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Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

Diretores da Série
Prof. Dr. Niltonci Batista Chaves
Departamento de História, UEPG
Profa Dra. Valeria Floriano Machado
Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação-UFPR

Comitê Editorial Científico


Prof. Dr. Cezar Karpinski
Departamento de Ciência da Informação/UFSC
Prof. Dr. Charles Monteiro
Departamento de História, PUC-RS
Prof. Dr. Cláudio DeNipoti
Departamento de História, UEL
Prof. Dr. Cláudio de Sá Machado Júnior
Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação, UFPR
Profa. Dra. Daniela Casoni Moscato
SEED PR
Prof. Dr. Erivan Cassiano Karvat
Departamento de História, UEPG
Prof. Dr. Fabio Nigra
Departamento de História, Universidad de Buenos Aires
Profa. Dra. Georgiane Garabely Heil Vázquez
Departamento de História, UEPG
Prof. Dr. José Damião Rodrigues
Centro de História, Universidade de Lisboa
Profa. Dra. Méri Frotscher Kramer
Departamento de História, UNIOESTE
Profa. Dra. Patrícia Camera Varella
Departamentos de Artes, UEPG.
Prof. Dr. Robson Laverdi
Departamento de História, UEPG
Profa. Dra. Rosângela Wosiack Zulian
Departamento de História, UEPG
Ensaios sobre teorias da
cultura e da etnicidade

Organizadores
Charles Monteiro
Eduardo Roberto Jordão Knack
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Carole Kümmecke - https://www.conceptualeditora.com/
Fotografia/imagem de Capa: Eduardo Kobra | https://eduardokobra.com/

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


MONTEIRO, Charles; KNACK, Eduardo Roberto Jordão (Orgs.)

Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade [recurso eletrônico] / Charles Monteiro; Eduardo Roberto Jordão Knack
(Orgs.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2021.

249 p.

ISBN - 978-65-5917-354-9
DOI - 10.22350/9786559173549

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. cultura; 2. etnicidade; 3. Ensaios; 4. Estado; 5. Brasil; I. Título.

CDD: 900
Índices para catálogo sistemático:
1. História 900
Sumário

Apresentação 9
Charles Monteiro
Eduardo Roberto Jordão Knack

1 14
Noções de cultura e representação em Michel de Certeau, Michel Foucault e Roger
Chartier
Déborah da Costa Ribeiro Barbosa

2 35
Natalie Zemon Davis e Edward Palmer Thompson: uma História vista de baixo
Michele dos Santos

3 51
Lutas de representações sobre a mãe escravizada: do escravismo ao abolicionismo
castroalvino em “Tragédia no Lar”
Alan Ricardo Schimidt Pereira

4 80
A representação imagética de São Benedito: uma análise a partir da teoria de Roger
Chartier
Caio Felipe Gomes Violin

5 100
Arte-Resistência, Visualidades na Cidade e as Questões de Gênero
Ariella Silva Fernandes Oliveira

6 118
Subalternidade no Discurso Colonial em Moçambique: uma análise de fonte possível
em “O Alegre Canto da Perdiz”, de Paulina Chiziane
Marcia Roque

7 141
O Lugar de fala da mulher fronteiriça: Novas identidades e a consciência “Mestiza”
Giselle Perna
8 159
Cultura e imaginário social do Peru dos anos 1990 e a perspectiva decolonial
Claudia Vargas Machado

9 177
Reflexões sobre o multiculturalismo na FRETILIN em 1974, período da descolonização do
território Timorense
Bianca Obetine Magnus

10 194
Uma escaramuça e suas percepções tuteladoras
Leonardo Birnfeld Kurtz

11 214
Representações e identidade nacional do futebol americano na imprensa brasileira
da Terceira República
Alyssa Nunes Bruscato Costa

12 231
Cultura, patrimônio e cidade
Eduardo Roberto Jordão Knack

Sobre os Autores 247


Apresentação

Charles Monteiro
Eduardo Roberto Jordão Knack

A presente obra é fruto dos debates realizados no primeiro semestre


de 2021 no “Seminário Teorias da Cultura e da Etnicidade” oferecido pelo
Programa de Pós-Graduação de História da Pontifícia Universidade Cató-
lica do Rio Grande do Sul. A proposta inicial era discutir as principais
referências historiográficas sobre teorias da cultura no campo da História,
como Michel De Certeau, Roger Chartier, Natalie Zemon Davis, E. P. Tho-
mpson, para então debater a obra de alguns autores atualmente centrais
nas ciências humanas, como Stuart Hall e Eduard Said entre outros. Pos-
teriormente, passou-se a discutir sobre raça e etnicidade a partir da obra
Teorias da Etnicidade de Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart. Na
parte final do seminário, refletiu-se sobre decolonialidade, intersecciona-
lidade e cultura visual na contemporaneidade, a partir de estudos que
problematizassem a dimensão social do visual relacionando classe, gênero
e etnicidade. Os ensaios reunidos neste livro refletem a partir desses con-
ceitos as problemáticas de pesquisa de cada um dos autores e autoras.
Em Noções de cultura e representação em Michel de Certeau, Michel
Foucault e Roger Chartier, Déborah da Costa Ribeiro Barbosa discute a
trajetória e as obras destes três autores, que contribuíram significativa-
mente para o debate teórico da História Cultural. Neste sentido, aprofunda
a leitura de alguns conceitos fundamentais sobre cultura e as contribuições
teórico-metodológicas destes autores para pensar os temas da produção
de espaços de poder e de resistência em suas obras.
10 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

Michele dos Santos, em Natalie Zemon Davis e Edward Palmer Tho-


mpson: uma história vista de baixo, tem como objetivo uma breve análise
das abordagens teórico- metodológicas sobre cultura nesses dois histori-
adores. Tentando refletir sobre os diálogos entre Novo Marxismo e Nova
História Cultural na trajetória historiográfica. Compreender a maneira
como cada um deles interpreta e escreve na perspectiva de uma “história
vista de baixo”, buscando explicar o papel na história das massas e de suas
revoltas, das mulheres e da vida dos menos favorecidos. Tanto Thompson
quanto Davis combateram uma visão deturpada de que "os desordeiros”
seriam hordas que praticavam uma violência gratuita sem nenhuma fina-
lidade nem motivações racionais.
Em Lutas de representações sobre a mãe escravizada: do escravismo
ao abolicionismo castroalvino em “Tragédia no Lar”, Alan Ricardo Schi-
midt Pereira aborda os poemas do livro “Os Escravos” de Castro Alves,
escritos na década de 1860. Obra carregada de representações sobre as
mães cativas, que destoam das representações produzidas pelos Manuais
de Fazendeiro (Fonseca, Imbert e Taunay). Desta forma, problematiza as
lutas de representações da escravidão e da família escravizada no Brasil
Imperial a partir do conceito de representação de Roger Chartier.
Caio Felipe Gomes Violin, em A representação imagética de São Be-
nedito: Uma análise a partir da teoria de Roger Chartier, reflete sobre a
imagética de São Benedito a partir dos conceitos de representação de Ro-
ger Chartier e de iconografia de Erwin Panofsky.
Em Arte-Resistência, Visualidades na Cidade e as Questões de Gênero,
Ariella Silva Fernandes Oliveira discute sobre arte e visualidade urbana a
partir do trabalho da artista visual Maria Zeferina, realizado nas ruas do
centro de São Luís do Maranhão em 2018. O trabalho da artista problema-
tiza questões de gênero, as representações dos corpos das mulheres e
outras questões feministas no espaço urbano. Ela aborda a arte de rua
Charles Monteiro; Eduardo Roberto Jordão Knack | 11

como um elemento transformador da paisagem urbana, como uma ação


de resistência, que dá voz e potência às narrativas e às problemáticas al-
ternativas das mulheres.
Marcia Roque em Subalternidade no Discurso Colonial em Moçambi-
que: uma análise de fonte possível em “O Alegre Canto da Perdiz”, de
Paulina Chiziane analisar o discurso colonial e o estereótipo do negro in-
feriorizado a partir dos postulados de Homi Bhabha e Franz Fanon. Para
tanto, toma como fonte a obra da escritora Paulina Chiziane, “O Alegre
Canto da Perdiz”, que situa tal formação discursiva em Moçambique. A
partir da trajetória das personagens, analisa tanto as fraturas identitárias
quanto o processo de assimilação dos negros e negras pelo regime colonial.
Outro ponto abordado é a objetificação do corpo feminino africano cons-
truído como moeda de troca pela presença do colonizador. Tais análises
baseiam-se em uma epistemologia formada fundamentalmente por pen-
sadores negros do processo decolonial, provocando um deslocamento do
olhar sobre o objeto de análise e considerando as vozes alternativas à nar-
rativa hegemônica ocidental.
Em O Lugar de fala da mulher fronteiriça: Novas identidades e a cons-
ciência “Mestiza”, Giselle Perna problematiza a fronteira com um espaço
caracterizado por incessantes travessias externas e internas, que permite
o experimentar identidades múltiplas, compondo diferentes maneiras de
viver e de transitar na contemporaneidade. Todavia, a fronteira é conside-
rado também um espaço de tensões e de negociações identitárias, de
silenciamento dos corpos e das vozes dos sujeitos que ali vivem, especial-
mente, das vozes femininas. As mulheres fronteiriças estão submetidas a
diferentes níveis de opressão. Primeiro, por serem consideradas sujeitos
em movimento, diaspóricas, e, em segundo, pelo subjugamento de gênero,
12 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

que já lhes confere uma situação de opressão e diminuição por serem mu-
lheres. Essa dupla recusa vem a reforçar sua subalternidade e
circunscreve-las ao silêncio.
Claudia Vargas Machado procura em Cultura e imaginário social do
Peru dos anos 1990 e a perspectiva decolonial fazer uma análise da cultura
e do imaginário político do Peru da década de 1990, a partir dos conceitos
de multiculturalismo e etnicidade para entender a perspectiva decolonial
sobre o tema. O seu objetivo é compreender como o Peru lidou com uma
convulsão social entre duas frentes políticas: os grupos guerrilheiros de
esquerda e o governo autoritário e violento de direita.
Em Reflexões sobre o multiculturalismo na FRETILIN em 1974, perí-
odo da descolonização do território Timorense, Bianca Obetine Magnus
propõe uma reflexão sobre a questão do multiculturalismo a partir da obra
Da Diáspora de Stuart Hall, aplicando-a ao caso timorense da Frente Re-
volucionária de Timor-Leste Independente (FRETILIN). O movimento
político timorense FRETILIN defendeu a independência do Timor-Leste no
contexto de descolonização no período de 1974 a 1975. O seu objetivo é
analisar como a FRETILIN elaborou essas questões em sua proposta polí-
tica de independência do território.
Leonardo Birnfeld Kurtz, em Uma escaramuça e suas percepções tu-
teladoras, tem como objetivo trabalhar os conceitos de poder tutelar, a
partir de Antonio Carlos de Souza Lima, de raça e de etnia, a partir de
Stuart Hall, e representação, de Roger Chartier, para interpretar as conse-
quências da expedição privada do jornalista Willy Aureli, na Bandeira
Piratininga, no Rio das Mortes. Em agosto de 1938, a Bandeira entrou em
conflito com os índios Chavantes, gerando críticas à conduta dos bandei-
rantes vindas do Marechal Rondon do Serviço de Proteção aos índios e do
Conselho de Fiscalização de Expedições Científicas.
Charles Monteiro; Eduardo Roberto Jordão Knack | 13

Em Representações e identidade nacional do futebol americano na im-


prensa brasileira da Terceira República, Alyssa Nunes Bruscato Costa
aborda os conceitos de representação e de identidade nacional relaciona-
dos a difusão do futebol americano no Brasil por meio da grande imprensa
escrita entre os anos de 1945 até 1964. Ademais, explora o contexto histó-
rico do período denominado de Terceira República marcado por inúmeras
mudanças, torna-se essencial para compreender a construção da opinião
pública sobre o novo esporte denominado futebol americano.
Eduardo Roberto Jordão Knack em Cultura, patrimônio e cidade
apresenta uma reflexão sobre temas e conceitos importantes para quem
pretende se debruçar sobre o urbano, a história das cidades e do patrimô-
nio cultural – memória social, patrimônio, cultura e representações são
discutidas para pensar aspectos e características das cidades. A partir de
exemplos de seu trabalho com Passo Fundo, cidade localizada ao norte do
Rio Grande do Sul, esses temas são exemplificados e contextualizados.
A Linha Cultura e Etnicidade do PPG de História da PUCRS pretende
a partir da reflexão e aplicação dos conceitos de cultura, representação,
decolonialidade e interseccionalidade nos ensaios aqui reunidos contribuir
para o aprofundamento do debate atual sobre estes temas na historiogra-
fia brasileira.
1

Noções de cultura e representação em Michel de


Certeau, Michel Foucault e Roger Chartier

Déborah da Costa Ribeiro Barbosa

Introdução

Nas últimas décadas do século XX, o movimento historiográfico foi


marcado e direcionado pela emergência de novos objetos e novas proble-
máticas. As discussões acerca de noções de cultura e as problemáticas nelas
envolvidas estão presentes em diversos campos das ciências sociais e tam-
bém nas análises historiográficas da contemporaneidade. O debate está
presente nos textos de historiadores, antropólogos, sociólogos, etnólogos
e outros estudiosos das ciências humanas em busca de definições e enten-
dimento do fator cultural. A cultura, vista como modo de apreensão do
mundo social, possui uma posição central e significativa em nas análises
históricas, assim como possui expressiva importância nos debates atuais,
visto que, de acordo com Roger Chartier: “As lutas de representações têm
tanta importância como as lutas econômicas para compreender os meca-
nismos pelos quais um grupo impõe ou tenta impor, a sua concepção do
mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio” (CHARTIER,
2002, p. 17). Representação, cultura e poder são alguns dos temas centrais
nas obras dos três autores analisados neste artigo e que serão tomados
aqui como ponto de convergência.
Em disputa nos campos das ciências humanas, a polissemia, ou seja,
a multiplicidade de sentidos da cultura para a história foi e ainda é, uma
problemática recorrente nos textos que se situam dentro do campo de uma
história voltada a abordagens que procuram conciliar os mais diversos
Déborah da Costa Ribeiro Barbosa | 15

conceitos que definem cultura. Esses debates acerca da cultura possibilita-


ram a elaboração de novos horizontes e de novas abordagens significativas
para o fazer historiográfico, que produziram novos objetos e problemáti-
cas de pesquisa que estão presentes no cotidiano do historiador até hoje.
Conectada ao desenvolvimento da História Intelectual e das Mentali-
dades, a História Cultural caracteriza-se como campo historiográfico pela
interdisciplinaridade e dialoga com áreas como a linguística, a semiótica,
a psicanálise e a antropologia, entre outras. Situada num contexto de ten-
são e de polaridade, estes estudos estão focados nas estruturas e em
abordagens que dão primazia à subjetividade das representações. A Histó-
ria Cultural como ela é concebida por Roger Chartier, procura ultrapassar
esses embates e:

Desta forma, pode pensar-se uma história cultural do social que tome por ob-
jeto a compreensão das formas e dos motivos - ou, por outras palavras, das
representações do mundo social - que, à revelia dos atores sociais, traduzem
as suas posições e interesses objetivamente confrontados e que, paralela-
mente, descrevam a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam
que fosse. (CHARTIER, 2002, p. 19)

As obras analisadas neste artigo situam-se no campo da produção


acadêmica francesa entre o final da década 60, com As palavras e as coisas
de Michel Foucault, publicada em 1966 e que antecede algumas ideias cé-
lebres do autor como a arqueologia do saber; as décadas de 70 e 80, com
a trajetória de Michel de Certeau, nos livros A escrita da História (1975) e
A invenção do Cotidiano (1980); e, posteriormente, com as obras de Roger
Chartier dos anos 1990, nas quais o autor vai retomar e elucidar pontos
importantes das trajetórias de Michel de Certeau e Michel Foucault.
A História Cultural defendida por Roger Chartier vai ter sua gênese
em textos e discussões ocorridos na França a partir da década de 60, como
16 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

explicitado no início de sua obra A História Cultural de 1988. A obra surgiu


a partir de ensaios publicados entre 1982 e 1986 “como resposta à insatis-
fação sentida frente à história cultural francesa dos anos 60 e 70,
entendida como dupla vertente de história das mentalidades e de história
serial, quantitativa.” (CHARTIER, 2002, p.13). Por isso, as características
da História Cultural não podem estar separadas da conjuntura e da situa-
ção da história durante estas décadas.

Numa palavra, poderá dizer-se que a história era então institucionalmente


dminante e que se encontrava intelectualmente ameaçada. A posição que de-
tinha no campo universitário era assegurada pelo seu peso numérico (em
1967, ascende ao segundo plano das letras e das ciências humanas, atrás da
literatura francesa, mas muito antes da linguística, da psicologia ou da socio-
logia e pela importância do capital escolar, em termos de currículo e de graus
acadêmicos [...]. (CHARTIER, 2002, p. 13).

A década de 60 trouxe aos historiadores uma enxurrada de novos


desafios propostos a pelas novas disciplinas que buscavam se consolidar
academicamente, provocando a busca de novos objetos. E com novos ob-
jetos surge também a possibilidade de trabalhar com disciplinas como a
linguística e a semântica. Lynn Hunt, em sua obra A Nova História Cultu-
ral, aponta que a partir da inspiração de historiadores marxistas entre as
décadas de 50 e 60:

[...] Os historiadores das décadas de 1960 e 1970 abandonaram os mais tradi-


cionais relatos históricos de líderes políticos e instituições políticas e
direcionaram seus interesses para as investigações da composição social e da
vida cotidiana de operários, criados, mulheres, grupos étnicos e congêneres.
(HUNT, 1992, p. 2)

A influência da escola dos Annales foi sentida na produção historio-


gráfica, desvencilhou-se das fronteiras da academia francesa e se tornou
Déborah da Costa Ribeiro Barbosa | 17

internacional a partir da década de 1970, tendo como figura central Fer-


nand Braudel. A ênfase nos estudos econômicos e sociais foi sendo
mesclada com os estudos na área cultural e com estudos que apresenta-
vam grande influência da linguagem nas análises históricas, característica
marcante a partir da década de 1980. Hunt afirma que:

À medida que a quarta geração dos historiadores dos Annales passou a preo-
cupar-se cada vez mais com aquilo que, muito enigmaticamente, os franceses
chamam mentalités, a história econômica e social sofreu um recuo em termos
de sua importância. Esse interesse aprofundado pelas mentalités (mesmo en-
tre os membros da geração mais velha dos historiadores dos Annales) levou
também a novos desafios e paradigmas dos Annales. (HUNT, 1992, p. 9)

Foi durante este período também que a linguística parece ter de fato
se imbricado nos estudos históricos, com o chamado giro linguístico. O
linguistic turn, mais especificamente, trazido para o português como giro
linguístico ainda suscita debates entre os teóricos da historiografia. De
acordo com Iggers (2010):

Nos anos setenta e oitenta, surge no Ocidente, mas também no pensamento


pós-colonial na Índia e na América Latina, o assim chamado “giro cultural”
(cultural turn), que no Ocidente esteve estreitamente ligado com o “giro lin-
guístico”. [...] Nos anos 1970 e 1980, os historiadores começaram cada vez
mais a apontar para o fato de que a concentração em fatores quantitativos
econômicos e sociais, característica para o marxismo e para as ciências
sociais, não seria adequada para a representação (Darstellung) histórica,
porquanto esta deveria levar em conta antes o significado da cultura e da lin-
guagem para as construções conceituais da realidade em constante mutação.
(IGGERS, 2010, p. 108)

Tendo como base as obras citadas e situadas neste turbilhão de ideias,


novos objetos e incertezas, partiu-se primeiramente de uma leitura de Mi-
chel Foucault, e intenta-se situar a obra deste nos estudos da história da
18 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

cultura e estabelecer um ponto de encontro entre os autores, aproximando


suas trajetórias para posteriormente aprofundar alguns conceitos chaves
das obras As palavras e as Coisas de Michel Foucault e A invenção do Co-
tidiano de Michel de Certeau, conceitos importantes que posteriormente
serão revisados por historiadores da História Cultural.
A História Cultural 1, como compreendida pelo pensador francês Ro-
ger Chartier engloba as noções de “representação”, “prática” e
“apropriação”. Trabalhando a partir desses eixos propostos por Chartier,
o artigo procura formular um diálogo entre os três autores, suas possíveis
aproximações e divergências, para melhor compreender a extensão e a
complexidade das práticas discursivas que pertencem ao campo do fazer
historiográfico, assim como as ressonâncias de tais conceitos na historio-
grafia.

Os historiadores leitores

Em uma nota introdutória ao clássico estudo sobre a História Cultu-


ral, “À beira da falésia”, de 2002, Roger Chartier inaugura sua narrativa
citando dois pensadores, Michel de Certeau e Michel Foucault, ainda na
primeira linha. Essa breve menção carrega uma série de conceituações e
delimitações teóricas imbricadas nas obras e no pensamento dos autores,
que delimitaram problematizações no campo da história desde a década
de 1960.
De Certeau, por sua vez, em uma obra sobre a história e a psicanálise,
dedica um capítulo, quase em forma de ensaio, sobre a produção e a
inquietude excêntrica de Michel Foucault. Apresenta uma situação em que,
em uma conferência em Belo Horizonte, Foucault teria sido contestado por
um ouvinte sobre o lugar de onde falava. No final de sua explicação,

1
Por “História Cultural” entende-se uma delimitação ampla, utilizada por José D’Assunção Barros, que emprega o
termo para definir toda a historiografia voltada ao estado das dimensões culturais. Ver BARROS, 2005.
Déborah da Costa Ribeiro Barbosa | 19

Foucault responde “Qui je suis? Un lecteur 2”. Leitores, eruditos e


preocupados com os rumos do fazer historiográfico, os três autores
conversam e divergem em diversos pontos.
Leitores e comentadores de De Certeau e Chartier apontam para di-
versos pontos que aproximam suas produções do pensamento de Michel
Foucault, que torna-se uma das mais recorrentes matrizes de pensamento
na área. Em meio a críticas e a observações, Michel de Certeau fará diver-
sas referências à Michel Foucault em sua extensa lista de produções
bibliográficas. Em uma obra póstuma organizada por Luce Giard, Histoire
et psychanalyse: entre science et fiction, dedica dois capítulos à Foucault.
Assim como Chartier, que dedica um espaço significado de sua obra a crí-
ticas e a retomada de pensamentos de Foucault em sua produção.

“Entre a fina ponta do pincel e o gume do olhar, o espetáculo vai liberar seu
volume” 3.

Assim como a cultura, Foucault também parece ser uma figura cen-
trada na polissemia. Para Roger Chartier “A obra de Foucault não se deixa
submeter facilmente às operações implicadas pelo comentário”
(CHARTIER, 2002, p. 123). Foucault parece ser, ao mesmo tempo, criti-
cado e extensamente utilizado pelos historiadores, ainda que, embora
tenha feito obras como História da Loucura, nunca procurou se enclausu-
rar dentro da delimitação de “historiador”. Para Hunt:

Nem marxista, nem ligada à escola dos Annales, neste último quarto de século
a obra de Foucault tem sido alternadamente louvada e atacada pelos historia-
dores - e, em ambos os casos, quase sempre mal compreendida. O corpo do
texto de Foucault raramente foi apreendido como aquilo que de fato é: um

2
Quem sou eu? Um leitor. Ver: De Certeau, 2016, p. 133.
3
FOUCAULT. As palavras e as coisas, 1991, p. 3.
20 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

modelo alternativo para a escrita da história da cultura, um modelo que incor-


pora uma crítica fundamental da análise marxista e dos Annales, bem como
da própria história social. (HUNT, 1992, p. 33-34)

Portanto, Foucault carrega em sua obra as discussões de historiado-


res da década de 60, perpassa diversas áreas de conhecimento e sua obra,
ainda que não recebida carinhosamente pelos historiadores, deixou fortes
marcas nos estudos culturais. Seus estudos foram significativos em diver-
sos campos das ciências humanas e tiveram um grande alcance na
academia, em especial a francesa, nas décadas de 60 e 70. Durante este
período as discussões estavam pautadas nos estudos provenientes da psi-
cologia, na leitura das fontes clássicas da história social ao mesmo tempo
que dialogavam com a antropologia e florescia o embate entre práticas e
estruturas. O interesse no campo da história pela linguagem nos anos 1980
reacendeu o interesse pelas obras de Michel Foucault.
A obra As palavras e as coisas, precursora da Arqueologia do saber 4,
teve sua publicação em 1966 e inicia com a inquietação do riso do autor
provocado por um texto de Jorge Luis Borges, escritor, poeta e ensaísta
argentino, sobre a esfera da ordenação das coisas. Foucault parte desse
riso, dessa inquietação para conceitualizar códigos fundamentais da cul-
tura:

Os códigos fundamentais de uma cultura - aqueles que regem sua linguagem,


seus esquemas perceptivos, suas trocas, suas técnicas, seus valores, a hierar-
quia de suas práticas - fixam, logo de entrada, para cada homem, as ordens
empíricas com as quais terá de lidar e nas quais se há de encontrar. Na outra

4
A ideia de arqueologia do saber na obra de Michel de De Certeau é discutida em As Palavras e as Coisas, ainda que
não esteja elaborada por completo. Nesta obra, de 1966, Foucault oferece um rascunho da teoria da arqueologia como
prática metodológica para a história que será discutida em Arqueologia do Saber, obra posterior, de 1969, em que
Foucault recebe e analisa as críticas recebidas no seu livro de 1966 e então discorre sobre a prática, que será ainda
superada pelo próprio autor, com a elaboração do conceito de genealogia do saber apresentada no ensaio Nietzsche,
a Genealogia, a História, em 1971. Ver: FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro; Forense
Universitária, 2008
Déborah da Costa Ribeiro Barbosa | 21

extremidade do pensamento, teorias científicas ou interpretações de filósofos


explicam por que há em geral uma ordem, a que lei geral obedece, que princí-
pio pode justificá-la, por que razão é esta a ordem estabelecida e não outra.
Mas, entre essas duas regiões tão distantes, reina um domínio que, apesar de
ter sobretudo um papel intermediário, não é menos fundamental; é mais con-
fuso, mais obscuro e, sem dúvida, menos fácil de analisar. É aí que uma
cultura, afastando-se insensivelmente das ordens empíricas que lhe são pres-
critas por seus códigos primários, instaurando uma primeira distância em
relação a elas, fá-las perder sua transparência inicial, cessa de se deixar passi-
vamente atravessar por elas, desprende-se de seus poderes imediatos e
invisíveis[...] É em nome dessa ordem que os códigos da linguagem, da per-
cepção, da prática são criticados e parcialmente invalidados. (FOUCAULT,
1991, p. XVIII)

O termo “códigos”, proveniente dos estudos da linguagem, reflete a


inserção do autor nos estudos de antropologia, mas em especial na linguís-
tica, visto que dá primazia à linguagem durante todo o texto. Entre um
olhar codificado pelos códigos e um conhecimento reflexivo, existiria uma
“região mediana” (FOUCAULT, 1999, p. XVIII), traduzida por uma experi-
ência encontrada:

Assim, em toda a cultura, entre o uso que se poderia chamar os códigos orde-
nadores e as reflexões sobre as ordens, há a experiência nua da ordem e de
seus modos de ser. É essa experiência que se pretende analisar. (FOUCAULT,
1999, p. XVIII).

Uma das críticas mais contundentes feitas à Foucault, não apenas de


historiadores, mas de estudiosos das mais variadas áreas de estudo, refere-
se a falta de delimitação de um tema específico em suas obras. Caracterís-
tica enunciada por Chartier quando afirma:
22 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

Todo seu projeto de análise crítica e histórica do discurso está, de fato, baseado
na recusa explícita dos conceitos classicamente manipulados pela “história tra-
dicional das ideias”, que permanece afeita ao recurso mais imediatamente
mobilizável para compreender e fazer com que se compreenda um texto, uma
obra, um autor. (CHARTIER, 2002, p. 125).

O autor utiliza-se do termo de “códigos da cultura”, porém, em toda


a obra, não deixa explícito ou mesmo faz referência às problematizações
sobre as noções de cultura que já estavam sendo trabalhadas, por exemplo,
nas pesquisas antropologicas. Enquanto a cultura permeia o texto inteiro
sem ser explanada, outro conceito ocupa diversas páginas e se articula
como um conceito essencial para compreender a obra. Na parte introdu-
tória do texto, Foucault elabora o conceito de épistémè 5, que aparece em
todo o decorrer do texto. Um conceito de conceito chave em sua obra, que
Foucault define como:

[...] a épistémè onde os conhecimentos, encarados fora de qualquer critério


referente a seu valor racional ou a suas formas objetivas, enraízam sua positi-
vidade e manifestam assim uma história que não é de sua perfeição crescente,
mas, antes, a de suas condições de possibilidade; neste relato o que deve apa-
recer são, no espaço do saber, as configurações que deram lugar às formas
diversas do conhecimento empírico. Mais que de uma história no sentido tra-
dicional da palavra, trata-se de uma “arqueologia”. (FOUCAULT, p. XVIII)

Por épistémè compreende ainda que:

Designa as condições históricas a partir das quais filosofias e saberes empíri-


cos, científicos ou não, são apreensíveis ao conhecimento. Trata-se da rede, do
campo aberto no qual as múltiplas discursividades se relacionam entre si.
(CANDIOTTO, 2009, p.17)

5
A episteme estará presente em toda a narrativa de “As palavras e as coisas”. Entende-se por episteme, um conjunto
de conhecimentos. Foucault traz três em sua obra: a Representação, a Semelhança e a História.
Déborah da Costa Ribeiro Barbosa | 23

Antes de apontar as três épistémès delimitadas e centrais nas As Pa-


lavras e as Coisas, Foucault se vale de uma produção artística para
desenvolver suas reflexões. Dedica o primeiro capítulo à análise de “Las
meninas" de Diego Velázquez, pintura de 1656 que trata dos diferentes
olhares presentes na pintura, inclusive do jogo de olhares entre o pintor e
o observador. Um jogo duplo entre aquele que observa a pintura, quem a
pinta e o observador a quem o pintor estava dedicando a obra. Foucault
nos traz à atenção “aquilo que é olhado mas não visível” (FOUCAULT, p
1966, p.12). É partindo deste caminho, por vezes embaralhado, que Fou-
cault delimita sua problematização e nos apresenta a elaboração de uma
“experiência mediana” que o autor pretende analisar, utilizando-se da ar-
queologia do saber como método histórico.
Ainda sobre a pintura, Foucault coloca, sem muitas explicações
acerca, a noção de representação, peça central para o entendimento de
cultura para Chartier. De acordo com Foucault:

Talvez haja, neste quadro de Velásquez, como que a representação da repre-


sentação clássica e a definição do espaço que ela abre. Com efeito, ela intenta
representar-se a si mesma em todos os seus elementos, com suas imagens, os
olhares aos quais ela se oferece, os rostos que torna visíveis, os gestos que a
fazem nascer. (FOUCAULT, 1999, p.20)

Embora distinta, essa definição não se distancia muito da definição


elaborada por Chartier em que o “conceito de representação foi e é um
precioso apoio para que se pudessem assinalar e articular [...] as diversas
relações que os indivíduos ou os grupos mantêm com o mundo social”
(CHARTIER, 2011, p.20).
A assertiva proposta por Foucault é que existem três descontinuida-
des entre: o final do renascimento, entendido como século XVI; a Idade
Clássica, do século XVII e XVIII; e a modernidade iniciada no século XIX.
24 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

Cada uma marcada por uma episteme, respectivamente: semelhança, re-


presentação e história.
Embora não seja o intuito deste estudo, é importante situar que,
nesta obra, Foucault parte de inquietações nitidamente presentes e atuan-
tes em sua conjuntura sobre as questões da subjetividade e do saber do
“homem moderno” na produção do conhecimento. O percurso acidentado
e, por vezes confuso, da obra vai se cristalizar nas palavras finais, em que
surge o tema da finitude do homem moderno. Nas suas conclusões fica
claro que o autor parte da chamada “modernidade” e do mito da subjeti-
vidade que a cerca para elaborar os conceitos de episteme e procurar
entender as forças atuantes nos discursos dos séculos XVI, XVII e XVIII.
A análise delineada por Foucault coloca que, as epistemes europeias
anteriores ao século XVIII, teriam como característica a finitude do ho-
mem, centrada na sua aproximação com Deus. Foucault nos traz essa
questão para evidenciar como essa ideia afetou a relação com a ciência,
visto que a finitude humana seria uma falta.
A busca por uma delimitação de epistemes é a busca por ordens em
que: “[...] em toda a cultura, entre o uso que se poderia chamar os códigos
ordenadores e as reflexões sobre as ordens, há a experiência nua da ordem
e de seus modos de ser.” (FOUCAULT, 1999, p. XVIII). E é esta busca que
vai inserir Foucault entre os historiadores.
Para Lynn Hunt:

Também existem algumas semelhanças entre Foucault e os historiadores da


primeira e da segunda geração dos Annales; todos esses estudiosos estavam
em busca de regras anônimas que governassem as práticas coletivas, e todos
tiveram parte em deslocar da história o “sujeito” individual da história.
(HUNT, 1992, p. 10)
Déborah da Costa Ribeiro Barbosa | 25

A partir da análise de ordens e descontinuidades, o autor define um


espaço intermediário, em que atuam códigos da cultura e ordens empíricas
e no caminho entre as duas coisas, algo que ele chama de “domínio” mais
confuso, mais obscuro, menos fácil de analisar.
Acredito que essa relação tensa entre os campos dos saberes e das
práticas, presente nas problematizações da história cultural, aparece na
escrita de Foucault, em As Palavras e as Coisas, em que ele delimita um
espaço em que atuam identidades, similitudes e analogias.
É possível aproximar os conceitos colocados por Foucault de espaço
intermediário a noção de franjas de discurso de Michel de Certeau, em A
escrita da História de 1975, e também suas colocações sobre a aparente
“passividade” dos receptores de cultura em A invenção do cotidiano, de
1980. Nesta obra, De Certeau procura analisar a cultura comum e cotidi-
ana enquanto apropriação ou reapropriação dos indivíduos, assim como o
“consumo” ou a recepção, consideradas então como uma “maneira de pra-
ticar”. O autor coloca que a obra possui o intuito de elaborar um modelo
de análise. Mas sua repercussão foi muito além e modificou o eixo de visão
acerca da relação tensa entre o sujeito/ação e a cultura de massa. De Cer-
teau delimita as fronteiras entre “fabricação”, “consumo” e
“consumidores”:

A fabricação que se quer detectar é uma produção, uma poética - mas escon-
dida, porque ela se dissemina nas regiões definidas e ocupadas pelos sistemas
da produção (televisiva, urbanística, comercial etc.) e porque a extensão sem-
pre mais totalitária desses sistemas não deixa aos “consumidores” um lugar
onde possam marcar o que fazem com os produtos. A uma produção raciona-
lizada, expansionista além de centralizada, barulhenta e espetacular,
corresponde outra produção, qualificada de “consumo”: esta é astuciosa, é dis-
persa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase
invisível, pois não se faz notar com produtos próprios mas nas maneiras de
26 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

empregar os produtos impostos por uma ordem dominante. (DE CERTEAU,


1980, p. 39)

Assim, sua proposta de análise é centralizada não nos instrumentos


de poder e de dominação, mas coloca esse consumidor como um agente,
como um indivíduo de ação e não apenas como passivo e receptivo. Coloca
no centro de sua problemática a produção social destes sujeitos, para Ge-
raes Duran essa seria a originalidade da obra de De Certeau:

Ainda que cercado por múltiplas perspectivas de análise, considerando seus


interlocutores, a originalidade da obra de De Certeau está justamente no como
ele inverte a forma de interpretar as práticas culturais contemporâneas, recu-
perando as astúcias anônimas das artes de fazer – esta arte de viver a
sociedade de consumo. (GERAES DURAN, 2007, p.119)

Decorrente de uma pesquisa encomendada pela Secretaria de Pesqui-


sas Científicas da França, A invenção do cotidiano realiza uma crítica
acerca da epistemologia da história. Procura analisar a cultura comum e
cotidiana enquanto apropriação ou reapropriação dos indivíduos. De Cer-
teau não se propõe a realizar uma semiótica sobre as práticas, mas sim
pensar os modos de operação ou esquemas de ação, a partir das práticas
cotidianas do que ele vai chamar de consumidores, trazendo a ideia de
consumo como uma maneira de praticar, uma ação.
A ideia de representação aparece na discussão da obra como algo que
deve levar em conta o estudo daquilo que o consumidor fabrica. O estudo
dessas representações precisa passar pela análise da manipulação pelos
praticantes, que não são aquelas que fabricam. Só então será possível ana-
lisar a diferença ou a semelhança entre uma produção de imagem e a
produção secundária que se esconde.
Em As Palavras e as Coisas Foucault não deixa claro quais mecanis-
mos de poder e nem quais ações dos sujeitos estariam presentes nas
Déborah da Costa Ribeiro Barbosa | 27

formações das épistémès, entretanto, suas obras posteriores aprofunda-


riam essa problemática. Michel de De Certeau realiza uma crítica à
abordagem de Michel Foucault em Vigiar e Punir no seu livro A Invenção
do Cotidiano. São críticas referentes à influência e aos campos de domina-
ção, nas quais De Certeau afirma que Foucault privilegia o aparelho
produtor da disciplina e não o produto dessa disciplina. (De Certeau,
1998).
De acordo com Bocchetti:

Há movimentos paralelos em Foucault e De Certeau no que diz respeito à ana-


lítica sobre o modo como os sujeitos se constituem e operam. E, se é evidente
que uma parte da analítica foucaultiana estaria centrada nos mecanismos dis-
ciplinares e, assim, no âmbito daquilo que De Certeau chamaria de
estratégias, é também visível o espaço de liberdade e criação evidenciado
(e necessário) nos estudos de Foucault. (BOCCHETTI, 2015, p. 45)

Portanto, é possível encontrar um ponto de intersecção entre os au-


tores. Em toda sua obra, Foucault vai trazer a busca pelo não dito. Não dito
este que não é o subliminar, mas sim resquícios que poderiam ser encon-
trados a partir de uma metodologia, ou seja, da metodologia da
arqueologia do saber. Tanto De Certeau quanto Foucault darão primazia
às questões de quem fala, de onde fala e para quem fala. Como demonstra
Foucault em sua leitura da obra de Velázquez e De Certeau em sua reflexão
sobre a produção da cultura, sobre quem a recebe e qual a ação proveni-
ente dessa relação. O conteúdo em si não parece estar na centralidade da
análise, mas sim no modus operandi da fala. De maneiras diferentes, os
dois irão pensar o discurso como uma ação em que estão refletidos atos de
poder, de acordo com Bocchetti “em ambos o interesse em compreender
as possibilidades de multiplicidade, de heterogeneidade; dos outros, enfim,
28 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

que se singularizam naquilo que, cotidianamente, produzem”


(BOCCHETTI, 2015, p. 46).
“Entre el observador y lo observado, el abismo” (DAVANZO, 2010,
p.162). As instituições, as subjetividades do historiador, as ausências nos
discursos e os espaços criados a partir dessas relações são temas recorren-
tes nas obras de De Certeau. Sobre sua obra e as questões que a cercam,
Davanzo coloca que:

Tejido de diversas voces que responden siempre a un lugar social, y que se


ocultan y exhiben a la vez en un diálogo que no deja de ser problemático, pues
¿cómo determinar en qué momento el flujo de hechos se divide y comienza a
ser “pasado”? (DAVANZO, 2010, p. 167)

Foucault termina a análise da obra de Velázquez afirmando que “en-


tre a fina ponta do pincel e o gume do olhar, o espetáculo vai liberar seu
volume”. As representações, das mais diversas formas, abrem uma teia de
conhecimentos e conexões com o mundo social e as subjetividades. Con-
forme Chartier (2002, p. 17) as percepções do mundo social “não são de
forma alguma discursos neutros; produzem estratégias e práticas (sociais,
escolares, políticas)”. É um campo de disputa em que:

As lutas de representação têm tanta importância como as lutas econômicas


para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe ou tenta im-
por, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu
domínio. (CHARTIER, 2002, p.17)

Ordens e práticas

Entre uma briga de gigantes, é possível situar Roger Chartier como


leitor e crítico, quase como um mediador entre os embates teóricos de
Foucault e De Certeau. Uma leitura mais abrangente de sua obra
Déborah da Costa Ribeiro Barbosa | 29

demonstra um diálogo constante com Chartier e os autores mencionados.


Para o historiador José D’Assunção Barros:

Chartier e De Certeau avançam ainda mais na crítica às concepções monolíti-


cas da cultura, condenando a pretensão de se estabelecerem em definitivo
relações culturais que seriam exclusivas de formas culturais específicas e de
grupos sociais particulares. (BARROS, 2005, p.130)

De acordo com Hunt, “ao se voltarem para as investigações da cul-


tura, os historiadores dos Annales, como Chartier e Revel, foram
influenciados pela crítica de Foucault acerca dos pressupostos fundamen-
tais da história social” (HUNT, 1992, p. 9)
Em sua obra À beira da falésia, Chartier (2002) vai dedicar alguns
capítulos a elucidar as contribuições, as lacunas e as discussões em torno
das obras de Michel de Certeau e de Michel Foucault.
A leitura, os diferentes leitores e as distintas práticas de leitura que
surgem a partir do texto e do livro são questões amplamente recorrentes
nas obras de Chartier: A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas
na Europa entre os séculos XIV e XVIII (1998), A aventura do livro: do leitor
ao navegador (2002), Inscrever e apagar: cultura escrita e literatura
(2007), e de uma forma menos específica em A história ou a leitura do
tempo (2009) são alguns exemplos da sua produção.
A partir dessa temática, Chartier vai retomar a problemática de or-
dens, mecanismo e práticas culturais, tão centrais tanto na obra de
Foucault quanto na de De Certeau a partir do estudo sobre fontes escritas
e da cultura na Europa: "Daí a caracterização das práticas discursivas
como produtoras de ordenamento, de afirmação de distâncias, de divisões;
daí o reconhecimento das práticas de apropriação cultural como formas
diferenciadas de interpretação” (CHARTIER, 2002, p. 28).
30 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

Roger Chartier, interessado nos espaços entre a cultura oral e a cul-


tura escrita, aproxima-se das afirmativas de De Certeau em A invenção do
cotidiano acerca das práticas, colocando o sujeito como foco de ação na
apropriação da cultura:

No ponto de articulação entre o mundo do texto e o mundo do sujeito, coloca-


se necessariamente uma teoria da leitura capaz de compreender a apropriação
do discurso, isto é, maneira como estes afectam o leitor e o conduzem a uma
nova norma de compreensão de si próprio e do mundo (CHARTIER, 2002,
p.24)

Entretanto, essa noção de apropriação distancia-se da concepção de


Foucault, que via nesta um “dos procedimentos mais importantes através
dos quais esses discursos eram confiscados e submetidos, colocados fora
do alcance de todos aqueles cuja competência ou posição impedia o acesso
ao mesmo” (CHARTIER, 2002, p.26). Chartier se aproxima muito mais da
noção de apropriação como uma forma de interpretação que está presente
nas práticas.
Em seu livro Inscrever e apagar: Cultura escrita e literatura (séculos
XI-XVIII) produz uma discussão sobre o papel central e estrutural da
cultura escrita na sociedade Ocidental, especialmente no período de
transição entre o pensamento medieval e o pensamento moderno. Nesta
obra, preocupa-se em demonstrar representações de práticas de escrita,
entrelaçando elementos físicos e simbólicos da obra escrita, trazendo a
materialidade das “tabuletas” ou dos “librillo de memoria”, objetos
utilizados em uma escrita “não permanente”, como parte da elaboração de
uma nova relação entre memória e esquecimento, entre produção e
reflexão, entre o pergaminho e a cera (escolhas do que será escrito para
ser apagado e o que será escrito para ser preservado). O autor evidencia
uma tensão entre a memória durável e a memória efêmera, entre
Déborah da Costa Ribeiro Barbosa | 31

construções e esquecimentos, os domínios do dito e do não-dito que


permeiam o exercício dos historiadores.

Considerações finais

Os espaços entre o historiador e sua escrita, o abismo entre o obser-


vador e o observado bem como a distância entre o pincel e sua produção
são locais em que atuam mecanismos sociais, códigos, regras, instituições,
ausências e silenciamentos. Essas discussões estão presentes, ainda que
de formas distintas, no pensamento dos três autores. Além disso, é possível
compreender que os conceitos de cultura e a problemática da subjetividade
do autor transpassam as obras e são questões pertinentes à discussão his-
toriográfica atual, que procura não apenas trazer luz aos sujeitos assim
como ao autor do texto, exercício feito por Michel de Certeau em A Escrita
da História.
A partir da leitura, nota-se que a cultura além de possuir diversos
significados, não é algo estático no tempo, monolítico. Ao contrário, as no-
ções de Chartier e De Certeau pressupõem uma ação para o entendimento
da cultura e dos modos de representação.
De Certeau ao colocar a subjetividade como parte da escrita histórica,
assim como Foucault o faz ao delimitar precisamente o lugar de suas in-
quietações, ou seja, a modernidade delimitam lugares de fala. De Chartier
reflete constantemente sobre a conjuntura que atua sobre o historiador.
Os autores falam de um mesmo lugar e todos se debruçam sobre os enun-
ciados, quem fala, de onde se fala e para quem se fala. Os conceitos e o
exercício teórico que foi e ainda é produzido sobre cultura, representações
e apropriação são essenciais para uma análise aprofundada da documen-
tação.
Esta tríade de intelectuais – Foucault, De Certeau e Chartier - perma-
nece presente central no campo historiográfico e acredito que uma parte
32 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

importante do exercício da escrita da história seja de analisar e de contes-


tar a teoria, de questionar e debater a produção dos saberes. As fontes, os
documentos, cartas, mapas, livros, permanecem nas bibliotecas e nos ar-
quivos, é o historiador que se defronta com as mudanças; o riso, o
estranhamento, o espanto, a falta e a dúvida são elementos que movem a
historiografia. Situar-se entre as produções historiográficas é um exercício
essencial na produção historiográfica. O entendimento da teoria por vezes
nos permite criar novos prismas de visão e enxergar novas dimensões de
análise na própria documentação.

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2018.
2

Natalie Zemon Davis e Edward Palmer Thompson:


uma História vista de baixo

Michele dos Santos

Introdução

A partir dos anos 1960, Edward Palmer Thompson e Natalie Zemon


Davis buscaram compreender os motivos, significados e formas de legiti-
mação dos atos vistos como de desordem através de seus estudos sobre
massa, com o uso de uma percepção da cultura popular no olhar sobre as
mentalidades e deslocando o foco para as ações ritualizadas das massas.
Além de historiadora cultural, Davis pode ser identificada como his-
toriadora social, adepta da história vista de baixo, da micro-história, da
história antropológica e uma das pioneiras na área da história das mulhe-
res. O livro Sociedade e cultura na França moderna, Davis examina
distintos grupos de uma sociedade que atravessava um momento de mu-
danças na esfera dos cultos religiosos, de 1975, é considerado um marco
para os estudos culturais.
Davis dialoga também com a antropologia, a etnografia, a literatura
e o cinema, relacionando múltiplos objetos tais como religião, cultura,
camponeses, operários, mulheres e outros. Sendo considerada uma histo-
riadora eclética, tanto em abordagens quanto em objetos de pesquisas, sua
obra de maior destaque na historiografia é The return of Martin Guerre
(DAVIS, 1987), trabalho que alcançou projeção internacional e no qual a
questão da imaginação histórica tornou-se elemento fundamental.
36 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

Já Thompson criticou os aportes teóricos engessados e, ao utilizá-los,


chamou atenção para a necessidade de abarcar sua historicidade. O histo-
riador também defende, como muitos de sua geração, tal qual Eric
Hobsbawm, um fazer historiográfico que abarque tanto as ciências sociais,
quanto a antropologia. Thompson vê a classe como uma categoria histó-
rica, que descreve as pessoas em termos de seu relacionamento ao longo
do tempo, num processo ativo de criação.
“Não podemos entender o que é classe a menos que a vejamos como
uma formação social e cultural” escreve Thompson na introdução de The
making of English working Class. 1 O autor acredita que classe só adquire
existência ao longo do processo de luta, o que levaria à gradual aquisição
de identidade cultural e política, observando a importância de se decodifi-
car o comportamento e de desvendar normas invisíveis de ação, como o
faria um antropólogo, mas sem renunciar à luta de classes.
Encontramos Thompson associado aos mais diversos autores que es-
tudaram a cultura popular, surgindo em meio a Carlo Ginzburg, Roger
Chartier, Peter Burke, Robert Darnton, Giovani Levi, como historiadores
que “passaram a utilizar o conceito de cultura - categoria até então restrita
às análises antropológicas”, além de ser associado a uma “narrativa
densa.” 2

A História Cultural

Peter Burke afirma que a História Cultural já era uma prática na Ale-
manha no século XVIII, e no século XIX o termo passou a ser utilizado na
Inglaterra também. Burke aponta quatro fases da história cultural: a clás-
sica, dos anos 1800 a 1850 que retrata a cultura do renascimento com as

1
THOMPSON, Edward Palmer. The making of the English working class. Open Road Media, 2016.
2
FERREIRA, Jorge. “O nome e a coisa: o populismo na política brasileira”. In: O populismo e sua história. Debate e
crítica. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001, pp. 96-98.
Michele dos Santos | 37

chamadas obras primas da arte, literatura, filosofia e ciência. A segunda


fase começa em 1930 e seu foco e na história social da arte e a terceira fase
ocorre por volta de 1960 e refere-se a história da cultura popular. A quarta
fase ocorre na década de 1980 nas américas e na Europa com a denomi-
nação de nova história cultural com vínculos com a antropologia,
centrados nas explicações culturais das revoluções e dos costumes 3
Suzanne Desan (1992), em seu artigo publicado no livro de Lynn
Hunt, A Nova História Cultural, nos dá uma amplitude diversa de análise
cultural de Davis e Thompson, que se esforçaram em desvendar costumes
e comportamentos populares. Os dois autores alcançaram prestígio com
sua análise do comportamento e das atitudes populares, dotada de direção,
validade e método. Seus trabalhos sobre a violência da massa, tornaram-
se essenciais para a definição e a formação de uma nova abordagem cul-
tural da história social. 4
A virada nos estudos históricos produzida pela História Cultural pode
ser situada, segundo Pesavento (2005), a “mudança nos anos 1970 ou
mesmo um pouco antes, com a crise de maio de 1968, com a guerra do
Vietnã, a ascensão do feminismo, o surgimento da New Left, em termos
de cultura, ou mesmo a derrocada dos sonhos de paz no mundo pós-
guerra. Foi quando então se insinuou a hoje tão comentada crise dos pa-
radigmas explicativos da realidade, ocasionando rupturas epistemológicas
profundas que puseram em xeque os marcos conceituais dominantes na
História” (PESAVENTO, 2005, p. 8).
Pesavento reforça que as duas principais posições interpretativas da
história criticadas foram o marxismo e o movimento dos Annales, muito
embora parte das inovações, para as quais derivam a Nova História

3
BURKE, Peter. O que é história cultural?. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2005.
4
DESAN, S. Massas, comunidade e ritual na obra de E. P. Thompson e Natalie Davis. In: HUNT, L. (org.). A nova
história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p.63-96.
38 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

Cultural, foram produzidas justamente no interior do marxismo inglês e


no movimento dos Annales, na França.
As décadas de 1960 e 1970 foram o período em que Davis estabeleceu-
se enquanto uma pesquisadora e as marcas deste contexto são visíveis em
quase todos os seus trabalhos como historiadora. O maior exemplo disso
foi a publicação de sua obra Sociedade e Cultura 5, que a colocou direta-
mente vinculada a História Social.
Thompson tem uma relação ambígua com a Antropologia. Ao voltar
sua atenção par a sociedade cheia de costumes do século XVIII, viu um
potencial maior para a Antropologia. Em sua obra Charivari 6 ele utiliza
amplamente as comparações interculturais e dirige-se diretamente à ques-
tão antropológica da função dos charivaris em diferentes sociedades,
porém Thompson insiste que a metodologia da antropologia simbólica
deve ser reformulada para levar em conta a transformação histórica, a
particularidade contextual e o cuidado empírico.
O historiador inglês chama atenção para novas questões que logo se-
riam exploradas pelos historiadores do imaginário e das representações,
como a questão do “teatro do poder”: os donos do poder representam seu
teatro de majestade, superstição, poder, riqueza e justiça sublime. Os po-
bres encenam seu contra teatro, ocupando o cenário das ruas dos
mercados e empregando o simbolismo do protesto e do ridículo.
(THOMPSON, 2001, p.239-240)
A História Cultural tem se oferecido cada vez mais como campo his-
toriográfico aberto a novas conexões com outras modalidades
historiográficas e campos de saber, ao mesmo tempo em que tem propor-
cionado aos historiadores um rico espaço para a formulação conceitual.

