Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
c ..
ílllBlllf
wimmím^
mesÊiÊemáiMimmúim
numero o
São Paulo - 1999
ISSN - 1413-666X
Apresentação 5
Paisagem € Cultura.... 83
Maria de Lourdes B. de Alcântara e Regina T. Sader
IjelJen Social 91
Leslie Kaplan
Resenhas 175
Apresentaçio.^........5
Paisagem e Cultura 83
Maria de Lourdes B. de Alcântara e Regina T. Sader
Não há lugar como nosso lar: Antropologia, Multi cultura lis mo e Novas
Tecnologias. 95
Aleksandar Boskovic
Resenhas..... 175
X I
maginario
Diferença
número 5
São Paulo -1999
ISSN 1413-666x
Revista Publicação do Núcleo Interdisciplinar do Imaginário e Memória (NIME)
Imaginário e do Laboratório de Estudos do Imaginário (LABI) - Departamento de
n" 5 - 1 9 9 9 Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade
(PSA) do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP)
ISSN 1413-666X
Conselho Editorial: Maria Luisa Sandoval Schmidt, Maria Regina Toledo Sader, Maria de
Lourdes Beldi de Alcântara, Márcia Maria Cabreira Monteiro de Souza,
Marcelo Pedro de Arruda, Bernadete Castro Oliveira, Tatiana Freitas
Stockler das Neves, Carla Regina Hanssen
Conselho Consultivo: Antonio Cândido, Décio de Almeida Prado, Renato da Silva Queiroz,
Francine Saillant (Universidade de Lavai - Canadá), Adalberto Santana
(UNAM - México), Paulo Vanzolini, Maria Regina Toledo Sader, Maria
Luisa Sandoval Schmidt,
ISSN 1413-666X
Paisagem e Cultura 83
Maria de Lourdes B. de Alcântara e Regina T. Sader
Uen Social 91
Leslie Kaplan
Identidade, invisibilidade social, alteridade: experiência e teoria antropológica no centro daspráticas curativas. 105
Francine Saillant
Human Adaptability Research Into The Beginning of the Third Millennium 153
Michael A. Little and Ralph M. Garruto
Resenhas 175
APRESENTAÇÃO
Sérgio Fingermann*
Diferença
Continuamente tenho me indagado sobre o pintar.
O que o pintar quer dizer?
É preciso.
E preciso encontrar alguma coisa.
Uma pista.
É isso...
Encontrar alguma coisa, nas anotações, nas citações, nos textos
grifados de outras pessoas.
Encontrar alguma coisa nas palavras do outro.
Fazer delas minhas palavras.
Para dizer aquilo que me escapa.
Para dizer aquilo que não me diz.
Para dizer do estranho, da vaga sensação, daquilo que não sei o
nome.
Para dizer do que falta, mas está aí.
Lembro-me de ter lido que os Deuses, ao abandonarem a vida
terrestre, teriam esquecido aqui, neste
Retiro, a sua linguagem: a arte.
* Artista Plástico.
Fingermann, Sérgio. Imaginário - USP, n. 5, p. 05-06, 1999.
A arte.
E preciso ver diferentemente do que se vê.
A arte desestabiliza.
A arte é uma ruptura no circuito do uso, é uma espécie de anomalia
que faz a coisa sair do mundo.
Não sendo mais, torna-se sua aparência, sua imagem.
Converte-se em obra de arte.
Assim o estranhamento se produz.
E isso nos desestabiliza.
Provoca sensações no corpo.
Sensações que, se forem elaboradas, transformar-se-ão em
pensamentos.
Este acontecimento não produz nem certezas, nem claridade.
Este acontecimento não fornece apoio sobre o indestrutível nem
sobre a certeza (a vida).
Já dissemos: a obra nos desestabiliza, nos tira de nós mesmos, do
Hábito.
Podemos dizer que ela contém o momento da verdade.
É como se fosse um rasgo,
(a verdade não existe)
Cria um território.
Estranho território, região onde a impossibilidade pode ser
afirmação...
Nesse lugar, nesse território o olhar é uma forma de sinceridade.
O olhar é uma forma de compreensão, mas que só vai compreender
se o essencial lhe escapar -
O outro do mundo.
O olhar trabalha a qualidade do diferente.
o Ébrio Apaixonado: Perfis de Gênero no
Imaginário da MPB - 1930-1950
Resumo: I^ara esse artigo foram seleáonadas as canções de dois compositores da MPB: Vicente Celestino^
que durante as décadas de 1930/40 e 50 fet^ grande sucesso com a música O éhriOy além de ter em seu
repertório outras músicas com a mesma temática, e lj4picinio Rodrigues, cuja ampla produção focali^ a
hoemia. Através dessas canções, pretende-sefocalizar o imaginário em torno da figura do ébrio e dos espaços
da boêmia, além de rastrear as relações e tensões que se estabeleceram entre os gêneros.
Palavras-chave: MPB, ébrio, boêmia, Vicente Celestino, l^upidnio Rodrigues, gênero
Doutora em História pela USP e professora titular da PUC-SP, do Programa de Pós Graduação em
História. Obras: Trama e Poder. 3° ed., Rio de Janeiro: Sete Letras, 1997. Melodia e Sintonia: o masculino,
o feminino e suas relações em"LupicínioRodrigues. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996. Dólares Duran:
experiênáas boêmias em Copacabana nos anos 50. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
1o
1oMatos, Maria Izilda Santos de. Imaginário - USP, n. 5, p. 07-25, 1999.
mulheres boêmios. Enquanto a cidade dorme, em certas ruas, nos bares, nos caba-
rés, nos salões de bilhar, em salas pouco iluminadas e enfumaçadas, nos salões de
dança e strip-tease, as tensões urbanas emergem, vivenciadas de forma fragmentadas
e diversificadas por seus freqüentadores, fazendo da cidade lugar para se trabalhar,
divertir-se, viver aventuras e desventuras da noite.
O processo de urbanização e industrialização emergente, desde os anos finais
do século XIX, trazia a preocupação com a ordem e o trabalho. Criava-se a necessi-
dade de diferenciar o espaço do trabalho de outros espaços, tornando cada vez mais
clara uma divisão no urbano. A música, em termos gerais, acompanhou tais mudan-
ças (MATOS, 1982). Em algumas cidades, como o Rio de Janeiro, o samba foi ''ar-
rastado" morro acima com os trabalhadores e, em outras, como São Paulo, para os
cortiços e "malocas" onde se organizaram as comunidades, criaram-se laços de soli-
dariedade e prazer, bem como se manifestavam as críticas às pressões cotidianas da
"ordem urbana", à rotina individualista e tediosa do trabalho e da cidade.
Entre o morro e a cidade
A batida é diferente
O morro é pra tirar samba
A cidade é pro batente
(O morro está de luto, Lupicínio Rodrigues)
Se me mandares embora
Tenho medo de morrer
Não me negues
Por favor de Deus
A paz de teu abrigo
Se já não me queres mais
Deixa eu ser só teu amigo
Porém, abre esta porta
Perdoa tudo que te fiz
E deixa-me que morrerei feliz.
(Taherna, Lupicínio Rodrigues)
I
Senhor delegado, eu sou um assassino,
Entrego-me à prisão cumprindo meu destino.
Estou arrependido de praticar o crime,
Deixai que lhe descreva, senhor, como perdi-me:
Abstract: For thispaper mre selected songs of tm authors of Bra^ilian PopularMusic: Vicente Celestino
author of the Drunk, a hit of 1930-40-50, has other compositions ahout the some theme, and L.upicinio
Kodngues who sang the hohemians in his vast repertoire. Our focus is on the imaginarj thatpervades the
figure of drunks and hohemians, the relationship and tensions, hetween genders,
Keywords: Braf(ilian Popular Music, The Drunk, Hohemians, Vicente Celestino, l^upicinio
Kodrigues, gender
Notas
^ Os padrões e perfis não são pura e simplesmente impostos, nem o processo de modelização se
apresenta absoluto, existindo sempre a possibilidade de múltiplas articulações e interpretações,
oscilando entre dois pólos: uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo submete-se à
subjetividade tal como é recebida ou uma relação de expressão, criação e resistência, na qual o
indivíduo se reapropria dos componentes da subjetividade e tranforma-os, produzindo um proces-
so de singularização. A subjetividade não existe anteriormente ao imaginário, pois se constitui em
latência constante através de imagens, palavras, afetos e perfis que circulam incessantemente no
social. (GATTARI e ROLNIK, 1986)
1 o Matos, Maria Izilda Santos de. Imaginário - USP, n. 5, p. 07-25, 1999.
^ Utilizar-se-á o termo canção em lugar de música "num sentido lato, isto é, abrangendo principalmente
a letra, o universo que verbaliza cantando". (MARTINS, 1975)
^ Antonio Vicente Filipe Celestino, cantor, ator e compositor, nascido no Rio de Janeiro, em 1894.
Trabalhou em teatro de revista, óperas e operetas, organizou sua própria companhia e excursionou
várias vezes pelo país, o que fez aumentar sua grande popularidade em particular nos anos 20 e 30.
Gravou 137 discos, num total de 265 músicas, muitas de sua própria autoria.
^ Lupicínio Rodrigues, nascido em Porto Alegre em 1914, consagrou-se no estilo samba-canção.
Considerado o mais expressivo poeta de cabarés, de suas histórias e de seus personagens. Lupicínio
sempre procurou ressaltar que jamais escrevera algo que não contasse experiências, situações, emo-
ções, episódios vividos por ele ou por seus amigos, sendo em alguns momentos drasticamente fiel
a essa experiência que o levava a transmitir intensamente o cotidiano, pleno de violência, rancor,
paixão, envolto numa trama por ele contada melodiosamente. (MATOS e FARIA, 1996)
^ Não se exclui o botequim como espaço de rixas masculinas, gerando por vezes conflitos graves,
enfrentamentos em brigas e até homicídios. Aparecendo assim como espaço de lazer, mas também
de práticas de delitos e de tensões. (CHALHOUB, 1986)
^ E o caso da canção Brasa (Lupicínio Rodrigues), em que o "dentro" é o mundo da mulher, identifi-
cado com a desarmonia e o espaço da divergência.
Referências Bibliográficas
Rob Rix
Resumo: Trata-se de uma análise da primeira versão filmada da obra do chileno Antonio Skarmeta
Ardiente, O filme trata da sensibilidade de um humilde carteiro enamorado de sua Beatri^ e iniciado na
poesia de Pablo Neruda.
Palavras-chave: cinema, poesia, Pablo Neruda
Oscar. Un análisis comparativo revela el contraste entre un filme hecho con poços
médios, alejado forzosamente dei movimiento cinematográfico chileno interrumpido
por el Golpe y su feroz represión cultural, y otro elaborado con mejores equipos
técnicos y apoyado en el trabajo de dos actores formidables y un director hábil, con
tiempo y presupuesto para desarroUar bien Ia historia con toda su belleza y humor.
La presentación de Neruda desde una dialéctica poeta de amor — poeta dei pueblo
ofirece más posibilidades que Ia versión liana y sencilla hecha por el propio Skármeta
en 1983, pero a pesar dei magnífico trabajo dei actor cômico Massimo Troisi en el
papel dei cartero, ni sus amores con una Beatriz bella pero sonsa, ni su supuesta
militancia política-poética tienen Ia verosimilitud de Ia versión original. La fama de II
Postino se basa en Ia apropiación de una memória chilena para convertirla en una
fábula universal cuyas referencias 'históricas' forman parte dei decorado, pero no
invitan a ninguna reflexión seria sobre el destino de los pueblos subyugados. El
enfoque burlesco y sentimental dei filme, y Ia consagración póstuma de Troisi por su
último trabajo, favorecieron Ia buena recepción internacional de esta producción,
cuyas sugerentes exploraciones de Ias contradicciones de Ia fama y el exilio le dan
cierto interés, aunque pierde fuerza al final, cuando ya no se mantíene el ritmo con
los diálogos entre poeta y cartero. La versión de Skármeta, tan corta y esquemática
en comparación, por Io menos deja a los espectadores con los elementos esenciales
dei encuentro entre gênio y pueblo, y prepara el terreno para un desenlace
auténticamente histórico y sin concesiones.
El êxito internacional de Ia película II Vostino^ su presentación al Oscar^ y Ia consa-
gración póstuma de su principal actor, han constituído un fenômeno insólito y digno
de estúdio por Io que supone como alternativa al cine hegemônico de Hollywood.
Apreciada como peKcula de arte, parece ser una instancia de cine que rompe el molde,
triunfando internacionalmente a pesar de no tener los ingredientes más rentables de
Ia industria actual, es decir, sexo, violência y acción con efectos especiales. En este
sentido su conquista de Ias pantallas europeas y norteamericanas se puede celebrar
como un soplo de aire fresco, como una reivindicación dei trabajo creativo y artísti-
co de autores y actores frente a Ias recetas de popularidad. La competencia desigual
y manipulada de Ias grandes corporaciones dei espectáculo no suele dar cabida a
Rix, Rob. Imaginário - USP, n. 5, p. 27-36, 1999. 29
lución democrática en su país: todo esto se sabe, y de sobra, parece decir. Hecha
(según el autor) de "una mezcla curiosa de ingenuidad, impertinencia, humor y me-
lancolia", Ia obra reivindica desde el exilio (no por voluntário menos difícil y doloro-
so) Ia decencia. Ia honestidad. Ia gracia y Ia exuberancia de un pueblo condenado a
sufrir una feroz represión militar. También, se rinde homenaje al gran poeta nacio-
nal, buscándole el perfil humano, su compenetración con el pueblo anônimo, recono-
ciendo su importancia como mito dei revolucionismo chileno pero desmitificándole
en el sentido de rehuir heroísmos y grandes gestos históricos, haciendo un retrato
íntimo y cotidiano, resaltando su sentido de humor, su modéstia, sus pequenas vanida-
des, su timidez y su irrefrenable vigor poético. Como obra dei exilio cultural más que
político, esquiva Ia tentación de hacer ajustes de cuentas o testimonios para el archivo
de Ia nostalgia, para conservar su frescura anecdotal y permitir al público espectador o
lector reflexionar sobre el proceso poKtico que tanta vida y esperanza destruyó.
El contexto político en el cual transcurre Ia historia de Mario Jiménez, es uno
de tolerancia desconfiada entre tendencias rivales (democristianos e izquierdistas),
que sólo se deja Uevar a extremos de odio y venganza a raiz dei golpe militar, cuando
Mario es denunciado por el político democristiano (el diputado Labbé en Ia novela)
que antes incluso le había regalado un cuaderno para que escribiera sus propias
poesias: El aspecto político se tradujo en IIVostino con un esfuerzo inteligente, pero
el análisis dei clientelismo de los democristianos en Italia durante los anos 50 ofrece
de un lado un fondo histórico innecesario para acompanar Ia fábula dei poeta y su
cartero, y de otro, una distracción de Ias irônicas discusiones entre Mario y su jefe
sobre si Neruda es ante todo un poeta dei amor o un poeta dei pueblo. Con Ia
inverosímil muerte de Mario en una manifestación comunista, donde había ido a leer
su único poema, dedicado al poeta de los proletários, se pierde Ia oportunidad de
explorar Ia vena profunda que se esconde en Ia relación entre los dos hombres. El
artista que dedica su labor creativa a una causa poKtica y social, a Ia reivindicación de
los derechos de Ias masas oprimidas, también reconoce y aprecia al indivíduo humil-
de, al hombre concreto dei pueblo, con sus preocupaciones particulares, sus frustra-
ciones, su fatalismo, su ineptitud tanto para Ias luchas políticas como para Ias amoro-
sas. Y si Ia inspiración de Neruda le viene dei mar, de Ia naturaleza, de los grandes
Rix, Rob. Imaginário - USP, n. 5, p. 27-36, 1999. 34
dei argentino Eliseo Subiela, habrá hecho algo para popularizar Ia poesia y sacaria de
Ias academias. En una época y un mundo en que Ia gente lee cada vez menos, cuan-
do, como lamenta el novelista espanol José Maria Merino, «(p)arece que los nuevos
lectores solo abren los viejos libros si los pone de moda el êxito de una ocasional
adaptación cinematográfica», no es de despreciar Ia aportación de un actor italiano y
sus amigos a Ia popularización de una historia chilena que tan fácilmente podia ha-
berse perdido en el olvido, como tantas otras cosas que han desaparecido de una
cultura asediada.
Abstract: Thispaper diseuss thefirst version of thefilm of chilean Antonio SharmetaArdiente. Thefilm
considered as a thirol world movie, deals with the sensibility of a humhlepostman in love with his Beatri^
and iniciated in Neruda'spoetrj.
Keywords: Movie, poetrj, Pab/o Neruda.
Notas
^ Donald Shãw, Antonio Skármeta and thepost-boom, (Hanover, NH: Ediciones dei Norte), 1994:159-
183, passim
^ Skármeta, citado por Shaw, op. cit, p.l62
^ Shaw op. cit, passim
Resena de II Postino, por Julian Graffy, Sight and Sound, 49, Nov. 1995:11
^ Citado en Amélia Castilla, "Antonio Skármeta: 'El êxito te regala tiempo para Ia creación"', El Pais,
12 de septiembre de 1996:29.
Ninguém vê, ninguém sente
Rua São Bento em frente ao Banco Bradesco foi o endereço que procurei ao
sair dos subterrâneos do metrô. Me dissolvi na cor cinza de poluição misturada aos
suores dos rostos cansados dos passantes. Havia um pulsar rápido de todos aque-
les corações ansiosos por chegar, entregar, pagar, sempre ávidos a terminarem logo
qualquer coisa. Carreguei a bolsa apertadamente contra meu peito, curvei os om-
bros e travei os quadris querendo passar desapercebida aos olhos dos famintos de
Deus. Entrando na rua São Bento mirava com muita pressa todos os lados procuran-
do por Maria de Fátima.
Em algum lugar misturado com aquele mosaico de promessas esperava avis-
tar os olhos esverdeados de tanta esperança daquela mulher. Montar o tabuleiro,
estender nele os tapetes, empilhá-los, passar neles suas mãos de fogo que tocarão os
pés, a planta de todo corpo de alguém. Quando a encontrei, meus ombros, braços,
quadris e pensamentos relaxaram, era como se eu estivesse entrando em casa depois
de ter cruzado um deserto para tomar água fresquinha na sombra do lar.
Assim que me vi atrás de seu tabuleiro, vi as pessoas passarem na rua como
debruçada eu estivesse no parapeito da janela. Fui introduzida no mesmo corpo de
Maria de Fátima, montei na garupa de seu cavalo.
As pessoas, todas elas, bancários office-boys, secretárias, craqueiros, mendigos,
putas, corretores da bolsa, executivos de todas as esferas se despiam dos demônios
que os protegiam, por isso não tive mais medo. Com a música de suas gargalhadas e
suas lágrimas decorrentes destas envolvia cada cliente que se aproximava, os convi-
davam para correr livremente nos seus campos, tirava o sorriso e uma breve satisfa-
ção em quem tocava em seus tapetes. Eles levavam e sempre voltavam.
38 Santos, Andréa Fátima. Imaginário - USP, n. 5, p. 37-38, 1999.
Resumo: Neste artigo a autora mostra o diálogo de Guimarães Rosa com a pintura da Antigüidade, da
Idade Média e Renascimento, colocando-o ao lado de outros autores, o que permite situá-lo numa longa
duração da criação poética ao mesmo tempo que o individualista.
Palavras-chave: Guimarães Rosa, poesia, iconografia medieval, natividade.
Na primeira jornada no sertão das Gerais, em 1952, João Guimarães Rosa tem
a visão de um "regato giorgionesco". Esta viagem do lirismo, da suavidade, da me-
lancolia das paisagens de um pintor educado nas inconstâncias dos brilhos das águas
de Veneza até Minas insinua a complexa e erudita visualização do mundo de Rosa.
Não sabemos a qual dos vários e distantes riachos de Giorgione faz alusão; talvez
aquele á2i Adoração dos pastores (National Gallery, Washington), um tema que lhe pa-
rece particularmente caro.
Este encontro de Giorgione com o sertão, na verdade, será apenas um entre
vários. Outros pintores, seus contemporâneos ou ainda de épocas mais recuadas,
também teriam suas paisagens e animais peregrinando por esta porção do mundo.
de dos animais. Por outro lado, projeta a cena no tempo. Ao indagar sobre a vontade
dos deuses em relação ao sangue que será derramado, dá concretude à procissão e
admite que o sacrifício terá lugar. Assim:
Para o altar do sacrifício/ ornado de loureiros/ touro, carneiro e porco/ são encami-
nhados./ Resignam-se sem saber/ os três mansos emissários/ um imperador oficia/
Tibério ou Calígula/ (mal identificado)/ Que [querem] os deuses com/ seus san-
gues/ daqui a pouco misturados?/ Querem o sangue ou símbolo:/ ao futuro, o/
presente/ sacrifique o passado.^^
(...)/ do espesso que terá/ de ser iluminado./ (...)/ Revoavam através do nada
invulneráveis anjos^^.
Através das linhas de luz executadas pelo Mestre Francke constrói uma outra
estória, direta entre céu e terra, em que a Virgem desaparece, pictórica e misticamen-
te. 'Aqui se encontram" - os enviados divinos na versão roseana. Na versão de
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)
Francke, o contato faz-se através dos olhos entre os animais e o Cristo, mas este está
de costas para eles; logo não os vê, não se encontram.
No século XX, o diálogo com a pintura contemporânea é mais freqüente. Ver-
sos de Éluard para Giorgio de Chirico, Braque, Magritte, de Garcia Lorca para Sal-
vador Dali, de Alberti para Picasso, de Artaud para Van Gogh.
