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SUMÁRIO

Apresentação 8

I. Problemas cruciais da análise online 16


O dever ético do psicanalista 17
Automaton e tycké online 20
Os três planos da transferência 24
Os dois tipos de enunciação 31

II. A cena analítica online 36


O Real na pandemia e na análise 38
Inconsciente teatral e ato analítico 41
Psicanálise com crianças 44
Psicóticos online 47

III. A des-humanidade e o dinheiro 52


Solidariedade e descaridade 54
Com Freud 57
Sem hipocrisia e sem pudor 61
Gratuidade e calote 65

IV. O custo do sintoma 68


Psicanálise ou gambiarra? 70
A transferência prévia 71
Os benefícios do sintoma 74
Bancar o amor 77
V. O peso das cartas roubadas 82
O que o analista paga? 85
A carta roubada 92
Dois métodos de investigação 94
Os efeitos da carta 95

VI. O destino e a libra de carne 100


O gozo da vingança 102
A carta é o destino 104
A eficácia simbólica 107
A dívida de carne 109

VII. A pulsão invocante


e o Outro na clínica do bebê 116
Primeiro tempo da pulsão invocante 119
Segundo tempo da escuta musical 120
Primeiro tempo da pulsão
invocante entre Dorota e a sua mãe 122
Segundo tempo da pulsão
invocante no bebê 123
Introdução 129
Desenvolvimento 129
Clímax 130
Resolução 130
Terceiro tempo da pulsão
invocante, por Alan Didier Weill 131
VIII. Versões da mãe e objetos da pulsão 136
As versões da mãe 138
Ecos no corpo 142
Objetos verbivocovisuais 143
Esse seu olhar… 146
A voz no estádio do espelho 149
O toque da pulsão 150
Para além da demanda 152

IX. A tática e a voz 156


Necropolítica e discurso capitalista 157
O corpo a corpo 159
Uma nova tática? 161
Um mais-de-voz 163

X. Lalíngua e a retórica musical 174


A extimidade online 176
Linguagem e lalíngua 178
Lalação e manhês 183
Retórica musical 188

XI. O despertar dos analistas 194

Referências 204
APRESENTAÇÃO
Desde o início da pandemia e a consequente medida
sanitária do isolamento social, fiquei extremamente preocupa-
do com o destino da psicanálise e sua manutenção em um mun-
do que tendia a fechar todos em suas casas como única medida
efetiva de contenção do contágio, que acabou acontecendo em
proporções desastrosas no mundo e, principalmente, no Brasil,
devido ao negacionismo oficial do governo federal. A única
solução era praticar a análise online com todos, não mais em
caráter especial com analisantes que não pudessem deslocar-se
de seus países ou cidades, mas de forma generalizada.

A generalização desta modalidade de atendimento ana-


lítico gerava tantas questões que comecei, em março de 2020,
a fazer lives todos os domingos, retomando os fundamentos
éticos e teóricos que sustentam a clínica psicanalítica para se
pensar a análise online. Em nenhum momento pensei e nem
propus que deveríamos abandonar a análise com presença físi-
ca no consultório. Tampouco meu objetivo era de fazer com-
parações de uma forma com a outra para saber qual era melhor.
Meu objetivo foi formalizar as condições da análise online, uma
vez que isto foi uma realidade que se impôs e continua se im-
pondo, sabe-se lá por quanto tempo ainda.

Nunca é demais insistir que as lives sobre análise on-


line – e este livro que aqui as retomas, transcritas e revisadas
– são para psicanalistas, ou seja, para aqueles e aquelas que
tenham feito suas análises até o fim e se autorizado delas
para se dizer psicanalistas. Esta é a condição sine qua non da
análise, a +1 das condições da análise, que exponho no meu
livro sobre o tema, As 4 +1 condições de análise.
Que este livro sobre análise online possa ser lido tam-
bém por aqueles que aspirem tornar-se psicanalistas, assim

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como por leigos, e que os seus desenvolvimentos sejam um
ganho a mais na transmissão da psicanálise no século XXI.

Para continuar fazendo existir a psicanálise, considero


que o psicanalista deve se adaptar aos dispositivos de atendi-
mento remoto sem abrir mão do rigor do método psicanalí-
tico. O que me importou naquele momento, há um ano, foi a
demonstração teórica dos fundamentos desta modalidade de
atendimento que, se não era nova, também não era tão pratica-
da como veio a acontecer ao se generalizar.

O tratamento psicanalítico tem a propriedade de ser


simultaneamente experimental e terapêutico, investigativo e
conclusivo. A própria investigação da origem dos sintomas –
e a exploração do Inconsciente de forma geral – consiste no
próprio método de tratamento. Diante do novo desafio, propus
aos psicanalistas considerar o atendimento online sob a égide
da pesquisa e da experimentação, procurando descobrir novas
modalidades de efetuação do ato analítico.