5
DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do Povo: Sociedade e cultura no início da França moderna. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1990.
6
THOMPSON, E. P. Rough music: Le Charivari anglais. In: Annales ESC. mar./abr. 1972.
Michele dos Santos | 39

A influência do marxismo

Entre as várias escolas teóricas do século XIX, algumas se destacam


pelo leque de possibilidades que abrem ao historiador e o marxismo seria
uma delas. Como bem ilustra Santos (2001) quando escreve que “o mar-
xismo é uma das mais brilhantes reflexões teóricas da modernidade, um dos
seus produtos culturais e políticos mais genuínos”. (SANTOS, 2001, p.35)
Marx apesar de não ser historiador, pensou historicamente. Sua pre-
tensão não era estudar o passado pelo passado e sim a serviço do presente.
Nas palavras de Löwy (2001) o pensamento de Marx inaugura não uma
ciência da história, mas uma nova concepção de mundo, que permanece
uma referência necessária para todo pensamento e ação emancipadores 7.
No marxismo da escola inglesa onde o mundo passa a ser examinado
como parte integrante do modo de produção, haveria uma interação contí-
nua entre cultura e as estruturas econômicos sociais de uma sociedade. Na
tradição marxista ortodoxa, os homens são determinados pelas relações ma-
teriais que existem entre si, e a estrutura emerge todo um conjunto de
valores e crenças, fazendo parte dos instrumentos de dominação.
Na Inglaterra Thompson, juntamente com Eric Hobsbawm e
Raymond Williams distanciavam-se do marxismo ortodoxo e pensavam
novas maneiras de fazer história. Para José Vasconcelos, Thompson estava
trabalhando com lutas de classes e havia abandonado o interesse pela
relação marxista entre “base/superestrutura” nos estudos históricos,
expandindo o gosto pelas abordagens culturais de uma sociedade do
passado. Thompson buscava escrever a história a partir de uma
perspectiva “vista de baixo”. (VASCONCELOS, 2005, p.37).

7
LOWY, M. Por um marxismo crítico. Disponível em: www.pucsp.br/neils/downloads/v3_artigo_michael.pdf. Acesso
em: 11 de julho de 2021.
40 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

O campo específico da história social do trabalho tem sido aquele em


que mais corriqueiramente encontramos referências a Thompson entre os
historiadores brasileiros. Novas e importantes análises sobre a classe tra-
balhadora brasileira ao longo do século XX, bem como estudos sobre a
escravidão que renovaram este campo de pesquisas, assumidamente bus-
caram no historiador inglês a sua fonte de inspiração.
Tanto Davis quanto Thompson apresentavam críticas à abordagem
marxista em suas obras e caminharam para um método que enfatiza os
elementos culturais sobre a natureza socioeconômica. Ambos buscam
compreender as massas através de uma percepção da cultura popular nos
estudos de mentalidades, deslocando o olhar para as ações ritualizadas,
buscando apreender motivos, significados e formas de legitimação desses
atos, vistos como de desordem.
Desan (1992), analisando os estudos sobre massas, comunidades e
rituais presentes na obra de Davis e Thompson, aponta que ambos os au-
tores, por intermédio de uma análise de viés antropológico, chegaram à
conclusão de que a cultura tem um papel decisivo como força impulsiona-
dora da transformação social. Desan chega a afirmar que “ambos
iniciaram suas carreiras de historiadores trabalhando dentro da tradição
marxista e ambos reagiram contra as ‘tradicionais’ interpretações marxis-
tas que enfatizavam as forças socioeconômicas como principais
determinantes da história” (DESAN, 1992, p.66, 67).

Escola de Annales e a micro história

Na década de 1980 a historiografia brasileira foi marcada pela inten-


sificação de novos referenciais historiográficos que contribuíram para a
pesquisa sobre as classes subalternas da sociedade. As lutas emancipató-
rias de diferentes grupos ao redor do planeta, a revolução nas formas de
comunicação trazida pela internet, as crises do capitalismo mundial etc.,
Michele dos Santos | 41

são fatores que contribuíram para a emergência da construção de aborda-


gens historiográficas mais abrangentes. Para isto, fez-se necessário
perspectivas capazes de contemplar diferentes dimensões temporais e es-
paciais, alterando escalas de observação, articulando estruturas e eventos
e evitando, ao mesmo tempo, o etnocentrismo e determinismos de ordens
variadas.
A partir da década de 1930, com o surgimento da escola de Annales,
fundada por Lucien Febvre e Marc Bloch, a historiografia passou por gran-
des modificações metodológicas que permitiram maior conhecimento do
cotidiano do passado, através da incorporação de novos tipos de fontes de
pesquisa. (BURKE, 1997).
A Escola surge com o intuito de ampliar as possibilidades do fazer
histórico através do diálogo mais próximo com as Ciências Sociais, e esta-
ria dividido em três gerações ou fases, segundo Burke (1997). A primeira
é estabelecida entre 1920 e 1945 e se caracteriza por ser composta por um
grupo pequeno, mas radical e subversivo à história política e à história dos
eventos, marcado pela atuação de Bloch e Febvre.
Após a 2ª Grande Guerra, os Annales solidificaram-se com conceitos
próprios como estrutura e conjuntura e métodos novos, como a seriação
na longa duração. Esse período teve como destaque o discípulo de Febvre,
Fernand Braudel. A terceira geração ou fase dos Annales se inicia pelos
meados de 1968, e é marcada pela fragmentação. No período que se se-
guiu, nenhum pesquisador teria se tornado o guia do movimento, como
outrora Bloch, Febvre e Braudel, segundo Burke.
O autor ainda apresenta as três ideias que orientaram a Revista e,
consequentemente, a produção desses novos historiadores. A primeira se-
ria a substituição da tradicional narrativa de acontecimentos por uma
história-problema, a segunda consiste em a história de todas as atividades
42 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

humanas e não apenas história política e a terceira ideia, visando comple-


tar os dois primeiros objetivos, a colaboração com outras disciplinas, tais
como a geografia, a sociologia, a psicologia, a economia, a linguística, a
antropologia social, e outras tantas. (BURKE, 1997, p. 11-12).
A partir desde fenômeno, surge um movimento, na década de 70, que
ficou intitulado de micro-história e vem sendo praticada e defendendo
uma delimitação temática extremamente específica por parte do historia-
dor (inclusive em termos de espacialidade e de temporalidade), mas não
se reduz apenas a isto. Esta abordagem demonstra que uma outra história
é possível a partir da escolha de um ponto de vista particular, demons-
trando ser suscetível de restituir uma parte ignorada ou escondida da
existência social.
Conforme Henrique Espada Lima (2006) “a micro-história foi for-
mulada, nos seus princípios, como um conjunto de proposições e
questionamentos sobre os métodos e os procedimentos da história social”.
(LIMA, 2006, p.262). Examinando uma sociedade reduzindo a escala de
observação, e tendo como intuito de analisar certos aspectos que de outra
maneira passariam despercebidos, poderemos tentar compreender mais
profundamente características relativas a uma sociedade ampla. Procu-
rando o que passa despercebido e usando esses fragmentos para ter uma
visão mais ampla de uma questão social.
Para Raphael Cesar Lino (2017), a recepção da micro-história no Bra-
sil estaria ligada ao movimento da historiografia da década de 1980, e teria
acontecido por três caminhos distintos. Um deles seria o contexto histórico
brasileiro, “juntamente com a crise de paradigmas e das perspectivas ge-
neralizantes”, que teria começado “a marcar presença em nosso meio”. A
nova geração de historiadores estaria em segundo lugar, “fruto do novo
modelo de pós-graduação no Brasil, que dialogam [...] a historiografia bra-
sileira “clássica”, com novos aportes teóricos, dando início a série de
Michele dos Santos | 43

releituras de temas historiográficos”. E em terceiro lugar o autor coloca as


traduções de trabalhos “que estavam em cena na historiografia internaci-
onal, juntamente com a mobilidade de pesquisadores com estágios ou
cursos fora do país que colaboraram com as trocas historiográficas do pe-
ríodo”. (Lino, 2017, p 83)
Segundo Desan, (1992) embora os escritos de Davis se ajustem ao
contexto da escola dos Annales, com sua propensão a história do povo e
para a histoire des mentalités, seu trabalho também complementa a abor-
dagem francesa por utilizar, maciçamente, a antropologia simbólica e
enfatizar o papel determinante e fundamental dos fatores culturais, em
detrimento dos fatores climáticos, geográficos ou sócio-econômicos.
(DESAN, 1992, p. 65,66).
Thompson tinha a preocupação em examinar a cultura e a sociedade
não do ponto de vista do poder instituído, das instituições oficiais ou da
literatura reconhecida, mas sim da perspectiva popular, marginal, inco-
mum, não-oficial, das classes oprimidas. João José Reis diz que enxergar o
problema sob os novos ângulos das estratégias cotidianas é lançar luz so-
bre as múltiplas formas de resistências que os escravos podiam
desenvolver, o que justifica a sua autofiliação à linha historiográfica pro-
posta por Thompson. 8

A micro-história e os estudos sobre a escravidão

De acordo com Henrique Espada (2009), a micro-história italiana im-


pulsionou e reforçou “algumas das transformações mais significativas dos
estudos históricos no Brasil dos últimos anos”. E, para o autor, destacam-
se os resultados referentes à história da escravidão (Espada, 2009), por
ser uma abordagem múltipla e multifacetada ancorada na mudança de es-
cala de análise.

8 REIS, João José. A Morte é uma Festa. São Paulo: Companhias das Letras, 1992
44 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

Uma das ferramentas que o uso da microanálise nos proporciona, é


a busca pelo nome dos sujeitos históricos. Proposta metodológica desen-
volvida por Carlo Ginzburg e Carlo Poni (1991) defende que as fontes,
sendo elas eclesiásticas, cartoriais, processos cíveis ou crime, não nos for-
necem todos os dados de um sujeito quando analisadas separadamente, e
“corre-se o risco de perder a complexidade das relações que ligam um in-
divíduo a uma sociedade determinada”. Neste sentido, segundo os autores,
“se o âmbito da investigação for suficientemente circunscrito, as séries do-
cumentais podem sobrepor-se no tempo e no espaço de modo a permitir
encontrar o mesmo indivíduo ou grupos de indivíduos em contextos soci-
ais diversos”. O que liga os pontos, guiando o historiador, é o “nome” das
pessoas. (GUINZBURG; PONI, 1991, p 173, 174)
Nos estudos da escravidão, os nomes dos indivíduos trazidos contra
a sua vontade da África pelos traficantes dos navios negreiros, eram alte-
rados logo após sua chegada ao Brasil e/ou posteriormente determinados
pelos seus senhores e, na grande maioria dos casos, não havia um sobre-
nome. Assim, as possibilidades de pesquisa através do nome, seriam pelo
primeiro nome do escravizado ou escravizada, cruzando com o nome do
senhor/senhora em inventários, testamentos, registros eclesiásticos de ba-
tismos etc., cruzando informações, como um dos meios de se investigar os
cativos e as condições que eles se inserem.
Um dos autores que influenciou a produção de estudos sobre a escra-
vidão foi Thompson (1987). Com sua proposta de entender as experiências
dos indivíduos e, a partir daí, analisar como em meio a um processo his-
tórico a consciência de pertencimento a um determinado grupo social a
produz 9, Thompson jogou luz sobre as ações dos agentes históricos, espe-
cialmente sobre aqueles situados nos estratos mais subalternos da

9
No caso de seus estudos, como a classe operária inglesa surgiu.
Michele dos Santos | 45

hierarquia social, que deixavam de ser determinados pela sua posição na


estrutura social e produtiva. (THOMPSON, 1987, p 12)
Da mesma forma, algumas pesquisas, também influenciadas por
Thompson, identificaram a utilização, por parte dos escravizados e escra-
vizadas, do sistema jurídico tanto na busca pela liberdade quanto contra
algum tipo de cativeiro mais violento. 10
Com o intuito de compreender as experiências das pessoas que vi-
viam e trabalhavam na região de fronteira do Rio Grande do Sul com o
Uruguai da segunda metade do século XIX, como eram as relações de li-
berdade e de escravidão dos indivíduos escravizados, como funcionavam
os mecanismos de tráfico ilegal e de reescravização assim como as experi-
ências e vivências de homens e mulheres escravizados na região, usaremos
exatamente a fonte produzida pelo sistema jurídico colonial: as Ações de
Liberdade. Ações estas que eram movidas pelos próprios indivíduos ne-
gros através de seus curadores, e os processos de escravização ilegal, estes
acionados pela justiça imperial, principalmente visando súditos uruguaios
injustamente escravizados.
Acreditamos que uso dos documentos judiciários da segunda metade
do século XIX nos ajudará na inserção em um espaço territorial entre Bra-
sil e Uruguai, no qual os próprios significados de liberdade estavam sendo
construídos de forma dialógica, conjugando experiências sociais de indiví-
duos escravizados e forros, de ambos os lados da fronteira.
Travava-se no período um embate entre significados díspares sobre
escravidão e liberdade que envolviam projetos específicos para o país, e
que se refletia na questão da cidadania em suas variadas facetas, entre elas
eleitorais, educacionais e associativas.

10
Dentre outros, LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750-
1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas
da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
46 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

O escravizado acessava a justiça quando não havia mais negociação


por parte do seu senhor, e a busca pela justiça nos demonstra que estes
indivíduos estavam informados sobre os desdobramentos legais relacio-
nados ao fim do tráfico internacional e ao processo abolicionista. Estes
documentos jurídicos nos servirão também para refletir sobre a vida polí-
tica, as relações sociais, as regras econômicas, enfim, todo o contexto
histórico para melhor compreensão da sociedade da época.
As pesquisas com as Ações de Liberdade como fonte, nos permite in-
vestigar, mesmo que indícios, aspectos específicos em relação a realidade
dos negros e negras escravizadas, mas também como a sociedade escra-
vista percebia os limites entre liberdade e escravidão, e as experiências
limítrofes de ‘libertandos’, sejam eles alforriados condicionais, ingênuos
etc.
Documentos judiciários são muito mais complexos do que o que eles
se propõem a investigar. Como verdadeiras minas de dados involuntários,
na expressão do historiador Carlo Ginzburg (1991), nos fornecem uma via
de acesso às sensibilidades e práticas da sociedade escravista imperial bra-
sileira. Saber um pouco mais sobre estes escravizados, mas também nas
testemunhas como especialistas do direito, como advogados, solicitadores,
jurados, funcionários públicos como juízes, promotores públicos e cônsu-
les, que estariam imersos em um ambiente no qual a transnacionalidade
era natural, com a fronteira fazendo parte de seus planos e estratégias de
sobrevivência e vida

Considerações finais

Pesquisadores que usam em seus trabalhos documentos judiciários,


tem de fazer uma leitura etnográfica, que atente para as particularidades
das falas e para os detalhes aparentemente diminutos que as entrelinhas
admitem. Mesmo assim poderá se deparar com lacunas, e uma maneira
Michele dos Santos | 47

de resolvê-las é lançando mão de outras fontes que tragam informações


sobre outros atores contemporâneos além do investigado, de modo a tecer
relações.
A trajetória dos indivíduos assume para a micro história uma ma-
neira de compreender a trama social e diversos aspectos que envolvem a
vida do objeto estudado. Já passou o tempo em que não se acreditava na
existência de fontes suficientes para o estudo do sistema escravista e da
vida dos escravizados e escravizadas. Resta ao pesquisador rastrear em
diferentes arquivos e fontes, detalhes que serão indicadores do cotidiano,
do modo de agir, das peculiaridades de determinado grupo social e dos
reveses vigentes.
São vastas as possibilidades de diálogos, desafios e perspectivas do
uso da microanálise para a pesquisa da escravidão negra no Brasil oito-
centista, pensando no intuito de cobrir as lacunas da história do cativeiro
e das lutas emancipatórias dos personagens que dela fizeram parte, e a
possibilidade de compreender a sociedade colonial a partir da gente de cor.
Esta realidade composta por homens e mulheres vindos da África e seus
descendentes, demarcados como cabras, crioulos, pardos, pretos, negros,
que carregavam na cor da pele as marcas da escravidão.
Reagindo contra a abordagem estruturalista e reducionista, Natalie
Zemon Davis e Edward Palmer Thompson caminharam para um método
que enfatiza os elementos culturais sobre os de natureza socioeconômica.
Estes autores esforçaram-se, sobretudo, em desvendar as atitudes e com-
portamentos das massas para pensarmos de uma maneira menos estática
sobre as práticas populares, antes vistas como meros instrumentos de pre-
servação das atitudes comunitárias e tradicionais.
Propuseram a decodificação dos padrões e rituais do tumulto como
forma de melhor compreender a percepção que seus participantes tinham
do seu significado e da sua validade. Buscaram dar voz às grandes massas
48 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

de pessoas que deixaram poucos registros escritos e cuja história ficou por
escrever durante várias gerações, concentrando-se em questões de como
e por que a massa vê seu ativismo ilegal e violento como significativo e
legítimo e de que modo a comunidade desempenha um papel crucial na
definição das motivações, dos objetivos e das ações do tumulto. Expressam
suas convicções de que as classes inferiores não eram simples presas de
forças históricas externas e determinantes, tendo desempenhado um pa-
pel ativo e essencial na criação de sua própria história e na definição de
sua identidade cultural.
Thompson se aproxima do meu objeto de pesquisa pela sua contri-
buição nos estudos da escravidão, pois se dispôs a pensar a história dos
que não foram lembrados no processo de industrialização, pelas ortodo-
xias tradicionais, uma história das pessoas comuns, rompendo com os
predominantes relatos históricos que resgatavam experiências e memó-
rias dos vitoriosos ofuscando a atuação da “gente comum” na construção
histórica.
Com a renovação dos estudos históricos os escravizados e escraviza-
das deixaram de serem vistos apenas como mercadorias. Estuda-se hoje a
escravidão, a abolição e o pós abolição encarando estes negros e negras
que foram submetidos a escravidão como agentes históricos, rompendo
com as interpretações tradicionais, pois são as experiências dos cativos,
agindo em favor da conquista da liberdade que interessa nos estudos sobre
o tema. Como afirma Sílvia Hunold Lara, sob inspiração thompsoniana
“alguns historiadores começaram a insistir na necessidade de incluir a ex-
periência escrava na história da escravidão no Brasil.”

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3

Lutas de representações sobre a mãe escravizada:


do escravismo ao abolicionismo castroalvino
em “Tragédia no Lar”

Alan Ricardo Schimidt Pereira

Introdução

Nos dias atuais, as fontes literárias têm sido pouco tomadas como
objeto principal para as análises historiográficas, e “nota-se uma parca
presença de trabalhos que abordam o tema da escravidão fazendo uso da
poesia enquanto fonte histórica” (BARBOSA, 2018, p.1). Pensando nesta
condição e trabalhando com a noção de “representações” de Roger Char-
tier, decidi redigir o presente trabalho com um estudo de caso sobre as
formas de representação da família escravizada na literatura do século
XIX.
Castro Alves (1847-1871), um dos cânones da literatura romântica
brasileira ficou conhecido como “O poeta dos escravos” por levar para a
poesia a denúncia dos horrores da escravidão. A maioria dos poemas de
Alves foram escritos na década de 1860 e tidos como rebeldes por seu ca-
ráter “libertador ou condoreiro”. Esta década recebe as ressonâncias do
“Tempo Saquarema” do Brasil Imperial (década de 1850), onde a classe
senhorial escravista dominava politicamente o país, reprimia e tomava
como rebeldes e desobedientes todas as contestações da ordem vigente
(OLIVEIRA, 2007, p. 12). Castro Alves é a “altissonante voz” da terceira
geração do Romantismo Brasileiro, conhecida como “Geração Condoreira”
(1860-70), que dentre as três gerações foi a única que se voltou realmente
para problemas de cunho social, principalmente no que diz respeito aos
52 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

escravizados (OLIVEIRA, 2007, p. 14). Sobre esta geração, Luiz Henrique


de Oliveira (2007, p. 14) afirma o seguinte:

Castro Alves e outros escritores condoreiros de meados do século XIX, como


Tobias Barreto (1839-1889), José Bonifácio (1827-1886) e Pedro de Calasãs
(1837-1874) “importaram” e “adaptaram” as novas tendências então nascen-
tes no Velho Mundo. É no bojo deste contexto que surgem os rebeldes, para
usar um termo cunhado pela classe senhorial brasileira, versos de Castro Al-
ves, como uma tentativa de contestação da ordem vigente no Brasil. Em outras
palavras, os textos do poeta baiano colocaram em debate tanto a natureza, os
mecanismos de sustentação e as estratégias de perpetuação do poder político
da classe senhorial – o que implica a postura do poeta em defesa da República
– quanto a denúncia dos horrores da escravidão e a luta pela liberdade dos
cativos, estes base do sistema econômico do qual se serviam as elites brasilei-
ras.

Em resumo, o Condoreirismo foi marcado pela defesa da República e


do fim da escravidão. Além disso, o termo “Condoreirismo” é uma metá-
fora ao pássaro condor (ou outras aves como o albatroz, a águia ou o
falcão) que é uma “ave de vôo (sic.) alto e solitário, com capacidade de
enxergar à grande distância” (OLIVEIRA, 2007, p. 15).
Este termo foi então cunhado pelo fato dos poetas considerarem pos-
suir tais capacidades do condor, e por isso terem a missão - enquanto
poetas “iluminados por Deus” - de levar os homens comuns pelo caminho
da “liberdade, igualdade e fraternidade” - ideias tributárias da Revolução
Francesa -, sendo estes poetas, inclusive, influenciados por Vitor Hugo e
sua “veia social”, podendo-se afirmar que o condoreirismo é “uma espécie
de “hugoanismo brasileiro”” (OLIVEIRA, 2007, p. 15).
Neste sentido de poesia voltada ao social, os poemas contra a escra-
vidão redigidos por Castro Alves têm como protagonistas africanos
escravizados, formando uma denúncia que visava comover e mobilizar o
Alan Ricardo Schimidt Pereira | 53

público leitor. Entre os personagens dos poemas de Alves estava a figura


da mulher escravizada, geralmente representada como mãe. Em seus po-
emas, Alves descreveu o medo dessas mulheres de terem seus filhos
arrancados de seus braços pelos senhores e o zelo que elas tinham pelas
crianças, literariamente expressas em cenas de cuidado, carinho e dor.
A mãe escravizada nos poemas de Castro Alves é representada como
mulher zelosa pela sua prole, que preferia ver a sua própria morte ou a
dos seus filhos, do que os ver sob o jugo da escravidão, como constatamos
nos poemas “Mater dolorosa”, “Tragédia no Lar” e “A mãe do cativo”. Estes
poemas aparecem principalmente no livro “Os Escravos” publicado postu-
mamente em 18831.
Os poemas do livro “Os Escravos” nos fornecem uma gama de repre-
sentações sobre os indivíduos cativos e suas convivências, e apresenta com
todo o lirismo do Romantismo Condoreiro os medos que rodeavam a sen-
zala e a opressão que os indivíduos negros escravizados, principalmente
africanos, enfrentavam. Não sem resistência, ainda que pouco represen-
tada, como podemos perceber no poema “Tragédia no Lar” – sob a
instituição escravista, por conta dos abusos mais variados sofridos, e o des-
mantelamento da família escravizada pelas mãos dos senhores que
vendiam as crianças, indiferentes à dor das mães. Conforme Barbosa
(2018, p.1), o livro “Os Escravos” é formado por poemas que “trazem di-
versas representações dos escravizados passíveis de serem analisadas, pois
demonstram um leque de situações que nos possibilita refletir sobre a ma-
neira como o poeta visualizava o escravizado no período em que elas foram
escritas”.
Ao mesmo tempo na sociedade escravista brasileira, e, em específico,
no Período Imperial, difundiram-se representações negativas sobre os

1
Apesar de publicado postumamente, alguns dos poemas deste livro foram escritos durante a estadia de Castro Alves
em São Paulo, durante a década de 1860 (COSTA E SILVA, 2006; OLIVEIRA, 2007).
54 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

escravizados como sendo indivíduos pouco afeitos ao trabalho, entregues


aos vícios, brutais e incivilizados. Em um recorte mais específico,
encontramos as representações da mãe cativa como sendo um indivíduo
descuidado e ignorante, incapaz de cuidar do próprio filho ao ponto até
mesmo de deixa-lo morrer. Estas representações foram fomentadas pelo
discurso médico do século XIX e ganharam eco nas camadas senhoriais.
No presente trabalho será demonstrada a pertinência do diálogo en-
tre a história e as obras literárias a partir do conceito de “representações”,
formulado por Roger Chartier. Demonstraremos como a classe senhorial
criou representações negativas sobre a mulher negra e, em específico, so-
bre a mãe cativa através do Manual do Fazendeiro de Jean-Baptist Alban
Imbert, publicado em 1839. Através de uma análise comparativa, demons-
traremos como Castro Alves formulou representações sobre a mãe
escravizada no poema “Tragédia no Lar”, e como estas representações des-
toaram daquelas feitas por escravistas, gerando o que Chartier chama de
“lutas de representações”.
Antes de partirmos para nossa análise também gostaríamos de afir-
mar que concordamos com Sherol dos Santos, quando a autora diz que a
família escravizada tem uma diferença importante em relação à família
patriarcal senhorial, que é o fato dela ter extrapolado os laços consanguí-
neos e estabelecido redes de solidariedade que eram muitas vezes
oficializadas pelo batismo e as relações de compadrio/apadrinhamento
(SANTOS, 2009, p. 130). Contudo, nos poemas de Castro Alves em “Os
Escravos” a família cativa se agrupa na figura da mulher e da criança, mais
especificamente na relação entre mãe e filho. Por conta disso analisaremos
a figura da mulher cativa enquanto mãe 2, fazendo com que este trabalho

2
Temos consciência de que a mulher negra teve um papel multidimensional na escravidão (DAVIS, 2016, p.17 apud
MOREIRA, 2018), atuando nos mais diversos campos como o do trabalho, o da comunidade cativa e senhorial, o
tratamento de doenças e nascimentos, nos processos de cura, de resistência, de formação de comunidades, etc.
Alan Ricardo Schimidt Pereira | 55

se torne parte de um projeto mais amplo de pesquisa de mestrado do au-


tor 3.

Mães cativas: embates de representações

Lucien Febvre em Exame de consciência de uma história e de um his-


toriador afirma que para a pesquisa histórica todos os textos importam,
porque são “testemunhos de uma história viva e humana, saturados de
pensamento e de ação em potência” (FEBVRE, 2009 apud FERREIRA,
2009, p.64), e a literatura não está apartada desta noção, pois ela é “uma
construção de objetos autônomos com estrutura e significado; ela é uma
forma de expressão, isto é, manifesta emoções e a visão do mundo dos
indivíduos e dos grupos; ela é uma forma de conhecimento, inclusive como
incorporação difusa e inconsciente”. (CÂNDIDO, 1995 apud FERREIRA,
2009, p.67).
Nesse sentido a pesquisa historiográfica tem contribuído 4 para en-
tender as formas pelas quais a literatura foi “concebida, particularizada
em relação a outras expressões orais ou escritas, transmitida, lida, com-
partilhada ou apropriada pelos diferentes grupos sociais de diversas
épocas e sociedades”, e quais os papéis dela ao longo do tempo na existên-
cia humana em suas “dimensões sociais ou subjetivas” (FERREIRA, 2009,
p.68). Outra questão fundamental quando falamos de história e literatura
é a noção básica de que todas as fontes devem ser entendidas dentro de
seus contextos, e para isso devemos utilizar outras fontes além das literá-
rias para compreendermos o contexto de produção do texto literário e não
cairmos no anacronismo:

3
O autor desenvolve sua pesquisa de mestrado sobre a representação social da família escravizada em Castro Alves.
4
Embora nos últimos anos de forma menos acentuada.
56 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

Diferentemente dos pesquisadores de Letras, que muitas vezes se limitam a


estudar a estrutura interna das obras literárias, [...] os historiadores, ainda
que também possam elegê-las como centro de atenção, devem compreendê-las
em seus contextos históricos e sociais, o que requer a consulta a outras fontes
da época. Toda fonte pode ser legítima na medida em que contribua para o
entendimento do objeto específico de estudo e se tenha em conta sua natureza:
política, econômica, científica, religiosa, artística, técnica ou outra. É preciso
estar atendo aos ambientes socioculturais do período analisado para se evitar
o tratamento anacrônico da fonte (FERREIRA, 2009, p.81 grifo nosso).

Com base nisso vemos que a literatura enquanto elemento presente


no meio social, construído por indivíduos e que nos permite analisar ques-
tões presentes em determinada época e lugar, é passível também de ser
considerada um campo rico para a análise historiográfica, nos servindo
para a compreensão das representações, imaginários, mentalidades, sub-
jetividades diversas, questões políticas, sociais e culturais.
Sendo, então, um ambiente vasto de análise para todos os historia-
dores, o meio literário recebeu diferentes formas de tratamento por estes
profissionais, em outras palavras: várias foram as formas que os historia-
dores analisaram a literatura enquanto fonte. Uma destas formas de
análise – e, inclusive, uma das mais abundantes formas -, é a que analisa
“as representações sociais, nacionais, regionais, morais, ideológicas [...],
sexuais ou de gênero e etnia” etc., e esta forma de análise exige que se
estude tanto o conteúdo da obra quanto o contexto social e histórico em
que ela foi criada (FERREIRA, 2009, p.83 grifo nosso). É justamente a esta
vertente de análise histórica sobre a literatura que nos debruçamos, pois
em nossas pesquisas vimos como as obras de Castro Alves, e em específico
as representações da mãe cativa no poema “Tragédia no lar”, dialogaram
intimamente com o social atravessado por representações que o escritor
viveu, e percebemos que ao criar suas representações neste poema, Alves
destoou de representações senhoriais recorrentes, sendo considerado um
Alan Ricardo Schimidt Pereira | 57

rebelde pelas camadas senhoriais (OLIVEIRA, 2007), se colocando em uma


situação de “lutas de representações”. Estas representações, seriam para
Chartier (2000b, p. 16-17) 5

[...] classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do


mundo social como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do
real. Variáveis consoante as classes sociais ou os meios intelectuais, são pro-
duzidas pelas disposições estáveis e partilhadas, próprias do grupo. São estes
esquemas intelectuais incorporados que criam as figuras graças as quais o pre-
sente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser
decifrado (CHARTIER, 2002b, p. 17).

Assim entendidas as representações se fazem presentes também em


todas as produções escritas, sejam elas literárias ou não. Nem mesmo Cas-
tro Alves escapou das representações que se fazem tão claras nos poemas
de “Os Escravos”, onde representa com sentimento e maestria o sofri-
mento dos indivíduos cativos. Contudo, o processo de representações não
ocorre de maneira passiva, pois como Chartier (2002a, p. 94-95) nos diz,
o reconhecimento do poder de um grupo depende do crédito concedido ou
recusado às representações que este grupo faz de si mesmo ou dos outros,
visando o assujeitamento através dos “princípios inculcados” e das “iden-
tidades impostas”.
Desta forma devemos recordar que Chartier (2002c) afirma que estas
representações são feitas por aqueles que têm o poder, e desta forma per-
cebe-se que as representações coletivas e o poder estão intimamente
ligados. As representações aspiram a universalidade e a verdade por parte
daqueles que as forjam. Porém, elas são sempre determinadas pelos inte-
resses dos grupos que as elaboram, por isso faz-se necessário prestar

5
Para este autor a história cultural deveria “identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma
determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler”, e um dos caminhos para esta tarefa é o estudo das
representações (CHARTIER, 2000b, p. 16-17).
58 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

atenção na posição dos indivíduos que se utilizam das representações


quando as analisamos (CHARTIER, 2002b, p. 17). Castro Alves, por exem-
plo, adveio de uma família escravista – e sua própria madrasta constava
nas listas inglesas de possíveis traficantes de escravos após 1850. A origem
familiar do nosso poeta o colocava em uma posição social vantajosa, lhe
permitindo ingressar na Faculdade de Direito, viajar para o Rio de Janeiro
e para São Paulo, etc. (COSTA E SILVA, 2006). Esta origem social lhe deu
o poder de ser letrado e poeta, e, portanto, deu-lhe o poder de representar.
Além disso, Castro Alves não escreveu seus poemas com o único in-
tuito estético, ele visava mobilizar as emoções de seus leitores, pois existia
em sua obra "a missão revolucionária do poeta, que era, sobretudo, como-
ver para convencer os receptores a fim de que estes despertassem atenção
para o dilema do escravismo” (OLIVEIRA, 2007, p. 33). Ou seja, Castro
Alves tinha outros interesses além dos artísticos ao escrever os poemas de
“Os Escravos”. Ele se colocava em uma posição passível de análise, con-
forme propõe Chartier, pois possuía o poder de representar. E ele
representava com o intuito de desvelar sua visão sobre os cativos em uma
sociedade que elaborava uma imagem degradante do negro, colocando-se
em posição de luta contra as representações dominantes contra as quais
discordava.
Isto nos leva a compreender que as representações sociais não são
discursos neutros, que elas criam práticas e estratégias para impor a au-
toridade sobre os “outros” que são menosprezados, visando legitimar um
projeto de reforma ou visando justificar certas condutas e escolhas
(CHARTIER, 2002b, p. 17). Isto se faz patente quando nos deparamos com
os discursos escravistas, sempre preocupados com a dominação sobre o
negro escravizado.
Dessa forma as representações se colocam em um campo de conflito,
de competição e de luta pelo poder visando a dominação. Sendo as lutas
Alan Ricardo Schimidt Pereira | 59

de representações tão importantes quanto as econômicas para que nós


possamos entender as formas como os indivíduos ou grupos impõem ou
tentam impor a sua concepção de sociedade, os seus valores e o seu domí-
nio (CHARTIER, 2002b, p. 17). Pois, se as representações precisam do
crédito daqueles que as recebem, em caso de discordância haverá a refu-
tação e o conflito, forjando-se novas representações que respondam às
primeiras. Isto também ocorreu no Brasil Imperial como em todas as so-
ciedades até o dia de hoje. E torna-se claro quando nos deparamos com a
representação de um abolicionista e de um escravista sobre a mãe escra-
vizada.
As mães escravizadas (tanto as crioulas 6 quanto as africanas) tiveram
grandes dificuldades no cuidado com as crianças, entre estas dificuldades,
aquelas relacionadas à amamentação - não ocorrendo da forma como estas
mães julgavam apropriada; elas também enfrentaram a morte de seus fi-
lhos ainda bebês nem sempre podendo enterrá-los. Também enfrentaram
a avareza e negligência dos senhores que se escondiam por trás de uma
ideologia escravista que tomava as crianças cativas por fortes e robustas,
capazes de suportar diversas privações (TELLES, 2018, p. 274).
Nas condições acima citadas as mães cativas eram estigmatizadas, ti-
das como negligentes e descuidadas, sendo representadas como indivíduos
que pouco cuidavam de suas crianças (TELLES, 2018, p. 274). Conforme
Ariza (2018) a mortalidade das crianças escravizadas era uma realidade 7,
e se dava pelas doenças ocasionadas por conta das condições terríveis de
salubridade (principalmente nas cidades), sendo as crianças mais velhas
as que mais eram afetadas por estas doenças. Indo ao encontro de Telles
(2018), Machado (2018, p. 339) relata que neste cenário insalubre a morte

6
Os cativos nascidos em terras brasileiras eram chamados de “crioulos(as)”.
7
Machado (2018) também fala deste quadro em seu ensaio deste quadro.
60 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

de um recém-nascido era vista com desconfiança por parte da classe se-


nhorial e dos médicos, pois estes indivíduos viam as mães escravizadas
como sendo brutas, ignorantes e negligentes, capazes de matar seus pró-
prios filhos, e com isso os escravistas não reconheciam as péssimas
condições de vida dos cativos, que era o real motivo das perdas.
Os médicos mais do que apenas reafirmavam à classe senhorial suas
desconfianças, eles realmente contribuíram para eximir os senhores da
responsabilidade sobre as crianças cativas e as péssimas condições de tra-
balho das mães escravizadas (TELLES 2018, p. 274). E, como já
mencionado (TELLES, 2018; MACHADO, 2018), os médicos auxiliaram na
formação de um discurso sobre a mãe cativa como sendo negligente. Lo-
rena Telles (2018, p. 274) menciona o médico Reinhold Teusher, mas
houve outros como Jean-Baptiste Imbert (1839) que em seu manual do
fazendeiro, muito voltado à medicina, traz em suas páginas representações
racistas das mulheres negras, tomando-as por ingênuas, ignorantes e re-
sistentes por sua “falta de civilização”, além de representá-las como
indivíduos que tomariam atitudes capazes de prejudicar suas crianças.
Jean-Baptist Alban Imbert, foi um médico francês que chegou ao Bra-
sil em 1831 com o objetivo de estudar as práticas populares de cura. Entre
seus livros mais populares está o Manual do fazendeiro, ou tratado domés-
tico sobre, as enfermidades dos negros, generalizado às necessidades
medicas de todas as classes, publicado em 1839 (ANM, S/D) e dividido em
dois tomos. Imbert (1839) no segundo capítulo do seu manual (TOMO 2)
intitulado “Das moléstias das mulheres”, tece vários comentários sobre a
saúde e os tratamentos para as mulheres, principalmente as mulheres ne-
gras escravizadas.
Este capítulo é eivado de representações racistas e também apresenta
grande preconceito (igualmente alicerçado em estereótipos) contra a me-
dicina popular realizada por mulheres negras, tomando-as por
Alan Ricardo Schimidt Pereira | 61

supersticiosas, ignorantes e brutais. O mesmo se aplicava às mães que por


se acharem - conforme o preconceito racista e eurocentrado de Imbert -
“fora do alcance da civilização” – ou seja, eram vistas como ingênuas – e
se viam “obrigadas” “a dobrar o colo ao jugo brutal de seus semelhantes,
sujeitando-se como por fascinação às perigosas e algumas vezes cruéis exi-
gências que lhes impõem [as parteiras]” (IMBERT, 1839, p. 250, TOMO
2).
Neste Manual, o médico indicava que as práticas da medicina popular
para trazer um indivíduo ao mundo utilizadas pelas mulheres negras eram
“perigosas e cruéis” e dizia que “uma estúpida ignorância inspira às negras
que assistem aos partos de suas parceiras” (IMBERT, 1839, tomo 2, p. 251).
Caberia aos senhores controlar o papel das parteiras, pois estas mulheres,
conforme representadas no manual, seriam indivíduos ignorantes que só
poderiam causar flagelos à parturiente. Além disso, nos casos de hemor-
ragia que exigissem um parto de urgência, os senhores deveriam procurar
“parteiras experimentadas” (1839, tomo 2, p. 251). Imbert alegava que as
mulheres negras, pela sua “falta de civilização”, seriam mais resistentes ao
parto (IMBERT, 1839, tomo 2, p. 252). Assim, a representação da mulher
cativa era bastante próxima daquela descrita por Telles (2018) em relação
às crianças escravizadas. Aqui se percebe o exercício da dominação através
da medicina, pois somente os médicos certificados (homens e brancos, em
sua maioria) teriam o saber “correto” para fazer um parto.
Além de manifestar esses preconceitos em relação às crenças e às prá-
ticas do parto, Imbert (1839, tomo 2) elaborava representações sobre as
práticas das mães escravizadas em relação aos filhos, depois que estes nas-
ciam. O médico dizia que deveriam ser impedidos alguns hábitos destas
mães: entre eles é mencionado o de amassar a cabeça dos recém nascidos
“a fim de dar a esta uma forma mais agradável”, correndo o risco de gerar
62 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

uma infecção no cérebro que poderia levar à morte. Imbert também é in-
cisivo contra o hábito que chama de “bárbaro” de cortar o cordão umbilical
muito longe, pondo pimenta e fomentando o umbigo com óleo de rícino
“ou qualquer outro irritante”, apertando, assim, o ventre das crianças e
correndo o risco de sufoca-las. Além destes, outro hábito que deveria ser
tolhido era o das mulheres cativas darem “alimentos grosseiros tirados da
sua própria comida” às crianças com pouco tempo de vida, afirmando que
mesmo que elas acreditassem que isso fortaleceria os bebês, tal ato apenas
faria mal aos pequenos, sendo indicado apenas o “Leite de seus peitos, an-
tes deles terem cinco ou seis meses: então sim, deixai que elas lhes deem
mingais leves de arroz, sagu, tapioca, araruta, etc.” (IMBERT, 1839, p.
252). O médico também coloca que o contrário ocorria, com as mães cati-
vas dando leite “velho e grosso” aos filhos, o que poderia gerar várias
doenças, e afirmava que as crianças deveriam ser desmamadas após um
ano. Pois, mamar por muito tempo os faria querer passar com o “peito na
boca” e “sempre no colo”, levando-os a fazer menos exercícios com os
membros, o que prejudicaria seu desenvolvimento (IMBERT, 1839, tomo
2, p. 253-254).
Todos estes hábitos deveriam ser monitorados e tolhidos por parte
dos senhores, e estas mulheres deveriam ficar em um regime de vigilância
contínua, mesmo após o parto (IMBERT, 1839. Tomo 2). Estas represen-
tações denotam – e incentivam - o intuito de dominação sobre as práticas,
os corpos e a própria maternidade: o cativo deveria ser monitorado, con-
trolado em tudo pelo homem branco. O intuito de controle sobre o corpo
também salta aos olhos em outro ponto do capítulo de Imbert, que dizia
que por vaidade, por prezar pelos seus “encantos físicos” a mulher negra
escravizada abortava para não ver as mudanças corporais ocorridas de-
vido à gravidez. O médico afirma que estes atos trouxeram muito prejuízo
“ao progresso da população dos escravos” e que para evitar estes feitos
Alan Ricardo Schimidt Pereira | 63

deveriam ser oferecidos prêmios para as mulheres que dessem continua-


ção à gravidez e que estas mulheres não deveriam ser postas a trabalhos
penosos, pois os cuidados e as atenções dadas às mulheres grávidas fariam
com que elas apreciassem “as comodidades e as vantagens que daí pro-
vêm, inspirando ao mesmo tempo àquelas, que não se acham nesse estado,
o desejo de também conceber” (IMBERT, P. 254-255). A mulher cativa de-
veria ser incentivada a ter filhos, a aumentar o número de cativos sob a
tutela de seu senhor. Logo, o seu corpo deveria estar a serviço do homem
branco e sua vontade de aumentar seus plantéis de escravizados.
Quando Imbert fala das mães que alimentavam seus filhos com um
pouco da sua comida; quando diz que elas só deveriam dar leite às crianças
até certo período e depois papas; quando afirma que aquelas mulheres da-
vam leite velho e grosso aos filhos; quando diz que suas práticas podiam
levar as crianças à morte; ou ainda quando menciona que as mães abor-
tavam por zelarem pela aparência, produzindo representações destes
indivíduos como sendo displicente para com seus rebentos, o médico se
enquadra na descrição feita por Machado (2018) da classe senhorial que
não via a real condição dos cativos. Machado (2018) e Ariza (2018) afir-
mam que as mães muitas vezes não conseguiam alimentar seus filhos
corretamente devido ao trabalho, sendo estas crianças alimentadas com
papas que lhes faziam mal (papas que eram incentivadas por Imbert, a
partir de determinada idade).
Também devemos ter em mente, como explica Ariza (2018), que as
mulheres não conseguiam amamentar corretamente seus filhos por esta-
rem servindo na casa dos senhores como amas de leite. Elas estavam
impossibilitadas de amamentar suas crianças durante o dia, deixando-lhes
aos cuidados de mulheres mais velhas que tinham como único recurso ali-
mentá-los com as mencionadas papas. Machado (2018, p.337) afirma a
partir do relato de viajantes, que muitas mulheres levavam seus filhos para
64 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

a lavoura para amamentá-los para não precisar parar de trabalhar. As mu-


lheres tentavam amamentar seus filhos à noite, após o trabalho, para não
deixá-los morrer (MACHADO, 2018). O aborto muitas vezes se dava por
conta dos estupros perpetrados por seus senhores, outras vezes como re-
sistência ao cativeiro, assim como o infanticídio, embora “as fontes não
permitam determinar a extensão destas práticas” (MACHADO, 2018,
p.339). O abuso sexual por parte dos senhores é comprovado na seguinte
passagem do Manual do Fazendeiro de Fonseca (1863, P. 110-111), no qual
o senhor é aconselhado a não nutrir um “amor impuro” que poderia des-
truir sua família e gerar a ira dos cativos. Tais abusos não eram
considerados como uma violência sexual, mas apenas uma prática “não
indicada”:

O senhor deve tratar a sua escrava com toda a honestidade; pois é isto indis-
pensável para a boa harmonia em sua família, e para delia merecer o respeito
que lhe é devido. nada enfurece mais um escravo contra seu senhor do que o
ciúme. Grandes desgraças têm acontecido por este motivo. Enfim é uma
grande infelicidade para uma família o amor impuro de um senhor para com
suas escravas (FONSECA, 1863, p. 110-111).

Em suas considerações, Imbert se aproxima bastante daquelas feitas


no Manual do Agricultor Brasileiro por Carlos Augusto Taunay (2001) 8.
Principalmente no que diz respeito a dar “prêmios” para os cativos que
fizessem aquilo que traria proveito para os seus senhores (nesse caso a
continuidade da gravidez para aumentar a escravaria), mas também no
que diz respeito à constante vigilância sobre os cativos, em especial às mu-
lheres parturientes e recém paridas. Além disso, o fato de Imbert (1839)
durante todo seu capítulo indicar que a mulher escravizada seria facil-
mente influenciada pelas “superstições” e que todo o cuidado no parto e o

8
Publicado originalmente em 1839 (suas duas primeiras edições).
Alan Ricardo Schimidt Pereira | 65

cuidado com a criança deveria ser supervisionado e orientado pelos senho-


res, nos dá uma impressão de infantilização da mulher negra cativa, que
por sua “incivilidade” (IMBERT, 1839) e por sua “inferioridade física e in-
telectual” (TAUNAY, 2001, p.52), seria incapaz de cuidar da criança. Esta
representação da mãe cativa como inapta por suas “faculdades” por parte
de Imbert de certa forma vai ao encontro do que Taunay (2001, p. 52) diz
quando alega que “O geral deles [os indivíduos negros] não nos parece
suscetível senão do grau de desenvolvimento mental a que chegam os
brancos na idade de quinze a dezesseis anos”. A visão de inaptidão da mãe
escravizada talvez se dê justamente pela representação racista do cativo
como sendo um indivíduo “inferior” e “Infantil” que se fazia presente na
sociedade escravista.
Um indivíduo infantil que deve ser supervisionado pelo senhor a todo
o tempo, que deve ganhar recompensas para bem se comportar, que deve
ser controlado em seus hábitos e corpos, sendo papel do senhor pôr em
prática as medidas que levem os procedimentos ao sucesso: esta é a repre-
sentação que faziam dos cativos e das mulheres cativas (principalmente
na sua condição de mãe) os manuais de fazendeiros e de medicina. Clara-
mente estas representações serviam de elemento justificador da violência
e de dominação, e isto não se apresenta nas entrelinhas em um processo
complexo de interpretação: não! Isto literalmente é expresso pelos autores
dos manuais, que deixam patente que os indivíduos cativos deveriam ser
controlados em todos os aspectos da sua vida pelo senhor por conta dos
motivos apresentados, que nada mais são do que representações.
Porém, no Brasil Imperial não houve somente estas representações
escravistas. Na década de 1860 - aproximadamente vinte anos após a pu-
blicação dos manuais do fazendeiro de Imbert (1839) e Taunay (1839) -
Castro Alves, como dissemos no início desta análise, destoou das represen-
tações recorrentes, se colocando em uma situação de lutas de
66 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

representações ao escrever poemas como “Vozes D’África” e “O Navio Ne-


greiro” durante sua estadia em São Paulo (COSTA E SILVA, 2006, p.92).
Quando o poeta estava em Recife, em 1865, ele escreveu o poema
“Tragédia no lar” (FERNANDES, 2012 p. 19) onde apresenta uma repre-
sentação da mãe escravizada bastante diferente daquela feita pelas classes
senhoriais, sendo aquela uma mulher zelosa que sofre com o cativeiro e
que está disposta a lutar pelo seu filho, mesmo que isso lhe levasse a sofrer
as dores dos castigos físicos. Com base nisso observamos que Castro Alves
em seus escritos se alinhou com as obras críticas da escravidão que predo-
minam no Segundo Reinado (CHALHOUB, 2018, p. 299). Neste período

a imaginação literária [...] parecia capturada pela questão do sofrimento da


mãe escrava, da separação violenta de mães e filhos em função do tráfico ne-
greiro, de atos de compra e venda, de partilhas de bens, de hipotecas e demais
transações pertinentes à instituição (CHALHOUB, 2018, p. 299).

