros muertos, los sin rostro, los que son
montaha, que se vistan de guerra para que su voz se escuche...que
habien a otros hombres y mujeres que caminan otras tierras...

Que busquen a los hombres y mujeres que mandan obedeciendo, a


los que tienen fuerza en Ia palabra...y les entreguen el bastón de
mando...que si vuelve Ia razón a estas tierras se calle Ia fúria dei
fuego, que los sin rostro que en Ia noche andan descansen por fin
junto a Ia tierra..."(EZLN. Documentos y Comunicados, 1994, págs.
175 e 176).

Este conteúdo chama a atenção — entre outras razões — porque se


inicia com um cumprimento que se faz com respeito para com o outro e
com honra de si, ou seja, reconhecendo a dignidade equivalente de
ambos, o que já é um sinal de congruência, pois justamente falará em
democracia, e não apenas o que pensa, senão o que sente a respeito.
A dignidade é apresentada não unicamente como essa exigência
que tem caracterizado os movimentos revolucionários ao longo dos
tempos e espaços, mas algo entendido como necessário para a
existência das outras demandas essenciais do EZ: justiça e liberda-
de. Trata-se de uma condição tão almejada que é qualificada de
sonho e não como o objetivo frio de projetos políticos tradicionais.
Neste caso, constitui um velho desejo, que foi transmitido como
herança dos antepassados e lembrado pelos sábios que estas co-
munidades indígenas respeitam, precisamente quando, diante da
secular morte imposta, os conseqüentes ressentimento e desespe-
rança começavam a imperar.
Assim, aquelas afecções não permaneceram como paixões (ou seja,
apenas como sendo sofridas), mas foram reavivando o conatus pró-
prio desses sujeitos individuais e coletivos, o que os chamou a so-
breviver. Mais do que isso, impulsionou-os à ação dirigida primeiro
à circunstância que, acreditavam, desencadearia o restante do bem-

184
garcia, laura beatriz ramírez. Imaginário - usp, n° 7, pág. 173-194, 2001

estar. Assim, animou estes homens e mulheres a saírem da obscuridão


da tristeza e da clandestinidade em busca da melhor forma de gover-
no, que contempla a maioria, mas não anula as singularidades, não
desconhecendo também o guia da razão e da emoção que lhes são
comuns: mandar obedecendo. Trata-se desse modo de governar que,
afirmam, já era uma realidade interna no contexto indígena, quando
chegou do exterior como uma abstração nomeada "democracia".
A ausência de tal prática no contexto regional, por séculos, tradu-
ziu-se em exclusão, humilhação e repressão que acabaram provo-
cando a rebelião dos sem rosto. Estes eram justamente assim
autodenominados devido — entre outros motivos — ao sofrimento a
eles infligido por cada uma das situações recém-enumeradas. Em
conseqüência, trata-se de uma luta não só para sair desse círculo,
senão para conseguirem, finalmente, ser escutados e escutar os
outros, aqueles que atinjam o exercício do mandar obedeciendo,
para desistir da raiva das armas e deixar presente apenas sua pala-
vra, e então, voltar para o lugar que constitui não unicamente sua
origem, mas sua identidade: a montanha.
Saindo dos limites desse parêntese, acredito que todo o anterior tem
sido veiculado por meio, não só de uma dessas, mas de todas aque-
las potencialidades presentes em cada um dos homens e mulheres
envolvidos no Zapatismo. O movimento passa a ser visto já não só
como próprio dos índios de Chiapas, nem só dos Zapatistas do Méxi-
co, mas como dos inúmeros homens e mulheres preocupados com
os rumos deste mundo, que se tenham identificado com suas propos-
tas, enriquecendo-as. Assim, tal força, denominada por "Conatu^\
"Impulso de Vida" ou "Dignidade" — podendo ainda ser chamada de
outras formas que designem esse "algo" que é inerente e definitório
da essência humana — impulsiona não apenas a sua conservação,
mas também o seu pleno desenvolvimento, agindo não de forma iso-
lada ou egoísta, dado que é possível justamente por causa dos ou-
tros, através dos outros e contemplando os outros.
Isso fica mais claro retomando o elemento da Dignidade. Para tanto,
há de se apontar que Adolfo Gilly, em Chiapas: Ia razón ardiente, de-
duz que ela é a motivação essencial do EZ (pág. 47). No entanto, se de
novo levamos em conta o discurso e a prática dessa organização, é
possível notar que o intuito de viver dignamente existe não apenas no
princípio, mas também na trajetória e no projeto da mesma.

185
17

garcia, laura beatriz ramírez. Imaginário - usp, n°7, pág. 173-194, 2001

.Condenso essa perspectiva numa frase: o Movimento Zapatista se


viabiliza a partir, através e em direção do ser verdadeiramente digno.
O que me entusiasma mais não é estar procurando salientar isto para
quem o aprecia, mas para quem, na realidade, encontra-se dentro ou
pode fazer parte dele. É sobretudo alentador que, de algum modo,
isso já seja perceptível para parte dos mais pobres em Chiapas, que
não são integrantes do EZLN. Pode-se ver isso nitidamente expresso
por uma vendedora que circula, como outras tantas, pelas ruas de
San Cristóbal, quando comenta: Los zapatistas nos devolvieron Ia
dignidad. Tal constatação, suponho, deve ter sido fruto não tanto de
explicações racionais que pudesse ter recebido acerca dos zapatistas,
mas sim do que essa mulher sente vindo deles.
O aspecto concernente à relevância do digno também está presen-
te entre os motivos da atração que o Zapatismo exerce em âmbitos
bem distantes dele. A memória nos diz que ele irrompeu no cenário
mundial, por um lado, fazendo uso das armas e, por outro, falando
em dignidade. Esta palavra agora tem sido utilizada de maneira di-
ferente e insistente por diversos atores sociais, a ponto de, hoje,
poder parecer um tanto trivial ou até vazia, mas na época — come-
ço dos anos 90, logo após a queda do Muro de Berlim — parecia
trazer de volta mais do que a possibilidade de outra revolução, o
questionamento dos valores dominantes nas vésperas do novo mi-
lênio, dos quais os genuinamente humanos foram banidos.
Assim, o EZ foi ganhando repercussão e apoio, acredito que devido
a essa coincidência de convicções éticas e outras, também porque
veio ao encontro de múltiplas inquietações geradas, não só no Mé-
xico (pela crise do seu Estado, que provocou o aprofundamento da
insegurança, desânimo ou cetismo de seus cidadões, como aponta
Gilly, pág. 83), mas em lugares distantes que seguiram a direção do
tempo moderno. Tal época é caracterizada, como assinala Benja-
min (Apud Matos, 1993), pela difundida sensação de desenraiza-
mento, desamparo e perda de sentido. Trata-se, porém, da mesma
etapa da história sobre a qual se fala, com orgulho contraditório,
que está entrando na dita pós-modernidade.
Então, muitos daqueles que resistiram a esse engano e que se per-
mitiram sentir a decorrente angústia (inclusive ao imaginar o com-
pleto fracasso das tentativas, neste século, de contradizer tal ritmo e

186
garcia, laura beatriz ramírez. Imaginário - usp, n° 7, pág. 173-194, 2001

suas injustas conseqüências), começaram a rever na ação zapatista


um sinal de que vale a pena lutar, a esperança de que é possível
mudar e o gosto do contato com "outro lado da vida". Refiro-me a
essa face, que longe de ser reprimida, foi conservada pelas civiliza-
ções indígenas através do mito, e que afinal imagino há de ser parte
da experiência desejada, tanto pelos mexicanos tirados dela quanto
por t o d o h u m a n o . T r a t a - s e d a q u i l o q u e Y v o n Le Bot c h a m a
reencantamiento dei mundo (1997, pág. 11)^ que também conforma
Este autor utiliza tal expressão
uma orientação peculiar ao EZLN e que explica parte do seu atrativo.
quando elabora os resultados da

Acho que algo disso pode ser representado pela manifestação de um entrevista que efetuou com três
líderes zapatistas: o Comandan-
membro das tantas associações civis nacionais e internacionais, co-
te Tacho, o Subcomandante
nhecidas como "Zapatizantes" — modo como, no jargão local, se cha- Marcos e o Major Moisés, no
mam todos aqueles que simpatizam com o Zapatismo e se aglutinam marco do / Encuentro Intercon-
ao redor dele — com o qual pude conviver, estando em Chiapas: tinental poria Humanidad y con-
tra el Neoliberalismo realizado
em Chiapas. durante o verão de
1996.
...Mira, creo que yo de modo parecido a otra gente, vengo a México,
no sólo porque buscamos contribuir en toda Ia labor que requiere este
rincón, como necesitan otros en el mundo. Es que aqui encuentro
algo que no hallo en outro lugar...como ya te conté, soy de Ia generación
que era joven en el 68, luchamos entonces como pudimos, unos
continuaron haciéndolo, algunos desistieron y otros tantos... se
olvidaron de aquellos ideales. Nosotros, en realidad, no hemos con-
seguido cambiar mucho Ia situación, incluso nos hemos aislado,
estamos cotidianamente dentro de un ambiente general y un conjunto
de personas con Ias que no tenemos nada que ver... yo Ia verdad, a
veces me veo muy dislocado; todo eso es insatisfactorio... da miedo.
Aunque cada vez que salgo de Espaha, para trabajar aqui junto com
alguien que piensa o tiene una experiencia más o menos igual, pero
sobre todo com quien puedo relacionarme de manera distinta, me
siento... como más entre iguales, me gusta, estoy bién. En fin, por
eso te digo que Io mio es una especie de... de "solidaridad egocêntrica"!
(Entrevista a "Rodrigo" — San Cristóbal de Ias Casas — 1998).

Creio que isso não é egoísmo nenhum. Foram as palavras de que


este homem dispôs para exprimir que, em tal projeto, ele pôde par-
ticipar não tendo que esconder suas frustrações e temores, nem

187
garcia, laura beatriz ramírez. Imaginário - usp, n° 7, pág. 173-194, 2001

abrir mão das suas necessidades ou desejos. Estes constituem, em


lugar de um empecilho, precisamente, a fonte de onde provém seu
impulso. Ou seja, talvez consista no mesmo processo que tanto afir-
mo dar-se através da força das emoções, desencadeando aqui o
mecanismo dito identificação, que se concretiza no tão falado refle-
xo dos "espelhos" devolvido pelos insurgentes, sintetizado nesta
frase certeira: Al sueno zapatista, cada quien lleva el suyo.
Essa d i n â m i c a não poderia de m o d o algum ser adjetivada de
"egocêntrica", pois confio que exatamente a correta consciência de
si é que capacita a respeitar o outro. Assim, paralelamente ao que à
primeira vista parece relativo só a um indivíduo, encontra-se, na
verdade, o coletivo, assim como um suposto que nasce como singu-
lar pode terminar sendo prolongação do universal. Para esta idéia
que em mim permaneceu difusa por muito tempo, descobri um re-
forço esclarecedor no que se resume a seguir:

Hoy Ia figura más acabada de Io universal no es Ia dei ciudadano


que se defiende intentando suturar Ias fisuras dei Estado-Nación,
sino Ia dei actor que combina Ia lucha contra Ias fuerzas de
dominación a través de Ia afirmación de una identidad individual y
colectiva, con el reconocimiento dei Otro. El Zapatismo es portador
de una triple exigência — política, ética y de afirmación dei sujeto —
que resume en su formula: democracia, justicia, libertad, y más aún:
dignidad (Le Bot, 1997, pág. 23).

Vemos que esse ponderado cuidado, em última instância do direito


próprio, não implica ferir o alheio e sim desemboca na imprescindí-
vel consideração mútua. Esse é um objetivo para o qual o EZ faz
tempo se exercita. Um dos seus primeiros momentos fica represen-
Membro chave das primeiras
tado na comunicação entre o Subcomandante Marcos e o Velho
comunidades indígenas conta- Antônicf, na qual as correspondentes cosmovisões não se contra-
tadas pelo núcleo original puseram uma à outra, nem se anularam a si mesmas, mas se en-
zapatista, devido ao fato de que contraram e gestaram algo que resultou produtivo para ambas, ao
inicialmente funcionou como a
c o n s t r u i r o ideário do n o v o E Z L N . C a b e r e s s a l t a r c o m o isto
ponte entre essas partes e que
gradativamente se tornou o exemplifica que algo, eventualmente, pode alcançar grande escala,
mestre na interpretação da lín- começar e ser possível por meio do contato pessoal, do cara a cara
gua e símbolos índios. e do poder de todos os afetos passíveis de aparecerem. Isto é cla-

188
garcia, laura beatriz ramírez. Imaginário - usp, n° 7, pág. 173-194, 2001

ramente mostrado no relato de Marcos sobre as longas conversas


que teve com esse ancião, dos seus diálogos com as crianças das
comunidades com as quais convive, dos seus encontros com o per-
sonagem quixotesco "Durito". Para entender como essas figuras fo-
ram entrando no discurso zapatista, assim como as referências à
mitologia indígena, aos símbolos nacionais e ocupando a afetividade
seu espaço, é necessário abrir outro parêntese considerável onde
o próprio Subcomandante o explica.
Dentro da citada entrevista realizada por Le Bot, há um momento
em que Marcos fala a respeito da linguagem utilizada pelo Zapatismo,
que me permitiu chegar a algumas deduções sobre o porquê e como
aquele se constituiu, até do que não se encontra dito nele. Quando
o grupo político-militar, na época da montanha, começou a receber
as pessoas que se tornariam as fileiras do EZLN, a quem teria de
proporcionar uma formação, compreendeu que não devia fazê-lo
através da substituição de uma doutrina por outra (que no caso se-
ria a religiosa aí bem arraigada, pela marxista que poderia ser tão
dogmática quanto a primeira). Por outro lado, dizia ser um exército
com inspiração em líderes populares como Emiliano Zapata, po-
rém, sem ainda ter experiência de luta ou um discurso que assim o
caracterizasse. Haveria portanto que criar sua própria linguagem,
que lhe garantisse não só estabelecer um eficaz contato com a nova
realidade, mas também conservar a essência da anterior. A inicial
bagagem branca foi assimilada, transmitida e depurada desde a
confluente perspectiva indígena, produzindo algo novo.

Mais tarde, quando o EZ atuou já publicamente, tendo antes apren-


dido o manejo dos símbolos índios, como os de lk'al e Votán —
divinidades mayas da noite e do dia, que por serem protetoras fo-
ram equiparadas, nas lendas chiapanecas, à pessoa de Zapata —
acabou acrescentando outros símbolos em seu discurso, digamos
de caráter pátrio, como a bandeira, a constituição e heróis nacio-
nais. Creio que com isto teve a intenção de estabelecer também um
bom enlace com o restante da nação mexicana.
Não se tratava precisamente de uma linguagem diferente da utiliza-
da por diversos atores sociais como o governo, mas sim de outorgar
outro significado não apenas às palavras, senão ã história na políti-
ca. Por exemplo, penso que não se interpreta do mesmo modo quan-

189
garcia, laura beatriz ramírez. Imaginário - usp, n° 7, pág. 173-194, 2001

do um camponês moreno, portanto de origem social e racial seme-


lhante à de Emiliano Zapata, o evoca e quando o Presidente da
República coloca esse nome no seu avião partióular. Na primeira
situação é como alimentar o imaginário novo com o familiar velho,
de tal modo que se consiga ser entendido por uma mulher não-
escolarizada ou por um prestigiado intelectual. Tal confrontação entre
os dois estilos fica acentuada, uma vez que a retórica oficial tem
desgastado essas imagens pelo seu abuso demagógico.
Além disso, o discurso do Movimento Zapatista, na busca de vias não
preenchidas ou bloqueadas por parte das autoridades, descobriu bem
a tempo o filão da Internet que, ainda não explorada por nenhuma
outra organização similar, resultou bastante eficiente para sua difusão.
O último traço da linguagem do EZ, que aqui vai ser comentado e
que fecha o círculo atrás aberto, é o de sua versatilidade que, em
certas ocasiões, tem sido mal compreendida. Isto porque, como já
vimos, conforme a situação social em que aparece, a linguagem
modifica-se, porém em forma e não em essência. Isto me parece
lógico e até necessário, uma vez que essa comunicação muda, de-
pendendo de a quem se dirige e segundo a natureza da sua emis-
são. Não seria, portanto, possível que o Zapatismo mantivesse
inalterado o que dizia naquele período em que abriu fogo — por
sinal, tempo curto de duas semanas — em relação ao que falou
posteriormente, apesar de que nunca pôde esquecer, em todas suas
ações, que entrou numa guerra. Então, tal discurso também varia
se o propósito é se estampar como declaração, comunicado, carta
ou pós-data. Em geral, é neste último formato — com o que conclui
um documento oficial — que o Subcomandante Marcos sai mais do
esquema esperado num porta-voz, tornando-se mais pessoal e ex-
pressando nitidamente os conteúdos emotivos mencionados ou até
justificados por ele no que segue:

El Viajo Antonio muere em 1994, en junio, y yo Io conocí en 1984.


Antes de morir, mandó un mensaje, pues ya estaba grave... es su
legado, es Ia historia dei origen, de los dioses que se sacrifican para
hacer el Sol y Ia Luna, de por quá el carbón es negro y sin embargo
de ahí viene Ia luz... Entonces me Ia manda, Ia saco en una postdata,
y empiezo a acordarme de él, de Ias otras historias que después
escribí. (pág. 153).

190
garcia, laura beatriz ramírez. Imaginário - usp, n° 7, pág. 173-194, 2001

Así Io que hacía el Viejo Antonio, que traducía el mundo indígena para
Marcos, Io hizo Marcos para el exterior, usando los mismos recursos...

En cuanto al escarabajo Durito, todo comenzó por un cuento que le


mandé a una nina de 10 anos que me escribió. Era una vieja história
que databa de Ia época de Ia guerrilia solitaria. Lo publican y tiene
êxito... Entonces, cuando vino Ia ofensiva de febrero, tuvimos que
replegarnos a aquellos territorios en los que habíamos estado an-
tes, y encontramos de nuevo aquellos escarabajos... Decidi retomar
a Durito y explicar, a través dei corazón, conceptos que van a ia
cabeza. Tenía que buscar Ia forma de explicar, lo que queríamos y lo
que pensábamos. Y Durito era un personaje, como se convirtieron
el viejo Antonio o los nihos zapatistas que aparecen en los cuentos,
que permitían explicar Ia situación en Ia cual estábamos y hacer que
se sintiera antes que se entendiera. Nosostros no podíamos dirigir
un discurso al bolsillo de Ia gente. No teníamos nada que vender. Ni
a Ia cabeza, porque no podíamos aportar nada al análisis que ya
existia, pero sí a su corazón, que era Ia parte más olvidada. No
estamos hablando de que queríamos construir un discurso senti-
mental, apolítico, ateórico, sino que queríamos bajar Ia teoria al ser
humano, de lo vivido, queríamos compartir con Ia gente Ias
experiencias para poder reflexionar en seguida, (pág. 356).

C h a m a m i n h a a t e n ç ã o q u e , m e s m o no m o m e n t o e m q u e o
Subcomandante foi tão explícito em relação à linguagem do EZLN,
não chega a dizer abertamente que toda ela ganhou um teor afetivo,
como se não percebesse^ o grande significado disto, nem de que, a
® Falo desse modo porque, em
partir de certo ponto, uma forte característica do Zapatismo é ser
verdade, parece-me que isto
discurso. Daí minha insistência em seu poderoso componente sub- não era notório para os própri-
jetivo, ainda que não esteja querendo reduzi-lo a ele. os Zapatistas, mas logo penso
que é de duvidar que algo as-
Voltando especificamente a essa disposição que contempla o outro, sim escapasse a bons estra-
podemos observar que ela buscou ser colocada em prática também tegistas. Talvez este seja uma
na relação do EZ com essa porção da sociedade nacional e interna- questão que valesse a pena in-

cional que se aproximou dele. Vimos anteriormente alguns dos moti- dagar e esclarecer futuramente.

vos para que esse encontro acontecesse — assim como, ao longo de


outra descrição completa dos episódios em que este se efetuou —,
no qual não apenas uma das partes deu ou recebeu. Isso porque o

191
garcia, laura beatriz ramírez. Imaginário - usp, n° 7, pág. 173-194, 2001

® Por exemplo, no recente li En- lado externo teve avivado o alento e sentido de sua procura de uma vida
contro contra o Neoloberalísmo
distinta daquela em que se encontrava imerso, coisificado pelas leis do
e pela Humanidade, levado a
cabo no Brasil; ou nos protes-
mercado e provocando o desejo nele por um "mundo reencantado", o que
tos que cercaram a reunião exatamente acompanha a prática do Movimento Zapatista. O EZLN, por
o c o r r i d a e m d e z e m b r o de sua vez, através de cada um dos seus integrantes, sentiu que os de "fora"
1999, da Organização Mundi-
voltaram o olhar para ele, escutaram o que tinha a dizer, protegeram-no
al do Comércio na cidade de
Seattie, ao mesmo tempo que nas horas perigosas, atenderam-no em suas convocatórias e, de alguma
aquele se realizava em Belém forma, até hoje, seguem-no ou nele se inspiram®. Desse modo, contribu-
do Pará; também à do Fundo
em para o processo de reparação através do qual estes índios secular-
Monetário Internacional efetu-
ada no início do ano 2000. Nes-
mente negados não apenas se afastam do perigo de deixar de existir, mas
tes últimos, entre os manifes- chegam, na realidade, a ser, a ponto de dizer: Finalmente existimos!
tantes havia várias pessoas,
Em suma, vemos que a Dignidade é constituída ou fortalecida por con-
particularmente jovens, que fi-
zeram uma alusão direta ou in- frontação ou confirmação de um Outro. Em outras palavras, enquanto
direta ao Zapatismo, ao men- o governo federal, a oligarquia chiapaneca ou até parte da sociedade
cioná-lo ou cobrirem seus ros- geral — ainda sob o influxo dos preconceitos de raça ou de classe —
tos c o m os característicos
nega os zapatistas, paradoxalmente, estes mais se identificam e lutam
paliãcates.
pelo direito de definir não só a si mesmos, mas o próprio contexto em
que querem estar incluídos com outros. É, também, bastante curiosa a
maneira peculiar como o fazem: com armas mais difíceis de vencer
que as militares, propagando, ao mesmo tempo, a rebeldia, a solidari-
edade e a alegria. Isto fica sintetizado na denominação que se deu ao
conjunto deles como La Tiema Fúria, ou numa passagem relatada por
^ Como seu nome diz, consis- uma das participantes na chamada "Consulta pelo Reconhecimento
tiu numa convocatória do EZ à
dos Direitos dos Povos índios e pelo Fim da Guerra de Extermínio^:
sociedade mexicana, para co-
nhecer a posição desta a res-
peito do ponto que tem causa-
do m a i o r conflito entre os
Mi esposo y yo estuvimos en una mesa de Morelia, respondiendo Ias
zapatistas e o governo federal, preguntas de los que tenían dudas o de los que no muy bién entienden
ou seja, esse que versa sobre de que se trata esc de Ia consulta. De repente se acercó una mujer y
direito indígena. Tal escrutínio
empezó a hablar conmigo. Yo le expliqué sobre derechos y cultura
se verificou no 21 de março de
1999, tendo como resultado indígena, también de los derechos de mujeres. Luego llenó Ia boleta y
imediato a participação de Ia puso en Ia urna. Estaba tan contenta que me regaló sus zapatos,
19.000 brigadistas, 5.000 de- "disque" para que pueda seguir mi andada hasta lejos, yo como tenía
legados do EZLN, 15.000 me-
sas e o comparecimento volun-
mi par que "de por si" siempre uso, pues se los regalé. Ahora ya me
tário de aproximadamente 2,5 regreso a Chiapas, al Aguacalientes de Morelia con los zapatos de
milhões de votantes ao longo esa compahera y los mios se quedaron con ella en su Morelia. (Maribel
dos 32 Estados Mexicanos.
y Juan Diego, delegados dei EZLN en Morelia, Michoacán).

192
garcia, laura beatriz ramírez. Imaginário - usp, n° 7, pág. 173-194, 2001

Esse testemunho me parece que exprime o espírito fundamental


que valorizo no Zapatismo: apesar da sua miséria material, ou tal-
vez por causa dela, de maneira semelhante a outros pobres do
mundo, é capaz de dar o melhor de si ou o único que possui, algo
que só pode gerar no Outro a vontade de retribuir com o mesmo.
Certamente, isto se dá dentro de um ambiente permeado por todos
os afetos humanos possíveis, entre os quais há de ser relevante o
do Amor, esse que não fica apenas contemplando os que lhe estão
próximos, mas que atua por eles e com eles para sair á frente — às
vezes indo longe. Neste caso, personificado na simples e rica figura
de üm par de sapatos, sobre o que não posso deixar de terminar
falando em meu próprio idioma, eles são: zapatospara ponerse de
pie, zapatos para buscar, zapatos para trabajar, zapatos para luctiar,
pero tambiém zapatos para aproximarse a! Otro, zapatos para dis-
cutir o com partir y ii ast a baiiarcon éi, en fin... zapatos de zapatista!

Resumo: Este texto, sendo originalmente o último item de uma tese


em torno do Zapatismo surgido em Chiapas (México), procura forta-
lecer a hipótese de que nesse movimento — como em outros fenô-
menos sociais — existe, entre múltiplos elementos já reconhecidos,
um não-reconhecido, mas bastante poderoso: a afetividade. O tra-
balho visa compreender a função que têm desempenhado os afetos
no âmbito zapatista, transitando por algumas reflexões de pensado-
res diversos como Espinosa, os representativos da Escola de Frank-
furt e outros; também pretende sublinhar a função positiva dessas
forças, que tais autores têm referido como "conatus", "impulso de
vida", "dignidade", etc.

Palavras-chave/ movimentos sociais, Chiapas, EZLN, afetividade.

Abstract: This text, the last part of a thesis on the Zapatista movement
originated in Chiapas (México), supports the idea that in said movement
—just as in other social phenomena — there is a very powerfui element
among others aiready acknowledged that still calls for

193
garcia, laura beatriz ramírez. Imaginário - usp, n° 7, pág. 173-194, 2001

acknowledgement: affection. This work is focused on the understanding


of this element of affection in the Zapatista environment while resorting
to a few thoughts of different philosophers, like Espinosa and those of
the School of Frankfurt, among others. It aiso intends to underscore
the positive influence of such forces the authors previousiy mentioned
referred to as "conatus", "life impulse", "dignity", etc.

Key words: social movements, Chiapas, EZLN, affection.

bibliografia
ESPINOSA. Coleção Os Pensadores, Seleção e tradução de textos: Marilena
Chauí, edição. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
EZLN. Documentos e Comunicados. México: Era, 1994.
. Dedaraciones. Página intemet, 1998.
GILLY, Adolfo. La Razón Ardiente. México: Era, 1997.
HARDT, Michael. Giiies Deieuze: um Aprendizado em Fiiosofia. São Paulo:
Editora 34, 1996.
HUERTA, Marta Durán (copiladora). Yo, l\^arcos. México: Ediciones dei
Milênio, 1994.
LE BOT, Yvon. EiSueno Zapatista. Barcelona: Plaza & Janés Editores S.A,
1997.
MARCUSE, Herbert. Eros e Civiiizaçào. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1999.
MATOS, Olgária C. F. A Escoia de Frani<furt:Luzes e Sombras do iiuminismo.
São Paulo: Moderna, 1993.
ROVIRA, Guiomar. i\/1ujeres de l\/laiz. México: Era, 1997.

194
torres, paola. Imaginário - usp, n° 7, pág. 195-209, 2001

trujiilo: mito y emblematica de una dictadura


latinoamencana.

Paola Torres^ ^ Etnóloga, formada por Ia Escueia


Nacional de Antropologia e Historia
de México, D. F. Trabaja in el

"Trujiilo, es senciliamente Trujiilo o mejor el Jefe" Consejo Nacional de Cultura y de


Artes (Conacuita) in México, Como
J. Castellanos^ subdírectora de atención al público
específico (creación de programas
culturais para este público),
Actualmente investiga Ia
Guando inicié este trabajo me asaltó Ia duda, cómo abordar un experiencia de exilados republica-

personaje como Trujiilo, de quien se ha escrito prácticamente todo nos espanõles en Ias colonias agrí-
colas dominicanas (1939 - 1945)
Io posible, incluida Ia magnífica novela de "La Fiesta dei Chivo" que durante Ia dictadura de Trujiilo.
explora, a partir de personajes ficticios, los terrenos más tenebro-
sos, sórdidos y a veces increíbles de esta dictadura caribeha.
Cita de José Castellanos, "Trujiilo
La fascinación que ejerce entre propios y extranos ha generado
y el puebto dominicano en los últi-
decenas de investigaciones, unas cuantas novelas y un par de pelí- mos 25 anos". In: La Era de Trujiilo.

culas que han tenido como eje central un dictador que a pesar de su Coord. Abelardo Nanita. Colección
La Era de Trujiilo. 25 anos de
asesinato hace ya cuarenta anos sigue estando presente en el Historia Dominicana. Impresora
imaginario colectivo dominicano y permeando Ia vida política, cultu- Domi-nicana. Ciudad Trujiilo, 1955.
Tomo I, # 7. p. 70.
ral y social de Ia isla.
Sin embargo, esta especie de deslumbramiento no es exclusiva de
Dominicana. En América Latina, que a través de los afíos ha tenido
que ser testigo y víctima de diversas dictaduras. Ia fascinación por
el tema ha quedado plasmada en obras que han intentado recrear
el ambiente malsano, Ia represión, el miedo y el letargo que parecen
acompafíar Ias dictaduras; así "La Novela de Perón" de Tomás Eloy
Martínez, Ia descripción de Ia dictadura guatemalteca de Estrada
Cabrera que consigue Miguel Ángel Asturias en "El Sehor Presiden-

195
torres, paola. Imaginário - usp, n° 7, pág. 195-209, 2001

te", "Yo, el supremo" de Roa Bastos, "El Recurso dei Método" de Alejo
Carpentier... o el delírio total y Ia soledad que trasudan el dictador de
"El Otono dei Patriarca" de Márquez, son claros ejemplos dei eterno
embeleso que parece ejercer este ser omnipotente, megalómano y
despiadado llámese Trujillo, Duvalier, Stroessner o Ubico.
Estos personajes vienen a ser Ia materialización dei "Mal", hecho
que nos atrae y repele simultáneamente. Por esto, a pesar de los
anos transcurridos puede atrapar al lector Ia historia dei "Chivo",
éste macho cabrío desbordante de sexualidad y poder que coman-
dando con mano dura media isla por más de tres décadas alcanzó
fama mundial y logró colarse entre los más "connotados" tiranos dei
mundo, por supuesto con el atractivo que confiere Ias singularida-
des y excentricidades de un déspota caribeno.
La novela es médio idôneo, terreno fértil para retratar y hacernos sentir
el ambiente opresivo, Ia asfixia y el sin sentido de Ia dictadura, agudizado
por este "Jonás geográfico"^ que entraha Ia condición insular.
" Durand, Gílbert. Las estructuras

antropológicas de ío imaginario. Podomos Sentir las miradas y los oídos que acechan en cada esqui-
Ed. Taurus. Madrid, 1981, p. 228,
na y podemos comprender que una de las razones más poderosas
que provoca que las dictaduras se eternicen es el silencio y el temor
que nos va c o n v i r t i e n d o , c o n s c i e n t e o i n c o n s c i e n t e m e n t e , en
cómplices a cada uno de nosotros.
Sin embargo, en el caso dei "Chivo", Ia realidad supero a Ia ficción, de
tal manera que Vargas LIosa obvió muchos relatos verídicos que ilustran
Ia personalidad de Trujillo y su familia, por considerar que serían
inverosímiles para Ia mayoría de nosotros. Porque Ia parafernalia
trujillista fue construyendo a Io largo de 31 anos un personaje mítico,
un ser mesiánico, que por encima de los infortúnios de Ia naturaleza se
erige como el pacificador, el reconstructor de una nación, a Ia que ha
arrebatado dei infortúnio para llevarla a las "más altas cumbres de Ia
vida Occidental y Ia caridad cristiana". Este "predestinado", a decir de
su corte, es senalado desde que nace por Ia Providencia:

"Sobre San Cristóbal dormido mientras una extrafía luz, extraterrena,


fuige sobre Ia casa antahona, sobre Ia casa olorosa a trabajo y
santidad, donde trajinan personas, donde se escuchan los vagidos
augúrales y misteriosos dei nuevo ser que saluda a Ia Vida.

196
torres, paola. Imaginário - usp, n° 7, pág. 195-209, 2001

Aquella casa es ya nuestro Portal de Belén.

Es ei 24 de octubre de 1891.

Es Ia medianoche.

El milagre se ha hecho carne de gloria...

i Rafael Leonidas Trujillo y Molina ha nacido!'"^


•• Así resena Ia família Logrono el
"afortunado" nacimiento dei

Todas Ias historias que se generaban en torno a su persona venían Generalísimo. Publicado en ia
primera página dei Diário La Nación
a robustecer y redondear el mito: dei 24 de octubre de 1946. Citado
por José Aimoina en: Una Satrapía
en el Caribe, Historia Puntual de Ia
Su capacidad de trabajo se convirtió en algo proverbial: a Ias cuatro Mala Vida dei Déspota Rafael
de Ia mahana se despertaba y se enteraba de todas Ias novedades, Leonidas Trujillo. Editora Cole, San-
to Domingo, 1999. p. 272.
desde Ias noticias internacionales hasta los chismes locales^ Me-
tódico y sistemático cada dia trabajaba hasta Ias siete de Ia noche y
- Crassweller, Robert. Trujillo. La
después de cenar visitaba a Ia "excelsa matrona" dona Julia y recorria trágica aventura dei poder
a pie el trayecto que Io llevaba al malecón. Era el momento en que personaL Editora Central dei Libro,
Santo Domingo, 1996. p, 91.
se discutían los asuntos y con su trato preferencial o su indiferencia
separaba los afortunados de los que iban cayendo en desgracia.
Desconfiado preferia tener a todos vigilados y controlados, dispuestos
a cualquier cosa por ganarse el favor dei Jefe.

Impecablemente vestido soportaba de manera estoica Ias altas tem-


peraturas y Ia humedad enfundado en su traje de etiqueta o en su
uniforme militar, que complementaba en Ias grandes ocasiones con ® Crassweller, Robert. Trujillo. La
un barroco bicornio de plumas de avestruz coronando su testa®. Lo trágica aventura dei poder
personaL Editora Central de! Libro,
que confirmaba que él, el Generalísimo, contrariamente al resto de
Santo Domingo. 1996. p. 95,
los mortales nunca sudaba.
• Aimoina. José. Una Satrapía en
Su narcisismo era tan acusado que en repetidas ocasiones salía dei el Caribe. Historia Puntual de Ia
bano totalmente desnudo para que Ia camarilia de aduladores excla- Mala Vida dei Déspota Rafael
Leonidas Trujillo. Editora Cole.
mara con admiración: "jQué cuerpoí jQué blancura de piei! ("Mentira Santo Domingo. 1999. p. 36.
que es mulatón", denuncia José Aimoina) jQué formas! jQué muscu-
latura! iAsí se explica que Ias mujeres no resistan al Jefe!"7 " Luisa Erciná Chevalier, fue hija no
reconocida de un oficia! dei ejército
Trujillo se maquiliaba constantemente en su afán de ocultar los haitiano y de Dieta Chevalier,
h a i t i a n a que h a b í a l l e g a d a a
visibles rasgos negros que debía agradecer a su abuela materna de Dominicana durante los anos de ia
o r i g e n haitiano® Luisa Erciná C h e v a l i e r . P a r a a t e n u a r t a n ocupación (1822-1844).

197
torres, paola. Imaginário - usp, n° 7, pág. 195-209, 2001

® González-Blanco, Pedro, "desagradable" herencia, sus antecedentes haitianos quedaron ocul-


Genealogfa de los apellidos Trujillo,
Molina, Vaidés, Monagas y
tos en un estúdio genealógico que remontaba el origen de su familia
Chevalier. Imprenía Gráficas Uguina. a Ia Casa de Borgona, dei Poitou, de Flandes, de Bretana y de Anjou
Madríd, 1956. p. 199.
y no al continente africano^
José Âimoina, de origen espanof Pero sus p r o e z a s físicas no se limitaban a estos a s p e c t o s , era
ilega como exiüado poiítico a Ia Repú-
blica Dominicana en noviembre de
un m u j e r i e g o r e c o n o c i d o y p r o b a d o , q u e c a d a s e m a n a
1939. con su esposa y tres de sus hijos, p e r m a n e c i a 2 ó 3 d i a s en Ia legendaria Casa de Caoba de su
una cuarta hija nacería en Ciudad
natal San Cristóbal, ya fuese con prostitutas, desflorando
Trujülo. Se inserta en ei médio
acadêmico, imparte clases en Ia vírgenes elegidas c u i d a d o s a m e n t e para Ia ocasión, o disfrutando
Facultad de Filosofia de Ia Universidad de Ias e s p o s a s de sus f u n c i o n á r i o s más c e r c a n o s , por s u p u e s t o
de Santo Domingo, es profesor de Ia
Escuela Diplomática y Consular de Ia
para "que t o d o q u e d a r a en familia". D e m o c r á t i c o en sus
Ganciilería dominicana y nombrado en p r e f e r e n c i a s no d i s c r i m i n a b a entre s e n o r a s de noble alcurnia,
1942 preceptor de Ramfis, hijo mayor
ninas c l a s e - m e d i e r a s dei interior, e s t u d i a n t e s u oficinistas, Io
de! Generaíísimo. En 1944 se le con-
cede Ia ciuda-danía privilegiada y en q u e d e m o s t r a b a que el J e f e era un " m a c h a z o " , un a u t ê n t i c o
1945 es designado secretario particu- "Gallo". Y a decir de Almoina^®, t a m p o c o d e s p r e c i a b a los repre-
lar dei dictador, cargo que ostenta has-
11 su salida a México en 1947, Trujülo
s e n t a n t e s de su propio s e x o s i e n d o el más c o n s t a n t e de sus
nunca le perdonará su salida y menos a m a n t e s M a n u e l de Moya, un g u a p o ex m o d e l o de caizoncillos
aun Ia publicadón de "Una satrapía en
y Glostora, que por sus habilidades a m a t o r i a s había sido eleva-
el Caríbé' (editado en 1949) que, cuyo
autor Gregorio Bustamante era un do al cargo de distinguido diplomático^^
ssudónimo bajo el que se amparaba
Almoina para relatar los aspectos ínti- El c o n t r o l dei "Jefe" e r a a b s o l u t o , c u a l q u i e r s o s p e c h o s o de
mos y menos agra-dables de Trujillo y conspiración o deslealtad podia terminar de huésped de "La 40", "El
su familia. El enojo dei dictador
o víctima de los más crueles tratos en el manicomio dei Km 28.
provoco en ven-ganza el asesinato
de Almoina el 4 de mayo de 1960 Unos lograban sobrevivir a Ias torturas ideadas por Johnny Abbes^^
en Ia Ciudad de México. Almoina, y sus secuaces, los que no, eran arrojados a los tiburones en Ias
José. Una Satrapía en el Caribe.
Historia Puntuaí de Ia Mala Vida de!
inmediaciones dei matadero de reses de Ia Autopista Sánchez. Nadie
Déspota Rafael Leonidas Trujillo. parecia escapar a Ia mirada inquisitiva dei Jefe, que mantenía su
Editora Cole, Santo Domingo, 1999.
régimen de "orden y paz" a través de una impresionante red de espias
ídem. p. 199. que controlaban los movimientos de todos: el limpiabotas, el vecino
o el compahero de trabajo podían ser pagados por Ias huestes de
^^ Conocidos centros de tortura du-
Chapita^"^. El temor cobraba formas inusitadas, así durante Ia estancia
rante Ia Era de Trujillo.
de un grupo de exiliados anarquistas en Ias colonias agrícolas de Ia
Jefe de los servicios de seguridad província de San Juan de Ia Maguana, los campesinos alertan a los
durante los últimos anos de ia dictadura
esparíoles de los peligros que entraria hablar de Trujillo. No hay
trujillista. Abbes organizo el failido aten-
tado contra el presidente venezoíano hora dei dia, ni sitio que escape a su control, cuando Ia red de caliés^^
Rómulo Betancourt, (En: Balaguer, deja de trabajar, los poderes sobrenaturales vienen en su auxilio,
Joaquín. Memórias de un cortesano
de Ia "Era de Trujillo". Editora Corripio,
pues el Jefe durante Ias noches "manda a Ias brujas" a escuchar Ias
Santo Domingo, 1996. pp. 224-226. conversaciones.^®

198
torres, paola. Imaginário - usp, n° 7, pág. 195-209, 2001

Cada dia Ia gente esperaba con ansía el periódico para revisar con ^ - Apodo por el que era conocido
Trujillo durante su infancia.
mano temblorosa Ia sección de "El Foro Público", columna que
rezumaba el malestar de Trujillo destruyendo reputaciones y conde- ^^ Término por el que eran conocidos

nando al ostracismo a los que caían de su gracia y pasaban a los espias miembros dei Servício de
ínteiigencia Militar (SIM).
engrosar Ia funesta lista de los "desafectos"^^.
Implacable con sus enemigos idea Ia manera de deshacerse de todo Testímonio de Ia Sra Camnen CariDó.
Anarquista espafiola de origen cat^án
aquel que atenta con sus intereses. En 1956 secuestra a Jesús que se exilia en República Dominicana
Galíndez^® en Nueva York, a quien, según cuenta Ia "leyenda", le con su esposo e hija recién nacida.

hace comer una por una de Ias páginas de su tesis doctoral "La Era R ^ d e i por un período en Ia cx^onía agrí-
cola de San Juan de Ia Maguana 1941-
de Trujillo", para después arrojar a los tiburones Ia masa informe en 2. / Entrevista realizada por Paola Toires
que se había convertido su cuerpo. A Almoina, el espanol en el que en Ia Ciudad de México, enero 2001.

deposito su confianza y a quien nunca perdonó su traición Io hizo


Dentro de Ia t e r m i n o l o g i a
vivir en constante zozobra en su auto-exilio en México donde final- a c u n a d a por los s e r v i c i o s de
mente Io asesina en 1960. La larga lista incluye los dos atentados Ínteiigencia de Trujillo, había una

contra su declarado enemigo, el presidente venezolano Rómulo gama de enemigos dei régimen
según el grado de virulência, los
Betancourt, al que intenta asesinar con una jeringa llena de veneno desafectos activos, que habían
cuando transita por una concurrida calle de La Habana, y al que sido descu-biertos conspirando
contra "El Jefe" (Ia mayoría de estos
finalmente destroza Ias manos cuando un coche bomba estalla en era torturados y asesinados); los
Caracas justo cuando el automóvil presidencial pasaba por el lugar. desafectos pasivos que a pesar de
Esto, sin contar el alucinante episodio orquestado por Abbes cuando no demostrársele participación en
complot alguno no comulgaban con
envia a un despistado piloto para inundar Ias calles de Caracas con Ia dictadura (sometidos a constan-
volantes contrários a Betancourt: El piloto no encuentra Caracas y te vigi-lancia y aislados socialmen-

deja caer en tierras curazolenas miles de papeletas ante Ia mirada te) y ei nebuloso grupo de los
dudosos o indiferentes, objeto de
incrédula de los locales. sospecha por su constante
capacidad de esquivar los
Este poder absoluto y sin limitaciones aislaba a Trujillo, elevándolo compromisos con el Partido
por encima de los demás, transformado en el "Dios Padre", el "Dios Dominicano y Trujillo, compromisos
que ningún dominicano debía o
Gran Macho", que encarna el rol de protector, el "monarca paterno y
podia eludir. Vega, Bernardo. Unos
dominador"^^ y explica Ia atmosfera de culto mesiánico que se desafectos y otros en desgracia.
traducía en Ia placa que ostentaban miles de hogares dominicanos Sufnmientos en Ia dictadura de
Trujillo, Fundación Cultura!
con Ia frase "Dios y Trujillo". Dominicana. Santo Domingo, 1986.

La mitificación de Trujillo comienza temprano. Poco después de as-


Jesús de Galíndez ilegó a Repú-
cender al poder, Trujillo debe enfrentar una gran catástrofe natural, blica Dominicana como en 1939
el ciclón de San Zenón^o y, con ello, severos danos a los cultivos refugiado despues de que los re-
publicanos perdie/an Ia Guerra Ci-
agrícolas de Ias zonas este y sur dei país y Ia destrucción de gran vil espanola. A su llegada imparte
parte de Ias construcciones de madera que cubrían los barrios po- clases en Ia escueía diplomática de
Ia C a n c i i l e r í a y t r a b a j a en Ia
bres de Ia capital. Esta es Ia oportunidad para que el dictador, cual Secretaria de Trabajo como con-
"héroe civilizador" permita que el pueblo dominicano deje de "ser sultor jurídico, a pesar de gozar de

199
torres, paola. Imaginário - usp, n° 7, pág. 195-209, 2001

buenos cargos durante el regimen mar- asistido exclusivamente por Dios para serio igualmente por una mano
cha hacia los Estados Unidos donde
se con-vierte en representante dei
q u e p a r e c e t o c a d a d e s d e el p r i n c i p i o d e u n a e s p e c i e d e
gobiemo vasco en ei exílio e imparte predestinación divina: Ia mano providencial de Trujillo"^^
docência en Ia Universidad de
Coiumbia, y se ie asocia con ia Agen- El dictador se convierte en Benefactor de Ia Patria y Padre de Ia
cia Central de inteiigencia (CIA) como
Patria Nueva (títulos que se Ie otorgan en reconocimiento por sus
informante. En Nueva York prepara su
tesis doctoral "La Era de Trujilfo", un hazanas) cuando desafia las inclemencias de Ia Naturaleza que,
exhaustivo estúdio sobre Ia tirania con "en diabólico aquelarre las aguas y los vientos, Santo Domingo de
información importante que pudo re-
copilar durante su época de funcionário
Guzmán, como las ciudades de Ia Escritura ha dejado de existir"^^.
público. El texto Ie valió Ia repulsa de Ante estas desgracias casi apocalípticas:
Trujillo y su secuestro el 12 de marzo
de 1956, varias de Ias personas
implicadas en ia operación fueron 'Trujillo altanero y resueito, mazela radiante de Bolívar y Carlos
desapareciendo poco después dei
Borromeo, más altivo aún en médio dei desastre que las viajas tor-
escândalo internacional. Enci-
clopédia Dominicana. Edictones ras, rudas atalayas da Ia historia, que Ia van pasar, piadoso y
Enciclopédia Dominicana, S.A.. Santo
desafiante, mazclando su acarada voz da mando a Ia orquastación
Domingo, 1976. Tomo iil, pp. 165-166.
salvaja dal huracán, Trujillo sa alza por encima dei desastre mismo,
Durand, Gílbert. Las estructuras an- tan grande como Ia propia tragédia, qua rata con supremo coraja y,
tropológicas de Io imaginarío. Edito- voluntad indomabla y constructiva, sin habar concluido aún al
rial Taurus, Madrid, 1982. p. 129
ascombra, inicia Ia portentosa obra da hacar da nuavo Ia ciudad,
El 3 de septiembre de 1930 ei asfuarzo gigantesco qua hoy sa contempla como obra da magiB".^^
Cición de San Zenón causó profun-
dos danos en ia agricultura y destrozó
unas 4,000 casas de las 7.000 que Como sehala Balaguer, Ia Providencia con el cición de 1930 marca
se encontraban disiribuidas por ia
un "parte-aguas", "cierra el ciclo dei predominio en Ia historia dei
Cfudad de Santo Domingo,
país de las fuerzas de Ia naturaleza, para abrir en cambio el dei
3r, Joaquín. "Dios y Trujíllo; predominio en Ia historia de Ia acción dei hombre que se supera en
Una interpretación realista de Ia Ia energia constructiva y en Ia voluntad creadora".^^
historia dominicana', en: La Era de
Trujillo. Compilado por Abelardo La obra civilizadora de Trujillo no se limita a Ia reconstrucción física
Nanita, Colección La Era de Trujilio.
dei país, su renovación toca todos los órdenes de Ia vida nacional:
25 anos de Historia Dominicana.
Impresora Dominicana, Ciudad
Trujillo, 1955. Tomo i, p. 61.
- Moderniza, construya urbanizaciones, carretaras, ascuelas,
^ Logroho. Arturo. "Elogio de Ia Ley dei
iglesias, ramoza las ciudades, introduca al agua potabla y Ia
11 de enero de 1936, que dispone ei alactricidad, inicia un proceso da dasarrollo da las principalas zo-
cambio de nombre de ia ciudad de San-
nas urbanas, fundamantalmanta da Santo Domingo, qua agradeci-
to Domingo de Guzmán por ei de
Ciudad Trujillo", In: La Era de Trujillo. da por su reconstrucción en 1936, raciba con beneplácito Ia lay,
Coord. Abelardo Nanita. Cole-cdón La por supuasto motivada por Ia "incasanta demanda popular",
Era de Trujilio. 25 anos de Historia
Dominicana, impresora Dominicana.
astablaciendo qua desde asa momento Ia capital dal país sa llamara
CiudadTrujilb. 1955. Tomo li, #8. p. 11. Ciudad Trujillo^^

200
torres, paola. Imaginário - usp, n° 7, pág. 195-209, 2001

- Pacifica un país desolado por Ias luchas entre caciques locales y ^"Ibidem, p, 12.

guerrilias (por supuesto logra esta "paz" a partir de Ia persecución


Balaguer, Joaquín. "Dios y Trujillo:
sistemática y muchas veces Ia desaparición física de todo aquel que Una inierpretacíón realista de Ia
constituya un estorbo para sus planes). historia dominicana". En: La Era de
Trujillo. Coordinacíón de Abe~lardo
Nanita, Colección La Era de Trujillo.
Trujillo logra el cometido que no había podido alcanzarse a pesar 25 anos de Historia Domi-nicana,
Impresora Domi-nicana, Ciudad
de los múltiples esfuerzos, reafirma Ia identidad nacional a partir de Trujillo, 1955. Tomo í, # 7. p. 58.
Ia o p o s i c i ó n d e "Io d o m i n i c a n o " al c r i s o l de c a l a m i d a d e s y
degeneración que cunde en Ia parte occidental de Ia Isla: Ley dei 11 de enero de 1936.