Jean Cocteau faz uma Hommage à Jérôme Bosctí^^ através de uma linguagem e de
rimas insólitas, descrevendo e comentando ao mesmo tempo uma passagem do Trítico
das DeHcias. William Carlos Williams em Hommage to painters percebe em Bosch
demônios e amontoados de almas torturadas engulindo suas próprias entranhas^^
Guimarães Rosa revela um outro Bosch, singelo e sem espetacularidade, o da
Adoração do Menino; nela um pequeníssimo Cristo, numa manjedoura, cercado por
Maria, José, o boi e o burrinho com cenhos praticamente tocando o corpo da crian-
ça, tendo ao fundo uma estranha personagem. Rosa utiliza a estrutura de composi-
ção da cena para invocar a afinidade divina entre o Cristo e o animais, os únicos que
poderiam material e metaforicamente estar próximos a Ele:
Otávio Paz elabora poeticamente seus Tributos ^iÇXwiàs^ Monet, Mareei Duchamp,
Joan Miró, Balthus e muitos outros^^ A mirada de paz sobre os trabalhos destes
artistas tende a incorporar suas linguagens na própria linguagem poética; cores, te-
mas, recriações do espaço e da realidade, tricotadas com a vida dos pintores, resul-
tam em composições bastante diversificadas, amplamente abertas aos influxos ge-
rais das obras.
No Brasil, os poetas do século XX falam também e sobretudo de pintura mo-
derna, dos pintores que conhecem, com quem convivem, quem consideram seus
pares. Guimarães Rosa permanecerá longe desta confraternização. O Atelieràe: Oswald
de Andrade evoca Tarsila do Amaral; o Páscoa de Giorgio de Chirico^^ é um poema
metafísico e surrealista exemplar como intercâmbio de linguagens entre o pintor e o
poeta. Na coletânea Museu de tudo^^, João Cabral de Melo Neto refere-se à pintura
como um corredor infindo levando a outras coisas^"^ e poetiza sobre a presença e
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)
Este primado da natureza sobre a cultura está bem documentado num poema
sobre a criação dos animais — "Meister Bertram von Minden, ^'Schòpfung der
Tiere", vom Petri-Altar, Hamburg — Kunsthalle"^^— onde Rosa acaba, inclusive,
rompendo com a autoridade da Bíblia. Bertram von Minden (c.l342-c.l415)^^, no
altar Grabower (1379), narra cenas da Criação e do Antigo Testamento. A criação
dos bichos, explorada por Rosa, não é um painel isolado, situando-se entre a cria-
ção das plantas e a do homem.
Em volta de Deus./- como sempre estarão - / eles já existem/ no terno (afetuoso)/
milagre de suas inventadas/(talvez não arbitrárias formas)/talvez não tenham sido
feitos/só para o Homem./Criaturas (Sorrisos são)/As altas corujas, já irmãs/da noi-
te — orelhas levantadas/O coelho que corre/A lebre que se senta/A raposinha, aten-
ta/O lobo e o cordeiro/Os bentos cervos, extenuáveis/O cavalo azul como as dis-
tâncias/O boi compassivo/A cabra/O passarinho/O falcão/O pavão falaz/O galo
— /O cisne — /Os peixes entrecruzados/O caranguejo
Esperam o que é /Também um /Mistério (como êles mesmos)/Que a cada um /
Deus lhe diga o seu /Nome.
criação. Na ^íhlia os animais são nomeados por Adão {Gênesis^ 2: 18,20), não por
Deus. Também no Gênesis (2:18) os animais deveriam fazer companhia a Adão; Rosa
duvida que pudessem ter sido criados só para o homem. Nesse sentido, reforça a
associação dos animais com o divino, o fato de estarem impregnados da sua essên-
cia. Consequentemente, dada a insondabilidade do divino, adquirem mistério; exata-
mente como o outro aspecto da criação, o outro corpo criado, a palavra, o nome. Na
verdade, o gesto de Deus indica estar criando os animais - o mesmo gesto, apontan-
do dois dedos, é repetido ao criar o homem —, mas Rosa poeticamente imagina que
estaria dando nome aos bois.
Este entusiasmo pelos bichos talvez explique a quase total ausência de pintores
modernos, em sua maioria distanciados do figurativismo, em seus apontamentos e
livros. Cerca de três mil volumes compoem a biblioteca de Rosa, dos quais cento e
dez sobre artes plásticas; destes mais da metade trata de arte antiga e medieval, trinta
e sete especificamente da Idade Média e Renascimento; cinco de arte moderna^^. Da
arte dos séculos XIX e XX resultam poucas poesias, como A vaca amarela, aludindo
à pintura do fauvista alemão Franz Marc^^.
As imagens que enxerga traçam um mapa de seu olhar, com limites animais e
fronteiras candorosas. Talvez possamos também inferir algo de sua concepção teó-
rica da pintura, indiretamente. Uma pista estaria numa das epígrafes, a Entremeio com
o vaqueiro MarianOytiradado livro The B/ack Mate de Conrad. A frase refere-se a um
homem contando ter conhecido um marinheiro que aparentava ser mais espanhol
do que qualquer espanhol que jamais vira,tal qual um espanhol num quadro^"^. O
curioso é que, logo em seguida. Rosa começa a falar de Mariano como alguém supe-
rior a qualquer personagem da literatura, pois "reunia em si, em qualidade e cor,
quase tudo o que a literatura empresta esparso aos vaqueiros principais...Era tão de
carne e osso..."^^.
Talvez insinuando ser a realidade das palavras menos sensorial ou especular,
mais abstrata ou vaga, que a realidade pictórica. Na verdade, vários dos qualificativos
atribuídos a Mariano são próprios às artes plásticas: forma, densidade, luz. Estas
características, enfatizadas pela suprasensorialidade imagética impKcita na frase de
Conrad, subentenderiam uma estreita relação entre o pictórico e o mimético.
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)
A idéia da caverna é retomada num texto do século XIH Meditações sobre a vida
do Cristo^\ Na Iconografia da Natividade de Niccolo di Tommaso, a Virgem e o
Cristo, envoltos cada um numa mandorla — 2i amêndoa, símbolo do universo —, acom-
panhados por São José, o boi e o burrinho encontram-se dentro de uma caverna
triangular, encimada por Deus-Pai e contornada na parte superior por anjos; de
imediato, chamam atenção os dourados bizantinos da composição, nas mandorlas,
anjos e auréolas. Guimarães Rosa descarta essa luz que preenche. Desenrola a narra-
tiva a partir da esquerda, onde estão os animais, sobe o olhar para os anjos e astros.
Mas o tema dos versos deriva daquilo que não é, do ausente. Do vazio da caverna e
da manjedoura. E no "vácuo" e no "sepulcro, sarcófago" que a cena adquire seu
sentido presente e futuro:
Aos bois somente é/ possível tributar adoração/ : porque são o perfeito/ fim de
uma intacta/ idéia de mundo.
O boi baba/ seja como for;/ só o que não se acaba/ é um amor noutro amor./ E o
boi bem sabe/ usar a nostalgia: / sempre que pode/ volta à vaca fria./ Portanto, o
que êle baba/ é pura poesia.^^
beleza seria um dos meios de aproximação com Deus. A questão da luz — presente
em vários dos poemas: ''O milagre é um ponto/ que combure/ num centro da
Noite, / uma luzinha/ um riso.", ''do Céu desceu o Menino/ na lucidade."^^ - era
apreciada numa gradação de valores, da luz invisível de Deus às trevas da matéria,
onde morre^^^. Rosa refere-se diretamente a isto no poema da Natividade de Botticelli,
para quem a luz também era manifestação e s p i r i t u a l e s p e s s o que terá/ de ser
iluminado"^^^; para Rosa, a antinomia não é eterna, a matéria se torna passível de luz.
Diante da Natividade de Schongauer a relação alto/baixo-claro/escuro destaca-se:
''no telheiro/ da claridade de Deus./.../ O mundo é mendigo."^®^
O mesmo sentido funda o poema da Natividade de Piero delia Francesca. Rosa
desfaz a imagem intelectualizada e solene de Piero. Ambos parecem acreditar nos
valores da iluminação, mas Rosa discorda do papel atribuído aos animais pelo pintor.
E recostura a visão:
Por que zurra para o alto o Burro:/ num pedido doloroso? / Por que se abaixa o Boi,
opaco,/ tão humilde, tão grande ? / Nus fantamas que a luz abduz./ Nus como
Jesus/ posto entre húmus e plantas,/ num canteiro^^"^.
O milagre é um ponto/ que combure/ num centro na Noite,/ uma luzinha, um riso./
/ De perfil, gris,/ adiante (para que o Menino o veja), / o Burrinho.// O Boi ainda
não se destacou/ da mansa treva.^®^.
Descrito na cor "gris", palavra tantas vezes repetida nos textos de Rosa, o
burrinho torna-se protagonista de outra estória de encontro com o divino, "centro"
simbólico de um mundo em vias de recriação.
O centro é transformado em "âmago do mundo", lugar onde o Menino foi
descido, na luz. A representação da Natividade em Fra Angeüco encerra o profundo
simbolismo teológico e metafísico por ele atribu[ido à claridade; de origem celeste,
permite ver a natureza, mas também purificar os sentidos, restabelecer uma harmo-
nia primordial entre o celeste e o terrestre, reencontrar o mundo paradisíaco, trans-
formar a vista em visão luminosa^^^. Rosa deixa-se levar pelo misticismo de Angélico,
pela dignidade absoluta da composição onde, da massa superior de luz, verdadeira
fogueira dourada encimando a cabana/caverna. Angélico destacou "uma réstia" para
acomodar o menino no escuro inferior: " - no âmago do mundo,/ desnudo,/ desci-
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)
do ao chão,/ sobre uma réstia,/ à angústia: /Ele/ - o que é a única fala,/ a última
resposta."^®^ O Cristo-Verbo.
Esta "réstia" se metamoforseia em ''favo de ouro" no poema referente a uma
iluminura do Museu de Condé. Como diante da imagem de Angélico, Rosa fará
apenas uma menção aos animais e dará maior ênfase ao Menino, descrito por
antinomias, mas alquimicamente o ouro — metal perfeito —, símbolo do conheci-
mento, do sol, da luz. Apaga a Virgem e circunscreve a sua visão ao Cristo, dois
anjos e o boi:
Diante da Natividade de Filippo Lippi que aprecia — aquela dos afrescos da cate-
dral de Santa Maria Assunta em Spoleto —, Rosa não discute ou recria a cena, con-
corda com o pintor e descreve as personagens e a situação, implícita uma arquitetura.
Os animais já são:
sou profundamente, essencialmente religioso, ainda que fora do rótulo escrito e das
fileiras de qualquer confissão ou seita; antes talvez, como o Riobaldo do "G.S: V",
pertenço a todas^^^.
Abstract: In thispaper the author deals mth the dialogue of Guimarães Rosa mth the art of painting
through Historj, placing him mth other writers ivhat allours a long duration analysis of poeticproduction,
and at the some time shomng bis singularity.
Keywords: Guimarães Kosa, poetrj, medievaliconographj, nativity.
Notas
^ Carta ao tradutor italiano Edoardo Bizzarri. Citada por Leonardo Arroyo, Culturapopularln: Grande
Sertão: Veredas, R. de Janeiro: José Olympio, 1984 (Coleção Documentos Brasileiros, vol. 195): 5.
^ Citado por Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos, Puras misturas, o imaginário das histórias em Uma
história de amor de João Guimarães Rosa, Tese de doutorado em Teoria Literária e Literatura Compara-
da apresentada ao Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH da USP,
São Paulo, 1990:1.
^ Que se encontram, junto com a biblioteca de Rosa, no Arquivo J.G.R. do Instituto de Estudos
Brasileiros na Universidade de São Paulo.
Assim a descrição de ilustrações :[ "Caçada ao javali" (Wandbild aus Tiryns) '"Voem, corram, cães/
Sobre e sob a presa/ Os cães malhados/ A rude besta casada/ Se estende/solta na velocidade/
tensa e feroz/ mais longa que si mesma"] Ms., Arquivo JG.R., lEB-USP ou ["Sarcófago de Lívia
Primitiva" (Louvre) pg. 76 (x.gr. et lat. no M. do L.) Clareira entre floresta/ de estrigilas:/Bom
Pastor carrega ovelha/ entre as ovelhas/ entre/ a árvore de uma/ âncora/ e o Peixe a prumo.] Ms.,
Arquivo J.G.R., lEB-USP
^ cf. Vicente G u i m a r ã e s , i n f â n c i a de J.G.R, ]osé Olympio-MEC, R. de Janeiro, 1972, p. 16.
^ Publicados em Ave, Palavra, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 198-210. Também numa edição de
luxo, com várias ilustrações, bilingüe, sob a responsabilidade de Geraldo Jordão Pereira, versão
para o inglês de Aila de Oliveira Gomes, R. de Janeiro: Salamandra Consultoria Editorial, 1983.
O nome faz pensar imediatamente no "Sargon/Assarhaddon/ Assurbanipal/ Teglattphalasar,
Salmanassar/ Nabonid, Nabopalassar, Nabucodonosor/ Belsazar/ Sanekherib.
E era para mim um poema esse rol de reis leoninos, agora despojados da vontade sanhuda e só
representados na poesia. Não pelos cilindros de ouro e pedras, postos sobre as reais comas riçadas,
nem pelas alargadas barbas, entremeadas de fios de ouro. Só, só por causa dos nomes". J.G.R., São
Marcos, em Sagarana, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1984: 252-253.
^ Percy Bysshe Shelley Ozymandias, in Immortalpoems of the english language, ed. Oscar Williams, N.
York: Washington Square Press, 1969: 295.
^ John Keats, Ode on a grecian urn, in Immortal Poems of the english language, ed. Oscar Williams, N.
York: Washington Square Press, 1969: 325.
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)
^^ Em um manuscrito: "O Leão de Babilônia" (Leão babilônico) Glasiertes Ziegelrelief aus dem
Tempel der Ninmach (Springer, pg. 59, vol. I) : Branco, rubro e ouro/ sobre o a2ul/ Como o sol/
como asiáticas flores/ Leste-Oeste/ O leão é um deus jubado/ Rígidas a carne e a pedra/ (Incontida)
Maior que os volumes de/ seus membros, de seus lombos,[dorso] [moldes]/ A fôrça/Se libera
pelos olhos/ Contudo, olhos/ (valorizar neste/ a volgal o). Ms, Arquivo. J.G.R., lEB-USP.
" Manuscrito, Arquivo J.G.R., lEB-USP: "Leoa moribunda / pg. 70 Spr. vol. I / (relevo do tempo de
Assurbanipal de Kuyunjir, British Museum).
"A orgulhosa dor mais selvagem/ aparelho e alvo/ flechas ferem sua (crava) longa/ [carne oblíqua/
suas mãos/ resistem como rudes colunas/ A cabeça/ é uma/ Flechas cravam [varam-na] sua longa
carne/ [desgovernada e oblíqua/ (metade de seu corpo já /está morto)/ produzindo-lhe da escan-
carada/ boca um som por/ milhares de anos/ E detiveram-lhe a morte/ Toda um (só músculo, e/
tantos (verdadeiros) sulcos/ como um / se desmorona/ como um deserto/ Homens-leões/
como a (desmoronante)/ desmoronada/ cumieira de um templo" Ms., Arquivo J.GR., lEB-USP.
^^ "Sacrifice d'un porc, d'un bouc et d'un taureau (...) Cette belle procession des svovetaurilia se dirige
vers deux autels, sur Ia droite, auprès desquels sont plantés deux lauriers. Le sacrifice est sans doute
offert à Mars et au génie de 1 'Empereur ou à ce dernier seulement. L 'officiant principal, près de
Tautel est 1 'Empereur lui-même. On a proposé de reconnaitre en lui, Caligula ou Tibère.", 1m
sculpturegrecque et romaine auMusée du Ijouvre: guide du visiteur, Paris, Editions des Musées Nationaux,
1947: 54.
^^ Svovetaurilia /(Museu do Louvre)/ (p. 54 "La sculpture gr. et rom. au M. du Louvre) Ms., Arquivo
J.G.R., lEB USP
^^ Victor Hugo, À Albert Dürer, in Impeinture enpoésie, ed. Marc Meunier-Thouret, Paris: Gallimard,
1983: 21.
Ms. Arquivo J.G.R., lEB-USP.
^^ "Os que por oculta ciência/ de tudo souberam. / Seus mágicos presentes,/ o Menino recebe-os. /
O colo./ A mãe./ O Universo./ Atrás, porém, os dois/ - um Burro, um Boi - / grimaçante e
aturdido,/ mugínquo e mudo./ Inevitáveis. / íntimos das sombras. / Insubstituíveis.", BBP, XXIII,
Ave, Pa/apra, R. de Janeiro: Nova Fronteira: 54.
cf. verbete "or", em Dictionnaire des symholes^2X\%\ Robert Laffont/ Júpiter, 1969: 705.
^^ Thomas Stearns Eliot, Journey of the Magi, in Immortal Poems of the Eng/ish Language, ed. Oscar
Williams, N. York: Washington Square Press, 1969: 537-538.
^^ Théophile Gautier, À Zurbarán, in Lapeinture en poésie, ed. Marc Meunier-Thouret, Paris: Gallimard,
1983: 48-50.
J.G.R., BBP, VI, Ave, Palavra, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 200.
Paul Verlaine, Nascita di Venere, in Lapeinture en poésie, ed. Marc Meunier-Thouret, Paris: Gallimard,
1983: 66.
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)
Carlos Drummond de Andrade, Discurso de Primavera e algumas sombras, R. de Janeiro: José Olympio,
1979:22.
idem, ibidem, p. 38.
Em sua biblioteca há um livro sobre Portinari, de Celso Kelly: Portinari: quarenta anos de convívio,^ R.
de Janeiro, Ed. G.T.L., s. d.
W. H. Auden, Musée des Beaux Arts, in ImmortalPoems of the english language, ed. Oscar Williams, N.
York: Washington Square Press, 1969: 580.
^ J.G.R., BBP VIII, Palavra, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 201.
J.G.R.,.BBP X, idem, p. 202.
^ J.G.R., BBP XI, idem, p. 203.
J.G.R., BBP, XV, idem, p. 205.
J.G.R., BBP, XVIII, idem, p. 206.
J.G.R., BBP, XX, idem, p. 207.
J.G.R., BBP, XXII, idem, p. 208.
J.G.R., BBP, XXIII, idem, p. 209.
J.G.R., BBP, XXIV, idem, p. 209.
J.G, BBP XXV, idem, p. 210.
J.G.R., BBP, XXVI, idem, p. 210.
55 Sobre a questão do distanciamento entre o narrador e sua matéria cf. Lenira Marques CovÍ22Í, O
insólito em Rosa e Borges, S. Paulo: Atica, 1978: 51.
5^ "Dez animais para a ilha deserta: o gato, o cão, o boi, o papagaio, o peru, o sabiá, o burrinho, o
vaga-lume, o esquilo e a horhol^tâ". Ave, palavra, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 125.
5^ Num comentário ao conto O burrinho pedrês, enfatizando o significante, Suzi Frankl Sperber, diz
que : "As descrições dos animais e da paisagem não tem a finalidade de dar cor local e pitoresco.
Nem são propriamente descrições, mas momentos da narrativa de clara função poética. Vale, por-
tanto, a palavra, não a imagem, na fascinação de Guimarães Rosa pelo meio geográfico", Guimarães
Rosa: Signo e Sentimento, S. Paulo: Editora Atica, 1982: 20. Acreditamos que a imagem também valha.
5^ No manual de história da arte de Anton Heinrich Springer, Handbuch der KMnstgeschichte^ Leipzig,
Alfred Krõner Verlag, 1918/20, 5 volumes, cujas ilustrações servem de base para algumas de suas
poesias, somente figuras com animais despertam a escrita.
5^ Seu amor pelos animais é confessadamente equivalente ao amor pelas palavras: Amo o gato e o
boi/ Como amo as letras das palavras/ O mar muito mar. Os belos pés das mulheres/ seus sapa-
tos/ As mãos da gente./ Não sei. Ms., Arquivo J.GR., lEB-USP.
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)
^ Manuscrito: "Os dois macacos que jogam xadrez num capitei de coro de leste da Catedral de
Naumburgo": Que é o demonio:/ Se não a forma/ Que falhou de/ conter em seu / a ener-
gia/ que é do caos/ e a matéria/ apenas em parte/ subjugada? Ms., Arquivo J.G.R., lEB-USP.
^^ Rosa entusiasma-se por um urso realizado por um escultor francês relativamente desconhecido —
François Pompon (1855-1933 — de quem possui um catálogo em sua biblioteca: Musée de Dijon:
Catalogue illustré des oeuvres de François Vompon^ s.n.t.. Pompon era um marmorista, escultor de animais,
discípulo de um outro animalista, Rouillard. Reza a introdução do catálogo de sua exposição no
Museu de Dijon que Pompon "rejoint Festhétique egyptienne". O urso, motivo do rascunho da
poesia de Rosa, constante no catálogo como peça do acervo do Museu do Luxemburgo, apresenta
linhas muito limpas, bastante volume e uma economia minimalista de traços. Assim é visto num
manuscrito: "Urso branco" (Pompon) Ou seja: seu grotesco salvo/ (por) Pelo (pensado) Peso/
Que insere (reverte) (inscreve) (corresponde)/ Seu movimento. Num/ modo mais espesso/ do
mundo (caminhado)/ urso recém-saído,/ trapézio recortado/ (Bloco) quadrangular momento/
tosco e/ definitivo/ (irremissível). Ms., Arquivo J.G.R., lEB-USP.
Vendo a "StilUeben mit Wildbret" de Frans Snyders (München Pinakothek): A morte dos animais
caçados/ Guarda gélida violência: / quem os lamentará ? / O faisão sobre a toalha/ branca —
trucidada/ beleza _/ e os pássaros pingados/ de rubro - tão ausentes/ de seus cantos. / O coelho,
pendente / O grande veado de/ longas patas/ despencado./ A lagosta - na bandeja/ rubra,
rubra,/ Da condenação/ [uvas, vegetais, frutas. Ms, Arquivo J.G.R., lEB-USP.
^^ "O melhor, sem dúvida, é escutar Platão: é preciso — diz êle — que haja no universo um sólido que
seja resistente; é porisso que a Terra está situada no centro, como uma ponte sobre o abismo; ela
oferece um solo firme a quem sobre ela caminha, e os animais que estão em sua superfície dela
tiram necessariamente umá solidez semelhante à sua". Plotino. Epígrafe de No Urubuquaquá, No
Vinhém, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
^ Nas anotações de Rosa, à mão e à máquina, há várias páginas sobre os zoológicos por onde andava,
em Hamburgo, Roma, Londres. Algumas estão publicadas em Ave, Palavra.