Este livro retoma as minhas lives, que revisei de forma


a acrescentar, melhor formular e desenvolver pontos apenas
esboçados ao vivo, dentro da perspectiva da formalização da
experiência da análise. Para retomar os fundamentos da clínica
analítica, tomei como referência o roteiro proposto em As 4
+ 1 condições da análise para pensar essa modalidade, que é uma
análise sem divã e sem o compartilhamento do espaço físico
entre analista e analisante.

Nosso espaço psíquico não é tampouco definido por


espaço e tempo, chamados por Kant de categorias a priori. O
tempo em psicanálise não é cronológico, e sim lógico. Ele é
determinado pelo instante de ver, o tempo para compreender e
o momento de concluir; pelo a posteriori da significação que per-

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mite as ressignificações da história do sujeito e pela fulguração
do corte que esvazia o sentido. O espaço psíquico é determi-
nado pela heresia lacaniana: R.S.I. (Real, Simbólico e Imaginá-
rio). O Real das pulsões e dos afetos, o Simbólico da linguagem
e o Imaginário dos corpos. O espaço físico é composto pela
geometria, pela perspectiva e pela matemática, o que fornece
elementos de medição, reprodução em desenhos, plantas do es-
paço, ocupação deste etc. Trata-se da res extensa de Descartes,
do espaço que não pode ser ocupado por dois corpos simul-
taneamente, como o espaço físico do consultório com porta,
janela e mobiliário: divã, poltrona etc.

O espaço psíquico não é o da métrica e nem do esqua-


drinhamento, como o método da polícia ao procurar a carta
roubada em todos os cantos do gabinete do Ministro no conto
de Edgar Allan Poe. Sabemos que não é o setting que define uma
análise e sim a transferência e o ato analítico. Isto vale tanto
para análise no consultório quanto para análise online.

O espaço da análise é o espaço psíquico constituído


pelos três registros: Real, Simbólico e Imaginário, incluindo,
portanto, o gozo, a linguagem, a fala, o sentido, a falta de sen-
tido, os sonhos, as fantasias, os traumas, as lembranças, enfim,
todas as produções psíquicas. É o que Lacan formaliza com o
nó borromeano e as três mansões do dito, as ditas-mansões,
as dimensões R.S.I. É este espaço que se presentifica na análi-
se online, e é por isso que ela funciona. Nessa modalidade da
clínica analítica, com o trabalho dito “remoto”, que de remoto
não tem nada, ele é íntimo, ou melhor, êxtimo, pois se utiliza da
topologia da extimidade, essa exterioridade íntima que é o topos
do objeto a, do qual o analista deve fazer semblante nas análises
que conduz. Da mesma forma, esse espaço psíquico que pode
ser presentificado nas análises online é o que também permite

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o teatro ao vivo, como pude constatar com a montagem da mi-
nha “peça-série-metragem” Anjo Negro, de Nelson Rodrigues.

A partir da experiência, não podemos usar a diferença


entre “presencial” e “virtual” no caso da análise, pois na análise
online também se dá a presença do analista, o encontro tíquico
– com a tycké – o encontro com o real que define a presença do
analista e o ato analítico. Não há análise sem a tycké associada ao
automaton da associação livre.

Mantivemos neste livro o estilo oral das lives e deixamos


registrados os comentários semanais que eu ia fazendo de forma
espontânea sobre a situação da pandemia, tanto em seu aspecto
sanitário, quanto político, assim como seus reflexos nas subjetivi-
dades. Quando releio hoje, em março de 2021, em que chegamos
a mais de 300 mil mortos pela Covid-19 no Brasil, os comentários
dos primeiros meses de pandemia, em 2020, parecem uma crônica
do desastre anunciado no qual desabou nosso país. Era inimagi-
nável o ponto a que chegaríamos hoje, com verdadeiras tragédias
coletivas, como a de Manaus, com pessoas morrendo asfixiadas
por falta de balão de oxigênio, e o colapso sanitário e funerário em
várias cidades do Brasil. Não podíamos ainda ver com clareza a
necropolítica que já estava em marcha, determinando quem eram
as pessoas descartáveis e matáveis. Inimaginável pensar que che-
garíamos ao nível de negacionismo atual, de ataque à ciência, de
promoção da cultura do ignoródio e da falta de diretivas sanitário-
-políticas responsável por tantas perdas a que chegamos.

Esse estado de calamidade pública e humanitária não


fez os psicanalistas recuarem, muito pelo contrário, não só a
maioria se dedicou a adaptar-se aos novos dispositivos, como
houve um grande processo de conscientização, e até mesmo de
politização, por parte dos psicanalistas. Parece que desperta-

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mos e descobrimos com Lacan que a psicanálise é o pulmão de
um mundo tornado irrespirável, como lembra Colette Soler na
live aqui reproduzida.