O poema “Tragédia no Lar” (entre outros de Castro Alves) não escapa


à esta lógica. Neste poema, o vate baiano apresenta a situação comovente
da mãe cativa, que cuidando do filho na senzala, é assaltada pelo senhor e
por compradores que lhe levam o filho, por mais resistência que ela apre-
sentasse.
O poema começa à noite com a cativa embalando a criança enquanto
canta. Reparemos que todo o poema se passa à noite: este era o momento,
conforme Machado (2018), em que as mães escravizadas conseguiam mui-
tas vezes alimentar e cuidar dos filhos. Logo no começo do poema
percebemos que a mãe tem muito zelo pela criança, embalando-a e can-
tando para ela uma canção triste sobre a liberdade:

Junto ao fogo, uma africana,


Sentada, o filho embalando,
Vai lentamente cantando
Alan Ricardo Schimidt Pereira | 67

Uma tirana indolente,


Repassada de aflição. (ALVES, s/d, p. 86)

A descrição da senzala nesse poema se faz interessante, pois denuncia


o ambiente insalubre que Machado (2018) afirma ter sido a causa das mor-
tes de tantas crianças, no início do poema Castro Alves já dizia “Na Senzala,
úmida, estreita” (ALVES, s/d, p.85). O poeta também narra o medo da cri-
ança do vento: “E o menino ri contente.../Mas treme e grita gelado,/Se nas
palhas do telhado/ Ruge o vento do sertão” (ALVES, s/d, p.86). A cativa
canta e chora para seu filho, e uma passagem de ternura entre a mãe e o
filho se dá na seguinte estrofe:

Se o canto pára [sic] um momento,


Chora a criança imprudente ...
Mas continua a cantiga ...
E ri sem ver o tormento
Daquele amargo cantar.
Ai! triste, que enxugas rindo
Os prantos que vão caindo
Do fundo, materno olhar
E nas mãozinhas brilhantes
Agitas como diamantes
Os prantos do seu pensar ... (ALVES, s/d, p.86).

Aqui o “materno olhar” nos faz interpretar que a mãe olha terna-
mente para o filho enquanto canta, e enquanto chora pela liberdade que
foi tirada. Contudo, o cântico é interrompido pelo som de estranhos che-
gando na fazenda e sendo recebidos pelo senhor (ALVES, s/d., p.88). Logo
a porta da senzala é aberta e a seguinte cena se desdobra com a fala do
senhor:

A porta da fazenda foi aberta;


68 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

Entraram no salão.
Por que tremes mulher? A noite é calma,
Um bulício remoto agita a palma
Do vasto coqueiral.
Tem pérolas o rio, a noite lumes,
A mata sombras, o sertão perfumes,
Murmúrio o bananal.

Por que tremes, mulher? Que estranho crime,


Que remorso cruel assim te oprime
E te curva a cerviz?
O que nas dobras do vestido ocultas?
É um roubo talvez que aí sepultas?
É seu filho ... Infeliz! ...

Ser mãe é um crime, ter um filho - roubo!


Amá-lo uma loucura! Alma de lodo,
Para ti - não há luz.
Tens a noite no corpo, a noite na alma,
Pedra que a humanidade pisa calma,
— Cristo que verga à cruz! (ALVES, s/d, p.88).

Aqui Castro Alves denuncia a desumanidade do senhor, que ao ver a


cativa hesitar em sua presença, e ao ver que ela escondia o filho, lhe desfere
represálias, pois para o senhor esta mulher não teria o direito de ser mãe
por ser escravizada, amar o filho seria loucura, um roubo, pois a criança
seria “propriedade” sua. O medo da mulher ao ver os homens adentrarem
a senzala já denota o medo da presença do senhor, que seria sinônimo de
violências várias. Depois de algumas estrofes com metáforas religiosas 9
Castro Alves (s/d) convida o leitor a adentrar a senzala e estende suas crí-
ticas àqueles que defendem a escravidão:

9
Conforme Oliveira (2007) estas metáforas religiosas e o uso de recursos de linguagem religiosos denota o intuito
de Castro Alves em convencer os leitores, mas em contrapartida auxilia na manutenção de estereótipos.
Alan Ricardo Schimidt Pereira | 69

Não venham esses que negam


A esmola ao leproso, ao pobre.
A luva branca do nobre
Oh! senhores, não mancheis...
Os pés lá pisam em lama,
Porém as frontes são puras
Mas vós nas faces impuras
Tendes lodo, e pus nos pés. (ALVES, s/d, p.90).

O poeta, então, se volta ao leitor que busca em meio ao lixo do oceano


pérolas - que é um crítico que mergulha na sociedade e entra na senzala
para “ver como rasgam-se as entranhas/ De uma raça de novos Prome-
teus” (ALVES, s/d, p.90). Neste poema o cativo não é o incivilizado, ele é
um destes “novos Prometeus”, aquele que é forte e nobre, mas que sofre.
O senhor, por sua vez, é representado como aquele que tem lodo “e pus
nos pés”, aquele que é moralmente questionável, que é cruel, procedendo-
se aqui a uma inversão de valores que é clara, pois não é o cativo que é
representado como imoral nem como um ser carregado de vícios. É o se-
nhor que passa a ser representado como o problema, o algoz, e o cativo
como a vítima que sofre longe da sua terra e atura as violências senhoriais.
Após o convite do poeta para que o leitor adentre a senzala, ele retoma a
narrativa. O senhor diz para os compradores irem ver a criança, ordena
que a mãe a entregue (ALVES, s/d, p.90) e a cativa é representada da se-
guinte forma:

Assim dizia o fazendeiro, rindo,


E agitava o chicote...
A mãe que ouvia
Imóvel, pasma, doida, sem razão!
À Virgem Santa pedia
Com prantos por oração;
70 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

E os olhos no ar erguia
Que a voz não podia, não (ALVES, s/d, p.90-91).

Mas aqui a mulher não se põe passiva e resignada, ela demonstra co-
ragem ante o senhor. Primeiro, ao ser anunciada a venda da criança, ela
tenta comover o senhor lembrando-lhe que também tem filhos, pede in-
clusive para que ele a mate. Depois, com a insistência do escravista para
que ela permita que os compradores vejam a criança, ela suplica a eles,
atirasse aos seus pés e implora para que lhe deixem o filho (ALVES, s/d,
p.91-92). Neste ponto, nosso poeta diverge drasticamente das representa-
ções escravistas que se faziam das mães cativas. O poeta representa o zelo
da mãe pela criança, o carinho e a ternura durante todo o poema, as suas
súplicas demonstram isso:

Meu filho é-me a sombra amiga


Neste deserto cruel!...
Flor de inocência e candura.
Favo de amor e de mel!

Seu riso é minha alvorada,


Sua lágrima doirada
Minha estrela, minha luz!
É da vida o único brilho
Meu filho! é mais... é meu filho
Deixai-mo em nome da Cruz! (ALVES, s/d, p. 92)

Oliveira (2007, p.82), ao analisar este poema, aponta que a argumen-


tação da escravizada “provém de estratégias persuasivas” para a
sensibilização do outro. O poema lança mão de estratégias de retórica que
se apoiam em um virtuosismo de caráter cristão, que se dá “pelos signos
‘piedade’ e ‘bondade’” presentes no poema. Além de serem “componentes
da dicção cristã”, estes termos passam por questões de caráter envolvendo
Alan Ricardo Schimidt Pereira | 71

a retidão e a piedade, tão caras à sociedade. Oliveira (2007, p. 82) também


percebe de maneira aguçada que o fato da escravizada tentar fazer com
que o senhor se colocasse no lugar dela é um recurso retórico que preten-
dia “comover para convencer”.
Enfim, dirigindo-se ao fim do poema onde dá-nos a perceber que são
em vão as súplicas da mãe escravizada, o poeta exprime em seus versos o
resultado do drama:

Mudou-se a cena. Já vistes


Bramir na mata o jaguar,
E no furor desmedido
Saltar, raivando atrevido.
O ramo, o tronco estalar,
Morder os cães que o morderam...
De vítima feita algoz,
Em sangue e horror envolvido
Terrível, bravo, feroz?

Assim a escrava da criança ao grito


Destemida saltou,
E a turba dos senhores aterrada
Ante ela recuou.
— Nem mais um passo, cobardes!
Nem mais um passo! ladrões!
Se os outros roubam as bolsas,
Vós roubais os corações! ...

Entram três negros possantes,


Brilham punhais traiçoeiros...
Rolam por terra os primeiros
Da morte nas contorções (ALVES, s/d, p. 93).
72 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

A mulher ataca os senhores, ela se torna um animal selvagem, não


no sentido de “incivilizado” que lhe atribuíam às camadas senhoriais, mas
como uma metonímia para a sua coragem. Contudo é necessário aqui ter-
mos cuidado, pois como aponta Oliveira (2007, p. 92) a comparação dos
cativos com animais (como no poema “Bandido Negro”) pode evidenciar
uma relação hierárquica entre as personagens na trama, privilegiando os
brancos “ou os que com eles se assemelhem”, algo que conforme o autor é
recorrente na obra castroalvina. Luiz Henrique de Oliveira ainda afirma
que

De acordo com Heloísa Toller Gomes, o recurso a comparações dos negros a


animais percorre uma gama de textos. “Por vezes exprime sentimentos detra-
tores de certos personagens, insidiosamente encaminhados pelo narrador, por
vezes corresponde a determinada visão do mundo (...) em que a animalização
transcende o aspecto racial” (Toller Gomes, 1994, p. 161). Este gesto pode aca-
bar reforçando no negro os estigmas de primitivo, desprovido de
intelectualidade, dócil ou agressivo, conforme os animais a que os escravos são
comparados (OLIVEIRA, 2007, p. 92).

De toda forma, como vimos nas estrofes acima, a mulher salta como
um “jaguar” sobre os homens no poema, fazendo-os recuar e insultando-
os, chamando-lhes ladrões e até mesmo outros cativos entram em cena e
tentam auxiliar a mulher furiosa que protege seu filho, mas acabam mor-
tos. Esta reação por parte dos cativos é curiosa, pois Castro Alves, na
maioria dos seus poemas não demonstra a reação por parte destes indiví-
duos, muito marcados pela resignação. A exceção encontra-se em apenas
três poemas de “Os Escravos”, um deles é o aqui analisado: “Tragédia no
Lar”. Os outros dois são “Bandido Negro” e “A Criança”. No livro A Cacho-
eira de Paulo Afonso este elemento aparece na vingança perpetrada pelo
personagem Lucas (OLIVEIRA, 2007, p. 87). Contudo, mesmo com a co-
ragem da mulher em “Tragédia no Lar”, o final é miserável:
Alan Ricardo Schimidt Pereira | 73

Um momento depois a cavalgada


Levava a trote largo pela estrada
A criança a chorar.
Na fazenda o azorrague então se ouvia
E aos golpes - uma doida respondia
Com frio gargalhar! ... (ALVES, s/d, p. 93)

A mãe cativa tem seu filho tomado, é violentada fisicamente e enlou-


quece “com frio gargalhar”. Além das súplicas que demonstram o amor e
o zelo da mulher, há também a coragem dela, que mesmo sabendo da au-
toridade do senhor, impõe-se na tentativa de ficar junto ao filho. Quando
não lhe permitem ficar com a criança, nossa personagem enlouquece
frente ao castigo que recebeu daqueles que se arrogavam o direito sobre
sua vida.
Zelosa, corajosa, amável e sofredora: estas são as representações que
Castro Alves constrói neste poema. Como já mencionado, o próprio negro
cativo é representado como um “novo Prometeu”, esse indivíduo corajoso,
mas que sofre. O senhor passando a ser o indivíduo vil. Sem dúvidas, as
representações de Castro Alves destoam em muito daquelas formuladas
pela classe senhorial, havendo nelas “avanços e genialidade”, como conclui
Luiz Henrique de Oliveira (2007, p.96). Além disso, nos poemas de Castro
Alves há a valorização do negro “como humanizado, sensível, racional,
múltiplo, em situações verossimilhantes, portanto não como tábula rasa”,
sendo estas considerações méritos para ele (OLIVEIRA, 2007, p.79). Con-
tudo, Oliveira (2007), baseado no conceito de “estereótipos” formulado
por Homi Bhabha 10, afirma que há nas poesias de Alves aquilo que este

“Segundo Homi Bhabha, os estereótipos são quaisquer representações limitadas da alteridade em domínio
10

discursivo, por meio de signos e cadeias semânticas que implicam ambivalência e/ou fixidez no ato representativo.
“Conota rigidez e ordem imutável, como também desordem, degeneração e repetição” (BHABHA, 2005, p. 105)”
(OLIVEIRA, 2007, p. 78 grifo do autor)
74 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

(BHABHA, 2005 apud OLIVEIRA, 2007, p. 79) denomina de “ambivalên-


cia” que seriam “duas valências titubeantes, sendo uma positiva e outra
negativa [...]” (OLIVEIRA, 2007, p. 79-80). Isto ocorre porque ao mesmo
tempo em que o poeta traz uma imagem positiva do negro, ele traz uma
voz autoritária e senhorial, que coloca o cativo em uma realidade social
“outra e negativa, justamente porque recai em estereótipos” (OLIVEIRA,
2007, p. 79). Nesta ambivalência ocorre uma “superação-não superação
de estereótipos” com relação ao negro, pois mesmo havendo esta valoriza-
ção dos representados, há também uma visão estereotipada e petrificada
do negro, permitindo ver uma voz conservadora ao lado da voz condoreira
(OLIVEIRA, 2007, p. 82). Em uma nota de roda pé Luiz Henrique de Oli-
veira resume bem a situação:

Se considerarmos as oito categorias de estereótipos de negros propostas por


Proença Filho, verificaremos que quatro não aparecem nos textos do poeta
baiano. Podemos dizer que há uma superação no que diz respeito a essas ima-
gens de negros. Os estereótipos superados são: o escravo nobre, o negro
infantilizado, o negro pervertido, e o negro fiel. Os não superados são o negro
vítima, o escravo demônio, o negro injustiçado e ressentido, e o negro exilado
na cultura brasileira, este último por conseqüência [sic] dos anteriores (grifo
do autor, OLIVEIRA, 2007, p. 83).

Conforme o autor aponta, o cativo como vítima é muito presente na


poética de Alves, sendo transformado em um “objeto de idealização”
(OLIVEIRA, 2007, p. 83). Além disso, o cativo é colocado como vítima prin-
cipalmente “porque sempre escravo” (OLIVEIRA, 2007, p. 83), não sendo
considerados os negros livres e forros, e muito pouco os aquilombados:
“em outras palavras, todo negro para ele é escravo” (OLIVEIRA, 2007, p.
84).
Apesar dos avanços das representações de Castro Alves (em compa-
ração com discursos escravistas), estas eram acompanhadas da posição
Alan Ricardo Schimidt Pereira | 75

conjuntural em que o poeta estava inserido, confirmando a ideia de que a


posição daquele que profere a representação deve ser considerada e anali-
sada ao trabalharmos com este conceito (CHARTIER, 2002b, p.17). Alves,
mesmo condoreiro, ainda era fruto das camadas senhoriais e não conse-
guiu, apesar dos seus méritos, se livrar de alguns dos estereótipos que
permeavam sua posição social em seu tempo e espaço.
A posição de Castro Alves, contudo, não nos impede de o analisarmos
como sendo um produtor de representações destoantes em relação às re-
presentações escravistas: apenas faz-nos ter mais cuidado com nossas
análises, pois com isto percebemos que as representações são mais com-
plexas do que aparentam, não podendo ser tidas como produtos binários
e estáticos, totalmente coesos e unívocos.
Outra prova disso que estamos apresentando é o Manual do Agricul-
tor Brasileiro de Taunay (2001), pois mesmo sendo um livro voltado para
o ensino de como os senhores deveriam dominar seus cativos – além de
outras funções de um fazendeiro-, este vociferava contra a escravidão, afir-
mando que tal prática ia contra “as leis da humanidade e da religião” (p.
50), porém, ainda sim justificando o mantenimento da instituição, e para
isso utilizando-se de discursos racistas típicos de seu período. Com base
nisso, acreditamos que as representações de um indivíduo precisam ser
sempre analisadas ao lado de outras dos mesmos agentes e de seus con-
temporâneos, para podermos perceber as contradições que se operam nos
objetos que são analisados. Pois, do contrário poderíamos cometer o erro
de tomar um indivíduo como sendo um produtor de representações coesas
e incontestáveis, ignorando sua inserção na conjuntura histórico-social e
a complexidade que se apresenta dentro de todas as sociedades em todas
as épocas.
76 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

Considerações finais

Concluímos que as duas representações que trouxemos aqui - uma


médica e escravista, a outra literária e abolicionista, ambas são produtos
do Brasil Imperial - tinham o intuito de apresentar uma verdade, uma vi-
são sobre os indivíduos cativos eivadas de interesses de dominação ou
libertação. A representação senhorial pretendia o domínio sobre os indiví-
duos e se utilizava do cientificismo racista como recurso legitimador
daquele status quo. A representação abolicionista, indo contra esta visão
sobre os indivíduos escravizados, demonstra a humanização do cativo: ele
se torna não mais o indivíduo resistente e robusto que poderia aguentar
situações adversas sem problemas (TELLES, 2018), mas o indivíduo que
mesmo sofrendo ainda é corajoso, um indivíduo que não perde a espe-
rança na liberdade, como podemos ver nos poemas de Castro Alves.
Contudo, ainda percebemos que existem contradições dentro destas re-
presentações, havendo estereótipos e controvérsias dentro das obras, mas
isto não faz desaparecer a luta de representações sobre os cativos, inclu-
indo-se aí a figura da mãe escravizada: isto apenas complexifica as
representações, tornando-as ainda mais ricas.
Neste contexto a mãe cativa se torna um indivíduo que é represen-
tada em um campo de conflitos sobre a verdade, que seria a chave para a
manutenção ou o fim da escravidão. Desumanizar os cativos era uma
forma de manter o sistema escravista e sua humanização colocaria por
terra este mesmo sistema. Ainda que esta humanização fosse uma repre-
sentação que colocava os cativos como vítimas passivas, que era feita por
indivíduos em sua maioria brancos e da classe senhorial, pois passaria a
ser absurda a ideia da objetificação e exploração de iguais, incluindo-se aí
a ideia do partus sequitur ventrem que foi a lógica jurídica de que filhos de
escravizadas seriam então escravizados.
Alan Ricardo Schimidt Pereira | 77

Além disto, a família era algo importante no Brasil Imperial, sendo o


próprio Imperador visto como o pai de toda a nação (MALERBA, 1999).
Isto faz com que a representação de uma mãe tendo seu filho tomado dos
braços por homens vis seja uma boa ferramenta de convencimento do
quão nocivo era o sistema escravista. Lembremos que para uma represen-
tação ter sucesso enquanto uma verdade aceita ela precisa do crédito que
os indivíduos lhes atribuem, portanto, a comoção criada pela representa-
ção da mãe cativa era uma forma de fazer com que as pessoas aderissem
aos projetos abolicionistas, transformando gradativamente o país naquele
que estes indivíduos almejavam, mesmo que este processo tenha sido per-
meado por conflitos com aqueles que acreditavam no escravismo como
modelo ideal ou necessário.

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disponiveis/8/8138/tde-24072019-152856/pt-br.php. Acesso em: 03 jun. 2021.
4

A representação imagética de São Benedito:


uma análise a partir da teoria de Roger Chartier

Caio Felipe Gomes Violin

Introdução

A proposta desse ensaio teórico será relacionar a iconografia de São


Benedito a partir do desenvolvimento do conceito de representação cole-
tiva elaborado pelo historiador francês Roger Chartier. Porém, o primeiro
passo será entender a ideia de Iconografia desenvolvida por Erwin Pa-
nofsky. Desse modo, pretende-se, a partir de então, resgatar a teoria
desenvolvida por Chartier, para entender o significado de representação e
assim aplicar os conceitos, utilizando a representação de São Benedito
como exemplo concreto. Será relacionado ainda a iconografia do Santo
presente em vários altares de muitas igrejas com a teoria de poder simbó-
lico de Chartier. Sendo assim, algumas questões surgem para nortear a
reflexão, como: Qual o conceito de iconografia? O que seria o conceito de
representação que Roger Chartier desenvolve? Como aplicar tal conceito
na arte pictórica e iconográfica? É possível transpor o conceito de repre-
sentação para o entendimento da relação de poder que as imagens sacras
possuem ao fiel?
O principal objetivo, deste ensaio, será colocar como exemplo, o
Santo, a partir da realidade desenvolvida na teoria e a utilização de tais
representações iconográficas, que assim pode possuir seu significante e
significado a uma população devota ou não. Nessa perspectiva, será levado
em conta o valor simbólico que tais imagens sacras possuem para o ima-
ginário devocional daquele fiel e como essa representação serve de espelho
Caio Felipe Gomes Violin | 81

e inspiração. A relação de poder também será levada em consideração, pois


a imagem de santo surge a partir de uma instituição religiosa dotada de
dogmas e regras, ou seja, poder. A escolha de São Benedito acontece pois
é tema de pesquisa da dissertação de mestrado e também, assim como
outros santos, ocupa um processo forte de inculturação por parte dos de-
votos negros que estavam escravizados na época do Brasil Colonial. As
imagens utilizadas no ensaio são parte do acervo de esculturas do Museu
Afro Brasil e do acervo online da Biblioteca Nacional.

Santo e Iconografia

No senso comum da devoção popular “santo” seria aquela pessoa que


não faz nada de errado, mas também pode ser “nomes de igrejas, imagens
feitas em gesso, quadros em museus que mostram virgens sendo atiradas
aos leões, medalhas penduradas no pescoço [...] e outras efemérides deri-
vadas do catolicismo” (CUNNINGHAM, 2011, p. 18). Porém, segundo a
tradição bíblica santo seria pessoa sagrada. Portanto, para a reflexão que
se inicia, a palavra será definida como sendo uma pessoa que buscou ter
uma vida simples, temente a Deus, realizando caridade e uma vivência de
santidade cristã, colocando em pratica os ensinamentos de Cristo, sendo
assim, reconhecida pela Igreja Católica com a canonização, além de ter seu
retrato confeccionado em gravuras e imagens feitas de barro, madeira,
gesso, entre ouros materiais para devoção e veneração.
O conceito desenvolvido por Panofsky para iconografia advém do re-
conhecimento do objeto artístico que é capaz de “reconstruir seu contexto
histórico e ‘recriar’ todo o processo de elaboração” (PIFANO, 2010, p. 1) da
imagem. Desse modo, no livro “Significado nas artes visuais” de Erwin
Panofsky, no capítulo “Iconografia e Iconologia: Uma introdução ao estudo
da arte na renascença”, o autor busca definir o conceito de iconografia e
82 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

iconologia, a partir de três níveis de significado: 1º Tema Primário ou Na-


tural; 2º Tema secundário ou convencional; e 3º Significado intrínseco ou
conteúdo. Por outro lado, Panofsky entende o conceito de iconografia bus-
cando a etimologia da palavra, sendo

O sufixo “grafia” vem do verbo grego ‘graphein’, escrever; implica um método


de proceder puramente descritivo, ou até mesmo estatístico. A iconografia
é portanto, a descrição e classificação das imagens, assim como a etno-
grafia é a descrição e classificação das raças humanas; é um estudo
limitado e, como que ancilar, que nos informa quando e onde temas es-
pecíficos foram visualizados por quais motivos específicos. Diz-nos
quando e onde o Cristo crucificado usava uma tanga ou ma veste comprida;
quando e onde foi Ele pregado à Cruz, e se com quatro ou três cravos; como
Vicio e a virtude eram representados nos diferentes séculos e ambientes. Ao
fazer este trabalho, a iconografia é de auxílio incalculável para o estabele-
cimento de datas, origens e, às vezes, autenticidade; e fornece as bases
necessárias para quaisquer interpretações ulteriores. (PANOFSKY, 1991,
p. 53) [grifo nosso]
Caio Felipe Gomes Violin | 83

Figura 1. Gravura de São Benedito da Irmandade de N. S. Rosário e


São Benedito dos homens pretos do Rio de Janeiro. (Data de aproximadamente 1800)

Fonte: Acervo digital da Biblioteca Nacional. Disponível em: <http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_d>

O método aplicado pelo autor para compreender a iconografia seria


o que ele chama do “puramente descritivo”, isto significa que a iconografia
84 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

seria o exercício de descrever o objeto artístico, ou a obra de arte. Contudo,


o conceito de iconografia é aprofundado, por Panofsky, a partir da utiliza-
ção do método iconográfico, isto significa a utilização da iconologia, para
poder analisar e interpretar uma imagem.
Desse modo, a iconografia para Panofsky pressupõe a iconologia, que
resultaria no exercício da interpretação. Assim, “a ‘leitura’ iconográfica da
obra é uma análise, já a ‘leitura’ iconológica é uma interpretação”
(PIFANO, 2010, p. 5), aplicado ao conceito de objeto sacro, isto é, o santo,
representa para o devoto muito mais do que um simples objeto, mais a
própria representação de poder simbólico, no qual Roger Chartier busca
discutir e teorizar.

A iconografia de São Benedito

A figura de São Benedito, nesse sentido, surge para ajudar a exempli-


ficar os conceitos desenvolvidos ao longo do ensaio. Sendo assim, o santo
“aparece nas histórias populares brasileiras como o santo escravo, padro-
eiro dos cozinheiros. É considerado um dos principais padroeiros das
populações negras no Brasil” (GUALBETO, 2007, p. 2) e torna-se relevante
pois segundo a historiadora Joyce Faria de Oliveira em seu artigo “Negro,
mas belo: São Benedito, o Santo Preto da Idade Moderna” para o XII en-
contro de história da arte da Unicamp, a escultura

Tratando-se de um santo preto, São Benedito surge como um novo modelo de


negro cristão no pós-tridentino. Aqui, vigoram-se os princípios do Barroco,
onde os conceitos estéticos e teológicos de uma Igreja reformada foram ainda
mais aprimorados, instituindo uma cultura visual profundamente simbólica,
persuasiva e arrebatadora para o público cristão. Com essas medidas, a repre-
sentação do negro seria enfatizada a partir de um elemento muito contundente
neste projeto de conversão, - a cor preta. (OLIVEIRA, 2017, p. 368)
Caio Felipe Gomes Violin | 85

Dessa forma, a imagem apresentada na figura 1, seria uma gravura


de São Benedito, pertencente a irmandade de Nossa Senhora do Rosário e
São Benedito dos homens pretos da cidade do Rio de Janeiro, com data de
fundação de 1640 e com data da confecção da gravura de aproximada-
mente de 1800. Na análise iconográfica, “as imagens do santo trazem a
roupa típica de um franciscano capucho e sua pele alterna entre a negri-
tude a tons amorenados, mas há diferentes atributos dependendo das
regiões” (OLIVEIRA, 2017, p. 370). As características presentem nesta ima-
gem segue o modelo italiano de

São Benedito com o Menino Jesus, referente à Aparição da Virgem ao beato


negro, constatando-se as tendências artísticas na elaboração iconográfica do
catolicismo tridentino. Para Dell‘Aira, no caso dos santos franciscanos, o mo-
delo de São Benedito parece ter seguido referências iconográficas do português
Santo Antônio de Pádua. (OLIVEIRA, 2017, p. 370)

A hagiografia do santo tem início com seu nome de batismo

Benedetto Manasseri, [...], nasceu em San Fratello em 1526 e faleceu em Pa-


lermo em 04 de abril de 1589, ambas cidades da Sicília, na Itália. Filho
primogênito de ex-escravos convertidos ao catolicismo, Benedetto se tornou
livre aos 18 anos de idade, iniciando sua jornada eremita com um grupo se-
guidores de São Francisco de Assis, liderado por Jerônimo Lanza. Não há dados
tão precisos quanto a este período que remete à vida eremita e à clausura de
Benedetto. Pode-se determinar que entre seus 32 e 36 anos, ele se tornou frei
ao ingressar na Ordem de São Francisco e passou a viver no Convento de Santa
Maria de Jesus em Palermo, onde exerceu a função de cozinheiro, Frei Supe-
rior dos Noviços e Guardião deste convento, algo que chama atenção, pois
Benedetto era analfabeto e negro. (OLIVEIRA, 2017, p. 369)

A divulgação devocional de São Benedito acontece por obra da Ordem


dos Frades Menores e após ser proclamado como o “santo padroeiro das
populações negras” (OLIVEIRA, 2017, p. 369) seu alcance vai da Europa,
86 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

para África e América. Associado ao processo de conversão dos negros es-


cravizados ao catolicismo a devoção torna-se popular, através do processo
de inculturação e pela associação da cor de pele das imagens.
A escultura de São Benedito representado na imagem da figura 2,
feita em cerâmica no estilo de paulistinhas, sendo sua origem a cidade de
Pindamonhangaba, foi adquirido pelo Museu afro do Brasil, no qual faz
parte de seu acervo, está datado de meados do século XX. O processo de
propagação da fé acontece justamente pelo “modelo de negro cristão e a
devoção deste santo entre os negros” (OLIVEIRA, 2017, p. 371) seria a con-
tinuação de uma estratégia de catequese aos escravizados, por parte da
Metrópole portuguesa, gerando assim “à multiplicação de esculturas de
São Benedito”. Tanto a figura 1, quanto, a figura 2 fazem parte de um
“novo ciclo de difusão do culto ao santo negro” realizado pelos portugueses
e espanhóis, nesse sentido

as hagiografias ibéricas se tornaram as principais referências iconográficas do


santo, contribuindo para uma maior circulação dos modelos para além da Pe-
nínsula Ibérica. As hagiografias espanholas foram as mais numerosas, porém
as portuguesas foram muito mais significativas em relação à escultura portu-
guesa [...]. Essa maior atenção dos portugueses era consequência do aumento
de negros escravizados em Portugal e sobretudo no Brasil, precisando de es-
tratégias mais incisas para controlar e administrar esta numerosa população.
(OLIVEIRA, 2017, p. 371)
Caio Felipe Gomes Violin | 87

Figura 2. Escultura de São Benedito de Pindamonhangaba-SP. (data meados do sec. XX)

Fonte: Museu Afro Brasil. Disponivel em: <http://www.museuafrobrasil.org.br/>

A representação do Santo Negro

A palestra “Poderes e limites da noção de representação” 1 realizada


pelo Professor Roger Chartier, ajuda a entender que a abordagem da defi-
nição do conceito de representação parte do entendimento de duas
definições presentes no dicionário de língua francesa publicado pela Fure-
tière no ano de 1690. A primeira definição argumenta que representação
seria a

1 Palestra do Professor Roger Chartier, “Pouvoirs et limites de la notion de représentation”, no dia 7 de maio de 2010,
no Colloque franco-allemand “Représentation/ Darstellung”, realizado pelo Institut Historique Allemand de Paris.
88 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

imagem que remete à ideia e à memória os objetos ausentes, e que nos


apresenta tais como são. Nesse primeiro sentido, a representação nos per-
mite ver o “objeto ausente” (coisa, conceito ou pessoa), substituindo-o por
uma “imagem” capaz de representá-lo adequadamente. Representar, por-
tanto, é fazer conhecer as coisas mediatamente pela “pintura de um objeto”,
“pelas palavras e gestos”, “por algumas figuras, por algumas marcas” – tais
como os enigmas, os emblemas, as fábulas, as alegorias. Representar, no sen-
tido político e jurídico, é também “ocupar o lugar de alguém, ter em mãos sua
autoridade”. Dali surge a dupla definição dos representantes: “aquele que re-
presenta numa função pública, representa uma pessoa ausente que lá deveria
estar”, e “aqueles que são chamados a uma sucessão estando no lugar da pes-
soa de quem têm o direito”. (CHARTIER, 2011, p. 17) [grifo nosso]

A definição aplicada por Chartier encaixa-se perfeitamente no sentido


da imagem de São Benedito, pois essa ideia de memória dos objetos au-
sentes é justamente caracterizada na concepção da representação do santo
em gravura ou escultura. A partir dos elementos próprios que caracteri-
zam o personagem do santo, como a vestimenta, a cor de pele, o cabelo e
os símbolos que fazem parte da iconografia, aquela imagem presente nas
igrejas remete a uma personalidade dotada de história, conceito e memó-
ria, que se aproxima da vida do fiel que a ela é devoto.
Ao serem colocadas em destaque dentro das igrejas, muitas vezes em
locais mais elevados, ou seja, em altares criados justamente para colocar
os objetos que se fazem memória, pode-se dizer que a imagem do santo
estaria ocupando um lugar de poder, no imaginário da fé cristã. Pois
aquele personagem foi capaz de, em vida, fazer algo extraordinário e após
sua morte, tais atos foram reconhecidos pela instituição religiosa e adqui-
riu o status de santo canonizado para ser cultuado. Assim acontece com o
exemplo que o próprio Chartier utiliza para aplicar o conceito:

Essa acepção da representação está enraizada no sentido antigo e material da


“representação”, entendida como a efígie colocada no lugar do corpo do rei
Caio Felipe Gomes Violin | 89

morto em seu leito funerário [...] Os dois corpos do rei, e cuja figura paroxís-
tica se encontra nos funerais dos reis ingleses e franceses entre os séculos XV
e XVII. Nesse momento-chave se produz, efetivamente, uma inversão da pre-
sença do rei. Habitualmente, é seu corpo físico que é dado a ver aos seus
súditos enquanto seu corpo místico e político, o que garante a continuidade
dinástica e a unidade do reino, está invisível. Durante o funeral, no entanto, o
corpo do rei morto é escondido na mortalha e no cadafalso, enquanto o seu
corpo político, que nunca morre, se torna visível na imagem de madeira ou
cera que o representa. Como indica Furetière, “quando se vai ver os príncipes
mortos em seus leitos de morte, vê-se apenas sua representação, a efígie”. As-
sim, a distinção é radical entre o representado ausente e o objeto que faz ele
presente e nos permite conhecê-lo. Postula-se, então, uma relação decifrável
entre o signo visível e o que ele representa (CHARTIER, 2011, p. 17). [grifo
nosso]

A representação da efígie, nos funerais dos monarcas, para a cons-


trução dessa memória do líder e justamente o mesmo sentido que pode
ser aplicado no objeto do santo que é colocado no altar. O fiel quando entra
nas igrejas católicas, observa de imediato o altar ao fundo e busca reco-
nhecer qual a imagem de santo que está nesse templo, após isso começa o
processo de recordação da vida e obra daquele santo. Sendo identificado,
o santo, o fiel com o devido respeito busca venerá-lo, isto é, prestar o culto
de dulia. Essa representação do santo ajuda a compreender que “a distin-
ção é radical entre o representado ausente e o objeto que faz ele presente
e nos permite conhecê-lo. Postula-se, então, uma relação decifrável entre
o signo visível e o que ele representa” (CHARTIER, 2011, p. 17), no caso em
questão da representação do santo, o objetivo da imagem é trazer essa re-
presentação do objeto presente que ajuda a reconhecer a memória que está
contida nele.
A segunda definição apresentada pelo dicionário argumenta que
90 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

Representação, diz-se, no Palácio, como a “exibição de algo”, o que introduz


a definição de “representar” como “comparecer pessoalmente e exibir as
coisas”. A representação é aqui a demonstração de uma presença, a apresen-
tação pública de uma coisa ou de uma pessoa. É a coisa ou a pessoa mesma
que constitui sua própria representação. O referente e sua imagem formam o
corpo, são uma única coisa, aderem um ao outro: “Representação, diz-se às
vezes das pessoas vivas. Diz-se de um semblante grave e majestoso: “Eis uma
pessoa de bela representação” (CHARTIER, 2011, p. 17) [grifo nosso]

A ideia de representação definida por esse conceito não difere muito


do anterior, porém é aplicado melhor ao nosso objeto de exemplo. O santo
representa algo, que seja uma instituição, um modo de vida, uma divin-
dade, ou a possibilidade de chegar ao céu. Contudo, essa representação
traz uma imagem que remete a um valor de memória, ou seja, um certo
peso de significado na religião que há reconhece. O lugar de destaque que
tal representação ocupa também revela o lugar de poder, pois, representa
uma memória viva de uma pessoa, que foi reconhecida institucionalmente
e que por de traz está uma certa autoridade institucional dos valores acerca
do magistério, da tradição e das sagradas escrituras. Contudo, para Roger
Chartier o conceito de representação não se esgota assim, ele propõe que
a representação seria um “acúmulo de contribuições de vários autores”
que de início apoia-se nos trabalhos do sociólogo Pierre Bourdieu e escla-
rece que

As representações são entendidas como classificações e divisões que organi-


zam a apreensão do mundo social como categorias de percepção do real. As
representações são variáveis segundo as disposições dos grupos ou clas-
ses sociais; aspiram à universalidade, mas são sempre determinadas
pelos interesses dos grupos que as forjam. O poder e a dominação estão
sempre presentes. As representações não são discursos neutros: produzem
estratégias e práticas tendentes a impor uma autoridade, uma deferên-
cia, e mesmo a legitimar escolhas. Ora, é certo que elas colocam-se no
Caio Felipe Gomes Violin | 91

campo da concorrência e da luta. Nas lutas de representações tenta-se im-


por a outro ou ao mesmo grupo sua concepção de mundo social: conflitos
que são tão importantes quanto as lutas econômicas; são tão decisivos
quanto menos imediatamente materiais (CHARTIER, 1990, p. 17 apud
CARVALHO, 2005, p. 149) [grifo nosso]

Desse modo, chegamos no cerne da definição de representação en-


tendida por Roger Chartier. Essa justificativa de que a representação seria
sempre uma determinação dos interesses dos grupos que a forjam, tem
um certo sentido se aplicarmos na figura do santo, pois, quando a institui-
ção utiliza a representação do Santo Benedito, há um interesse por traz.
Dessa forma, precisa-se levar em consideração o contexto da época.
Quando o papa Pio VII canoniza São Benedito em 1807, a escravidão da
população negra já teria se alastrado por toda a Europa e fazia cerca de
300 anos que os negros africanos estariam vivendo tal realidade. O pro-
cesso de evangelização do continente africano já estaria bem adiantado e
a Igreja, instituição no seu modus operante, precisava aproximar dessa
parcela da população, sendo assim, temos a canonização de um santo ne-
gro. Segundo a citação anterior, temos São Benedito como uma
representação “determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam”
e as “estratégias e práticas” que tendente “impor uma autoridade, uma
deferência, e mesmo a legitimar escolhas”, além da luta de representação
que “tenta-se impor a outro ou ao mesmo grupo sua concepção de mundo
social”.
Nesse sentido Chartier ainda utiliza na reflexão intelectual de seus
trabalhos a teoria desenvolvida por Bourdieu, que

constata como o mundo social foi percebido pelas grandes tradições intelectu-
ais: de alguma maneira, as formulações teóricas de uns e outros são bastante
condicionadas pela maneira pela qual entendem cultura. Segundo Bourdieu,
92 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

uma primeira vertente remonta a Kant, entendendo cultura enquanto exercí-


cio da liberdade criadora. Ressaltam-se aqui os bens culturais como
instrumentos de conhecimento e de construção de mundo; o “aspecto
ativo” dos sujeitos na criação do que Ernst Cassirer chama de “formas sim-
bólicas” e Émile Durkheim de “formas sociais”. Criando um consenso sobre
a ordem social, os “sistemas simbólicos” explicitam seu caráter estruturado,
passível inclusive de uma análise como a lingüística (à Saussure). Dessa ver-
tente Bourdieu salienta o trabalho de Durkheim, que teria percebido muito
bem a função social dos bens culturais, a saber, a de instaurar o “confor-
mismo lógico” (BOURDIEU, 1998, p. 7-8 apud CARVALHO, 2005, p. 146)
[grifo nosso].

Nessa perspectiva, o primeiro passo seria entender o processo da cul-


tura que se desenvolve com o “exercício de uma liberdade criadora”, de
fato aqui apresenta um equívoco, se aplicássemos tal conceito numa co-
munidade de negros escravizados, observamos que essa comunidade não
possui liberdade de criação. Isso é perceptível no culto das religiões africa-
nas que muitos desse negros trazem ao Brasil por conta do tráfico
negreiro. A comunidade, não tem liberdade de culto, muito menos teria a
liberdade de criação. Dessa maneira, segundo tal definição, será que os
negros escravizados, não poderiam ter acesso a cultura de fato?
Contudo, quando se inicia o processo de entendimento da definição
de bens culturais é possível perceber que a comunidade negra é dotada de
tais instrumentos de conhecimento e de construção de um mundo único e
riquíssimo. Torna-se, necessário a aplicação das formas simbólicas, como
meio de entendimento. Visto que o simbolismo que parte da cultura negra,
adquire um novo significado, isto é, uma roupagem nova para ser de re-
presentado. Como exemplo, temos as religiões africanas que foram
proibidas de serem cultuadas numa determinada época no Brasil e preci-
saram passar pelo chamado conformismo lógico.
Caio Felipe Gomes Violin | 93

Desse modo, poder-se-ia dizer que o resultado disso seria o processo


de sincretismo religioso cultural, que se desenvolve a partir da utilização
de uma função social que se converte na própria sobrevivência da cultura
e da religiosidade negra. Como argumento pode-se trazer a dimensão da
“representação coletiva” de uma sociedade e o exemplo da expansão e as-
sociação rápida do santo negro a cultura afro, justamente pela cor da pele
da imagem. Mesmo que a etnia seja a mesma, estamos dentro de uma re-
ligião, que se torna dominante e impõe muito de uma cultura eurocêntrica
no seu jeito e modo de ser. Tais elementos é perceptível quando a própria
monarquia, na sua relação de padroado, oficializa o catolicismo como a
religião oficial, assim sendo gerado o processo de apropriação religiosa
pela comunidade negra. Voltando ao entendimento do

conceito de representações de Chartier começa a ser elaborado levando em


conta suas determinações de classe e de posição social, o poder e a dominação,
tendo muito pouco a ver com o “reducionismo” culturalista [...], embora exista
um certo determinismo cultural em outras propostas formuladas individual-
mente por Chartier, as quais examinarei mais à diante. (CARVALHO, 2005, p.
150).

Por esse ângulo, o sujeito precisa se ver representado diante da soci-


edade, o negro ao observar a imagem de representação de São Benedito
no altar, vê-se representado toda sua cultura e modo de ser, pois, essa re-
presentação é capaz de transformar e desassociar todo aquele regime de
escravidão, trazendo uma certa esperança da liberdade. É justamente nes-
ses ambientes religiosos que acontece o contato íntimo, do sujeito consigo
mesmo e o então escravizado possui uma esperança de sair daquela reali-
dade. Em outras palavras

As representações permitem também avaliar o ser-percebido que um indiví-


duo ou grupo constroem e propõem para si mesmos e para os outros. Chartier
94 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

segue de perto Bourdieu, citando-o quando menciona as determinações da


produção:
a representação que os indivíduos e os grupos fornecem inevitavelmente atra-
vés de suas práticas e de suas propriedades faz parte integrante de sua
realidade social. Uma classe é definida tanto por seu ser-percebido quanto por
seu ser, por seu consumo – que não precisa ser ostentador para ser simbólico
– quanto por sua posição nas relações de produção (mesmo que seja verdade
que esta comanda aquela) (CARVALHO, 2005, p. 151).

A manutenção de poder a partir dessa representação simbólica é


muito presente, pois o sujeito ao ver a imagem transcende aspectos hu-
manos e aplica sua esperança naquele símbolo, sendo um resultado da fé.
Esse contato mais íntimo com o objeto simbólico leva o fiel a também que-
rer alcançar, uma dimensão simbólica que é resultado da representação
diante de um sistema simbólico que segundo Chartier é considerado a par-
tir de “todos os signos, atos e objetos como ´formas simbólicas’. O ‘mundo
como representação’ construído nessa vertente tenderia a tornar-se uni-
tário, sistêmico” (CHARTIER, 1990, p. 19-20 apud CARVALHO, 2005, p.
147), esse sistema está presente no

entendimento de cultura proposto por Geertz apresenta-a como um sistema


entrelaçado de signos interpretáveis; ou seja, nessa perspectiva semiótica, cul-
tura é “sistema simbólico”. Daí o distanciamento de Geertz em relação a
Mauss, Weber e Bourdieu, autores importantes para Chartier; daí a exclusão
da problemática das “lutas de representações” e uma tendência ao consensual.
Diz Geertz:
a cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os
acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos;
ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma in-
teligível – isto é, descritos com densidade. (GEERTZ, 1989, p. 24. apud
CARVALHO, 2005, p. 147)
Caio Felipe Gomes Violin | 95

Uma característica muita presente no caso da representação seria a


relação de poder, que mencionamos rapidamente anteriormente, mas se-
gundo a

contribuição de Luis Marin para a teoria da representação é expressa nos seus


livros sobre os lógicos de Port-Royal, sobre os usos e abusos das imagens
pictóricas no início da modernidade, sobre as representações dos monarcas
absolutistas. Daí um duplo entendimento das representações: tornar presente
o ausente; e modos de exibição da própria presença. As representações
tornam presentes um objeto, conceito ou pessoa ausentes mediante sua
substituição por uma imagem capaz de representá-los adequadamente.
Há uma distinção radical entre o representado ausente e a imagem que o re-
presenta. A efígie de mármore colocada no lugar do rei morto em seu leito
funerário perpetuando uma presença imortal; a imagem do leão apresentada
como símbolo do valor, ou do pelicano como símbolo do amor paternal – tais
exemplos levantam questões como as das relações entre signo visível e o refe-
rente significado, bem como das compreensões e incompreensões do signo,
caras aos lógicos de Port-Royal e ao próprio Chartier, que percebe aqui uma
fresta para visualizar a pluralidade de apropriações das representações
(CHARTIER, 2002, p. 165-166 apud CARVALHO, 2005, p. 153). [grifo. nosso]

O signo de poder, nesse sentido, diz muito sobre a representação do


objeto, e no caso de São Benedito é possível perceber essa realidade, aliás
em toda representação iconográfica presente nas Igrejas. Essa dimensão
busca trazer e evidenciar a percepção do signo que representa muito mais
do que a própria vida, mais pode-se dizer que representa a própria insti-
tuição, essa relação de poder é sentida inconscientemente, porém ela existe
e está presente.
Um exemplo para identificar essa relação de signo de poder, seria
perceber o local que as imagens sacras estão. Dessa forma, a imagem de
algum santo foi colocada em algum lugar que não seja a de destaque? A
96 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

resposta mais provável é a que não será possível encontrar imagens de-
baixo da mesa. Nesse sentido, quando as imagens sacras particulares
quebram, será que o devoto descarta seu objeto sacro em lixo comum?
Não. Portanto, o objeto feito de barro, ou de qualquer outro material pre-
sente na natureza, quando está representado algo adquire uma dimensão
simbólica de poder, ou seja, o símbolo-objeto adquire poder. Assim como
“modos de exibição da própria presença”, isto resulta e significa que “as
representações tornam presentes um objeto, conceito ou pessoa ausentes
mediante sua substituição por uma imagem capaz de representá-los ade-
quadamente” (CHARTIER, 2002, p. 165-166 apud CARVALHO, 2005, p.
153). De outro modo a relação da

força da representação pode tentar persuadir de um poder, mas pode também


dar a perceber a distância entre os signos exibidos e a realidade que eles não
podem dissimular. A pesquisa deve situar-se, segundo Chartier, na tensão en-
tre a onipotência da representação e seus possíveis desmentidos (CHARTIER,
2002, p. 178 apud CARVALHO, 2005, p. 154).

O caráter de onipotência da representação é muito perceptível nas


figuras dos santos, pois, aquela imagem além de representar algo ou al-
guém, remete a realidade da presença física, levando o sujeito a acreditar
que está falando ou de fato está na presença daquela pessoa que o objeto
está representado.

Considerações Finais

A dimensão de totem milagrosos que o objeto “santo” possui é uma


característica muito presente, e pode ser observada fortemente a partir da
devoção mariana à imagem de Nossa Senhora Aparecida presente no San-
tuário Nacional. O poder perante os fiéis que aquela pequena imagem de
36 centímetros é surpreendente e acontece com qualquer outra imagem
Caio Felipe Gomes Violin | 97

de santo e com a representação de São Benedito. Muitas vezes a realidade


da fé leva o devoto da imagem a escrever carta pedindo graça e milagre ao
santo. Também pode-se perceber quando o fiel coloca café para São Bene-
dito, uma realidade muito presente na cultura popular do devoto. Nesse
sentido retornamos o conceito de representação na realidade de seu status
que é “o sentido de ‘representar’” algo e adquire uma relação

entre “fazer presente alguma coisa”, e uma acepção [...] de [...] “exteriorizar
alguma coisa, que existe, ou que você imagina”. Ligam-se, assim, duas séries
de definições que supõem, a primeira, a ausência da pessoa ou coisa represen-
tada e, a segunda, sua exibição por ela mesma: “Representação: significa
também autoridade, dignidade, caráter, ou recomendação da pessoa: e assim
se diz, Fulano é um homem de representação em Madrid” (CHARTIER, 2011,
p. 18).

Dessa maneira a autoridade aplicada por Chartier pode ser percebida


nas representações imagéticas dos santos. Retomando o significado de re-
presentação argumentado por Chatier na

língua castelhana, o [...] sentido: “Representar: fazermos presente alguma


coisa com palavras ou figuras que se fixam em nossa imaginação”. Daí, o sig-
nificado jurídico do verbo (“Representar, é estar no lugar de outro, como se
fosse o mesmo, para representá-lo em todas as suas ações e direitos”) e os
sentidos teatrais das palavras vinculadas como “representar”: “Representação,
a comédia ou tragédia”, ou “Representantes, os comediantes, porque um re-
presenta o rei, e o faz como se o mesmo estivesse presente; outro o galã, outro
a dama, etc.” (CHARTIER, 2011, p. 18).

A representação de fé, caracterizada através das imagens dos Santos,


especificamente a de São Benedito, seria essa figura que está fixada na
imaginação do devoto. Nesse sentido a definição presente no dicionário o
98 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

“Tesouro de la língua castelhana” de Covarru-bias, publicado em 1611, re-


sumiria aquilo que Chartier, busca desenvolver. Em outras palavras a
gravura e a escultura é o objeto sacro que faz “presente alguma coisa com
palavras ou figuras que se fixam em nossa imaginação” e é a figura da
representação de São Benedito que traz a ideia de aproximação, principal-
mente pela cor de pele. A ideia desse ensaio foi demonstrar a tentativa de
relacionar a definição de santo, iconografia e a representação. Utilizando
da figura de São Benedito, recorremos aos conceitos de Roger Chartier
para elaborar uma a reflexão que não se esgota, mas abre caminho a novas
e futuras reflexões. Nesse sentido, o presente ensaio foi uma tentativa de
introduzir assuntos presentes na história cultural e na história da arte,
merecendo um aprofundamento futuro, na tentativa de relacionar os con-
ceitos desenvolvidos tanto por Panofsky, quanto, por Roger Chartier.