^^ Como diz Wilton Cardoso "...na sua obra, a linguagem não é simples meio de expressão da reali-
dade, senão que é ela própria que compõe essa mesma realidade" em "A estrutura da composição
em Guimarães Rosa" in Guimarães Rosa, Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros, 1966: 45.
^^ cf Francis l]téz2i,JGK- Metafísica do Grande Sertão, tradução José Carlos Garbuglio, S. Paulo: Edusp,
p. 22.
Ms., Arquivo J.G.R., lEB-USP.
^^ A paixão de Rosa pelos bois é bastante explorada por seu tio Vicente Guimarães em João^^ito,
infância de Guimarães Rosa, R. de Janeiro, José Olympio-MEC, 1972. Menino "acomodado", diz o
tio, leitor contumaz, sem muito interesse por bricandeiras ou futebol, "gostava mesmo, com entu-
siasmo de grande interêsse, era assistir ao embarque de boiadas...." p. 56 ss.
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)
^ cf. verbete Natm^ in James Hall, Dictionary of Suhjects and Sjmbols in Art, Londres: John Murray,
1993: 219-220.
^^ cf. Anabel Thomas, verbete Christ.- Childhood in lllustrated Dictionary ofNarrative Vainting, Londres,
John Murray/National Gallery Publications, 1994, p. 30.
^^ J.G.R., BBP, XVI, Ave, Palavra, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 205. Nesta edição há um
equívoco na atribuição do nome do pintor - onde está Sano di Pietro deveria constar Niccolo di
Tommaso. Na edição feita por Geraldo Jordão Pereira, Salamandra, 1983, a atribuição está correta.
^^ "Eu tinha precisão de aprender mais, sobre a alma dos bois....", c£ Com o Vaqueiro Mariano, Estas
Estórias, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 93.
Ms. Arquivo Gimarães Rosa, lEB-USP
^^ J.G.R., BBP Xlll,Ave, Palavra, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 204.
^ cf Giancarlo Vigorelli, Edi Baccheschi, L'opera completa di Giotto, Milão: Rizzoli, 1966: 93.
^^ "O burro e o boi — à mangedoura — como quando os bichos falavam e os homens calavam", cf
Presepe, em Tutaméia, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 135.
^^ "Que já houve um tempo em que eles conversavam, entre si e com os homens, é certo e indiscutí-
vel, pois que bem comprovado nos livros das fadas carochas" J.G.R., Conversa de Bois, em Sagarana,
R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1984: 303; "...il beato Francesco predico a molti uccelli...", cf Giancarlo
Vigorelli, Giotto, Milão, Rizzoli, 1966, p. 93.
^^ Guimarães Rosa utiliza esta forma na Grande louvação pastoril, em Ave, Palavra, R. de Janeiro:
Nova Fronteira, 1985: 159.
cf LUÍS da Camara Cascudo, Dicionário do folclore brasileiro, S. Paulo: Itatiaia/Edusp, 1988: 633.
^^ Niccolo di Tommaso (fim sec.XIV - início sec. XV), Meister Franck (ativo no primeiro terço do
século XV), Gentile da Fabriano (c. 1370-c. 1440), Fra Angélico (1387-1455), Roger van der Weyden
(fim do sec. XIV -1467), Sano di Pietro (1406-1481), Filippo Lippi (1406-1469), Piero delia Francesca
(c. 1420-1492), Hugo van der Goes (? - 1482), Benozzo Gózzoli (1424-1497), Botticelli (1444-
1510), Schongauer (1445-1491), Ghirlandaio (1449-1494), Bosch (1450-1516), Pinturricchio (1454-
1513), Dürer (1471-1528).,Hans Baldung (1484-1545), Zurbarán (1598-1664).
^^ "Serão os pagens da Virgem, / ladeiam-na / como círios de paz,/ colunas/ sem esforço. / Tacitur-
nos/ eremitas do obscuro, / se absorvem./ Sua franqueza comum equilibra frêmitos e gestos/
circunstantes/ Os animais de boa vontade. " BBP, V, p. 18.
^^ Carlos Drummond de Andrade, Os animais do presépio, em Reunião, R. de Janeiro: J. Olympio,
1980: 166.
Ms. Arquivo J.G.R., lEB-USP.
^^ J.G.R., BBP I, iyi,Ave, Palavra, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 198, 202.
^^^ cf Giulio Cario Argan, Botticelli, Genebra: Skira, 1989: 58.
Queiroz, Tereza Aline Pereira de. Imaginário - USP, n. 5, p. 39-65, 1999. 5-)
Resumo: O propósito deste artigo é desenvolver alguns temas sugeridos pelo contato com a obra do pintor
alemão A.nselm Kiefer. Os temas são tratados a partir das impressões deixadaspela exposição reali^da em
1998, no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, do exame de catálogos e da leitura de alguns de
seus comentadores. As temáticas referem-se, principalmente, às relações entre história, mitologia e arte, à
pintura de paisagens, aos materiais e símbolos na obra do pintor
Palavras-chave: Anselm Kiefer, arte, história, mitologia, paisagem
I
Em maio de 1998 realizou-se, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM),
uma exposição do artista plástico alemão Anselm Kiefer, da qual faziam parte imen-
sas telas com imagens da cidade de São Paulo. Uma sensação vertiginosa tomava
conta do espectador ao confrontar-se com as paulistanas perspectivas aéreas em ''
LiUth" de 1987 e "Paisagem Ãnd^/Barren Landscape'' de 1986/91 . Nesta última, um
redemoinho literal de "Copan", tradicional prédio/monumento da cidade, extravasa
a tela, deixando o espectador fora de lugar. Forasteiro, volta-se para "Lilith" - con-
centração de tempos aglutinados e ruínas sobrepostas. Um mundo desértico em
numerosas camadas grossas de tinta, pó e areia. Tudo ali é desalento! Na cidade, uma
imensa asa metálica sobre construções insepultas: matéria ferida, calcinada, parado-
xalmente pálida e vigorosa, na qual o olhar é capturado, sensível às coisas do mundo,
fazendo lembrar uma citação de Olgária MATOS:
Se o olhar entristecido é aquele que não encontra nada de durável, se em tudo vê ruínas,
antes e independentemente do seu desmoronamento, é, porém para redimir a passagem
do tempo. Sua inação não é desmobilização frente à ordem das urgências. Em meio às
ruínas, em toda parte há passagens, pois há que reconhecer os caminhos que se desenham
entre elas. E se as ruínas revelam, do ponto de vista da duração, a insignificância das coisas,
também, na mesma medida, para a imaginação, são míticas e indestrutíveis. (1995: 6)
II
Anselm Kiefer abandonou o estudo de Direito para dedicar-se às artes plásticas
e não há muita informação sobre sua vida: a compreensão de sua obra, acredita o
pintor, dispensa o recurso a este tipo de informação.
Soares, Liana Cardoso e Schmidt, Maria Luisa Sandoval. Imaginário - USP, n. 5, p. 67-81, 1999. 7"|
O confronto com a dolorosa herança alemã — tomada como uma tragédia pes-
soal, de uma nação e da cultura ocidental - perpassa o trajeto do pintor. Neste
confronto, Kiefer oferece a arte como um antídoto teórico para o terror da história
humana e para a falência das figuras míticas.
IV
A palheta nas telas do pintor representa a arte que fala o sujeito pessoal e social,
individual e coletivo e que se oferece como oportunidade de rememoração e regene-
ração do passado. Nas palavras de TASSINARI (1998):
Para Kiefer, arte é uma abertura entre ordem e caos, entre humano e natural, entre
individualidade e história, entre céu e terra. Sua função é estabelecer elos entre opos-
tos que se pertencem mutuamente, (p. 15)
A palheta é poiesis: ação que dissolve e separa, que pode revelar ou tornar presente
apenas através da dissolução e da análise. A palheta é o "jarro" no qual os elementos
alcançam sua combustão: queimando tornam-se livres da fixidez que os separa de
outros, morrem para a existência que os obriga a serem somente eles mesmos, (p. 11)
Soares, Liana Cardoso e Schmidt, Maria Luisa Sandoval. Imaginário - USP, n. 5, p. 67-81, 1999. 7"|
VI
Nas telas "Lilith" e "Paisagem Arida/B^m// iMndscape'' a cidade de São Paulo é
pedra e pó, aparência e dissolução da aparência. Nelas, a cidade é comparável a um
deserto. Seu aspecto árido e inóspito é efeito do olhar estrangeiro do pintor que
denuncia o caráter inabitável do lugar onde, paradoxalmente, milhões de homens e
mulheres residem. Ao invés de repetir os chavões hodiernos a respeito dos lugares,
Kieffer — "um dos últimos românticos" — vai além do já visto, fazendo aparecer algo
que os próprios moradores da cidade, imersos na profusão de signos, reconhecem
desde o interior de um desconhecimento ou estranhamento. Explorador arguto, re-
trata o lugar de modo inusitado, revelando aquilo que, apesar de pressentido, encon-
tra-se de alguma maneira obscuro aos olhos daqueles que ali habitam.
Para alguns críticos, este extraordinário artista constroe suas obras numa perspec-
tiva metafísica. Se ele cria sob a égide da representação, é a própria idéia de represen-
tação na pintura que surge, então, transtornada. Na pintura de paisagens esta transfor-
mação da tradição é particularmente tangível: trata-se de uma tentativa de síntese de
uma grande tradição que, contudo, busca ultrapassá-la.
Suas paisagens incitam uma recepção mais tátil do que contemplativa: os olhos
como mãos tateiam a paisagem que se projeta para fora da tela, invertendo a perspec-
tiva clássica através da qual o observador era convidado a percorrer a paisagem com
o olhar. Ou, dito de outra maneira, é como se a paisagem atingisse o espectador,
arrancando-o do solo seguro da representação usual dos lugares.
Soares, Liana Cardoso e Schmidt, Maria Luisa Sandoval. Imaginário - USP, n. 5, p. 67-81, 1999. 7"|
Abstract: Ourpurpose in this paper is to discuss some themes sugested hj the mrks of the German
painter Anselm Kiefer. We discuss them from the impressions left bj the exposition of 1998 held at the
Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, hj the analysis of catalogues and bj the reading of some
of his critics. The subjects refer mainly to the relationship between history, mithology and art, as well as
landscapes, materiais and symbols on thepainter's mrks.
Keywords: Anselm Kiefer, art, history, mithology, landscape
Soares, Liana Cardoso e Schmidt, Maria Luisa Sandoval. Imaginário - USP, n. 5, p. 67-81, 1999. 7"|
Notas
^ Nelson Brissac PEIXOTO (1996) comenta que Kiefer, ao utilizar títulos e anotações caligrafadas,
transforma cenas em evocações culturais, em "paisagens da memória", (p. 243)
^ A série "Ocupações" exemplifica o modo como Kiefer procura colocar-se no coração das tensões
e afetos implicados no projeto nazista. Trata-se de um conjunto de fotos do pintor em várias
praças da Europa. Nelas, as praças aparecem vazias, destacando-se a figura do artista flagrado no
gesto da saudação hitieriana, numa espécie de ocupação simbólica dos espaços ou como uma
representação da aspiração demencial de Hitler de dominar a Europa. Segundo PEDRAZA (1998),
Kiefer realiza, nestas fotos, o desejo de incorporar à sua obra os "temas tabus". A forma desta
incorporação é fundamental, pois é colocando-se em simetria com o passado nazista que busca
trazê-lo à reflexão.
^ Um conjunto de telas tem como tema a ópera de Wagner "O anel de Nibelung". Aqui entrelaçam-
se a apropriação de Wagner do mito, a apropriação de Wagner por Hitier e a interpretação de
Kiefer sobre a transitoriedade dos heróis e a vulnerabilidade das idéias. Segundo ROSENTHAL
(1987), " A atitude de Kiefer em relação a uma Alemanha cujos heróis espirituais são de fato
transitórios (...) não é apenas ambivalente, mas cortante e irônica (...) Estas grandes figuras e suas
conquistas foram reduzidas a apenas nomes, recordados não em um edifício de mármore, mas no
sótão de uma escola rural." (p. 30)
^ Para PEIXOTO (1996), os livros de Kiefer são uma tentativa de recolher e preservar "imagens de
mundo um que não existe mais", estabelecendo um diálogo entre a pintura e o livro em que a
percepção instantânea do quadro encontra sua contrapartida na percepção temporal do livro.
^ Analisando o quadro "Controvérsia Iconoclasta" no qual sobre um solo de madeira aparece desenha-
da a palheta do pintor e sobre a palheta desenrola-se uma batalha de pequenos tanques em meio a
chamas de coloração branca, ROSENTHAL (1987) interpreta os tanques como elementos masculi-
nos que fertilizam a arte representada pela palheta. Mas, ao mesmo tempo, o tratamento dos eventos
envolvidos historicamente na controvérsia iconoclasta e no regime hitleriano indica que a arte pode
ser independente e apresentar-se como uma ameaça para a ordem estabelecida. Numa série de fotos
chamada "Operação Marinho" e no quadro "Operação Marinho I", Kiefer faz uma referência irônica
aos jogos de simulação estratégica que os nazistas costumavam encenar nas vésperas de ações milita-
res, através da representação de embarcações de brinquedo numa banheira.
^ O termo iconoclastia refere-se ao ato de destruir imagens.
Para Kiefer a arte existe ou não, mas não pode ser doente ou degenerada. (ROSENTHAL, 1987, p. 66)
^ Vale a pena destacar mais duas observações de Pedraza sobre a iconoclastia que parecem precisosas:
1) a consideração da psicologia moderna como repressora de imagens, na medida em que substitui
a expressão imagética de sentimentos, sensações e do vivido por crivos teórico-explicativos e inter-
pretações e 2) a apreciação do abstracionismo, em pintura, como repressor de imagens arquetípicas
e instintuais de origem primitiva. Ou seja, o abstracionismo resultaria do e no afastamento de
Soares, Liana Cardoso e Schmidt, Maria Luisa Sandoval. Imaginário - USP, n. 5, p. 67-81, 1999. 7"|
imagens primevas de ligação com a natureza. No que diz respeito ao abstracionismo, Pedraza
comenta a especial sensibilidade de Kiefer em relação a Mondrian: no quadro Piet Mondrian - A
Batalha de Arminio^ o pintor faz o caminho inverso ao de Mondrian que transforma uma árvore em
linhas retas. Kiefer, ao contrário, retoma a árvore "desaparecida" da pintura de Mondrian. Este
processo metaforiza a retomada do contato com imagens primitivas.
^ Como aponta CELANT (1997), não se trata de separar a luz da escuridão, mas de reabsorver a
devastação, o horror e a tragédia, pois "faz parte da tarefa do pintor seguir e encarar a linguagem de
sangue e morte que a jornada humana envolve". (p.l8)
O livro Erotik im Femen Osten oder: Transition Jrom cool to warm trata, como indica o subtítulo, do tema da
passagem do frio ao quente através da transformação de cores e temas ao longo de uma série de aquarelas:
do preto e azial para diferentes vermelhos, de paisagens gélidas para o corpo nu de uma mulher.
Referências Bibliográficas
BENJAMIN, Walter. (1935/1936). "A obra de arte na era de sua reprodutibiHdade técnica^: In: Obras
Escolhidas. São Paulo, Brasiliense, 1985, vol.l.
BENJAMIN, Walter. (1940) "Sobre o conceito de história". In: Obras Escolhidas, São Paulo: Brasiliense,
1985,vol.l
CACCIARJ, Massimo. "A tribute to Anselm Kiefer". In: Cacciari, M. e Celant, G. Anselm Kiefer -
Veneza Contemporâneo. Milão: Edizioni Charta, 1997.
CELANT, Germano. "The destiny of art: Anselm Kiefer". In: Cacciari, M. e Celant, G. Anselm Kiefer
- Vene:(ia Contemporâneo. Milão: Edizioni Charta, 1997.
KIEFER, Anselm. Erotlk im Fernen Osten oder: transition from cool to warm. Boston: The Museum of
Fine Arts, 1988.
LITTMAN, Robert. "Anselm Kiefer". In: Kiefer no Museu de Arte Moderna de São Paulo. São Paulo,
MAM, 1998.
LÓPEZ-PEDRAZA, Rafael. Anselm Kiefer. Caracas, Festina Lente, 1998.
MATOS, Olgária Féres Chaim. O sol triste das ruínas. Folha de São Paulo, 29 de outubro de 1995. (5-6)
PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagens urbanas. São Paulo, Editora SENAC São Paulo: Editora Marca
D'Água, 1996.
ROSENTHAL, Mark. Anselm Kiefer Chicago e Phüadelphia: The Art Institute of Chicago: Phüadelphia
Museum of Art, 1987.
TASSINARI, Alberto. "O rumor do tempo". In: Anselm Kiefer no Museu de Arte Moderna de São Paulo. São
Paulo: MAM, 1998.
Paisagem e Cultura
Resumo: Este trabalho tem a intenção defa^ruma breve análise sobre o conceito depaisagem,freqüentemente
definido pela Geografia Humana como uma realidade material e representação vivida, que é um conceito-
chavepara compreendermos como ocorre a construção do discurso geográfico e como esta disciplina trabalha a
cultura e a diversidade cultural Para tanto, utili^remos textos publicados recentemente com uma visão
interdisáplinar, Magos e Perrot e'Lenclud,ambos na coletânea Paysages au Plurie (1995), bem como de
geógrafos clássicos que marcaram profundamente a produção acadêmica daquela disáplina: Sauer (1925) e
George (1990)
Palavras-chave: Paisagem, cultura, geografia, antropologia
Carl Sauer (Sauer, 1925) no seu texto Morphology of the L^nàscape faz considera-
ções interessantes. Observando que o rótulo Geografia, bem como História, não
garante a matéria contida, para estabelecer a especificidade da primeira, parte do
termo landscape, que significa modelado da terra, não somente do ponto de vista
físico, mas também de uma combinação de formas físicas e culturais; no sentido
usado pelos geógrafos, paisagem não é apenas um cenário visto por um observador,
mas uma generalização oriunda da observação de vários cenários. Desta forma são
estabelecidos quais os elementos que a constituem. A partir disto é que serão leva-
dos em conta os que devem ser considerados para uma análise. Ora, estes são frutos
do julgamento individual do geógrafo ao priorizar uns e ignorar outros. Para ultrapas-
sar os riscos de uma extrema subjetividade, Sauer propõe um modo de pesquisa pré-
determinado, que só é possível pela aplicação de um método morfológico de análise,
o que implica numa descrição sistemática, criando para isso uma representação diagra-
mática da paisagem; assim, o geógrafo pode chegar às suas formas e estruturas.
Neste processo notamos que o discurso geográfico tende à monossemina e à
monofonia, ou seja, nada pode desautorizá-lo, passando a ter um sentido universal
construído pela metodologia da taxonomia.
Onde aparece o papel da cultura? Não faz ela parte deste atributo? E o que este
significa? Ou seria um discurso de uma determinada cultura, em um determinado
momento histórico que caracteriza um determinado grupo social tentando implan-
tar sua ideologia? Será que o conceito de paisagem tem a mesma intenção que o
termo "folclore", ambos atribuídos por um olhar externo com a intenção de conge-
lar tempo e espaço? Estamos longe da proposta de Ratzel de considerar-se o "volu-
me geográfico" e o "volume mental" das sociedades humanas, o primeiro sendo a
extensão espacial materialmente ocupada pela sociedade considerada e o segundo, a
área geográfica que ela chega a abarcar com o pensamento (cit. Mauss, 1974).
Apesar de toda a intenção de despir-se de subjetivismos, eles jamais serão erra-
dicados dos textos geográficos, mesmo com toda a pretensão de objetividade que
dominará a disciplina cada vez com mais força.
Vejamos, como exemplo desta afirmação, a produção de um geógrafo francês:
Pierre George.^ Extraímos alguns parágrafos de seu livro ^ Profissão de Geógrafo -
86 Alcântara, Maria de Lourdes Beldi & Sader, Regina T. Imaginário - USP, n. 5, p. 83-89, 1999.
Meio Século de Geografia (George, 1990). Dentro do bloco que o autor denomina de "A
Geografia da Imobilidade", transcreve artigo seu de 1935 intitulado "A árvore e a
água: da floresta ao bocage''^\ em três páginas e meia a descrição da paisagem é feita
exclusivamente a partir de suas sensações:
O céu faz parte da paisagem. Assim como não se concebe uma paisagem da Provença
sem um céu de azul intenso, o "bocage" é uma área de meios tons, de brumas vapo-
rosas que sobem dos vales, das lagunas e das pradarias. Não há nenhuma brutalidade
no "bocage", salvo quando a tempestada ultrapassa a Armórica, mas apenas a mono-
tonia triste dos céus cinzentos, (p. 14)
Então a que serv^e este conceito? Em vez de analisarmos o que seria ou não
paisagem,aão seria mais adequado formularmos outra pergunta: para que
instrumentalização ideeológica se forja e se manipula este conceito?
Sabemos que estre termo se originou da pintura que se ocupava das cenas
bucólicas, ibemos qu« e não tinha somente a finalidade de "retratar" o espaço repre-
sentado, nis um recorrte visual do mesmo, recorte este imbuído da percepção indi-
vidual doaitista que piintava, e que este artista representava uma determinada cultu-
ra e dentrodesta cultuira uma determinada classe, portanto, representava um deter-
minado unirerso simboólico. E nós? Como e em que momento atribuímos este con-
ceito ao espaço vividos? Qual a intenção deste discurso? Pode ser desde uma inten-
88 Alcântara, Maria de Lourdes Beldi & Sader, Regina T. Imaginário - USP, n. 5, p. 83-89, 1999.
ção "científica" até utópica e política. Necessitamos pensar no conceito e para que
se destina para podermos utilizá-lo com claros objetivos.