"La consigna de Trujillo era unir por Ias fuerzas de Ia solidaridad,


integrar Ia nacionalidad por obra de una exaltación dei sentimiento
de confraternidad entre todos los dominicanos, inculcándoles Ia
conciencia de un destino unitário no sólo en cuanto a Ias posibilidades,
dia a dia logradas, de un futuro mejor, sino también despertando en
ellos un sentido de permanencia histórica de Ia dominicanidad por
médio dei culto de Ias hazahas de Ias generaciones pasadas"^®. (Y - Herrera Báez, Porfirio. "Gênesis

entre estas hazahas Ia independencia dominicana con respecto a y írayectoria de Ia política


anticomu-nisía dei Generalísimo
Haiti desempehaba el papel protagónico) TrujílloT En: La Era de Trujillo,
Goord. Abelardo Nanita. Colección
La Era de Trujillo. 25 anos de
Insiste en que todos los esfuerzos por lograr el desarrollo y el Historia Dominicana. Impresora
progreso nacional resultarían insuficientes si no se daba una lucha Dominicana. Ciudad Trujülo, 1955.

frontal c o n t r a Ias " h o r d a s " de i n m i g r a n t e s " i n d e s e a b l e s " q u e T o m o l . # 7 . p. 210.

representaban el peligro y Ia constante obsesión haitiana de Ia


indivisibilidad de Ia Isla^^. Uno de ios permanentes
c o n f l i o t o s e n t r e Ia R e p ú b l i c a
En este empeno Trujillo decide poner remedio definitivo a Ia cons- Dominicana y Haiti ha sido Ia idea
tante penetración de nacionales haitianos a Dominicana. Por vez presente en un determinado sector
de Ia pobiación haitiana de Ia I d e a
primera, traza y delimita firmemente Ia línea divisória entre los dos
de Ia indivisibilidad de Ia Isla" que
países para frenar Ia presión de unos vecinos que, acorralados por motivo desde princípios dei Slglo
Ia pobreza, Ia erosión de los suelos y el analfabetismo amenazaban XiX varias inoursiones de Ias tro~

con "imponer el gourde haitiano, el animismo africano de Ia peor pas haitianas a Ia zona espafíola,
irwasión que finalmente se materi-
extracción". En vastas zonas dei país (como ya acontecia con Ias aliza en Ia ocupación haitiana de
zonas fronterizas), estos haitianos "cargados de hijos y enfermedades 1822 a 1844.

contagiosas, como Ia malaria, Ia tuberculosis o Ia sífilis", con sus


"siniestras" prácticas de vudúy "costumbres contra natura como el Gonzáiez Blanco, Pedro, Trujillo

incesto", implicaban un retorno a un estado de oscurantismo y o Ia Restauradón de un Pueblo.


Ediciones Luis Sánchez Andujar.
salvajismo que se antojaba insoportable para una "nación de origen Ciudad Trujillo, República
hispânico, de puro abolengo espahol, de tradición cristiana"^®: Dominicana, 1946. p. 52,

201
torres, paola. Imaginário - usp, n° 7, pág. 195-209, 2001

Colecdón de Leyes de Ia Repú- Con este objetivo en 1933 se dieta una Ley de Inmigración para
blica Dominicana, ano 1933. pp.
381-382.
reforzar los impedimentos de entrada a todos aquellos que no
p a s a r a n Ia prueba de blancura. Así: "Los indivíduos de raza
González Bíanco, Pedro. Trujillo mongólica y los naturales dei continente africano, que no sean de
o Ia Res-tauración de un Pueblo.
Ediciones Luis Sánchez Andujar.
raza caucásica, pagarán los siguientes impuestos:
Ciudad Trujülo. República
dominicana, 1946. p. 52.
1. Permiso para entrar en el territorio de Ia República Dominicana
Término utilizado por Manuel $300.00 dis.
Arturo Pena Batite (uno de los inte-
iectuales más destacados al interi- 2. Permiso para permanecer en el territorio $100.00 dls."^^ (Impuesto
or dei tru-jiílismo). para definir Ia
que fue elevado a $500.00 dis. en 1940)
situación de Ias zonas fronterizas
pobladas por nacionale
y/o sus descendientes.
Estas leyes frenaron relativamente Ia "penetración indeseable",^®
pero Ia amenaza de Ia "africanización"^^ de Ias regiones fronterizas
'^Nuncasehaesta-W 3 una cifra
precisa de los haitianos ase-sinados continuaba, y se idea una solución tajante como respuesta a esta
en los poços dias que duró Ia ope- " i n v a s i ó n s i l e n c i o s a " : en o c t u b r e de 1937 se Neva a c a b o Ia
ración, pero Ia cantidad estimada de
haitianos asesinados en territorio
"Operación El Corte". En un par de dias, de 15.000 a 2 0 . 0 0 0
dominicano oscila entre 10.000 y haitianos^^ son asesinados a machetazos por militares vestidos de
25-000. Árias Nunez. Luís, La Políti-
civil, como una manera de enmascarar una operación oficial con
ca Exterior en Ia Era de Trujillo.
PUCMM, Santiago, 1991. p. 108. visos de descontento popular ante Ia presencia haitiana. Como nota
m a c a b r a , se d i c e q u e p a r a d i s t i n g u i r e n t r e u n a p o b l a c i ó n
^ La Conferencia de Evian se realizo
mayoritariamente negra a los dominicanos de los haitianos, se le
en 1938. bajo el auspício de! gobiemo
de Rooseveit, con el objetivo de bus- pedia a todo negro "sospechoso" que pronunciara Ia palabra "perey//',
car soluciones a los miies de judios ex- término que se consideraba difícil de pronunciar para todo aquel
pulsados de Ia Alemania nazi. Duran-
te esta reunión. a manera de atenuan-
que tenía el créole como lengua materna.
te a! escândalo intemaciona! provoca-
El genocidio detuvo Ia migración, pero eso no fue suficiente: había
do por ia matanza indiscriminada de
nacionales haitianos en Dominicana, que exterminar los últimos reductos de negritud en un país en que
Trujillo se ofrecio para recibir en el país
el negro "sólo" era el haitiano y los demás eran "indios" de Ias más
unos 100.000 refugiados que serían
ubi-cados en comunas agrícolas a Ias diversas tonalidades. La oportunidad de fomentar una migración de
que se apoyaría con aperos de "razas aptas" se presenta en 1938, cuando en médio de Ias reuniones
labranza. semillas, servicios sanitarios,
de Evian, con Ia intención de solucionar Ia precaria situación de los
escuelasyviviendas.
refugiados judios de Ia Europa ocupada por los nazis, Trujillo^^ ofrece
La colonia judia de Sosúa se recibir 100.000 refugiados europeos.
caracterizo por Io exigua de su
ocupación; Los refugiados judios se asentaron en Sosúa, Ia costa norte dei
otoho de 1940
país, donde Trujillo donó 26.685 acres de terreno. El asentamiento
170 colonos

octubre 1942
era reducido^"^, pero el constante apoyo econômico proveniente de
571 los Estados Unidos le permitió Ia construcción de casas, carreteras...

202
torres, paola. Imaginário - usp, n° 7, pág. 195-209, 2001

Sin embargo, el origen urbano de Ia mayoría de los refugiados, enero 1944


476
aunado a los rumores de espias nazis infiltrados en Ia zona, fueron
Gardiner, Harvey. La Política de
propiciando su paulatina salida rumbo a los Estados Unidos. inmigración de! Dictador Trujillo.
Estúdio sobre ia creación de una
Los demás refugiados que arribaron al país entre 1939 y 1940 imagen humanitaria. UNPHU. San-
correspondían al exilio espanoP^. Gran parte de ellos salían de los to Domingo, 1979. pp, 109,125.127,

c a m p o s de c o n c e n t r a c i ó n f r a n c e s e s a Ias a n t i g u a s c o l o n i a s
a de re
espanolas que ahora prodigaban amparo. De Ia tripulación de los a ia República Dominicana;
primeros barcos muchos pudieron ubicarse en el âmbito acadêmico, Nov. - Dic, 1939 1.218

sin embargo el resto fué enviados de los puertos directamente a Ias Enero - mayo 1940 1.858

diversas colonias agrícolas donde Ias inclemencias dei tiempo, Ia Total aprox. 3,076

miséria y el aislamiento de los mismos hicieron aprovechar cualquier bídem. p. 36.

posibilidad de partir con dirección a México, Venezuela o el Ecuador. No se conoce Ia cifra exacta de los
refugiados espanolas llegados a

Ante el fracaso de Ia migración posterior a Ia Guerra Civil espahola, Dominicana, !os dates anteriores
corresponden los que arribaban por
Trujillo implementa un ambicioso plan para traer nuevamente esparioles barcos procedentes de Francia, sin
a Ia Isla, e insiste y privilegia este tipo de migración porque: embargo muchos espatíoles lle-
garon de manera independiente.
(Âigunos autores como Vicente
"La desnacionalización de Santo Domingo, persistentemente reali- LIorens consideram que 5.000
exiliados espa-noles fueron
zada desde hace más de un sigio por el comercio con Io peor de Ia 3 en el país).
población haitiana ha hecho progresos preocupantes. Nuestro origen
racial y nuestra tradición de pueblo hispânico, no nos deben impedir
^ Es de destacar que estos son los ar-
reconocer que Ia nacionalidad se halla en peligro de desintegrarse si gumentos que se esgrimen durante Ia

no se emplean remedios drásticos para Ia amenaza que se deriva Era de Trujillo para fomentar Ia
inmigración espanola a Ia República
para ella de Ia vecindad dei pueblo haitiano. Dominicana, sin embargo esta cita cor-
responde a Joaquín Balaguer y apare-
El primer indicio de esta desnacionalización Io constituye Ia ce en su texto T a isla a! revés. Haiti y
ei destino dominicano", quien ha sido
decadencia étnica progresiva de Ia población dominicana. Pero Ia presidente de Ia República Dominicana
disminución de sus caracteres somáticos primitivos es sólo el signo en varias ocasiones (1960-1961,1966-
1978,1986-1994.1994-1996). Edito-
más visible de Ia desnacionalización dei país que va perdiendo poco ra Corripio. Santo Domingo. Novena
a poco su fisonomía espahola".^® edición. 1995. p. 44.

Y para cumplir este cometido, Trujillo firma con su homólogo Fran-


cisco Franco el Convênio de Emigración Hispano-Dominicana^^ para
Convênio firmado durante Ia visi-
llevar a Ia República Dominicana campesinos espanoles. Entre 1955 ta de Trujiüo a Espaha. en 1954.
y 1956 llegan 4.131 "agricultores" que son ubicados en 14 colonias
agrícolas; estos inmigrantes permitirían borrar el "desagradable" paso
de los intelectuales anarcos, socialistas y comunistas dei 1939. En

203
torres, paola. Imaginário - usp, n° 7, pág. 195-209, 2001

756 emigrantes espanoles


el primer contingente llegaron familias^®, pero el segundo grupo que
arribaron a Dominicana a bordo dei
barco "Espafía", ei 8 de enero de arriba el 4 de junio dei 1955 se caracteriza de manera notoria por Ia
1955. Periódico El Caribe. Ciudad gran cantidad de solteros que reclutados en Espana vendrían a
Trujíilo, 9 de enero de 1955.
relacionarse con las dominicanas.
Esta vez Trujillo d e s e m b o l s a una fuerte s u m a de dinero en Ia
habilitación de parcelas, carreteras, escuelas, viviendas, sistemas
de regadío y en pagos de p a s a j e s de ida y vuelta, por si las
inclemencias dei tiempo o las diferencias culturales impedían Ia
adaptación. Medida preventiva que Ie serviria de mucho — en con-
tra de sus deseos — cuando esta nueva emigración resultó un
f r a c a s o : m á s dei 50 % de los e s p a n o l e s f u e r o n r e p a t r i a d o s
obedeciendo las cláusulas dei Convênio; sólo en marzo de 1957 se
embarcaron de vuelta a Espana 1.369.

El objetivo principal de Ia política migratória, estimular los casamientos


entre espanoles y nativas, alcanzó logros muy reducidos a pesar dei
estímulo de 150 dólares por cada matrimonio mixto. Los espafíoles
en su gran mayoría no se relacionaron con las mujeres de estas co-
munidades sumidas en Ia pobreza donde

Informe Secretaria General dei "es fácil ver a ninas de doce y catorce arios en estado, nihos que
Ministério de información y Turis-
abusan dei ron, padres y hermanos que viven juntos en Ia misma
mo de Espana, con motivo de ia
repatriación de los espafíoles des- habitación, ninas yjóvenes fumando a todas horas; se desconocen el
de Dominicana (1956).
plato y Ia cuchara, hasta el extremo que el arroz, el plátano y Ia yuca,
El Gobiemo Dominicano había
base de Ia alimentación de Ia gente dei campo, son servidos en hojas,
estabiecido que apoyaría a los japone- y se toman aquel cereal con los dedos. Las viviendas no reúnen las
ses dotaciones de tierra. exención de
impuestos. construcción de viviendas.
condiciones precisas para que pueda vivir el espahol. Por Ia noche se
centros médicos y es-cuelas, mientras nota mucho frio en ellas, y por el dia un gran calor. Les dan tan sólo 60
que los colonos se harían cargo de los
centavos por persona (25 pesetas) y con eso tienen que comer y vivir.
gastos que generarían su traslado a Ia
isia cari-bena. A pesar de Ia generali- La vida está cara, Io único barato es el café, el ron y el tabaco".^^
zada apreciación de ser Ia migración
más exftosa durante ia "Era", un impor-
tante grupo de japoneses regresó a su Ante el desastre, Trujillo idea Ia Negada de otros colonos: 1.500
país de origen y denunciaron las con-
agricultores japoneses asentados en terrenos baldios de las zonas
diciones de vida a que estuvieron
sometidos en "campos vigilados por fronterizas y colonias agrícolas productoras de verduras y hortalizas
soldados annados y obligados a reali- en Ia región montafíosa dei centro dei país. Estos inmigrantes
zar trabajos forzados". Periódico Últi-
ma Hora, Santo Domingo, República
constituyeron el grupo que mejor se adaptó a las nuevas condiciones
Dominicana/19 de diciembre dei 2000. a pesar de las evidentes diferencias culturales.^®

204
torres, paola. Imaginário - usp, n° 7, pág. 195-209, 2001

La insistência dei dictador en fomentar Ia migración de "razas ap-


tas" se fue sumando a su interés cada vez más marcado en luchar
contra el comunismo internacional, en noviembre de 1949 llegan a
Ciudad Trujillo un total de 190 refugiados, 180 judios rusos blancos
y 10 chinos, que habían residido en Shangai'^^ De esta migración
sólo permanecieron 7 personas en el paiV^.
''' Las negociaciones se llevaron a
Asimismo, un grupo de 588 húngaros fue recibido en 1957, después cabo a través de Ia Organización In-
ternacional de Refugiados (IRO),
de Ia rebelión comunista de Otoho. Este grupo conformado por téc- que había sus-tituido en junlo de
nicos, obreros, oficinistas y campesinos fue alojado en Duvergé, 1947 al Cornité Intergubernarnental

una zona fronteriza caliente, salitrosa y seca, situada por debajo dei sobre Refugiados (ÍGCR). Gardiner,
Han/ey. La Política de Inmigración
mar, ante estas condiciones el grupo fue abandonando el país de dei Dictador Trujillo. Estúdio sobre
manera paulatina"^^. Ia creación de una imagen
humanitaría. UNPHU, Santo Domin-
Su defensa dei asilo humanitario a favor de los judios perseguidos go. 1979. p. 168.

tras Ia "cortina de hierro", los húngaros desplazados por Ias huestes


Entre juiio de 1947 y dicíembre de
soviéticas y los coreanos que huían dei recién implantado gobierno 1951 llegaron 413 refugiados de las
comunista (política de asilo que se quedó como mero ofrecimiento), más diversas nacionalidades (hún-
garos, rusos, polacos, ucranianos,
le permitieron construir en torno a su persona Ia imagen de pleno
rumanos. entre otros) íbídem, p. 176,
"defensor de Ia democracia y los derechos humanos" y enarbolar
una bien orquestada estrategia publicitária que le valió no poços Periódico El Caribe, Ciudad
Trujillo, 6 de mayo de 1957,
bonos con el gobierno estadounidense.
En el imaginario dei dictador el comunismo se fue convirtiendo en el
enemigo a vencer, y se fue ganando una "bien ganada" su fama de
acérrimo enemigo dei comunismo, porque según sus propias palabras:

no tendría contemporarizaciones para aniquilar todo brote comunis-


ta interno y colaborará con toda Ia decisión y Ia eficacia de que sea
capaz para desterrarlo de nuestra América... esta no es una actitud
caprichosa ni oportunista, sino efecto de una convicción profunda
de que el comunismo entraha Ia negación de los atributos de Ia
personalidad humana, Ia destrucción de las raíces de nuestra cultu-
Herrera Báez, Porfirio. "Gênesis
ra, el mayor obstáculo para el avance de nuestra civilización y el y trayectoria de Ia política antico-

más serio peligro para el tesoro espiritual de que somos herederos munista dei Generalísimo Trujillo".
In: La Era de Trujillo. Goord,
los hombres occidentales. Por eso mi Gobierno estará al lado de los Abelardo Nanita. Cole-cción La Era
Estados Unidos y colaborará con él sin reservas para poner un de Trujillo. 25 ahos de Historia
D o m i n i c a n a . I m p r e s o r a Domi-
valladar de voluntades, de pensamientos y de energia pragmática a nicana, Ciudad Trujillo, 1955. Tomo
Ia amenaza dei comunismo"."^^ i . # 7 . p. 217.

205
torres, paola. Imaginário - usp, n° 7, pág. 195-209, 2001

Desde 1947 se prohíbe terminantemente el comunismo en Ia Repú-


blica Dominicana"^^, medida que le sirve perfectamente para eliminar
Galíndez, Jesús de. La Era de
Trujillo. Editora Cole. Santo Domin-
cualquier individuo que representara un peligro para el régimen, pues
go, 1999. p. 365. al ser tachado de "rojo" o "comunista" se convertia automáticamente
en un paria social que era sujeto al abandono de amigos y familiares
(temerosos de correr Ia misma suerte); alguien a quien nadie empleaba
y era sometido de manera constante al incesante asedio de los
miembros dei SIM (Servido de Inteligência Militar).
En su megalomania, Ia defensa de Ia moralidad y los valores cristianos
y su lucha contra el comunismo no se circunscribía a Ia Dominicana:
se e x t e n d í a n a t o d o s a q u e l l o s p a í s e s q u e t e n í a n g o b i e r n o s
perturbadores; así, en 1946 intenta derribar al presidente venezolano
Medina Angarita"^®; en 1945 inicia un ataque sistemático contra el
ibidem. p. 188.
gobierno de Grau San Martin en Cuba"^^; fustiga a todos aquellos que
ibidem. p. 194.
protegen el incesante flujo de exiliados políticos domi-nicanos: el
gobierno costarricense de Figueres; los de Arévalo y Arbenz en
Guatemala, que acogen a Ia mítica Legión dei Caribe, integrada por
los veteranos de Ia failida expedición contra Trujillo de Cayo Gonfites
(1947) y por aventureros liberales e izquierdistas que causaron una
constante preocupación al dictador. Apoya a Somoza en Costa Rica,
subvenciona a Castillo Armas para deponer a Arbenz y aunque
mantiene relaciones formales con Haiti, costea un movimiento para
eliminar a Duvalier, porque Jefe en Ia Isla nada más él.

Todas estas historias entretejidas van conformando el mito trujillista,


mito que sigue jugando un papel fundamental en Ia vida dominicana.
Giertas características de su estilo de gobernar siguen presentes
en políticos c o n t e m p o r â n e o s , c o m o en J o a q u í n Balaguer, ese
personaje desconcertante y esquivo que ha sido presidente de Ia
República Dominicana en siete ocasiones y quien, a pesar de sus
95 anos, continua rigiendo sutilmente Ia vida política dominicana.
Balaguer en su libro autobiográfico "Memórias de un Gortesano en Ia
Era de Trujillo" define un régimen que él mismo contribuyó a construir:

"Todo el sistema político trujillista gira en torno al culto a Ia


personalidad. Puede ser que ese rasgo se descubra también en
situaciones semejantes creadas en distintos países de América, pero
no con el grado que Ia divinización dei caudillo alcanzó en Ia Repú-
blica Dominicana. Trujillo no sólo sojuzgó Ia voluntad, sino el

206
torres, paola. Imaginário - usp, n° 7, pág. 195-209, 2001

pensamiento mismo de sus conciudadanos. La vida nacional, du-


rante más de 30 anos fluctúa totalmente en torno a su nombre y
obedece a Ias directrices de su carácter absorbente".'^®
Baiaguer, Joaquín. Memórias de un
corte-sano en Ia "Era de Tnjjílb". Editora

La dictadura de Trujillo sumió al país en un sopor: "Io peor de aquella Corripio, Santo Domingo, 1996. p. 65.

época consistió en Ia aceptación por todos, o por casi todos, de


aquel cataclismo social como un hecho irremediable'"^^. Poços eran
Ibidem.
los personajes que se atrevían a no rendir pleitesía al "Amo absolu-
to". Excepcional es el caso dei Dr. Darío Contreras quien, cuando
se disponía a realizar una cirugía a Trujillo tuvo que responder a Ia
consternada pregunta de un hermano dei dictador, "Doctor ^ y qué
pasa si el Jefe se muere?", Contreras se limito a contestar: "Si se
muere hiede a los cinco días".^°
Ibidem. p. 91,
La figura de Trujillo ha permanecido con tal fuerza en el imaginario
dominicano que mientras permaneció su cadáver en un cementerio
de Paris Ia procesión de los exiliados dominicanos — producto de
Ias diversas represiones políticas dei pasado sigio — en una suerte
de exorcismo coprofílico terminaban sus fiestas defecando y orinando
en Ia lápida dei "Chivo".
Sin embargo, estos rituales lejos de borrar Ia inquietante imagen
dei f a n t a s m a Io mantienen vivo en Ia memória colectiva. Trujillo
no es sólo el sanguinario dictador, el "Benefactor de Ia Patria" es
recordado por muchos c o m o el primer, y único presidente que
pagó totalmente Ia d e u d a externa dei país; sentó Ias bases de un
estado moderno, reprimiendo cualquier e n e m i g o y eliminando Ias
luchas caudillistas y algunos no dejan de experimentar un "dejo
de nostalgia" por una pasada época de "Paz, Orden y Progreso":

"Nací cuando aqui éramos todos una cosa igual. El que estúdio tenía
vergüenza o raza. El resto, éramos tó animales, burros caminando,
Trujillo hizo que progresáramos... Trujillo fue el hombre que empezó
a cobramos Ia cédula y Ia pagamos con gusto; nos puso a trabajar
diez tareas a cada hombre dominicano, para que hubiera víveres.
Usted se acostaba con dos mil pesos por ahí y nadie tenía miedo, Lora, Ana Mitila. Sepultureros dei
porque ninguno se atrevia a cucutear (revisar) los bolsillos si uno genocidio. Periódico Listín Diário,
Santo Domingo, República
estaba borracho o enfermo. Si alguien Io veia, ya estaba delatado y Dominicana. 23 de mayo de 1999.
podia perder Ia cabeza. Había respeto."^^ Págs. 14 A - 1 5 A.

207
torres, paola. Imaginário - usp, n° 7, pág. 195-209, 2001

(Testimonio de Pedro Leclerc, habitante de Dajabón, que colaboro


en el entierro de los haitianos asesinados en 1937)

^Por qué Ia actualidad dei mito de Trujillo? ^ a qué necesidades


obedece que, a pesar de los anos transcurridos, su figura mítica
siga teniendo un peso específico en Ia vida dominicana y sea un
constante elemento de referencia?
La fâscinación por este personaje sanguinario y contradictorio sigue
presente y aun es eficaz para subyugar a propios y extrafíos: Ia
figura de Trujillo genera sentimientos encontrados y ambiguos. El
poder omnímodo que ejerció el dictador es simultáneamente temido
y respetado.
Para un sector de Ia población Ia Era de Trujillo significo una época
de esplendor, el momento en que ese pequerío país cariberío se
coloca en el escenario mundial: declara Ia guerra a Ia Alemania
nazi^2 y al fascismo italiano; se enarbolaba como defensor de Ia
Hitier, ante ésta deciaración, se
ümiíó a hundir ei único barco im- democracia y protector de los perseguidos por razones políticas o
portante de !a Marina de Guerra religiosas (aunquo soamos consciontes, aríos después, que las
Domínicana,
razones de tal recepción eran muy ajenas al humanitarismo); logra
Ia independencia econômica y soluciona de manera "tajante" el pro-
blema de Ia inmigración haitiana.
Trujillo se atreve, en su muy personal estilo, a solucionar muchos
de los conflictos latentes en Ia sociedad dominicana: Ante una
"identidad difusa" refuerza toda una ideologia sobre los orígenes
gloriosos de Ia nación dominicana, mezcla de indígenas indomables
y orgullosos y de esparíoles de "buena casta" y probada condición
moral. Todos los v i d o s y peligros sólo podían atribuirse al pueblo
haitiano y toda "degeneración", racial o moral, era fruto de las con-
tinuas incursiones haitianas al lado este de Ia isla.
Al crear un enemigo común fortalece los lazos de solidaridad, logra
una cohesión ante una "alteridad" que amenaza, confiere al haitiano
e s e "peligroso otro" que está contenido en uno mismo. Con Ia
matanza de haitianos, simbólicamente se eliminaba de tajo Io "ne-
gro, salvaje, bárbaro e ignoto" que se teme descubrir en si mismo.
En el imaginario, Trujillo asume, quizás, un papel heroico, dejando
de lado las consideraciones morales sobre el papel dei héroe y con-

208
torres, paola. Imaginário - usp, n° 7, pág. 195-209, 2001

siderando Ia definición de Roger Caillois de que héroe es aquel que


encuentra una solución a los conflictos sea esta "una salida feliz o
desdichada".
Este "héroe como proyección dei propio indivíduo: como imagen ideal
de compensación que tine de grandeza su alma humiliada" ^^—,
- Caillois, Roger. El mito y el
puede llevar a Ccibo ei acto tabú y solucionar con Ia transgresión los hombre. Fondo de Cultura
conflictos que a los hombres Ias prohibiciones sociales y culturales Econômica. México, Í993. p. 27.

les fmpiden resolver^'^.


Ibfdem. pp. 28-29.
Y este héroe tiene una doble función: soluciona el conflicto y carga
con Ias culpas, "de allí su derecho superior, no tanto al crimen, como
a Ia culpabilidad, siendo Ia función de esa culpabilidad Ia de halagar
al indivíduo que Ia desea sin poderia asumir".

Resumo: El artículo traza el proceso de mitificación dei dictador


Rafael Leonidas Trujillo que domina con crueltad Ia República
Dominicana por 31 anõs. La cuación dei mito que posible porque,
citando Roger Callois, (Trujillo) "es un héroe como proyección dei
propio individuo, como imagem ideal de compensación que pinta de
grandeza su alma humiliada".

Palavras-chave: Trujillo, dictadura, mitificación, héroe, imaginario.

Abstract: This article tracks down the construction of the mythical


figure of Rafael Leonidas Trujillo, the vicious dictator of the Dominican
Republic for the last 31 years. The myth owes its development to
the fact that "[Trujillo] is a hero that functions as a projection of the
individual himself, as an ideal image of compensation that adorns
with grandeur his humiliated soul".

Key words: Trujillo, dictatorship, hero, imaginary.

209
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fiuviante, fluvial,
açula a atenção, isca-a com o risco.
João Cabral de Melo Neto
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

Itinerários creyentes dei consumo neo esoterico^


^ Una primera versión de este
artículo fue presentado en el IV
Encuentro de Investigadores
Renée de Ia Torre (Ciesas Occidente) dei Fenômeno Religioso en el
Centro Occidente de México
José Manuel Mora (ITESO/DECS-UdG) realizado en el ITESO. Guada-
lajara, Mex. 22 y 23 de marzo
dei 2001.
religiosidades transversales imaginanus ylobales
en tradiciones sincreticas
Algunos reportes de investigacion en México han registrado Ia pre-
sencia creciente de imaginarios religiosos que provienen de una
cultura globalizada (ejemplo de ello, son Ia presencia de imaginarios
creyentes vinculados con tradiciones orientales como Ia creencia
en Ia reencarnación, o propiamente New Age, como creer en Dios
bajo Ia fórmula de una energia cósmica en Ias formas en que los
2 Los datos dei Ia Encuesta In-
mexicanos, en su mayoría católicos, están renovando el sentido de ternacional de Valores muestra
sus creencias trascendentales)^ que en muchas situaciones y dado Ia incorporación de imagi-
el arraigo que el catolicismo tiene en México, se manifiestan y cobran narios no católicos entre los
mexicanos, en el alto índice de
nuevos sentidos en el seno de Ias tradiciones populares estre-
creencia en Ia Reencarnación
chamente ligadas al catolicismo popular.
(45%), siendo el más alto en-

Los nuevos eclecticismos religiosos mexicanos se manifiestan como tre los 22 países encues-tados
(Campbell y Curtis 1994). En
síntesis de una memória mitológica acumulada que se nutre de sabo-
un estúdio similar realizado en
res y rituales prehispánicos, símbolos católicos y una cultura mass- 1996 en Ia ciudad de Guadala-
mediada que pone a disposición dei consumo cultural una gama de jara, esta tendencia aparece
conocimientos de tipo mágico-esotérico y que a Ia vez los conecta con también reflejada, una tercera

una red planetaria, incluso cósmica, comúnmente denominado como parte de Ia muestra se imagina
a Dios como fuerza vital y
movimiento New Age. Es una expresión globalizada de Ia religiosidad,
energia y en esta parte se re-
pero a Ia vez andada en Ias tradiciones preexistentes, que lejos de presenta Ia vida dei más allá
diluir Ias tradiciones vinculadas a Ia magia, catolicismo popular, y de como reencarnación (véase
salud basada en los conocimientos herbolarios, Ias resacralizan. Fortuny et al 2000).

211
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

En M é x i c o , s i e n d o un p a í s c u y a p o b l a c i ó n s e m a n i f i e s t a
mayoritariamente católica (90% de Ia población mexicana se defi-
ne como católica, según los resultados dei Censo Nacional de
Población 1990), en contraste con otros países de Europa y Norte
América, donde se ha estudiado este fenômeno,^ Ia secularización
Datos de Inglaterra, Espana,
Francia, EUA.
no tuvo impacto en el abandono o disminución de Ias creencias
ligadas al cristianismo, ni en los niveles de participación ritual."^
^ Los resultados de Ia Tampoco ha afectado de manera contundente, en Ia pérdida de
investigación War/d Vaiues influencia de Ia Iglesia católica, aunque algunas áreas como Ia
Survey, aplicada entre 1981 y
moral sexual se han emancipado de los valores y dogmas propios
1983, donde se comparan 22
países dei mundo, confirman dei catolicismo, y Ias costumbres familiares se han transformado
que en México, siendo un país drásticamente. Otro dato interesante es que el crecimiento de
mayoritariamente católico, ei conversiones a iglesias no católicas (protestantes, evangélicas,
catolicismo no es meramente
pentecostales o parapro-testantes), si bien es creciente, (y en
nominal sino practicante: el ín-
dice de participación en ser- algunas regiones dei país como Ia dei sureste y Ia frontera con Es-
vidos religiosos es muy aito, tados Unidos ha tenido un incremento sorprendente), en el panora-
ocupando el segundo lugar, ma nacional siguen siendo minoritárias. Lo que sí es y ha sido un
solo después de Irlanda (54%
rasgo c a r a c t e r í s t i c o dei f e n ô m e n o religioso en M é x i c o y
asiste semanalmente a misa y
75% Io hace mensual-mente, Latinoamérica, ha sido el uso y Ia apropiación popular de Ia religión.
{Cambei! y Curtis 1994). Ello en gran parte se explica por Ia persistência y dinamismo que
históricamente ha mostrado Ia religiosidad popular en México. Como
h a c e a l g u n o s afíos los s e h a l a r o n R o s t a s y D r o o g e r s , en Ia
religiosidad popular se viven permanentemente los procesos de
redefinición y reinterpretación dei sentido práctico de Ia religión; se
negocian y confrontan constantemente Ias relaciones de poder de
dominación y resistencia, tanto entre Ia iglesia oficial y los creyentes,
como entre Ias relaciones de clase:

"Los usuários de religiones (populares) están poco preocupados por


el origen de sus creencias y prácticas y sí, en cambio, por Ia eficacia
de su versión de Ia religión. Ellos se apropian de símbolos y los
aplican o los reinterpretan en situaciones particulares con el fin de
ayudarse a sí mismo (a resolver sus dificultades financieras o curarse
de alguna enfermedad. Los usuários de Ia religión popular no tienen
escrúpulos acerca de mezclar e incorporar elementos a fin de
satisfacer sus necesidades, independientemente de que ellas sean
espirituales o materiales. (Rostas y Droogers 1995:87).

212
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

Ia nebulosa esotérica: imaginarios globales para í incretismos


populares
La nebulosa esotérica es un rasgo contemporâneo de Ia religiosidad
popular. Se configura a partir dei bricolage de elementos provenien-
tes de tradiciones y saberes heterogêneos. Son religiosidades
hechas a Ia carta que, por un lado toman prestado elementos de
religiones y culturas ancestrales (orientales, hindús, africanas,
prehispánicas y cristianas) y los c o m b i n a n con retazos de Ias
tradiciones gnósticas, como son el esoterismo, Ia magia y el espiri-
tismo; también pueden estar influenciados por movimientos de
orientación psicoterapéutica o de Potencial Humano, contacto con
extraterrestres, grupos ecologistas, indígenas y de salud alternativa
que proporcionan caminos místicos de experiencias sagradas y
trascendentes (Gutiérrez 1998: 333).

Este tipo de fenômeno se manifiesta como un rasgo de Ia religiosidad


contemporânea en los tiempos de Ia globalización y el consumo, a
Io largo y ancho dei mundo, como Ia posibilidad de un sincretismo
que vincula saberes de oriente con occidente, tendencias moder-
nas basadas en Ia ciência, Ia tecnologia y Ia cultura de masas con
conocimientos ancestrales basados en los conocimientos mágicos,
Ia medicina herbolaria, en Ias deidades prehispánicas y en los mi-
tos sobre Ia presencia de fuerzas sobrenaturales. Se le ha denomi-
nado a través de distintos conceptos de uso común como Io son
New Age (Heelas 1996, Melton 1990 y Ellwood 1992), Nuevos
Movimientos Religiosos (Barker 1992), religiosidades a Ia carta,
nueva nebulosa esotérica (Hervieu-Légery Champion 1990), religión
posmoderna (Mardones 1994). Estas formas de nombrar el fenômeno
describen, sobre todo, una lógica de funcionamiento general, que
tiene más que ver con una suerte de operaciones basadas en el
consumo individualizado de Ia religiosidad, que con contenidos y
estructuras de sentido precisas. La geografia y ubicación de estas
nuevas formas de resignificar, usar y practicar Ia religiosidad es di-
fícil de ubicar, ya que están asociadas con el consumo de mercancías
de bienes y s e r v i d o s relacionados con Ia salud. Ia música, Ia
nutrición. Ia literatura esotérica y de auto superación, los productos
ecológicos y de medicina alternativa.

213
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

Preferimos llamarles religiosidades que conforman una nebulosa


místico-esotérica (Champion 1995 y Mardones 1994), debido a su
carácter flexible y fluctuante, no institucionalizado. No se ubican en
Ias clasificaciones tradicionales de Ias religiones, como Ias iglesias
o Ias sectas, sino que operan mediante una amplia red flexible de
intercâmbios. Una red de redes: «una religiosidad abierta, que rastrea
Io sagrado y el mistério por todos los vericuetos de Ia realidad»
(Mardones 1994: 162).
La nebulosa esotérica funciona mediante un sistema de consumo
de "religiosidad a Ia carta", con Io cual se rechaza Ia regulación y
normatividad de Ias instituciones religiosas sobre Ias prácticas y Ias
creencias en beneficio dei principio de soberania individual
(Champion 1995:717). Pero, por otro lado, en el contexto latino-
americano el mantener Ia adscripción al catolicismo tiene que ver
con Ia necesidad de transmitir una referencia de identidad con el
paso de Ias generaciones: Ia pertenencia religiosa constituye un
punto de relación histórica y una herencia familiar que hay que trans-
mitir. Para Hervieu-Léger Ia referencia a Ia autoridad legitimadora
de una tradición funciona en dos planos: tanto como principio de
identificación social por incorporación a una comunidad creyente,
como de diferenciación con aquellos que no forman parte de dicho
linaje (Hervieu-Léger 1996:38-39).

problemas a debatir
Con respecto a los planteamientos teóricos antes revisados y los
estúdios particulares realizados sobre Ias transformaciones culturales
y religiosas que conlleva el fenômeno de Ia nebulosa esotérica en
contextos particulares detectamos algunos problemas conceptuales
y metodológicos sin resolver, que a continuación enumeramos:
1. Se busca comprender el fenômeno desde el contexto de Ia
producción dei discursos New Age, sus antecedentes y sus fuentes
de inspiración. Se atiende el carácter global de esta nueva
religiosidad sin profundizar en el papel que juegan Ias culturas po-
pulares y Ias aproximaciones locales al fenômeno de Ia nebulosa
neo esotérica, reterritorialización y Ia apropiación cultural y funcio-
nal dei mismo.

214
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

2. Se tiende a confundir Ia parte por el todo. Esto sucede ya que se


aplica el principio funcional holístico y holográfico propio dei
movimiento basado en que el todo es Ia unidad y Ia unidad es el
todo como modelo de análisis dei movimiento.
3. No se discuten criticamente los lugares de contacto y Ias fronteras
entre el carácter mercantil o de servidos de una oferta universalizante
(que ponen en circulación elementos de diferentes culturas y
tradiciones religiosas) y aquello que permite que sea considerado o
experimentado como una nueva religiosidad.
4. El carácter sincrético dei movimiento espiritual se analiza desde
Ia producción dei discurso New Age y no desde Ia circulación y Ia
recepción y usos que los sujetos hacen de ella. En el caso de algunos
países latinoamericanos, el eclecticismo y sincretismo era prévio al
New Age, y forma parte esencial de Ia religiosidad popular, que com-
bina elementos propios dei catolicismo con Ias culturas autóctonas
(negras o indígenas). Por ello es importante subrayar que Ia oferta
sincrética que combina saberes orientales con conocimientos
esotéricos y de superación personal, se realiza sobre un sincretismo
y a existente que redimensiona Ia nueva producción simbólica.
Siendo un fenômeno fluctuante, difuso y dinâmico, se plantea Ia
dificultad de acceder a su estúdio y comprensión. Una alternativa,
planteada por los distintos investigadores, es que Ia coherencia de
estos conglomerados de creencias sólo se puede encontrar a nivel
dei indivíduo. Este es el lugar donde Ia diversidad cultural adquiere
estatuto de unidad y coherencia funcional. Es ahí en el nivel de Ia
conciencia y Ia experiencia individual donde se teje Ia identidad de
identidades. Es atendiendo Ias situaciones particulares donde po-
demos percibir que Ias prácticas adquieren un nuevo significado
que relativiza Ias contradicciones formales.
Sin embargo, como hemos apuntado, este no es un fenômeno me-
ramente individual, sino que pasa por distintas manifestaciones: a)
Ias mediaciones de Ia mercantilización de bienes simbólicos, a tra-
vés de Ia comunicación masiva y dei consumo especializado; b) Ias
nuevas ofertas de servidos: salud y cuidado dei cuerpo, adivinación,
meditación y superación personal; c) Ia conformación de nuevas
identidades y comunidades afectivas, que se gestan ya sea como
m o v i m i e n t o s r e l i g i o s o s , o a i r e d e d o r de g u r ú s l o c a l e s e

215
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

internacionales, y que constituyen vias novedosas para experimen-


tar Ia relación con Io trascendente y Io sagrado; y d) por Ia
revitalización y revalorización de Ias tradiciones populares e indíge-
nas, de sus rituales y sus conocimientos.
En este sentido, proponemos que el estúdio de esta modalidad de
constitución de Ia religiosidad c o n t e m p l e tanto Ia estrategia
expresada en Ia oferta y Ia circulación de bienes simbólicos ligados
a Ia nebulosa esotérica — que traza recorridos finitos de consumo
—, como en Ia estrategia individual, marcada por Ias trayectorias de
consumo que ayudan al individuo a incorporar nuevos elementos
para un menú personalizado, acorde con sus intereses, necesidades
y aspiraciones particulares.
La apuesta es reconocer aquellos elementos que configuran Ia ne-
bulosa esotérica, en tanto âmbito social caracterizado por Ia
producción, Ia circulación y el consumo de bienes simbólicos que
confieren modalidades de creencias trascendentales que animan al
sincretismo entre Io global y Ias tradiciones locales. Así, Ia nebulosa
esotérica puede calificarse como un âmbito de consumo cultural en
tanto conjunto de procesos de "apropiación y usos de productos en
los que el valor simbólico prevalece sobre los valores de uso y de
cambio, o donde estos últimos se configuran subordinados a Ia
dimensión simbólica" (Garcia Canclini, 1993:34). Es por ello, que
® La investigación de campo se
en este trabajo nos centraremos en Ia producción de nuevos
basó en registros etnográficos bricolages creyentes, en Ias fases de Ia circulación (flujos de
sobre Ia oferta neo esotérica en m e r c a n c í a s y ofertas de s a b e r e s s i m b ó l i c o s ) y el c o n s u m o
Guadalajara: en entrevistas (interiorización, usos y construcción de religiosidades a Ia carta).
con propie-íarios de centros de
distribución esotérica, para- C o n s i d e r a m o s que en c a d a c o n t e x t o cultural, m e d i a n t e Ias
psicólogos, brujos y pres- operaciones semióticas de circulación y consumo, el fenômeno
tadores de servicios eso- globalizado de Ia religiosidad está atravesando y trastocando
téricos, y f i n a i m e n t e , en
tradiciones culturales. Las reflexiones y datos que presentamos se
historias de vida a indivíduos
que practican Ia modalidad de basan en un estúdio sobre Ia oferta neo esotérica en Ia ciudad de
religiosidad a Ia carta. Guadalajara, México, iniciado en 1999.^ Guadalajara es Ia segunda
ciudad nacional en población, en donde viven airededor de 4 millones
de habitantes. Está ubicada en el centro occidente de México, en
una región que culturalmente se caracteriza por una población criolia
y mestiza, en contraste con las regiones dei centro y sur dei país
que concentran Ia población indígena. En esta región el catolicismo

216
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

ha sido fermento de movilizaciones populares, como fue el caso de


los combatientes cristeros (1926-1929). Impregna actualmente Ia
cultura local, tanto en su expresión mestiza y sincrética dei catoli-
cismo popular en fusión con cosmovisiones indígenas, como en el
catolicismo más criolio de Ias élites. Por ello Ia oferta de creencias y
prácticas religiosas neo esotéricas atraviesa y se funde con Ias
prácticas religiosas ligadas con el catolicismo popular.
De aqui que Ia mejor forma de describir el fenômeno sea atendiendo
Ia transversalidad, es decir, los puntos de intersección entre Io local
y Io global, Ia tradición y Io nuevo, el consumo y apropiación de Ia
oferta neo esotérica y Ia religiosidad popular, el consumo religioso
individualizado y Ias grandes tradiciones e instituciones religiosas.
En un artículo recientemente publicado por Renée de Ia Torre sobre
el impacto de s í m b o l o s e imaginarios globales en los rituales
tradicionales afirmaba que:

Los câmbios que Ia cultura sufre por Ia globalización se encuentran


fuertemente vinculados con Ia religiosidad contemporânea. Por un
lado, Ia religiosidad tradicional se ve impactada por los câmbios en
Ia organización dei tiempo y el espacio introducidos por Ia
globalización, pero por otro lado, el dinamismo simbólico propio de
Ia religiosidad popular representa Ia alternativa para generar los sen-
tidos colectivos de arraigo y referencialidad localizada ahí donde Ias
arenas parecieran más movedizas (De Ia Torre 2001:113).

Ante este nuevo escenario de Ias creencias y prácticas religiosas,


surgen Ias siguientes preguntas que guiarán Ia reflexión: ^ C ó m o se
relocalizan los nuevos imaginarios trascendentes que provienen de
Ia globalización de Ias creencias religiosas? ^ S e están construyendo
puentes de resistencia de Ias culturas autóctonas? O c ^ s una
modalidad para revalorizar el sentido sincrético de Ia religiosidad
popular? O ^produce un desanclaje de Ias formas tradicionales de
sacralizar el mundo circundante? O ^ e s una forma incluyente de
poner en contacto realidades distantes que se cruzan en los nuevos
tiempos de Ia globalización y con los espacios locales de Ia vida
cotidiana?

