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Imaginario

Revista do Núcleo Interdisciplinar do Imaginário e Memória - NIME


e do Laboratório de Estudos do Imaginário -- LABI
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

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numero o
São Paulo - 1999
ISSN - 1413-666X
Apresentação 5

O Éhrio Apaixonado: Perfis de Gênero no Imaginám da MPB - 1930-1950 7


Maria Izilda Santos de Matos

De Ia fama y el exílio: el cartero de Neruda .27


Rob Rix

A Iconografia medieval da Natividade transformada em poesia por João Guimarães


Rosa 39
Tereza Aline Pereira de Queiroz

Sobre Alguns Temas em Anselm Kiefer. 67


Liana Cardoso Soares e Maria Luisa Sandoval Schmidt

Paisagem € Cultura.... 83
Maria de Lourdes B. de Alcântara e Regina T. Sader

IjelJen Social 91
Leslie Kaplan

Não há lugar como nosso lar: Antropologia, Multiculturalismo e Novas


Tecnologias. 95
Aleksandar Boskovic

Identidade, invisihilidade social, alteridade: experiência e teoria antropológica no centro


das práticas curativas 105
Francine Saillant

Cultura nativa e globalização: Terena em Campo Grande; (re)significando o


real 121
Paula Caleffi

Espaço simbólico 139


Jane Bittencourt

Human Adaptability Research Into The Beginningof the ThirdMillennium ....153


Michael A. Little and Ralph M. Garruto

Resenhas 175
Apresentaçio.^........5

O Flbrio Apaixonado: Petfts de Gênero no Imaginário da MPB - 1930-1950..


Maria Izilda Santos de Matos

De Ia fama y el exilio: el cartero de Neruda 27


RobRix

A Iconografia medieval da Natividade transformada em poesia por João Guimarães


Kosa 39
Teresa Aline Pereira de Queiroz

Sobre Alguns Temas em Anselm Kiefer...., 6 7


Liana Cardoso Soares e Maria Luisa Sandovai Schmidt

Paisagem e Cultura 83
Maria de Lourdes B. de Alcântara e Regina T. Sader

"Le LJen Social 91


Leslie Kaplan

Não há lugar como nosso lar: Antropologia, Multi cultura lis mo e Novas
Tecnologias. 95
Aleksandar Boskovic

Identidade, invisibilidade social, alteridade: experiência e teoria antropológica no centro


das práticas curativas 105
Francine Saillant

Cultura nativa e globalit^ação: Terena em Campo Grande; (re)significando o


real 121
Paula Caleffi

Espaço simbólico..... 139


Jane Bittencourt

Human Adaptability Research In to The Beginningof the Third Millennium 153


Michael A. Little and Ralph M. Garruto

Resenhas..... 175
X I

maginario

Diferença
número 5
São Paulo -1999
ISSN 1413-666x
Revista Publicação do Núcleo Interdisciplinar do Imaginário e Memória (NIME)
Imaginário e do Laboratório de Estudos do Imaginário (LABI) - Departamento de
n" 5 - 1 9 9 9 Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade
(PSA) do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP)
ISSN 1413-666X

Conselho Editorial: Maria Luisa Sandoval Schmidt, Maria Regina Toledo Sader, Maria de
Lourdes Beldi de Alcântara, Márcia Maria Cabreira Monteiro de Souza,
Marcelo Pedro de Arruda, Bernadete Castro Oliveira, Tatiana Freitas
Stockler das Neves, Carla Regina Hanssen

Conselho Consultivo: Antonio Cândido, Décio de Almeida Prado, Renato da Silva Queiroz,
Francine Saillant (Universidade de Lavai - Canadá), Adalberto Santana
(UNAM - México), Paulo Vanzolini, Maria Regina Toledo Sader, Maria
Luisa Sandoval Schmidt,

Editor: Maria de Lourdes Beldi de Alcântara

Secretaria: Denise PoUi Felix


Capa e Ilustração: Liana Cardoso Soares
Editoração Eletrônica: Joceley Vieira de Souza
Fotografia: Rômulo Fieldini
Revisão: Tatiana Freitas Stockler das Neves

Endereço para Correspondência:


Imaginário
Laboratório de Estudos do Imaginário (LABI)
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP)
Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues — Trav. 4 — Bloco 17 — Sala 22
CEP 05508-900 - São Paulo - SP - Brasü
Fone: (Oxx) 11 - 818-4386 ramal 22 - Fax (Oxx) 11-818-4475
e-mail: labi@edu.usp.br

Imaginário/NIME-LABI, Instituto de Psicologia,


Universidade de São Paulo. n°5 - São Paulo, 1999.
Patrocínio Cultural: Anual

ISSN 1413-666X

1. Antropologia 2. Arte 3. Geografia 4. Psicologia


Credíbel 5. Sociologia
Sumário
Apresentação 5

O Ébrio Apaixonado: Perfis de Gênero no Imaginário da MPB - 1930-1950 7


Maria Izilda Santos de Matos

De Ia famay el exilio: el cartero de Neruda 27


Rob Rix

A Iconografia medieval da Natividade transformada em poesia por João Guimarães Rosa 39


Tereza Aline Pereira de Queiroz

Sobre Alguns Temas em Anselm Kiefer. 67


Liana Cardoso Soares e Maria Luisa Sandoval Schmidt

Paisagem e Cultura 83
Maria de Lourdes B. de Alcântara e Regina T. Sader

Uen Social 91
Leslie Kaplan

Não há lugar como nosso lar: Antropologia, Multiculturalismo e Novas Tecnologias 95


Aleksandar Boskovic

Identidade, invisibilidade social, alteridade: experiência e teoria antropológica no centro daspráticas curativas. 105
Francine Saillant

Cultura nativa e globalização: Terena em Campo Grande; (re)significando o real 121


Paula Caleffi

Espaço simbólico 139


Jane Bittencourt

Human Adaptability Research Into The Beginning of the Third Millennium 153
Michael A. Little and Ralph M. Garruto

Resenhas 175
APRESENTAÇÃO

Sérgio Fingermann*

Diferença
Continuamente tenho me indagado sobre o pintar.
O que o pintar quer dizer?
É preciso.
E preciso encontrar alguma coisa.
Uma pista.
É isso...
Encontrar alguma coisa, nas anotações, nas citações, nos textos
grifados de outras pessoas.
Encontrar alguma coisa nas palavras do outro.
Fazer delas minhas palavras.
Para dizer aquilo que me escapa.
Para dizer aquilo que não me diz.
Para dizer do estranho, da vaga sensação, daquilo que não sei o
nome.
Para dizer do que falta, mas está aí.
Lembro-me de ter lido que os Deuses, ao abandonarem a vida
terrestre, teriam esquecido aqui, neste
Retiro, a sua linguagem: a arte.

* Artista Plástico.
Fingermann, Sérgio. Imaginário - USP, n. 5, p. 05-06, 1999.

A arte.
E preciso ver diferentemente do que se vê.
A arte desestabiliza.
A arte é uma ruptura no circuito do uso, é uma espécie de anomalia
que faz a coisa sair do mundo.
Não sendo mais, torna-se sua aparência, sua imagem.
Converte-se em obra de arte.
Assim o estranhamento se produz.
E isso nos desestabiliza.
Provoca sensações no corpo.
Sensações que, se forem elaboradas, transformar-se-ão em
pensamentos.
Este acontecimento não produz nem certezas, nem claridade.
Este acontecimento não fornece apoio sobre o indestrutível nem
sobre a certeza (a vida).
Já dissemos: a obra nos desestabiliza, nos tira de nós mesmos, do
Hábito.
Podemos dizer que ela contém o momento da verdade.
É como se fosse um rasgo,
(a verdade não existe)
Cria um território.
Estranho território, região onde a impossibilidade pode ser
afirmação...
Nesse lugar, nesse território o olhar é uma forma de sinceridade.
O olhar é uma forma de compreensão, mas que só vai compreender
se o essencial lhe escapar -
O outro do mundo.
O olhar trabalha a qualidade do diferente.
o Ébrio Apaixonado: Perfis de Gênero no
Imaginário da MPB - 1930-1950

Maria Izilda Santos de Matos*

Resumo: I^ara esse artigo foram seleáonadas as canções de dois compositores da MPB: Vicente Celestino^
que durante as décadas de 1930/40 e 50 fet^ grande sucesso com a música O éhriOy além de ter em seu
repertório outras músicas com a mesma temática, e lj4picinio Rodrigues, cuja ampla produção focali^ a
hoemia. Através dessas canções, pretende-sefocalizar o imaginário em torno da figura do ébrio e dos espaços
da boêmia, além de rastrear as relações e tensões que se estabeleceram entre os gêneros.
Palavras-chave: MPB, ébrio, boêmia, Vicente Celestino, l^upidnio Rodrigues, gênero

A produção musical apresenta-se como um corpo documental particularmente


instigante para a análise histórica, já que as canções por muito tempo constituíram
um dos únicos documentos sobre certos setores relegados ao silêncio, aqui em pau-
ta: o ébrio. A música também é apontada como uma das únicas instâncias públicas
em que o homem se permite falar com sinceridade sobre seus sentimentos com
relação à mulher, confessando suas angústias, medos, fraquezas, dores e desejos.
(OLIVEN, 1987).

Doutora em História pela USP e professora titular da PUC-SP, do Programa de Pós Graduação em
História. Obras: Trama e Poder. 3° ed., Rio de Janeiro: Sete Letras, 1997. Melodia e Sintonia: o masculino,
o feminino e suas relações em"LupicínioRodrigues. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996. Dólares Duran:
experiênáas boêmias em Copacabana nos anos 50. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
1o
1oMatos, Maria Izilda Santos de. Imaginário - USP, n. 5, p. 07-25, 1999.

Não se identifica a produção musical como reflexo; as músicas aparecem como


elementos do imaginário, entrelaçando-se num processo interno de influência mútua,
ou seja, simultaneamente constituintes e constituídas, em que os perfis de gênero são
simultaneamente produto e processo, que em sua repetição e circularidade produz e
reproduz sistemas que organizam, expressam e regulam comportamentos. Nas can-
ções, os perfis retornam, circulam, interpenetram-se, transformam-se e refletem as
imagens ideais do masculino-feminino e a sua inversão - o "não deve ser".^
Para a presente análise 5 .. ,
foram selecionadas as can-
ções^ de dois compositores da
MPB: Vicente Celestino^, que
no período em foco fez gran-
de sucesso com a música O
éhfio, além de ter em seu reper-
tório outras músicas com a
mesma temática, e Lupicínio
Rodrigues^, cuja ampla produ-
ção focaliza a experiência
boêmia. Através dessas can-
ções pretende-se focalizar a
figura do ébrio e os espaços
da boêmia, além das relações
e tensões que se estabelece-
ram entre os gêneros.

Lá no bar aonde eu vivo.


(Lupicínio Rodrigues)

As composições dos mú-


sicos citados focalizavam os
espaços da noite onde convi-
viam intensamente homens e
1oMatos, Maria Izilda Santos de. Imaginário - USP, n. 5, p. 07-25, 1999.

mulheres boêmios. Enquanto a cidade dorme, em certas ruas, nos bares, nos caba-
rés, nos salões de bilhar, em salas pouco iluminadas e enfumaçadas, nos salões de
dança e strip-tease, as tensões urbanas emergem, vivenciadas de forma fragmentadas
e diversificadas por seus freqüentadores, fazendo da cidade lugar para se trabalhar,
divertir-se, viver aventuras e desventuras da noite.
O processo de urbanização e industrialização emergente, desde os anos finais
do século XIX, trazia a preocupação com a ordem e o trabalho. Criava-se a necessi-
dade de diferenciar o espaço do trabalho de outros espaços, tornando cada vez mais
clara uma divisão no urbano. A música, em termos gerais, acompanhou tais mudan-
ças (MATOS, 1982). Em algumas cidades, como o Rio de Janeiro, o samba foi ''ar-
rastado" morro acima com os trabalhadores e, em outras, como São Paulo, para os
cortiços e "malocas" onde se organizaram as comunidades, criaram-se laços de soli-
dariedade e prazer, bem como se manifestavam as críticas às pressões cotidianas da
"ordem urbana", à rotina individualista e tediosa do trabalho e da cidade.
Entre o morro e a cidade
A batida é diferente
O morro é pra tirar samba
A cidade é pro batente
(O morro está de luto, Lupicínio Rodrigues)

Os espaços, com suas imagens e sons, trazem representações fragmentárias


como suporte de memórias diferentes, contrastadas, múltiplas. As canções falam do
bar, do cabaré, da taberna, do botequim como espaços públicos, em contraposição
ao lar. Nas canções percebe-se, num primeiro momento, uma certa valorização dos
espaços de convívio boêmio — o bar, a taberna, o botequim — como pontos de
encontro entre os amigos, para beber e conversar, identificados como espaço de
solidariedade, em particular masculina^:

Lá no bar aonde eu vivo


A tomar aperítivo
Na hora de descansar ...
(Boneca de doce, Lupicínio Rodrigues)
1o Matos, Maria Izilda Santos de. Imaginário - USP, n. 5, p. 07-25, 1999.

Reforça-se que os homens deviam priorizar a amizade de outros homens. As-


sim, o masculino tinha espaços - o bar - e valores compartilhados. A solidariedade
masculina era um sentimento explicitamente positivo, em detrimento das relações
com as mulheres, marcadas pela divergência, falsidade e dor, sendo o bar identifi-
cado como um espaço de fuga às cobranças e pressões do lar, ou seja, da mulher.
No lar, no convívio da família que ele próprio construiu, sente-se incapaz, impaci-
ente, desconfortável, mas ao mesmo tempo tem necessidade dele. O vazio o leva
a procurar a bebida e o convívio etilico para suprirem, de alguma forma, a lacuna.
Todavia, essas imagens não são as únicas. Em Taberna, Lupicínio Rodrigues,
além de mostrar o álcool como uma fuga dos problemas amorosos no qual o boêmio
apaixonado "afoga os sentimentos", procura esquecer o desamor, a solidão, e ''mor-
re de arrependimento". As ambigüidades no que se refere ao espaço aparecem; a
taberna como lugar de fuga, em contraponto ao lar, espaço do refúgio e aconchego:
Na Taberna
Eu passei o dia
Vendo o entra o sai da freguesia
Quase esqueci
A ingratidão que te fiz
E nos tragos por mim ingeridos
Afoguei parte dos meus sentidos
Chegando a julgar-me um infeliz
Foram então chegando as horas mortas
As tabernas fecharam as portas
Voltei novamente a minha solidão
E morrendo de saudade tua
Vim pra minha casa que é a rua
E aqui estou a implorar ... perdão
Amor
A chuva molha-me as vestes
E eu sinto mesmo estar prestes
Até as forças perder
Amor
Faz tanto frio aqui fora
1oMatos, Maria Izilda Santos de. Imaginário - USP, n. 5, p. 07-25, 1999.

Se me mandares embora
Tenho medo de morrer
Não me negues
Por favor de Deus
A paz de teu abrigo
Se já não me queres mais
Deixa eu ser só teu amigo
Porém, abre esta porta
Perdoa tudo que te fiz
E deixa-me que morrerei feliz.
(Taherna, Lupicínio Rodrigues)

Se em algumas composições o lar era geralmente representado com um ranço


de negatividade, identificado com a monotonia, a desarmonia e o espaço da diver-
gência^, entre outras, aparece idealizado como refúgio, abrigo, espaço balsâmico da
paz e da felicidade conjugai.
Oh Deus!...
Se tens poderes sobre a terra
Deves dar fim a esta guerra
E os desgostos que ela traz
Derrame harmonia
Ponha tudo em seus lugares
Com o bálsamo da paz
Verás nascer maisfloresnos caminhos
Mais canto entre os passarinhos
No mundo maior prazer
E a mocidade mais forte ...
(Dona divergência, Lupicínio Rodrigues)
Nos espaços, e com eles, delineiam-se as funções e estabelecem-se as relações
entre os gêneros. A casa, além de espaço do "repouso do guerreiro" que passa a noite
na boêmia, era o espaço onde o homem devia ser companheiro dedicado e constante,
o arrimo da família, trabalhador esforçado, provedor do sustento para a mulher:
.. .Entra, podes entrar a casa é tua
Já que cansaste de viver na rua
1 o Matos, Maria Izilda Santos de. Imaginário - USP, n. 5, p. 07-25, 1999.

E teus sonhos chegaram ao fim...


Mas de uma coisa podes ter certeza
Que em teu lugar aqui na minha mesa
Tua cadeira ainda está vazia
Tu é a filha pródiga que volta
Procurando em minha porta
O que o mundo não te deu ...
Mas pra te abrigar podes ocupar meu teto
Pra te alimentar podes comer meu pão
{Cadeira vaí(ia, Lupicínio Rodrigues)

O lar também era o espaço onde se explicitavam as funções da mulher que


devia ser meiga e laboriosa, procurando cercar o companheiro de cuidados, e de
quem se esperava o desempenho no trabalho doméstico (lavar, passar e cozinhar):

Eu falo porque essa dona


Já mora no meu barraco
A beira de um regato
E um bosque em flor
De dia me lava a roupa
De noite me beija a boca
E assim nós vamos vivendo de amor.
{Se acaso você chegasse^ Lupicínio Rodrigues)

Contudo, freqüentemente, a mulher, pela sua essência infiel, instável e traiçoei-


ra, não valorizava esse lar construído pelo homem como prova do seu amor:
Como pôde ela partir
Sem ao menos dar-me adeus?
Eu não posso prosseguir
Sem a luz dos olhos meus
Deus te peço por Maria
Não ver mais a luz do dia
Se ela não puder voltar
Voltar para sempre ao meu lar.
{Falando ao coração^ Vicente Celestino, 1938)
1oMatos, Maria Izilda Santos de. Imaginário - USP, n. 5, p. 07-25, 1999.

O ébrío apaixonado e a ingrata criatura - imaginário masculino e fe-


minino

I
Senhor delegado, eu sou um assassino,
Entrego-me à prisão cumprindo meu destino.
Estou arrependido de praticar o crime,
Deixai que lhe descreva, senhor, como perdi-me:

Um dia apareceu deitada em minha porta,


Uma mulher doente, faminta quase morta.
Tratei-a com carinho, tornou-se tão bonita,
Foi minha companheira ... hoje é minha desdita.
II
A ingrata me fugiu, não soube mais vencer
Tornei-me até ladrão e dei para beber ...
E quantas, quantas noites ao me apertar o sono.
Dormia nas sarjetas tal qual um cão sem dono,
E ela vinha em sonho buscar-me com carícia.
Quando era despertado ... nas garras da polícia.
III
Farto de sofrer, fui procurar um amigo,
Como último recurso fui lhe pedir abrigo ...
Negou-me e disse ainda "Jamais o conheci!"
Virou-me então as costas quando uma voz ouvi.
Reconheci ser dela, na casa e à força entrei,
Matei o falso amigo e a mulher que amei.
Eu sei que fui covarde, mas isso pouco importa;
Se há muito que minh'alma, por ela estava morta.
(Matei, Vicente Celestino, 1940)

A canção descreve uma trajetória e características que se repetem em outras com-


posições. A mulher, inicialmente só, desprotegida, doente, faminta, quase morta, foi
acolhida pelo homem que, na sua superioridade, tratou-a com carinho e sinceridade.
1 o Matos, Maria Izilda Santos de. Imaginário - USP, n. 5, p. 07-25, 1999.

Tornou-se bonita, sedutora e encantadora; foi por um período a companheira, mas


toda a sua essência não tardou a se manifestar, com seu lado ingrato, instável e infiel.
As promessas, os sonhos, os juramentos de amor pleno e eterno, esvaem-se
com a fuga da ingrata, gerando no homem a frustração amorosa, a desilusão e uma
dor imensa de estar só, dirigindo-o ao alcoolismo, seguido do declínio, jogando a
figura masculina na sarjeta.
Na procura da solidariedade de um amigo, descobriu a traição. Os sentimentos
em jogo no triângulo amoroso estavam envoltos em ambigüidade e ressentimento.
O homem recriminou a mulher amada pela traição, com o próprio amigo, culminan-
do num momento de loucura — talvez o ciúmes alcoólico, seguido do crime.
As canções mostram um ser sofredor, marcado pela dor e pela solidão, obceca-
do pela concorrência, prisioneiro do desempenho, sentimentalmente inferiorizado,
agressivo, referendando os desencantos frente à mulher que se recusa ao papel de
esposa — companheira, despreza as comodidades da vida doméstica e do conforto a
ela possibilitado por ele, o provedor — e parte em busca de liberdade e satisfação para
seus "desejos mais ocultos"; um mundo de prazeres com outros homens.
No mesmo sentido, Lupicínio cantava:
Amigo, acabou-se o meu dinheiro
Amigo, se é amigo verdadeiro
Paga um copo, eu preciso beber mais
Só um trago, é bem que você me faz
Não censures o pedido deste amigo
A bebida para mim é um lenitivo
Se eu não beber, fico louco
Se eu não beber, desespero
Só bebendo eu esqueço a mulher
A mulher que eu quero.
{Mais um trago, Lupicínio Rodrigues)

A concepção negativa do feminino na composição assume o papel de contraste


e de reforço aos seus aspectos desejáveis. Apregoava-se a mulher voltada às funções
de esposa e mãe, e as propostas de união escoravam-se em ofertas que não se res-
1oMatos, Maria Izilda Santos de. Imaginário - USP, n. 5, p. 07-25, 1999.

tringiam à troca afetiva, pois incluíam vantagens materiais, constituindo um ''pacto


de reciprocidade", a mulher devendo ser sincera, caseira, fiel e não mentirosa, enga-
nadora e interes seira.
Em contraponto, o homem devia ser o provedor, enquanto o "não-deve-ser" mas-
culino dizia respeito ao vagabundo, ébrio, "perdido para o mundo". A referência era o
mundo do trabalho; logo, o homem devia ser trabalhador, ordeiro e bom pai de família.
Assim, as músicas refletiam, cristalizavam e divulgavam um imaginário de masculinidade,
simultaneamente exprimindo e condicionando o "ser homem" de sua época.
Elas me chamam de louco
Porque eu bebo, senhor
Depois que eu bebo saio na rua
Gritando por meu amor
Louco não senhor
Eu não sou louco
E que um coração magoado
Não fala baixo, nem bebe pouco
Se eles soubessem a minha situação
O quanto me custa aturar o meu coração ...
Iriam compreender que eu não sou louco!
É que um coração magoado
Não fala baixo nem bebe pouco
ÇEu não sou louco, Lupicínio Rodrigues)

Aqui o bêbado é identificado como louco, quem, na falta da razão, desvia-se de


uma conduta civilizada. O homem deveria primar pela razão, não se deixar envolver
pelos sentimentos e nem mostrá-los abertamente, gritando sua dor e pelo amor da
mulher, muito menos chorar. Todavia, o pranto era apresentado nas canções não
como sinal de fraqueza masculina, mas como garantia, prova da sinceridade de seu
amor, já que aprender a amar era, e é, também aprender a chorar.

Mulher, o teu capricho vencerá


E um dia tua loucura findará
A Deus, a Deus minh'alma entregarei
1 o Matos, Maria Izilda Santos de. Imaginário - USP, n. 5, p. 07-25, 1999.

E de outro fores, juro, morrerei


Amar, que sonho lindo, encantador!
Mais lindo por quem leal nos tem amor
E tu vens desprezando sem razão
A mim que choro e busco em vão
O teu ingrato coração.
{PaMipa, Vicente Celestino, 1937)

Esse amor-dor estava localizado no coração que aparecia c o m o u m ser com


vida própria que abrigava os sentimentos, mas ao m e s m o tempo pertencia ao sujeito
amoroso e expressava seu sentir.

Eu não tenho mais ninguém


Vivo só em solidão
Esta vida sem um bem
Que me serve, coração?
Já cansador de penar
Não tens forças pra pulsar
Eu te peço refletir
Sem ela não, vamos, partir
Eu já não posso resistir.
{Falando ao coração^ Vicente Celestino, 1938)

N a verdade, o coração era o centro da produção poética, o centro das emoções,


e recebia adjetivos c o m o "coitado", "partido", "pobre" e " m a g o a d o " quando sofria
os males perpetrados pela mulher amada que, por sua vez, tinha u m coração "per-
verso" n u m peito infiel.
Todavia, o coração, mais do que u m substantivo adjetivado, tinha vida e era
principalmente sujeito de ações como "agonizar", "palpitar", "morrer", "sofrer",
"pedir compaixão". Dor, mágoa, ciúme, saudade, despeito, ressentimento, vingança,
remorso, culpa, eram sentimentos abrigados no coração, centro de constantes dis-
putas, n u m intenso conflito entre a paixão e a razão, como e m e meu coração-.

Quando o coração tem mania de mandar na gente


Pouco lhe interessa a agonia que a pessoa sente;
1oMatos, Maria Izilda Santos de. Imaginário - USP, n. 5, p. 07-25, 1999.

Eu por exemplo sou um desses infelizes,


Que nem direito tenho tido de pensar
Pois meu coração tem mania de me governar
Eu preciso esquecer a mulher que me fez tanto mal,
tanto mal que me fez
E ele insiste em dizer que lhe quer
E que eu devo-lhe procurar outra vez
E por isso vivemos brigando, toda a vida, eu e meu coração;
Ele dizendo que sim, e eu dizendo que não.
(Eu e meu coração, Lupicínio Rodrigues)

Nesse caso, a voz do coração opõe-se à voz da razão, as duas habitavam o


mesmo homem, um ser bipartido em conflito íntimo.
Tanto nas composições de Vicente Celestino como de Lupicínio Rodrigues, a
mágoa localizada no coração levava ao desvio na conduta masculina, geralmente
atribuído ao mau proceder feminino:

Eles dizem que eu bebo demais


E que sou um vagabundo
Todos falam que sou um perdido
Um perdido pro mundo
Quando eu passo os falsos amigos,
De mim acham graça
E murmuram: Ali vai
Um ébrio cheirando a cachaça
Eles falam
Porque não conhecem o meu drama real,
Esta vida que levo, bem sei,
Não é vida normal
Vou contar a vocês minha história
Este drama que me destruiu
Tive alguém que amei com loucura
E este alguém me traiu.
(Minha história, Lupicínio Rodrigues)
1 o Matos, Maria Izilda Santos de. Imaginário - USP, n. 5, p. 07-25, 1999.

Se o homem tinha a obrigação de trabalhar para sustentar a sua mulher, esta


lhe devia carinho, compreensão e fidelidade, pois tal devia ser o seu papel de espo-
sa. Ressalte-se que, através da música, também se impõem valores aos homens,
indivíduos que trabalhavam ou que estavam aptos ao trabalho e, logo, deviam se
submeter à disciplina do cotidiano de trabalho, de preferência sem contestação.
(TOTA, 1980)
Em 1936, Vicente Celestino fez grande sucesso como sua composição O ébrio.
No mesmo ano estreou a peça homônima, depois transformada em filme dirigido
por Gilda de Abreu e em novela, em 1965, na antiga TV Paulista (Globo). Na canção
ele cantava e interpretava o ébrio:
Nasci artista. Fui cantor. Ainda pequeno levaram-me para uma escola de canto. O
meu nome, pouco a pouco foi crescendo, crescendo, até chegar aos píncaros da gló-
ria. Durante a minha trajetória artística tive vários amores. Todas elas juravam-me
amor eterno, mas acabavam fugindo com outros, deixando-me a saudade e a dor.
Uma noite, quando eu cantava A tosca, uma jovem da primeira filha atirou-me uma
flor. Essa jovem veio a ser mais tarde a minha legítima esposa. Um dia, quando eu
cantava A Força do Destino, ela fugiu com outro, deixando-me uma carta, e na carta
um adeus. Não pude mais cantar. Mais tarde, lembrei-me que ela, contudo, me havia
deixado um pedacinho de seu eu: a minha filha. Uma pequenina boneca de carne que
eu tinha o dever de educar. Voltei novamente a cantar, mas só por amor à minha filha.
Eduquei-a, fez-se moça, bonita ... e uma noite, quando eu cantava ainda mais uma
vez A Força do Destino, Deus levou a minha filha para nunca mais voltar. Daí pra cá
eu fui caindo, caindo, passando dos teatros de alta categoria para os de mais baixa.
Até que acabei por levar uma vaia cantando em pleno picadeiro de um circo. Nunca
mais fui nada. Nada, não! Hoje, porque bebo a fim de esquecer a minha desventura,
chamam-me ébrio. Ébrio ...
I
Tornei-me um ébrio e na bebida, busco esquecer
Aquela ingrata que eu amava e que me abandonou;
Apedrejado pelas ruas vivo a sofrer;
Não tenho lar, nem parentes, tudo terminou.
Só nas tabernas é que eu encontro meu abrigo,
Cada colega de infortúnio é um grande amigo.
Que embora tenham como os seus sofrimentos.
1oMatos, Maria Izilda Santos de. Imaginário - USP, n. 5, p. 07-25, 1999.

Me aconselham e aliviam os meus tormentos.


II
Já fui felÍ2 e recebido com nobreza até,
Nadava em ouro e tinha alcova de cetim
E a cada passo um grande amigo que depunha fé,
E nos parentes ... confiava sim.
E hoje ao ver-me na miséria tudo vejo então
O falso lar que amava e que a chorar deixei
Cada parente, cada amigo era um ladrão, me abandonaram e roubaram o que amei.
III
Falsos amigos eu vos peço e imploro a chorar,
Quando eu morrer na minha campa nenhuma inscrição,
Deixai que os vermes pouco a pouco venham terminar
Este ébrio triste este triste coração.
Quero somente que na campa em que eu vou repousar
Os ébrios loucos como eu venham depositar
Os seus segredos ao meu derradeiro abrigo
Suas lágrimas de dor ao peito amigo.
{Ébrio, Vicente Celestino)

Pode-se perceber a recorrência de uma seqüência narrativa. A justificativa para


ter se tornado um ébrio era a busca de esquecer a mulher amada e ingrata que o
abandonou. Descreve-se toda a situação do ébrio, apedrejado pelas ruas, na miséria,
sem lar, dormindo na sarjetas, sem parentes, enfim, sem identidade. Encontrava
como único abrigo as tabernas, onde os outros ébrios eram os companheiros de
sofrimentos e aliviavam solidariamente seus tormentos.
Sua situação, anteriormente, era harmoniosa, de felicidade, prosperidade e rique-
za, cercado de amigos e familiares, seguida de um fato que rompeu com esse estado.
O desacerto foi causado pelo mau proceder da mulher cuja falsidade e infideüdade o
levaram ao abandono e à bebida.
E era chorando — o pranto como a prova maior desse amor, mesmo que venha
a demonstrar as fragiHdades masculinas - , que implorava vislumbrando a morte
como o único fim — uma campa como um monumento para que os outros ébrios
com trajetórias idênticas pudessem depositar "suas lágrimas de dor ao peito amigo".
1 o Matos, Maria Izilda Santos de. Imaginário - USP, n. 5, p. 07-25, 1999.

A narrativa constrói uma autovalorização masculina como justificativa ao


mau proceder da mulher. A concepção negativa do feminino nas composições as-
sumia o papel de contraste e de reforço aos aspectos desejáveis do masculino.
Todavia, o homem aparecia obcecado, sentimentalmente inferiorizado, inseguro.
A masculinidade, a virilidade potente era matizada pelo sofrimento de perda e pela
incapacidade de se engajar na relação com outras pessoas, a não ser outros ébrios.
Criticava-se indiretamento o homem movido pelos sentimentos, apregoava-se
o homem isento de emoção, o que exigiria que abandonasse uma parte de si mesmo,
que fosse independente e só contasse consigo mesmo, jamais manifestasse emoção
ou dependência, sinais de fraqueza, sinais femininos. Mas isso não ocorria sem con-
flitos em face do "dever-ser" masculino, suas representações, sentimentos e o seu
descaminho para o álcool.
Assim, o tornar-se homem envolve fatores culturais num processo longo e difí-
cil. A masculinidade não era dada, era construída mediante um processo de diferencia-
ção no qual, longe de ser pensada como um absoluto, era relativa e reativa, na medi-
da que se via desestabilizada pelas mudanças da feminilidade.
O ser homem e o ser mulher nas canções eram, antes de tudo, papéis sociais
e culturais. As diferenças e as semelhanças entre os gêneros eram apontadas pelos
compositores, mas nos dois procedimentos o homem sempre se apresentava depen-
dente da mulher. Enquanto o homem era fundamentalmente sincero, honrado e
generoso, apresentado como mais sedentário, a mulher era, em sua essência, falsa,
portanto, ingrata, traidora, volúvel porque não sabia amar, abandonava o lar cons-
truído pelo homem como testemunho da solidez deste amor. Evidenciavam-se,
assim, pares de oposição nos quais o masculini foi colocado positivamente em
contraponto ao feminino.
As canções recriminavam a mulher, apontavam-lhe erros, denunciavam-na como
"maldita", "fingida", "desdita", principalmente "ingrata", "infiel" e também "cru-
el", traiçoeira", "vaidosa", "causa da perdição".
Nas composições, o comportamento feminino aparece dotado de diferentes signi-
ficados, geralmente negativos e desqualificadores. Assim, a mulher era um ser essencial-
1oMatos, Maria Izilda Santos de. Imaginário - USP, n. 5, p. 07-25, 1999.

mente perigoso, duvidoso, instável, volúvel e falso. Os versos denunciavam a duplicidade


feminina: sob a aparência frágil e dócil, ocultavam-se a falsidade e a ingratidão.
Os qualificativos femininos positivos apareciam raramente; mais no sentido de
caracterizar um "dever-ser" das mulheres. Adjetivavam as mulheres como meigas e
mimosas, belas e encantadoras, principalmente quando jovens, deixando claro o que se
esperava delas: honestidade, fidelidade, castidade e sinceridade, refreadas no lazer e no
prazer, companheiras de todos os momentos, compreensivas, mesmo nas dificuldades.
Nas canções a mulher aparecia dominada por instintos primitivos: ciúmes, vai-
dade, infidelidade, crueldade.
Disse um campônio à sua amada
Minha idolatrada diga o que quer ...
E ela disse ao campônio
Se é verdade tua louca paixão
Parte já e pra mim vá buscar
De tua mãe inteiro o coração!
{Coração materno, Vicente Celestino, 1937)

Apesar de atribuir vários significados e predicados às mulheres, as canções, na


fronteira do perceptível entre o dito e o não-dito, apregoavam a mulher voltada para
o lar, ao marido e à criação dos filhos, determinando papéis que na sua repetição e
circularidade reforçam a imagem da "rainha do lar".
Nas composições pode-se perceber o entrelaçamento das imagens femininas e
masculinas, que se constituíram num processo interno de influência mútua: ao mes-
mo tempo que continham críticas à ordem estabelecida, determinavam as caracterís-
ticas ideais do masculino e do feminino. Nelas, identidade e diferenciação eram faces
de um mesmo processo permeado pelo poder.

Desvendando a trama das canções


A produção musical aqui analisada ordenou e classificou o real pelos versos
que procuraram dar "naturalidade" a estas construções. Os comportamentos femi-
ninos nas músicas foram dotados de diferentes significados, geralmente negativos
1 o Matos, Maria Izilda Santos de. Imaginário - USP, n. 5, p. 07-25, 1999.

e desqualificadores. A versão da mulher mais presente era a de quem representa a


falsidade, infidelidade e traição.
As canções revelam o entrelaçamento das imagens femininas e masculinas,
uma vez que as concepções de mulheres e de relação amorosa eram ambíguas e
complementares, mas unificadas por uma essência feminina caracterizada pela vo-
lubilidade, logo com potencial para a infidelidade, per jura e ingratidão, de modo
que teriam nos homens objetos de seus caprichos. Todavia, as canções também
apregoavam, de forma mais oculta, outros papéis femininos: mãe, esposa fiel e
recatada, rainha do lar.
As canções centradas no ébrio-apaixonado, assim como o fizeram com as mu-
lheres, reforçaram uma essência masculina. Frente à mulher com sua essência falsa,
ingrata, traidora, volúvel, o homem era fundamentalmente sincero, generoso, firme,
honrado, quem construía o lar como testemunho de solidez do amor. Evidenciam-
se pares de oposição nos quais o masculino era colocado positivamente em contra-
ponto ao feminino. Do mesmo modo, em oposição ao ébrio, "'perdido para o mun-
do", "vagabundo", o homem devia ser trabalhador, provedor, bom pai.
Nas canções, as relações entre os homens encontram-se permeadas de solidari-
edade. Eram, portanto, relações positivas, ao contrário da relação homem-mulher,
envolvida em muita dor, traição, solidão, que levavam o homem ao descaminho. A
mulher ingrata que abandona ou trai, ferindo a honra masculina, em geral, com um
amigo, era a culpada pelo encaminhamento pra a bebida, jogando-o na sarjeta. O
ébrio era aqui representado como uma vítima que teve sua essência e sua trajetória
desviadas pelo mau proceder feminino.
Os espaços também definem-se: ao homem reserva-se a esfera pública e à
mulher, a privada. A solidariedade masculina era exercitada particularmente no
bar, no botequim, espaço de encontro, desabafo, de conversar com os amigos,
trocar experiência.
Cabe lembrar que a construção das representações de gênero nas canções, fez-
se por meio da tecitura de uma trama em que estiveram presentes as relações de
poder, constituindo-se um processo dinâmico em que os perfis de comportamento
de gênero se fazem, desfazem-se, circulam e refazem-se. O entrelaçamento das ima-
1oMatos, Maria Izilda Santos de. Imaginário - USP, n. 5, p. 07-25, 1999.

gens femininas e masculinas dá-se num processo interno de influência mútua, ou


seja, simultaneamente constituintes e constituídas, sendo a construção das imagens
culturais de gênero simultaneamente produto e processo de sua representação.
As representações masculinas e femininas construídas nesses discursos não só
consolidam diferenças como contém hierarquias. Ao mesmo tempo que manifes-
tam críticas à ordem estabelecida, determinam as características ideais do masculino
e do feminino. Exagera-se nas diferenças, minimizam-se as características comuns,
assim, definem-se e estabelecem-se hierarquias. Identidade e diferenciação surgem como
faces de um mesmo processo permeado pelo poder. Cabe destacar, no entanto, que não
há uma masculinidade ou uma feminilidade únicas, modelos universais, válidos para to-
dos os tempos e lugares. São imagens de poder que explicitam visões mais voltadas para
o "dever ser" do que para o "ser", num processo de construção das representações de
gênero regido por uma dinâmica de relações de dominação e exclusão.

Abstract: For thispaper mre selected songs of tm authors of Bra^ilian PopularMusic: Vicente Celestino
author of the Drunk, a hit of 1930-40-50, has other compositions ahout the some theme, and L.upicinio
Kodngues who sang the hohemians in his vast repertoire. Our focus is on the imaginarj thatpervades the
figure of drunks and hohemians, the relationship and tensions, hetween genders,
Keywords: Braf(ilian Popular Music, The Drunk, Hohemians, Vicente Celestino, l^upicinio
Kodrigues, gender

Notas
^ Os padrões e perfis não são pura e simplesmente impostos, nem o processo de modelização se
apresenta absoluto, existindo sempre a possibilidade de múltiplas articulações e interpretações,
oscilando entre dois pólos: uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo submete-se à
subjetividade tal como é recebida ou uma relação de expressão, criação e resistência, na qual o
indivíduo se reapropria dos componentes da subjetividade e tranforma-os, produzindo um proces-
so de singularização. A subjetividade não existe anteriormente ao imaginário, pois se constitui em
latência constante através de imagens, palavras, afetos e perfis que circulam incessantemente no
social. (GATTARI e ROLNIK, 1986)
1 o Matos, Maria Izilda Santos de. Imaginário - USP, n. 5, p. 07-25, 1999.

^ Utilizar-se-á o termo canção em lugar de música "num sentido lato, isto é, abrangendo principalmente
a letra, o universo que verbaliza cantando". (MARTINS, 1975)
^ Antonio Vicente Filipe Celestino, cantor, ator e compositor, nascido no Rio de Janeiro, em 1894.
Trabalhou em teatro de revista, óperas e operetas, organizou sua própria companhia e excursionou
várias vezes pelo país, o que fez aumentar sua grande popularidade em particular nos anos 20 e 30.
Gravou 137 discos, num total de 265 músicas, muitas de sua própria autoria.
^ Lupicínio Rodrigues, nascido em Porto Alegre em 1914, consagrou-se no estilo samba-canção.
Considerado o mais expressivo poeta de cabarés, de suas histórias e de seus personagens. Lupicínio
sempre procurou ressaltar que jamais escrevera algo que não contasse experiências, situações, emo-
ções, episódios vividos por ele ou por seus amigos, sendo em alguns momentos drasticamente fiel
a essa experiência que o levava a transmitir intensamente o cotidiano, pleno de violência, rancor,
paixão, envolto numa trama por ele contada melodiosamente. (MATOS e FARIA, 1996)
^ Não se exclui o botequim como espaço de rixas masculinas, gerando por vezes conflitos graves,
enfrentamentos em brigas e até homicídios. Aparecendo assim como espaço de lazer, mas também
de práticas de delitos e de tensões. (CHALHOUB, 1986)
^ E o caso da canção Brasa (Lupicínio Rodrigues), em que o "dentro" é o mundo da mulher, identifi-
cado com a desarmonia e o espaço da divergência.