Lenclud (op. cit.) considera que o termo paisagem é definido por possuir uma
realidade material, pois é uma extensão de espaço oferecida ao olhar, porém que na
sua materialidade pré-existe a ele; uma realidade subjetiva, uma vez que não existe
paisagem se não existir um observador, sendo assim um lugar, mas um lugar isolado
para se olhar e contemplar, um espaço, no entanto um espaço enquadrado, um dado,
mas um dado reconstruído por uma análise visual, um recorte do mundo, contudo
um recorte significante. A paisagem é, portanto, a percepção de uma porção do
espaço. Ora, todo suporte para a percepção já é percebido, não existe nenhuma
realidade que não esteja interpretada. O esquema conceituai que faz da colina uma
paisagem é apenas um, entre outros possíveis. Assim, todo espaço é potencialmente
paisagem. Um objeto percebido é um objeto refigurado, provido de atributos já
sabidos. Quando a percepção transforma uma porção de espaço em paisagem ela
está aplicando-lhe julgamentos de conformidade, realidade e identificação.
Em suma, a paisagem é um dado reconstruído por uma percepção que informa
esquemas conceituais, incluindo não só a representação da paisagem, mas também a
representação do que deve ser uma paisagem nas diversas circustâncias, tornando-se
julgamento de valor e, portanto, cultural. O cultural define-se a partir do momento
em que um espaço é delimitado, ocupado, mobiliado, vivido, transformado ao ser
nomeado, impresso por identidade. Assim o espaço torna-se social, não uma catego-
ria vazia de conteúdo, mas preenchida pela identidade cultural.
Por isso o termo paisagem é um conceito cultural do enunciatário, pois tem
uma direção determinada. A melhor maneira de analisarmos um espaço parece-nos
ser através da construção social que o grupo atribui ao seu espaço vivido, ou seja,
sua representação, sua identidade.
O termo paisagem torna-se uma alegoria, uma figura de linguagem utilizada
pela Geografia como um locus da diversidade cultural, sempre com um olhar de
distanciamento, e não poderia ser diferente pois sempre é atribuídos, tornando-lhe
um adjetivo, uma metáfora e, portanto, uma poética.
89 Alcântara, Maria de Lourdes Beldi & Sader, Regina T. Imaginário - USP, n. 5, p. 83-89, 1999.
Abstract: Thispaper deals mth the concept of landscape in Geographj often defmed hj Human Geography
as a material reality and a lived representation. The concept is fundamental to the understanding how the
geographical discourse is constructed and how Geographj regards culture and cultural diversity.
Keywords: landscape, culture, geographj, anthropology
Notas
^ Poderíamos escolher outro autor, um brasileiro, talvez, mas a geógrafa que participa destas refle-
xões leva a sério sua subjetividade, e além do mais, entre outras razões sua formação foi profunda-
mente marcada por George.
^ Bocage é o nome usado para designar campos de cultivo limitados por cercas-vivas, não havendo
equivalente em português.
^ São formas de relevo em regiões calcáreas.
Referências Bibliográficas
GEORGE, Pierre. LM Profission de Géographe— Un demi-siècle de Géographie—'Eá. Armand
Colun. Paris, 1990.
LENCLUD, Gérald — "Ethnologie et paysage". In: Collection ethnologique de Ia France.
Cahier 9. Paris: Paysage au Pluriel — Editions de Ia Maison des Sciences de THomme,
1995: 3-17.
MAGOS, Isabelle et Perrot, Martyne. "UAubrac, du haut lieu au non-lieu
touristique?", p. 35 a 48. Ibidem.
RATZEL, E cit. M. Mauss. In: Sociologia e Antropologia. V 11. "Ensaio sobre as variações
sazoneiras das sociedades esquimó". São Paulo: Ed. EPU/USP, 1974: 237-326.
SAVER, C.O. "Morphology of landscape". University of Califórnia Publications in
Geography, vol. 2, n" 2,1925: 19-54.
Le Lien Social
Leslie Kaplan*
Resumo: Neste artigo a autora coloca a questão de como o trabalho do escritor^ que é um trabalho
solitário, liga-se à sociedade. Para ela, é a partir da linguagem, pois é com esta que se pode sair da solidão
humana.
Palavras-chave: Unguagem, escritor, ligação social
J'ai pensé qu'il serait intéressant de s'arrêter sur ce titre, le lien social. Je veux
dire: ne pas gommer le paradoxe. II peut en effet sembler paradoxal qu'à des écrivains
on demande d'intervenir dans ce sens. Je ne parle pas bien súr des préjugés, ou de Ia
vision romantique, Técrivain comme individualiste, etc. Ni de 1'ouevre même, qui a
évidemment sa place dans Ia société et le monde, comme lien, comme rupture de
lien, et création de nouvelUes formes de lies. Mais le travail d'écriture est un travail
solitaire, alors en quoi ce travail peut-il être sollicité par rapport à Ia question du lien
social? Comment penser Texpérience de Técrivain en ce qu'elle aurait quelque chose
à voir avec le lien social? Partager, transmettre quoi? D'autre part, s'il s'agit de tisser
ou de renouer des liens au sein de Ia population, qu'est-ce à dire sinon que Ton
constate à quel point ce tissu est défait, détruit.
* Leslie Kaplan é escritora de língua francesa que acaba de publicar seu 10° livro: Le Psychanaüste
(P.O.L., Sept. 199) a ser lançado no Brasil. Militante de movimentos de 1968 na França foi "deslocada"
para trabalhar como operária em fábricas, experiência que deu origem a L'Ex"ces-L'Usine (1982),
Le Livre des Cieis (1983) e Depuis Maintenant (1996)
92 Kaplan, Leslie. Imaginário - USP, n. 5, p. 91-94, 1999.
Hannah Arendt, dans Les origines du totalitarisme: "Ce qui, dans le monde non
totalitaire, prépare les hommes à Ia domination totalitaire, c'est le fait que Ia désolaüon
qui jadis constituait une expérience limite, subie dans certaines conditions sociales
marginales, telles que Ia vieillesse, est devenue Texpérience quotidienne de masses
toujours croissante de notre siècle".
La désolaüon, d'après Arendt, le terme anglais est lonelinesss, c'est Tisolement,
Ia solitude non pas choisie mais subie. II me semble qu'on peut développer: c'est
Taccablement devant Ia lourdeur du monde, Timpression d'être dépassé par le monde,
d'être complètement incapable de lui faire face. Cest le malheur, le sentiment d'avoir
été abandonné, petit et abandonné, sentiment tellement fort qu'il peut engendrer Ia
perte des repères, Ia perte de Tidentité, et finalement Taliénation totale, avec Ia capture
par des idéologies de ressentiment. Pour Arendt c'est ce qu'elle analyse comme Ia
société industrieUe de masse qui produit Ia désolation, personneUement je suis d'accord
avec eUe. Mais ici n'est pas le lieu de Ia recherche des causes, mais du constat, et de se
demander: et alors, quoi, et quoi de Técrivain par rapport à cette situation.
Les situations sont les plus variées, tous les lieux du monde actuel, ville, hôpital,
prison, maison de retraite, écoles...
Or, ce qu'il faut remarquer: chaque fois que le lien social est attaqué, c'est le lien
avec le langage qui est aussi attaqué. Dans Ia désolation, ce qui est atteint, c'est aussi
le langage, le Uen fondamental humain du langage, Ia confiance dans les mots, dans
Ia parole de Tautre. La parole de Tautre, de n'importe quel autre, est mise en cause,
mise en doute, on n'y croit plus, quel intérêt, c'est pas Ia peine, à quoi servent les
mots, c'est du baratin, du bla bla bla. On laisse tomber, comme on a été laissé tombé.
D'oü une violence en miroir à Ia violence qui a été faite, d'oú Tadhésion à
n'importe quoi, religion, superstition, délire politique, drogue...
Je pense donc que pour que le tissu social soit reconstruit, il faut aussi prende
en considération Ia question du langage.
Ce qui ne veut évidemment pas dire que c'est Ia seule dimension impliquée. Le
réel excéde toujours les mots.
II suffit de penser un instant par exemple à une maison d'arrêt, ou les détenus
sont huit dans une cellule, cellule ou il y a par aiUers les sanitaires.
92 Kaplan, Leslie. Imaginário - USP, n. 5, p. 92-94, 1999.
OU à un collége de banlieve oú les élèves sont parqués, trop nombreux, presque réduits
à ranonymat, des enfants presque anonymes, ou à une maison de retraite qui à quatre
de l'après-midi sent déjà, ou encore, le poisson...
Abstract: In thispaperthe author analjses how a nmterwork can be tiedto socialproblems. She emphasi^s
the role of language to befreed from human solitude.
Keywords: language, writer, social
Não há lugar como o nosso lar: Antropologia,
Multiculturalismo e Novas Tecnologias"^
Aleksandar Boskovic^
Resumo: O artigo trata de um mundo remodelado pela tecnologia em ritmo acelerado e como isso tem
afetado culturaSy sociedades e vidas individuais.
Palavras-chave: Glohalifiação, novas tecnologias, multiculturalismo, antropologia
Recentemente lemos que a antropologia está em crise (Scott, 1992; Shore, 1996),
algumas vêzes relacionada a própria crise dos intelectuais (Grimshaw e Hart, 1994),
outras simplesmente colocada nesta posição precária por circunstâncias tais como
conflitos étnicos (Khazanov, 1996). Naturalmente esta "conversa sobre crise" tam-
bém pode ser interpretada como o sinal do fim do milênio, com o enorme destaque
dado recentemente pelos meios de comunicação a desastres (incluindo filmes como
The Independence Day, Deep Impact, Armageddon, The Sphere, etc.), catástrofes, epidemias
como a AIDS, problemas com a camada de ozônio e riscos ambientais similares —
levando-nos a olhar o fato de ainda estarmos vivos como algo parecido a um müa-
gre. Apesar de pensar que os debates sobre o fim da antropologia são um pouco
prematuros, há, sem dúvida, conceitos que abalam a imagem tanto da antropologia
enquanto disciplina como de nosso lugar nela.
O multiculturalismo impôs-se como um dos conceitos mais importantes quan-
do nos preparamos para o próximo milênio. Esta imposição é basicamente o resul-
* Título original em inglês "There is no place like home" faz um jogo de palavras com
"home"(lar) e "home page" da Internet.
** PhD em Antropologia Social, Conferencista Visitante da Universidade de Belgrado em 1998.
1 00 Boskovic, Aleksandar. Imaginário - USP, n. 5, p. 95-104, 1999.
para perguntas, contudo, também para inseguranças, pois a globalização torna a ques-
tão de identidades particulares mais fictícia do que nunca.
A razão para esta insegurança deve ser buscada numa das conseqüências
mais aparentes da globalização. Os sociólogos canadenses Arthur e Marylouise
Kroker mencionam a estratégia de "fechamento" e de "idiotização". Nas pala-
vras do teórico francês Ignacio Ramonet (1995): "Nas democracias de hoje, um
número crescente de cidadãos livres sente-se incapaz de progredir, grudados
por uma espécie de dogma pegajoso que engole subrepticiamente cada forma
diferente de pensar, inibindo-a, perturbando-a, paralisando-a e, finalmente,
anulando-a. Ameaçados pelos acontecimentos que vão além de suas capacida-
des de entendimento e, em alguns casos pelo menos, até da imaginação, muitos
preferem retirar-se para seus pequenos abrigos, aceitando as coisas da forma
mais simples e direta possível, simplesmente fechando-se contra as influências
ameaçadoras do mundo exterior. Isto também leva a várias formas de racismo
e de xenofobia, pois qualquer forma de diferença, especialmente tratando-se de
outra raça ou outra cultura, é percebida como perigosa. Os ataques raciais e as
manifestações de xenofobia freqüentemente aparecem nos setores mais pobres,
como nas áreas de habitação popular financiadas pelo governo na Grã-Bretanha
ou como em muitos países da Europa Ocidental. O sentimento de ameaça é
cuidadosamente explorado por outro segmento novo da sociedade que Kroker
chama de "classe virtual".
Esta classe virtual é conseqüência direta da nova revolução digital e sua
característica predominante é o domínio do "ego predatório", um tipo de capi-
talismo implacável que busca a maximização do lucro ao mesmo tempo que a
minimização dos custos, sem importar-se com o custo social ou político. Da
mesma maneira que a revolução industrial há um século atrás, a revolução
digital alçou muitas esperanças e prometeu uma sociedade melhor para todos.
Se a tecnologia simplesmente dominasse, foi-nos dito, as máquinas farão a mai-
or parte do trabalho, produzirão mais bens o que levará a um aumento adequado do
lucro e, desta maneira, os seres humanos terão maior tempo livre ("qualidade de
vida"). Obviamente as coisas não aconteceram exatamente assim. As pessoas que
1 00 Boskovic, Aleksandar. Imaginário - USP, n. 5, p. 97-104, 1999.
... no início do século XIX a expansão das novas tecnologias industriais não
libertou escravos. Pelo contrário, a invenção das máquinas de descaroçar algo-
dão e as de fiação na verdade reforçaram a intistuição escravista arcaica e brutal
no Velho Sul [dos Estados Unidos]. (Barbrook 1995)
Um mundo em mudança
Nosso mundo está cada vez mais sendo remodelado pela tecnologia. Como
observou Ramonet no seu artigo de Outubro de 1997 no Le Monde
Diplomatique, em 1917 foram necessários dez dias para que a Revolução
Bolchevique na Rússia parasse a máquina compressora do mundo capitalista.
Esta foi a primeira grande mudança (mutation), como diz Ramonet, do nosso
século. Outra mudança (mutation) aconteceu na década de 1980 com o adven-
to da nova tecnologia digital e a dissolução do comunismo, e estas séries de
mudanças radicais ("a segunda revolução capitalista") ocorreram simultanea-
mente em três domínios diferentes.
O primeiro domínio é o tecnológico, com a informatização de todas as
áreas da existência. Isto inclui também a passagem para a transmissão numérica
de sons, textos, imagens, pois a ampliação da informação envolve trabalho,
educação, lazer.
O segundo, é o domínio da economia, uma vez que novas tecnologias
favorecem a expansão da esfera financeira. Elas basicamente estimulam atividades
que possuem quatro qualidades: precisam ser planetárias, permanentes, imedi-
atas e imateriais. O Big Bang dos mercados financeiros e da desregulamentação ocor-
reu na década de 1980 quando a Sra. Thatcher e o Sr. Reagan favoreceram a
globalização da economia. Esta globalização é o mecanismo dinâmico mais importante
100Boskovic, Aleksandar. Imaginário - USP, n. 5, p. 98-104, 1999.
do nosso século e nenhum país pode dele escapar. (Basta lembrar todos os apelos
por um "livre comércio", "livre mercado" etc. e a suposição básica de que todos os
países são igualmente capazes de competir e até mesmo de vencer na corrida
econômica global).
O terceiro domínio é o sociológico. Alguns conceitos de representação
política de força foram destruídos, especialmente os que eram estruturados de
uma forma hierárquica, vertical e autoritária. Foram gradualmente substituí-
dos por outros estruturados horizontalmente e consensualmente (lembremo-
nos de todas as manipulações feitas pelos meios de comunicação de massa).
Algumas das prerrogativas que tradicionalmente foram adscristas aos estados-
nação também estão em jogo, especialmente quando isto significa atribuir par-
celas de suas próprias soberanias a organizações ou instituições supra-nacio-
nais, como a União Européia, Nações Unidas etc. (E interessante observar que
as instituições financeiras globais não têm muito a ver com a "queda de braço"
na obtenção de alguma soberania de seus estados-membros.)
As mudanças globais estão em curso afetando ao mesmo tempo culturas e
sociedades particulares e vidas individuais, trazendo novo entendimento para a
relação entre o universal e o particular. É um novo paradoxo que, no momen-
to em que o mundo está cada vez mais imerso no processo de globalização,
identidades e culturas particulares também busquem formas para expressarem-
se. Todas estas mudanças estão relacionadas a novas tecnologias de comunica-
ção - comunicação é a principal superstição do mundo contemporâneo e, pelo
menos em um dado momento, prometeu que seríamos capazes de regulamen-
tar tudo. Se algo poderia ser comunicado, poderia também ser submetido a um
controle racional. Evidentemente, não foi isso que aconteceu — uma explosão
de identidades particulares no início da década de 1990 ameaçou empurrar a
Europa para o caos (do ponto de vista de seus Kderes políticos). No ápice do
processo de integração e das tentativas de regulamentar o comércio, a econo-
mia e os mercados mundiais de investimento, nacionalismos locais começaram a
clamar por um lugar para si próprios. Além da insegurança provocada pelas incerte-
zas oriundas de suas identidades particulares (local, nacional), esta tendência tam-
100 Boskovic, Aleksandar. Imaginário - USP, n. 5, p. 99-104, 1999.
bém precisa ser vista sob a luz do advento do discurso que pregava o livre mercado
como princípio.
Livre de quê ou para quê ? A própria idéia de que um país não desenvolvi-
do pudesse competir em um plano global com os mais desenvolvidos (como o
Grupo dos 7, por exemplo) parece um pouco estranho. As economias dos paí-
ses da União Européia ainda estão regulamentadas de forma bastante centrali-
zada, especialmente no tocante às políticas agrícolas. Esta é apenas uma das
razões por que o princípio de livre comércio nem sempre convence os povos
nas margens do mundo desenvolvido. Outra razão é o medo da perda das tradi-
ções nacionais e sua submersão em um todo global, pan-nacional. Apesar deste
temor ser facilmente compreendido em um nível emocional, já é muito tarde.
Como já observou o antropólogo britânico Talai Asad em 1979, o que real-
mente importa hoje — e eu acrescentaria, sobretudo hoje mais do que quando
escreveu este artigo ! — é o movimento do capital global (Os Kroker chamam
este novo sistema de pan-capitalismo.). O que acontece numa cultura ou socieda-
de particular é importante, mas o é mais ainda individualmente. Mudanças dentro
de sociedades particulares são efetuadas através do comportamento de corporações
multinacionais globais. Parece que é o dinheiro que faz o mundo girar.
tradição ao esquecimento. Este medo é tão grande que qualquer comparação entre
sua própria cultura e uma outra é sentida como potencialmente perigosa para sua
tradição, sociedade, história etc. Nas formas mais positivas deste tipo de crítica,
políticos nacionais (locais) — os que acreditam que podem falar somente de e para
um ponto de vista particular — alertam contra a permissão do direito de diferentes
culturas se afirmarem e usam o exemplo da antiga Iugoslávia como um caso
emblemático do que acontece quando se permite ao multiculturalismo manifestar-
se livremente.
Por outro lado, o multiculturalismo também é percebido como ameaça
por alguns teóricos liberais ou de esquerda. Por exemplo, Peter Lamborn Wil-
son é bastante claro: "Não há erro: o multiculturalismo é uma estratégia desti-
nada a salvar a "América" enquanto idéia e enquanto sistema de controle soci-
al. Cada uma das muitas culturas que fazem a nação agora têm permissão para
um pouco de auto-identidade e de algum simulacro de autonomia." Tudo é
uma conspiração elaborada, destinada a desviar a atenção de coisas mais sérias,
pois culturas variadas somente podem existir na periferia daquela que foi autori-
zada e centricamente designada como Civilização. (Esta Civilização é entendi-
da aqui como a cultura dominante de uma nação ou sociedade. Evidentemente,
assumir isto pressupõe também a crença de que tal cultura possa existir). "O
multiculturalismo precisa ser destruído!", conclui Wilson.
Outro tipo de crítica da esquerda é a usada pelo filósofo/crítico cultural/
ideólogo esloveno Slavoj Zizek. A crítica de Zizek é particularmente interes-
sante em virtude da grande influência que ele exerce nos círculos acadêmicos
norte-americanos e britânicos (ele é um dos editores da Verso Publishing House,
da Grã-Bretanha). Zizek encara o multiculturalismo como um dos instrumen-
tos mais importantes das corporações multinacionais globais. No mundo con-
temporâneo, cidadãos de todos os países são vistos como meros consumidores.
Não importa se mali, checo, afegão, chinês, britânico ou norte-americano —
para o capital multinacional tanto faz. Pior, ele encara até mesmo os cidadãos de sua
"terra natal" (de onde estas corporações se originaram) como simples consumidores
como qualquer outro cidadão de qualquer outro país. A linha divisória entre o "Pri-
1 00 Boskovic, Aleksandar. Imaginário - USP, n. 5, p. 101-104, 1999.
meiro Mundo" e o "Terceiro Mundo" foi apagada; só existe o reino do capital global.
Este só está interessado no seu lucro máximo a custos mínimos — e realmente não
importa quem provê o dinheiro ou força de trabalho barata, desde que a margem de
lucro seja aceitável. Em tal situação, o multiculturalismo aparece como estratégia de
vocês, diz o capital internacional. O que não fica dito é que a única coisa que real-
mente o preocupa é a exploração. Ou, dito mais educadamente, lucro máximo a
custos mínimos.
É interessante que pessoas de pólos opostos do espectro político percebam
o multiculturalismo como uma ameaça. Por um lado, ele é visto como uma
perda de identidade (implicitamente supondo que possa existir uma identidade
cultural "original" ou "pura"), enquanto, por outro, é visto como construtor
de uma "falsa consciência", desviando o oprimido de sua luta pela libertação. E
também divertido ver como teóricos de "esquerda" como Zizek e Wilson, par-
tindo de premissas diferentes, chegam a conclusões semelhantes a de políticos
como Patrick Buchanan ou Jean-Marie Le Pen. O que os dois tipos de crítica
têm em comum é que buscam reconciliar a dicotomia entre universalismo e
particularismo. Teóricos como Ernesto Laclau ou Etienne Balibar mostram
que isto não é possível. No plano prático, os críticos do multiculturalismo não
percebem que ser a favor ou contra ele não é mais uma opção, da mesma forma
que não é mais uma opção a Grã-Bretanha fazer ou não parte da Europa, como
alguns proeminente britânicos eurofóbicos supunham possível. O processo de
globalização envolveu o mundo tão profundamente que todos habitamos, de
fato, uma aldeia global. Ou talvez seja mais acertado dizer, um mercado global.
Abstract: The article deals mth the quick changes, hrought upon the world hy thecnology
and its effects on culturey soáeties and individual lives,
K e y w o r d s : Globalif^ation, new thecnologies, multiculturalism, anthropology.
