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A PO -ÉTIC A NA CLÍNICA
C O N TEM PO RÂ N EA
2a edição
IDEIAS &
df/£
LETRAS
© Idéias & Letras, 2004
Safra, Gilberto
A po-ética na clínica contemporânea / Gilberto Safra.
- Aparecida, SP : Idéias & Letras, 2004. - (Coleção psicanálise século I)
Bibliografia.
ISBN 85-98239-14-3
0 4 -2 1 9 5 CDD-150.195
Televendas: 0800 16 00 04
vendas@ideiaseletras.com.br
www.redemptor.com.br
Aos m eus avós e pais.
Prefácio
GILBERTO SAFRA: RUMO À COMUNIDADE HUMANA, 11
Apresentação, 21
Introdução, 23
Capítulo I
SOBÔRNOST: FUNDAMENTO DO ETHOS, 39
Capítulo II
A CRIATIVIDADE, 53
Capítulo III
O TEMPO E O GESTO CRIATIVO, 75
Capítulo IV
OS OBJETOS E AS COISAS, 87
Capítulo V
O GESTO EM SOBÔRNOST, 103
Capítulo VI
O IDIOMA PESSOAL, 115
Capítulo VII
O SOFRIMENTO HUMANO E AS FRATURAS ÉTICAS, 127
Capítulo VIII
A ÉTICA DA SITUAÇÃO CLÍNICA, 145
re c e n e g r a . D e ssa m a n e ir a , a ic o n o g r a f ia d a v a à V irg e m -M ã e a c o r
d a te r r a .
7 . P ersp ectiv a tra b a lh a d a e m m e u liv ro A face estética do self, op. cit. '
Introdução 3
8 . C a s a d e c a m p o e m ru sso.
9 . F. D o sto iev sk i, “C a p .1 3 . L ittle P ictu res”, A Writer’s Diary, vol. 1, 1 8 7 3 -
1 8 7 5 , E v a n sto n , N o rth w estern U n iversity P ress, 111.1999.
Introdução 33
A in te ira v id a d a so cied ad e to rn a -s e u m a a u to -a p re s e n ta ç ã o
vazia. N e m p a rtid o s p o lítico s o u em p resas são re a lm e n te c ria
d o s, m a s sim co n ce ito s d e p a rtid o s e em p resas. In cid en talm en te,
a á re a m ais real, a e c o n ô m ic a , é até m ais sim u lad a d o q u e to d a s
as o u tra s , (n o ssa tra d u ç ã o , p . 1 9 6 )
Esse h o m e m q u e v ai so zin h o
P o r estas p ra ç a s , p o r estas ru as,
T em co n sig o u m seg red o e n o r m e
É um h om em .
A m u lh e r e n c o n tra o h o m e m ,
F a z e m a r de riso , e tr o c a m de m ã o ,
A su rp resa e o segred o a u m e n ta m .
V io le n to s.
M as a s o m b ra d o in so frid o
G u a rd a o m is té rio n a escu rid ão .
A m o r te ro n d a c o m su a foice.
Em verdade, é noite, (p .3 5 7 )
B erdaiev 1, 1 9 3 6 (n o ssa tr a d u ç ã o ).
^ SO B Ó R N O ST E L IN G U A G E M
SO B Ó R N O ST E C E R I M Ô N I A
SOBÓRNOST E A R T E F A T O S C U L T U R A IS
SOBÓRNOST E A N ATUREZA
11. C . C o ra lin a , “T odas as V id as”, Poemas dos becos de Goiás e estórias mais,
S ão P au lo , G lob al, 1 9 8 5 .
52- A po-ética na clínica contemporânea
fala d e K iriiov e m
D ostoïevski1, O s Demônios (p. 889-890).
V ivem em n ós in ú m e ro s;
Se p en so o u sin to , ig n o ro
Q u e m é q u e p en sa o u sen te,
S o u so m en te o lu gar
O n d e se sen te o u p ensa.
T en h o m ais alm as q u e u m a .
H á m ais eus d o q u e eu m e sm o .
E xisto -to d av ia
In d iferente a to d o s
F a ç o -o s ca la r: e u falo.