Referências Bibliográficas

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políticas urbanas e dimensão cultural São Paulo: IEB/USP,1998.
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NOLASCO, S. (org.). A desconstrução do masculino. Rio de Janeiro: Rocco,1995.
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1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1991.
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TOTA, A. P. Samba da legitimidade. Dissertação de mestrado, FFLCH-USP,
mimeo,1980.
26
De Ia fama y el exilio: el cartero de Neruda

Rob Rix

Resumo: Trata-se de uma análise da primeira versão filmada da obra do chileno Antonio Skarmeta
Ardiente, O filme trata da sensibilidade de um humilde carteiro enamorado de sua Beatri^ e iniciado na
poesia de Pablo Neruda.
Palavras-chave: cinema, poesia, Pablo Neruda

R e s u m e n de Ia película:La primera versión filmada de Ia obra dei chileno


Antonio Skármeta Ardiente paciência forma parte de un cine de exilio, y como tal
tuvo escasa divulgación y poca resonancia fuera de los espacios televisivos europeos
dedicados al cine dei Uamado "Tercer Mundo". El filme celebra Ia sencillez de un
humilde cartero enamorado de su Beatriz pueblerina e iniciado en Ia poesia por un
Neruda benevolente y resabio. El humor con que se presenta Ia vida cotidiana en
Isla Negra se torna en dolor con el Golpe militar, Ia muerte dei poeta y Ia detención
dei cartero. Un filme de reivindicación humanista y nostalgia por un Chile civilizado a
pesar de conflictos políticos y sociales, es sencillo, sentimental y bien realizado. La
reciente película de Michael Radford, II Postino, adaptación de Ia misma obra literaria,
alcanzó Ia fama por una serie de circunstancias y condiciones que sirven como motivo
de reflexión sobre Ias manifestaciones culturales latinoamericanas ante el cine "multi-
nacional". Una comercialización y distribución eficaces ayudaron a popularizar esta
modesta historia y Io llevaron al borde de un triunfo histórico con su presentación al

* Trinity and Ali Saints University College, Leeds, Reino Unido


Rix, Rob. Imaginário - USP, n. 5, p. 27-36, 1999. 28

Oscar. Un análisis comparativo revela el contraste entre un filme hecho con poços
médios, alejado forzosamente dei movimiento cinematográfico chileno interrumpido
por el Golpe y su feroz represión cultural, y otro elaborado con mejores equipos
técnicos y apoyado en el trabajo de dos actores formidables y un director hábil, con
tiempo y presupuesto para desarroUar bien Ia historia con toda su belleza y humor.
La presentación de Neruda desde una dialéctica poeta de amor — poeta dei pueblo
ofirece más posibilidades que Ia versión liana y sencilla hecha por el propio Skármeta
en 1983, pero a pesar dei magnífico trabajo dei actor cômico Massimo Troisi en el
papel dei cartero, ni sus amores con una Beatriz bella pero sonsa, ni su supuesta
militancia política-poética tienen Ia verosimilitud de Ia versión original. La fama de II
Postino se basa en Ia apropiación de una memória chilena para convertirla en una
fábula universal cuyas referencias 'históricas' forman parte dei decorado, pero no
invitan a ninguna reflexión seria sobre el destino de los pueblos subyugados. El
enfoque burlesco y sentimental dei filme, y Ia consagración póstuma de Troisi por su
último trabajo, favorecieron Ia buena recepción internacional de esta producción,
cuyas sugerentes exploraciones de Ias contradicciones de Ia fama y el exilio le dan
cierto interés, aunque pierde fuerza al final, cuando ya no se mantíene el ritmo con
los diálogos entre poeta y cartero. La versión de Skármeta, tan corta y esquemática
en comparación, por Io menos deja a los espectadores con los elementos esenciales
dei encuentro entre gênio y pueblo, y prepara el terreno para un desenlace
auténticamente histórico y sin concesiones.
El êxito internacional de Ia película II Vostino^ su presentación al Oscar^ y Ia consa-
gración póstuma de su principal actor, han constituído un fenômeno insólito y digno
de estúdio por Io que supone como alternativa al cine hegemônico de Hollywood.
Apreciada como peKcula de arte, parece ser una instancia de cine que rompe el molde,
triunfando internacionalmente a pesar de no tener los ingredientes más rentables de
Ia industria actual, es decir, sexo, violência y acción con efectos especiales. En este
sentido su conquista de Ias pantallas europeas y norteamericanas se puede celebrar
como un soplo de aire fresco, como una reivindicación dei trabajo creativo y artísti-
co de autores y actores frente a Ias recetas de popularidad. La competencia desigual
y manipulada de Ias grandes corporaciones dei espectáculo no suele dar cabida a
Rix, Rob. Imaginário - USP, n. 5, p. 27-36, 1999. 29

producciones genuinamente creativas, que se mantíenen al margen y apenas sobrevi-


ven gradas a su sabor distintivo, su culto estético o su especial atractivo para grupos
minoritários. Pero si antes se podia hablar de un segundo y un tercer cine, ahora y
cada vez más parece lógico distinguir solo entre el cine controlado por Ia industria
norteamericana y un cine más o menos independiente, de cualquier nacionalidad y
en cualquier idioma, que tiene que luchar para encontrar un público aun después dei
esfuerzo que supone Ia producción. Si en primer lugar resulta difícil establecerse en
el mercado nacional, conquistar Ia fama internacional es algo que se logra solo con
abundancia de talento y no menos suerte.
El êxito de 11 Vostino se debe en parte a Ia eficaz labor de comercialización y
distribución llevada a cabo por Miramax^ una de Ias distribuidoras más innovativas y
poderosas de Estados Unidos. Pero esto solo ocurrió después dei triunfo insólito dei
filme en Italia, donde su aclamación fue impulsada por el trabajo y también Ia muer-
te súbita de Massimo Troisi, uno de los actores cômicos más apreciados en su país
de origen, y verdadero padre de Ia peKcula. II Postíno recaudó más de 30 millones de
dólares en Italia, y también se mostró en el Festival de Venecia (1994), luego en el de
Valladolid (1995) y San Francisco (1996). Su arranque fue lento, y casi insospechado,
pero cuando por fin se estrenó en Estados Unidos ya iba acompanada por Ia leyenda
de Troisi como estreUa póstuma, Io que favoreció su acogida sentimental por el
público norteamericano. Elogiado por el propio Presidente, quien no sólo se puso a
leer Ia poesia de Neruda sino también regaló una edición de los Vein^epoemas de amor
y una canción desesperada a Ia Primera Dama, el filme se puso de moda, y hasta mereció
unas denuncias de Ia derecha por tratarse de un poeta calificado de ''estalinista" por
Ia oposición republicana. Así Uegó a formar un elemento transitorio e insignificante
de los preparativos electorales, siendo adoptado por los cHntonistas como sena de su
sofisticación cultural y su sensibilidad cosmopolita. Su presentación al Oscar a Ia
mejor película hizo que se considerara una ''cause célèbre", aunque se debió en parte
a Ia negativa de Ias autoridades italianas a presentar un filme dirigido por un britâni-
co (Michael Radford) al prêmio por Ia mejor película de lengua extranjera. Una cam-
pana comercial basada en Ias estratégias pioneras de Ia ya difunta empresa indepen-
diente Palace Pictures, hizo hincapié en el sueno artístico de Troisi que Io Uevó a sacri-
Rix, Rob. Imaginário - USP, n. 5, p. 27-36, 1999. 30

ficarse en aras dei arte cinematográfico, postergando un transplante de corazón has-


ta después de terminar Ia filmación, y también subrayando su colaboración por amistad
con el director Radford, un cineasta que había perdido el camino dei êxito tras un
comienzo prometedor. El relanzamiento de Ia novela Ardiente paciência de Antonio
Skármeta en versión inglesa, una nueva edición de poesias de Neruda, y Ia elabora-
ción de un CD con lecturas de su poesia por artistas como Sting y Madonna, fueron
otros elementos de Ia campana al Oscar o^t crearon cierto culto alrededor dei filme.
11 Postino se presentó entonces como una película hecha por amor al arte, por
dedicación y por amistad, con modéstia y delicadeza, una peKcula también basada en
los temas de Ia amistad y el amor, Uevados a fruición por el arte poético de un futuro
Prêmio Nobel exiliado a una isla pobre pero idílica. Ahora, Ia fama no se gana sola-
mente con campanas de publicidad bien orquestadas; el filme también tiene que
gustar para ganarse su público y mantenerse en el mercado. La comercialización
prometia una película "de arte" que también sabia dirigirse a espectadores popula-
res, es decir, que no se limitaba a gustos refinados o elitistas, pero que tampoco
sacrificaba Ia seriedad y los valores artísticos a un populismo a rajatabla.
Como adaptación de una obra anterior IIPostino utiliza ciertos rasgos de Ia historia
original, y cambia o inventa otros aspectos, sobre todo para facilitar el traslado de Ia
anécdota a Italia. Ardiente paciência, el filme dei chileno Antonio Skármeta rodado en
1983 en Portugal, y posteriormente publicado como novela, fue concebido inicial-
mente como radioteatro. Su trayectoria algo aventurada, que culmina con su Uegada
azarosa a Ias manos de Troisi, refleja un proceso ambiguo de inseguridad y de obse-
sión. Parece haber perseguido a su autor durante anos, hasta que por fin decidió dar
forma concreta a Ia idea en el cine, después de haber trabajado con el director alemán
Peter Lilienthal en dos filmes, Lm victoria (1973) y 1m insurrecáón (1979). La película
siguió el destino típico dei cine de habla no inglesa y de bajo presupuesto, sin actores
famosos en el elenco — en cartelera por espado limitado en cines de arte y estúdio, y
estrenos esporádicos en emisoras de televisión europeas con programas nocturnos de
cine exótico. Como el filme. Ia novela publicada en 1985 fue recibida con silencio fuera
de los âmbitos acadêmicos, donde se identifica (por ejemplo, por Donald Shaw) como
obra perteneciente al post-hoom de Ia novelística latinoamericana^
Rix, Rob. Imaginário - USP, n. 5, p. 27-36, 1999. 31

El destino diferente de Ias dos versiones cinematogáficas se debe no sólo a Ias


circunstancias distintas de producción, promoción y distribución de Ias roismas; tam-
bién, hay que tomar en cuenta los elementos fundamentales de Ia obra original utili-
zados por Troisi y Radford, y los câmbios que introdujeron en Ia historia. El cartero
que en Ia novela es un adolescente de 17 anos era ya mayor en Ia peKcula de Skármeta,
pero en 1/ Postíno es treintanero — Troisi había transformado el personaje para que
representara un tipo bastante diferente, en acuerdo con su propio estilo. En lugar dei
joven chileno definido por Skármeta como un ''pícaro" de pueblo pequeno^, cuya
curiosidad e inteligência terminan por conquistar al poeta y luego a Ia muchacha
bonita que oficia de camarera en Ia taberna de su madre viuda, Troisi encarna un hijo
de pescador que no se conforma con su destino y oficio tradicional, y que parece ser,
al principio, un triste fracasado cuya existencia transcurre en una situación de pobre-
za sin salida. El alegre optimismo dei cartero chileno ha sido sustituido por Ia triste-
za de una vida en Ia sombra, en un personaje para quien el correo trae noticias de Ia
única escapada posible en Ia Italia de posguerra — Ia emigración a Estados Unidos, el
sueno dei consumismo que resulta tan increíble como lejano. El trabajo de Troisi, de
mirada pensativa y pequenos gestos de inseguridad pero también de gran terquedad,
hace que su personaje domine Ia pantalla hasta que el público simpatice totalmente
con él. Hombre sencillo, con alma de poeta frustrado, incapacitado tanto para Ia
creación poética como para Ias faenas de pesca, pero listo para enamorarse de Ia
belleza local, Mario nos enternece por su apreciación abierta de versos cuyo sentido
intuye más que entiende, y por su ingenuidad al utilizar Ia poesia de Neruda en su
conquista de Ia moza deseada, basándose en el lema: 'Ia poesia no es de quien Io
escribe sino de quien Io necesita". Su triunfo amoroso se entiende como fábula,
construída sobre opuestos: belleza y rudeza, gracia e ineptitud, reflejando Ia otra
(mayor) fábula presentada en el filme. Ia de Ia amistad entre el gênio y el rústico.
Estamos bastante lejos de Ia insistente inocência que en el personaje de Mario
Jiménez, cartero de Isla Negra, se desborda de energia y entusiasmo hasta conquis-
tar el corazón y Ia mano de su Beatriz pueblerina, graciosa y guapa, pero en el fondo
tan sencilla y humilde como él. De los amores de Mario con Beatriz 1/Postíno conser-
va los nombres, con sus resonancias marinas y dantescas, de naturaleza y de arte. Ia
Rix, Rob. Imaginário - USP, n. 5, p. 27-36, 1999. 32

anécdota dei futbolito y Ias calidades seductivas de Ia bola en boca de Beatriz, el


chiste de Ias cinco palabras te llamas? - Beatriz González/Beatrice Russo"),
Ia interrogación de Beatriz por su madre/tia sobre Ias metáforas dei cartero, y Ias
protestas de Ia misma ante el veterano poeta por su supuesta implicación en Ia se-
ducción de Ia senorita por Mario. En gran medida se ha dejado de lado el erotismo
abierto y optimista celebrado por Skármeta en su novela (y en su filme, aunque con
menos brio y convicción). Como apunta el crítico Donald Shaw, se puede relacionar
el erotismo de Ardiente paáencia con el proceso de revolución social vivida en Chile
durante los anos 60 y 70,^ pero como en toda Ia historia dei cartero. Ia relación entre
vida privada y movimientos político-sociales es más bien tangencial y muy poco
elaborada en Ia narración. También en Ia novela hay cierta sugerencia de dimensiones
carnavalescas tanto en Ia vida poKtica dei país como en Ia vida de los pueblerinos, por
ejemplo con Ia orgia espontânea que surge de los festejos por Ia entrega dei Prêmio
Nobel al poeta, claramente identificado con el Gobierno de Unidad Popular de Salvador
Allende. Sin embargo. Ia ligereza de Ia historia dei poeta y su cartero particular no permi-
te una exploración profunda de Io carnavalesco en Ia vida chilena antes dei golpe;
tampoco Ia poética de Skármeta soporta metáforas políticas de gran envergadura,
aunque sí tiene el don de dejar hablar Ias cosas por sí mismas cuando es necesario.
Aqui encontramos el eje de Ia obra dei chileno, y su significado central; Ardiente
paciência celebra y rinde homenaje a unos personajes comunes, gente sencilla que
para el gran poeta comunista no eran simplemente masa con destino histórico, sino
también Ia encarnación de valores cuya expresión individual - franqueza, curiosidad,
generosidad, optimismo, vitalidad, etc., — también le llevaba a Ias grandes cuestiones
dei amor. Ia existencia y Ia relación entre arte y vida en sociedad. Es una historia
basada en una amistad autêntica, recuperada por Skármeta a instancias de Ia viuda
dei cartero real y reinventada con sus propios recuerdos dei poeta, ambientada ine-
vitablemente en Isla Negra en un tíempo histórico real (1969-1973) cuyo desenlace
no requiere explicaciones para un público minimamente enterado de Ia realidad po-
lítica contemporânea en América Latina. Sin el peso épico y experimental de Ia ge-
neración dei hoom^ Ia obra de Skármeta evade Ias trampas de una nostalgia luchadora,
e igualmente se aleja de un recuento trágico de Ia derrota de Ias esperanzas de revo-
Rix, Rob. Imaginário - USP, n. 5, p. 27-36, 1999. 33

lución democrática en su país: todo esto se sabe, y de sobra, parece decir. Hecha
(según el autor) de "una mezcla curiosa de ingenuidad, impertinencia, humor y me-
lancolia", Ia obra reivindica desde el exilio (no por voluntário menos difícil y doloro-
so) Ia decencia. Ia honestidad. Ia gracia y Ia exuberancia de un pueblo condenado a
sufrir una feroz represión militar. También, se rinde homenaje al gran poeta nacio-
nal, buscándole el perfil humano, su compenetración con el pueblo anônimo, recono-
ciendo su importancia como mito dei revolucionismo chileno pero desmitificándole
en el sentido de rehuir heroísmos y grandes gestos históricos, haciendo un retrato
íntimo y cotidiano, resaltando su sentido de humor, su modéstia, sus pequenas vanida-
des, su timidez y su irrefrenable vigor poético. Como obra dei exilio cultural más que
político, esquiva Ia tentación de hacer ajustes de cuentas o testimonios para el archivo
de Ia nostalgia, para conservar su frescura anecdotal y permitir al público espectador o
lector reflexionar sobre el proceso poKtico que tanta vida y esperanza destruyó.
El contexto político en el cual transcurre Ia historia de Mario Jiménez, es uno
de tolerancia desconfiada entre tendencias rivales (democristianos e izquierdistas),
que sólo se deja Uevar a extremos de odio y venganza a raiz dei golpe militar, cuando
Mario es denunciado por el político democristiano (el diputado Labbé en Ia novela)
que antes incluso le había regalado un cuaderno para que escribiera sus propias
poesias: El aspecto político se tradujo en IIVostino con un esfuerzo inteligente, pero
el análisis dei clientelismo de los democristianos en Italia durante los anos 50 ofrece
de un lado un fondo histórico innecesario para acompanar Ia fábula dei poeta y su
cartero, y de otro, una distracción de Ias irônicas discusiones entre Mario y su jefe
sobre si Neruda es ante todo un poeta dei amor o un poeta dei pueblo. Con Ia
inverosímil muerte de Mario en una manifestación comunista, donde había ido a leer
su único poema, dedicado al poeta de los proletários, se pierde Ia oportunidad de
explorar Ia vena profunda que se esconde en Ia relación entre los dos hombres. El
artista que dedica su labor creativa a una causa poKtica y social, a Ia reivindicación de
los derechos de Ias masas oprimidas, también reconoce y aprecia al indivíduo humil-
de, al hombre concreto dei pueblo, con sus preocupaciones particulares, sus frustra-
ciones, su fatalismo, su ineptitud tanto para Ias luchas políticas como para Ias amoro-
sas. Y si Ia inspiración de Neruda le viene dei mar, de Ia naturaleza, de los grandes
Rix, Rob. Imaginário - USP, n. 5, p. 27-36, 1999. 34

movimientos sociales y políticos de Ia historia, de su propia experiencia afectiva y


sentimental, también es capaz de aprender de los sábios que apenas saben expresar-
se pero que poseen un alma poética por su radical inocência. La escena final de 1/
Posfino sugiere una reflexión dei poeta sobre Io que ha perdido con olvidarse (apa-
rentemente) de una amistad que para él era transitória, pero para el cartero de una
importancia fundamental en su desarrollo como persona.
El exilio, que también se explica eficaz y coherentemente en II Pos^ino, como
parte de Ia trayectoria histórica dei poeta, abre el espado para el idilio que siempre se
intuye a Io largo de Ia película, y que le da su mayor encanto. No por nada ganó el
Oscar2il2Lmejor música original (suavecitay romântica, sin dramatismos), aunque no
les guste a críticos como Julian Graffy, de Sight & Sound (Io califica de ''banal e
intrusivo"), irritados por el tono dulce dei bandoneón tan repetido en un filme bas-
tante largo, por cierto"^. Neruda y Matilde están como de vacaciones en Ia isla, y su
retorno a Chile y al mundo de los viajes oficiales, al papel de poeta internacionalmente
conocido y politicamente comprometido, significa, al parecer. Ia pérdida de Io real-
mente precioso: Ia relación directa con este "pueblo" en cuyo nombre pretendia
hablar el autor de Canto general. La presentación de Neruda como poeta famoso que
en seguida se olvida de su amigo isleno rebaja a ojos dei público su estatura humana
y su poesia militante. Lo importante en Ia poesia, parece intentar recordamos Ia
película, son Ias metáforas, para expresar sensaciones insólitas, belleza fugaz y pen-
samientos imposibles de comunicar con palabras normales, y sobre todo Ia sinceri-
dad dei amor y Ia amistad. El despertar poKtico de Mario no Uega a convencer; en
cambio, su despertar poético es lo que hace recordar el filme, y es un despertar de los
sentimientos, no de Ia conciencia, a pesar de Ias acusaciones que dirige el cartero al
político corrupto Di Cósimo.
El intento de dar coherencia histórica y contexto poKtico a un filme cuya fuerza
reside en su capacidad de crear una fábula sencilla pero bella es un fallo más com-
prensible que lamentable; se han mezclado gêneros incompatibles. Esto no ocurre
con Ia peKcula original de Skármeta. Por necesidad más corta y menos elaborada, sin
cinta musical y con una estructura episódica basada en los diálogos entre Mario y
Neruda y los encuentros rápidos entre el cartero y Beatriz, Ardientepaciência se filmó
Rix, Rob. Imaginário - USP, n. 5, p. 27-36, 1999. 35

a flor de piei, y Io que pierde en composición artística gana en frescura y desenfado.


Su máximo acierto consiste en el gran parecido dei actor Roberto Parada con el
físico y Ia voz de Neruda, y el filme realmente constituye más que nada un tributo
carifioso al poeta fallecido. Benevolente, irônico y resabio, el Neruda de Parada se
debate entre el cansando vital y el irreprimible optimismo, consciente dei peso de su
fama y su compromiso poKtico pero también suficientemente vanidoso para gozar
de su renombre y su popularidad. Su muerte se presenta sin dramatísmo excesivo,
con Ia triste conciencia de su significado simbólico en septiembre de 1973. La amis-
tad con el cartero se desarroUa con más naturalidad que en Ia versión italiana, en
parte porque no se concibe como fábula, sino senciUamente como anécdota signifi-
cativa en Ia vida dei poeta que representa Ia patria anorada desde el exilio provocado
por Ia dictadura.
Seria difícil, si no imposible, colocar el filme de Skármeta en un análisis dei cine
chileno dei exilio, que a pesar de todos los esfuerzos realizados termino por perder el
ritmo, Ia articulación y Ia actualidad que habían descubierto directores como Littin a
finales de los anos sesenta. Pero a estas alturas dei siglo de cine tampoco tiene tanto
sentido como antes intentar establecer pautas o patrones nacionales para el séptimo
arte, cuando cada vez más Ia industria independiente se caracteriza por coproduc-
ciones y colaboraciones internacionales o incluso multinacionales. En el caso de 11
Postino, el filme no solo fue una coproducción (grupo Cecchi Gori, Blue Dahlia
Productions, Le Studio, Canal +) sino también, y quizá más importante, producto de
un grupo internacional de artistas, incluyendo a Skármeta y Qpox: qué no?) a Neruda.
Como tal, sirvió para relanzar Ia carrera de su director, Radford, pero también para
dar relieve e incluso fama al escritor chileno, que ahora ha podido reeditar otro libro
suyo, Nopasó nada (publicado por primera vez en 1980). El impulso dado a su carrera
literaria puede resultar aleatorio, pero por Io menos le regala, como ha dicho él
mismo, «tiempo para Ia creación», y le hace sentirse «muy estimulado y confirma-
do»^ . En cuanto a Ia poesia de Neruda, habrá alcanzado un público más amplio
durante una temporada (Io que duran Ias modas) y habrá sido leído por lectores
poco acostumbrados a Ia poesia pero convencidos por el filme de que se puede
apreciar sin entender dei todo; como en el caso de Ia película E/ lado oscuro dei cora^^ón.
Rix, Rob. Imaginário - USP, n. 5, p. 27-36, 1999. 36

dei argentino Eliseo Subiela, habrá hecho algo para popularizar Ia poesia y sacaria de
Ias academias. En una época y un mundo en que Ia gente lee cada vez menos, cuan-
do, como lamenta el novelista espanol José Maria Merino, «(p)arece que los nuevos
lectores solo abren los viejos libros si los pone de moda el êxito de una ocasional
adaptación cinematográfica», no es de despreciar Ia aportación de un actor italiano y
sus amigos a Ia popularización de una historia chilena que tan fácilmente podia ha-
berse perdido en el olvido, como tantas otras cosas que han desaparecido de una
cultura asediada.

Abstract: Thispaper diseuss thefirst version of thefilm of chilean Antonio SharmetaArdiente. Thefilm
considered as a thirol world movie, deals with the sensibility of a humhlepostman in love with his Beatri^
and iniciated in Neruda'spoetrj.
Keywords: Movie, poetrj, Pab/o Neruda.

Notas
^ Donald Shãw, Antonio Skármeta and thepost-boom, (Hanover, NH: Ediciones dei Norte), 1994:159-
183, passim
^ Skármeta, citado por Shaw, op. cit, p.l62
^ Shaw op. cit, passim
Resena de II Postino, por Julian Graffy, Sight and Sound, 49, Nov. 1995:11
^ Citado en Amélia Castilla, "Antonio Skármeta: 'El êxito te regala tiempo para Ia creación"', El Pais,
12 de septiembre de 1996:29.
Ninguém vê, ninguém sente

Andréa Fátima Santos

Rua São Bento em frente ao Banco Bradesco foi o endereço que procurei ao
sair dos subterrâneos do metrô. Me dissolvi na cor cinza de poluição misturada aos
suores dos rostos cansados dos passantes. Havia um pulsar rápido de todos aque-
les corações ansiosos por chegar, entregar, pagar, sempre ávidos a terminarem logo
qualquer coisa. Carreguei a bolsa apertadamente contra meu peito, curvei os om-
bros e travei os quadris querendo passar desapercebida aos olhos dos famintos de
Deus. Entrando na rua São Bento mirava com muita pressa todos os lados procuran-
do por Maria de Fátima.
Em algum lugar misturado com aquele mosaico de promessas esperava avis-
tar os olhos esverdeados de tanta esperança daquela mulher. Montar o tabuleiro,
estender nele os tapetes, empilhá-los, passar neles suas mãos de fogo que tocarão os
pés, a planta de todo corpo de alguém. Quando a encontrei, meus ombros, braços,
quadris e pensamentos relaxaram, era como se eu estivesse entrando em casa depois
de ter cruzado um deserto para tomar água fresquinha na sombra do lar.
Assim que me vi atrás de seu tabuleiro, vi as pessoas passarem na rua como
debruçada eu estivesse no parapeito da janela. Fui introduzida no mesmo corpo de
Maria de Fátima, montei na garupa de seu cavalo.
As pessoas, todas elas, bancários office-boys, secretárias, craqueiros, mendigos,
putas, corretores da bolsa, executivos de todas as esferas se despiam dos demônios
que os protegiam, por isso não tive mais medo. Com a música de suas gargalhadas e
suas lágrimas decorrentes destas envolvia cada cliente que se aproximava, os convi-
davam para correr livremente nos seus campos, tirava o sorriso e uma breve satisfa-
ção em quem tocava em seus tapetes. Eles levavam e sempre voltavam.
38 Santos, Andréa Fátima. Imaginário - USP, n. 5, p. 37-38, 1999.

Num repente seus vizinhos se desesperaram e começaram a desmontar de-


pressa seus tabuleiros. Um grupo repressor comandado por camelôs (ou não, quem
saberá?) expulsos da avenida Paulista pelo prefeito começou a tirar as mercadori-
as, uma corrida desesperada para não perder aquele cantinho do rio onde pescam
seus peixes.
Maria, pediu que eu desmontasse o tabuleiro, fui impotente, o levantei inteiro
do chão, já que era leve, e fui pela rua com aquele trambolhão denunciador nas
mãos. Quando a olho, andava tão calmamente com seus dios de algodão bem tra-
mados embaixo do braço e me lembrei que, em uma procissão em Aparecida do
Norte e outra em Carmo do Rio Claro, sul de Minas, ela tinha o mesmo semblante.
Desprendimento com a fé ou com a razão? Fundiram-se. Hoje ela é camelô,
debaixo de sol e de chuva cria marido e filhos assim. Propaga naquela imensidão
de gente o perfume acolhedor de um pao de queijo com café.
Maria de Fátima é minha mãe. Minha recordação do afeto universal, me faz
sentir irmã daqueles que temo. Generalizando as pessoas e transformando-as em
números de carteira de identidade, perdemos o fio condutor ao entendimento dos
mistérios, que no fundo sabemos, não há.
A Iconografia medieval da Natividade transfor-
mada em poesia por João Guimarães Rosa

Tereza Aline Pereira de Queiroz*

Resumo: Neste artigo a autora mostra o diálogo de Guimarães Rosa com a pintura da Antigüidade, da
Idade Média e Renascimento, colocando-o ao lado de outros autores, o que permite situá-lo numa longa
duração da criação poética ao mesmo tempo que o individualista.
Palavras-chave: Guimarães Rosa, poesia, iconografia medieval, natividade.

Guimarães Rosa : "Um regato giorgionesco".


Picasso a Malraux: ''On regarde toujours avec des lunettes."

Na primeira jornada no sertão das Gerais, em 1952, João Guimarães Rosa tem
a visão de um "regato giorgionesco". Esta viagem do lirismo, da suavidade, da me-
lancolia das paisagens de um pintor educado nas inconstâncias dos brilhos das águas
de Veneza até Minas insinua a complexa e erudita visualização do mundo de Rosa.
Não sabemos a qual dos vários e distantes riachos de Giorgione faz alusão; talvez
aquele á2i Adoração dos pastores (National Gallery, Washington), um tema que lhe pa-
rece particularmente caro.
Este encontro de Giorgione com o sertão, na verdade, será apenas um entre
vários. Outros pintores, seus contemporâneos ou ainda de épocas mais recuadas,
também teriam suas paisagens e animais peregrinando por esta porção do mundo.

* Prof Dr" do Departamento de História-FFLCH/USP


Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)

para eles totalmente inexistente, através dos encadeamentos de idéias próprios à


subjetividade de Rosa.
Uma definição direta da pintura, uma abordagem teórica das artes plásticas não
se expõem explicitamente nas palavras de Guimarães Rosa, mas, enviesadamente, ao
tentarmos retraçar os caminhos de seus olhos sobre a pintura — quadros que nota, os
detalhes que destaca, pensamentos que deles derivam — os indícios levam a crer que
para ele a pintura teria afinidades com aquele "... altíssimo primado da intuição, da
revelação, da inspiração...", que defende em uma carta^ Esta valorização do intuiti-
vo, do revelado e o interesse de Rosa pela natureza em si e em suas formas narradas,
recriativas ou reiterativas daquela de sua infância, parecem conduzir sua visão. As
vozes distantes das velhas contadeiras com suas "estórias de fadas e vacas, de bois e
reis"^, reverberam em cores e formas, em imagens de imagens, captadas com extre-
mada precisão de découpage, aguçando sua memória.
Em várias folhas de apontamentos^, a maioria sem registro de data ou local,
escritas à mão, a lápis ou caneta, com sua letra miudinha e clara, ou à máquina, em
folhas de tamanho padrão ou folhas menores do Ministério das Relações Exteriores,
ou ainda em meros fragmentos de papel, surgem frases, poemas ou projetos de
poemas. Reportam-se a obras de arte, de diversas épocas e origens, vistas ao vivo ou
em fotos. Várias destas fotos estão indicadas nos cabeçalhos dos poemas, mas mes-
mo naqueles em que a citação da origem da imagem está ausente, pudemos compro-
var, em boa parte dos casos, a existência da ilustração em sua biblioteca. Algumas
talvez servissem como exercícios de análise ou descrição do visto"^. Correspondem,
de certa forma, às inúmeras anotações que faz de frases e textos, imagens em pala-
vras, que ativam sua imaginação; no entanto, as formas plásticas não surgem copia-
das, mas já transformadas pelo exercício criativo. Este acervo de escritos de Rosa, já
com ares medievais, inconspurcado do deletar do computador, permite igualmente
traçar uma pista estruturada em fontes plásticas, não escritas, da importância do
olhar na suas relações com o mundo. Importância que se desvela, por exemplo,
desde a anedota da descoberta da miopia em sua infância^ até sua adaptação à metafó-
rica visão de mundo desfocada de Miguilim.
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)

Da vasta série de imagens transformadas em versos, inseparáveis umas das ou-


tras como testemunhos de uma constância do olhar de Guimarães Rosa, deteremo-
nos especialmente nos poemas associados ao tema iconográfico da Natividade do
Cristo, reunidos pelo próprio autor sob o título de O Burro e o Boi no Presépio^.
A pintura formalizada a partir da literatura é um fenômeno bastante comum na
história da arte. O caminho inverso é menos banal, embora não inédito ou raro. A
partir do século XIX muitos poetas adotarão a pintura como sujeito de seus escritos.
Guimarães Rosa dialoga com o visível da Antigüidade, da Idade Média e Renascimento,
períodos também visitados por outros escritores. Uma aproximação com alguns
destes trabalhos permite situar Rosa numa longa duração da criação poética e tam-
bém ressaltar seu tratamento específico da matéria.
Romanticamente, SheUey, em Otoimandias^, evoca os fragmentos da escultura
daquele rei — pernas sem tronco e um rosto quebrado — para meditar sobre a deca-
dência dos impérios humanos e o ridículo da soberba frente à imensidão da natureza
e do tempol
O fragmento da imperfeição desaparece diante da metafísica da forma íntegra e
do tempo eterno; na Ode on a grecian urn, John Keats concede preeminência à forma
plástica sobre a forma literária, seu poder de suscitar perguntas sem respostas, sua
eternidade diante da transiência do mundo, e conclui com uma louvação da identida-
de entre ética e estética^.
A intensidade da arte antiga sugere a Rosa o tratamento de temas também
contundentes. Entre a boa dezena de imagens do mundo antigo por ele recriada,
uma explora a idéia de força transmitida pelo relevo de O l^ão da Bahilônic^^, outra a
questão da dor num projeto de poesia sobre um relevo do tempo de Assurbanipal,
l^oa morihundd^^. As idéias de dor e do sacrifício são trabalhadas também a partir de
uma ilustração de um catálogo do Museu do Louvre existente em seu acervo: a
reprodução de um friso romano do século I d. C. onde, horizontalmente, surge uma
procissão levando ao sacrifício um porco, um bode — transformado em carneiro no
poema — e um touro. Rosa utiliza para a matéria de sua poesia tanto a imagem como
as explicações dadas pelo guia^^— o nome dos imperadores, por exemplo. Faz uma
leitura do sentido geral e horizontal do friso; nota o loureiro, o imperador, lê a atitu-
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)

de dos animais. Por outro lado, projeta a cena no tempo. Ao indagar sobre a vontade
dos deuses em relação ao sangue que será derramado, dá concretude à procissão e
admite que o sacrifício terá lugar. Assim:

Para o altar do sacrifício/ ornado de loureiros/ touro, carneiro e porco/ são encami-
nhados./ Resignam-se sem saber/ os três mansos emissários/ um imperador oficia/
Tibério ou Calígula/ (mal identificado)/ Que [querem] os deuses com/ seus san-
gues/ daqui a pouco misturados?/ Querem o sangue ou símbolo:/ ao futuro, o/
presente/ sacrifique o passado.^^

Com o espírito eventualmente povoado pelos eflúvios do Chateaubriand do


Gênio do CristianismOy Victor Hugo escreveria os vetsos À A/bert Dürer^^ (1837). Nele
enxerga o dono de um olho visionário, capaz de entrever nas sombras faunos e
outras entidades do mundo vegetal. Para Hugo, Dürer é o desvelador de uma flores-
ta viva, espiritual, misteriosa, de árvores monstruosas e plena do horrível, o pintor
de uma natureza romântica avanf Ia lettre.
Curiosamente, num dos apontamentos de Rosa, surge à esmo numa página um
comentário sobre a Ljehre de Dürer, imbuído de um sentido de captação essencial da
figura, distanciado de Hugo pela ausência de fervor romântico, mas aproximado pela
sensibilidade a uma mística microcósmica: 'Infindas orelhas, embandeiradas, olhar
sério/ cada fio de pêlo uma entidade"^^. Sua reflexão diante á2i Adoração dos Magos de
Dürer (Uffizi), recai sobre a sabedoria imanente de suas personagens, não evidente,
toda sombria, também mística. "Os que por oculta ciência/ de tudo souberam"^^
transmitem ao Cristo seus conhecimentos através dos "mágicos presentes". O Univer-
so repousa no colo da mãe, matrona vestida de negro, manifestação de uma sabedoria
mais profunda, a da natureza, em proximidade com aqueles "íntimos das sombras", o
boi e o burro. Rosa, ao descartar todos os elementos de enquadramento da tela, as
arquiteturas destruídas, fixa-se somente em um círculo frontal formado pelos seus
elementos intactos, essenciais. Destaca a misteriosa troca de sabedoria entre os magos
e o Cristo; alquimicamente, os que trazem elementos, como o ouro, de aceleração da
transmutação redentora, por Deus em Deus^^. Mistério isento da taciturnitude, da
dúvida, da agonia e anseio de morte de T. S.Eliot em ]ourney of the Magi
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)

Contestatário, A Zurbarán^"^ de Théophile Gautíer clama contra a negação da


vida implícita nas práticas do cristianismo monástico. Evoca a morte estampada nos
monges retratados, os remorsos, os crimes que devem torturar aqueles corpos maltra-
tados, glaciais, de mortos vivos. Indigna-se com a negação da carne, ironiza a crença
que o sofrimento fará com que as portas do céu se abram mais depressa. Indaga
sobre o que dirão estes monges aos vermes depois de mortos, se não se arrepende-
rão de ter gasto a vida caluniando a carne. Polemiza com a moral, mas enaltece a
capacidade de Zurbarán de materializar uma embriaguez da fé, invisível num pintor
com a contenção de Lesueur.
A ablação dos seios de Santa Agatha (ou Alexandrina) orienta o misticismo e a
perversidade impKcitos no Zurbarán de Paul Valéry.
Rosa, por sua vez, desencontra-se do equívoco ou do escabroso em Zurbarán.
A inocente Adoração dos Pastores, tela de grandes efeitos de luzes e sombras, com um
excessivo número de edulcorados figurantes rodeando o Cristo, desperta os versos:

O boi é um/ rosto a menos/ entre os humanos^^.

Contrapõe-se minimalisticamente aos excessos da tela — de personagens, luz e


sombras, expressões, acúmulo de símbolos. Parece criticar veladamente apenas a
falta de espaço do boi em questão. Nada diz da ovelha, espelho do Cristo e que,
junto com seu pastor e o Menino, completa um triangulação divina, branca.
O BotticeUi de Verlaine é o Nascimento de Vênus. Deusa nua recebendo os so-
pros do amor divino e da ira sagrada de efebos alados com corpos entrelaçados^^
Inspiração sensual para Verlaine, metafísica para Rosa, atraído pela Natividade Mística
da National Gallery de Londres. O olhar do escritor corta o quadro em dois planos
— o da caverna, no plano médio, e o da revoada de anjos, no plano superior —
antinômicos, mas reconciliáveis:

(...)/ do espesso que terá/ de ser iluminado./ (...)/ Revoavam através do nada
invulneráveis anjos^^.

Assim, "o espesso", a matéria ao serem iluminados tornar-se-ão o nada — nada


bizantinamente representado pelo dourado, pela luz que indica o mundo místico.
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)

divino, etéreo. Rosa ignora a personagem principal da pintura, a Virgem. Pintado


num momento de extrema tensão para a Itália e Florença - após a morte de Savonarola
e diante da ameaça de uma invasão francesa - , Botticelli quis nele representar o
capítulo XII do Apocalipse e, sobretudo, as visões e profecias de Savonarola de
renovação da Igreja, personificada pela Virgem. O cumprimento da profecia teria
lugar num domingo de Ramos - ''domingo de olivas", o que explica a abundância de
oliveiras na tela^^ Mesmo abstraindo as conotações políticas da obra. Rosa acaba,
intuitivamente, captando a sua essência através de um centramento do olhar no par-
ticular. A transformação da espessura escura na leveza iluminada da paz.
Em suas poesias renanas, ApoUinaire descreve vierge à Ia fleur de haricot à
Cologne lendo o pensamento das personagens da tela, imaginando o que o pintor
vira no seu cotidiano e que lhe servira de inspiração, destacando o caráter simbólico
das cores utilizadas; cria uma estória para a Virgem, talvez amante do pintor e que
teria rezado diante de seu próprio retrato.
A graça, delicadeza e meiguice da Virgem de ApoUinaire — pelos indícios a do
tríptico (c.1400) do Mestre Hermann Wynrich^^ - reproduzem-se na Virgem da Na-
tividad^^ (c.l424) ou Adoração do Menino do Mestre Francke, executada para o Altar
dos Ingleses da igreja de S. João em Hamburgo. Rosa deve tê-la visto na Kunsthalle
de Hamburgo. Nela destacam-se as cores brilhantes, os caminhos traçados pela luz,
ligando o Cristo a Deus Pai, a figura branca radiosa da Virgem, tomando um espaço
enorme na composição, o fato de estar acompanhada somente por anjos, os planos
da paisagem. Guimarães Rosa descarta o geral e fecha o foco num pequeno detalhe
à direita para compor seu poema. Um boi e um burrinho, com grandes olhos, co-
mem numa manjedoura, seus corpos perdidos na terra.
Surgem, assomam da/ terra - comem e amam/ mandados de Deus.^^
E, com os animais dando a direção da poesia, continua :
Mandado de Deus/ do Céu desceu o Menino/ na lucidade.

Através das linhas de luz executadas pelo Mestre Francke constrói uma outra
estória, direta entre céu e terra, em que a Virgem desaparece, pictórica e misticamen-
te. 'Aqui se encontram" - os enviados divinos na versão roseana. Na versão de
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)

Francke, o contato faz-se através dos olhos entre os animais e o Cristo, mas este está
de costas para eles; logo não os vê, não se encontram.
No século XX, o diálogo com a pintura contemporânea é mais freqüente. Ver-
sos de Éluard para Giorgio de Chirico, Braque, Magritte, de Garcia Lorca para Sal-
vador Dali, de Alberti para Picasso, de Artaud para Van Gogh.
Jean Cocteau faz uma Hommage à Jérôme Bosctí^^ através de uma linguagem e de
rimas insólitas, descrevendo e comentando ao mesmo tempo uma passagem do Trítico
das DeHcias. William Carlos Williams em Hommage to painters percebe em Bosch
demônios e amontoados de almas torturadas engulindo suas próprias entranhas^^
Guimarães Rosa revela um outro Bosch, singelo e sem espetacularidade, o da
Adoração do Menino; nela um pequeníssimo Cristo, numa manjedoura, cercado por
Maria, José, o boi e o burrinho com cenhos praticamente tocando o corpo da crian-
ça, tendo ao fundo uma estranha personagem. Rosa utiliza a estrutura de composi-
ção da cena para invocar a afinidade divina entre o Cristo e o animais, os únicos que
poderiam material e metaforicamente estar próximos a Ele:

Cabem/ definitivos./ Só eles podem/ de ronda e todo aproximar-se./ São os intér-


pretes dos humanos em volta./ Jesus ainda lhes pertence.^^

Otávio Paz elabora poeticamente seus Tributos ^iÇXwiàs^ Monet, Mareei Duchamp,
Joan Miró, Balthus e muitos outros^^ A mirada de paz sobre os trabalhos destes
artistas tende a incorporar suas linguagens na própria linguagem poética; cores, te-
mas, recriações do espaço e da realidade, tricotadas com a vida dos pintores, resul-
tam em composições bastante diversificadas, amplamente abertas aos influxos ge-
rais das obras.
No Brasil, os poetas do século XX falam também e sobretudo de pintura mo-
derna, dos pintores que conhecem, com quem convivem, quem consideram seus
pares. Guimarães Rosa permanecerá longe desta confraternização. O Atelieràe: Oswald
de Andrade evoca Tarsila do Amaral; o Páscoa de Giorgio de Chirico^^ é um poema
metafísico e surrealista exemplar como intercâmbio de linguagens entre o pintor e o
poeta. Na coletânea Museu de tudo^^, João Cabral de Melo Neto refere-se à pintura
como um corredor infindo levando a outras coisas^"^ e poetiza sobre a presença e
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)

peso das Máquinas^ de Vera Mindlin^^ e a taquigrafia de José do Rego Monteiro,


pintor, que em sua sobriedade comparável a Miro torna capaz a tradução do
''inexcessivo"^^. Em Vedra do Sono (1940-41j, dedicado a André Masson, Cabral o
descreve como o pintor da metafísica do limbo^^. As formas, cores e a realidade
criadas pela pintura de Miró também estão presentes nos versos de Murilo Men-
des^®. Carlos Drummond de Andrade escrevei Goeldi, onde, através de um jogo de
insinuações biográficas e estilísticas, insiste na sua característica sombria^^. Ataíde à
vendãj num tom leve, discute politicamente o dilema do Colégio Caraça que, sem di-
nheiro, pensa em vender um quadro de Ataíde"^. De Portinari faz um panegírico — " O
universo de Portinari/ se às vezes dói, sempre fulgura:/ entrelaça, como num verso,/
o que é humano ao que é pintura'"^^ - associação expKcita das duas linguagens.
A poesia produzida por Rosa distancia-se no tom e no tema"^^ daquelas dos
brasileiros. Talvez melhor se afine com o Auden de Musée des BeauxArts e as perso-
nagens secundárias-protagonistas do ícaro de Brueghel"^^.
Nas Natividades, os animais, em princípio figurantes, tornam-se consciência
encarnada do momento, materialização de uma resposta ao extraordinário:
"Capazes de guardar/ (...)/ a para sempre grandeza/ de um momento.'"^; "Boi que
atende e começa a esperar,/ de sua sombra,/ do espesso que terá/ de ser ilumina-
do/"^^; 'O Burro, o Boizinho,/ insemoventes./ Olham: quase choram.'"^^; "Como/
ante uma infração da ordem que aceitaram./ Acordam, meio a um momento.'"^^;
"Sem halos (...)/ perquirem, imiscuídos;'"^®; "São os intérpretes dos humanos em
volta."^^; "Aguardam/ um futuro sem passado."^®;"- um Burro, um Boi - / grimaçante
e aturdido,/ mugínquo e mudo. /(...) /Insusbstituíveis."^^; "Atentos, por sobre o Anjo,
/(...)/ como sorriem."^^; "entreconscientes"^^; "protagonistas"^^.

Testemunhas privilegiadas, de fora, desconhecidas, que ouvem ou vêem. Como


o ouvinte de Grande Sertão: Veredas. O objeto/sujeito eventualmente capaz de articu-
lar uma melhor visão de conjunto e multiplicar seus sentidos. Através do distancia-
mento^^. O burro e o boi — companhias imprescindíveis numa ilha deserta^^—, com
maiúsculas nas poesias das Natividades^^, obscurecem o Cristo e a Virgem pela
intermediação do olhar e da poesia de Rosa.
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)

Os múltiplos poderes de sugestão da iconografia traçam para Rosa caminhos


diversos da maioria daqueles trilhados por outros escritores. Sua leitura pictórica
tende a ser anti-intelectual - caminho alternativo ao de Paz ou João Cabral, por
exemplo — movida por passagens, por um particular capaz de reconstruir um uni-
verso, por correspondências entre o visto e a memória de si mesmo, enredada numa
inextricabilidade com suas raízes rurais brasileiras. Não se fascina prioritariamente
pela técnica, a qualidade ou genialidade do pintor, seu estilo, sua capacidade de trans-
portar o espectador para outras idades ou dimensões existenciais, o jogo de cores, da
luz, da construção do espaço, o desvelamento da mística da arte ou a metafísica da
imagem. Encanta-se com os bichos que aparecem nos quadros^^. São justamente
estas personagens secundárias as responsáveis pela integração de uma obra a seu
museu imaginário da arte universaP^ São passarinhos, coelhos, urubus, leões, maca-
cos^^, borboletas, ursos^\ bois, vacas, burros, papagaios^^e alguns outros. Animais
com uma solidez comparável à da Terra, como queria Plotino^^. Solidez atribuída
pela forma pictórica, diversa daquela sensível nos campos das Geraes ou nos passei-
os pelos zoológicos do mundoAnimais conceptualizados por estilos, cores e espa-
ços da cultura. Mas ainda vistos mais como animais do que formas, mimeticamente.
Estas escolhas podem indicar, inclusive, um entendimento diversificado de seu
imaginário. A exegese da obra de Rosa tem sido exaustivamente elaborada a partir de
seu interrelacionamento com a literatura e cultura popular (Leonardo Arroyo, Lenira
Covizzi), a tradição oral (Sandra Vasconcelos), com suas leituras variadas (Suzi Sperber,
Francis Utéza, Heloisa Vilhena de Araújo). Embrenhada nestas intertextualidades,
nestas múltiplas artes de costurar palavras, sua criação fechar-se-ia no universo da
cultura, distante da natureza - apesar de todos os animais, ares livres, sertões e vere-
das por onde se espraia. Com a linguagem circunscrevendo o reaF, a natureza cons-
truir-se-ia a partir de idéias, signos, de uma seleção visual e auditiva erudita. Mas, se
Rosa evocava a língua como seu elemento metafísico^^, o também seu "amo o gato e
o boi/ como amo as letras das palavras"^"^, ao atribuir existência, substância, realida-
de aos bichos em si, parece redimensionar seu processo de captação da realidade.
Nesse sentido, diante de uma pintura, a evocação da natureza seria prioritária, ante-
rior, ao próprio apelo da cultura ou das palavras. Ecos das Gerais^^.
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)

Este primado da natureza sobre a cultura está bem documentado num poema
sobre a criação dos animais — "Meister Bertram von Minden, ^'Schòpfung der
Tiere", vom Petri-Altar, Hamburg — Kunsthalle"^^— onde Rosa acaba, inclusive,
rompendo com a autoridade da Bíblia. Bertram von Minden (c.l342-c.l415)^^, no
altar Grabower (1379), narra cenas da Criação e do Antigo Testamento. A criação
dos bichos, explorada por Rosa, não é um painel isolado, situando-se entre a cria-
ção das plantas e a do homem.
Em volta de Deus./- como sempre estarão - / eles já existem/ no terno (afetuoso)/
milagre de suas inventadas/(talvez não arbitrárias formas)/talvez não tenham sido
feitos/só para o Homem./Criaturas (Sorrisos são)/As altas corujas, já irmãs/da noi-
te — orelhas levantadas/O coelho que corre/A lebre que se senta/A raposinha, aten-
ta/O lobo e o cordeiro/Os bentos cervos, extenuáveis/O cavalo azul como as dis-
tâncias/O boi compassivo/A cabra/O passarinho/O falcão/O pavão falaz/O galo
— /O cisne — /Os peixes entrecruzados/O caranguejo
Esperam o que é /Também um /Mistério (como êles mesmos)/Que a cada um /
Deus lhe diga o seu /Nome.