Identidade, Invisibilidade Social, Alteridade:
Experiência e Teoria Antropológica
no Centro das Práticas Curativas*
Francine Sailianf
Resumo: Este trabalho tem a intenção defapruma análise antropológica sobre a questão da identidade
e alteridade através das práticas curativas^ em torno dos ^ ^cuidados" como formas práticas de acompanha-
mento de diversas condições e estados de saúde, alcançando as modalidades sócio-culturais do elo social Um
trabalho que interroga a busca de reconhecimento dos encarregados dessas práticas de acompanhamento e
cuidados, que foram classificados defacilitadores (passeurs).
Palavras-chave: Antropologia médica, alteridade, identidade
Introdução
O que os antropólogos fazem? O que é a Antropologia? Quantas vezes nós
fazemos esta pergunta em Antropologia? Certamente, todas as vezes que nos pergun-
tam. Eu me proponho, uma vez mais, como muitos outros fizeram antes de mim,
trilhar os caminhos tortuosos desta questão.
Eu intitulei este trabalho de Identidade, Invisibilidade social, alteridade: experiência e
teoria antropológica no âmbito das práticas curativas.
Faz muitos anos que eu trabalho na análise antropológica das práticas curativas.
Primeiramente, em torno das práticas de tratamento como formas terapêuticas, em
contextos variados, em Quebec, na França, no Brasil, um trabalho que foi associado,
no início, à antropologia médica, mas que se destaca em vários outros pontos, como
perceberemos. Em seguida, em torno dos cuidados como formas práticas de acom-
panhamento de diversas condições e estados, alcançando as modalidades sócio-cul-
turais do elo social (entre as pessoas, entre os grupos, entre as camadas sociais, entre
os seres humanos em relação com seu meio-ambiente, com o corpo e com o cos-
mo). Um trabalho que interroga a busca de reconhecimento (e de identidade) dos
encarregados dessas práticas de acompanhamento e cuidados, que já foram classifi-
cados de facilitadores (passeurs), Para alguns, as pessoas que cuidam da saúde de seus
semelhantes fora do sistema e o próprio tratamento são invisíveis socialmente, po-
rém, essas práticas imprimem na condição humana sua face de humanidade, por
inserir em seu seio a prática da alteridade: condição teórica (fenomenológica) da iden-
tidade do acompanhante. E esta situação não se reduz à dicotomia acompanhante/
doente, ela a ultrapassa.
Em Antropologia, discute-se cada vez mais sobre identidades: múltiplas, frag-
mentadas, mortíferas, pós-modernas, transnacionais, transgender ^tc. Discute-se ain-
da, dentro do pós-modernismo, a construção do outro na e pela antropologia e a sua
desconstrução, pós-moderna ainda. Contudo, um tema parece-me ser o mais relevante,
o mais humanista talvez, o mais arriscado também, o do encontro do outro. As práticas
de acompanhamento são, em minha opinião, práticas de encontro no mundo transi-
tório do inacabado (condições de fragilidade, de aprendizagem, de doenças, de expe-
riências a viver...) inscritos no limiar, diria Turner, no "nenhum nem outro". Um
universo de condições e práticas envolvendo uma parte importante das realidades
que coexistem à sombra da produção de mercado, das racionalidades políticas, téc-
nico-científicas ou institucionais, mas também modelos de identidade que se defi-
nem por exclusão de outras identidades, éticas por exemplo. Realidades difusas e
mukiformes cuja única finalidade, nem sempre consciente, é de ajudar a viver, de
ultrapassar o intransponível, as barreiras aparentes da vida. Pois, é necessário, para se
construir uma sociedade, aprender a andar; aprender a aprender; aprender a aceitar
116Saillant, Francine. Imaginário - USP, n. 5, p. 106-120, 1999.
que não se pode fazer tudo sozinho, sem a ajuda do outro; aprender a dar um senti-
do através das palavras, dos signos, dos símbolos, dos gestos, os diversos níveis do
real, incluindo o de pertencer a um grupo. Existem por toda parte seres que acom-
panham esse processo, e outros que passam de lado. O mundo da produção fala de
coisas que se fabricam com ferramentas. A reprodução biológica cria os meios de
produzir vida para produzir coisas. O mundo dos acompanhantes não é nem do
primeiro nem do segundo mundo: ele os integra, no nenhum nem outro, ele cria
uma corrente entre a vida e as coisas, ele conecta.
Eu quero, neste texto, com bastante humildade, prestar contas de questões que
surgiram no meu percurso de antropóloga que já dura 20 anos. Quero colocá-las,
primeiramente, num plano geral, em certos debates contemporâneos da Antropolo-
gia, e situá-las, em seguida, de maneira mais específica, no quadro de minha prática
profissional e acadêmica.
cracias e dos poderes internacionais, mas também entre os intérpretes das popula-
ções: os Kderes, os ativistas, etc... Nossa ciência está no programa "conflitos das
interpretações". Nossa ciência, como nos lembra Taylor, Ricoeur, Gadamer, um
discurso como outro, preso no emaranhado novelo da hermenêutica. Um discurso
que não é exatamente como os outros porque dotado de uma autoridade particular:
o de dizer a verdade, a verdade mais verdadeira, aparentemente mais verdadeira,
porém em condições únicas em relação a outras ciências. Reconhecendo a reflexibi-
lidade do conhecimento, nós criamos uma posição perigosa e arriscada para nós
mesmos, pois não somente desconfiamos daquilo que dizemos sobre o outro, os
outros, mas nós receamos que nossa palavra seja absorvida por outros que se interes-
sam pelas mesmas pessoas que nós. Produzindo um conhecimento ao mesmo tem-
po geral e singular sobre grupos particulares dos quais nós nos tornamos intérpre-
tes: mulheres, peregrinos, autóctones, jovens, curandeiros, gente de teatro, gente de
comunidades culturais, ^^/íj du soi, nós participaríamos de formas de controles varia-
das desses grupos por intermédio das diversas funções de vigilância ligadas a vários
aparelhos. Logo, por que procurar? Pouco importa que a antropologia seja antes de
mais nada uma ciência cujas condições de enunciação estejam sempre em processo,
uma vez que nossa palavra poderia ser presa em armadilhas de poderes invisíveis
cada vez mais sutis, mas cujos efeitos são certos? Nós não teríamos nenhum poder e
seríamos fracos a esse ponto? Preferimos os riscos do intercâmbio aos da armadilha
de um antropólogo fechado sobre si mesmo; a reciprocidade não é apenas uma
possibilidade de recuperação, é também terreno para a abertura e a mudança crítica
em relação a outros discursos possíveis fora da antropologia: discurso político, discurso
epistemológico, discurso proveniente do mundo civil ou, ainda, advindo de outras
posturas ou de outros interlocutores diferentes dos próprios antropólogos.
O projeto de unidade do gênero humano em antropologia, em compasso de
espera atualmente, não parece muito ideológico face ao desejo de alguns que gosta-
riam de ver surgir um processo de uniformização das culturas e dos seres? Nós
estamos, no momento, mais preocupados com a diversidade e com a justiça devido
à ameaça de uma uniformização totalizante, uma vez que com a unidade do gênero
humano, é esta, sem dúvida, a nossa tarefa mais urgente. Construtivistas e críticos:
116Saillant, Francine. Imaginário - USP, n. 5, p. 110-120, 1999.
duas palavras que dominam os paradigmas por nós adotados. E aí também, o senti-
mento de impotência invade-nos às vezes: como pesquisador/a, nós possuímos o
poder de construir teorias, métodos e palavras justas, todavia como nós não estamos
implicados nos processos decisivos concernentes a estas pesquisas, nosso envolvi-
mento no processo não garante algum resultado concreto, o que nos decepciona
imensamente. Logo, o que nós fizemos realmente? Para quem serviu todo esse conhe-
cimento que, freqüentemente, surge como algo já visto pelos informantes? Pergun-
tas deste tipo surgem normalmente após a apresentação de alguma tese de mestrado
ou doutorado. Eu considero esta postura inquietante, ela pode ser desmotivadora,
sufocante e improdutiva, sobretudo se o antropólogo trabalha sozinho. Sem aliados
para a construção de um saber comum em torno de uma causa comum, o antropólogo
não pode ir a lugar algum, a não ser ao lugar di2i glosa acadêmica que por sua vez pratica
excessivamente a endogamia. O isolamento tribal auto-referencial comporta inúmeros
perigos. As dificuldades, os desafios da antropologia de hoje, que eu denomino, de
maneira exagerada, de estetismo pós-modernista ou paranóia críticaj não se solucionam
pelo narcisismo disciplinar e pela salvaguarda das imagens que temos de nós mes-
mos, herdadas do passado. Por isso, nós devemos lutar pelo projeto construtivista-
crítico, porém, desenvolvendo posturas de abertura e de alianças. Abertura em relação
a outras disciplinas: permanecendo singular, mas evitando o nacionalismo disciplinar (o
isolamento disciplinar)) propondo o relacionamento com outras disciplinas e seus objetos,
entretanto, aceitando que certas questões provindas dessas outras disciplinas pos-
sam nos interessar como antropólogos. Abertura em relação à interdisciplinaridade,
porém, uma interdisciplinaridade bem estabelecida, criativa, ligada a projetos e a
lutas comuns, bem diferente de uma interdisciplinaridade reduzida a uma soma inacei-
tável e impraticável de disciplinas, entre as quais nós nos tornamos os representantes
de uma variável. Ia culture. Abertura em relação a posições práticas variadas, fora dos
lugares comuns, a fim de estimular o desenvolvimento da antropologia tanto no
mundo acadêmico como no mundo exterior. Finalmente, abertura e alianças com os
grupos com os quais nós já trabalhamos. E, sobretudo, o reconhecimento da filiação.
Nós criamos no meio acadêmico descendentes que, raramente, ocuparão os postos
11 6 Saillant, Francine. Imaginário - USP, n. 5, p. 111-120, 1999.
apenas 17 anos, ele fura seu olho, entra no hospital psiquiátrico e continua sempre
ouvindo vozes. Eu sou a sua assistente. Um dia, eu estava de folga, ele foge do
hospital e, fiel a suas vozes, fura o outro olho. Nasce um cego. Trazem-no à força de
volta ao hospital. Vozes que eu não escuto continuam a ser ouvidas. Nós falamos de
Super Tramp e da Bíblia. A visita de parentes é proibida. Ele recebe uma eletroterapia
como tratamento, eu não tenho nenhum poder." Será isso tratar, acompanhar? Eu
faço para mim mesma as perguntas que se fazem em antropologia: o que é o poder
dos experts} O que é o outro? O que sou eu? Existem fronteiras para o EU? O que é
a realidade? O que é a linguagem? O que é Deus e como ele se dirige aos homens?
Qual é a parte da escritura no imaginário? Eu fiquei marcada para sempre pela reali-
dade da realidade. O sofrimento é sem lágrimas e sem direitos. Eu escrevo meu
primeiro poema publicado em torno da história desse rapaz, desse outro, deixo o
hospital e tomo caminho da antropologia, suficientemente largo e indefinido (penso
então), para deixar lugar a perguntas cujo questionamento tomam uma vida inteira.
Durante muitos anos, recebi uma formação para me tornar uma antropóloga
da saúde ou medicinal. Eu não tomei o caminho da antropologia qualificada de
exótica, pelo menos. Primeiramente, trabalhei em casa, em Quebec, sobre o Quebec,
e o outro encarnou-se através do sofrimento, da doença, do diagnóstico criador de
identidade, de exclusão, de estigmatização, de morte social. A depressão, a psicose, o
câncer, a velhice, a perda de autonomia, a fragilidade, a obesidade, todos esses fato-
res foram pontos de interesses para tentar compreender o ser humano na sua diver-
sidade e para entender a diversidade a partir do familiar, do próximo, do ordinário,
do cotidiano mais simples, exatamente no ponto em que a diversidade é geralmente
imperceptível e impenetrável, muito fácil de negar. Como professora de antropolo-
gia em uma escola universitária de enfermeiras, eu me encontrava no centro de todas
as questões concernentes aos antropólogos que trabalham à margem dos canhões
da academia, os mais numerosos todavia: ser antropólogo fora da tribo, questionan-
do e destruindo para e com outros as ontologias de todo tipo, incluindo aquelas
sobre as quais se elaboram as certezas da exploração e das misérias humanas, com a
particularidade de aparecer metade na ciência e metade nesse baixo mundo - consi-
derado um pouco vulgar do alto da douta assembléia; mas também, ser antropóloga
11 6 Saillant, Francine. Imaginário - USP, n. 5, p. 113-120, 1999.
em um lugar onde você será alguém que representará essa ciência, esse discurso e
será interrogado por aqueles que imaginam a antropologia como "um belo discurso
sobre a cultura": o que é a antropologia? Eu recusei tudo isso de uma só vez, levando
a sério todas as questões que me foram dirigidas. Entre essas duas vertentes, nesse
nenhum nem outroy sensível demais para a posição de mediadora (como mulher, somos
sempre um pouco...), eu começo a tentar responder à seguinte pergunta: que faço eu
e de que maneira a ciência que eu conheço serviria a esse meio? O que significa ser
antropólogo nesse lugar do acompanhamento do outro fragilizado por uma doença
ou uma condição? Será que eu mesma não teria me tornado outra pessoa, excluída
simbolicamente por um discurso auto-referencial sobre a antropologia acadêmica,
no entanto "aberta para o mundo"? Teria eu me tornado outra para esse meio, fa-
zendo parte das ciências ditas "de enfermagem", procurando um componente cultural
em uma construção sistemática do mundo, onde o ser humano se apresenta como
um ser bio-psico-social-cultural? Ou ainda, teria eu me tornado um componente
numa construção do mundo que eu não teria escolhido, devendo representar neste
mundo a cultura, como os antropólogos têm representado pelo mundo afora o exótico,
uma trihoy um passado longínquo, uma excentricidade divertida e inútil?
Além dessas posturas impostas e criadas, eu tinha, de qualquer maneira, que
ensinar antropologia, fazer antropologia, ser antropóloga. Quando nos excedemos
no questionamento existencial, não fazemos mais nada. Eu escolhi a ação através da
pesquisa e ela será antropológica.
Eu começo, então, um trabalho sobre a antropologia dos cuidados. Não so-
mente para limitar-me a lembrar o "componente cultural" da saúde (como um fator
entre outros) — este porquê estava previsto - , mas também para pensar os cuidados,
refletir sobre essa relação particular que é o cuidado como elo social portador de
identidade e alteridade, preocupando-me com o sofrimento de invisibilidade social
dos cuidadores que dão seu testemunho de diversas maneiras. E, como as mulheres
dominam este setor, pelo menos em número, refletir sobre os cuidados do ponto de
vista das relações entre os sexos, tudo isso dentro do espaço terapêutico. Eu fui
muito tempo fascinada por uma observação de Edgard Morin: "no plano da evolu-
ção, os traços deixados pelos rituais funerários dos primeiros humanos estão entre
116Saillant, Francine. Imaginário - USP, n. 5, p. 114-120, 1999.
elo de ligação com o outro exatamente no momento em que o elo é quebrado pela
experiência de ruptura que é a doença, cuja presença perturba os elos de ligação
anteriores. Mas não esqueçamos que os cuidados, como outras práticas sociais, são
freados pelo poder, pela tecnologia, pela big ciência, pela burocracia, etc. Eu me
aproximo cada vez mais dos cuidados e me distancio da medicina e da antropologia
que poderia ser qualificada de médica. Tornei-me testemunha de cuidador/es que,
numa cidade como Quebec - que poderia ser Lyon ou Belém —, acompanham a
alma dos mortos da cabeceira do doente até o necrotério, pensando existirem no
necrotério ainda cuidados a serem prestados ao SER que ali se encontra. Fui teste-
munha também de outros cuidadores que abraçavam aidéticos com força, numa épo-
ca em que a maioria das pessoas temiam a infecção, justificando sua atitude ao dizer
que não se devia deixar seres humanos sem contato, sem nenhum elo, que não seria
humano, que isso não seria tratar ou cuidar. Testemunhei ainda a presença de outros
cuidadores assistindo aos fianerais após a longa agonia de uma pessoa de quem eles
haviam tratado solidarizando-se com a família enlutada; conheci também cuidadores
que inventavam rituais onde estes não existiam: em uma casa de cuidados paliativos
quebequense, por exemplo, fabricaram uma mortalha de linho, lembrando a tradi-
ção de Quebec da vestimenta de linho, envolvendo com ela o corpo da pessoa que
acabava de perder a vida, evitando assim um vazio de cuidados entre o fim da agonia
e o necrotério, como também o vazio de elos de ligação com o morto. A cada vez eu
constato não a dualidade cuidador/doente, mas sim a tecitura ativa de um liame que
dá prosseguimento ao trabalho de manutenção da vida, trabalho da reprodução,
ponto de encontro entre a vida frágil, inacabada, lugar sem identificação {non-lieu
identitairè) espaço de tensões vida/morte e a produção, ou seja, o mundo dos objetos
materiais e virtuais. Os exemplos desse tipo são numerosos: eu fico bem mais apai-
xonada por esta tensão vida/morte e esta paixão sobre a vida que anima as pessoas,
sobretudo as mulheres, não por acaso, que dizem em uníssono: se nós não o fizer-
mos, ninguém mais o fará. Preocupação pelo outro e princípio de responsabilidade.
Ética cotidiana da preocupação. Elas dizem exatamente o que mulheres denomina-
das "ajudantes naturais" contam quando se situam como as últimas cuidadoras da
família no contexto da AIDS, da doença de Alzheimer, de uma doença em fase
11 6 Saillant, Francine. Imaginário - USP, n. 5, p. 117-120, 1999.
terminal (ninguém mais faria, é por isso que nós fazemos) e o que dizem as mulheres
da Amazônia privadas de dinheiro e cheias de "serviços", trabalhando no dia a dia
para estabelecer um elo e dar sentido a alguma coisa que os outros não vêem mais.
Eu questiono a parte das mulheres nos cuidados, eu questiono os elos que elas
estabelecem com a vida e a morte, elos que elas procuram criar, e eu creio compre-
ender que é através desses elos que se constrói, entre outros, o significado da doença
e dos cuidados. As mulheres cuidadoras não são, nesse contexto, os únicos objetos
de troca e de alienação, elas são sujeitos ativos de elos sempre recriados entre os
diversos níveis de realidade, vida-morte, material-espiritual, entre os diversos grupos
(do doméstico e do comunitário). O problema da invisibilidade do trabalho das
mulheres, como a de todos que ocupam estruturalmente esta posição, permite dimi-
nuir uma parte do déficit no programa de saúde dos governos. Isto ocorre por causa
da semântica (o caráter amorfo da expressão cuidados de saúde e o caráter muito codi-
ficado da noção de cuidados profissionais), por causa da classificação hierárquica entre
as profissões e por causa da gratuidade já esperada do trabalho de cuidado informal
e familiar no domínio da saúde.
Eu já disse isto antes e torno a repetir: os cuidados informais estão para o sistema
de saúde como o trabalho doméstico está para a economia de mercado: essencial,
porém, invisível, banalizado, sem valor. Contudo, o valor de mercado que se atribui-
ria a esse trabalho não resolveria o problema. A maior dificuldade estaria na identi-
dade do cuidador, ligada a uma atividade de relação que só se desenvolve dentro de
um contexto social ligado a elos afetivos. Não existe uma dualidade cuidador/doente,
mas um elo criador de identidade entre dois indivíduos ou entre grupos de indivídu-
os, e é neste encontro — eu ousaria mesmo dizer neste elo — que a invisibilidade se
constrói. Eu adiantarei ainda que todas as práticas de acompanhamento entram um
pouco nesse jogo de elo de identificação na qual a identidade pode apenas passar
por este espaço relacionai e sustentar uma forma de invisibilidade. Ela é de um nível
marginal, criado na própria relação e, sem esse nível marginal, ela não pode se reali-
zar. Ela só pode ser invisível, dificilmente apreendida, por ser fugidia, marcada pelo
tempo do encontro. Sem começo nem fim porque ela está inscrita na circularidade
do que deve ser vivido e, talvez, ser dado. E a questão do dom (da doação) e da circu-
116Saillant, Francine. Imaginário - USP, n. 5, p. 118-120, 1999.
Conclusão
Durante todos esses anos em que me dediquei a fazer antropologia alhures e
num contexto de pluralismo teórico, trabalhei para tornar visível os cuidados informais
como um conjunto de práticas essenciais para a reprodução e como forma de elo
social que tendem, todavia, a ser varridos do campo social, apesar de seu caráter
essencial e sua importância em uma sociedade voltada para a fragmentação, o virtu-
al, a ruptura. Meu trabalho de antropóloga desenvolveu-se nas trilhas da busca de
identidade, visibilidade, reconhecimento de um grupo social: os cuidadores e
1 1 6 Saillant, Francine. Imaginário - USP, n. 5, p. 119-120, 1999.
Abstract: Thispaper intends to analyse identy and alterity through healthpractics and care.
Keywords: Medicai anthropology, alterity identity.
Cultura nativa e globalização:
Terena em Campo Grande;
(re)significando o real*
Resumo: Este trabalho fa^ uma análise sobre a globalização e aparticulari^iação.Busca-sey através do
ponto de vista de uma determinada cultura — Terena-, compreender como se articula aglobali^ção. Consta-
ta-se que os Terenas ressignificam a realidade a partir de uma 'Heia de significação''própria. Acorremos ã
história oralpara melhor demonstrar a nossa assertiva.
Palavras-chave: Globalif^ação, índios Terena, cultura indígena, história oral
1
.V V
' Vvíf"
(...), união , união o que nós queremos é união, então (...) aí antigamente não tinha
comida, então cada ferramenta veio vindo na mão de cada pessoa, índio trouxe a
enxada, o branco pegou o papel limpo, por que pegou o papel limpo esse branco?
Porque nasceu para isto, porque índio trouxe para isso mesmo a lavoura, também
paraguaio (veio) atrás, ele veio e trouxe cabo de puxar animal. Quem é preto? Escra-
vo. Então são quatro pessoas.
(...)
Paula: Seu Agostinho o que o Pai Maior, como o senhor falou, que ele passou esses
mitos para o senhor e seus antepassados também, como eles ajudam no dia a dia ao
senhor não esquecer de ser Terena mesmo morando na cidade? Como eles lhe aju-
dam a continuar sendo índio?