Os psicanalistas têm muito a contribuir no tratamento


do mal-estar no sujeito, assim como do mal-estar na civilização.
A oferta de análise online na pandemia fez aumentar muito a
demanda de análise por parte da população, e vários serviços
de atendimento, como o dos Fóruns do Campo Lacaniano, a
baixo custo, e mesmo gratuitamente, foram abertos para aten-
der às populações menos favorecidas.

A retomada dos fundamentos da clínica neste livro me


levou a trabalhar as condições de análise online e salientar a
questão da transferência como o verdadeiro setting analítico,
a presença do analista e sua posição de semblante de objeto,
as dimensões da linguagem, da fala e de lalíngua, bem como
a dimensão pulsional da análise. E retomei o funcionamento
da pulsão escópica, a cujo estudo aprofundado dediquei mi-
nha tese de doutorado na França, com a orientação de Alain
Badiou, que resultou no livro Um olhar a mais, brevemente em
nova edição pela Atos e Divãs Edições. Dediquei-me em par-
ticular ao estudo de lalíngua e da pulsão invocante. Para isso,
contei com a pesquisa da psicanalista franco-brasileira Marie
Christine Laznik, que dedica sua vida profissional à análise com
bebês e à pesquisa sobre a lalação e o “manhês”, assim como
à pesquisa, a partir da psicanálise, do risco precoce de autismo.
Infelizmente, a live com Laznik se perdeu, não foi gravada por
questões técnicas. No lugar, publicamos um texto seu que gen-
tilmente foi cedido para este livro.

O período de um ano de experiência de atendimento


analítico exclusivamente online levou-me a constatar a eficácia

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deste dispositivo distinto, sem dúvida, do dispositivo divã-pol-
trona, com suas diferenças, com perdas e ganhos no manejo da
transferência e dos semblantes do analista, mas não menos efi-
caz. Inúmeras análises começaram e outras foram retomadas.
A escolha de analista foi extremamente ampliada, não mais se
restringindo à cidade onde ambos, analista e analisante, resi-
dem. Eu mesmo estou atendendo, assim como outros colegas,
analisantes de diversas partes do mundo. Além disso, também
posso constatar, a partir da minha clínica, que é possível o final
de análise online. Este livro é apenas o início de uma reflexão
sobre a psicanálise no século XXI que chegou decididamente,
com suas novas tecnologias e uma pandemia devastadora. Que
Eros possa prevalecer através dos laços sociais na Cidade dos
discursos. Que a psicanálise continue sendo um balão de oxigê-
nio nos momentos de asfixia da humanidade.

Rio de Janeiro, 22 de março de 2021

Antonio Quinet

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I. Problemas cruciais
da análise online
Estas lives, nas quais vou expor o funcionamento da
análise online, se dirigem aos psicanalistas confrontados com a
pandemia, diante da necessidade do isolamento social, que têm
o dever ético de sustentar as análises que conduzem.

A psicanálise é uma forma de tratamento individual,


feita entre um sujeito e um analista. O único sujeito em questão
é o sujeito do Inconsciente, o qual fala e se expressa através da
boca e do corpo do analisante. E o analista, diante do anali-
sante, não está como um sujeito e sim como motor da análise,
semblante de objeto a.

A nossa live de hoje é sobre as questões cruciais que a


psicanálise online suscita. Sei que vários analistas já praticam
a psicanálise online há muito tempo com pessoas que moram
em outras cidades. E funciona. Tenho esta experiência há al-
gum tempo, mas a considero – pelo menos por enquanto – da
ordem da excepcionalidade. Isto se dá porque as pessoas não
estão na mesma cidade e não podem, muitas vezes, deslocar-se
de um lugar para o outro. Mas, no momento atual, nós analistas
devemos manter nossos atendimentos e respeitar a quarentena,
o isolamento, cada um dentro da sua casa, sem circular na rua.
Isto é essencial a fim de diminuir a devastação da epidemia do
novo coronavírus.

O dever ético do psicanalista


O psicanalista não pode deixar de encarar este real. Ele
não deve circular e não deve atender fisicamente o psicanalisan-
te, esta é a minha posição. Isso é uma questão ética não só da
psicanálise, mas ética da humanidade, que está em jogo neste
momento. A pandemia pode ser uma devastação mundial, com

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milhares de mortes e sequelas. Não estou sendo catastrofista,
apenas não estou sendo negacionista. Não podemos negar este
encontro com o real que se abateu sobre todos nós. É um mau
encontro (distiquia) com esse real que nos faz ficar em casa em
nome da própria saúde, em nome da saúde coletiva, em nome
dos outros. Trata-se de uma responsabilidade do analista diante
da humanidade e dos seus pacientes. Esta responsabilidade é a
de não apenas respeitar a quarentena e não atender fisicamente
seus analisantes nos consultórios, mas também de não deixar a
psicanálise cair, não deixar a psicanálise morrer. É nosso dever,
como diria Lacan, fazer existir a psicanálise no mundo. Precisa-
mos estar juntos ao sujeito que sofre – o sujeito do Inconscien-
te – e de seus padecimentos do real.