Referências

CARVALHO, Francismar A. L. O conceito de representações coletivas segundo Roger


Chartier. In: Diálogos, DHI/PPH/UEM, v. 9, n. 1, p. 143-165, 2005. Disponível em: <
https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/Dialogos/article/view/41423>. Acessado
em: 10 jun. 2021.

CHARTIER, Roger. Defesa e ilustração da noção de representação. In: Fronteiras,


Dourados, MS, v. 13, n. 24, p. 15-29, jul./dez. 2011. Disponível em:
<https://silo.tips/download/defesa-e-ilustraao-da-noao-de-representaao-1>.
Acessado em: 30 jun. 2021.

CUNNINGHAM, Lawrence S. Uma breve história dos Santos. Trad. Maria H. R. R. Sousa.
Rio de Janeiro: José Olympio, 2011.

GUALBERTO, Tiago. São Benedito, mais uma aquisição. Disponível em:


<http://www.museuafrobrasil.org.br/>. Acesso em: 3 jul 2021.

OLIVEIRA, Joyce Farias de. Negro, Mas Belo: São Benedito, o santo preto da idade moderna.
Encontro de História da Arte :os silêncios na História da Arte. Campinas, SP, n. 12,
Caio Felipe Gomes Violin | 99

2017. Disponível em: <https://www.ifch.unicamp.br/eha/atas/2017/EHA%20


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PANOFSKY, Erwin. Iconografia e Iconologia: uma Introdução ao Estudo do Renascimento.


In:______. Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 1991.

PIFANO, Raquel Quinet. HISTÓRIA DA ARTE COMO HISTÓRIA DAS IMAGENS: A


ICONOLOGIA DE ERWIN PANOFSKY. Fênix - Revista De História e Estudos
Culturais. Juiz de Fora, MG, v. 7, n. 3, 2010. Disponível em:
<https://www.revistafenix.pro.br/revistafenix/article/view/285>. Acesso em: 25
ago 2021.
5

Arte-Resistência, Visualidades na
Cidade e as Questões de Gênero

Ariella Silva Fernandes Oliveira

Introdução: Cidade e Paisagem

É importante iniciar a discussão falando sobre a cidade e a vida ur-


bana. A cidade se ergue e cresce em torno do capital e suas nuances, mas
também dentro de alguns padrões sociais e acaba formando uma cidade
do capital que é padronizada socialmente e uma outra segregada e invisi-
bilizada. Lefebvre (2012) cita esses problemas sociais frutos de uma
sociedade capitalista e a decepção na sociedade urbana que está sempre
produzindo e de racionalidade planificadora. Discute também sobre novas
forças “a da sociedade urbana e do humano como obra nessa sociedade
que seria obra e não produto.” (p. 109)
A cidade vai além de seu aspecto físico, não é só o lugar da organiza-
ção de praças, edifícios e ruas, mas é também o lugar das intervenções que
territorializam estes espaços como políticos (CERTEAU, 2008), portanto a
cidade não é apenas vivida e percebida por seu potencial capitalista e suas
ideologias, mas é também vivida e percebida por diferentes óticas. Essas
novas óticas dão novos sentidos a cidade e a vida urbana, novas percep-
ções. A arte permite expressar as ideias e visões que se contrapõem aos
padrões normativos, permite viver modos de vida diferentes, expressar
opiniões e desconstruir padrões.

Si se considera que lá vision es un modo de expresión cultural y de comunica-


ción humana tan fundamental y tan generalizado como el lenguaje (y en
ningún caso reducible y explicable según el modelo del lenguaje, del signo o
Ariella Silva Fernandes Oliveira | 101

del discurso) de ello se deduce que la Cultura visual no se alimenta sólo de la


<< mirada >>. Lo fundamental de la vision es que la usamos para mirar a la
gente, no para mirar al mundo, y además no solo miramos a otros, sino que
también somos mirados por ellos. (GUASCH, 2005, p.65).

De acordo com Santos (1996) espaço é resultado da ação dos homens


sobre o próprio espaço, intermediado pelos objetos naturais e artificiais.
Assim, Santos (1996) diz que existem três modos de agir no espaço: o agir
técnico que corresponde a todo e qualquer fenômeno técnico (trabalho,
materialidades, circulação, fenômenos técnicos e tecnologias), o agir for-
mal que corresponde as esferas jurídicas, as leis e as normas definidoras
da ordem e da gestão do espaço e o agir simbólico que corresponde as
ações emotivas, políticas e culturais. O espaço público relaciona-se com a
vida pública, são os espaços onde os problemas da sociedade são expostos
e são fundamentais para as transformações sociais acontecerem. Os espa-
ços públicos correspondem à dimensão espacial da política em sociedades
democráticas. (GOMES, 2012)
Os atos políticos de uma sociedade estão diretamente ligados aos es-
paços públicos. Protestos e revoluções possuíam e possuem como
necessidade ocorrer em locais onde as pessoas poderiam visualizar, o es-
paço público é o palco dos encontros, manifestações políticas ou culturais,
que organizam a cidade formando-a e transformando-a com novas formas
e múltiplas identidades, firmando a diversa vida urbana. Refletir sobre o
espaço público nos leva a pensar o espaço como um recurso, um produto
e como uma prática (...) social, política e simbólica. (NARCISO, 2009).
Nesse contexto, a arte de rua tem um caráter político e social muito
forte para diversos grupos, dando o poder da representatividade paras os
grupos da sociedade que são marginalizados e invisibilizados. Seu papel
político questionador e de ser contrário as ideias hegemônicas garantem
tanto o lugar democrático e de liberdade, quanto em alguns casos uma
102 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

preservação cultural e de resistência desses grupos. O sujeito que vive a e


na cidade, passando pelos espaços públicos e pelas paisagens presentes na
cidade, independentemente de sua classe social, tem acesso as interven-
ções artísticas. Mesmo sendo uma intervenção em espaço público, não
significa que seja considerado um ato político, assim essa prática artística
é tratada como arte-resistência.

Arte de rua e as transformações no espaço público

A cidade comunica-se visualmente de inúmeras formas, assim como


os diversos territórios são singulares e se expressam na paisagem. O es-
paço público se torna a tela das artes urbanas, o espaço do multicultural.
A respeito do multicultural, Hall explica: “Multicultural é um termo quali-
ficativo. Descreve as características sociais e os problemas de
governabilidade apresentados por qualquer sociedade na qual diferentes
comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida em comum,
ao mesmo tempo em que retêm algo de sua identidade “original” [...]
“Multicultural” é, por definição, plural.” (HALL, 2003, p. 52)
As novas experiências artísticas desenvolvidas nos espaços públicos
nos remetem a arte produzida a partir dos fins da década 1960 que tomam
a cena dos grandes aglomerados urbanos em todo o mundo. A arte pública
deve ser pensada dentro da tendência da arte contemporânea de se voltar
para o espaço, seja ele o espaço da galeria, o ambiente natural ou as áreas
urbanas. Diante da expansão da obra no espaço, o espectador deixa de ser
observador distanciado e torna-se parte integrante do trabalho que pode
se desdobrar em instalações, performances, land-art, grafite, estêncil, pôs-
ter ou lambe-lambe e etc.
A arte de rua está acessível nos espaços públicos, fazendo parte do
cotidiano das pessoas, na rotina diária entre um ponto e outro. A arte de
Ariella Silva Fernandes Oliveira | 103

rua está ali independente da distinção social. É um campo de difícil reco-


nhecimento pois para parte da população é uma arte marginalizada e as
pessoas não querem ter contato com esse tipo de arte. Apesar de diversos
artistas já serem reconhecidos por essa técnica, principalmente diante de
museus e grandes exposições, a arte de rua não proporciona o mesmo re-
conhecimento para todos os artistas.
No que se referem ao lambe-lambe, usado pela artista Maria Zeferina,
alguns teóricos compartilham da ideia que essas manifestações são deri-
vadas da arte pública que se propagam exclusivamente na rua, em
edifícios, casarões e muros, onde os artistas detêm a liberdade de expres-
sar as suas próprias ideias e estilos, de forma anônima ou não, com ou sem
permissão e sua duração é mais breve do que a da arte pública.
Segundo Waclawek (2011), os artistas urbanos utilizam variadas téc-
nicas para se destacarem na paisagem da cidade, como a popular latinha
de spray, a tinta acrílica ou à óleo, o giz pastel oleoso, o carvão, os adesivos,
o pôster ou lambe-lambes, o estêncil, o mosaico de ladrilhos e inclusive as
tecnologias de código aberto envolvendo luzes e projetores. A artista Maria
Zeferina que atua na cidade de São Luís – MA, fazendo colagens em papel
que é um dos atributos a arte de rua conhecida como lambe-lambe e é a
sua matéria prima preferida, como a própria afirma em entrevista cedida
ao Núcleo de Estudos Geográficos-UFMA:

Eu, particularmente, não migrei “pro” adesivo, e não pretendo migrar porque
além da arte eu sou designer e a minha linha de pesquisa é sustentabilidade.
Então, o papel sempre vai ser minha matéria prima favorita, porque eu vejo
ela mais integrada, né?! Ela é feita de fibra natural e elas... vai se desfazendo
aos poucos, né... na parede. A cola também à base d’água. As tintas, em sua
maioria, também são todas à base d’água. Então é minha opção assim. o papel.
Pela autenticidade em relação à arte de rua e por toda essa ideologia, né?!
(Maria Zeferina, 2018).
104 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

Os temas abordados em seus trabalhos abrem espaço para o questi-


onamento de diversas questões que envolvem principalmente a
sexualidade, o prazer feminino, as questões de respeito aos corpos femini-
nos e a relação do ser humano com a natureza. Os locais são escolhidos
conforme a visibilidade que os mesmos proporcionam a obra e em algu-
mas situações em conformidade preferencial daqueles que transitam de
carro pelas ruas.
Falar de arte de rua nos faz necessariamente citar a importância do
espaço público que segundo Gomes:

[...] na sua definição fundamental, pressupõe a interlocução entre atores soci-


ais, que buscam manifestar as suas diferenças através de uma inter-relação
subjetiva, ou seja, pela comunicação das consciências individuais, umas com
as outras, realizada com base na reciprocidade. Entretanto, a relação de reci-
procidade estabelecida pelo diálogo só será bem-sucedida na medida em que
for permitido ao indivíduo manifestar sua razão, confrontá-la à opinião pú-
blica sem obstáculos ou sem subjugar a razão do outro, estabelecendo um
debate numa linguagem que possa ser comungada pelos demais. (GOMES,
2002, p. 160).

O espaço público se torna um espaço de intervenção significativa na


paisagem urbana, em que a cidade se manifesta como um palco de expres-
são por excelência na construção da identidade individual e coletiva da
sociedade a qual está inserida. A respeito da escolha do local para seu tra-
balho, Maria Zeferina explica:

[...] Eu também me importo muito com a visibilidade, eu gosto de colocar


muito em lugares que as pessoas veem... Vejam, quando tão vindo de carro,
andando então em procuro muito muros que tão de frente... Com a mão do
carro, por exemplo, então os carros vão vim de lá e vão ver meu trabalho,
então... Normalmente é assim. Ou lugares que não vão atropelar ninguém...
Ariella Silva Fernandes Oliveira | 105

mas principalmente pra mim tem a ver com isso, com quem tá em baixo, com
quem eu vou cobrir e com a visibilidade do muro, principalmente.
[...]Eu adoro, o tema trabalhado aqui no centro histórico, mas, assim, legal-
mente é o lugar menos permitido na cidade até mesmo porque o IFMA não
permite nenhum tipo de intervenção. Então legalmente não se pode intervir
no centro histórico, mas é o lugar mais legal, pelo contexto até, porque tem os
prédios históricos aí você vem e joga uma coisa colorida totalmente contem-
porânea ali naquele espaço, eu gosto muito disso[...]. (ZEFERINA, 2018).

Vale ressaltar como foi importante o trabalho da Zeferina realizado


no centro histórico da cidade, lugar do plural com fluxo intenso de pessoas
que estão ali por trabalho ou a lazer, o trabalho da artista impacta com as
problematizações sociais importantíssimas e atuais enfrentadas pelas mu-
lheres cotidianamente.

O Lambe-Lambe como arte-resistência e questões de gênero

A arte pública tornou-se uma área importante e essencial frente a


comum hostilidade encontrada pelas artistas femininas e mulheres cotidi-
anamente. Novas linguagens e técnicas destacam as problemáticas não
apenas das questões de gênero, mas outras problemáticas ligadas a mulher
e a uma sociedade onde o homem é destaque. Faz-se necessário entender
a relação da mulher com o espaço público para refletir sobre a arte produ-
zida por mulheres nesse meio, a arte de rua nas cidades com o recorte de
gênero, torna-se um campo para analisar e pensar as complexidades e ten-
sões.
A prática de colar cartazes é antiga e popular na sociedade. Existem
inúmeras variações de tamanho e formatos, os mais diversos objetivos e
estão e são partes da paisagem urbana. O lambe-lambe, considerado o su-
cessor do cartaz, é definido e reconhecido pelo viés crítico ao propor uma
crítica a alguma desigualdade ou conduta. O lambe é resultado do trabalho
106 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

de artista que ocupa o espaço público com a finalidade de compartilhar


suas ideias. A respeito do uso do lambe-lambe a Zeferina (2018) diz:

[...] O papel é uma das manifestações da arte de rua, né... (...). Então, eu não
tinha como sair disso, né?! O papel que manifesta essa cultura da rua que é o
lambe-lambe, que “pra” alguns também é uma maneira de você fazer a arte
com pressa. Porque você elabora sua arte no seu estúdio, no seu ateliê, e pode
fazer ela com muita pressa na rua e em lugares não autorizados, né... e além
do que é uma maneira de você cobrir paredes com cartazes e trazer a infor-
mação que você quer, de uma maneira assim mais forte, né... alguns defendem
isso. (ZEFERINA, 2018).

O trabalho da Zeferina faz crítica a algumas problemáticas relaciona-


das as questões de gênero direcionadas as mulheres na sociedade, como é
visto o papel da mulher na sociedade e como a mulher deve ser tratada, a
artista também evidencia em seus lambes sua preocupação ambiental na
produção do seu trabalho, mas também faz uma crítica a relação ser hu-
mano e natureza, essa não sendo isolada dos seres humanos, mas ele
próprio um ser da natureza.
Apesar do espaço público ser o lugar das transformações sociais, o
lugar determinado para a mulher, principalmente por serem julgadas in-
feriores, foi o privado. Não só o direito de frequentar esses espaços
públicos, mas o direito de participar de suas mudanças também seja de
forma política ou artística.
A arte de rua rompe com essa fronteira do privado estabelecida para
as mulheres, que ocupam através da arte o espaço da cidade. É uma forma
de expressar a resistência perante a ideia de mulheres privadas e homens
públicos, toda a problemática quanto mulheres serem apolíticas e homens
ocuparem papéis decisivos na vida pública.
Maria Zeferina trabalha com colagens, em seu trabalho utiliza cores
de fundo que possa destacar as colagens que geralmente são em preto e
Ariella Silva Fernandes Oliveira | 107

branco, e traz a fusão do corpo humano e natureza, como por exemplo,


plantas e animais associados. O que é possível visualizar na imagem a
baixo, em que se vê um pássaro como extensão do corpo humano, ressal-
tando, portanto, a questão de que os seres humanos são natureza. A artista
explica sobre a intervenção da imagem abaixo:

[...] Eu quis trazer três temas, né?! Três histórias nessas figuras, a central que
é a mulher num lugar de força, trazendo um lobo nas costas, então traz muito
essa figura de luta, de força da mulher. Ah! Essa figura bem da lateral que
tinha planta traz muito essa relação de... de que somos natureza. Não vejo a
gente descolado desse... disso. Tem muito essa relação com a natureza e essa
aqui da ponta que tem a flor na genitália feminina que é justamente “pra”
trazer a discussão sobre, é.... a mulher e o sexo, né?! O prazer feminino que
também é uma coisa polida, né... nas mulheres... o sentir prazer. Então traz
essas três discussões nessas figuras e as muitas outras que... cada um faz a
leitura da maneira que... que consegue ver, né?! Mas a minha intenção era
trazer essas três discussões aí.
E o pássaro ele sempre veio atrelado a figura feminina, o corpo feminino a....
às vezes até como uma extensão, como um broto, porque... essa relação de que
eu vejo que não existe entre homens, mulheres, em seres humanos e.... parece
se ver com se não fizesse parte da natureza, e nós somos natureza mais ainda
o ser feminino que gera, né? A.... que pa.... que vai parir uma nova vida, né?
Então... eu sempre trouxe os pássaros totalmente ligados como se houvesse
uma integração mesmo com figura feminina e a natureza. Principalmente as
que tão mais relacionadas com seu corpo, que percebem o seu ciclo, que acei-
tam o seu ciclo e.... Entendem mais como o seu corpo reage com a natureza,
com a lua, percebem... se percebem mais como natureza. Mas eu quero dizer
de modo geral mesmo, nós seres humanos somos natureza. (ZEFERINA,
2018).
108 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

Figura 1

Fonte: Acervo NEGO/UFMA, 2018

E ainda o papel de destaque da mulher, pois ela é o ser que vai parir
uma nova vida. Explicando sobre os elementos presentes em seu trabalho,
a artista explica:

[...] desse tabu que é o peito feminino, o mamilo feminino. A gente vê isso
muito... primeiro que por lei, né?! É crime uma mulher ficar sem a parte de
cima até mesmo na praia. A gente sabe que os homens podem andar livre-
mente até na rua, entrar em lugares sem camisa e isso não é problema
nenhum. Outro de que mesmo em países onde é permitido o nu, é.... uma
mulher sozinha, ainda assim, é abordada de maneira grosseira, grotesca ou
como sendo um corpo que pode ser violado. É.... qualquer mulher que tiver
por aqui pode dizer que não se sente à vontade de sair à noite, andar sozinha
na rua. Por quê? Por causa do medo! Morar sozinha? Medo! Porque tudo tá
atrelado ao nosso corpo parecer está à disposição pra ser violentado, então
essas questões que a gente quer abordar. Quando coloca o peito nu num muro
ele é sexualizado, então todas essas questões e todas essas pessoas que foram
Ariella Silva Fernandes Oliveira | 109

convidadas, essas mulheres, concordaram que era necessário falar sobre isso
e colocar o peito nu mesmo pra trazer esse embate do por que ele é tão sexu-
alizado, por que que o corpo feminino “tá” nesse lugar de... parece que tá a
livre acesso... Então, todo mundo topou sem sombra de dúvida e acima de tudo
são grupos de mulheres que são minhas amigas acima de tudo. E é isso... e
todas tem esse mesmo intuito e, se você pegar cada uma delas, todas elas no
dia a dia estão trazendo essas questões, essas discussões, esses embates, né?!
essa quebra de padrão de onde a gente deve tá. (ZEFERINA, 2018).

Entender como a cidade conversa com a presença das mulheres é es-


sencial para uma cidade mais justa e acessível. O olhar que temos sobre o
meio urbano reflete a forma como percebemos o meio que frequentamos.
O espaço público só se torna um espaço público eficiente com o uso das
multiplicidades nele, com essa característica o trabalho de Maria Zeferina
chama atenção para a questão ligada as mulheres: sexualidade, os diferen-
tes corpos femininos e o prazer feminino. As figuras femininas presentes
nos lambes da artista, com o seio a mostra (imagem 1), chamam atenção
de quem passa, não objetificando seu seio, mostrando a beleza, a força,
autonomia e liberdade das mulheres.
110 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

Figura 2

Fonte: Acervo NEGO/UFMA, 2018

O empoderamento feminino através do conhecimento do seu corpo


acaba condenando a dominação imposta a elas, essa questão é uma dis-
cussão feita dentro da corrente do ecofeminismo, segundo Joan Scott,
“indicava uma rejeição do determinismo biológico implícito no uso de ter-
mos como ‘sexo’ ou ‘diferença sexual’” e “enfatizava igualmente o aspecto
relacional das definições normativas da feminilidade”. Isso traz um novo
olhar sobre as questões de gênero, que essas afirmações são muito mais
de cunho social do que propriamente biológico, a artista retrata um grande
tabu na sociedade que é o prazer feminino.
Ariella Silva Fernandes Oliveira | 111

O corpo feminino é tratado por relações de poder e inserido nas com-


plexidades das relações sociais sujeito a normas e trocas simbólicas. Esse
diálogo com o corpo feminino e suas representações, ganha força princi-
palmente na década de 1970 com a luta pela autonomia dos corpos e a
partir da década seguinte, 1980, onde as políticas feministas ganham for-
ças.
O sexo para a mulher era ligado apenas a reprodução, o prazer era
retido, pois até então era considerado algo profano e imoral. Essas são uma
das discussões que o trabalho de Zeferina quer tratar. Com seu stencil es-
crito GOZE na cor rosa, remetendo e criticando a questão de a cor rosa ser
de menina, é uma conversa com o espectador de que mulheres sentem
prazer e de que não é errado senti-lo. Expressar nos muros da cidade
“goze” é a materialização de uma das problemáticas e até reivindicação das
mulheres pelo espaço público, o corpo feminino não é apenas reprodutor
e não está à disposição para os homens. Gozar também é conhecer seu
corpo, suas particularidades. A respeito desse trabalho, a artista explica:

Eu criei uma serie com palavras de ordem que é o GOZE, AME e PIRE que são
umas series, uma serie que fala sobre libertação sexual, né? Então por isso eu
trago até a brincadeira com a genitália feminina e....Tem uma outra que é PIRE
que é com a genitália masculina e tem o AME que é o arco íris, que é a mani-
festação de todos... juntos. (ZEFERINA, 2018).
112 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

Figura 3

Fonte: Acervo NEGO/UFMA,2018

Para entender essa intervenção como um ato de resistência, é neces-


sário contextualizar as questões de gênero no contexto cultural ocidental.
De acordo com Butler (2017) “o gênero é culturalmente construído: con-
sequentemente, não é nem o resultado casual do sexo nem tampouco tão
aparentemente fixo quanto o sexo”. A mulher ideal era sempre retratada
como uma mulher dedicada ao lar e a maternidade e o homem sempre
atuante politicamente e com poderes econômicos, políticos, sexuais e etc.
O trabalho da artista vai além de uma crítica, é também uma denúncia.
Tem conquistado visibilidade de forma individual e coletiva, o feminino
enquanto sujeito atuante e inserido na sociedade. A respeito dessas repre-
sentações femininas, Chartier afirma:

As representações da inferioridade feminina, incansavelmente repetidas e


mostradas, inscrevem-se nos pensamentos e nos corpos de ambos, delas e de-
les. Mas uma tal incorporação da dominação não exclui, longe disso, possíveis
Ariella Silva Fernandes Oliveira | 113

variações e manipulações que pela apropriação feminina de modelos e de nor-


mas masculinos, transformam em instrumento de resistência e em afirmação
de identidade as representações forjadas para garantir a dependência e a sub-
missão. (CHARTIER, 2002, p. 96).

Pensando nas formas de resistências, são as mulheres que protago-


nizam diversas delas e doam-se de forma completa na luta. Porém
tratando de representação os homens também dominam esse cenário. A
artista enfrenta em seu trabalho não só as problemáticas do gênero, mas
acaba também enfrentando outras dicotomias como vandalismo e arte,
feio e belo.
A arte de rua explicita as segregações, violências e silenciamentos
presentes nas cidades, expondo as contradições da vida urbana. As mulhe-
res que sempre possuíram a violência e o silenciamento marcados em si,
se apropriam desses espaços na cidade através da arte para serem vistas,
escutadas, exporem suas posições e pensamentos.

A questão é refletir o quanto as construções ou as performances de gênero são


“en/gendradas” de modos específicos por urbanos específicos; o quanto são
impactadas por características exclusivas de um determinado espaço ou por
um determinado processo urbano. É tentar pensar os distintos territórios
como constituintes do gênero, assim como o gênero é constituinte do territó-
rio, de modo que ideias e representações do gênero são continuamente
retrabalhadas e renegociadas através das práticas urbanas que, em contrapar-
tida, também são sempre “gendradas”. (BILAC, 2012).

A identidade feminina e a luta feminista estão sempre em negociação


com o cotidiano e o preconceito velado. Infelizmente a violência é recor-
rente no cotidiano da mulher, abusos sexuais, desvalorização, desrespeito,
violências domésticas, são situações de violência vividas por mulheres, em
geral. A respeito disso em suas intervenções a artista fala:
114 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

Porque, do peito que todo mundo tem e do lugar comum e do lugar comum,
do desejo de poder falar sobre isso, de poder mostrar que existe sim um pro-
blema da sociedade em relação a isso que é muito mais profundo, não é só
uma lei que proíbe a mulher de andar sem camisa, não é sobre isso que a gente
tá falando, né?! É sobre a violência contra a mulher, há cada 11 minutos... 11
segundos uma mulher é violentada no Brasil, isso é muita coisa, nesse passeio,
enquanto a gente tá fazendo um passeio numa tarde mais de 10 mulheres são
violentadas... de alguma forma, seja fisicamente ou psicologicamente, então
isso é muito forte. (ZEFERINA, 2018)

É na contemporaneidade, sobretudo a partir da década de 1960,


quando o movimento feminista começa a ganhar força, a produção artís-
tica do corpo feminino começa a ser protagonizado pelas mulheres, pela
primeira vez em tempos houve um movimento de autorrepresentação fe-
minina o que modificou os modos de representação do feminino.
As mulheres eram sempre representadas pelos olhares masculinos,
comumente objetificadas, essa representação sempre ocupava o lugar de
centralidade na produção artística. Hoje percebe-se um número cada vez
maior de artistas mulheres ocupando os espaços das artes com seus tra-
balhos que tangem diversas temáticas, dentre elas, a própria
representação do corpo da mulher como ato político de autoafirmação e
conhecimento.

Considerações Finais

A representação dos temas ligados ao feminino, como a sexualidade


feminina, papéis de gênero, direitos da mulher, entre outros, no espaço
público possui uma significância e uma função social muito forte e muito
importante, uma vez que a sociedade está historicamente sob uma con-
cepção patriarcal acerca do corpo da mulher, bem como, de seus papeis
sociais. Trazer a representação do feminino para essa esfera, sob o olhar
Ariella Silva Fernandes Oliveira | 115

da mulher, faz-se questionar a atual conjuntura social marcada pela ocu-


pação unilateral do pensamento masculino em todos os âmbitos, até
mesmo a respeito de temas intimamente relacionados com o feminino.
A paisagem das cidades reflete as múltiplas relações entre os habitan-
tes e o meio urbano. A imagem, seja pelo marketing ou pela arte, integra
a composição visual da cidade. Essas lógicas do consumo e de padronizar
a paisagem, são sempre questionadas pelas artes de rua.
É essencial questionar a presença do feminino na sociedade, na cul-
tura e nas artes visuais. A arte ainda é predominantemente dominada
pelos homens. Historicamente as mulheres aparecem como modelos nas
obras de arte e não como artistas. A visibilidade e o conhecimentos de ar-
tistas mulheres, favorecem uma nova perspectiva das visualidades e
também são uma nova forma de combater a desigualdade de gênero nas
artes.
O espaço urbano é a tela dessas múltiplas visibilidades e discussões.
As artes de rua se apropriam do espaço da cidade e se formam quanto
paisagem. Além de modificar a paisagem, instigam os habitantes a um
pensamento crítico de um determinado grupo social. Com a privatização
e dificuldade de acessar outros espaços, o espaço público, as ruas se tor-
nam o local dessa arte e manifestação artística.
Não só simplesmente a arte, mas atrelada a ecologia e a sustentabili-
dade, são um caminho para trabalhar o pensamento crítico do homem na
sociedade referente ao meio ambiente. A arte é um dos meios eficazes para
a sensibilizar e impactar a sociedade sobre as questões do cotidiano, polí-
ticas, sociais e ambientais.
Neste contexto o espaço urbano funciona como um espaço de inter-
venção significativa na paisagem urbana, em que a cidade se manifesta
como um palco de expressão por excelência na construção da identidade
individual e coletiva da sociedade a qual está inserida.
116 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

As visualidades que compõe a cidade são reflexo da relação dos sujei-


tos com o meio urbano que vivem a mesma. Apesar das cidades estarem
crescendo e se globalizando cada vez mais, esses processos e transforma-
ções sempre são questionados através da arte.

Referências

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Editora da Universidade/UFRGS, 2002.

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BILAC, Elisabete Dória. Diálogos transversais em gênero e fecundidade. Articulações


contemporâneas / Margareth Arilha et al. (Orgs.). – Campinas: Librum Editora,
Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 2012.

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SANTOS, M. Metamorfoses Do Espaço Habitado. São Paulo: HUCITEC, 1997.

ZEFERINA, Maria. (29 de novembro de 2018). “Memoria, Paisagem, Mapas e Trajetórias


Artísticas Contemporâneas em São Luís”. Entrevista concedida ao Núcleo de Estudos
Geográficos, São Luís, 2018.
6

Subalternidade no Discurso Colonial em Moçambique:


uma análise de fonte possível em
“O Alegre Canto da Perdiz”, de Paulina Chiziane

Marcia Roque

A história de Moçambique é uma das que lida com o rastro deixado


pela colonização portuguesa em diversos países, uma história de explora-
ção e escravização, mas, para além disso, uma história de “transplante” de
um modo de vida totalmente desconhecido pelos habitantes locais.
Frequentemente, a representação do negro pela cultura ocidental é
feita com base no discurso criado por aqueles que saíram vencedores do
processo colonial, os europeus. Mesmo com sua expulsão das terras colo-
nizadas movida, muitas vezes, por guerras civis sangrentas, o colonizador
saiu desse processo com sua identidade e sua cultura intactas e ainda he-
gemônicas para muitas outras culturas. Ao contrário, o continente
africano, mais especificamente Moçambique, objeto deste estudo, herdou
um legado de morte, destruição, exploração e ruptura do sentimento de
orgulho de sua identidade nativa e, até mesmo, da cor de sua pela.
Como forma de questionar e romper com esse discurso, ainda hoje,
hegemônico, surgem os estudos decoloniais, que pretendem lançar um
olhar de outra perspectiva para as narrativas acerca da colonização de pa-
íses mantidos reféns das antigas potências, entre elas, Portugal. O desvio
de perspectiva que se propõe é para o olhar de quem vivenciou o processo
colonial como dominado e vivencia o pós-colonial como sobrevivente que,
ainda hoje, lida com as cicatrizes de sua inferiorização e do abalo identitá-
rio sofrido. Tal movimento foca em resgatar uma epistemologia até então
Marcia Roque | 119

silenciada, ou tida como menor, posto que selvagem, da intelectualidade


africana.
São filósofos, antropólogos, sociólogos e psicanalistas que se debru-
çam sobre as cicatrizes pós-coloniais sob outro viés, o de lá, ao invés do de
cá ocidental. Buscam-se novas formas de analisar a representação do ne-
gro pelos olhos do intelectual branco, muitas vezes, compassivo, mas,
mesmo assim, marcado pela superioridade através de uma simbologia que
remete sempre ao sofrimento e à obediência do negro, negando a repre-
sentação da resistência e da força que esses povos tiveram ao longo de sua
exploração.
Grande contribuição à construção desse novo discurso vem da Lite-
ratura, campo de tensões entre diferentes construções e de embate entre
o discurso de lá e o de cá. Tendo em vista a visão das correntes históricas
contemporâneas, que validam como fonte registros outros que os docu-
mentais oficiais, posto que tais fontes também são marcadas pela
subjetividade, pelo espaço e pelo tempo de quem as produziu, a Literatura
emerge como fonte possível de análise histórica. Afinal, a ficção não se ar-
vora o estatuto de verdade, mas constrói-se como uma versão do real, ou
ainda, uma possibilidade de existência.
Partindo dessa linha, este trabalho faz uma analise da obra “O Alegre
Canto da Perdiz”, da escritora moçambicana Paulina Chiziane, acompa-
nhando a trajetória de três gerações de uma família na qual as mulheres
protagonizam o drama de terem seus corpos tratados como moeda de
troca para uma pretensa ascensão social numa sociedade dominada pela
colonização portuguesa em Moçambique. O espaço no qual a trama se de-
senrola é a região portuária da Zambézia, com a circulação de marinheiros
brancos e a exploração dos palmares da região, que empregava a mão de
obra de condenados, ou ainda, dos locais numa relação de servidão bas-
tante próxima da escravização.
120 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

É neste palco que se descortina a história de Delfina, a negra sereia


que sabe que seu corpo é seu instrumento mais potente para conseguir
favores dos brancos e tentar sobreviver numa região na qual era refém e
presa de sua própria mãe. A moça era mal vista pelas mulheres brancas e
pelas freiras da nova religião, que condenava o sexo e a via como instru-
mento satânico para a perversão dos homens “de bem”. Contudo, Delfina
não havia escolhido ser colocada como moeda em troca das migalhas ofe-
recidas pelos brancos, quem a iniciara nesse mercado havia sido sua
própria mãe, Serafina, que bebia vinho português, comia pequenas por-
ções de bacalhau e azeitonas trazidas pelos homens aos quais entregava
sua filha deliberadamente como prostituta. Delfina aprendera cedo que
não era uma pessoa, mas, sim, um objeto de uso do sistema colonial:

Olha para a rua. Raparigas da sua idade, filhas dos negros assimilados, vão
para a escola, aprumadas. Calçadas. Aprendem coisas que também poderia
aprender se o pai aceitasse mudar de vida. Mas a porta da escola fechou-se.
Porque é negra e é bela. Donzela. Lampariga, de acordo os linguarejos malan-
dros dos homens, porque a rapariga brilha como uma lamparina. A mesma
freira perseguia-a, acabando por expulsá-la da escola da missão. Porque era
recheada, bonita e atrapalhava a concentração dos rapazes. Na Igreja ficava no
banco de trás. A freira expulsou-a de novo. Distraia a atenção dos fiéis e enchia
os padres de desejos pecaminosos. A freira sabia de seus segredos e arrepiava-
se de medo da contaminação. Pelo demoníaco e proibido. Tudo por causa da-
quele dia em que a mãe a atirou como uma gazela na jaula de um carnívoro.
O velho branco estava no quarto escuro esperando por ela. Segurou-a. Apal-
pou-a. Sugou-a. A mãe sorria lá fora, tomando um copo de vinho e esperando
por ela. Foi um momento de conflito intenso, em que não conseguia entender
a alegria da mãe perante o pecado original. (CHIZIANE, 2018, p. 74)

À primeira vista, pode-se pensar a mãe de Delfina como um


verdadeiro monstro, julgando Serafina a partir da lógica ocidental cristã,
na qual a mãe, um ser divino, jamais colocaria sua própria filha a serviço
Marcia Roque | 121

do mercado sexual. Contudo, há que se analisar as circunstâncias que


levaram-na a agir de tal maneira. Em primeiro lugar, é preciso
compreender como a sociedade africana assimilou o conceito de
objetificação do corpo feminino.
Para a socióloga nigeriana Oyèrónké Oyĕwùmí, a diferença no Oci-
dente é notadamente marcada como degeneração e em função dos corpos
biológicos a fim de explicar questões como gênero, raça ou classe. Por-
tanto, a noção de poder e a hierarquia dela advinda são marcadas por uma
superioridade biológica dos corpos, como, por exemplo, o corpo do ho-
mem sobre o corpo da mulher, o corpo do branco sobre o corpo do negro,
etc. Aponta a socióloga,

Paradoxalmente, no pensamento europeu, apesar do fato de que a sociedade


era vista como habitada por corpos, apenas as mulheres eram percebidas
como corporificadas; os homens não tinham corpos – eram mentes caminhan-
tes. (OYEWWÙMÍ, 2021, p. 33-34)

Sendo assim, a dominação do homem sobre o corpo da mulher seria


algo que teria sido levado às comunidades africanas pelos europeus, o que
não quer dizer que nessas localidades não houvesse a prática da prostitui-
ção, mas, sim, que a categoria hierárquica baseada no corpo e a
inferiorização da mulher como sujeito, reduzindo-a a um objeto de con-
sumo e de submissão ao homem, nos modelos que conhecemos como
machismo no Ocidente, não se aplicaria a esses povos. A lógica colonial,
portanto, considerava que “Uma mulher é uma fêmea que é livre; um ho-
mem é um macho que é um cidadão. As mulheres foram excluídas da
categoria de cidadãos porque “a posse do pênis” era uma das qualificações
para a cidadania. (OYEWÙMÍ, 2021, p. 35).
Com o imperialismo, os países europeus levaram consigo sua logica
biologizante dos corpos e, consequentemente, das hierarquias entre os
122 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

corpos femininos e masculinos. De acordo com Oyĕwùmí, não se pode ou


se deve pensar o patriarcado como uma estrutura universal, tendo em
vista que, em muitas sociedades africanas, a construção hierárquica é feita
com base na ancestralidade ou na função social que o indivíduo exerce. Há
ainda que se levar em conta que a cosmovisão iorubá, por exemplo, en-
xerga o mundo como o produto do equilíbrio entre o masculino e o
feminino, sempre em um tipo de tensão que os coloca em pé de igualdade,
um podendo subjugar o outro a qualquer tempo. A submissão e a objetifi-
cação do corpo feminino, seu “consumo” pelo homem, são construções
ocidentais que se implantaram nas sociedades africanas colonizadas alte-
rando sua percepção social e cultural.
Para o filósofo Renato Nogueira,

Um aspecto importante da cultura ioruba está naquilo que a antropologia de-


fine como matrifocal. Na etnia, a articulação da família é protagonizada pela
mulher, e não pelo homem, ao contrário das sociedades patriarcais. Além do
pai e da mãe, em um núcleo familiar ioruba tradicional, avós, avôs, tias, tios,
primas e primos participam efetivamente. E é a mulher mais velha da família
que toma as decisões e define a dinâmica doméstica, o que pode, à primeira
vista, parecer estranho. Contudo, a linhagem é demarcada pelos homens, por
meio da figura paterna, assim como o poder político e o uso da força são de
ordem masculina, cabendo ao homem a gestão no âmbito público e o papel de
guerreiro. Mas, em casa, é explícita a valorização da mulher e cabe à mais velha
todo o controle e a gestão familiar. (NOGUEIRA, 2018, p. 63-64)

Percebem-se, portanto, algumas fraturas na percepção dessa família


sobre seus papeis sociais. Serafina, ao mesmo tempo em que detém o po-
der de decisão sobre o destino de sua filha, o faz para sobreviver em um
sistema que enxerga o corpo da mulher como algo passível de ser trocado
por algumas porções de alimento “de branco”. Ainda, nessa relação comer-
cial, Serafina sabia que poderia contar com a proteção dos brancos,
Marcia Roque | 123

garantindo, de certa forma, uma posição de relativa tranquilidade, ainda


que de miséria, frente aos donos da terra.
A autora Paulina Chiziane trabalha bem essa questão da ancestrali-
dade e dos mitos iorubas, inserindo, em determinados pontos da
narrativa, trechos da chamada “mitologia” local, mostrando a eterna dis-
puta por espaço entre as divindades masculinas e femininas. Segundo
Nogueira,

Um elemento que caracteriza a cultura ioruba é que, em seus mitos de funda-


ção, potências divinas femininas e masculinas mantém estreito diálogo por
meio de afastamentos e aproximações. Desde o início, as duas divindades su-
premas, uma feminina e outra masculina, entraram em contato para que a
primeira geração de divindades geradas passasse a existir. A simetria conti-
nuou na nova geração. (NOGUEIRA, 2018, p. 69-70)

Percebe-se que a cosmovisão iorubá não objetifica a divindade femi-


nina, pelo contrário, a coloca em pé de igualdade com a masculina, sendo
que ambas lutam pelo poder e se batem, ora vencendo um lado, ora o outro.
Esses trechos são ilustrados por Chiziane ao longo de suas inserções, dei-
xando o leitor entrever que tal disputa se desequilibrou a partir da entrada
de um terceiro elemento: o colonizador português, que pendeu a balança
para o poder masculino. José, futuro marido de Delfina, mostra o caráter
masculino e violento do colonialismo, replicando a lógica ocidental: “O colo-
nialismo é macho, engravidou o ventre de tua mulher. Roubou o beijo da
tua namorada e o sorriso dos teus filhos. (CHIZIANE, 2018, p. 130).
Após uma longa fila de amantes seduzidos por sua aura de sereia,
Delfina, a dona das docas dos marinheiros, acaba por encantar José, um
condenado preto que, cego pela paixão, propõe-lhe casamento e uma nova
vida fora da prostituição. Contudo, Delfina vai encontrar resistência em
Serafina, que se opõe violentamente ao casamento da filha com um preto,
124 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

o que, a seu ver, era praticamente uma declaração de morte de todas as


possibilidades de uma vida melhor, vivendo das sobras dos brancos que
exploravam o corpo da filha.

E tu, Delfina, escolhes o caminho do sofrimento. Vais casar com um preto,


parir mais pretos e mais desgraças. Com tantos brancos que te querem bem.
Não custa nada eliminar a tua raça para ganhar a liberdade. Temos que resis-
tir, Delfina, temos que resistir. Temos que nos submeter à vida que nos
impõem, acreditar no Deus deles, esse ser invisível e sem forma concreta. Te-
nho ódio dessas sinhás e donas todas mulatas, tenho ódio dessas brancas
piedosas, sempre dispostas a elaborar belos discursos sobre a mulher africana,
a sofredora, a analfabeta, a pobrezinha. De onde vêm as estradas, as plantações
e toda a sua grandeza? E as belas casas, quem as constrói? E a boa cozinha? E
as roupas brancas, engomadas, perfumadas? Das mãos dos condenados como
o José, frutos dos partos das mães negras. E o que recebemos em troca? O
desdém, o insulto, a marginalidade. (CHIZIANE, 2018, p. 97)

A explosão de Serafina mostra como o sistema colonial marcara a per-


cepção de seus iguais, o desprezo, ora pelo negro, ora pelos brancos, é
permeado pela ambivalência da situação dos habitantes do continente afri-
cano, explorados e maltratados ao ponto de desprezarem a si mesmos na
figura de seus iguais. Serafina ainda conta para a filha que a queria sempre
ao pé de si, que era para isso que fora abençoada com uma filha mulher, já
que os filhos homens tinham um destino cruel e eram engolidos e escravi-
zados pelo sistema, ambos objetificados, mas de diferentes maneiras, o
corpo masculino explorado pela força física e o feminino, pela sexualização:

O fim da mãe negra é ficar encostada no umbral da porta num choro eterno,
perante a indiferença do mundo, colocando flores em túmulos imaginários dos
filhos que perdemos. Ah, minha Delfina. Neste momento, choro os meus filhos
perdidos no mundo. São três. Vieram do mais sagrado de mim, vieram de
longe. Vocês não sabem o que sofri para trazê-los ao mundo. (...) Esforço vão,
porque os filhos foram retirados na flor da idade e levados num barco para
Marcia Roque | 125

terras desconhecidas. Talvez estejam vivos. Ou mortos. Sinto que nunca mais
voltarei a vê-los. (...) Mas um dia virá em que o mundo inteiro se recordará do
sofrimento da mãe negra e nos pedirá perdão, pelos filhos que nos roubaram,
arrancaram, venderam. (CHIZIANE, 2018, p. 97-98)

Essa percepção deturpada de si e do seu valor como indivíduo e como


ser social por parte de negros africanos colonizados por europeus foi estu-
dada pelo psiquiatra martinicano Franz Fanon, notadamente no
comportamento da mulher martinicana ao escolher seu marido: “O im-
portante é não sombrear de novo no meio da negrada, e qualquer
antilhana se esforçará em escolher, nos seus flertes ou relações, o menos
negro. (...) não é que neguemos ao negro qualquer valor, mas é melhor ser
branco.” (FANON, 2008, p.58)
A partir das colocações de Fanon, constrói-se uma um deslocamento
do olhar sobre a colonização, no qual se pode perceber que esse processo
deixou uma sequela psicológica que afetou a maneira como o sujeito afri-
cano passou a se perceber. Tal movimentação perpassa o que o crítico pós-
colonial indo-americano Homi Bhabha chama de discurso colonial. Dis-
curso esse calcado na formação de um estereótipo de inferioridade
repetido à exaustão até o ponto em que foi assimilado pelo africano e to-
mado como verdade. Segundo Bhabha,

Um aspecto importante do discurso colonial é sua dependência do conceito de


“fixidez” na construção ideológica da alteridade. A fixidez, como signo da dife-
rença cultural/histórica/racial no discurso do colonialismo é um modo de
representação paradoxal: conota rigidez ordem imutável como também de-
sordem, degeneração e repetição demoníaca.
Do mesmo modo, o estereótipo, que é sua principal estratégia discursiva, é
uma forma de conhecimento e identificação que vacila entre o que está sempre
“no lugar”, já conhecido, e algo que deve ser ansiosamente repetido... como se
a duplicidade essencial do asiático ou a bestial liberdade sexual do africano,
126 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

que não precisam de prova, não pudessem na verdade ser provados jamais no
discurso.
(BHABHA, 2013, p. 117)

Bhabha explora no âmbito teórico o estatuto de verdade imutável do


estereótipo, sua fixidez, que coloca o colonizado numa posição discursiva
inferior e o leva a crer em sua própria bestialidade. Tal conceito é percep-
tível na fala do pai de Delfina para a esposa após seu discurso inflamado e
carregado de estereótipos degradantes sobre o casamento da filha:

Ah, minha Serafina! Comeste muita sova nesta vida! A dor fechou-te os olhos.
De tanta dor perdeste o tino. Tens razão. O cão fiel se domestica à pancada. Só
pensas no teu dono, não existes. Foram muitos anos de insultos e a mentira
agora se tornou verdade. Agora te renegas, te anulas, tens vergonha e medo
de ser negra. (CHIZIANE, 2018, p. 100)

Sob a ótica de Fanon, “o problema é saber se é possível ao negro su-


perar seu sentimento de inferioridade”, (2008, p. 59) Sendo assim, o
questionamento que se faz pela intelectualidade decolonial é saber como
lidar com essas feridas, como resgatar a dignidade do negro que, por tan-
tos, anos, foi humilhado repetidas vezes, ao ponto de considerar-se
subalterno por merecimento, dado o fato de pertencer a uma raça degene-
recida. Para Bhabha,

A força da ambivalência (é) que dá ao estereotipo colonial sua validade, ela


garante sua repetibilidade em conjunturas históricas e discursivas mutantes,
embasa suas estratégias de individuação e marginalização, produz aquele
efeito de verdade probabilística e predictabilidade que, para o estereótipo, deve
sempre estar em excesso do que pode ser provado empiricamente ou explicado
logicamente. (BHABHA, 2013, p. 118)

É o que vai acontecer com José, logo após seu casamento com Delfina.
Apesar de, graças à sua união, deixar de ser condenado e passar a ser
Marcia Roque | 127

contratado, a vida dos dois não apresenta nenhum tipo de melhora, pelo
contrário, a miséria se impõe como previsto. José havia proposto
casamento a Delfina para aplacarem a paixão e o desejo, pois a vida de
durezas imposta aos negros haveria de fazê-los cansarem-se um do outro,
fazendo com que seguissem suas vidas, mas com o desejo de estarem
juntos saciado e é o que acontece:

Nem roubar é possível. Mas os negros só têm bananas e cocos, e Delfina quer
ouro. Roubar aos brancos é candidatar-se à nova deportação. Surgem assim
os primeiros sinais de revolta: maldita colonização, maldita hora em que nasci
negro. Se eu fosse um branco, nada me faltaria. Existem algumas fórmulas
frágeis para ser menos negro, pelos cremes, pelas roupas, pela textura do ca-
belo. (CHIZIANE, 2018, p. 111)

A inferioridade de sua própria raça é amaldiçoada e o casal começa a


sonhar com um possível embranquecimento, ao menos, social, e Delfina
insiste na assimilação de José, processo que o faria, a partir da submissão
ao regime e da negação de sua cultura e origem, ascender ao status de
“negro decente”, ou nas palavras de Fanon, assumir uma máscara branca
sobre sua pele negra. Assim se dá a cerimonia que concretiza a troca de
identidade de José:

Quem não se ajoelha diante do poder do Império não poderá ascender ao es-
tatuto de cidadão. Se não conhece as palavras da nova fala jamais se poderá
afirmar. Vamos, jura por tudo que não dirás mais uma palavra nessa língua
bárbara. Jura, renuncia, mata tudo, para nasceres outra vez. Mata a tua língua,
a tua tribo, a tua crença. Vamos, queima os teus amuletos, os velhos altares e
os velhos espíritos pagãos. José faz o juramento perante um oficial de justiça,
que mais se parece com um juramento de bandeira. Com pouca cerimônia,
diante de um oficial meio embriagado.
- Eu juro, repetia.
- Juras abandonar essas crenças selvagens, a língua atrasada, e a vida bárbara?
128 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

- Sim, eu juro.
- Bom rapaz. Agora assina aqui. (CHIZIANE, 2018, p. 114)

Ao final, José se torna sipaio do regime, uma espécie de milícia ar-


mada, cuja função era “vigiar e punir” o trabalho dos negros nos palmares,
cobrar impostos de palhota pelas moradias e introduzir o terror à popula-
ção local, que devia ser submissa à Metrópole e sem qualquer indício de
insurreição. Essa atitude é dolorosa para José, que sucumbe frente à insis-
tência da esposa, suas constantes ameaças de deixá-lo por conta da
situação de miséria e por ela querer desesperadamente deixar a condição
de negra e aproximar-se, cada vez mais, da condição de branca, desejo que
se torna uma verdadeira obsessão. O estatuto de cidadão, contudo, é con-
ferido somente a José, Delfina passa a ser assimilada por extensão do
direito do marido, o ser pensante. Fanon analisa esse comportamento da
seguinte maneira:

Para ele (o negro) só existe uma porta de saída, que dá no mundo branco.
Donde a preocupação permanente em atrair a atenção do branco, esse desejo
de ser poderoso como o branco, essa vontade determinada de adquirir as pro-
priedades de revestimento, isto é, a parte do ser e do ter que entra na
constituição de um ego. (...) É pelo seu interior que o negro vai tentar alcançar
o santuário branco. A atitude revela a intenção. (FANON, 2008, p. 60)

Apesar de mortificado pela renúncia de sua gente, o poder da nova


condição logo domina José, que descobre as benesses oferecidas pelo sis-
tema para embranquecê-lo. Ele passa a ter poder aquisitivo e a se sentir
parte do mundo que se apresenta como civilizado e superior. Já de início,
o processo de reforço do discurso alienante e estereotipado apontado por
Bhabha, que separa os eleitos dos maus, os civilizados dos selvagens, se faz
presente numa vultosa quantia de dinheiro que recebe como sipaio para
tornar-se digno do círculo para o qual entrara.
Marcia Roque | 129

Realizou as primeiras compras da vida. Roupas, sabão, perfume e lençóis


brancos. Experimentou tudo e foi ao espelho pela primeira vez. Sentada na
cama, Delfina observava o marido a mudar de identidade como uma cobra na
mudança de estação. (CHIZIANE, 2018, p. 115)

Reside nessa passagem a concretização do objetivo do discurso colo-


nial construído como forma de dominação, pois, segundo Bhabha, à
medida que tal discurso apresenta “o colonizado como uma população de
tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a con-
quista e estabelecer sistemas de administração e instrução” (2013, p. 124),
instaura-se uma forma simbólica de “governamentabilidade que, ao deli-
mitar uma “nação sujeita”, apropria, dirige e domina suas várias esferas
de atividade.” (2013, p. 124) José passa, então, a ser uma ferramenta do
regime e a ajudar que ele se mantenha, atuando como seu braço armado
na manutenção de uma ordem nova que encaminhará os selvagens ao
novo mundo, organizado, civilizado e superior dos brancos. A autorização
de José assemelha-se e baseia-se na noção de biopoder foucaultiana reto-
mada pelo professor de História e Ciência Política camaronense, Achille
Mbembe:

O biopoder parece funcionar mediante a divisão entre as pessoas que devem


viver e as que devem morrer. Operando com base em uma divisão entre os
vivos e os mortos, tal poder se define em relação a um campo biológico – do
qual toma o controle e no qual se inscreve. Esse controle pressupõe a distri-
buição da espécie humana em grupos, a subdivisão da população em
subgrupos e o estabelecimento de uma cesura biológica entre uns e outros. (...)
A raça foi a sombra sempre presente no pensamento e na prática das políticas
do Ocidente, especialmente quando se trata de imaginar a desumanidade de
povos estrangeiros – ou a dominação exercida sobre eles. (...) Na economia do
biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar pos-
síveis as funções assassinas do Estado. (MBEMBE, 2020, p. 17-18)
130 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

No juramento de assimilação de José, há uma escolha entre viver e


morrer que lhe é ofertada pelo Estado Colonial. Renegar sua cultura e a
seu povo equivale a uma dualidade que o projetará como traidor e crimi-
noso aos olhos dos seus e como “funcionário exemplar” para o sistema ao
qual se escravizou por uma vontade pseudo-própria, tendo em vista que a
outra alternativa o deixaria exposto a uma morte autorizada por sua ne-
gação ao sistema. Passando ao lado que exerce o biopoder, José,
automaticamente, também ganha licença para matar os seus em nome da
legalidade do sistema colonial, que visa garantir a ordem e extirpar a sel-
vageria, e esse poder o corrompe.