Agostinho: Ajuda e ajuda muito, porque cria respeito né, as pessoas tem respeito
por Agostinho, Agostinho tem muito respeito aqui, no meio disto aqui, na cidade
nunca eu lutei com estranho, eu estou morando, mas se eu mudar algum dia, lá
também vai ser a mesma coisa.
Paula: Dentro da religião que o índio traz com ele, que foi ensinada, desde que índio
é índio, hoje em dia tem a religião católica também, mas a religião do índio continua
existindo mesmo morando aqui na cidade Seu Agostinho?
Agostinho: Eu não posso largar porque a nossa religião é uma (...) isso aí não vou
largar por que a minha religião é a minha força.
Paula: Essa religião quem foi que ensinou para o senhor?
Agostinho: Antepassado deixou para nós, para vivermos até o final de nossas vidas,
de onde veio isto é muito grande (poderoso), não é pequeno não, é como padre
mesmo né, pois é a nossa religião é essa ai. Porque o médico de branco entende de
febre ou de outro problema, e índio não deixa assim, porque nesse mundo ninguém
sabe de doença que vem vindo, mas um vento conta para nós (índios).
Maria: Nósjá sabíamos que vinha o AIDS. Um vento que nem o AIDS^ a mãe dotioIjucídié sonhou.
Paula: Já sabiam que ia ter?
Caleffi, Paula. Imaginário - USP, n. 5, p. 125-137, 1999. 1 25
Paula: O Seu Agostinho me falou que você está recebendo parte dos ensinamentos,
Maria, das plantas dos remédios, porque tu nasceu para isto. Segundo o Seu Agostinho
a gente já nasce com este tipo de dom, umas pessoas nascem para uma coisa e outras
nascem para outras. No teu caso é tu que vai dar continuidade a essa sabedoria; Maria
eu vou te perguntar uma coisa que para ti pode parecer estranho, mas para nós é
importante, para nós podermos entender para podermos divulgar como é que vocês
sentem isto. O que tu achas que os índios Terena tem de diferente? Assim, por exem-
plo de mim e da Vanderléia porque a gente não é uma coisa só, o que nos diferencia?
Maria: Isto para mim não tem diferença nenhuma, para Deus nós somos todos
irmãos, você é filha de Deus como eu também sou. Agora para os outros índios eu
não sei. Agora o meu lado eu entendo né, eu não vou falar você não é meu irmão
porque você não é filho da minha mãe, porque você não é índia. Somos todos ir-
mãos sim, através de Deus somos. Apenas é diferente por causa que você é branca,
o idioma, você tem outra linguagem, então é essa que eu falo que é a diferença.
Agora as outras partes eu não sei, porque essa pergunta eu não posso responder,
porque cada um de nós tem um jeito de pensar, por exemplo os da aldeia mesmo; os
Caleffi, Paula. Imaginário - USP, n. 5, p. 125-137, 1999.125
índios de lá não gostam dos brancos mesmo, porque (eles) vão lá prometem uma
coisa que não é cumprida, como o pai mesmo falou para você, já foi muitos amigos
nossos (lá), e ficou de ajudar, tirou foto e falou que ia levar, mandar (para a aldeia)
mas nunca foi mandado. Então eles não tem confiança mais, eles não confiam, então
eles falam que os brancos não ajudam, que eles (os brancos) mentem.
(...)
Paula: Quem contou. Seu Lucídio, a sabedoria toda que os índios têm, para os
índios? Por que os índios tem essa sabedoria e o branco não?
Lucídio: índio é mais velho, isso já vem do tempo de Heródes. Essa geração já vem
mudando, índio cada índio tem visão tem espírito que anda dentro dele, à meia-
noite ronda o espírito à procura dos índios, se o índio está com esse espírito ele está
bem, se houver um problema avisa o índio (o espírito), o que vai acontecer. Então se
alguns já se desligaram de ser índios, já sofrem doenças, já sofrem, já passam neces-
sidades, já passam dificuldades, já não vai para frente, já fica isolado, não fica mais
como a gente sorrindo, tomando água. Ninguém passa mais na casa deste índio, nós
que somos que temos a força desse espírito. Todo mundo vem aqui em casa, vem a
procura da gente, senta conversa com a gente, não é como essas pessoas que não é
mais índio, já ignorou a raça dele, ninguém mais vai visitar esse índio.
(...)
Paula: Seu Lucídio, tem muita gente que pensa que quando o índio vem morar na
cidade, já não é mais índio, não é?
Caleffi, Paula. Imaginário - USP, n. 5, p. 125-137, 1999. 1 25
Lucídio: Acham, mas não é assim. O Brasil como já tem estudo, a leitura, na quinta série
a gente já pega (aprende), que o primeiro brasileiro é o índio. Mas agora acha que a gente
não é mais índio depois que saiu da área, nós estamos dentro do Brasil, esse Brasil. Eles
falam que não somos brasileiros nato, então se não somos índios, onde é que esta essa lei?
Eu quero saber onde é que esta esta constituição (que diz), se o índio sai da aldeia não é
mais índio. Só se trocar meu sotaque de falar, essa língua que eu tenho, só se ele trocar
para mim, aí eu vou falar (português), não quero nem saber. Mas do jeito que eu arrasto
essa língua (Terena) ainda, falando aqui dentro do Brasil, não vem falar que não sou mais
índio aqui dentro da cidade, nós temos como responder a essas palavras.
Em nosso processo de textualização das entrevistas, corrigimos algumas vezes
as conjugações verbais, sempre que isto comprometesse a compreensão por parte
dos leitores. Como tornar escrito o que é oral constituí-se em um processo muito
complexo, principalmente porque o leitor não pode apreciar expressões, tonalidades
de voz, enfim, sutilezas do falar, utilizamo-nos exatamente da nossa compreensão
do momento em que as entrevistas foram feitas, para suprimir algumas repetições
desnecessárias. Procuramos intervir no texto escrito das entrevistas apenas em mo-
mentos que a não intervenção poderia comprometer a compreensão do mesmo. As
palavras entre parênteses são recursos nossos para tornar mais claro o sentido ex-
presso na própria fala do entrevistado que, como dissemos antes, não domina o
português. Várias destas palavras foram sugeridas por outros Terena que assistiram
as entrevistas no momento em que estas estavam sendo feitas. As palavras dos entre-
vistados não tiveram sua seqüência alterada.
Como nosso trabalho é temático, e não apenas de histórias de vida, selecionamos
trechos das entrevistas, porém nunca fracionando perguntas ou respostas e tampouco
mudando a ordem na seqüência das mesmas.
Todas as falas foram devidamente legitimadas pelos entrevistados.
Existem dois pontos, no mínimo, que chamam a atenção na transcrição das
entrevistas, feitas acima.
Primeiro, a importância dada, por este grupo, à manutenção e utilização do seu
idioma como a língua utilizada no cotidiano. A conservação (que neste caso significa
constante construção) de uma "ordem simbólica" própria, é absolutamente facilita-
Caleffi, Paula. Imaginário - USP, n. 5, p. 125-137, 1999.125
Abstract: Tòüpaper analyses the glohali^tion hy the bias of a speáfic culture: Terena. Terena Indians
re-elahorate a mh of meanings of their own, to deal mth reality. To attain this goal m ivorked mth oral
history.
K e y w o r d s : Globalifiation, Terena indians, oral history, indian culture
Caleffi, Paula. Imaginário - USP, n. 5, p. 125-137, 1999. 1 25
Notas
^ Termo usado por GEERTZ, C. 1978.
^ Palavras ditas por Lucídio, terena residente em Campo Grande, atuai presidente da Associação de
Morador Indígenas de Campo Grande (AMI).
^ Esta parte da entrevista com Seu Lucídio esta incluída na parte do texto onde estão reproduzidas
as entrevistas.
^ Termo usado por SAHLINS, M., 1997.
^ A obra de BOM-MEYHI, 1991, trabalha mais exaustivamente estes aspectos por nós também
constatados, e apesar da obra citada tratar de outra cultura, as conclusões sobre a aplicação do
método muitas vezes foram as mesmas.
^ Lucídio faz parte da família extensa de Seu Agostinho, atualmente é o Presidente da Associação dos
Moradores Indígenas (AMI), de Campo Grande.
As fitas gravadas nas conversas depoimentos e entrevistas foram transcritas pelo aluno bolsista de
Iniciação Cientifica Orson Soares.
Referências Bibliográficas
BOM MEIHY, José Carlos Sebe. O Canto de Morte Kaiowá. História Oral São Paulo:
Loyola, 1991.
CALEFFI, Paula. Die Geschichte im Mjtbos - ein methdologischer Vorschlag. In: Mystik der
Erde. Raúl Fornet Betancourt(Hg.). Wien: Herder,1997.
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas, Rio de Janeiro: Zahar, 1978
LE GOFF, Jaques. História e Memória. Campinas: UNICAMP, 1992.
POVOS INDÍGENAS NO BRASIL: 1991 - 1995. Editor Carlos Alberto Ricardo.
São Paulo Instituto Socioambiental, 1996.
SAHLINS, Marshall. Ilhas de Hitória. Rio de Janeiro: Zahar, 1990
"O Pessimismo Sentimental e a Experiência Etnográfica: Por que
a Cultura Não é Um Objeto em Vias de Extição". MANA, Rio de Janeiro, UFRJ,
3(1): 41-73,1997.
Espaço simbólico
Jane Bittencourt*
Resumo: Este trabalho é um estudo sobre um tipo de representação geométrica de caráter simbólico.
Procura, através deste exemplo, caracteri^r a dimensão do simbólico e analisar diferentes universos de
significação. Tem como objetivo principal explorar o potenáal do símbolo enquanto forma de conhecimento e
expressão da complexidade do ser e dos saberes.
Palavras-chave: Conheámento simbólico, representações geométricas, complexidade.
uma categoria especial de símbolos, que, embora apresentem uma grande diversida-
de de formas e temas, têm sempre alguns elementos de base comuns: são geralmen-
te formações circulares, esféricas ou ovais, apresentando um movimento interno.
O círculo é elaborado com imagens, a flor ou roda, decorado com o sol, a
estrela ou ainda a cruz, geralmente associados a raios ou então a serpentes fechadas
sobre si mesmas, ou ainda em movimento espiral. Em geral representam a quadratura
do círculo, geralmente expressa através da relação entre o círculo e o quadrado.
Os motivos, apesar de serem relativamente numerosos, repetem-se com peque-
nas variações. Em geral temos figuras e motivos triádicos, quadrangulares ou
pentagonais. O três vem sempre relacionado a um momento de equilíbrio, de solu-
ção de uma dualidade e pode ser combinado em seus múltiplos. O quatro indica
solução de pares de contradições, como é o caso das quatro direções do espaço,
geralmente marcadas nos mandalas através de figuras como quatro animais ou sím-
bolos celestes. Os pássaros, pavões, serpentes ou peixes são os animais mais comuns
em mandalas não tradicionais assim como em mandalas pertencentes às tradições
ocidentais (Jung, 1982). Nos mandalas ocidentais encontramos freqüentemente a
flor, um dos símbolos mais comuns a diferentes tradições, presentes também nas
rosáceas que compõem vitrais e decoram muitas das igrejas cristãs. E muitas destas
representações, como é o caso da figura acima, contém somente uma composição
de figuras geométricas.
Como estrutura comum a todos os mandalas, Jung salienta a expressão de po-
laridades, o lado direito e esquerdo, acima e abaixo, marcada através de imagens
simbolicamente antagônicas como o sol e a lua ,por exemplo, na figura 1. A dinâmi-
ca geral é de um princípio ordenador que coloca as diferentes figuras em algum tipo
de relação, o que geralmente produz movimento ou dele é resultado. Da conciliação
de opostos resulta a simetria, da expressão de circularidade temos círculos em rota-
ção ou concêntricos, e da expressão de evolução ou de processos de desenvolvimen-
to temos os movimentos em espiral. São estes movimentos que caracterizam a geo-
metria dinâmica presente em todo mandala.
No centro temos normalmente um ponto, uma figura geométrica, uma figura
antropomórfica ou um símbolo específico, no contexto de uma tradição. Muitas
Bittencourt, Jane. Imaginário - USP, n. 5, p. 139-151, 1999. -] 49
vezes raios partem do centro ou temos figuras concêntricas, como na figura 2, mar-
cando um movimento de expansão. Também é comum o duplo movimento de ex-
pansão e contração, geralmente em forma de espirais combinadas com círculos. O
centro é o foco unificador a partir do qual tudo se desenvolve e também a matriz
organizadora de todos os outros elementos.
Um estudo deste tipo de representação nos coloca diante de algumas indaga-
ções interessantes, que motivaram este trabalho (Bittencourt, 1997). Primeiro, o que
significam? Segundo, por que sua presença em contextos históricos e culturais tão
diversos? E ainda, por que seu caráter geométrico? Vou analisar as duas primeiras e
encaminhar a última.
Universos de significação
Os mandalas, assim como toda representação simbólica, são interpretados sob
diferentes pontos de vista, em diferentes contextos. Jung (1973), por exemplo, inter-
preta psicologicamente o simbolismo e a funcionalidade dos mandalas. Considera
que o centro, reunido com todos os elementos à sua volta, simboliza o centro da
psique, o self, que é uno e múltiplo, com um potencial irradiador e organizador. A
totalidade da psique é conquistada por um longo processo de individuação que envol-
ve sempre uma dinâmica de conciliação entre opostos, cuja solução resulta sempre em
novidade, em um estado que é fruto de um processo integrador. A expressão desses
processos se dá geralmente na forma de mandalas: representação de um processo de
estruturação interna, de reorganização. Por isso sempre expressam ou buscam expres-
sar a conquista do equilíbrio, de uma nova ordem resultante da resolução de conflitos.
Com base na regularidade de estruturas e motivos presentes em mandalas de
origens culturais tão diversas, assim como na relativa autonomia dos símbolos em
geral e particularmente dos mandalas, sugere que deve haver "uma disposição
transconsciente em todo indivíduo que é capaz de produzir os mesmos símbolos ou
muito similares, em todos os tempos e todos os lugares" (Jung, 1973:100). Afirma
que, embora os mandalas muitas vezes expressem desordem ou conflito, sempre
expressam também um princípio de ordem a partir da desordem, do caos que é o
Bittencourt, Jane. Imaginário - USP, n. 5, p. 139-151, 1999.-]49
A dimensão do simbólico
o meditador diz ao apresentador de imagens: "O que você me
esconde ao mostrar essa imagem? Quem mostra não demons-
tra. Quem demonstra repugna mostrar".
Mais brilhante é a imagem, mais perturbadora é sua ambigüida-
de. Pois ela é a ambigüidade das profundezas.
As pessoas honestas querem que a imagem seja superficial e
efêmera. Uma água que corre sobre uma areia imóvel, uma água
que em sua corrente reflete um céu distante... Mas o céu e a
terra, os dois, dão à imagem sua verticalidade. Tudo o que sobe
encerra as forças da profundeza.
G. Bachelard
Assim como Eliade, diversos outros autores têm se dedicado a restituir o papel
do símbolo, sua função no imaginário ou sua importância enquanto manifestação
cultural e psicológica característica do ser humano.
Embora haja uma certa confusão entre diferentes áreas do conhecimento em
relação aos termos signo, símbolo e sinal, parece haver certa concordância quanto à
diferenciação entre sinal e símbolo. Durand (1988) comenta que todo símbolo é
primeiro um signo, um sinal, pois possibilita uma economia de informação, mas
ultrapassa o signo porque é o próprio sentido incorporado. Enquanto o signo reme-
te a algo outro, que está fora, o símbolo é "centrípeto", remete sempre a si mesmo.
Bittencourt, Jane. Imaginário - USP, n. 5, p. 139-151, 1999. -] 49
No reino da complexidade
Bachelard, em uma reflexão sobre a natureza do espírito cienti^fico, já afirma
que "na realidade, não há fenômenos simples, o fenômeno é um tecido de relações"
(Bachelard, 1985:130). Procura ressaltar a tendência à simplificação característica do
pensamento cienti'fico, que busca as leis gerais e ignora as distorções ou os erros,
assim como a complexidade que se impõe no desenvolvimento das ciências quando
a lei simples e a matemática simples precisam ser corrigidas por um processo de
retificação do conhecimento anterior.
Morin, inspirado nesta dinâmica entre o simples e o complexo sugerida por
Bachelard, comenta que o princípio de simplificação, baseado na redução, na gene-
ralização e na disjunção, característico da inteligibilidade do conhecimento científico
clássico (Morin, 1986), reinou no universo dos saberes até o final do século XIX. No
entanto, a irrupção da desordem, do aleatório e a inserção do sujeito observador
passaram a se mostrar, principalmente a partir do im^cio do século XX, cada vez mais
presentes no universo conceituai da ciência, questionando o que denominou de "ra-
Bittencourt, Jane. Imaginário - USP, n. 5, p. 139-151, 1999.-]49
Geometria?
Resta uma questão: por que o caráter geométrico de tantas representações sim-
bólicas? O platonismo é uma resposta antiga a esta pergunta, ainda muito viva hoje,
principalmente entre os matemáticos. Como comenta Penrose (1991), que tende ao
platonismo, esta concepção foi reforçada pelo estudo da geometria dos fractais, em
que, através de processos matemáticos recursivos, aplicados em domínios que apre-
sentam irregularidades, emerge uma nova ordem que insiste em ser geométrica e,
curiosamente, muito próxima do que nos parece ser a geometria da natureza. E
comenta não ter sido esta geometria inventada: ela é instrínseca pelo menos a um
certo tipo de fenômeno, e pode portanto sempre ser descoberta.
Nesse caso, a realidade poderia ser inventada, a menos de uma geometria...
Abstract: This essay consists on a study of one kind of geometrical representatioriy intending to give an
example of the simholical knoivledge. The main aim of this article is to show how the symhol^ espeáallj in
the case of geometrical representations, can be considered as an expression of the complexi^ of the human
heing and the human knowledge.
K e y w o r d s : Symholical knoivledge, geometrical representations^ complexity
Referências Bibliográficas
BARBIER, R. "Sobre o imaginário". In: Em Aberto, Brasília, ano 14, n°.61, jan./mar.
1994:15-23
BITTENCOURT, J. Conheámentoy complexidade e transdisàplinaridade. Florianópolis, 1997.
Dissertação de mestrado. Centro de Ciências da Educação, UFSC.
DURAND, G.'Lesstructures antropologiques de IHmaginaire. Paris: Dunod, 1984.
A imaginação simbólica, São Paulo: Cultrix, 1988.
ELIADE, M. lue sacré et leprofane. Paris: GaUimard, 1965.
JUNG, C. G. Mandala sjmbolism, Princeton: BoUingen Paperback Edition, 1973.
Aion: estudos sobre o simbolismo do si-mesmo, Petrópolis: Vozes, 1982.
KHANNA, M. Yantra: The tantric symbol of cosmic unty. Londres: Thames and
Hudson, 1979.
MORIN, E. LaMétòode I. IM nature de Ia nature. Paris: Editions du Seuil, 1977.
l-^a Méthode III. La connaissance de Ia connaissance. Paris: Editions du
Seuil, 1986.
O paradigma perdido: a condição humana. Lisboa: Europa-América, 1991.
O problema epistemológico da complexidade. Lisboa: Europa-América, 1996.
PENROSE, R. A mente nova do rei. Rio de Janeiro: Campus, 1991.
Human Adaptability Research Into The
Beginning of the Third Millennium*
Resumo: Este artigo analisa brevemente a história do Projeto de Adaptabilidade Humana do Programa
Internaáonal de Biologia dos anos 1960 e 1970 e discute as perspectivas dos estudos sobre adapatabilidade
e biologia daspopulações humanaspara opróximo século, ¥oram enfatizadas áreas depesquisa consideradas
promissoras. O fato de não tratarmos de pesquisas sobre genética não se deve a uma falta de interesse, mas
é resultado do nosso foco sobre pesquisas não-genéticas.
Palavras-chave: Projeto de adaptabilidade humana, biologia, antropologia médica.
Since its inception as a field of research in the early 1960s, human adaptability has
had a dose identificatíon with human population biology, that is, a field drawing on
genetics, demography, environmental science, epidemiology, growth, nutrition, physio-
logy and the theoretical frameworks of biological anthropology Within biological
anthropology, there are two fundamental ideas that hold the science together and
make its contributions to human population biology truly unique. The first is that
evolutionary principies can be used to explain a large proportion of the variation
that we see in human populations, both today and in the past. Hence, evolution, as it
is for ali of the biological sciences, is the most powerful explanatory paradigm that
we employ The second is that humans cannot be understood fully except in the
context of their behavior and their biology, which often are so tightly interwoven
that separation is impossible. This principie suggests that attempts to understand
humans comprehensively are futile except in a biobehavioral framework. Concepts
of "adaptatíon" and "adaptability" are central to both of these theoretical frame-
works, since natural selection is the process of preservation of favorable variations
or adaptations, and human adaptations are often biobehavioral in their character.
The objective of this paper is to trace the history and development of research
in human adaptability, and to offer some suggestions for productive lines of re-
search into the early 21'' century Predictions beyond a decade or two are likely to be
highly speculative, so ours will be limited to tentative forays into the first quarter of
the new century. A recent edited work by Ulijaszek & Huss-Ashmore (1997) is de-
voted in its entirety to the topic of human adaptability.
for the comparative surveys and intensive multidisciplinary projects that defined the
HA research into the 1970s (Weiner, 1965; Baker, 1965). What was different about
several of the approaches, however, when contrasted with the past, were the inter-
ests in population, variation, the interrelatedness of variables, and the need to stan-
dardize methods and measurement procedures (Harrison, 1997; Ulijazsek, 1997b).
Several handbooks of recommended methods were published to provide guidelines
for investigators and to facilitate the coUection of comparable data for later com-
parative synthesis (Weiner and Lourie 1969, 1981; Yoshimura and Weiner, 1966).