Considero que o psicanalista tem eticamente o compro-


misso de estar do lado do sujeito e do seu mal-estar, assim como
do mal-estar na civilização. O psicanalista tem, portanto, uma
responsabilidade ética não apenas junto aos seus analisantes,
como também junto à civilização, à pólis no combate ao mal-
estar na civilização. Trata-se de poder bem dizer esse mal-estar
com sua interpretação para permitir o ato que possa instaurar a
mudança e fazer brotar o novo.

Estamos num momento em que os dois princípios


que norteiam a escola de psicanálise à qual eu pertenço, a
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, po-
dem nos orientar: o princípio de iniciativa e o princípio de
solidariedade.

O princípio de iniciativa é o que cada um pode fazer


em relação ao bem público e quanto ao mal-estar na civiliza-
ção. O princípio de solidariedade é o que nos faz não ignorar
aqueles que estão em situação de risco, os menos favorecidos e

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os “abjetos”1. A psicanálise é um sintoma do mal-estar na civi-
lização desde que ela existe. Enquanto houver mal-estar, deve
existir a psicanálise como uma forma de tratamento do mal-es-
tar do sujeito e da civilização.

É importante sustentar o discurso do analista na


pólis dentre todos os discursos que circulam hoje: o discurso
capitalista e do mestre, o discurso da ciência e da religião. O
discurso do mestre é pautado por esses absurdos líderes de
governos, como Bolsonaro e Trump, negando o que está
acontecendo. Bolsonaro diz que a pandemia é histeria, apenas
uma gripezinha. Trump soltava fake news atestando que a hi-
droxicloroquina resolveria o problema do coronavírus. Todos
os cientistas estão afirmando, ontem mesmo foi bastante di-
vulgado, que é uma falácia achar que a hidroxicloroquina vai
resolver o problema.

O discurso histérico que está por aí é de outra ordem.


Há uma histeria de contágio sim, mas é a nível dos sintomas.
Sabemos que a histeria simula todas as doenças e que pode
também simular os sintomas do coronavírus. A tosse se propa-
ga facilmente. Até num teatro, quando alguém começa a tossir,
pode contagiar a plateia. O analista pode também tratar disso:
o sujeito histerizado somatizando seu mal-estar. Trata-se de
acolher o sujeito do laço histérico com seus sintomas, que ex-
pressam o que o recalque não deixa falar. Pois, como diz Freud,
“aqueles cujos lábios se calam, denunciam nas pontas dos de-
dos, e a denúncia lhes sai por todos os poros”2.

1 Desenvolvo a solidariedade do analista com os “abjetos” em A política do


analista – do divã à polis (Atos e Divãs Edições) no capítulo “Os abjetos”.
2 Freud, 1905[1901]/1996, pp. 78-79.

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Em termos de laços sociais, notamos a falência do dis-
curso capitalista e do neoliberalismo que o sustenta: todos estão
vendo a necessidade de um Estado que tenha um bom sistema
de saúde. A pandemia fez entrar em colapso este sistema em vá-
rios países que apostam no serviço médico privado. Enfim, em
relação à circulação dos discursos, é nossa responsabilidade fazer
existir o discurso do analista como mais um discurso que circula
em nossa pólis, ao lado dos discursos da ciência e da religião.

Vamos retomar agora os fundamentos éticos da psi-


canálise para podermos encarar o que está acontecendo e
adaptar o nosso dispositivo – herdado de Freud, que é o dis-
positivo do divã e da poltrona – para o funcionamento online.
Pois o dever ético que nos define como psicanalistas é susten-
tar a psicanálise na clínica e mantê-la viva para responder ao
sofrimento do sujeito.

Nestas lives não pretendo dar preceitos técnicos, mas


revisitar os fundamentos da psicanálise para abordarmos a
psicanálise online.

Automaton e tycké online


Tomemos dois eixos principais para pensar a psicanálise
com nossos analisantes hoje. Num eixo, temos que sustentar o
endereçamento da associação livre ao analista, e isso é perfeita-
mente possível de se fazer online. Os analisantes continuam so-
nhando, seus sintomas e sonhos são dirigidos ao analista, assim
como a sua associação livre ao vivo. É muito importante perma-
necermos com a presença online de sustentação desse endereça-
mento. O outro eixo implica no fato de que os encontros com
o analista online proporcionam o encontro com o real, com o

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analista como semblante de objeto a. Não há análise sem tycké, o
encontro com o real, definido por Lacan no Seminário 11, a partir
da dupla das causas acidentais de Aristóteles: tycké e automaton.