(1 3 -1 1 -1 9 3 5 , p. 2 9 1 )
16. O con ceito comunidade de destino teve sua origem n o cam p o religioso e
foi utilizado entre n ós n o cam p o d a Psicologia Social p o r Ecléa-Bosi. N es
te texto, utilizo esse con ceito em co n exão c o m a con cep ção de Sobórnost,
p o rtan to em registro ontológico, c o m o será discutido m ais à frente.
17. C h a m o de m ito a co n cep ção im ag ética e lingüística p o r m eio d a qual as
p essoas em p restam a o Ser u m a visão sin tética e totalizante, n a qual as
q uestões d a o rig em e d o fim e n co n tra m -se su bm ersas n a im an ên cia dos
registros psíquicos e m en tais d o ser h ü m an o . À m ed id a que o p ro cesso
de v ir a ser se estabelece, o m ito g an h a estatu to tran sicio n al e passa a ser
veículo te m p o rá rio em d ireção a o m ais além .
70 A po-ética na clínica contemporânea
formulações que, através das gerações, foram feitas por elas, para
que seus membros possam lidar com as questões fundamentais que
m arcaram a história familiar. O bebê constitui-se nesse campo.
Ele porta essas questões enraizadas na organização mítica que
caracteriza sua família e que se estende a sua comunidade e que,
por sua vez, relacionam-se, ontologicamente, às grandes ques
tões de toda a humanidade.
Por essa razão, nosso trabalho demanda, eticamente, a clareza
quanto aos diferentes registros que se apresentam frente a nós: o
singular e o universal, o e u e o nós. Posicionados, ontologicamente,
em comunidade de destino; abertos para a alteridade fundamental ^
que se apresenta na singularidade do outro.
Houve uma paciente que procurou Winnicott em estado de
profunda desesperança. Winnicott lhe disse que não via esperan
ça em seu caso, mas decidiu trabalhar com ela. Tempos depois ela
lhe disse que a coisa mais importante que ele havia feito foi ter
trabalhado com ela, mesmo afirmando que em seu caso não ha
via esperança. Isso lhe deu a possibilidade de vir a ter esperança^
Foi fundamental que um Outro pudesse ter dado rosto à desespe
rança que ela vivia, ou seja, era importante o analista viver junto
dela a desesperança que a atravessava.
Em muitas situações, o gesto suicidá é'a ação desesperada erií
afirmar uma existência, pela inscrição trágica de si na memória
do outro. Há sempre no desespero vivido pelo indivíduo a expec
tativa de um encontro que transforme o insuportável em uma
experiência que possa vir a ter um sentido e possa vir a ser um
sofrimentoiS.18
S ó o m e ssia s m e s m o c o n s e g u e to d o a d v ir
h is tó ric o e p recisam en te n o sen tid o q u e só ele o
red im e, c u m p re , co n su m a su a re la çã o a o m essia
n ism o m e sm o .
/
O tempo e o gesto criativo 85
Rilke1
A
relação com as coisas é fundamental
para o ser humano. A cultura russa tem muito a nt>s ensinar sobre
esse aspecto necessário à condição humana, pois o povo russo
tem uma relação atávica com a terra. A terra é equiparada à mãe
de todo povo. O trabalho, ação criativa do ser humano, transfór-5'
ma a terra em coisas que habitam o lar do homem.
Não é sem razão que a concepção grega sobre a arte, por meio
dos ícones, se desenvolveu tão amplamente na Rússia. Já existia,
nesse país, um tipo de ligação especial com a terra, a materialida
de, e com as coisas, que facilitou a assimilação da sacralização das
coisas que o cristianismo grego apresentava com a noção dos íco
nes. Os ícones, imagens pintadas com pigmentos naturais sobre
um pedaço de madeira, assinalavam a sacralização da materiali
dade do mundo por meio da encarnação do Cristo.