Neste poema de paradoxos, onde os animais já aparecem nomeados pelo autor


Rosa, mas ainda não pelo autor Deus, o escritor parece esquecer seu assentido
platonismo^^ Admite que as palavras vem depois das coisas, a cultura após a criatura
e torna-se temporariamente um nominalista abelardiano.
Para construir seus versos aproveitará a disposição pictórica dos elementos —
em torno de Deus — enquanto especula sobre suas atitudes. Seu olhar, a partir da
figura central de Deus, desloca-se para o alto à esquerda (as corujas) e vem descendo
pelo mesmo lado (o coelho, a lebre, raposa, lobo e cordeiro, os cervos — que imagina
estarem sendo abençoados por Deus - , o cavalo), sobe o olhar para a cabra e ignora
o burrinho, o porco e o urso; o olhar vai para a direita de cima para baixo, onde
também ignora algumas figuras. Do boi fica a impressão de compaixão, reiterada no
ciclo de poemas sobre a Natividade.
E através do acompanhamento da ação dos animais que o poema é formaliza-
do. Rosa centraliza Deus, mas não indica a imensa estatura que lhe atribuiu o pintor
— a perspectiva hierárquica — em relação aos bichos e questiona a Bíblia, reinventa a
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)

criação. Na ^íhlia os animais são nomeados por Adão {Gênesis^ 2: 18,20), não por
Deus. Também no Gênesis (2:18) os animais deveriam fazer companhia a Adão; Rosa
duvida que pudessem ter sido criados só para o homem. Nesse sentido, reforça a
associação dos animais com o divino, o fato de estarem impregnados da sua essên-
cia. Consequentemente, dada a insondabilidade do divino, adquirem mistério; exata-
mente como o outro aspecto da criação, o outro corpo criado, a palavra, o nome. Na
verdade, o gesto de Deus indica estar criando os animais - o mesmo gesto, apontan-
do dois dedos, é repetido ao criar o homem —, mas Rosa poeticamente imagina que
estaria dando nome aos bois.
Este entusiasmo pelos bichos talvez explique a quase total ausência de pintores
modernos, em sua maioria distanciados do figurativismo, em seus apontamentos e
livros. Cerca de três mil volumes compoem a biblioteca de Rosa, dos quais cento e
dez sobre artes plásticas; destes mais da metade trata de arte antiga e medieval, trinta
e sete especificamente da Idade Média e Renascimento; cinco de arte moderna^^. Da
arte dos séculos XIX e XX resultam poucas poesias, como A vaca amarela, aludindo
à pintura do fauvista alemão Franz Marc^^.
As imagens que enxerga traçam um mapa de seu olhar, com limites animais e
fronteiras candorosas. Talvez possamos também inferir algo de sua concepção teó-
rica da pintura, indiretamente. Uma pista estaria numa das epígrafes, a Entremeio com
o vaqueiro MarianOytiradado livro The B/ack Mate de Conrad. A frase refere-se a um
homem contando ter conhecido um marinheiro que aparentava ser mais espanhol
do que qualquer espanhol que jamais vira,tal qual um espanhol num quadro^"^. O
curioso é que, logo em seguida. Rosa começa a falar de Mariano como alguém supe-
rior a qualquer personagem da literatura, pois "reunia em si, em qualidade e cor,
quase tudo o que a literatura empresta esparso aos vaqueiros principais...Era tão de
carne e osso..."^^.
Talvez insinuando ser a realidade das palavras menos sensorial ou especular,
mais abstrata ou vaga, que a realidade pictórica. Na verdade, vários dos qualificativos
atribuídos a Mariano são próprios às artes plásticas: forma, densidade, luz. Estas
características, enfatizadas pela suprasensorialidade imagética impKcita na frase de
Conrad, subentenderiam uma estreita relação entre o pictórico e o mimético.
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)

No entanto, nem tudo é tão fácil ou lógico. Formalmente, as ilustrações das


obras de Rosa são extremamente estilizadas, hierogKficas — palavra que tantas vezes
aparece em seus apontamentos sobre imagens. A partir da segunda edição de Grande
Sertão: Veredas, as orelhas do livro exibem desenhos de Poty, sugeridos, mas não
explicados por Rosa^^.
Nenhum olhar é neutro. Tanto a empatia pela expressão iconográfica hieroglífica
de Poty como pela arte européia medieval, envólucro de uma mística cristã e de
outras nela embutidas, denotam o enxotamento da "megera cartesiana"^"^, mas tam-
bém da dramaticidade. Rosa caminha por um universo iconográfico em que as ten-
sões não se explicitam em primeiro grau, as aparências são ilusórias e a lógica acaba
esfumaçada pela epifania. Alguns críticos tem insistido, aliás, nessa rota de leitura
para suas obras; pela metafísica, o simbólico, o hermetismo, o detrás do dito. Nesse
sentido, a iconografia da Natividade e da Visitação dos Reis Magos está plena de
não-ditos, de uma inquietação velada por uma calma exterior. A chegada do Cristo,
imbuída de um amplo sentido de tragédia, do pecado adâmico ao seu martírio pes-
soal, surge aí escamoteada por uma pretensa calma de confiraternização entre ani-
mais, seres humanos, semi-divinos e divinos. Esta aparência dissimulada - "típica do
capiau"^^ - nas composições iconográficas poderia eventualmente servir de estímu-
lo a outras visões e recortes na narrativa do escritor, reforçando o poder do pictórico
em suas estórias^^.
Por outro lado. Rosa descarta o significado ideológico e doutrinai das Nativida-
des ao expurgar a Virgem Maria — Erzatz às deusas-mãe e um dos sentidos poKticos
centrais das imagens que reúne. Também elimina a historicidade impKcita destas
representações, seus significados ideológicos e suntuários^^. Ao vaguear por estes
quadros, alheio a estas implicações, indiferencia as representações no tempo e espa-
ço. Diante da Adoração dos pastores de Schongauer explicita uma superação do
tempo pela mística: "...irreais como/ não anjos/ como/ simples notações do amor/
- maior que o tempo"^^ ou identifica a mística do cristianismo com a história: (os
animais) "Alguma coisa cedem/ à imensa história^^, ou ainda : (os animais) "Aguar-
dam/ um futuro sem passado"^^. No entanto, as Natividades formalizam-se no es-
paço e no tempo.
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)

No Evangelho apócrifo de Pseudo-Mateus, talvez do século VIII, aparecem


pela primeira vez o boi e o burro :
Um anjo fez com que ela apeasse e entrasse numa caverna escura que se pôs a bri-
lhar... No terceiro dia, Maria deixou a caverna e foi para um estábulo e colocou a
criança na manjedoura, e o boi e o burro o adoraram.

A idéia da caverna é retomada num texto do século XIH Meditações sobre a vida
do Cristo^\ Na Iconografia da Natividade de Niccolo di Tommaso, a Virgem e o
Cristo, envoltos cada um numa mandorla — 2i amêndoa, símbolo do universo —, acom-
panhados por São José, o boi e o burrinho encontram-se dentro de uma caverna
triangular, encimada por Deus-Pai e contornada na parte superior por anjos; de
imediato, chamam atenção os dourados bizantinos da composição, nas mandorlas,
anjos e auréolas. Guimarães Rosa descarta essa luz que preenche. Desenrola a narra-
tiva a partir da esquerda, onde estão os animais, sobe o olhar para os anjos e astros.
Mas o tema dos versos deriva daquilo que não é, do ausente. Do vazio da caverna e
da manjedoura. E no "vácuo" e no "sepulcro, sarcófago" que a cena adquire seu
sentido presente e futuro:

Quase esquivas testemunhas,/ ante a manjedoura/ — sepulcro, sarcófago — / jazem/


em canto, oculto, calmo. //Sob os circunseqüentes anjos e astros./ e o drama e o
vácuo. / Como o Menino. ^^

Os animais e o menino jazem na calma e na ambigüidade do verbo, deitados e


já mortos.
Por vezes, a relação entre o boi, o universo e a perfeição parece ser mais evidente
para Rosa do que para os escritores antigos. Bois têm alma^^. Em uma anotação consta:

Aos bois somente é/ possível tributar adoração/ : porque são o perfeito/ fim de
uma intacta/ idéia de mundo.

Sua perfeição faz do boi um poeta:


Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)

O boi baba/ seja como for;/ só o que não se acaba/ é um amor noutro amor./ E o
boi bem sabe/ usar a nostalgia: / sempre que pode/ volta à vaca fria./ Portanto, o
que êle baba/ é pura poesia.^^

Da cultura popular, pródiga em quadrinhas e cantigas que encantavam Rosa,


deve ter vindo a inspiração para os versos casados com a imagem á^i Adoração dos Três
Reis do flamengo Lucas van Leyden: "Boizinho triste,/ presente e ausente./ Que o
amor existe/ decerto entendes."^^
Pelas trilhas dos animais, a conexão do escritor com os quadros europeus en-
volve igualmente um repensar da cultura brasileira em suas raízes coloniais portu-
guesas. Um multiplicar de ires e vires, uma galeria de ecos. A tradição do presépio
remonta a S. Francisco de Assis^^. Como Guimarães Rosa e o Tio Bola de Presepe em
Tutaméic^^ ^ Francisco também incorria, anticatolicamente aliás, num panteísmo ani-
mal, acreditando que os bichos pudessem conversar^^. Os portugueses trariam para
o Brasil o hábito de montar presépios na época do Natal. Diante deles eram feitas
representações e entoados cantos populares — o pastoril^^, a lapinha^"^.
Vários caminhos entrecruzados dimensionam as leituras possíveis dos burros e
bois dos presépios de Rosa. No tocante à própria pintura há uma mistura de estilos,
escolas, procedências^^.
Ladeando os originais das pinturas com as poesias podemos detectar alguns
olhares sistemáticos de Rosa sobre o conjunto. A atenção à forma dos bois e burros
é o motivo mais abrangente, que perpassa a maior parte das poesias. Rostos e corpos
são descritos com volume, forma, algum colorido e, principalmente, simpatia.
Os animais de Filippo Lippi: "Obscientes sorrisos - orelhas, chifres, focinhos/
claros - / fortes como estrelas /Inermes, grandes", parecem com os de Luini: "Aten-
tos, por sobre o Anjo,/ (...)/ como sorriem".
Em Schongauer, de sensibilizados a trágicos:
"longos seres", "Em suas caras, em seus olhos/ desmede-se a ênfase de uma respos-
ta/ sem pergunta", "O Burro, o Boizinho, / insemoventes/ Olham: quase choram",
"O rubro Boi-/ roupa e sangue; e terra".
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)

São tristes também em Pinturrichuio: " nobre e tristonho:/ os rostos, os cenhos."


Confusos em Dürer "-um Burro, um Boi — / grimaçante e aturdido,/mugínquo e
mudo.". Atônitos em Hans Baldung : ''Querúbicos./ Irônicas imagens. / Vibrar de
fulgor floresce-lhes de esfinge os/ vultos/ — à hora atônitos.".
Cúmplices e disfarçados em Fra Angélico: ''o ruivo roxo boi, o roxo rufo bur-
ro,/ (...)/ soslaiam".
BotticeUi pinta e: "o Burrinho se curva, / numa inocência de forma".
Piero deUa Francesca cria contrastes: "Por que zurra para o alto o Burro:/ num
pedido doloroso?/ Por que se abaixa o Boi, opaco,/ tão humilde, tão grande?
Hugo van der Goes humaniza: "Apenas as grandes cabeças:/ mas tão de joelhos.".
Servem como estruturas arquitetônicas de composição do poema. Os animais
de Ghirlandaio assumem o papel de colunas simbóHcas: "ladeiam-na/ como círios
de paz,/ colunas/ sem esforço"^^. Esta idéia de suporte, esteio, concorda com os
versos de Drummond Os animais no presépio : "todo o peso celeste/ suportas no seu
ermo./ Toda a carga terrestre/ carregas como se fosse feita de vento."^^. Os bichos
de Hugo van der Goes se transformam em : "Quentes limites de Deus,/ rudes,
ternos anteparos".
O tema do mistério, segredo, ligado aos animais, também é recorrente. Em
Roger van der Weyden: "que segredo/ da Divindade/ representam?" Os de Domenico
Ghirlandaio são "Taciturnos/ eremitas do obscuro,/" No original datilografado,
Guimarães Rosa anota ao lado: "Mínimos, remotos/ Fora do esquema"^^ Em Gentile
da Fabriano: "Sabem./ Nada aprendem.". Em Hans Baldung a interrogação: "Eles
tem o segredo?" E em Dürer a certeza: "íntimos das sombras".
A maioria destas representações data do século XV. Dado significativo tendo
em vista os pendores de Rosa por Plotino e os conhecimentos ocultos. O humanismo
italiano do quatrocentos desdenha as posições escolásticas mais racionalistas e
aristotélicas dos séculos XIII e XIV; encerra um componente místico mais profun-
do, dada sua inspiração neo-platônica, cabaKstica e hermética; envolve a noção de
homem numa aura de melancolia, de dúvida. Este neo-platonismo encontra-se igual-
mente na base das discussões sobre o sentido da arte e suas manifestações. A arte
visaria uma harmonização com o divino através de uma estética pré-cristã onde a
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)

beleza seria um dos meios de aproximação com Deus. A questão da luz — presente
em vários dos poemas: ''O milagre é um ponto/ que combure/ num centro da
Noite, / uma luzinha/ um riso.", ''do Céu desceu o Menino/ na lucidade."^^ - era
apreciada numa gradação de valores, da luz invisível de Deus às trevas da matéria,
onde morre^^^. Rosa refere-se diretamente a isto no poema da Natividade de Botticelli,
para quem a luz também era manifestação e s p i r i t u a l e s p e s s o que terá/ de ser
iluminado"^^^; para Rosa, a antinomia não é eterna, a matéria se torna passível de luz.
Diante da Natividade de Schongauer a relação alto/baixo-claro/escuro destaca-se:
''no telheiro/ da claridade de Deus./.../ O mundo é mendigo."^®^
O mesmo sentido funda o poema da Natividade de Piero delia Francesca. Rosa
desfaz a imagem intelectualizada e solene de Piero. Ambos parecem acreditar nos
valores da iluminação, mas Rosa discorda do papel atribuído aos animais pelo pintor.
E recostura a visão:

Por que zurra para o alto o Burro:/ num pedido doloroso? / Por que se abaixa o Boi,
opaco,/ tão humilde, tão grande ? / Nus fantamas que a luz abduz./ Nus como
Jesus/ posto entre húmus e plantas,/ num canteiro^^"^.

Destaca o contraponto alto/baixo criado pelas atitudes dos animais. Portanto,


cria novas linhas de força no quadro; ignora as nove personagens vestidas e banhadas
de luz — massa plástica considerável no conjunto; por oposição, através da nudez dos
animais, estabelece uma ligação e continuidade com o Cristo — única forma humana
nua, próxima à natureza como eles; logo, redistribui a luz, abduz os animais da esfera
da matéria — sem luz — e os reconstroi enquanto epifanias semelhantes ao Cristo.
Na predella da Madonna delia Cintola de Benozzo Gózzoli, na pequena cena da
Natividade da parte inferior, a caverna aparece recoberta por um tipo de telhado,
aproximando o divino e o humano. Como discípulo de Fra Angélico, a luz assume
um papel extraordinário em suas composições. E, no caso, a caverna servirá como
materialização das gradações de luminosidade, da parte frontal onde se deita o Cris-
to — luz absoluta — até o fundo da caverna — as trevas. Guimarães Rosa acompanha o
caminho de luz de GozzoU: "Quase sempre o milagre é transparente./ E os dois
animaizinhos/ ..../ detidos / no limiar de/ luz/ esvaziadora"^®^
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)
5-)

A luz pode representar a transparência deste milagre. No Nasámento de Cristo de


Corregio, maneirista arrafaelado e muito dedicado aos efeitos de claro/escuro, a luz
domina toda a ação. O quadro faz parte de uma série de Madonnas pintadas por
volta de 1520 representando visões líricas, adocicadas, e teatralizadas da maternida-
de da Virgem. Nesta pintura da Gemãldegalerie de Dresden, o foco central está volta-
do para o rosto da Virgem e o corpo do menino deitado na palha, com o topo da
cabeça voltado para o espectador. Em volta deles uma série de personagens falam,
gesticulam, até se ofuscam com tanta luminosidade. No segundo plano, um homem
parece estar freando um burro em movimento. Da mesma forma que fizera com a
imagem de Piero delia Francesca, Rosa ignora o mundo humano. Destaca a luz, o
milagre, os animais, mas tudo a seu modo, não o de Correggio. Nos versos, ameniza
tanto os dramáticos efeitos de luz e sombra da tela original que acaba por recriar
toda a atmosfera. Reduz a intensa luminosidade central a um "ponto/ que combure/
.../ uma luzinha" e a densa massa escura em que se entrevê um boi em "mansa
treva". Assim:

O milagre é um ponto/ que combure/ num centro na Noite,/ uma luzinha, um riso./
/ De perfil, gris,/ adiante (para que o Menino o veja), / o Burrinho.// O Boi ainda
não se destacou/ da mansa treva.^®^.

Descrito na cor "gris", palavra tantas vezes repetida nos textos de Rosa, o
burrinho torna-se protagonista de outra estória de encontro com o divino, "centro"
simbólico de um mundo em vias de recriação.
O centro é transformado em "âmago do mundo", lugar onde o Menino foi
descido, na luz. A representação da Natividade em Fra Angeüco encerra o profundo
simbolismo teológico e metafísico por ele atribu[ido à claridade; de origem celeste,
permite ver a natureza, mas também purificar os sentidos, restabelecer uma harmo-
nia primordial entre o celeste e o terrestre, reencontrar o mundo paradisíaco, trans-
formar a vista em visão luminosa^^^. Rosa deixa-se levar pelo misticismo de Angélico,
pela dignidade absoluta da composição onde, da massa superior de luz, verdadeira
fogueira dourada encimando a cabana/caverna. Angélico destacou "uma réstia" para
acomodar o menino no escuro inferior: " - no âmago do mundo,/ desnudo,/ desci-
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)

do ao chão,/ sobre uma réstia,/ à angústia: /Ele/ - o que é a única fala,/ a última
resposta."^®^ O Cristo-Verbo.
Esta "réstia" se metamoforseia em ''favo de ouro" no poema referente a uma
iluminura do Museu de Condé. Como diante da imagem de Angélico, Rosa fará
apenas uma menção aos animais e dará maior ênfase ao Menino, descrito por
antinomias, mas alquimicamente o ouro — metal perfeito —, símbolo do conheci-
mento, do sol, da luz. Apaga a Virgem e circunscreve a sua visão ao Cristo, dois
anjos e o boi:

Sem halos, grotescos, carantonhos gênios,/ perquirem, imiscuídos;/ farejam/ a de-


posta coisinha ilógica/ divinumana: / o tão náufrago,/ tão alto,/ delével/ inocultável/
- como um favo de ouro.//O cincerro do Boi é o primeiro sino.^^^

Diante da Natividade de Filippo Lippi que aprecia — aquela dos afrescos da cate-
dral de Santa Maria Assunta em Spoleto —, Rosa não discute ou recria a cena, con-
corda com o pintor e descreve as personagens e a situação, implícita uma arquitetura.
Os animais já são:

Obscientes sorrisos/ — orelhas, chifres, focinhos,/ claros-/ fortes como estrelas. /


Inermes, grandes.// Sós com a Família (a ela se incorporam),/ são os que a hospe-
dam. / Alguma coisa cedem/ à imensa história.^^".

Indiretamente Rosa faz um comentário bastante justo à composição deste afresco


ao falar do tamanho dos animais; na verdade, sua iconografia é bastante convencio-
nal, mas Lippi inõva a estrutura pictórica das natividades ao utilizar uma escala natu-
ralista na relação das figuras com a arquitetura^
Assim, na Adçração dos Magos de Gentile da Fabriano, o preciosismo gótico da
pintura, sua riqueza material, bizantina, aristocrática, douradíssima, luminosa, vai
para o verso: "A fábula de ouro"^^^, a montanha, o céu, as riquezas imaginárias,
materiais e naturais, chamam aqueles ''Tão ricos de nada ser,/ tão seus, somente."; o
boi e o burro cujas cores e porte contrastam com o esplendor das roupagens huma-
nas. Imanências que desvelam os atributos do próprio Cristo, domínio de si e sabe-
doria. "Sabem./ Nada aprendem".
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)

A mesma apreciação repete-se diante da Adoração dos Magos de Domenico


Ghirlandaio. Diante de ''frêmitos / e gestos/ circunstantes", o boi e o burrinho
representam a paz. E como "taciturnos/ eremitas do obscuro, / se absorvem",
encarnando a sabedoria oculta, contrária às pompas mundanas do teatro em volta
do Cristo. Mais uma vez Rosa faz abstração desta massa geral da composição, aten-
do-se a um mínimo.
Na Adoração dos Keis do flamengo Rogier van der Weyden, Rosa indaga sobre:
que segredo/ da Divindade/ representam/ (....) /sempre próximos, em doce cum-
plicidade/ ..../assim de acordo com o silêncio,/ o bom Boi, o bom Asno?^^^

O corpo material do quadro é percebido através da menção de "ruínas e pom-


pas", quanto aos humanos, nem uma palavra. As ruínas costumam ser parte inte-
grante da iconografia da Natmdade; representam o mundo antigo, pagão, decadente,
que se acaba com a chegada do Cristo. Rosa, no entanto, salvo esta menção, ignora-
as sistematicamente. Também ignora as paisagens, massas pictóricas poderosas.
As possibilidades de análise da série de O Burro e o Boi no Presépio são ilimitadas,
abertas, desdobráveis. Apesar de representar um microcosmo ficam evidentes as
correspondências com o conjunto da obra de Guimarães Rosa, sua sensibilidade
para com a mística, a Idade Média e os animais. Como os dois diários escritos em
1952, em suas andanças por Minas — A Boiada 1 e A Boiada 2 — a escolha dos
quadros assume igualmente o caráter de um diário de viagem. De uma viagem inte-
rior, dos sentidos. Diário destituído de oralidade, mas pleno do "mire, veja"^^^. Diá-
rio das lembranças de si mesmo, dos presépios de sua infância com o burrinho e o
boi, quando "os Três Reis introduziam o tempo"^^^. Diário de sua auto-imagem:

sou profundamente, essencialmente religioso, ainda que fora do rótulo escrito e das
fileiras de qualquer confissão ou seita; antes talvez, como o Riobaldo do "G.S: V",
pertenço a todas^^^.

Uma religiosidade panteística, em que os animais se apresentam como hierofantes


e, mais ainda, como teofanias.
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)

Abstract: In thispaper the author deals mth the dialogue of Guimarães Rosa mth the art of painting
through Historj, placing him mth other writers ivhat allours a long duration analysis of poeticproduction,
and at the some time shomng bis singularity.
Keywords: Guimarães Kosa, poetrj, medievaliconographj, nativity.

Notas
^ Carta ao tradutor italiano Edoardo Bizzarri. Citada por Leonardo Arroyo, Culturapopularln: Grande
Sertão: Veredas, R. de Janeiro: José Olympio, 1984 (Coleção Documentos Brasileiros, vol. 195): 5.
^ Citado por Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos, Puras misturas, o imaginário das histórias em Uma
história de amor de João Guimarães Rosa, Tese de doutorado em Teoria Literária e Literatura Compara-
da apresentada ao Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH da USP,
São Paulo, 1990:1.
^ Que se encontram, junto com a biblioteca de Rosa, no Arquivo J.G.R. do Instituto de Estudos
Brasileiros na Universidade de São Paulo.
Assim a descrição de ilustrações :[ "Caçada ao javali" (Wandbild aus Tiryns) '"Voem, corram, cães/
Sobre e sob a presa/ Os cães malhados/ A rude besta casada/ Se estende/solta na velocidade/
tensa e feroz/ mais longa que si mesma"] Ms., Arquivo JG.R., lEB-USP ou ["Sarcófago de Lívia
Primitiva" (Louvre) pg. 76 (x.gr. et lat. no M. do L.) Clareira entre floresta/ de estrigilas:/Bom
Pastor carrega ovelha/ entre as ovelhas/ entre/ a árvore de uma/ âncora/ e o Peixe a prumo.] Ms.,
Arquivo J.G.R., lEB-USP
^ cf. Vicente G u i m a r ã e s , i n f â n c i a de J.G.R, ]osé Olympio-MEC, R. de Janeiro, 1972, p. 16.
^ Publicados em Ave, Palavra, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 198-210. Também numa edição de
luxo, com várias ilustrações, bilingüe, sob a responsabilidade de Geraldo Jordão Pereira, versão
para o inglês de Aila de Oliveira Gomes, R. de Janeiro: Salamandra Consultoria Editorial, 1983.
O nome faz pensar imediatamente no "Sargon/Assarhaddon/ Assurbanipal/ Teglattphalasar,
Salmanassar/ Nabonid, Nabopalassar, Nabucodonosor/ Belsazar/ Sanekherib.
E era para mim um poema esse rol de reis leoninos, agora despojados da vontade sanhuda e só
representados na poesia. Não pelos cilindros de ouro e pedras, postos sobre as reais comas riçadas,
nem pelas alargadas barbas, entremeadas de fios de ouro. Só, só por causa dos nomes". J.G.R., São
Marcos, em Sagarana, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1984: 252-253.
^ Percy Bysshe Shelley Ozymandias, in Immortalpoems of the english language, ed. Oscar Williams, N.
York: Washington Square Press, 1969: 295.
^ John Keats, Ode on a grecian urn, in Immortal Poems of the english language, ed. Oscar Williams, N.
York: Washington Square Press, 1969: 325.
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)

^^ Em um manuscrito: "O Leão de Babilônia" (Leão babilônico) Glasiertes Ziegelrelief aus dem
Tempel der Ninmach (Springer, pg. 59, vol. I) : Branco, rubro e ouro/ sobre o a2ul/ Como o sol/
como asiáticas flores/ Leste-Oeste/ O leão é um deus jubado/ Rígidas a carne e a pedra/ (Incontida)
Maior que os volumes de/ seus membros, de seus lombos,[dorso] [moldes]/ A fôrça/Se libera
pelos olhos/ Contudo, olhos/ (valorizar neste/ a volgal o). Ms, Arquivo. J.G.R., lEB-USP.
" Manuscrito, Arquivo J.G.R., lEB-USP: "Leoa moribunda / pg. 70 Spr. vol. I / (relevo do tempo de
Assurbanipal de Kuyunjir, British Museum).
"A orgulhosa dor mais selvagem/ aparelho e alvo/ flechas ferem sua (crava) longa/ [carne oblíqua/
suas mãos/ resistem como rudes colunas/ A cabeça/ é uma/ Flechas cravam [varam-na] sua longa
carne/ [desgovernada e oblíqua/ (metade de seu corpo já /está morto)/ produzindo-lhe da escan-
carada/ boca um som por/ milhares de anos/ E detiveram-lhe a morte/ Toda um (só músculo, e/
tantos (verdadeiros) sulcos/ como um / se desmorona/ como um deserto/ Homens-leões/
como a (desmoronante)/ desmoronada/ cumieira de um templo" Ms., Arquivo J.GR., lEB-USP.
^^ "Sacrifice d'un porc, d'un bouc et d'un taureau (...) Cette belle procession des svovetaurilia se dirige
vers deux autels, sur Ia droite, auprès desquels sont plantés deux lauriers. Le sacrifice est sans doute
offert à Mars et au génie de 1 'Empereur ou à ce dernier seulement. L 'officiant principal, près de
Tautel est 1 'Empereur lui-même. On a proposé de reconnaitre en lui, Caligula ou Tibère.", 1m
sculpturegrecque et romaine auMusée du Ijouvre: guide du visiteur, Paris, Editions des Musées Nationaux,
1947: 54.
^^ Svovetaurilia /(Museu do Louvre)/ (p. 54 "La sculpture gr. et rom. au M. du Louvre) Ms., Arquivo
J.G.R., lEB USP
^^ Victor Hugo, À Albert Dürer, in Impeinture enpoésie, ed. Marc Meunier-Thouret, Paris: Gallimard,
1983: 21.
Ms. Arquivo J.G.R., lEB-USP.
^^ "Os que por oculta ciência/ de tudo souberam. / Seus mágicos presentes,/ o Menino recebe-os. /
O colo./ A mãe./ O Universo./ Atrás, porém, os dois/ - um Burro, um Boi - / grimaçante e
aturdido,/ mugínquo e mudo./ Inevitáveis. / íntimos das sombras. / Insubstituíveis.", BBP, XXIII,
Ave, Pa/apra, R. de Janeiro: Nova Fronteira: 54.
cf. verbete "or", em Dictionnaire des symholes^2X\%\ Robert Laffont/ Júpiter, 1969: 705.
^^ Thomas Stearns Eliot, Journey of the Magi, in Immortal Poems of the Eng/ish Language, ed. Oscar
Williams, N. York: Washington Square Press, 1969: 537-538.
^^ Théophile Gautier, À Zurbarán, in Lapeinture en poésie, ed. Marc Meunier-Thouret, Paris: Gallimard,
1983: 48-50.
J.G.R., BBP, VI, Ave, Palavra, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 200.
Paul Verlaine, Nascita di Venere, in Lapeinture en poésie, ed. Marc Meunier-Thouret, Paris: Gallimard,
1983: 66.
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)

^ J.G.R., BBP, em Ave, Palavra, R. de Janeiro:Nova Fronteira, 1985: 202-203.


^ cf. Ronald Lightbown, Botticelli, N. York: Abbeville Press, 1989: 248-253.
^^ G. ApoUinaire, Alcools, ed. Roger Lefèvre, Paris: Larousse, 1971: 114.
^^ cf. Fritz Burger, Die deutsche malerei vom ausgehenden Mittelalter bis ^m ende der Kenaissance, Berlim,
Akademische Verlagsgesellschaft Athenaion, p. 378 (ilustração 458).
^ cf. idem, ibidem, p. 431, ilustração 529.
J.G.R., BBP, IX, ^mAve, Palavra, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 202.
^^ Jean Cocteau, Hommage à Jérôme Bosch, in Lmpeinture enpoésie, ed. por Marc Meunier-Thouret,
Paris: GalUimard, p. 13.
^^ Williams Carlos Williams, Hommage aux peintres, in Lm peinture en poésie, ed. por Marc Meunier-
Thouret, Paris: GaUimard, 1983:122-123.
J.G.R., BBP XX, Ave, Palavra, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 207.
^^ cf. Otávio Pa2, Lj)sprivilégios de Ia vista L, Arte moderno universal, em Obras completas, México, Fondo de
Cultura Econômica, 1991: 323-358.
^^ "Quando te debruçares/ Sobre a lívida ambigüidade/ Nada será interrompido/ Não estremecerá
a estátua do físico/ Nem a sacra estupidez/ Nem a miragem/ Nem a fraternidade ansiosa//
Ninguém quis comprar o poeta". Oswald de Andrade, Páscoa de Giorgio de Chirico, em O santeiro
do Mangue e outros poemas, S. Paulo, Globo, Secretaria de Estado de Cultura, 1991 (Obras completas
de Oswald de Andrade): 85.
^^ João Cabral de Melo Neto, Museu de tudo, poesia (1966-1974), R. de Janeiro: José Olympio, 1976.
^ A lição de pintura: "Quadro nenhum está acabado,/disse certo pintor;/ se pode sem fim continua-
lo,/ primeiro, ao além de outro quadro//que, feito a partir de tal forma,/ tem na tela, oculta, uma
porta/ que dá a um corredor/ que leva a outra e muitas outras", idem, ibidem, p. 68.
^^ idem, ibidem, p. 62.
^^ "Esse recifense em Paris/ taquigrafou (comoMiró) / o magro e o nu, o inexcessivo/ de onde
nasceu e se exilou; / e essa parca caligrafia/ de recifense soube apor/ aos verdes podres do alaga-
do,/ traduzindo o que é lama em cor", idem, ibidem, p. 47.
^^ João Cabral de Melo Neto, Pedra do Sono, em Antologia Poética, R. de Janeiro: José Olympio, 1975: 205.
^^ "Soltas a sigla, o pássaro, o lozango./ Também sabes deixar em liberdade/ O roxo, qualquer azul,
e o vermelho./ Todas as cores podem aproximar-se/ Quando um menino as conduz no sol/ E cria
a fosforescência;/ A ordem que se desintegra forma outra ordem ajuntada/ Ao real - este obscuro
mito" Murilo Mendes, Joan Miró, em Murilo Mendes - Poesia, Coleção Nossos Clássicos, Ed. Agir,
1983: 119.
^^ Carlos Drummond de Andrade, Reunião, R. de Janeiro: José Olympio, 1980: 229.
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)

Carlos Drummond de Andrade, Discurso de Primavera e algumas sombras, R. de Janeiro: José Olympio,
1979:22.
idem, ibidem, p. 38.
Em sua biblioteca há um livro sobre Portinari, de Celso Kelly: Portinari: quarenta anos de convívio,^ R.
de Janeiro, Ed. G.T.L., s. d.
W. H. Auden, Musée des Beaux Arts, in ImmortalPoems of the english language, ed. Oscar Williams, N.
York: Washington Square Press, 1969: 580.
^ J.G.R., BBP VIII, Palavra, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 201.
J.G.R.,.BBP X, idem, p. 202.
^ J.G.R., BBP XI, idem, p. 203.
J.G.R., BBP, XV, idem, p. 205.
J.G.R., BBP, XVIII, idem, p. 206.
J.G.R., BBP, XX, idem, p. 207.
J.G.R., BBP, XXII, idem, p. 208.
J.G.R., BBP, XXIII, idem, p. 209.
J.G.R., BBP, XXIV, idem, p. 209.
J.G, BBP XXV, idem, p. 210.
J.G.R., BBP, XXVI, idem, p. 210.
55 Sobre a questão do distanciamento entre o narrador e sua matéria cf. Lenira Marques CovÍ22Í, O
insólito em Rosa e Borges, S. Paulo: Atica, 1978: 51.
5^ "Dez animais para a ilha deserta: o gato, o cão, o boi, o papagaio, o peru, o sabiá, o burrinho, o
vaga-lume, o esquilo e a horhol^tâ". Ave, palavra, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 125.
5^ Num comentário ao conto O burrinho pedrês, enfatizando o significante, Suzi Frankl Sperber, diz
que : "As descrições dos animais e da paisagem não tem a finalidade de dar cor local e pitoresco.
Nem são propriamente descrições, mas momentos da narrativa de clara função poética. Vale, por-
tanto, a palavra, não a imagem, na fascinação de Guimarães Rosa pelo meio geográfico", Guimarães
Rosa: Signo e Sentimento, S. Paulo: Editora Atica, 1982: 20. Acreditamos que a imagem também valha.
5^ No manual de história da arte de Anton Heinrich Springer, Handbuch der KMnstgeschichte^ Leipzig,
Alfred Krõner Verlag, 1918/20, 5 volumes, cujas ilustrações servem de base para algumas de suas
poesias, somente figuras com animais despertam a escrita.
5^ Seu amor pelos animais é confessadamente equivalente ao amor pelas palavras: Amo o gato e o
boi/ Como amo as letras das palavras/ O mar muito mar. Os belos pés das mulheres/ seus sapa-
tos/ As mãos da gente./ Não sei. Ms., Arquivo J.GR., lEB-USP.
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)

^ Manuscrito: "Os dois macacos que jogam xadrez num capitei de coro de leste da Catedral de
Naumburgo": Que é o demonio:/ Se não a forma/ Que falhou de/ conter em seu / a ener-
gia/ que é do caos/ e a matéria/ apenas em parte/ subjugada? Ms., Arquivo J.G.R., lEB-USP.
^^ Rosa entusiasma-se por um urso realizado por um escultor francês relativamente desconhecido —
François Pompon (1855-1933 — de quem possui um catálogo em sua biblioteca: Musée de Dijon:
Catalogue illustré des oeuvres de François Vompon^ s.n.t.. Pompon era um marmorista, escultor de animais,
discípulo de um outro animalista, Rouillard. Reza a introdução do catálogo de sua exposição no
Museu de Dijon que Pompon "rejoint Festhétique egyptienne". O urso, motivo do rascunho da
poesia de Rosa, constante no catálogo como peça do acervo do Museu do Luxemburgo, apresenta
linhas muito limpas, bastante volume e uma economia minimalista de traços. Assim é visto num
manuscrito: "Urso branco" (Pompon) Ou seja: seu grotesco salvo/ (por) Pelo (pensado) Peso/
Que insere (reverte) (inscreve) (corresponde)/ Seu movimento. Num/ modo mais espesso/ do
mundo (caminhado)/ urso recém-saído,/ trapézio recortado/ (Bloco) quadrangular momento/
tosco e/ definitivo/ (irremissível). Ms., Arquivo J.G.R., lEB-USP.
Vendo a "StilUeben mit Wildbret" de Frans Snyders (München Pinakothek): A morte dos animais
caçados/ Guarda gélida violência: / quem os lamentará ? / O faisão sobre a toalha/ branca —
trucidada/ beleza _/ e os pássaros pingados/ de rubro - tão ausentes/ de seus cantos. / O coelho,
pendente / O grande veado de/ longas patas/ despencado./ A lagosta - na bandeja/ rubra,
rubra,/ Da condenação/ [uvas, vegetais, frutas. Ms, Arquivo J.G.R., lEB-USP.
^^ "O melhor, sem dúvida, é escutar Platão: é preciso — diz êle — que haja no universo um sólido que
seja resistente; é porisso que a Terra está situada no centro, como uma ponte sobre o abismo; ela
oferece um solo firme a quem sobre ela caminha, e os animais que estão em sua superfície dela
tiram necessariamente umá solidez semelhante à sua". Plotino. Epígrafe de No Urubuquaquá, No
Vinhém, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
^ Nas anotações de Rosa, à mão e à máquina, há várias páginas sobre os zoológicos por onde andava,
em Hamburgo, Roma, Londres. Algumas estão publicadas em Ave, Palavra.
^^ Como diz Wilton Cardoso "...na sua obra, a linguagem não é simples meio de expressão da reali-
dade, senão que é ela própria que compõe essa mesma realidade" em "A estrutura da composição
em Guimarães Rosa" in Guimarães Rosa, Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros, 1966: 45.
^^ cf Francis l]téz2i,JGK- Metafísica do Grande Sertão, tradução José Carlos Garbuglio, S. Paulo: Edusp,
p. 22.
Ms., Arquivo J.G.R., lEB-USP.
^^ A paixão de Rosa pelos bois é bastante explorada por seu tio Vicente Guimarães em João^^ito,
infância de Guimarães Rosa, R. de Janeiro, José Olympio-MEC, 1972. Menino "acomodado", diz o
tio, leitor contumaz, sem muito interesse por bricandeiras ou futebol, "gostava mesmo, com entu-
siasmo de grande interêsse, era assistir ao embarque de boiadas...." p. 56 ss.
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)

^^ Ms., Arquivo J.G.R., lEB-USP.


^^ Cf. verbete "Bertram, Meister" em Dergrosse Brockhaus, Leipzig, Brockhaus, 1929, vol. 2, p. 609.
^^ "leoana — Ah, mon ami, vous êtes platonicien !" Ave, palavra, R. de Janeiro: Nova Fron-
teira, 1985: 89.
Arquivo J.G.R., lEB-USP.
^^ Assim anota Rosa: "Die Gelbe Kuh" von Franz Marc (coleção Walden, Berlin, pg. 480 - Springer V).
Possuída por tudo,/ A vaca em procela./ Seus chifres,/ Suas tetas/ Sua cauda ancada (ou angada - a
palavra está quase ilegível)/ em curvas de cegueira/ vaca desvairada/ acende no mundo/ rouca
tempestade./ Pescoço polposo/ Pétalas de açougue/ Olhos fechados/ (ao lado está escrito Vaca
só/pescoço)/ Patas musculadas/ Coice e disparada/ Vaca mastigada/ (carne). MS., Arquivo J.G.R.,
lEB-USP
Franz Marc (1880 - 1916), fauvista, divisionista, participante do grupo do "Blaue Reiter", deve ter
seduzido o olhar de Rosa com seus cavalos, elefante e bois azuis, vermelhos, amarelos...
^^ J. G. R., Entremeio com o Vaqueiro Mariano" em 'Estas Estórias, R. de Janeiro: Nova Fronteira,
1985: 93.
^^ idem, ibidem.
^^ idem, ibidem, pp. 57-60.
Carta ao tradutor italiano Edoardo Bizzarri. Cf nota 1.
^^ "Todavia, como o bom, o legítimo capiau, quanto maior é a raiva tanto melhor e com mais calma
raciocina..." J.GR., Duelo, em Sagarana, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1984: 159.
Sandra Guardini Teixeira de Vasconcelos elabora um capítulo sobre as "Imagens do sertão", onde
diz: "Uma estória de Amor" com^òç^ um pequeno universo de imagens. (...) O conto se apresenta, na
verdade, como uma sucessão de quadros que ganham vida e movimento graças à natureza cinema-
tográfica do relato (...) Personagens, objetos e cenas são captados pelo olhar do narrador e trans-
formados em imagens pictóricas, enredando o leitor no extraordinário impacto visual da narrati-
va...", Puras Misturas, o imaginário das histórias em Uma Estória de Amor de João Guimarães Rosa, Tese de
Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada apresentada na FFLCH da USP, S. Paulo,
1990, p. 160.
cf Tereza Aline Pereira de Queiroz, Os Mediei no espaço do sagrado: ecos das teorias do poder divino em
F/orença, Comunicação no XVIII Colóquio Brasileiro de História da Arte do Comitê Brasileiro de
História da Arte, S. Paulo, 1995.
^^ J.GR., BBP, Ave Palavra, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 201.
idem, ibidem, p. 199.
Palavra, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 208.
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)

^ cf. verbete Natm^ in James Hall, Dictionary of Suhjects and Sjmbols in Art, Londres: John Murray,
1993: 219-220.
^^ cf. Anabel Thomas, verbete Christ.- Childhood in lllustrated Dictionary ofNarrative Vainting, Londres,
John Murray/National Gallery Publications, 1994, p. 30.
^^ J.G.R., BBP, XVI, Ave, Palavra, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 205. Nesta edição há um
equívoco na atribuição do nome do pintor - onde está Sano di Pietro deveria constar Niccolo di
Tommaso. Na edição feita por Geraldo Jordão Pereira, Salamandra, 1983, a atribuição está correta.
^^ "Eu tinha precisão de aprender mais, sobre a alma dos bois....", c£ Com o Vaqueiro Mariano, Estas
Estórias, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 93.
Ms. Arquivo Gimarães Rosa, lEB-USP
^^ J.G.R., BBP Xlll,Ave, Palavra, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 204.
^ cf Giancarlo Vigorelli, Edi Baccheschi, L'opera completa di Giotto, Milão: Rizzoli, 1966: 93.
^^ "O burro e o boi — à mangedoura — como quando os bichos falavam e os homens calavam", cf
Presepe, em Tutaméia, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 135.
^^ "Que já houve um tempo em que eles conversavam, entre si e com os homens, é certo e indiscutí-
vel, pois que bem comprovado nos livros das fadas carochas" J.G.R., Conversa de Bois, em Sagarana,
R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1984: 303; "...il beato Francesco predico a molti uccelli...", cf Giancarlo
Vigorelli, Giotto, Milão, Rizzoli, 1966, p. 93.
^^ Guimarães Rosa utiliza esta forma na Grande louvação pastoril, em Ave, Palavra, R. de Janeiro:
Nova Fronteira, 1985: 159.
cf LUÍS da Camara Cascudo, Dicionário do folclore brasileiro, S. Paulo: Itatiaia/Edusp, 1988: 633.
^^ Niccolo di Tommaso (fim sec.XIV - início sec. XV), Meister Franck (ativo no primeiro terço do
século XV), Gentile da Fabriano (c. 1370-c. 1440), Fra Angélico (1387-1455), Roger van der Weyden
(fim do sec. XIV -1467), Sano di Pietro (1406-1481), Filippo Lippi (1406-1469), Piero delia Francesca
(c. 1420-1492), Hugo van der Goes (? - 1482), Benozzo Gózzoli (1424-1497), Botticelli (1444-
1510), Schongauer (1445-1491), Ghirlandaio (1449-1494), Bosch (1450-1516), Pinturricchio (1454-
1513), Dürer (1471-1528).,Hans Baldung (1484-1545), Zurbarán (1598-1664).
^^ "Serão os pagens da Virgem, / ladeiam-na / como círios de paz,/ colunas/ sem esforço. / Tacitur-
nos/ eremitas do obscuro, / se absorvem./ Sua franqueza comum equilibra frêmitos e gestos/
circunstantes/ Os animais de boa vontade. " BBP, V, p. 18.
^^ Carlos Drummond de Andrade, Os animais do presépio, em Reunião, R. de Janeiro: J. Olympio,
1980: 166.
Ms. Arquivo J.G.R., lEB-USP.
^^ J.G.R., BBP I, iyi,Ave, Palavra, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 198, 202.
^^^ cf Giulio Cario Argan, Botticelli, Genebra: Skira, 1989: 58.
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)

^^^ idem, ibidem


J.G.R., BB? X, Ave, Palavra, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 202.
^^^ J.G.R., BBP XI, Ave, Palavra, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 203.
^^^ J.G.R., BBP, XII, Ave, Palavra, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 203.
^^^ J.G.R., BBP, XIV, Ave, Palavra, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 204.
J.G.R., BBP, l,Ave, Palavra, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 198.
cf. Giulio Cario Argan, ¥ra Angélico, Genebra: Skira, 1955, pp. 21-22.
^^«J.GR., BBP lCKy,Ave, Palavra, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 210.
^^^ J.G.R., BBP, XVIII, Ave, Palavra, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 206.
"^J.GR., BBP III, Palavra, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 199.
cf. Jeffrey Ruda, ¥ra Filippo Uppi, Ufe and Work, Londres: Phaidon Press, 1993: 295. Na edição de
BBP da Salamandra, a foto aparece invertida; no original, a Virgem está à direita e José à esquerda.
^^^ A fábula do ouro, o viso, o/ Céu que se abre, chamaram-nos/ de seu sono ou senso sem malda-
de./ Tão ricos de nada ser, tão seus, somente. / Capazes de guardar/ no exigido espaço/ a para
sempre grandeza/ de um momento./ Com sua quieta ternura,/ ambos, que contemplam?/ Sa-
bem./ Nada aprendem " BBP, Nlll,Ave, Palavra, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 25.
^ ^^ J.GR., BBP IM.Ave, Palavra, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 199.
Arquivo João Guimarães Rosa, Instituto de Estudos Brasileiros, USP.
^^^ Um inventário de citações relativas ao olhar na obra de Guimarães Rosa é feito por Sylvio de
Abreu Fialho, O mundo dos olhos de Machado de Assis a Guimarães Rosa, R. de Janeiro, Livraria S. José,
1975, pp. 227-257.
^^^ J.GR., De Stella et Advento Magorum, inAve, Palavra, R. de Janeiro, Nova Fronteira, 1985, p. 74.
^^^ Carta de 25 de novembro de 1963 a Edoardo Bizzarri.
Sobre Alguns Temas em Anselm Kiefer

Liana Cardoso Soares* e Maria Luisa Sandoval Schmidf

Resumo: O propósito deste artigo é desenvolver alguns temas sugeridos pelo contato com a obra do pintor
alemão A.nselm Kiefer. Os temas são tratados a partir das impressões deixadaspela exposição reali^da em
1998, no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, do exame de catálogos e da leitura de alguns de
seus comentadores. As temáticas referem-se, principalmente, às relações entre história, mitologia e arte, à
pintura de paisagens, aos materiais e símbolos na obra do pintor
Palavras-chave: Anselm Kiefer, arte, história, mitologia, paisagem

O artista, como o poeta, evita qualquer sistema, bom ou mau,


religioso ou moral; nega a si mesmo, morre em nome de uma
força desconhecida, indefinida e aspira estabelecer a relação exata
entre as formas e suas origens. Quer render-se à primazia das
formas e deixar-se despedaçar e esmagar, não por um motivo
banal ou genérico, ideológico ou sociológico, anônimo ou im-
pessoal, mas por uma razão excepcional: a sobrevivência da lin-
guagem da arte.
Germano Celant

* Historiadora e artista plástica. Membro do Laboratório de Estudos do Imaginário (LABI) do Insti-


tuto de Psicologia da Universidade de São Paulo e Assistente de Comunicação Social da Superin-
tendência de Controle de Endemias (SUCEN-SES-SP).
** Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e membro do Laboratório de
Estudos do Imaginário (LABI).
Soares, Liana Cardoso e Schmidt, Maria Luisa Sandoval. Imaginário - USP, n. 5, p. 67-81, 1999. 7"|

I
Em maio de 1998 realizou-se, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM),
uma exposição do artista plástico alemão Anselm Kiefer, da qual faziam parte imen-
sas telas com imagens da cidade de São Paulo. Uma sensação vertiginosa tomava
conta do espectador ao confrontar-se com as paulistanas perspectivas aéreas em ''
LiUth" de 1987 e "Paisagem Ãnd^/Barren Landscape'' de 1986/91 . Nesta última, um
redemoinho literal de "Copan", tradicional prédio/monumento da cidade, extravasa
a tela, deixando o espectador fora de lugar. Forasteiro, volta-se para "Lilith" - con-
centração de tempos aglutinados e ruínas sobrepostas. Um mundo desértico em
numerosas camadas grossas de tinta, pó e areia. Tudo ali é desalento! Na cidade, uma
imensa asa metálica sobre construções insepultas: matéria ferida, calcinada, parado-
xalmente pálida e vigorosa, na qual o olhar é capturado, sensível às coisas do mundo,
fazendo lembrar uma citação de Olgária MATOS:

Se o olhar entristecido é aquele que não encontra nada de durável, se em tudo vê ruínas,
antes e independentemente do seu desmoronamento, é, porém para redimir a passagem
do tempo. Sua inação não é desmobilização frente à ordem das urgências. Em meio às
ruínas, em toda parte há passagens, pois há que reconhecer os caminhos que se desenham
entre elas. E se as ruínas revelam, do ponto de vista da duração, a insignificância das coisas,
também, na mesma medida, para a imaginação, são míticas e indestrutíveis. (1995: 6)

Lilith - primeira mulher de Adão e encarnação feminina do demônio na tradi-


ção judaica —, escrita inscrita\ reafirma a visão da cidade morta, silenciada, assom-
brada. Pode-se indagar, com LITTMAN (1998), qual a relação de Lilith com São
Paulo vista do alto. Lilith, entre outros atributos, era protetora de cidades desertas.
Um misto de desenraizamento e prolongamentos se faz sentir no embate com este
ambiente desconfortavelmente familiar. O sentimento habitual de imersão na cidade
transborda das telas de modo avassalador, atravessa o espírito do espectador e lança seu
corpo à precariedade de sua vida. Afogos, de outra margem à margem de outro e, em
suspenso, o silêncio imperial das durações a soar: üame, lenha, metal — conduzir.
De forma movediça, a passagem do tempo revolve e adere ao olhar. Diluída e
condensada, a paisagem descrita evidencia precariedades, caducidades, e faz pensar
Soares, Liana Cardoso e Schmidt, Maria Luisa Sandoval. Imaginário - USP, n. 5, p. 67-81, 1999. 7"|
7"|

na inevitabilidade de uma existência plúmbea. Porém, ao mesmo tempo, a força e a


beleza plásticas das pinturas convocam a imaginação a buscar passagem e transcen-
dência. A visão da cidade ''arrasada", plasticamente admirável e miraculosa, desdo-
bra-se na pergunta que parece atravessar a obra de Kiefer: a arte pode servir para
transcender a paisagem decaída? (PEIXOTO, 1996: 248).