217
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

Ia oferta y Ia mercantilización neo esotérica:


En los últimos diez anos han brotado un sinfín de establecimientos
que mercantilizan una diversidad de productos que son consumi-
dos y usados en el marco de experiencias místicas. Libros de ma-
gia, adivinación, saberes esotéricos, seres celestes y tradiciones
orientales han inundado los estantes de Ia librerías y autoservicio.
Asimismo, de reciente aparición, han sido Ias tiendas esotéricas o
naturistas donde se vende todo tipo de fetiches (budas, duendes,
hadas, tarots, pirâmides, cuarzos, inciensos), una amplitud de tera-
pias curativas o relajantes (aroma-terapia, músico-terapia, flores de
Bach, centros de yoga y meditación, etc.) Esos artículos y servicios
no sólo han invadido los comércios de Ias clases médias y altas de
Ias ciudades, sino que también se hacen visibles en los puestos de
yerberos de los mercados tradicionales, donde comparten espacio
con los saberes de Ia medicina y Ia magia popular.
La nebulosa esotérica es, por un lado, resultado dei flujo de
mercancías que permite el intercâmbio, no sólo monetário, sino so-
bre todo simbólico®entre culturas contrastantes y lejanas en el
^ De acuerdo con Appadurai
(1991:31) Ias mercancías no
espacio y t i e m p o c o n v e n c i o n a l , pero que a través de estos
sólo se basan en ei intercâmbio intercâmbios acorta Ias distancias culturales al poner en intersección
monetário sino el simbólico. La elementos tomados de tradiciones lejanas entre sí, para crear nuevas
circulación de mercancías síntesis religiosas, cuya máxima legitimación es Ia via emocional y
ponen en interacción "Ia
Ia experimental dei indivíduo.
variedad de arenas sociaíes",
constituyendo un vínculo entre
el ambiente social de Ia
mercancía, su estado temporal Ia meruantikacion como transformaaon de Id tradicion oral a radio
y simbólico con una variedad
fantasmas y de brujos y yerberos a perapsicologos
también amplia de acto-res
sociales y de sus contextos de Radio Fantasmas ^ue el nombre de un programa de radio comercial
consumo.
que tuvo su auge a finales de los anos 80 y mediados de los noven-
ta y que despertó el interés en Guadalajara por los temas esotéricos.
Radio Fantasmas comenzó como un programa que permitia Ia
participación activa de los radioescuchas a platicar Ias historias so-
bre "aparecidos", fantasmas, casas embrujadas, hechizos, etc.
En México Ias leyendas sobre aparecidos han sido parte fundamen-
tal de Ia cultura popular y de Ia tradición oral, que ha tenido Ia
capacidad de mantener vivos los mitos en Ia memória colectiva a Io

218
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

largo de generaciones. Anteriormente, cuando no existia Ia luz


eléctrica, eran abundantes Ias historias de espíritus que se hacían
presentes, a veces para comunicar el lugar donde quedó enterrado
un tesoro, otras veces se referían a personajes místicos como Ia
LIorona, los naguales, el charro negro o el catrín; en otras ocasio-
nes eran ánimas dei purgatorio que debían comunicarse con los
mortales para que les realizarán algo que dejaron pendiente en vida
y poder pasar a Ia vida eterna. También existen Ias leyendas sobre
casas hechizadas, cerros mágicos, veredas por donde transitan a
una hora específica los aparecidos, etc. Estas leyendas "integran
un abanico de aspectos de índole mítica, mágica, religiosa, lúdica,
folklórica que refleja tanto su diversidad temática, como su plasticidad
comunicativa" (Portales y Salles 1998: 58).

La luz eléctrica se instalo en casi todo el territorio mexicano, sin


embargo estos mitos se han conservado hasta nuestros dias a
través de Ia tradición oral. Muchas personas vaticinaban que Ia
televisión iba a enterrar estas tradiciones, pues Ia gente en lugar
de reunirse a platicar historias preferían ver p a s i v a m e n t e Ia
televisión. Sin embargo, seria Ia radio quien retomaria esta tradición
para difundiria y ampliaria. La idea dei programa fue retomada de
otro que se transmitió en los afios 40, durante un periodo de 9
aríos, por Ia XEW, llamado "El loco dei campanario". En él se
h a b l a b a de f a n t a s m a s , mitos y l e y e n d a s . C o n el a u g e de Ia
t e l e v i s i ó n . Ia r a d i o p e r d i ó i n f l u e n c i a y el p r o g r a m a d e j ó de
transmitirse . En 1990, un grupo de empresários dei médio retoman
esta idea y p r o d u c e n Radio Fantasmas, que o c u p ó el horário
nocturno de 9 a 12 de Ia noche. Tuvo un êxito impresionante, y
durante anos alcanzó los más altos niveles de raiting radiofônico
en Guadalajara. El programa hizo manifiesto que los fantasmas
seguían vivos en el imaginario de los pobladores de Ia ciudad.
Cada dia los radioescuchas se comunicaban a Ia estación para
contar sus historias. El programa no sólo transmitia Ias leyendas,
sino que citaba a los radioescuchas a asistir a Ias limpias de casas
abandonadas, y difundia en vivo Ia visita a estos lugares encanta-
dos. También se le daba seguimiento de investigación a los casos
sobrenaturales y se invitaban a personas especializadas en el tema
a dar sus opiniones.

219
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

Después de cinco anos de êxito, el programa fue ampliando sus


contenidos y se introduce el tema de Ia brujería y se invitan al progra-
ma a los brujos tradicionales que trabajaban en los mercados popula-
res, sin embargo, "por cuestiones de mercadotecnia decidimos refi-
nar los nombres, y en lugar de brujos, llamarles parapsicólogos". Se
incluyen especialistas en temas de parapsicología, cartomancia,
astrologia, ciências ocultas, adivinación, chamanismo, etc. Radio
Fantasmas no sólo fue un programa, sino que a mediados de los
anos 90 se llegó a conformar en una empresa conformada por un
g r u p o de 15 p e q u e n o s c o m e r c i a n t e s q u e o f r e c í a n d i v e r s a s
mercancías, esotéricos, naturistas, servicios y consultas

Fíjate que el programa ya no solamente vende publicidad. Vende


soluciones. Y entonces entró el servicio. Entró Ia remuneración y
empezó esa mezcla. Poco a poco se fueron areando centros espe-
cíficos para orientar a Ias personas a que creyeran en el lado de Ia
magia. Esto te habla de un perfil de tu conducta que está ahí bien
marcado. Senciliamente es un lado psicológico que Io aplicas en el
lado esotérico. Y funciono. Sigue funcionando (E:A. Júlio 5 dei 2000).

Diariamente Ia gente se comunicaba a Radio Fantasmas para bus-


car solución a sus problemas econômicos, de relaciones personales,
de salud. El programa daba atención mediante parapsicólogos, as-
trólogos y brujos, que hacían lecturas de tarot radiofônicas, consul-
tas de astrologia, cartas astrales, numerología. A los radioescuchas
se les daban recetas para resolver problemas de salación, de
e n e r g i a s n e g a t i v a s , d e m a l d e o j o q u e los p a r a s i c ó l o g o s
diagnosticaban. El negocio consistia no sólo en Ias ganancias que
dejaba el programa, sino que de ahí se recomendaba a los pacien-
tes que continuaran sus terapias asistiendo a consultorios específi-
cos, donde les cobrarían por el trabajo. Al respecto, quien fuera
administrador de Ia empresa nos platicó por qué surgió Ia idea de
poner centros esotéricos:

Eso dei esoterismo es un artículo de lujo. No es de canasta básica.


El venirte a leer Ias cartas dei tarot y pagar 150 pesos, pues no
cualquiera Io puede pagar. Radio Fantasmas y Ias consultas

220
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

esotéricas son un negocio comercial, como Io es el doctor, como Io


es Ia iglesia. La gente que nos busca ya fue con el doctor, y éste no
le dio solución. Ya fue con el psiquiatra y el psicólogo, y tampoco le
dieron solución. Ya fue con el ministro de Ia Iglesia y tampoco encontró
solución. Esa es Ia gente que Nega con nosotros. Y así Io hemos
manejado. Cada quien tiene su filosofia dentro de Io que es el
conocimiento esotérico y su relación con Io administrativo. Cada quien
se maneja mejor como quiere y como cree que es más conveniente
(entrevista con E.A., julio 5 dei 2000).

A finales de los anos 90 comienza a ver diferencias ai interior dei


grupo. Hay quienes acentúan el carácter lucrativo y mercadotécnico
dei esoterismo y hay otros que Io repudian y Io quieren ver más
como un servicio a Ia comunidad. El grupo se desmiembra, pero Ia
oferta se diversifica. Algunos continuaron con nuevos programas
de radio y televisión, con títulos como Cercano a Io desconocido,
Revelaciones, La flama dorada, Naturalista, etc. Otros deciden abrir
sus propios negocios de venta y oferta de servidos esotéricos.
Los productores dei programa habían establecido una relación de
intercâmbio con el Centro Esotérico de Kundalini. Radio Fantasmas
contrataba a sus maestros para dar consultas radiofônicas, quienes
orientaban a los radioescuchas a que asistieran a Kundalini para
pagar por los s e r v i d o s que cada uno necesitaba. Por su parte,
Kundalini preparaba al personal técnico dei programa como consul-
tores esotéricos. Este centro es una sucursal de Ia matriz Kundalini
que se encuentra en Vancouver, Canadá. Ahí se imparten todo tipo
de cursos especializados que conforman una basta oferta de Ia ne-
bulosa esotérica: astrologia, herbolaria, Yoga Kundalini, magia
blanca, cartomancia, etc.

íbamos a clase tres veces por semana. Un dia nos ensehaban tarot,
otro dia lectura de cartas y caracoles. La siguiente semana ya no
nos daban esas mismas clases, sino que nos ensehaban cómo
trabajar con velas, como purificar cuarzos, los trabajos con monos y
veladoras. Entonces aprendias un poquito de todo, pero no te metias
de lleno a Io que querias aprender. Eso Io hacias en Ia práctica, por
fuera. (Entrevista con brujo tradicional HM).

221
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

El C e n t r o E s o t é r i c o K u n d a l i n i se c o n v i r t i ó en el e s p a c i o de
especialización en todo tipo de técnicas y conocimientos esotéricos.
Ahí se forma instructores y aprendices de brujería blanca. Durante Ia
investigación etnográfica sobre los brujos tradicionales y yerberos de
Guadaiajara, Gloria Cortês descubrió que Ia mayoría de ellos, aunque
habían accedido a este oficio portradición familiar, asistían a Kundalini
para especializar sus dones y conocimientos. Kundalini también se
convirtió en el proveedor local de productos necesarios para Ias
actividades de brujería: esencias, jabones, veladoras, etc. Un dato
interesante fue que no sólo los nuevos aprendices de parapsicología
asistían ahí, sino también los brujos tradicionales y los yerberos de
los m e r c a d o s se a c e r c a n a K u n d a l i n i para e s p e c i a l i z a r s u s
conocimientos y habilidades. Siendo que esta práctica se había
mantenido por herencia y tradición; en Ia medida que van incorporan-
do nuevos elementos simbólicos de este esoterismo universal (por
ejemplo, el funcionamiento de Ias cargas kármicas, el manejo de
energias. Ia invocación de mantras orientales, el conocimiento dei
funcionamiento de los chacras, etc.) van transformando sus propias
prácticas tradicionales en nuevos sincretismos neo-esotéricos.^
• Al respecto Gloria Cortes
Paíomino realizo una
investigación sobre los brujos
y Ia oferta neo esotérica en Ia relocalización en Ia dislribucion neo esoterica
Guadaiajara. como parte de su modelos para armar
tesis de Maestria en
Antropologia en el Ciesas Los objetos y servidos que forman parte de Ia nebulosa esotenca
occidente. son diversos y pasan por distintos canales de distribución. En un
primer acercamiento sobre Ia oferta neo esotérica en Guadaiajara
distinguimos cuatro tipos de espacios:

a) Médios Masivos de Comunicación (televisión, radio y revistas


especializadas). Desde hace aproximadamente 10 anos los
contenidos que conforman Ia nueva oferta esotérica han ido ocu-
pando importantes espacios en su programación. Existen progra-
mas de televisión que se dirigen a un público indiscriminado, que
incorporan espacios de Ia consulta con especialistas en lectura de
tarot, astrologia, numerologia. Son programas producidos a escalas
transnacionales, sea desde Miami o Ia ciudad de México. Sin em-
bargo, observamos que Ia oferta neo esotérica tiene más presencia

222
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

en los programas de revista destinados a Ias amas de casa. En ellos se


incorpora el uso de técnicas de armonización de energias (Feng Shui,
uso de velas e inciensos, magia blanca y herbolaria, etc.) como consejos
prácticos para el cuidado dei hogar. En el caso de los programas
radiofônicos es donde encontramos mayor presencia y especialización
de Ia oferta neo esotérica (como pudimos atender en el caso arriba
desarrollado) y en los cuales se aprecia una mayor articulación con Ia
oferta de los centros esotéricos locales y abre sus puertas a Ia interacción
directa con Ias necesidades de los radioescuchas. En el caso de Ias
revistas, Ia oferta en Ia ciudad se concentra en algunos títulos
pertenecientes a editoriales transnacionales (Más Allá de Ia Ciência, Ano
Cero y Karma 7, de procedencia espanola), y que se especializan en
temas esotéricos y de extraterrestres. Otras revistas se dedican a Ia
difusión de temas relacionados con Ia salud corporal y emocional (Cuerpo
Mente, Uno Mismo, de procedencia sudamericana), e incluyen temas
relacionados con técnicas relajantes, naturistas e incluso psicológicas.
Aunque en este tipo de difusión masiva Ia oferta es menor en cuanto al
número de publicaciones, su importancia radica tanto en Ia especialización
dei área como en el ofrecimiento de lecturas rápidas y de fácil comprensión,
aplicables a Ia vida cotidiana de los usuários. En conjunto, Ia oferta
massmediática genera accesos a Ia nebulosa esotérica poco
especializados, destinados a Ia resolución inmediata de pequenos
conflictos cotidianos, e introduce al público masivo a consumir mercancías
con alto contenido simbólico, que sin comprometer su adscripción religi-
osa, puede suscitar intercâmbios entre tradiciones religiosas y
transformaciones en los modos de creer y practicar su religiosidad.

b) La oferta editorial. Esta se distribuye tanto en librerías esotéricas


especializadas que combinan Ia oferta con otros productos y servicios;
como en Ias librerías donde Ia oferta ocupa una sección especial; y
en los, supermercados y puestos de periódicos en los que se
distribuyen sin organización alguna. La mayoría de los libros y revis-
tas esotéricas son de difusión transnacional y masiva. Mientras que
en los centros esotéricos se incluyen editoriales caseras y libros de
especialistas con reconocimiento local. Las secciones especiales
de temas esotéricos en las librerías incorporan textos diversos que
van desde temas de superación personal, tradiciones religiosas como

223
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

ei judaísmo, el cristianismo, ei hinduismo, budismo, etc.; corrientes


de pensamiento esotérico (teosofía, chamanismo, ocultismo,
templarios) fenômenos paranormales (contactos con extraterrestres,
capacidades extra-sensoriales, contacto con ángeles, experiencias
después de Ia muerte, contacto con seres dei más allá, espiritismo,
etc.) novelas y Best sellers (donde sobresaien textos de Castaneda,
Lobsang Rampa, Anthony de Melo, Deepak Chopra, etc.) vidas de
santos y gurús, técnicas dei cuidado dei cuerpo y Ia salud (herbolaria,
naturismo, yoga, Tai Chi, meditación, aureología, reiki, acupuntura,
flores de Bach, digitopuntura, etc.). En conjunto esta oferta cataloga-
da como esotérica produce disposiciones de acceso y bricotage entre
culturas heterogêneas y distantes historicamente. Introduce un senti-
do funcional y de aplicación que genera nuevos hábitos y necesidades
que serán incorporables a Ia vida cotidiana de sus consumidores.

c) Tiendas esotéricas que ofrecen una variedad de objetos mágico-


religiosos y servidos especializados. Se encuentran en los centros
comerciales ubicados en Ias zonas residenciales de Ia ciudad, y los
productos se venden como mera mercancía. En estos lugares pudimos
apreciar una homogeneidad en los objetos ofrecidos: cuarzos,
inciensos, atrapa suenos, windchimes, amuletos, figuritas de buda,
pirâmides y aceites. Estos van dirigidos a un público general que por
Io común puede utilizar estos objetos sin adoptar una práctica mágica
religiosa particular. La interacción entre el dependiente y el compra-
dor es mercantil, y sólo ofrecen información básica sobre el objeto,
sin explicitar sus usos,"tradiciones o poderes, de suerte que pueden
incorporarse con facilidad a Ia vida cotidiana bajo una lógica estética
a Ia medida dei gusto y poder adquisitivo dei cliente.

d) Centros y tiendas esotéricas que articulan Ia venta de objetos con


servidos especializados. Existen más de 30 centros especializados
en Ia ciudad. Su oferta va dirigida a Ia clase media urbana y se
encuentra localizada en Ia zona de Chapultepec, que durante los
anos 70 fue considerada como Ia "zona rosa" de Ia ciudad (ubicada
al poniente dei primer cuadro dei centro histórico, entre Ias aveni-
das Unión y Federalismo) y que concentra Ia oferta cultural e inte-

224
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

lectual de Ia ciudad: cafés, salas de cine, restaurantes vegetaria-


nos, librerías, penas, galerias de arte, centros de estúdio y ensenanza
artística, bares, etc. Los centros esotéricos, por ejemplo Kundalini,
Aura, Nirvana, Shamara (cuyos propietarios fueron socios de Radio
Fantasmas) contemplan una triple oferta: 1) Ia venta de objetos má-
gicos, iibros esotéricos y cassettes de música relajante. Destaca en
esta opción Ia amplia gama de productos esotéricos, que se articulan
a partir de los usos. Para crecimiento personal: pirâmides, cuarzos,
aceites zodiacales. Para Ia adivinación, pêndulos, cartas espanolas
y tarots, runas y monedas chinas (I Ching). Para atraer amor, fortuna
y protección: lociones y polvos. Pentagramas y anillos atlantes para
protección. Veladoras (con imágenes y de santos y oraciones) e
inciensos para purificar ambientes y protección de energias negati-
vas. Figuras de tradiciones medievales europeas (hechas en Méxi-
co) como Trolls y Elfos. Velones de alta magia y monos de cera para
magia blanca y negra. Suplementos alimentícios naturistas. Litera-
tura esotérica variada. 2) La asesoria para el uso adecuado y
potencíalizacíón de los objetos (armonízaciones). Finalmente, 3) Ia
consulta a los oráculos (tarot, adivinación) con parapsicólogos
(propietario dei negocio) y servícios de alta magia, destinados a Ia
resolución de conflíctos "graves": problemas de ínfidelidad en el
matrimonio, dificultados econômicas, cura de enfermedades difícíles,
e incluso problemas legales, como se ha comentado en el apartado
anterior sobre Ia oferta de Radio Fantasmas. La articulación mer-
cantil entre objetos y servidos caracteriza Ia oferta de este tipo de
espacios. A diferencia de otras mercãncías, éstas tienen valor y
eficacia en Ia medida en que va acompanada de un manejo técnico
especializado (el parapsicólogo a Ia vez vendedor) y su uso efectivo
debe darse dentro de rituales específicos.

e) Mercados Tradicionales: yerberias y puestos esotéricos. En Mé-


xico los mercados tradicionales han sido un refugio donde se han
m a n t e n i d o vivas Ias t r a d i c i o n e s p o p u l a r e s b a s a d a s en los
conocimientos indígenas y campesínos de curanderos, yerberos y
brujos. En Guadalajara existen dos mercados, ubicados en Ia zona
centro de Ia ciudad, que albergan distintos puestos que ofrecen estos

225
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

servicios: el Mercado Corona y el Libertad. Estos puestos comparten


espacio con los puestos de comida casera, los puestos de frutas,
dulces típicos y Ias artesanías locales, y en anos recientes con Ias
novedades tecnológicas hechas en Taiwán. En Ias yerberías se
ofrecen gran variedad de plantas medicinales a granel, catalogadas
para su uso medicinal según padecimientos específicos: reuma,
artritis, gastritis, indigestión. En contraste con esta tradición popular,
en algunos puestos de yerberos Ias ofertas se han diversificado,
produciendo un suerte de bricolages entre distintos objetos y
prácticas. Por ejemplo, objetos mágicos con imágenes de santos
católicos (como Ias estampas, velas y jabones de San Martin
Caballero que se utilizan para que les vaya bien en los negocios);
aceites y piedras de cuarzo que deberán ser usados según los
arquétipos de cada signo zodiacal; figuras de acrílico de budas,
herraduras y pirâmides que contienen distintos amuletos de
tradiciones contrastantes: por ejemplo, en un pedazo de cartón rojo
se monta una herradura de Ia suerte, acompahada por un buda y
una estampita de Ia Virgen de Guadalupe, una cruz de Caravaca
(espahola), y en Ia parte posterior una oración a Santo Santiago.
También pueden encontrarse sprays armonizadores de aromas de
santos. Por ejemplo, para pedir un favor específico, uno puede ad-
quirir un frasco que contiene el aroma de San Ignacio de Loyola, que
incluye en Ia etiqueta el manual de uso y Ia oración que deberá
acompaharlo para hacerlo efectivo. La eficacia de Ia mercancía no
está contenida en el objeto mismo, sino que se adquiere con 1) el
trabajo de consagración, armonización o activación de poder reali-
zado por el brujo; 2) el uso adecuado, que va acompahado de rituales
que integran prácticas de elementos rituales dei catolicismo popu-
lar con rituales mágicos; y 3) Ia petición dei bien buscado. Por Io
general los propietarios son brujos reconocidos, capacitados para
realizar limpias, armonizar amuletos, y hacer trabajos de brujería y
adivinación y lectura de cartas. Algunos yerberos han incursionado
por los cursos de capacitación y especialización dei centro esotérico
Kundalini, y han incorporado nuevos conocimientos orientales y de
superación personal a sus bagaje cultural y a su oferta de servicios.
Una particularidad de este tipo de oferta, es que los puestos

226
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

esotéricos de los mercados son los principales proveedores de brujos


y curanderos en Ia ciudad, y también de aquellos que buscan iniciarse
en Ia magia blanca. En estos mercados tradicionales Ia oferta neo
esotérica se ve más ligada con Ias prácticas dei catolicismo y Ia
magia ancestral de los sectores populares de Ia ciudad.

f) Grupos, comunidades y movimientos religiosos. En Guadalajara, a


partir de los anos setenta, se gestaron más de 50 grupos y movimientos
identificados con el movimiento espiritual de Ia nueva esoteria^ veinte
® Esta información se basa en
de los cuales pertenecen a redes New Age, organizaciones o redes Ia investigación sobre los
transnacionales de origen europeo y norteamericano, como son Happy Nuevos Movimientos Religio-
Healthy and Holy Organization (3H0), Siddha Voga, Iglesia de Ia sos en Guadalajara que realizo
Cristina Gutiérrez Zúniga a
Cinesiología, ISKOM, entre muchos más. Otras comunidades tienen
mediados de los 90 (Gutiérrez
orígenes latinoamericanos como Ia Asociación Antropologia Gnóstica 1996).
y Ia Gran Fraternidad Universal, y algunos son de más reciente
fundación, identificados como los movimientos de Ia mexicanidad, por
ejemplo MAIS (Mancomunidad de Ia América Iniciática Solar), o Ia
fundación de pequenas comunidades que buscan recuperar Ias
tradiciones indígenas, como Ia comunidad Ca/pu///ex\ San Isidro
Mazatepec, y Ia comunidad formada airededor de los rituales de
temascales en Ajijic, Jaiisco. También existen pequenas comunida-
des de tipo espiritista o chaneilings (canalizadores o médiums), for-
madas airededor de Ia comunicación con ángeles y seres celestiales.
Por Io general los integrantes de estos grupos pertenecen a Ia clase
media y media alta de Ia ciudad, profesionistas, amas de casa,
estudiantes, etc. Estos grupos, en comparación con Ias iglesias de
tipo evangélico o pentecostales, no tienen una actividad de
proselitismo, además de que sus seguidores "no sueien modificar su
adscripción al catolicismo, aunque modifiquen diversas prácticas y
creencias" (Gutiérrez 1996:134). Su membresía es más bien pequena,
aunque sí realizan actividades culturales abiertas al público general,
como Io son los centros de ensenanza y superación personal; confe-
rências y seminários con maestros de prestigio internacional y nacio-
nal; talleres en técnicas de cuidado dei cuerpo y perfeccionamiento
espiritual: relajación, meditación, sanción, de contacto con guias
celestiales, etc. Estos grupos permiten al individuo una insersión a Ia

227
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

nebulosa esotérica articulando una lógica de colectividad, ya sea es-


piritual o afectivamente (Champion:1990), con Ia configuración
identitaria que los caracteriza.

En conjunto, Ia oferta neo esotérica en Ia ciudad permite una amplia


gama de posibilidades para el consumidor. La articulación entre
objetos y servidos ayuda a comprender Ia complejidad dei fenômeno.
Permite reconocer Ia articulación entre Ias estrategias mercantiles
procedentes dei mercado global, con los contextos culturales seg-
mentados y territorializados que generan los itinerários de consumo
posibles, y los usos especializados y ritualizados que le otorgan
eficacia mágica y simbólica a Ia mercancía. Si bien Ia oferta neo
e s o t é r i c a es u n a m e r c a n c í a , c o n f o r m a c r e e n c i a s y r i t u a l e s
susceptibles de ser incorporados en Ias búsquedas individuales de
superación espiritual, de relación con Io sagrado y de respuesta a
Ias preguntas que sitúan al hombre en relación con Ia trascendencia.

hagalo usted mismo Ia nueva religiosidad eclectica


Es atendiendo ias situaciones particulares en que los inaiviauos se
apropian y usan Ia nueva oferta esotérica donde podemos apreciar
que Ias prácticas de c o n s u m o adquieren un nuevo sentido de
experiencia religiosa, y que los relatos y prácticas simbólicas frag-
mentadas y descontextualizadas, adquieren nuevas coherencias
subjetivas al tiempo que permiten una recontextualización de Io glo-
bal. La diversidad y fragmentación que produce Ia retacería de
creencias religiosas y de superación espiritual, encuentra sentido
unitário en los marcos de apropiación individual que se legitima en
Ia experimentación individual de Io sagrado y Io trascendente 6Qué
tipo de nuevas formas de religiosidad produce este encuentro entre
Ia nebulosa esotérica y Ia tradición católica? ^ C ó m o el consumo de
bienes simbólicos esotéricos reviste un sentido religioso que vincu-
la al individuo con una nueva manera de entender Ia trascendencia?
A continuación, presentamos tres tipos ideales (analíticos) de esta
nueva religiosidad, que fueron reconstruídos a partir de historias de
vida a profundidad realizadas con católicos que incluían en sus es-
quemas de entender y vivir su fe religiosa, elementos tomados de

228
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

tradiciones ajenas al cristianismo. Su selección se debe a que son


cualitativamente representativas de tres modelos distintos de articu-
lar y dotar de sentido a Ias composiciones particulares de los nuevos
bricolages religiosos. A través de ellos, se verá cómo Ia manera en
que cada indivíduo organiza sus creencias religiosas es particular y
no obedece a un patrón o esquema único. Los tres modelos son: 1)
religiosidad a Ia carta; 2) el esoterismo como reencuentro con el cato-
licismo popular y 3) Ia reelaboración New Age dei catolicismo.

1) reliyiosidad d Id uaita

Por Io general, esta forma de organización de Ias creencias no


produce sincretismos ni síntesis. Sobre Ia base de una adscripción
católica, combinan una gama de consumos simbólicos que toman
prestado y en retazos diferentes tradiciones religiosas. No tienen
una participación única en una colectividad de tipo emotiva o religi-
osa, ni una adhesión exclusiva, sino que a partir de múltiples consu-
mos neo esotéricos van incorporando nuevos elementos a su propia
manera de entender y vivir Io religioso. Constituyen menús de
creencias heterodoxas, tomadas de aqui y de allá. Se van apropiando
de nuevos referentes simbólicos, provenientes de antiguas
tradiciones (orientales o indígenas) que amplían Ia base de sus
creencias. Por ejemplo, pueden incorporar nuevas respuestas a Ia
relación entre el hombre, Ia naturaleza y Io divino con Ia incorporación
de conceptos que aprenden en talleres sobre superación personal,
como pueden ser el uso de Ias chakras para liberar energia, los
mantras para relajación. Ia meditación como una forma de ejercicio
espiritual, etc. Pero sin transformar ni cuestionar Ia matriz cultural
religiosa de origen (en que se formaron, a Ia que pertenecen, y en Ia
que participan activamente). Las creencias se organizan con un
funcionamiento utilitário en donde algunos elementos tomados de
distintas tradiciones ajenas a Ia suya están presentes, pero no se
tocan. Es una lógica de ir acomodando almacenamientos de
creencias, experiencias y relatos diversos, que en el orden de su
acomodo producen Ia sensación integrativa de Ia diversidad. Ia cual
permite establecer puentes entre el pasado (tradición católica
practicada por su familia) con las experiencias religiosas presentes
y futuras. Opera como almacenamiento de relatos, no nece-

229
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

sariamente jerarquizados, que constituyen Ia memória subjetiva de


su pasado-presente, a Ia vez que como matrices motivacionales que
guían y orientan Ias nuevas experiencias y el deseo constante de Ia
perfección espiritual el presente-futuro. Son más bien formas indivi-
dualizadas de vivir y experimentar Io religioso que reconstruyen los
itinerários propuestos por Ia oferta mágico-religiosa de Ia ciudad,
para recomponer los significados de trascendencia y espiritualidad
que han heredado culturalmente.

2) el esoterismo como reencuentro con el uatolicismo popular


Lo nuevo y Io viejo se organiza desde Ia complementanedad de Ia
magia popular ligada con Ias prácticas no oficiales dei catolicismo
popular y Ias nuevas ofertas esotéricas importadas de Ias tradiciones
orientales. La incorporación de nuevos saberes esotéricos, más que
simbolizar lo nuevo, adquieren sentido y validez en Ia capacidad de
reencontrarse con Ia tradición popular, y llenan el hueco que el ca-
tolicismo contemporâneo, más racionalizado y moderno, había
despreciado al dejar de un lado el mistério que caracterizaba los
rituales dei catolicismo preconciliar. Estas prácticas combinan Ias
tradiciones anejas de los yerberos y el curanderismo tradicional, y
Ias culturas prehispánicas, con Ias nuevas ofertas esotéricas. Estas
últimas se conforman a partir de Ia incorporación heterodoxa de sím-
bolos y prácticas rituales que provienen tanto de tradiciones
orientales y como de Ia neo esoteria, por ejemplo, saberes sobre
magia blanca, conocimientos metafísicos, parapsicología y técni-
cas de meditación trascendental que amplían los saberes y prácticas
tradicionales. En estos casos no se percibe una tensión o un conflicto
entre su pertenencia y sus creencias incorporadas, sino más bien
una asimilación de nuevos significantes que renuevan y dotan de
® Toda reiigión constituye un
complejo mágico-reiigioso, el
continuidad a Ias representaciones latentes sobre Ia relación entre
polo mágico se encuentra par- magia-catolicismo popular, con profundas raíces indígenas. Los
ticularmente desarrollado y ia nuevos c o n o c i m i e n t o s y e x p e r i e n c i a s son leídos c o m o una
reii-giosidad popular concede, continuidad de Ia cultura mágico-religiosa que les fue transmitida
porejemplo, gran importancia
durante su infancia, como parte de un catolicismo popular, no ofici-
a los fetiches y a ias imágenes
sagradas (Champion 1995:
al, que hace prevalecer los saberes mágico religiosos de sus
728). antepasados rurales en indígenas.^ Un ejemplo de estas nuevas
búsquedas de religiosidad mística son los grupos mexicanistas (como

230
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

son el de Reginos y el Mancomunidad de Ia América Iniciática So-


lar: «Mais») que conjugan elementos de diferentes tradiciones reli-
giosas: básicamente constituyen un sincretismo con elementos to-
mados de Ias religiones orientales (hinduistas, budistas); de
sabidurías prehispánicas y de Ias actuales culturas indígenas mexi-
canas, y dei catolicismo popular. Estos tres componentes encuentran
fórmulas de interpretación universal en cuanto incorporan elemen-
tos básicos dei discurso New Age, éste, aunque enriquecido por Ias
culturas locales, permite redimensionar y situar dentro de un
movimiento y una tradición creyente a estos nuevos sincretismos.
Ello porque Io novedoso requiere de Ia legitimación que da Ia tradición
para perpetuar sus nuevas formas de generar identidades pues,
aunque novedosas, coinciden con Io tradicional en Ia búsqueda de
Ia «constitución imaginaria dei linaje de creyentes y su realización
social en una comunidad» (Hervieu-Léger 1996: 39).
En los casos estudiados, Ia institución se difumina en Ia producción
simbólica de una memória que dota de continuidad a Ias prácticas
mágicas y espiritistas de una aneja tradición popularizada dei cato-
licismo (no oficial) con raíces agrarias e indígenas, y una oferta
novedosa de diversas técnicas esotéricas, algunas muy antiguas,
pero que han sido refuncionalizadas por Ia cultura de masas y por Ia
nebulosa esotérica, incorporadas de manera novedosa a l a cultura
urbana contemporânea, para adecuarse a Ias nuevas necesidades
sociales. Por ejemplo, en uno de los casos estudiados, Ias "vibras"
o energias son equiparadas con los espíritus que se manifestaban
en formas dei catrín (el demonio representado bajo Ia forma dei
caballero elegante vestido de negro); el culto al Ángel de Ia guardia
con los ángeles originários de Ia tradición judeo-cristiana; el Karma
con Ia idea providencialista dei destino; el incienso y el copai con Ia
función simbólica dei agua bendita. Este ejemplo nos permite afir-
mar que Ia incorporación de estos nuevos conceptos y técnicas que
provienen de Ia nebulosa esotérica no han suplantado a aquellas
que se derivan de los conocimientos mágicos de Ia cultura de Ia
religiosidad popular, sino que se han incorporado como técnicas
complementarias que, en lugar de crear tensión o ruptura, se
refuerzan y coexisten en un nuevo texto individualizado donde no
existe Ia disonancia cognitiva ni Ias rupturas con Ia tradición creyente.

231
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

3) reelaboraclon new age dei catolicismo


Son indlviduos que forman parte activa de una comunidad emotiva
con características New Age. Este movimiento se compone de una
red flexible de movimientos espirituales que no están integrados a
un liderazgo único, pero que comparten un sentido utópico para
energias duales que afectan ei mundo lograr, que se logrará medi-
ante Ia transformación mística radical dei individuo (Melton 1990).
En una investigación sobre movimientos New Age en Guadalajara
se detectaron 37 grupos, entre los cuales más de Ia mitad eran filiales
a movimientos religiosos internacionales — en su mayoría relacio-
nados con grupos de Estados Unidos —, el resto habían sido creados
en el âmbito latinoamericano (3), otros eran comunidades de origen
nacional (2) y pequenos grupos locales. Uno de los rasgos principales
de los grupos es que mantienen relación con distintas redes a nivel
planetario. Este movimiento no promueve Ia exclusividad de marcos
creyentes, ni de afiliaciones religiosas. (Gutiérrez 1996: 21-22).
Existen distintos grados de involucramiento y compromiso con el
movimiento que va desde el consumo de ciertos productos, prácticas,
símbolos y creencias identificadas con el movimiento, hasta miembros
activos de comunidades y redes Nueva Era. La mayoría òe sus inte-
grantes y simpatizantes son profesionales, de clase media a Ia alta. En
algunos casos existe un proceso intenso de conversión religiosa explicita
al movimiento de Ia Nueva Era, aunque en Ia mayoría de los casos no
implica Ia pertenencia formal y normativa a una organización (muchos
newagers manifiestan no tener religión y otros continúan identificándose
como cristianos), sí implica Ia participación activa y comprometida en
una comunidad concreta y próxima, o en una red que conecta indivíduos
que están en Ia misma frecuencia a Io largo dei planeta.

La pertenencia comunitaria, sea con lazos cara a cara o basada en


redes emotivas, promueve marcos de referencialidad simbólica a
una comunidad imaginada universal que es Ia red de creencias,
prácticas, saberes, y transformación en los modos de vida que
conforman Ia religiosidad basada en Ia Nueva Era. Promueve un
nuevo nivel de conciencia universal, en una concepción holística,
basada en Ia energia cósmica como fuerza y noción integradora dei
universo, que fomenta Ia unidad y perfeccionamiento interior dei
individuo. Ia comunión con Ia naturaleza y con el cosmos. Desde su

232
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

participación en comunidades emotivas, y los itinerários de consu-


mos, reformulan los marcos interprotativos para explicar Ia vida diaria
y para formular el sentido último de Ias vidas en relación con una
noción dei cosmos (Gutiérrez 1998b: 335).
A Io largo de los estúdios de caso que nutren los tres modelos aqui
propuestos,^° se puede afirmar que desde el punto de vista de una
Los casos en detalle se
ortodoxia, o de Ias instituciones, los menús constituídos pueden pueden consultar en de ia Tor-
parecer incoherentes; pero desde el punto de vista de los usuários, rei998.
son siempre producciones con coherencia, aunque sea situacional,
utilitaria o provisional. En Ia composición de menús religiosos indi-
vidualizados opera una doble lógica: Ia pragmática y Ia lógica de
experiencia afectiva, siendo el objetivo final siempre el bienestar, el
desarrollo personal. Ia felicidad en Ia tierra.
Sin embargo, pese a Ias diferencias en Ias formas de organizar Ias
c r e e n c i a s a n t e s s e h a l a d a s , q u e nos llevan a c o n s t a t a r Ia
heterogeneidad de Ia nebulosa esotérica, también encontramos ca-
racterísticas generales en los tres tipos ideales:
Primero. La validez de Ia creencia está legitimada por Io experimen-
tal, es decir, por Ia forma en que cada uno experimenta su relación
con Io sagrado.
Segundo. Un rechazo dei control institucional de Ias creencias, de
Ia ortodoxia, de toda verdad única.
Tercero. El objetivo de los adeptos es Ia transformación de uno mismo
gracias a técnicas psico-corporales o psico-esotéricas, existe una
centralidad en el desarrollo espiritual individual. En contraste con otro
tipo de movimientos religiosos católicos o pentecostales donde se vive
Ias transformaciones de manera profunda en Io ético, en estos casos Ia
conversión apunta más bien a una salvación mística que ética.
Cuarto. La salvación buscada se relaciona con Ia vida de aqui abajo
y no con ofertas que van orientadas al más allá. Existe una
transformación en el tipo de concepciones dei mundo. Si bien el
catolicismo ha desarrollada una concepción dualista dei mundo
basada en Ia distinción y separación de Io sagrado y Io profano, de
Io natural y Io sobre natural, dei cuerpo y el alma, de Io humano y Io
divino, de Ia magia y Ia ciência, de Ia religión y Ia magia, en estos
casos se percibe una concepción monista dei mundo.

233
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

a manera de conclusiones
La nueva nebulosa esotérica abre Ias posibilidades al juego infinito
de armar nuevas formas de aproximación a Ia experiencia religiosa.
Realizar un inventario sobre los símbolos, tradiciones, prácticas y dis-
cursos presentes en Ia nebulosa esotérica es una misión imposible^\
^ ^ Un intento de inventario so-
pues es un fenômeno que se renueva dia a dia, sujeto a sujeto. Lo
bre los contenidos, tradiciones,
movimientos religiosos dei New que sí podemos definir es que el eclecticismo es su rasgo principal.
Age, se puede encontrar en
En el caso mexicano, como en el resto de Latinoamérica, una ca-
Bosca1996.
racterística de Ia riqueza cultural y de permanencia de Ia religiosidad
ha sido su carácter sincrético entre culturas autóctonas y Ias
europeas. Por ello, esta oferta neo esotérica se da sobre condiciones
culturales de sincretismo profundo. El catolicismo oficial intento des-
virtuar Ias prácticas religiosas de Ias sociedades indígenas, deno-
m i n a d o los a n t i g u o s cultos c o m o idolatria, r e d u c i e n d o sus
c o n o c i m i e n t o s a s u p e r s t i c i o n e s y p r á c t i c a s de h e c h i c e r í a
(Parker1993). A pesar de ello. Ia creatividad de los pueblos en Ia
recreación y apropiación popular dei catolicismo permitió una
resistencia histórica a los embates colonialistas. En el contexto
actual. Ia revalorización de los conocimientos esotéricos antiguos y
su vinculación con el mercado revalorizan estas prácticas y tienden
a rescatar tradiciones que parecían olvidadas o relegadas a âmbitos
marginales de Ia vida social para proyectarlas como parte de una
sabiduría cósmica y vanguardista.
Las religiosidades latinoamericanas han gozado de hegemonia cul-
tural dado el uso popular de Ia religión, no sólo dei catolicismo; in-
cluso recientemente se han apropiado dei protestantismo, generando
nuevas versiones autóctonas de pentecostalismo. Portanto, en estos
contextos culturales, en contraste con lo que sucede en algunos
países europeos donde se ha estudiado el impacto de Ia religiosidad
neo esotérica, ésta, lejos de estar fuera de las grandes instituciones
de Ia religión, se sitúa en los interstícios entre el dogma y Ia
continuidad histórica, pero renovada, de exploración de nuevas vias
de experimentación de lo sagrado. Aunque las prácticas de consu-
mo y experimentación de lo sagrado por médio de las ofertas neo
esotéricas se dan en una posición de exterioridad a Ia comunidad
católica, Ia atraviesa. Ia renueva y Ia transforma. De igual manera
que lo ha hecho el sincretismo, pues quienes las integran son cató-

234
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

licos que aunque no comparten Ias orientaciones de Ia Iglesia, «ni


se separan ni se dejan expulsar de ella» (Aranguren 1994: 32). Sin
embargo, al construir nuevos sentidos de pertenencia ponen en tela
de juicio Ia relevancia de Ias distinciones entre o r t o d o x i a y
heterodoxia, entre católico y no católico, entre institución y herejía.
A Io largo dei proceso comunicativo de construcción simbólica
(producción, circulación y consumo), que ejemplificamos con el caso
de Guadalajara, podemos ver cómo se desdoblan Ias posibilidades
de intercâmbio y confluência entre elementos diversos. C a d a
incorporación constituye un nuevo relato sincrético en contraste con
Ia transmisión o fiel reproducción, una modalidad ecléctica y
sincrética de experimentar Ia religiosidad que genera nuevos rela-
tos, experiencias y simbolizaciones diferentes al discurso y Ia fuente
de tradición y experiencia de procedencia.
En Ia producción de discursos podemos detectar los orígenes de dis-
tintas tradiciones, pero también obras literarias y movimientos religio-
sos reconocidos como parte fundante dei discurso New Age que
aportan guias prácticas, estilos de vida, ensenanzas, gramáticas de
conjugación y, sobre todo, un sentido utópico englobante, holístico,
integrador y universal para realizar mixturas con sentido cósmico.
Desde Ia circulación se desdibujan Ias fronteras especializadas en-
tre actividad mercantil y religiosidad popular; magia popular y
esoteria; tradiciones indígenas con nuevos elementos de Ia llamada
New Age. Cada expendio, tienda de servicio o programa de difusión
en Guadalajara se convierten en actos de enunciación, ya que
comportan decisiones específicas por parte de los responsables,
contienen una clasificación de Ias mercancías y sus usos a partir de
los cuales se organizan espacialmente los objetos ofertados, y
contienen una imagen específica dei destinatário (Verón 1998: 46)
según el tipo de objeto o servicio a su disposición. Hemos encontra-
do que los centros de distribución generan nuevas fórmulas de
intercâmbio y síntesis cultural entre Ias culturas populares locales
(Ias tradiciones orales, tradiciones indígenas, los conocimientos
herbolarios, el sincretismo mágico religioso y el catolicismo popu-
lar) y los fragmentos desterritorializados de Ias grandes tradiciones
dei mundo que circulan mediante flujos de globalización mercantil y
cultural. Pero a su vez. Ia distribución produce distintas ofertas para
públicos diferenciados por clases sociales, que se objetivan en Ia

235
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

territorialización de Ia oferta neo esotérica: Ia ubicación espacial de los


centros de distribución (tiendas esotéricas, mercados, centros de
ensenanza) proponen itinerários susceptibles de ser recorridos adlibitum,
pero tahnbién conforme Ia búsqueda de soluciones concretas. Cada
expendio o centro de servidos ofrece además de una amalgama de
productos, conocimientos y servidos heterogêneos, que están integra-
dos por Ias trayectorias e itinerários místicos incorporados a Ia experiencia
cultural acumulada de cada ofertador, quien conjuga esta experiencia
con el ejercicio mercantil, evidenciando Ia infinidad de recursos con que
cuenta Ia oferta esotérica para responder a Ias dificultades que Ias
instituciones tradicionales, aparentemente, han dejado de atender.
En Ia fase dei consumo se privilegia el nivel subjetivo y participativo
de Ia recepción. El indivíduo no sólo se apropia de Ia oferta, sino
que genera nuevos bricolages creyentes mediante itinerários de
consumo. Los indivíduos van generando nuevas rutas de consumo
místico esotérico para satisfacer determinadas necesidades físicas,
psicológicas, emocionales y espirituales. A través de sus itinerários
de consumo toma, recorta, incorpora, amalgama y conforma nuevos
menús de creencia místico esotérica, cuyo sentido particular es re-
sultado de su experiencia dentro de un contexto socio cultural y a Ia
luz de su historia personal. Los menús individualizados de consumo
religioso son el lugar de encuentro e identificación con los nuevos
marcos de creencias ofertados en servidos y mercancías simbóli-
cas, que ponen a disposición elementos de Ia cultura globalizada
con Ias ofertas neo esotéricas y con Ias propias formas de creer y
practicar Io religioso en los contextos culturales particulares. Los
itinerários de c o n s u m o p e r m i t i e r o n o b s e r v a r Ias o p e r a c i o n e s
discursivas, de generación de sistemas de significación, en los
procesos de resemantización y uso de los discursos ofertados.
Buscar apreciar Ia nebulosa esotérica desde Ia perspectiva única de
Ia producción y Ia circulación nos pone de manifiesto su carácter
mercantil y globalizante. Si se busca comprender el fenômeno desde
Ia perspectiva individual dei consumo a Ia carta, se puede constatar
su carácter religioso y local. Para tener una visión completa de Io que
es y genera. Ia nebulosa esotérica, es necesario atenderia dentro de
un p r o c e s o c o m u n i c a t i v o de flujos e i n t e r c â m b i o s culturales,
novedosos sincretismos culturales y contínuos modos de reapropiación
en los marcos de Ias formas de creer y experimentar Io sagrado.

236
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

Resumen: Distintos reportes de investigación en distintos países dei


mundo han registrado Ia presencia de imaginarios religiosos globales
que manifiestan y cobran nuevos sentidos en el seno de Ias tradiciones
populares de cada contexto cultural. Estos nuevos sincretismos se
conocen mediante una suerte de conceptos que describen una lógica
de funcionamiento general, como son: New Age nuevos movimientos
religiosos, religiosidades a Ia carta, nueva nebulosa esotérica, religión
posmoderna, religiosidades paralelas, etc. El presente artículo se basa
en los resultados de investigación sobre los procesos y contextos de
circulación y consumo de productos y servidos neo esotéricos en Ia
ciudad de Guadalajara, México. Muestra Ia manera en que el fenômeno
globalizado de Ia mercantilización neo esotérica está atravesando y
trastocando Ias prácticas religiosas ligadas con el catolicismo popu-
lar. De aqui que Ia mejor forma de describir el fenômeno sea atendiendo
Ia transversalidad, es decir los puntos de intersección entre Io local y
Io global. Ia tradición y Io nuevo.

Palabras-clave: México, new-age, religiosidades, posmodernidad,


esoterismo

Abstract: Several different investigative reports in different countries


of the world have detected the presence of global religious imaginaries
acted out in the core of popular traditions of specific cultural contexts
which, at the same time, demand new meanings from them. These
new syncretic manifestations can be identified by means of a series of
concepts which describe a general operating rationale, such as: New
Age new religious movements, à-la-carte spiritualities, new esoteric
nebula, post-modern religión, parallel spiritualities, etc. This article is
based on investigative resuits on the processes and contexts of
circulation and consumption of neo-esoteric products and services in
the City of Guadalajara, México. It shows how the globalized
phenomenon of neo-esoteric commercialism is affecting and changing
religious practices related to popular Catholicism. Therefore, the best
way to describe this phenomenon consists in tending to its cross-

237
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

references, that is, those intersection points between the local and the
global, the traditional and the new phenomena.