Esse é o paradigma da noção de coisa na Rússia, que funda um
posicionamento do povo avesso a qualquer noção de espiritualida
de desmaterializada. No Ocidente desenvolveu-se uma concepção
em que a materialidade foi consideraria nociva ao desenvolvimento
da espiritualidade humana. O temor seria da reificação do ser hu
mano. No entanto, não é a coisa que achata o homem em um pro
cesso de reificação. A coisificação do ser humano é decorrente das
ações humanas. Esse antimaterialismo foi um dos responsáveis para
o desenvolvimento do fetichismo comercial entre nós, pois nqs le
vou à ignòrância sobre a coisa e seu lugar no ethos humano. O sa
grado demanda a presença do material, a presença do corporal, a
presença da terra. A terra espera o gesto humano para alcançar seu
real estatuto ontológico. Dessa forma, há uma estreita relação entre
a vidá humana, o gesto e as coisas. O homem com suá ação, com
sua criatividade, desvela e outorga significado às coisas. Elas, por
sua vez, abrem no espaço humano a memória da terra, do trabalho
‘ e do Outro ( Sobórnost). As coisas resistem ao esvaneCímento da
significação tia vida humana, qualidade fundamental em um mun
do com temporalidade acelerada. As coisas têm significação, pois
cada uma delas é um ícone2 do trabalho humano, das gerações que
se sucedem, do Outro.
U m a se n h o ra c o m id ad e a o re d o r de sessen ta a n o s p ro c u
ro u análise p o r estar d e p rim id a e sem â n im o . T ratav a-se de u m
estad o p síq u ico q u e e x p e rim e n ta v a h á m u ito s an o s. E ra de o r i
g e m e u ro p éia, te n d o viv id o os h o rro re s de u m a g u e rra m u n d ial,
q u an d o p erd eu en tes m u ito q u erid o s. Im ig ro u p a ra o B rasil e a o
lo n g o d o s a n o s e s tru tu ro u u m q u a d ro m elan có lico q u e se c r o -
n ifico u .
■ii *
i
A po-ética na clínica contemporânea
2. O ser h u m a n o é c h a m a d o n ão p a ra a m o n to a r u m a fo rtu n a
e m co isas e n e m p a ra recu sá-las. S o m o s ch a m a d o s p a ra e sta r c o m
elas e co m p a rtilh a r c o m elas a q u alid ad e d e seu silên cio, su a falta
d e m alícia, su a im p assivid ad e, su a lib erd ad e d o invejar.
á
Capítulo V
O GESTO EM SO BÓ R N O ST
1. A S IT U A Ç Ã O D E M IS S Ã O
2 . A S IT U A Ç Ã O D E E N I G M A
que lhes parece hipócrita no campo social. Essas são pessoas que
vivem a lucidez medonha, mas sem esperança.
Algumas vezes uma família vive uma tragédia. Ela pode ser
tão intensa que a referência àquele evento desaparece do discurso
na interação familiar. O não dito acontece aí em decorrência da
angústia que a lembrança daquela experiência traz. As próximas
gerações vivem a presença de algo que não pode ser referido, por
tanto de algo enigmático. A partir do momento em que a história
pode ser retomada há possibilidade de o indivíduo posicionar-se
frente a ela e sai da situação de enlouquecimento promovido pelo
enigma. Nessa situação teremos não uma agonia5, que é o conge
lamento da memória de um evento, mas um sofrimento decor
rente da m em ória, agora alcançada, que pode ser referida e
colocada em jogo. A memória passa a nortear o gesto das pessoas,
re-significando a história.
Vivemos em uma época na qual a memória é ffeqüentemente
perdida das mais diferentes maneiras. Não falo aqui da memória
que é puro preenchimento da descoberta, como foi descrita por
Bion. Refiro-me à memória que é registro da historicidade cons
titutiva do ser humano, ^ssa memória precisa estar presente nos
discursos familiares, nos espaços públicos e nas obras culturais.
Em nosso tempo, chamado de pós-moderno, ou de modernidade
tardia, a memória constitutiva fragmenta-se deixando consequên
cias funestas na maneira como o ser humano acontece no mun
do. Na atualidade a re-inserção da memória é cura em diversas
3 . A S IT U A Ç Ã O D E Q U E S T Ã O
í
Na existência humana compartilhamos as grandes questões
do destino humano. A questão da precariedade humana, a ques- )f .
tão do imponderável, a questão da solidão essencial, da sexualidade, J
da vida e da morte. Essas são questões que nos precedem. Com Bion i.