II
Anselm Kiefer abandonou o estudo de Direito para dedicar-se às artes plásticas
e não há muita informação sobre sua vida: a compreensão de sua obra, acredita o
pintor, dispensa o recurso a este tipo de informação.
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ROSENTHAL (1987) identifica períodos em sua produção, buscando consti-


tuir uma imagem de sua trajetória através dos processos de criação, dos temas e do
embate com os materiais. Para este autor, a compreensão das obras de Kiefer depen-
de de conhecimentos sobre mitos nórdicos, ópera wagneriana, planos de guerra na-
zistas, história teológica e bíblica, alquimia. Porém, a ausência deste saber não impe-
de a fruição de suas telas e livros de forte impacto visual e não cala o apelo à decifra-
ção do universo simbólico que se abre diante de um espectador "leigo".
Demarcar e descrever fases da atividade criativa é uma forma de apresentar o
artista e pode ajudar a percorrer o traçado labiríntico de suas imagens e símbolos, de
suas temáticas e de seus processos de criação: funciona, talvez, como a biografia de
um ofício "transcendente e absolutamente estranho, que se completa suplantando e
excluindo aquele que o realiza" (CELLANT, 1997: 14).
ROSENTHAL (1987) refere-se a um primeiro momento do trabalho de Kiefer,
entre 1969 e 1973, no qual desenvolve uma perspectiva pessoal, através da explora-
ção de sua psique e a de seus compatriotas alemães. Kiefer busca ativar em si as
experiências do nazismo para compreendê-las em suas múltiplas dimensões. Nesse
sentido, tanto a culpa e a vergonha frente ao dominado, quanto a loucura da ambi-
ção de poder do dominador precisam ser revividas.^ Sobre o sentido da assunção de
uma atitude nazista, Kiefer declara que não se identifica com Hitier, acrescentando,
porém, que teve:
(...) que reeencenar um pouco o que eles fizeram para entender a loucura. Esta é a
razão porque fiz tentativas de tornar-me facista. (apud ROSENTHAL, 1987: 17)

O entendimento do nazismo reporta, também, a uma retomada de suas raízes


que, para o pintor, lançam-se, profundas, no passado remoto e na mitologia alemães.
Assim, os heróis espirituais da Alemanha, míticos e históricos, são tematizados.^
O setting para a rememoração e vivência da história e dos mitos é o estúdio do
pintor, um sótão de madeira. Este espaço metaforiza "o começo dos tempos, quando
valores religiosos e éticos foram criados e testados": um espaço que pode acolher
todos os aspectos da visão de mundo do pintor. Para ROSENTHAL (1987), o estúdio:
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É um lugar metafísico onde o artista tenta compreender idéias e temas complexos


para interpretá-los neste ambiente físico. Este lugar é a mente mesma, a um só tempo
maleável e estável, umfiltroatravés do qual os conceitos são ponderados, inventados,
queimados e transformados. Ritos secretos são realizados e a história é recordada:
tudo é possível, (p. 22)

O segundo período sugerido por ROSENTHAL (1987) é marcado pela ênfase


na história profana da Alemanha e está localizado entre 1974 e 1980. De acordo com
o autor, Kiefer inicia um diálogo, através da arte, com a história e a civilização.
O setting privilegiado dos trabalhos desta época é a terra cujo sofrimento dá
sentido ao sofrimento humano, assumindo, também, o lugar da natureza que não
permanece indiferente aos efeitos da história: a terra aparece maltratada, ferida.
A pintura de paisagens emerge com intensidade durante estes anos. Arte e vida,
arte e natureza, amor e ambição de poder, esquecimento, destruição e criação são
perspectivados de modo complexo e, muitas vezes, contraditório, vindo a constituir
a trama da afirmação de Kiefer como pintor e como alemão.
Uma terceira etapa é caracterizada por uma ruptura formal e datada entre 1980
e 1982. Esta ruptura é fruto, por um lado, da experimentação em torno de materiais
inusitados — areia, palha, chumbo — usados para pintar e, por outro, pela incorpora-
ção da fotografia e pela criação de grandes livros pictóricos que convidam a uma
"leitura" da pintura."^
Os experimentos com materiais variados estabelecem um paralelo entre as
temáticas de Kiefer e o simbolismo dos materiais. Então, por exemplo, a palha asso-
cia-se à apresentação dos temas germânicos: a fragilidade do material converge para
a fragilidade que o pintor identifica na história e no destino alemães, assim como a
sua transformação em cinzas, através da combustão, indica a esperança de purifica-
ção e redenção desta mesma história e deste mesmo destino.
A exploração da fotografia introduz um aspecto da visão de Kiefer sobre a
história, pois para o pintor, ambas são objetivas e, no entanto, oferecem narrativas e
locais que podem, sempre, ser questionados em sua veracidade. (ROSENTHAL,
1987:79). Aqui se insinuam as implicações dos processos destrutivos/criadores, res-
tauradores e transformadores da arte em relação aos mitos e à história.
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No quarto período, Kiefer opera uma apropriação da arquitetura nazista como


contexto para a celebração da pintura e da arte: trata-se da ação que destina a estes
edifícios um uso mais adequado. A aproximação da figura do pintor daquela do
alquimista coloca a arte, mais especificamente a pintura, em posição de transformar
a história e o mundo. Por esta razão, ROSENTHAL (1987) denomina esta fase de
'"Visões de um novo mundo". Para o crítico:

Tendo transmutado a história, transformando os edifícios nazistas para usos mais


apropriados, Kiefer começa a criar um Novo Mundo. Focalizando as esferas míticas
e sagradas, acredita ser possível reinventar a si e à história. Sua ironia e seu pessimis-
mo são tingidos de um profundo idealismo e de fé em um mundo melhor, (p. 121)

O confronto com a dolorosa herança alemã — tomada como uma tragédia pes-
soal, de uma nação e da cultura ocidental - perpassa o trajeto do pintor. Neste
confronto, Kiefer oferece a arte como um antídoto teórico para o terror da história
humana e para a falência das figuras míticas.

No ensaio Sobre o conceito de história, Walter Benjamin concebe um anjo da histó-


ria através da analogia com um quadro de Paul Klee. Escreve:
Há um quadro de Klee que se ch^imo. Ange/us Nopus. Representa um anjo que parece
querer afastar-se de algo que ele encarafixamente.Seus olhos estão escancarados, sua
boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto
está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê
uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a
nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos.
Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que
ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futu-
ro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa
tempestade é o que chamamos progresso. (BENJAMIN, 1940;1985: 226)

Pode-se perguntar, como faz CACCIARI (1997), se esta história - encadea-


mento de catástrofes — é memorável e se existe uma "alma" capaz de salvá-la. A
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impossibilidade de responder a essa indagação não evita a tentação de aproximar


Keifer da figura deste anjo, pois, através de seu ofício, é como se o pintor buscasse
realizar o desejo que Benjamin apreende na expressão do anjo: reunir os fragmentos,
acordar os mortos.
É notável a sintonia entre a noção benjaminiana de um presente que indaga
sobre o passado preparando-se para o futuro e a busca de Kiefer por aprender com
antigos mitos e religiões, bem como com a história remota e recente, as lições que
preparam para o futuro. De acordo com ROSENTHAL (1987), Kiefer:
(...) insiste na necessidade de aprendermos com antigos mitos e religiões, assim como
com os recentes eventos trágicos, para lidarmos com o "terror da história" que pro-
jeta sua sombra sobre nossas vidas. (p. 7)

Mircea Eliade descreve a religiosidade como um esforço humano para sobreviver


ao "terror da história". Trata-se, para Kiefer, num certo sentido, de colocar a arte, e
particularmente a pintura, como um modo, também, de sobreviver ao ''terror da histó-
ria". Para tanto, é preciso enfrentar o esquecimento, rememorando e reinterpretando a
história, e a repressão de conteúdos inconscientes referidos a substratos míticos.
Na série "Ocupações", Kiefer assume a identidade nazista, ansiando transpor a
história diretamente para a vida: trata-se de uma ativação da história através das artes
plásticas. Esta ativação implica o envolvimento do artista numa performance em que
ele sofre em seu próprio corpo o impacto de acontecimentos históricos.
No trabalho com personagens e episódios históricos, Kiefer opera relações
inusitadas, concentrando-se no sentido peculiar das associações que estabelece, sem
se preocupar com o enredamento dos eventos ou com a localização seqüencial dos
indivíduos no tempo histórico. De certa maneira, opera, pela via da expressão plás-
tica, um curto circuito na idéia da história como desenrolar de acontecimentos no
tempo, cujo horizonte é sempre a superação do "mais atrasado" em direção ao pro-
gresso, compartilhando, talvez, a visão benjaminiana segundo a qual:

O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no século XX "ainda"


sejam possíveis, não é um assombrofilosófico.Ele não gera nenhum conhecimento,
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a não ser o conhecimento de que a concepção de história da qual emana semelhante


assombro é insustentável. (BENJAMIN, 1940; 1985: 226)

Kiefer confronta a fé do homem moderno no constante e infinito progresso,


ao mesmo tempo em que faz apelo à reflexão sobre o homem moderno como aque-
le que consciente e voluntariamente faz a história.
Em Walter Benjamin, a revolução assume um sentido messiânico, porque fa-
zendo explodir o continuum da história, cria as condições propícias à uma rememoração
redendora do passado: uma rememoração que enseja a atualização dos sonhos e
aspirações frustados de nossos antepassados. Em Kiefer, a arte coloca-se, também,
nesta perspectiva redentora. Ao se aproximar da história, de seus eventos e persona-
gens imobilizados pela historiografia "oficial", Kiefer busca uma superação dos di-
tames desta história através da rememoração, da reinterpretação e da transformação.
A apropriação dos monumentos nazistas como contexto para a celebração da pintu-
ra é, nesse sentido, significativa. Nas palavras de ROSENTHAL (1987):
(...) como um alquimista, Kiefer acredita em seu poder como artista que transmuta even-
tos, como ele fez transmutando um baluarte nazista em monumento para artistas, (p. 119)

Ainda de acordo com ROSENTHAL (1987), as relações entre arte e história


são complexas e desconfortáveis no mundo de Kiefer: se, por um lado, a história
impregna e fertiliza a arte, por outro, é alvo de um tratamento hostil e irônico.^
A obra de Kiefer que, aparentemente, poderia ser classificada como pintura
histórica, transcende a função narrativa de uma tal pintura e busca colocar a arte
num plano superior ao da "mera" história. Se a história reivindica para si a verdade,
a arte de Kiefer pratica uma interpretação da história que, justamente, coloca sob
suspeição esta verdade. A incorporação da fotografia sugere não só uma aproxima-
ção desta com a história, mas a possibilidade de apreensão crítica das "mentiras" de
ambas, a partir da invenção de situações criadas em estúdio.
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IV
A palheta nas telas do pintor representa a arte que fala o sujeito pessoal e social,
individual e coletivo e que se oferece como oportunidade de rememoração e regene-
ração do passado. Nas palavras de TASSINARI (1998):

A arte de Kiefer, como a dos deuses embalsamadores, é uma arte da regeneração, e,


na medida em que a questão de todos os seus temas é o passado, uma arte de regene-
ração da memória do mundo. A empresa é grandiosa. Se, no nível estético, se articula
pela decisão precisa na escolha de um grande número de objetos e materiais já im-
pregnados de desgaste pela ação do tempo, no mvel temático engloba uma vasta
gama de acontecimentos passados que incluem mitos, temas religiosos, fatos históri-
cos e saberes em desuso. (...) Se é toda a memória do Ocidente que a obra de Kiefer,
a seu modo, aborda, o que é notável é como, para onde for que se dirija no passado
ocidental, aí acabará por encontrar temas de destruição e reparação a serem, eles
mesmos, esteticamente expostos como destruídos e reparados, (p. 13)

A arte mostra-se como o agente de processos de destruição e regeneração, na


relação com a história, a religião, os mitos e a natureza, mas, também, simultaneamen-
te, é alvo ou objeto destes mesmos processos pela ação do tempo e dos eventos histó-
ricos nos quais se insere o combate do artista pela sobrevivência da linguagem da arte.
ROSENTHAL (1987) aponta a tensão, na obra de Kiefer, entre o desejo de
destruir a beleza da natureza, pela arte, e a impossibilidade desta realização. Esta
tensão é acompanhada da consciência de que a "representação" da natureza não
garante a perenidade da arte.
A sobrevivência da linguagem da arte depende, em grande parte, de seu poder
de transformar coisas e idéias, de seu poder de destruir para criar. No caso específico
da pintura de Kiefer, o tema da iconoclastia^ impõe-se como modo de aproximação
da relação construção/destruição: num sentido positivo, o pintor é, ele mesmo,
iconoclasta, na medida em que defaz, assola, aniquila a matéria física e imagética que
serve a seus propósitos criativos e, em outro sentido, é alvo da "fúria" iconoclasta
em relação à sua obra.
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A faceta necessariamente iconoclasta do pintor é apresentada por CACCIARI


(1997) nos seguintes termos:

Se não imaginamos, se não produzimos imagens, nós meramente reproduzimos as


coisas tal como aparecem ou, mais exatamente, renunciamos a nós mesmos em favor
de sua aparência, em favor do fato de que as coisas são o que aparentam ser. Se não
dissolvemos esta aparência, se esta imagem não queima através da pintura, vamos
olhar a realidade em si, ou melhor, a ilusão da realidade em si mesma. A pintura é,
portanto, iconoclasta, enquanto que aqueles que negam seu poder imaginativo são
"realistas". Aqueles que rejeitam a imagem, de fato, defendem a imagem mais ilusó-
ria: a coisa tal como aparece. E, apenas poeticamente, construindo e imaginando, é
possível libertar-se desta aparência. Neste sentido, aqueles que gostariam de impor
silêncio à imaginação são "realistas", escravizados pela imagem — aqueles que exal-
tam seu poder são iconoclastas, (p. 12)

A pintura de Kiefer como alvo da "fúria" iconoclasta é abordada por PEDRAZA


(1998). Este autor abarca neste tema um conjunto de observações sobre a repressão, a
perseguição e a intolerância em relação a imagens. Parte da análise do quadro Controvér-
sia Iconoclasta que é apontado como uma resposta de Kiefer à perseguição que Hitíer
empreendeu contra a arte expressionista alemã, qualificada de degenerada.^ Este qua-
dro mostra como uma imagem pode despertar intolerância ou mesmo o desejo de
destruí-la, pois ao ser exibido na Bienal de Veneza, suscitou reações fortes nos alemães
que viram nele a expressão de um neonazismo. Denunciando a iconoclastia, Kiefer
sofre a censura e a imputação de culpa, passando a ser visado por ela.
Ainda, de acordo com PEDRAZA (1998), as tendências opostas de produzir e
reprimir imagens estão presentes no psiquismo humano e se relacionam com os
processos criadores. Diz o autor:
Em nossos estados criativos, a psique está constantemente em uma controvérsia e
talvez a partir desta tensão entre nossas imagens e nossa iconoclastia, sobrevém o
processo criador, (p. 27)

Kiefer é capaz de viver e expressar esta controvérsia numa dimensão que é, ao


mesmo tempo, pessoal e histórica.^
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A tensão entre produção e repressão de imagens, entre construção e destruição


é uma das polaridades que Kiefer sustenta em sua obra. Outras polaridades pontu-
am a tarefa da arte: encarar e trascender os dramas e as tragédias da história humana,
encarando, portanto, o lado excluído, obscuro, desconhecido, inesperado, incerto e
possível destes dramas e tragédias e estabelecendo a cena em que os opostos dialo-
gam. Segundo CELANT (1997):

Para Kiefer, arte é uma abertura entre ordem e caos, entre humano e natural, entre
individualidade e história, entre céu e terra. Sua função é estabelecer elos entre opos-
tos que se pertencem mutuamente, (p. 15)

O artista assume características de colecionador, mensageiro, profeta, oráculo e veícu-


lo de luz, trabalhando simultaneamente com o bom e o mau, o corporal e o espiritual, o
histórico e o presente, o racional e o sensível. Outras dualidades proliferam: imanência e
transcendência, divindade e crueldade, çonsciência e escuridão^, quente e frio^®.
No processo de criação, as atividades do espírito — separar, analisar, recordar,
interpretar, dissolver e reparar — forjam materiais e temas que se consoUdam em
objeto artístico: as transformações do espírito e da psique do artista consubstanciam-
se nas transformações do material físico e simbólico. ROSENTHAL (1987) aproxi-
ma o pintor da figura do ferreiro e do alquimista, afirmando que:

O ferreiro é um artista, criando objetos de valor, mas também é um alquimista, for-


jando estes objetos de materiais básicos e usando o fogo para purificá-los. (p. 95)

A idéia da pintura como combustão, como ato de queimar é recorrente em


alguns críticos da obra de Kiefer. Esta idéia associa-se à polissemia da palheta como
símbolo da pintura. Para CACCIARI (1997):

A palheta é poiesis: ação que dissolve e separa, que pode revelar ou tornar presente
apenas através da dissolução e da análise. A palheta é o "jarro" no qual os elementos
alcançam sua combustão: queimando tornam-se livres da fixidez que os separa de
outros, morrem para a existência que os obriga a serem somente eles mesmos, (p. 11)
Soares, Liana Cardoso e Schmidt, Maria Luisa Sandoval. Imaginário - USP, n. 5, p. 67-81, 1999. 7"|

Mas a palheta é também o símbolo que une o pintor à natureza, à terra, ao


cosmo, unindo eu e não-eu. Nas palavras de CELANT (1997), a palheta torna-se:

(...) um estigma e um emblema de uma individualidade que se transforma numa febre


cosmogônica, relacionando-se com plantas e pedras, encarnando florestas e sendas. (p.l6)

E, ainda, desenhada com asas, remetendo ao desejo de transcendência a que a


pintura aspira. Para CACCIARI (1997), asas, palhetas, hélices, anjos, escadas são
como "corpos espirituais" que, em tensão com a concreticidade da terra encenam,
nas pinturas de paisagem, dramas espirituais.

VI
Nas telas "Lilith" e "Paisagem Arida/B^m// iMndscape'' a cidade de São Paulo é
pedra e pó, aparência e dissolução da aparência. Nelas, a cidade é comparável a um
deserto. Seu aspecto árido e inóspito é efeito do olhar estrangeiro do pintor que
denuncia o caráter inabitável do lugar onde, paradoxalmente, milhões de homens e
mulheres residem. Ao invés de repetir os chavões hodiernos a respeito dos lugares,
Kieffer — "um dos últimos românticos" — vai além do já visto, fazendo aparecer algo
que os próprios moradores da cidade, imersos na profusão de signos, reconhecem
desde o interior de um desconhecimento ou estranhamento. Explorador arguto, re-
trata o lugar de modo inusitado, revelando aquilo que, apesar de pressentido, encon-
tra-se de alguma maneira obscuro aos olhos daqueles que ali habitam.
Para alguns críticos, este extraordinário artista constroe suas obras numa perspec-
tiva metafísica. Se ele cria sob a égide da representação, é a própria idéia de represen-
tação na pintura que surge, então, transtornada. Na pintura de paisagens esta transfor-
mação da tradição é particularmente tangível: trata-se de uma tentativa de síntese de
uma grande tradição que, contudo, busca ultrapassá-la.
Suas paisagens incitam uma recepção mais tátil do que contemplativa: os olhos
como mãos tateiam a paisagem que se projeta para fora da tela, invertendo a perspec-
tiva clássica através da qual o observador era convidado a percorrer a paisagem com
o olhar. Ou, dito de outra maneira, é como se a paisagem atingisse o espectador,
arrancando-o do solo seguro da representação usual dos lugares.
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Nas paisagens noturnas, como bem observa ROSENTHAL (1987), "experi-


mentamos a terra como se nossa face fosse puxada para perto do solo e, ao mesmo
tempo, como se voássemos sobre o chão, mas perto dele." (p. 32).
O impacto destas visões da terra e da cidade encontra uma correspondência
nos choques morais e existenciais provocados pelo desocultamento daquilo que se
quer banir, reprimir, esquecer: a terra como metáfora do sofrimento humano, a cida-
de como terreno árido e desértico.
Referindo-se a uma série de telas que têm como settingo^ campos da Alemanha,
ROSENTHAL (1987) comenta que:
As pinturas de paisagens de Kiefer são, de alguma maneira, chocantes no contexto do
idealismo e sentimentalismo alemães sobre a terra (...) Ele aceita o que aconteceu ao
seu país. Sua fria, e até distante, atitude torna-o um pária em relação à tradição de seus
compatriotas: brinca com suas noções idealistas da terra, negando que ela tenha sido
preservada dos eventos humanos, (p. 35)

A fotografia como "suporte" para a pintura de paisagens remete, também, à refle-


xão sobre as relações entre a arte tradicional e aquela que Walter Benjamin (1935/
1936;1985) designa "pós-aurática". Trata-se de um trânsito entre as duas linguagens que
recolhe o arcaico e o novo, remetendo à indagação sobre a possibilidade de preservação
e de memória de tempos e lugares ameaçados. Na bela interpretação de PEIXOTO
(1996), a tensão entre fotografia e pintura, tal como trabalhada por Kiefer, transforma a
paisagem numa espécie de sítio arqueológico e a pintura num lugar de passagem.

Abstract: Ourpurpose in this paper is to discuss some themes sugested hj the mrks of the German
painter Anselm Kiefer. We discuss them from the impressions left bj the exposition of 1998 held at the
Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, hj the analysis of catalogues and bj the reading of some
of his critics. The subjects refer mainly to the relationship between history, mithology and art, as well as
landscapes, materiais and symbols on thepainter's mrks.
Keywords: Anselm Kiefer, art, history, mithology, landscape
Soares, Liana Cardoso e Schmidt, Maria Luisa Sandoval. Imaginário - USP, n. 5, p. 67-81, 1999. 7"|

Notas
^ Nelson Brissac PEIXOTO (1996) comenta que Kiefer, ao utilizar títulos e anotações caligrafadas,
transforma cenas em evocações culturais, em "paisagens da memória", (p. 243)
^ A série "Ocupações" exemplifica o modo como Kiefer procura colocar-se no coração das tensões
e afetos implicados no projeto nazista. Trata-se de um conjunto de fotos do pintor em várias
praças da Europa. Nelas, as praças aparecem vazias, destacando-se a figura do artista flagrado no
gesto da saudação hitieriana, numa espécie de ocupação simbólica dos espaços ou como uma
representação da aspiração demencial de Hitler de dominar a Europa. Segundo PEDRAZA (1998),
Kiefer realiza, nestas fotos, o desejo de incorporar à sua obra os "temas tabus". A forma desta
incorporação é fundamental, pois é colocando-se em simetria com o passado nazista que busca
trazê-lo à reflexão.
^ Um conjunto de telas tem como tema a ópera de Wagner "O anel de Nibelung". Aqui entrelaçam-
se a apropriação de Wagner do mito, a apropriação de Wagner por Hitier e a interpretação de
Kiefer sobre a transitoriedade dos heróis e a vulnerabilidade das idéias. Segundo ROSENTHAL
(1987), " A atitude de Kiefer em relação a uma Alemanha cujos heróis espirituais são de fato
transitórios (...) não é apenas ambivalente, mas cortante e irônica (...) Estas grandes figuras e suas
conquistas foram reduzidas a apenas nomes, recordados não em um edifício de mármore, mas no
sótão de uma escola rural." (p. 30)
^ Para PEIXOTO (1996), os livros de Kiefer são uma tentativa de recolher e preservar "imagens de
mundo um que não existe mais", estabelecendo um diálogo entre a pintura e o livro em que a
percepção instantânea do quadro encontra sua contrapartida na percepção temporal do livro.
^ Analisando o quadro "Controvérsia Iconoclasta" no qual sobre um solo de madeira aparece desenha-
da a palheta do pintor e sobre a palheta desenrola-se uma batalha de pequenos tanques em meio a
chamas de coloração branca, ROSENTHAL (1987) interpreta os tanques como elementos masculi-
nos que fertilizam a arte representada pela palheta. Mas, ao mesmo tempo, o tratamento dos eventos
envolvidos historicamente na controvérsia iconoclasta e no regime hitleriano indica que a arte pode
ser independente e apresentar-se como uma ameaça para a ordem estabelecida. Numa série de fotos
chamada "Operação Marinho" e no quadro "Operação Marinho I", Kiefer faz uma referência irônica
aos jogos de simulação estratégica que os nazistas costumavam encenar nas vésperas de ações milita-
res, através da representação de embarcações de brinquedo numa banheira.
^ O termo iconoclastia refere-se ao ato de destruir imagens.
Para Kiefer a arte existe ou não, mas não pode ser doente ou degenerada. (ROSENTHAL, 1987, p. 66)
^ Vale a pena destacar mais duas observações de Pedraza sobre a iconoclastia que parecem precisosas:
1) a consideração da psicologia moderna como repressora de imagens, na medida em que substitui
a expressão imagética de sentimentos, sensações e do vivido por crivos teórico-explicativos e inter-
pretações e 2) a apreciação do abstracionismo, em pintura, como repressor de imagens arquetípicas
e instintuais de origem primitiva. Ou seja, o abstracionismo resultaria do e no afastamento de
Soares, Liana Cardoso e Schmidt, Maria Luisa Sandoval. Imaginário - USP, n. 5, p. 67-81, 1999. 7"|

imagens primevas de ligação com a natureza. No que diz respeito ao abstracionismo, Pedraza
comenta a especial sensibilidade de Kiefer em relação a Mondrian: no quadro Piet Mondrian - A
Batalha de Arminio^ o pintor faz o caminho inverso ao de Mondrian que transforma uma árvore em
linhas retas. Kiefer, ao contrário, retoma a árvore "desaparecida" da pintura de Mondrian. Este
processo metaforiza a retomada do contato com imagens primitivas.
^ Como aponta CELANT (1997), não se trata de separar a luz da escuridão, mas de reabsorver a
devastação, o horror e a tragédia, pois "faz parte da tarefa do pintor seguir e encarar a linguagem de
sangue e morte que a jornada humana envolve". (p.l8)
O livro Erotik im Femen Osten oder: Transition Jrom cool to warm trata, como indica o subtítulo, do tema da
passagem do frio ao quente através da transformação de cores e temas ao longo de uma série de aquarelas:
do preto e azial para diferentes vermelhos, de paisagens gélidas para o corpo nu de uma mulher.

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Paisagem e Cultura

Maria de Lourdes B. de Alcântara* e Regina T. Sader*^

Resumo: Este trabalho tem a intenção defa^ruma breve análise sobre o conceito depaisagem,freqüentemente
definido pela Geografia Humana como uma realidade material e representação vivida, que é um conceito-
chavepara compreendermos como ocorre a construção do discurso geográfico e como esta disciplina trabalha a
cultura e a diversidade cultural Para tanto, utili^remos textos publicados recentemente com uma visão
interdisáplinar, Magos e Perrot e'Lenclud,ambos na coletânea Paysages au Plurie (1995), bem como de
geógrafos clássicos que marcaram profundamente a produção acadêmica daquela disáplina: Sauer (1925) e
George (1990)
Palavras-chave: Paisagem, cultura, geografia, antropologia

O conceito de paisagem foi criado no século XVI para se tornar um modelo


visual que teve, como resultado e local de aplicação exemplar, a invenção pictória da
natureza. Para tanto, foi necessário que os elementos do espaço representados deixassem
de ser considerados signos, isto é, remetendo a outras coisas que não eles próprios, para
tornarem-se imagens plenamente significantes nelas mesmas. Em outras palavras, foi
preciso que houvesse uma dessacralização do rochedo, da árvore, do rio, da montanha,
elementos que para nós hoje são constitutivos da paisagem, para que ela pudesse exis-
tir enquanto tal.
Ela seria, então, o produto de um olhar "estranho" ao lugar, de alguma forma
liberado. É preciso de um "outro" para conferir à minha parcela do espaço a quali-
dade de paisagem, cuja percepção entra numa lógica de diferenciação social e cultu-

* Antropóloga e pesquisadora do LABI-USP


** Geógrafa e pesquisadora do LABI-USP
84 Alcântara, Maria de Lourdes Beldi & Sader, Regina T. Imaginário - USP, n. 5, p. 83-89, 1999.

ral em função de um movimento de distância crítica, transformando elementos do


espaço em espetáculo.
Se é atribuição e construção através de um olhar externo, como a paisagem é
trabalhada pela Geografia? Para os geógrafos seria uma porção da Terra que tem
determinados atributos morfológicos, ou seja, atributos da natureza, suspensos pelo
olhar humano. Assim, portadores de um "saber" fazem um recorte do espaço geográ-
fico e atribuem-lhe não o conceito, mas a qualidade de tornar-se uma paisagem. O
olhar que faz a paisagem procede de uma distância crítica em relação ao que é obser-
vado, que comanda a adoção de um ponto de vista sem o qual ela não existe.
85 Alcântara, Maria de Lourdes Beldi & Sader, Regina T. Imaginário - USP, n. 5, p. 83-89, 1999.

Carl Sauer (Sauer, 1925) no seu texto Morphology of the L^nàscape faz considera-
ções interessantes. Observando que o rótulo Geografia, bem como História, não
garante a matéria contida, para estabelecer a especificidade da primeira, parte do
termo landscape, que significa modelado da terra, não somente do ponto de vista
físico, mas também de uma combinação de formas físicas e culturais; no sentido
usado pelos geógrafos, paisagem não é apenas um cenário visto por um observador,
mas uma generalização oriunda da observação de vários cenários. Desta forma são
estabelecidos quais os elementos que a constituem. A partir disto é que serão leva-
dos em conta os que devem ser considerados para uma análise. Ora, estes são frutos
do julgamento individual do geógrafo ao priorizar uns e ignorar outros. Para ultrapas-
sar os riscos de uma extrema subjetividade, Sauer propõe um modo de pesquisa pré-
determinado, que só é possível pela aplicação de um método morfológico de análise,
o que implica numa descrição sistemática, criando para isso uma representação diagra-
mática da paisagem; assim, o geógrafo pode chegar às suas formas e estruturas.
Neste processo notamos que o discurso geográfico tende à monossemina e à
monofonia, ou seja, nada pode desautorizá-lo, passando a ter um sentido universal
construído pela metodologia da taxonomia.
Onde aparece o papel da cultura? Não faz ela parte deste atributo? E o que este
significa? Ou seria um discurso de uma determinada cultura, em um determinado
momento histórico que caracteriza um determinado grupo social tentando implan-
tar sua ideologia? Será que o conceito de paisagem tem a mesma intenção que o
termo "folclore", ambos atribuídos por um olhar externo com a intenção de conge-
lar tempo e espaço? Estamos longe da proposta de Ratzel de considerar-se o "volu-
me geográfico" e o "volume mental" das sociedades humanas, o primeiro sendo a
extensão espacial materialmente ocupada pela sociedade considerada e o segundo, a
área geográfica que ela chega a abarcar com o pensamento (cit. Mauss, 1974).
Apesar de toda a intenção de despir-se de subjetivismos, eles jamais serão erra-
dicados dos textos geográficos, mesmo com toda a pretensão de objetividade que
dominará a disciplina cada vez com mais força.
Vejamos, como exemplo desta afirmação, a produção de um geógrafo francês:
Pierre George.^ Extraímos alguns parágrafos de seu livro ^ Profissão de Geógrafo -
86 Alcântara, Maria de Lourdes Beldi & Sader, Regina T. Imaginário - USP, n. 5, p. 83-89, 1999.

Meio Século de Geografia (George, 1990). Dentro do bloco que o autor denomina de "A
Geografia da Imobilidade", transcreve artigo seu de 1935 intitulado "A árvore e a
água: da floresta ao bocage''^\ em três páginas e meia a descrição da paisagem é feita
exclusivamente a partir de suas sensações:

O céu faz parte da paisagem. Assim como não se concebe uma paisagem da Provença
sem um céu de azul intenso, o "bocage" é uma área de meios tons, de brumas vapo-
rosas que sobem dos vales, das lagunas e das pradarias. Não há nenhuma brutalidade
no "bocage", salvo quando a tempestada ultrapassa a Armórica, mas apenas a mono-
tonia triste dos céus cinzentos, (p. 14)

Em 1948 descrevendo formas karsticas^ da Croácia ocidental, diz:


As grutas de Postojona, na Eslovênia meridional, constituem uma imensa rede de ca-
vidades subterrâneas desenvolvidas sobre uma extensão de 30 quilômetros quadrados. A
beleza destas grutas é universalmente conhecida: uma fantasia feérica de estalactites e
estalagmites, de cortinados, de taças, se desdobra sob ogivas de várias dezenas de metros
de altura. Mas independentemente de sua indiscútivel grandeza estética, sua situação, seu
desenvolvimento e sua evolução são de um vivo interesse geomorfológico. (p. 23)

Mesmo os geógrafos físicos, aparentemente livres da subjetividade não o são.


Basta lembrarmos que a denominação "pães de açúcar" a um tipo especial de relevo
granítico, assemelhado a um cone com o topo irregular, foi inspirado nos produtos
dos engenhos de açúcar quando as técnicas de refino eram outras, e o melaço colo-
cado em funis grosseiros ao solidificar-se tomava as formas dos mesmos e o produ-
to era denominado de pães de açúcar.
O par de conceitos tempo e espaço a partir do qual é elaborado o atributo
"paisagem" compreende uma singularidade e uma universalidade, ou melhor, uma
singularidade e uma "encenação" desta singularidade, destinada a tornar-se univer-
sal. Temos um discurso geográfico através das terminologias que o identificam, preen-
chidas de alegorias culturais. Este par é fundador do discurso sobre a paisagem, que
poderá ser lida como o foi a história da arte realizada pelo historiador:
Se quisermos compreender o que significa para uma homem do século XVI, um
castelo, uma torre, um trono ou um pavilhão, não é preciso provar que o mais longín-
87 Alcântara,MariadeLourdes Beldi & Sader, Regina T. Imaginário - USP, n. 5, p. 83-89, 1999.

quoOfieate tambbém os conheceu como material significativo, pois pode-se conside-


rar aiemonstraçcão supérflua; mas, em compensação, é necessário demonstrar que
possDía um valor r de referências preciso e por assim dizer espontâneo. Quando, por
exeni[)lo,um con^temporâneo vê o Sposalizio de Rafael, compreende imediatamente
queí trata da c e s n a dos esposais da Virgem, e a presença do templo constitui para
ele, entre outras ccoisas, um indício muito preciso. Mas esse mesmo templo, dentro de
umoitro sistema A, poderia também significar outra coisa: o templo de Salomão ou de
Apolo; neste v a s c o grego de Munique ele evoca o assassinato de Medéia; chegará um
dia em que signifiücará o templo do Amor, depois caramanchão das Bodas de Fígaro.
(Francastel, 1965::: 219)

A paisagem seria o único espaço onde a Geografia colocaria a questão cultural


com a suapoética? Ve-ejamos este discurso:

Eles percorrem c c o m ávida curiosidade, as crateras de vulcões extintos, cercadas de


escóflis pulveruleentas, matérias calcinadas, misturas de quartzo e grani to. Admiram
os bisaltos prisméáticos agrupados em colunas, verdadeiras pilastras irisadas de cores
variaàs; estas muaralhas perpendiculares de correntes de lava, subitamente interrom-
pidas em sua f u s S o pelas águas que recobriam as planícies inferiores, monumentos
eternos do combaate que travam estes dois elementos temíveis. O entusiasmo da ciên-
cia pode iludir o fíSsico, mas esta cena de profunda transformação entristecerá sempre
o viajinte e lhe o oferecerá somente um quadro de cores sombrias. Seria a natureza
comoos i m p é r i o s , trazendo por longo tempo o luto da revolução? (Perrot e Magos)

Então a que serv^e este conceito? Em vez de analisarmos o que seria ou não
paisagem,aão seria mais adequado formularmos outra pergunta: para que
instrumentalização ideeológica se forja e se manipula este conceito?
Sabemos que estre termo se originou da pintura que se ocupava das cenas
bucólicas, ibemos qu« e não tinha somente a finalidade de "retratar" o espaço repre-
sentado, nis um recorrte visual do mesmo, recorte este imbuído da percepção indi-
vidual doaitista que piintava, e que este artista representava uma determinada cultu-
ra e dentrodesta cultuira uma determinada classe, portanto, representava um deter-
minado unirerso simboólico. E nós? Como e em que momento atribuímos este con-
ceito ao espaço vividos? Qual a intenção deste discurso? Pode ser desde uma inten-
88 Alcântara, Maria de Lourdes Beldi & Sader, Regina T. Imaginário - USP, n. 5, p. 83-89, 1999.

ção "científica" até utópica e política. Necessitamos pensar no conceito e para que
se destina para podermos utilizá-lo com claros objetivos.
Lenclud (op. cit.) considera que o termo paisagem é definido por possuir uma
realidade material, pois é uma extensão de espaço oferecida ao olhar, porém que na
sua materialidade pré-existe a ele; uma realidade subjetiva, uma vez que não existe
paisagem se não existir um observador, sendo assim um lugar, mas um lugar isolado
para se olhar e contemplar, um espaço, no entanto um espaço enquadrado, um dado,
mas um dado reconstruído por uma análise visual, um recorte do mundo, contudo
um recorte significante. A paisagem é, portanto, a percepção de uma porção do
espaço. Ora, todo suporte para a percepção já é percebido, não existe nenhuma
realidade que não esteja interpretada. O esquema conceituai que faz da colina uma
paisagem é apenas um, entre outros possíveis. Assim, todo espaço é potencialmente
paisagem. Um objeto percebido é um objeto refigurado, provido de atributos já
sabidos. Quando a percepção transforma uma porção de espaço em paisagem ela
está aplicando-lhe julgamentos de conformidade, realidade e identificação.
Em suma, a paisagem é um dado reconstruído por uma percepção que informa
esquemas conceituais, incluindo não só a representação da paisagem, mas também a
representação do que deve ser uma paisagem nas diversas circustâncias, tornando-se
julgamento de valor e, portanto, cultural. O cultural define-se a partir do momento
em que um espaço é delimitado, ocupado, mobiliado, vivido, transformado ao ser
nomeado, impresso por identidade. Assim o espaço torna-se social, não uma catego-
ria vazia de conteúdo, mas preenchida pela identidade cultural.
Por isso o termo paisagem é um conceito cultural do enunciatário, pois tem
uma direção determinada. A melhor maneira de analisarmos um espaço parece-nos
ser através da construção social que o grupo atribui ao seu espaço vivido, ou seja,
sua representação, sua identidade.
O termo paisagem torna-se uma alegoria, uma figura de linguagem utilizada
pela Geografia como um locus da diversidade cultural, sempre com um olhar de
distanciamento, e não poderia ser diferente pois sempre é atribuídos, tornando-lhe
um adjetivo, uma metáfora e, portanto, uma poética.
89 Alcântara, Maria de Lourdes Beldi & Sader, Regina T. Imaginário - USP, n. 5, p. 83-89, 1999.

Na união entre descrição morfológica geográfica e o universo simbólico do


geográfo é que se constrói o discurso sobre a paisagem. É , pois, também uma união
entre o universal e o singular, entre a natureza e a cultura.

Abstract: Thispaper deals mth the concept of landscape in Geographj often defmed hj Human Geography
as a material reality and a lived representation. The concept is fundamental to the understanding how the
geographical discourse is constructed and how Geographj regards culture and cultural diversity.
Keywords: landscape, culture, geographj, anthropology

Notas
^ Poderíamos escolher outro autor, um brasileiro, talvez, mas a geógrafa que participa destas refle-
xões leva a sério sua subjetividade, e além do mais, entre outras razões sua formação foi profunda-
mente marcada por George.
^ Bocage é o nome usado para designar campos de cultivo limitados por cercas-vivas, não havendo
equivalente em português.
^ São formas de relevo em regiões calcáreas.

Referências Bibliográficas
GEORGE, Pierre. LM Profission de Géographe— Un demi-siècle de Géographie—'Eá. Armand
Colun. Paris, 1990.
LENCLUD, Gérald — "Ethnologie et paysage". In: Collection ethnologique de Ia France.
Cahier 9. Paris: Paysage au Pluriel — Editions de Ia Maison des Sciences de THomme,
1995: 3-17.
MAGOS, Isabelle et Perrot, Martyne. "UAubrac, du haut lieu au non-lieu
touristique?", p. 35 a 48. Ibidem.
RATZEL, E cit. M. Mauss. In: Sociologia e Antropologia. V 11. "Ensaio sobre as variações
sazoneiras das sociedades esquimó". São Paulo: Ed. EPU/USP, 1974: 237-326.
SAVER, C.O. "Morphology of landscape". University of Califórnia Publications in
Geography, vol. 2, n" 2,1925: 19-54.
Le Lien Social

Leslie Kaplan*

Resumo: Neste artigo a autora coloca a questão de como o trabalho do escritor^ que é um trabalho
solitário, liga-se à sociedade. Para ela, é a partir da linguagem, pois é com esta que se pode sair da solidão
humana.
Palavras-chave: Unguagem, escritor, ligação social

J'ai pensé qu'il serait intéressant de s'arrêter sur ce titre, le lien social. Je veux
dire: ne pas gommer le paradoxe. II peut en effet sembler paradoxal qu'à des écrivains
on demande d'intervenir dans ce sens. Je ne parle pas bien súr des préjugés, ou de Ia
vision romantique, Técrivain comme individualiste, etc. Ni de 1'ouevre même, qui a
évidemment sa place dans Ia société et le monde, comme lien, comme rupture de
lien, et création de nouvelUes formes de lies. Mais le travail d'écriture est un travail
solitaire, alors en quoi ce travail peut-il être sollicité par rapport à Ia question du lien
social? Comment penser Texpérience de Técrivain en ce qu'elle aurait quelque chose
à voir avec le lien social? Partager, transmettre quoi? D'autre part, s'il s'agit de tisser
ou de renouer des liens au sein de Ia population, qu'est-ce à dire sinon que Ton
constate à quel point ce tissu est défait, détruit.