A vida dos outros não importa, o poder é que conta. Porque os ombros huma-
nos são degraus no exercício narcisista. O seu povo e ele ficaram num frente a
frente em vários combates, José se esmerou. Comandou. E arrasou. Na car-
reira do crime fez a sua estrada triunfal. Está no topo da pirâmide. Cumpriu
os mandamentos do regime com a maior eficiência do mundo. Torturou. Mas-
sacrou e acorrentou muitos m’zambezi para as plantações. Meteu muitos nos
navios de deportação. Depois veio o equilíbrio. O gozo. A imensidão. O mundo
era finalmente seu.
O que José não sabia é que seus atos se tornariam marco, história, mito, lenda.
Mudariam o mundo. Sem a cumplicidade dos assimilados e seus sipaios a terra
jamais seria colonizada. (CHIZIANE, 2018, p. 129)

José é, então, verdadeiramente assimilado e cúmplice, inclusive do


reforço do discurso colonial. Para Bhabha, “o estereótipo requer, para uma
significação bem-sucedida, uma cadeia contínua e repetitiva de outros
estereótipos.” (2013, p. 134) e ele é o repetidor, inclusive de sua posição
que continua sendo subalterna mesmo após assumir o papel de verdugo
do sistema ao qual se integrou, travestido de branco, o que se traduz em
seu comportamento que cobre seu chefe de todos os elogios e regalias
Marcia Roque | 131

enquanto ele continua como o servo que facilita a vida do superior digno
de ser tratado como um rei, aliando outros estereótipos à cadeia que se
reforça.

O importante é manter a energia do sexo dos homens para fecundarem as


pretas deles, senão na próxima geração não teremos escravos. (...) Quer uma
preta, uma virgem, patrão? Mandei preparar uma. Preta autêntica, carvão pu-
ríssimo, de primeira para o senhor inaugurar. Essas borboletas do cais estão
velhas, estão sujas, cheias de pústulas, o patrão pode apanhar doenças. Arranjo
até uma virgem por semana, o patrão é bom, o patrão merece, a mesma não,
porquê, para quê, as pretas nascem às dúzias como sementes de abóbora, o
patrão é muito macho, não precisa de peças gastas, basta inaugurar, dignifica-
las com a magia do seu toque para elas ficarem satisfeitas. Toda a preta virgem
sonha em inaugurar-se sexualmente com um branco para sentir-se honrada,
porque na nossa terra ser deflorada por um preto é desonra. Toda a preta
sonha com um filho mulato, sabe como é patrão, na lavoura é preciso selecio-
nar as sementes boas, nobres, férteis, para melhorar a espécie, sabe muito
bem, patrão. (CHIZIANE, 2018, p. 132 – 133)

Acerca desse comportamento, Bhabha retoma a abordagem psicana-


lítica freudiana através de Franz Fanon, e afirma que o discurso colonial
constrói o outro com base nas pulsões de desejo e repulsa, pois, ao mesmo
tempo que esse outro é a representação do exótico que exerce fascínio, ele
é também o que causa repulsa ao colonizador e ao colonizado, perante à
“selvageria” estereotípica e à inferioridade frente à evolução das raças e
culturas europeias. Tal fato é reforçado pela fraqueza de José ao se reduzir
perante o superior, provocando uma dualidade que é assim descrita pelo
crítico indo-britânico:

O negro é ao mesmo tempo selvagem (canibal) e ainda o mais obediente e


digno dos servos (o que serve a comida), ele é a encarnação da sexualidade
desenfreada e todavia, inocente como uma criança; ele é místico, primitivo,
simplório e, todavia, o mais escolado e acabado dos mentirosos e manipulador
132 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

das forças sociais. Em cada caso, o que está dramatizado é uma separação-
entre raças, culturas, histórias, no interior de histórias. (BHABHA, 2013, p.
141)

Cada pessoa que sofre o peso da mão de José, sente o fosso entre as
culturas branca e negra se aprofundar, mais ainda, sente a dor de ver seu
igual travestido de diferente e agir como cúmplice de sua aniquilação, cau-
sando mais traumas ao povo que se sente traído.

Oh, o chicote do branco é uma carícia, não dói. O chicote verdadeiro é o que
assobia nas mãos dos teus irmãos. Chapada de branco é esponja sobre a pele,
não é nada. A mão do preto tem calos, cicatrizes, tatuagens, espinhos. Dura
como ferro. Pica, fende, fere, quebra. E dói ainda mais porque é teu irmão. A
injúria do branco é estrangeira, passageira. Mas a do teu irmão é espinhosa, o
preto José passou para o lado dos brancos. (CHIZIANE, 2018, p 130)

Porém, se José exerce o poder social fora de sua casa, dentro dela,
Delfina, assim como sua mãe, é quem detém o poder de decisão sobre sua
família e, tal como Serafina, Delfina somente enxerga no branco a porta
para a segurança de uma vida estável. Mãe de Maria das Dores e de Zezi-
nho, ela vê na oferta de seu corpo como mercadoria a salvação para a
família e a concretização de seus anseios, tornar-se branca. Assim, ela trai
José com seu chefe, o branco Soares e dele engravida, só revelando a ver-
dade para seu marido no momento em que ele entra para ver a filha
recém-nascida, Maria Jacinta, e se depara com o que o pai de Delfina anun-
cia, um monstro, uma filha de pele clara fruto da união de dois negros. Ao
olhar para a menina, José é finalmente derrotado, percebendo que quem
comandou sua vida, sua rendição ao sistema e a traição de seu povo foi
Delfina.
Ao ser traído pela esposa, José vai em busca do homem que o criou,
Moyo, uma espécie de sacerdote do sagrado ancestral africano. Ao ter seus
Marcia Roque | 133

desejos por feitiços que lhe trouxessem a mulher de volta negados, José
revolta-se com a figura paterna que Moyo representava e se vê no direito
de exercer o poder de mata-lo. Matar o ancião é, ao mesmo tempo, um ato
legal, pelo qual ele será amplamente ovacionado pelos brancos, e uma
forma de demarcar para si que ele não faz parte da cultura que lhe é inútil
e que não serve aos seus desejos. Moyo transforma-se na materialização
da insurreição ao regime e a José, neste momento dominado pelas paixões,
que se considerava como parte desse regime.
Confrontando Delfina, ele percebe seu apagamento, dentro e fora de
casa:

O meu estatuto é maior a partir de agora. Mãe de mulata. Concubina de um


branco. Não mais morrerei à míngua, com esta filha que é minha segurança.
(...) Trouxe alegria ao coração de minha negra mãe. Segurança para a velhice
do meu pai. O direito a um pedaço de terra para construí uma casinha e se-
mear couves e cebolas, sem ter que pagar o imposto de palhota num espaço
que é nosso por herança divina. Esta criança irá libertar o Zezinho do destino
de machileiro ou plantador de cocos de um branco qualquer. Vai defender a
Maria das Dores da prostituição no cais dos marinheiros. (CHIZIANE, 2018,
p.184)

O comportamento de Delfina reflete o que Fanon, tomando as mu-


lheres da Martinica como objeto de análise, ressalta sobre a mulher negra
e a mulata: “A primeira só tem uma perspectiva e uma preocupação: em-
branquecer. A segunda não somente quer embranquecer, mas evitar a
regressão. (...) está se tentando salvar a raça. (2008, p. 62-63) Delfina re-
presenta essa mulher que une a força das que resistem ao sistema,
tomando para si as armas que ele mesmo lhes impôs. Nesse momento, a
força divina feminina se sobrepõe à masculina e toma para si o poder, que
exercerá com crueldade por longo tempo.
134 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

O sorriso de Delfina era hostil, de uma indiferença exasperante. Hoje, a voz é


singularmente fria e ouve-se lá das montanhas da vitória. Ela sabe que um dia
o mundo contará a sua história e celebrará o heroísmo das mulheres que pro-
duziram o milagre da raça pelo próprio ventre. (CHIZIANE, 2018, p.185)

Desnorteado, com o assassinato do pai a pesar-lhe nas costas e a do-


lorosa descoberta da traição de Delfina e do triunfo dela sobre ele, José
decide morrer, vai para a praia, mas é devolvido pelo mar, o que é para ele
uma demonstração da vingança de sua terra que não lhe dá a paz da morte
frente aos seus tormentos. Caminhando a esmo, ele se depara com a casa
de Lavaroupa da Silveira, outro assimilado cujo nome deriva do sobre-
nome de seu antigo dono, da Silveira, e de sua antiga função, lavar roupas,
marcando mais uma tentativa discursiva de apagamento da identidade e
da individualidade do colonizado. José procura Lavaroupa para aconse-
lhar-se sobre o que fazer com Delfina após a traição e o homem somente
confirma a ele que o poder decisório é das mulheres, pois com ele aconte-
ceu a mesma situação e lhe coube apenas resignar-se: “Suportei a
vergonha de ter nascido homem. Carreguei a minha fraqueza no alto da
cabeça, eterno cornudo. (...) Se eu resisto, o branco me deporta só para
ficar com ela. Se eu a entrego, serei cornudo, mas escapo.” (CHIZIANE,
2018, p. 195) Após a conversa com Lavaroupa, José desaparece, não se sabe
se morto ou vivo e Delfina, enfim, toma as rédeas de sua vida para fazê-la
seguir os rumos que ela havia definido para si.
Mesmo assimilada, recorre às bruxarias de Simba, um feiticeiro local,
prometendo-lhe casa com forro e piso caso ele a ajudasse a afastar a mu-
lher do branco Soares para que se casassem. A diferença de idade não é
empecilho para Delfina, ela procura um futuro, algo sólido e não novos
amores. A casa de Soares é então palco da rivalidade de duas mulheres:
Delfina, a mulher demônio, que luta com o corpo e com bruxarias de
Marcia Roque | 135

Simba e a mulher de Soares: mulher anjo, que luta com a fé no Deus su-
perior e aguenta tudo em nome da família, resignada. Delfina sabe que o
mundo ao redor a vê dessa maneira, inclusive seus patrícios, mas nada
parece a deter na luta desenfreada em busca do embranquecimento. Para
Fanon, esse procedimento demonstra o que a psiquiatria poderia classifi-
car como um tipo de neurose:

O preto, no seu comportamento, assemelha-se a um tipo neurótico obsessio-


nal, ou, em outras palavras, ele se coloca em plena neurose situacional. Há no
homem de cor uma tentativa de fugir à sua individualidade, de aniquilar seu
estar-aqui. (...) o preto inferiorizado passa da insegurança humilhante à auto-
acusação levada até o desespero. (FANON, 2008, p. 66)

Delfina, enfim, consegue seus objetivos e, à força das bruxarias de


Simba, consegue enlouquecer um dos filhos brancos de Soares e fazer com
que sua esposa, enfim, decida separar-se e mudar-se para Portugal. Ela,
então, casa-se com Soares e assume de vez o papel da sinhazinha negra
que trata, inclusive seus filhos negros, Maria das Dores e Zezinho, como
servos de sua filha branca, Maria Jacinta. Delfina faz distinção entre os fi-
lhos em tudo, nas brigas e ofensas e, até mesmo, nos utensílios domésticos
que cada um usa, que são separados de acordo com a cor das crianças. No
caso de Jacinta, para maior segurança de sua mãe, ela lhe garantiria o fu-
turo seguro e respeitoso que Delfina havia criado em sua imaginação
impregnada pelo discurso colonial:

A construção do sujeito colonial no discurso, e o exercício do poder colonial


através do discurso, exige uma articulação das formas da diferença – raciais e
sexuais. Essa articulação torna-se crucial se considerarmos que o corpo está
sempre simultaneamente (mesmo que de modo conflituoso), inscrito tanto na
economia do prazer e do desejo, como na economia do discurso, da dominação
e do poder. (BHABHA, 2013, p.119)
136 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

Soares, entretanto, quer a paz e a harmonia entre as raças, apresen-


tando um discurso libertário e igualitário que não convence sua mulher
até o momento em que ele a questiona sobre a réplica do colonialismo que
ela mantém em casa com os filhos e ela lhe diz:

Os filhos negros representam o mundo antigo. O conhecido. São o meu pas-


sado e o meu presente. Sou eu. E eu já não quero ser eu. Os filhos mulatos são
o fascínio pelo novo. Instrumentos para abrir as portas do mundo. A Zambézia
ainda é virgem, não tem raça. Por isso é preciso criar seres humanos à altura
das necessidades do momento. (CHIZIANE, 2018, p.228)

Não se sabe se Soares a enxerga por completo e se desilude com o


que seu povo fez de Delfina ou se, como afirma o feiticeiro Simba, a bru-
xaria foi quebrada com a finalidade de destruí-la e torná-la presa do
feiticeiro. Fato é que ele abandona sua esposa negra e volta para Portugal,
deixando atrás de si uma miniatura do que seria Moçambique após a des-
colonização: escombros e um espólio a ser dividido em pé de guerra.
Soares garante o futuro de seus filhos indistintamente, deixando todos
com uma considerável quantia em propriedades e investimentos, o que
não garantiu a paz de Delfina que se via constantemente bombardeada por
sua família multirracial:

- Mãe, por que me fez preto? – pergunta o Zezinho -, eu também quero ter
uma pele clara como a Jacinta ou como meu pai branco.
- Ah, Zezinho, se eu pudesse adivinhar o futuro, não teria casado com o vosso
pai, esse preto, esse pobre!
- Pai por que me fez com uma preta – pergunta Jacinta. - Eu queria ter uma
mãe branca, para ser igual à sua outra esposa.
- Cala-te, Jacinta – grita Delfina -, se não fosse eu a arranjar-te um pai branco,
terias nascido preta como os teus irmãos. Se não fosse o meu zelo na tua
educação, tu terias crescido com coração de preta, como a Maria das Dores.
Maria das Dores revolta-se e fala. Ela tem doze anos, ela pensa.
Marcia Roque | 137

- Não, minha mãe. Não eram essas palavras que querias proferir, não eram. O
teu desejo era alimentar-nos com os melhores manjares desse mundo. Nem
era essa a voz que nos falava quando o nosso pai negro estava aqui. Eu era a
princesa do pai negro, mas nesta casa tudo é novo, tudo mudou, desde que o
pai branco chegou. (CHIZIANE, 2018, p.229-230)

Após o abandono de Soares, Delfina enlouquece e volta a procurar


Simba, pedindo-lhe novos feitiços, mas o verdadeiro objeto de desejo do
bruxo era Delfina, seu corpo e sua força. Para vingar-se, ele promete a ela
trazer Soares de volta se ela tiver a coragem de entregar sua filha Maria
das Dores para ser deflorada por ele. A filha aqui era tomada em substitui-
ção ao corpo da mãe, o verdadeiro foco do feiticeiro. Delfina, tomada pela
neurose que apontou Fanon, sofre, resiste, repugna-se, mas leva a filha
para ser sacrificada em nome de seus delírios de embranquecimento e re-
pete o ciclo do qual foi vítima pelas mãos de sua mãe, a entrega do corpo
jovem objetificado como moeda de troca pelas migalhas dos brancos. A
menina, que estava trançando os cabelos da irmã, é levada no meio da
noite e entregue a Simba, que não a devolve à mãe e vai iniciar uma série
de abusos a Maria das Dores, que tem com ele três filhos e foge de seu
algoz indo refugiar-se nas montanhas da Zambézia. Furiosa com a mãe,
Jacinta a vê cair vítima do álcool e abrir uma casa de prostituição, cercando
os filhos desse ambiente de comércio de corpos. Contudo, um dia, o con-
fronto com a filha branca se faz inevitável:

- Se o meu pai foi embora é porque não te podia suportar. És uma mulher
horrível, mãe.
- Não refiles tanto comigo, filhinha. Fiz tudo para o teu bem. Para teres mais
pão. Para o negócio melhorar. Para poderes manter o teu estatuto de mulata,
de assimilada, e não baixares de nível.
- És nojenta, mãe. (CHIZIANE, 2018, p. 261)
138 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

Longe de terminar com os conflitos entre brancos e negros, a família


multirracial formada por Delfina criou dores com as quais ela ainda não
tinha lidado. Jacinta viu o pai ser zombado por um branco por ter tido uma
filha com uma negra e não reagiu, tampouco afirmou que ela era sua filha.
Viu seu avô materno ser espancado como se a houvesse raptado. Sofreu
na escola que a repreendeu por estar com Maria das Dores, sua irmã negra
e, quando a professora conheceu sua mãe, sugeriu a ela que reforçasse a
educação branca da menina para que pronunciasse bem os erres e não
falasse como negra. Na dança de roda da qual participava Maria das Dores,
não era bem-vinda. Sua irmã ficava com o serviço de casa, como uma
serva, para que ela pudesse estudar. E seus questionamentos cresciam:
“Afinal de contas, qual é o meu lugar? Por que é que tenho que me ficar
entre as duas raças ? Será que tenho que criar um mundo meu, diferente,
marginal, só com indivíduos da minha raça?” (p. 246)
Cansada das atitudes da mãe, Jacinta foge e pede abrigo à Igreja, le-
vando consigo os irmãos que restaram. Pela piedade cristã, foram bem
aceitos a fim de que pudessem livrar-se da mancha de pecado de Delfina
que lhe era atribuída pelos mesmos brancos piedosos que exploraram seu
corpo e diminuíram seu povo. A presa foi, enfim, transformada em vilã e
renegada por sua filha de pele clara, que cresce e casa-se com um branco
sem convidar a mãe. Delfina vai à cerimônia mesmo assim, pois, para ela,
aquele casamento celebra sua vitória por ter conseguido elevar sua raça.
Contudo, é ali também que ela é exposta ao seu fracasso e toma cons-
ciência da teia em que se perdera. Jacinta não a reconhece como mãe e
Delfina cai em delírio, ao ouvir da filha que também tenta escrever para si,
através do casamento, uma história do lado dos brancos a fim de se livrar
do lugar social no qual as decisões da mãe a colocaram: “Os pretos e os
brancos acusam os mulatos de todos os males do mundo: criminalidade,
prostituição, leviandade. Maria Jacinta respira fundo – sou o fruto dos teus
Marcia Roque | 139

conflitos, não, não me aproximarei de ti, minha mãe.” (CHIZIANE, 2018,


p. 280) A dor e a culpa pela perda da filha negra a envolvem nesse mo-
mento e ela começa a cair em si:

Começa então a compreender o que antes não vira. Que só um camaleão muda
de cor. Que o negro é sempre negro e deve aprender o orgulho de sê-lo. Co-
meça a perceber as mensagens de resistência nas greves dos palmares. Não se
pode ser negro e ser branco ao mesmo tempo. Recorda-se das canções de re-
volta. A terra era minha e roubaram-ma. O corpo era meu e usaram-no. Esta
noiva é minha filha e ma roubam. Ah, se eu fosse mais nova empunharia uma
arma e lutaria pela minha dignidade e por tudo o que me tiraram. (CHIZIANE,
2018, p. 282)

Para finalizar, sem analisar o final romanesco da obra que nada con-
tribui à análise aqui pretendida, destaca-se ainda uma reflexão de
Lavaroupa da Silveira sobre o Deus cristão,

Dizem que a humanidade é a semelhança de Deus, mas esta é a imagem de


um branco. Na roupa que usa. Na língua apurada que fala. No vinho que toma.
Nas joias que exibe. É um negro com classe. Civilizado por excelência, supe-
rando o estigma de sua raça. (CHIZIANE, 2018, p. 193)

Observando-se tudo que foi aqui exposto e a fala de Lavaroupa, per-


cebe-se com nitidez a fixação dos estereótipos criados para manter os
africanos em uma condição de inferioridade que lhes condicionasse a se-
rem dominados e governados pelo branco. A criação de uma imagem de
selvageria e atraso em oposição ao desenvolvimento e à civilização da cul-
tura e do modo de ser e viver dos brancos acabou por reforçar o imaginário
do bem contra o mal, de ascensão versus decadência, de progresso e de
atraso. O pós-colonial recebe essa gama de paradoxos para serem pensa-
dos e colocados em xeque até que sejam desconstruídas e para Homi
140 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

Bhabha, isso só será efetivo questionando-se a representação que temos


da alteridade e encarando-se os estereótipos do discurso colonial como tal.

Julgar a imagem estereotipada com base em uma normatividade política pré-


via é descartá-la, não deslocá-la, o que só é possível ao se lidar com sua eficácia,
com o repertório de posições de poder e resistência, dominação e dependência,
que constrói o sujeito da identificação colonial (tanto colonizador como colo-
nizado). (BHABHA,2013, p.118)

Em um momento de bastante lucidez, o pai de Delfina resume com


precisão e lirismo a situação que sua família vive em Moçambique e o le-
gado da exploração colonial e da violação da identidade do africano.

Os aventureiros entrarão e sairão como quem entra no ar e não se molha.


Línguas nossas? Aprenderão apenas sons. Nomes? Invocarão alguns. Cren-
ças? Profanarão todas as nossas. Nós aprendemos tudo: árabe, português,
francês, inglês, norueguês, russo, alemão e tantas outras desconhecidas. E
continuaremos escravos. Faremos guerras uns contra os outros. Matar-nos-
emos. Elegeremos presidentes. Golpearemos presidentes. Mataremos presi-
dentes. Ergueremos bandeiras. Mudaremos bandeiras, hinos e símbolos. E
continuaremos escravos. (CHIZIANE, 2018, p. 154)

Referências

BABHA, Homi K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2019.

CHIZIANE, Paulina. O Alegre Canto da Perdiz. Porto Alegre, Dublinense, 2018.

FANON, Franz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo, n-1 edições, 2018.

NOGUEIRA, Renato. Mulheres e Deusas. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2021.

OYĔWÙMÍ, Oyèrónké. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os


discursos ocidentais de gênero. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
7

O Lugar de fala da mulher fronteiriça:


Novas identidades e a consciência “Mestiza”

Giselle Perna

...A voz de minha avó


ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe


ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.

A minha voz ainda


ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e fome...
(Vozes-mulheres. Conceição Evaristo)

Introdução: A mulher fronteiriza: Lugar, fala e silenciamentos

A categoria do “lugar de fala”, torna-se um dos desafios da contem-


poraneidade, à medida que busca compreender o direito de fala e a quem
pode (ou não) se expressar, num contexto caracterizado por grandes im-
bricações e constantes mudanças no cenário mundial, onde a ascensão de
categorias como a raça, o gênero, a classe, a sexualidade, reconfiguram as
identidades com base em um pensamento universal, ocidental, classista, e
142 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

norte global. Esse pensamento dito universal, dominou historicamente, o


contexto de formação da América Latina, expandindo novas identidades
históricas, categorizadas como inferiores e assim, circunscritas ao silenci-
amento.
Traduzido por Djamila Ribeiro, o conceito tem agenciado através do
locus de enunciação, exigências representativas ganhando visibilidade a
partir de pesquisas feitas por feministas interseccionais, no qual buscam
popularizar o conceito propondo um debate que conjugue o direito de fala
sem mediação, com a visibilidade de uma produção acadêmica das mulhe-
res racializadas. Trata-se de uma expressão que vem tomando forma
dentro dos debates de feministas, traduzindo o silenciamento e a invisibi-
lidade histórica da mulher negra, frente às estruturas hierárquicas que as
compeliu numa última posição social que atravessa o gênero, a raça e a
classe social. Sendo assim, o lugar de fala se compromete em construir um
reconhecimento cuja a história foi capaz de apagar ao destituir a população
racializada de qualquer representabilidade humana.
As categorias como raça, gênero, classe social, sexualidade, formam
o principal motor estruturante de uma sociedade desigual. A classificação
racial criada a partir de uma suposta superioridade branca e europeia, que
se desdobra para uma construção epistêmica científica hegemônica tam-
bém eurocentrada, inviabilizou o surgimento de um pensamento que
partisse fora do centro 1 e colocou aqueles considerados subalternizados,
dominados e explorados, sob um véu capaz de cobrir quaisquer cosmolo-
gias e epistemologias oriundas desses espaços, fronteiras periféricas do
sistema-mundo moderno/colonial e capitalista.

1
De acordo com Walter Mignolo, a colonialidade operou para que as periferias do sistema-mundo (dentro), não
fossem capazes de produzir um conhecimento pautado em suas especificidades locais, absorvendo, desta forma, o
monologismo cultural a partir de uma posição de superioridade. Com base nesse pensamento, o conceito de
“exterioridade” construído a partir de homens brancos, cis, cristãos e ocidentais, criou uma visão das periferias como
o local onde habitam selvagens, sem cultural e indomáveis, determinando sua subalternidade e inferioridade.
Giselle Perna | 143

Para Ribeiro, o conceito toma o "lugar" como enunciado, não reme-


tendo ao espaço físico, mas à posição social na qual essas falas são
verbalizadas. Ele compreende a dimensão social na qual conflitos discur-
sivos tomam proporção na busca pela legitimação das vozes, capazes de
construir argumentações de resistências às instâncias de poder, cuja fun-
ção fundamental é favorecer as desigualdades sociais, tendo no racismo o
protagonista deste cenário. Ele é caracterizado por ser uma expressão que
toma o "lugar/locus" como enunciado, compreendendo a sua dimensão
espacial e a influência nesses conflitos discursivos que giram em torno da
produção de saberes, tendo ele, a autoridade de escolher quem pode falar,
dando credibilidade às vozes oriundas dos saberes hegemônicos.
A este local social de onde emergem os discursos de resistência, se
pretende retomar, também o ambiente físico desses sujeitos subalterniza-
dos, caracterizado geograficamente pela fronteira. Uma zona onde
múltiplos diálogos se encontram e criam novas amostragens culturais.
Neste sentido a escritora chicana, Gloria Anzaldúa, em sua obra Border-
lands/La frontera - The New mestiza (1987), buscou romper este ciclo que
apagamento histórico imposto pelas culturas hegemônicas, criando um
"locus" de enunciação, que tem como objetivo, as diferentes misturas de
identidades coletivas que atravessam esse lugar fronteiriço.
Se autodefinindo como mulher fronteiriça. Uma mulher com
diversos atravessamentos identitários, Anzaldúa relata que pertencer a
fronteira não é uma escolha. Como mulheres racializadas, não há critérios
nem escolhas, apenas são compelidas às periferias desse sistema-mundo
de onde suas vozes e corpos não são ouvidos. Anzaldúa, mulher mestiça,
indígena, mexicana de cor e lésbica, representa tudo que os valores
ideológicos eurocêntricos buscaram combater por meio do Sistema
Colonial. Em Borderlands ela traz suas próprias experiências como mulher
144 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

de fronteira para narrar a história dos até então vencidos, gerando uma
análise crítica dos processos de colonização das Américas.
Sob uma missão de civilizadora, homens europeus, brancos, cis, cris-
tãos, dominaram países localizados nas periferias do mundo, criando uma
identidade coletiva única, que favoreceu o apagamento histórico local, jus-
tificando todo o processo de subalternização e desumanização, que teve
como base, as diferenças étnicas raciais. Tais imbricações usaram da mu-
dez como forma de dominação, ignorando os processos de emergências
dessas linguagens mútuas. A fronteira para Anzaldúa, é um espaço de des-
dobramentos onde diferentes categorias sociais, atuam como dispositivos
que corroboram com as desigualdades e os silenciamentos, colocando o
espaço fronteiriço como um local de relações de poder e exclusão.

Uma fronteira é uma linha divisória, um fino traço ao decorrer de uma borda.
Um território fronteiriço, é um lugar vago e indefinido criado por restos emo-
cionais de uma linha contra natural. Está em um estado constante de
transição. (...) Alí vivem os fronteiriços: os tortos (vesgos), os perversos, os
estranhos (queer), os problemáticos, os vira latas de rua, os mestiços, os de
raça misturada, os meio mortos; em suma, os que cruzam, os que passam por
cima ou atravessam os confins do “normal”. (ANZALDÚA, 2016, p. 42)

O silêncio ao qual estes sujeitos fronteiriços são submetidos, parece


ainda maior quando se amálgama condicionantes opressores, tais como o
gênero e a raça. Para Spivak, o fato de ser indiana, terceiro mundista, pe-
riférica, ainda é mais delicado se somado a variável do gênero: “Se o
discurso subalterno é obliterado, a mulher subalterna encontra-se em uma
posição ainda mais periférica pelo problema subjacente à questão de gê-
nero” (SPIVAK, 2018). As reflexões de Gayatri Spivak sobre essa
impossibilidade de fala das mulheres subalternas, contribuiu para que se
Giselle Perna | 145

compreendesse tais relações desiguais na qual as mulheres são submeti-


das. Ela ainda completa que a “mudez feminina”, favoreceu a negação de
pertencimento aos espaços sociais e as falas que surgem deste. Assim, nas
palavras de Carlos Figueiredo sobre Spivak:

Uma vez posta à margem da sociedade no contexto da produção colonial em


que o homem é o dominante, a mulher subalterna não tem história e não pode
falar, sendo colocada às sombras. A pesquisadora afirma que tal reflexão sobre
a mulher não pode ser reduzida a uma mera questão idealista, uma vez que
ignorar o debate acerca da mulher subalterna seria um gesto apolítico que, ao
longo da história, tem perpetuado o radicalismo masculino. (FIGUEIREDO,
2010, p. 87)

Entretanto, não somente o gênero condicionou a mulher a este lugar


de existência silenciosa. Estruturas como o colonialismo, criaram a cate-
goria raça como forma de inferiorização, resultando no isolamento da
mulher negra, indígena, não branca, reduzindo-as a um corpo inexpres-
sivo. Não por acaso, a mulher colonizada, seria o sujeito mais subalterno
por excelência, tendo seu corpo o primeiro território a ser conquistado e
ocupado pelo colonizador. (BALLESTRIN, 2017) circunscrevendo-as à ru-
brica da inferioridade versus superioridade, do humano e não-humano.
Assim para a teórica Maria Lugones:

As mulheres brancas, apesar da inferioridade em relação aos homens brancos,


geralmente são posicionadas no lado engendrado e civilizado da dicotomia hu-
mano/não humano, enquanto que as mulheres de cor, ocupam o lugar de não
humanos situadas mais perto da natureza e portadoras de uma sexualidade
selvagem, além de adequadas para procriação, trabalho brutal, exploração
e/ou massacre. (LUGONNES, 2018)

E ela continua:
146 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

[...] los indios y negros no podíam ser hombres y mujeres, sino seres sin
género. En tanto bestias se los concebía como sexualmente dimórficos o am-
biguos, sexualmente aberrantes y sin control [...] En tanto bestias, se los trató
como totalmente accesibles sexualmente por el hombre y sexualmente peli-
grosos para la mujer. "Mujer" entonces apunta a europeas burguesas,
reprodutoras de la raza y el capital" (LUGONES, 2012.p.2) 2

Há historicamente uma classificação racial da sociedade que toma


como padrão normativo uma suposta superioridade branca, heterossexual
e eurocêntrica e que se utiliza de tais normatividades como forma de coibir
e invisibilizar aqueles que não se encaixam. Ao desumanizar as mulheres
restringindo-as a corpos selvagens, nega-se a sua existência, e a possível
construção de identidades representativas. (GONZALEZ, 1988, p. 69). Para
Lugones, essa relação dicotômica entre humanos e não humanos, é a
marca da opressão colonial. Ao gênero, pode-se atribuir, de certa forma,
algum reconhecimento de existência humana (ser homem ou mulher), já
a raça, nega o pertencimento de humanidade justificando as atrocidades
sustentadas por tal poder hegemônico e a imposição de silenciamento.

Fêmeas eram julgadas do ponto de vista da compreensão normativa como


“mulheres”, a inversão humana de homens. Desse ponto de vista, pessoas co-
lonizadas tornaram-se machos e fêmeas. Machos tornaram-se não-humanos-
por-não homens, e fêmeas colonizadas tornaram-se não-humanas por-não-
mulheres. Consequentemente, fêmeas colonizadas nunca foram compreendi-
das como, em falta por não serem como-homens, tendo sido convertidas em
viragos. Homens colonizados não eram compreendidos como em falta por não
serem como-mulheres. (LUGONES, 2014, p. 937)

2[...] índios e negros não podiam ser homens e mulheres, mas seres sem gênero. Como bestas, eles foram concebidos
como sexualmente dimórficos ou ambíguos, sexualmente aberrantes e descontrolados ... Como bestas, eles foram
tratados como totalmente acessíveis aos homens e sexualmente perigosos para as mulheres. "Mulher" aponta então
para europeus burgueses, reprodutores de raça e capital "(LUGONES, 2012.p.2)
Giselle Perna | 147

Essa obliteração da condição feminina na sociedade despertou uma


preocupação latente no que concerne às epistemologias dos povos
subalternos. Uma forte resistência inquietante, nasce através dos
movimentos feministas contra-hegemônicos, criados a partir do
pensamento fronteiriço oriundos das zonas periféricas e pós-colonialistas,
como forma de combater o silêncio epistêmico, dando voz a esses corpos
sulidificados, propondo uma reconfiguração identitária. A essa consciência
identitária, para qual Anzaldúa denominou de "Consciencia mestiza", seria
o primeiro passo para a criação de um estilo fronteiriço, capaz de se
justapor as realidades desses espaços, buscando assim, formas de
representação e emancipação intelectual, pautados na crítica ao projeto
moderno eurocêntrico.
Para Anzaldúa, o pensamento ocidental, criou uma categoria
única de "mulher" que guetizou as mulheres de terceiro mundo, racializa-
das, em um espaço físico e social de inexistência, classificando-as como um
"outro" através de uma generificação que as compele como selvagens, se-
xualizadas, não humanas, não domesticáveis, assim ignorando as
diversidades múltiplas culturais da qual pertencem as mulheres do sul. A
intenção seria buscar uma reconstrução identitária das mulheres, suas im-
plicações para a formação das novas subjetividades que afloram dos
sujeitos femininos emergentes dos entre-lugares e dos discursos fronteiri-
ços. A discussão se centra principalmente no modo como essas
subjetividades foram invisibilizadas em função das relações de poder exis-
tentes nesse espaço, engendradas nas opressões concernentes à raça,
gênero, classe e sexualidade.
148 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

O Lugar e a fala da mulher fronteiriça: Anzaldúa e o como pensar a partir da


fronteira

Todo o pensamento subalterno (asiático e latino), foi pautado com


base nas críticas ao eurocentrismo e ao colonialismo acadêmico e intelec-
tual, exercidos pelos centros de produção de conhecimento ocidental.
Como reação, as Teorias do Sul, tinham como eixo principal, a rejeição às
produções teóricas ditas hegemônicas que submeteram os saberes gesta-
dos fora de seus cânones a uma invisibilidade, expropriando-os a qualquer
forma de possibilidade de representação. Tais paradigmas eurocêntricos,
influenciaram, ao longo de quinhentos anos, uma cultura ocidentalista he-
gemônica que inspirou todas as ciências ocidentais sob um ponto de vista
universalista, determinando o lugar das periferias do mundo, frente às es-
truturas de poder. (GROSFOGUEL, 2005)
Em resposta, intelectuais do terceiro mundo, nos lembraram de que
o debate a respeito das subjetividades contemporâneas e suas especificida-
des sobre o processo colonial, centravam-se no Ocidente, criando uma
barreira que dificultava a ascensão de um pensamento oriundo das zonas
periféricas, definindo assim, o mundo em dois blocos: Centro e periferia.
A intenção era substituir o locus do debate, promovendo o que Said e Fa-
non denominaram de Virada Colonial, 3 revertendo assim, essa ideia de
uma cultural monolítica, permitindo uma leitura sobre a colonialidade a
partir do olhar de quem foi colonizado. Essa mudança de locus, possibili-
tou que povos periféricos compreendessem a centralidade da raça e seu
desdobramento, o racismo, como forma de inferioridade, vindo à tona,
todo processo de invisibilidade, violência e silenciamentos ao qual foram

3 A virada pós-colonial protagonizada por Fanon e Said analisa o colonialismo que a partir de sua imposição,
redefiniu as fronteiras do mundo em dois blocos antagônicos: Centro e Periferia. Trata-se de uma missão civilizatória,
onde o Ocidente ao classificar o Oriente como um local onde habitam bárbaros, pessoas exóticas sem qualquer
intelecto, sendo assim aptos para serem domesticados sob a cultura hegemônica ocidental.
Giselle Perna | 149

submetidos. A partir daí, tornou-se possível sentir e pensar o entre-lugar.


Viver o espaço da fronteira com as possibilidades que dela emergem, situ-
ando-a como um lugar epistêmico.
O posicionamento deste grupo de estudos Subalternos, liderado por
Ranajit Guha, propunha então, despojar-se das heranças coloniais recupe-
rando as agências históricas subalternas. Aqui na América Latina, esse
pensamento tomou forte caráter militante, propondo extirpar as forças
coloniais, cuja subordinação havia sido reproduzida através da construção
de uma história oficial que negava participação dos povos que pertenciam
a este espaço, destinando a eles o papel de não civilizados, quase selvagens
incapazes de manifestar qualquer forma cultural e identitária.
Essas raízes históricas criadas a partir do olhar europeu, tencionou
intelectuais a questionar tais propostas e a reivindicar o direito de fala,
estabelecendo um diálogo que saísse de dentro para fora, permitindo re-
tomar propostas teóricas e metodológicas capaz de criar uma
epistemologia pós-colonial. O esforço oriundo do trabalho em conjunto
desses teóricos latinos, gerou um debate em torno do espaço geográfico
SUL-SUL, articulando além de uma reivindicação fragmentada de partici-
pações políticas, uma reflexão sobre propostas teóricas que levassem em
conta as suas próprias imbricações geográficas e históricas, nascendo as-
sim, o pensamento Decolonial, ou a Decolonialidade de Poder.
Articulando em diferentes instâncias, a decolonialidade também in-
centivou pensadoras feministas a criticar o feminismo hegemônico que
criava a partir de uma noção categorizante, a existência de uma única
forma de ser mulher, elencando a cosmogonia patriarcal como única
forma de opressão. Tal visão generalizada do ser "mulher", ignorava por
completo as diversidades e as múltiplas opressões na qual mulheres suli-
difcadas foram expostas, sendo necessário, um movimento que discutisse
150 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

pautas e reivindicações de reconstrução de identidades. Uma identidade


fronteiriça.

Os escritos hegemônicos, colonizam de forma discursiva as heterogeneidades


materiais e históricas das vidas das mulheres de terceiro mundo e por tanto,
produzem e representam um composto singular, a "mulher" de terceiro
mundo, uma imagem construída através do discurso legitimador ocidental.
(MOHANTY 2008)

Na crítica ao feminismo hegemônico, Anzaldúa, assim como todas


pensadoras do Feminismo Decolonial, ofereceu ao debate, aquilo que pa-
recia a solução para os anos de invisibilidade. Tratava-se de um
pensamento crítico de fronteira (MIGNOLO, 2000), uma resposta epistê-
mica ao projeto hegemônico eurocêntrico que vislumbrava redefinir
através de uma retórica emancipatória, as identidades existentes nas fron-
teiras periféricas. Por consequência, as falas desses sujeitos subalternos,
mulheres, chicanas, lésbicas, brancas, judias, terceiro mundistas, que até
então tinham sido esquecidas pela miopia do feminismo branco, tiveram
sua inserção histórica, retomando seu corpo-político, buscando corrigir a
“ferida aberta” que marcou a produção local estruturalmente reprimidas,
sem espaço nas discussões sobre a posição da mulher. (ANZALDÚA, 1999).
Ao problematizar as políticas do feminismo hegemônico, a partir de
um legado intelectual de mulheres negras, indígenas, chicanas, mulheres
que habitam as fronteiras do Sul Global, o Feminismo Decolonial, en-
quanto movimento teórico-metodológico, possibilitou a visibilidade dos
processos de colonialidade e modernidade, cujo o objetivo central era rom-
per com o “epistemicídio”, imposto pelas teorias feministas do norte, sobre
os conhecimentos e saberes oriundos do Sul, que resultaram no apaga-
mento histórico fundamentado numa suposta superioridade endossada
Giselle Perna | 151

pelas relações de poder. Pelas percepções de Espinosa, revisar os estudos


subalternos vai ao encontro da:

(..) necessidade de um feminismo que se nutra dos aportes teóricos da análise


da colonialidade e do racismo - não como fenômeno, mas como episteme in-
trínseca à modernidade e seus projetos libertadores. Um feminismo, então que
seja cúmplice e alimente-se dos movimentos de comunidades autônomas que
no continente efetivam processos de descolonização e restituição de genealo-
gias perdidas, que apontam a possibilidade de outros significados da vida em
comunidade e reorganizam os horizontes já conhecidos e estabelecidos uni-
versalmente. (ESPINOSA, 2012, p. 146)

A raça, o sexo e a cor foram as principais opressões de submissão


dessas mulheres, dentro do sistema que justificava e naturalizava toda a
violência imposta e a sua inferioridade (ESPINOSA, 2012, p. 152). O femi-
nismo decolonial, elencou a raça como a fonte primária da imposição
subalterna, aprisionando as mulheres ao lugar fronteiriço, de onde seus
corpos foram subjugados, sequestrados e vilipendiados através da coloni-
alidade. (LUGONNES, 2018)
Prevendo recuperar o "lugar" e a "fala" a partir da realidade Latino
Americana, problematizando o conceito de raça. (LUGONNES,2018), fe-
ministas decoloniais, ascenderam um pensamento que revertesse a
redução de existência por parte dessas mulheres de cor. O pensar a partir
da fronteira 4, pressupunha criar uma política epistêmica, cujas singulari-
dades étnico, racial, sexual deste sujeito/mulher periférica, coexistissem,
alcançando a representabilidade e consequentemente, instaurar perspec-
tivas de conhecimento como sujeitos de vozes (GROSFOGUEL, 2008).

4 Pensar a partir da fronteira, é defendida por Walter Mignolo, e equivale pensar para além do conceito de
modernidade hegemônica
152 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

O pensamento crítico de fronteira é a resposta epistêmica do subalterno ao


projeto eurocêntrico da modernidade. Ao invés de rejeitarem a modernidade
para se recolherem num absolutismo fundamentalista, as epistemologias de
fronteira subsumem/redefinem a retórica emancipatória da modernidade a
partir das cosmologias e epistemologias do subalterno, localizadas no lado
oprimido e explorado da diferença colonial, rumo a uma luta de libertação
descolonial em prol de um mundo capaz de superar a modernidade eurocen-
trada. Aquilo que o pensamento de fronteira produz é uma
redefinição/subsunção da cidadania e da democracia, dos direitos humanos,
da humanidade e das relações econômicas para lá das definições impostas pela
modernidade europeia. O pensamento de fronteira não é um fundamenta-
lismo antimoderno. É uma resposta transmoderna descolonial do subalterno
perante a modernidade eurocêntrica. (GROSFOGUEL, 2008)

Este discurso crítico fronteiriço, ou “epistemologia fronteriza”


(ANZALDÚA,1999) são tomados como base de um método crítico, pensado
a partir de um lócus (onde o subalterno habita) capaz de neutralizar o dis-
curso hegemônico moderno e pós-colonial, recuperando as vozes e os
corpos de quem habita as fronteiras, tornando esse pensamento (epis-
teme) um campo gerador de saberes e de libertação. Assim, Anzaldúa
prevê que através desse lócus (lugar) seja possível libertar as mulheres
fronteiriças da cosmogonia patriarcal e colonial ao qual foram solapadas
pela cultura moderna e eurocêntrica.

Considerações finais: Resultados de "nuestra charla"

A história da América Latina é caracterizada por diversos conflitos,


que circundam as instâncias políticas, econômicas e culturais. Seu povo foi
colocado numa posição do "outro" selvagem, exótico, indomável, cuja
identidade deveria ser apagada, para que prevalecesse os costumes cultu-
rais ocidentais, alimentado pelas forças imperialistas coloniais que
inviabilizaram a história local.
Giselle Perna | 153

A invenção da América Latina bem como a categoria raça e gênero,


como princípio articulador e organizador da produção e distribuição das
riquezas, somado à razão eurocêntrica de um “eu” absoluto e normativo,
que disseminava um pensamento universal, fazendo surgir esse novo pa-
drão/matriz mundial de poder, que permitiu ao Projeto Moderno
eurocêntrico se tornar hegemônico mundialmente. Esse Projeto Moderno
possibilitou que o povo de Abya Yala, fossem as primeiras vítimas desse
processo de inferiorização, sofrendo com a violência emocional e a dizima-
ção de seus corpos.
As mulheres deste território/fronteira de Abya Yala, sofreram com a
violação de seus corpos e o silenciamento de suas vozes. Ao reivindicar a
recuperação dessas vozes, Anzaldúa, constitui uma nova identidade deco-
lonial de possibilidades múltiplas a partir de seu lugar fronteira (border),
onde linguagens, identidades e costumes híbridos atuaram como fonte de
resistências às matrizes coloniais e criando assim "la mestiza" - "La mes-
tiza é um produto de transferência de valores culturais e espirituais de um
grupo para outro (ANZALDÚA, 1987. p. 705). Ao reivindicar-se "mestiza",
Anzaldúa identifica-se com tal transferência de valores, sendo incapaz de
escolher um lado identitário único em sua construção híbrida, formadas
pelas várias culturas que circulam no espaço da fronteira.

Por que eu sou uma mestiça, continuamente, indo de uma cultura a outra, faço
parte de todas as culturas ao mesmo tempo, alma entre dois mundos, três,
quatro, me desoriento como o contraditório. Estou norteada por todas as vozes
que me falam simultaneamente. (ANZALDÚA, 1987)

Busca-se através desta tomada de consciência narrar as histórias des-


sas mulheres de Abya Yala, que foram omitidas sob a sombra da
colonialidade. Elas desafiam, agora, a normatização colonial de racializa-
ção patriarcal, através de seu “lugar de fala” em seu “lócus” fronteiriço,
154 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

fazendo emergir uma categoria de pensamento: A consciência mestiza de


onde a presença de corpos pensantes nunca se fizeram ausentes. Na nar-
rativa anzalduana, a autora não só se posiciona em seu lugar étnico-racial
/ social / sexual ou de gênero, mas assume uma posição epistemológica
para erigir a “consciência mestiza”, que além de promover uma quebra de
paradigmas, rompe com o epistemicídio que a história dessas mulheres de
fronteira sofreu. (ANZALDÚA, 1999, p. 102).

Já não consentirei que me façam sentir vergonha pelo simples fato de existir.
Terei a minha voz índia, espanhola. Terei a minha língua de serpente: a minha
voz de mulher, minha voz sexual, minha voz poeta. Superarei a tradição do
silêncio (ANZALDÚA, 2007. p. 40)

Na fronteira da exclusão, Anzaldúa busca reclamar uma atitude iden-


titária latina, uma identidade de fronteira na qual foi norteada pelas várias
vozes que vivem neste espaço, sem questionar qualquer purismo identitá-
rio. Aqui cabe o que é plural, o que é mesclado, mestiçado: "Soy un
amasamiento, soy el acto mismo de amasar, de unir y mezclar". Ela não
busca com isso, criar uma teoria, mas mostrar a partir de sua própria vi-
vência, as limitações que anos de dominação colonial e o imperialismo
estadunidense, atuaram como gerador de silenciamentos e inferiorização.

Por causa da cor da minha pele, fui traída; A mulher de pele escura tem sido
silenciada, amordaçada, enjaulada, vinculada à servidão com o casamento, es-
pancada por 300 anos, esterilizada no século XX... Muitas vezes ela desejou
falar, agir, protestar e desafiar (ANZALDÚA, 2012. p. 45)

De certa forma, o pensamento sobre a fronteira, esteve como uma


das pautas tensionadas pelo movimento Decolonial A modernidade/ colo-
nialidade de Mignolo, classificou a fronteira como o local onde o
Giselle Perna | 155

pensamento hegemônico atuou com superioridade, vinculado ao capita-


lismo moderno e ao padrão de poder que se utilizou da racialização dos
povos para se justificar e manter-se.
Nesse sentido, recuperar o “lugar de fala” e o “lócus de Enunciação”
é trazer a experiência, a voz silenciada do sujeito fronteiriço, mas
principalmente das mulheres mestiças, recuperando seus corpos
delimitados pelas fronteiras geográficas e intelectuais. Ao tomar
conhecimento que o simples ato de existir as empurra para uma zona
periférica, é criada a consciência de que seu discurso, também habita na
ordem fronteiriça, situando-o na exterioridade desse sistema-mundo e,
colocando-o na esfera invisível da modernidade. Por conseguinte, retirá-
lo da prisão epistêmica do discurso moderno permite que seja conduzido
uma outra forma de saber, uma outra epistemologia, pautada na inserção
de conceitos opressores como raça, gênero, classe, etnicidade, permitindo
que este saia do locus (lugar) no qual foi criado, ganhando voz.
Assim, o pensamento fronteiriço que nos conduziu ao pensamento
descolonial, também permitiu que as mulheres de Abya Yala, clamarem
por “lucha!” , por existência. O Feminismo Decolonial, que viu na raça e
no gênero as formas de dominação maior, também, viram no patriarcado
um modelo de organização político-social referenciado no homem branco,
heterossexual e cristão. O patriarcado se encontra no cerne das hierar-
quias de gênero, de raça-etnia, sexualidade, dentre outras, que foram
impostas aos povos da América Latina, sobretudo as mulheres de Abya
Yala. Essas hierarquias supracitadas, é que devem ser tensionadas cons-
tantemente como forma de lutas para combater as injustiças sociais. Nesse
sentido, nenhum feminismo que vê no patriarcado uma condição de
opressão, pode renunciar às lutas anti-racistas e anti-classistas.
A nova consciência mestiça de Anzaldúa, crítica acima de tudo os mo-
delos culturais cuja cultura falocêntrica, é imposta às mulheres como
156 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

normatização de uma obediência ao homem. A lutas das mestiças, está em


se desvencilhar dos grilhões patriarcais e das submissões raciais, deixando
aflorar suas identidades reprimidas criando uma nova forma de ser.