K e y w o r d s : México, new age, spirituaiities, post-modernism,


esoterism.

bibliografia
APPADURAI, Arjun. "Introducción: Ias Mercancías y Ia Política dei Valor". In
APPADURAI, A. (ed.). La Vida Social de Ias Cosas. Perspectiva Cultural
de ias Mercancias. Colección Los Noventa. México: CONACULTA/
Grijaibo, p. 17-87, 1991.
ARANGUREN, José Luis. "La Religión Hoy". In Díaz Salazar, Ginery Velasco
(eds.). Formasl\/lodernas de Religión. Madrid: Alianza Universidad, 1994.
BARKER, Eileen. New Reiigious Movements: A Practicai introduction.
London: Her Majesty Stationary Office, 1992.
BOSCA, Roberto. New Age. La Utopia Religiosa de Fin de Sigio. Buenos
Aires/México: Atiántida/Océano, 1994.
CAMPBELL, Robert y CURTIS, James. "Reiigious Involvement Across
Societie: Analyses for Alternativo Measures in National Surveys". In
Journai for the Scientific Study of Religión, vol. 3, n° 33, p. 215-229,
1994.
CANCLINi, Néstor Garcia. El Consumo Cultural en México. México:
CONACULTA, 1993.
CAROZZI, Maria Julia. "La Autonomia como Religión: Ia New Age". In
Aiteridades. Antropologia de ios l\/lovimientos Religiosos, ano 9, n° 18
Julio-diciembre, México: UNAM Iztapalapa, p. 19-38, 1999.
CHAMPION, Françoise & HERVIEU-LÉGER, Daniéle. De Uémotion en
Reiigion. Renoveaux et Traditions. Paris: Centurion, 1990.
CHAMPION, Françoise. "Persona Religiosa Fluctuante, Eclecticismo y
S i n c r e t i s m o s " . In D E L U M E A U , Jean (dir). Ei Hecho Religioso.
Enciclopédia de ias Grandes Reiigiones. Madrid: Alianza Editorial, p.
705-737, 1995.
ELLWOOD, Robert. "How New is the New Age". In LEWIS, James R. y
MELTON, J. Gordon (eds.). Perspectives on the New Age. N. Y: State
University of New York Press, 1992.
FORTUNY, Patricia et ai. Creyentes y Creencias en Guadalajara. México:
CIESAS/Conaculta/INAH, 2000.

238
torre, renée de Ia e mora, josé manuel. Imaginário - usp, n° 7, pág. 211-239, 2001

HEELAS, Paul. The New Age Movement. London: Blackwell Publishers,


1996.
HERVIEU-LÉGER, Daniéie. La Religionpour Mémoire, Paris: Les Éditions
du Cerf, 1993.
"Por una Sociologia de Ias Nuevas Formas de
Religiosidad: Algunas Cuestiones Teóricas Previas". In GIMÉNEZ, Gil-
berto (connp.). Identidades Religiosas y Sociaies en i\/léxico. México:
IFAL/UNAM, 1996.
MARDONES, José Maria. Para Comprenderias Nuevas Formas. Santander:
Sal Terrae, 1994.
. ^Adónde va ia Reiigión?. Cristianismo y
Reiigiosidad de Nuestro Tiempo. Santander: Sal Terrae, 1996.
MELTON, Gordon J. et ai. New Age Encyciopedia. Detroit: Gale Research,
1990.
PARKER, Cristian. Otra Lógica en América Latina. Reiigión Popuiar y
l\/iodernización Capitalista. México: Pondo de Cultura Econômica, 1939.
PORTALES, Mariana y SALLES, Vania. "La Tradición Oral y Ia Construcción
de una Figura Moderna dei Mundo en TIalpan y Xochimilco". In
Aiteridades. Formas Piuraies de Habitar y Construir ia Ciudad, México:
UAM Iztapalapa, ano 8, n° 15, p. 57-65, 1998.
ROSTAS, Susana y DROOGERS, Adré. "El Uso Popular de Ia Reiigión en
América Latina: una Introducción". In Aiteridades. Cosmovisión, Siste-
ma de Cargosy Práctica Reiigiosa. México: UAM Iztapalapa, ano 5, n° 9,
p. 81-91, 1995.
TORRE, Renée de Ia. La Eciessia Nostra. La Arquidiocesis de Guadaiajara
desde ia Perspectiva de ios Laicos. Tesis de doctorado en Ciências
Sociaies, CIESAS/ Universidad de Guadaiajara. Guadaiajara, Jaiisco,
agosto, 1998
• . "Religiosidad Popular. Anclajes Locales de Ios
Imaginarios Globales". In i\/letapoiitica. SiGLO XXi, Continuidades y
Rupturas. México: vol. 5, enero/marzo, p. 98-117, 2001.
VERÓN, Eliseo. Esto no es un iibro. Barcelona: Gedisa, 1998.
ZÚNIGA, Cristina Gutiérrez. Nuevos ií^ovimientos Religiosos. Guadaiajara:
El Colégio de Jaiisco, 1996.
. "Más allá de Ia Pertenencia Religiosa: Católi-
cos en Ia Era de Acuario". In KAN, Elio Masferrer (comp.). Sectas o
igiesias. Viejos o Nuevos Movimientos Religiosos. México: ALER y Plaza
y Vaidés editores, 1998.

239
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

Ia construccíon simbólica de 'as ciudades y los sexos,


hombres y mujeres en Ia genesis de avila y evora.

Maria Cátedra^ ' Catedrática de Antropologia Só-


cia! de ia Facultad de Ciências Po-
líticas y Sociologia de ia
introducción^ U n i v e r s i d a d C o m p l u - t e n s e de
Madrid. Doc-tora en Antropologia
Todas Ias sociedades distinguem entre hombre y mujer pero, sin A m e r i c a n a por ia U n i v e r s i d a d
Complutense (1972) y Ph.D. en
embargo, hay una considerable variación cultural sobre los signifi- An-tropología en Ia Universidad de
cados asignados a Io masculino y femenino.^Los conceptos de Pennsylvania (1984).

gênero son recetas de Ia cultura y Ia historia, conforman una


estructura de prestigio, un sistema de clasificación que estructura a ^ Para ia redacxión de este ensayo he
contado con una subvención de ia
los indivíduos; en definitiva, son un sistema simbólico. No siempre Consejeria de Educación y Cultura de
el gênero es tan importante como se ha pensado y hay ejemplos ia Junta de Castilia y León 1999 den-

etnográficos que muestran Ia importancia de otros factores (Ia edad, tro dei proyecto titulado; "Antropologia
urbana en Áviía y Évora. La
el parentesco. Ia generación o el estatus marital) en Ia construcción construcción sodaiy simòóiica de dos
dei rango. Además hombre y mujer no forman categorias fijas y eter- ciudadeá'. Una primara versión fue
preparada para participar en el curso
nas sino que cambian a Io largo de Ias vidas de Ia gente. Por ello,
de verano de Ei Esconal Nuevos obje-
hay que hacer una distinción entre Ia representación simbólica de Io tivos de iguaidad en ei sigio XXi: ias

femenino y Io masculino y Ia conducta concreta y real de hombres y relaciones entre hombres y mujeres
dirigido por M^ Angeles Durán. Sobre
mujeres individuales, algo que han sefialado vários autores (Ortner y Ia mitologia de Ávila véase M. Cátedra
Whitehead eds. 1981). La concepción dei gênero como un sistema (1995.1997a y 1997b) y M. Cátedra y
S. de Ta pia. 1997. Una primera
simbólico proporciona metáforas para Ia clasificación de Ias personas
aproximación a ia mitologia sobre
entre sí y en el sistema social. Es este un sistema de diferenciación, Évora se ha publicado redentemente:
pero hay que enfrentar este sistema a Ia práctica social. ^ Ei ongen de Ias ciudades; ia invendón
de Ia tradícíón en Ávila y en Évora",
El genero debería ser considerado como algo mucho más complejo Actas dei Vlil Congreso de Antropo-
logia de Santiago de Compostela 1999,
de Io que hemos supuesto. La creencia en Ia sociedad patriarcal o A. Medeirosed.). Otra se publicará pro-
matriarcal (-nótese su estatus de creencia-) asume un modelo de ximamente ("Évora:fosmitos de origen

sociedad donde se dan jerarquías rígidas, donde no hay ambigüedad de una ciudad").

241
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

3 Las dicotomías clásicas asociadas y donde hay critérios concretos para asignar su rango a todo
a Ia diferencia sexual para explicar ia
desiguaidad (público/doméstico, cul-
individuo. No hay escalas simples y nitidas para clasificar a hombres
tura/natura, producción/reproducción) y mujeres. Si definimos las diferencias a base de valores o control o
son parte dei discurso filosófico de
fortaleza tendremos que aceptar que el fuerte no siempre Io es y el
Occidente. Se ha demostrado (Jorda-
nova 1980. Bloch &Bloch 1980) que subordinado Io es en ciertas areas y otras no, y que los valores
Ia dicotomía cultura/naturaleza no es positivos y negativos no conocen fronteras sexuales y se encarnan
una dicotomía universal sino que
proviene dei discurso filosófico
en everybody literalmente, cada cuerpo.
europeo dentro de un contexto cultu-
ral e histórico concreto (Rousseau y
En las lineas que siguen, pretendo ilustrar Ia ambigüedad de nuestras
ia ilustración). Ambos artículos clasificaciones de gênero a través de los mitos de las ciudades.
provienen dei libro Nature, Culture
Ambos sexos aparecen reflejados en los textos de fundación de las
and Gender (MacCormack &
Strathem eds., 1980) que marca un ciudades, a u n q u e luego ellas vayan sistemáticamente desa-
hito en el estúdio de gênero en parecendo. Y especialmente se aprecia Ia participación femenina,
antropologia. Strathem plantea en
este texto que el gênero es un siste-
quizá porque el nacimiento de una ciudad es de hecho un nacimiento,
ma simbólico. Otra aportación im- algo que se asocia fundamentalmente a las mujeres. La mitologia
portante es Ia de Ortner &
de las ciudades que se forja entre los siglos XVI-XVIII, es posterior-
Whitehead (eds.) 1981, Véase F.
Pine (1996) para una más amplia mente despreciada y abandonada por los historiadores dei XIX, tras
discusión sobre ei tema. Ia revisión y crítica racionalista a que se Ia somete, pero éstos ofrecen
poco a cambio. En este ensayo voy a tratar de analizar los mitos de
La f u n d a c i ó n de Ia ciudad
dos ciudades, Ávila en Castilia y Évora en el Alentejo português.
constituye una referencia cronológi-
ca, es Ia clave de Ia historia de Ia
Estas dos ciudades muestran interesantes coincidências. Tras un
ciudad, el punto de partida
mitolóiogico. Pero no hay una sola pasado romano, más evidente en Évora que en Ávila, fueron recon-
fundación sino varias; esas historias quistadas más o menos en Ia misma época a los moros. El fuero de
se crean continuamente y en dife-
Ávila es conocido por el de Évora que fue una copia dei primero. Hoy
rentes épocas; ei mito, por
definición, es a-temporal. Por ello ambas ciudades tienen una población cercana a los 50.000 habitan-
también aparecerán aqui y allá tes, conservan sus murallas, y en los dos casos son Patrimonio de Ia
algunas referencias y continuidades
dei presente. El material de Ávila
Humanidad. A Ávila se Ia conoce hoy como La Ciudad de los Santos
proviene de varias fuentes, historias y a Évora se Ia llama La Ciudad de las Iglesias. Sus respectivos
de Ia ciudad que aparecen entre
p a t r o n o s , San S e g u n d o y S a n Maneio, p r i m e r o s o b i s p o s
mediados dei sigio Xllly comienzos
dei XVil. Sin embargo hay dos do- contemporâneos de Cristo, fueron inventados en el sigIo XVI. Otros
cumentos esen-ciales: La Crônica tres santos, Vicente, Sabina y Cristeta, nacidos en Évora, sufrieron
de Ia Población de Ávila (Gomez
Moreno 1943) y el libro de Luys Ariz,
martirio en Ávila y allí tienen un magnífico templo a ellos dedicado.
Historia de las Grandezas de Ia
He escogido vários escenarios míticos que corresponden a otros
Ciudad de Auila. El primero es Ia
historia más antigua de Ávila, una tantos problemas básicos en torno al tema de los sexos: Ia fundación
breve obra escrita hacia 1256 de mítica de las c i u d a d e s — en el c o m i e n z o dei m u n d o —, Ia
autor anônimo. El segundo es el
extenso texto de un monja bene-
participación femenina en época bélica — las mujeres guerreras —
dictino, gran fabulador, quien en y el role de Ia mujer ambigua expresada por Ia figura de santa
1607 recrea y resume Ia historia
Barbada -las santas varoniles —

241
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

escena I. en el comienzo dei mundo mítica de ia ciudad. Ambos textos


muestran Ia evoiución producida en
una sociedad que ha dejado de ser
Alcidéo, hijo de Hércules Gerión y de Ávila, y nieto dei mismísimo Júpiter
frontera, ei desarrollo y desenlace
es el heroe que lleva a cabo Ia originaria población y pristina fundación dei confticto étnico, ei cambio de va-

de Ávila^. La ciudad lleva el nombre de su madre, Ávila, una noble lores de una sociedad que se dirige
a Ia modernidad. Los textos sobre
mujer, senora de Gibraltar, que conoció a Hercules en el norte de África. Évora provienen dei sigIo XVI y XVIiL
Ambos se enamoraron y Ávila le invitó a su palacio. Ambos se hacen Personaje ciave fue André de
Resende quíen publico en 1553 y
regalos; Hércules repartió entre los escuderos y familias de Ávila, ar- 1576 Ia primera historia de Ia ciudad.
cos de acero, dardos de Creta y armaduras. Ávila le correspondió con Sin embargo son ios escritores dei

treinta ciervos, treinta puercos, cincuenta vacas, pan en abundancia, XViii Manuel Fialho (Franco 1945)
o Amador Patrício (1739) los que
dos grandes canes y seis caballos para Júpiter y sus cinco caudillos. más contribuyen a ia construcción
Hércules permaneció en el palacio durante cincuenta dias y después de Ia mitologia de Évora,

se marcho. De estos amores Ávila dió a luz a un hijo, Alcidéo, y su


" Esta fundación está recogida en
padre le envio, entre otros dones, una espada para cuando fuese mayor. LuysAriz, (1607, Parte i, p,14-17v.)-
Con el tiempo, al fallecer su madre, Alcidéo heredó todas Ias
pertenencias de ésta. El hermano de Ávila, Magonio, descontento de
esta decisión, se alió con los habitantes de Zeuta y luchó con su sobrino
por arrebatarle sus posesiones. Tras vários avatares y una cruenta
guerra, Alcidéo huye y se aleja de África, internándose en Ia península
a través de Cádiz. En el alto donde se fundará Ia ciudad de Ávila "otearon
una gran junta de Paloma^'. Tras este buen agüero decidieron quedarse
a poblar en este collado; Alcidéo besó Ia tierra en sehal de posesión y
"figo sacrifícios al Sol, matándole un Toro e una Baca blancá\ La
población hispana sin embargo se rebelará contra los africanos y, tras
una guerra, comenzará Ia paz y el mestizaje ("E gastados siete anos de
esta arribada, los Africanos maridados con los Hispanos fue en
mayoríá'). Alcidéo pone a Ia ciudad el nombre de su madre y decide
"cercar de muros fuerte^' Ia población.
Esta historia fue contada por el obispo de Oviedo Don Pelayo^a
" Según indica Ariz. Fero no hay
finales dei sigio XI, tras Ia reconquista de Ia ciudad a los moros. evidencia histórica de que este
Este mítico personaje bendijo el contorno de Ias actuales murallas, obispo existiera.

antes de edificarlas, en presencia dei Conde Raimundo de Borgofía


y su mujer, Ia Infanta Urraca. El obispo llevó a cabo esta ceremonia
solemnemente que se realizó así: "elsenor Obispo atendió a bendezir
el termino e cercas de Ia Ciudad. E adornado con vestiduras
Obispales, viajando en procesión muchos Prestes: e el senor Con-
de con los nobles, acercándose al sitio, onde Ias puertas de Ia Ciudad
auian de fíncar, fazian ende más detenencia, e bendicían e orauan

241
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

más que en los otros lugares, diziendo exorcismos, contra los


enemigos dei linaje humanai, a tal que en nlngún tiempo ouisse
poderio sobre Ia Ciudad... E esse dia jantó con el senor Conde, e
Infanta e otros nobles
Como en Ávila, Évora también cuenta con sus propias (y sucesivas)
fundaciones. La más antigua sucede en el ano 2164 a. C., en que
Tubal, nieto de Noé, y Elisa, su sobrino, toman tierra en Portugal y
fundan Setúbal, Elisa o Eisea (más tarde Lisboa) y después Évora^;
' Sigo a Fialho y Amador Patricio
{1739: 3). ésta es pues Ia tercera ciudad portuguesa. El escudo de Évora
muestra un rostro de un hombre y otro de una mujer, Évora y
Evorinho. He aqui su historia. El primer rey de Ia ciudad, descendiente
de Tubal, tuvo una hija hemafrodita que se llamó ÉIbora. Al morir su
padre y llamándose Elbur, usando su parte masculina, se casó con
una mujer y tuvo una hija que llamó Évora. Al morir su mujer en el
parto, se volvió a casar, esta vez con un hombre y usando su sexo
femenino y llamándose ÉIbora, parió un hijo que llamó Evorinho.
De esta ÉIbora o Évora Ia ciudad tomó su nombre. Por eso se dice
que Évora fue fundada por un monstruo.
Évora mandó hacer su mansión en una alta torre «junto a Praça do
Peixe» y murió poco después. Los hijos de ÉIbora, a Ia edad de 30
anos, se disputaron el senorío de Ia ciudad por Io que ésta quedó
dividida en dos partes; Évora, Ia mayor, se quedó con Ia torre que
su madre construyera. Aparentemente los dos hermanos parecieron
haber dirimido sus diferencias. Un dia sin embargo, Evorinho visita
a su hermana y tras un gran convite y una gran fiesta, los dos
hermanos suben a Ia torre; en un momento de descuido Evorinho
se abraza a Évora para arrojaria desde Io alto, pero ella se agarra
con tal fuerza a su hermano que caen los dos y mueren. Entierran
los cuerpos en ese mismo lugar y el rostro de ambos hermanos
quedará fijado en el escudo de armas de Ia ciudad.
Existe otra versión que explica el origen de los rostros de hombre y
mujer en este escudo. En este caso, se trata de una época distinta
® Alfonso Enriquez, nieto de Alfonso
en Ia historia de Ia ciudad, pero también, en cierto modo, otra
Vi. en 1139 se proclama rey de Por- fundación: Ia reconquista de Ia ciudad a los moros. Évora fue recon-
tugal con ei nombre de Aifonso i. La quistada en 1166, en tiempos de Alfonso Henriquez, futuro rey de
historia ia cuentan Resende y Fialho.
La descripción que sigue es una
Portugal por "Giraldo sem pauor & per hos ladrões seus compa-
mezcla de ambos. nheiros". Giraldo era un noble "desmandado" quien, por algún deli-

241
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

to, se coloco fuera de Ia ley abandonando Ias tierras de cristianos. En


el Alentejo pactó una paz y trégua con un rey moro, quien le permitió
construir un castillo en Évora, que todavia lleva su nombre, donde
acogía a todo tipo de dudosos caballeros, ''ladrõe^' foragidos y salte-
adores. Giraldo se convirtió en su capitán asaltando a nnoros y "para
dissimulaf'' también a cristianos. Guando apareció el rey en el Alentejo,
Giraldo se propuso hacerle un servicio y decidió tomar Ia ciudad a los
moros. Se informo sobre Ias entradas y salidas de Ia ciudad y sus
defensas. A Ia vuelta a su castillo reunió a sus principales y les ordeno
prepararse con sus armas y caballos y esperarle en silencio en un
cierto lugar. Giraldo emboscado llegó hasta una torre, — el oteeiro de
San Bento —, donde se encontraba Ia vigia de Ia ciudad, una atalaya ® Ariz concluye su relato de Ia
protegida por un moro y su hija moza. Gubierto de ramas subió por Ia f u n d a c i ó n de Áviia con estas

torre hasta una ventana donde estaba dormitando Ia hija dei moro palabras: ''La ciudad de Auila bien
con razón será pendolada entre las
encargada de Ia vela mientras su padre dormia. Giraldo cogió a Ia másAntiguas de las Espanas, ca fue
joven y Ia arrojo desde Io alto de Ia torre, sorprendió al moro durmiendo an-tiguamente fundada por vn noble
Caudiüo, fijo de Hercules, que arríbó
y le cortó Ia cabeza. Hizo Io mismo con su hija y volvió con sus
desde Africei'. Caro Baroja (1987) se
companeros con ambas cabezas en Ia mano. En Ia atalaya hicieron ha referido a ia literatura sobre tos

senales de Ia presencia de cristianos fuera de Ia ciudad, por Io que orígenes de las ciudades y puebíos,
una actividad antigua que se
los moros salieron de Ia ciudad en su busca, dejando Ias puertas encuentra ya en los logógrafos
abiertas. Giraldo entró en Ia ciudad con su gente y se apoderó de ella griegos de! sigio V! a. C. y continúa

con facilidad. Luego mandó una embajada al rey comunicándole Ia en Ia Edad Media yen el Renadmiento.
En el sigfo XV) y XVI! Ia tradidón anónirm
toma de Ia ciudad y pidiendo su perdón. El rey le nombró alcalde pasa a ser erudita y conjetural.
mayor de Évora. En Ia divisa de Ia ciudad se ve a un caballero arma-
do a caballo, con Ia espada levantada y dos cabezas cortadas, una
Precisamente ía fundación de
de hombre y otra de mujer. Hay quien considera que esta figura re- ciudades es una de ias tareas típi-

presenta a Santiago matando moros y otros a Évora y Evorinho. cas de todo tipo de héroes. Como
ha indicado Fuste! de Coulanges en
La ciudad Antigua. Ia historia en
realidad era historia sagrada y fo-

los mitos de origen cai, y comenzaba por Ia fundación


de Ia ciudad. Cada ciudad poseía
sus propios héroes. calendano,
Los mitos de origen tuvieron Ia función de proporcionar una reiigión, historia y muralias. La
antigüedad a Ia ciudad a través dei héroe fundador de Ia misma^ estructura de los ritos de fundación

Las ciudades que no contaban como fundador con un héroe "histó- (que pasará a los romanos y se
mantendrá en el ceremonial de Ia
rico" se inventaron uno cuya imagen se componía de diferentes Edad Media) es etrusca, y tiene es-
retazos de mitos^°. La figura de Hércules es una de las más comunes tas fases: adivinación. deiimitación,

en el supuesto origen de varias ciudades espanolas. Este héroe deposición de relíquias, orientación
y cuarte-iación. Sobre los rituales de
está asociado a Ia fuerza y a Ia valentia, valores importantes en Ia fundación véase Rykwert (1985
convulsa sociedad de frontera que representa el pasado de Ávila. [1976]) al que sigo en estas páginas.

241
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

De igual modo, el nieto de Noé, Tubal se considera el primer poblador


de Ia península y el tubalismo fundacional aparece en muchos lugares,
utilizando Io que se ha llamado Ia "etimologia de sonsonete" (Se-túbal
viene de Tubal). La magnificación de los orígenes de Ias ciudades
reproducirá Ia preocupación por Ia pureza de sangre de linajes y familias.
Casi todos los autores senalan que Évora fue fundada por un monstruo;
una ciudad es siempre producto de una monstruosidad. Hay funda-
dores e n g e n d r a d o s por un progenitor divino y otro humano,
generalmente una virgen. Pero también, en el comienzo dei mundo
se repite Ia figura dei androgino o hemafrodita o Ia mezcla de animal
y humano. Así se convierte en un mediador entre el cielo y Ia tierra, Ia
ciudad en Ia que uno nace y Ia que crea, o Ia naturaleza y Ia cultura
como en el caso de los gemelos romanos Rómulo y Remo, alimenta-
dos por una loba. En el caso de Ávila, parece que Ia mediación se
produce entre dos continentes: África y Europa simbolizada en una
madre de Gibraltar, justo en el limite, un padre africano (semidivino) y
una fundación en médio de Ia península. En Évora esta mediación es
doble, primero a través de ÉIbora, un mediador entre los sexos, — a
Ia vez hombre y mujer — y luego a través de sus dos hijos que
personifican Ia dualidad humana en términos sexuales.
Pero no hay un sólo héroe, teniendo en cuenta Ias distintas
poblaciones y repoblaciones que sufren Ias ciudades. En época
medieval el Obispo Don Pelayo de Oviedo, el mítico personaje que
bendice Ia proyectada cerca de Ávila, vuelve a fundar simbólicamente
Ia ciudad. La bendición de Ia cerca es el equivalente, en época
" Kurt Latte (citado en Rykwert
(1985 [1976]: 60).En época medi-
medieval, al ritual de delimitación que se practicaba en Roma^\ Al
eval el modelo de ciudad proviene fundar una ciudad en época romana "rodean y marcan primero con
de Roma, una de Ias ciudades que.
un arado todo el espado y el recinto en el que piensan edificar.
junto a Jerusalén, Babilônia y
Bizancio forman el complejo mítico Este es un acto de posesión que se realiza con Ia intervención de
de Ia ciudad en ia Edad Media con animales. La parte más importante dei rito de fundación fue Ia
sus diferentes percepciones y va-
apertura dei sulcus primigenius, el surco inicial de Ia futura muralla,
lores asociados. Por poner un
ejemplo, los animales que aparecen trazado por el fundador con una reja y un arado de bronce al que se
en ios relatos míticos (aves. toro y uncía una novilia y un toro blancos: el toro se situaba por Ia parte de
vaca o becerra) son ios mismos que
apare-cen en Ia Crônica, en Ia
fuera y Ia novilIa por el lado de dentro dei surco. El fundador llevaba
relación de Ariz y en Ia leyenda de el arado oblicuamente de manera que Ia tierra cayera dentro dei
Romulo y Remo, El propio Rómulo
surco y al Negar a Io que serían Ias puertas dei recinto levantaba en
unce un toro y una becerra y traza
un surco con una reja. vilo el arado.

241
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

El simbolismo de los animales es evidente. Un autor bizantino, Juan


Lido, escribió: «habiendo uncido un toro y una becerra [Rómulo]
caminó en tomo a los muros, llevando el macho hacia fuera, en
dirección a los campos, y Ia hembra hacia Ia ciudad, para que los
varones fueran temibles a los extranos y fecundas Ias mujeres en el
hogar». Esta interpretación pone de manifiesto los valores dei rito.
Ia fortaleza y Ia fecundidad que, asociada a Io sexos, se intenta
trasmitir a Ia ciudad^^. Pero también muestra Ia importancia dei ele-
Citado en Rykwert (1985
mento femenino en Ia configuración de Ia ciudad, y Ia asociación dei [1976]: 155).
interior y Ia mujer.
La construcción es, por definición, un acto contra Ia naturaleza; al
seleccionar un solar se le separa de Ia naturaleza. Es también una
forma de posesión. Y también el fundador debe desgajarse con dolor
de su pasado y herencia familiar para construir un nuevo mundo,
una nueva ciudad. Pues bien, esta separación se experimenta como
una pérdida, una división, el mal, Ia caída y Ia necesidad. Quizá por
ello Ia creación de una ciudad está senalada por un asesinato, tal
como aparece en Ia Biblia, donde el primer fundador de una ciudad
es un fatricida — Caín —, al que siguen otros -como Rómulo — o un
parricida — Teseo — o infanticida. Como ha indicado Rykwert, Ia
fundación de una ciudad parece llevar emparejado el peso de Ia
culpa y esto se expresa a través de Ia guerra y Ia muerte.
Quizá más tenuemente planteado en el caso de Alcidéo se puede
observar este elemento de división y separación familiar a través de Una torre es el símbolo más

Ia lucha con su tio Magonio y Ia guerra entre africanos e hispanos. visible de una c i u d a d . S e g ú n
Zumthor (1984) estos modelos
Pero fundamentalmente aparece en Ia mitologia de Évora, mediante medievaies se aiimentan de una
Ia lucha y Ia muerte entre los hermanos Évora y Evorinho que se corriente arquetí-pica que
determinan Ia imaginación y Ia
disputan Ia herencia familiar entre otras posesiones Ia preeminencia
pafabra: cierre (aisiamiento). soli-
de Io masculino o Io femenino. Al morir ambos, el conflicto se evita, dez (seguridad) y ver-ticalidad

no se resuelve, quizá porque Ia guerra de los sexos y los parientes es (grandeza y poder). La ciudad se
asienta sola, sólida y segura en una
irresoluble. Y, finalmente, también aparece Ia muerte de padre e hija Creación cuyas tradiciones
moros en Ia reconquista de Évora por Giraldo sem pavor Nótese Ia denuncian Ia d e b i l i d a d y ia
fugacidad. Su centralidad
similitud de Ia muerte de ambas parejas de parientes por Ia posesión
desmiente el salvajísmo (Ia
de Ia ciudad (los dos hermanos se matan entre sí, padre e hija son ruralidad); es espacio de íranquicia

masacrados por Giraldo). Las dos escenas tienen lugar en Io alto de y centro de poder (muros, torres,
atalayas). Alta como el cielo y po-
una torre; Évora muere por el intento de Evorinho de arrojaria desde derosa y temible como una voluntad
Ia torre; Ia mora es efectivamente arrojada desde Io alto por Giraldo^^. sobrenatural.

241
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

La bendición de Ia cerca no es un mero gesto ritual. Las Partidas de


Alfonso X, el Sábio, no solo definen Ia ciudad por sus muralias sino
que se las califica como «sagradas» al igual que sus limites: ''San-
tas cosas son llamadas los muros et las puertas de las cibdades e
de las villas"^"^. Las puertas son Ia zona más ritualizada, objeto de
Júlio Valdeón Baruque. "Reflexíones
sobre las muralias urbanas de Ia
mayor atención por su ambivalência y vulnerabilidad. El acto de entrar
Castilía medieval" en Cesare de Seta por Ia puerta es una manera de establecer aiianza con quienes viven
yJacquesLeGoff. 1989.
dentro de los muros, pero es también el lugar de mayor peligro,
puesto que es Ia frontera con el mundo exterior^^. Es interesante
La puerta en ciertos contextos es
un sinônimo de franqueza, aiianza
destacar Ia frecuencia con que se ha asociado a Ia mujer con Ia
y saivacíón, como indica esta me- puerta. Pero es más, el simbolismo de los animales (toro y vaca), su
táfora desde Ia esfera religiosa; ''El
color. Ia disposición constante en el rito de demarcación, (el macho
que no entra por Ia puerta dei redil
sino que salta Ia tapia es ladrón y por fuera. Ia hembra por dentro) refuerza Ia representación simbóli-
salteador. Pero el que entra por Ia ca dei hombre asociado a los campos y caminos y de Ia mujer con Ia
puerta. ese es el pastor de las
ovejas...Yo soy Ia puerta; si uno
ciudad. La ciudad no es solo un espacio físico sino un territorio mo-
entra por mi, se salvará, y entrará ral y también un territorio sexual. De ello da cuenta un escritor
y saidrá, y encontrará pastos".
português (Resende) quien, refiriéndose a Ia reconquista de Évora,
Según Zumthor (1984), más que Ia
muralla. el emblema de Io que es escribió estas elocuentes y evocativas palabras: "foy de nocte en-
en esencia ia ciudad es Ia puerta o trada & virilmente tomada & possuyda dos christiâos ...per Giraldo
las puertas. Bifronte, entrada y
salida de hombres, punto débil de
Sem pauor& per hos ladrões seus companheiros & ha entregou a el
ia fortificación pero especiaímente Rei dô Afonso..."
defendida. Piu-tarco sugiere esta
am-bivalencia de las puer-tas al in- Ávila y Évora tienen nombre de mujer y más concretamente nombre
dicar que "a través de las cuales
de Ia madre. Al menos Ávila es fortaleza y refugio para diferentes
pasan mercaderías y los cuerpos
de los muertos". Sobre Ia puerta ninos reyes (el Rey Nino Don Alonso Ramón, Alfonso VIII y Alfonso
véase Cátedra 1990. IX). La defensa dei primero provoco «que de allíle quedó el usar por
armas, Ia Ciudad de Ávila, una Torre o cimborrio, y en ella asomado
un Nino Rey y tuuo origen aquel Real prouerbio que dizen Auila dei
Rey y Auila Ia Real». Ávila aparece en estas imágenes como una
madre que vela por sus pequenos hijos y les protege dei exterior
rodeándolos con sus imponentes muralias como si fueran sus brazos.
Hércules es el senor de Ia guerra y sus regalos a Ávila son armas
(arcos, dardos y armaduras). Por el contrario, Ávila le ofrece a cam-
bio animales domésticos y alimentos (vacas, puercos, ciervos,
caballos, canes y pan). Su hijo Alcidéo recibe el alimento. Ia crianza y
Ia herencia de Ia madre; de su padre una espada. Aparentemente Ia
asociación parece nítida: el hombre dedicado a Ia guerra y a Ia muerte
y Ia mujer a Ia vida y a Ia fertilidad. Pero veamos Ia siguiente escena.

241
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

escena 11. Ias mujeres guerreras


Las murallas de Ávila son escenario de otras gestas relacionadas
con Ia lucha contra los moros. Una de ellas es Ia de Ximena Blázquez.
La historia se sitúa a comienzos dei sigio XII en que, debido a las
malas cosechas en toda Castilia, hubo una gran peste^®. Casi todos
"Oüo gran malatía e pestílenda
los pobladores habían huído de Ia ciudad o estaban enfermos o e todos fugfan a las Aldeas, ca non
muertos. La ciudad había quedado "yermá\ aíendían padres a fijos, nin fijos a
padreé' Ariz, capítulos 27-28 Parte
Los que quedan, nombran gobernadora a Ximena Blázquez, mujer ií (pgs.42-45) dei original de 1607;

dei gobernador, en ausência de éste. Mientras los moros, creyendo pa-ginación 202-6 dei facsimil. Ei
episodio de Ximena no aparece en
a Ia ciudad desamparada, sin gente y sin caudillo, hacen planes las fuentes usuales anteriores (ia
para asaltarla, ya que allí había «grandes aueres, e muchos Moros Crônica, en el Epílogo de Ayora, ni
en Cianca),
en cautiberio, e que les seria de gran honor ganar tan fuerte Ciudad».
Al conocer estos planes, Ximena "viajaua de Ruas en Ruas, de mo-
rada en morada, contando las gentes e vasteciendolas de pan, de
carnes, faciendolas plegarias, non se fugiessen, e que ouiessen
osadía de bien defender su Ciudad'. Ella misma repartió armas y
alimentos. Un mensajero anuncio Ia Negada de los moros a las tierras
de Ávila para el dia siguiente procedentes de Toledo. "E Ximena no
se turbó, nin tomó pauor, ca ya auia puesto Dios en su coraçon gran
ossadía, ca no semejaua fembra: saluo fuerte Caudillo... e prendió
las llaves de las puertas de Ia ciudad'. Mandó a uno de sus hombres
con un grupo que espiase al enemigo, hacer hogueras en calles y
plazas y hacer sonar las trompas en diferentes lugares para simular
diferentes frentes. X i m e n a p e r m a n e c i ó en vela esa noche y
comprobando que los centinelas estaban en su lugar. Al aiba llamó
a sus tres hijas y dos nueras y las mandó vestir de varón. Al frente
de todas ellas Ximena harengó al grupo de hombres y mujeres que
"planguiendo" se habían concentrado en el Mercado Chico. " E vos
digo que tales fembras viajaron contra sus moradas, con gran presura, e
las que fallaban armaduras, se armaban e las que non, se armaban
con bragas e vestiduras de homes, e cubrían sus cabelleras con
Sombrero^\ Ximena, «con tal compana», coloco a cada una de las
mujeres sobre las murallas, y aunque había "poços homes asemejaua
auermucho^\ Visto este panorama por los moros que se acercaron
a Ia ciudad no se atrevieron a asaltarla y huyeron. Ximena, sus hijas
y su "compafía" se reunieron a comer y después en procesión
recorrieron algunos templos de Ia ciudad. Poco después empezaron

241
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

a Negar algunos caballeros q u e se maravillan de Ia hazana de


Ximena: {"Viendo que vna senora delicada, sin gente, y Ia poca en-
ferma, y sin munición ni armas, rodeada de mil infortúnios, con
pestilencia y de vn poderoso exercito de Morisma, sin otro socorro
más de ei Cielo, se vista de vn ânimo tan inbencible y puso coraçón
y ânimo en los flaços y femeniles ''Chapada y varonil te mostras-
te".) De esta historia proviene el blasón de los cinco sombreros que
muestra Ia ciudad (en recuerdo de sus tres hijas y dos nueras) y el
privilegio de Ximena y sus descendientes (más tarde revocado) de
entrar en el Concejo y de tener voz y voto igual que sus maridos.
Paralela a Ia historia de Ximena Blázquez es Ia protagonizada por
otra mujer: Ia mora Aja Galiana y Nalvillos^^. Mientras en Ximena se
La ieyenda aparece
desperdigacla a Io largo de ía Se~ narra Ia defensa heróica de Ias murallas por parte de Ia mujer
gunda Parte de Ariz p. 29-49v. en- cristiana, Ia historia de Naivillos muestra a Ia mujer mora que Ias
t r e - l a z a d a c o n Ia historia de
Xímena, paro ya parece en Ia
abandona para aliarse con el enemigo. La Ieyenda de Naivillos evo-
Crônica de Ia Población de Ávila y ca Io que significa, a finales dei sigio XVI, Ia interacción étnica, el
!a recogen posteriormente todas Ias
matrimonio con el "enemigo". La historia es así: Aja Galiana, una
demás histo-rias abulenses.
rica mora adolescente, sobrina dei rey de Toledo, fue encomendada
a Alfonso VI para que fuera criada y educada por su hija Dona Urraca.
El padre de Ia mora, antes de morir, pidió al rey Alfonso "que cuando
arribase a hedad Ia maridase con el Moro que al S. Rey pluguiesse".
El rey Ia prometió al noble moro Xezmín, senor de Talavera, pero no
cumplió su promesa. Naivillos, el apuesto hijo dei gobernador
abulense, aunque estaba también prometido por sus padres a una
cristiana, se enamoro de Aja Galiana nada más veria. Ante Ia
declaración de amor de Naivillos, Aja le aceptó pero "repuso, ca
tirasedes de vos tal amor, ca vos feria de poco honor, siendo vos tan
noble caballero amara una Mora... e vos Christiano nonpodia auer
maridaje". Naivillos responde: "ca si ella se retornase Christiana, el
se maridarfa con ella; e si Io tal non ouisse en voluntad él se tornaria
Moro por su Amor, e se desnaturalizara de Castilia e se faria vasallo
dei Rey de Cordoua". Naivillos se casa con Aja, una vez bautizada.
No obstante, no todos se alegran de Ia boda; en casa dei padre de
Naivillos, al conocer Ia unión, se "plania con mucha amargura" por-
que "en vez de Árias Galinda, noble e fermosa donzella, e fija de tan
nobles padres, auremos por nuera a Aja Galiana Ia Mora". El padre
de Naivillos "mesando sus cabelleras" se duele de tal modo que su

241
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

hermano le dice así: "Non planades...ca Aja es de sangre de


Reyes...possee muchos vienes, e non es Naivillos el primer noble
ca marido con Mora". Por su parte, el moro Xezmín Hiaya al conocer
Ia noticia "mouió gran planto e juramentaua por Mohamad de matar
a Naivillos, o le prender o le coller Ia su amada Aja Galiana".
Naivillos viajó a Talavera para vender Ias posesiones de Aja Galiana;
allí se encontro con Xezmín quien, muy solícito, se ofreció a com-
prar Ias tierras de su esposa y le alojó en su propio palacio. Naivillos
en reciprocidad invitó a su vez a Xezmín a que le visitara en Ávila,
donde se iba a celebrar Ia boda de su hermano con su antigua pro-
metida cristiana. Es el ano 1100. Allí, tras Ia comida, el moro bailó
con Aja "a Ia vsança de Ia morería". En un determinado momento,
Naivillos y Xezmín se enzarzaron en un juego de lanzas; cuando
vence Xezmín, Aja no puede disimular su alegria, ni su tristeza
cuando, finalmente, Naivillos resulta vencedor. Aprovechando una
ausência de éste último, embarcado en empresas guerreras, Jezmín
y Aja se encontraron y el moro "demandara ...su amor, e que Ia tal
como mala e desleal se Io consintiera..."] decidieron huír juntos
marchándose, con un considerable botín, a tierras de moros. Naivillos
al conocer Ia noticia "ouo gran cuyta... e juraba... de se bien vengar
dei vno e dei otro...e planía". Xezmín se levanto con sus moros con-
tra Ia reina dona Urraca. Naivillos viajó con trescientos escuderos,
cerco el palacio dei moro y mató a Xezmín ("te fiçco hazer piezas")
junto a Fatimilia, Ia doncella de su esposa. De ésta no se sabe que
pasó, aunque hay varias hipótesis: " E algunos cuydaran, ca esta
Fatimilia fuera Aja Galiana ...e fablauan que Aja Galiana finara porei
pauor ca auie...Otros fablauan que se ouisse muerto con yeruas...
se facían grandes prometimientos a quien Ia agarrase".

hombres y mujeres moros y uístidnos


La historia de Ximena ilustra sobre Ia manera en que Ias mujeres
sirvieron, o hubieran podido servir, para detener al enemigo en Ia
sociedad de frontera que una vez fue Ávila. Más concretamente es
una interpretación de Io que significaban esas gestas para los
abulenses de principies dei sigio XVII. La leyenda no aparece en
Ias crônicas anteriores a esa fecha; se elaboro pues posteriorfriente.

241
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

Narra Ia treta de Ia que se valieron Ias aguerridas mujeres de frontera


por defender Ias murallas y en definitiva Ia ciudad. El leiv-motivóe Ia
historia se basa en Ia confusión de Ias mujeres por guerreros, dos
roles aparentemente dispares. Las mujeres en este caso se
transforman en hombresy no solo a través de un disfraz. Ximena es
una mujer Varor?//' que, en cierta forma, ha dejado de ser mujer ("no
semejaua fembra: saluo noble Caudillo"), Io cual indica el poco valor
asignado a las tareas femeninas en una sociedad guerrera, su escaso
protagonismo en Ia historia oficial más que como meras comparsas,
vehículos de alianzas, pero siempre en Ia retaguardia.
Sin embargo Ia hazaha de Ximena muestra ese otro lado de Ia
actividad militar, Ia importancia de Ia mujer que posibilita Ia
continuidad de Ia sociedad, quien perpetúa Ia estirpe de guerreros,
Ia que murallas adentro es Ia que nutre a los suyos y defiende el
hogar. Nótese Ia solicitud de Ximena y su role de madre alimen-
tando a las gentes de Ia ciudad ("vasteciendolas de pan, de
carnes...farina", "faciendo repartimiento de las viandas"), tomando
las Naves de Ia ciudad como si de su casa se tratara, preocupándose
de sus "hijos" e n f e r m o s . Pero t a m b i é n el relato sugiere un
conocimiento considerable por parte de las mujeres de los proble-
mas militares de Ia defensa de Ia ciudad. Ximena organiza con
eficacia Ia resistencia: envia mensajeros para solicitar refuerzos,
infiltra espias en las líneas enemigas para conocer sus efectivos y
Obviamente esta aspíración de
igualdad dei mito no presupone re- para causar bajas entre los vigilantes, reparte las municiones, si-
laciones igualitarias. mula movimientos y en definitiva diseha una efectiva táctica de-
fensiva. En otras palabras, Ximena, junto a sus hijas, nueras y
Xímena es íambién popular en íos
demás mujeres cumpien impecablemente una actividad conside-
juegos intantiles, Un informante me rada como exclusivamente masculina. Esta es una historia positi-
indícabando juga "bueno, a
va que subraya Ia versatilidad humana, sugiere que Ia mujer puede
guerreros, en e! arco de los
Gitanos. se recordaba cuando Ia hacer, si es preciso, Io mismo que el hombre; que ella es, en defi-
Xímena Biázquez, cuando !a nitiva, igual a éste^®. Este mito se repite en diferentes lugares y
ciudad estaba desguarnecida y los
periodos históricos: las Salmantinas de Plutarco, las duenas de
' caballeros estaban luchando por
ahí. eh. venían los franceses, y se Orihuela en el sigio VIII, las de Martos en el XIII o las de Palencia
le ocurrió cerrar Ias puertas, cogió en el XIV. Su significado es poner de manifiesto el importante, pero
a Ias senoras. una en cada almena,
Ias puso un sombrero y ellos con-
oscuro, papel de Ia mujer en las diferentes épocas, su entereza y
ta ron. dando vueltas p arriba y valentia. Por este sentido positivo de Ia leyenda un grupo de femi-
p'abajo, que estaba deshabitada y nistas abulenses fundado en 1975-6 tomó el nombre de Jimena
era mentira. Esas cosas Ias
recordaba de chaval...
Blázquez^^.