* Leslie Kaplan é escritora de língua francesa que acaba de publicar seu 10° livro: Le Psychanaüste
(P.O.L., Sept. 199) a ser lançado no Brasil. Militante de movimentos de 1968 na França foi "deslocada"
para trabalhar como operária em fábricas, experiência que deu origem a L'Ex"ces-L'Usine (1982),
Le Livre des Cieis (1983) e Depuis Maintenant (1996)
92 Kaplan, Leslie. Imaginário - USP, n. 5, p. 91-94, 1999.

Hannah Arendt, dans Les origines du totalitarisme: "Ce qui, dans le monde non
totalitaire, prépare les hommes à Ia domination totalitaire, c'est le fait que Ia désolaüon
qui jadis constituait une expérience limite, subie dans certaines conditions sociales
marginales, telles que Ia vieillesse, est devenue Texpérience quotidienne de masses
toujours croissante de notre siècle".
La désolaüon, d'après Arendt, le terme anglais est lonelinesss, c'est Tisolement,
Ia solitude non pas choisie mais subie. II me semble qu'on peut développer: c'est
Taccablement devant Ia lourdeur du monde, Timpression d'être dépassé par le monde,
d'être complètement incapable de lui faire face. Cest le malheur, le sentiment d'avoir
été abandonné, petit et abandonné, sentiment tellement fort qu'il peut engendrer Ia
perte des repères, Ia perte de Tidentité, et finalement Taliénation totale, avec Ia capture
par des idéologies de ressentiment. Pour Arendt c'est ce qu'elle analyse comme Ia
société industrieUe de masse qui produit Ia désolation, personneUement je suis d'accord
avec eUe. Mais ici n'est pas le lieu de Ia recherche des causes, mais du constat, et de se
demander: et alors, quoi, et quoi de Técrivain par rapport à cette situation.
Les situations sont les plus variées, tous les lieux du monde actuel, ville, hôpital,
prison, maison de retraite, écoles...
Or, ce qu'il faut remarquer: chaque fois que le lien social est attaqué, c'est le lien
avec le langage qui est aussi attaqué. Dans Ia désolation, ce qui est atteint, c'est aussi
le langage, le Uen fondamental humain du langage, Ia confiance dans les mots, dans
Ia parole de Tautre. La parole de Tautre, de n'importe quel autre, est mise en cause,
mise en doute, on n'y croit plus, quel intérêt, c'est pas Ia peine, à quoi servent les
mots, c'est du baratin, du bla bla bla. On laisse tomber, comme on a été laissé tombé.
D'oü une violence en miroir à Ia violence qui a été faite, d'oú Tadhésion à
n'importe quoi, religion, superstition, délire politique, drogue...
Je pense donc que pour que le tissu social soit reconstruit, il faut aussi prende
en considération Ia question du langage.
Ce qui ne veut évidemment pas dire que c'est Ia seule dimension impliquée. Le
réel excéde toujours les mots.
II suffit de penser un instant par exemple à une maison d'arrêt, ou les détenus
sont huit dans une cellule, cellule ou il y a par aiUers les sanitaires.
92 Kaplan, Leslie. Imaginário - USP, n. 5, p. 92-94, 1999.

OU à un collége de banlieve oú les élèves sont parqués, trop nombreux, presque réduits
à ranonymat, des enfants presque anonymes, ou à une maison de retraite qui à quatre
de l'après-midi sent déjà, ou encore, le poisson...

Désolation soft, désolation quand même.


Le réel excède les mots, mais c'est dialectique, s'il n'y a pas confiance dans les
mots, rien ne peut se fake de durable, aucun changement important, qui tienne.
Un lien social, humain, passe par un rapport au langage oü le langage vit, peut
vivre, dans ses deux dimensions foundamentales: comme parole adressée, lieu d'accueil
pour Tautre, et comme matière polysémique, moyen d'expérimentation et de jeu
avec le monde et les autres.
Le langage permet le je, le sujet, parce qu'il permet le jeu avec le monde, les
autres. Mais cela est possible seulement si le monde, les autres, ont déjà permis ce
rapport-là au langage.
La confiance dans le langage, dans Ia parole adressée, avec ce qu'elle comporte
de promesse, que chacun sente qu'il existe pour l'autre, et, TafAmation, qu'elle soit
formulée ou non, du caractère polysémique du langage, de sa dimension fondamentale
de jeu et d'expérimentation, c'est Ia moindre des choses pour un écrivain, parce que
c'est ce qui le contitue comme écrivain.
Pour moi il est évident que les écrivains qui s'intéressent au lien social peuventt
trouver un sens dans des expériences de terrain souvent éprouvants parce que ces
expériences sont aussi Ia réaffirmation de ce qui fonde leur travail à eux, écrivains.
Conséquences: ce n'est pas sur tel ou tel artiste-écrivain que se porte le transfert,
le désir de travail, mais sur Ia fonction écrivain.
Donc ce n'est pas comme un écrivain particulier porteur d'une ouevre particulière
que Ton intervient mais comme "1 écrivain", transmetteur de Ia fonction même du langage.
Modestie si on veut mais surtout responsabilité par rapport à cette transmission là.
Cela ne veut nullement dire que Técnvain qui fait des rencontres, des ateliers
d'ecriture, etc, ne doit pas parler de son oeuvre, au contraire.
Mais en tant que son oeuvre, ou Toeuvre de ses contemporains, ou de ses écrivains
préférés, etc, sont des moyen de passer ces qualité fondamentales du langage.
92 Kaplan, Leslie. Imaginário - USP, n. 5, p. 93-94, 1999.

II s'agit d'inventer par rapport à ce qui est au coeur de Ia demande, même si ce


n'est pas formulé: le langage comme construction du sujet dans son rapport au
monde, remise en circulation de ce qui est isolé, figé dans Ia désolation.
Orienter le travail en ce sens.
Pas tant aider les gens à "s'exprimer", ce que pour le moment ici et maintenant
en France ils peuvent faire à peu près, mais à PENSER, avec les mots, là ou ils sont,
leur rapport au monde, aux autres.
Mettre en relation, faire des rapprochements, des ponts, des liens.
Et penser c'est aussi jouer, mettre de Ia légèreté là ou il y a de Ia loudeur, de
Tinertie ...
Cest quitter Ia solitude inhumaine, Ia désolation, our tenter d'instaurer un bon
rapport à Ia solitude, c'est-à-dire un bon rapport à soi-même et autres.

Abstract: In thispaperthe author analjses how a nmterwork can be tiedto socialproblems. She emphasi^s
the role of language to befreed from human solitude.
Keywords: language, writer, social
Não há lugar como o nosso lar: Antropologia,
Multiculturalismo e Novas Tecnologias"^

Aleksandar Boskovic^

Resumo: O artigo trata de um mundo remodelado pela tecnologia em ritmo acelerado e como isso tem
afetado culturaSy sociedades e vidas individuais.
Palavras-chave: Glohalifiação, novas tecnologias, multiculturalismo, antropologia

Recentemente lemos que a antropologia está em crise (Scott, 1992; Shore, 1996),
algumas vêzes relacionada a própria crise dos intelectuais (Grimshaw e Hart, 1994),
outras simplesmente colocada nesta posição precária por circunstâncias tais como
conflitos étnicos (Khazanov, 1996). Naturalmente esta "conversa sobre crise" tam-
bém pode ser interpretada como o sinal do fim do milênio, com o enorme destaque
dado recentemente pelos meios de comunicação a desastres (incluindo filmes como
The Independence Day, Deep Impact, Armageddon, The Sphere, etc.), catástrofes, epidemias
como a AIDS, problemas com a camada de ozônio e riscos ambientais similares —
levando-nos a olhar o fato de ainda estarmos vivos como algo parecido a um müa-
gre. Apesar de pensar que os debates sobre o fim da antropologia são um pouco
prematuros, há, sem dúvida, conceitos que abalam a imagem tanto da antropologia
enquanto disciplina como de nosso lugar nela.
O multiculturalismo impôs-se como um dos conceitos mais importantes quan-
do nos preparamos para o próximo milênio. Esta imposição é basicamente o resul-

* Título original em inglês "There is no place like home" faz um jogo de palavras com
"home"(lar) e "home page" da Internet.
** PhD em Antropologia Social, Conferencista Visitante da Universidade de Belgrado em 1998.
1 00 Boskovic, Aleksandar. Imaginário - USP, n. 5, p. 95-104, 1999.

tado da ampliação e do impacto das novas tecnologias da informação. Numa certa


medida, a antropologia sempre foi, entre outras coisas, um estudo das convenções
da comunicação (Leach), mas só recentemente os antropólogos conscientizaram-se
da importância das tecnologias da comunicação como a Internet. Neste artigo pre-
tendo sublinhar brevemente algumas questões levantadas pelo uso crescente destas
novas tecnologias no avanço de nossa compreensão sobre outros povos e culturas.
Ao fazê-lo, considero a antropologia como "uma ciência interpretativa em busca de
sentido" (Geertz). Apesar dos sentidos mudarem constantemente e transformarem-
se, nossas tentativas para esclarecê-los podem, sem dúvida, auxUiar no avanço de
nossa compreensão sobre as formas nas quais processos contemporâneos moldam
o mundo contemporâneo. Ao discutir vários termos, começarei com "globalização",
prosseguindo com "multiculturalismo" e concluindo com a maneira pela qual tais
conceitos estão re-moldando a antropologia neste fim de século.
O fantasma da globalização está assombrando nosso mundo. Isto não está ne-
cessariamente relacionado com cidadãos dos países mais desenvolvidos ou Ociden-
tais — uma das coisas que gostaria de apontar é que os movimentos atuais, em direção
à globalização, são supra-nacionais e estão longe de ser da escolha pessoal Somos
todos membros de um mundo globalizado, queiramos ou não. O mundo está cada
vez mais global e algumas mudanças são mais óbvias que outras, como apontou o
filósofo francês François Lyotard há tempos atrás:
Ecletismo é o grau zero de cultura contemporânea geral: ouve-se reggae, assiste-
se um western, come-se no McDonald's no almoço e pratos típicos no jantar,
usa-se perfume francês em Tóquio, e roupas retro em Hong Kong; conhecimen-
to é algo a ser aplicado em jogos de TV. (Lyotard, 1983:76)

Mas, se a isto chamamos de "ecletismo" ou de outra coisa qualquer, não é


o que nos interessa aqui — o que realmente importa são as conseqüências que se
tornam cada vez mais evidentes. Estas estão relacionadas não somente com as
tendências do consumidor, como enfatiza Lyotard, por exemplo, mas também às
questões colocadas pela própria noção de identidade. E possível falar ou mesmo
pensar sobre identidades particulares em um mundo globalizado? Isto cria espaço
100Boskovic, Aleksandar. Imaginário - USP, n. 5, p. 96-104, 1999.

para perguntas, contudo, também para inseguranças, pois a globalização torna a ques-
tão de identidades particulares mais fictícia do que nunca.
A razão para esta insegurança deve ser buscada numa das conseqüências
mais aparentes da globalização. Os sociólogos canadenses Arthur e Marylouise
Kroker mencionam a estratégia de "fechamento" e de "idiotização". Nas pala-
vras do teórico francês Ignacio Ramonet (1995): "Nas democracias de hoje, um
número crescente de cidadãos livres sente-se incapaz de progredir, grudados
por uma espécie de dogma pegajoso que engole subrepticiamente cada forma
diferente de pensar, inibindo-a, perturbando-a, paralisando-a e, finalmente,
anulando-a. Ameaçados pelos acontecimentos que vão além de suas capacida-
des de entendimento e, em alguns casos pelo menos, até da imaginação, muitos
preferem retirar-se para seus pequenos abrigos, aceitando as coisas da forma
mais simples e direta possível, simplesmente fechando-se contra as influências
ameaçadoras do mundo exterior. Isto também leva a várias formas de racismo
e de xenofobia, pois qualquer forma de diferença, especialmente tratando-se de
outra raça ou outra cultura, é percebida como perigosa. Os ataques raciais e as
manifestações de xenofobia freqüentemente aparecem nos setores mais pobres,
como nas áreas de habitação popular financiadas pelo governo na Grã-Bretanha
ou como em muitos países da Europa Ocidental. O sentimento de ameaça é
cuidadosamente explorado por outro segmento novo da sociedade que Kroker
chama de "classe virtual".
Esta classe virtual é conseqüência direta da nova revolução digital e sua
característica predominante é o domínio do "ego predatório", um tipo de capi-
talismo implacável que busca a maximização do lucro ao mesmo tempo que a
minimização dos custos, sem importar-se com o custo social ou político. Da
mesma maneira que a revolução industrial há um século atrás, a revolução
digital alçou muitas esperanças e prometeu uma sociedade melhor para todos.
Se a tecnologia simplesmente dominasse, foi-nos dito, as máquinas farão a mai-
or parte do trabalho, produzirão mais bens o que levará a um aumento adequado do
lucro e, desta maneira, os seres humanos terão maior tempo livre ("qualidade de
vida"). Obviamente as coisas não aconteceram exatamente assim. As pessoas que
1 00 Boskovic, Aleksandar. Imaginário - USP, n. 5, p. 97-104, 1999.

advogavam as novas tecnologias esqueceram-se de mencionar que elas também sig-


nificavam perda de empregos (e perda de renda) e, de fato, alguns países desenvolvi-
dos que abraçaram integralmente as novas tecnologias digitais, foram os primeiros a
sentir as conseqüências indesejáveis da elevação da taxa de desemprego. Ao mesmo
tempo devemos nos lembrar que:

... no início do século XIX a expansão das novas tecnologias industriais não
libertou escravos. Pelo contrário, a invenção das máquinas de descaroçar algo-
dão e as de fiação na verdade reforçaram a intistuição escravista arcaica e brutal
no Velho Sul [dos Estados Unidos]. (Barbrook 1995)

Um mundo em mudança
Nosso mundo está cada vez mais sendo remodelado pela tecnologia. Como
observou Ramonet no seu artigo de Outubro de 1997 no Le Monde
Diplomatique, em 1917 foram necessários dez dias para que a Revolução
Bolchevique na Rússia parasse a máquina compressora do mundo capitalista.
Esta foi a primeira grande mudança (mutation), como diz Ramonet, do nosso
século. Outra mudança (mutation) aconteceu na década de 1980 com o adven-
to da nova tecnologia digital e a dissolução do comunismo, e estas séries de
mudanças radicais ("a segunda revolução capitalista") ocorreram simultanea-
mente em três domínios diferentes.
O primeiro domínio é o tecnológico, com a informatização de todas as
áreas da existência. Isto inclui também a passagem para a transmissão numérica
de sons, textos, imagens, pois a ampliação da informação envolve trabalho,
educação, lazer.
O segundo, é o domínio da economia, uma vez que novas tecnologias
favorecem a expansão da esfera financeira. Elas basicamente estimulam atividades
que possuem quatro qualidades: precisam ser planetárias, permanentes, imedi-
atas e imateriais. O Big Bang dos mercados financeiros e da desregulamentação ocor-
reu na década de 1980 quando a Sra. Thatcher e o Sr. Reagan favoreceram a
globalização da economia. Esta globalização é o mecanismo dinâmico mais importante
100Boskovic, Aleksandar. Imaginário - USP, n. 5, p. 98-104, 1999.

do nosso século e nenhum país pode dele escapar. (Basta lembrar todos os apelos
por um "livre comércio", "livre mercado" etc. e a suposição básica de que todos os
países são igualmente capazes de competir e até mesmo de vencer na corrida
econômica global).
O terceiro domínio é o sociológico. Alguns conceitos de representação
política de força foram destruídos, especialmente os que eram estruturados de
uma forma hierárquica, vertical e autoritária. Foram gradualmente substituí-
dos por outros estruturados horizontalmente e consensualmente (lembremo-
nos de todas as manipulações feitas pelos meios de comunicação de massa).
Algumas das prerrogativas que tradicionalmente foram adscristas aos estados-
nação também estão em jogo, especialmente quando isto significa atribuir par-
celas de suas próprias soberanias a organizações ou instituições supra-nacio-
nais, como a União Européia, Nações Unidas etc. (E interessante observar que
as instituições financeiras globais não têm muito a ver com a "queda de braço"
na obtenção de alguma soberania de seus estados-membros.)
As mudanças globais estão em curso afetando ao mesmo tempo culturas e
sociedades particulares e vidas individuais, trazendo novo entendimento para a
relação entre o universal e o particular. É um novo paradoxo que, no momen-
to em que o mundo está cada vez mais imerso no processo de globalização,
identidades e culturas particulares também busquem formas para expressarem-
se. Todas estas mudanças estão relacionadas a novas tecnologias de comunica-
ção - comunicação é a principal superstição do mundo contemporâneo e, pelo
menos em um dado momento, prometeu que seríamos capazes de regulamen-
tar tudo. Se algo poderia ser comunicado, poderia também ser submetido a um
controle racional. Evidentemente, não foi isso que aconteceu — uma explosão
de identidades particulares no início da década de 1990 ameaçou empurrar a
Europa para o caos (do ponto de vista de seus Kderes políticos). No ápice do
processo de integração e das tentativas de regulamentar o comércio, a econo-
mia e os mercados mundiais de investimento, nacionalismos locais começaram a
clamar por um lugar para si próprios. Além da insegurança provocada pelas incerte-
zas oriundas de suas identidades particulares (local, nacional), esta tendência tam-
100 Boskovic, Aleksandar. Imaginário - USP, n. 5, p. 99-104, 1999.

bém precisa ser vista sob a luz do advento do discurso que pregava o livre mercado
como princípio.
Livre de quê ou para quê ? A própria idéia de que um país não desenvolvi-
do pudesse competir em um plano global com os mais desenvolvidos (como o
Grupo dos 7, por exemplo) parece um pouco estranho. As economias dos paí-
ses da União Européia ainda estão regulamentadas de forma bastante centrali-
zada, especialmente no tocante às políticas agrícolas. Esta é apenas uma das
razões por que o princípio de livre comércio nem sempre convence os povos
nas margens do mundo desenvolvido. Outra razão é o medo da perda das tradi-
ções nacionais e sua submersão em um todo global, pan-nacional. Apesar deste
temor ser facilmente compreendido em um nível emocional, já é muito tarde.
Como já observou o antropólogo britânico Talai Asad em 1979, o que real-
mente importa hoje — e eu acrescentaria, sobretudo hoje mais do que quando
escreveu este artigo ! — é o movimento do capital global (Os Kroker chamam
este novo sistema de pan-capitalismo.). O que acontece numa cultura ou socieda-
de particular é importante, mas o é mais ainda individualmente. Mudanças dentro
de sociedades particulares são efetuadas através do comportamento de corporações
multinacionais globais. Parece que é o dinheiro que faz o mundo girar.

Problemas com o Multiculturalismo


Isto nos leva a uma outra noção que está se tornando mais popular: o
multiculturalismo, que não é algo novo. Numa situação em que as pessoas se
sentem ameaçadas, elas podem facilmente transformar seu medo em raiva ou
até mesmo em ódio e direcioná-lo contra qualquer coisa ou pessoa que perce-
bam diferente. Membros de diferentes raças ou culturas são os alvos óbvios, e o
aumento recente de ataques racistas ou xenófobos contra minorias ou refugia-
dos por toda a Europa Ocidental pode ser facilmente correlacionado à crescen-
te insegurança social e financeira e ao advento de novas tecnologias. Por este
motivo é que o multiculturalismo é percebido como uma ameaça pelos representan-
tes dos vários partidos ou organizações nacionalistas, neo-facistas ou de direita. A
idéia é de que a multiplicidade de culturas ou tradições levaria "nossa" cultura ou
100Boskovic, Aleksandar. Imaginário - USP, n. 5, p. 100-104, 1999.

tradição ao esquecimento. Este medo é tão grande que qualquer comparação entre
sua própria cultura e uma outra é sentida como potencialmente perigosa para sua
tradição, sociedade, história etc. Nas formas mais positivas deste tipo de crítica,
políticos nacionais (locais) — os que acreditam que podem falar somente de e para
um ponto de vista particular — alertam contra a permissão do direito de diferentes
culturas se afirmarem e usam o exemplo da antiga Iugoslávia como um caso
emblemático do que acontece quando se permite ao multiculturalismo manifestar-
se livremente.
Por outro lado, o multiculturalismo também é percebido como ameaça
por alguns teóricos liberais ou de esquerda. Por exemplo, Peter Lamborn Wil-
son é bastante claro: "Não há erro: o multiculturalismo é uma estratégia desti-
nada a salvar a "América" enquanto idéia e enquanto sistema de controle soci-
al. Cada uma das muitas culturas que fazem a nação agora têm permissão para
um pouco de auto-identidade e de algum simulacro de autonomia." Tudo é
uma conspiração elaborada, destinada a desviar a atenção de coisas mais sérias,
pois culturas variadas somente podem existir na periferia daquela que foi autori-
zada e centricamente designada como Civilização. (Esta Civilização é entendi-
da aqui como a cultura dominante de uma nação ou sociedade. Evidentemente,
assumir isto pressupõe também a crença de que tal cultura possa existir). "O
multiculturalismo precisa ser destruído!", conclui Wilson.
Outro tipo de crítica da esquerda é a usada pelo filósofo/crítico cultural/
ideólogo esloveno Slavoj Zizek. A crítica de Zizek é particularmente interes-
sante em virtude da grande influência que ele exerce nos círculos acadêmicos
norte-americanos e britânicos (ele é um dos editores da Verso Publishing House,
da Grã-Bretanha). Zizek encara o multiculturalismo como um dos instrumen-
tos mais importantes das corporações multinacionais globais. No mundo con-
temporâneo, cidadãos de todos os países são vistos como meros consumidores.
Não importa se mali, checo, afegão, chinês, britânico ou norte-americano —
para o capital multinacional tanto faz. Pior, ele encara até mesmo os cidadãos de sua
"terra natal" (de onde estas corporações se originaram) como simples consumidores
como qualquer outro cidadão de qualquer outro país. A linha divisória entre o "Pri-
1 00 Boskovic, Aleksandar. Imaginário - USP, n. 5, p. 101-104, 1999.

meiro Mundo" e o "Terceiro Mundo" foi apagada; só existe o reino do capital global.
Este só está interessado no seu lucro máximo a custos mínimos — e realmente não
importa quem provê o dinheiro ou força de trabalho barata, desde que a margem de
lucro seja aceitável. Em tal situação, o multiculturalismo aparece como estratégia de
vocês, diz o capital internacional. O que não fica dito é que a única coisa que real-
mente o preocupa é a exploração. Ou, dito mais educadamente, lucro máximo a
custos mínimos.
É interessante que pessoas de pólos opostos do espectro político percebam
o multiculturalismo como uma ameaça. Por um lado, ele é visto como uma
perda de identidade (implicitamente supondo que possa existir uma identidade
cultural "original" ou "pura"), enquanto, por outro, é visto como construtor
de uma "falsa consciência", desviando o oprimido de sua luta pela libertação. E
também divertido ver como teóricos de "esquerda" como Zizek e Wilson, par-
tindo de premissas diferentes, chegam a conclusões semelhantes a de políticos
como Patrick Buchanan ou Jean-Marie Le Pen. O que os dois tipos de crítica
têm em comum é que buscam reconciliar a dicotomia entre universalismo e
particularismo. Teóricos como Ernesto Laclau ou Etienne Balibar mostram
que isto não é possível. No plano prático, os críticos do multiculturalismo não
percebem que ser a favor ou contra ele não é mais uma opção, da mesma forma
que não é mais uma opção a Grã-Bretanha fazer ou não parte da Europa, como
alguns proeminente britânicos eurofóbicos supunham possível. O processo de
globalização envolveu o mundo tão profundamente que todos habitamos, de
fato, uma aldeia global. Ou talvez seja mais acertado dizer, um mercado global.

De volta para casa ou de volta para o futuro?


Uma das respostas mais aparentes à globalização é o "fechamento" (ou
"trancamento") de culturas particulares ou individuais. No mercado global
pessoas e culturas são condicionadas a pensar que têm que competir (fundos
para pesquisas antropológicas estão cada vez mais escassos) um com o outro. Pro-
dutos precisam ser vendidos, por isso agências apropriadas de marketing devem ser
estabelecidas. No caso da antropologia e da etnologia, vários países subdesenvolvi-
100Boskovic, Aleksandar. Imaginário - USP, n. 5, p. 102-104, 1999.

dos estabeleceram seus próprios institutos e fundações de pesquisa — e estas mesmas


instituições são freqüentemente responsáveis por conceder a "Outros" (antropólo-
gos estrangeiros) as necessárias facilidades para pesquisa. Os procedimentos normal-
mente têm duas formas básicas. A primeira — usualmente empregada nos países da
América Central, por exemplo — exige que os resultados da pesquisa sejam acessíveis
à população local (geralmente indígena). A segunda, freqüente na Europa, pode ser
resumida na pergunta "O que ganho com isso ?" Nos antigos países comunistas é
muito difícil fazer pesquisa de campo — e em alguns lugares virtualmente impossível —
sem subornar os oficiais encarregados. Fazer antropologia "em casa" pode ser um
caminho para superar esta situação, caminho também para que as instituições locais
tenham um controle absoluto tanto sobre a pesquisa quanto sobre suas eventuais con-
seqüências.
Claro que há outras inúmeras respostas em relação a se fazer antropologia
"em casa" (ver Peirano, 1998, que dá um excelente panorama geral sobre o
assunto). O fato de que pessoas de vários países subdesenvolvidos ainda são
educadas nas tradições antropológicas do mundo desenvolvido constitui um
problema. Assim, estes cientistas levantam suspeitas "em casa", ao mesmo tem-
po em que são permanentemente marcados como os "Outros" nos países onde
receberam sua formação antropológica.
As questões postas pela globalização e pelo multiculturalismo exigem res-
postas, e acredito que elas serão de grande importância para o próximo milênio.
Em primeiro lugar, os antropólogos terão que tomar partido - a favor ou
contra a globalização (o fato de ser inevitável não significa que não possa existir
oposição), ou a favor ou contra o multiculturalismo. Claro que "tomar parti-
do" sempre esteve presente na antropologia, mas agora ficará mais visível. Isto
exigirá que eles se posicionem em relação às suas próprias culturas e também
em relação às tradições antropológicas que herdaram. Isto exigirá, por sua vez,
que esclareçam suas posições e status diante das várias instituições, agências
financiadoras ou fundações que terão suas próprias agandes em função do que um
antropólogo deverá fazer. Em um mundo onde tudo está voltado para a obtenção de
um lucro instantâneo, os antropólogos terão que pesar cuidadosamente as conseqü-
1 00 Boskovic, Aleksandar. Imaginário - USP, n. 5, p. 103-104, 1999.

ências de ser empregado por diferentes empresas multinacionais (para avaliação de


mercado, "PR" com os nativos etc.) e considerar o que este emprego pode significar
para suas próprias pesquisas.
As novas tecnologias tendem a fazer com que tudo pareça "apropriado" e
bem ordenado, tendendo contudo a criar novos espaços para vários grupos
marginais e marginalizados (diferentes grupos étnicos indígenas, mulheres,
homossexuais etc.). Desta forma, há novas comunidades a serem estudadas,
mas elas também exigem o direito de expressar suas preocupações. Um canal
como a Internet é de certa forma, um "lar" para todo grupo marginalizado que
o desejar. Devido ao impacto das novas tecnologias da informação, diferentes
grupos marginais podem efetivamente ser ouvidos, pela primeira vez na Histó-
ria da humanidade. Esta situação também coloca um desafio interessante para
os antropólogos, pois em alguns casos, graças à possibilidade de acesso às mara-
vilhas da nova comunicação em seus próprios países, ele têm a possibilidade de
ampliar estas vozes marginais e apresentá-las a comunidade global na Internet.
De qualquer maneira, o multiculturalismo e a globalização colocam a ques-
tão do "lar" enquanto uma realidade concreta (onde fica? existe mesmo?) e uma
contrução. Os antropólogos são parte deste mundo em crescente transforma-
ção. Esperemos que possam encontrar algumas respostas que beneficiem tanto
nossas comunidades existentes como ampliem nossa compreeensão das novas
comunidades ("virtuais") que estão surgindo no momento mesmo em que
estamos escrevendo.

Abstract: The article deals mth the quick changes, hrought upon the world hy thecnology
and its effects on culturey soáeties and individual lives,
K e y w o r d s : Globalif^ation, new thecnologies, multiculturalism, anthropology.
Identidade, Invisibilidade Social, Alteridade:
Experiência e Teoria Antropológica
no Centro das Práticas Curativas*

Francine Sailianf

Resumo: Este trabalho tem a intenção defapruma análise antropológica sobre a questão da identidade
e alteridade através das práticas curativas^ em torno dos ^ ^cuidados" como formas práticas de acompanha-
mento de diversas condições e estados de saúde, alcançando as modalidades sócio-culturais do elo social Um
trabalho que interroga a busca de reconhecimento dos encarregados dessas práticas de acompanhamento e
cuidados, que foram classificados defacilitadores (passeurs).
Palavras-chave: Antropologia médica, alteridade, identidade

Introdução
O que os antropólogos fazem? O que é a Antropologia? Quantas vezes nós
fazemos esta pergunta em Antropologia? Certamente, todas as vezes que nos pergun-
tam. Eu me proponho, uma vez mais, como muitos outros fizeram antes de mim,
trilhar os caminhos tortuosos desta questão.
Eu intitulei este trabalho de Identidade, Invisibilidade social, alteridade: experiência e
teoria antropológica no âmbito das práticas curativas.

* Conferência proferida em 03 de Maio de 1999, no Instituto de Psicologia a convite do LABI.


** Departamento de Antropologia da Universidade de Lavai - Quebec - Canadá
116 Saillant, Francine. Imaginário - USP, n. 5, p. 105-120, 1999.

Faz muitos anos que eu trabalho na análise antropológica das práticas curativas.
Primeiramente, em torno das práticas de tratamento como formas terapêuticas, em
contextos variados, em Quebec, na França, no Brasil, um trabalho que foi associado,
no início, à antropologia médica, mas que se destaca em vários outros pontos, como
perceberemos. Em seguida, em torno dos cuidados como formas práticas de acom-
panhamento de diversas condições e estados, alcançando as modalidades sócio-cul-
turais do elo social (entre as pessoas, entre os grupos, entre as camadas sociais, entre
os seres humanos em relação com seu meio-ambiente, com o corpo e com o cos-
mo). Um trabalho que interroga a busca de reconhecimento (e de identidade) dos
encarregados dessas práticas de acompanhamento e cuidados, que já foram classifi-
cados de facilitadores (passeurs), Para alguns, as pessoas que cuidam da saúde de seus
semelhantes fora do sistema e o próprio tratamento são invisíveis socialmente, po-
rém, essas práticas imprimem na condição humana sua face de humanidade, por
inserir em seu seio a prática da alteridade: condição teórica (fenomenológica) da iden-
tidade do acompanhante. E esta situação não se reduz à dicotomia acompanhante/
doente, ela a ultrapassa.
Em Antropologia, discute-se cada vez mais sobre identidades: múltiplas, frag-
mentadas, mortíferas, pós-modernas, transnacionais, transgender ^tc. Discute-se ain-
da, dentro do pós-modernismo, a construção do outro na e pela antropologia e a sua
desconstrução, pós-moderna ainda. Contudo, um tema parece-me ser o mais relevante,
o mais humanista talvez, o mais arriscado também, o do encontro do outro. As práticas
de acompanhamento são, em minha opinião, práticas de encontro no mundo transi-
tório do inacabado (condições de fragilidade, de aprendizagem, de doenças, de expe-
riências a viver...) inscritos no limiar, diria Turner, no "nenhum nem outro". Um
universo de condições e práticas envolvendo uma parte importante das realidades
que coexistem à sombra da produção de mercado, das racionalidades políticas, téc-
nico-científicas ou institucionais, mas também modelos de identidade que se defi-
nem por exclusão de outras identidades, éticas por exemplo. Realidades difusas e
mukiformes cuja única finalidade, nem sempre consciente, é de ajudar a viver, de
ultrapassar o intransponível, as barreiras aparentes da vida. Pois, é necessário, para se
construir uma sociedade, aprender a andar; aprender a aprender; aprender a aceitar
116Saillant, Francine. Imaginário - USP, n. 5, p. 106-120, 1999.

que não se pode fazer tudo sozinho, sem a ajuda do outro; aprender a dar um senti-
do através das palavras, dos signos, dos símbolos, dos gestos, os diversos níveis do
real, incluindo o de pertencer a um grupo. Existem por toda parte seres que acom-
panham esse processo, e outros que passam de lado. O mundo da produção fala de
coisas que se fabricam com ferramentas. A reprodução biológica cria os meios de
produzir vida para produzir coisas. O mundo dos acompanhantes não é nem do
primeiro nem do segundo mundo: ele os integra, no nenhum nem outro, ele cria
uma corrente entre a vida e as coisas, ele conecta.
Eu quero, neste texto, com bastante humildade, prestar contas de questões que
surgiram no meu percurso de antropóloga que já dura 20 anos. Quero colocá-las,
primeiramente, num plano geral, em certos debates contemporâneos da Antropolo-
gia, e situá-las, em seguida, de maneira mais específica, no quadro de minha prática
profissional e acadêmica.

Pós-modernismo, teoria crítica, ciência, poética


Nós passamos todos por esta estranha experiência de dizer a outras pessoas: eu
sou antropóloga, eu faço pesquisa; pensando ao mesmo tempo, sem jamais dizê-lo
em voz alta: eu sou produtor/a de qualquer coisa imaterial, de fatos incertos e contestá-
veis; eu sou intérprete, advogado/a sem ser tradutor/a ou legislador/a; eu escuto
sem ser psicólogo/a ou psicanalista; eu atravesso fronteiras, mas não tenho as cha-
ves de todas as portas que, muitas vezes, fecham-se diante de mim; sou um observa-
dor/a da realidade, mas não me conformo apenas com a observação, pois devo
encontrar as palavras adequadas, sim, adequadas por rigor e por justiça, a fim de
dizer o que vejo e o que sinto, o que me dizem e o que sentem; eu sou o filósofo dos
"cerrados" (mato) e da hiper-urbanização, desmatador/a de grafites e da arte rupestre,
testemunha de sofrimentos e das mais cruéis desigualdades, do nascimento e da
morte; escriba das virtualidades cotidianas, eu atravesso os níveis do real como as
cabras desaparecem nas brumas das mais altas montanhas, desafiando os cumes em
países teóricos mas voltando para beber no vale, como num mistério sempre reno-
vado, os pés na terra, sem feridas aparentes, num país empírico. Eu sou testemunha
e ator(a) do mundo e no mundo.
1 1 6 Saillant, Francine. Imaginário - USP, n. 5, p. 107-120, 1999.

Os antropólogos têm, às vezes, dificuldades em ser cientistas (no sentido da


velha ciência "moderna") e também em ser poetas. Por defenderem e traduzirem
palavras sem voz, eles querem, por sua vez, que sua voz seja um signo para o outro,
procurando dizer a verdade, o credível, o plausível. Como a ciência comporta peri-
gos para os seus utilizadores entre os detentores do poder, eles gostariam de adotar
táticas particulares de maneira a criar mais facilmente alianças, e de poderem situar
sua voz entre os sem voz, sem confusão, e nesta postura, a poesia não tem futuro, ela
não tem credibilidade: ela tem sabor, isto é outra coisa. Porém eles querem que seus
textos sejam sensíveis, marcados por qualidades encontradas no outro, que eles não
traiam nem a ciência nem o senso comum, e eles gostariam ainda que tudo isso fosse
belo, conforme os caminhos da nova escrita etnográfica. Belo não para transmitir
poesia, mas a poética do mundo, de seus cantos, pois, no fundo, o mundo inteiro
canta: os sem terra do Brasil, os sem documentos de Paris. Cantava-se também em
Saravejo. O canto do mundo é um pouco o seu murmúrio, suas qualidades sensíveis,
o que emana, por vezes do sem-sentido, do não-dito, da festa, mas também do que
se segue após os acontecimentos que provocam traumatismos coletivos quando os
seres humanos procuram uma elevação.
Como antropólogo (a) e cidadão(ã) do mundo nós nos encarregamos de uma
tarefa: dizer o real do mundo e sobre o mundo, com palavras da ciência e do senso
comum, desenvolvendo representações credíveis, mas nem sempre aceitáveis, daquilo
que tomamos pelo real, do qual nós estamos tão convencidos que seja construído e
conflitante, pois nós fomos construtivistas antes do tempo pelo relativismo. E nós
somos críticos por essência, pela origem mesmo das ciências sociais. Nós somos, às
vezes, humanistas que lembram a humanidade e a desumanidade das coisas frente às
máquinas monstruosas que se criam atualmente no centro das virtualidades econô-
micas, políticas, materiais, comunicativas; nós somos também niilistas que observam
com um olhar céptico tanta crença, tanta verdade, ou seja, tanta ciência, incluindo a
nossa, pois, doravante, nós olhamos a ciência com lupa (auto-analisando-se) como
talvez, nenhuma outra ciência o fez até hoje, refletindo simultaneamente sobre as
condições de produção e de recepção de nossos conhecimentos. Foucault abriu-nos
as portas da compreensão desta criação das ciências humanas como discurso sobre
116Saillant, Francine. Imaginário - USP, n. 5, p. 108-120, 1999.

a categoria homem. Porém, a reflexibilidade de Foucault, como também a de Giddens,


a de Bourdieu, tem qualquer coisa de fascinante, mas também de paralisante, pois
não podemos prever tudo e os efeitos de reverberação apresentam riscos: a circula-
ridade do discurso e o abismo do pós-modernismo.
Nos últimos anos, vários antropólogos seguiram os caminhos do pós-moder-
nismo, caminhos esses sedutores porque tornam possível o isolamento do mundo:
isto fazia parecer que nós iríamos criar o outro, invenção ocidental dos antropólogos
por excelência, a produção dos conhecimentos parece presa em uma armadilha da
própria antropologia, uma vez que nós teríamos, historicamente, deformado a reali-
dade e traído as populações que nós acreditávamos estar compreendendo e defen-
dendo. De que serve, doravante, a intenção de conhecer o outro? E é aí, neste cam-
po fértil, que se elabora a nova linguagem etnográfica nos caminhos de uma poética
(e de uma poHtica) da etnografia. A antropologia que toma esse caminho fascina e
derrota, mas ela nos interroga sobre nossa ciência, sobre nossa capacidade de per-
manecermos cientistas, de acedermos à ciência, isto é, a um conhecimento geral.
Não resta dúvida que face aos sociólogos, aos psicólogos, aos cientistas políticos,
aos demógrafos, a poética etnográfica aparece como uma recusa à ciência, de um
conhecimento geral sobre o mundo - por mais nobre que seja a idéia de recusar, de
trair a outra pela escolha de um discurso estético e profundamente fenomenológico.
Porém, não vamos nos arriscar a calar a antropologia tornando toda palavra sobre o
outro impossível com pretexto de que nós o criamos (os psicólogos fazem diferente
criando o espírito, os psicanalistas o inconsciente, a medicina o corpo?). Contudo, o
que se torna mais difícil neste momento é talvez a renúncia ao projeto da antropolo-
gia, isto é, a um conhecimento geral sobre o gênero humano em sua diversidade,
privilegiando as particularidades culturais: para alguns, mais radicais, somente o ou-
tro, no final das contas, poderia falar de si mesmo de maneira adequada. Entretanto,
se nós renunciarmos a esse trabalho, os outros cientistas das ciências sociais encarre-
gar-se-ão dele. E qual será o resultado?
Desde que afirmamos que nossa ciência é reflexiva, juntamente com aqueles
que nos habituaram com as expressões variadas do construtivismo, nós sabemos
serem nossos conhecimentos utilizados e reinterpretados nos meandros das buro-
11 6 Saillant, Francine. Imaginário - USP, n. 5, p. 109-120, 1999.

cracias e dos poderes internacionais, mas também entre os intérpretes das popula-
ções: os Kderes, os ativistas, etc... Nossa ciência está no programa "conflitos das
interpretações". Nossa ciência, como nos lembra Taylor, Ricoeur, Gadamer, um
discurso como outro, preso no emaranhado novelo da hermenêutica. Um discurso
que não é exatamente como os outros porque dotado de uma autoridade particular:
o de dizer a verdade, a verdade mais verdadeira, aparentemente mais verdadeira,
porém em condições únicas em relação a outras ciências. Reconhecendo a reflexibi-
lidade do conhecimento, nós criamos uma posição perigosa e arriscada para nós
mesmos, pois não somente desconfiamos daquilo que dizemos sobre o outro, os
outros, mas nós receamos que nossa palavra seja absorvida por outros que se interes-
sam pelas mesmas pessoas que nós. Produzindo um conhecimento ao mesmo tem-
po geral e singular sobre grupos particulares dos quais nós nos tornamos intérpre-
tes: mulheres, peregrinos, autóctones, jovens, curandeiros, gente de teatro, gente de
comunidades culturais, ^^/íj du soi, nós participaríamos de formas de controles varia-
das desses grupos por intermédio das diversas funções de vigilância ligadas a vários
aparelhos. Logo, por que procurar? Pouco importa que a antropologia seja antes de
mais nada uma ciência cujas condições de enunciação estejam sempre em processo,
uma vez que nossa palavra poderia ser presa em armadilhas de poderes invisíveis
cada vez mais sutis, mas cujos efeitos são certos? Nós não teríamos nenhum poder e
seríamos fracos a esse ponto? Preferimos os riscos do intercâmbio aos da armadilha
de um antropólogo fechado sobre si mesmo; a reciprocidade não é apenas uma
possibilidade de recuperação, é também terreno para a abertura e a mudança crítica
em relação a outros discursos possíveis fora da antropologia: discurso político, discurso
epistemológico, discurso proveniente do mundo civil ou, ainda, advindo de outras
posturas ou de outros interlocutores diferentes dos próprios antropólogos.
O projeto de unidade do gênero humano em antropologia, em compasso de
espera atualmente, não parece muito ideológico face ao desejo de alguns que gosta-
riam de ver surgir um processo de uniformização das culturas e dos seres? Nós
estamos, no momento, mais preocupados com a diversidade e com a justiça devido
à ameaça de uma uniformização totalizante, uma vez que com a unidade do gênero
humano, é esta, sem dúvida, a nossa tarefa mais urgente. Construtivistas e críticos:
116Saillant, Francine. Imaginário - USP, n. 5, p. 110-120, 1999.

duas palavras que dominam os paradigmas por nós adotados. E aí também, o senti-
mento de impotência invade-nos às vezes: como pesquisador/a, nós possuímos o
poder de construir teorias, métodos e palavras justas, todavia como nós não estamos
implicados nos processos decisivos concernentes a estas pesquisas, nosso envolvi-
mento no processo não garante algum resultado concreto, o que nos decepciona
imensamente. Logo, o que nós fizemos realmente? Para quem serviu todo esse conhe-
cimento que, freqüentemente, surge como algo já visto pelos informantes? Pergun-
tas deste tipo surgem normalmente após a apresentação de alguma tese de mestrado
ou doutorado. Eu considero esta postura inquietante, ela pode ser desmotivadora,
sufocante e improdutiva, sobretudo se o antropólogo trabalha sozinho. Sem aliados
para a construção de um saber comum em torno de uma causa comum, o antropólogo
não pode ir a lugar algum, a não ser ao lugar di2i glosa acadêmica que por sua vez pratica
excessivamente a endogamia. O isolamento tribal auto-referencial comporta inúmeros
perigos. As dificuldades, os desafios da antropologia de hoje, que eu denomino, de
maneira exagerada, de estetismo pós-modernista ou paranóia críticaj não se solucionam
pelo narcisismo disciplinar e pela salvaguarda das imagens que temos de nós mes-
mos, herdadas do passado. Por isso, nós devemos lutar pelo projeto construtivista-
crítico, porém, desenvolvendo posturas de abertura e de alianças. Abertura em relação
a outras disciplinas: permanecendo singular, mas evitando o nacionalismo disciplinar (o
isolamento disciplinar)) propondo o relacionamento com outras disciplinas e seus objetos,
entretanto, aceitando que certas questões provindas dessas outras disciplinas pos-
sam nos interessar como antropólogos. Abertura em relação à interdisciplinaridade,
porém, uma interdisciplinaridade bem estabelecida, criativa, ligada a projetos e a
lutas comuns, bem diferente de uma interdisciplinaridade reduzida a uma soma inacei-
tável e impraticável de disciplinas, entre as quais nós nos tornamos os representantes
de uma variável. Ia culture. Abertura em relação a posições práticas variadas, fora dos
lugares comuns, a fim de estimular o desenvolvimento da antropologia tanto no
mundo acadêmico como no mundo exterior. Finalmente, abertura e alianças com os
grupos com os quais nós já trabalhamos. E, sobretudo, o reconhecimento da filiação.
Nós criamos no meio acadêmico descendentes que, raramente, ocuparão os postos
11 6 Saillant, Francine. Imaginário - USP, n. 5, p. 111-120, 1999.

de mestres: seu reconhecimento para a difusão da antropologia permanece um tra-


balho de fôlego para o futuro desta. Sem eles e elas, onde nós iremos? O que seremos?
O antropólogo de hoje e de amanhã opera em contextos variados e seu primei-
ro trabalho é estabelecer um intercâmbio entre seus conhecimentos e outras discipli-
nas e profissões. E isto é difícil, provocante, delicado, desencorajador e entusiasmante,
comportando sérios riscos: diluição, decepção, sentimento de incompetência ou de
supervalorização orgulhosa (a tentação de hegemonia em antropologia) que muitos
interpretam mal. Nós somos, na maioria das vezes, minoritários. Que eu saiba, o
único lugar onde o antropólogo constitui maioria é o departamento de antropolo-
gia, e, no interior desses departamentos, a diversidade é a regra. Nosso destino é o
pluralismo e cabe a nós construir as bases e criar contatos de cooperação. O pluralismo
é o próprio objeto da antropologia: através da abertura e do relacionamento cada
vez mais numeroso e obrigatório com outras disciplinas, profissões, campos de pesqui-
sa. A metáfora mais usada para falar de nossa disciplina é a do intérprete-, nós devemos
não somente pensar em nos tornarmos intérpretes das experiências locais das quais
nos aproximamos — o que fazemos ao proceder a redação de uma etnografia —, mas
também devemos ser os intérpretes de nossas teorias no universo profissional e no
universo de pesquisa aos quais nós nos destinamos. Depois de uma fase intensamen-
te unidisciplinar, no contexto da formação, nosso trabalho torna-se, ao chegar ao
meio, o trabalho da cultura broker..Jeórico. Desculpem-me a imperfeição da imagem.
Eu gostaria, a partir deste momento, de falar um pouco desse trabalho, descul-
pando-me, em primeiro lugar, por ter de passar por caminhos autobiográficos, que
são os caminhos da experiência, sem, contudo, limitar-me a eles.