Devemos manter, no registro do Simbólico, o automaton


da associação livre, da insistência da cadeia significante que vai
se desenrolando no endereçamento que o analista acolhe. E a
tycké, no registro do Real, que é o encontro fortuito, como por
acaso, a “sorte grande” que, por mais que seja programado (por
ser estrutural), é sempre algo que ocorre com uma surpresa,
um espanto. É o que deve acontecer em cada sessão. O encon-
tro tíquico é o encontro que mostra que o analista está ali no
seu lugar de objeto precioso, agalmático, como causa da trans-
ferência. Lembrando que Lacan toma emprestado o termo gre-
go agalma de Platão, em O banquete, na descrição de Sócrates por
Alcebíades, que vislumbrou no âmago do mestre-filósofo, lá no
fundo escondido como numa caixinha de joias, algo como um
objeto precioso que causa seu desejo erótico e seu desejo de
saber.3 Agalma é a causa real da transferência. Estes dois eixos
– automaton e tycké – vão nos nortear na interrogação dessa nova
modalidade de dispositivo analítico.

Gostaria de comentar a dualidade que temos utilizado


até agora: o presencial e o virtual. Referimo-nos ao presencial
quando há o encontro de dois corpos físicos, o do analista e o
do analisante, no espaço do consultório. E a análise virtual seria
o encontro dos dois online.

Será que o analista não está também presente no en-


contro dito virtual, enquanto online? Será que a presença física
do analista é condição sine qua non para o encontro analítico? As

3 Cf. Lacan em O seminário, livro 8: a transferência.

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sessões de análise presencial são lives, ou seja, ao vivo. Mas as
virtuais também o são. A partir deste questionamento, vamos
tomar duas indicações, uma de Freud, outra de Lacan.

Freud dizia não ser possível que uma análise fosse feita
in absentia ou in effigie4, famosa afirmação em que ele indica não
ser possível fazer-se uma análise sem o analista estar presente,
não seria possível uma análise feita por carta. Freud tinha vá-
rios pacientes de Nova Iorque que queriam fazer análise por
carta, mas ele dizia que isso era impossível, que eles teriam que
ir a Viena, onde clinicava. Assim como era impossível in effigie,
diante de uma fotografia de Freud a pessoa fazer análise. A
questão da live em mídias digitais, por ser ao vivo, muda tudo:
não é como um filme em que não há a presença do corpo do
outro. Se formos comparar com um tipo de arte, uma sessão
analítica é muito mais próxima do teatro que do cinema, por-
que ali há o encontro do ator com o espectador, assim como o
encontro do analista com o analisante.

Desenvolvo a homologia entre psicanálise e teatro no


meu livro O Inconsciente teatral. A presença é uma das homolo-
gias entre os dois. O teatro tem muito a ensinar ao psicanalista.
A homologia entre o espetáculo e a sessão analítica inclui o
Inconsciente, propriamente falando. No cinema, há apenas a
tela e os corpos dos espectadores – a tela é a projeção do imagi-
nário. No entanto, como obra de arte, o cinema tem efeitos no
real, nos afetos do espectador. Mas não há a presença do ator,
não há tycké do espectador com o ator no cinema, o que não
quer dizer que não haja o encontro com o real, pois toda obra
de arte que toca realmente o espectador ou ouvinte, é porque
está no lugar de objeto a para ele.

4 Freud, 1912/2010, p. 146

22
Se eu estender a minha mão agora, durante esta live,
não vou tocar vocês como eu poderia evidentemente tocar o
analisante, se ele estivesse de corpo inteiro presente. Porém,
o que está presente – e não dá para negar – é a minha voz e o
meu olhar, que são corporais, são emanações da pulsão, fazem
parte do corpo e, nomeadamente, do seu elemento principal: o
objeto a. Como operador da análise, o objeto a vai se presenti-
ficar pelo ato do analista, ou melhor, pelo desejo do analista em
ato. O olhar e a voz presentificam o analista como semblante
de objeto a na análise.

Como dizer que esses dois objetos pulsionais não es-


tariam em circulação também numa sessão online? A meu ver,
estão. Daí, fica uma questão para nós: como utilizar o dispositi-
vo que temos de áudio em relação ao objeto voz e o vídeo em
relação ao objeto olhar? É evidente a utilização do áudio, pois
a análise é um ato de palavra e de escuta. E o vídeo, ou seja, a
câmera aberta durante a sessão? Devemos fazer as sessões de
psicanálise online com o vídeo ligado?