poderíamos dizer que elas nos visitam como pensamentos em v
busca de pensador. Quando temos a oportunidade de nascer em «y
uma situação familiar e em uma comunidade em que essas ques- ^
tões são colocadas em jogo, são formuladas e pensadas, estamos j^-
em uma condição que favorece nos posicionarmos frente a elas. j
DOSTOIEVSKI1 (p . 4 8 )
3 . R e firo -m e à c o n trib u iç ã o d e W in n ic o tt so b re a im p o r tâ n c ia d a re
gressão n a clín ica d o q u a d ro p s ico p a to ló g ico d en o m in ad o , p o r ele de
Falso self
130 A po-ética na clínica contemporânea
7 a. O bebê seduzido por esse lugar torna-se uma pessoa cuja per
sonalidade é apenas casca social. Tem-se a impressão de que
esses indivíduos não têm interioridade. Vivem em situação de
licada, pois se o destino lhes traz algum tipo de adversidade,
não estão preparados para lidar com o evento e vivem, frente
a ele, a possibilidade de enlouquecerem ou de se suicidarem. É
profundamente perigoso colocar essas pessoas em análise, pois
a análise também pode jogá-las para uma loucura sem volta
•ou para o suicídio. Isso não significa que elas não busquem
análise. Elas o fazem, mas de um modo muito peculiar: a aná
lise é buscada como uma outra insígnia social, que lhes dá
prestígio junto à sociedade. Permanecem em análise se o ana
lista, sem perceber, entra em cumplicidade com elas e deixa de
analisar suas situações existenciais reais.
7b. Algumas crianças nascidas nesse tipo de família organizam-se
por meio do repúdio pelo social. Sentem as relações humanas
vazias, sem sentido, e consideram o mundo hipócrita. Ten
dem a viver à margem do campo social, podendo até mesmo
haver o desenvolvimento de comportamentos anti-sociais,
como forma de protestarem pelo lugar que lhes foi dado.
Algumas delas desenvolvem um a grande sensibilidade para
a comunicação não-verbal, pois é essa quê as Orienta para o
que é verdadeiro, já que consideram as palavras como cam
po de mentira e de vazio.
9 . Ver n o ta 3 d o ca p ítu lo I.
1 0 . S. W eil, ( 1 9 4 3 ) . “O en ra iz a m e n to ”. In : B o si, E . (o r g ), Simone Weil. A
condição operária e outros estudos sobre a opressão, 2 . ed ., tr a d . de T h e -
rezin h a G o m es G arcia L an g lad a, R io de Jan eiro, Paz e T erra, 1 9 9 6 .
O so frim en to hurriahó e as fratu ras é tic a s 139
1. A T R A N S F E R Ê N C I A
2 . A IN T E R V E N Ç Ã O
3. A LIN G U A G EM
tenta seu idioma. Para dar coijta de sua questão originaria, todo
ser humano concebe um mito sobre a origem e uma utopia para
o fim, o que constitui sua ontologia e teleologia pessoal. Esses são
os dois referentes fundamentais de onde surge a semântica exis
tencial do paciente. No mito e na utopia se oculta a questão origi
nária. Por isso podemos afirmar que a origem e o fim são o mesmo
diferentemente colocados no tempo. Por meio da questão explici
tada e alcançada no processo analítico, o mito da origem e a uto
pia do final são furados e a pessoa se coloca como filha do mistério:
à ignorância a acolhei Ela se encontra aberta para o Outro!
Dessa forma ela se aninha em sua questão originária e essa
passa a ser o lugar a partir do qual seu gesto acontece. Há um
vocacionar-se, que ocorre não só como um projeto profissional,
mas existencial.4
4. O TEM PO
5 . O C O T ID IA N O
5 . C o n c e ito fo rm u la d o p o r W in n ic o tt q u e se refere à ap re se n ta çã o do
m u n d o feita p ala m ã e a seu b eb ê o rie n ta d a p ela im atu rid ad e d o bebê.
Esse é o p a ra d ig m a da in te rv e n çã o feita p elo an alista n a clín ica.
6 . A . H eller, O Cotidiano e a História, P az e T erra, S ão P au lo, 1 9 7 0 .
A é tica d a situ açao clín ica 153
6. A HISTORICIDADE