In the United States, the Human Adaptability Coordinating Office was estab-
lished in 1971 with National Science Foundation support (Hanna et al., 1972). The
principal functions of the HA Coordinating Office were to promote the IBP and
facilitate communication among the U.S. projects Q:iuman AdaptahilityNemletter), to
maintain liaison between the HA Office and the Environmental Management Coor-
dinating Office (primary ecosystems studies) of the U.S. IBP, and to provide for HA
communication and exchange at the International levei. In the U.S., there were sev-
eral large-scale research projects (International Stydy of Circumpolar Peoples - Aleuts
[WS. Laughlin] and Eskimos [F.A. Milan]; Population Genetics of the American
Indian - Yanomama, Makiritare, Warao and Cayapo Q. V. Neel]; Biology of Human
Populations at High Altitude — Andean natives [P T. Baker]) and two coordinated
projects (Nutritional Adaptation to the environment; Biosocial Adaptation of Mi-
grant and Urban People). The basic themes of the WS. HA research were centered
on ''human-environment interactions", including ''environmental stress", and ''hu-
mans in cultural transition" (migration and acculturation). With reference to several
of the large-scale research projects conducted as a part of the U.S. HA Program,
sociocultural anthropology was an important part of the Alaskan Eskimo, Andean
and Yanomama projects.
In addition to the many hundreds of scientific works produced by American
scientists and the thousands of works published internationally under the HA im-
primatur (CoUins and Weiner, 1977), the HA research established high standards of
scientific research and vaUdated the contributions of human population biology
within the International scientific community. The HA research also revitalized the
Little, Michael A. and Garruto, Ralph M. . Imaginário - USP, n. 5, p. 153-173, 1999. -| 73
field of human population biology. Systematic research designs became the norm,
modelling was introduced as a way to interpret and understand large sets of data, the
concept of "synthesis" of comparative and multidisciplinary data was applied, and a
new era of international cooperation was initiated in comparative studies of human
populatíons (Weiner, 1977). As Harrison (1997) noted, the HA Program in the 1960s
was Hke a breath of fresh scientific air to a field of physical anthropology that had
been moribund and sterile through much of the first half of the 20^ century.
Although the label ''human adaptability" has persisted, the kinds of research
done under this rubric has been dramatically transformed since the mid-1970s. Dur-
ing the IBP, HA research was more narrowly conceived than it is today. Climatic and
exercise physiology, survey of genetic polymorphisms, and surveys of child growth,
adult anthropometrics and body composition tended to predominate. During the
present, the field of "human adaptability" within the larger area of ''human popula-
tion biology" has increased in numbers of practitioners, studies have become more
biobehavioral, hypothesis testing and rigor of scientific design have become com-
monplace, international cooperation has continued, and multidiscipHnary studies of
single, non-Western populatíons have persisted, at least into the 1980s and 1990s
(Litde et ai., 1991). We share Harrison's (1997:25) view when he stated that "Not-
withstanding its limitatíons it (the HA research of the IBP) played a major part in
convertíng the old defunct physical anthropology into the vibrant and excitíng com-
ponent of biological anthropology as it is today."
the Environment (SCOPE), Unesco's Man and the Biosphere Programme (MAB),
and the UN's United Nations Environmental Programme (UNEP). Of the three
programs, the Man and the Biosphere Programme was most successful in incorpo-
rating human studies into the program. The MAB Program emphasized interactions
between human activities and ''natural" systems and encouraged dose research col-
laboration between social and natural scientistis and decision makers. Despite the
withdrawal of the United States from Unesco in the 1980s, the US National Com-
mittee for MAB maintained affiliation with MAB/Unesco in Paris. The US Com-
mittee also initiated the practice of having equal numbers of social and natural sci-
entists on their coordinating committees. There were two multidisciplinary projects
that were affiliated with MAB: The Multinational Andean Genetic and Health Project
(SchuU and Rothhammer, 1990) and the Samoan Migrant Project (Baker et ai., 1986).
Two other multidisciplinary projects, initiated in the late 1970s, were not connected
with MAB: the South Turkana Ecosystem Project (Litde and Leslie, in press) and the
Ituri Forest Project (Bailley and Peacock, 1988). Nevertheless, both projects were con-
ducted in spirit of integrated science promoted by HA Program within the IBP.
One of the major interests in the HA Program during the 1960s and early
1970s was environmental and work physiology. At least a third of the 1964 Burg
Wartenstein Conference participants were interested in human physiology from
population perspectives rather than from the levei of physiological mechanisms (Baker
and Weiner, 1967). Interests in human physiology persisted into the mid-to late—
1970s, but practically disappeared in the 1980s and 1990s (Harrison, 1997). The lack
of interest in human adaptation of physiological systems from population approaches,
particularly in non-Western populations, is reflected in the limited treatment of ad-
aptation in the new edition of the Handbook of Physiology (Fregly and Blatteis,
1996) in contrast with the earlier edition (Dill et al., 1964).
Another area that was dramaticaUy transformed foUowing the IBP was popula-
tion genetics, with the development of molecular genetics and the new laboratory
techniques for DNA analysis. Harrison (1997) noted that much of the optimism
during the IBP associated with uncovering natural selection for specific genetic poly-
morphisms was not justified by the research, despite a considerable amount of data
Little, Michael A. and Garruto, Ralph M. . Imaginário - USP, n. 5, p. 153-173, 1999. -| 73
that had been accumulated. What is likely to be the final synthesis of the early stud-
ies of genetic polymorphisms is the compendium of Cavalli-Sforza et al. (1994).
Demography was of interest during the IBP, but there were very few human
biologists who were well trained in the field, and very few social demographers who,
although they were well trained, were able to participate in the HA research. During
the 1960s, the majority of demographers were trained in sociology and worked with
large-scale Western populations. It was only in the 1960s and 1970s that anthropolo-
gists and human biologists began to be trained in the sophisticated methods of
demography. Interests in demography were compatible with evolutionary and eco-
logical approaches that geneticists, anthropologists and human biologists were tak-
ing in their own research directions. Within demographic perspectives, studies of
fertility were of particular interest to human biologists because of the link between
differential fertility, selection and evolution (Wood, 1994). Also, approaches to popu-
lation comparison by use of migrants was an important research design during the
IBP and has continued to be up to the present. Research designs by Harrison (1967)
and Baker (1976, 1977) were important to be altitude adaptation studies, and later
studies in the Pacific used migrants for studies of modernization and health change
(Baker et al., 1986; Prior et al., 1977).
Work in infant, child and adolescent growth continued unabated after the IBP,
but studies shifted somewhat from survey and comparison to problem-oriented re-
search. New research was conducted on growth regulation, particularly endocrine
regulation, but also with attention directed to nutritional, immunological and neuro-
logical influences. Other areas of research that have proliferated throughout the
1980s and 1990s are in studies of toxic effects on growth, particularly in the urban
environment (Schell, 1991,1993), breastfeeding and both maternal and child health
and reproduction (Stuart-Macadam and Dettwyler, 1995; Vitzthum, 1994; Vitzthum
and Aguayo, 1998), the evolution of growth processes (Bogin, 1997), and saltatory
growth processes (Lampl et al., 1992; Lampl, 1993). Much new research has also
arisen at the extremes of the life span in areas of prenatal growth and in aging.
Nutrition and disease influences on child growth and on health of adults were
studied as a part of the IBP, but most of the research on diet and nutrition centered
Little, Michael A. and Garruto, Ralph M..Imaginário - USP, n. 5, p. 153-173, 1999.-|73
on comparatíve human energy and protein intake surveys. In the years foUowing the
human adaptability work, scientific interests in nutrition in anthropology flourished
and studies focused on dietary adequacy and the interacüons between diet, infec-
tious disease and normal growth processes (Green and Johnston, 1980; Harrison
and Waterlow, 1990). Many studies of nutritional effects on growth were conducted
in light of population increases and deteriorating nutritional status and health in the
Third World within the past few decades.
Acculturation, social change and modernization influences on human health
became topics that were increasingly pursued after the IBP. The social climate under
which human biology research was conducted was changing and human population
surveys and more fundamental science was being superseded by science with some-
what more applied aspects. Thoma's restudy of the Andean community of Nufioa
in the context of health and poverty is a good example of changing research per-
spectives (Thomas, 1997; Thomas et al., 1988). Some of the same changes were
occurring in sociocultural and development anthropology, as well (Cernea, 1985;
Chambers, 1987; Horowitz 1991). By the late 1980s, the purpose of the Unesco
Man and the Biosphere Program in the U.S was identified as f o s t e r i n g . . harmoni-
ous relationships between humans and the biosphere through an International pro-
gram of policy-relevant research which integrates the social, physical, and biological
sciences to address actual problems" (MAB, 1990). At the same time, the National
Science Foundation (NSF), which continued to support fundamental science be-
came receptive to multi-year funding, which provided more secure support for long-
range research.
There are many other general trends not covered here, but one general trend is
particularly worthy of note. Field workers in recent years have been more sensitive
to presence of variation and less concerned with typical or modal values in human
behavior and biology. For example, seasonality in tropical and temperate areas pro-
duces dramatic variation in physical activity, diet, infectious disease, reproduction,
and other processes (Huss-Ashmore et al., 1988; Ulijazsek and Strickland, 1993).
Seasonality is but one temporal dimension in an array of dimensions that produce
Little, Michael A. and Garruto, Ralph M. . Imaginário - USP, n. 5, p. 153-173, 1999. -| 73
variaüon. Apart from seasonality, dietary intakes and physical activity show remark-
able variatíon, particularly during extremes of resource availability.
pendent, basic science, while at the same time, advancing, in a small way, soluctions
to serious world problems? Here are several areas in which human population biolo-
gists can continue to make special contributions into the 21'' century.
Ecology of Reprodution
Evidence is mounting that reproductive function in humans is strongly influ-
enced by environmental conditions that influence, in turn, not only behavior, but
also the reproductive, neurological, and perhaps immunological components of the
endocrine system. The concept of "reproductive ecology" underlines the impor-
tance of the environment in controlling reprodutive function in both women and
men (EUison, 1991; Campbell and Leslie, 1995; Vitzthum, 1994; Wood, 1994). There
are relationships between food resources, dietary energy intake, physical activity,
seasonality, body composition, breastfeeding and ovarian function that structure fe-
cundity and fertility in humans populations. A comprehensive knowledge of these
relationships is essential in light of human population growth and global environ-
mental change.
do, but rather is an analytical procedure to identify causes of illness from early be-
ginnings. If we can identify high risk environments at crucial periods of our devel-
opment, long-term health prospects can be improved and the economic burden of
health care reduced.
Endocrine and Immune Relationships to Health
A category of research connected to lifespan approaches, studies endocrine
and immune relationships to health center on the associations of lifestyle, psychoso-
cial context, and endocrine and immune responses to stress. The approach is
biobehavioral, where the behavioral environment is analyzed in considerable detail
and biological stress indicators such as catecholamines, blood pressure and immune
responses are employed to measure the extent of the psychosocial stresses (James
and Brown, 1997; Panter-Brick and Worthman, 1998). The work has been applied to
migrant peoples, those undergoing acculturation and modernization, and occupa-
tional groups who are thought to be exposed to high leveis of stress (Dressler, 1995;
Harrison 199?; Pearson et ai., 1993).
Ahstract: This paper has briefly surveyed the history of the Human Adaptability Project of
the International Biological Program during the 1960s and 1970s, and discussed prospects
for continuing studies of human adaptability and human population biology into the be-
ginning of the century. Selected research areas were highlighted as particularly exciting
for future research. Our lack of treatment of genetic research should not be interpreted as
a lack of interest, but rather a reflection of our focus on non-genetic research directions.
Keywords: Project of Human Adaptability, biology. Medicai Anthropology.
References
HARRISON, G.A. "Human adaptability with reference to the IBP proposal for
high altitude research". In Tbe Biology of Human Adaptability, ed. by P.T.Baker & J.S.
Weiner. Oxford: Clarendon Press, 1967: 509-519.
HARRISON, G.A. "The role of the Human Adaptability International Biological
Programme in the development of human population biology". In: Human
Adaptability: Past, Present, and Future^ ed. by S.J. Ulijaszed and R.A. Huss-Ashmore,
1997: 17-25.
The First Parkes Foundation Workshop, Oxford, January 1994. Oxford: Oxford
University Press.
HARRISON, G.K.The Human Biology of theEnglish Village. Oxford: Oxford University
Press, 1995.
HARRISON, G.A. & WATERLOW, J.C. (eds.). Diet and Disease in Traditional and
Developing Societies. Society for the Study of Human Biology Symposium 30,
Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
HENRY, C.J.K. & ULIJAZSEK, S.J. Long-Term Consequences of Earlj Environment:
Groivthy Development and the Ufespan Development Perspective. Society for the Study of
Human Biology Symposium 37, Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
HOROWITZ, M.M. "Development anthropology in the United States". In:
Ethnologische Beitrage ^rEntwicklungspolitik 2, ed. by F. Bliss & M. Schõnhuth. Bonn:
Beitráge 2ur Kulterkunde, 1990: 189-204.
Little, Michael A. and Garruto, Ralph M..Imaginário - USP, n. 5, p. 153-173, 1999.-|73
HUSS-ASMORE, R , CURRY, JJ. & HITCHCOCK, R.K. (eds.). Coping With Seasonal
Constraints. Research Papers in Science and Archaelogy, vol. 5, MASCA, The
University Museum, University of Pennsylvania, Philadelphia, 1988.
JOHNS, T. With These BitterHerbs Tbej ShallEatlt: ChemicalBcology and the Origin of
Human Diet and Medicine. Tucson: University of Arizona Press, 1990.
LASKER, G.W 1969. "Human biological adaptabiüty". Science, 1969,166:1480-1486.
LAMPL, M. VELDHUIS, J.D. & JOHNSON, M.L. "Saltation and stasis: a model
of human growth". Science, 1992, 258:801-803.
LEIDY, L.E. "Lifespan approach to the study of human biology: an introductory
overview". American Journal of Human Biology ,1996, 8: 699-702.
LITTLE, M.A., LESLIE, P.W. & BAKER, PT. "MultidiscipHnary studies of human
adaptability: twenty-five years of Tcsc2LTch'\ Journal of thelndianAnthropologicalSociety,
1991,26(l&2):9-29.
LITTLE, M.A. & LESLIE, PW. (eds.). In press. Turkana Herders of the Dty Savanna:
Ecology and Biobehavioral Response of Nomads to an Uncertain Environment Oxford
University Press, Oxford.
MAB. The United States Man and the Biosphere Program. Department of State
PubHcation 9798, U.S. MAB. Secretariat, Washington, D.C., 1990: 1-24.
McKENNA, J.J. "Sudden Infant Death Syndrome in cross-cultural perspective: is
infant parent cosleeping protective?" Annual Review of Anthopology, 1996, 25:201-
216.
McKENNA, J.J. & MOSKO, S.S. "Sleep and arousal, synchrony and independence,
among mothers and infants sleeping apart and together (same bed): an experiment
in evolutionary Acta Paediatrica, Suppl. 397:94-102, 1994.
NESSE, R.M. 1990. "Evolutionary explanation of emotions". Human Natures, 1990,
1:261-289.
NESSE, R.M. & WILLIANS, G.C. Whj We Get Sick: The New Science of Darwinian
Medicine. New York: Times Books, Random House, 1994.
Little, Michael A. and Garruto, Ralph M. . Imaginário - USP, n. 5, p. 153-173, 1999. -| 73
PEARSONJ.n, JAMES, G.D. & BROWN, D.E. "Stress and changing lifestyles in
the Pacific: physiological stress responses of Samoans in urban and rural settíngs".
American Journal of Human Biolog)i, 1993, 5:49-60.
PRIOR, I.A.M., HOPPER, A., HUNTSMAN, J.W., STANHOPE, J.M. &
SALMOND, C.E. ''The Tokelau Island migrant study". In: Population Structure and
HumanVariation, ed. by G.A. Harrison. Cambridge: Cambridge University Press,
1977:165-186.
SCULL,WJ.&ROTHHAMMER,R (eds.). TheAjmara:StrategiesinHumanAdaptation
to a Bagorous Enpíronment. Dordrecht: Kluwer, 1990.
SCHELL, L.M. "Effects of poUutants on human prenatal and posnatal growth:
noise, lead, polychlorobiphenyl compounds and toxic wastes". Yearbook of Phjsical
Anthropology, 1991, 34:157-188.
STWCKJLAND, S.S & SHETTY, PS. (eds.). Human Biology and Social Equality. Society
for the Study of Human Biology Symposium 39, Cambridge: Cambridge University
Press, 1998.
STUART-MACADAM, P & DETTWYLER, K.A. (eds.). Breastfeeding: Biocultural
Perspectives. New York, Aldine de Gruyter, 1995.
THOMAS, R.B. 'WanderingToward the edge of adaptability: adjustments of Andean
people to change". In: Human Adcptability:Past, Presente andFuture, ed. by S.J. UHjaszek
& R.A. Huss-Ashmore. The First Parkes Foundation Workshop, Oxford, January
1994. Oxford: Oxford University Press, 1997: 183-232.
THOMAS, R.B., LEATHERMAN, T.L., CAREY, J.W andHASS, J.D. ''Biosocial
consequences of iUness among smaU scale farmers: a research design". In: Capacity
for Work in the Tropics^ ed. by K.J. Collins & D.F. Roberts. Society for the Study of
Human Biology Symposium 26, Cambridge: Cambridge University Press, 1988:
249-276.
ULIJASZEK, S.J. 1997a. "Human adaptation and adaptability". In: Human Adaptability:
Pasty Presenty and Future, ed. by S.J. Ulizaszek & R.a. Huss-Ashmore, pp.7-16. The
Little, Michael A. and Garruto, Ralph M..Imaginário - USP, n. 5, p. 153-173, 1999.-|73
First Parkes Foundation Workshop, Oxford, January 1994. Oxford University Press,
Oxford, 1997.
ULIJASZEK, S.J. 1997b. "Human adaptability research methodology". In: Human
Adaptability: Pastf Present, andFuture, ed. by S.J. UHjaszek & R.A. Huss-Ashmore, pp.
261-280. The First Parkes Foundation Workshop, Oxford, January 1994. Oxford
University Press, Oxford, 1997.
ULIJASZEK, S.J. & HUSS-ASHMORE, R.A. Human Adaptability: Past, Present, and
Future. The First Parkes Foundation Workshop, Oxford, January 1994. Oxford:
Oxford University Press, 1997.
ULIJASZEK, S.J. and STRICKLAND, S.S. (eds.). Seasona/ity and Human Eco/ogy. Society
for the Study of Human Biology Symposium 35, Cambridge: Cambridge University
Press, 1993.
VITZTHUM, VJ. "Comparative study of breastfeeding structure and its relation to
human reproductive ecology". Yearbook of PhjjsicalAnthropology, 1994, 37:307-349.
VITZTHUM, VJ. & AGUAYO, VM. "Ecology of breastfeeding: approaches toward
improvement of women's and children's health". American Journal of Human Biology,
1998,10:145-149.
WEINER, J.S. InternationalBiologicalProgramme: Guide to the Human Adaptability Proposals.
Special Committee for the International Biological Programme, International
Council for Scientific Unions, London, 1965.
WEINER, J.S. "Major problems in human population biology". In The Biology of
Human Adaptability, ed. by PT Baker & J.S. Weiner. Oxford: Clarendon Press, ,
1967: 1-24.
WEINER, J.S. "The history of the Human Adaptability Section". In: Human
Adaptability: A History and Compendium, ed. by K.J. CoUins & J.S. Weiner. London:
Taylor & Francis, 1977: 1-23.
WEINER, J.S. and LOURIE, J.A. (eds.). Human Biology: A Guide to Field Methods.
Phüadelphia: IBP Handbook n" 9. FA. Davis, 1969.
Little, Michael A. and Garruto, Ralph M. . Imaginário - USP, n. 5, p. 153-173, 1999. -| 7 3
inóspitas. Hoje, lembra-nos Johnni Langer, estes lugares ganharam dimensões mais
alargadas: o espaço sideral dos ufólogos ou de cineastas apaixonados por vidas em
outros planetas. Lugares inatingíveis simbolizam, segundo o autor, a tênue fronteira
entre o conhecido e o desconhecido, vale dizer, o homem diante de seus próprios
limites; daí o fascínio e o medo.
Este fenômeno de longa duração adquire maior efervescência na Europa com
o descobrimento das Américas, o que é conhecido por quase todos como a busca do
mito do Eldorado, inspirado não apenas pelo encontro de ouro no México e no
Peru, mas também em outras regiões, como o Brasil, local analisado por Langer.
Este local despertou o desejo em inúmeros viajantes, navegadores comuns e intelec-
tuais europeus, de realizar investigações sobre a possível existência de cidades perdi-
das. Diversas foram as motivações: inicialmente, os interesses mercantilistas que,
afinal, eram o fator essencial para as explorações européias (1530-1590). Influencia-
dos pela descoberta de minas de ouro e prata, desejavam, para além do enriqueci-
mento, descobrir também o maravilhoso, a busca da felicidade eterna.
No século XIX, sob a influência do Romantismo e da recém-constituída ciência
arqueológica, dedicaram-se a pesquisas mais sistemáticas, num esforço para descobrir
um passado que favorecesse a imagem de um Brasil pré-histórico dotado de civilidade.
Pretendiam identificar a jovem nação com um passado mais glorioso do que aquele
construído a partir da cultura indígena, vista como bárbara, selvagem e inferior.
Para explicar a construção deste "passado", Langer recupera a imagem que os
europeus fizeram sobre o índio, tendo em vista as cidades perdidas: segundo eles, o
Brasil era habitado por três espécies de indígenas; uma raça degenerada, repulsiva e
canibal; índios dóceis e pobres, facilmente amansados; e finalmente, uma raça ro-
busta e clara, originária de sociedades civilizadas. Esta última irrigou o imaginário de
diversos estudiosos que afirmam serem os índios ''brancos" os verdadeiros funda-
dores da pátria.
No começo do século XX (de 1990 a 1950), além da Arqueologia, os intelectu-
ais se preocuparam também em perscrutar o espaço sob uma perspectica utilitária.
Foram geógrafos e exploradores, como o famoso coronel Percy Harrison Fawcett
incumbido de uma missão científica (delimitar as fronteiras entre o Brasil e a BoK-
Resenhas. Imaginário - USP, n. 5, p. 175-188, 1999. 1 77
via), Fawcett iniciou um conjunto de pesquisas que só foi concluída com seu desapa-
recimento, em Mato Grosso, no ano de 1925. Foram 19 anos de explorações em que o
pesquisador relatou-nos sobre cidades perdidas, monstros, aldeias, vestígios de socie-
dades e de ruínas nas quais imagens autóctones e projeções sobre os mitos de origem
dos europeus foram mesclados em uma única narrativa, supostamente científica.