Com a câmera aberta, o analista deve estar atento em


sua atenção flutuante. Isto significa estar atento a outras coisas
que não são da ordem do sentido, do “prestar atenção” ao que
está sendo dito para ele ou àquilo que o analisante quer cons-
cientemente fazer passar. Trata-se de poder ouvir outra coisa,
poder ouvir a assonância das palavras, os significantes isolados
de seus significados, as pausas, os trocadilhos, as hesitações,
onde ele tropeça ou para onde ele está indo, o que ele associa.
De repente, na associação livre, surge uma coisa que não tem
a ver com a anterior e, inesperadamente, o sujeito está em Ou-
tra cena completamente diferente daquela em que começou. A
atenção flutuante é a disposição de ouvir outra coisa além do
sentido. Trata-se de ouvir o gozo que vai se expressando atra-

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vés da enunciação no enunciado do analisante. Voltarei mais
tarde a esta questão.

O objeto olhar e o objeto voz não são completamente se-


parados, mas estão entrelaçados, como todos os objetos pulsionais.
Pode haver um olhar que emana da fala e pode ter algo da voz (a
voz afônica, sem sonoridade) que emana de uma troca de olhares.
Este fundamento é importante para nós pensarmos, no online, se
devemos, por exemplo, apagar ou não o vídeo. Estes são alguns
fundamentos que eu gostaria de deixar para vocês refletirem.

Não estou estabelecendo regras nem protocolos, mas


matéria para reflexão. Em suma, abordo aqui os objetos pulsio-
nais para pensarmos a presença do analista online. Tudo isto para
dizer que não considero que na sessão online não haja a presença
do analista. A presença do analista se dá pelo ato do analista, esse
ato em que ele se coloca ali, no aqui e agora da sessão, como sem-
blante de objeto a e estabelece esse laço único que é o discurso
do analista. Isto implica em afirmar que há algo do real da sua
presença nessa live, que é esse ao vivo da sessão.

Podemos pensar na psicanálise online, sim, como uma


psicanálise presencial porque implica a presença do analista –
não uma presença física, mas de outra ordem. Neste sentido,
proponho não utilizarmos a dualidade entre sessões virtuais e
presenciais, pois há uma presença do analista na sessão online.
Não há antinomia. E sim virtual e física.

Os três planos da transferência


Glória Sadala me fez uma observação interessante. Se,
afinal de contas, o nosso setting é a transferência, por que não

24
podemos usar a sessão online sob transferência? O setting, o dis-
positivo divã-poltrona, é uma das condições da análise, como
descrevo no meu livro As 4 + 1 condições da análise, mas isso não
é absolutamente essencial. O essencial é a transferência. Sem
transferência, não há análise.

Temos que pensar a transferência em três aspectos: no


Imaginário, no Simbólico e no Real. A transferência imaginária
do analista apreendido como semelhante, uma pessoa, deve ser
neutralizada na análise, para que ocorra a transferência a nível
simbólico, ou seja, a transferência no campo da fala e da lingua-
gem, que situa o analista como lugar do Inconsciente, o lugar
do Outro. É aí que se dá propriamente a análise. E o terceiro
registro da transferência é relativo ao Real, da presença do ana-
lista, do encontro tíquico.

Já me perguntaram se fazer análise com vídeo, o analis-


ta e o analisante se olhando, não seria repetir a situação poltro-
na-poltrona, o face a face com o analisante, e assim não utilizar
o dispositivo do divã? Temos várias maneiras de não deixar isto
acontecer, ou seja, de não deixar que a transferência de ego a
ego seja preponderante, ou seja, a dupla imaginária colega–co-
lega, o lugar do amigo, do “meu chapa”, em que o analisante
tenta colocar o analista. Se estiver no vídeo, você pode sair da
tela e, ao mesmo tempo, saber que o analisante está falando
e você está escutando. Ele sabe que seu olhar está presente,
mesmo quando você não aparece na tela, e ele está te ouvindo.
Você pode voltar ou simplesmente continuar fazendo cara de
paisagem, pode não olhar para ele etc. Cada um vai descobrir
o que fazer para neutralizar, de alguma forma, a transferência
imaginária. Se preferir, você pode desligar a sua câmera a qual-
quer momento.

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Apesar de usar muito o telefone como recurso, essas
lives me deram ocasião de pensar se não seria melhor estarmos
sempre com as câmeras ligadas para usar esse recurso de fazer
algo mais que aproxime a sessão virtual da sessão física, vou
chamá-la assim. Trata-se de procurar maneiras que permitam
ao analista manejar o dispositivo para colocar sua presença na
cena analítica sem ficar no face a face.