Práticas de tratamento na antropologia dos cuidados


O ente e os cuidados
A antropologia surgiu frente a mim como uma pergunta e uma possibilidade, a
partir de uma experiência que vivi há 25 anos atrás quando eu era enfermeira em um
hospital psiquiátrico: "Um jovem rapaz escuta SuperTramp, ouve vozes, as vozes são
bíblicas e dizem o seguinte: se tu pecaste através de teus olhos fura-os. O rapaz tem
116Saillant, Francine. Imaginário - USP, n. 5, p. 112-120, 1999.

apenas 17 anos, ele fura seu olho, entra no hospital psiquiátrico e continua sempre
ouvindo vozes. Eu sou a sua assistente. Um dia, eu estava de folga, ele foge do
hospital e, fiel a suas vozes, fura o outro olho. Nasce um cego. Trazem-no à força de
volta ao hospital. Vozes que eu não escuto continuam a ser ouvidas. Nós falamos de
Super Tramp e da Bíblia. A visita de parentes é proibida. Ele recebe uma eletroterapia
como tratamento, eu não tenho nenhum poder." Será isso tratar, acompanhar? Eu
faço para mim mesma as perguntas que se fazem em antropologia: o que é o poder
dos experts} O que é o outro? O que sou eu? Existem fronteiras para o EU? O que é
a realidade? O que é a linguagem? O que é Deus e como ele se dirige aos homens?
Qual é a parte da escritura no imaginário? Eu fiquei marcada para sempre pela reali-
dade da realidade. O sofrimento é sem lágrimas e sem direitos. Eu escrevo meu
primeiro poema publicado em torno da história desse rapaz, desse outro, deixo o
hospital e tomo caminho da antropologia, suficientemente largo e indefinido (penso
então), para deixar lugar a perguntas cujo questionamento tomam uma vida inteira.
Durante muitos anos, recebi uma formação para me tornar uma antropóloga
da saúde ou medicinal. Eu não tomei o caminho da antropologia qualificada de
exótica, pelo menos. Primeiramente, trabalhei em casa, em Quebec, sobre o Quebec,
e o outro encarnou-se através do sofrimento, da doença, do diagnóstico criador de
identidade, de exclusão, de estigmatização, de morte social. A depressão, a psicose, o
câncer, a velhice, a perda de autonomia, a fragilidade, a obesidade, todos esses fato-
res foram pontos de interesses para tentar compreender o ser humano na sua diver-
sidade e para entender a diversidade a partir do familiar, do próximo, do ordinário,
do cotidiano mais simples, exatamente no ponto em que a diversidade é geralmente
imperceptível e impenetrável, muito fácil de negar. Como professora de antropolo-
gia em uma escola universitária de enfermeiras, eu me encontrava no centro de todas
as questões concernentes aos antropólogos que trabalham à margem dos canhões
da academia, os mais numerosos todavia: ser antropólogo fora da tribo, questionan-
do e destruindo para e com outros as ontologias de todo tipo, incluindo aquelas
sobre as quais se elaboram as certezas da exploração e das misérias humanas, com a
particularidade de aparecer metade na ciência e metade nesse baixo mundo - consi-
derado um pouco vulgar do alto da douta assembléia; mas também, ser antropóloga
11 6 Saillant, Francine. Imaginário - USP, n. 5, p. 113-120, 1999.

em um lugar onde você será alguém que representará essa ciência, esse discurso e
será interrogado por aqueles que imaginam a antropologia como "um belo discurso
sobre a cultura": o que é a antropologia? Eu recusei tudo isso de uma só vez, levando
a sério todas as questões que me foram dirigidas. Entre essas duas vertentes, nesse
nenhum nem outroy sensível demais para a posição de mediadora (como mulher, somos
sempre um pouco...), eu começo a tentar responder à seguinte pergunta: que faço eu
e de que maneira a ciência que eu conheço serviria a esse meio? O que significa ser
antropólogo nesse lugar do acompanhamento do outro fragilizado por uma doença
ou uma condição? Será que eu mesma não teria me tornado outra pessoa, excluída
simbolicamente por um discurso auto-referencial sobre a antropologia acadêmica,
no entanto "aberta para o mundo"? Teria eu me tornado outra para esse meio, fa-
zendo parte das ciências ditas "de enfermagem", procurando um componente cultural
em uma construção sistemática do mundo, onde o ser humano se apresenta como
um ser bio-psico-social-cultural? Ou ainda, teria eu me tornado um componente
numa construção do mundo que eu não teria escolhido, devendo representar neste
mundo a cultura, como os antropólogos têm representado pelo mundo afora o exótico,
uma trihoy um passado longínquo, uma excentricidade divertida e inútil?
Além dessas posturas impostas e criadas, eu tinha, de qualquer maneira, que
ensinar antropologia, fazer antropologia, ser antropóloga. Quando nos excedemos
no questionamento existencial, não fazemos mais nada. Eu escolhi a ação através da
pesquisa e ela será antropológica.
Eu começo, então, um trabalho sobre a antropologia dos cuidados. Não so-
mente para limitar-me a lembrar o "componente cultural" da saúde (como um fator
entre outros) — este porquê estava previsto - , mas também para pensar os cuidados,
refletir sobre essa relação particular que é o cuidado como elo social portador de
identidade e alteridade, preocupando-me com o sofrimento de invisibilidade social
dos cuidadores que dão seu testemunho de diversas maneiras. E, como as mulheres
dominam este setor, pelo menos em número, refletir sobre os cuidados do ponto de
vista das relações entre os sexos, tudo isso dentro do espaço terapêutico. Eu fui
muito tempo fascinada por uma observação de Edgard Morin: "no plano da evolu-
ção, os traços deixados pelos rituais funerários dos primeiros humanos estão entre
116Saillant, Francine. Imaginário - USP, n. 5, p. 114-120, 1999.

OS primeiros sinais de humanidade''. Aqueles que criaram rituais funerários pensaram


que o morto era ainda humano e que merecia atenção e cuidados, a partir daí, o ritual
e a reflexão sobre a morte introduzem o pensamento da possível existência do ou-
tro, da outra face do ser, do desdobramento do ente. Nascimento da representação,
do símbolo no contexto de um elo criado entre dois níveis de existência que procu-
ramos reunir. Marcas deixadas pela preocupação pelo outro que se transformarão na
trama da minha posição de antropóloga e de minha posição teórica em antropologia.
Eu disse preocupação pelo outro, no sentido de Lévinas, e não construção e des-
construção (destruição) do outro, após Derrida. Encontro versus distanciamento, pois
nas práticas de acompanhamento, o tema do encontro é o elemento que articula,
que cinde as relações entre identidade/alteridade.
Na primeira fase de meus trabalhos em torno das práticas de cuidados, eu pas-
sei por um período que qualificaria de arqueológico: um trabalho sobre a etimologia,
o senso comum e os diversos conceitos próprios ao universo das práticas de cuida-
dos; um trabalho etno-histórico, hermenêutico e comparativo sobre as práticas de
cuidados familiares na França e no Quebec; um trabalho de escuta e observação de
diversas formas de práticas de acompanhamento e de cuidados — não profissionais e
pluriprofissionais — aproximando-me das preocupações das feministas britânicas que
desenvolvem a análise do caregiving (proporcionar cuidados (cuidar)) no contexto da
Inglaterra neoliberal, criticando a delegação feita pelo parte do Estado das responsa-
bilidades de cuidados (vida-morte) para a comunidade (mulheres, famílias) e contri-
buindo a situar os cuidados no contexto da teoria da reprodução. Assim, eu defino,
provisoriamente, cuidados como um conjunto de práticas de acompanhamento do
corpo-espírito em situações de fragilidade e numa relação de interdependência. Prá-
ticas concretas, técnicas, simbólicas, enraizadas na história, na cultura.

Arqueologia/ antropologia dos cuidados


Com esta disposição eu quis desenvolver uma arqueologia dos cuidados: descobrir
e reconhecer as práticas de cuidados (ou de manutenção da vida, conforme denomi-
nação de M.R Collière) das famílias de Quebec antes dos programas universais de
seguridade que fizeram da saúde um direito e uma riqueza coletiva: o seguro de
116 Saillant, Francine. Imaginário - USP, n. 5, p. 115-120, 1999.

saúde e o seguro hospitalar. Partindo de uma hipótese: em antropologia, insiste-se


nos rituais públicos e codificados - eu quis compreender os micro-rituais que se
elaboram no cotidiano dos grupos domésticos pelas mulheres, para compreender,
de alguma maneira, de onde vinha esta terrível contradição dos próprios antropólo-
gos ao banalizarem e deixarem de lado essa práticas de cuidados no cotidiano. Num
longo trabalho, em colaboração com F. Loux, eu percorri um universo de pequenos
fios vermelhos enrolados no punho para evitar que o mal tomasse o corpo, fios de
teia de aranha introduzidos em uma ferida para tecer o sangue seco do ferimento,
plantas e gestos de transmissão de calor, ilustrando a preocupação com o outro e o
trabalho da reprodução, e ainda um mundo de correspondências herdadas do pensa-
mento pré-moderno descrito por Foucault em As Palavras e As Coisas, mundo de
pequeninas coisas abundantes que não se deixam decodificar facilmente, que são,
porém, diversas maneiras de falar da pesquisa de coesão, de elo, de sentido nas circuns-
tâncias mais difíceis da vida, indo desta vez além da pesquisa de organização entre os
níveis do real (natural/sobrenatural) ou entre os grupos sociais, mas também entre
as partes do próprio corpo e suas ligações com o meio-ambiente. Estas questões
tornaram-se outras aberturas para refletir sobre o simbólico, o corpo, o elo social, a
reprodução, as relações entre os sexos, a doação, o outro e a preocupação com o
outro, segundo Lévinas. Contudo, talvez, o mais importante não tenha sido a per-
cepção do universo simbólico e sim seu lugar, sua posição na trajetória terapêutica.
E, a partir daí, passar ao campo antropológico propriamente dito, ao compreender
que as mulheres, no âmbito dos grupos domésticos, elaboram práticas e universos
simbólicos que são os cuidados no cotidiano, no sentido da manutenção da vida e da
continuidade do trabalho da reprodução, dando assim as primeiras respostas que
influem, de alguma maneira, na trajetória terapêutica tão bem descrita por Janzen.

Cuidados com o outro


Nessa trilhas, eu procurei desenvolver uma antropologia que faria compreen-
der os cuidados como relação social, como construção cultural, como forma de liga-
ção social, como conjunto de gestos portadores de símbolos, como conjunto de
comportamentos ritualizados, mostrando que proporcionar cuidados é fabricar um
116Saillant, Francine. Imaginário - USP, n. 5, p. 116-120, 1999.

elo de ligação com o outro exatamente no momento em que o elo é quebrado pela
experiência de ruptura que é a doença, cuja presença perturba os elos de ligação
anteriores. Mas não esqueçamos que os cuidados, como outras práticas sociais, são
freados pelo poder, pela tecnologia, pela big ciência, pela burocracia, etc. Eu me
aproximo cada vez mais dos cuidados e me distancio da medicina e da antropologia
que poderia ser qualificada de médica. Tornei-me testemunha de cuidador/es que,
numa cidade como Quebec - que poderia ser Lyon ou Belém —, acompanham a
alma dos mortos da cabeceira do doente até o necrotério, pensando existirem no
necrotério ainda cuidados a serem prestados ao SER que ali se encontra. Fui teste-
munha também de outros cuidadores que abraçavam aidéticos com força, numa épo-
ca em que a maioria das pessoas temiam a infecção, justificando sua atitude ao dizer
que não se devia deixar seres humanos sem contato, sem nenhum elo, que não seria
humano, que isso não seria tratar ou cuidar. Testemunhei ainda a presença de outros
cuidadores assistindo aos fianerais após a longa agonia de uma pessoa de quem eles
haviam tratado solidarizando-se com a família enlutada; conheci também cuidadores
que inventavam rituais onde estes não existiam: em uma casa de cuidados paliativos
quebequense, por exemplo, fabricaram uma mortalha de linho, lembrando a tradi-
ção de Quebec da vestimenta de linho, envolvendo com ela o corpo da pessoa que
acabava de perder a vida, evitando assim um vazio de cuidados entre o fim da agonia
e o necrotério, como também o vazio de elos de ligação com o morto. A cada vez eu
constato não a dualidade cuidador/doente, mas sim a tecitura ativa de um liame que
dá prosseguimento ao trabalho de manutenção da vida, trabalho da reprodução,
ponto de encontro entre a vida frágil, inacabada, lugar sem identificação {non-lieu
identitairè) espaço de tensões vida/morte e a produção, ou seja, o mundo dos objetos
materiais e virtuais. Os exemplos desse tipo são numerosos: eu fico bem mais apai-
xonada por esta tensão vida/morte e esta paixão sobre a vida que anima as pessoas,
sobretudo as mulheres, não por acaso, que dizem em uníssono: se nós não o fizer-
mos, ninguém mais o fará. Preocupação pelo outro e princípio de responsabilidade.
Ética cotidiana da preocupação. Elas dizem exatamente o que mulheres denomina-
das "ajudantes naturais" contam quando se situam como as últimas cuidadoras da
família no contexto da AIDS, da doença de Alzheimer, de uma doença em fase
11 6 Saillant, Francine. Imaginário - USP, n. 5, p. 117-120, 1999.

terminal (ninguém mais faria, é por isso que nós fazemos) e o que dizem as mulheres
da Amazônia privadas de dinheiro e cheias de "serviços", trabalhando no dia a dia
para estabelecer um elo e dar sentido a alguma coisa que os outros não vêem mais.
Eu questiono a parte das mulheres nos cuidados, eu questiono os elos que elas
estabelecem com a vida e a morte, elos que elas procuram criar, e eu creio compre-
ender que é através desses elos que se constrói, entre outros, o significado da doença
e dos cuidados. As mulheres cuidadoras não são, nesse contexto, os únicos objetos
de troca e de alienação, elas são sujeitos ativos de elos sempre recriados entre os
diversos níveis de realidade, vida-morte, material-espiritual, entre os diversos grupos
(do doméstico e do comunitário). O problema da invisibilidade do trabalho das
mulheres, como a de todos que ocupam estruturalmente esta posição, permite dimi-
nuir uma parte do déficit no programa de saúde dos governos. Isto ocorre por causa
da semântica (o caráter amorfo da expressão cuidados de saúde e o caráter muito codi-
ficado da noção de cuidados profissionais), por causa da classificação hierárquica entre
as profissões e por causa da gratuidade já esperada do trabalho de cuidado informal
e familiar no domínio da saúde.
Eu já disse isto antes e torno a repetir: os cuidados informais estão para o sistema
de saúde como o trabalho doméstico está para a economia de mercado: essencial,
porém, invisível, banalizado, sem valor. Contudo, o valor de mercado que se atribui-
ria a esse trabalho não resolveria o problema. A maior dificuldade estaria na identi-
dade do cuidador, ligada a uma atividade de relação que só se desenvolve dentro de
um contexto social ligado a elos afetivos. Não existe uma dualidade cuidador/doente,
mas um elo criador de identidade entre dois indivíduos ou entre grupos de indivídu-
os, e é neste encontro — eu ousaria mesmo dizer neste elo — que a invisibilidade se
constrói. Eu adiantarei ainda que todas as práticas de acompanhamento entram um
pouco nesse jogo de elo de identificação na qual a identidade pode apenas passar
por este espaço relacionai e sustentar uma forma de invisibilidade. Ela é de um nível
marginal, criado na própria relação e, sem esse nível marginal, ela não pode se reali-
zar. Ela só pode ser invisível, dificilmente apreendida, por ser fugidia, marcada pelo
tempo do encontro. Sem começo nem fim porque ela está inscrita na circularidade
do que deve ser vivido e, talvez, ser dado. E a questão do dom (da doação) e da circu-
116Saillant, Francine. Imaginário - USP, n. 5, p. 118-120, 1999.

lação do dom, no âmbito dos cuidados, é muito complexa, difícil de apreender e de


ser aprofundada; particularmente porque o Dom (a doação) não se encontra na
ordem da produção.
Trata-se, portanto, de uma identidade paradoxal, na qual o sujeito para apare-
cer, ser nomeado, existir, tem de passar pelo exercício da alteridade (não-identidade)
através da postura de preocupação pelo mais frágil, ancorado na ética de alteridade.
As observações feitas em torno dos cuidadores finais, aqueles que têm a derradeira
responsabilidade com pessoas próximas, todas chegam à mesma conclusão em rela-
ção a esse tema. Imaginemos os cuidados paliativos, os campos de refugiados após
uma guerra, os cuidados com crianças numa época de fome. Deve-se perguntar
como as mulheres se encontram tão freqüentemente no posto de cuidadora/s finais
(a última pessoa responsável pelo outro, às vezes tendo um elo de parentesco com o
doente, às vezes não), doando-se através dos cuidados como sujeitos sem que isso
acarrete nenhuma contrapartida para elas, sem nenhuma recompensa. A resposta
encontra-se, talvez, no elo que elas conseguem criar num momento em que o doente
não pode mais criar elo algum: porque não existe mais ninguém para tratá-lo, porque
a condição física ou psicológica não lhe permite mais formular um pedido ou ainda
por outras razões. E necessário, portanto, restabelecer um elo de ligação entre a
pessoa em tratamento e o mundo, e outros mundos, e com outras pessoas, manten-
do assim uma cadeia de vida, associando cuidador/a e doente. Estamos então nos abrindo
a genealogias imaginárias? Nós nos permitimos pensar assim.

Conclusão
Durante todos esses anos em que me dediquei a fazer antropologia alhures e
num contexto de pluralismo teórico, trabalhei para tornar visível os cuidados informais
como um conjunto de práticas essenciais para a reprodução e como forma de elo
social que tendem, todavia, a ser varridos do campo social, apesar de seu caráter
essencial e sua importância em uma sociedade voltada para a fragmentação, o virtu-
al, a ruptura. Meu trabalho de antropóloga desenvolveu-se nas trilhas da busca de
identidade, visibilidade, reconhecimento de um grupo social: os cuidadores e
1 1 6 Saillant, Francine. Imaginário - USP, n. 5, p. 119-120, 1999.

cuidadoras profissionais e não profissionais, daqui e de fora, que procuram um ca-


minho, um lugar como reparadores de existência.
Coloquei, assim, a antropologia em um contexto diferente, a partir de uma
prática e de uma postura desconfortável e numa forma interdisciplinar radical entre
o científico e o profissional, entre o mundo acadêmico e a sociedade civil, como um
discurso sobre o outro, sobre o outro no seu lar cuidando do outro. Através de um
liame (elo) e da reverberação desse liame (elo), eu gostaria de falar que sua reflexibi-
lidade convidou-me a procurar compreender aqueles e aquelas que estão com ou-
tros, que são fabricantes de humanidade. E, talvez, rejeitar a deriva ou o cinismo
pós-modernista, embora aceitando o risco de sua escritura (linguagem) e de sua
intertextualidade ciência-poesia, porém rejeitando a paranóia crítica inibidora.

Por um novo humanismo em antropologia? Talvez.


Pablo Neruda, poeta e diplomata, intitulava um dos maiores poemas épicos
contemporâneos de O cantogeral^ pois o mundo não é apenas um mundo de estraté-
gias e de posições de supervisões, como também não é um conjunto terminado de
identidades impenetráveis das quais nada se pode dizer: ele é inclusive expressão de
cantos, vozes, gestos, existências, elos, solidariedades. Na diversidade há ainda esse
fato inegável de procurar criar alguma coisa que nos seria comum porque, sem essa
condição do comum, não há mais condição humana. É justamente a condição do
comum que nós procuramos, sob todas as suas formas, sob todas as suas expres-
sões, as mais duras e as mais belas.

Abstract: Thispaper intends to analyse identy and alterity through healthpractics and care.
Keywords: Medicai anthropology, alterity identity.
Cultura nativa e globalização:
Terena em Campo Grande;
(re)significando o real*

Profa. Dra. Paula Caleffi**

Resumo: Este trabalho fa^ uma análise sobre a globalização e aparticulari^iação.Busca-sey através do
ponto de vista de uma determinada cultura — Terena-, compreender como se articula aglobali^ção. Consta-
ta-se que os Terenas ressignificam a realidade a partir de uma 'Heia de significação''própria. Acorremos ã
história oralpara melhor demonstrar a nossa assertiva.
Palavras-chave: Globalif^ação, índios Terena, cultura indígena, história oral

Para os Terena, particularmente a Seu Agostinho, Dona Adélia


e Maria; por ensinar-nos que carinho e bons sentimentos não
conhecem diferenças étnicas.

Atualmente é atribuído, por grupos de estudiosos, ao neo-liberalismo e à globa-


lização, toda a responsabilidade pela miséria do mundo contemporâneo. Sem dúvida
a perversidade deste projeto não pode ser ignorada, assim como também não devem
ser ignoradas as possibilidades que a globalização abre para melhor articulação de
uma resposta de contestação a ela mesma e ao sistema neo-liberal.

* Paticipação da Mestranda Vanderléia P Leite Mussi


** Doutora em História da América pela Universidade Complutense de Madri. Professora Titular da
Hnha de pesquisa "Populações Indígenas e Missões Religiosas na América Latina" da Universidade
do Vale do Rio dos Sinos, UNISINOS/RS.
Caleffi, Paula. Imaginário - USP, n. 5, p. 121-137, 1999.125

Estamos nos referindo, por exemplo, às facilidades de comunicação geradas


pelas chamadas redes "nets", que são frutos da globalização, e que possibilitam uma
agilização de discussões, à organização de ações por grupos não adeptos do sistema
neo-liberal e à idéia de homogeneização cultural contida na globalização.
Entendemos que a proposta de homogeneização contida na globalização é bas-
tante sutil, pois deixa espaço, por exemplo, para manifestações locais, assimila o étnico,
desde que vendido em shopping centers. Nunca os refrigerantes ofereceram tantas
opções e os tênis tiveram tamanho grau de identificação com o potencial comprador.
As cadeias defastfoodabriram espaços para que tabus alimentares locais fossem respei-
tados e comidas regionais encampadas. O problema encontra-se, em nosso entender,
na forma imposta do shopping center como local de consumo, do tênis como sapato ideal
e do fastfood como forma de comer.
Para posicionarmo-nos aqui, citamos apenas as formas óbvias de sedução da
proposta de homogeneização cultural contidas na globalização.
Nosso objetivo é analisarmos como uma cultura distinta da ocidental, ou seja,
uma cultura que não é responsável pela geração da proposta de globalização, convi-
ve com a mesma.
Ao assumirmos a tese de que o conhecimento se produz através e a partir da
articulação entre sujeito cognoscente e objeto, e que o sujeito cognoscente está infor-
mado por significados construídos socialmente e submetidos a constantes reavaliações,
podemos considerar que a importância dos objetos não está exclusivamente neles mes-
mos, mas sim nos distintos significados e funções que assumem dentro das diferentes
ordens culturais. Neste sentido, a princípio, as culturas que são capazes de manter seu
dinamismo e sua historicidade, sua capacidade de significação ou de resignificação dos
objetos com uma "teia de significações"^ própria, estão livres do estigma da homoge-
neização cultural.
No entanto, através da história, temos conhecimento da existência dos chama-
dos etnocídios, o que, em nosso entender, significa a perda da capacidade de (re)sig-
nificação dos fatos a partir de pautas culturais próprias.
Caleffi, Paula. Imaginário - USP, n. 5, p. 122-137, 1999. 1 25

1
.V V

' Vvíf"

Nossa investigação incide sobre o povo Terena, ou melhor, sobre um grupo


destes, os Terena que habitam atualmente Campo Grande: os chamados índios ur-
banos, também equivocadamente denominados índios desaldeados.
O idioma terena pertence às línguas Aruáke, ou Aruwák. Segundo estimativa
do censo realizado em 1994, contido no Banco de Dados do Programa Povos Indíge-
nas no Brasil, do Instituto Socioambiental (novembro de 94), a população Terena no
Mato Grosso do Sul esta estimada em 15.000 indivíduos (Ricardo,l 996:42). Sem
dúvida, os Terena estão entre os povos nativos mais populosos do Brasil.
Uma parcela desta população habita atualmente a capital do estado, Campo Grande,
e, por conseqüência, está mais exposta à chamada cxiltura ocidental que os residentes
na aldeia. Porém, não se deve imaginar que estes residentes estejam vivendo fora deste
contato- apenas os índios urbanos o têm de forma mais intensa no seu cotidiano.
Caleffi, Paula. Imaginário - USP, n. 5, p. 123-137, 1999.125

A própria denominação e classificação dos Terena em índios urbanos e índios


aldeados é delicada, apesar de ser a melhor aceita pelo grupo atualmente para nome-
ar os indivíduos que habitam de forma mais permanente o meio urbano, e aqueles
que habitam de modo mais permanente a aldeia, demarcada pelos órgãos governa-
mentais. Contudo, esta denominação e classificação oferece margem para que a po-
pulação não terena, a população envolvente, chame-os de índios desaldeados e mui-
tas vezes classifiquem os habitantes do meio urbano de não índios.
Isto denota uma diferença na compreensão de conceitos como território e terri-
torialidade entre as populações nativas e a população de cultura ocidental.
O deslocamento espacial é entendido pela população envolvente, e mesmo por
muitos especialistas, como sinal de ruptura. Os Terena atualmente não aceitam a
classificação de desaldeados, argumentando que desaldeado é aquele que vem da
Europa para cá, "é o alemão, o italiano^mas não o índio que se desloca dentro de
um território ao qual ele pertence ou que a ele pertenceu.
Paula: Seu Lucídio, tem muita gente que pensa que quando o índio vem morar na
cidade, já não é mais índio, não é?
Lucídio: Acham, mas não é assim. O Brasil como já tem estudo, a leitura, na quinta
série a gente já pega (aprende), que o primeiro brasileiro é o índio. Mas agora acha
que a gente não é mais índio depois que saiu da área, nós estamos dentro do Brasil,
esse Brasil. Eles falam que não somos brasileiros nato, então se não somos índios,
onde é que está essa lei? Eu quero saber onde é que está esta constituição (que diz),
se o índio sai da aldeia não é mais índio. Só se trocar meu sotaque de falar, essa língua
que eu tenho, só se ele trocar para mim, aí eu vou falar (português), não quero nem
saber. Mas do jeito que eu arrasto essa língua (terena) ainda, falando aqui dentro do
Brasil, não vem falar que não sou mais índio aqui dentro da cidade, nós temos como
responder a essas palavras.^
Este tipo de depoimento ouvido por nós nos faz refletir sobre a arbitrariedade
da cultura ocidental em relação às suas instituições. Inicialmente confina-se as socie-
dades nativas através de um processo totalmente artificial às suas culturas, em áreas
demarcadas. Intitulamos e reconhecemos como índios aqueles que vivem dentro
Caleffi, Paula. Imaginário - USP, n. 5, p. 124-137, 1999. 1 25

destas áreas. Esquecemo-nos que este processo de identificação constituiu-se a par-


tir da trajetória histórica das sociedades de cultura ocidental, as quais fundaram seus
estados-nação e acostumaram-se a pensar e organizar sua realidade segundo unida-
des espaciais politicamente demarcadas, como se isto se constituísse em algum tipo
de ordem natural do mundo, e não em uma realidade culturalmente construída.
Como conseqüência, estigmatiza-se aqueles como os Terena, e outras culturas nati-
vas, que não se submeteram ao confinamento imposto e resolvem viver durante um
tempo, ou mesmo de forma mais estável, nas cidades, classificando-os de desaldeados
e ainda questionando sua identidade indígena e especificamente, Terena.
Ao identificar-se identidades nativas a espaços de confinamento, atribuí-se um
aspecto de rigidez muito grande a estas culturas, como se as mesmas perdessem sua
capacidade de dinamismo, de ressignificação da realidade a partir de uma "teia de
significação própria. Isto, sob nosso entender, e como pretendemos demonstrar aqui,
não ocorreu e não ocorre, pelo menos de forma determinante, entre a parcela dos
Terena com a qual interagimos, e talvez tampouco esteja ocorrendo com outras
etnias nativas que saíram de suas áreas de confinamento.
Devemos ressaltar aqui que não estamos negando de forma alguma a importân-
cia da terra para as culturas nativas; desejamos apenas flexibilizar as categorias de aná-
lise e ressaltar o status de "ordens simbólicas^ " próprias - de culturas como a Terena -
, historicamente construídas, capazes de defrontarem-se com novas realidades sem
perder suas capacidades próprias e originais de ressignificação destas realidades e dos
elementos que as compõem. Os Terena residentes em Campo Grande, pelo menos o
grupo com o qual interagimos, mantém constantes relações com os parentes residen-
tes na aldeia da qual são originários; visitam-os constantemente na aldeia, hospedando-
se na casa dos parentes que, da mesma forma, vão a Campo Grande e muitas vezes ali
permanecem hospedados por um longo período. Os Terena de Campo Grande tam-
bém intervém em demandas sociais importantes para a aldeia, como conseguir uma
bomba de água para facilitar a vida na mesma. Ainda é necessário dizer que os Terena
não se conformam de forma homogênea politicamente, havendo várias facções dispu-
tando diferentes níveis de poder. Os que residem no meio urbano tem papel atuante
na política da aldeia, inclusive votando em eleições para cacique.
Caleffi, Paula. Imaginário - USP, n. 5, p. 125-137, 1999.125

Desta forma propomos a substituição da noção de ruptura entre aldeia e meio


urbano, pela noção de continuidade, de acordo com a forma de entender o processo
que os próprios Terena possuem.
A opção metodológica feita para atingirmos nosso objetivo nesta investigação,
foi a história oral. A cultura Terena é uma cultura ágrafa, ou seja, a transmissão de
conhecimento é feita através do que nós conhecemos como "métodos informais de
transmissão de conhecimentos", em que a oralidade e a imitação são fundamentais.
O aspecto de oralidade é muito importante no que se refere ao dinamismo da cultu-
ra, pois trabalha e funciona através da memória, como afirma Le Goff: "O processo
de memória no homem faz intervir não só a ordenação de vestígios, mas também a
releitura destes vestígios"(l992:424). E a imitação constituí-se no ensaio e na cópia
do comportamento por parte dos que detém menos conhecimento, do comporta-
mento considerado pertinente desempenhado pelos então detentores deste conhe-
cimento. O exemplo mais claro disto é a própria imitação que as crianças começam
a ensaiar em suas brincadeiras dos atos e da forma de agir dos adultos.
Devemos dizer que, trabalhar com história oral com culturas distintas da ociden-
tal, instiga um repensar e uma adaptação deste método. A história oral em voga atual-
mente vem recebendo um tratamento bastante especial por parte da Academia, onde,
porém, impera a discussão sobre a aplicação do método dentro da própria cultura
ocidental. Tem-se estabelecido regras e padrões como certos e errados, a partir justa-
mente desta discussão, notando-se como conseqüência uma exagerada tentativa de
normatização do método, tornando-o muitas vezes rígido, fazendo com que se perca
grande parte da potencialidade de utilização do mesmo. Pois bem, várias destas nor-
mas são impossíveis de serem observadas quando se trabalha com culturas de lógica
distinta da ocidental. Por exemplo: o sentido do público e do privado é outro, raras
vezes conseguimos uma entrevista onde intervenha apenas uma pessoa. Isolar a pes-
soa escolhida para a entrevista, do grupo, é algo impossível e, pelo menos entre os
Terena, seria considerado um procedimento muito estranho, e provavelmente de mal
gosto. Como ao trabalharmos com culturas como a Terena, a base de confiança é
fundamental para que haja o consentimento e a colaboração do grupo, esta não pode
e não deve ser colocada em risco, sob pena de não ser possível terminar o trabalho.
Caleffi, Paula. Imaginário - USP, n. 5, p. 125-137, 1999. 1 25

Outro problema enfrentado é o estabelecimento de perguntas padronizadas ou


de um questionário que seja feito de forma igual à todos os entrevistados, pois o
sistema de perguntas e respostas é substituído, muitas vezes, pela narrativa contínua
por parte do entrevistado, que utilizando-se de exemplos míticos e outros, torna sem
sentido fazer-se algumas perguntas pensadas inicialmente pelo entrevistador, pois
seria mera repetição de aspectos já falados na narrativa.
Outras vezes pensa-se a chamada pergunta de corte, no entanto, em muitas
ocasiões recebemos, em relação a esta, uma resposta monossilábica que não nos
acrescenta nada, apenas que nossa pergunta foi incapaz de atingir a lógica do grupo
e do entrevistado e que provavelmente eles estão nos considerando meio "estúpi-
dos". Desta forma, torna-se necessário iniciar o diálogo por outra parte e tentar
introduzir a pergunta, refeita, no meio deste.
Após a dura experimentação da realidade, reiniciamos o processo de pensar o
método, agora sim a partir do empírico, articulando os conhecimentos acadêmicos
com o mesmo^.
Nossas preocupações em relação à utilização da história oral foram basicamen-
te duas: manter a coerência interna na utilização da mesma e a transparência na
articulação dos critérios escolhidos.
Assim, levando em consideração o nosso objetivo mais amplo já exposto e sua
articulação com o campo da realidade Terena por nós investigado, levantamos a
seguinte problemática: como este grupo Terena, residente em Campo Grande, conti-
nua entendendo-se como índio, e mais especificamente como Terena, frente a pro-
posta de globalização que está presente basicamente nos centros urbanos, e Campo
Grande não é excessão, e ainda qual o papel que seus antepassados recebem (possu-
em) neste processo?
Nossa problemática várias vezes teve que ser dividida em mais de uma pergun-
ta, outras vezes fez parte e foi incluída pelo próprio entrevistado em uma narrativa
mais longa. Todas formas serão aqui transcritas.
O material por nós recolhido a partir da história oral extrapola muito a preocu-
pação central deste trabalho e faz parte de uma proposta de investigação mais ampla
a qual estamos desenvolvendo junto ao mesmo grupo.
Caleffi, Paula. Imaginário - USP, n. 5, p. 125-137, 1999.125

As entrevistas foram feitas em português - pese alguns entrevistados possuírem


dificuldades em expressar-se em português, apenas expressando-se de forma fluída
no seu idioma. Estes foram auxiliados por membros do grupo que possuem maior
fluidez na utilização do português e total fluidez no idioma nativo.
Por estarmos trabalhando com uma cultura distinta da nossa, sentimos necessi-
dade de uma maior convivência e intimidade com a mesma. Neste sentido as entre-
vistas feitas no meio urbano foram precedidas de uma estada na aldeia de onde se
origina o grupo com o qual trabalhamos.
Considero que não escolhi propriamente os Terena para efetuar este trabalho,
mas fui escolhida por eles: através da minha orientanda de mestrado, que participa
do projeto, recebi um recado que talvez não levasse especificamente o meu nome,
entretanto, quando o recebi, soube imediatamente que um trabalho relevante se co-
locava diante de mim. Tratava-se de um rezador Terena, Seu Agostinho, originário
da área indígena do Cachoeirinha e residente a trinta anos em Campo Grande, que
expressou à minha aluna o desejo de transmitir seu conhecimento acumulado sobre
seu povo e a necessidade de alguém que o escutasse. Prontamente assumi o recado
como endereçado a mim.
Utilizando ainda minha aluna como intermediária, respondi que estava muito
interessada em ouví-lo. Nesta ocasião fui informada que primeiro deveria haver um
conselho no qual os ancestrais (espíritos) seriam consultados sobre a minha ida a
aldeia, considerada fundamental, pois Seu Agostinho tinha dúvidas se eu agüentaria
a estada na mesma.
A necessidade da estada na aldeia foi considerada unânime, tanto por nós quan-
to pelo grupo Terena, que entende como "falta de educação"o comportamento de
muitos pesquisadores que chegam com lápis na mão, fazendo perguntas, anotando,
sem ter tempo de sentar, entrar no ritmo de conversa do grupo e, com isso, "sem
entender o modo Terena", segundo colocação de Seu Agostinho.
Em nossa estada na aldeia, onde estivemos como convidadas, dormimos em
suas casas e partilhamos seus alimentos, seu tempo, suas atividades, enfim, seu modo
de ser. Isto nos possibilitou entender um pouco mais a forma Terena de construção
da sua realidade, das suas verdades, do seu mundo. Clareando-nos desta forma como
Caleffi, Paula. Imaginário - USP, n. 5, p. 125-137, 1999. 1 25

deveríamos nos comportar para que fossemos consideradas o menos inconvenien-


tes possível, e como deveríamos direcionar nossa entrevista para atingirmos nosso
objetivo final, sem que isto acarretasse algum tipo de transtorno ou constrangimen-
to para o grupo. Assim fomos conhecendo e nos dando a conhecer, tecendo a im-
portante confiança mútua fundamental neste tipo de trabalho.
Este relato reforça nossa concepção de pensar a questão aldeia - centro urbano,
não como ruptura mas como continuidade.
As entrevistas foram feitas em Campo Grande, após havermos retornado da
aldeia, em dois momentos. O primeiro ocorreu na casa de Seu Agostinho, onde
também funciona a sede da Associação dos Moradores Indígenas. Deste participa-
ram: Seu Agostinho, rezador Terena oriundo da área indígena de Cachoeirinha e
residente em Campo Grande a trinta anos; sua esposa Dona Adélia, também deten-
tora de conhecimentos religiosos, oriunda da mesma área indígena de seu esposo e,
do mesmo modo, residente a trinta anos na capital; e a filha do casal, Maria, a esco-
lhida para receber os ensinamentos religiosos, bem como de medicina Terena, posto
que a religião e a medicina no cosmos Terena são inseparáveis. Foi uma entrevista de
caráter coletivo. Em um segundo momento, no dia seguinte, a entrevista foi feita
com Sr. Lucídio, na casa do mesmo, residente em Campo Grande desde a década de
50 e que é atual presidente da AMI. Esta entrevista foi presenciada por, aproximada-
mente, umas dez pessoas, porém dirigida especificamente ao Seu Lucídio. Nela ape-
nas Seu Agostinho interferiu algumas vezes sendo que, a parte aqui transcrita, perti-
nente ao trabalho, é exclusiva de Seu Lucídio.

Entrevista com Agostinho, Adélia e IVIaria

Paula: Seu Agostinho, de onde vem o povo Terena?


Agostinho: (...) então eu dou valor aquele Bem-te-vi, está tentando abrir aquela laje,
pedacinho por pedacinho de laje (...) então o que salvou a vida do índio foi o Bem-
te-vi, voou lá para a ponta da arvore e voltou de novo, está tentando abrir aquele
buraco, então vai vendo cavaleiro lá está olhando o que aquele passarinho está fazen-
do, foi lá e abriu esse buraco, foi Bem-te-vi que conseguiu abrir então todo o mundo
Caleffi, Paula. Imaginário - USP, n. 5, p. 125-137, 1999.125

(...), união , união o que nós queremos é união, então (...) aí antigamente não tinha
comida, então cada ferramenta veio vindo na mão de cada pessoa, índio trouxe a
enxada, o branco pegou o papel limpo, por que pegou o papel limpo esse branco?
Porque nasceu para isto, porque índio trouxe para isso mesmo a lavoura, também
paraguaio (veio) atrás, ele veio e trouxe cabo de puxar animal. Quem é preto? Escra-
vo. Então são quatro pessoas.
(...)
Paula: Seu Agostinho o que o Pai Maior, como o senhor falou, que ele passou esses
mitos para o senhor e seus antepassados também, como eles ajudam no dia a dia ao
senhor não esquecer de ser Terena mesmo morando na cidade? Como eles lhe aju-
dam a continuar sendo índio?
Agostinho: Ajuda e ajuda muito, porque cria respeito né, as pessoas tem respeito
por Agostinho, Agostinho tem muito respeito aqui, no meio disto aqui, na cidade
nunca eu lutei com estranho, eu estou morando, mas se eu mudar algum dia, lá
também vai ser a mesma coisa.
Paula: Dentro da religião que o índio traz com ele, que foi ensinada, desde que índio
é índio, hoje em dia tem a religião católica também, mas a religião do índio continua
existindo mesmo morando aqui na cidade Seu Agostinho?
Agostinho: Eu não posso largar porque a nossa religião é uma (...) isso aí não vou
largar por que a minha religião é a minha força.
Paula: Essa religião quem foi que ensinou para o senhor?
Agostinho: Antepassado deixou para nós, para vivermos até o final de nossas vidas,
de onde veio isto é muito grande (poderoso), não é pequeno não, é como padre
mesmo né, pois é a nossa religião é essa ai. Porque o médico de branco entende de
febre ou de outro problema, e índio não deixa assim, porque nesse mundo ninguém
sabe de doença que vem vindo, mas um vento conta para nós (índios).
Maria: Nósjá sabíamos que vinha o AIDS. Um vento que nem o AIDS^ a mãe dotioIjucídié sonhou.
Paula: Já sabiam que ia ter?
Caleffi, Paula. Imaginário - USP, n. 5, p. 125-137, 1999. 1 25

Maria: Já sabia que ia ter e já sabia que vocês vinham.


Agostinho: A mãe de Lucídio sonhou e Agostinho também, que ia vim umas mu-
lher de muito longe, para ajudar nós.
Paula: E quem passa isto para o senhor. Seu Agostinho, quem conta essas coisas
que vão vir no futuro?
Agostinho: Quem conta para nós é nós mesmos, eu me concentro, eu chamo espírito,
então aquele que vem vindo de longe como você, nós já sabíamos, porque que nós... você
antes que você chegasse em nossa família nós já sabíamos. Você está junto comigo sen-
tada (agora), porque, porque... você é nossa, nós descobrimos há muitos anos, agora você
está aqui, nós não sabíamos quem era, e menina... maior, muito prazer na nossa família
indígena, nós reza muito né, forte. Você não vai matar (esquecer) Agostinho na hora de
morte (de Agostinho). Sempre vai lembrar... não esqueça da nossa família.
(...)

Paula: O Seu Agostinho me falou que você está recebendo parte dos ensinamentos,
Maria, das plantas dos remédios, porque tu nasceu para isto. Segundo o Seu Agostinho
a gente já nasce com este tipo de dom, umas pessoas nascem para uma coisa e outras
nascem para outras. No teu caso é tu que vai dar continuidade a essa sabedoria; Maria
eu vou te perguntar uma coisa que para ti pode parecer estranho, mas para nós é
importante, para nós podermos entender para podermos divulgar como é que vocês
sentem isto. O que tu achas que os índios Terena tem de diferente? Assim, por exem-
plo de mim e da Vanderléia porque a gente não é uma coisa só, o que nos diferencia?
Maria: Isto para mim não tem diferença nenhuma, para Deus nós somos todos
irmãos, você é filha de Deus como eu também sou. Agora para os outros índios eu
não sei. Agora o meu lado eu entendo né, eu não vou falar você não é meu irmão
porque você não é filho da minha mãe, porque você não é índia. Somos todos ir-
mãos sim, através de Deus somos. Apenas é diferente por causa que você é branca,
o idioma, você tem outra linguagem, então é essa que eu falo que é a diferença.
Agora as outras partes eu não sei, porque essa pergunta eu não posso responder,
porque cada um de nós tem um jeito de pensar, por exemplo os da aldeia mesmo; os
Caleffi, Paula. Imaginário - USP, n. 5, p. 125-137, 1999.125

índios de lá não gostam dos brancos mesmo, porque (eles) vão lá prometem uma
coisa que não é cumprida, como o pai mesmo falou para você, já foi muitos amigos
nossos (lá), e ficou de ajudar, tirou foto e falou que ia levar, mandar (para a aldeia)
mas nunca foi mandado. Então eles não tem confiança mais, eles não confiam, então
eles falam que os brancos não ajudam, que eles (os brancos) mentem.
(...)

Adélia: Porque Agostinho foi nascido lá na aldeia, eu também, só todas minhas


crianças nasceram aqui, mas eu não ensino a falar português direito, só o idioma
(Terena) todas as minhas crianças falam todas o idioma, só para conversar com você
agora, quando você for embora eu vou falar o idioma. Todas (minhas) crianças nas-
ceram aqui na cidade.^

Entrevista com Lucídio

Paula: Quem contou. Seu Lucídio, a sabedoria toda que os índios têm, para os
índios? Por que os índios tem essa sabedoria e o branco não?
Lucídio: índio é mais velho, isso já vem do tempo de Heródes. Essa geração já vem
mudando, índio cada índio tem visão tem espírito que anda dentro dele, à meia-
noite ronda o espírito à procura dos índios, se o índio está com esse espírito ele está
bem, se houver um problema avisa o índio (o espírito), o que vai acontecer. Então se
alguns já se desligaram de ser índios, já sofrem doenças, já sofrem, já passam neces-
sidades, já passam dificuldades, já não vai para frente, já fica isolado, não fica mais
como a gente sorrindo, tomando água. Ninguém passa mais na casa deste índio, nós
que somos que temos a força desse espírito. Todo mundo vem aqui em casa, vem a
procura da gente, senta conversa com a gente, não é como essas pessoas que não é
mais índio, já ignorou a raça dele, ninguém mais vai visitar esse índio.
(...)