A luta da mestiza é, acima de tudo, uma luta feminista. Enquanto los hombres
pensarem que têm que chingar mujeres e uns aos outros para serem homens,
enquanto forem ensinados que são superiores e, portanto, culturalmente fa-
vorecidos em relação a la mujer, enquanto ser uma vieja for motivo de
escárnio, não poderá haver uma cura real de nossas psiques. (ANZALDÚA,
2005, p. 711.)

Defendendo a capacidade de se expressar a partir deste “não-lugar”,


recusando a fronteira como espaço de limitação, a nova mestiça, este su-
jeito- mulher híbrido, onde coexistem indígenas, negras, lésbicas,
chicanas, latinas, compondo uma identidade interseccional, seria para An-
zaldúa, a marca da mulher para o feminismo contemporâneo. Uma
mulher múltipla orgulhosa de sua história e capaz de assumir e ecoar sua
voz cada vez mais alto.

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8

Cultura e imaginário social do Peru dos


anos 1990 e a perspectiva decolonial

Claudia Vargas Machado

Introdução

Esse trabalho pretende fazer uma breve análise da cultura e do ima-


ginário social e político do Peru da década de 1990 e, dentro desse cenário,
dialogar com alguns autores importantes que trazem os conceitos de mul-
ticulturalismo, etnicidade e entender a importância que a perspectiva
decolonial traz sobre o tema. O objetivo é tentar compreender como o país
lidou com uma convulsão social representada por duas frentes: os grupos
guerrilheiros de esquerda e o governo autoritário e violento de direita.
O Peru inicia o ano de 1990 sob o comando de uma figura peculiar,
Alberto Fujimori, político eleito democraticamente, mas exercendo um go-
verno marcado por acusações de corrupção e autoritarismo. Apesar dos
esforços da oposição para chegar a um acordo político a fim de superar os
obstáculos à sua administração, Fujimori e os comandos militares
decidiram resolver esse impasse por meio do chamado "autogolpe" de
abril de 1992, que definiu os militares e natureza militar autoritária do
regime. Mas, ao contrário dos regimes "burocrático-autoritários" do cone
sul, as pressões externas obrigaram o governo resultante do golpe a
assumir uma fachada legal e a aproveitar as várias contingências para
realçar o carácter militar e autoritário do regime para combater os grupos
160 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

guerrilheiros Sendero Luminoso e MRTA 1 e maioria dos seus opositores


políticos.
A década de 1990 é conhecida como o período de início da globaliza-
ção, marcado pela queda do muro de Berlim e o fim do bloco socialista da
União Soviética. Com o fim das ditaduras civis-militares na América do
Sul, agora o mundo “respira uma ideia de liberdade”, tanto política quanto
econômica. Os EUA agora exercem e expandem sua influência por todo o
mundo, sendo o modelo econômico e a referência cultural a ser seguida. É
nesse cenário que as sociedades latino-americanas se encontram, e no
nosso caso em particular, a sociedade peruana. O passado culturalmente
rico do país não é refletido na sociedade atual, a língua incaica e o quéchua
resistem para se manter, ainda que seja nas zonas andinas mais pobres.
Questões étnicas ainda são difíceis de resolver, sobretudo na década de
1990, onde houve muitas mortes provocadas pelo embate entre os grupos
guerrilheiros e pelo grupo paramilitar Colina, chefiado por Vladimir Mon-
tesinos, comandante das Forças Armadas atuando sob as ordens de
Alberto Fujimori.
Para compreender a nossa proposta, torna-se necessário analisar as
contruibuições de diversos autores extremamente importantes à nossa
pesquisa, como Stuart Hall e Philippe Poutignat, os quais são referências
quando o assunto é multiculturalismo e etnicidade; suas contribuições
veremos mais detalhadamente a seguir. Também é importante partimos
do pressuposto de que a literatura pós-colonial anglo-saxônica
compartilha com a abordagem do sistema mundial uma crítica das formas

1
Os grupos denominados guerrilheiros eram organizações de esquerda relevantes no contexto social do país. O
Movimento Revolucionário Túpac Amaru (MRTA) foi criado na metade dos anos 1980, agia em regiões
metropolitanas ao redor de Lima e composto em sua maioria por estudantes universitários. Já o Sendero Luminoso,
criado no fim dos anos 1960 por Abimael Gúzman, teve maior abrangência nas regiões andinas mais pobres e
vulneráveis, cooptando campesinos e comunidades de origens indígena, os quais eram excluídos das políticas sociais.
Ambos tiveram maior ação e repercussão nacional e internacional na década de 90, sendo um dos desafios
enfrentados por Fujimori.
Claudia Vargas Machado | 161

eurocêntricas de conhecimento, desigualdade de gênero, hierarquias


raciais e processos culturais e ideológicos que favorecem a subordinação
da periferia no mundo. No entanto, os estudos culturais e pós-coloniais
negligenciaram que não é possível compreender o capitalismo global sem
levar em conta a maneira como os discursos raciais organizam a população
mundial em uma divisão internacional do trabalho que tem implicações
econômicas diretas: a ocupação de “raças superiores” os cargos mais bem
pagos, enquanto as "inferiores" desempenham os trabalhos mais
coercitivos e com salários mais baixos (CASTRO-GOMEZ et al, 2007).
Na perspectiva decolonial gerida pelo grupo
Modernidade/Colonialidade (uma nova vertente do Grupo Latinoameri-
cano de Estudios Subalternos 2), a cultura está sempre entrelaçada dos
processos da economia política e dela não derivada. Neste sentido, o artigo
de Ballestrin sugere que a identificação e a superação da colonialidade do
poder, do saber e do ser, apresenta-se como um problema desafiador a ser
considerado pela ciência e teoria política estudada no Brasil e na América
Latina como um todo. Sugere ainda que o termo colonial aponta para di-
versas situações de opressão, definidas a partir de fronteiras de gênero,
étnicas ou raciais. Ela aponta que nem todas as situações de opressão são
consequências do colonialismo, ainda que possam ser reforçadas ou ser
indiretamente reproduzidas por ele (exemplos como o patriarcado e a es-
cravidão, que são estruturas mais antigas e profundas que o próprio
colonialismo). Em suma, ainda que não haja colonialismo sem exploração
ou opressão, o inverso nem sempre é verdadeiro (BALLESTRIN, 2013).

2
As origens do grupo podem ser remontadas a década de 1990, nos Estados Unidos. Em 1992, ano de reimpressão
do texto clássico de Anibal Quijano “Colonialidad y modernidad-racionalidad”, um grupo de intelectuais latino-
americanos e americanistas que lá viviam e fundaram o Grupo Latino-Americano dos Estudos Subalternos. Inspirado
principalmente no Grupo Sul-Asiatico dos Estudos Subalternos, o founding statement do grupo foi originalmente
publicado em 1993 na revista Boundary, editada pela Duke University Press. Em 1998, Santiago Castro-Gomez
traduziu o documento para o espanhol como “Manifiesto inaugural del Grupo Latinoamericano de Estudios
Subalternos”. (BALLESTRIN, 2013, p. 94).
162 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

A contribuição dos autores sobre o tema

A etnicidade, definida assim por Poutignat 3, é como um conjunto de


atributos ou traços, como a língua, a religião, os costumes (o que a apro-
xima da noção de cultura) ou a ascendência comum presumida dos
membros (aproximando-se da noção de raça). Ele também explica algu-
mas abordagens sobre a etnicidade como forma de interação social:
processo continuo de dicotomização entre membros e não membros, que-
rendo ser expressa e validada na interação social (POUTIGNAT; STREIFF-
FENART, 1998).
Dentro do esquema teórico abordado pelo autor, destacamos as “Te-
orias da escolha racional”, onde o sujeito é o centro da análise; os grupos
étnicos que se formam quando indivíduos almejam adquirir bens (di-
nheiro, poder), mas que não conseguiriam sozinhos. Para Banton 4, é
preciso maximizar as vantagens e as opções, utilizando as diferenças raci-
ais e culturais para formas grupos e categorias por inclusão/ exclusão e
onde os grupos étnicos são formados por inclusão e as categorias raciais
por exclusão.
Outra teoria de Poutignat que destacamos é a “Teoria instrumenta-
lista e mobilizadora”, ela aponta que, o que identifica as realidades tão
diferentes é que elas se tornam objetos de mobilização de grupos para a
realização de objetivos políticos concretos. Além disso, grupos étnicos ar-
tificialmente criados e mantidos para obter vantagens coletivas (políticas
ou econômicas), são “armas” em um processo de competição, são estraté-
gias individuais ou lutas coletivas. A etnicidade como forma de
solidariedade em resposta à discriminação e a desigualdade, consciência

3
Nessa obra, Poutignat e Streiff-Fenart apresentam através de uma análise crítica como a problemática sociológica
da etnicidade se constitui historicamente.
4
Banton é considerado um dos mais ilustres especialistas britânicos das questões raciais, que desenvolveu um modo
mais completo de possibilidades aplicação da teoria da escolha racional e nas relações raciais e étnicas.
Claudia Vargas Machado | 163

política de grupos que buscam reverter a situação (POUTIGNAT;


STREIFF-FENART, 1998).
A “Teoria do poder político” aponta a diferença entre interesses reais
e imaginários, no papel das elites e politização da etnicidade, esta não se
dá por estratégias individuais, mas por interesses de um grupo particular
que manipula a lealdade étnica em proveito próprio. Aqui se encaixa as
ações do grupo Sendero Luminoso, pois ele entra como uma alternativa
para uma parte da sociedade esquecida e desprezada pelo poder público,
criando escolas e redes de apoio entre as comunidades rurais andinas 5.
Uma vez que houve uma boa adesão dessa população aos seus propósitos,
o grupo guerrilheiro começa a agir com mais autoritarismo e depois com
o terror, fazendo julgamentos e execuções sumárias daqueles que pode-
riam ser delatores das atividades do grupo ou ameaças em sua guerra
contra as Forças Armadas de Alberto Fujimori.
Por último, “As teorias neomarxistas” mostram que divisões étnicas
e raciais tem sua função de preencher o sistema capitalista com uma força
de trabalho barata e mão de obra reserva; antagonismo entre imigrados
(fragilidades tornam esse grupo mão de obra barata) e nacionais. Aqui há
uma relação direta com os grupos guerrilheiros de esquerda, principal-
mente o Sendero Luminoso, que baseia sua doutrina em princípios
maoístas. Para seu líder, Abimael Gúzman, apenas a revolução socialista
seria a salvação da sociedade peruana. Ou seja, cooptar as populações mais
pobres das zonas rurais andinas, além de integrar a população de descen-
dência indígena dessas regiões, formar uma sociedade consciente de sua
exploração e de caráter revolucionária e impedir o Estado de utilizar essa
massa como mão de obra barata a seu favor.

5
Para o Sendero Luminoso, a guerra popular devia desenvolver-se em dois âmbitos: no campo, que era a prioridade,
e as cidades, as quais seriam atacadas uma vez obtidas a vitória no campo.
164 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

A partir das ideias proposta no trabalho de Poutignat, percebe-se que


há elementos desses conceitos na sociedade peruana, ainda que seja de
uma forma fragmentada. Podemos fazer uma aproximação da ideia de et-
nicidade, assim como a ideia de identidade e multiculturalismo de Hall.
Em um dos primeiros capítulos da obra Da diáspora – identidades e
mediações, Stuart Hall 6 fala sobre a questão do multiculturalismo, expli-
cando que esse termo é atualmente universalizado, “contudo, sua
proliferação não contribuiu para estabilizar ou esclarecer seu significado”.
Muito já foi dito sobre o que vem a ser multiculturalismo, porém o autor
ressalta o conceito ainda é uma fórmula inacabada. Ele aponta que, na falta
de conceitos menos complexos que nos possibilitem refletir sobre o pro-
blema, não resta alternativa senão continuar utilizando e interrogando
esse termo, multiculturalismo apresenta algumas dificuldades específicas.
Denomina uma variedade de articulações, ideais e práticas sociais (HALL,
2002).
Sobre o multiculturalismo, ele vai destacar o que seu conceito signi-
fica: “substantivo” - refere-se às estratégias e políticas adotadas para
governar ou administrar problemas e multiplicidade gerados pelas socie-
dades múltiplas.

“Reconhecida à diferença, é possível compreendermos que cada identidade é


própria- ela se constitui na hibridização, no movimento de articulação, nunca,
uma forma acabada, completa, sempre provisória tendo em vista os vários en-
contros que causam choque e entrechoques das culturas. Na verdade, o
‘multiculturalismo’ não é uma doutrina, não caracteriza uma estratégia polí-
tica e não representa um estado de coisas já alcançado. Não é uma forma
disfarçada de endossar algum estado ideal ou utópico. Assim como há distintas
sociedades multiculturais, assim também há ‘multiculturalismos’ bastante di-
versos.” (HALL, 2002, p.53).

6
Hall foi um importante teórico cultural jamaicano, que atuou no Reino Unido. Teve importante contribuição para
o estudo da cultura e dos meios de comunicação, assim como para o debate político.
Claudia Vargas Machado | 165

Numa outra passagem do texto o autor realça as fragilidades e limi-


tações das sociedades diante o colonialismo e as consequências no pós-
colonialismo. Para ele, o colonialismo tentou inserir o colonizado no
“tempo homogêneo vazio” da modernidade, apontando para o fato de que
o sistema colonial marcou para sempre as sociedades dominadas, foram
muitas as experiências de dominação em cada território que o colonizador
aportava. A diversidade era pretexto para a imposição de valores, de cos-
tumes culturais; a diferença se constitui, nesses casos, em ameaça e deixa
de ser uma possibilidade de crescimento.
Segundo Hall, a própria sucessão de termos que foram cunhados para
se referir ao colonialismo, demonstra a intensidade com a qual uma im-
portante bagagem política, conceitual, epistemológica estava atrelada com
que cada um deve ser compreendido discursivamente: colonização, impe-
rialismo, neocolonial, dependência, Terceiro Mundo.
Para ele:

“[...] a colonização reconfigurou o terreno de tal maneira que, a própria ideia


de um mundo composto por identidades isoladas, por outras culturas e eco-
nomias separadas e autossuficientes tem que ceder a uma variedade de
paradigmas destinados a captar essas formas distintas de relacionamento, in-
terconexão e descontinuidade. Essa foi a forma evidente de disseminação e
condensação que a colonização colocou em jogo” (HALL apud PEÑA AYMARA,
2015, p.117).

Hall salienta ainda que, apesar da variação em muitos aspectos, de


uma parte a outra parte do globo, no que se refere a sujeição da coloniza-
ção, seus efeitos se materializam no pós-colonial, no campo de ação onde
até os dias atuais, convivem e se defrontam os diferentes sujeitos e classes
sociais.
166 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

O colonialismo se refere a um momento histórico específico, com-


plexo e diferenciado, mas foi também uma forma de encenar ou narrar a
história e seu valor descritivo, sempre foi estruturado no interior de um
paradigma teórico e definidor distinto. Hall explicita que, o desafio está em
compreender esses termos, em suas contradições internas e as relações
que construíram historicamente (HALL, 2002).
A colonialidade do poder foi constituída como um padrão de domina-
ção a partir do qual as hierarquias econômicas, sociais, intersubjetivas e
políticas foram estabelecidas entre identidades europeias e não europeias.
Aníbal Quijano 7, por exemplo, mostrou que a dominação e exploração
econômica do Norte sobre o Sul se baseia em uma estrutura etno-racial de
longa duração, constituída desde o século XVI pelos europeus versus não
europeu (BALLESTRIN, 2013). O trabalho do Grupo de Estudos Subalter-
nos, uma organização interdisciplinar de intelectuais sul-asiáticos dirigida
por Ranajit Guha 8, inspirou-nos a fundar um projeto semelhante dedicado
ao estudo do subalterno na América Latina. Em 1998, Santiago Castro-
Gomez traduziu o documento para o espanhol como “Manifiesto inaugural
del Grupo Latinoamericano de Estudios Subalternos”. Assim, a América
Latina foi assim inserida no debate pós-colonial:

O atual desmantelamento dos regimes autoritários na América Latina, o final


do comunismo e o consequente deslocamento dos projetos revolucionários, os
processos de democratização, as novas dinâmicas criadas pelo efeito dos meios

7
Aníbal Quijano (novembro de 1928, Yungay, Peru/ 31 de maio de 2018, Peru) foi um sociólogo e pensador humanista
peruano, desenvolveu o conceito de "colonialidade do poder", criando uma importante pesquisa para o entendimento
da formação da modernidade, A partir de uma análise histórica de formação do capitalismo com base no colonialismo
e sua expansão à globalização do século XXI. In: http://www.ihu.unisinos.br/188-noticias/noticias-2018/579677-o-
legado-de-anibal-quijano-para-o-pensamento-latino-americano-descolonizado
8
Ranajit Guha (23 de maio de 1922/ Barisal, Bangladesh), historiador indiano, foi uma figura bastante significativa
para os estudos subalternos, sendo o primeiro a declarar sua fundação, assim como também foi editor dos Subaltern
Studies: Writings on South Asian History - na década de 1980. Seu trabalho sobre as revoltas camponesas é
considerado um clássico sobre o assunto. In: file:///D:/documentos/Downloads/19197-Resultados%20de
%20pesquisa-61138-1-10-20191106.pdf
Claudia Vargas Machado | 167

de comunicação de massa e a nova ordem econômica transnacional: todos es-


ses são processos que convidam a buscar novas formas de pensar e de atuar
politicamente. Por sua vez, a mudança na redefinição das esferas política e
cultural na América Latina durante os anos recentes levou a vários intelectuais
da região a revisar epistemologias previamente estabelecidas nas ciências so-
ciais e humanidades. A tendencia geral para uma democratização outorga
prioridade a uma reconceitualização do pluralismo e das condições de subal-
ternidade no interior das sociedades plurais. (Grupo Latinoamericano de
Estudios Subalternos, 1998, p. 70).

Mignolo denuncia o “imperialismo” dos estudos culturais, pós-colo-


niais e subalternos que não realizaram uma ruptura adequada com
autores eurocêntricos (MIGNOLO, 1998). Para ele, o grupo dos latinos su-
balternos não deveria se espelhar na resposta indiana ao colonialismo, já
que a trajetória da América Latina de dominação e resistência estava ela
própria oculta no debate. A história do continente para o desenvolvimento
do capitalismo mundial fora diferenciada, sendo a primeira a sofrer a vio-
lência do esquema colonial/imperial moderno. Além disso, os latino-
americanos migrantes possuem outras relações de colonialidade por parte
do novo império estadunidense, mesmo tendo sido uma colônia nas Amé-
ricas (BALLESTRIN, 2013).

Outras visões sobre o tema

Para Peña Aymara, o “jogo da identidade” é muito bem detalhado, a


ideia de qual identidade prevalece e a forma como se identificam. Essa
interpretação .resgata três pontos importantes e discutíveis. A primeira é
que nenhuma identidade singular, em termos de classe social, poderia
alinhar todas as diferentes identidades em uma única ou abrangente. A
segunda refere-se ao surgimento de novas identidades, pertencentes às
bases políticas definidas pelos movimentos sociais (feminismo, lutas
negras, movimentos de libertação nacional, movimentos antinucleares e
168 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

ecológicos). E o terceiro que contribuirá para a análise da identidade


cultural do Partido Comunista do Peru - Sendero Luminoso, onde se pode
compreender que as identidades eram contraditórias. Eles se cruzaram ou
se deslocavam. Assim, contradizem os dois fóruns, na sociedade,
atravessando grupos políticos estabelecidos, quanto dentro da cabeça de
cada indivíduo (PEÑA AYMARA, 2015).
Partindo da ideia de contradição representada pelo estudo da própria
identidade cultural, pode-se argumentar que à medida que os sistemas de
significado e representação cultural se multiplicam, há um confronto de
várias identidades que poderiam ser identificadas, pelo menos
temporariamente. Portanto, Hall diz que:

[...] dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes


direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente
deslocadas [...] A identidade plenamente unificada, completa, segura e coe-
rente é uma fantasia (PEÑA AYMARA apud HALL, 2015, p.52-53).

Tendo analisado a identidade cultural do Sendero Luminoso, vale


lembrar as propostas de Stuart Hall (1992) quando nos dizem que são
contraditórias, notamos que no caso em que estudamos nossa própria
identidade através de sua exposta ideologia marxista-leninista-maoísta em
seus escritos contradiz o sentido que os demais sujeitos lhe dão, ou seja, a
noção de terrorista é muito cunhada, após as ações violentas deste grupo.
Portanto, essas contradições atuam tanto dentro quanto fora da mesma,
mas que muitas vezes não foram percebidas por elas, mas assumidas como
suas formas de identificação necessárias para a guerra popular. Essa
contradição que a própria identidade cultural senderista representa
significa que, como disse Hall, ela é continuamente deslocalizada, pois [...]
uma identidade totalmente unificada, completa, segura e coerente é uma
fantasia (HALL, 1992) Isso indica a complexidade que representa sua
Claudia Vargas Machado | 169

análise, que não se esgota em conclusões, mas sim em aproximações a esse


respeito.
Motta fala de cultura como um conjunto de valores, tradições, práti-
cas e representações políticas, partilhado por determinado grupo humano,
que expressa/constrói identidade coletiva e fornece leituras comuns do
passado, assim como fornece inspiração para projetos políticos direciona-
dos ao futuro. A afirmação da relevância do fator cultural, entretanto, não
implica imaginar que todos os integrantes do grupo se comportem de
modo uniforme, como se fossem movidos por uma força atávica [...] em-
bora cultura política implique relações sociais, valores e imaginários
estruturados, bem enraizados na sociedade, isso não significa a impossibi-
lidade de mudança. Ele afirma que:

Os sujeitos não são peças inertes diante de estruturas sociais perenes. O campo
da política supõe o protagonismo de agentes que fazem escolhas: há sempre
margem para a opção entre diferentes caminhos de ação. (MOTTA, 2015,
p.113).

Para Rojas, a questão indígena não foi levada em conta, no Peru da


décade 1990, nem por fujimori nem pelos senderistas. Abimael Gúzman
não viu indígenas quéchuas em Ayacucho, apenas camponeses pobres,
médios e ricos, como nos manuais de Mao sobre o campo chinês. Seguiu a
linha marxista da Europa central, convenceu-se a modernizar os
camponeses, a ensinar-lhes o espanhol e a cultura moderna proposta pelos
indigenistas mexicanos e peruanos. Com essas ideias, os senderistas
encerraram o projeto de Educação Bilíngue da Universidade de San
Marcos. O etnocídio dos povos indígenas Quechua e Ashaninka não teria
sido possível se os senderistas tivessem tomado como próprias as ideias
170 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

de Mariátegui 9 e se, tivessem considerado os povos indígenas como


culturais, linguísticos, políticos, nações e países com todos os direitos no o
território peruano (ROJAS, 2012). Essa desconsideração é muito crítica, se
pensarmos que a quantidade de etnias indígenas do país é em torno de
24% da população, em torno de 7 milhões 10.

Agumas questões para considerar

Nota-se que a crítica decolonial, tem sua origem no debate sobre as


matrizes de poder geradas pela colonização nos campos do conhecimento,
da cultura, das representações e em sua constante reestruturação, ao longo
das diferentes ondas de modernização e ocidentalização pelas quais a Amé-
rica Latina passou. Isso permite traçar outra genealogia do argumento
pós-colonial, que também haveria de incorporar a reflexão dos movimen-
tos sociais:

A genealogia global do pensamento decolonial (realmente outra em relação


com a genealogia da teoria pós-colonial) até Mahatma Gandhi, W. E. B. Dubois,
Juan Carlos Mariategui, Amilcar Cabral, Aime Cesaire, Frantz Fanon, Fausto
Reinaga, Vine Deloria Jr., Rigoberta Menchu, Gloria Anzaldua, o movimento
Sem Terras no Brasil, os zapatistas em Chiapas, os movimentos indígenas e
afros na Bolívia, Equador e Colômbia, o Fórum Social Mundial e o Fórum So-
cial das Américas. A genealogia do pensamento decolonial e planetária e não
se limita a indivíduos, mas incorpora nos movimentos sociais, o qual nos re-
mete aos movimentos sociais indígenas e afros. (MIGNOLO, 2008, p. 258).

9
Jornalista e intelectual marxista peruano, nasceu em 14 de junho de 1894, filho de mãe mestiça de origem indígena
e pai branco. Na década de 1920, se aproxima dos movimentos estudantis e do movimento operário limenho,
apoiando suas greves. Exilado na Itália, assiste de perto a ascensão do fascismo, participará de encontros e conversas
com intelectuais como Benedetto Croce. Retorna ao Peru e tenta aplicar, aos poucos o que viu e aprendeu;
compreender o Peru e a “Indo-América” por dentro. Considerado o primeiro marxista latino-americano, aproxima-
se ainda mais do movimento operári, e publica em 1926 a revista Amauta. Funda o Partido Socialista Peruano e
participa ativamente da criação da CGTP (Confederación General de Trabajadores Del Perú). Escreveu em vida: La
Escena Contemporánea (1925) e Siete Ensayos de Interpretación de la Realidad Peruana (1928). In:
https://bvps.fiocruz.br/vhl/interpretes/jose-carlos-mariategui/
10
Dados obtidos em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/ em 24/06/2021.
Claudia Vargas Machado | 171

O pensamento decolonial é uma elaboração posterior aquilo que em


outro lugar Mignolo chamou de “pensamento fronteiriço”. O pensamento
fronteiriço resiste as cinco ideologias da modernidade: cristianismo, libe-
ralismo, marxismo, conservadorismo e colonialismo. O autor reconhece,
no entanto, a importância de autores que no contexto da modernidade eu-
rocêntrica denunciaram o sofrimento humano. A América Latina, no que
se refere ao giro decolonial, o primeiro incorporou a questão indígena -
escola revitalizada pelo vice-presidente e sociólogo boliviano Alvaro Garcia
Linera, a legitimidade de Gramsci residiria no seu lugar de fala desde a
periferia da própria Europa.
Para Mignolo:

O pensamento fronteiriço, desde a perspectiva da subalternidade colonial, e


um pensamento que não pode ignorar o pensamento da modernidade, mas
que não pode tampouco subjugar-se a ele, ainda que tal pensamento moderno
seja de esquerda ou progressista [...] o espaço de onde o pensamento foi ne-
gado pelo pensamento da modernidade, de esquerda ou de direita.
(MIGNOLO, 2003, p. 52).

Essas considerações ligadas à divisão internacional do trabalho e à


racialização geradas pelos dispositivos audiovisuais e como efeito da mo-
dernidade/colonialidade, abre-se um novo campo de investigação da
cultura visual na América Latina Frente à crítica eurocêntrica ao disposi-
tivo, permite estabelecer as diferentes hierarquias raciais, de classe, de
gênero, geográficas e espirituais estabelecidas por meio da cultura visual
moderno/colonial global (LÉON, 2019).

Considerações finais

Seguindo a lógica das colonialidades do poder e do saber, a invenção


tecnológica, a inovação cultural, a criação de modelos narrativos e a pro-
dução industrial ficam do lado das sociedades euro-americanas do
172 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

primeiro mundo; enquanto isso, a aplicação tecnológica, as franquias cul-


turais, a adaptação de modelos e o consumo midiático permanecem do
lado das populações periféricas do planeta. Isso fica perceptível ao analisar
um país como o Peru, de cultura extremamente rica, a qual seria ampla-
mente difundida e copiada se estivesse situado na Europa, por exemplo.
No entanto, sua grandiosidade e riqueza cultural ficam em segundo plano
por ser um “país periférico” e pela sua pobreza econômica, inúmeras de-
sigualdades sociais, Estado fraco e corrupto, além de sistemas sociais que
não abrangem a ampla maioria da sociedade, principalmente as regiões
camponesas e indígenas mais pobres, além de aparatos de justiça muito
falhos. A raça, como uma construção geopolítica da colonialidade do poder,
começa a ser associada com a diferença visível personificada na pele. É por
isso que Frantz Fanon associa a violência e a discriminação raciais ao olhar
do homem branco europeu que reduz a diferença cultural para o “esquema
epidérmico racial” (LÉON, 2019).
Conforme observa Hall, a complexidade envolvida em estudar
identidade para testá-la e a impossibilidade de fornecer afirmações
conclusivas sobre o tema é uma atividade árdua. Podemos estabelecer um
diálogo com a proposta pós-colonial em que o lugar de enunciação é
importante a partir do contexto em que escreve e do ambiente que o
rodeia. Ele complementa dizendo que:

[...] o próprio conceito com o qual estamos lidando, ‘identidade’, é demasiada-


mente complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco compreendido na
ciência social contemporânea para ser definitivamente posto à prova. Como
ocorre com muitos outros fenômenos sociais, é impossível oferecer afirmações
conclusivas ou fazer julgamentos seguros sobre as alegações e proposições teó-
ricas que estão sendo apresentadas [...]. (HALL,1992, p.101).
Claudia Vargas Machado | 173

É necessario perceber como as ações de sujeitos individuais e


coletivos vão impactar diretamente a sociadade como um todo. A
identidade cultural do Sendero Luminoso é considerada contraditória
devido às identificações que os atores externos lhe dão como a própria
identificação do grupo. Ao mesmo tempo, Alberto Fujimori, com suas
ações políticas e economicas (ora mais democrática e voltada para o bem
estar de seu povo, ora mais autoritária e com traços de corrupção)
implementou na década de 1990, um modo de governar que é refletido até
hoje, o chamado “fujimorismo”. A forma de governar de Fujimori apre-
senta várias falhas: ele não conseguiu controlar o déficit econômico no
país, o que fez a crise financeira do final dos anos 1980 se estender até os
anos até os dias atuais; ele não teve um governo estável politicamente, sua
atuação foi de avanço e recuo, idas e vindas de novos partidos políticos a
cada eleição disputada, governou autoritariamente, fechando o Congresso
e reabrindo-o sob a sua chefia; por fim, além de não conseguir controlar
os conflitos internos, iniciados na década anterior, Fujimori agravou ainda
mais o quadro social ao dar às Forças Armadas um poder excepcional. Sob
o comando de Vladimir Montesinos, o exército travou uma batalha san-
grenta o Sendero Luminoso e MRTA, contabilizando um total de mais de
69.000 vítimas, tornando necessário a criação uma Comissão da Verdade
para averiguar os fatos que ocorreram nesse período, tanto por parte do
governo quanto pelos grupos guerrilheiros.
Ainda que se perceba como os sujeitos são autores de sua própria
história, mas é perceptível a influencias que os acontecimentos políticos,
econômicos e socias produzem numa determinada sociedade. A cultura
que se deriva de tais acontecimentos são peças fundamentais para enten-
der o quer leva o sujeito individual a agir de determinada forma (por
exemplo, as ações de Alberto Fujimori ao adotar políticas econômicas que
174 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

trouxe muita pobreza para populações já vulneráveis) ou de sujeitos cole-


tivos (como o grupo Sendero Luminoso, ao adotar princípios políticos de
esquerda para basear sua doutrina e impor àqueles que seguiam). De certa
forma, os dois tipos de sujeitos impuseram uma realidade social, que in-
fluenciou diretamente no imaginário cultural do país. É inegável a
influência dos aspectos da pós-colonização não só no Peru, mas na Amé-
rica Latina como um todo. O continente sul americano, considerado de
Terceiro Mundo, é onde se concentra a massa que absorve tanto os pro-
dutos quanto as ideias advindas dos países de primeiro mundo, no caso a
Europa e principalmente os Estados Unidos da América.
Esse trabalhou abordou os conceitos de Etnicidade e Multicultura-
lismo, ainda que não de uma maneira não tão profunda, mas através
destes, tentamos compreender o porquê do chamado “giro decolonial”
permitiu articular uma série de entradas conceituais de “heterogeneidade
histórico-estrutural” da cultura na América Latina e assumir as tarefas
pendentes deixadas pelos movimentos anti-imperialistas ao longo do sé-
culo XX. Para os teóricos decoloniais, a modernidade é inaugurada no
século XV com a colonização da América e não no XVIII com a Revolução
Francesa e a Revolução Industrial. E porque questionam a própria lógica
pela qual a modernidade foi pensada e ainda é pensada como moderni-
dade." (MIGNOLO, 2000).
A questão do imaginário cultural latino-americano é assunto de vá-
rios trabalhos e estudos, mas percebe-se que, apesar de ser diretamente
influenciada pelas grandes potências, ela ainda possui uma face de resis-
tência, tanto ao preservar as características históricas que possui- e isso
pode ser considerado positivo- mas também no sentido de manter suas
posições autoritárias (talvez resquícios dos vários anos de ditaduras mili-
tares), as quais impedem o continente a evoluir no sentido de construir
Claudia Vargas Machado | 175

uma versão melhor da sua identidade cultural e imaginário social, o que


seria positivo para as próximas gerações.

Referências

BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência


Política, nº11. Brasília, maio - agosto de 2013, pp. 89-117.

BANTON, Michael. Racial and Ethinic Competition. Cambridge University Press. 1983.

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diversida epistémica más allá del capitalismo global/ Bogotá: Siglo del Hombre
Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y
Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007.

FERNANDES, Jean Lucas Macedo. Autoritarismo competitivo na América Latina: o caso do


Peru sob o governo Alberto Fujimori (1990-2000). Revista Habitus: Revista de
Graduação em Ciências Sociais do IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, v.13, n.1, p.88-101,
15/jul/2015. Semestral. Disponível em: <www.habitus.ifcs.ufrj.br>.

GRUPO LATINOAMERICANO DE ESTUDIOS SUBALTERNOS: “Manifiesto inaugural”, em


CASTRO-GOMEZ, Santiago & MENDIETA, Eduardo (orgs). Teorías sin disciplina:
latinoamericanismo, poscolonialidad y globalización en debate. Mexico: Miguel Angel
Porrua, 1998.

HALL, Stuart. Da diáspora- identidades e mediações. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

_______ A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 1992.

LÉON, Christian. Imagem, mídias e telecolonialidade: rumo a uma crítica decolonial dos
estudos visuais. In: Epistemologias do Sul, v. 3, n. 1, p. 58-73, 2019.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Cultura política e ditadura: um debate teórico e historiográfico.
Tempo e Argumento, Florianópolis, v.10, n.23, p. 109-137, 2018.

PEÑA AYMARA, Shyrley Tatiana. La identidad cultural de Sendero Luminoso y la represión


de los Estados Unidos durante el gobierno de Alberto Fujimori (1990-2000). 92p.
Trabajo de Conclusión de Curso (Relaciones Internacionales e Integración).
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176 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

POUTIGNAT, Philippe. STREIFF, J. Teorias da etnicidade. São Paulo: Fundação Editora da


Unesp, 1998.

ROJAS, Rodrigo Montoya. Perú: ¿Pensamiento Gonzalo? Artículo para el Diario la Primera,
columna: Navegar Río arriba, 7 de marzo, 2012.
9

Reflexões sobre o multiculturalismo na FRETILIN em


1974, período da descolonização do território Timorense

Bianca Obetine Magnus

Introdução sobre o Timor-Leste

Alguns anos atras, tive a inesquecível oportunidade de ler a obra “Ori-


entalismo: o Oriente como invenção do Ocidente” de Edward Said. A partir
da leitura e de debates sobre a obra em uma disciplina de História da Ásia
na graduação, surgiu o meu interesse sobre a Ásia. A leitura da obra de Said
despertou grande curiosidade sobre uma história que, para mim, ainda não
tinha sido contada sem o olhar orientalista. Ao ter acesso a uma bibliografia
que escapasse da perspectiva orientalista me deparei com um Oriente que
não mais podia ser visto como algo único e todo igual. Encontrei uma histó-
ria significativamente instigante e aparentemente mais real, sem fantasias
ou imaginários preconceituosos, e também menos eurocêntrica.
Em sua obra publicada pela primeira vez em 1978, Said (2007, p. 27),
resumidamente, apresenta o Orientalismo como um “modo de abordar o
Oriente que tem como fundamento o lugar especial do Oriente na experi-
encia ocidental europeia”. Ao longo da obra propõe uma reflexão acerca
da “rede de interesses aplicados” (2007, p. 30) ao Oriente pelo Ocidente e
de que forma isso se configurou uma invenção do primeiro pelo segundo.
A obra de Said é muito mais ampla do que trago nessas duas frases acima,
e consequentemente possui uma importância que não pode ser ignorada.
A obra de Said abre espaço para novas discussões e produções, e tam-
bém para o surgimento de novas perspectivas de estudos sobre o Oriente,
a partir de uma leitura ou releitura mais adequada sobre o mesmo. É a
178 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

partir dessa nova perspectiva, que surge com Said, para estudar os terri-
tórios e países do Oriente que pretendo me enquadrar. Na tentativa de
identificar uma possível familiaridade de algum território da Ásia com o
Brasil, identifiquei o Timor-Leste, que também foi colônia portuguesa e
partilha com o Brasil uma herança lusófona comum. Além disso, o Brasil
possuiu uma relação importante na década de 1990 com o Timor-Leste,
em um período em que o território estava sob ocupação da Indonésia e a
questão da libertação do Timor ganhou espaço mundial, o Brasil foi soli-
dário da causa da independência timorense 1 (SANT’ANNA, 1997).
Ademais, ao buscar bibliografias no Brasil que tratem sobre a história
do Timor-Leste, contatei uma significativa escassez de produções. Tendo
em vista que o Timor-Leste conquistou sua independência definitiva em
2002, sendo hoje um país soberano, e que possui uma significativa relação
com o Brasil, se faz necessário novos estudos e debates sobre o território.
Dito isso, caso possivelmente exista desconhecimento sobre o Timor-
Leste, apresentarei um breve resumo histórico sobre o território.
O território do atual Timor-Leste, localizado no Sudeste Asiático, pró-
ximo a Indonésia e a Australia, passa a ter o contato com europeus a partir
do século XVI com a chegada de navegadores portugueses na busca por
sândalo. A colonização efetiva do território se dá no século seguinte, nesse
contexto há conflitos internos com a população nativa e também com os
holandeses que possuíam interesses na região (SILVA, 2000).
Já no século XX, no contexto da Segunda Guerra Mundial, o Timor é
invadido pelos japoneses, que permaneceram até setembro de 1945
deixando marcas de destruição e mortes 2. Neste mesmo ano a Indonésia

1
Na obra de Sant’Anna (1997), o autor traz uma série de cartas e mensagens que demonstram a solidariedade de
brasileiros (incluindo o então presidente do Brasil na época, Fernando Henrique Cardoso) a causa timorense pela
libertação. A relação entre Timor-Leste e Brasil nesse período da década de 1990, quando a questão timorense ganha
voz mundialmente, necessita ainda de maior aprofundamento em futuros outros estudos.
2
Estimam-se o número de 40 mil timorenses mortos no período da ocupação japonesa (BICCA, 2011).
Bianca Obetine Magnus | 179

conquista sua independência da Holanda e anexa à parte ocidental da ilha


de Timor ao seu território, permanecendo sob controle português a parte
oriental (BICCA, 2011).
No contexto de um movimento anticolonialista internacional na dé-
cada de 1950 Portugal passa a sofrer pressões em relação as suas colônias.
Em 1955, ao tornar-se membro das Nações Unidas, que estipulava o prin-
cípio da autodeterminação dos povos, o governo português, na prática,
nada fez para encaminhar a região a autodeterminação. Apenas a partir
da Revolução dos Cravos, em 1974, os timorenses passam a vislumbrar a
possibilidade de um futuro que não fosse a colonização (SILVA, 2000).
Inicia em 1974 o processo de descolonização do território. Logo após
a Revolução dos Cravos, começam a surgir os primeiros movimentos po-
líticos timorenses com o objetivo de discutir as possibilidades de futuro
para a região. Nesse contexto, é fundando a Associação Social Democrata
Timorense (ASDT) inicialmente a única que defendia a independência do
Timor-Leste (CUNHA, 2001).
Mais tarde, no mesmo ano de sua fundação, a ASDT passaria se cha-
mar Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente (FRETILIN), a
partir de algumas mudanças dentro do movimento que resultaram na ra-
dicalização do mesmo (RAMOS-HORTA, 1994). Observa-se que o primeiro
ano do movimento é o período no qual a FRETILIN busca se afirmar como
um movimento político forte dentro do Timor-Leste.
Já em 1975, a FRETILIN tem que lidar com a ameaça cada vez mais
eminente da Indonésia, que interferia no território buscando a anexação.
Mesmo que em 28 de novembro de 1975, a FRETILIN tenha proclamado a
independência da República Democrática do Timor-Leste, a Indonésia, em
7 de dezembro do mesmo ano, invade o território timorense e por lá per-
manece até 1999 (CUNHA, 2001).
180 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

É para esse contexto de descolonização, no ano de 1974, que foco a


análise sobre as questões multiculturais nas quais a FRETILIN terá que
lidar. Com o objetivo de propor uma reflexão sobre o multiculturalismo e
como a FRETILIN trata essa questão, no ano de 1974, momento no qual o
movimento está se formando e se afirmando para a população. Com um
propósito de tratar sobre o tema através de uma nova perspectiva dos Es-
tudos Culturais e do trabalho de Stuart Hall, que visa romper com a visão
eurocêntrica, como também faz Said.

Sobre o Multiculturalismo

As questões sobre o multiculturalismo estão inseridas em um debate


amplo na sociedade contemporânea, sendo debatido não apenas dentro
das realidades das grandes potências, mas também dentro do Terceiro
Mundo e no contexto pós-colonial e de descolonização. E é para esse último
cenário que dirijo a análise sobre o multicultural e o multiculturalismo,
especificamente no caso do Timor-Leste, sob a visão do estudo de Stuart
Hall sobre a questão, pretendendo assim deslocar “o foco histórico da Eu-
ropa moderna para as periferias globais.” (SOVIK, 2015, p. 173).
Para tratar sobre as questões multiculturais no caso a ser analisado,
utilizo Stuart Hall e seu trabalho acerca do multicultural inserido no Estu-
dos Culturais. Através de suas vivencias pessoais, Hall passa a refletir
sobre as questões presentes em sua obra. Sovik (2015, p 163) destaca a
importância da trajetória pessoal de Hall no desenvolvimento de sua obra:

Se considerar a obra e não a vida de intelectuais tem o intuito de entender


melhor o que eles dizem, a exceção de Stuart Hall se deve a ele mesmo visibi-
lizar o processo e as condições ou determinações de suas reflexões. Seu
pensamento é intrinsecamente contextualizado [...] É incontornável, então,
entender Hall a partir de suas raízes caribenhas e sua dupla condição diaspó-
rica: de afrodescendente no Caribe, de caribenho e depois negro na Grã-
Bretanha.
Bianca Obetine Magnus | 181

Através de sua trajetória de vida, Hall refletiu e teorizou buscando


dar respostas a problemas que existiam na sociedade. A partir de sua con-
dição de imigrante e todas as consequências que sofreu nesse contexto,
como o racismo, Hall, usando o termo “diaspórico” “[...] encontrou uma
maneira de representar não só a negociação entre as identidades atribuída
e assumida, mas a conciliação com a tensão dos diaspóricos, sempre um
pouco fora de lugar mas ainda adaptando e assim produzindo cultura para
sobreviver” (SOVIK, 2015, p. 173).
Ao falar sobre o multiculturalismo e a diáspora, dando foco para as
“periferias globais”, Hall “Não festeja a diversidade cultural da periferia,
como tantos arautos da globalização da cultura, mas a compreende como
produto da recusa e persistência de povos longe dos centros metropolita-
nos do poder.” (SOVIK, 2015, p. 173). Dessa forma, Hall vai ao encontro de
estudos e perspectivas que buscam romper com uma visão preconceituosa
e orientalista, por esse motivo ele é utilizado para o presente estudo.
Stuart Hall em sua obra Da Diáspora, debate a “A questão do Multi-
culturalismo” inicialmente diferenciando o multicultural do
multiculturalismo para discutir a aplicação de políticas multiculturais. Hall
apresenta o problema da heterogeneidade de tais termos, e em sua discus-
são é interessante observar a questão do multiculturalismo aplicada a
territórios que foram colonizados. No caso do presente ensaio, pretende-
se aplicar a questão multicultural apresentada por Hall no contexto de des-
colonização do Timor-Leste. Onde o movimento político FRETILIN, na sua
luta pela independência do território, apresenta sua forma de lidar com as
questões multiculturais da sociedade timorense.
Para Hall (2003, p.52), o multicultural significa um termo qualifica-
tivo, no qual “descreve as características sociais e os problemas de
governabilidade apresentados por qualquer sociedade na qual diferentes
182 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

comunidades culturais convivem em tentam construir uma vida em co-


mum”. Já o multiculturalismo, sendo um substantivo, refere-se as
“estratégias e políticas adotadas para governar ou administrar problemas
de diversidade e multiplicidade gerados pelas sociedades multiculturais”
(HALL, 2003, p. 52). Os dois termos para o autor são interdependentes,
sendo impossível separá-los. A partir de tais definições, podemos refletir
sobre o caso timorense.
A FRETILIN foi o único movimento formado no território que defen-
dia a independência do mesmo 3. Devido a essa postura da FRETILIN,
coube ao movimento preocupar-se com as questões de significativa diver-
sidade étnica presentes no território associados com as consequências da
colonização portuguesa no âmbito cultural, visando a formação de um Es-
tado independente.
Dito isso, é importante analisarmos como a FRETILIN, enquanto um
partido que visa a independência do território como um Estado, lida com
as questões multiculturais presentes no território. “Quais as características
multiculturais presentes no território que a FRETILIN reconhece?” e
“Quais as suas políticas multiculturalistas para o território timorense?”
são as questões que pretendo refletir nesse breve estudo.
Para isso, em um primeiro momento é necessário expor as ideias
de Hall para as questões do multiculturalismo e depois apresentar o caso
do Timor-Leste dentro da visão da FRETILIN no período da descoloniza-
ção.

3
Inicialmente a FRETILIN foi o único movimento que defendia a independência. Posteriormente, no ano de 1975,
outro movimento, a UDT, se coligou com a FRETILIN pela causa da independência devido a ameaça da ocupação da
vizinha Indonésia. No entanto, a FRETILIN manteve durante todo período da descolonização a defesa da
independência do território (RAMOS-HORTA, 1994).
Bianca Obetine Magnus | 183

O multiculturalismo na FRETILIN e a questão do multiculturalismo em


Stuart Hall

Para Hall (2003, p.52), o multiculturalismo é algo complexo e hete-


rogêneo, não podendo ser reduzida a “uma singularidade formal”, que
poderia resultar em uma doutrina única. É então “uma série de processos
e estratégias políticas sempre inacabados” (HALL, 2003, p. 53) e podem
ser diversos. Para exemplificar sua fala, Hall elenca diversos “tipos” de
multiculturalismo.
O tipo conservador busca a “assimilação da diferença as tradições e
costumes da maioria” (HALL, 2003, p.53); o liberal busca a integração dos
diferentes grupos rapidamente, tolerando práticas culturais particulares
no domínio provado; o pluralista dentro de uma ordem política comuni-
tária avalia as diferenças grupais para conceder direitos aos grupos
diferentes; o comercial por sua vez afirma que se as distinções forem re-
conhecidas publicamente os problemas das diferenças vão ser resolvidos
no consumo privado; o corporativo tenta administrar as diferenças da
maioria, com foco no interesse do centro; e por último o revolucionário
“enfoca o poder, o privilegio, a hierarquia das opressões e os movimentos
de resistência” (HALL, 2003, p. 53).
Tratando especificamente sobre os momentos de descolonização, da
queda do imperialismo europeu e o surgimento de novos Estados multi-
culturais, Hall (2003, p. 56) alerta para a complexidade presente nesse
contexto, esses novos Estados4:

[...] continuam a refletir suas condições anteriores de existência sob o coloni-


alismo. Esses novos estados são relativamente frágeis, do ponto de vista

4
O caso timorense no período da descolonização não resultara na formação de um Estado-nação como diz Hall, a
FRETILIN consegue proclamar a independência no final de 1975, porém, poucos dias após sobre uma invasão por
parte da Indonésia que ocupa o lugar até a década de 1990. No entanto, é importante observar a fragilidade do
contexto do surgimento desses novos Estados. O Timor-Leste pode não se configurar com uma Estado-nação nesse
período, mas precisa encarar essa realidade no contexto pós-colonial.
184 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

econômico e militar. Muitos não possuem uma sociedade civil desenvolvida.


[...] Governam populações com uma variedade de tradições étnicas, culturais
ou religiosas. As culturas nativas, deslocadas, senão destruídas pelo colonia-
lismo, não são inclusivas a pondo de fornecer a base para uma nova cultura
nacional ou cívica. Somam-se a essas dificuldades a pobreza generalizada e o
subdesenvolvimento [...].

Ainda nesse contexto do período pós-colonial, Hall (2003, p. 56)


afirma: “O movimento da colonização aos tempos pós-coloniais não im-
plica que os problemas do colonialismo foram resolvidos ou sucedidos por
uma época livre de conflitos”. Dessa forma, mesmo com a conquista da
independência, o período colonial continuará ecoando dentro do contexto
social e cultural. Essa realidade do pós-colonial, ou seja, a ausência da ad-
ministração e do poder colonial, a FRETILIN não lida na prática no período
de descolonização proposto por esse estudo, mas aqui é importante anali-
sar como o partido encara a presença colonial e as questões multiculturais
vislumbrando a possibilidade da libertação.
Outro ponto importante levantado por Hall (2003, p. 59) para ques-
tão do multiculturalismo é a globalização e os efeitos no âmbito
econômico. O autor afirma que no contexto pós-colonial

[...] a globalização é uma novidade contraditória. Seus circuitos econômicos,


financeiros e culturais são orientados para o Ocidente e dominados pelos Es-
tados Unidos. Ideologicamente, é governada por um neoliberalismo global que
rapidamente se torna o senso comum de nossa época. Sua tendência cultural
dominante é a homogeneização.