Na minha experiência, muitos analisantes, sentados


diante de seu celular ou do seu computador, ao fazer análise,
acompanham suas falas vagando com o olhar, como se esti-
vessem vendo as cenas que relatam ou mais atentos aos pensa-
mentos que vão sendo expressos na fala do que olhando para o
analista. Podemos evocar aqui a metáfora que Freud empregava
para que o analisante aplicasse a regra da associação livre: “ima-
gine que você está num trem, olhando uma paisagem passando,
e você vai descrevendo a paisagem que você vê de sua janela”.
O analisante acompanha pela fala aquilo que vem ao seu pen-
samento, até que é surpreendido por alguma coisa que ele diz e
que não é da ordem da descrição do seu pensamento. Podemos
ver aí a preponderância da fala sobre o pensamento. Na análise,
o sujeito diz o que não pensa.

O importante em tudo isso é o ato do analista, a ma-


neira como vai agir e como vai usar para cada analisante as suas
estratégias de semblante para não ficar no registro imaginário da
transferência. Em termos de transferência simbólica, como já vi-
mos, a associação livre não muda absolutamente nada, da análise
física para a virtual. Ela mantém o endereçamento e a transferên-
cia com o analista. E o sujeito sonha, ato-falha, se equivoca etc.

A transferência simbólica implica o amor de transfe-


rência e a demanda de amor. Até que ponto o analista vai ce-

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der à demanda de amor do analisante para se mostrar? Temos
aí um longo caminho de investigação deste aspecto na análi-
se online. Jogos de exibicionismo e voyeurismo vão começar
a aparecer de outra forma nesta nova modalidade colocando
transferencialmente a pulsão escópica em circulação a serviço
da demanda de amor.

A transferência como o amor que se dirige ao saber


– uma definição muito linda de Lacan – da qual não há como
escapar é, como diz Freud, um motor e também uma resistên-
cia à análise. Cabe ao analista saber como lidar com isso, como
não responder à demanda, a fim de fazer aparecer o desejo,
fazer aparecer a interrogação do desejo: “O que o outro quer
de mim?” Daí a importância de o analista manter aquilo que
é essencial, deixar o enigma sempre presente para que o ana-
lisante seja seu decifrador. Pois quem faz a análise mesmo é o
analisante, o analista está ali para que ele a faça. O enigma está
do lado do analista, que deve, portanto, enigmatizar aquilo que
o analisante traz e fazê-lo interpretar.

A interpretação não deve ser tipo “dedo na ferida”; deve,


sim, ser enigmática. Lacan nos indica que a interpretação deve
estar entre o enigma e a citação5. Trata-se de uma junção da ci-
tação com o enigma, ou seja, o analista cita o texto do analisante
para o próprio como um enigma. Assim o faz perguntar-se: “Por
que falei isso nesse momento?” Então, a intervenção do analista
pode se constituir como ato a posteriori, caso tenha efeitos. Só
podemos dizer que foi um ato analítico se tiver efeito.

A partir de agora, vamos abordar o terceiro aspecto da


transferência, que é o Real, em que está em jogo esse objeto

5 Cf. Lacan em O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise.

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precioso, o agalma, que é a causa da transferência, algo desse
real que implica a tycké. Não vejo por que isto não estaria pre-
sente nas sessões online. O ato analítico implica nesse encontro
com o real e isso remete diretamente à estrutura da presença
do analista como presentificação do objeto a – objeto causa do
desejo, do mais de gozar como motor da análise. O analista,
nesse lugar, é também a causa da transferência.

O objeto a tem uma estrutura de corte. Eis porque o


corte da sessão, assim como o corte na cadeia significante da fala
do analisante corresponde à emergência do objeto a. No meu
livro As 4 + 1 condições da análise, retomo a questão do corte da
sessão, associando-a à própria estrutura do objeto a, porque o
corte da cadeia significante que representa, por exemplo, a sus-
pensão da sessão a partir da trama do discurso do analisante, é
equivalente à presença do analista como semblante de objeto a.

“Cuidado para não pensar que uma pausa na conexão


da internet é um corte do analista”, lembrou-me um aluno
meu. É interessante como as intercorrências que acontecem
numa sessão de análise são tomadas na transferência e como o
analisante as interpreta. Até a pergunta banal, quando há falha
na conexão da internet: “você está me ouvindo?” A resposta do
analista – sim ou não – atesta sua presença, indicando que “sim,
estou aqui ao vivo, recebendo o endereçamento de suas ques-
tões, de seu sofrimento e tudo o que você me quiser contar”.