Se, com a ciência acadêmica, conclui Langer, as pesquisas e narrativas sobre as
cidades imaginárias perdem sua legitimidade (pois são desprovidas de evidência
empírica), de forma alguma elas deixam de habitar o imaginário social, o que se
manifesta principalmente na literatura e, mais recentemente, no cinema.
São estes sonhos, manifestos pelos exploradores, mas que também refletem o
anseio de todos nós pela felicidade eterna, que Johnni Langer nos convida, em seu
Uvro, a conhecer. Texto denso, empiricamente bem fundamentado, bibliografia es-
pecializada; ao lado disto, uma aventura de historiador, também ele, sempre motiva-
do em buscar os limites do desconhecido.
Livro: O Norma/ e o Patológico
Autor: Georges Canguilhem
Edição: Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1990.
Por Rosana Sigler*
A evolução nas idéias médicas entre os séculos XVII e XVIII resultou numa
teoria - que se tornou um dogma no século XIX - segundo a qual os fenômenos
patológicos nos organismos vivos são apenas variações quantitativas dos fenômenos
fisiológicos normais. Em O Normal e o Patológico, Georges Canguilhem, filósofo e
médico, posiciona-se contra a tese da identidade entre fenômenos vitais normais e
patológicos. Ele faz uma reflexão filosófica sobre este pensamento, seus métodos e
técnicas, resgatando algumas de suas representações especialmente nas idéias dos
franceses Augusto Comte e Claude Bernard, em função de sua influência sobre a
filosofia, a ciência e a literatura.
A primeira e segunda partes deste livro são a reedição de sua tese de doutorado
em medicina, e a última parte, escrita vinte anos depois, é uma reafirmação de sua
tese, acrescida de outras considerações na mesma direção.
Alguns pontos fundamentais de sua argumentação referem-se: ao desvelamento
do caráter valorativo implícito nas conceituações dos estados normal e patológico; à
insuficiência explicativa dos termos quantitativos na diferenciação daqueles estados;
e à relatividade inerente às normas vitais. Todos estes desdobramentos de sua argu-
organismo. Disto tudo já se pode inferir que Canguilhem não considera possível que
se fale em um estado padrão de saúde como referência a uma realidade universal
objetivável. Para os adeptos da tese da identidade, haveria a possibilidade de conce-
ber este estado padrão - o ''normal" - passível de ser objetivamente mensurado, em
busca do qual deveriam se dedicar quem pratica a atividade clínica.
Canguilhem considera também insuficientes e enganosos os parâmetros estrita-
mente quantitativos para explicar as patologias como diferenciação — para mais ou
para menos — dos fenômenos normais. Segundo ele, desde os autores que antecedem
Broussais, passando pelo tratamento que Comte dá ao assunto, até as idéias de Claude
Bernard derivadas de sua medicina experimental, há evidências do caráter implicita-
mente qualitativo das descrições relativas às patologias, ainda que pretensamente colo-
cadas como descrições quantitativas em sua relação com os fenômenos vitais normais.
Constata-se o uso de conceitos que não podem ser perfeitamente transpostos em
termos quantitativos e que apontam para uma outra dimensão, como, por exemplo, a
noção de ''comportamento renal", referida ao mecanismo da secreção urinária.
E claro que os fenômenos normais e patológicos remetem à mesma composi-
ção físico-química, mas à identidade de sua dimensão concreta não corresponde a
identidade de seu valor biológico. O que distingue o alimento do excremento não é a
sua composição físico-química, da mesma forma, o que distingue a Fisiologia da
Patologia não são as propriedades concretas de seu objeto de estudo. Mais uma vez,
é a dimensão valorativa que estabelece essas diferenciações. O mal orgânico não
poderia ser reduzido a alterações quantitativas, até mesmo porque uma constatação
objetiva de alterações quantitativas relativas a determinada função biológica ou a
determinado órgão não corresponde necessariamente a uma patologia. Como diz o
autor "Descobre-se então que determinado indivíduo, que hospeda na sua faringe
bacilos de Loeffler, não está com difteria." (p. 185).
Uma análise mecanicista e quantitativa, ao ter como premissa a identidade dos
fenômenos normais e patológicos em função da identidade de seus processos físico-
químicos, ç^sva^a o sentido da palavra "patológico" mais do que o explica. Isso porque,
está claro, este sentido não corresponde a uma existência concreta, mas à condição
existencial do organismo, que transcende a concretude de suas partes e que escapa a
Resenhas. Imaginário - USP, n. 5, p. 175-188,1999. 181
uma análise que a elas se limite. Por isso, a diferenciação qualitativa entre o normal e o
patológico remete necessariamente ao funcionamento do organismo como um todo.
Ao nos referirmos ao todo orgânico, caminhamos para outro aspecto funda-
mental da argumentação de Canguilhem: a questão da norma^ que ele entende dever
ser um conceito relativo ao próprio indivíduo considerado em sua totalidade. Quan-
do se fala em norma, está-se trabalhando deliberadamente com a dimensão qualitati-
va dos fenômenos vitais, portanto, com valores e não fatos. Canguilhem chama a aten-
ção para o risco em confundir fatos e valores no fazer científico, considerando, por
exemplo, um determinado fenômeno normal — como fenômeno ideal, universal e
saudável — perdendo de vista o juízo de valor implicado nesta conceituação.
O autor examina, então, um procedimento freqüente derivado daquele engo-
do filosófico: a dedução de um padrão normal — como equivalente de ideal, univer-
sal e saudável - de determinada característica biológica a partir de algum dos dife-
rentes cálculos possíveis de média de uma população de indivíduos. Isto só teria
sentido se atuassem na constituição de determinada característica as leis do acaso, ou
seja, "leis que exprimem a influência de uma multiplicidade indeterminável de cau-
sas não sistematicamente orientadas." (p.l23).
Canguilhem recorre às idéias do sociólogo Maurice Halbwachs para explicitar a
inviabilidade e o equívoco em considerar a variabilidade de qualquer característica
humana como resultante das leis do acaso: há fatores sociais que determinam inclu-
sive a ordem vital. Se não se pode falar em leis do acaso na determinação da variabi-
lidade de determinada característica dos organismos humanos, não faz nenhum sen-
tido acreditar que, ao extrair alguma média desta característica sobre diferentes indi-
víduos, seja possível considerá-la como o "padrão normal", na acepção de ideal,
universal e saudável. Mesmo no mundo animal, Canguilhem defende que não seria
possível extrair este padrão normal a partir da média, pois as leis do acaso não deter-
minam a variabilidade de nenhum ser vivo. O alto índice de determinada caracterís-
tica em dada população apenas indica que esta população exibe uma norma, que
deve ser compreendida em função de suas condições específicas. Nas palavras do
autor: "Um traço humano não seria normal por ser freqüente, mas seria freqüente
por ser normal, isto é, normativo num determinado gênero de vida" (p.l26).
182 Resenhas.
No que se refere à saúde dos organismos, Canguilhem defende que ela só pode
ser apreciável individualmente. A doença não é aumento ou diminuição de elementos
do "padrão normal", é uma outra norma que corresponde a outra forma do organis-
mo interagir com o meio. Não é, portanto, a constatação de um desvio em relação a
um padrão que determina se há patologia ou não, mas a condição existencial do orga-
nismo considerado em sua totalidade. Ele pode, dentro deste raciocínio, exibir uma
norma diferente da maioria e estar doente, como poderia exibir essa diferença sem
estar doente. Mas o que significa exatamente "doença" para o autor, se ele a considera
como uma outra norma da mesma forma que há uma norma na vida saudável?
A questão da norma individual remete ao caráter ativo dos organismos, ou seja,
à inventividade de formas do viver em busca de um equilíbrio entre suas necessida-
des e o seu meio. O saudável é um ideal funcional individual e pode ser definido
como a capacidade do organismo de estabelecer normas de acordo com as imposi-
ções do meio. A saúde está relacionada, então, com a possibilidade de transformação
destas normas, sempre que necessário. A contrapartida desta concepção de saúde é
a de doença como redução da margem de tolerância às infidelidades do meio, em
função do estabelecimento de uma norma inferior por não tolerar alterações em
direção a outras normas que possibilitem uma interação melhor. A doença, embora
represente também um equilíbrio - uma norma - do organismo com o meio,
corresponde a uma situação mais vulnerável, na medida em que há possibilidades
reduzidas de novos reajustes. A patologia é uma inflexibilidade, uma rigidez do orga-
nismo no que se refere a sua norma; e a cura, nesse sentido, é um processo que visa
o estabelecimento de uma ordem na qual haja um melhor equilíbrio do organismo
com seu meio.
Canguilhem apresenta uma reflexão filosófica do fazer científico no campo da
Medicina, cujo objeto concreto de conhecimento - a ordem vital - não garante a
objetividade deste conhecimento. Suas considerações são bastante proveitosas para
a reflexão crítica em outros campos do saber que igualmente postulem estados nor-
mais e patológicos.
Este tema está intimamente relacionado ao tema das diferenças em ciências
humanas, pois as atitudes profissionais e cienti^ficas são diversas conforme sejam
Resenhas. Imaginário - USP, n. 5, p. 175-188, 1999. 1 77
o novo filme escrito e dirigido por Masayuki Suo é uma comédia que focaliza a
sociedade japonesa em sua relação com o Ocidente. Shall we dance? foi o filme favo-
rito do público no Festival de Cannes de 1996 e, no Japão, ganhou prêmios em treze
categorias do equivalente japonês ao Oscar. Desde então, tem feito uma carreira
excelente, sendo o filme japonês de maior bilheteria na história dos Estados Unidos.
Em 1992, seu diretor já havia ganhado o prêmio de melhor filme da Academia Japo-
nesa de Cinema com Sumo do. Sumo don't.
Shall we dance? já antecipa sua preocupação com o Japão-Ocidente a partir do
título. Na verdade, a palavra dance está escrita no alfabeto usado por palavras estrangei-
ras {katakanã)^ assim dance a ser dansu, que seria como os japoneses a procunciariam.
O filme mostra um salary-man japonês que corresponde em tudo ao que a soci-
edade espera dele: aos 49 anos de idade conseguiu uma boa posição no escritório,
acabou de comprar a casa de seus sonhos e tem um casamento ótimo, com uma filha
adorável. Ele se nega mesmo às pequenas satisfações, como sair com os amigos para
beber depois do trabalho, o que, no Japão, não é tido como transgressão, mas como
o comportamento esperado de um homem. Ainda que sob os protestos da mulher,
ele volta para casa todos os dias logo após o trabalho. Tudo estaria perfeito se não
fosse a sensação de vazio que a vida lhe traz. Um dia, ao voltar para casa de trem, vê
uma moça com olhar melancólico (como o dele) na janela de um curso de dança de
salão. Aí começa sua odisséia para, em primeiro lugar, decidir-se a tomar aulas e, em
segundo lugar, esconder de sua mulher as suas ações e a fascinação que a professora
de dança lhe causa.
Shall m dance'? é uma boa introdução ao Japão contemporâneo para os ociden-
tais — mostra o ambiente do escritório, da casa, os trens, os bares onde se pode tomar
saquê e comer aperitivos depois do trabalho. E um filme pleno de referências ao
cotidiano da classe média japonesa nas grandes cidades. Porém mesmo neste ambi-
ente contemporâneo, onde pai e filha disputam o uso do computador à noite e
empregados do escritório discutem sobre o programa mndom, os antigos temas da
vergonha (haji) e do medo do ridículo se impõem.
Pela abertura do filme vemos que realmente, além de contar uma estória, Shall
we dance'? irá se tornar uma ponte para que os ocidentais tenham uma melhor com-
preensão da vida japonesa contemporânea que é regrada por normas diferentes das
ocidentais. Em contrapartida, o filme toca no tema da mudança da sociedade japo-
nesa pelo contato com costumes ocidentais.
Logo no início, a cena se abre com um grande baile num salão requintado onde
casais ocidentais valsam. Esta abertura é o momento ideal para se contar ao telespec-
tador ocidental que dançar não é uma ação comum na vida japonesa. Didaticamento
o narrador explica que casais não se abraçam ou caminham de mãos dadas no Japão.
Estas são atitudes por si mesmas embaraçosas, pois são próprias para a intimidade
do quarto. Uma vez que se dança com um/a parceiro/a que não é seu/sua esposo/
a a situação se complica ainda mais. O embaraço é inevitável.
Ao salarj man cabe esconder suas ações com relação às aulas de dança. Ele não
pode assumir que toma aulas sem colocar em risco sua imagem frente a sua esposa e
aos colegas do escritório. Sugiyama san (o ator Koji Yakusho) terá que praticar seus
passos no banheiro ou num espaço deserto embaixo de uma ponte. Sabemos do
"(...) temor, tão assinalado no adulto japonês, do ridículo e do ostracismo. (..) a
sensação de estar sendo alvo de riso funde-se com o pânico de estarem ameaçadas
da perda de tudo o que é seguro e familiar." (Benedict, 1972:221). Pior do que colo-
"188 Resenhas.
car apenas sua imagem a mercê do riso, Sugiyama san, se descoberto, coloca todo o
grupo a que pertence em situação vergonhosa.
Neste sentido, a pressão que existe no que o grupo sanciona para seus mem-
bros é extremamente forte. Se há desaprovação ou censura, o indivíduo é colocado
no ostracismo. Através deste mecanismo, a aprovação do "mundo exterior" assume
uma importância talvez sem paralelo em qualquer sociedade (Benedict, 1972: 230).
A vergonha {haji) torna-se um código de virtude que sanciona o que é permitido no
comportamento. Aquele que sofrer com ela cumprirá as regras da boa conduta.
Um homem que conhece a vergonha é por vezes traduzido como 'virtuoso' ou 'hon-
rado'. A vergonha ocupa o mesmo lugar de autoridade na ética japonesa que uma
'consciência limpa', 'estar bem com Deus' e abstenção de pecado têm na ética oci-
dental. A primazia da vergonha na vida japonesa significa (...) que cada um aguarda
o julgamento de seus atos por parte do público (Benedict, 1972: 190).
Entretanto, a vergonha não consegue impedir que o herói tome aulas e torne-se
tão bom dançarino que comece a freqüentar concursos de dança. Sua esposa e filha,
finalmente sabendo das aulas do marido e pai, vão assistia-lo. A filha, sendo de uma
geração mais aberta à cultura ocidental, torce pelo pai e não vê mal algum em dançar,
mas a esposa não o compreende. Por mais que se esforce, não consegue compreen-
der um ato que vem de uma cultura que está além das fronteiras do Japão.
E interessante notar que foi o mesmo tema, a dança, um dos fatores de acultu-
ração dos descendentes de japoneses no Brasil. Depois da Segunda Guerra Mundial,
com a derrota do Japão, os imigrantes e seus descendentes já não tinham mais razão
de voltar ao país de origem. Se a meta principal das famílias de imigrantes de antes
da guerra era fazer dinheiro rápido para voltar ao Japão, o que acarretava o isolamen-
to da comunidade, com a derrota na guerra os planos tiveram que ser mudados. A
permanência no Brasil havia se tornado um fato inelutável. No pós-guerra os imi-
Resenhas. Imaginário - USP, n. 5, p. 175-188, 1999. 1 77
grantes isseis (primeira geração) tinham como meta o êxito econômico e a ascensão
social de seus filhos. Compreendiam que as condições básicas para que isto aconte-
cesse eram que falassem bem a Kngua portuguesa e se comportassem, em certa
medida, como brasileiros.
Contudo, o incentivo por parte dos pais, para que a geração nascida em terras
brasileiras se adaptasse, era somente um primeiro passo, já que não poderiam funci-
onar como modelo de comportamento para eles. Este vácuo na educação foi preenchi-
do pelas centenas de associações de descendentes japoneses que forneciam-lhes o
ambiente ideal para que discutissem seus problemas comuns e convivessem com
jovens em igual situação. Para os descendentes que saíam do campo e chegavam à
cidade com o intuito de estudar, elas funcionavam como uma ponte entre seu back-
groundrural e japonês e a sociedade brasileira que deveriam enfrentar. Nestas associ-
ações eles discutiam temas como o namoro e o casamento^, planejavam atividades
esportivas e excursões e ensinavam a dançar à maneira ocidental.
Há basicamente dois tipos de filmes japoneses hoje: os ditos "artísticos", que são
sérios, pesados e aborrecidos; e os filmes de entretenimento, que fazem os especta-
dores de bobos porque os subestimam. Quis fazer algo entre os dois tipos, um filme
"188 Resenhas.
de entretenimento, mas que também possa ter um verdadeiro interesse para o espec-
tador". (Entrevista para Lúcia Nagib)
Notas
^ No Japão o casamento é arranjado {Omiai). O amor romântico é uma idéia que veio junto com a
ocidentalização, depois da segunda gerra mundial, e mesmo hoje não faz parte integral da socieda-
de japonesa
Referências Bibliográficas
Presentation 5
Tbe drunk in love: genderprofiles in the imaginary of Braf^ilian Pop Music— 1930-1950 7
Maria Izilda Santos de Matos
SoáalTie 91
Leslie Kaplan
Identi^, social invisibility, alterity: experience and anthropological theory in the heart of practics 105
Francine Saillant
Human yidaptabili^ research into the heginning of the Third Millennium. 153
Michael A. Little and Ralph M. Garruto
InBriefs 175
INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES
NOTES TO CONTRIBUTORS
1. Articles are considered on the assumption that they have not been published
wholly or in part, elsewhere.
2. A summary abstract of up to 100 words should be attached to article. A
bibliographical list of cited references beginning with the author's last name, initials,
followed by the year of publication in parentheses, should be headed 'References',
and placed on a separate sheet in alphabetical order.
3. Ali articles will be strictly refereed.
4. Contribuitors should send two copies or alternatively, one hard copy and one soft
copy (DOS format 3 Vi" disc in Microsoft Word).
Palavra
A Trajetória iMtino-americana para a Modernidade
Jorge Larraín
Huxlej Sobe o Morro e Desce ao Inferno - A Umbanda no Discurso Católico dos Anos 50
Artur César Isaia
Catarina Come-Gente
Sandra Jatahy Pesavento
Um diálogo com Monteiro Lobato
Margareth Yayo G. Melero e Maria Alice O. de Oliveira
Brasília, Cidade Arcaica
LUÍS Alberto Brandão Santos
O Silêncio como Motor da Opinião Pública
Delia Crovi Druetta
Um Caso de 'Imaginário Coletivo': a Procura do Eldorado no Século XVI
Gilberto Mazzoleni
Islamismo, Imigrantes e Estado: Religião e política Cultural na Austrália
Michael Humphrey
Natureza
Naturet^a e Naturalistas
Miriam Lifchitz Moreira Leite
Vicgando pelo Mundo dos Museus: Diferentes Olhares no Processo de
Institucionalii^ção das Ciências Naturais nos Museus Brasileiros
Maria Margaret Lopes
Introdução à Herpetologia do Brasil: O Contexto Cientifico e Político da
Expedição Bávara ao Brasil de Johann Baptist von Spix & Johann Georg Wagler
P. E. Vanzolini
Ecologia Polissêmica
Marilia Coutinho
Indígenas e Camponeses: uma Relação de Conflitos
Regina de Toledo Sader
As Felities Culpas do Ocidente
Dario Sabbatucci
O Sonho Indiano: uma Metáfora Iniciática na Literatura de Viagem dos Séculos XV e XVI
Adone Agnolin
Matraga seu Pai, seu Filho
Renato da Silva Queiroz
Meditações sobre a Desordem
Goffredo Telles Jr.
Memória
Memória da Faculdade de Filosofia (1934-1994)
Miriam Lifchitz Moreira Leite
O Objeto, o Colecionador e o Museu
Maria Cristina Castilho Costa
Imagens da Memória: na Prova de Rorschach e na Obra de Proust
Lúcia Maria Salvia Coelho
Travessias, Ausências e J^embranças: Imaginário e Memória de Navegantes
Sheila Maria Doula
O Passado, o Mundo do Outro e o Outro Mundo: Tradição Oral e Memória Coletiva
Maria Luiza Sandoval Schmidt
O Fa:^r Poético e a Memória para uma Grupo de Velhos Imigrantes Japoneses
Mário Yasuo Kikuchi
Pacoval Memórias de um Mocambo na Amazônia. História Vivida e História Contada
Eurípedes Antônio Funes
Dinâmica do Simbólico
Da Antropologia Simbólica à Antropologia Cognitiva
Ruy Coelho
Afinal o que é Cognitismo
Lúcia Maria Salvia Coelho
Um Breve Estudo Sobre Cognição e Simboli^ação
Maria de Lourdes Beldi de Alcântara et al
Convergência e Conflitos de Interpretação do Keal: A festa de Corpus Christi Como Representação
Paradigmática da Diversidade Cultural
Liana Salvia Trindade
As Três Vo^es do Imaginário
François Laplantine
A Caminho de Bakororo: Alguns Aspectos das Representações da Vida Pós-Mortem dos índios Bororo
do Brasil Central
Renate Brigitte Vierder
Para receber I m O g i n á r i O :
por e-mail: labi@edu.usp.br
por telefone: 818-4386 Ramal 22
pelo Correio:
Laboratório de Estudos do Imaginário (LABI)
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP)
Av. Professor Lúcio Martins Rodrigues, trav. 4 - Bloco 17 - sala 18
Cid. Universitária - São Paulo - SP - CEP 05508-900
k
Título Imaginário
Diagramação!Editoração Joceley Vieira de Souza (joceley@usp.br)
Formato 180 x 220mm
Mancha 1 3 5 x 182mm
Tipologia Avantgarde, Garamond.
Papel Couche fosco 85g/m^ (miolo)
Supremo 250g/m^ (capa)
Impressão da capa Quadricromia com laminação fosca e reserva de UV
Impressão!Acabamento Bartira Gráfica e Editora
N" de páginas 194
Tiragem 1.500 exemplares