Paula: Seu Lucídio, tem muita gente que pensa que quando o índio vem morar na
cidade, já não é mais índio, não é?
Caleffi, Paula. Imaginário - USP, n. 5, p. 125-137, 1999. 1 25

Lucídio: Acham, mas não é assim. O Brasil como já tem estudo, a leitura, na quinta série
a gente já pega (aprende), que o primeiro brasileiro é o índio. Mas agora acha que a gente
não é mais índio depois que saiu da área, nós estamos dentro do Brasil, esse Brasil. Eles
falam que não somos brasileiros nato, então se não somos índios, onde é que esta essa lei?
Eu quero saber onde é que esta esta constituição (que diz), se o índio sai da aldeia não é
mais índio. Só se trocar meu sotaque de falar, essa língua que eu tenho, só se ele trocar
para mim, aí eu vou falar (português), não quero nem saber. Mas do jeito que eu arrasto
essa língua (Terena) ainda, falando aqui dentro do Brasil, não vem falar que não sou mais
índio aqui dentro da cidade, nós temos como responder a essas palavras.
Em nosso processo de textualização das entrevistas, corrigimos algumas vezes
as conjugações verbais, sempre que isto comprometesse a compreensão por parte
dos leitores. Como tornar escrito o que é oral constituí-se em um processo muito
complexo, principalmente porque o leitor não pode apreciar expressões, tonalidades
de voz, enfim, sutilezas do falar, utilizamo-nos exatamente da nossa compreensão
do momento em que as entrevistas foram feitas, para suprimir algumas repetições
desnecessárias. Procuramos intervir no texto escrito das entrevistas apenas em mo-
mentos que a não intervenção poderia comprometer a compreensão do mesmo. As
palavras entre parênteses são recursos nossos para tornar mais claro o sentido ex-
presso na própria fala do entrevistado que, como dissemos antes, não domina o
português. Várias destas palavras foram sugeridas por outros Terena que assistiram
as entrevistas no momento em que estas estavam sendo feitas. As palavras dos entre-
vistados não tiveram sua seqüência alterada.
Como nosso trabalho é temático, e não apenas de histórias de vida, selecionamos
trechos das entrevistas, porém nunca fracionando perguntas ou respostas e tampouco
mudando a ordem na seqüência das mesmas.
Todas as falas foram devidamente legitimadas pelos entrevistados.
Existem dois pontos, no mínimo, que chamam a atenção na transcrição das
entrevistas, feitas acima.
Primeiro, a importância dada, por este grupo, à manutenção e utilização do seu
idioma como a língua utilizada no cotidiano. A conservação (que neste caso significa
constante construção) de uma "ordem simbólica" própria, é absolutamente facilita-
Caleffi, Paula. Imaginário - USP, n. 5, p. 125-137, 1999.125

da pela utilização de um idioma capaz de expressar esta ordem simbólica em toda a


sua riqueza e peculiaridade, fazendo o idioma parte da mesma.
Não estamos afirmando que, para que exista uma, necessariamente a outra ainda
deva existir; por exemplo, sabemos atualmente de sociedades nativas no território na-
cional que mantém esta ordem simbólica diferenciada e operante, no entanto, perde-
ram o uso de seu idioma próprio. Da mesma forma é bem conhecido o experimento
dos jesuítas na América colonial quando os mesmos utilizaram-se da parte mecânica
da língua guarani para expressar conceitos absolutamente externos a esta cultura.
Porém acreditamos que a existência de uma ordem simbólica própria, expressa
cotidianamente através do idioma inerente a ela, é um sinal de coesão, coerência
interna e provavelmente de vitalidade da cultura e de sua capacidade de ressignificação
da realidade.
Sahlins afirma:
Se a cultura for, como querem os antropólogos, uma ordem de significação, mesmo
assim os significados são colocados em risco na ação. (SAHLINS, 1990:9)

Os significados sempre serão colocados em risco na ação, no agir e interagir


cotidiano do indivíduo com a realidade empírica, e serão reavaliados, como ensina
Sahlins em sua obra.
O importante, segundo nosso ponto de vista, é que este processo dinâmico e
histórico, que ao mesmo tempo tece e é tecido pela cultura, seja feito a partir de uma
"teia de significações" própria. De acordo com o resultado da nossa investigação,
esta capacidade de reavaliar o empírico a partir da "teia de significações" próprias, e
assim seguir vivendo e construindo sua cosmovisão, seu mundo, este grupo Terena
habitante de Campo Grande mantém.
Esta conclusão está vinculada aos dois pontos por nós citados, o primeiro aci-
ma e o segundo que segue.
Assim como os Terena encontraram um lugar para nós na sua cultura ou na sua
ordem simbólica, sonhando com a nossa chegada, também foram capazes de encon-
trar um lugar para enfermidades do mundo atual, como a AIDS.
Caleffi, Paula. Imaginário - USP, n. 5, p. 125-137, 1999. 1 25

Ainda muito importante encontraram um local no seu mito de criação para a


enxada, o branco, o papel, e tantos outros elementos citados, originalmente estra-
nhos à cultura Terena.
Acreditamos que isto aparece de forma muito clara no mito; não que ele possua
exclusividade pelo processo de ressignifícação dos elementos e das situações cotidi-
anas, mas por trazer refletida esta ressignifícação de forma elaborada e, por isto, sem
dúvida, constituir-se em elemento muito importante neste processo.
Em trabalho nosso, anterior, (1997), propusemos considerar o mito, nas socie-
dades ágrafas, composto de, no mínimo, duas partes: uma parte arquetípica, comum
às experiências da humanidade, onde aparecem os elementos recorrentes, inclusive
em várias mitologias de origens distintas; e uma parte cultural forjada no bojo, pecu-
liar e segundo cada distinta cultura. Esta última é a parte ritualizável do mito.
Retomando, então, tanto na execução dos rituais quanto na transmissão oral
dos mitos, temos a parte citada referente ao elemento arquetípico mais permanente
e o restante, que faz parte de um processo mais dinâmico, vivo, que incorpora ele-
mentos novos e exclui elementos já obsoletos à respectiva cultura, transforma al-
guns e mantém outros, atualizando assim a sua representação de mundo dentro das
pautas culturais de reprodução desta.
Esta é a parte histórica do mito. Desta forma este grupo Terena segue ressigni-
ficando elementos estranhos à sua cultura com uma teia de signifícação própria,
construindo sua ordem simbólica, e explicando o mundo a partir e através dela.
Neste processo a teia de signifícação é constantemente reavaliada:

Pois ao menos aqueles povos que sobreviveramfisicamenteao assédio colonialista


não estão fugindo à responsabilidade de elaborar culturalmente tudo o que lhes foi
infligido. Eles vêm tentando incorporar o sistema mundial a uma ordem ainda mais
abrangente: seu próprio sistema de mundo. (Sahlins, 1997:52)

A única coisa que ousaríamos acrescentar a esta citação de Sahlins refere-se ao


tempo verbal utilizado em "os povos que sobreviveram". Consideramos que pode-
ria ser os que sobreviveram e logram sobreviver, posto que o colonialismo, mesmo
sob outras roupagens, no nosso entender ainda é um fato.
Caleffi, Paula. Imaginário - USP, n. 5, p. 125-137, 1999.125

Com o que constatamos em nossa investigação, o deslocamento para o meio


urbano não ocasionou, neste caso, o rompimento deste processo, do processo histó-
rico de construção da ordem simbólica Terena. E importante observarmos que este
grupo Terena do meio urbano mantém contato constante com os da aldeia, fazendo
com que a "teia de significações" dinâmica seja alimentada tanto por informações
do meio urbano como da aldeia e com que não haja uma diferenciação entre a "teia"
utilizada pelos Terena urbanos e os residentes na aldeia.
Neste caso específico não notamos uma dependência explícita do local habita-
do para a utilização da "teia de significações". Pareceu-nos fundamental, no caso do
grupo urbano, exatamente a existência do grupo, ou pelo menos de mais de um
indivíduo que compartilhe a mesma cosmovisão. Difícil seria que uma "teia de signifi-
cações" distinta fosse mantida por apenas uma pessoa, um representante, pois este
provavelmente seria classificado pelos componentes da sociedade envolvente, ao
menos por leigos, como louco.
Nossa conclusão é que é fundamental manterem-se as teias de significação dis-
tintas, dinâmicas e operantes. Logo, a importância dos produtos jogados pela globa-
lização, não está neles mesmos, mas no sentido que eles tomam dentro das diferen-
tes ordens simbólicas após sofrerem o processo de ressignificação. Toda a cultura é
dinâmica, toda cultura é histórica.
Talvez a homogeneização cultural não seja o que atualmente mais ameace o
grupo Terena com o qual interagimos, enquanto grupo detentor de uma cultura e
uma história próprias. O que detectamos sim como ameaça eminente a todos os
grupos étnicos em geral aponta para a lógica da "ordem simbólica" ocidental que
classifica e reserva os espaços nos estratos mais baixos da escala social aos detento-
res de uma "ordem simbólica" diferente.

Abstract: Tòüpaper analyses the glohali^tion hy the bias of a speáfic culture: Terena. Terena Indians
re-elahorate a mh of meanings of their own, to deal mth reality. To attain this goal m ivorked mth oral
history.
K e y w o r d s : Globalifiation, Terena indians, oral history, indian culture
Caleffi, Paula. Imaginário - USP, n. 5, p. 125-137, 1999. 1 25

Notas
^ Termo usado por GEERTZ, C. 1978.
^ Palavras ditas por Lucídio, terena residente em Campo Grande, atuai presidente da Associação de
Morador Indígenas de Campo Grande (AMI).
^ Esta parte da entrevista com Seu Lucídio esta incluída na parte do texto onde estão reproduzidas
as entrevistas.
^ Termo usado por SAHLINS, M., 1997.
^ A obra de BOM-MEYHI, 1991, trabalha mais exaustivamente estes aspectos por nós também
constatados, e apesar da obra citada tratar de outra cultura, as conclusões sobre a aplicação do
método muitas vezes foram as mesmas.
^ Lucídio faz parte da família extensa de Seu Agostinho, atualmente é o Presidente da Associação dos
Moradores Indígenas (AMI), de Campo Grande.
As fitas gravadas nas conversas depoimentos e entrevistas foram transcritas pelo aluno bolsista de
Iniciação Cientifica Orson Soares.

Referências Bibliográficas

BOM MEIHY, José Carlos Sebe. O Canto de Morte Kaiowá. História Oral São Paulo:
Loyola, 1991.
CALEFFI, Paula. Die Geschichte im Mjtbos - ein methdologischer Vorschlag. In: Mystik der
Erde. Raúl Fornet Betancourt(Hg.). Wien: Herder,1997.
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas, Rio de Janeiro: Zahar, 1978
LE GOFF, Jaques. História e Memória. Campinas: UNICAMP, 1992.
POVOS INDÍGENAS NO BRASIL: 1991 - 1995. Editor Carlos Alberto Ricardo.
São Paulo Instituto Socioambiental, 1996.
SAHLINS, Marshall. Ilhas de Hitória. Rio de Janeiro: Zahar, 1990
"O Pessimismo Sentimental e a Experiência Etnográfica: Por que
a Cultura Não é Um Objeto em Vias de Extição". MANA, Rio de Janeiro, UFRJ,
3(1): 41-73,1997.
Espaço simbólico

Jane Bittencourt*

Resumo: Este trabalho é um estudo sobre um tipo de representação geométrica de caráter simbólico.
Procura, através deste exemplo, caracteri^r a dimensão do simbólico e analisar diferentes universos de
significação. Tem como objetivo principal explorar o potenáal do símbolo enquanto forma de conhecimento e
expressão da complexidade do ser e dos saberes.
Palavras-chave: Conheámento simbólico, representações geométricas, complexidade.

Mandala individual (fig.l) Sri Yantra (fig.2)

Representações como estas, encontradas em diferentes culturas, em diferentes


épocas, denominados "mandalas", apresentam estruturas geométricas muito seme-
lhantes e motivos comuns apesar das diferenças culturais onde estão inseridas. Com
origem na palavra sânscrita que significa "círculo", Jung (1973) considerou os mandalas

* Professora do Departamento de Metodologia do Ensino, Centro de Ciências da Educação, Univer-


sidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
Bittencourt, Jane. Imaginário - USP, n. 5, p. 139-151, 1999.-]49

uma categoria especial de símbolos, que, embora apresentem uma grande diversida-
de de formas e temas, têm sempre alguns elementos de base comuns: são geralmen-
te formações circulares, esféricas ou ovais, apresentando um movimento interno.
O círculo é elaborado com imagens, a flor ou roda, decorado com o sol, a
estrela ou ainda a cruz, geralmente associados a raios ou então a serpentes fechadas
sobre si mesmas, ou ainda em movimento espiral. Em geral representam a quadratura
do círculo, geralmente expressa através da relação entre o círculo e o quadrado.
Os motivos, apesar de serem relativamente numerosos, repetem-se com peque-
nas variações. Em geral temos figuras e motivos triádicos, quadrangulares ou
pentagonais. O três vem sempre relacionado a um momento de equilíbrio, de solu-
ção de uma dualidade e pode ser combinado em seus múltiplos. O quatro indica
solução de pares de contradições, como é o caso das quatro direções do espaço,
geralmente marcadas nos mandalas através de figuras como quatro animais ou sím-
bolos celestes. Os pássaros, pavões, serpentes ou peixes são os animais mais comuns
em mandalas não tradicionais assim como em mandalas pertencentes às tradições
ocidentais (Jung, 1982). Nos mandalas ocidentais encontramos freqüentemente a
flor, um dos símbolos mais comuns a diferentes tradições, presentes também nas
rosáceas que compõem vitrais e decoram muitas das igrejas cristãs. E muitas destas
representações, como é o caso da figura acima, contém somente uma composição
de figuras geométricas.
Como estrutura comum a todos os mandalas, Jung salienta a expressão de po-
laridades, o lado direito e esquerdo, acima e abaixo, marcada através de imagens
simbolicamente antagônicas como o sol e a lua ,por exemplo, na figura 1. A dinâmi-
ca geral é de um princípio ordenador que coloca as diferentes figuras em algum tipo
de relação, o que geralmente produz movimento ou dele é resultado. Da conciliação
de opostos resulta a simetria, da expressão de circularidade temos círculos em rota-
ção ou concêntricos, e da expressão de evolução ou de processos de desenvolvimen-
to temos os movimentos em espiral. São estes movimentos que caracterizam a geo-
metria dinâmica presente em todo mandala.
No centro temos normalmente um ponto, uma figura geométrica, uma figura
antropomórfica ou um símbolo específico, no contexto de uma tradição. Muitas
Bittencourt, Jane. Imaginário - USP, n. 5, p. 139-151, 1999. -] 49

vezes raios partem do centro ou temos figuras concêntricas, como na figura 2, mar-
cando um movimento de expansão. Também é comum o duplo movimento de ex-
pansão e contração, geralmente em forma de espirais combinadas com círculos. O
centro é o foco unificador a partir do qual tudo se desenvolve e também a matriz
organizadora de todos os outros elementos.
Um estudo deste tipo de representação nos coloca diante de algumas indaga-
ções interessantes, que motivaram este trabalho (Bittencourt, 1997). Primeiro, o que
significam? Segundo, por que sua presença em contextos históricos e culturais tão
diversos? E ainda, por que seu caráter geométrico? Vou analisar as duas primeiras e
encaminhar a última.

Universos de significação
Os mandalas, assim como toda representação simbólica, são interpretados sob
diferentes pontos de vista, em diferentes contextos. Jung (1973), por exemplo, inter-
preta psicologicamente o simbolismo e a funcionalidade dos mandalas. Considera
que o centro, reunido com todos os elementos à sua volta, simboliza o centro da
psique, o self, que é uno e múltiplo, com um potencial irradiador e organizador. A
totalidade da psique é conquistada por um longo processo de individuação que envol-
ve sempre uma dinâmica de conciliação entre opostos, cuja solução resulta sempre em
novidade, em um estado que é fruto de um processo integrador. A expressão desses
processos se dá geralmente na forma de mandalas: representação de um processo de
estruturação interna, de reorganização. Por isso sempre expressam ou buscam expres-
sar a conquista do equilíbrio, de uma nova ordem resultante da resolução de conflitos.
Com base na regularidade de estruturas e motivos presentes em mandalas de
origens culturais tão diversas, assim como na relativa autonomia dos símbolos em
geral e particularmente dos mandalas, sugere que deve haver "uma disposição
transconsciente em todo indivíduo que é capaz de produzir os mesmos símbolos ou
muito similares, em todos os tempos e todos os lugares" (Jung, 1973:100). Afirma
que, embora os mandalas muitas vezes expressem desordem ou conflito, sempre
expressam também um princípio de ordem a partir da desordem, do caos que é o
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inconsciente. Representam sempre intenção de reordenação interior e busca da tota-


lidade da psique.
Por isso considera que mandalas de pacientes também são instrumentos de
expressão de intenções, veículos para a realização de uma experiência interior. Um
excelente exemplo desta função dos mandalas são os inseridos em tradições, como é
o caso dos yantras hindus (Khanna, 1979), exemplificado acima na figura 2.
Yantras são símbolos sagrados na forma de diagramas geométricos considera-
dos instrumentos auxiliares de práticas meditativas ou utilizados em rituais religio-
sos. Embora seu uso seja muito antigo na índia, onde há painéis com desenhos
geométricos datados de 3000 a.C., foi com o tantrismo (700-1200 d.C.), quando os
símbolos foram intensamente introduzidos em práticas rituais, que se deu o uso e a
criação de uma grande variedade de yantras.
Os yantras consistem sempre em uma figura geométrica que se desenvolve a
partir de um centro, em estágios, até completar sua expansão. A partir do centro
desenvolvem-se as diferentes figuras geométricas com base nas formas primordiais:
o ponto, o triângulo, o círculo e o quadrado. O triângulo é símbolo do espaço funda-
mental manifestado, já que é a primeira figura fechada com linhas possível de ser
construída. Com a ponta para baixo, simboliza o princípio de manifestação femini-
no, associado à matéria ou à natureza, enquanto o triângulo para cima representa o
princípio masculino, associado ao espírito.
Os círculos concêntricos representam os movimentos de expansão e contração,
assim como o pulsar cósmico e o tempo cíclico. Os triângulos, símbolos básicos,
podem ser combinados em uma estrela de seis pontas, simbolizando a união entre
opostos. O quadrado, figura de ordem e perfeição, é receptáculo e base de todo
universo manifestado, representando a totalidade do espaço com suas direções opos-
tas, as quatro maneiras de acessar o centro, de entrar no espaço/tempo sagrados. Os
quadrados são associados para formar o oito, símbolo do infinito, do incomensurá-
vel, enquanto o pentágono simboliza a organização do espaço mundano, o poder
criativo do homem.
No contexto do hinduísmo, o yantra tem como fundamento a unidade entre o
micro e o macrocosmos e por isso são considerados tanto uma representação espa-
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dal de uma cosmogonia quanto uma representação de um processo psíquico de


integração da consciência. São, portanto, símbolos geométricos ao mesmo tempo
cósmicos e psíquicos. O centro, por exemplo, é tanto símbolo da unidade primordial
do Universo manifestado como o centro psíquico do praticante. O yantra como um
todo simboliza um exercício de união entre estes dois princípios.
O estudo dos yantras é bastante relevante porque nele vemos claramente como
conteúdos simbólicos se constróem na atribuição de significados às formas geomé-
tricas, que são interpretadas no contexto específico de uma tradição.
Já Eliade (1965), analisando o conjunto das representações simbólicas geomé-
tricas de um ponto de vista antropológico, ressalta não os elementos destas repre-
sentações, mas a concepção de espaço que nelas está presente. Considera haver uma
diferença básica na concepção e representação do espaço para o homem das socie-
dades arcaicas ou tradicionais e para o homem das sociedades pós-industriais. Para o
homem arcaico, o espaço não é homogêneo, mas possui pontos de descontinuidade,
de ruptura. Esta ruptura constitui um ponto fixo, um eixo central a partir do qual
nasce a diferenciação, as diferentes direções do espaço básico. Toda criação se faz
devido a uma descontinuidade no espaço, que cria um ponto fixo — o centro dos
mandalas — ou então simbolizado através de um marco ou um pilar presente em
todos os rituais de consagração da terra onde será edificada uma moradia, uma cida-
de ou um templo.
Comenta que a visão de mundo nas sociedades tradicionais, independentemen-
te das diferenças culturais ou de contextos históricos precisos, se baseia na diferen-
ciação entre cosmos e caos. O cosmos refere-se ao espaço vivido, enquanto o caos é
o resto do mundo, repleto de estranhos e demônios que ameaçam constantemente a
ordem interna. Mas, para que o espaço vivido seja "cosmos", ou seja, esteja de acor-
do com a ordem do todo, é necessário sacralizá-lo, transformar simbolicamente o
espaço caótico. Seria esta, portanto, a prática de mandala.
Considera ainda que o universo profano, desenvolvimento recente na história
da humanidade, é um mundo dessacralizado. O homem profano nega a existência
do sagrado, não aceita outro modelo além do humano. Para ele, o sagrado constitui
um obstáculo no seu esforço de compreender o mundo e dominar a natureza. Para
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a experiência profana, o espaço é homogêneo e neutro, embora o homem moderno


continue procurando situações que lhe propiciem a experiência de saída do tempo e
espaço ordinários, muitas vezes destituídas hoje de seu núcleo de significação.
Mas o homem continua fazendo um uso não intencional de símbolos, inclusive
no discurso menos simbólico, o científico, que, mesmo evitando toda manifestação
simbólica, sempre recorreu ao uso de analogias e metáforas que resistem com muita
dificuldade a uma interpretação simbólica, como é o caso do "caos" ou do big-bang.
E os símbolos continuam possuindo um potencial transformador que carrega a he-
rança cultural e existencial da humanidade. Isto é, continuam dizendo algo que tal-
vez o homem moderno tenha desaprendido a ouvir.

A dimensão do simbólico
o meditador diz ao apresentador de imagens: "O que você me
esconde ao mostrar essa imagem? Quem mostra não demons-
tra. Quem demonstra repugna mostrar".
Mais brilhante é a imagem, mais perturbadora é sua ambigüida-
de. Pois ela é a ambigüidade das profundezas.
As pessoas honestas querem que a imagem seja superficial e
efêmera. Uma água que corre sobre uma areia imóvel, uma água
que em sua corrente reflete um céu distante... Mas o céu e a
terra, os dois, dão à imagem sua verticalidade. Tudo o que sobe
encerra as forças da profundeza.
G. Bachelard

Assim como Eliade, diversos outros autores têm se dedicado a restituir o papel
do símbolo, sua função no imaginário ou sua importância enquanto manifestação
cultural e psicológica característica do ser humano.
Embora haja uma certa confusão entre diferentes áreas do conhecimento em
relação aos termos signo, símbolo e sinal, parece haver certa concordância quanto à
diferenciação entre sinal e símbolo. Durand (1988) comenta que todo símbolo é
primeiro um signo, um sinal, pois possibilita uma economia de informação, mas
ultrapassa o signo porque é o próprio sentido incorporado. Enquanto o signo reme-
te a algo outro, que está fora, o símbolo é "centrípeto", remete sempre a si mesmo.
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por isso uma de suas principais características é a redundância (Durand, 1988:17).


Assim como o sinal, o símbolo refere-se sempre a algo que está ausente, mas, en-
quanto o significado do sinal pode ser facilmente identificado, o significado do sím-
bolo é sempre inacessível, refere-se a algo abstrato que foge à conceituação.
Durand (1988) comenta ainda que o símbolo é abstrato e aberto, por isso pode
ter vários significados, relacionados através de uma analogia. Pelo fato de ser
polissêmico, o símbolo nunca pode ser definido e exige sempre uma interpretação,
uma hermenêutica, o que constitui sua riqueza em contraposição à objetividade do
conceito. Por isso a linguagem simbólica, em oposição à conceituai, é ao mesmo
tempo subjetiva e objetiva, baseada em valores.
Vimos a grande diversidade de formas de mandalas, assim como suas caracte-
rísticas comuns, a expressão de sua redundância, um núcleo significado/significante
comum. No caso do hinduísmo, mandala seria a representação de uma cosmogonia
que se baseia a relação entre o externo e o interno, entre existência real e existência
cósmica, entre sujeito e mundo. No contexto da psicologia junguiana, mandala re-
presenta um momento no processo de individuação, de integração com o self Já
para Eliade, os mandalas representam o espaço sagrado, são a manifestação simbó-
lica de um motivo antropológico fundamental, o centro do mundo.
Portanto, em diferentes sistemas interpretativos, mandala é sempre uma repre-
sentação do espaço básico ou arquetípico organizado através de um princípio de
ordenação — e a geometria dinâmica que daí resulta — a partir de um centro. E, de
modo geral, representa sempre a tentativa de resolver um paradoxo: o espaço que é
ao mesmo tempo único, dual e múltiplo.
Além disso, assim como todo símbolo, vimos como os mandalas são instrumen-
tos mediadores, uma ponte entre o macro e o micro cosmos, um símbolo de totalidade
e transcendência. E o espaço é sempre o espaço simbólico, portanto espaço vivido, em
contraposição ao espaço observado da geometria ou o espaço conceituai da ciência.
Durand analisa como o universo simbólico foi sendo descartado na cultura
ocidental, principalmente a partir de Descartes, quando a imaginação, assim como a
sensação, foram progressivamente rejeitadas, consideradas fontes de erros. Evitan-
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do o universo sensível e eliminando a essência do simbólico, a imagem foi sendo


relegada ao artista que, por sua vez, perde gradativamente seu valor social.
E sugere, tendo como base a função de equilibração antropológica própria do
símbolo, a instauração de uma "antropologia do imaginário" que restabeleça a dinâ-
mica genérica do símbolo, propicie uma classificação do conteúdo do imaginário e
ainda resulte em uma metodologia e uma ética (Durand, 1984).
Já Barbier (1994), considerando o simbólico parte do imaginário, analisa os
dois modos de conhecimento, o simbólico e o conceituai, ou, mais genericamente, o
imaginário e o racional. Considera que sempre houve uma alternância entre ambos
em diferentes momentos históricos e situa inicialmente o empobrecimento da fun-
ção imaginativa no que denomina a "potencialização da função imaginante", em
contraposição à "atualização da função racional do ser humano", a partir dos filóso-
fos gregos. Comenta como o imaginário resiste ainda por muitos séculos ao pensa-
mento racional, em parte devido à influência religiosa do cristianismo no Ocidente.
A Idade Média viverá o dilema entre a religião revelada e argumentação racional, e
somente com o Renascimento surge o imperativo do pensamento rigoroso, apropri-
ado aos fenômenos, daí a necessidade de um método. Descartes será reconhecido
posteriormente como o marco da negação da função imaginativa como modo de
pensamento, caminho que será percorrido nos séculos seguintes pela ciência.
Barbier (1994) analisa também movimentos de restauração do papel do imagi-
nário na arte e na literatura e mesmo na própria ciência. Nesse contexto, cita Bachelard
que, preocupado tanto com a ciência quanto com a criação literária, analisou diver-
sas imagens recorrentes na poesia, imagens do espaço, do sonho, do devaneio, assim
como imagens relativas ao simbolismo dos quatro elementos.
Para Bachelard, a ciência e a poesia, o conceito e a imagem, pertencem a dois
mundos inconciliáveis que resultam de dois tipos de atividades, a diurna e a noturna.
Durante sua atividade diurna, o homem constrói o real através do pensamento cien-
tífico e, em sua atividade noturna, o homem sonha o imaginário. Embora considere-
as inconciliáveis, Bachelard identifica em ambas uma mesma dinâmica dialética, um
movimento de luta entre contrários, comum à criação artística e à produção científi-
ca (Bachelard, 1993).
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Afirma que, na ciência, este movimento dialético se dá pela descontinuidade do


processo de construção do conhecimento, movido por tensões inerentes ao esforço
de ultrapassar obstáculos. Na poética, a dialética está presente no movimento pró-
prio à ambivalência das imagens, à polissemia da linguagem, à dinâmica criadora do
imaginário. Ambas as atividades têm em comum a necessidade de ultrapassar o saber
absoluto, seja no estabelecimento de uma nova racionalidade — sempre provisória -
no universo da ciência, seja através do pleno restabelecimento da função simbólica
enquanto atividade arquetípica (Bachelard, 1949).
Analisando diversos movimentos de recuperação do símbolo, Barbier (1994) con-
sidera que o imaginário convive hoje em certo equilíbrio com o pensamento conceituai,
graças a todos os esforços transdisciplinares que, por diversos caminhos, procuram
reestabelecer a importância e a função do símbolo ou ainda, indo além de Bachelard,
que tentam associar o pensamento simbólico com o pensamento conceituai.
Um belo exemplo deste esforço é a complexidade de Edgar Morin.

No reino da complexidade
Bachelard, em uma reflexão sobre a natureza do espírito cienti^fico, já afirma
que "na realidade, não há fenômenos simples, o fenômeno é um tecido de relações"
(Bachelard, 1985:130). Procura ressaltar a tendência à simplificação característica do
pensamento cienti'fico, que busca as leis gerais e ignora as distorções ou os erros,
assim como a complexidade que se impõe no desenvolvimento das ciências quando
a lei simples e a matemática simples precisam ser corrigidas por um processo de
retificação do conhecimento anterior.
Morin, inspirado nesta dinâmica entre o simples e o complexo sugerida por
Bachelard, comenta que o princípio de simplificação, baseado na redução, na gene-
ralização e na disjunção, característico da inteligibilidade do conhecimento científico
clássico (Morin, 1986), reinou no universo dos saberes até o final do século XIX. No
entanto, a irrupção da desordem, do aleatório e a inserção do sujeito observador
passaram a se mostrar, principalmente a partir do im^cio do século XX, cada vez mais
presentes no universo conceituai da ciência, questionando o que denominou de "ra-
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zão fechada". E sugere que a complexidade se tome uma maneira de pensar, um


outro princípio de inteligibilidade.
Para elaborar esta inteligibilidade complexa, Morin observa que a complexidade
permeia todos os domínios: a natureza, a vida, a mente, o homem e a cultura. E revela
um jogo comum aos diferentes fenômenos: a relação entre ordem e desordem no
domínio da natureza; a auto-organização da vida e a morte no domínio biológico; a
objetividade e a subjetividade no domínio cognitivo. Sugere ainda que, em contraposição
— e complementaridade — à busca da ordem, encontram-se a dualidade, a incerteza e a
indeterminação nos diversos universos fenomenais, da natureza às culturas.
O ponto de vista da complexidade exige, portanto, serem considerados os diferen-
tes fenômenos, naturais, biológicos, cognitivos ou culturais, no que há de comum entre
eles, sua natureza complexa, isto é, ao mesmo tempo múltipla e interdependente. Na
tentativa de estabelecer estas interrelações, sugere diversas reintegrações como a cultura
no conhecimento da vida, a vida no conhecimento ou o sujeito no processo de conhecer.
Considera que, entre os diferentes fenômenos, não há linearidade nem causali-
dade simples, mas relações de interdependência entre princípios considerados
antagônicos para o pensamento simples, vistos, porém, como complementares se
adotarmos uma lógica complexa. Os mandalas dão-nos inúmeros exemplos de uma
"lógica complexa".
Quanto ao conhecimento na perspectiva da complexidade, Morin (1986) anali-
sa as múltiplas faces da cognição: o conhecer seria um processo biológico, mental,
psíquico e antropológico, ancorado no vivido, na existencialidade do ser. E conside-
ra que o conhecimento, pelo fato de estar enraizado nas atividades do ser humano,
que é biológico e cultural ao mesmo tempo, possui uma dualidade cognitiva básica.
Analisa como, em toda sociedade humana, sempre conviveram dois modos de conhe-
cimento e ação, que se desenvolveram em duas formas de pensamento antagônicas
e complementares: o pensamento empírico/lógico/racional, particularmente relaci-
onado com o desenvolvimento científico e tecnológico; e o pensamento simbólico/
mitológico/mágico, relacionado com a arte, o imaginário, os ritos, as crenças e o
pensamento religioso.
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Considera que o pensamento simbólico/mítico/mágico constitui a comple-


mentaridade do pensamento racional, correspondendo a duas faces características
do ser humano, que, por sua vez, correspondem aos princípios de caos e cosmos no
universo físico. Enquanto o princípio do logos refere-se ao discurso racional, lógico
e objetivo, o princípio do mhytos constitui um discurso da consciência subjetiva que
tece símbolos na forma de representações pictóricas, de uma narrativa ou de um
modo de ação.
Morin (1986, 1991) sugere, então, uma origem conjunta, em um círculo
generativo entre os dois modos de pensamento que, embora nas sociedades moder-
nas pareçam dissociados, permanecem intrinsicamente interligados nas mais diver-
sas formas de manifestação cultural, inclusive na ciência. Sua complementaridade é
uma relação complexa, um necessita do outro: "nós temos uma necessidade impera-
tiva da correção empírico/lógica/racional sobre todas nossas atividades mentais,
mas nós também temos uma necessidade vital do estofo imaginário/simbólico que
co-tece nossa realidade" (Morin, 1986:176).
Desta unidualidade do pensamento, Morin sugere não a necessidade de um pen-
samento unificador que resolva definitivamente esta dualidade, mas de um pensamen-
to complexo que possa dialogar com ambos, que exiba sua complementaridade e auto-
nomia relativas, de modo que um ajude a compreender o outro e não a destruí-lo.
Todas essas dimensões, a física, a biológica e psíquica, têm em comum a dinâ-
mica complexa básica da physis, a tetralogia ordem/desordem/interação/organiza-
ção (Morin, 1977), que ele considera indispensável para compreensão da emergência
do real. Assim como não podemos dissociar as faces sapiens e demens do ser huma-
no, o cosmos também tem uma face demens, que se refere ao caos, à turbulência,
aos cataclismas, e uma face sapiens, que se refere à ordem, à lei, à organização: "A
natureza é o que religa, articula, faz comunicar em profundidade o antropológico ao
biológico e ao físico. Devemos portanto reencontrar a natureza para reencontrar
nossa natureza" (Morin, 1977:373).
Vimos a articulação ordem/desordem/organização expressa simbolicamente
nos mandalas, que podem ser interpretados tanto como a expressão da dinâmica
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cósmica, quanto da dinâmica biológica ou psíquica. Daí sua natureza ao mesmo


tempo individual, coletiva, transcendente e transcultural.
Portanto, do ponto de vista da complexidade, o conhecimento simbólico seria
um modo de conhecimento que expressa a dinâmica básica comum ao cosmos, ao
ser humano e às sociedades. Nesse sentido, mandala poderia ser considerado a expe-
riência/ expressão da complexidade em representação pictórica.

Geometria?
Resta uma questão: por que o caráter geométrico de tantas representações sim-
bólicas? O platonismo é uma resposta antiga a esta pergunta, ainda muito viva hoje,
principalmente entre os matemáticos. Como comenta Penrose (1991), que tende ao
platonismo, esta concepção foi reforçada pelo estudo da geometria dos fractais, em
que, através de processos matemáticos recursivos, aplicados em domínios que apre-
sentam irregularidades, emerge uma nova ordem que insiste em ser geométrica e,
curiosamente, muito próxima do que nos parece ser a geometria da natureza. E
comenta não ter sido esta geometria inventada: ela é instrínseca pelo menos a um
certo tipo de fenômeno, e pode portanto sempre ser descoberta.
Nesse caso, a realidade poderia ser inventada, a menos de uma geometria...

Abstract: This essay consists on a study of one kind of geometrical representatioriy intending to give an
example of the simholical knoivledge. The main aim of this article is to show how the symhol^ espeáallj in
the case of geometrical representations, can be considered as an expression of the complexi^ of the human
heing and the human knowledge.
K e y w o r d s : Symholical knoivledge, geometrical representations^ complexity

Referências Bibliográficas

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1985.
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Dissertação de mestrado. Centro de Ciências da Educação, UFSC.
DURAND, G.'Lesstructures antropologiques de IHmaginaire. Paris: Dunod, 1984.
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O paradigma perdido: a condição humana. Lisboa: Europa-América, 1991.
O problema epistemológico da complexidade. Lisboa: Europa-América, 1996.
PENROSE, R. A mente nova do rei. Rio de Janeiro: Campus, 1991.
Human Adaptability Research Into The
Beginning of the Third Millennium*

Michael A. Littie and Ralph M. Garruto**

Resumo: Este artigo analisa brevemente a história do Projeto de Adaptabilidade Humana do Programa
Internaáonal de Biologia dos anos 1960 e 1970 e discute as perspectivas dos estudos sobre adapatabilidade
e biologia daspopulações humanaspara opróximo século, ¥oram enfatizadas áreas depesquisa consideradas
promissoras. O fato de não tratarmos de pesquisas sobre genética não se deve a uma falta de interesse, mas
é resultado do nosso foco sobre pesquisas não-genéticas.
Palavras-chave: Projeto de adaptabilidade humana, biologia, antropologia médica.

Since its inception as a field of research in the early 1960s, human adaptability has
had a dose identificatíon with human population biology, that is, a field drawing on
genetics, demography, environmental science, epidemiology, growth, nutrition, physio-
logy and the theoretical frameworks of biological anthropology Within biological
anthropology, there are two fundamental ideas that hold the science together and
make its contributions to human population biology truly unique. The first is that
evolutionary principies can be used to explain a large proportion of the variation
that we see in human populations, both today and in the past. Hence, evolution, as it
is for ali of the biological sciences, is the most powerful explanatory paradigm that
we employ The second is that humans cannot be understood fully except in the

* Paper apresentado no International Congress of Anthropological and Ethnological Sciences,


Williambsburg, Virgínia, July 1998
** Department of Antropology, Binghamton University
Little, Michael A. and Garruto, Ralph M..Imaginário - USP, n. 5, p. 153-173, 1999.-|73

context of their behavior and their biology, which often are so tightly interwoven
that separation is impossible. This principie suggests that attempts to understand
humans comprehensively are futile except in a biobehavioral framework. Concepts
of "adaptatíon" and "adaptability" are central to both of these theoretical frame-
works, since natural selection is the process of preservation of favorable variations
or adaptations, and human adaptations are often biobehavioral in their character.
The objective of this paper is to trace the history and development of research
in human adaptability, and to offer some suggestions for productive lines of re-
search into the early 21'' century Predictions beyond a decade or two are likely to be
highly speculative, so ours will be limited to tentative forays into the first quarter of
the new century. A recent edited work by Ulijaszek & Huss-Ashmore (1997) is de-
voted in its entirety to the topic of human adaptability.

Human Adaptability and Its History in the IBP(lnternacional Biological


Programme)
A literal definition of human adaptability might be ''the limits or range of ability
of humans to adapt". Actually, as with variation and variability as a defining term for
a category of studies began with the onset of the International Biological Programme
(IBP) (Lasker, 1969; Weiner, 1965, 1977). The IBP was a world-wide research pro-
gram organized by the International Council of Scientific Unions (ICSU), in which
the Human Adaptability (HA) Project was initiated and defined at the Paris Assem-
bly in July 1964. In the words of Joseph S. Weiner (1977: 1), its Human Adaptability
Convener from the University of London: ''Ecological understanding was in fact
what the IBP set out in 1964 to achieve". Global ecological problems, in which
humans played central roles, were to be the primary focus of the research, and
approaches to this research were to be International, multidisciplinary, and compara-
tive in scope.
The Human Adaptability Program was identified as "... a world wide ecological
programme concerned with human physiological, developmental, morphological and
genetic adaptability..(Weiner, 1977: 2). Four main categories of HA research were
defined: (1) Extensive surveys on a world-wide basis (principally genetic andgrowth
Little, Michael A. and Garruto, Ralph M. . Imaginário - USP, n. 5, p. 153-173, 1999. -| 73

surveys); (2) Intensiva, multidisciplinaty regional studies (with emphases on envi-


ronmental physiology, genetic constitutíon, nutrition, growth and physique, and work
physiology); (3) Special invesügatíons on selected populations (with particular con-
cerns about fitness, socio-demographic influences on genetic structure, disease as a
selective agent, special nutritional problem of interest to FAO, biological factors in
population dynamics); and (4) Medicai geographical surveys related to current World
Health Organization (WHO) projects (Weiner, 1965, 1967).
In the original HA proposals, the social sciences were not represented by other
than the planned studies of population, demography, physical activity and subsis-
tence. Margaret Mead who was a representative at the 1964 Paris meeting argued for
a strong program of social science to be substituted for the existing HA proposals,
but her argument was rejected (Weiner, 1977: 5). Since the IBP had originally been
conceived of by the International Union of Biological Sciences (lUBS), there was
probably considerable resistance to the introduction of extensive social science re-
search into the IBP. Even today, the International Council of Scientific Unions (ICSU)
remains leery of expansion to include most of the social sciences. It is not the case,
however, as some have suggested, that the HA Programme did not consider
behaviour or culture..(Ulijazsek, 1997a: 14). However, the participation of social
and psychological scientists was minor in proportion to the participation of human
biologists. Another reason for the lack of participation by sociocultural anthropolo-
gists in the HA research was the long-standing preference by sociocultural anthro-
pologists for single-investigator field work, as well as their unfamiliarity with team or
coUaborative research.
An International HA conference, joindy sponsored by the Wenner-Gren Foun-
dations for Anthropological Research and the IBP, was held at Burg Wartenstein in
Áustria shordy after the Paris Assembly in 1964 (Baker and Weiner, 1967). This
conference during the planning phase of the IBP (1964-1967) was designed to out-
line the scope of the HA research to be conducted during the operational phase of
the Programme (1967 to 1972). The synthesis represented by those with interests in
environmental and work physiology; body size, morphology and growth; and popu-
lation genetics. These interests of International scientists became the dominant themes
Little, Michael A. and Garruto, Ralph M..Imaginário - USP, n. 5, p. 153-173, 1999.-|73

for the comparative surveys and intensive multidisciplinary projects that defined the
HA research into the 1970s (Weiner, 1965; Baker, 1965). What was different about
several of the approaches, however, when contrasted with the past, were the inter-
ests in population, variation, the interrelatedness of variables, and the need to stan-
dardize methods and measurement procedures (Harrison, 1997; Ulijazsek, 1997b).
Several handbooks of recommended methods were published to provide guidelines
for investigators and to facilitate the coUection of comparable data for later com-
parative synthesis (Weiner and Lourie 1969, 1981; Yoshimura and Weiner, 1966).
In the United States, the Human Adaptability Coordinating Office was estab-
lished in 1971 with National Science Foundation support (Hanna et al., 1972). The
principal functions of the HA Coordinating Office were to promote the IBP and
facilitate communication among the U.S. projects Q:iuman AdaptahilityNemletter), to
maintain liaison between the HA Office and the Environmental Management Coor-
dinating Office (primary ecosystems studies) of the U.S. IBP, and to provide for HA
communication and exchange at the International levei. In the U.S., there were sev-
eral large-scale research projects (International Stydy of Circumpolar Peoples - Aleuts
[WS. Laughlin] and Eskimos [F.A. Milan]; Population Genetics of the American
Indian - Yanomama, Makiritare, Warao and Cayapo Q. V. Neel]; Biology of Human
Populations at High Altitude — Andean natives [P T. Baker]) and two coordinated
projects (Nutritional Adaptation to the environment; Biosocial Adaptation of Mi-
grant and Urban People). The basic themes of the WS. HA research were centered
on ''human-environment interactions", including ''environmental stress", and ''hu-
mans in cultural transition" (migration and acculturation). With reference to several
of the large-scale research projects conducted as a part of the U.S. HA Program,
sociocultural anthropology was an important part of the Alaskan Eskimo, Andean
and Yanomama projects.
In addition to the many hundreds of scientific works produced by American
scientists and the thousands of works published internationally under the HA im-
primatur (CoUins and Weiner, 1977), the HA research established high standards of
scientific research and vaUdated the contributions of human population biology
within the International scientific community. The HA research also revitalized the
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field of human population biology. Systematic research designs became the norm,
modelling was introduced as a way to interpret and understand large sets of data, the
concept of "synthesis" of comparative and multidisciplinary data was applied, and a
new era of international cooperation was initiated in comparative studies of human
populatíons (Weiner, 1977). As Harrison (1997) noted, the HA Program in the 1960s
was Hke a breath of fresh scientific air to a field of physical anthropology that had
been moribund and sterile through much of the first half of the 20^ century.
Although the label ''human adaptability" has persisted, the kinds of research
done under this rubric has been dramatically transformed since the mid-1970s. Dur-
ing the IBP, HA research was more narrowly conceived than it is today. Climatic and
exercise physiology, survey of genetic polymorphisms, and surveys of child growth,
adult anthropometrics and body composition tended to predominate. During the
present, the field of "human adaptability" within the larger area of ''human popula-
tion biology" has increased in numbers of practitioners, studies have become more
biobehavioral, hypothesis testing and rigor of scientific design have become com-
monplace, international cooperation has continued, and multidiscipHnary studies of
single, non-Western populatíons have persisted, at least into the 1980s and 1990s
(Litde et ai., 1991). We share Harrison's (1997:25) view when he stated that "Not-
withstanding its limitatíons it (the HA research of the IBP) played a major part in
convertíng the old defunct physical anthropology into the vibrant and excitíng com-
ponent of biological anthropology as it is today."