241
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

Pero una cosa es Ia guerra y otra Ia paz. Un hecho extraordinário de Ariz II: 55: "ca les fue fecha
grada... que Ias fernbras
este tipo es también Ia excepción que confirma Ia regia. Nótese que, descendientes de tal duena
como prêmio a su gesta, se le concede a Ximena y sus descendientes Ximena entrassen en concejo, e
fablasen e votasen bien ansícomo
un privilegio masculino: el voto en Concejo. Tal privilegio debió ser sus maridos, e non les fuesse ne-
excesivo para sus propios maridos quienes no tardaron en pedir Ia gada Ia entrada en ia casa e Corra!
revocación de ese derecho, colocando a Ia mujer "en su lugar"^^. de concejo, a todas, en ningün
tiempo e ora que ouiesse junta de
Sin embargo, Ia imagen de los cinco sombreros ha quedado fijada caualleros, escuderos e homes
en el escudo de Ia ciudad buenos, Esta grada y merced les
fue fecha por Ia fazaíia que ficiera
El opuesto de Ia actitud heróica de Ximena Io constituye Ia traición con sus hijasynueras contra el po-
der dei Rey Moro...con nueue mil
de Aja Galiana. Mientras Ximena lucha contra el enemigo. Aja se
Moros". Pero díce Ariz poco
casa con éste. Esta historia avisa de los peligros de casarse con después: "otrosí que en elcon-cejo,
miembros dei otro grupo despreciando el propio. Nótese que am- onde se faze Ayuntamiento. non
en-trassen... ninguna fem-bra a
bos, Naivillos y Aja, están prometidos a alguien de los suyos y rompen votar...e que re-nunciasen para
esa promesa. La moral de Ia historia es que el matrimonio debe dende en ayuso...e! derecho que
auien, en tal razón e diessen por
realizarse entre los dei mismo grupo, etnia y religión. La historia, sin
ninguna Ia cédula e preuilegio Reat
embargo, da cuenta de los estrechos vínculos de interacción, relación
y alianza con los islâmicos, que incluye el tutelaje de Ia doncella No es Ia única vez que una mujer
mora y su matrimonio cristiano, a d e m á s de visitas mutuas, salva ía ciudad con similar treta.
Vários siglos después, en Ia guerra
participación en juegos y torneos, comensalidad, etc. Guando el
civil espanola, una mujer con as-
padre de Naivillos se duele dei matrimonio de su hijo, su hermano le pecto de campesina ímpide Ia en-
recuerda que "ca Aja es de sangre de Reyes" Io que indica que, en trada de! ejércíío rojo en Ávila. Hay
cierta duda de quien fue realmente
ese momento, es tan importante al menos el estatus social como Ia Ia mujer (unos dicen que Santa Te-
procedencia étnica^^. Quizá aún más importante es Ia propia resa y otros Ia Virgen de Sonsoles)
que, en este caso. desde afuera,
declaración de amor de Naivillos que sugiere Ia posibilidad dei cam-
salvo a los de dentro. Una abulense
bio étnico; si Aja no se vuelve cristiana: "é/ se tornaria Moro por su me contaba así Ia historia: "Duran-
Amor, e se desnaturalizara de Castilia e se faria vasallo dei Rey de te Ia guerra civil. Ávila estaba des-
protegida, no había ejerato, armas,
Cordoua". Todo un ejemplo de Ias lábiles y permeables fronteras nada de nada, aunque eso st, se
entre ambos grupos. liquidaban a los de Ia cascara
amarga, es decir, los de izquierdas
Pero también el relato plantea Ia dificultad de Ia relación, Ia o anticlericales. En estas que
apareció por el alto de Sonsoles un
imposibilidad de una unión duradera, su trágico desenlace. Aja no
ejército de rojos dis-puestos a to-
logra una verdadera conversión, no puede olvidar sus raíces; baila mar Ávila y les salió ai paso una
a Ia "a Ia vsança de Ia morería" y reconoce y se alegra con los suyos. viejecita que les pre-guntó
"iDónde vais?". "-A tomar Ávila '.
En esta parte de Ia historia se han erigido murallas simbólicas entre Y Ia viejecita les dijo: 'Vyyy. no os
ambos grupos. Nótese que Ariz, que describe Ia leyenda, publica su Io recorniendo, yo que vosotros me
daria Ia vuelta, porque está llena
libro en 1607 en Ias vísperas de expulsión de los moriscos. Revela de soldados y de armas, os van a
pues Ia intolerância que existe hacia éstos que se ha ido gestando liquidar". El ejército. temeroso de
en los siglos XV y XVI. Ia derrota que les augu-raba Ia

253
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

I siguió los consejos de ésta. Mientras Ia historia de Ximena Blázquez aparece a finales dei sigio
Se cree que dicha figura era en
reaüdad Ia Virgen de Sonsoles que
XVI y a través especialmente de Ariz, Ia de Naivillos está consigna-
tomó esa forma para defender Ia da desde Ias primeras c r ô n i c a s . No o b s t a n t e , hay c â m b i o s
ciudad de los ro/os".Un pio escritor
interesantes y significativos. La Crônica de Ia Población en el sigIo
narra brevemente ia historia: "Tanim-
ponente sigue siendo ei aspecto de XIII describe esta leyenda de muy diferente manera. En esa historia
Ias mu-rallas de Ávila, que durante no hay constancia alguna de que Ia mujer de Enaluillo sea mora y ni
nuestra guerra de liberación nacio-
nal, bastó para intimidar al coronel
siquiera aparece el nombre de Aja Galiana; Ia mujer de Enaivillo no
Mangada, cabe-cilia de Ias milícias tiene nombre ^^. Así pues Ia historia trata sobre una esposa cristiana
rojas de Madríd. Verdad que anduvo
infiel y no sobre una mora. Obviamente se trata de dos versiones de
en ello cierta campesina de Ia sierra,
en quien Ia fe popular ve a Santa Ia misma leyenda separadas por más de tres siglos. ^Qué puede
Teresa o a Ia misma Virgen de Son- significar esta diferencia de identidad étnica entre Ia esposa cristiana
soles. que tiene su santuarío en el
Valle Amblés'. Ernesto La Orden.
de Enalviello y Ia mora Aja de Naivillos? Esto parece indicar que en
1953. p. 5. el sigIo XIII era considerado razonable el trasvase étnico, Ia
conversión al islamismo y Ia adopción de formas de vida islâmicas.
Exactamente ie dica que no es ei
La toponimia ha dejado abundantes ejemplos de pueblos fundados
primar nobie "...ca marido con Mora,
ca Carlos, seriar de Burdeos, en con individuos y grupos que sufrieron estos trasvases culturales y a
Gascuna marido con oira Galiana los que se d e n o m i n a b a Tornadizos, Torneros, Terneruelos y
Mora, fija de Galafre, rey de Toledo:
otrosi layme Ximenez de Guesca,
Verzemuel^"^. Y quizá a finales dei XVI, un trasvase de este tipo era
buen Cauallero en Aragón... marido poco comprensible; si Ia mujer se alia con los moros es por que ella
con Fátima Aluarracina Mora. su
misma debe ser mora.
prisionera, sobrina dei Rey de Denia.
e Ia tomó Chnstiana, por mandar con El suceso de Naivillos es muy similar al poema Miragoia, que se
ella. E bien sabedes ca los
descendientes de Mudarra Gonçalez.
asocia con Ramiro II de León. Este joven rey enamorado de Ortiga,
non se amenguan por descender de hermana dei moro AIboacer, Ia rapta y Ia bautiza en León. AIboacer
Ia hermana dei Rey Almançor de
se venga raptando a su vez a Ia esposa de Ramiro, Dona Aldora.
Cordoua..."'. De este párrafo se des-
prende que !a situación de Naiviiios Ramiro intentará Ia liberación de su esposa, pero esta, resentida,
no era insóiita entre ios nobies que se aliará con AIboacer para entregarle el esposo infiel. Ramiro logra
marídan a su vez con mujeres moras
deian
sortear el peligro y huye junto con su esposa a Ia que arrojará al mar
(Belmonte, 1986: 80). Esta leyenda plantea una situación más
La Crônica indica que el senor de igualitaria en Ia que Ia traición de Ia esposa es fruto de una
Talavera, "con una gran campana de
moros e corríó Auila e falidos segu-
comprensible venganza.
ros e leuaron quanto fallaron de
fuera e seDaladamente leuó ia
A pesar dei carácter guerrero que muestra Ximena, en esta escena
muger de Enaluillo e cassose el aparece ya claramente Ia estratificación social asociada a Ias mujeres
moro con ella'. Ante este rapto,
y a los islâmicos. El caso de Aja Galiana (o Ia mujer de Enalviello)
Enaivillo decidió ir a rescatar a su es-
posa a Talavera. junto con cincuenta muestra Ia mayor facilidad de Ia mujer para traspasar los grupos
caballeros abulenses, a ios que étnicos. Pero el desenlace de ambas historias evoca Ia frustración
mando esconder en aigún lugar de
esta ciudad. Disfrazado de vendedor
de los indicios de protagonismo, independencia y derechos de Ias
de yeruá' se acerco ai atacar de mujeres. Sin embargo, todavia hay una tercera via. Ia santidad.

254
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

escena III. Ias santas varoniles: santa barbada su enemigo donde estaba su mujer
quien. aunque mostró poco entusi-
asmo por su celoso saivador, Io
Ávila es conocida, aparte de sus murallas, por sus santos, y especi-
escondió. Siri embargo, "e! moro
almente por Ia patrona de Ia ciudad, Santa Teresa, Ia más conocida echosse con ella en Ia cama, e en
vecina, Ia «paisana» más distinguida y Ia mejor embajadora de Ia faztendo sus deportes, o/u/dó e!
amor de Enaluieild\ Ei moro le
ciudad hacia el mundo exterior. Mucho menos conocido y central es prornetió Ia mitad de su senorío y elia
el patrón de Ia ciudad y su primer obispo, San Segundo, un Padre entrego a su marido. Se le condena
a morirquemado pero Enaluielio pide
Apostólico que divulga el Evangelio en el sigio I, una figura oscura
como gracia antes de morir poder to-
y en cierto modo irónica^^ Su ermita románica se encuentra en Ia car su bocina. Al oir Ia seria, los

barriada dei Puente, un antiguo arrabal industrial de extramuros, cabalíeros escondidos "vinieron ferir
en ios morai y éstos, que estaban
junto al rio Adaja. En esta misma ermita, en un sepulcro bajo, un desarmados, mueren en masa. Ei
altar lateral a Ia derecha dei altar mayor es donde se supone está moro y ia mujer son quemados vivos.
Ayora sigue fielmente ia Crônica y
enterrada una extrana santa, Santa Barbada. Su tumba está guar- dica así;" hombre muysubtií de guer-
dada por una recia reja que una mujer noble le dedico en 1547. ra. Hamado Enaluiellos...y éí ouo

Aunque hoy es prácticamente una desconocida, en 1519 se Ia venganza de su muger, y de! sefíor
de Taiauera. que ia hauia levado
consideraba una de los ''maraviUosospatroneá' de Ia ciudad^®; ironias captiua yla tenía por mancebá Ayo-
dei destino. Santa Teresa sustituirá a Santa Barbada en este ra. 1519 (Ed, A, dei Riego 1851:25).

patronazgo. Santa Barbada es una figura mítica dentro de Ia cultura


cristiana, y a ella me voy a referir a continuación Según Barrios (1983 I; 119), a
quien debo el dato sobre ios macro-

Paula, una doncella labradora de Ia aldea de Cardenosa, a dos topónimos citados, es innegabie Ia
permanencia continuada de
léguas de Ia ciudad, acudia con frecuencia a Ia ciudad a rezar a Ia población de origen cristiano y
ermita de San Segundo. La doncella que «ass/ como era hermosa después convertida ai isiamismo,

en e! Alma, tambien Io era en el cuerpoy> era literalmente acosada ios muíadies.

por un ''cauallerd que ''con demasiada y torpe afídón pretendia Los abulenses visitan su ermita el
gozarlá' y que Ia requeria ''con palabras lascibasy amorosas. A Ias dia de su fiesta y soiicitan tres deseos,

quales Ia santa VIrgen respondió varonilmente despredando todas de los que eí santo concede uno. Esto
se realiza introduciendo Ia mano con
sus blandurasypromesaé\ El caballero intento ganar su voluntad y un panueio por un agujero lateral en
al no tener êxito « violentamente el onor desta santa virgen queria ia base de Ia estatua dei santo. Este

quitar». Un dia en su camino a Ia ermita de San Segundo para rea- culto milagrero y popular en Ia
actuaiidad no concuerda con su re-
lizar sus devociones, reconoce y es reconocida en Ia lejania por el levante papel oficial en Ia ciudad ni
inoportuno caballero que habia salido de caza y que, en su caballo. con su importante significación his-
tórica. Sobre este santo véase Cáte-
Ia persigue. La joven apretando el paso entra en Ia ermita rural de dra 1997a. Me he referido a santa
San Lorenzo y alli, puesto que ''estimaua mas Ia hermosura dei alma Barbada en 1997a y 1997b.

que Ia exterior de su cuerpó\ pide a Dios 7(9 diesse alguna fealdad


en el rostro" y consigue en un instante una prodigiosa barba ''tan ^ Ayora 1519: 5.

espessa ytan compuesta como si fuera varórí' con Ia que despista La historia Ia des-criben tres au-
y burla al caballero. Guando éste entra ''dego y desatinadd en el tores en los siglos XVI Y XVII:

recinto de Ia ermita, encuentra a Ia barbuda doncella quien, a Ia Cianca en 1595, el Padre Ariz en

255
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

1607 y Fernandez de Vaiencia en pregunta dei caballero, contesta que nadie más que su persqna había
1676. La descripción que sigue es
estado allí. El caballero mirando toda Ia iglesia "y no Ia viendo...
una rnezcla de e
tomó su cabal Io y ç^minó su camlno".
En el sitio donde al parecer Paula estuvo sentada se hizo «una
caplllica» arrimada a Ia iglesia. Parece ser que Ia veta de Ia pena
donde estuvo sentada Paula formaba una perfecta cruz donde Ia
santa se arrodiliaba y hacía oración, después llamada Ia Peíia de
Santa Barbada. La joven, que en adelante se llamó Santa Barbada,
hizo vida de penitencia hasta el final de sus dias, viviendo junto a Ia
ermita de San Segundo donde fue enterrada^®.
^ De esta tradición existia un retabio
en San Lorenzo en que se narraba Ia La primera mención de Barbada es en 1519, pero realmente no se
historia, hoy desaparecido. El sepul-
cro de Santa Barbada tiene una losa
sabe cuando vive Ia santa. Hay quien Ia situa en torno al ano 1060,
con una leyenda (hoy borrada) en que en el ano 300; más adelante otros autores hablan vagamente dei
se indica su enterramiento: ésta es
sigIo III y el VII. Esta diversidad de fechas indica que en cierta forma
una prueba para todos los autores de
su exístencia. Pero además hay res- Ia santa es intemporal. Conforme van pasando los anos, diversos
tos de Ia propia santa; ios cofrades de autores tratan Ia historia de Ia doncella barbuda y ahaden algunos
San Segundo mostraron mucho ceio
en testificar y cuidar de sus tesoros.
detalles. Por ejemplo, unos dicen que Ia santa venía a visitar los
entre ellos ciertas relíquias de cuerpos santos de las iglesias ciudadanas, mientras otros opinan que
Barbada. Un testimonio de 1543 indi- además aprovechaba para asistir al mecado semanal. Lo que sí hacen
ca que "en un relicario de plata... está
una canüía entera de Ia senora santa
todos es aludir a una diferencia de clase entre Ia doncella campesina
Barbada y un pedazo de otra canilla. y el caballero ciudadano que es « vn gentil hombre Moço y cudizioso».
y un colmilío dei senor San Segun-
La figura de Ia santa va tomando diferentes roles por ejemplo una
do: que son tres relíquias las cuales
están dentro dei dicho relicario de especie de monja: ("para libraria de Ia torpe y lasciva pretensión de un
plata. Y habiendo abierto un cofrecito noble, aunque imprudente mancebo que pretendia ciegamente violar
de marflí tum-bado, que se halló un
pedazo de Lignun Crucis entre otras
Ia preciosa joya de su virginidad por médio dei poder y Ia violência...
reliquias... Otrosi. están en el dicho En tan peligroso lance acudió el divino Esposo a favorecera su sierva»).
cofrecito tres güesos de Ia cabeza de También se indica que Ia ermita de San "Lorencid' albergo a su lado
senora santa Barbada, los dos
mayores y otro pequefio dei cuerpo
Ia estancia de las emparedadas, mujeres que o bien se recluían vo-
glorioso de senora santa Barbada" luntariamente (con el beneplácito dei obispo o presbítero) o bien de
(Fernandez Vaiencia) Aparte de es-
"manera precisa", por haber incurrido en «culpas graves y escanda-
tas reliquias. en otro documento (una
Bula de Pio V de 1565) también se losas dignas de semejante corrección» (6quizá Ia caplllica de Santa
dice que ía cofradía de San Sebastián Barbada?). El dato es consistente con Ia santa, en cierta forma una
y San Segundo posee "por muchos
afíos" eí cuerpo de San Segundo y
mujer recluída, «escondida», por Ia barba, a los ojos de los hombres.
Santa Barbada.
Aunque los autores se refieren a Ia gran devoción que Ia ciudad
tiene por esta santa, sin embargo, ya en 1595, aparece el primer
indicio de intentos de supresión de Ia santa. Cianca indica que en el
lugar de Barbada "después desconsideradamente se ha puesto otro

256
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

[retablo] en aque! lugar, de Santa Aguedâ\ Muy significativamente ^ Escribe; "fue su voíuntad{..) no
sepa-rarse de estos lugares (...)
Santa Agueda es Ia patrona de Ias mujeres. vino a establecerse viviendo des-

A mediados dei sigIo pasado, en 1860, Ia santa cobra un nuevo im- de entonces Junto a Ia iglesla dei
(...) Primer Obispo de ÁvHa, en una
pulso a través de un noble caballero abulense, Don José Moreno, de Ias casitas inmediatas a Ia
quien compone una pequena obra sobre ''asunto humilde, aunque de misma Iglesla. De esta manera (...)
se Hbraba así mismo de tos peli-
elevado fín... una persona es dei sexo débil; una planta lozana criada gros que al venIr de su pueblo a
en nuestro suelo, una flor que vivló oríHas dei Adajá' (p. 14): La ÂvHa pudieran pane ri a en el

Azucena de!Adaja o Vida de Santa Barbada. La "varonil " senora apríeto que motivó el mllagro... a
donde entabló una vida de tanta
santa Barbada se ha convertido en el sexo débil y en una flor; no edificaaón... que se hizo el modelo
cabe mayor ejemplo de fragilidad. Aunque Ia historia es básicamente más acabado de santidad.

Ia misma, aporta nuevos datos sobre Paula. El trayecto por el campo


^ La reiadón de santos es Ia que sigue:
en ese tiempo debía entranar ciertos riesgos para Ias mujeres: ''AsI Segundo. Vicente, Sabina y Cristeta.
es que soUa venir muy a menudo desde Cardenosa a ÁvHa, sola y a Pedro dei Barco. Juan de ia Cruz.

pie sin que Ia arredrasen Ias dos léguas de distancia ni/os pe/igros Aionso de Onozco. Mari Díaz y Maria
Veia. además de Santa Teresa cuya
consiguientes a su sexó\ Tras Ia confrontación con el caballero, imagen coiDna el monumento. Esta re-
Paula «que había consagrado a DIos su virginidach, llega a ser una iadón será en adeiante Ia ofidal. Así

especie de mártir en vida, ''otra Polonia (...) que se hublera arrojado Jose Mayorai en Grandezas de Ávila
(1888) no cita ya a Santa Barbada. A
ella misma a Ias llamaá\ Por propia decisión se hace ciudadana con partir de este momento Ia santa se
Io que evita los peligros de Ia transición dei campo a Ia ciudad^^ convierte en una espede de leyenda.
Hay quien Ia compara con un bracero
El Sr. Moreno escribe en un momento en que Ia santa ''lastlmosa- por su "'larga y aspera barbá' o una
" viejafea, njgosay con barbá - Garcia
mente, casl Ignorada sea y apenas conoadá' y con esta obra pre- •acarrete (1928) y Belmonte Diaz
tende sacaria dei olvido. Pero no Io logra. El 28 de octubre de 1883 (1947)-. La historia se sigue contando

se inaugura en Ávila el monumento erigido para honrar Ias Grande- en Ávila con alguna frecuencia y poca
precisión. considerándose bási-
zas y Glorias deÁvHa, una columna coronada por santa Teresa que camente una divertida leyenda. La úl-
contiene 31 nombres de santos, guerreros, escritores y políticos. tima vez que me ia contaron fue en di~
dembre. en 1991. Una amiga mia me
Entre los santos aparece Segundo, Juan de Ia Cruz y Ia venerable
envió una carta a Chicago contán-
María Vela, oriunda de Cardenosa como Paula Barbada, pero de dome cómo se topó con Ias noticias
esta última ni rastro. El monumento pues fija en piedra quienes entran de Ia santa en una visita a San Segun-
do. Hay algunos câmbios en ia historia,
en Ia categoria de santidad y sus jerarquías^°. que reproduzco: " Te envio los
highUghts deitour En uno de tos alta-
Don José dedica esta obra (junto con una lágrima) a otra inocente res tienen ias relíquias de Santa inés
doncella, su propia hermana, fallecida a los 17 anos. No es ajena a Barbuda, santa dei sigio Xli, de

esta dedicatória Ia característica más notable de este trabajo: el Cardenosa ella. Parece que cuando
ia muy atrevida se fue a darunpaseo
mensaje de pureza y castidad que el autor reitera: ''Porque el pudor porei campo sin más campaf?ia que
y una sói Ida virtud es Ia hermosura más perfecta y en Io que consis- ia de su sombra, unos mozos dei lu-
gar, que ia vieron, debieron tener
te Ia verdadera belleza de una joven cristiana (...) Que Paula sea
maios pensamientos y Ia siguieron.
vuestro modelo, jóvenes amableé\ un mllagro Ia Hbró a ella de Sus deseos de castidad reaiizaron ei
Ias Inoportunas y nedas demandas de aquel libertino, os Hbrará 3 crecieron unas henmsas

257
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

barbas que les quitaron Ias ganas a también a vosotras de cualquierpeligro que vuestra castidad corriera:
los mozos de cualquier pensamiento
impurd'. Ei relato de esta forma es ru-
invocadia, y os conservará Ia pureza".
ral y no estratiíicado aunque conserva
Quizá por este mensaje de pureza el culto a Ia santa renació en
su contenido de dominación sexual.
Cardenosa en Ia posguerra espanola. Este pueblo, a una docena de
kilómetros de Ávila celebra en Ia actualidad los dias 20 y 21 de febrero
Ia fiesta de su paisana Santa Paula Barbada. En Ia iglesia parroquial
dei pueblo, en un lugar preferente, a Ia derecha dei altar mayor se
encuentra una hornacina con Ia imagen de una joven (sin barba) y Ia
inscripción S. PAULA BARBADA. Esta imagen es reciente — airededor
de cuarenta anos —. Fue fruto de Ia promesa de una mujer dei pueblo
que se encomendo a Ia santa por Ia enfermedad de su hija. Para hacer
Ia imagan, unos dicen utilizaron Ia imaginación, otros alguna imagen
gráfica y hubo ciertas dudas sobre como representaria ("La hicieron
como se Ia imaginarorl\ "Dicen que llevaron una estampa y que dijeron,
bueno no, con barba no. Unos decían que con barba y otros sin bar-
bai'). Tras Ia curación milagrosa y Ia llegada al pueblo de Ia imagen, el
cura dei pueblo impulsa Ia creación de una Asociación religiosa-cultu-
ral-recreativa de jovenes de Santa Paula Barbada de Cardenosa for-
mada exclusivamente por jóvenes solteros en un pueblo que contaba
con "mucha juventud' — al parecer hubo en su comienzo más de cien
Entronca perfec-tamente con fi- socios. La asociación tuvo dos ramas. Ia de los pequenos, entre 12 y
guras como Sta. María Goretti o
16 anos; y Ia de los mayores, desde 16 anos hasta que se casaban.
Josefina Víiaseca tan de moda en
ia Espana dei momento. La fiesta consistia en una misa, un pequeno convite, rosário y
Este particuiar énfasis se apre-
procesión, terminando en un baile con orquesta. La víspera, tras
cia en los iiamados ''Cantares de una misa. Ia "música" (gaita y tambor) acompahaba a los jóvenes a
Santa Barbada", una colecíón de un salón en el centro dei pueblo donde se representaba una obrita
trece cuartetas que contienen
estrofas dei tipo: "eres modelo de
de teatro. La trama siempre giraba en torno a Santa Barbada, una
juventud', "fuiste humilde como joven campesina que se resiste a los embites sexuales de un
labriega", o estas otras que
caballero, un perfecto ejemplo de pureza y un tema común de Ia
destacan tanto ia pureza como ia
proce-dencia de Ia santa: epoca^\ tan clave en Ia adolescência y Ia moral dei nacional catoli-
"Todos se precian de ser paisanos
cismo. Me decía una informante: "el cura nos daba una charlita y
de azucena tan virginal nos venía muy bien, como decía mi marido, es que ese sacerdote
que tiene un sitio iioy en ei Cieio
nos inculcó tanto... jhombre, como eran antes Ias religionesl.. Ia
y Ia adornamos en ei altar"
castidad, que Io apreciabas tanto que yo no sé... y Io de Paula
"Viva Ia Santa de Cardenosa Barbada, sí, era eso...".^^ El culto fue languideciendo con Ia muerte
y Ia azucena de este iugar
viva ei perfume que nos dejaste
dei animoso cura, Ia disminución de Ia juventud. Ia emigración a Ia
con tu pureza y con tu humiidad' ciudad y el cambio de valores. De los antiguos jóvenes, hoy gente

258
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

adulta ha partido un nuevo renacimiento dei culto de Santa Barbada


que, a pesar de mantener una cierta continuidad con el pasado,
plantea una nueva orientación propia de las condiciones y valores
actuales. Muy significativamente el impulso y entusiasmo ha partido
de los emigrantes a Ia gran ciudad, casados y con familia, que se
han construído una casa en el pueblo.
Para Ia gente de Ávila, las visitas de Santa Barbada a Ia capital
tenían como principal objetivo Ia venta de los frutos de Ia tierra. Una
mujer abulense, devota de San Segundo, me decía así: "Santa
Barbada, Paula, que se transformo a varón, con las barbas, cuando
Ia perseguia aquel caballero, que venía a vender verduras desde
Cardehosa...venía a vender los frutos de Ia huerta, verduras a Ia
plaza, los vierne^\ Es interesante esta asociación porque refuerza
el carácter rural de Ia santa y se explica su lugar y ocupación en Ia
ciudad. Para Ia gente de Cardenosa Ia tumba de Santa Barbada, a
orilias dei Adaja, debió tener su importancia al visitar Ia ciudad. La Lo voy a tratar de hacer a través
ermita está en su camino hacia el mercado. Hasta que se generalizo de Ia interesante investigación de
Donald Weinstein y Rudolph Bell
el uso dei automóvil, el camino de Barbada era el que realizaban
en su libro Saints and Society
muchos campesinos. En este contexto una imagen campesina, como (1982) en quien me baso a lo largo

Barbada en Ia ermita de San Segundo, junto a una de las zonas de de estas líneas. Este trabajo com-
bina técnicas cuantitativas y un fino
bares y comidas más popular, en los limites de Ia ciudad, pudo ser análisis c u a l i t a t i v o s o b r e una
Ia intermediária entre el campo y Ia ciudad, el nexo de unión e muestra de santos euro-peos entre

interrelación entre campesinos y ciudadanos. los anos 1000-1700,

Junto al sepulcro de Santa Barbada


hay "vnos versos antiguo^'. En ellos

Ia ambiguedad de gênero se muestra a Santa Barbada como


una intermediária en más de un sen-

Voy a tratar de contextualizar a Ia doncella barbuda tras el panora- tido e indican Ia estrecha reíación con
ei primer obispo. Los versos dicen así:
ma más general de los santos europeos en una dimensión históri-
ca^^. En unos versos anônimos junto a su tumba^^. Ia santa es Sednos buena intercessora
yabogada
"intercessora", "abogada", es decir, una mediadora. Santa Barbada
media entre diferentes esferas, los sexos, el campo y Ia ciudad, las Senora Santa Barbada.

clases sociales y lo culto y lo popular. Pero me voy a referir aqui Este mundo
básicamente a su mediación sexual. Es camino dei profundo,
Quien le tiene en su memória,
La santa encapsula características masculinas y femeninas, aunque Tu seguíste a San Segundo
a través de las épocas y autores se pone más o menos énfasis en Por gozar de aquella gloria.
Anima glorificada
unas u otras. En el sigIo XVI, Ia santa no solo tiene Ia apariencia De aqueste bendito santo.
masculina sino que, se dice, responde "varonilmente" a los deseos Que edificó su morada
Sobre Ia piedra y el canto.

259
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

dei varón. A grandes rasgos Ia mujer en esta época se considera una


especie de hombre manqué, no desarrollado, pasivo, víctima de sus
pasiones y con nula voluntad. Su respuesta "varonil" es más propia
de un varón extraordinário y santo; varonil es sinônimo de "fuerte" y
su fortaleza se aprecia especialmente en su rechazo de pasiones e
imposiciones. Desde luego Ia debilidad no parece haber sido Ia nor-
ma de Ias mujeres de Cardenosa, tanto Ia propia Paula como de su
paisana Ia venerable María Vela, que fue llamada Ia mujer fuerte.
Esta religiosa dei Cister en Santa Ana debe su sobrenombre a sus
ayunos de ocho dias, penitencias, mortificaciones y paciência ante
sus enfermedades^^. Sin embargo este rechazo, que en un hombre
35 Vivió entre 1556 y 1617. No pudo
ser santa probabíemente porque en
seria una actitud clara y abierta, en Paula es una especie de truco o
ia época en que vivíó como religio- engano, -probabíemente Ia única respuesta posible de una mujer de
sa, unas décadas después de san-
sus características en el contexto en que se produce. Es interesante
ta Teresa, ya no se vaíoraban esos
rigores y sacrifícios. destacar que a Ia mujer le crecen Ias barbas como una forma de disfraz
o mutilación para ocultarse frente al deseo o rechazarlo; uno de los
autores indica que sus "mejilias sonrosadas" se cubren con Ia barba.
En el sigIo XVI Ia historia pone énfasis en Ia conversión metonímica
en varón por su característica más notoria y definitiva, Ia barba.
También se asocia a Barbada con seres asexuados o vírgenes es-
posas de Ia divinidad: una beata o monja que suplica a su "Divino
esposo" el cambio de imagen para conservar su "virginidacf' o de-
fender su "onof\ La misma idea se refuerza con Ia noticia de que Ia
capillica de Santa Barbada fue estancia de Ias Emparedadas, mujeres
que, literalmente, se entierran en vida por castigo o decisión propia,
una especie de beaterio o convento. Estos câmbios sugieren el in-
Aqui me baso en E. Castelli
tento de los distintos autores de proporcionar un rol a Ia barbada
(1991) en su trabajo sobre Ias trans-
f o r m a c i o n e s s e x u a l e s de Ias doncella y de explicar su androginia.
mujeres cristianas de ia antigüedad.
Agradezco esta refe-rencía a José Desde sus comienzos, los textos y prácticas cristianas consideraron
Antonio Nieto. al cuerpo humano el lugar de actividades y significados religiosos^®
y aplicaron distintos valores a los sexos. Más concretamente, existe
El Martirio aparece en Ias Actas
de los mártires cristianos, un texto una antigua y amplia literatura de santas mártires o ascetas que se
de sigio lil. Sobre ambas referencias masculinizan o se convierten en hombres, empezando por el
véase Cas-telií 1991. Y también C.
W. Bynum, S.Harrel & P. Richman
evangelio apócrifo de Tomás, a fines dei sigIo I o comienzos dei II y
(eds.), 1986. continuando por el martirio de Perpetua y Felicitas^^. En el primer
texto María es convertida en hombre por Jesús para alcanzar Ia
salvación y en el segundo, a través de una serie de visiones y batallas

260
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

espirituales, Perpetua se transforma en hombre. En Ia tradición


cristiana mientras Ia tendencia hacia Ia femineidad por parte de los
h o m b r e s se ha c o n s i d e r a d o muy n e g a t i v a y a s o c i a d a a Ia
homosexualidad, en cambio, el movimiento contrario Ia tendencia a
Ia masculinidad por parte de Ias mujeres ha sido muy positivo,
transcendiendo Ias distinciones de gênero (masculino es sinônimo
de "humano") y con Ia connotación de avance y progreso espriritual.
La renuncia al mundo y al sexo se expresó con cierta frecuencia en
mujeres que cortaron su cabello y vistieron ropas de hombres; esta
ambigüedad de gênero llegó a ser un signo de santidad a Io largo
de los siglos. En el medievo abundan Ias historias sobre santas que
pasaron su vida como monjes, descubriéndose su sexo al ser
amortajadas. Hay incluso una leyenda sobre una papisa medievaP®.
La leyenda de Ia papisa Juana
Desde el sigio XIII surge un tipo femenino andrógino de santa que fue interpretada con cierta ironia, un
declina en el sigIo XVI. La frecuente androginia entre Ias santas poco de irreverencia y mucho en-
canto por el griego En-manuel
probablemente tiene que ver con el tema dei poder que cruza el
Royidis. Lawrence Durreí tradujo y
relato; se elige el disfraz de alguien superior, o más respetado. dio a conocer este texto en ei mun-
do anglo-sajón.
Sin embargo hay una autora (Castelli) que considera que este
proceso asimétrico de t r a n s f o r m a c i ó n por el que, en ciertas
condiciones espirituales extraordinarias. Ia mujer llega a ser un
hombre, es un ejemplo temprano de un importante fenômeno cultu-
ral: Ia desestabilizaciôn de Ia identidad de gênero en Ia historia de
Ia tradición cristiana. Esto es importante ya que esta tradición nor-
malmente se ha considerado tratar al gênero como algo fijo,
maniqueo y dualístico. Pero, a pesar de su valor positivo, tambiên
se alzan vocês de crítica, (como Ia de San Jerónimo o el concilio de
Granga en el sigIo IV) sobre estas mujeres que, por su ambigüedad,
ponen en peligro el orden de Ia naturaleza y Ia sociedad.

Por otra parte. Ia cultura cristiana internalizó Ia creencia de que el


cuerpo contaminaba el espíritu y que el sexo era el principal ele-
mento de polución. La virginidad. Ia castidad y el deseo son centrales
en esta narrativa como en muchas otras de vidas de santas. La
lucha contra el pecado y Ia concupiscencia se encuentra en todos
los siglos y todos los lugares de Europa. La castidad es Ia mayor
virtud de una vida santa, separa el mundo dei espíritu y el de Ia
carne, y define con certeza a un santo. La castidad (como estado
mental) y especialmente Ia virginidad (como hecho físico) no admite

261
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

grados, a diferencia de otras virtudes como Ia humildad, Ia pobreza


o Ia caridad. Es el principal hecho que destacan los hagiógrafos y el
tema central en las vidas de los santos. Sin embargo, hay una dis-
tinta consideración de los sexos. Entre los santos varones. Ia mujer
aparece como una aliada dei diablo, un ser en permanente deseo,
que trata de hacerle caer en tentación. Entre las santas, el dato más
importante es su condición sexual: ya sea virgen o viuda. La
virginidad lo era prácticamente todo en el tema de Ia santidad; una
viuda ha podido ser santa, por supuesto, pero le ha costado mucho
más. Las santas casadas tratan por todos los médios de vivir en
castidad o, por el contrario, de purgar el resto de sus vidas por los
pecados que implica el débito conyugal. Mientras en las vidas de
los santos el pecado y Ia tentación vienen desde fuera, en las de las
santas el pecado viene dei interior de ellas mismas. La mujer, hasta
cierto punto, interioriza esa visión masculina (por ejemplo, una san-
ta Teresa siempre preocupada por sus flaquezas y pecados... muy
poco evidentes). Por ello abundan las santas que hacen votos de
castidad desde muy temprana edad. Pero es más, para evitar un
matrimonio propiciado por Ia familia, hay santas que se mutilan "como
un regalo de D/os"; Ia barba seria una especie de mutilación. La
historia demuestra, en poças palabras, Ia falta de autonomia de Ia
mujer, el poco control sobre sus vidas. Pero paradójicamente Ia
santidad es, probablemente, una forma de independencia y libertad
que permite a las mujeres labrarse su propio futuro. Elijen una for-
ma de vida autônoma en un momento en que las mujeres tienen
poças posibilidades de elección^^.
Weinstein & Bell, (1982, caps, 3
y 8), Algo similar propone Biiinkoff En Castilia emerge Ia práctica de un extremo ascetismo y un
(1989) sobre el significado de las
regias res-trictivas de Ia Reforma
movimiento espiritual femenino en el sigIo XV. En ese sigIo y el
dei Carmelo. siguiente se produce una explosión de actividad religiosa femenina
que no ofrece parangón con el resto de Europa. El caso de Barbada
es similar al de Ia beata Mari Diaz, en su tiempo mejor conocida que
Teresa de Jesús y contemporânea suya, una campesina iletrada que
nace en Vita, cerca de Ávila hacia 1490. A pesar de que sus padres,
agricultores bien situados, Ia prometen a un joven, ella se las ingenia
con diversas argucias para alejar al novio y poder dedicarse a Dios.
No lo puede hacer hasta que mueren sus padres, hacia 1530; tras
repartir su herencia, se traslada a Ávila para oir "sermones" y dedicarse
a Ia vida religiosa. Se instala fuera de las murallas, en el barrio de las

262
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

Vacas, (una zona humilde equivalente a Ia barriada dei Puente) y


después en el palacio de una mujer noble. Mari Díaz termina sus dias
en una tribuna diminuta en Ia iglesia de San Millan, sobreviviendo
gradas a limosnas, vestida de harapos y en permanente oración. No
es Ia única; en Ia ciudad hay varias de estas beatas en diferentes
iglesias. La gente de los pueblos viene a visitaria al igual que los
aristocratas. Mari Díaz ocupa una categoria propia: ''s/n sexo, sinedad,
s/n c/ase" Ia ''objetividadpersonificadá' por Io que obtiene êxito al
mediar en los conflictos y disputas de Ia ciudad^°. Su entierro congrego
Véase Bilinkoff (1989: 96-107)
a multitudes de dentro y fuera de Ia ciudad. sobre esta beata.

Tanto Mari Díaz como Paula Barbada guardan un cierto parelelismo.


Ambas son campesinas, rechazan con trucos a los hombres y
terminan viviendo en Ia ciudad. En ambos casos tratamos con
mujeres de vida ascética. La característica de estos santos es que
no sólo preservan su virginidad, sino que cultivan Ia soledad; los
hombres como ermitafios, y Ias mujeres en celdas cercanas a iglesias
y ermitas. Las mujeres no pueden permitirse Ia soledad dei campo
ya que hay «pe//gros consiguientes a su sexoy>\ deben a Ia vez
^^ Weinstein & BeH. 1982: 155-7 y
separarse de Ia comunidad, pero vivir en Ia ciudad. Y una manera 234. Sobre el tratamiento dei cuerpo,
de separarse dei resto de Ia comunidad es Ia manera como tratan y el ayuno en particular, véase R.M.
Bell 1987 y C.W. Bynum, 1987.
con sus propios cuerpos y el rechazo dei deseo corporal, Ia
satisfacción sexual, el apetito por Ia comida. Ia fecundidad. Las san-
tas se azotaron y dejaron sus cuerpos exhaustos, se atormentaron Ibéria (y Ávila en especial) es una
excepción en vários respectos. Por
con cadenas, ayunaron, dieron sus vestidos a los pobres, se negaron ejemplo, el número de santos y san-
a adornar sus rostros e incluso se desfiguraron'^^ tas decrece en Ia península en los
siglos XIV y XV y aumenta
Las mujeres Io han tenido difícil para alcanzar Ia categoria de considerablemente en el siguiente.
Probablemente es debido a ia Re-
santidad tal como se desprende de los datos de Weinstein &Bell en
conquista que no deja mucho
su libro Saints & Society, aunque hay una excepción en el caso tiempo para Ia creación de santos

espafiol. Entre el afio 1000 y 1700, de 864 santos europeos y también a ia debilidad de Ia
burguesia en ias ciudades
estudiados sólo 151 eran mujeres. Especialmente en los siglos XI y espanolas, mientras en otros luga-
XII el cristianismo europeo era un mundo casi exclusivamente mas- res los burgueses impulsan en
estos siglos a santos y santas de
culino, aunque luego cambia el panorama en los siglos siguientes. clases sociales médias y bajas.
En esos primeros tiempos las poças santas que aparecen son rei- Sigo a Weinstein & Bell, especial-

nas o nobles; a partir dei sigio XIII aparecen entre las clases médias mente capitulo 8, Véase especial-
mente p. 220-226. Siguiendo este
o bajas. En el sigIo XVI declina el crecimiento de los cultos femeninos, esquema Barbada probablemente
al mismo tiempo que se estrecha Ia base sociaF. Ello es debido, apareció entre los siglos Xlli y XV

por un lado, a Ia Reforma Protestante que cercena el rol de las

263
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

mujeres como líderes de Ia piedad católica. Y también por Ia Reforma


Católica que reafirma Ia autoridad jerárquica masculina y principal-
mente el papel dei obispo, afirma Ia centralidad de los sacramentos,
el rol mediador dei sacerdote y confirma Ia versión más extrema de
autoridad y práctica clerical, además dei triunfo dei celibato. En Ia
Contrarreforma se incrementan Ias historias sobre mujeres que asaltan
a los santos para hacerles pecar. Las poças que aparecen son vírgenes
doncellas, y no esposas espirituales de Cristo, si bien Teresa de Ávila
es una excepción. En general, a las mujeres europeas se las excluyen
y sufren de prejuicio sexual, ciertas formas de misoginia clerical y
acusaciones de brujería. Por otra parte, hay câmbios en Ia iglesia
poco favorables a Ia participación de las mujeres, como el impulso
misionero en América, un mundo de hombres.
Mientras se destaca en los siglos XVI y XVII Ia "varonil" respuesta de
Barbada, Ia parodia y Ia burla dei varón. Ia pureza se convierte en el
sigio XIX y XX en el leit-motivde Ia historia. Barbada en una especie
de "mártir", aunque no sufra más martirio que el de sus barbas'^^ Y Ia
Garcia Dacarrete iiega a decir
que Paula es otra "Polonia" {ia
asociación mas adecuada de Ia pureza es una blanca azucena que
virgen que se arroja a ias llamas nace junto al rio. La fragilidad es Ia característica de esta humilde flor
para defender su virtud) y precisa-
que representa Ia mujer que José Moreno define como "sexo débit\
mente es Santa Polonia otra de ias
sustitutas de Barbada en su altar. Obsevemos que se ha producido una transformación de Ia mujer va-
Pero este caracter de mártir apa- ronil al sexo débil ("esta donceilita (que) sintió en su delicado pecho...")
rece implícito en otros autores.
que indica un cambio de perspectiva: de Ia aliada dei diablo se pasa
a Ia frágil azucena en un mundo de peligros para las mujeres ("sin
que Ia arredrasen las dos léguas de distancia ni los peligros
consiguientes a su sexo"). Similar mensaje de pureza y virginidad
parece estar en Ia base dei nuevo renacimiento de Ia santa en su
lugar de origen, Cardefiosa. Mensaje que entronca con el Nacional
Catolicismo de Ia época y el papel adscrito a Ia mujer campesina (jy
castellana!) capaz de todo sacrifício por Ia defensa de su honor.

La gradual desaparición de Barbada sugiere que el mensaje de cam-


bio de sexo es probablemente excesivo para Ia estética asociada a
Ia religión. Que ha sido una imagen controvertida se aprecia ya en
Cianca quien en 1595 protesta de Ia retirada de su imagen y retablo
sustituyendola por Santa Agueda. Esta es precisamente Ia patrona
de las mujeres y se Ia representa con los más obvios atributos
femeninos: dos pechos en un plato, Io que parece una reafirmación

254
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

rotunda de Ia femineidad. Esta lucha simbólica contra Ia ambigüedad


no favorece a Ia mujer, ya que fabrica enormes murallas entre los
sexos, coloca a Ia mujer-mujer, en su lugar, no le permite cruzar
froteras de poder.
Porque todo el relato está coloreado por otra dicotomía relevante:

Pobre campesina/noble ciudadano. Fundamentalmente el relato de


Barbada plantea una situación de poder. En Ia historia se observa Ia
radical dependencia dei campo hacia Ia ciudad que centraliza no sólo
el mercado sino también Ia religiosidad. La doncella campesina açude
a Ia ciudad donde están los más importantes santos, pero también los
peligros, imposiciones y violaciones de los caballeros. Aunque el Ei estado de p o b r e z a era
ambivalente; sagrado pero a ía vez
milagre tiene lugar en el campo, Ia doncella barbuda se convierte en des-preciado, En conjunto, los san-
términos estructurales en Ia compahera dei obispo en Ia ermita al lado tos nacen entre los más acomoda-
dos. La proporción, según
dei rio. La santidad refleja en ocasiones aspiraciones de movilidad Weinstein &Bell, es de tres santos
social, como en el caso de Barbada en su camino hasta Ia ciudad. nobles o de buena posición de cada
cuatro. Una respuesta obvia a esta
Barbada viene a Ia ciudad a rezar mientras que el caballero sale al
mayoría es que Ia Iglesia ha sido uri§
campo a "cazar", siendo Ia "presa" Ia propia doncella. La imagen más institución elitista que ha protegido

expresiva de Ia lucha de clases y Ia imposición de los poderosos apa- sus intereses de clase; los obispos
provienen de Ia cíase alta, defienden
rece precisamente cuando se representa al noble acosador saliendo los derechos de Ia Iglesia y se

"de caza" para lograr Ia "pieza" más humilde: Ia mujer campesina. El produce una percep-ción clerical de
Io sagrado y ia santidad. Sin embar-
cazador sin embargo es burlado y aqui radica Ia fuerza de Ia historia go, los dos extremos son frecuentes;
para los miembros de una clase que, efectivamente, fueron, en tantos ia imagen dei santo poderbso
(obispos y reyes) se opone al santo
casos, piezas cobradas por el poder. campesino. San Segundo y Santa
Barbada repre-sentan estos extre-
mos Véase especialmente los capí-
Los santos fueron un admirable instrumento para Ia expresión de tulos 7 (p.194-219) y 6 (166-193).

Ias nuevas necesidades cívicas^^. La ciudad fue el lugar de Ia práctica


Estas nuevas formas de individu-
de Ia caridad (hospitales, hospicios, ayudas a viudas o doncellas) y alismo religioso y activismo moral
el lugar de los santos mendicantes, urbanos y laicos o Ias mujeres provienen de ia vida ciudadana. Los
viejos canales dei monasterio, los
santas. Esta piedad innovadora se centra en estos centros de
lazos con el senor feudal y !a casta
población, con cofradias y confraternidades y movimientos de reti- en Ias zonas rurales, se susti-tuyen

ros voluntários de mujeres entre ellos Ias beatas formas nuevas de por Ias nuevas prácticas y actitudes
religiosas en Ias ciudades, de vida
piedad y movimientos religiosos junto a nuevas formas econômicas, más fluída, con su pujante
n u e v a s r e l a c i o n e s s o c i a l e s y n u e v a s f o r m a s culturales.^^ La economia comercial.

estructura que permitió estos câmbios fue Ia propia ciudad y los


santos cumplieron admirablemente Ia función de estrechar los lazos

265
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

de Ias comunidades en su role de intermediários. Barbada fue una


figura muy adecuada a Ia ermita junto al rio, ya que encapsula junto
a Segundo el inevitable contraste y choque entre Ia periferia y el
centro, Ias clases sociales, el poder.
^Porquê no se abre camino en el santoral ya no santa Barbada
(una figura quizá excesiva en su androginia), pero al menos Mari
Díaz, enterrada en honor de multitudes, y hoy (como Barbada) casi
olvidada? La hagiografía fue el lugar de encuentro de mito y
experiencia, de Ia religión universal y Ia religión local. La gente ha
elegido a sus santos de acuerdo a sus necesidades y vanidades,
respondiendo a Io que son y a Io que quieren ser. Sin embargo. Ia
cultura medieval religiosa evidentemente se relacionaba con Ia
organización social y tuvo muchas de sus características jerárquicas.
La propia concepción (o definición) de santidad en último extremo
está sancionada por el obispo y el rey."^® Tras el Concilio de Trento se
La canonización requirió cuito, ei
culto dependió de Ia visi-bilidad y produjo una reducción significativa de santos suprimiendo a Ios más
Ia visibiiidad vino con Ia posición heterodoxos o bizarros. Santa Barbada fue una de Ias víctimas de
social. El prejuicio social ayuda a
decidir quien es venerado como
este movimiento, pero al suprimiria se está suprimiendo algo más
santo, tanto para ídentifícarlo como que una santa. Se ha indicado^^ que Ia Contrarreforma fue un periodo
para influir en !a percepción de ios
de control durante el cual se trató de definir Ia cultura y fijar Ios limites
fieles y ei reconocimiento por Ia
jerarquía. (Weinstein &Beii} de qué tipo y hasta qué punto Ia diversidad cultural se podría tolerar.
Dentro de esa diversidad, una cuestión básica ha sido Ia definición
dei concepto de persona y Ia diferenciación sexual. El Concilio de
Dickens 1968.
Trento impulsa el control de Ios milagros y relíquias. Ia supresión de
heterodoxia y de algunos apócrifos, definiendo previamente quienes
son heterodoxos y "falsos" santos. Y definiendo Ias categorias sexuales
nítidas, suprimiendo Ia ambigüedad. Por ello Ia sustitución de Santa
Barbada por Santa Agueda. Pero este cambio no es tan sencillo; no
solo Ia santa se resiste a desaparecer (surgiendo en otros contextos)
sino que Ios valores que representa Barbada se dan también en otros
lugares con figuras muy similares y parecidas historias.
Santa Barbada, Ia santa mujer y campesina, tiene como contrapartida
a San Segundo, su compahero en Ia ermita, el primer obispo de Ia
ciudad. Mientras éste representa a Ios más poderosos -Ia jerarquía
eclesiástica- en el otro extremo se encuentra Paula Barbada, Ia
representación de Ios más humildes, por ser mujer y campesina. El
obispo es una figura de autoridad doctrinal mientras que Ia santa

266
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

esta rodeada de milagro y ascetismo. Ambos en conjunto representan


el ideal de santidad, Ia función que Ia jerarquía eclesiástica y el
pueblo reclaman de sus santos. Este complejo de oposiciones
complementarias (hombre/mujer, poderoso/humilde, ciudadano/
campesina) sufre una quiebra en el sigio XVI, cuando el papel dei
obispo es afirmado y aumentado en Trento, mientras que Ia mujer,
Barbada, comienza a desaparecer. La ironia es que a esa supresión,
en irônica venganza, seguirá Ia figura de Ia santa por excelencia,
santa Teresa que dicho sea de paso-es también una mujer fuerte y
que lleva en cierto modo un disfraz desciende de cristianos nuevos.

conclusión
Las tres escenas que acabo de perfilar pueden ayudarnos a
comprender Ia arqueologia simbólica de nuestros propios esque-
mas sexuales, valores asociados a los sexos y estatus acordado a
Ia mujer. En muchas ocasiones Ia historia feminista ha puesto
excesivo énfasis en los datos históricos de Ia discriminación
femenina. Ia opresión de las mujeres. Esta discriminación y opresión
por supuesto son reales, pero no son más que parte de Ia realidad.
Los mitos revelan mucha complejidad y ambigüedad en el gênero,
reconocimiento de Ia participación f e m e n i n a , aspiraciones y
declaraciones de igualdad.
Empezando porque las ciudades llevan nombre de mujer; Ia creación
de las ciudades, pese al héroe, incluyen de un modo muy sehalado a
Ia mujer, y en ocasiones Ia muestran como Ia autêntica protagonista.
La imagen que aparece en el caso de Ávila es Ia dei héroe como
sehor de Ia guerra y de Ia muerte y Ia heroína como Ia madre y Ia vida.
La mitologia de Évora expresa Ia pristina felicidad. Ia conjunción de Io
femenino y masculino en Ia figura dei hemafrodita. La mitologia
asociada a las ciudades refleja mayores datos de igualdad que el
mito cristiano andrógino de Adán (en el que Eva es solo una escisión
o un apêndice). En cierto modo se parece más al andrógino de Platón
(en El Banquete) que es Ia expresión de Ia biunidad divina primordial.
Ia unidad de contrários, una manifestación de perfección que queda
rota por un castigo divino. En este mito Ia ruptura supone Ia
descompensación y las desazones de Ia vida, el vano intento de vol-
ver a encontrar Ia complementaridad que se ha perdido.