Sobre isso, o caso da FRETILIN se relaciona pelo reconhecimento do


partido em busca sua posição econômica dentro do contexto multicultural
existente. Principalmente quando comparado a Indonésia que busca a ane-
xação do território exibindo sua economia como uma forma de conquistar as
lideranças em favor da integração do Timor-Leste ao seu próprio território.
Bianca Obetine Magnus | 185

Esses são alguns dos pontos levantados por Stuart Hall que podem
ser aplicados ao contexto específico do Timor-Leste e da FRETILIN. A se-
guir, tratarei especificamente sobre esses pontos aplicados ao caso da
FRETILIN, que se configura um movimento que busca a independência do
território timorense e que possui uma diversidade étnica e cultural signi-
ficativa de povos nativos, mas que também precisa lidar com as
consequências no âmbito cultural da colonização portuguesa.

A questão do multiculturalismo na FRETILIN

Para tratar sobre a FRETILIN é importante, em um primeiro mo-


mento, contextualizá-la no período da descolonização. A ASDT/FRETILIN
foi fundada em 20 de maio de 1974, poucos dias após a Revolução dos Cra-
vos 5. Inicialmente chamada de ASDT, o movimento pretendia a
independência, estava alinhado a Social Democracia e seus fundadores fa-
ziam parte da elite timorense. Inicialmente, segundo Ramos-Horta (1994),
um dos fundadores do movimento, o grande objetivo da ASDT era a inde-
pendência. Seus relatos demostram que a ASDT passa por uma fase de
transição ao longo de 1974 até se alinharem mais à esquerda, seguindo
uma doutrina marxista 6.
Alguns meses após a fundação do movimento, a ASDT muda o nome
e passa a se chamar FRETILIN, em um momento que se discutia a neces-
sidade de o movimento torna-se mais amplo, uma frente ampla. Pouco
tempo depois, chegam a Díli estudantes timorenses que estavam em Lis-
boa e formavam um grupo de estudiosos intelectuais de esquerda para

5
A partir da Revolução dos Cravos e o novo regime que surge em Portugal, a descolonização dos territórios
administrados por Portugal entra em pauta, e consequentemente inicia-se as providencias para realizar os processos
de descolonização (GALDINO, 2012).
6
Vários autores citam que a ASDT/FRETILIN estava alinhada a doutrina socialista/marxista: Lima (2002, p.182)
afirma que a ASDT era “Seguidora da doutrina socialista.”, Jardine (1997, p.28) escreve que a “ASDT advogava ‘as
doutrinas universais do socialismo e da democracia.”. É discutível a doutrina que estava presente na ASDT/FRETILIN
no início, há necessidade de mais estudos que tratem sobre essa questão.
186 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

levar a FRETILIN “lições de política” (RAMOS-HORTA, 1994, p. 98). Esse


grupo, segundo Ramos-Horta, foi responsável pela radicalização da
FRETILIN associado ao marxismo/socialismo.
Após esse período de formação da FRETILIN, da qual algumas in-
fluências foram sendo articuladas pelo movimento, em dezembro de 1974,
o partido lança o seu programa. E é a partir dele que farei a reflexão prin-
cipal sobre a questão do multiculturalismo, já que é o um documento
oficial lançando pela FRETILIN, no qual constam suas propostas para um
Timor-Leste independente. No entanto, também citarem outros documen-
tos que vão ao encontro da proposta de analisar as questões
multiculturalismo presente na FRETILIN.
Antes de citar diretamente os documentos da FRETILIN, é impor-
tante ressaltar que o Timor-Leste é composto por uma diversidade étnica
significativa. E há na bibliografia e em documentações o reconhecimento
dessa diversidade.
A própria administração portuguesa reconhecia essa presença étnica
e cultural diversificada no território. Como demonstram em uma publica-
ção da Agência Geral do Ultramar no ano de 1970:

Costumes, crenças, modos de vida e técnicas, veiculados por falares de raízes


diferentes, sublinham a diversidade de tipos humanos encontrados e dão no-
tícia das múltiplas culturas que, no decorrer de milhares de anos, se forma
sobrepondo e assimilando. [...] Portugueses metropolitanos e africanos de An-
gola e Moçambique, chineses, etc., vieram enriquecer o variado e assaz
complexo caleidoscópio das etnias timorenses. Timor afirma assim eloquente-
mente que Portugal é bem uma Nação multirracial.

Não cabe aqui debater a questão multicultural no período colonial,


mas é interessante perceber como a diversidade étnica e cultural é nítida
e reconhecida no território.
Bianca Obetine Magnus | 187

Para elucidar ainda mais essa diversidade trago afirmações de Ser-


rano e Waldman (1997, p.30):

Não há um tipo ‘timorense’ homogêneo. Do ponto de vista antropológico, os


timorenses diferem enormemente entre si. Sem excluir os traços comuns a
todas estas populações, no domínio dos idiomas, da organização social e polí-
tica, do mundo da produção econômica e dos aparatos tecnológicos estamos
diante de um universo crivado de alto a baixo por grande heterogeneidade.

Aos autores enumeram 16 grupos etnolinguísticos, e ainda afirma a


dificuldade que encontrou o colonizador em homogeneizar a diversidade
cultural timorense:

A perpetuação desta diversidade foi, sem dúvida alguma, um mérito não-pre-


meditado da presença colonial portuguesa, que a manteve tanto com a
finalidade de consolidar e de afiançar seu domínio, com também foi resultante
da escassa inserção alcançada pelo colonizador no país, que nunca reuniu con-
dições de homogeneizar culturalmente o Timor Oriental. (SERRANO;
WALDMAN, 1997, p.31).

É importante frisar essa realidade timorense de diversidade étnica e


cultural, pois esse é um aspecto que é reconhecido também pela FRETILIN,
e encontra-se nos documentos. Na primeira edição do jornal lançado pelo
movimento (ainda chamado de ASDT, nesse momento), ao explanar críti-
cas a educação colonial e defender uma educação revolucionária para o
território, observa-se afirmações como há “nítido menosprezo pelos dife-
rentes dialectos existentes na Colônia (em número de 32
aproximadamente)”, citam “tétum, macassae, bunak, mambae, etc., etc.”,
e continuam “Outrotanto concerne ao folclore e cultura de cada localidade
uma vez que poderiam organizar-se e aperfeiçoar-se através da escrita na
própria língua de todas as respectivas manifestações.” (NACROMA, p. 4).
188 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

Vale aqui ressaltar que, o Nacroma é publicado em 16 de agosto de


1974, ou seja, são as primeiras ações e publicações do movimento, que se
encontra no início do seu desenvolvimento. Nesse momento, a
ASDT/FRETILIN, dá destaque a valorização das línguas maternas presen-
tes no território. Já o Programa do Partido, lançado no final de 1974,
aponta para uma direção diferente, vale destacar aqui que nesse momento
a FRETILIN havia se radicalizado como aponta Ramos-Horta (1994).
No conteúdo do Programa, é interessante destacar que o documento
é escrito em duas línguas: o português e o tétum 7. O território timorense
possui uma grande diversidade de idiomas, no entanto, o tétum se faz a
língua veicular. Sobre esse idioma é importante ressaltar que seu ensino
“foi promovido pelos missionários e pela administração colonial. Em te-
tum, os poetas e oradores mauberes vertem a poesia tradicional e os feitos
do passado, constituindo um ‘idioma de unidade nacional’” (SERRANO;
WALDMAN, 1997, p.34).
A questão do uso do português é interessante e diferente da forma
exposta no Nacroma (1974), a FRETILIN justifica seu uso por considera-
rem o tétum uma língua que não avançou, mesmo que seja falada, ela “não
pode acompanhar a evolução que, desde então, se processou em todo
mundo” (FRETILIN, 1974, p.21). O movimento defende que a língua se
mantenha e que para isso é necessário que se realizem estudos para que
se adote a língua como oficial. No entanto, é interessante a postura em
aceitar a língua portuguesa: “E, por facilidade, escolhemos o Português por
já ser falado na nossa terra” (FRETILIN, 1974, p.21).
Não apenas se pretende o português para a escrita do Programa, uma
das propostas é também utilizar o português como língua oficial 8 em um

7
Atualmente, ambas são língua oficial do país (ALBUQUERQUE, 2010).
8
O que de fato aconteceu posteriormente.
Bianca Obetine Magnus | 189

primeiro momento. Esse ato significa também aceitar um elemento da cul-


tura colonial e conceber a relação existente entre a cultura portuguesa com
a timorense (diversa) pela FRETILIN, sendo assim, demonstra como o mo-
vimento lida com a cultura do poder colonial, incorporando-a a própria.
Dentro do Programa do Partido, observamos o reconhecimento da
FRETILIN sobre o contexto cultural diverso do Timor. No entanto, já no
início do Programa, ao reconhecer essa diversidade o partido afirma que
há necessidade de uma união de todo o povo em prol da independência.
Dessa forma, a FRETILIN defende em primeiro lugar a independência, a
exemplo:

É uma Frente porque ela é contra o divisionismo. A experiencia dos fracassos


dos nossos antepassados na sua luta de libertação (Camenasse, Cová, Cotu-
baba, Lacló, Ulmera, Manufahi e Viqueque) ensina-nos que, neste momento, é
a UNIDADE de todos os anti-colonialistas sem qualquer distinção étnica, de
credo religioso, de tendencia política, de sexo e de categoria social (FRETILIN,
1974, p.4).

É necessário que o país primeiramente conquiste a independência


para depois discutir os direitos e interesses dos povos (FRETILIN, 1974).
Nesse caso, a FRETILIN defende a unidade por constatar que a adminis-
tração colonial se aproveita das diferenças de grupos étnicos para dominar
com mais facilidade o território, algumas vezes instigando conflitos entre
os grupos distintos e buscando salientar as diferenças entre eles
(FRETILIN, 1974). Essas afirmações do movimento demostram nova-
mente a forma como lidavam com as questões multiculturais e a relação
com o poder colonial.
A FRETILIN, refere-se a cultura do povo do Timor, no singular, suge-
rindo assim a união do povo, nesse ponto a diversidade cultural e seu
reconhecimento fica em segundo plano. As propostas feitas pela FRETILIN
190 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

dirigem-se ao povo como unidade, ao povo de Timor. No item que trata


sobre a educação e cultura a FRETILIN (1974) afirma:

[...] eliminação progressiva e total do ensino e cultura colonialista e sua subs-


tituição por um ensino ao serviço do povo e pela cultura do povo de Timor-
Leste enriquecida com todos os valores da cultura universal ao serviço do pro-
gresso dos povos. [...] Protecção e desenvolvimento da cultura do povo. Estudo
do Tétum e outras Línguas locais. Desenvolvimento da literatura e arte dos
diversos grupos étnicos. Intercâmbio cultural com os povos de todo o mundo
para enriquecimento da nossa cultura [...] Liberdade de culto para todos os
cidadãos.

No âmbito econômico, a FRETILIN defende que os interesses devem


estar voltados para dentro, diminuindo a dependência do exterior e desen-
volvimento uma economia que se preocupe primeiramente com a
demanda interna e os interesses internos, em segundo plano fica a expor-
tação. Assim como no âmbito da educação que deve ser voltada para
valorização do povo, rompendo com a educação colonial através de cam-
panhas de alfabetização (FRETILIN, 1974), que foram realizadas para
ensinar o tétum (SERRANO; WALDMAN, 1997).
Isso indica a preocupação do movimento em buscar a unidade pela
independência. Constata-se por fim que essa era a grande preocupação do
movimento no período de 1974, momento em que a FRETILIN está inici-
ando seus trabalhos e buscando se afirmar para a população, levando a
mensagem de união como a saída para a independência, onde deve-se su-
perar as diferenças étnicas e culturais.

Considerações finais

A FRETILIN se apresenta relacionada com a questão do multicultu-


ralismo de forma complexa, como de fato é e afirmou Hall. De fato, a
FRETILIN precisa lidar com um contexto complexo presente no território
Bianca Obetine Magnus | 191

timorense. A variedade de tradições étnicas e culturais é um desafio para


FRETILIN.
É nítido o interesse do movimento em unir o povo, deixando em se-
gundo plano as políticas multiculturais para lidar com a questão da
diversidade étnica e cultural, em prol da emergência da independência.
Para o partido, deve-se, em primeiro lugar conquistá-la para depois discu-
tir as questões multiculturais.
No entanto, com essa atitude, acaba indo ao encontro da ideia de bus-
car uma “homogeneização”. Um exemplo disso é o próprio uso da língua
portuguesa, houve o reconhecimento de que esse seria um fator em co-
mum de todos os povos culturalmente diferentes no Timor-Leste, e isso
acabou se fixando para além da proposta de utilizar a língua portuguesa
apenas em um primeiro momento. Atualmente, o português é uma das
línguas oficiais do país, assim como o tétum, que foi o idioma ensinado
pelas campanhas de alfabetização da FRETILIN no período da descoloni-
zação.
Isso demonstra a complexidade de se lidar com culturas, principal-
mente quando visa uma união, o multiculturalismo torna-se ainda mais
complexo, torna-se ainda mais heterogêneo. A FRETILIN se volta para o
povo timorense de fato, buscando justamente se diferenciar e se valorizar
sobre o outro estrangeiro, seja Portugal, Indonésia ou as potencias mun-
diais. No entanto, ao mesmo tempo, não valoriza as diversidades internas,
pelo argumento de que há necessidade da união enquanto um povo para
lutar pela independência, despertar as diferenças resultaria no enfraque-
cimento da luta pela independência. Se respeita a diferença, mas ela deve
ficar em segundo plano pela causa maior da independência.

Referências

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192 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

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BICCA, Alessandro. A diferença entre os iguais. 2011. Tese (Doutorado em Antropologia


Social) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.

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Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) - Programa de Pós-graduação
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SOVIK, Liv. A trajetória intelectual de Stuart Hall: As liberdades complexas do pensar.


Revista do Centro de Pesquisa e Formação, nov. 2017.
10

Uma escaramuça e suas percepções tuteladoras

Leonardo Birnfeld Kurtz

Introdução: os competidores pela tutela

A tutela é uma forma de exercer um poder dominador, cujo intuito é


controlar, nesse caso, os indígenas. Este controle aspira ser totalitário,
busca identificar, nomear e delimitar os segmentos sociais que são incapa-
zes de viver a vida cívica dentro de um padrão civilizatório. Através dessas
ações que organizam o conhecimento sobre o dominado, tem-se o objetivo
de controlar e/ou regrar o ir e vir, a cultura, a religião, as leis e inclusive
língua. Todos os elementos que fizerem composição à cultura e, conse-
quentemente a identidade do grupo deve ser colocada no escopo da tutela.
O exercício desse poder está agregado a uma noção paternalista, na qual
um agente assume o papel de guia de alguém que é incapaz de chegar a
um objetivo determinado pelo próprio dominador, no período estudado
neste trabalho, o progresso para a integração ao mundo civilizado em de-
trimento da barbárie (Lima, 1998;2021; Oliveira 2000; Rocha, 1996). Um
exemplo desta noção é a interpretação do indígena como criança, visto a
sua pureza e inocência (AURELI, 1963).
Ainda que o Estado brasileiro com suas instituições ocupa um grande
espaço no exercício deste poder, deve-se lembrar que as ações tutelares
abrangem também toda a sociedade, especialmente quando esta reverbera
as representações e apoia ações com o intuito de dominar (LIMA, 1998;
2021). Podemos exemplificar este campo ampliado com a grande im-
prensa, as inciativas missioneiras como a missão salesiana do Pe. Chovelon
e as bandeiras privadas como a Piratininga, que aqui será tratada, e a
Leonardo Birnfeld Kurtz | 195

Anhanguera 1. Pode-se dizer que o processo de operação deste poder co-


meça com a colonização portuguesa e a ideia de assumir todo um território
com suas respectivas populações, assim como os esforços para promover
a catequese. Este poder ainda se faz presente, ainda que com diferenças,
através de um vocabulário jurídico específico, a delimitação de reservas e
uma série de regulamentações que coordenam um processo de integração
nacional (Lima, 1998;2021; Oliveira 2000; Rocha, 1996).
Em relação às atividades de identificação, nomeação e delimitação
encontramos importantes conceitos que são aplicados para tornar estas
populações inteligíveis ao dominador. Antes de abordar raça e etnia, é im-
portante tratar de ideias que operam antes da aplicação destes conceitos.
Uma representação 2 central é a de sertão, termo valorativo que opera atra-
vés de noções dicotômicas como civilização e barbárie, litoral e interior,
natureza e cultura, a dádiva e o perigo, conhecido e desconhecido, entre
outras. Ao denominar de forma generalizante um grande espaço e, por
corolário seus habitantes sertanejos, caboclos e indígenas (na década de
30 o sertão “abrigaria” os sertões nordestinos, mato-grossenses e amazô-
nicos), também se cria um local a se conquistar e, para tal, torna-se
necessário conhecer. A criação de arquétipos, descrições de paisagens, in-
cursões de exploração, entre outras atividades tiveram esse intuito: dar
sentido a um espaço criado que se faz presente/ausente através de repre-
sentações (Amado 1995, Moraes, 2003; Vicentini, 1998; 2007).
O indígena, como tipo social, é criado e associado a arquétipos. Ao
mesmo tempo que se fala de uma índole indígena, também se diferencia
os grupos através de seus traços físicos e culturais e quanto a sua belicosi-
dade. O sertanista, escritor e jornalista Willy Aureli, o chefe da Bandeira

1
Para maiores detalhes em relação a este grupo: MURARI, Luciana. No rumo dos sertões inexplorados: a aventura
da Bandeira Anhanguera de São Paulo à Serra do Roncador (1937). Revista História. São Paulo: n. 179, p. 1-29, 2020.
2
Representação entendida aqui através de Chartier (2002; 2011).
196 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

Piratininga, em seu livro “Biu Marrandu” (1963), nos oferece um interes-


sante exemplo do que está disposto neste trabalho:

Eu já tive a oportunidade de dizer que no fundo a índole da maioria do gentio


brasílico é boa. Acontece que esse sentimento nem sempre aflora e somente
pode ser sondado em determinadas ocasiões. Particularmente eu gosto do ín-
dio. Sempre o considerei uma criança. Uma grande criança, com todas as
qualidade e defeitos inerentes aos petizes [...] O ambiente que o cerca influi
grandemente sobre sua índole. As tribos mais belicosas vivem no recesso das
florestas ou nos descampados dos cerrados. As mais “humanas” tem o seu
“habitat” às margens dos grandes rios, onde tudo é luz, tudo resplandece
(AURELI, 1963, p. 68-69).

Fazer contato com os indígenas e “pacificar” o sertão são objetivos


necessários para levar o processo civilizatório do interior a cabo. O padre
Chovelon, da Missão Salesiana, em uma carta ao presidente Vargas em
1938, explicita uma relação direta entre pacificar e aproveitar as riquezas
do Brasil:

Realmente o Rio das Mortes percorre uma zona riquíssima de campinas e ma-
tas, próprias para lavoura e criação de gado. O povoamento depende tão só da
pacificação dos índios Xavante que até agora fazem o terror dos moradores
das vizinhanças pelas suas correrias e ataques traiçoeiros. Daí percorre a ne-
cessidade urgente de amparar a Missão Salesiana que já tem obtido um
encontro amistoso, afim de favorecer-lhes os meios de uma penetração mais
eficaz, tendendo ao aldeamento e educação da tribo Xavante, abrindo assim
esta imensa zona entre os Rios Xingu e Araguaia aos progressos da nossa civi-
lização.
É, pois, obra eminentemente patrística, e por isto não duvido que V. Ex.o, cujas
vistas estão lançadas para este Oeste tão futuroso e de grandes reservas para
o Brasil, saiba compreender o alcance desta avançada pacífica e conquistadora
(LACHNITT, 2017, p.122).
Leonardo Birnfeld Kurtz | 197

Raça e Etnia podem ser entendidas como a forma como se reconhe-


ceu e dividiu o indígena, de forma simultânea que se representava seu
espaço geográfico usualmente com a ideia do paraíso e da inocência, po-
rém ao mesmo tempo com os perigos do “inferno verde” e dos espaços
áridos. A raça não existe biologicamente, ela é um constructo político e
social que assume um discurso racista, cujo intuito é organizar, através de
características da fisionomia, um sistema de poder socioeconômico, de ex-
ploração e exclusão (HALL, 2003). Desta forma através da compreensão
de raça que se identifica e inventa o indígena, ao mesmo tempo que planeja
um espaço para este. Nos planos positivistas de Rondon, por exemplo, os
indígenas deveriam ser convertidos para a civilização, guiados à uma in-
tegração na qual fariam parte da comunidade nacional e policiariam as
fronteiras. Parte da construção da nação brasileira era dependente da in-
tegração desta população (CAMARGO; LIMA, 2005; JUNIOR, 2011).
Rondon, ele mesmo descendente de indígenas, habita um espaço de hibri-
dismo (HALL, 2003), mas ao mesmo tempo de tutelador.
A etnia é a fundação da identidade a partir de diferenças regionais,
urbano-rurais, culturais e religiosas. A etnicidade, como discurso, põe em
operação essas diferenças em uma constante alteridade, cujo intuito é
variado (HALL, 2003). Em relação aos indígenas a etnicidade é evocada
para realizar a diferenciação deste tipo social criado com os grupos que
estão historicamente formados. Quando Aureli comenta do ambiente
como modificador do comportamento, fala-se da diferença entre os
Carajás, mais humanos, e os Chavantes, mais belicosos, portanto, de suas
etnias diferenciadas. A etnicidade é um discurso que depende,
especialmente quanto a tutela dos indígenas, da construção de
conhecimento. Torna-se necessário estudar a cultura de grupos que
realmente se diferenciam, porém estas diferenças de língua e costumes são
operacionalizas para levar a cabo um processo de dominação. A descrição
198 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

antropológica, biológica e a fundamentação das interpretações em fatos


compõem a forma de legitimação do discurso (LIMA, 1998; 2012;
OLIVEIRA, 2000).
Membro do Conselho de Fiscalização de Expedições Científicas, a an-
tropóloga Heloísa Alberto Torres, em 1938, ao votar contra a expedição da
Bandeira Piratininga para a Serra do Roncador baseia seu argumento cri-
ticando a ausência de vínculos da bandeira com instituições universitárias
e cientista. Encerra seu parecer da seguinte forma:

Para terminar: não se pretende aqui advogar a segurança e defesa dos expedi-
cionários que empreendem a excursão deliberadamente e com conhecimento
de causa, mas a segurança e defesa dos nossos selvícolas, actualmente quase
que ao desamparo dos poderes públicos e tendo a seu favor pouco mais que o
apoio dos homens de cultura e de sentimentos humanitários para garantir-
lhes o uso pleno das terras que lhes pertencem. Sou de parecer que se negue
a licença solicitada. Rio de Janeiro 28 de abril de 1938 – Heloísa Alberto Tor-
res.” O conselho, entretanto, deu a licença. Agora, porém, os factos parecem
dar razão à Senhora Heloísa Alberto Torres. (A Gazeta, 1938, p.2).

O que aqui se designa “competidores pela tutela” são as diferentes


iniciativas que exerciam, em algum nível, o poder tutelar, mas não neces-
sariamente convergiam nos meios. Estes foram escolhidos por conta de
suas manifestações na imprensa em 1938, como resposta a um embate
entre Bandeira Piratininga e Chavantes, assim convergiram-se discursos
acerca de qual seria a política indigenista ideal. Neste artigo serão tratados
A Bandeira Piratininga, o SPI, o Marechal Rondon e o Conselho de Fiscali-
zação de Expedições Científicas (CFE).
Leonardo Birnfeld Kurtz | 199

A escaramuça e a legitimidade

A Bandeira Piratininga foi um grupo de expedição privado liderado


pelo jornalista, escritor e sertanista Willy Aureli (1908-1968), que empre-
endeu um total de oito expedições de 1937 à 1953 na região da
“mesopotâmia” dos rios Araguaia e Mortes, atuando, predominantemente,
no estado do Mato Grosso e na fronteira com Goiás. Os objetivos das dife-
rentes expedições podem ser identificados através das palavras de Aureli
em uma de suas obras literárias:

Era meu escopo único topar com os índios chavantes, estudar-lhes, dentro das
possibilidades, índole e costumes, verificar a existência da Serra do Roncador,
vasculhar um território eternamente discutido e desconhecido e trazer à cole-
tividade a reportarem que prometera ao partir. (AURELI, 1939, p. 12).

A composição do grupo era heterogênea e contou com uma média de


trinta integrantes. Entre eles havia um médico, um geólogo, um etnógrafo,
um entomólogo, um filmador, peões e um operador de rádio. A forma de
organização e arrecadação de fundos da Bandeira em questão se asseme-
lha muito a de outra, a Bandeira Anhanguera. Willy Aureli, paulista
nascido em Santos, usava seus contatos no mundo jornalístico do período
para garantir financiamento e integrantes para os empreendimentos pe-
rigosos e longos. Inclusive, fora redator da Folha da Noite e chefe de
reportagens policiais na Folha de São Paulo entre os anos das primeiras
expedições. A partir dos jornais, Aureli comunicava seu desejo de iniciar
as expedições, o que resultava em donativos (armas, comidas e ferramen-
tas) e integrantes interessados. De acordo com Aureli, foi necessário filtrar
a lista de interessados por conta do grande número de inscritos. Além
disso, informou que a Bandeira Piratininga não gostaria de receber doa-
ções em dinheiro, mas sim, de materiais. O financiamento monetário se
deu pelo patrocínio das “Folhas”, da editora Cultura Brasileira e de um
200 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

investimento do governo do estado de São Paulo, no valor de vinte mil réis


(atualmente por volta de dois mil reais) (Folha da Noite, 1937).
Mesmo não alinhados a um projeto institucional, os aventureiros re-
presentam essa face do poder tutelar mais ampla, ao praticamente invadir
o território indígena, caçar animais e, posteriormente, trazer indígenas
para visitar o Rio de Janeiro e São Paulo. Outro ponto neste quesito foi a
atividade literária de Aureli, escrevendo 15 livros de literatura sertaneja,
nos quais ao mesmo tempo que reverberou as representações do sertão e
dos indígenas de sua época, as transmitiu para seus leitores. Desta forma
encontramos um exemplo clássico dos escritores deste tipo de literatura,
autores “de fora” para um público consumidor também “de fora”.
No dia 11 de agosto de 1938, Aureli narra que ele e seus 14 homens
encontram um grupo de jangadas Chavantes no Rio das Mortes, indicando
um aldeamento próximo. No dia seguinte, a partir das 6:40 da manhã, o
grupo se organiza a pé para fazer contato. A 500 metros do assentamento,
Aureli narra os momentos antes do evento crítico:

Empunhamos os presentes: facas, collares, bugigangas vistosas. A ordem é a


seguinte: ao penetrarmos na aldeia, levantaremos os braços, agitaremos os
capacetes de lona e gritaremos: “amigos... amigos”. Nenhuma arma deverá ser
exhibida, mas todos devem estar de olhos bem abertos e sempre unidos.
-Olha as flechas!
Viro-me para mandá-lo calar e vejo-o cambalear e cahir. Uma flexa atirada
com força inaudita, alcança-o nas costas [...].
Compreenderam o poder de nossas armas e sabem que se quisermos usá-las
contra eles, acontecerá a mesma coisa que aconteceu ao cão. Aproveitamos a
trégua para nos afastarmos o mais possível (AURELI, 1939, p. 147-152)

Combina-se essa narrativa com a reportagem do Jornal A Noite, com


informações recebidas pela Folha da Noite, baseada nos fatos vindos no
dia seguinte (13/08) pelo rádio da Bandeira:
Leonardo Birnfeld Kurtz | 201

Romperam caminho na mataria densa por mais algum tempo, quando, subi-
tamente, depararam numeroso contingente de selvícolas armados de arco e
flecha. Antes que pudessem esboçar qualquer gesto, os oponentes, demons-
trando grande agilidade e profundamente assustados, descarregaram contra
os membros da coluna uma rajada de flechas. Para se livrarem do ataque in-
tempestivo, foram disparados muitos foguetões e rojões, afim de atemorizar
os selvagens. Ali terminou a aventura (A Noite, 1938, p.10).

Apenas com esses dois exemplos, já é possível perceber que a versão


do livro de Aureli e a que foi enviada para os jornais são, em parte, dife-
rentes. Se tomarmos como ponto inicial a cronologia, podemos defender
que a primeira versão (a enviada pelo rádio) seria a mais verossímil, como
consequência, a versão posterior (que Aureli escreveu em “Roncador”) se-
ria a adaptada. Publicando o livro no final de 1938, o líder da Bandeira,
após testemunhar as reações e críticas ao encontro violento, pode ter re-
solvido adicionar que a Bandeira havia buscado demonstrar amizade, fato
que não fica claro nos jornais. Tal adição teria como objetivo mostrar que
o grupo fora atacado sem ter realizado qualquer provocação. Ainda assim,
essa é uma hipótese, pois sem ter a exata mensagem enviada por rádio não
é possível saber se os próprios jornais não omitiram ou adicionaram fatos.
Independentemente da veracidade de cada fato, os críticos que aflo-
raram após saber do evento se basearam no que leram pelos jornais. Parte
da própria forma de chamar a atenção era o apelo ao exótico e à aventura,
aspectos que deram munição para os críticos. A prova desse elemento vem
de forma estatística: nos meses de junho e julho, o assunto da Bandeira
Piratininga rendeu 50 reportagens, predominantemente em jornais pau-
listas e cariocas; com o evento crítico, apenas o mês de agosto reserva 70
reportagens, seguidas pelo mês de setembro com 45. Nota-se um aumento
estratosférico da publicidade da Bandeira na imprensa, entretanto, o
202 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

evento acabou corroendo a reputação do grupo, por conta das críticas dos
agentes anteriormente descritos.
Após os jornais que estavam de acordo com a Bandeira realizarem
suas publicações, outros começaram a republicar o fato, em geral apenas
reportando que o grupo havia sido atacado. Nota-se, exemplificado por
meio do último exemplo a seguir, o uso de uma narrativa aventuresca,
trazendo o evento como uma história que escala de um momento de calma
para um suspense e um desfecho. Esse recurso, altamente presente nos
escritos de Aureli, compõe tanto o discurso jornalístico quanto as repre-
sentações do Sertão (palavras como “selvícolas”, “selvagens”, “malocas” e
a própria narrativa que busca construir uma imagem do evento com a ra-
jada de flechas, o poder dos foguetes e a fuga dos Chavantes frente ao
poder dos bandeirantes).

A bandeira Piratininga radiografou para S. Paulo que foi atacada pelos ferozes
Chavantes, tendo ficado feridos vários membros da caravana (Cidade de Goiaz,
1938, p. 1)

Atacada pelos Chavantes a bandeira Piratininga: Informa-se que os índios


Chavantes atacaram a bandeira Piratininga, quando os expedicionários tenta-
vam transpor o rio das Mortes. Estes foram forçados a recuar para evitar uma
chacina. Houve várias victimas de ambos os lados (Diario de Pernambuco,
1938, p. 3)

O Rádio-Patrulha da Policia desta capital (São Paulo) recebeu uma série de


informações da Bandeira Piratininga, que ora atravessa o rio das Mortes, sobre
o ataque dos índios chavantes [...] Avançou com a maior precaução, para não
assustar os índios. Não havia ninguém. Apenas alguns objetos de uso, especi-
almente de cozinha, atirados no chão, remédios e algumas peças de roupa. Os
bandeirantes puzeram-se, então, a juntar todos aquelles utensílios, para trazer
à Bandeira. Nessa altura, um grupo de Chavantes, rompendo a matta, avançou
Leonardo Birnfeld Kurtz | 203

contra a caravana despejando-lhe uma rajada de flexas. Os elementos da Ban-


deira soltaram foguetões para assustar os selvagens. Os índios tentaram
investir mas ante uma carga mais forte de estouros dos foguetes, fugiram in-
ternando-se na matta (Diário Carioca, 1938, p. 9).

Como um telefone sem fio, algumas dessas republicações comenta-


vam que haveriam vítimas indígenas no conflito, ou mesmo “victimas de
ambos os lados” (Diario de Pernambuco, 1938, p. 3) quando, pelo menos
a partir das informações da própria Bandeira, apenas um integrante foi
ferido com uma flecha nas nádegas. No dia 14, “O Radical (RJ)” publica
uma reportagem intitulada “Desfazendo a obra de Rondon”, na qual Ron-
don critica, nos moldes anteriormente descritos, a Bandeira. Conforme as
críticas a partir do Marechal, SPI e CFE foram sendo publicadas, o resul-
tado foi um apagamento da Bandeira na publicidade da imprensa,
provavelmente por conta da perda de credibilidade:

Figura 3 Relação entre ano-reportagens em 34 periódicos

Fonte: Autor, 2021


204 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

Marechal Rondon

Foge do escopo deste trabalho trazer uma biografia de Rondon, por-


tanto, este momento buscará explicitar de que forma ele interpretou o
conflito noticiado entre a Bandeira Piratininga e os indígenas Chavantes.
Em 1938, Rondon estava com 73 anos e, desde 1934, estava imerso na re-
solução do caso de Letícia (1934-1938), um conflito entre Peru e Colômbia,
relacionado as suas fronteiras. Rondon fizera parte da Comissão Mista de
Delegados do Brasil e, à esta altura de sua vida, já havia forjado uma ima-
gem heroica, resultado de suas diversas ações que abrangeram desde a
cartografia à criação de um relacionamento amistoso com os diferentes
grupos indígenas com que teve contato. Fortemente influenciado pela cor-
rente positivista, as suas ações indigenistas seguiam, desde 1910, quatro
princípios (Camargo; Lima, 2005):

Morrer, se preciso for, matar nunca; Respeito às tribos indígenas como povos
independentes; Garantir aos índios a posse das terras que habitam e são ne-
cessárias à sua sobrevivência; Assegurar aos índios a proteção direta do
Estado. (RIBEIRO, 1959, p. 8)

Ao longo de sua vida, Rondon sempre esteve vinculado ao Estado e


suas instituições, especificamente o exército e órgãos de proteção, como o
Serviço de Proteção aos Índios (1918) e o Conselho Nacional de Proteção
aos Índios (1939), posteriormente, a FUNAI (Camargo; Lima, 2005; Junior,
2011). Essa trajetória torna muito compreensiva a reação do Marechal
frente às ações da Bandeira Piratininga, que até então eram pouco
conhecidas. Formada por uma heterogeneidade de integrantes, sem
vínculo com centros de pesquisa ou órgãos do estado, liderados por um
jornalista e com apenas uma autorização vinda da Comissão de
Fiscalização de Expedições Científicas, Rondon os viu como aventureiros,
Leonardo Birnfeld Kurtz | 205

cujas ações estavam mascaradas de interesse científico quando, na


verdade, buscavam explorar a terra por metais preciosos e, inclusive,
matar indígenas. Deve-se lembrar que sua voz detinha um enorme poder
de balizar o que seria feito, ou não, no campo do indigenismo e que suas
críticas foram decisivas para que, em agosto, o Ministro da Justiça
suspendesse as atividades da Bandeira Piratininga. Entre agosto e
setembro, diversos periódicos que, até então, noticiavam tranquilamente
a trajetória da Bandeira, publicaram as críticas de Rondon, se
posicionando a seu favor:

Publicou agora o “Correio da Manhã” as declarações do general Rondon sobre as


“bandeiras”, que em princípio não devem ser condenadas, mas o que em regra
se verifica é que essas expedições se transformam em instrumentos de compres-
são e morticínio, falhando, conseguintemente, em seus objetivos, ainda que
louváveis pela boa intenção de que se revestem. (A Gazeta, 1939, p. 1)

Ao criticar a Bandeira Piratininga a partir de um evento específico,


Rondon não apenas influenciou uma tomada de decisão judicial, mas tam-
bém uma série de publicações que começaram a condenar essas iniciativas
privadas como um todo. Nesse sentido, observamos claramente que o con-
flito pela tutela está vinculado a uma questão de legitimidade.

O Serviço de Proteção aos Índios (SPI)

Fundado no governo de Nilo Peçanha, em 1910, a nomenclatura ini-


cial do SPI era “Serviço de Proteção aos Índios e Localização de
Trabalhadores Nacionais (SPILTN)” e, em 1918, tornou-se apenas o “Ser-
viço de Proteção aos Índios”. As atividades do órgão buscavam conhecer,
denominar, categorizar e localizar os diferentes grupos indígenas e, em
consonância com o discurso positivista, guiar essas populações para o pro-
cesso civilizatório. O SPI compunha um projeto muito ambiciosos que,
206 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

inclusive, almejava diminuir a influência das missões de catequese e con-


trolar as fronteiras nacionais a partir de postos avançados, em que os
indígenas também participariam. Devemos, entretanto, observar que os
planos não corresponderam a real operação do SPI; financiamento e pes-
soal especializado não eram constantes, portanto, dependiam muito dos
rumos e do interesse da União e de forças paralelas, como elites regionais
interessadas na exploração de terra. Além disso, a própria dificuldade que
a geografia apresentava para as ambições do SPI, o desconhecimento car-
tográfico dos grupos que habitavam as regiões e a comunicação com esses,
acumulavam aos obstáculos (LIMA, 1998; CUNHA, 2016).
Independentemente da operacionalidade do SPI, esse ainda era um
órgão do governo e tinha a capacidade de decidir políticas públicas.
Quando o conflito dos Chavantes com a Bandeira Piratininga veio à tona,
o diretor do SPI, Tenente-coronel Fonseca Vasconcelos, criticou a atividade
do grupo de expedição quanto a sua legitimidade, formação e objetivos:

É assim, Mães do Brasil, que as “bandeiras” estão procedendo, no interior da


nossa terra, relatado por ellas mesmas, segundo a imprensa das nossas capi-
taes! E há ainda quem tenha palavras de elogios para tão grande miséria e
covardia [...] O que nos reanima é que, felizmente, o Sr. Ministro da Guerra,
acaba de providenciar para impedir a continuação da criminosa impostura.
(Gazeta de Notícias, 1938, p. 16)

A fundamentação principal da crítica, e da defesa da medida na qual


se cessavam as atividades da Bandeira, buscava trabalhar com a questão
da legitimidade e o contraste entre a formação e a ação do grupo de expe-
dição com o trabalho do SPI. Vasconcelos, inclusive, lança mão de uma
narrativa romântica na qual a Bandeira atacava uma aldeia indígena para
pilhar artefatos aos museus. Uma interessante argumentação do diretor é
que esse grupo privado concebia a entrada de um tipo de “civilização”, que
Leonardo Birnfeld Kurtz | 207

“com a licença do conselho, se aproxima! De repente, alarma, alarma: si-


bilam balas, ouvem-se tiros. Os homens mal podem alcançar os pobres
arcos [...] (Gazeta de Notícias, 1938, p.16)”. Entretanto, não está aí uma
crítica ao conceito de civilização, mas, sim, à forma de trazê-la.

Conselho de Fiscalização de Expedições Científicas

A antropóloga Heloísa Alberto Torres, que de 1938 à 1955 foi diretora


do Museu Nacional do Rio de Janeiro, era também integrante do Conselho
de Fiscalização de Expedições Científicas (1933-1942). Esse era formado
por sete representantes, dois do Museu Nacional, e tinha como objetivo
“assegurar o controle dos pesquisadores nacionais e estrangeiros em ex-
pedição pelo país (EWBANK, 2017, p. 53)”. Associado a esse intuito, o
conselho cedia, ou não, autorizações para expedições. Heloisa Torres é
uma personagem especial por ser a única integrante a votar com parecer
contrário à expedição da Bandeira Piratininga. No curso do final de agosto,
diversos periódicos a colocaram em destaque por, de certa forma, prever
as ações criticáveis do grupo de expedição. Importante ressaltar que o con-
selho cedia pareceres e autorizações com pouca força real de permitir ou
impedir expedições, um exemplo disso é a Bandeira Anhanguera que, em
1937, realizou uma viagem para a mesma região sem uma autorização.
As críticas da antropóloga seguem três pontos: quanto à ausência de
apoio institucional, à incompetência dos integrantes de levar a cabo os ob-
jetivos científicos e a possibilidade de o grupo estar interessado na
exploração dos metais preciosos na região.

Para terminar: não se pretende aqui advogar a segurança e defesa dos expedi-
cionários que empreendem a excursão deliberadamente e com conhecimento
de causa, mas a segurança e defesa dos nossos selvícolas, actualmente quase
que ao desamparo dos poderes públicos e tendo a seu favor pouco mais que o
apoio dos homens de cultura e de sentimentos humanitários para garantir-
208 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

lhes o uso pleno das terras que lhes pertencem. Sou de parecer que se negue
a licença solicitada. Rio de Janeiro 28 de abril de 1938 – Heloísa Alberto Tor-
res.” O conselho, entretanto, deu a licença. Agora, porém, os factos parecem
dar razão à Senhora Heloísa Alberto Torres. (A Gazeta 1938, p.2).

Através do parecer, é possível notar, agora a partir do CFE, o empre-


endimento da tutela na qual o órgão vinculado ao Museu Nacional busca
garantir soberania para a circulação de pessoas dentro do interior brasi-
leiro, especialmente em vista da situação de “desamparo dos poderes
públicos e tendo a seu favor pouco mais que o apoio dos homens de cultura
e de sentimentos humanitários”. Caberia às instituições científicas e ao
aparelhamento do Estado garantir a proteção dos indígenas, assim como
a chancela de quem poderia estudar na região.

Considerações Finais

Esse evento particular de veracidade duvidável ocorrido com a Ban-


deira Piratininga nos possibilita compreender as forças que se elevavam
quando outro agente ingressava no projeto de tutela. Por conta dessa pers-
pectiva, não é tão relevante averiguar o fato em si, mas as reações. Tanto
Rondon, SPI e CFE buscaram demonstrar a incompetência, a falta de apoio
institucional e insinuar que o grupo estava prospectando metais preciosos.
Outro aspecto importante a se ressaltar é a comparação entre o que grupos
privados faziam com a trajetória sertanista e indigenista de Rondon, como
modelo idealizado. No meio desse conflito de legitimidade, o que estava
em jogo era o poder tutelar, a permissão de contato com indígenas e o ir e
vir de pessoas para o interior brasileiro.
Em meio a uma diversidade de críticas e reportagens, sobressai um
elemento implícito produto da noção paternalista: pouco ou nada se iden-
tifica de qualquer Chavante ou Carajá (visto que três fizeram parte da
Bandeira e inclusive visitaram o Rio de Janeiro e São Paulo com o grupo,
Leonardo Birnfeld Kurtz | 209

além de ter suas fotos expostas na imprensa) expressando seu lado. Essa
omissão esta relacionada às compreensões acerca da raça e da etnia dos
indígenas, nas quais convergiam para a representação de um ser criança,
que necessitava ser guiado e que seu tutor falasse dele e por ele.
Encontra-se na relação conceitual entre Raça, Etnia, poder tutelar e
representação uma chave interpretativa importante para compreender-
mos as motivações e o escopo de ação de diferentes agentes que buscaram
interpretar e controlar indígenas – trata-se de uma operação simultânea
na qual os conceitos se interrelacionam. A Raça identifica o que há de fisi-
camente diferente entre os indivíduos, constituindo-se como a base de um
sistema racista que atribui valores inerentes associados a uma raça. Ori-
gina-se nesse ponto o agrupamento de diferentes indivíduos, e seus
respectivos grupos, a denominação generalista de indígena. Importante
apontar que a alteridade é um elemento constante nessa interrelação, po-
rém, operada à moda tutelar, pois a própria identidade indígena é pautada
por dicotomias de ausência/presença de valores que, ao ver do tutelador,
são positivos ou negativos.
Todos os agentes exemplificados no presente trabalho posicionam
em seus respectivos discursos tal perspectiva, porém, a título de uma
exemplificação sintética, descreverei a interrelação dos conceitos a partir
do líder da Bandeira Piratininga. Aureli define o índio como uma criança
cuja inocência, pureza e ausência de maturidade compõem a índole indí-
gena. Sendo essas características não presentes no ser civilizado,
Chavantes e Carajás se tornam objetos de estudo, inclusive, a ponto de
definir um dos objetivos da missão da Bandeira Piratininga rumo a Serra
do Roncador. O autor, norteado então pela Etnia, redimensiona a alteri-
dade para comparar Chavantes e Carajás, sendo os primeiros habitantes
de matas fechadas e escuras e, portanto, mais belicosos e isolados; en-
quanto os Carajás, autóctones de zonas mais iluminadas, são amigáveis,
210 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

pacíficos e vitimizado pelos Chavantes. Em seu livro “Sertões Bravios


(1943)”, especificamente no conto “Mater Dolorosa”, Aureli narra em ter-
ceira pessoa um ataque Chavante a uma aldeia Carajá:

Vinte e dois corpos examines pontilhavam sinistramente a praia. Vistos da ou-


tra margem, mais pareciam trouxas abandonadas a esmo, sem direção [...]
como uma assembleia de estátuas, devorando com os olhos sem lágrimas, o
quatro tétrico formado pelos parentes trucidados impiedosamente por um
magote de Chavantes (AURELI, 1943, p. 141).
Bastaram breves minutos para que os Chavantes chacinassem os inocentes,
deixando-os caídos, amontoados. Impiedosos e ferozes [...] (AURELI, 1943, p.
142).

O discurso racista, que se utiliza da etnia para realizar as diferencia-


ções, é dependente de representações para ser transmitido e se fazer
entender. Como desenvolvido por Roger Chartier, as representações são
constituídas de duas dimensões: transitiva (tudo que representa, repre-
senta algo) e reflexiva (toda representação se apresenta representando
algo), além de serem apresentadas através de uma variedade de veículos
(imagens, textos, conceitos, artefatos, entre outros). Outro ponto impor-
tante é que a representação não é um produto criativo individual, mas algo
que só é compreendido por um consenso. Assim, desde o conceito de Ser-
tão (componente constante dos textos de Aureli para falar do espaço,
natureza e habitantes dessa fronteira civilizacional) ao uso da identidade
de seu grupo como bandeira e um discurso jornalístico apelativo ao exótico
e maravilhoso eram elementos compartilhados que, ao mesmo tempo, cri-
avam e interpretavam a realidade.
Se encontra justamente nessa relação entre Raça, Etnia e suas res-
pectivas representações agregadas, a fundação de um discurso que
justifica o poder tutelar. Para exemplificar: a representação do índio como
criança indefesa e pura, vítima de um atraso cultural e tecnológico, tornou
Leonardo Birnfeld Kurtz | 211

possível a existência do SPI e do CFE, instituições que definiram diretrizes


de ação, identificaram grupos e os atribuíram características. A represen-
tação da natureza como fronteira a ser explorada e os habitantes
autóctones como seres a serem integrados a nação pautou e motivou a
missão civilizatória de Rondon e toda a “Marcha para o Oeste”.
Por último, cabe apontar que a manutenção dessas instituições e de
qualquer ação de tutela, incluindo missões de catequese e expedições pri-
vadas como a Bandeira Piratininga, esteve assentada também nos meios
de comunicação. No caso deste trabalho, os periódicos constituíam uma
rede de publicações cruzadas que republicava, copiava, alterava informa-
ções recebidas e reproduzia e transmitia representações que, por suas
vezes, legitimavam ou deslegitimavam ações e instituições. Foi, muito pro-
vavelmente, pelas notícias vinculadas nos periódicos que Rondon tomou
conhecimento da Bandeira Piratininga, iniciando um efeito dominó que
terminou em uma decisão do Ministro da Justiça.
Por meio da interrelação de conceitos proposta neste trabalho, se tor-
nou possível demonstrar operações mais implícitas a partir de um evento
pontual. Dessa forma, é plausível que outros trabalhos relacionados com
identidade, cultura, Raça e etnicidade se beneficiem dos caminhos aqui to-
mados, qualquer que seja a escala do evento estudado.

Referências

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de comissões científicas à “Bandeira Piratininga”. Santa Catarina, 21 set, p.2.

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CHARTIER, Roger. Defesa e Ilustração da Noção de Representação. In: Fronteiras, Mato


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11

Representações e identidade nacional do futebol


americano na imprensa brasileira da Terceira República

Alyssa Nunes Bruscato Costa

Introdução

A partir do meu interesse pelo esporte futebol americano, com cons-


ciência de quanto esse esporte é pouco explorado pela historiografia
brasileira, realizei pesquisas na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional
a respeito da cobertura dos jornais brasileiros da época perante o esporte.
Por meio de diversas análises esportivas escritas durante o período de 1945
à 1964, período histórico denominado de Terceira República, questiono
como os jornais definiam o esporte mais popular dos Estados Unidos da
América.
Diante algumas notícias, observei na análise dos jornalistas, o con-
traste entre o futebol americano e o futebol brasileiro. Isto pode ser notado
no retrato do esporte difundido para a população nas vestimentas, nas re-
gras, no funcionamento, nos sentimentos que despertam, na execução do
esporte e entre outros fatores, o que demonstrava uma contraposição en-
tre o povo estadunidense e o brasileiro. Por exemplo: na reportagem “As
orelhas”, publicado no jornal Diário Carioca em 1954, lemos o seguinte:

Qualquer imbecil pode ver com absoluta segurança a diferença que vai do fu-
tebol da gente para o futebol dos americanos. É tão simples! No futebol da
gente, nós jogamos com uma bola; no futebol deles, êles jogam com uma mor-
tadela inteirinha. No futebol da gente, nós entramos em campo com uma faca
escondida dentro do calção; no futebol deles, êles entram em campo de metra-
lhadora em punho e duas pistolas de cada lado. No futebol da gente, só passa
Alyssa Nunes Bruscato Costa | 215

a bola, fica o homem; no futebol deles, ficam o homem e a mortadela embaixo


do homem com todo mundo em cima. No futebol da gente, o povo grita:
“Cospe na cara dêle”; no futebol deles, o povo grita: “Pisa no fígado dele, corta-
lhe os pulsos e arranca-lhe os cabelos. (AS ORELHAS, 1954, p. 10)

Na citação do periódico que acompanhou 37 anos da vida política bra-


sileira, o autor se posiciona ferozmente a respeito das principais diferenças
do futebol brasileiro para a futebol americano, mostrando essas diferentes
modalidades colidindo entre si. Ele ironiza a bola oval, diferente da bola
redonda, apresenta o futebol americano como extremamente agressivo e
traz a ideia de desorganização no emaranhado de homens em cima uns
dos outros durante a partida. Com isso, pretende valorizar o futebol bra-
sileiro como menos violento, mais simplificado e mais organizado.
O futebol americano apresenta uma estrutura diferenciada com ques-
tões complexas de jogo, necessita de diversas táticas, apresenta regras de
acordo com as possibilidades, utiliza a pontuação que é singular do es-
porte, conta com um número grande de jogadores, utiliza diversos
equipamentos e proporciona o uso de inúmeras partes do corpo na legali-
dade. Ao comparar com o futebol brasileiro, o jornal paulista Mundo
Esportivo traz a visão de desordem e agressividade do esporte mais popu-
lar dos Estados Unidos da América como repreensão a um jogador
brasileiro. “Domingos julgou estar jogando futebol americano. Quando su-
perado por Pinga, aos seus pés ou agarrava-lo pela camisa. Isto para não
se falar nos trancos violentos que seguidamente desferiu.” (QUADRO,
1952, p. 11)
O estranhamento em relação à cultura norte-americana marca-se
presente nas análises do esporte. Os equipamentos para uma partida de
futebol americano são um exemplo desse abismo perante à praticidade do
futebol brasileiro. Para jogar futebol, o brasileiro precisa ter uma bola; já
o americano, precisa de uma série de equipamentos caros para cumprir o
216 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

requisito de zelar pela segurança de um esporte que apresenta um contato


corpo a corpo maior. A sofisticação do estadunidense em contraponto à
simplicidade brasileira demonstra o estranhamento de uma cultura dife-
rente. Em uma fotolegenda, um pouco mais simpática ao futebol
americano, mas também irônica, está escrito:

Estes estranhos personagens que vemos nesta foto não pertencem a nenhuma
astronave interplanetária. São eles os elementos da peça defensiva do quadro
de futebol americano da Universidade de Bucknell envergando uma nova con-
cepção em trajes amortecedores de choques tão comuns nesta viril modalidade
esportiva. (IRÃO, 1955, p. 13)

A passagem demonstra o desconhecimento em relação ao futebol


americano analisados pelo jornal esportivo que circulava por todo Brasil
até 2001, A Gazeta Esportiva, no momento em que ironicamente confun-
dem os jogadores com extraterrestres por seus equipamentos. Vale-se
atentar o poder de influência que os comentários esportivos tinham em
formar previamente uma opinião popular a respeito de determinado es-
porte.