The Period Foilowing the IBP


The period between the end of the Human Adaptability Program of the IBP in
1974/75 and the present spans nearly two and a half decades. This period is charac-
terized by the contínuatíon of several trends initíated during the IBP and many new
research directíons, some of which arose from IBP/HA beginnings.
There was concern at the last IBP General Assembly in Seattíe in September,
1972 that the ongoing studies of the HA Program and the spirit of internatíonal
research be transfered to appropriate new internatíonal programs (Weiner, 1977:
21). Three programs were considered: ICSU's Scientífic Committee on Problems of
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the Environment (SCOPE), Unesco's Man and the Biosphere Programme (MAB),
and the UN's United Nations Environmental Programme (UNEP). Of the three
programs, the Man and the Biosphere Programme was most successful in incorpo-
rating human studies into the program. The MAB Program emphasized interactions
between human activities and ''natural" systems and encouraged dose research col-
laboration between social and natural scientistis and decision makers. Despite the
withdrawal of the United States from Unesco in the 1980s, the US National Com-
mittee for MAB maintained affiliation with MAB/Unesco in Paris. The US Com-
mittee also initiated the practice of having equal numbers of social and natural sci-
entists on their coordinating committees. There were two multidisciplinary projects
that were affiliated with MAB: The Multinational Andean Genetic and Health Project
(SchuU and Rothhammer, 1990) and the Samoan Migrant Project (Baker et ai., 1986).
Two other multidisciplinary projects, initiated in the late 1970s, were not connected
with MAB: the South Turkana Ecosystem Project (Litde and Leslie, in press) and the
Ituri Forest Project (Bailley and Peacock, 1988). Nevertheless, both projects were con-
ducted in spirit of integrated science promoted by HA Program within the IBP.
One of the major interests in the HA Program during the 1960s and early
1970s was environmental and work physiology. At least a third of the 1964 Burg
Wartenstein Conference participants were interested in human physiology from
population perspectives rather than from the levei of physiological mechanisms (Baker
and Weiner, 1967). Interests in human physiology persisted into the mid-to late—
1970s, but practically disappeared in the 1980s and 1990s (Harrison, 1997). The lack
of interest in human adaptation of physiological systems from population approaches,
particularly in non-Western populations, is reflected in the limited treatment of ad-
aptation in the new edition of the Handbook of Physiology (Fregly and Blatteis,
1996) in contrast with the earlier edition (Dill et al., 1964).
Another area that was dramaticaUy transformed foUowing the IBP was popula-
tion genetics, with the development of molecular genetics and the new laboratory
techniques for DNA analysis. Harrison (1997) noted that much of the optimism
during the IBP associated with uncovering natural selection for specific genetic poly-
morphisms was not justified by the research, despite a considerable amount of data
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that had been accumulated. What is likely to be the final synthesis of the early stud-
ies of genetic polymorphisms is the compendium of Cavalli-Sforza et al. (1994).
Demography was of interest during the IBP, but there were very few human
biologists who were well trained in the field, and very few social demographers who,
although they were well trained, were able to participate in the HA research. During
the 1960s, the majority of demographers were trained in sociology and worked with
large-scale Western populations. It was only in the 1960s and 1970s that anthropolo-
gists and human biologists began to be trained in the sophisticated methods of
demography. Interests in demography were compatible with evolutionary and eco-
logical approaches that geneticists, anthropologists and human biologists were tak-
ing in their own research directions. Within demographic perspectives, studies of
fertility were of particular interest to human biologists because of the link between
differential fertility, selection and evolution (Wood, 1994). Also, approaches to popu-
lation comparison by use of migrants was an important research design during the
IBP and has continued to be up to the present. Research designs by Harrison (1967)
and Baker (1976, 1977) were important to be altitude adaptation studies, and later
studies in the Pacific used migrants for studies of modernization and health change
(Baker et al., 1986; Prior et al., 1977).
Work in infant, child and adolescent growth continued unabated after the IBP,
but studies shifted somewhat from survey and comparison to problem-oriented re-
search. New research was conducted on growth regulation, particularly endocrine
regulation, but also with attention directed to nutritional, immunological and neuro-
logical influences. Other areas of research that have proliferated throughout the
1980s and 1990s are in studies of toxic effects on growth, particularly in the urban
environment (Schell, 1991,1993), breastfeeding and both maternal and child health
and reproduction (Stuart-Macadam and Dettwyler, 1995; Vitzthum, 1994; Vitzthum
and Aguayo, 1998), the evolution of growth processes (Bogin, 1997), and saltatory
growth processes (Lampl et al., 1992; Lampl, 1993). Much new research has also
arisen at the extremes of the life span in areas of prenatal growth and in aging.
Nutrition and disease influences on child growth and on health of adults were
studied as a part of the IBP, but most of the research on diet and nutrition centered
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on comparatíve human energy and protein intake surveys. In the years foUowing the
human adaptability work, scientific interests in nutrition in anthropology flourished
and studies focused on dietary adequacy and the interacüons between diet, infec-
tious disease and normal growth processes (Green and Johnston, 1980; Harrison
and Waterlow, 1990). Many studies of nutritional effects on growth were conducted
in light of population increases and deteriorating nutritional status and health in the
Third World within the past few decades.
Acculturation, social change and modernization influences on human health
became topics that were increasingly pursued after the IBP. The social climate under
which human biology research was conducted was changing and human population
surveys and more fundamental science was being superseded by science with some-
what more applied aspects. Thoma's restudy of the Andean community of Nufioa
in the context of health and poverty is a good example of changing research per-
spectives (Thomas, 1997; Thomas et al., 1988). Some of the same changes were
occurring in sociocultural and development anthropology, as well (Cernea, 1985;
Chambers, 1987; Horowitz 1991). By the late 1980s, the purpose of the Unesco
Man and the Biosphere Program in the U.S was identified as f o s t e r i n g . . harmoni-
ous relationships between humans and the biosphere through an International pro-
gram of policy-relevant research which integrates the social, physical, and biological
sciences to address actual problems" (MAB, 1990). At the same time, the National
Science Foundation (NSF), which continued to support fundamental science be-
came receptive to multi-year funding, which provided more secure support for long-
range research.
There are many other general trends not covered here, but one general trend is
particularly worthy of note. Field workers in recent years have been more sensitive
to presence of variation and less concerned with typical or modal values in human
behavior and biology. For example, seasonality in tropical and temperate areas pro-
duces dramatic variation in physical activity, diet, infectious disease, reproduction,
and other processes (Huss-Ashmore et al., 1988; Ulijazsek and Strickland, 1993).
Seasonality is but one temporal dimension in an array of dimensions that produce
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variaüon. Apart from seasonality, dietary intakes and physical activity show remark-
able variatíon, particularly during extremes of resource availability.

Human Population Biology Research Áreas into the 21®^ Century


Predictions may be hopeful, prophetic, optimistic, self-serving, well-thought
out, or simply guesswork. Ours probably reflect a combination of these processes.
Fundamentally, research lines in the century should contribute to the principal
objectives of human adaptability or human population biology research, and that is:
to understand the extent and basis for biobehavioral variation at the population,
community, family, gender, age and individual leveis of members of our species. An
additional objetive might be to attempt to predict the limits of our adaptability based
on our Culture and our existing biological variation.
Some of the trends associated with the past century suggest research needs
that are within the realm of human population biology One way to structure these
trends is under the headings of populatiotiy environmenty and health. Under the population
heading, for example: (1) global human population growth is remarkable and prob-
ably out of control; (2) social and political organization is becoming increasingly
complex and unmanageable (ethnicity and cities); (3) an aging population will shift
the dependency ratio in alarming ways. Under environment (4) wealth, resources and
access to the fruits of technology are more unequally distributed than ever before;
(5) plant and animal biodiversity is in dramatic decline (global and local instability);
(6) global climate change may require population redistribution (loss of land or land
productivity) and may produce new epidemiological conditions. Under healtk (7)
crowding, poverty and associated stresses produce a biobehavioral and psycho-so-
cial environment that is not healthy (high morbidity and mortality); (8) increasing
human population numbers and density will change conditions for the spread of
epidemic disease; (9) health care costs in Western nations are extraordinarily high
and require a large fraction of national budgets.
What research topics in human population biology are particularly germane to
these general global problems? That is, what research topics can contribute to inde-
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pendent, basic science, while at the same time, advancing, in a small way, soluctions
to serious world problems? Here are several areas in which human population biolo-
gists can continue to make special contributions into the 21'' century.

Ecology of Reprodution
Evidence is mounting that reproductive function in humans is strongly influ-
enced by environmental conditions that influence, in turn, not only behavior, but
also the reproductive, neurological, and perhaps immunological components of the
endocrine system. The concept of "reproductive ecology" underlines the impor-
tance of the environment in controlling reprodutive function in both women and
men (EUison, 1991; Campbell and Leslie, 1995; Vitzthum, 1994; Wood, 1994). There
are relationships between food resources, dietary energy intake, physical activity,
seasonality, body composition, breastfeeding and ovarian function that structure fe-
cundity and fertility in humans populations. A comprehensive knowledge of these
relationships is essential in light of human population growth and global environ-
mental change.

The Lifespan Approach


The lifespan approach to understanding human health and adaptability applies
a developmental perspective to exploration of health outcomes (Leidy, 1996; Henry
and Ulijazsek, 1996). There is a strong emphasis in this approach on ontogenetic
history, lifestyle and life-long environmental influences on health. This approach is
consistent with long-standing interests in growth and development that date back to
Franz Boas's work in the early part of the 20^ century, and traditions that have
continued in biological anthropology up to the present. Research over the human
lifespan incorporates not only childhood, adolescence and adulthood, but also the
prenatal period and the period of aging. Leidy (1996) has argued "... that the model
of linear trajectories stretching across the lifespan, rather than Hfe cycle stages divid-
ing the lifespan into parts, offers an effective, problem solving model for the stydy
of human biology". This is not recording of simple health histories, as physicians
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do, but rather is an analytical procedure to identify causes of illness from early be-
ginnings. If we can identify high risk environments at crucial periods of our devel-
opment, long-term health prospects can be improved and the economic burden of
health care reduced.
Endocrine and Immune Relationships to Health
A category of research connected to lifespan approaches, studies endocrine
and immune relationships to health center on the associations of lifestyle, psychoso-
cial context, and endocrine and immune responses to stress. The approach is
biobehavioral, where the behavioral environment is analyzed in considerable detail
and biological stress indicators such as catecholamines, blood pressure and immune
responses are employed to measure the extent of the psychosocial stresses (James
and Brown, 1997; Panter-Brick and Worthman, 1998). The work has been applied to
migrant peoples, those undergoing acculturation and modernization, and occupa-
tional groups who are thought to be exposed to high leveis of stress (Dressler, 1995;
Harrison 199?; Pearson et ai., 1993).

Human Biology of Poverty


Poverty can be defined in many ways. There is some agreement that lack of
self-determination and control over one's life, limited power to improve conditions,
and limited access to adequate food, shelter, sanitation, recreation and social interac-
tion are defining properties of impoverishment. Not ali Third World societies are
impoverished, but many are, and the circumstances of their poverty must be under-
stood. For example, in East African pastoralists who lose their livestock and move
to famine camps, prolonged residence contributes to the loss of herding skills (cul-
ture) such that when families are restocked with animais, the likelihood of continued
success is very low (Campbell et al., in press). In other cases of Third World impov-
erishment, externai forces contribute to loss of lands, and inadequate diet and poor
health restrict economic productivity and entrench states of impoverishment (Tho-
mas, 1997; Strickland and Shetty, 1998).
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Human Well-Being and the Loss of Biodiversity


At present, we are in the midst of an "extinction crisis" of species throughout
the world that may rival some of the major extinction episodes of the geologic past
(Wilson, 1988; Ehrlic, 1988). The principal causes of biodiversity loss today are
human population expansion and habitat destruction from increased human exploi-
tation. There are many research programs throughout the world where biodiversity
losses are being monitored and studied. One major International program, that is
sponsored by a consortium of organizations including lUBS, ICSU and Unesco,
among others, is Diversitas: An International Vrogramme of biodiversity Science (Diversitas,
1996). Of the ten program elements, one is devoted to the "Human Dimensions of
Biodiversity." There are really two directions that human component of Diversitas
can take: first, studies can be conducted of anthropogenic impacts on biodiversity in
ali of their many dimensions; alternately, we can study the effects of losses in
biodiversity on human health and well-being, including nutrition, disease, deteriorat-
ing environments, and loss of resources. These studies, which demand the skills of
human population biologists, have environmental, health and population dimen-
sions and wiU contribute to both practical solutions for human problems and to
basic scientific inquiry

Emerging Infectíous Diseases


Today, there is a growing potential for rapid global dissemination of dangerous
pathogens emerging from diverse sources (Garruto, 1994). Guarding against these
emerging (and reemerging pathogens) is one of the most important goals of mod-
em human medicine. Recent discoveries of infectious agents caüsing new infectious
diseases in humans include LegioneUa causing Legionaire's disease, Borreüa causing
Lyme disease, hantaviruses causing hemorrrhagic fever with renal syndrome, hu-
man immunodeficiency virus causing AIDS, human papilloma virus causing cervi-
cal câncer, Ebola virus causing a very unusual form of hemorrhagic fever, and agents
causing latent infections. The latter group includes defective measles virus causing
subacute sclerosing panencephalitis, JC papovavirus causing progressing
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myeloleucodystrophy, human T-cell leukemia virus type 1 causing tropical spastic


paraparesis, prions causing Creutzfeldt-Jacob disease and mycobacterium causing
reemerging tuberculosis. The existence of such pathogens in nature and/or endemic
to isolated and modernizing human populations, are potentially harmfuU to ali of
humanity, and can result in large epidemics of fatal disorders. Concern should be
exercised each time a new previously unknow microorganism is discovered or and
obscure transmissible disease is observed in isolated human population groups. To
this end human population biology and biomedical anthropology can contribute to
this emerging research area into the century

Evolutionary Medicine and Health


It is a reasonable assumption and consistent with Darwinian theory that ali
forms of disease, whether infectious, hereditary, degenerative, or traumatic, are sub-
ject to the processes of natural selection and adaptation to the environment (Will-
iams and Nesse, 1991). This is has been best documented for infectious agent-host
relationships where interactive processes and competition produce an environment
of intense selection. The topic of ''Darwinian Medicine" has been championed by
George C. Williams and Randolph M. Nesse (Nesse and Williams, 1994), and other
scientists have been drawn into this pattern of thinking in evolutionary contexts. Of
particular interest to anthropologists are those presumed disorders that may reflect
modem life styles and ways of living that are counter to adaptations that evolved in
our species under different conditions. Some of these can be cited: The co-sleeping
mother and infant, who breastfeeds according to the infant's needs may reduce the
rick of sudden infant death syndrome (SIDS) (McKenna, 1996; Mckenna and Mosko,
1994), while dose maternal-infant contacts and breastfeeding during much of early
infancy may reduce prolonged crying bouts in infants that may lead to neglect and
even child abuse (Barr, 1990). Studies of feedingpractices, diet and nutrition (Nesse,
1990) are topics that have successfuUy applied evolutionary theory to explain pro-
cesses that affect human health.
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Antropology and Aging


"As we enter the 21'' century we can only imagine what a world of predomi-
nantly aged individuais would be like without major breakthroughs in resolving the
enormous social, economic, biomedical and quality of life issues that this segment
of society faces" (Crews and Garruto, 1994:436). Significant increases in life expect-
ancies, improved health care and life styles, and control of "garden variety" infec-
tious diseased have lead to dramatic increases world wide in the percentage of people
over age 60. Yet, with such a demographic shift in both modem and modernizing
societies comes a plethora of devastating later onset disorders (e. g., Alzheimer^s
disease, heart disease, câncer, osteoporosis) that affect almost every facet of human
health and well being, and with it an enormous challenge to deliver appropriate
health care and increase the quality of Ufe of this segment of the world's population.
Biological anthropologists are uniquely poised to expand their interest in this cross-
disciplinary area at both the individual and population levei.

Ahstract: This paper has briefly surveyed the history of the Human Adaptability Project of
the International Biological Program during the 1960s and 1970s, and discussed prospects
for continuing studies of human adaptability and human population biology into the be-
ginning of the century. Selected research areas were highlighted as particularly exciting
for future research. Our lack of treatment of genetic research should not be interpreted as
a lack of interest, but rather a reflection of our focus on non-genetic research directions.
Keywords: Project of Human Adaptability, biology. Medicai Anthropology.

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RESENHAS

Livro: As cidades imaginárias do Brasil


Autor: Johnni Langer
Edição: Secretaria de Cultura do Paraná, 1997.
Por Marionilde Brepohl de Magalhães*

O gosto pela aventura e pelo suspense é, segundo Hannah Arendt, um produto


cultural do século XIX. Este espírito manifesta-se no romance, que sucede ao dra-
ma, quando os homens se tornam cada vez mais pessimistas com relação à ação
pública e cada vez mais dependentes da "sorte", do destino. Desde então, ansiamos
pelo inusitado, para que o que não nos falta o desejo de aventura. Por isso, persona-
gens como Tarzã, Júlio Verne, Lawrence da Arábia, o menino Mogli e outros exer-
cem tanta atração em nossa cultura.
O livro As cidades imaginárias do Brasil, de Johnni Langer, aprofunda e detalha a
análise sobre o espírito aventureiro, para além da cultura contemporânea. Sem negar
que este é uma fuga do cotidiano em favor da glória e do enriquecimento fácil,
Langer persegue uma outra hipótese: a existência de um arquétipo que permeou
diversos momentos da história, com algumas variáveis segundo diferentes culturas.
Essas variáveis, no entanto, não impedem que nelas se identifique um mesmo senti-
mento, a busca pelo misterioso como lugar existencial da realização plena. Entre os
gregos, o mito da Idade de Ouro; entre os judeus e cristãos, o Éden ou o Paraíso
Perdido. Nestes lugares, os homens são regidos por um espaço diferenciado do nor-
mal, onde o fantástico está sempre presente. Segundo a imaginação que oscila em
diversas conjunturas, o fantástico pode ser encontrado no fundo dos mares, no cume
das montanhas, em ilhas (símbolo do isolamento) ou, ainda nas clareiras de florestas

' Doutora em História pela UNICAMP, professora do departamento de História da UFPR.


"188 Resenhas.

inóspitas. Hoje, lembra-nos Johnni Langer, estes lugares ganharam dimensões mais
alargadas: o espaço sideral dos ufólogos ou de cineastas apaixonados por vidas em
outros planetas. Lugares inatingíveis simbolizam, segundo o autor, a tênue fronteira
entre o conhecido e o desconhecido, vale dizer, o homem diante de seus próprios
limites; daí o fascínio e o medo.
Este fenômeno de longa duração adquire maior efervescência na Europa com
o descobrimento das Américas, o que é conhecido por quase todos como a busca do
mito do Eldorado, inspirado não apenas pelo encontro de ouro no México e no
Peru, mas também em outras regiões, como o Brasil, local analisado por Langer.
Este local despertou o desejo em inúmeros viajantes, navegadores comuns e intelec-
tuais europeus, de realizar investigações sobre a possível existência de cidades perdi-
das. Diversas foram as motivações: inicialmente, os interesses mercantilistas que,
afinal, eram o fator essencial para as explorações européias (1530-1590). Influencia-
dos pela descoberta de minas de ouro e prata, desejavam, para além do enriqueci-
mento, descobrir também o maravilhoso, a busca da felicidade eterna.
No século XIX, sob a influência do Romantismo e da recém-constituída ciência
arqueológica, dedicaram-se a pesquisas mais sistemáticas, num esforço para descobrir
um passado que favorecesse a imagem de um Brasil pré-histórico dotado de civilidade.
Pretendiam identificar a jovem nação com um passado mais glorioso do que aquele
construído a partir da cultura indígena, vista como bárbara, selvagem e inferior.
Para explicar a construção deste "passado", Langer recupera a imagem que os
europeus fizeram sobre o índio, tendo em vista as cidades perdidas: segundo eles, o
Brasil era habitado por três espécies de indígenas; uma raça degenerada, repulsiva e
canibal; índios dóceis e pobres, facilmente amansados; e finalmente, uma raça ro-
busta e clara, originária de sociedades civilizadas. Esta última irrigou o imaginário de
diversos estudiosos que afirmam serem os índios ''brancos" os verdadeiros funda-
dores da pátria.
No começo do século XX (de 1990 a 1950), além da Arqueologia, os intelectu-
ais se preocuparam também em perscrutar o espaço sob uma perspectica utilitária.
Foram geógrafos e exploradores, como o famoso coronel Percy Harrison Fawcett
incumbido de uma missão científica (delimitar as fronteiras entre o Brasil e a BoK-
Resenhas. Imaginário - USP, n. 5, p. 175-188, 1999. 1 77

via), Fawcett iniciou um conjunto de pesquisas que só foi concluída com seu desapa-
recimento, em Mato Grosso, no ano de 1925. Foram 19 anos de explorações em que o
pesquisador relatou-nos sobre cidades perdidas, monstros, aldeias, vestígios de socie-
dades e de ruínas nas quais imagens autóctones e projeções sobre os mitos de origem
dos europeus foram mesclados em uma única narrativa, supostamente científica.
Se, com a ciência acadêmica, conclui Langer, as pesquisas e narrativas sobre as
cidades imaginárias perdem sua legitimidade (pois são desprovidas de evidência
empírica), de forma alguma elas deixam de habitar o imaginário social, o que se
manifesta principalmente na literatura e, mais recentemente, no cinema.
São estes sonhos, manifestos pelos exploradores, mas que também refletem o
anseio de todos nós pela felicidade eterna, que Johnni Langer nos convida, em seu
Uvro, a conhecer. Texto denso, empiricamente bem fundamentado, bibliografia es-
pecializada; ao lado disto, uma aventura de historiador, também ele, sempre motiva-
do em buscar os limites do desconhecido.
Livro: O Norma/ e o Patológico
Autor: Georges Canguilhem
Edição: Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1990.
Por Rosana Sigler*

Reflexão filosófica de Canguilhem: um outro


olhar sobre as diferenças

A evolução nas idéias médicas entre os séculos XVII e XVIII resultou numa
teoria - que se tornou um dogma no século XIX - segundo a qual os fenômenos
patológicos nos organismos vivos são apenas variações quantitativas dos fenômenos
fisiológicos normais. Em O Normal e o Patológico, Georges Canguilhem, filósofo e
médico, posiciona-se contra a tese da identidade entre fenômenos vitais normais e
patológicos. Ele faz uma reflexão filosófica sobre este pensamento, seus métodos e
técnicas, resgatando algumas de suas representações especialmente nas idéias dos
franceses Augusto Comte e Claude Bernard, em função de sua influência sobre a
filosofia, a ciência e a literatura.
A primeira e segunda partes deste livro são a reedição de sua tese de doutorado
em medicina, e a última parte, escrita vinte anos depois, é uma reafirmação de sua
tese, acrescida de outras considerações na mesma direção.
Alguns pontos fundamentais de sua argumentação referem-se: ao desvelamento
do caráter valorativo implícito nas conceituações dos estados normal e patológico; à
insuficiência explicativa dos termos quantitativos na diferenciação daqueles estados;
e à relatividade inerente às normas vitais. Todos estes desdobramentos de sua argu-

* Mestranda em Psicologia, no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, realizando a


pesquisa; ^m contato com a loucura - a experiência de trabalhadores em serviço de Saúde Mental com proposta de
atendimento pautada pela crítica ao paradigma psiquiátrico. Bolsista da FAPESP
Resenhas. Imaginário - USP, n. 5, p. 175-188, 1999. 1 77

mentação convergem para a necessidade — ao se buscar a diferenciação entre os


fenômenos normais e patológicos — de considerar cada organismo vivo como uma
totalidade dotada de normas particulares. Há ainda uma premissa fundamentalmen-
te diferente da que sustenta a tese da identidade entre os fenômenos normais e
patológicos: cada um dos organismos vivos está em contínuo processo de inovação
fisiológica, sem que haja reversibilidade, no sentido de uma regressão a estados ante-
riores ontogenética ou filogeneticamente.
O caráter valorativo implícito nas conceituações em questão é desvelado pelo
autor quando procura mostrar que o "patológico" é, antes de qualquer busca por
explicação científica, um estado evidenciado no organismo como um todo que ele
próprio pode qualificar como indesejável, sendo por isso possível atribuir-lhe um
"vaW negativo. Do ponto de vista do organismo, há uma diferença qualitativa entre
a vida saudável - freqüentemente referida como ''normal" - e a vida patológica. O
próprio investimento na compreensão da diferença entre fenômenos normais e pa-
tológicos e a conceituação destas diferenças já refletem um interesse voltado para a
saúde: este interesse é evidência de um reconhecimento (subjetivo, portanto) do
cientista de que o estado de saúde é preferível ao estado mórbido.
A busca pela compreensão científica dos fenômenos vitais normais - prezada
pelos adeptos da tese da identidade por acreditarem trazer esclarecimentos sobre os
fenômenos patológicos — é, na Yotà^iàç^, precedida pela atividade clínica: o médico tem
contato com organismos completos que evidenciam a falência de suas funções vitais.
O estudo de seu funcionamento, a consideração de suas partes, de seus mecanismos —
a fisiologia — é conseqüência daquele primeiro contato com a totalidade do organismo.
É neste sentido que o autor afirma que a Patologia precede a Fisiologia, e não o contrá-
rio, e que acreditar na possibilidade de uma patologia objetiva com base no estudo dos
processos vitais normais é ser vítima ''da mais grave confusão do ponto de vista filosó-
fico e, às vezes, da mais perigosa, do ponto de vista terapêutico." (p.l85).
Portanto, as categorias "saúde" e "doença", "normal" e "patológico" não são
científicas e objetivas, mas técnicas e subjetivas. Objetivamente, só é possível definir
variedades ou diferenças. Os conceitos de saúde e de doença referem-se sim a nor-
mas, que possibilitam a comparação entre diferentes estados biológicos num mesmo
"188 Resenhas.

organismo. Disto tudo já se pode inferir que Canguilhem não considera possível que
se fale em um estado padrão de saúde como referência a uma realidade universal
objetivável. Para os adeptos da tese da identidade, haveria a possibilidade de conce-
ber este estado padrão - o ''normal" - passível de ser objetivamente mensurado, em
busca do qual deveriam se dedicar quem pratica a atividade clínica.
Canguilhem considera também insuficientes e enganosos os parâmetros estrita-
mente quantitativos para explicar as patologias como diferenciação — para mais ou
para menos — dos fenômenos normais. Segundo ele, desde os autores que antecedem
Broussais, passando pelo tratamento que Comte dá ao assunto, até as idéias de Claude
Bernard derivadas de sua medicina experimental, há evidências do caráter implicita-
mente qualitativo das descrições relativas às patologias, ainda que pretensamente colo-
cadas como descrições quantitativas em sua relação com os fenômenos vitais normais.
Constata-se o uso de conceitos que não podem ser perfeitamente transpostos em
termos quantitativos e que apontam para uma outra dimensão, como, por exemplo, a
noção de ''comportamento renal", referida ao mecanismo da secreção urinária.
E claro que os fenômenos normais e patológicos remetem à mesma composi-
ção físico-química, mas à identidade de sua dimensão concreta não corresponde a
identidade de seu valor biológico. O que distingue o alimento do excremento não é a
sua composição físico-química, da mesma forma, o que distingue a Fisiologia da
Patologia não são as propriedades concretas de seu objeto de estudo. Mais uma vez,
é a dimensão valorativa que estabelece essas diferenciações. O mal orgânico não
poderia ser reduzido a alterações quantitativas, até mesmo porque uma constatação
objetiva de alterações quantitativas relativas a determinada função biológica ou a
determinado órgão não corresponde necessariamente a uma patologia. Como diz o
autor "Descobre-se então que determinado indivíduo, que hospeda na sua faringe
bacilos de Loeffler, não está com difteria." (p. 185).
Uma análise mecanicista e quantitativa, ao ter como premissa a identidade dos
fenômenos normais e patológicos em função da identidade de seus processos físico-
químicos, ç^sva^a o sentido da palavra "patológico" mais do que o explica. Isso porque,
está claro, este sentido não corresponde a uma existência concreta, mas à condição
existencial do organismo, que transcende a concretude de suas partes e que escapa a
Resenhas. Imaginário - USP, n. 5, p. 175-188,1999. 181

uma análise que a elas se limite. Por isso, a diferenciação qualitativa entre o normal e o
patológico remete necessariamente ao funcionamento do organismo como um todo.
Ao nos referirmos ao todo orgânico, caminhamos para outro aspecto funda-
mental da argumentação de Canguilhem: a questão da norma^ que ele entende dever
ser um conceito relativo ao próprio indivíduo considerado em sua totalidade. Quan-
do se fala em norma, está-se trabalhando deliberadamente com a dimensão qualitati-
va dos fenômenos vitais, portanto, com valores e não fatos. Canguilhem chama a aten-
ção para o risco em confundir fatos e valores no fazer científico, considerando, por
exemplo, um determinado fenômeno normal — como fenômeno ideal, universal e
saudável — perdendo de vista o juízo de valor implicado nesta conceituação.
O autor examina, então, um procedimento freqüente derivado daquele engo-
do filosófico: a dedução de um padrão normal — como equivalente de ideal, univer-
sal e saudável - de determinada característica biológica a partir de algum dos dife-
rentes cálculos possíveis de média de uma população de indivíduos. Isto só teria
sentido se atuassem na constituição de determinada característica as leis do acaso, ou
seja, "leis que exprimem a influência de uma multiplicidade indeterminável de cau-
sas não sistematicamente orientadas." (p.l23).
Canguilhem recorre às idéias do sociólogo Maurice Halbwachs para explicitar a
inviabilidade e o equívoco em considerar a variabilidade de qualquer característica
humana como resultante das leis do acaso: há fatores sociais que determinam inclu-
sive a ordem vital. Se não se pode falar em leis do acaso na determinação da variabi-
lidade de determinada característica dos organismos humanos, não faz nenhum sen-
tido acreditar que, ao extrair alguma média desta característica sobre diferentes indi-
víduos, seja possível considerá-la como o "padrão normal", na acepção de ideal,
universal e saudável. Mesmo no mundo animal, Canguilhem defende que não seria
possível extrair este padrão normal a partir da média, pois as leis do acaso não deter-
minam a variabilidade de nenhum ser vivo. O alto índice de determinada caracterís-
tica em dada população apenas indica que esta população exibe uma norma, que
deve ser compreendida em função de suas condições específicas. Nas palavras do
autor: "Um traço humano não seria normal por ser freqüente, mas seria freqüente
por ser normal, isto é, normativo num determinado gênero de vida" (p.l26).
182 Resenhas.

No que se refere à saúde dos organismos, Canguilhem defende que ela só pode
ser apreciável individualmente. A doença não é aumento ou diminuição de elementos
do "padrão normal", é uma outra norma que corresponde a outra forma do organis-
mo interagir com o meio. Não é, portanto, a constatação de um desvio em relação a
um padrão que determina se há patologia ou não, mas a condição existencial do orga-
nismo considerado em sua totalidade. Ele pode, dentro deste raciocínio, exibir uma
norma diferente da maioria e estar doente, como poderia exibir essa diferença sem
estar doente. Mas o que significa exatamente "doença" para o autor, se ele a considera
como uma outra norma da mesma forma que há uma norma na vida saudável?
A questão da norma individual remete ao caráter ativo dos organismos, ou seja,
à inventividade de formas do viver em busca de um equilíbrio entre suas necessida-
des e o seu meio. O saudável é um ideal funcional individual e pode ser definido
como a capacidade do organismo de estabelecer normas de acordo com as imposi-
ções do meio. A saúde está relacionada, então, com a possibilidade de transformação
destas normas, sempre que necessário. A contrapartida desta concepção de saúde é
a de doença como redução da margem de tolerância às infidelidades do meio, em
função do estabelecimento de uma norma inferior por não tolerar alterações em
direção a outras normas que possibilitem uma interação melhor. A doença, embora
represente também um equilíbrio - uma norma - do organismo com o meio,
corresponde a uma situação mais vulnerável, na medida em que há possibilidades
reduzidas de novos reajustes. A patologia é uma inflexibilidade, uma rigidez do orga-
nismo no que se refere a sua norma; e a cura, nesse sentido, é um processo que visa
o estabelecimento de uma ordem na qual haja um melhor equilíbrio do organismo
com seu meio.
Canguilhem apresenta uma reflexão filosófica do fazer científico no campo da
Medicina, cujo objeto concreto de conhecimento - a ordem vital - não garante a
objetividade deste conhecimento. Suas considerações são bastante proveitosas para
a reflexão crítica em outros campos do saber que igualmente postulem estados nor-
mais e patológicos.
Este tema está intimamente relacionado ao tema das diferenças em ciências
humanas, pois as atitudes profissionais e cienti^ficas são diversas conforme sejam
Resenhas. Imaginário - USP, n. 5, p. 175-188, 1999. 1 77

postulados ou não padrões ideais de comportamento apenas com base em critérios


estatísticos. No entanto, ao relativizarmos a noção de patológico, previnindo-nos de
atitudes preconceituosas em relação ao diferente, corremos o risco de descaracterizar
a patologia, esvaziando mais uma vez este conceito. A definição de doença para
Canguilhem como norma individual inflexível parece-me especialmente interessan-
te, na medida em que respeita o caráter relativo das normas nos indivíduos e nas
populações, sem, com isso, anular a existência de estados desfavoráveis ao organis-
mo. Considerar a doença como uma norma individual inflexível é, a um só tempo,
reconhecer sua faceta problemática e também reconhecer a inventividade das forma
de vida. E considerar que cada organismo ou população expressa uma norma vital,
que não precisa ser universal, aponta para considerações que não se prendem às
normas (quer do ponto de vista individual, quer do ponto de vista grupai) do pes-
quisador e do profissional.
184

Füme: Shall We Dance?


Diretor: Masayuki Suo
Por Cristina Moreira da Rocha*

Shall we dance? Shall we dânsu

o novo filme escrito e dirigido por Masayuki Suo é uma comédia que focaliza a
sociedade japonesa em sua relação com o Ocidente. Shall we dance? foi o filme favo-
rito do público no Festival de Cannes de 1996 e, no Japão, ganhou prêmios em treze
categorias do equivalente japonês ao Oscar. Desde então, tem feito uma carreira
excelente, sendo o filme japonês de maior bilheteria na história dos Estados Unidos.
Em 1992, seu diretor já havia ganhado o prêmio de melhor filme da Academia Japo-
nesa de Cinema com Sumo do. Sumo don't.
Shall we dance? já antecipa sua preocupação com o Japão-Ocidente a partir do
título. Na verdade, a palavra dance está escrita no alfabeto usado por palavras estrangei-
ras {katakanã)^ assim dance a ser dansu, que seria como os japoneses a procunciariam.
O filme mostra um salary-man japonês que corresponde em tudo ao que a soci-
edade espera dele: aos 49 anos de idade conseguiu uma boa posição no escritório,
acabou de comprar a casa de seus sonhos e tem um casamento ótimo, com uma filha
adorável. Ele se nega mesmo às pequenas satisfações, como sair com os amigos para
beber depois do trabalho, o que, no Japão, não é tido como transgressão, mas como
o comportamento esperado de um homem. Ainda que sob os protestos da mulher,
ele volta para casa todos os dias logo após o trabalho. Tudo estaria perfeito se não

* Doutoranda do Departamento de Antropologia da USP com a tese A Religiosidade Contemporânea:


Um Estudo sobre a Reapropriação do Zen-budismo Japonês no brasil. Mestre pela ECA/USP com a disser-
tação A Cerimônia do Chá no Japão e sua Reapropriação no brasil: Uma Metáfora da Identidade Cultural do
Japonês. Ganhadora do primeiro prêmio na área de Cultura no "Concurso Nacional de Monografias"
promovido pela USP e AIJB para as comemorações dos 100 anos do Tratado de Ami:(ade Brasil Japão.
Resenhas. Imaginário - USP, n. 5, p. 175-188, 1999. 1 77

fosse a sensação de vazio que a vida lhe traz. Um dia, ao voltar para casa de trem, vê
uma moça com olhar melancólico (como o dele) na janela de um curso de dança de
salão. Aí começa sua odisséia para, em primeiro lugar, decidir-se a tomar aulas e, em
segundo lugar, esconder de sua mulher as suas ações e a fascinação que a professora
de dança lhe causa.
Shall m dance'? é uma boa introdução ao Japão contemporâneo para os ociden-
tais — mostra o ambiente do escritório, da casa, os trens, os bares onde se pode tomar
saquê e comer aperitivos depois do trabalho. E um filme pleno de referências ao
cotidiano da classe média japonesa nas grandes cidades. Porém mesmo neste ambi-
ente contemporâneo, onde pai e filha disputam o uso do computador à noite e
empregados do escritório discutem sobre o programa mndom, os antigos temas da
vergonha (haji) e do medo do ridículo se impõem.
Pela abertura do filme vemos que realmente, além de contar uma estória, Shall
we dance'? irá se tornar uma ponte para que os ocidentais tenham uma melhor com-
preensão da vida japonesa contemporânea que é regrada por normas diferentes das
ocidentais. Em contrapartida, o filme toca no tema da mudança da sociedade japo-
nesa pelo contato com costumes ocidentais.
Logo no início, a cena se abre com um grande baile num salão requintado onde
casais ocidentais valsam. Esta abertura é o momento ideal para se contar ao telespec-
tador ocidental que dançar não é uma ação comum na vida japonesa. Didaticamento
o narrador explica que casais não se abraçam ou caminham de mãos dadas no Japão.
Estas são atitudes por si mesmas embaraçosas, pois são próprias para a intimidade
do quarto. Uma vez que se dança com um/a parceiro/a que não é seu/sua esposo/
a a situação se complica ainda mais. O embaraço é inevitável.
Ao salarj man cabe esconder suas ações com relação às aulas de dança. Ele não
pode assumir que toma aulas sem colocar em risco sua imagem frente a sua esposa e
aos colegas do escritório. Sugiyama san (o ator Koji Yakusho) terá que praticar seus
passos no banheiro ou num espaço deserto embaixo de uma ponte. Sabemos do
"(...) temor, tão assinalado no adulto japonês, do ridículo e do ostracismo. (..) a
sensação de estar sendo alvo de riso funde-se com o pânico de estarem ameaçadas
da perda de tudo o que é seguro e familiar." (Benedict, 1972:221). Pior do que colo-
"188 Resenhas.

car apenas sua imagem a mercê do riso, Sugiyama san, se descoberto, coloca todo o
grupo a que pertence em situação vergonhosa.

O orgulho e a vergonha de um indivíduo são compartilhados por seu grupo, e por


sua vez, o orgulho e a vergonha do grupo são individualmente compartilhados por
seus membros (Lebra: 1976: 36).

Neste sentido, a pressão que existe no que o grupo sanciona para seus mem-
bros é extremamente forte. Se há desaprovação ou censura, o indivíduo é colocado
no ostracismo. Através deste mecanismo, a aprovação do "mundo exterior" assume
uma importância talvez sem paralelo em qualquer sociedade (Benedict, 1972: 230).
A vergonha {haji) torna-se um código de virtude que sanciona o que é permitido no
comportamento. Aquele que sofrer com ela cumprirá as regras da boa conduta.

Um homem que conhece a vergonha é por vezes traduzido como 'virtuoso' ou 'hon-
rado'. A vergonha ocupa o mesmo lugar de autoridade na ética japonesa que uma
'consciência limpa', 'estar bem com Deus' e abstenção de pecado têm na ética oci-
dental. A primazia da vergonha na vida japonesa significa (...) que cada um aguarda
o julgamento de seus atos por parte do público (Benedict, 1972: 190).

Entretanto, a vergonha não consegue impedir que o herói tome aulas e torne-se
tão bom dançarino que comece a freqüentar concursos de dança. Sua esposa e filha,
finalmente sabendo das aulas do marido e pai, vão assistia-lo. A filha, sendo de uma
geração mais aberta à cultura ocidental, torce pelo pai e não vê mal algum em dançar,
mas a esposa não o compreende. Por mais que se esforce, não consegue compreen-
der um ato que vem de uma cultura que está além das fronteiras do Japão.
E interessante notar que foi o mesmo tema, a dança, um dos fatores de acultu-
ração dos descendentes de japoneses no Brasil. Depois da Segunda Guerra Mundial,
com a derrota do Japão, os imigrantes e seus descendentes já não tinham mais razão
de voltar ao país de origem. Se a meta principal das famílias de imigrantes de antes
da guerra era fazer dinheiro rápido para voltar ao Japão, o que acarretava o isolamen-
to da comunidade, com a derrota na guerra os planos tiveram que ser mudados. A
permanência no Brasil havia se tornado um fato inelutável. No pós-guerra os imi-
Resenhas. Imaginário - USP, n. 5, p. 175-188, 1999. 1 77

grantes isseis (primeira geração) tinham como meta o êxito econômico e a ascensão
social de seus filhos. Compreendiam que as condições básicas para que isto aconte-
cesse eram que falassem bem a Kngua portuguesa e se comportassem, em certa
medida, como brasileiros.
Contudo, o incentivo por parte dos pais, para que a geração nascida em terras
brasileiras se adaptasse, era somente um primeiro passo, já que não poderiam funci-
onar como modelo de comportamento para eles. Este vácuo na educação foi preenchi-
do pelas centenas de associações de descendentes japoneses que forneciam-lhes o
ambiente ideal para que discutissem seus problemas comuns e convivessem com
jovens em igual situação. Para os descendentes que saíam do campo e chegavam à
cidade com o intuito de estudar, elas funcionavam como uma ponte entre seu back-
groundrural e japonês e a sociedade brasileira que deveriam enfrentar. Nestas associ-
ações eles discutiam temas como o namoro e o casamento^, planejavam atividades
esportivas e excursões e ensinavam a dançar à maneira ocidental.

As associações têm uma função específica: abrasileirar o nissei, fornecendo-lhe pelo


menos padrões de comportamento adequados. (...) dão-lhe um núcleo de convivên-
cia em que se usa apenas a língua portuguesa, cujo domínio é condição importante
para o sucesso nos cursos escolares e vida profissional. (Cardoso, 1973: 331).

Dançar, namorar e casar-se sem omiai (casamento arranjado) tornaram-se sím-


bolos para mostrar a si e ao grupo como haviam se ocidentalizado e aculturado.
Em Shall m dance? é também a dança que leva a um corpo mais solto, mais
flexível, menos controlado pelas regras da sociedade japonesa. Sugiyama sa sente-se
vivo novamente, sua alegria é tão aparente que sua esposa se ressente. O tom de
humor e alegria de Shall we dance? embala a platéia que gargalha à solta neste inesperado
filme japonês. Uso o adjetivo inesperado porque vista a filmografia japonesa, a co-
média não é um estilo muito usado e, ainda, uma sátira da sociedade japonesa o
torna mais incomum ainda. Ao ser entrevistado, o diretor Masayuki Suo nos diz:

Há basicamente dois tipos de filmes japoneses hoje: os ditos "artísticos", que são
sérios, pesados e aborrecidos; e os filmes de entretenimento, que fazem os especta-
dores de bobos porque os subestimam. Quis fazer algo entre os dois tipos, um filme
"188 Resenhas.

de entretenimento, mas que também possa ter um verdadeiro interesse para o espec-
tador". (Entrevista para Lúcia Nagib)

O filme acaba de uma maneira feliz - a retomada do amor da professora pela


dança, que há muito não dançava, e a volta ao lar de Sugiyama san, onde ele vai ensinar
sua esposa à dançar. Apesar dos obstáculos que a vergonha impõe, o filme mostra
que os costumes do ocidente estão entrando na sociedade japonesa de uma forma
sutil, mas efetiva. Shall m dance? traz uma lufada de ar novo numa filmografia e uma
sociedade tão sóbrias e ligadas às regras de comportamento como a japonesa.

Notas
^ No Japão o casamento é arranjado {Omiai). O amor romântico é uma idéia que veio junto com a
ocidentalização, depois da segunda gerra mundial, e mesmo hoje não faz parte integral da socieda-
de japonesa

Referências Bibliográficas

BENEDICT, R. O Crisântemo e a Espada. São Paulo: Perspectiva, 1972.


CARDOSO, R. ''O Papel das Associações Juvenis na Aculturação dos Japoneses".
Em Assimilação e Integração dos Japoneses no Brasil, H. Saito e T. Maeyama (org.)
Petrópolis: Ed. Vozes e São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo,!973.
LEBRA, T.S. Japanese PaUerns of Behavior. Honolulu: University of Hawaii Press, 1976.
Contents

Presentation 5

Tbe drunk in love: genderprofiles in the imaginary of Braf^ilian Pop Music— 1930-1950 7
Maria Izilda Santos de Matos

Fame and exile: Neruda'spostman 27


Rob Rix

Medieval Iconography of nativity madepoetry hy João Guimarães Rosa. 39


Tereza Aline Pereira de Queiroz

Some themes onAnselm Kiefer. 67


Liana Cardoso Soares e Maria Luisa Sandoval Schmidt

iMudscape and Culture 83


Maria de Lourdes B. de Alcântara e Regina T. Sader

SoáalTie 91
Leslie Kaplan

There is no place like home: anthropology, multiculturalism and new thecnologies 95


Aleksandar Boskovic

Identi^, social invisibility, alterity: experience and anthropological theory in the heart of practics 105
Francine Saillant

Native culture andglohali^^ation: Terena in Campo Grande 121


Paula Caleffi

Symbolic space 139


Jane Bittencourt

Human yidaptabili^ research into the heginning of the Third Millennium. 153
Michael A. Little and Ralph M. Garruto

InBriefs 175
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Palavra
A Trajetória iMtino-americana para a Modernidade
Jorge Larraín
Huxlej Sobe o Morro e Desce ao Inferno - A Umbanda no Discurso Católico dos Anos 50
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Um diálogo com Monteiro Lobato
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Brasília, Cidade Arcaica
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Vicgando pelo Mundo dos Museus: Diferentes Olhares no Processo de
Institucionalii^ção das Ciências Naturais nos Museus Brasileiros
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Laboratório de Estudos do Imaginário (LABI)
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP)
Av. Professor Lúcio Martins Rodrigues, trav. 4 - Bloco 17 - sala 18
Cid. Universitária - São Paulo - SP - CEP 05508-900

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Título Imaginário
Diagramação!Editoração Joceley Vieira de Souza (joceley@usp.br)
Formato 180 x 220mm
Mancha 1 3 5 x 182mm
Tipologia Avantgarde, Garamond.
Papel Couche fosco 85g/m^ (miolo)
Supremo 250g/m^ (capa)
Impressão da capa Quadricromia com laminação fosca e reserva de UV
Impressão!Acabamento Bartira Gráfica e Editora
N" de páginas 194
Tiragem 1.500 exemplares

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