257
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

Por supuesto Ias aspiraciones de igualdad dei mito no presuponen


relaciones igualitarias en Ia práctica social, pero Io contrario, también
puede ser verdad; Ia mitologia de Ias diferencias no siempre define
el rango de los indivíduos concretos. Hombre y mujer son conceptos
cambientes a Io largo de Ia historia de Ias culturas y de Ia historia de
Ias personas. La sociedad abulense de frontera, Ia sociedad guerrera
por antonomasia, permite a Ximena y Ias demás mujeres un cambio
drástico de roles, hacer Ia guerra de Ia mejor manera que pueden
hacerla Ias mujeres: evitando el ataque frontal, con esa supuesta y
también mítica mano izquierda. Quizá hombres y mujeres no seamos
tan iguales como pretendemos, ni falta que nos hace. Pero Ia escena
segunda muestra en conjunto el origen de Ia estratificación social,
Ia jerarquía étnica. Ia visión de los ganadores. Especialmente evi-
dente en Aja Galiana, mediadora entre dos mundos irreconciliables.

La tercera escena muestra nuevamente un personaje androgino en


Ia patrona mítica de Ia ciudad cristiana, santa Barbada. Los personajes
que han ido apareciendo en estas líneas revelan diferentes perspec-
tivas pero muchas similaridades. Barbada es otra hemafrodita como
ÉIbora, ambigua como Aja Galiana, entre cristiana y mora, una mujer
guerrera que gana sus guerras, como Ximena, evitando Ia guerra.
Muestran distintos grados de ambigüedad: Ximena adopta el role
masculino. Barbada su fisonomía, en ÉIbora confluyen a partes igua-
les Io masculino y Io femenino. En cierta forma el mito de Ias Amazo-
nas cumpliría Ia misma función: poner de manifiesto el no siempre
reconocido papel de Ia mujer, su autonomia y poder. En Ias tres
escenas se repiten Ias mismas características estructurales. Ia misma
representación simbólica de Io masculino y Io femenino, conceptos
poco nítidos, mezclados, escurridizos frente a nuestras queridas,
rotundas y poco reales clasificaciones. El mensaje es evidente: se
pretende expresar Ia versatilidad humana, el mestizaje de los sexos.
Ia igualdad de hombres y mujeres. Por ello, al borde dei segundo
milênio es tan importante y crucial Ia reconquista de los mitos.

Resumen: Los mitos son parte de un corpus general de comentário


sobre Ia naturaleza humana, un instrumento para entenderse, en-
tender el mundo que nos rodea y enfrentarse a Io desconocido. Son
sistemas semânticos estructurados de una cultura y ofrecen

268
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

informaclón sobre los valores y Ia sociedad que los mantiene, pero


también integram Ia utopia y plasman reconocimientos y aspiraciones
de igualdad. El mito proporciona ei soporte conceptual dei mundo
social, Ia cosmología básica de Ia cultura pero también se enfrenta,
mediante Ia alegoria, a nuestros modos de percibir e interpretar el
mundo. Este ensayo analiza Ia mitologia de dos ciudades, Ávila
(Espafía) y Évora ( P o r t u g a l ) , m o s t r a n d o Ia p a r t i c i p a c i ó n y
protagonismo de hombres y mujeres en estos textos atemporales.
Ambas ciudades, en contextos muy diferentes, muestran similares
temas y una cuidadosa atención ai gênero. Quizá porque el
nacimiento de una ciudad es verdaderamente un nacimiento, los
mitos de origen de Ias ciudades congregan a ambos sexos y muestran
especialmente Ia intervención y protagonismo femenino, aunque
luego ellas vayan desapareciendo sistemáticamente de Ia escena
ciudadana. Los mitos muestran cuanto de construcción simbólica
tienen Ias ciudades y los sexos. Al comienzo dei segundo milênio se
replantea Ia reconquista de los mitos.

Palabras-clave: simbolismo, mitologia, ciudades, gênero, cosmologia.

Abstract: Myths are part of a general body of comments on human


nature, they are tools for the individual to understand himself, the
world around us and enable us to stand before the unknown. They
are structured semantic systems of a specific culture and provide
information on the values and on the society that nurture them, but
are likewise part of an utopia, shaping acknowledgments and
aspirations of equality. Myths provide conceptual support for the so-
cial world, the basic cosmology of culture, but aiso defy, through
allegory, our means of perceiving and interpreting the world. This
essay analyzes the mythology of two cities, Ávila (Spain) and Évora
(Portugal), by showing the participation of men and women in these
non-temporal texts. Both cities, in very different contexts, present
similar themes and devote a carefui attention to gender. Maybe
because the birth of a city is an actual birth, the origin myths of cities

259
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

joln both sexes and show malniy the interference and the actuation
of the feminine, even though women gradually disappear from city
soene. Myths show the degree of symbolic construction that are part
of the cities and the sexes. At the beginning of the second millennium,
myths are being conquested once again.

Key words: symbolism, mythology cities, gender, cosmology

bibliografia
ARIZ, Luys. Historia de ias Grandezas de ia Ciudad de Auiia. Alcalá de
Henares: Ed. (facsimil) Caja de Ahorros de Ávila, 1978 [1607].
AYORA, Gonzalo. i\/iuchias Hystorias Dignas de Ser Sabidas que Estaban
Ocuitas: Sacadas y Ordenadas por Gonzaio de Ayora de Cordoua. Epi-
iogo de Aigunas Cosas Dignas de r\/iemoria Pertenecientes a ia iiustre e
muy i\/iagnifica e muy Nobie Ciudad de Áviia. Salamanca, 1519.
BAROJA, Júlio Caro. Vii Curso de introducción a ia Etnoiogia. Ei Foii<iore
de ias Ciudades. Transcripción Directa. Abril-mayo 1987. Madrid: C. S.
I. C., Instituto de Filologia, 1987.
BARRIOS. Estructuras Agrarias y de Poder Ei Ejempio de Áviia (1085-
1320)2 vols. Salamanca, Universidad de Salamanca: 1983.
BELL, Rudolph M. HoiyAnorexia. Chicago: Chicago University Press, 1987.
BELMONTE DIAZ, José. Leyendas de Áviia. Ávila: Alonso de Madrigal, 1947.
BILINKOFF, Jodi Ellen. The Aviia of St Teresa: Reiigous Reform in a W
Century City Ithaca: Cornell, 1989.
. Áviia de Santa Teresa. Madrid: Editorial Espiritualidad, 1993.
BLOCH, M. & J. H. BLOCH. 'Women and the Dialectics of Nature in Eighteenth-
Century French Thought'. In MACCORMACK, C.P and STRATHERN, M. (eds.).
Nature, Cuiture and Gender Cambridge: Cambridge University Press, 1980.
BYNUM, Caroline Walker. iHoiy Feast and Hoiy Fast Berkeley: University of
Califórnia Press, 1987.
BYNUM, C. W., HARREL, S. & RICHMAN, P (eds.). Gender and Reiigion:
On tiie Compiexity of Symbois. Boston: Beacon Press, 1986.
CASTELLI, Elisabeth. "I will Make Mari Male. Pities of the Body and Gender
Transformation of Christian Women in Late Antiquity". In EPSTEIN, Julia
and STRAUB, Kristine (eds.). Body Guards.
CATEDRA, María. "Franquear el Umbral". In FERNANDEZ-GALIANO, Luis

270
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

(coord.). El Espado Privado. Madrid: Ministério de Cultura, p. 251-257,1990.


. 'Vinvention^ww Saint". Terrain, n° 24, mar, p. 15-32, 1995.
. Un Santo para una Ciudad. Ensayo de Antropologia Ur-
bana. Ariel, 1997a.
. "Entre Ia Gran y Ia Pequena Tradición: Santa Barbada
en Ia Ciudad". In VIANA, L. Diaz G. y Montes, M. Fernández (coords.).
Entre ia paiabra y ei texto. Probiemas en ia interpretación de Fuentes
Oraiesy Escritas. Oiartzun (Guipuzkoa) Sendoa & Madrid, CSIC, p. 33-
84, 1997b.
_. "El Origen de Ias Ciudades: Ia Invención de Ia Tradición
en Ávila y Évora". In Recreaciones Etnográficas. Actas dei VIII Congreso
de Antropologia de Santiago de Compostela. Santiago, 1999.
CATEDRA, M. & TAPIA, S. "Imágenes Mitológicas e Históricas dei Tiempo
y dei Espado: Ias Murallas de Ávila". In Poiitica y Sociedad, vol. 25,
Mayo-Agosto, p. 151-183, 1997.
CIANCA, Antonio. i-iistoria de ia Vida, invención, i\/iiiagros y Trasiaciòn de
San Segundo, Primer Obispo de Áviia; y Recopiiaciòn de ios Obispos
Sucesores Suyos hasta Gerònimo i\/ianrique de Lara, inquisidor Gene-
rai de Espafía. Madrid: por Luys Sánchez, 1595.
• A C A R R E T E , Salvador Garcia. Cosas de Aviia. Jirones de su i-iistoria.
Valladolid: Imprenta Castellana, 1923.
DE SETA, Cesare y LE GOFF, Jacques. La Ciudady ias i\/1uraiias. Madrid:
Eds. Cátedra, 1989.
DICKENS, A. G. The Counter-Reformation. Londres: Thames and Hudson,
1968.
FERNÁNDEZ VALENCIA, Bartolomé. Historia de San Vicentey Grandezas
de Áviia. Ávila: Eds. de Ia IGDDA y Caja de Ahorros de Ávila. Fialho,
Manuel. Vease Antonio Franco, 1992 [1676].
FRANCO, Antonio. Évora iiustrada. Évora: Ed. Nazareth, 1945 [s. XVIII].
GOMEZ, Moreno. "Crônica de Ia Población de Ávila". In Boietin de ia Reai
Academia de ia i-iistoria, CXIII, p. 11-57, 1943.
JORDANOVA, L. J. "Natural Facts: A Historical Perspective on Science and
Sexuality". In MACCORMACK, C. R and STRATHERN, M. (eds.). Nature,
Cuiture and Gender Cambridge: Cambridge University Press,1980.
LAORDEN, E r n e s t o . e i C a s t i i i o deDios. Madrid: Ed. Mundo Hispânico,
1953.
MACCORMACK, C. P & STRATHERN, M. (eds.). Nature, Cuiture and
Gender Cambridge: Cambridge University Press, 1980.
MAYORAL, José. Grandezas de Áviia. Ávila: Magdaleno y Sarachaga, 1888.

271
cátedra, maría. Imaginário - usp, n° 7, pág. 241-272, 2001

ORTNER, S. B. and WHITEHEAD, H. (eds.). SexualMeanings: the Cultural


Construction of GenderandSexuallty. Cambridge: Cambridge University
Press, 1982.
p a t r í c i o , Amador. História das Antigüidades de Évora. Évora: Officina da
Universidade, 1739.
PINE, Francês. "Gender". In BARNARD, A. and SPENCER, J. (eds.).
Encyclopedia of Social and Cultural Anthropology. Londres: Routiedge,
1996.
RESENDE, André de. História da Antigüidade da Cidade de Évora. (3° edición
copiada de Ia segunda de 1576 y enmendada por el autor). Lisboa: Of.
S. T Ferreira, 1783 [1576].
ROYIDIS, Ennnanuel. La Papisa Juana. Madrid: Edhasa, 1977.
RYKWERT, J. La Idea de Ia Cludad. Antropologia de Ia Forma Urbana en el
Mundo Antiguo. Madrid: Hermann Blume, 1985 [1976].
UZABAL, José Moreno Guijarro de. La Azuzena deiAdaja. Madrid: Innprenta
y librería de D. Eusebio Aguado, 1860.
VALDEON BARUQUE, J. "Reflexiones sobre Ias Murallas Urbanas de Ia
Castilia Medieval". In DE SETA, C. y LE GOFF, J. (eds.). La Cludadylas
Murallas. Madrid: Cátedra, p. 67-87, 1991.
WEINSTEIN, D. & BELL, R. Saints and Sodety Chicago: The University of
Chicago Press, 1982.
ZUMTHOR, P. La Medida dei Mundo. Representadón dei Espado en Ia
EdadMedia. Madrid: Cátedra, 1994.

272
évora, iolanda niaria alves. Imaginário - usp, n° 7, pág. 273-288, 2001

a metáfora do nacional

Iolanda Maria Alves Évora

Para lá da encosta
(...)
Mais acolá.
(...)
Não é aqui ainda.
É mais além
Além
Da árvore ao longe
É mais além.

Jorge Barbosa, in Poesias, 1989.

• o fato de o país ser formado


apresentação por pequenas ilhas somado às
condições de seca teriam difi-
Quando Cabo Verde se tornou independente em 1975, a emigração cultado o processo de
já fazia parte da história do país há pelo menos um século e as mobilização política da popula-
ção e a realização da luta ar-
principais comunidades cabo-verdianas no exterior se encontravam
mada em solo nacional. As
instaladas em países como Estados Unidos da América, Portugal, matas da Guiné-Bissau se
França, Holanda, Angola, Países Baixos e Itália. A história do país mostraram mais propícias
confunde-se com a história da sua emigração/imigração e, como como palco para o embate con-
tra as tropas do governo coio-
outros grandes acontecimentos coletivos, grande parte das ações
nial português levada a cabo
políticas orientadas para o projeto de autonomia e independência pelo PAIGC, Partido Africano
ocorreram na diáspora, por iniciativa de cabo-verdianos emigran- pela Independência da Guiné e
tes^ ou estudantes na metrópole (Silva, 1995; Margarido, 1994). De Cabo Verde.

273
évora, iolanda niaria alves. Imaginário - usp, n° 7, pág. 273-288, 2001

igual modo, após a independência, o governo e o partido no poder,


de inspiração marxista-leninista, encontram resistências quando as
suas decisões^ não coincidiam com as aspirações dos emigrantes.
2 Por exemplo, sobre temas
Nesses casos, as reações vêm tanto do exterior como dos que, no
como o processo de reforma
agrária e a nacionalização de
arquipélago, representam os interesses dos emigrantes. Estes cons-
terras e dos reduzidos empre- tituem o principal contingente populacional do país e, ao enviarem a
endimentos produtivos do país. ajuda financeira aos seus familiares, contribuem significativamente
para o equilíbrio econômico num país assolado por secas cíclicas^.
A importância da migração fica evidente também quando, na vigên-
2 Estiagens. secas e tomes são
cia do regime pluripartidário, a participação das comunidades no
traços indissociáveis da vida in- exterior se mostra decisiva nos resultados das eleições. Os emi-
sular e sua ocorrência tem sido grantes e a emigração têm destaque nos programas dos partidos
registrada desde 1580, com di- em disputa que prometem facilitar as condições para o investimento
ferentes períodos de crise nos
dos emigrantes no país e garantem o melhor desempenho das suas
séculos seguintes e interrup-
ção do registro de mortes ape- representações no exterior junto às comunidades cuja participação
nas a partir de 1970. no diversos pleitos tem sido decisiva.
Mas é sobretudo na poesia e na novelística que a migração cabo-
verdiana melhor é descrita como constitutiva de um traço importan-
te na formação da identidade nacional e participante na moldagem
das maneiras de ser, de estar, de olhar o mundo à volta e imaginar
o mundo mais longe. Ali projeta-se uma problemática real, com per-
sonagens emprestando a sua carga emocional e nostálgica deter-
minada pela insularidade, pelo apego à terra, pela ambivalência do
mar e pelo dilema do partir e do ficar. Nos romances, por exemplo, a
substância narrativa valoriza as relações intercontinentais, o espa-
ço do Eldorado que é o lugar-esperança de uma ressurreição eco-
nômica e da redenção de um passado de penúria e de misérias. As
vivências dos personagens dão espessura humana e cultural, mos-
tram as ilhas como as bases para partirmos e Cabo Verde como o
destino, quer dizer, o lugar do qual é necessário partir para se re-
gressar, para construir, para progredir (Baltasar Lopes, 1993). A li-
teratura e a poesia mostram como a emigração alimenta a ilusão de
todo o cabo-verdiano de conhecer o mundo por intermédio daque-
les que partiram, pelas cartas que vêm de longe e pelo sentimento
obsessional de lugares melhores (Lopes, 1936: 5). No campo da
cultura destacam-se as produções musicais, literárias, do folclore e
da culinária que parecem ter o poder de anular as distâncias e de
favorecer a constituição de uma geografia sentimental que aproxi-

274
évora, iolanda niaria alves. Imaginário - usp, n° 7, pág. 273-288, 2001

me emigrados/imigrantes e as ilhas. Em todos os campos da vida


social, constroem-se acontecimentos, coisas, espaços e momentos
em que parcelas das histórias das emigrações pessoais são com-
partilhadas com os outros, mas, sobretudo, privilegiam-se os espa-
ços e os eventos em que melhor se revela "a voz do arquipélago
chamando tenazmente os emigrantes para o canto do mundo de
onde partiram" (Lopes, 1993:96).

introdução
Em geral, a independência de Cabo Verde é pensada no seu caráter
de ação política e ideológica e, sobre o fato migratório cabo-verdiano,
o campo tradicional de conhecimento destaca as causas endógenas
(econômicas e climáticas) e seus efeitos (fome e seca). Abordadas
pelos seus aspectos simbólicos, ambas apresentam múltiplas signifi-
cações que se referem, em particular, ao que move as pessoas, aos
laços e relações que criam e às explicações que encontram no mun-
do, ao mesmo tempo que lhe conferem significados. Apontam, ainda,
para a relevância do mundo cotidiano e a força dos processos não-
hegemônicos e das resistências, esclarecendo, a nosso ver, sobre as
especificidades dos termos nacional, identidade nacional e cabo-
verdianidade quando atribuídos ao emigrante/imigrante.
Contudo, anos após a proclamação da independência, não é de todo
consensual que as mudanças propostas na época tenham alcançado
as mentalidades, as estruturas pelas quais agimos e as ações no coti-
diano (Lesourd, 1995; Margarido, 1994; Silva,1995). Questiona-se tam-
bém, se o processo de autonomia nacional teria atingido o objetivo de
desmontar os símbolos que remetem a Cabo Verde colônia, ou se, ao
contrário, sob a aparência ruidosa da inovação das estruturas, foram
mantidas as regularidades e as recorrências que fazem da história pouco
mais do que um constante recomeço. Pelo raciocínio da regularidade
histórica, também o fato migratório não teria causas ou momentos dis-
tintos ao longo da história, tratando-se seus diversos modos de apre-
sentação apenas de faces diferentes, reveladoras das mesmas crises,
quer dizer, de acontecimentos que não teriam um alcance histórico
prolongado por se submeterem rapidamente à busca das regularida-
des e da preservação do nosso modus vivendi.

275
évora, iolanda niaria alves. Imaginário - usp, n° 7, pág. 273-288, 2001

Ao assinalar-se o momento histórico em que independência e migra-


ção se correspondem, tema sobre o qual têm se debruçado diversos
autores contemporâneos (Lesourd, 1995; Margarido, 1994; Silva,
1995; Cahen, 1995; Vieira, 1998), é introduzida uma perspectiva tem-
poralmente significativa, pois sugere o desenrolar de um movimento
histórico contraditório, não-linear, que engendra continuamente no-
vas solicitações existenciais, sociais, políticas e científicas, em opo-
sição às justificativas que se mantêm presas às mesmas causas, con-
seqüências e significados da independência e da migração para os
cabo-verdianos. A nosso ver, traduz-se assim a dúvida de que, se a
história é feita de regularidades e permanências, pelo menos o nosso
olhar sobre os processos sociais pode mudar ao longo do tempo. E
só é novo o nosso olhar, se novo for o objeto que se olha, porque não
poderá haver mudança no olhar sem que nada tenha mudado no
objeto do olhar, ao mesmo tempo que este não pode ser pensado
sem o olhar que o olha (Santos, 1993).
Diante disso, os entendimentos que, no período da independência,
sustentaram propostas de mudanças nos campos social e político,
resultaram dos entrosamentos e conflitos de interesse dos diferen-
tes atores sociais (e suas posições sociais) entre si e do processo
pelo qual as propostas de autonomia passaram pelos crivos da per-
cepção e da interpretação e pelos caminhos do pensamento que
vinculam ou não os acontecimentos sociais. De uma vez por todas,
acrescenta-se à dimensão política do acontecimento da indepen-
dência, o fato de ser um marco na intenção de se estabelecer (no-
vas) posições ideais para a cultura, a religião e as produções soci-
ais, em geral, e de se introduzir outros fundamentos existenciais,
opostos aos que vinculam a existência de um ser colonizado. Con-
sidera-se também a evolução conflitiva que teve por se apresentar
como um projeto emancipador, expansivo e renovador, destaca-se
o seu poder de imanar valores, regras, trajetórias, sentimentos e de
sustentar a criação de práticas, do raciocínio prático e dos fazeres
do dia-a-dia realizados pelas pessoas.
Do mesmo modo, pela perspectiva que considera a migração, seus
múltiplos desdobramentos dentro e fora do país e em relação a outros
processos sociais importantes, é possível destacar as construções pelas
quais adquire um caráter duradouro e generalizado, tornando-se um

276
évora, iolanda niaria alves. Imaginário - usp, n° 7, pág. 273-288, 2001

dado estrutural ao institucionalizar-se pela relação intrínseca entre um


mundo de emigração e um mundo de imigração e ao definir que cada
lugar de onde se ausenta ou para onde se vai, torna-se um símbolo
poderoso na vida das pessoas e norteia as suas práticas.

estado-naçâo e migração
As estatísticas confirmam que há mais cabo-verdianos no exterior
do que no p a i V , e, portanto, por um paradoxo singular, sustenta-se
Dados preliminares do Insti-
a afirmação de que Cabo Verde "existe porque persiste a emigra-
tuto Nacional de Estatística in-
ção" (Saint-Maurice, 1997: 47), tais as implicações deste fato para dicavam, para o ano 2000,
a vida do país, em particular, para o seu universo sociológico e cul- mais de 500.000 cabo-ver-
tural, forjado em todos os espaços, objetiva e simbolicamente, ocu- dianos emigrantes e 434.263
habitantes em Cabo Verde.
pados pela migração. A descoincidência entre a territorialidade ge-
ográfica (dez ilhas e 4033 km^) e o nacional (as ilhas e a diáspora),
contudo, contraria o pleonasmo prático e teórico da modernidade a
propósito do Estado e da soberania nacional, apoiado na presun-
ção de que todas as prerrogativas atribuídas ao Estado moderno se
realizam na área delimitada onde este reivindica o monopólio dos
meios de coerção e o uso deles (Bauman, 1999).
Porém, é por essa singularidade do caso de Cabo Verde que ficam
evidentes as articulações entre a independência (e a criação do
Estado-nação) e a migração e a possibilidade de ambas se informa-
rem mutuamente; para que o Estado que nasce com a independên-
cia se legitime como representante de todos os cabo-verdianos, e,
portanto, se vincule à nação, é necessário que atue além-fronteiras
e que as noções sobre o real espaço de vida dos nacionais se fir-
mem numa perspectiva de transcendência às fronteiras do arquipé-
lago e num espaço social que existe dentro dos limites legais de
muitos Estados-nações^ As circunstâncias em que nasce o Estado-
5 Não nos referimos a uma in-
nação de Cabo Verde não coincidem com as dos Estados-nações,
tervenção que pretenda desafi-
tradicionalmente, comunidades rigidamente organizadas e fecha- ar a ordem nacional dos países
das, com populações homogêneas e fixadas ao solo, cuja identifi- em que se encontram os cabo-
cação cria automaticamente o grupo dos não-nacionais e as restri- verdianos; a participação é, so-
bretudo, em relação às formas
ções específicas a que o deslocamento dos emigrantes deverá obe-
de estar no exterior que estão
decer (Arendt,1989). Em Cabo Verde, o Estado criado com a inde- implicadas com a ligação do
pendência imediatamente reafirma a homogeneidade de uma po- migrante com a sua origem.

277
évora, iolanda niaria alves. Imaginário - usp, n° 7, pág. 273-288, 2001

pulação dispersa pelo mundo e que, apenas simbolicamente, pode reali-


zar as restrições que seriam impostas pela fixação a um mesmo solo.
Em síntese, com a independência e a extensão da nacionalidade aos
emigrantes, procura-se constituir uma unidade que desafia o critério
da proximidade geográfica e, também, criar um grupo fortemente iden-
tificado e identificável por causa de simbolizações comuns dos seus
membros. Para que o Estado possa proclamar-se legitimamente como
o representante dos emigrantes/imigrantes, e estes se reconheçam
como por ele representados, adotam-se estratégias que garantam o
reforço do prolongamento dos elos entre o "eu" do migrante e a nação,
num espaço muito mais alargado do que aquele fornecido pelos limites
insulares. Para isso, procura-se o reforço de uma mesma identidade
com base na homogeneidade cultural-lingüística, social, econômica,
política e religiosa que pretende repôr a ilusão de uma ordem nacional
perfeita, sem as conseqüências drásticas da divisão e da diversidade
impostas pela migração. Certamente que estas tentativas de unidade
fazem parte da história da migração cabo-verdiana, mas, com a inde-
pendência, busca-se o integrismo nacional e a submissão das ausên-
cias (que sempre se querem e se acreditam provisórias) à competên-
cia e à autoridade do Estado, pois o ideal a ser atingido refere-se a
uma nação indivisa, sem a imperfeição que a ausência dos seus naci-
onais — pessoas — impõe, sem o perigo que a migração representa
para a afirmação e identidade do Estado e como ameaça para o tripé
formado pelas soberanias militar, econômica e cultural em que se apoia.
Esvazia-se, simbolicamente, a categoria de "ausente", criam-se metá-
foras nacionais em torno do mito do retorno (como um ato desejado e
alcançável por todos), da constituição de uma cultura nacional sem
fronteiras e de uma identidade cultural como sinônimo da identidade
nacional. Este processo exige critérios de afiliação não apenas formais
mas, sobretudo simbólicos porque, explicitamente, pretende-se tornar
as pessoas participantes ou partes de um empreendimento conjunto
de longo alcance e abstração. E mesmo que tal afiliação se refira a um
agrupamento abstrato, deve tornar-se guia da ação e de uma identida-
de pessoal que considere não apenas a história pessoal como a histó-
ria social (Strauss, 1996). Desse modo, estariam garantidas as formas
pelas quais as pessoas se persuadem e são persuadidas a aceitar (e
incorporar) aquilo que está implícito a uma nova condição de Estado e
a fundir a sua identidade (nacional e regional) em relação aos novos

278
évora, iolanda niaria alves. Imaginário - usp, n° 7, pág. 273-288, 2001

objetos e instituições políticas emergentes. Por esta perspectiva, o que


poderá garantir tal afiliação é o fato de a independência e a migração
terem como base as mesmas categorias sociais e políticas, nacionais
e nacionalistas, que orientam os processos de objetivação e
institucionalização das ideologias de Estado e das categorias referen-
tes à migração e estão presentes nas negociações de interesses e de
significados entre classes e pessoas envolvidas.
Ao mesmo tempo, para que a independência, representação de parte
da história objetivada e instituída, se transforme em ação histórica e
seja assumida pelos agentes, é necessário que os investimentos
anteriores destes, portanto, a sua história, os predisponha a inte-
ressar-se por esta parte da história objetivada (a independência), e,
por serem dotados das aptidões necessárias, se interessem pelo
seu funcionamento e estejam aptos a pô-la a funcionar. Pelo mes-
mo processo, a migração, feita história objetivada, não depende de
uma relação de causalidade mecânica entre o "meio" e a consciên-
cia, mas, nos moldes descritos acima, de uma cumplicidade
ontológica entre a história "sujeito" e a história "objeto", uma relação
de pertença e de posse em que o corpo apropriado pela história se
apropria das coisas habitadas pela história, que descreve a migra-
ção cabo-verdiana. As estratégias adotadas, para criar e manter as
noções de nacional, nacionalidade e cabo-verdianidade que ultra-
passem fronteiras, não são apenas políticas, o mesmo podendo ser
dito sobre as categorias pelas quais tais noções são adotadas pe-
los agentes. Significa que esta adoção só se realiza, se se instaurar
a concordância entre o que os agentes são e o que fazem, entre a
sua "vocação subjetiva" (aquilo para que se sentem feitos) e a sua
"missão objetiva" (aquilo que deles se espera), entre o que a histó-
ria fez deles e o que ela lhes pede para fazer (Bourdieu, 1985:87).
Por conseguinte, apenas com a concordância entre os agentes e a
história é que o Estado-nação pode transformar o que era destino
para os cabo-verdianos (a partida e a emigração/imigração) em fa-
tor constitutivo de uma identidade nacional poderosa e retomar os
temas tradicionalmente associados à migração: a saudade, o aban-
dono indesejado da terra-mãe, a vontade constante de retornar e a
solidariedade entre os cabo-verdianos. Procura-se alcançar as prá-
ticas e as mentalidades dos que estão dentro e fora do país e ga-

279
évora, iolanda niaria alves. Imaginário - usp, n° 7, pág. 273-288, 2001

rantir que os imigrantes se identifiquem e sejam identificados pelo


Estado-nação e transmitam o sentimento de nacionalidade aos que
nascem na diáspora.
Entretanto, cabe verificar se as atividades ordinárias dos imigrantes
e as exigências colocadas pelas suas estadias, cada vez mais per-
manentes (embora definidas pela provisoriedade), confirmam a
intencionalidade e a adesão à afiliação pretendida após a indepen-
dência e asseguram as predisposições necessárias para sustentar
as articulações entre pessoas (migrantes) e os objetos e institui-
ções, que são objetivações do fato independência. Uma das dificul-
dades, aponta Strauss (1996), deve-se à participação das pessoas
em diferentes mundos sociais, em grupos extremamente reais, mas
esquivos, se comparados ao grupo da nacionalidade e da imigra-
ção. A nosso ver, estas constatações nos remetem ao princípio
mesmo da história e das condições da migração contemporânea.

a construção do nacional
Na atualidade, é corrente a afirmação de que a transnacionalidade dos
fluxos de capitais faz definhar os Estados-nações e a política que se
baseia na divisão do mundo em nações. A economia, o capital "move-
se rápido o bastante para se manter permanentemente um passo adi-
ante de qualquer Estado (territorial, como sempre) que possa tentar
conter e redirecionar suas viagens" (Bauman,1999: 63). Ao mesmo
tempo, predominam os resultados da denominada globalização que,
longe de realizar a verdadeira humanidade, ao contrário, prioriza a
livre circulação de mercadorias — o trabalhador entre elas —, ao invés
da livre circulação dos homens (Crochik, 2000). As deslocações huma-
nas contemporâneas continuam sendo definidas pelas condições que
garantem a existência dos Estados-nações; a Europa do bloco único da
Comunidade Econômica Européia (CEE) derruba fronteiras alfandegári-
as para os bens e produtos, mas mantém os mecanismos policiais e
políticos que asseguram a manutenção da distinção entre os seus naci-
onais (cidadãos de determinado território) e os não-nacionais, denomi-
nação esta que hoje cabe inteira na categoria dos imigrantes não-co-
munitários. Por seu lado, os mais novos Estados-nações criados pela
descolonização se reconhecem e são reconhecidos como ordens nacio-

280
évora, iolanda niaria alves. Imaginário - usp, n° 7, pág. 273-288, 2001

nais por participarem do processo migratório para o trabalho, oferecen-


do os seus nacionais (que são a maioria dos atuais emigrantes) para
serem a mão-de-obra e os não-nacionais (que são os imigrantes atuais),
necessários às ordens nacionais dos países mais ricos.
Por isso, considera Abdelmalek Sayad que a migração contemporânea
encontra-se perfeitamente integrada à ordem e à lógica da Nação e dos
Estados-nações atuais, sendo mesmo o seu lugar e modo de experiên-
cia e realização; no deslocamento de pessoas, especificamente, na mi-
gração internacional, tudo acontece através da linha de fronteira que
separa o nacional do não-nacional, e, deste modo, é pela razão de Esta-
do que se definem as características próprias à ausência do emigrante e
ã presença do imigrante. Com a independência, por conseguinte, emi-
gração/imigração cabo-verdianas, vertentes solidárias do mesmo fenô-
meno, passam a revelar os interesses de Cabo Verde e cada um dos
Estados de imigração relativamente ao migrante, interesses diversos,
porém fundamentados numa mesma crença a propósito da migração: é
provisória e só se justifica pelo trabalho que o migrante não encontra na
origem e deve realizar no destino. Crença necessária para que se man-
tenha a migração sob restrições, para que não possa se exercer como o
principal oposto do princípio fundador do Estado-nação e, portanto, con-
trariar a sua existência com a presença do imigrante, o não-nacional.

a cabo-verdianidade sem fronteiras


(...) Toda a partida é alfabeto que nasce
todo o regresso é nação que soletra.
(..) Quem não soube
Quem não sabe
Emigrante
Que toda a partida é potência na morte
E todo o regresso
É infância que soletra.

Corsino Fortes
In Pão e Fonema, 1974.

281
évora, iolanda niaria alves. Imaginário - usp, n° 7, pág. 273-288, 2001

A estadia no exterior não deve contrariar a esperança da construção de


um futuro na origem, mas, para isso, é necessário que o migrante se
mantenha estritamente na única definição de si que as ordens nacionais
e ele mesmo (explicitamente) aceitam, quer dizer, como trabalhador e
provisório. Todavia, as presenças cada vez mais duradouras mostram
que a idéia de retorno deve ser compreendida muito mais como uma
categoria que o prevê ao nível fantasmático do que o retorno físico:

"O mito é para o próprio imigrado, mas também para o seu grupo, um
retorno sobre si, um retorno sobre o tempo anterior à emigração, uma
retrospectiva, portanto, uma tarefa de memória que não é apenas uma
ação de nostalgia, no sentido primeiro do termo (...) Se se pode voltar ao
ponto de partida — o espaço se presta a estas idas e vindas —, ao
contrário, não se pode voltar ao tempo úe partida, voltar a ser aquilo que
se era no momento da partida, nem reencontrar os laços e os homens
que se deixou, na forma como foram deixados" (Sayad, 1998: 17).

As estadias mais prolongadas, as redes que mantêm constantes os


fluxos migratórios ameaçam desobstruir a visibilidade mínima que
se espera do imigrante e escapar aos acordos implícitos pelos quais
o imigrante deve realizar uma adaptação no destino que não altere
o equilíbrio social e cultural do lugar onde se encontra. Sobretudo,
contrariam os efeitos esperados em relação a uma identidade naci-
onal e cultural que, no caso aqui mencionado, depende da diáspora
para manter a sua solidez, por ser esse o seu espaço da expressão
maior, construído pela distância, pela dispersão geográfica, esta
criadora de espaços intercomunitários, inventora de um novo arqui-
pélago e de novas formas de aproximação das ilhas. Em defesa da
identidade nacional resistente a fronteiras e distâncias, ter-se-ia o
fato de que fortalece os grupos de imigrantes nas suas lutas e rei-
vindicações cotidianas e sustenta a criação das redes sociais que
representam a experiência de novas configurações sociais. Seriam
também estas redes a expressão da participação dos emigrantes
na estruturação da sociedade civil cabo-verdiana como, por exem-
plo, pela atuação de políticos e técnicos e, também, de uma elite
intelectual e artística que, no exterior, e por intermédio das suas
produções, afirma fortemente a sua pertença à nação cabo-verdiana.

282
évora, iolanda niaria alves. Imaginário - usp, n° 7, pág. 273-288, 2001

Em oposição a esta identificação, que se firma por meio de verdadei-


ras instituições intercomunitárias, c o m e s p a ç o de interação
transterritorial, informal e desestatizada, Michel Lesourd (1984) prefe-
re descrever as comunidades cabo-verdianas no exterior como "ilhas
exteriores", criadoras de novos insularismos em que as particularida-
des de cada ilha são reproduzidas. Neste sentido, como representa-
ção das ilhas, a cabo-verdianidade (que se estenderia aos que se en-
contram no exterior) seria uma manta de retalhos sem relação entre si.
Como vêm apontando alguns estudos sobre comunidades cabo-
verdianas no exterior (Saint-Maurice, 1997; Évora, 1999), a noção da
constituição de múltiplas ilhotas, por conseguinte, dos novos
"insularismos" não se baseia apenas na comparação entre comunida-
des instaladas em diferentes países, mas incluiria de forma muito mais
acentuada os diferentes agrupamentos de pessoas num mesmo país
que se reúnem conforme suas origens geográficas, filiações profissio-
nais, vizinhança, etc. Por esta perspectiva, a insistência numa mesma
categoria nacional para identificar todos os emigrantes coincide com a
categorização indiscriminada de que os grupos de imigrantes (grupos
"étnicos") são alvo nas sociedades de destino. Aqui, os mesmos argu-
mentos de preservação da identidade cultural do imigrante são utiliza-
dos pelas sociedades receptoras para explicar as "diferenças culturais"
e justificar as inserções (que se querem sempre incompletas) dos imi-
grantes (Rudder, 1985). Além disso serviriam para esclarecer sobre a
radical alteridade que existiria entre a "cultura imigrada", esta segunda
natureza, segunda pele da qual não se desfaz, e a rac/ona/zc/ac/e ociden-
tal de que os nacionais dos países desenvolvidos seriam portadores.

Pela perspectiva da defesa da identidade nacional e cultural igno-


ram-se as diferentes origens em termos de classe ou região que
teriam influência nas profundas diferenças internas entre os grupos
na origem e, conseqüentemente, nas formas de adaptação que, por
sua vez, provocam novas diferenças internas de classe, região e
estilos de vida no país de destino. Desconsideram-se as adapta-
ções que o imigrante necessariamente deve realizar na sociedade
que adotou e constrói-se uma imagem ideal, estereotipada e folcló-
rica do imigrante como depositário de uma cultura tradicional, rígida
e simplificada, único traço capaz de identificá-lo e de reconhecê-lo
como sujeito. E por entrar no campo de lutas (econômicas e simbóli-
cas) das interações cotidianas em estado isolado, o imigrante não

283
évora, iolanda niaria alves. Imaginário - usp, n° 7, pág. 273-288, 2001

tem outra escolha senão a aceitação (resignada ou provocante, sub-


missa ou revoltada) da definição dominante da sua identidade ou da
busca da assimilação. Quando a luta é individualizada, e conforme
Sayad (1998), a migração contemporânea confirmou em definitivo o
caráter individualizante das lutas atuais, a assimilação supõe um tra-
balho que faça desaparecer todos os sinais destinados a lembrar o
estigma (no estilo de vida, vestuário, pronúncia) e que tenha em vista
propor, por meio de estratégias de dissimulação ou de embuste, a
imagem de si o menos afastada possível da identidade legítima, que
é a identidade dominante, e os critérios que a constituem como tal. E
na lógica propriamente simbólica da distinção, existir não é somente
ser diferente, mas também ser reconhecido legitimamente como dife-
rente, sendo que a existência real da identidade supõe a possibilida-
de real, jurídica e politicamente garantida, de afirmar oficialmente a
diferença, pois "qualquer unificação que assimile aquilo que é dife-
rente, encerra o princípio da dominação de uma identidade sobre
outra, da negação de uma identidade por outra" (Bourdieu, 1989:129).
Contudo, a concordar com Sayad (1999), para quem não se reside
impunemente num outro país, não se vive morando num outro lugar,
no seio de outra sociedade, de outra economia e num outro mundo,
sem que alguma coisa fique (1999), sem que as ilusões em torno do
nacional e não-nacional não sejam questionadas. É inevitável que o
imigrante se submeta mais ou menos intensamente e profundamen-
te, segundo as modalidades de contato, os domínios, as experiênci-
as e as sensibilidades individuais, às vezes sem se dar conta e
outras em plena consciência dos efeitos. A imigração não acontece
sem deixar marcas, mesmo que se acredite numa integridade for-
mal e numa fidelidade a si próprio, e de que, das marcas, não se
tenha consciência. A par da depreciação, desqualificação e
estigmatização características das condutas em relação ao imigrante,
as comunidades de fixação mais antiga vêm indicando a crescente
reivindicação de um direito pleno no país de destino, o que revela o
fato político da migração e os efeitos políticos da emigração/imigra-
ção que se escondem sob a justificativa do caráter econômico da
deslocação. Expõe, ainda, que, sob a aparência de uma transferên-
cia de mão-de-obra, se transferem cidadãos, indivíduos nacionais,
sujeitos políticos, pessoas, portanto, que após algum tempo, nas-
cem para a imigração, quer dizer, interrogam-se e interrogam sobre
o modo provisório da sua estadia, o tratamento como revogável/

284
évora, iolanda niaria alves. Imaginário - usp, n° 7, pág. 273-288, 2001

excluído/expulsável, a estadia autorizada apenas pelo trabalho e a


arbitrariedade das definições de nacional e não-nacional (Sayad,
1989). As condutas de parte dos migrantes descrevem um desejo
de querer livrar-se das crenças constitutivas da sua condição (a
provisoriedade e o trabalho), confessando-se cada vez mais como
sujeitos de um transplante definitivo e contrariam os acordos entre
os três parceiros (migrante e ordens nacionais da origem e do des-
tino). Destacam também uma maior reivindicação dos imigrantes do
direito de existir em igualdade com o nacional, que é o seu direito
de participar da conflitualidade e da disputa política, que opõem as
classes sociais no país de imigração, e lhes é, sistematicamente
recusada pela sua condição de imigrante e de não-nacional.
Além disso, dirigem a atenção para as sociedades receptoras que
se recusam a inscrever na sua memória coletiva o movimento pelo
qual, lentamente, imigrantes e suas famílias se inscrevem no tempo
social da sociedade que habitam. A história da imigração não cos-
tuma ser incluída como parte da história da sociedade, ao contrário
das primeiras grandes deslocações de pessoas da Europa para
outros continentes, descritas como fatos históricos e heróicos para
a construção do Novo Mundo. Tudo se passa como se a imigração
não tivesse um momento fundador e como se fosse ilegítima a di-
mensão histórica que descreve a seqüência temporal da mudança
espacial, social e institucional do ponto de vista do imigrante e que
se justapõe à seqüência temporal da sociedade de implantação,
sem se confundir inteiramente com ela (Bastenier e Dasseto, 1990).
Entretanto, deve-se procurar compreender se as condutas que des-
crevem a vontade de livrar-se das crenças constitutivas da condi-
ção de emigrante/imigrante coincidem com a formação de um novo
senso comum sobre o imigrante e sobre a ordem nacional que con-
duza à legitimação das práticas e experiências do imigrante, até
então clandestinas e ilegais, e sua transformação em atos políticos.
Isto porque, como referimos anteriormente neste trabalho, as or-
dens nacionais ainda têm a seu favor o fato de que, ao contrário do
que se poderia esperar dos efeitos universalizantes da unificação
da economia, as nações e os nacionalismos não desaparecem, pois,
os mecanismos de universalização, que permitem unificar o merca-
do de bens culturais e simbólicos, apenas funcionam, se garantirem
a imposição das normas de percepção e apreciação de determina-

285
évora, iolanda niaria alves. Imaginário - usp, n° 7, pág. 273-288, 2001

dos produtores (Bourdieu, 1989:128). Assim mesmo, para se com-


preender as mudanças no comportamento das ordens nacionais,
acompanhar a tendência cada vez maior na explicitação das con-
tradições da emigração/imigração e das reivindicações por um lu-
gar exato nas duas sociedades, nos dois conjuntos nacionais entre
os quais o migrante se divide e é dividido.
As práticas e as estratégias, que parecem contrariar a idéia do nacio-
nal além-fronteiras sobreposta às diferentes realidades cotidianas na
imigração, não são, contudo, totalmente conscientes para o imigran-
te. Muito menos têm a intenção de revelar que em Cabo Verde se
desconhecem as novas possibilidades de condutas e de mudança
nas mentalidades introduzidas na imigração. Mas, se por um lado, a
identidade nacional e também a não-nacional, a referência a um lu-
gar original e a uma cultura são identificações necessárias aos sujei-
tos, por outro, obscurecem outras identificações apenas aparente-
mente menos importantes, além de minimizar as mudanças que ocor-
rem e reduzir a consciência de uma mudança significativa, que é uma
questão simbólica. Por aquelas identificações, ficam definidas quais
as mudanças que merecem ser consideradas importantes ou triviais
e periféricas, e ignoram-se as identidades que, na imigração, resul-
tam do modo pelo qual as pessoas se tornam implicadas com outras
pessoas e são afetadas mutuamente por meio dessa implicação.
Viver, manter-se em outro lugar e sob circunstâncias diferentes im-
plica em acrescentar novas combinações, resignificar o "ser cabo-
verdiano" e construir outro tipo de relação com as ilhas. Significa,
sobretudo, a possibilidade de que o nacional seja, afinal, a metáfora
da reivindicação do direito de existir como sujeito político. E para
que haja a verdadeira mudança, é necessário que esta resulte de
uma luta coletiva pela subversão das relações de força simbólicas,
não apenas para suprimir as características estigmatizantes ou cor-
rigir aquilo que em si o imigrante vê como desfavorável, mas visan-
do destruir a tábua de valores que constitui essas características
como estigmas (Bourdieu, 1989). Quando a luta é coletiva, a verda-
deira subversão é a apropriação das vantagens simbólicas associa-
das à identidade legítima, portanto, não apenas a (re)conquista da
identidade, mas a reapropriação coletiva do poder sobre os princí-
pios de construção e de avaliação da sua própria identidade e o
poder de definir os princípios de definição do mundo social.

284
évora, iolanda niaria alves. Imaginário - usp, n° 7, pág. 273-288, 2001

Resumo: Este artigo trata da relação entre a migração cabo-verdiana


e o fato independência. Para isso, consideramos a singularidade de
um Estado-nação cuja formação e legitimação se apoiam na idéia
de uma nação que existe e é simbolicamente experimentada além-
fronteiras e encontra a sua definição com a participação dos emi-
grantes. Discutimos sobre a utilização de estratégias para manter a
cabo-verdianidade e a identidade nacional em relação às práticas
dos imigrantes, cujas estadias prolongadas no exterior favorecem a
reivindicação da legitimidade da sua presença, contrariando a sua
definição como não-nacional, trabalhador-provisório e expulsável.

Palavras-chave: migração; Cabo Verde; Psicologia Social.

Abstract: This article is about the Capeverdian migration process


and its relation with the independence event. The singularity of the
nation-state of Cape Verde is that its formation and legitimation is
based on the idea that the nation exists symbolically beyond the
frontiers of the country, with the emigrants' participation. It is aiso
considered the use of strategies to keep the "caboverdianidade", that
which is proper of Cape Verde society, and the national identity related
to the immigrants' practices and their long permanence in foreign
countries make them claim for the legitimity of their presence in
these countries facing in this way, the so used definition of non-national
and non-permanent worker.