Contexto

A seleção do contexto brasileiro abrange o Brasil percebendo-se den-


tro de um país em via de desenvolvimento e industrialização, e a discussão
ideológica entre os Estados Unidos da América com o Brasil estava deveras
presente naquele momento. O enfoque no contexto é o desenvolvimen-
tismo, caracterizado como um fenômeno histórico ligado aos
acontecimentos políticos e econômicos ocorridos na América Latina, em
países periféricos do sistema capitalista, no século XX.
Na década de 1930 já surgem traços dessas novas ideias desenvolvi-
mentistas, como aponta Fonseca e Salomão sobre a profundidade da crise
Alyssa Nunes Bruscato Costa | 217

associada com mudanças nas elites dirigentes em certos países da América


Latina: “criaram condições para que vários deles passassem a adotar polí-
ticas desenvolvimentistas, associadas à industrialização por substituição
de importações” (2017, p.5). Foram principalmente medidas adotadas
para aumentar a industrialização e na busca de uma ampliação do desen-
volvimento econômico, político e social.
Ressaltando que havia uma transição democrática em pauta nos anos
de 1944 para 1945, com o fim da censura à imprensa, a fixação do calen-
dário eleitoral, a anistia aos presos políticos, a formação de diversos
partidos políticos, a adesão da campanha eleitoral nas ruas e entre outros
fatores que demonstram a mudança e esse processo de transição de uma
ditadura de um Estado Novo para um regime de democracia-liberal. Além
de um cenário composto pelas formações de partidos nacionais e do “que-
remismo” em pauta, esse direcionado ao governo varguista.
Na breve elucidação, o denominado “queremismo” seria marcado
como um conjunto de manifestações populares que passou a ser um mo-
vimento mais sólido ocasionando a fundação do Comitê Pró-Candidatura
Getúlio Vargas do Distrito Federal. Nesse aglomerado, ascendia núcleos,
comitês de bairro, abaixo-assinados, declarações solidárias e comícios re-
lâmpagos em prol da continuidade da principal figura política eleita pelo
grupo ao poder. Dentre suas atuações, as mais brilhantes foram as inter-
rupções aos comícios da União Democrática Nacional opositora ao
presidente.
A Terceira República, período que abrange 1945 até 1964, o Brasil
passa a presenciar então a inovação de um projeto nacional-desenvolvi-
mentista, que por base, fundamenta-se em um populismo político e na
substituição de importações. Dentre figuras marcantes para a época, de
acordo com Ângela de Castro Gomes: “Getúlio Vargas, é, com toda a cer-
teza, senão o maior, um dos maiores da história republicana do Brasil”
218 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

(2103, p. 29). Conhecido como protetor dos trabalhadores, Getúlio como


grande autoridade política, impulsionou políticas populistas que se origi-
naram na Era Vargas e deram continuidade na Terceira República.
Dentre essas transformações que ocorreram no Brasil, podemos citar
ações como construções de novas estradas, o surgimento de uma indústria
voltada ao automobilismo, a inauguração de uma cidade voltada à repre-
sentação de um dos maiores centros políticos que seria a inauguração da
capital federal Brasília, a criação de uma indústria de base como a extração
do petróleo, a valorização de temáticas brasileiras na busca da preservação
de valores e entre outros fatores que só impulsionaram a vida dos brasi-
leiros.
Em meio a esse cenário, o esporte, considerado como um meio de
lazer, passa a ter uma maior visibilidade e importância. As cidades, em
pleno desenvolvimento, forneciam espaço para o crescimento dos espor-
tes, tanto das camadas mais baixas quanto das camadas mais altas,
proporcionando a interferência na sociedade brasileira por um esporte que
gerava um sentimento de nacionalismo e representatividade nacional.

Os espetáculos de lazer do período desenvolvimentista tinham como público


principal os setores urbanos da classe média e alta, que procuravam pensar e
incorporar, através de apresentações, as características do povo brasileiro e o
subdesenvolvimento, enquanto que os setores operários podiam ter contato
com peças que discutiam a exploração e a mais valia. (ALMEIDA; GUTIERREZ,
2005, p. 39)

Legitimado pela sociedade brasileira, o Brasil então passa a adotar


atitudes consideradas antiamericanas com defesa dos seus interesses. O
antiamericanismo entra na oposição a determinada proposta dos Estados
Alyssa Nunes Bruscato Costa | 219

Unidos da América, na predisposição negativa para com os EUA, nas ati-


tudes de desconfiança que subestimam as informações ocasionando uma
imagem de negatividade e principalmente de julgamentos.

Ainda que envolva uma variedade de comportamentos, o fator que mais rela-
ção e impacto possui para a condução da política externa brasileira se
fundamenta mais numa reação de desconfiança dos Estados Unidos (do tipo
“me mostre que você está certo”) como ameaçadores em potencial dos inte-
resses e da autonomia nacionais e menos uma atitude basicamente
preconceituosa (antiamericanismo do tipo mais agudo, em que há uma pro-
funda inclinação a atribuir ações e motivos negativos aos Estados Unidos em
qualquer situação, sem se preocupar em analisar as especificidades da ocasião
ou dos atores envolvidos, fechado, portanto, a informações positivas sobre as
ações norte-americanas). (FARES, 2011, p. 1).

O desenvolvimentismo surgiu como uma forma de exemplificar e


apresentar ideias que voltassem para a industrialização como a salvadora,
meio de solução para todos os problemas do país. Sendo o principal obje-
tivo da política externa, o Brasil sendo palco de objeto de interesses das
grandes potências, como a estadunidense que estava em um período pro-
missor no desenvolvimento. As tensões entre dois países poderiam ser
explicadas na desconfiança do Brasil das intenções que os Estados Unidos
teriam.

Representações

Nessa busca da compreensão das representações analisadas diante a


cobertura da imprensa brasileira entre os anos 1945 à 1964, um dos
autores que mais auxiliam na elaboração e na formação do conceito de
“representações” seria Roger Chartier. Em suas ideias, a representação
serviria como um instrumento de um certo conhecimento mediato que
revelaria um objeto ausente, substituindo-o por uma “imagem” com
220 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

condições de trazê-lo à memória e certamente “pintá-lo” da forma mais


adequada. Portanto, para Chartier, a relação de representação, pode ser
entendida como uma correlação de uma imagem presente e de um objeto
ausente, onde um se valeria pelo outro, sustentando a teoria do signo da
lógica Port-Royal.
Por um lado, há o pensamento da construção das identidades sociais
como resultado de uma relação marcada por força entre as representações
impostas por aqueles que teriam o poder de classificar e de nomear a de-
finição, sendo submetidas ou resistentes, onde cada comunidade
produziria por si mesma. Por outro lado, há o pensamento que considere
um recorte social voltado a capacidade de fazer com que se reconheça a
existência por meio de uma exibição de uma unidade. Nota-se na passa-
gem de Chartier a respeito das representações, algumas de suas ideias:

As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à uni-


versalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas
pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário re-
lacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza. (...)
As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem
estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma
autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto
reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e con-
dutas. Por isso esta investigação sobre as representações supõenas como
estando sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cu-
jos desafios se enunciam em termos de poder e dominação. As lutas de
representações têm tanta importância como as lutas econômicas para com-
preender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua
concepção do mundo social, os valores que são seus, e o seu domínio. Ocupar-
se dos conflitos de classificações ou de delimitações não é, portanto, afastar-se
do social – como julgou uma história de vistas demasiado curtas -, muito pelo
contrário, consiste em localizar os pontos de afrontamento tanto mais decisi-
vos quanto menos imediatamente materiais. (CHARTIER, 1988, p. 17)
Alyssa Nunes Bruscato Costa | 221

Desse modo, as representações são determinadas pelos interesses dos


grupos que as forjam. Quando um jornalista explora o futebol americano
nesse período delimitado do artigo, ele forja uma identidade nacional pe-
rante a estrangeira. Os definindo a todo momento, essas representações
podem ser compreendidas de acordo com as classificações e com as divi-
sões que nos permitem apreender o mundo social como categorias de
percepção real. Ressaltando que as formas diferenciadas com que os indi-
víduos apreendem os discursos nos possibilitariam a construção do real e
das práticas dos indivíduos perante a atribuição dos sentidos ao mundo.
Não necessariamente as representações não determinariam oposição, mas
sim, a constituição por meio das determinações sociais tornando-se ma-
trizes de classificações e ordenação do mundo real.

Nesse intento, o conceito de representação permite demonstrar que a estru-


tura social transcende as vontades dos agentes sociais e que a representação é
inseparável da prática exercida pelo indivíduo. O mundo da representação
gera as práticas sociais, objetiva-se nas instituições e tende a perpetuar a exis-
tência dos grupos sociais. A prática é, dessa maneira, uma espécie de ação no
e sobre o mundo que permite reconhecer o lugar social do indivíduo. Engen-
dra, assim, uma realidade subjetiva que é por eles incorporada no processo de
vivência das experiências e práticas do cotidiano. (MACENHAN; MARTINEZ;
TOZETTO, 2019, p. 178)

Trazendo uma reportagem do jornal A Gazeta Esportiva do ano


de 1958 onde o autor aborda o futebol americano representado como um
esporte viril que consistia emoções violentas em virtude de o público gos-
tar de se satisfazer dessa violência, o norte-americano passa a ser visto de
uma forma maldosa intrinsecamente. A cena de violência no jogo, onde há
a descrição de um “sanduíche” de jogadores, ressalta a masculinidade e o
gosto por agressividade da nação estadunidense.
222 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

O publico e esportista norte-americanos gostam das emoções violentas que


lhes proporcionam o automobilismo, pugilismo, rubgy etc. Para satisfazer os
assistentes por demais exigentes, os atletas esforçam-se ao máximo para que
o espetáculo agrade. Nesta foto por exemplo, podemos observar uma cena das
mais rudes tomados no curso de uma partida de futebol americano entre duas
Universidades ianques. Este jogador que vemos “plantando bananeira”, antes
desta situação, fôra arremessado no ar num verdadeiro “sanduíche” entre vá-
rios outros craques. (FUTEBOL..., 1958, p. 8)

Além do fato, do esporte mostrar seu valor como atividade física es-
portiva, estava incluído de um caráter social. O ato de ser visto como um
teatro que gera um espetáculo foi notório para a sociedade por meio das
festividades e da disseminação do comparecimento do público nas parti-
das. Ricardo Santos expos que “Um match era sem dúvida um grande
evento noticiado nos veículos de comunicação da cidade e boa parte deles
eram concluídos à noite, com bailes nos melhores e mais chics salões da
cidade...” (O FOOT-BALL, 2014 p. 16)

Identidades nacionais

Importante frisar que o futebol pode ser visto como um ritual, enten-
der esse processo pode nos fornece a expressão de uma totalidade, ele
consagra principalmente globalizações presentes. Por seguinte, passa a
permitir uma identidade e uma singularidade por meio dele, ao passo que,
cada geração estipula os fatos que permanecem como pontos chaves de
suas perspectivas.

Mas, na sociedade industrial, individualista e moderna, o ritual tende a criar o


momento coletivo, fazendo sucumbir o individual e o regional no coletivo e no
nacional. Daí as comemorações e, sobretudo, os ritos esportivos, em que a
dialética da competição individualista acaba por formar uma totalidade
englobada por quem sai vitorioso e assim “come”, “papa”, “engole” o
Alyssa Nunes Bruscato Costa | 223

adversário e toda a disputa. Isto é, engloba na vitória os outros indivíduos,


passando a expressar o campeonato. (DA MATTA, 1981, p.33).

Na medida em que o futebol americano é explorado cada vez mais


nos jornais, sua importância futura como possível objeto de pesquisa his-
tórica é posta em questão. Pois, o futebol, seja o brasileiro ou americano,
exprime um caráter referencial na possibilidade de entendermos alguns
aspectos que perpassam o contexto da época. De acordo com Plínio Ne-
greiros: “Nas rupturas políticas ocorridas neste século de República, em
muitas delas, o futebol se antecipou.” (2003, p. 123). Em acréscimo, Plínio
Negreiros escreveu: “Os vínculos que a sociedade brasileira construiu com
esse esporte são por demais fortes para que se continue a desqualificar o
futebol enquanto uma experiência cultural das mais significativas.”
(NEGREIROS, 2003, p. 122).
O futebol visto como um ritual possibilita a reflexão do esporte que
pode ser associado como momento de lazer perante a sociedade, ocasio-
nando parte do cenário nacional. Quando há uma partida de futebol, há
um sentimento de união nacional dentro da formação de um momento
considerado coletivo. Trazendo as ideias da historiadora e escritora fran-
cesa Anne-Marie Thiesse, nessa formação das identidades nacionais, há a
necessidade de inventar um patrimônio comum. Portanto, o que consti-
tuiria a nação seria o processo de transmissão, através de gerações, de uma
herança coletiva e inalienável. Ressaltando que a autora aborda uma lista
de elementos que uma nação considerada digna deve conter, dentre eles
podemos citar: “ancestrais fundadores, uma história que estabeleça conti-
nuidade da nação através de vicissitudes da história, uma galeria de heróis,
uma língua, monumentos culturais e históricos...” (THIESSE, 2001, p. 8).
Como bem elucidou o autor Eric Hobsbawn, descreveu que entre as
guerras mundiais o futebol tornou-se uma expressão de luta nacional, com
224 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

seus jogadores representando seus estados ou nações. Perceber o exporte


acrescentando o contexto inserido, nos possibilita compreendermos a im-
portância de analisarmos ambos em conjunto.

O que fez do futebol um meio único, em eficácia para inculcar sentimentos


nacionalistas, quase de todo modo só para homens, foi a facilidade com que
até mesmo os menores indivíduos políticos ou públicos podiam identificar
como nação, simbolizada por jovens que se destacavam no que praticamente
todo homem quer, ou uma vez na vida terá querido, que é ser bom naquilo
que faz. (HOBSBAWM, 2013, p. 197).

Para a compreensão da exploração das nacionalidades, o conceito do


historiador e cientista político estadunidense Benedict Anderson (1983, p.
14) visa realçar que a nação seria “comunidades imaginas”; nota-se em
suas ideias que a formação de um sentimento de união nacional pelo com-
partilhamento dos aspectos identitários e de seus interesses. Como aponta
Joice Oliveira Pacheco a respeito da identidade cultural:

Nesse sentido, cabe destacar que a identidade cultural não é “natural”, nem
inerente ao indivíduo, ela é preexistente a ele, e como a própria cultura se
transforma, a identidade cultural do sujeito não é estática e permanente, mas
é fluída, móvel, e principalmente, não é uma imposição inocente, nem uma
apropriação, de todo, inconsciente. A identidade cultural é por sua vez cons-
truída, manipulada e política. (PACHECO,1983, p. 13)

Acrescentando nesse caminho, com um estudo breve de tópicos do


Anthony D. Smith, a nação abrange uma determinada população humana
que reside no mesmo território (delimitado por fronteiras), que apresen-
tam mitos, memórias em comum, cultura pública de massas, economia
comum e direitos e deveres comuns a todos os membros. Esses aspectos
em conjunto, compõem as identidades nacionais que representam enfoque
do artigo.
Alyssa Nunes Bruscato Costa | 225

As reportagens analisadas servem de base na percepção da identi-


dade nacional brasileira contrastada com a identidade nacional americana.
Por meio delas, os posicionamentos ao retratarem a cobertura do esporte
mais jogado no Estados Unidos da América, permitem notar tensões e con-
flitos internos marcados por acontecimentos ligados ao contexto nacional
e internacional.

A importância que o futebol conquistou dentro da sociedade brasileira, não


permite mais que ele seja ignorado enquanto um objeto para os estudos his-
tóricos. Os vínculos que a sociedade brasileira construiu com esse esporte são
por demais fortes para que se continue a desqualificar o futebol enquanto uma
experiência cultural das mais significativas. (NEGREIROS, 2003, p. 122)

Trazendo Manual do Futebol Americano de Antony Curti (2017, p.


16), o autor se posiciona “É de um nacionalismo tonto achar que tudo que
vem de fora é ruim ou “danoso” para a cultura nacional.” O futebol que se
é jogado e aclamado pelos brasileiros também não é original do Brasil, mas
foi popularmente disseminado e tornou-se parte do cotidiano brasileiro.
Ademais, vale-se atentar as analogias feitas a respeito do futebol ameri-
cano perante o ato de guerrear com outra nação. Nele há a necessidade da
conquista de territórios, da organização das tropas, do pensamento ante-
cipado do movimento inimigo e entre outros fatores. Curti defende “Em
analogia bélica, o futebol apresenta ataques que se assemelham a ataques
de cavalaria: rápidos e que, em dado lance, pode furar o bloqueio defensivo
adversário de maneira individual, com velocidade.” (2017, p. 18).

Considerações Finais

Estruturar um estudo focado no futebol americano no Brasil


apresenta adversidades, pois, poucas são as fontes historiográficas
voltadas para esse tema. Analisar então o futebol brasileiro em
226 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

contraponto ao futebol americano auxilia na melhor elaboração do tema.


É compreensível a escassez de fontes, já que o futebol americano ingressou
no Brasil tardiamente e não foi bem explorado até os dias atuais na
historiografia. Contudo, o esporte passou a ter mais transmissões, maior
visibilidade, seu potencial em adentrar nas escolas brasileiras já pode ser
discutido e a mídia tem um maior acesso com o país estadunidense
atualmente, possibilitando uma disseminação do esporte que pode
ocasionar em mais trabalhos científicos.
Partindo da hipótese de o que se fala sobre o futebol americano se
fala comparativamente do futebol brasileiro, exemplifica que, se o futebol
brasileiro expressa a identidade nacional brasileira, o futebol americano
expressaria a identidade nacional americana, podendo assim, ambas se-
rem contrastadas. Atentando-se que ambos esportes não são originais
brasileiros, contudo, um foi adotado pela população e o outro não.
Uma das questões importantes para o artigo é a análise do contexto
brasileiro no período de 1945 até 1964, principalmente os ânimos da época,
as mudanças de poder no governo, os novos programas para servir a na-
ção, os problemas econômicos apresentados, até que ponto estava o
contexto mundial e entre outros aspectos. O contexto entre a deposição de
Getúlio Vargas em 1945 e o golpe militar de 1964 foi crucial para a forma-
ção das representações que os jornais difundiam sobre esse esporte e suas
diferenças em relação ao futebol brasileiro, relacionando-os com os ideais
sobre a identidade nacional dos dois países.

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12

Cultura, patrimônio e cidade 1

Eduardo Roberto Jordão Knack

Introdução: bens culturais e patrimônio

O presente trabalho procura esclarecer alguns conceitos importantes


para pesquisas que se debruçam sobre memória social, patrimônio cultu-
ral, cidades e transformações urbanas que alteram valores e sentidos
atribuídos aos bens culturais. Quando o patrimônio histórico ou o que ele
representa para uma comunidade é escolhido como objeto de estudo, pri-
meiramente, é necessário esclarecer a noção de cultura e bens culturais,
pois o patrimônio é um bem cultural que, teoricamente, deveria pertencer
a todos os segmentos da sociedade. Por esse motivo, para entender o que
é um patrimônio deve-se primeiramente compreender o que é um bem
cultural, sua função, seu sentido e seu significado para a comunidade em
que está inserido. As reflexões desenvolvidas por Durham transmitem a
ideia de cultura que é referência para esse trabalho:

O homem é um animal que construiu, através de sistemas simbólicos, um am-


biente artificial no qual vive e o qual está continuamente transformando. A
cultura é, propriamente, esse movimento de criação, transmissão e reformu-
lação desse ambiente artificial. (DURHAM, 1984, p.26).

Cultura seria a forma como os homens transformam a realidade, con-


sequentemente, toda produção material feita pelo homem é também

1
O presente trabalho resulta de uma releitura (e reescrita) da primeira parte do capítulo um da dissertação de
mestrado: KNACK, 2007. A partir de novas leituras, algumas ideias e proposições foram atualizadas e repensadas,
apresentando novas reflexões sobre possíveis relações entre cidades, memória, patrimônio e cultura.
232 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

“imaterial”, toda produção humana utilizada com regularidade dentro da


sociedade e assimilada coletivamente possui uma imaterialidade. A cultura
não é apenas o objeto produzido, mas o significado atribuído a ele pela
sociedade, bem como a técnica e arte que o produziram. Dessa forma, é
necessário cuidar para não cair em visões que reduzem ou mesmo opõem
patrimônio material e imaterial. Concordando com Geertz (2008, p.4),
cultura pode ser entendida como uma teia de significados, construída pe-
los homens, e cabe aos pesquisadores de diferentes áreas interpretar,
explicar tais relações, suas composições, cruzamentos e nós.
Cultura refere-se, portanto, à manipulação humana e ao uso de de-
terminado objeto que torna-se um bem cultural e exerce uma função na
sociedade. Assim, ele adquire e constrói um significado no cotidiano dos
sujeitos. Se ele não exercer nenhuma função, perde seu valor, seu signifi-
cado para comunidade, entra em um estado adormecido, mas, quando
volta a ser utilizado pela comunidade, ele desperta, retorna à vida. Objetos
que deixam de ter um valor prático necessariamente não perdem seu valor
artístico, memorial, cultural ou mesmo espiritual.

Ruínas e objetos remanescentes que durante muito tempo existiram como um


monte de escombros despercebido e que com isso se tornaram invisíveis re-
pentinamente podem voltar a ser visíveis, caso recaia sobre eles o feixe de
atenção desse novo interesse. (ASSMANN, 2011, p.329).

Podemos verificar esse processo de “despertar” um bem cultural


quando um objeto é doado a um museu. Tais objetos, “perdem as funções
originais e seu nexo com a vida prática” ao sair de um “contexto de atua-
lidade viva”, e passam ao mundo das recordações (ASSMANN, 2011,
p.360). Um móvel ou um instrumento de trabalho que perdeu seu uso
frente às transformações tecnológicas da sociedade, quando doado a um
Eduardo Roberto Jordão Knack | 233

museu para fazer parte de seu acervo e/ou uma exposição, tem seu signi-
ficado despertado, transformado, o que o torna agora um bem
patrimonial. Devido a sua carga simbólica impregnada por uma função já
desempenhada, ele tornou-se um patrimônio cultural. Tal despertar en-
volve uma ativação patrimonial (PRATS, 1998), pois determinado objeto
(móvel ou imóvel), ao adquirir novo significado definido por um conjunto
de valores que orienta o olhar daqueles envolvidos em sua proteção, é ati-
vado, desperta sob uma nova atribuição valorativa, se torna um bem
cultural. Cabe chamar atenção para uma reflexão desenvolvida por Carva-
lho, que diz:

[...] é preciso que se diga que a noção prevalecente de bem cultural ainda está
associada a alguns poucos exemplos de bens patrimoniais que constituem sím-
bolos da memória nacional de povos e países. Aqueles sobre os quais as
relações entre o signo e o significado são amplamente divulgadas e abstraídas.
Entretanto, são também os que mais se afastam de uma identificação objetiva
com a realidade da vida do dia-a-dia. (CARVALHO, 2002, p.398).

Muitos bens culturais são preservados apenas por seu valor “mate-
rial”, ou seja, por seu valor documental. Por exemplo, pode-se tombar uma
edificação simplesmente porque ela tem uma importância arquitetônica,
no sentido de o prédio ter sido construído com uma técnica singular,
mesmo que tal prédio não tenha uma marca profunda na memória e, con-
sequentemente, na identidade da comunidade. Porém, tal patrimônio
corre o risco de cair no esquecimento e, literalmente, tombar frente à fe-
nômenos e impulsos de modernização e urbanização. O patrimônio, em
geral, não deve ser tombado apenas pelo seu valor documental, mas tam-
bém pelo seu valor sentimental, pelo significado que a sociedade atribui a
ele. Zamin (2006) explana de forma clara como valores estão envolvidos
no tombamento do patrimônio histórico:
234 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

O patrimônio cultural de uma região, nação ou da humanidade não tem uma


existência apriorística, em si mesma; ele é uma construção que requer esco-
lhas e estas, por sua vez, vinculam-se a valores. [...] Sendo a preservação do
patrimônio cultural uma construção que envolve atores sociais, sob a gestão
de instituições oficiais, os pressupostos que a ancoram, ou seja, as noções so-
bre valores, assim como a importância desses valores, são variáveis no tempo
e no espaço. (ZAMIN, 2006, p.30).

Justamente por esses valores serem variáveis no espaço – tempo e


ressaltarem as características políticas da ação de tombamento de um pa-
trimônio, que estudos sobre os usos da memória patrimonial são
importantes. As orientações dispostas na cultura política de determinado
contexto podem sofrer transformações, modificando a percepção desses
atores sobre as políticas patrimoniais e mudando inclusive o sentido do
próprio patrimônio (os que já se encontram tombados e aqueles que pas-
sam a representar as alterações culturais de determinado período).
Possamai (2000), colocando a cultura como “universo da escolha”, chama
atenção para os valores relacionados à seleção e escolha dos bens patrimo-
niais serem alvos de práticas de preservação:

É na atribuição de determinados valores – nacional, histórico, artístico, arqui-


tetônico, paisagístico, afetivo, entre outros – que se opera a definição do que
será considerado patrimônio, portanto digno de preservação, e o que será re-
legado ao esquecimento. [...] Assim, o valor que é dado a determinado objeto
arquitetônico, por exemplo, não se encontra apenas nas suas características
físicas e morfológicas, mas em tudo o que ele passará a representar, como a
identidade de determinado grupo, cidade ou nação ou o período histórico ao
qual pertenceu, entre inúmeros outros. (POSSAMAI, 2000, p.17).

As investigações sobre o valor do patrimônio, e mais especificamente,


quem atribui esse valor ao patrimônio e em que esse valor está baseado,
Eduardo Roberto Jordão Knack | 235

seja na legislação vigente, ou na falta de uma legislação específica (como


no caso de alguns municípios), as justificativas históricas elaboradas pela
comunidade ou por vereadores são importantes para entender o sentido
que o patrimônio pretende afirmar (ou negar) frente à sociedade. Con-
tudo, cabe lembrar, nem sempre esse sentido é o significado assimilado
pela coletividade.
O debate sobre atribuição de valor ao patrimônio remonta aos estu-
dos de Riegl (2013), que observa a existência de “monumentos
intencionais”, obras construídas com intuito de rememorar alguma coisa,
e de “monumentos não intencionais”, aquelas obras que adquirem um
sentido memorial, mas não foram erigidas com tal função. Esta última ti-
pologia de monumentos trata, portanto, de valores atribuídos aos bens
culturais. Esses valores estão articulados com o contexto histórico em que
os grupos sociais envolvidos com a preservação da memória de uma co-
munidade vivem. O conjunto de valores a ser atribuído ao patrimônio
varia no tempo e no espaço, depende da cultura em que sujeitos e bens
estão tecendo suas relações.
Uma edificação, ao ser tomada como objeto de estudo, enquanto pa-
trimônio histórico-arquitetônico portador de identidade(s) para a cidade,
tem sua compreensão ampliada para a dimensão das representações,
deixa de ter apenas um sentido instrumental e passa também a ser reco-
nhecida como parte da história e parte desse mundo simbólico, imaterial
e sensível em que se encontram os bens culturais e os significados atribu-
ídos a eles. Olhar para um prédio e compreendê-lo apenas através de uma
visão funcionalista é negar aspectos históricos e culturais envolvidos na
construção dessa edificação.

Mesmo quando os locais não têm em si uma memória imanente, ainda assim
fazem parte da construção de espaços culturais da recordação muito significa-
tivos. E não apenas porque solidificam e validam a recordação, na medida em
236 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

que a ancoram no chão, mas também por corporificarem uma continuidade


da duração que supera a recordação relativamente breve de indivíduos, épocas
e também culturas, que está concretizada em artefatos. (ASSMANN, 2011,
p.318).

Os edifícios, ruas, praças, entre outros espaços de uma cidade trans-


cendem a existência dos indivíduos. Constituem marcos da memória para
sujeitos e grupos sociais (HALBWACHS, 2004). Os locais proporcionam
um senso de continuidade entre gerações, servindo também como conec-
tores entre o passado e o presente. O reconhecimento de determinados
locais como patrimônio evidenciam escolhas e relações de poder de uma
determinada sociedade, evidenciando quem pode cristalizar suas experi-
ências, suas referências culturais no espaço urbano. Muitos outros bens,
mesmo sem ser reconhecidos como patrimônio, não perdem sua impor-
tância para os grupos que neles se reconhecem e valorizam como elemento
significativo de suas identidades.

Cidade e patrimônio

A própria arquitetura, como área do conhecimento, reconhece a im-


portância do significado, a necessidade que os sujeitos têm de se identificar
com o lugar que habitam. As edificações, prédios, ruas, praças, calçadas,
etc. que compõem o espaço urbano de uma cidade não devem ceder radi-
calmente a um processo de verticalização como ocorre em Passo Fundo,
mais especificamente, em seu espaço central, onde acontece um choque
entre uma zona comercial e habitacional. O “centro” da cidade não pode
ser compreendido apenas por um viés técnico, instrumental, servindo ape-
nas para as necessidades profissionais e habitacionais, seu lado humano,
subjetivo, simbólico deve ser considerado e conciliado à utilidade. Fiore
comenta claramente sobre um dos principais objetivos da arquitetura:
Eduardo Roberto Jordão Knack | 237

Seu propósito é propiciar ao ser humano uma base existencial, um ambiente


que, além de proporcionar abrigo e condições instrumentais para realização
das várias atividades humanas, tenha também significado, um caráter próprio,
constituindo-se em “lugar”, revelando e dando uma forma concreta a signifi-
cados presentes no ambiente, com os quais as pessoas possam se identificar.
(FIORE, 2005, p.24).

O caso da cidade de Passo Fundo pode exemplificar questões sobre a


identificação em relação aos equipamentos e edifícios que nos cercam.
Passo Fundo iniciou um processo de modernização e verticalização de seu
centro urbano ainda na década de 1950, quando, em seu centenário, mo-
dernização urbana (embelezamento de ruas e praças, grandes edifícios,
entre outros elementos) representava o progresso, e era importante afir-
mar a cidade como um centro progressista na região norte do Rio Grande
do Sul. Esse processo, acentuado nas últimas décadas do século XX, trans-
formou os significados atribuídos ao cenário urbano. As poucas edificações
que sobreviveram a esse ímpeto de modernização pertenciam a sujeitos
que faziam parte do restrito grupo das elites político-econômicas da ci-
dade, como prédios de instituições político-religiosas, que representam o
desenvolvimento econômico e industrial da cidade.
Além de serem poucas edificações que restaram para serem tomba-
das na década de 1990 2, elas representam uma parcela pequena da
sociedade. As casas e prédios que representavam outros grupos, como por
exemplo, descendentes de escravizados, bairros operários, entre outros,
foram sendo demolidas nesse processo ou abandonadas pelo poder pú-
blico, caindo em descaso. O patrimônio histórico arquitetônico de Passo
Fundo, tombado entre 1990 e 2000 sobreviveu ao desenvolvimento ur-
bano da cidade justamente por pertencer ou a instituições públicas e

2
Na dissertação de mestrado foram analisados os bens arquitetônicos tombados entre 1990 e início de 2000.
238 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

religiosas ou a membros das elites econômicas e políticas, que tinham re-


cursos para manter seu patrimônio frente à crescente valorização dos
espaços na área central.
Mais uma vez, concordando com Fiore, “de longe, a maior parte da
arquitetura está num meio público, impondo sua presença a toda uma co-
munidade, a um público que não escolheu se deseja apreciá-la ou não”
(FIORE, 2005, p.24). A arquitetura que molda o espaço urbano obedece a
uma série de critérios – teóricos, disciplinares, éticos, políticos, entre ou-
tros. Está vinculada ao modelo cultural de uma sociedade, com suas
tensões e relações de poder.
As considerações de Ribeiro (2002) sobre cultura vão ao encontro das
ideias do presente trabalho. Procurando explicar a historicidade de uma
sociedade, as dinâmicas sociais, os conflitos e as disputas em torno dos
valores e orientações das ações coletivas, o autor chega no conceito de
“modelo cultural”. Seriam os modelos culturais, segundo Ribeiro, que ori-
entariam as mudanças sociais, juntamente com as relações de classe:

É o modelo cultural o mecanismo de legitimação do conjunto de orientações,


valores e signos sociais que definem os padrões de organização, repartição e
consumo. As classes sociais se relacionam através desse modelo. Portanto, a
historicidade de uma sociedade – e de uma cidade – depende do fato de as
várias classes e frações, constituídas em atores sociais, compartilharem de um
mesmo modelo cultural. Ao mesmo tempo, é através do modelo cultural que
se reconhece, de um lado, os atores em sua pluralidade, diversidade e conflito
e, de outro, os interesses comuns, ainda que as classes economicamente do-
minantes imponham os seus interesses e a sua visão de mundo. (RIBEIRO,
2002, p.89).

O patrimônio histórico arquitetônico é apenas uma representação


dentro da cidade vinculada a um modelo cultural maior. A análise do pa-
trimônio também demonstra os conflitos sociais resultantes da construção
Eduardo Roberto Jordão Knack | 239

histórica de um modelo cultural que orienta as ações políticas da socie-


dade, envolvendo conflitos muitas vezes silenciosos, pois os bens
tombados, legitimados como patrimônio são indissociáveis dos modelos
culturais daqueles grupos que tem força para intervir no espaço urbano. A
própria elitização do patrimônio histórico expõe um conflito silencioso.
Durante muito tempo, até praticamente os anos 1980, os bens culturais
reconhecidos como patrimônio pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN) 3, diziam respeito aos edifícios e monumentos
de “pedra e cal”, vinculados aos grupos que compunham elites políticas e
econômicas das cidades (igrejas, teatros, edifícios públicos, casarões, pala-
cetes, entre outros). (CHUVA, 2009; FONSECA, 2005). Esses “lugares de
memória” (NORA, 1993) asseguravam um patrimônio elitizado para re-
presentar o Brasil, ignorando outros espaços, práticas e sabres de outros
grupos, como os povos originários, quilombolas, entre outros.
Possamai (2002) mostra a importância para a história de estudar os
“lugares de memória”, como arquivos, bibliotecas, museus, monumentos,
patrimônios, entre outros:

[...] investigar os lugares de memória pode fornecer pistas interessantes aos


estudos históricos. Os processos de criação, difusão e perpetuação dos lugares,
que podem estar situados no âmbito simbólico e do imaginário de uma dada
sociedade, podem apontar “sintomas” sociais de camadas mais profundas.
(POSSAMAI, 2002, p.336).

Possamai (2002, p.335), fazendo referência a Pierre Nora (1993), diz


que os “lugares de memória seriam aqueles elementos destinados a fazer
uma ligação entre o passado e o presente dos indivíduos, congelando o
tempo”. A posição da autora vai ao encontro da noção de modelo cultural

3
Também foi chamado de Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN, e Diretório do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional – DPHAN.
240 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

exposta por Ribeiro. A investigação do patrimônio histórico arquitetônico


de Passo Fundo, por exemplo, revelou a construção de um imaginário da
cidade por parte de determinados segmentos, fruto de uma “cultura polí-
tica” (ou um modelo cultural, na expressão de Ribeiro) própria das elites
econômicas, bem como uma espécie de “conflito silencioso” em torno da
elitização desse próprio patrimônio, sendo ele mesmo um entre outros
símbolos que expressam esse imaginário.
Os bens tombados em Passo Fundo entre 1990 e 2000 materializa-
vam a presença de elites políticas, do poder público e do desenvolvimento
econômico. Entre essas edificações estavam o prédio do Banco da Provín-
cia (ocupado pelo Banco Itaú na época), Cervejaria Serrana Bade Barbieux
& Cia (que foi ocupado também pela Cervejaria Brahma), a Estação Férrea
da Gare, a Casa Gabriel Bastos (onde funcionou um banco de propriedade
de Gabriel Bastos, uma das lideranças do Partido Republicano Rio-Gran-
dese na região), a Igreja Metodista, o Prédio Texas do Instituto Educacional
(de tradição Metodista), por fim, os prédios onde funcionou a Intendência
Municipal (ocupado pelo Museu Histórico Regional e pelo Museu de Artes
Visuais Ruth Schneider), a Câmara de Vereadores (ocupado pelo Teatro
Municipal Múcio de Castro) e o Clube Pinheiro Machado (ocupado pela
Academi Passo-Fundense de Letras), tombados pelo município através de
um projeto de lei. (KNACK, 2007).

Representações e tensões envolvendo o patrimônio

Determinados grupos podem monumentalizar memórias, tombar


determinadas edificações que lembrem experiências vinculadas e/ou que
exemplificam certos modelos culturais, mas isso se torna problemático
quando tentam impor sua memória particular (uma espécie de “memória
privada”) sobre outros. Desta forma, o patrimônio histórico como bem
cultural é “elitizado”, seu acesso, sua compreensão é restringida a apenas
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uma parcela da sociedade, justificando cada vez mais a ideia de “cultura”


oriunda do senso do comum 4 da população. Quando olham para uma edi-
ficação “antiga” tombada e não compreendem o porquê daquele prédio ser
patrimônio, a não ser pelo fato de ser “antigo”, “velho” e pertencer ao “pas-
sado”, como se a história fosse algo que deve permanecer enterrado. Nesta
perspectiva elitizada a

[...] cultura possui duas dimensões: uma se refere à natureza mesma do bem
cultural, na medida em que incorpora certas características “espirituais”, con-
cebida como de ordem mais elevada; outra diz respeito a uma capacidade
especial, restrita a certas pessoas, para usufruir desses bens. (DURHAM, 1984,
p.24).

O patrimônio histórico, como bem cultural e como memória cristali-


zada em torno de um objeto, afirma um modelo cultural restrito a certos
grupos da população. Os bens culturais não são representativos para a
maioria, pois não o conhecem, não participaram das transformações soci-
ais que se tornam a base do valor desse patrimônio. A interpretação desses
bens, seus sentidos e valores não encontram amplo eco na sociedade, o
que leva muitas vezes ao seu abandono, depredação, pichação, etc.
De acordo com Pohl (2005, p.64-65), a “sociedade humana na cons-
trução de sua história elege alguns exemplos para serem lembrados como
os maiores representativos de sua cultura, sua arte, sua literatura, etc, para
se tornarem sua memória”, nesse sentido, o campo da memória patrimo-
nial, na ação de eleger os bens patrimoniais é palco de tensões entre grupos
sociais, pois para a memória e esquecimento formam uma dinâmica inse-
parável. O patrimônio pode se transformar em representações culturais
que legitimam memórias, ao mesmo tempo que excluem outras. Chartier
(1990) aprofunda o conceito de “representação”:

4
Sobre o conceito de senso comum ver: TEDESCO, 2004. p. 48.
242 | Ensaios sobre teorias da cultura e da etnicidade

Por isto está investigação sobre as representações supõe-nas como estando


sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cujos desa-
fios se enunciam em termos de poder e de dominação. As lutas de
representações têm tanta importância como as lutas econômicas para com-
preender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua
concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio.
(CHARTIER, 1990, p.17).

Para Chartier (1990), as representações seriam as estratégias, as prá-


ticas de determinados grupos ou segmentos da sociedade que visam fazer
reconhecer a sua identidade social, significando simbolicamente no
mundo suas ideias, posições e até seu próprio estilo de vida. O conceito de
representação articula “três modalidades da relação com o mundo social”
que envolvem o trabalho de “classificação e de recorte” que norteiam con-
figurações intelectuais presentes em diferentes grupos; “práticas visam a
fazer reconhecer uma identidade social” a ser exibida socialmente; “for-
mas institucionalizadas e objetivadas” que representam a existência dos
grupos. (CHARTIER, 2002, p.73).

Uma dupla via é assim aberta: uma que pensa a construção das identidades
sociais como resultando sempre de uma relação de força entre as representa-
ções impostas por aqueles que têm o poder de classificar e de nomear e a
definição, submetida ou resistente, que cada comunidade produz de si mesmo;
a outra que considera o recorte social objetivado como a tradução do crédito
concedido à representação que cada grupo faz de si mesmo, portanto, à sua
capacidade de fazer com que se reconheça sua existência a partir de uma exi-
bição de unidade. (CHARTIER, 2002, p.73).

As elites políticas conseguem institucionalizar suas práticas, tor-


nando-as oficiais, em contraposição com as práticas populares. O
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patrimônio pode ser entendido como uma representação do passado an-


corado em experiências relativas ao contexto vivido no presente e com
uma projeção futura. Não é um objeto destinado apenas a preservar o pas-
sado, mas caracteriza o presente e, possivelmente, constrói um ideal para
um futuro. Ao mesmo tempo em que o patrimônio lembra, monumenta-
liza, preserva e projeta representações, também faz com que outras sejam
esquecidas, de forma intencional ou não, o que acarreta o ressentimento
dos outros segmentos excluídos do direito à memória patrimonial. O pa-
trimônio pode ser empregado como representação da identidade de
grupos sociais, o que o mergulha nas relações de força observadas por
Chartier (2002). Ele pode ser fruto do “crédito” que os grupos investem
em sua construção para representar e demarcar sua presença no espaço
público.

Considerações finais

O presente trabalho procurou estimular um debate sobre relações,


tensões e disputas memoriais no espaço urbano. As cidades são cenários
construídos historicamente, que transcendem existências individuais.
Nascemos em um mundo urbano já definido, construído por diferentes
orientações (técnicas, teóricas, políticas, econômicas e culturais), e que vai
continuar existindo após nossa morte. Isso não significa que tal espaço es-
teja cristalizado, pelo contrário. Disputas e tensões pelas representações
memoriais exemplificam mudanças dinâmicas na composição do cenário
urbano que conhecemos.
O patrimônio é uma dessas representações. A concepção de patrimô-
nio do IPHAN é um exemplo. Foi ampliada, ressignificada a partir de 1980,
incluindo bens imateriais, práticas, saberes, lugares simbólicos, que envol-
veram valores e memoriais de grupos que não encontravam espaço nas
representações memoriais das elites políticas e econômicas, materializadas
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em suas construções arquitetônicas (igrejas, palacetes), muito pelo contrá-


rio. Os bens que forma tombados em Passo Fundo entre 1990 e 2000
refletem a concepção de patrimônio vinculada aos bens arquitetônicos por
excelência, a “pedra e o cal”. Outros espaços não foram alvo de políticas
públicas, como o Clube Visconde do Rio Branco, uma sociedade de auxílio
mútuo criada por afro-brasileiros descendentes de escravizados da região
no início do século XX; as casas de operários que existiam no entorno da
Estação Férrea da Gare e da Cervejaria Serrana também não figuraram
como bens significativos para serem tombados.
Para compreender os usos (e abusos) que o patrimônio está sujeito,
observar a articulação entre os conceitos de cultura, bens culturais e re-
presentações se torna necessário. A definição de cultura proposta está
embasada nas noções de sistema simbólico (DURHAM, 1984) e rede, ou
teia de significados articulados (GEERTZ, 2008). Esse sistema, ou teia que
envolve os sujeitos e grupos sociais fornece modelos culturais (RIBEIRO,
2002), dos quais resultam as representações (CHARTIER, 1990; 2002) de
mundo dos mesmos. O patrimônio é um bem cultural construído por
aqueles que o legitimam, que atribuem valor (RIEGL, 2013), que o ativam
(PRATS, 1998) patrimonialmente. Enquanto bem cultural (CARVALHO,
2002), está vinculado a um determinado modelo cultural que, no caso bra-
sileiro, durante muito privilegiou a arquitetura, a pedra e o cal,
configurando, portanto, representações elitistas da sociedade brasileira
afirmadas no espaço urbano.

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Eduardo Roberto Jordão Knack | 245

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Sobre os Autores

Bianca Obetine Magnus


É mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, na linha de pesquisa de História Política, Intelectuais e Mídia.
No mestrado, desenvolve pesquisa sobre a FRETILIN, um movimento político timorense, e
sua relação com Portugal no período da descolonização. Possui graduação em História
Licenciatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2019) e graduação
em História Bacharelado pela mesma instituição (2020).
E-mail: Bianca.Magnus@edu.pucrs.br

Caio Felipe Gomes Violin


Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia
Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Mestrando do Programa de Pós-
Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Graduado em Bacharel de Filosofia pela PUC-Campinas. Graduando em Teologia pela
UCDB. Professor de Ensino Fundamental e Médio. E-mail: caioempreg@hotmail.com

Charles Monteiro
Historiador, Historiador da Arte e Pesquisador PQ2 do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que atua como Professor Adjunto nos
cursos de graduação de História e de Pós-Graduação de História e de Letras (Escrita
Criativa) da PUCRS. Realizou Estágio Sênior com bolsa CAPES (Pós-Doutorado) em
História Cultural e Social da Arte na Université Paris 1 Panthéon - Sorbonne (2013-2014)
sob supervisão de Michel Poivert. É Doutor em História Social pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (2001) com bolsa CNPQ e bolsa sanduíche CAPES (1998-99) na
Université Lumière (Lyon 2/ França). É autor de três livros: Porto Alegre: Urbanização e
Modernidade (EDIPUCRS, 1995); Porto Alegre e suas escritas: História e memórias da
cidade (EDIPUCRS, 2006) e Breve História de Porto Alegre (Editora da Cidade, 2012); tendo
organizado outros nove livros; publicado 25 capítulos de livros no Brasil e no exterior, além
de 32 artigos científicos completos publicados no Brasil e no exterior. E-mail:
monteiro@pucrs.br
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Claudia Vargas Machado


É licenciada em História pela PUCRS e também é mestranda em História no Programa de
Pós-Graduação em História da PUCRS, Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail:
claudia.vargas@acad.pucrs.br

Déborah da Costa Ribeiro Barbosa


É graduada em História-Licenciatura pela Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(2020) e mestranda em História na mesma universidade. Realiza pesquisas desde 2017
com bolsa de iniciação científica e participação como apresentadora em eventos como V
Simpósio do Grupo de Trabalho História das Religiões e Religiosidade em 2017 (UPF), XIX
Salão de Iniciação Científica (PUCRS), em 2018, no VII EPHIS em 2020 (PUCRS) e no 31º
Simpósio Nacional de História, em 2021 com a pesquisa intitulada "A distância entre a pena
e o discurso: a construção dos indígenas na narrativa das Cartas Ânuas da Província
Jesuítica do Paraguai no século XVII". E-mail: Deborah.Barbosa@edu.pucrs.br

Eduardo Roberto Jordão Knack


É graduado (2005) em História pela Universidade de Passo Fundo, Mestre (2007) em
História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo.
Doutor (2016) em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, doutorado com período sanduíche na
Universidade Nova de Lisboa. Pós-doutorado (2016-2019) no Programa de Pós-Graduação
em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas. Atualmente
é Professor Adjunto e Coordenador da Unidade Acadêmica de História na Universidade
Federal de Campina Grande, onde também atua como Professor Colaborador no Programa
de Pós-Graduação em História, na linha de pesquisa Cultura e Cidade. Participa da Rede
Internacional de Pesquisa em História e Culturas no Mundo Contemporâneo. Temas de
interesse: comemorações, memória, patrimônio, cidades, imaginário, ensino de história.
E-mail: eduardorjk@yahoo.com.br

Giselle Perna
É formada em História pela PUCRS em 2006 e pós-graduada também pela PUCRS na área
de Patrimônio Histórico Artístico Nacional na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo.
Atuou como jornalista no Governo do Estado do Rio Grande do Sul entre os anos de 2008
a 2010, quando passou a trabalhar no setor de comunicação da Companhia Carris, também
como jornalista. Tem experiências em coberturas jornalísticas em eventos como Feira do
Sobre os Autores | 249

Livro (2009) Top Off Mide (2010), Carnaval (2010), Expointer (2012). Teve uma breve
pausa profissional para se dedicar a mais lindas das funções e aprendizados: Ser mãe da
Valentina. Atualmente cursa o segundo semestre do Mestrado em História na PUCRS, com
pesquisa na área das migrações femininas, delimitada na análise das migrantes
venezuelanas residentes na capital de Porto Alegre, sob o olhar das perspectivas gênero-
migração. E-mail: GISELLE.PERNA@edu.pucrs.br

Leonardo Birnfeld Kurtz


É mestrando em história na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)
e graduado em História na mesma instituição. Seus interesses de pesquisa se encontram
em três áreas gerais: História do Antigo Oriente Próximo, História dos Jogos e História do
Brasil na Era Vargas. E-mail: Leonardo.Kurtz@edu.pucrs.br

Michele Santos
Possui graduação em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2016). Tem
experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil Império, História
Regional do Brasil e História da escravidão. É mestranda em História pela Universidade do
Vale do Rio dos Sinos. E-mail: michelesantos.hist@gmail.com

Marcia Roque
Professora do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no
departamento de Comunicação, vinculada ao Programa de Estágio Pós-Doutoral em
Literatura, na área de concentração “Teoria da Literatura e Escrita Criativa!, na linha de
pesquisa “Cartografias Narrativas em Língua Portuguesa: Redes e Enredos de
Subjetividades”, sob a orientação do Prof. Dr. Paulo Ricardo Kralik Angelini no Programa
de Pós-Graduação em Letras da PUCRS. E-mail: marciaroque.lit@gmail.com
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acadêmica/científica das humanidades, sob acesso aberto, produzida em
parceria das mais diversas instituições de ensino superior no Brasil. Conheça
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