Key words: migration; Social Psychology; Cape Verde.

bibliografia
ARENDT, H. "O Declínio do Estado-Nação e o Fim dos Direitos do Ho-
mem". In Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras,
1989.
BARBOSA, J. Poesias Praia- Cabo Verde: Instituto Caboverdiano do Livro, 1989.
BASTENIER,E.; DASSETO, F. (eds.). "Immigrations et Nouveaux Pluralismes
— une Confrontation de Sociétès". Bruxelles: Editions Universitaires/
De Boeck Université Ed., p. 11-39, 1990.
BAUMAN, Z. "Depois do Estado-Nação, o quê?". In Giobaiização. As Con-
seqüências i-iumanas. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1999.

287
évora, iolanda niaria alves. Imaginário - usp, n° 7, pág. 273-288, 2001

BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Lisboa: DifeI, 1989.


CAHEN, M. " A Ia Recherche de Ia Nation". Lusotop/e, p. 71-74, 1995.
CROCHICK, L. "A Visibilidade Discriminada". Mimeografado, 2000.
ÉVORA, I. "Desatando Nós, Refazendo Laços". Relatório de pesquisa CA-
PES. Mimeografado, 1999.
FORTES, 0 . Pão & Fonema. Lisboa: Sá da Costa, 1980.
GIARD, L. "História de uma Pesquisa". In CERTEAU, M. A Invenção do
Cotidiano — Artes de Fazer L Petrópolis: Vozes, 1994.
LESOURD, M. "Insularismes et Developpment en République du Cap-Vert",
Lusotopie— Geopoiitiques des i\/íondes Lusopiiones, n° 1-2, p. 113-133,
1994.
LOPES, B. Ciiiquiniio. A.L.A.C., 1993 (7^ ed.).
MARGARIDO, A. "Pour une Histoire des Géopolitiques Culturelles des íles
du Cap Vert". Lusotopie — Géopoiitiques des l\/londes Lusopiiones, n°
1-2, p. 103-112, 1994.
RUDDER-PAURD, V. "L^Obstacle Culturel: Ia Différence et Ia Distance",
L'Homme et Ia Sociétè, n° 77-78, p. 23-49, 1985.
SAINT-MAURICE, A. identidadesReconstruidas — Cabo-VerdianosemPor-
tugai Oeiras: Celta, 1997.
SANTOS, B. S. "Modernidade, Identidade e a Cultura de Fronteira". Tempo
Sociai São Paulo, 5 (1-2), p. 31-52, 1993 (editado em nov. 1994).
SAYAD, A. A imigração. São Paulo: Edusp, 1998.
. "Le Retour, Élément Constitutif de Ia Condition de L'lmmigré".
i\/ligrations, Société, vol. 10, n° 57, p. 9-45, 1998.
. "Immigration et 'Pensée d'État'". Actes de Ia recherche: Délits
d'immigration, n° 129, septembre, p. 5-14, 1999.
. "'Coúts' et 'Profits' de L'lmmigration", Actes de Ia recherche:
science et actualité, n° 61, mar., p. 79-82, 1986.
SILVA, L. A. "Le Rôle des Emigrés Dans Ia Transition Démocratique aux
íles du Cap Vert". Lusotopie — Transitions Libéraies en Afrique
Lusopiione. Pahs: Karthala, p. 315-322, 1995.
STRAUSS, A. L. Espeiiios e i\/1áscaras: a Busca da identidade. São Paulo:
Edusp, 1999.
VIEIRA, F. "La 'Caboverdianidade', entre Mythe et Realité — Déconstruction
Identitaire ou Condition Minoritaire Parmi les Migrants Capverdiens en
Europe?. Lusotopie, p. 55-65, 1998.

288
malishev, mijail. Imaginário - usp, n° 7, pág. 289-314, 2001

ei reconocimiento y Ia identidad humana

Mijail Malishev^
^ Mijail Malishev, doctor en
filosofia, profesor-investigador
de Ia Universidad Autônoma
el hombre no tanto teme morir, sino morir siendo dei Estado de México.
un ser insignificante
cQué seria de nosotros sin Ia idea de que cada quien significa algo
en esta v i d a y q u i z á s e g u i r á s i g n i f i c a n d o nnás allá de su
consumación? Sin duda, poca cosa. Nuestra existencia languidecería
si el deseo de destacar, poseer importancia o simplemente ser útil
para los demás no poblara nuestras mentes y no agitara nuestros
sentimientos. Si por milagro desapareciera Ia aspiración a ser
reconocida, nuestra vida ya no tendría ningún estímulo y perderia
todo significado. ^Acaso es vida Ia monótona existencia de un ser
quien no tiene ningún deseo, a quien no le importa nada y quien
cree que no le importa a nadie? Seria como si una planta estuviera
en condiciones de pensar y dijera: "vivo porque vivo; no tengo otro
motivo para vivir que el de vivir". La vida empieza cuando ocurre
algo que tiene alguna importancia para nosotros, cuando sobreviene
o adviene el reconocimiento. Nos damos cuenta de nosotros mismos,
sólo cuando disponemos dei reconocimiento de quiénes somos. Si
bien es cierto que el que vive siente su vida como algo único en su
peregrinar provisional en este mundo, y de hecho Io es, pero sólo
por el valor que le da a su vida y no simplemente por haber nacido.
Un ser humano en el que está atrofiado valor de si mismo existe
como noción-limite.
El reconocimiento es Io que da el valor a Ia tarea y el cumplimiento
de ésta confirma Ia confianza depositada en el aspirante que se

289
malishev, mijail. Imaginário - usp, n° 7, pág. 289-314, 2001

esmera a merecer Ia estima. El reconocimiento representa también


Ia confirmación de Ia promesa en capacidades, hábitos, talentos y
destrezas de su portador quien está dispuesto a comprobarlos hoy
o manana porque ayer ya los ha comprobado. Una persona, a fin de
experimentar su identidad y su valor interior, ha de sentir una
progresiva continuidad entre aquello que ha Negado a ser durante
largos anos de su pasado y aquello en que promete convertirse en
un futuro anticipado; entre aquello que concibe como ser ella misma
y aquello que percibe que otros ven en ella y esperan de ella.
Ya desde el primer dia de su nacimiento, el hombre entra en una red
de relaciones interpersonales y, por Io tanto, en un mundo social. El
nino tiene necesidad de los otros y también una predisposición para
establecer el contacto con ellos. La dependencia biológica dei bebê.
Ia necesidad de ser alimentado y atendido no elimina Ia necesidad
de ser reconfortado: el nino mira el rostro de su madre antes de
succionar su pecho y a Ia atención y al cariho le responde con su
sonrisa que es Ia primera manifestación inconsciente de satisfacción
y de gratitud por ser reconfortado. En el bebê el reconocimiento
forma una base de sentimiento de identidad, con el que se combi-
nará más tarde el sentimiento de llegar a ser Io que otros confían
que uno ha de ser. C o m o dice Bajtin, el valor mismo de Ia
personalidad dei nino en su totalidad tiene carácter de préstamo: no
se vive de una manera inmediata, sino que es construído por él.
Todos n o s o t r o s , de uno o de otro m o d o , e x p r e s a m o s una
preocupación relacionada con el valor de nuestro ser. Esta inquietud
es universal, aunque Ias vias y formas en que se exprese varíen
según una cultura o una época histórica determinada. Al introducir
en nosotros Ia tensión patética. Ia aspiración a superamos y alcanzar
nuestras metas, el reconocimiento nos recuerda que Ias barreras
sociales, aunque existan, son fluidas; Ia jerarquía podría ser
trastocada y Ias distancias entre los superiores y los inferiores su-
primidas; los esfuerzos dirigidos para destacamos hace posible Ia
misma justicia que se resume en Ia fórmula: dar a cada cual Io suyo,
es decir, según sus méritos. El valor que otorgamos a nuestra persona
y el reconocimiento de los demás se conjugan: somos Io que somos
gracias a nuestros méritos aprobados por los otros. El reconocimiento
dei significado de nuestro ser constituye Ia premisa existencial de

290
malishev, mijail. Imaginário - usp, n° 7, pág. 289-314, 2001

nuestra coexistência con los demás. Se puede suponer que Ia mirada


solicitante dei bebê que busca Ia aprobación en Ia mirada recíproca
de su madre no es algo casual, sino que representa un embrión de Ia
necesidad en el reconocimiento al que, de uno u otro modo, recurre,
consciente o inconscientemente, cualquier ser humano para ser re-
confortado. El hombre, por muy cierto que pudiera estar de sus méri-
tos, está roído por Ia inquietud de obtener un reconocimiento y para
ello busca Ia aprobación de sus congêneres. El reconocimiento dei
otro me funda en mi identidad: no es sino en Ia mirada estimativa dei
otro que me siento "yo mismo". Si vamos a observar atentamente Ia
conducta de Ia gente que nos rodea, pronto descubriremos un matiz
suplicante en Ia mirada de todo aquel que ha terminado una empresa
o una obra, o que se entrega simplemente a cualquier gênero de
actividad. ^Y qué? ^Y cómo?, nos dice su mirada interrogante. Al
hablar, Ia gente normalmente experimenta una satisfacción honda y
duradera en Ia medida en que se le permite discurrir sobre sus pla-
nes, logros o acerca de Ias cosas que está haciendo. Sólo este tema
nunca le aburre y le deja bien satisfecha de sí misma. De modo
semejante, si le pasa algo bueno, se apura compartir su alegria con
sus próximos, suponiendo que éstos se alegrarán junto con ella de
sus logros. Por solitário que sea, nadie puede vivir, pensar, razonar
sin compartir el reconocimiento dei otro ser humano.

El significado social de nuestra persona nos domina a tal punto que


nos pareciera que cambiamos de ser cuando cambian nuestra
posición social y Ia gente con quien tratamos. Pero el reconocimiento
social y Ia importancia de una persona en el presente a veces no
nos habla con claridad dei valor real de ésta. Lo que un hombre ha
podido hacer históricamente, los efectos de su acción, su notoriedad,
dependen, en buena parte, dei futuro que es un censor o más bien
un estricto juez: evalúa Ia expresión, califica el esfuerzo, aprueba el
resultado y otorga el prêmio o el castigo en correspondência con Ia
escala de valores de perfección, excelencia o virtud. El presente
siempre transforma el pasado a Ia luz de los valores dei futuro. El
pasado no es más que una reinterpretación constante a partir de lo
que se está creando, pensando o sonando en el presente. A veces
estamos inclinados a reconocer, sin reflexión crítica, los méritos y
cualidades sobresalientes de aquellos que dominan Ia escena polí-
tica, intelectual o artística de nuestra época. Por muchos aríos, por

291
malishev, mijail. Imaginário - usp, n° 7, pág. 289-314, 2001

ejemplo, nos remitían a Marx. Era casi una obligación citar a Marx,
referirse a él, contar loa a su doctrina o de otras formas rendirle lealtad
y homenaje. Luego, después de Ia caída dei socialismo real, su nombre
poco a poco se ha empanado. Lo mismo sucedió con el nombre de
Lenin. LIegó Ia época de transmutación de los valores, y el censor dei
reconocimiento histórico les bajó dei pedestal de los "dioses" a un
nivel de pensadores y políticos, en mejor caso, destacados, pero no
más. Dicho sea a propósito, el mismo Marx dijo una vez que "el muerto
se agarre al vivo". Y esto es verdad, ya que el vivo no estaria vivo si
no estuviera agarrado por el muerto. El hombre sin Ia memória y sin
tradición es un presumido que no reconoce ningún parentesco,
aunque, en realidad, viva por Ia renta dei capital que le han dejado
sus antepasados. Pero el vivo tampoco seria vivo si estuviera total-
mente dependiente dei muerto. El vivo no sólo es un deudor, sino un
creador: remodela y reinterpreta el pasado a partir de su imaginario y
el significado de los valores presentes. Los que ya murieron continúan
a comunicarse con nosotros a través de sus legados espirituales. De
una u otra manera dependemos de su patrimonio, y en cada
generación tenemos que elaborar una actitud consciente e idônea a
su herencia espiritual, evitando tanto Ia confianza ciega en su autoridad
como el desprecio nihilista a sus ideas y valores.
La función simbólica de perpetuación dei significado de Ia existencia
individual y, por lo tanto, de su reconocimiento más allá de su vida
no es sólo una prerrogativa de Ia religión; Ia cultura también le otorga
al hombre determinados símbolos de "inmortalidad" lo que le da un
cierto c o n s u e l o y alivio contra Ia angustia p r o v o c a d a por el
sentimiento de su insignificancia ontológica. Así que Ia perpetuación
cultural por médio de Ia actividad creadora es el lado inverso dei
terror ante Ia muerte. Se puede decir que Ia cultura es Ia creación
de obstáculos y contratiempos simbólicos en el camino que le Neva
al ser humano a su muerte. En cierto sentido, afirma Ernest Becker,
"Ia cultura misma es sagrada, ya que ésta es una "religión" que
asegura de alguna manera Ia perpetuación de sus miembros". Por
eso, "el hombre realmente no teme tanto su extinción, sino morir
siendo insignificante".^ Guando nos afligimos por Ia muerte de un
^ Ernest Becker. La lucha con-
comparíero o un pariente imaginamos que estas personas ya nunca
tra el mal. F. C. E. México.
1992. p. 22. van a gozar de alegria que nos da Ia vida y Ia comunicación con
nuestros semejantes, que sus personas no van a ocupar ningún

292
malishev, mijail. Imaginário - usp, n° 7, pág. 289-314, 2001

lugar en el pensamiento de los vivos, sino ser borrados en poco


tiempo de Ia memória de todos con quien ellos tenían algún trato,
salvo a algunos parientes o amigos más cercanos. "Parece que el
tributo de nuestra condolência", advierte con tino Adam Smith, "se
les debe doblemente, ahora que están en peligro de ser olvidados
por todos, y por fútiles honores que rendimos a su memória, procu-
ramos, para nuestra propia desdicha, mantener despierto artificial-
mente nuestro melancólico recuerdo de su desventura"^. La muerte
^ Adam Smith, Teoria de los
de nuestros prójimos nos arroja en el estado de aflicción, porque
sentimientos moraies. F. C. E.
nuestra imaginación asocia al cambio que les ha sobrevenido a los México, 1979, p, 39-40.
muertos nuestra conciencia de este cambio. Nos colocamos en su
lugar y reconocemos que ningún amor, ninguna simpatia pueden
confortarlos a excepción, quizá, de su reconocimiento en Ia memória
colectiva de Ia generación actual o Ias generaciones venideras. Ten-
demos a ver en el futuro reconocimiento el único remedio para sal-
var a los que ya se fueron dei olvido absoluto. Queremos salvarlos
en nuestra memória, siquiera en nuestra memória.
Tanto Ia vida como Ia muerte no tienen para el ser humano un signi-
ficado senciliamente biológico, "sino que ante todo pertenecen a un
registro simbólico que opone contra los atributos de Ia segunda
(finitud, desaparición, olvido, soledad, insensibilidad, incomuni-
cación, esterilidad, igualación, etcétera) sus negaciones frágiles pero
enérgicas: perpetuación, memória, companía, reconocimiento,
expansión y diversidad sensible, discurso, progenie, jerarquía, mé-
rito, etcétera""^. Este registro simbólico, que Cornelius Castoriadis Io
^ Fernando Savater, El
denomina como significación imaginaria social, implica que Ia
coníenido de Ia felicidad.
humanidad tiene Ia oscura experiencia dei abismo que se impone a Aguilar México, 1997, p. 144.
ella. Al mismo tiempo los seres humanos no poseemos disponibilidad
de aceptar senciliamente esa experiencia y respondemos a su
incapacidad de reconciliamos con el fin absoluto con Ia fe en Io
trascehdente. La necesidad en Ia religión, por consiguiente, surge
como el rechazo de "los seres humanos a reconocer Ia alteridad
absoluta, el limite de toda significación establecida, el envés
inaccesible que se constituye en todo lugar al que se Nega, Ia muerte
que mora en toda vida, el absurdo que rodea y penetra todo senti-
do"^ En todas Ias sociedades los registros simbólicos reúnen Ia
5 Cornelius Castoriadis, Los
afirmación y Ia ocultación de abismo dei no-ser. La afirmación en Ia domínios dei hombre. Gedisa,
medida en que tienen en cuenta Ia experiencia de envés insondable Barcelona, 1998, p. 187.

293
malishev, mijail. Imaginário - usp, n° 7, pág. 289-314, 2001

de toda cosa, dei abismo sin fondo y dei tiempo como el antípoda de
toda Ia repetición. Ocultación en Ia medida en que Ia muerte y todos
sus atributos simbólicos procuram un simulacro en Ia imposibilidad de
pensar en el no-ser. La religión realiza y satisface a Ia vez Ia experiencia
dei abismo y Ia negativa de aceptarlo, es un "compromiso que conci-
lia Ia imposibilidad en que están los seres humanos de encerrarse en
el aqui y ahora de su "existencia real" con Ia imposibilidad, casi igual,
de aceptar Ia experiencia dei abismo"®. La voluntad dei sentido, que
o ibid, p. 188. encarna en nuestra aspiración a ser reconocido después de Ia
muerte, no niega nuestra ausência y no nos traslada a "otra parte",
sino nos perpetua en el aspecto simbólico y nos garantiza cierta
duración en Ia memória de Ias generaciones venideras. De vez en
cuando representamos en nuestra imaginación nuestra ausência e
intentamos prever algunas huellas dei recuerdo en Ia memória de los
que estarán presentes según Io que creemos merecer. Los poderes
de Ia imaginación orientados por el deseo de reconocimiento nos
animan; Ia conciencia de ser alguien, de tener alguna importancia en
esta vida nos proteja contra disolución en el abismo dei no-ser. Pero
este carácter público dei reconocimiento, que se manifiesta en el deseo
de ser recordado después de Ia consumación de nuestro existir, no
debe ocultamos su índole esencialmente individual: el reconocimiento
es el resultado dei desarrollo de Ias fuerzas, capacidades, destrezas
y empehos de cada cual.
Estamos dispuestos a reconocer Ia grandeza y Ia gloria de los
llamados hombres ilustres que hicieron tanto para enriquecer nuestra
experiencia material, espiritual y emocional. Les rendimos homenaje,
evocamos sus nombres cuando nos topamos con sus obras o con
sus ideas y solemos sentir admiración y no envidia como a veces Ia
sentimos hacia nuestros congêneres con quienes competimos por
el reconocimiento, sin tener Ia menor sospecha dei valor que nuestras
ideas u obras tendrán en el futuro. No guardaríamos ningún rencor
a los nuestros contemporâneos vanidosos y petulantes aspirantes
a Ia gloria a cualquier precio y ni siquiera les despreciaríamos, si
supiéramos que el futuro pudiera destronar sus pretensiones infun-
dadas al reconocimiento. "La rivalidad propiamente dicha. Ia que
' Eliascanetti, Masay poder. realmente importa, comienza cuando los rivales ya no están. El com-
Aüanza.iviadrid, 1995, p. 273. bate que librarán sus obras ni siquiera Io podrán presenciar"^. Esta
idea conlleva cierto alivio para aquellos que, a causa de diferentes

294
malishev, mijail. Imaginário - usp, n° 7, pág. 289-314, 2001

circunstancias, no obtienen un reconocimiento adecuado a sus méri-


tos. En Ia vida real, a diferencia dei deporte en donde los logros de los
v e n c e d o r e s se miden por regias imparciales y objetivas, el
reconocimiento no siempre se distribuye según méritos y talentos. Aqui
no siempre triunfan los mejores que incluso pueden estar sinceramen-
te convencidos en Ia superioridad de sus rivales. Y sólo el tiempo,
frecuentemente más allá de su vida, reestablece Ia justicia, dando a
cada cual su justo valor. Quien en nuestro recuerda a Salieri que, en su
época, se esmeraba a compararse con su contemporâneo Mozart y se
atormentaba por Ias sospechas turbias acerca de Ia superioridad de su
joven colega de grêmio musical. Salieri no quiso ver su fama y Ia de
Mozart proyectada al futuro, mejor dicho, Ia proyectaba desde su pre-
sente en donde él tenía Ia misma notoriedad o incluso más grande que
Ia de su rival. Al fin y al cabo, sabemos Ia magnitud real de Ia gloria
póstuma de los dos compositores y dónde paró el destino de cada uno.
Si Salieri hubiera atisbado el mensaje dei más allá de su época, quizá
hubiera entendido Ia verdad dei dicho: "contra grandes méritos de los
grandes hombres no hay otro remedio, sino el reconocimiento".

reconocimiento y presentación dei yo


El reconocimiento es siempre una evocación de Io conocido que le
precede y Io posibilita; es un calco más o menos cierto de Io regis-
trado alguna vez en Ia experiencia dei sujeto que Io reproduce en su
memória y al mismo tiempo, le otorga ciertos signos valorativos que
defienden y preservan Io adquirido a despecho de Io huidizo y Io
fugitivo. El re-conocimiento es un procedimiento que pone etiqueta
a mis cualidades intrínsecas y Ias de los demás; es un esfuerzo más
econômico y menos fatigoso que el mismo conocimiento y también
mucho más conveniente para renovar nuestras expectativas en el
caso de cambio o de modificación de Ias cualidades dei sujeto a
quien le otorgamos algún reconocimiento. Estamos creados de tal
m a n e r a que c u a n d o p e r c i b i m o s c u a l q u i e r f e n ô m e n o nuevo
involuntariamente buscamos los rasgos que nos remiten a sus
predecesores; por ejemplo, cuando leemos un libro de un escritor
desconocido Io comparamos con otros autores que ya hemos leído
en el pasado y cuyas ideas, estilo o maneras de narraciôn nos hace
recordar en algo Ia obra de este escritor. Sucede a veces que ante

295
malishev, mijail. Imaginário - usp, n° 7, pág. 289-314, 2001

una impresión, aún no digerida, experimentada ante un poema, ante


un paisaje o una melodia, surge en nuestra imaginación Ia obra de
un escritor, de un pintor o de un músico que nos aparece como Ia
más êxacta individualización de nuestra experiencia. Otras veces,
esa misma experiencia Ia sentimos muy identificada a Io que estamos
pensando y sintiendo, pareciera que es nuestra o que el autor se
nos adelantó en Ia expresión de nuestra vivência íntima.
Por consiguiente, el reconocimiento constituye Ia base de Ia identidad
dei otro de Ia que nos damos cuenta. En el transcurso de nuestra
vida acumulamos una gran cantidad de imágenes de indivíduos con
quienes tenemos o hemos tenido algún trato. Guando vemos o
escuchamos a alguien conocido, inmediatamente nos damos cuenta
de (reconocemos) su identidad. A veces su imagen se borra de
nuestra memória, le olvidamos y por algunos momentos no pode-
mos recordarlo, pero si alguien evoca algunos detalles dei tiempo o
dei espado asociados con él, Io reconocemos. Normalmente, du-
rante el encuentro con una persona con quien ya habíamos tenido
algún contacto, fácilmente Ia identificamos. Al reconocersu identidad,
discernimos y resaltamos el rasgo constitutivo de su yo que siempre
subyace en el fondo de nuestra memória. Por ejemplo, veo a mi
amigo Pedro y, antes de entablar con él alguna conversación o algún
otro trato, reconozco su identidad, esto es, evoco en mi conciencia
el rasgo dominante (respecto a mí) de esta persona que se llama
Pedro y no Juan o Carlos. Antes dei encuentro con Pedro, he tenido
ya en mi memória su imagen como una especie (usando el término
de Sartre) de cogito prerreflexivo que instantáneamente se une con
mi percepción dei Pedro actual. Pedro está presente ante mí, pero,
por paradójico que parezca, su presencia no es Ia presencia en sí,
sino está mediatizada por el conocimiento anterior que tengo de él,
esto es, por mi cogito prerreflexivo que se encuentra en mí. Este
segundo conocimiento o re-conocimiento constituye el fundamento
de toda una red de contactos que tengo con Ia gente que me rodea:
amigos, vecino, colegas, familiares, etc. Cada nuevo encuentro con
ellos prácticamente no exige de mí ningún esfuerzo para establecer
su identidad. Por pobre que sea mi convivência con mis colegas,
tengo una idea de ellos que me da Ia posibilidad de elaborar una
actitud correspondiente hacia sus personas. Conozco el rostro y Ia
vestimenta de un comparíero, sé que es el maestro de historia, tengo

296
malishev, mijail. Imaginário - usp, n° 7, pág. 289-314, 2001

información de algunas de sus opiniones, preferencias o gustos y


este "conocimiento", junto con mi actitud hacia su persona, constituye
Ia base dei reconocimiento de su identidad. Guando le veo o escucho
su nombre, me doy cuenta de quien se trata. Guando alguien, inclu-
so una persona desconocida, pasa a mi lado reconozco su sexo,
edad, expresión de su rostro, forma de su cuerpo, manera de vestirse
y esto me permite tener una idea de esta persona para situarme en
relación con ella.
El hombre todavia no vive como ser humano, al no tener su yo, por
eso no le queda otro remedio que reclamar su identidad. Y ésta se
constituye por Io que el hombre hace, pues, como dice Ia Biblia, "por
tus acciones serás reconocido". Así que Ia premisa de cualquier
valor que le otorga a un indivíduo el reconocimiento de los demás
es su identidad constante y duradera. Ia cual se expresa en Ia
nominación, esto es, en Ia adquisición de un nombre propio que le
garantiza a su portador Ia identidad en todos los campos posibles y
en todos los períodos diversos de su existencia desde su nacimíento
hasta Ia muerte. Reconocer a alguien es, en primer lugar, discernir
su nombre. Es el nombre propio, por ejemplo "Andrés Sánchez
Vázquez", Io que garantiza a su portador Ia constancia a través dei
tiempo y Ia unidad a través de los espacios sociales. Mediante Ias
manifestaciones múltiples y diversas de los roles sociales alumno
de una escuela, estudiante universitário, profesor, investigador,
director, diputado etc el reconocimiento otorgado a Andrés Sánchez
Vázquez, en forma de diferentes cargos y oficios, le garantiza Ia
constancia nominal y Ia identidad consigo mismo. En m u c h o s
espacios públicos los deberes más sagrados para con uno mismo
son deberes para con el nombre propio. Dicho en otras palabras, el
nombre propio es un soporte dei reconocimiento social que le otorga
a su portador un conjunto de propiedades y atribuciones válidas
para todos los ambientes posibles y que constituyen, a su vez. Ia
base de su identidad socialmente construída. La reprobación moral
o sanción jurídica se aplica a presentación falsa de una persona,
cuando ella trata de tergiversar ilegítimamente algunos hechos de
su b i o g r a f i a : se a d s c r i b e m é r i t o s i n e x i s t e n t e s , exhibe
condecoraciones pertenecientes a otros, se apropia de los derechos
que no son los suyos, falsifica su identidad, es decir, usurpa el capi-
tal simbólico dei reconocimiento ajeno para elevar el valor de su

297
malishev, mijail. Imaginário - usp, n° 7, pág. 289-314, 2001

nombre. Para protegemos contra Ia mentira danina de un impostor


comprobamos sus referencias personales, verificamos sus tarjetas
de crédito, examinamos sus documentos, etc, y exigimos el castigo
para el que nos engana. A los que atrapamos en falsificar su
identidad, le retiramos nuestra confianza hasta el punto de dejar de
tener algún trato con ellos.
Cada ser humano posee un nombre y una singularidad; ésta, en
primera instancia, tiene su sede en el cuerpo y sobre todo en el
rostro. La imagen de nuestro rostro testimonia el carnet para votar,
el pasaporte. Ia licencia de conducir, o cualquier documento que
necesite establecer nuestra identidad. En Ia expresión de nuestro
rostro se refleja Ia importancia que nos adscribimos o el significado
que quisiéramos transmitir a los demás. Quizá Ia mayoría de nosotros
somos incapaces de ocultar o disfrazar algunas emociones y
expresiones básicas, pero todos podemos poner una cara adecuada
a partir de nuestro sexo, intención y rango social. Se puede decir
que, por sinceros que quisiéramos ser, cada uno de nosotros, en
m a y o r o m e n o r g r a d o , s o m o s a c t o r e s en Ia e x p r e s i ó n de
"espontaneidad preparada" dirigida a los demás. Muchas pequenas
mentiras a Ias cuales a menudo recurrimos, sin damos siquiera
cuenta de ellas, en Ia presentación de nuestra persona, es una
especie de enlucido social. Como escribe Daniel McNeill, "Ia sonrisa
falsa promueve Ia amistad, amortigua los golpes ("aprecio Ia broma,
aunque no fuera divertida"), suaviza los obstáculos sociales. El fal-
so cumplido el "me Io he pasado muy bien" dei invitado que huye de
Ia fiesta beneficia tanto al enganador como al enganado"®. Sólo si
^ Daniel McNeill, El rostro, c o m p r e n d e m o s cuán natural es el motivo de estas mentiras,
fusquets, Barcelona. 1999, p.
?38.' ' podremos entender por qué sólo en sociedad el hombre puede
obtener Ias m e d i d a s s i m b ó l i c a s para elevar el grado de su
importancia. En todos tiempos y en todos lugares. Ia sociedad ofrece
algunos símbolos para que sus miembros se exalten, se jacten o
muestren algunos logros, aunque sólo sea una habilidad en Ias co-
sas triviales. E x p e r i m e n t a m o s una gran satisfacción c u a n d o
recibimos un gesto favorable de los demás y sobre todo cuando
este elogio cae en el dominio de nuestras pretensiones, en ese
entonces, nuestro sentimiento es comparable, según Schopenhauer,
con el placer de un gato que se pone a maullar cuando le acarician

298
malishev, mijail. Imaginário - usp, n° 7, pág. 289-314, 2001

ei lomo. A pesar de que el lugar de todo Io que somos para los demás
está en una conciencia ajena, sin embargo, el valor que le concede-
mos a Ia opinión de los otros y nuestra preocupación a este respecto
van más allá de Io puede considerarse racional. Es allí donde pode-
mos observar los diversos trucos que empleamos para asegurarnos
de nuestra propia importancia. Si vemos a alguien como soberbio o
arrogante pudiera ser que está preocupado de Ia opinión favorable
de los demás y es por eso que quiere mostrarles su importancia. To-
dos los aduladores dei mundo saben esta debilidad dei ser humano y
le enganan con esplêndida facilidad para sacar algún provecho. La
predisposición a Ia propia importancia se incrementa con el halago;
de manera intuitiva nos parece real y benéfico, o al menos no da pie
que desconfiemos de él hasta el momento en que nos queda claro el
precio verdadero de esta actitud mentirosa. Quizá, el hombre hones-
to y autocrítico, con el transcurso de los anos, se vuelve más o menos
indiferente a los elogios de sus aduladores, pero casi siempre le duele
el desprecio o el vituperio. Se puede suponer que los halagos de los
aduladores no compensan Ia ofensa o una muestra de indiferencia
de Ias personas cuya opinión realmente nos parece importante.
Por justa que pudiera ser Ia apreciación dei valor que uno tiene de
su persona, no puede estar satisfecho de darse importancia a sí
mismo, por eso necesita ser apreciado en Ia opinión dei otro. Tener
algún significado es equivalente a tener una razón de ser, poseer el
sentido para continuar viviendo. En otras palabras, el hombre es un
ser social en un sentido más profundo que el que significa Ia
interrelación con los demás, ya que es Io que es, en cierto sentido,
en virtud de Io que sus semejantes creen y esperan que sea. Toda
nuestra vida social se halla entretejida de Ia expresión de los ritos
de cortesia, aunque ésta sea mínima: saludos, exclamaciones y
conversaciones breves para reconfortar a los otros; sonrisas amis-
tosas, miradas animadoras que refuerzan el reconocimiento dei va-
lor de los demás y protegen sus delicados sentimientos de Ias ofen-
sas involuntárias. Hasta Ias posiciones de nuestro cuerpo — estar
parado, sentarse, tenderse, acuclillarse, arrellanarse o arrodiliarse
— son una sehal dei rango y prestigio. De cómo Ia gente se ubica
en un contexto social y cultural se puede deducir Ia diferencia en su
reconocimiento. Estar en presencia de los otros requiere que
respetemos el contexto y Ia situación en Ia que nos hallamos.

299
malishev, mijail. Imaginário - usp, n° 7, pág. 289-314, 2001

La exigencia mínima que impone nuestra interrelación con los demás


consiste en reconocer el consenso vigente, no provocar alarma o
preocupación indebidamente, no exagerar nuestra atención a los
demás y, hasta donde sea posible, comportamos de tal manera que
podamos evitar un choque o una tensión. Este tipo de actitud Jean-
Paul Sartre Io denomina como "indiferencia hacia al prójimo" que
presupone una cierta ceguera respecto de los otros: transeúntes,
policias, clientes, vendedores, etc. Ellos para mí y yo para ellos son
personas, pero sólo en un aspecto estrecho de los roles o funciones
ejecutados: "el inspector que pica billetes no es nada más que Ia
función de picarlos; el mozo dei café no es nada más que Ia función
de servir a los clientes. A partir de ello, será posible utilizarlos Io
mejor posible para mis intereses si conozco sus claves, esas
"palabras-clave" que pueden desencadenar sus mecanismos"^. A
® Jean-Paul Sartre, Ei ser y Ia
este intercâmbio de utilidades funcionales y al saber usar Ias
nada. Altaya, Barcelona, 1993,
p. 405.
palabras-claves se reduce Ia exigencia de Ia moral mínima según
Ias regias de cortesia. Pero con Ia cortesia, Io importante es no
dejarse enganar, porque Ia cortesia es sólo una escuela de expresión.
Y sin embargo, el hombre educado ante todo es una persona cortês
y eso dice mucho. En opinión de Andrés Comte-Sponville, si Ia
cortesia fuera sólo un juego de urbanidad, "ninguno de nosotros,
salvo por mania o cursileria, rehiria a los ninos mil veces... para que
digan "por favor", "gracias", "disculpa". El respeto se aprende alli,
en esa domesticación"^^. A los ninos se les enseha, en familia o en
André CofVipte-Spon-viile,
escuela, a adelantar cada declaración a un adulto con una petición
Pequeno tratado de Ias gran-
des virtudes. Andrés Belfo,
de "con su permiso" y a terminar cada encuentro con alguna
Santiago de Chile, 1996, p. 22. expresión de agradecimiento. Cortesia no es una virtud, es una
cualidad puramente formal: hacer Io que se hace, decir Io que se
dice. Pero como semblanza de virtud Ia cortesia prepara Ia moral y
por Io tanto prepara Ia persona. Justamente el reconocimiento de
que alguien es capaz de adoptar Ias formas dei trato cultural es Io
que le convierte en una persona. A su vez. Ia persona es tanto más
educada cuanto más sea capaz de ser, en cierto sentido, un actor.
En efecto, nosotros aceptamos Ia apariencia de Ia cortesia, de Ia
decencia y el respeto a los otros, sin que por ello enganemos a
nadie, porque en esto todos estamos de acuerdo de que con ello no
se da algo cordial o sincero. Por el hecho de que juguemos estos
papeles. Ias virtudes autênticas, cuya apariencia hemos mantenido

300
malishev, mijail. Imaginário - usp, n° 7, pág. 289-314, 2001

artificialmente a Io largo de nuestros contactos con los demás, se


despertarán poco a poco. Como un arte de vivir Ia cortesia y los
buenos modales todavia no equivaien a Ias virtudes, sin embargo
son importantes porque preparan su terreno.
Como "glorioso engano de nosotros mismos", (Ia expresión de Kant) Ia
cortesia es una forma aparente dei reconocimiento, sin embargo, el
reconocimiento verdadero tampoco está dispensado de ella. La vida
es un teatro, dijo alguna vez Shakespeare. Y todos nosotros somos
actores y espectadores en Ia gran escena de Ia vida, cuyo concepto de
rol, aunque no es exactamente de juego, recuerda de todos modos su
versión teatral en giros como "representarse" o hacer una "figura repre-
sentativa". Estas figuras representativas se insertan en diferentes con-
textos de Ia vida cotidiana y dependen dei reconocimiento de sentido
que se les otorgan en ellos. Para ilustrar como funcionan Ias figuras
representativas Erving Goffman aduce a modo de ejemplo Ia
presentación dei cuerpo desnudo. En un examen médico, o en una
clase de pintura, el paciente o el modelo no suele despojarse de su
ropa delante de los demás, ni se vuelve a vestir en su presencia a Ia
conclusión de Ia cita. Desvestirse y vestirse en privado hace que el
cuerpo se exhiba y se oculte como serial formal de apertura y cierre de
examen o de sesión; Io uno y Io otro marcan Ias fronteras dei episodio
y comunican que Ias acciones se mantienen apartadas de connotaciones
sexuales u otras que de Io contrario se veria en ellas.

Como en todas Ias áreas de reconocimiento mutuo, hay caracteristi-


cas de una complejidad extraordinaria hasta para manifestar
"inatención", por ejemplo, no prestar atención insolente a los demás.
En este caso, hablando en términos de Sartre, practicamos de hecho
una especie de solipcismo: rozamos a Ia gente como rozamos Ias
paredes, ni siquiera imaginamos que podemos mirarlas ni que pueden
miramos. Pero a veces esta exigencia minima de pasar desapercibidos
por cortesia resulta muy dificil para cumplir. Pensemos, por ejemplo,
en Ia gente hermosa o en Ia gente que Ia calificamos como "estigma-
tizada": los obesos, discapacitados, quemados, deformes y enfermos
mentales. Estas personas sueien generar en nosotros algunas
turbaciones o preocupaciones vinculadas con lástima, asco o miedo.
Por eso debemos elaborar algunos "compromisos faciales" para
mantener una "inatención cortês" hacia ellos y no ofenderlos
involuntariamente por nuestra atención exagerada.

301
malishev, mijail. Imaginário - usp, n° 7, pág. 289-314, 2001

Nietzsche dijo alguna vez: quien tiene un por qué para vivir puede
soportar casi cualquier cómo. Y este por qué, a su vez, busca su
justificación en el reconocimiento que nos otorga confianza para
superar los obstáculos y alcanzar un fin. Es decir, el reconocimiento
concedido es una especie de crédito moral que uno dispone para
aumentar su seguridad. A su vez, el reconocimiento otorgado, por
ejemplo, a través dei diploma a un profesionista constituye una base
de confianza que abrigan los otros en él, en su capacidad para re-
solver diferentes problemas materiales, sociales o espirituales. Con
el reconocimiento de Ia destreza profesional de los especialistas
nosotros podemos reducir Ia complejidad de Ias relaciones sociales
y disminuir Ia necesidad de aprendizaje de diversos problemas es-
pecíficos que nos afectan. S a b e m o s que unos especialistas,
llamados mecânicos, saben cómo trabaja el motor de nuestro coche
y que otros especialistas, llamados médicos, saben cómo funciona
nuestro cuerpo; podríamos desconfiar de algunos de ellos, pero aun
así, suponemos que los mecânicos son mecânicos y los médicos
son médicos, y si no confiamos en nosotros mismos en esas áreas
respectivas, entonces creemos que son ellos quienes son capaces
de reparar el motor roto de nuestro auto o curar nuestro corazón
enfermo. La confianza solamente es posible ahí donde se da el
reconocimiento de Ias habilidades especializadas, confirmadas y
demostrables de los otros.
Quien ejecuta determinadas acciones nos expone dos cosas:
primero, se le sabe capaz de hacer precisamente eso, pues, por
ejemplo, quien es capaz de curar una muela se le sabe dentista,
quien descubre una cosa nueva no solo nos advierte su innovación,
sino que le conocemos como descubridor. En esta situación, Ias
acciones aparecen indisolublemente unidas al autor dei cual
proceden y a quien se califica. Pero también esas acciones le hacen
saber al ejecutor más sobre sí mismo, porque una vez hechas se
objetivan, y con esto el sujeto aparece distante, de modo que, quiera
o no, y pese a Ia aceptación de que son sus obras, éstas le dicen
ahora algo de Io que él hizo. Para que alguien reconozca el mérito
de un matemático hace falta que ese alguien sea uno de ellos, esto
es, que tenga en común, cuando menos. Ia capacidad de valorar los
logros matemáticos. Cada acción, mucho más si es de índole
innovadora, marca un hito en esa área, ya que se convierte en fuente

302
malishev, mijail. Imaginário - usp, n° 7, pág. 289-314, 2001

de tareas posteriores. El descubrimiento, por ejemplo, exterioriza y


visualiza aún más el carácter de continuidad de actividad de un ci-
entífico. El mérito aparece así como una cresta en Ia experiencia
dei investigador y destaca, con especial valencia, su nexo con Ia
existencia restante. Cada persona tiene un valor y éste es conferido
por los otros de acuerdo a Ias acciones que realiza. Guando el cien-
tífico se relaciona con alguien se relaciona como científico, como
doctor en ciências o como galardonado de un prêmio Nobel, por
ejemplo, y cuenta con Ia imagen que ese alguien ha de tener de él y
de Ia cual el científico está de alguna manera advertido.
Sin embargo, no simplemente somos Io que hacemos. Podemos incurrir
incluso en una contradicción entre Io que somos y Io que hacemos.
Como negamos a ser dependientes de Io producido, nos Io oponemos.
Somos idênticos con Ias cosas producidas, pero también hasta cierto
grado, somos independientes de ellas. Convertimos Ia obra, una vez
realizada, en una obra que se desprendió de nosotros. No podemos
quedamos detenidos en ella como en algo que pudiéramos ser todavia
ni podemos decir: somos exclusivamente Io que hicimos. Pues, aunque
Io que somos y Io que queremos hacer están unidos, no son idênticos,
esto es, no agotamos con Io que hacemos. Primeramente, por virtud de
Ia observación de que en cada momento, mientras existimos, no estamos
completos, acabados, sino que podemos ser otros todavia. Nosotros
mismos huimos de Ia identificación total con nuestras obras — aun
reconociéndolas como nuestras y aun conservándolas como propias
por fidelidad a nosotros mismos — tanto más cuanto sentimos que en
el futuro podríamos superamos y, por consiguiente, obtener el
reconocimiento más elevado.

No sólo nuestra posición social depende de Ia interacción con los


demás, sino nuestra propia imagen y, en particular. Ia concepción
que tenemos de nuestra identidad personal son sólo inteligibles en
los términos de Ias expectativas sociales: dei rol que desempehamos
y el estatus que ocupamos en una comunidad a que pertenecemos.
Visto así, Ia sociologia moderna no está en falso cuando comienza
con el concepto de rol y estatus, pues aqui se trata de hecho de una
estructura categorial fundada en el reconocimiento social dei hombre.
El concepto de rol expresa un hecho fundamental: en circunstancias
similares cuando ocupamos cargos idênticos, a pesar de que so-

303
malishev, mijail. Imaginário - usp, n° 7, pág. 289-314, 2001

mos totalmente distintos, no obstante, nos conducimos de Ia misma


forma, como si nuestra conducta estuviera determinada por ciertos
guiones prefijados que nosotros interpretamos. En este sentido, to-
dos somos portadores de vários roles sociales: padres de Ia familia,
esposos, hijos, ciudadanos, depositários de banco, clientes, compra-
dores, vendedores, vecinos, etc. Es casi imposible desvinculamos
dei rol que desempehamos en el proceso de Ia interacción social.
Tratamos de identificamos en Io posible, bien o mal, con nuestro rol,
de llenarle, de hacerle justicia a sus exigencias, y de hacerlo creíble
en cierto sentido; y de enajenarnos en el proceso de su ejecución, así
como recuperamos de esa enajenación. En el proceso dei desempeno
de nuestros roles no sólo nos manifestamos como un tipo determina-
do de persona, sino que también nos formamos y afirmamos.
El rol y el estatus son unidades de comportamiento recíproco
constituídas por el reconocimiento mutuo de intenciones y expecta-
tivas compartidas. Si el rol designa un tipo de Ia actividad determi-
nada y responde a Ia pregunta: "6qué hace su actor?", el estatus
expresa su posición correlativa en Ia escala dei reconocimiento so-
cial y responde a Ia pregunta: "^quién es su portador?". El conjunto
de estatus que caracteriza nuestra persona se suele clasificar en el
de adscripción y el de obtención. Al primero le pertenecen Ias carac-
terísticas naturales heredadas de nuestros antepasados (sexo,
parentesco, rasgos étnicos y raciales) así como los atributos que
determinan nuestra pertenencia a una clase o a una religión. Estas
características son propias de cada persona, no dependen de sus
esfuerzos subjetivos y constituyen Ias premisas iniciales para
alcanzar logros u obtener êxitos.
Una de Ias características importantes de estatus de adscripción es
Ia pertenencia al sexo masculino o femenino. Aunque Ia mayoría de
los antropólogos culturales niegan Ia existencia de los arquétipos
rígidos y globales de Ia virilidad y Ia f e m i n i d a d que regulan
estrictamente el comportamiento de hombres y mujeres, sin embar-
go, nadie de ellos pone en tela de juicio Ia similitud sustancial
pancultural en los rasgos asignados a ambos sexos. Pero Ia
"presentación" dei papel dei hombre y Ia mujer es sustancialmente
diferente en todos los niveles dei desarrollo sociocultural. La simple
masculinidad anatômica que se produce espontáneamente por una

304
malishev, mijail. Imaginário - usp, n° 7, pág. 289-314, 2001

maduración biológica no constituye aún una verdadera virilidad, esto


es, el reconocimiento de Ia autêntica virilidad debe ser conquistada
por médio de diferentes y, como regia, duras pruebas. La noción de
virilidad obliga a los representantes dei sexo masculino a prepararse
para Ia lucha bajo pena de verse despojados de su identidad, una
amenaza frecuentemente percibida como un escárnio que parece
que es el peor de los insultos. Por supuesto que Ia identidad de Ias
mujeres también puede ser sometida un juicio estricto según los
critérios sexuales que Ias "estigmatizan" como deficientes o desvia-
das, poco femeninas o "emasculadas", pero rara vez se dudará sus
d e r e c h o s a una identidad s e x u a l , c o m o se hace, pública y
dramáticamente, con los hombres. En opinión de David Gilmore, "Ia
v e r d a d e r a f e m i n i d a d r a r a m e n t e se i n v o l u c r a en p r u e b a s o
demostraciones, ni en confrontaciones con enemigos peligrosos...
La feminidad, más que como un umbral crítico que se atraviesa con
pruebas traumáticas, una condición de sí o no, se suele concebir
como una aportación biológica que Ia cultura refina o incrementa"^\
. ^ ^ , , David Gilmore, H^cerse
El mismo estatus masculino le adscnbe a los varones el compromiso ^^^^^^^ Barcelona,
moral de enfrentarse al peligro de defender a Ia sociedad y a sus 1999, p. 23.
valores esenciales o competir entre sí por el reconocimiento social.
Los estatus de adscripción determinan los contornos generales de
los estatus de obtención que se forman en Ia medida en que se
despliegan los esfuerzos dirigidos a Ia adquisición dei reconocimiento
social. El significado de estos últimos consiste no sólo en que ubican
a cada cual en un lugar determinado en Ia escalera jerárquica de
los grados y rangos, sino que estimula el desarrollo de los logros y
méritos necesarios para Ia realización de los roles sociales que
corresponden a estos estatus. Dentro de los estatus de obtención
hay dos tipos de cualidades personales que Ia sociedad tiende
reconocer y recompensar: los dones y talentos que su portador los
recibe de Ia naturaleza, por decirlo así, grátis, y el esfuerzo, el trabajo,
el entrenamiento, el afán, el coraje que conciernen a Ia libertad y a
Ia autonomia de Ias personas que ocupan dicho estatus. Está claro
que el reconocimiento valoriza tanto Io que pertenece a los logros
p e r s o n a l e s dei s u j e t o c o m o Ias p r e d i s p o s i c i o n e s n a t u r a l e s
expresadas en dones y talentos que él ha recibido desde el inicio.
El mérito dei sujeto consiste en que él despliega sus esfuerzos para

305
malishev, mijail. Imaginário - usp, n° 7, pág. 289-314, 2001

cultivar y ejercer sus predisposiciones innatas. Esto quiere decir


que nadie está predestinado a prioria ocupar ei estatus de obtención,
ya que todavia no es todo Io que ha de ser. El futuro de cada cual
está abierto y es una tarea por hacer. Soy autor de mi propia
soberania, aunque también soy mi propio obstáculo, único contable
de los reveses o de aciertos que me atanen.
Es obvio que el estatus y el rol son los signos sociales dei reconocimiento
de Ia identidad de cualquier individuo. El sentimiento de su identidad él
podría expresar así: "yo soy quien puede aprender a cumplir un oficio".
Pero es evidente que para gran mayoría de los seres humanos, en todos
los tiempos, el aprendizaje de su oficio ha constituído no sólo el comienzo,
sino también Ia limitación de su identidad. Si el portador de un rol social
es demasiado conformista y acepta su oficio como Io único que vale Ia
pena, sacrificando Ia posibilidad de Ia promoción para ocupar un rol más
creativo o prestigioso y consolidando siempre sus necesidades de
identidad en torno a sus capacidades meramente técnicas y
ocupacionales, demasiado fácilmente, puede quedar dispuesto a
someterse a aquello que Laurence Peter ironicamente designa como
una "marioneta procesionaria profesional", es decir, convertirse en un
apêndice de Ia tecnologia o en un peón de Ia división dei trabajo. La
"marioneta procesionaria" es un funcionário que se dedica a los médios
de su rol social más que a su significado. Guando este tipo ocupa un
cargo, los fines sociales se someten a los médios socialmente disponibles
para su realización. El nunca se pregunta ^por quá? o cP^ra qué? Le
mandan hacer algo y él Io hace; todo Io demás no le interesa en absolu-
to. Si se le plantean las preguntas acerca de los objetivos o valores de su
actividad su respuesta es completamente sincera: "Eso no es cosa mia".
Laurence Peter le llama "mediocracia" a este sistema burocrático que
invierte los médios y los fines. La seguridad dei integrante de Ia
"mediocracia" depende en manera creciente de las regias, normas, rituales
y registros de su puesto particular, y empieza a manifestar una insensa-
ta, estereotipada y, a menudo, viciosa especie de paranóia institucional"^^.
Laurence J, Peter, Las fór- Se atribuye más valor a las estructuras organizativas burocráticas inter-
mulas de Peter. Plaza y Janés.
nas, las formas y los procedimientos, que a los resultados dei servicio
Barcelona, 1995, p. 68.
público. La "marioneta procesionaria" siempre, donde esto es posible, se
libera de tomar decisiones, ya que mantener un comportamiento estere-
otipado es Io que le hace sentirse seguro.

306
malishev, mijail. Imaginário - usp, n° 7, pág. 289-314, 2001

Ya que todo Io que hacemos está determinado, en uno u otro grado,


por Io que hacen otros, es preciso tener conciencia de sus posiciones
e intenciones. Así que en Ia base de todo el reconocinniento hay un
convênio (implícito o explícito) de reciprocidad. Ya en cualquier
conversación, por banal que sea, existe cierto ritual: Ia palabra que
uno le dirige a otro establece Ia semejanza y distinción de dos
personas; para escuchar que uno dice el otro debe estar callado y
atento y viceversa. En el proceso de Ia conversación se establece el
reconocimiento mutuo de los roles de interlocutores: Ia necesidad de
comunicar algo por parte de uno produce Ia necesidad de escucharlo
por parte de otro y al revés. "El reclamo que tú me diriges, a saber,
reconocerte en tu existencia, me aporta Ia confirmación de Ia mia: yo
soy reconocido como aquel que tú necesitas. Y, por mi parte, mi recla-
mo de reconocimiento no te exaspera, por el contrario, te otorga in-
cluso un estatus excepcional, puesto que eres el único (Ia única) que
puede otorgármelo"^^ Ya en un simple acto de comunicación verbal
" Tzveían Todorov, La vida en
se establece Ia utilidad mutua de los dos interlocutores: al asegurar Ia
común. Taurus, Madrid, 1995,
aprobación dei segundo, el primero asegura su propia aprobación. p. 160.
En este sentido el reconocimiento es Ia imagen de expectativas
normativas que los otros tienen de mí. A su vez, en mi aspiración de
obtener o confirmar el reconocimiento, respondo a Ia actitud que los
demás toman con respecto a mí. Como objeto de expectativas sociales
me comporto como me quieren ver los otros en mi función en el con-
junto de papeles que normalmente desempeno en Ia sociedad.

iníeriondad y superiondidd
Ser alguien para ser reconocido suele tener aos aspectos. Ei pnmero
implica tener impacto o consecuencias sociales, ser una fuente de
autoridad desde Ia cual fluyen efectos de tal modo que los otros
quedan afectados por nuestra riqueza o poder. Desde luego a Ia
riqueza y al poder se les aspira, en parte, como médios para conse-
guir Io que les sigue: el goce. Ia comodidad, el confort. Ia diversidad
de impresiones, Ias experiencias placenteras, etcétera. Pero, además
de esos efectos. Ia riqueza y el poder implican un valor en sí, dan a
sus portadores un sentimiento de importancia por poder causar
efectos en Ia conducta, emociones e ideas de los otros. Hay veces
en que el deseo de tener más símbolos de importancia es tan des-

307
malishev, mijail. Imaginário - usp, n° 7, pág. 289-314, 2001

mesurado que borra Ia obra que Io provoco y convierte en su siervo


a quien Io ha obtenido. Y eso le ocasiona no poças complicaciones:
le convierte en un rehén de su propia vanidad y para confirmaria,
necesita incesantemente de aplausos, alabanzas y halagos de Ia
muchedumbre. La creencia en su propia importancia se encuentra
tan arraigada que le resulta imposible imaginar no ser reconocido.
Claro que eso puede llegar a ser el origen de Ia soberbia, sobre
todo cuando se trata de mantener su prestigio a cualquier precio. El
buscador de Ia gloria se comporta sin saber que para andar por Ia
vida no es imprescindible siempre estar a Ia altura de su importancia,
ya que esto exige un esfuerzo constante para no enganar Ias ex-
pectativas de sus admiradores. Siempre está preocupado por sus
actos y palabras, pues no puede dejar de impresionar, ya que le es
difícil concebir que no le tratan como una persona importante.
El segundo aspecto dei reconocimiento implica ser tenido en cuenta,
contar no simplemente por ser una fuente causai de efectos externos,
sino por ser útil, hacer alguna aportación en Ia coexistência común
no importa cuál será su dimensión valorativa. Para determinar el gra-
do de sus aportaciones, el individuo observa cómo desempehan un
rol los otros. Para merecer el reconocimiento de quienes Io rodean y
estimarse a sí mismo trata de demostrar que puede desempehar este
mismo comportamiento no peor que los demás. Una de Ias causas de
benéfica influencia dei reconocimiento consiste precisamente en que
se crean Ias posibilidades de comparar objetivamente el desempeno
de los mismos roles, asegurándose al propio tiempo el êxito social al
que logre los mejores resultados. La necesidad de ser tenido en cuenta,
esto es. Ia necesidad de consideración tiene una extensión
sensiblemente más grande que Ia aspiración al êxito, riqueza y po-
der. Sólo el segundo tipo de necesidad constituye el fundamento de
Ia sociabilidad genuina y es Ia definición misma de Ia condición hu-
mana. Se puede decir que Ia necesidad de ser considerado por los
otros es Ia condición dei sentimiento de Ia existencia dei ser humano.
Ia premisa de sí mismo de él.

Lo que el hombre es, Io es a través dei sentido que hace suyo.


Contar con algún valor en nosotros, sea cual sea, es dar prueba dei
sentido de nuestra existencia. No sólo vivimos sino que somos cons-
cientes de nuestra vida, es decir, nuestra conciencia nos da un sen-

308
malishev, mijail. Imaginário - usp, n° 7, pág. 289-314, 2001

t i d o . C o n s i d e r a m o s los s e n t i d o s q u e v i v e n c i a m o s ( s i e m p r e
intencionales, que tienen en cuenta un objeto determinado) como
una especie dei imperativo práctico. En vano, a veces, tratamos de
persuadimos de que somos nadie. Algo, dentro de nosotros, rechaza
esta "verdad" de Ia que, nos parece, estamos tan seguros. Este
rechazo indica que nos escapamos en parte dei nihilismo pleno; y Io
que dentro de nosotros se escamotea a nuestro control hace que
nunca estemos plenos de poder para reducirnos al cero absoluto.
Esto no quiere decir que de Ia mera existencia ya se derive Ia plenitud
dei sentir de Ia vida, y que el hombre por el mismo hecho de existir,
de estar en el mundo, posea una inmunidad garantizada contra Ia
frustración existencial.
Los signos de aprobación de los otros a veces nos consuelan de
una desgracia más que de una apreciación justa dei valor de Io que
somos en y por nosotros mismos. El psicólogo austríaco Alfred Adier
escribió: "Tras cada persona que se comporta como si fuese superi-
or a los demás podemos sospechar Ia existencia de un sentimiento
de inferioridad que exige esfuerzos muy especiales para ocultarlo.
Es como si un hombre temiera ser demasiado bajo y anduviera de
puntilias para parecer que era más alto"^^. Según AdIer, todos
nosotros, en un u otro grado, tenemos un sentimiento de inferioridad,
^ vida. Espasa Ca!pe, Madrid,
dado que casi siempre nos bailamos en posiciones que quisiéramos ^975 p 47
mejorar, alcanzar mayores logros u obtener más reconocimiento. La
aspiración al reconocimiento en tanto que voluntad de sobrepasarse,
implica Ia incesante transformación de nuestro propio ser.
C a d a ser h u m a n o posee d e t e r m i n a d a s fuerzas vitales que se
expresan en Io que aspira a ser, en Io que quiere hacer y puede
tener. Pero a nadie le es dado saber a priori sus limites. Si hemos
conservado Ia confianza en nuestras mejores cualidades, tratamos
de desembarazarnos de los sentimientos de inferioridad por médios
reales: superando dificultados, mejorando nuestra situación, aumen-
tando nuestro estatus. Si no logramos alcanzar nuestros objetivos,
cumplir con nuestras tareas, potenciar Ias cualidades de nuestro
ser, nos topamos con un sentimiento de incertidumbre, vacilación,
titubeo, cohibición, miedo o envidia que son diversas formas de
expresión dei complejo de inferioridad. Para ilustrar Ia diversidad de
manifestaciones dei sentimiento de inferioridad, AdIer aduce una

309
malishev, mijail. Imaginário - usp, n° 7, pág. 289-314, 2001

anécdota de tres ninos que por primera vez fueron llevados por su
madre al zoológico. Guando se encontraron ante Ia jaula dei león, uno
de ellos se estrechó junto a Ia falda de su madre y dijo: "Quiero irme a
casa." El segundo permaneció muy pálido y dijo: "No estoy nada
asustado." El tercero miró con desprecio al animal y preguntó a su
madre: "^Le escupo?". Cada uno de los tres se sentia inferior, pero
nadie expresó sus sentimientos de modo adecuado; cada nino los
expresó a su propia manera, consonante con su estilo de comprensión
de sus valores. La respuesta dei menor, quizás, es Ia más sincera, pero
los mayores trataron de esconder sus verdaderos sentimientos detrás
de una bravata que se puede considerar como especie de compensación
al sentimiento de miedo, porque nadie puede soportar ante sí por largo
tiempo un sentimiento de inferioridad y menos aún, reconocerse ante
los demás como cobarde, débil o pusilânime.
La aspiración a superar el sentimiento de inferioridad puede llevar a
Ia persona a un comportamiento falso: no se prepara para ser más
exitoso, más fuerte o más hábil, sino que se esfuerza para parecer
como tal. El movimiento hacia Ia superioridad se basa, entonces, en
el a u t o e n g a n o . La m e n t i r a ante los o t r o s casi s i e m p r e es
consecuencia de Ia mentira ante uno mismo. La persona que pade-
ce este sentimiento siempre busca pretextos y "razones" para "justi-
ficar" su conducta que no está aprobada socialmente. El sentimiento
de inferioridad teme aparecer desnudo ante Ia conciencia de su
portador, teme y, por tanto, aspira a disfrazarse, porque el vicio sin
camuflaje valorativo es insoportable para su conciencia moral y, en
cambio, Ia inferioridad disfrazada sirve como un "buen" pretexto para
su aceptación en Ia opinión pública.
Guando el hombre se miente a sí mismo. Ia aspiración hacia Ia
superioridad se convierte en Ia mala fe. La mentira implica que el
mentiroso se da cuenta de Ia verdad que trata de ocultar, mientras
que el portador de Ia mala fe se miente a sí mismo. La mala fe "jus-
tifica" el complejo de inferioridad obligándonos mentir, más bien
haciéndonos presentar como verdad una mentira agradable. Por
ejemplo, un individuo que ha sufrido una serie de fracasos intenta
j u s t i f i c a r su a p a t i a , e n d o s a n d o su falta de i n i c i a t i v a a Ias
c i r c u n s t a n c i a s externas y liberando su c o n c i e n c i a moral de
cualquiera responsabilidad. "Las circunstancias han estado contra

310
malishev, mijail. Imaginário - usp, n° 7, pág. 289-314, 2001

mí; yo valia mucho más de Io que he sido; evidentemente no he tenido


un gran amor, o una gran amistad, pero es porque no he encontrado
ni un hombre ni una mujer que fueran dignos; no he escrito buenos
libros porque no he tenido tiempo para hacerlos; no he tenido hijos a
quienes dedicarme, porque no he encontrado al hombre con el que
podría haber realizado mi vida. Han quedado pues, en mí, sin empleo
y enteramente viables, un conjunto de disposiciones, de inclinaciones,
de posibilidades que me dan un valor que Ia simple serie de mis actos
no permite inferir"^^ El sujeto de esta argumentación es mendaz con-
Jean-Paul Sartre, "Ei
sigo mismo: se miente a sí mismo y cree en Ia mentira que se dice.
existencialismo es un
Es, pues, simultáneamente enganador y enganado: como enganador humanismo", En: Antologia de
conoce Ia verdad que se oculta como enganado. Sabe que sus argu- textos de historia de Ia filosofia
mentos no tiene Ia fuerza moral suficiente para sostenerse por sí lil. Universidad Ibero-america-
mismos; sabe que ha preferido apatia a Ia acción; también se da cuenta na, México, 1994, p. 145.

q u e s i g u i ó el c a m i n o que le d a b a c o n s u e l o p a r a evitar Ia
responsabilidad y que frecuentemente impugno Ia argumentación que
le llevaba a conclusiones desagradables. En su argumentación Ias
circunstancias atenuantes se convierten en exculpatorias que deberían
liberarle ante cualquier juicio. A partir de ahí puede formularse el
siguiente agravio: me merezco algo mejor, me debe una compensación
por mis posibilidades no realizadas. ^Quién debe? La sociedad, por
supuesto, esa gran madre colectiva que nos debe aliviar de Ia
preocupación de construir nuestra propia vida. La historia dei indivíduo
quien no realizó sus disposiciones y posibilidades, en realidad, es Ia
historia de sus abdicaciones sucesivas, de sus "justificaciones" con
Ias que trata de quitarse toda responsabilidad por su vida insípida.

La renuncia a toda búsqueda de reconocimiento puede ser un


sintoma de algunas formas dei comportamiento patológico como,
por ejemplo. Ia adicción a Ias drogas o al alcohol. Otras renuncias
más moderadas es el sentimiento de ser víctima. La persona que se
siente víctima sufre de Ia desaprobación de los otros y quiere ser
compadecida y hasta admirada. Si este consuelo no se le da, pro-
cura adscribir sus penas y sufrimientos a Ias circunstancias exter-
nas y se apiada de sí misma. La persona de conciencia "victimista"
obtiene una especie de autosatisfacción de su conmiseración con-
sigo misma y al mismo tiempo, trata de persuadir a los otros de
otorgarle un reconocimiento de compasión. En Ia base de cualquier
discurso victimista yace un reconocimiento de que cada cual es una

311
malishev, mijail. Imaginário - usp, n° 7, pág. 289-314, 2001

excepción a Ia que los demás tendrían que adaptarse, pues toda


acción o palabra emanada de él no puede ser maio, por Ia simple
razón de que él es su fuente y su procedencia personal Io santifica
y Io absuelve: se mantiene inocente, incluso cuando por negligen-
cia ha cometido un acto indebido. Pascal Bruckner nos muestra que
Ia postura de víctima está prenada de impostura: "En este sentido Ia
victimización es Ia versión fraudulenta dei privilegio, permite rehacer
inocência como se rehace una virginidad; sugiere que Ia ley tiene
que aplicarse a todos salvo a mí y esboza una sociedad de castas
al revés donde el hecho de haber padecido un dano reemplaza Ias
ventajas de Ia cuna. La mala conducta de los demás para conmigo
es un crimen, mis propios incumplimientos sólo futilezas, pecados
veniales que constituiria una falta de tacto senalar"^®.
Pascal Bruckner, La
tentación de Ia inocência. Ana- El portador de Ia conciencia victimista es una persona que se inclina
grama, Barcelona, 1996, p. a convertir cualquiera de sus fracasos en un escândalo de injusticia
131.
que licita el derecho de compensación. Cultiva y exagera Ias misérias,
acumula los desastres en guisa dei prestigio de un oprimido para
provocar Ia compasión y misericórdia a su persona o para iluminar
con un trasfondo trágico su propia banalidad. Dice con desafio: prefiero
ser único a mi humilde nivel antes que común y corriente en Ia vida
cotidiana. Para este tipo de gente, el infortúnio es el equivalente de
una buena suerte que ennoblece a quien Io padece y reivindicarlo
significa convertir Ia desdicha en gloria. "Muchas personas comunes
y corrientes que llevan una vida carente dei más leve asomo de dra-
ma experimentan una preferencia secreta para un suplício, intuyendo
en sus sufrimientos Ia promesa dei Cielo. Si Jesús representa en
nuestras civilizaciones Ia encarnación de Ia víctima, cuando uno se
proclama apestado está manifestando que se es en sí mismo de origen
divino, se está confiriendo a Ia inércia de Ia propia vida Ia belleza de
una epopeya"^^. El reconocimiento de Ia capacidad para sufrir no debe
^^ /d/d, p. 143.
ser vivenciada como una sentencia ineluctable de su destino. El
individuo tiene su dignidad en tanto sea capaz de ser responsable
por sus penas, rehacer el sentido de su existencia a partir de sus
heridas pero no exagerarlas con esperanza de que los otros le otorgan
una ayuda, no convertirlas en el trampolín para ser un "mártir",
exponiendo y exagerando sus más íntimas llagas y angustias para
con esto merecer algún reconõòimiento.

312
malishev, mijail. Imaginário - usp, n° 7, pág. 289-314, 2001

Es indudable que toda interpretación de Ia palabra reconocimiento,


por rara que parezca, tiene que incluir un mínimo de Io que llamamos
el valor o el significado de nuestro yo. Por humilde que sea el estatus
social de este "yo". ti^ne que haber un âmbito en el que no sea frus-
trado. Ningún tipo de sociedad, por estratificada que sea, suprime Ia
concesión de reconocimiento a sus miembros; un indivíduo al que los
demás no le toman en consideración no es un agente social, y no se
le puede considerar moral ni legalmente un ser humano, aunque
biológicamente puede clasificársele como hombre. No parece probable
que esta reivindicación no haya jugado ningún papel en Ia dinâmica
social, por Ia simple razón de que el hombre no puede ceder su derecho
a ser alguien sin ofender a Ia esencia de su dignidad. Es verdad que
el grupo o Ias personas por Ias que el individuo pide ser reconocido
tiene que tener, desde su punto de vista, un grado suficiente de valor
o importancia, ya que si no, el reconocimiento por parte dei grupo o
de estas personas significativas no le dará el estatus que pide. Así
que. Ia aspiración al reconocimiento dentro de un grupo está
estrechamente vinculada con el estatus de éste en Ia conciencia dei
aspirante al reconocimiento. El deseo de afirmar el valor de un grupo
(una profesión o una nación), como algo que me pertenece, o alguien
a quien pertenezco, determina el hecho de que en mi lucha contra Ia
opresión nacional o contra Ia injusticia social exijo no sólo el
reconocimiento a mis derechos individuales, sino también el
reconocimiento de los derechos de aquella entidad social o nacional
a que pertenezco. Esto advirtió con tino Isaiah Berlin. "Por regia ge-
neral, Io que piden Ias clases o Ias naciones oprimidas no es solamente
libertad de acción no coartada para sus miembros, ni, sobre todo,
igualdad de oportunidades sociales o econômicas, ni menos aún el
que se les asigne un lugar en un estado orgânico carente de fricciones,
ideado por un legislador racional. Lo que quieren, por regia general,
es simplemente que se les reconozca (su clase, nación, color, raza)
como fuente independiente de actividad humana, como entidad con
voluntad propia que intenta obrar de acuerdo con ella"^^.
isaiah BerSin, Cuatro
Frecuentemente, lo que buscan muchos indivíduos no es Ia seguridad ensayos sobre ia libertad.
econômica o Ia libertad política, sino un reconocimiento para que no Alianza. Madrid, 1998, p. 262.

les ignoren, para que les valoren debidamente y no les consideren


como simples tornillos de una máquina anônima, de un Leviatán

313
malishev, mijail. Imaginário - usp, n° 7, pág. 289-314, 2001

enorme y poderoso, pero indiferente y sordo ante Ias demandas de


sus ciudadanos. Uno de los atributos básicos de Ias aspiraciones
humanas estriba en que el hombre quiere no sólo encontrar el placer
o evitar el dolor, sino encontrar un reconocimiento que le de sentido
a su vida, razón por Ia cual está dispuesto incluso a sufrir a condición
de que ese sufrimiento esté supeditado a Ia obtención dei respeto y,
por consiguiente, a Ia elevación dei significado de su ser.

Resumen: En el artículo se trata dei reconocimiento que es una categoria


poco explorada en Ias ciências sociales. Según el autor, Ia aspiración a
ser reconocido se encuentra en cada uno de nosotros, si no como una
obsesión frenética, por Io menos como una congênita predisposición
que puede ser orientada, estimulada o disminuida, pero nunca extirpa-
da dei todo. No existe persona que no pueda ser ennoblecida por el
reconocimiento de sus méritos. La aspiración a ser reconocida tiene
como premisa, implícita o explícita, Ia pretensión al significado
insustituible de cada ser humano, a Ia confirmación de su identidad.

Palabras-claves: reconocimiento, identidad, mérito, valor, estatus.

Abstract: This article deals with the acknowledgement, a category


poorly explored in the social sciences. According to the author, the
wish of being acknowledged can be found in everyone of us, if not as
a frantic obsession, at least as an innate predisposition that can be
oriented, encouraged or minimized, but never thoroughly eradicated.
The acknowledgement of one's merits is a source of ennoblement to
ali people. The wish of being acknowledged lies in the assumption,
whether implicit or explicit, that ali human beings are endowed with
an irreplaceable claim to meaning and confirmation of one's identity.

Key words: acknowledgement, identity, merit, value, status.

314
ENHA
£S
r
resenhas. Imaginário - usp, n° 7, pág. 317-323, 2001

livro: brasil: mito fundador e sociedade autoritária


Autora: Marilena Chaui
Edição: São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2000. Coleção
História do Povo Brasileiro.

Por Maria Luisa Sandova! Schmidt

"A bandeira brasileira é quadricolor e não exprime o político,


não narra a história do país. É um símbolo da Natureza.
É o Brasil-jardim, o Brasil-paraíso."

Marilena Chauí

No ano da c o m e m o r a ç ã o dos 500 anos do descobrimento, ou


"achamento", do Brasil, Marilena Chauí publicou este livro que, jun-
to a outros, cumpre a função crítica de afrontar as comemorações
oficiais com a pergunta sobre se há o que comemorar.
Analisando o mito fundador brasileiro — em sua origem e em suas
atualizações ao longo da história nacional — e articulando-o à cons-
tituição autoritária da sociedade brasileira, a autora conclui, com con-
tundentes argumentos, que não há mesmo muito o que comemorar.
Parte da constatação de que a maioria dos brasileiros experimenta
uma representação homogênea de si e do país que permite um reco-
nhecimento positivo, de si e do país, a despeito da realidade. Para a
autora, esta representação atribui unidade, resolve tensões, produz
contradições que passam desapercebidas e suscita a interrogação
sobre de onde provém tal representação e de onde retira sua força

317
resenhas. Imaginário - usp, n° 7, pág. 317-323, 2001

sempre renovada. Esta indagação remete ao mito fundador brasileiro:


mito, tanto no sentido antropológico de uma solução imaginária para
os conflitos, quanto no sentido psicanalítico da repetição compulsiva.
Estabelecendo a distinção entre fundação— algo da ordem do perene,
atravessando e sustentado o curso do tempo — e formação— como a
história propriamente dita —, Marilena Chauí define o mito fundador como:

... aquele que não cessa de encontrar novos meios para exprimir-
se, novas linguagens, novos valores, novas idéias, de tal modo que,
quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si
mesmo (pág. 9).

Na relação entre fundação e formação, o mito é recriado e adequa-


do às circunstâncias históricas, ou como afirma Chauí:

O mito fundador oferece um repertório inicial de representações da


realidade e, em cada momento da formação histórica, esses elemen-
tos são reorganizados tanto do ponto de vista de sua hierarquia inter-
na (isto é, qual o elemento principal que comanda os outros) como da
ampliação de seu sentido (isto é, novos elementos vêm se acrescen-
tar ao significado primitivo). Assim, as ideologias, que necessaria-
mente acompanham o movimento histórico da formação, alimentam-
se das representações produzidas pela fundação, atualizando-as para
adequá-las à nova quadra histórica. É exatamente por isso que, sob
novas roupagens, o mito pode repetir-se indefinidamente (pág. 10).

O exame das representações ligadas ao mito fundador constela-se em


torno de quatro eixos: a construção da nação como semióforo ligada ao
surgimento do Estado moderno; o verdeamarelismo; a primeira
reatualização do mito ocorrida em 1900, por ocasião do IV Centenário; a
leitura do mito através do conceito de poder teológico-político de Espinosa.
Estes recortes correspondem a capítulos que dialogam de modo
ensaístico, emoldurados por uma introdução e uma conclusão cujos títu-
los — "Com fé e orgulho" e "Comemorar?" — contrastam ironicamente.
Em relação à nação como semióforo, a autora acompanha o processo
de invenção do Estado-nação, através da periodização proposta por
Eric Hobsbawn que identifica três etapas: de 1830 a 1880, quando se
fala em "princípio de nacionalidade", baseado, sobretudo, na noção de

318
resenhas. Imaginário - usp, n° 7, pág. 319-323, 2001

território; de 1880 a 1918, quando se fala em "idéia nacional", ligada à


língua, à religião e à raça e, de 1918 a 1950-60, quando se fala na
"questão nacional", articulada à consciência nacional. Para Chauí, esta
periodização ajuda a entender a passagem, no Brasil, da idéia de "ca-
ráter nacional" para a de "identidade nacional", marcada pela transfor-
mação de representações totalizadoras da realidade brasileira em re-
presentações lacunares e incompletas. Em suas palavras:

A primeira opera conn o pleno ou o connpleto, enquanto a segunda


opera conn a falta, a privação, o desvio. (...) A "identidade nacional"
pressupõe a relação com o diferente. No caso brasileiro, o diferente
ou o outro, com relação ao qual a identidade é definida, são os paí-
ses capitalistas desenvolvidos, tomados como se fossem uma uni-
dade e uma totalidade completamente realizadas. É pela imagem
do desenvolvimento completo do outro que a nossa "identidade",
definida como subdesenvolvida, surge como lacunar e feita de fal-
tas e privações (pág. 27).

As representações de nação e nacionalidade distinguem-se, nestes


dois períodos, e, enquanto no primeiro "ocupam o espaço das lutas
econômicas, políticas e ideológicas", no segundo, passam a cumprir
tarefas político-ideológicas na legitimação da sociedade autoritária, no
oferecimento de justificativas para a violência e na sustentação das
chamadas políticas de modernização do país. De acordo com Chauí, é
com estas tarefas que se inserem nas comemorações do "Brasil 500".
No capítulo sobre o verdeamarelismo, através de exemplos corres-
pondentes às etapas da construção da idéia de nação, a autora bus-
ca mostrar como Deus e a Natureza são considerados os agentes
criadores da "nação brasileira" e como, ideologicamente, o Estado
"institui a nação sobre a base da ação criadora de Deus e da Nature-
za". Com isto, aponta a presença, "silenciosa e invisível", do mito
fundador "em ações e falas da sociedade e do Estado brasileiros".
Com o nome "Do IV ao V Centenário", o capítulo seguinte trata da
reatualização do mito fundador, por ocasião do IV Centenário,
protagonizada pela publicação do livro de Afonso Celso, Porque me
ufano de meu país. Situa, inicialmente, o autor do livro, o momento de
sua escritura e seus antecedentes. E, analisa os onze motivos para a
superioridade do Brasil elencados por Afonso Celso, nos quais apa-
recem a natureza, o povo — concebido a partir da idéia de raça mestiça

318
resenhas. Imaginário - usp, n° 7, pág. 320-323, 2001

— e a história, narrada, principalmente, da perspectiva da guerra.


Para a autora, o livro de Afonso Celso "é o pressuposto tácito de tudo
quanto se fez em matéria de civismo" no Brasil, ocupando um lugar
significativo como objeto de análise das representações do país.
No capítulo denominado "O mito fundador", Marilena Chauí dedica-se à
análise da construção do mito fundador sob a ótica do conceito de poder
teológico-político de Baruch Espinosa. Nesta análise, destaca três ele-
mentos constituintes do mito fundador: "a visão do paraíso" ou "a elabo-
ração mítica do símbolo Oriente"; a história teológica providencial elabo-
rada pela teologia ortodoxa cristã e a história profética herética cristã ou
o milenarismo de Joaquim de Fiori; a teoria medieval do direito natural
objetivo e do direito natural subjetivo que sustenta a formação jurídico-
teocêntrica "da figura do governante como rei pela graça de Deus".

Como escreve a autora:

Esses três elementos aparecem, nos séculos XVI e XVII, sob a for-
ma das três operações divinas que, no mito fundador, respondem
pelo Brasil: a obra de Deus, isto é, a Natureza, a palavra de^Deus,
isto é, a história, e a vontade de Deus, isto é, o Estado (pág. 58).

Prescrutando o mito fundador pelo prisma dos recortes estabelecidos em


cada um dos capítulos, Marilena Chauí desnuda a lógica da prática de
representação política no Brasil, na qual a democracia não se realiza. O
poder manifesta-se na fonna do populismo: um poder que dispensa medi-
ações políticas, "pensado e realizado sob a fonna da tutela e do favor", no
qual o governante se apresenta, a um só tempo, como transcendente e
imanente, na medida em que se coloca acima e fora da sociedade sendo,
no entanto, pai dos governados, um poder autocrático.

Mas põe a descoberto, também, o caráter autoritário da sociedade


brasileira, cujos traços principais desenha ao finalizar o livro. Uma
sociedade que naturaliza a desigualdade e a diferença, estruturando-
se a partir de relações privadas de mando e obediência, desenvol-
vendo ações e imagens que "bloqueiam o trabalho dos conflitos e
contradições sociais" e que concebe as relações políticas pelo viés
da cooptação, do favor e do clientelismo, da tutela e das promessas
salvacionistas ou messiânicas, não tem mesmo muito do que se
orgulhar e, menos ainda, o que comemorar.

318
resenhas. Imaginário - usp, n° 7, pág. 321-323, 2001

livro: memórias da imigração — libaneses e


sírios em são paulo
Autoras: Betty Loeb Greiber, Una Saigh Malufe
Vera Cattini Mattar
Edição: São Paulo: Discurso Editorial, 1998, 772 págs.

Por Márcia Maria Cabreira

"Vinham de terceira, tudo de terceira. Traziam com eles: hallaue,


traziam chancHch (queijo árabe), traziam ..^zahede (merenda). A vi-
agem levava um mês naquele tempo, ou quarenta dias no máximo.
Nove libras, naquele tempo eram cento e oito cruzeiros. Era o preço
de uma passagem de terceira classe de Homs para o Brasil."

(Sr. Mussa Chacur, 1909, data de chegada ao Brasil)

Memórias da Imigração — iibaneses e sírios em São Pauio reúne cin-


qüenta e quatro entrevistas e sessenta e sete entrevistados que con-
tam suas trajetórias de vida desde o momento em que seus pais ou
eles próprios deixam o Líbano e a Síria, para tentar vida nova no Brasil.
Para quem pesquisa o processo imigratório árabe em direção ao
Brasil (e em especial São Paulo), este livro traz uma coletânea de
entrevistas que não passaram por qualquer processo de análise ou
reflexão. Trata-se do levantamento feito pelas autoras praticamente
em estado bruto! Este tipo de material abre um leque muito grande
de possibilidades de trabalho a respeito desse tema.
Do início das entrevistas até a publicação do livro, passaram-se 16
anos. Nesse tempo as autoras reuniram em um único volume um

318
resenhas. Imaginário - usp, n° 7, pág. 322-323, 2001

trabalho belíssimo de resgate da memória desses primeiros imigran-


tes árabes — e de seus descendentes.
As histórias de vida relatadas têm um conteúdo emocional muito
forte. Abrangem a dor da saída da terra natal, da separação de en-
tes queridos e das paisagens familiares construídas ao longo de
uma vida. A chegada ao Brasil também é retratada. O "país do futu-
ro", onde nada poderia dar errado, a esperança de reconstrução da
vida, em liberdade, sem o controle do Império Turco-Otomano, pre-
enchem boa parte das lembranças desses imigrantes.
A maior parte dos depoimentos retratam o cotidiano na cidade de
São Paulo. Eles falam como era viver em São Paulo, das atividades
econômicas que desenvolviam, das formas de lazer que elabora-
ram. A montagem de clubes, como o Homs, o Zahie, tinham como
objetivo não só a diversão, mas também a possibilidade do encon-
tro com pessoas das mesmas aldeias, com costumes semelhantes
e que pudessem compartilhar lembranças. Não raro, referem-se aos
clubes como uma maneira de conservar os hábitos, como por exem-
plo, a alimentação. Poucos entrevistados mencionam a dificuldade
de se "acostumarem" com o novo modo de vida. As diferenças cul-
turais são muitas vezes mascaradas de alguma forma. A alimenta-
ção, as práticas religiosas, as regras sociais eram muito diferentes
daquelas vividas no Oriente Médio. Vejamos o seguinte trecho:

"Alice Maluf - (...) se você gosta de um vestido meu, eu ennpresto


para você copiar. Aqui, quando cheguei, eu perguntava: 'Onde você
faz seus vestidos? Porque eu não sabia de costureira nem nada!
Diziam: Você tem uma família tão grande e está me perguntando?'
ou 'Numa costureira'. Eu até chorava à noite! Como eu perguntei
uma coisa dessas? Perguntavam muita coisa do Líbano mas não
me contavam nada daqui. Eu contava para meu marido, ele dizia:
'Você compreendeu errado!' Ele também não me apoiava!..."(...) Mas
a gente sofre (...) Tínhamos uma vida social muito interessante (no
Líbano). E aqui era muito difícil. Até hoje é difícil... Eu chorava mui-
to, eu era nova aqui. Eu achava muito, muito triste... (Depoimento
de Alice Maiuf pág. 711-712)

Histórias de vida como esta, nos dão um excelente contraponto com


relação à visão idílica da perfeita adaptação dos imigrantes, de um
modo geral, aos locais em que chegavam. Na maior parte dos casos

318
resenhas. Imaginário - usp, n° 7, pág. 323-323, 2001

a chegada e a convivência inicial eram muito difíceis. A diretora Tizuka


Yamazaki mostra muito bem essa dificuldade quando faz o filme Gaijin-
Caminhos da Liberdade. Ela mostra o extremo dessa dificuldade ao
retratar o suicídio de uma das personagens, que não agüenta viver
longe do Japão. Essa personagem veste seu melhor quimono e se
enforca dizendo estar vendo novamente o Mar do Japão.
Apesar de sabermos que as dificuldades existiram e que eram mui-
tas, os imigrantes muitas vezes as negavam e chegavam a afirmar
que quem não "conseguiu se fazer" no Brasil é porque era preguiço-
so, vagabundo e assim por diante. Sentidos como o expresso na se-
guinte frase: "Eu tratava de subjugar as dificuldades com a vontade
de vencer e eu consegui." (Sr. Jorge Germanos, pág. 733), podem
ser encontrados permeando a fala dos entrevistados. O sucesso no
trabalho e o enriquecimento aparecem obrigatoriamente como forma
de compensar as angústias sofridas pelas mais diversas formas de
separação. Assim, com raras exceções, admite-se o "fracasso". Em
alguns poucos momentos, os entrevistados chegam a abordar o fato
de que alguns patrícios não se deram bem. E logo em seguida expli-
cam que a culpa é deles próprios, pelos mais variados motivos.
Os depoimentos nos dão muitas vezes a sensação de estarmos
entrando no cotidiano daquelas pessoas. Nesse sentido, não pode-
mos deixar de referenciar o papel que o mascate desempenhou para
a colônia e para as pessoas que lhes compravam as mercadorias.
No falar desses entrevistados, ele chega a ter a dimensão quase
que de um herói. Apresentado como o verdadeiro bandeirante, já
que percorreu os mais distantes e inóspitos lugares do Brasil, o
mascate é um dos importantes símbolos desse grupo social. Ele
representa o trabalho extenuante, a vontade de vencer e a coragem
desses imigrantes na nova terra.
Outra questão interessante é quanto à discriminação racial. No Brasil
dos sírios e libaneses ela era praticamente inexistente. Não haviam dis-
putas entre esses imigrantes em função da religião, das diferentes etnias
ou nacionalidades. A primeira impressão que se tem é que todas essas
incongruências ficaram a bordo dos navios que os trouxeram.
No país classificado por eles como o do futuro, essas coisas eram
impensáveis ou impraticáveis.

318
instruções para os autores
1. A comissão executiva se reserva o direito de aceitar, recusar ou reapreseniar o originai
ao autor com sugestões de mudanças. Os relatores de parecer permanecerão em sigilo.
2. A revista não se responsabiliza pelo conteúdo dos artigos, assumindo o autor total
responsabilidade quanto à propriedade intectual e pelas informações veiculadas nos
mesmos.
3. Os textos originais deverão ser encaminhados em duas (2) vias digitadas em espaço
1,5, fonte times new roman, tamanho 12, e uma via em disquete (Word 6.0 ou Rich Text
Format) para o seguinte endereço:
Instituto de Psicologia - USP
Laboratório de Estudos do Imaginário - LABI
Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, travessa 4, bloco 17, sala 18
CEP 05508-900 - Cidade Universitária - São Paulo - SP
4. A apresentação dos manuscritos deve seguir a seguinte ordem:
a) Folha de Rosto:
• Título em Português e em Inglês
• Título abreviado para cabeçalho
• Nome de cada um dos autores, seguido por afiliação institucional de cada um.
• Endereço completo do(s) autor(es) para correspondência, incluindo CEP, telefone,
fax e e-mail.
Obs.: Esta deve ser a única página do manuscrito com identificação, tendo em vista
que a revisão dos manuscritos é cega quanto à identidade dos autores.
b) Folha de rosto sem identificação
• Título em Português e em Inglês
• Título abreviado para cabeçalho
5. Os artigos devem ser acompanhados de resumo de até 100 palavras, em português
e inglês (abstract), palavras-chave em português e inglês (key words) e referências
bibliográficas, segundo norma NB-66 (NBR 6023) da Associação Brasileira de Normas
Técnicas - ABNT.
6. A apresentação do texto deve seguir as seguintes recomendações:
a) O texto deve começar em uma nova página, numerada como página três (3) com o
título centrado no topo da mesma, seguido do(s) nome(s) do autor(s).
b) Cada página subseqüente deve estar numerada.
c) Não inicie uma nova página a cada subtítulo. Separe-os usando uma linha em branco.
d) O texto inteiro deve ser digitado em uma única fonte {Times New Roman).
e) Não utilizar sublinhado ou itálico para títulos e seções.
f) Não utilizar caixa alta (todas as letras em maiúscula) para títulos, seções e ênfases.
g) Para dar ênfase ou destaque utilize o itálico, nunca sublinhado ou negrito.
h) Assinalar o parágrafo com um único toque de tabulação.
i) As notas de rodapé devem ser indicadas por algarismos arábicos e listadas ao final
do texto, com o título de "Notas".
R e v i s t a Imaginário 6
Percepção/Bricolage

Releitura'Levi-Strauss-Bricolage- Fernanda Amalfi


O céu da História: sobre alguns motivosjudaico-benjaminianos-0]^úà2i(Jcmm¥&r&sM2Lto^
Ojogo de ajuntar coisas e a arte da descontinuidade- Séigiolima
l^e lien social - Leslie Kaplan

A oralidade: a escrita da ^ í ^ o V / ^ - E l i z a b e t h C e i t a Vera Cruz


Percursos da Etnografia: loucm2,e imaginário Dogon -Denise Dias Barros

Considerações sobrejustiça e violência — o camponês paraibano ír6»^6>bricoleur-Marcelo Gomes Justo

Religiões transnacionais. A Igreja Católica romana no brasile a Igreja Ortodoxa na Rússia-RalpháékCaya.


A espada e a lagoa: duas versões do fim do mundo-CoiúosMa&ctoStél
LaVirgen de l^uján: el milagro de una identidad nacional católica - EloísaMartin
nueva era en Posadas. Viejos es cenários, nuevas Maria dei Rosário Contepomi

Revista//na^/war/o n° 5
Diferença

O ébrio apaixonado:perfis de gênero no imaginário da MPB - / Maria M d a Santos de Matos

De Ia famaj el exilio: el cartero de Neruda- Rob Rix


A iconografia medieval da natividade transformada em poesia por João Guimarães Roj^-Tereza Aline Pereira de
Queiroz

Sobre alguns temas em Anselm Kiefer- Liana Cardoso Soares e Maria Luisa Sandoval Schmidt
Paisagem e cultura - Maria de Lourdes B. de Alcântara e Regina T. Sader

'Le lien social- Leslie Kaplan

Não há lugar como nosso lar: antropologia, multiculturalismo e novas /^í-;?(9/(9^wj--AleksandarBoskovic


Identidade, invisibilidade social, alteridade: experiência e teoria antropológica no centro daspráticas curativas-Vx3s\ós\ç^
Saillant

Cultura nativa eglobalização: Terena em Campo Grande; (re)significando o PaulaCaleffi

Espaço simbólico-]2LneBittencourt
Human adaptabilitj research into the beginning of the third / ^ / / / ^ « « / / / / ^ - M i c h a e l A . LittieandRalphM.
Garruto

Revista//na^/^ar/on" 4
Palavra

A trajetória latino-americana para a modemidade-]ov^ljm2m


Huxlej sobe o morro e desce ao inferno. A umbanda no discurso católico dos anos ArturCesarIsaia

Catarina come-gente- SandraJatahyPesavento


\Jm diálogo com Monteiro L c ^ ^ / o - Maigareth Yayo G i m b o Melero e Maria Alice O l i v a de Oliveira

Brasília, cidade <2r<r<2/V^-Luis Alberto Brandão Santos


O silêncio como motor da opiniãoDeliaCroviDruetta
Um caso de "imaginário coletivo": a procura do eldorado no século X l > 7 - G i l b e r t o Mazzoleni
Islamismo, imigrantes e Estado: religião epolítica cultural «í2^//j-/ra7/íZ-MichaelHumphrey
Revista Imaginário n°3
Natureza
Natureza e naturalistas-Miriam Lifchitz Moreira Leite
Viajando pelo mundo dos museus: diferentes olham no processo de institucionalização das ciências naturais nos museus
brasileiros- Maria Maigaret Lopes
Introdução à herpetologia do Brasil: o contexto cientifico epolítico da expedição bávara ao Brasil de Jobann Baptist von
Spix (ò' Johann Georg Wagler- P. E, Vanzolini
'Ecologia polissêmica-M2iú^2i Coutinho
Indígenas e camponeses: uma relação de fo^^/Z/fj--Regina de Toledo Sader
As felizes culpas do oaV^»/^-Dario Sabbatucci
O sonho indiano: uma metáfora iniãática na literatura de viagem dos séculos XK^ Xl/7-Adone Agnolin
Matraga seu pai, seu filho- Renato da Silva Queiroz
Meditações sobre a desord e m- Gofi&edo Telles Jr
Entrevista: Profa. Marlyse Meyer

Revista Imaginário 2
Memória
Memória da Faculdade de Filosofia Miriam Lifchitz Moreira Leite
O objeto, o colecionador e o Maria Cristina Castilho Costa
Imagens da memória: na prova de Korschach e na obra de Pw/^j-/-Lúcia Maria Salvia Coelho
Travessias, ausências e lembranças: imaginário e memória de navegantes-ShéhMamDoxh.
O passado, o mundo do outro e o outro mundo: tradição oral e memória Maria LuisaSandoval
Schmidt
O fa^erpoético e a memória para uma grupo de velhos imigrantesjaponeses-MinoYd&VioKMxáÀ
Pacoval. Memórias de um mocambo na Amazônia, história vivida e história contada-ILmi^&áç^s Antòmo
Funes
De magia, tempo e memória (De uma aula de Ruy CoelhoJ-JemsaPkesFerreira
Entrevista: Jean Duvignaud - porFrançois Faplantine

Revista Imaginário n° 1
Dinâmica do Simbólico
Da antropologia simbólica ã antropologia cognitiva - RuyCoelho
Afinal o que / Lúcia Maria Salvia Coelho
Um breve estudo sobre cognição e Maria de LourdesBeldi de Alcântara et al
Convergência e conflitos deinterpretação do real: afesta de Corpus Christicomo representação
paradigmática da diversidade <r/////^ra/-LianaSalviaTrindade
As três vo^es do imaginário - François Laplantine
A caminho de Bakoro ro: alguns aspectos das representações da vidapós-mortem dos índios Boro ro do BrasilCentral-
Renate Brigitte Vierder
Para receber Imaginárior.
por e-mail: labi@edu.usp.br
por telefone: 3818-4386 Ramal 22
pelo Correio:
Laboratório de Estudos do Imaginário (LABI)
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP)
Av. Professor Lúcio Martins Rodrigues, trav. 4, bloco 17, sala 18
Cid. Universitária - São Paulo - SP - CEP 05506-900

Título: Imaginário
Diagramação e editoração: Espaço Editorial
Formato: 180 x 220 mm
Mancha: 105 x 165 mm
Tipologia: Arial, Arial Narrow, Courier New, Stencil BT
Papel: Couchê Fosco 90 g/m^ (miolo)
Supremo 250 g/m^ (capa)
impressão da capa: Quadricromia com
laminação fosca e relevo seco
impressão /acabamento: Book RJ Gráfica e Editora
N° de páginas: 328
Tiragem: 1.000 exemplares
11 Presentatlon

13 Between fíuidity and unity: what is local In braziilan Np-hop?


Goetz Ottmann

35 Crossing frontlers: migrancy displacements In braziilan


history
Helenilda Cavalcanti and Isabel Guilien

69 Como Era Gostoso o Meu Francês (How Tasty Was MyUWe


Frenchman): a landmark In the portrayal of Indians In fuH-
length fiction fílm,
Ana Lúcia Toledo

83 An artists testimony
Coca Rodriguez Coelho

84 Frída Kahio: a character of herself


Ligia Assumpção Amaral

119 The speech ofAbya Vala 's (America) spirítual leaders


Gloria Alicia Caudillo Félix

163 Zapatistas*narrativas: from memory to record


Ezequiel Maldonado

173 Acknowledgementofthe role ofaffectíon In the Zapatísta actíon


Laura Beatriz Ramírez Garcia

196 Trujlllo: Myth and emblematlc aspects of a dictatorship


Paola Torres de Ia Cruz

211 Falth Itinerários In neo-esoterism consumption


Renée de Ia Torre and José Manuel Mora

241 The symboHc construction ofdtíes and the sexes


Men and women at the orígins ofAvHa and Évora
Maria Cátedra Tomas

273 The national as a metaphor


iolanda Maria Alves Évora

289 Acknowledgment of human Identity


Mijail Malishev

315 Reviews

Você também pode gostar