Uma coisa fortuita que o analista faz, sem nenhuma


intencionalidade de interpretação, vira uma interpretação para
o analisante, isso faz parte do próprio processo analítico. As
intercorrências que podem interromper a sessão, como, por
exemplo, um filho invadir a sessão, não têm o menor problema.
São coisas que podem acontecer no consultório também. Eu

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me lembro de um dia em que minha filha ainda pequenininha,
com uns quatro anos de idade, irrompeu no consultório para
me dar uma bronca. Eu estava atendendo em minha casa um
analisante obsessivo e, de repente, ela abriu a porta para falar
comigo. Eu lhe disse que não poderia falar naquele momento,
porque estava atendendo. Gentilmente, coloquei-a para fora do
consultório, fechei a porta e continuamos a sessão. O paciente
continuou falando como se nada tivesse acontecido, negação
total daquele real que, de repente, invadiu a cena analítica. Tem-
pos mais tarde, ele teve um sonho em que essa cena entrou
na análise como um sonho de transferência. Não há nenhum
problema, caso isso venha a acontecer. É importante acolher o
acaso e usá-lo a favor da análise. Não podemos pensar que o
acaso não existe; não controlamos o real que está aí nos fazen-
do tropeçar a todo o momento.

Dito isto, como pensar esses três planos da transferên-


cia no nosso dia a dia? Como é que o Inconsciente se manifesta
na análise? Ele se manifesta primeiramente pela associação li-
vre, o deslizar da cadeia significante, que se endereça ao analis-
ta no lugar do Outro, essa cadeia que começa a se desenrolar
quando o sujeito está saindo da sua casa para ir à sessão. A
análise já começa ali, a análise é full time, tempo integral, mas
sem dedicação exclusiva! Você começa pensando uma coisa
no trabalho e logo associa a outra. Chega em casa, lembra de
outra, de noite sonha, ao acordar associa outra coisa e assim
vai. Aí, você pensa em falar aquilo para o analista e continua
endereçando a ele suas associações. O encontro com o analista
é fundamental para mostrar que ele está ali para dizer: “Ok,
registro, continue”. E virão ondas de associações: a interpre-
tação também serve para isto, para provocar mais associações.
Portanto, uma das maneiras de o Inconsciente se manifestar é a

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associação livre, que é a única regra da psicanálise, que acontece
tanto na análise com a presença física quanto com a presença
virtual do analista. Tudo o mais são condições. Estas são as
condições neste presente momento, no qual estamos impossi-
bilitados de sair de casa.

O Inconsciente se manifesta na fala do analisante (mas


não apenas, como veremos), na associação de cenas – as ce-
nas se transformam em cadeias significantes. O que na ver-
dade associamos são cenas que remetem à cenas da fantasia,
cenas traumáticas e até mesmo à cena primitiva. O conceito de
cena é muito presente na obra de Freud. No entrecruzamento
das cadeias significantes, um determinado significante leva a
uma cena, que leva a outra cena, e vão se desenrolando como
os atos de uma peça teatral que o sujeito vai relatando. Lacan,
evidentemente, levou muito em consideração a associação das
cadeias significantes, mas na clínica escutamos os relatos das
cenas que o sujeito imaginariza e seus detalhes. Da mesma for-
ma, o sonho é uma sucessão de cenas que o sujeito na análise
vai passando para a fala. O relato do sonho é uma outra forma
do Inconsciente se manifestar, na qual o sujeito faz o processo
de simbolização do imaginário, pois o sonho é um fenômeno
da ordem do imaginário. O sujeito simboliza esse imaginário na
fala sob transferência.

Outras formas de manifestação do Inconsciente que


não deixam de ocorrer nas sessões virtuais são os tropeços da
fala, as hesitações, as pausas, as palavras trocadas, os lapsos,
tudo o que é da ordem de lalíngua – esta soma dos equívocos
e trocadilhos que faz com que a linguagem do sujeito, na asso-
ciação livre, possa ser poética. Pois a associação dita livre se dá
também pelo encadeamento de significantes a partir do som
dos significantes de lalíngua e do gozo que ela produz com

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a musicalidade da fala. Eis o que o analista, em sua “atenção
flutuante”, como a designou Freud, escuta para além do sen-
tido. Eis outra forma de manifestação do Inconsciente: o In-
consciente-lalíngua, o Inconsciente brincalhão, o Inconsciente
artista, poeta, musical.

Os dois tipos de enunciação


A enunciação é ainda outra modalidade de manifesta-
ção do Inconsciente, para além da associação dos significantes
e dos tropeços de lalíngua, também presentes na análise onli-
ne. E é a enunciação que Lacan toma emprestado do binômio
linguístico enunciado-enunciação. O desejo inconsciente passa
mais pela enunciação do que propriamente pelo significado do
enunciado. A enunciação é a forma como nós dizemos um tex-
to, o qual é propriamente o enunciado, quando ele passa para
a fala6, ou seja, quando é dito. O conteúdo do que é dito é o
enunciado, a maneira como é dito é a enunciação. Isto é algo
que se trabalha muito no teatro. Há milhares de formas de se
dizer um texto. Uma frase pode ser dita de muitas maneiras e,
dependendo de como se fala, ou seja, de sua enunciação, que
é por onde passa o desejo, advirá a significação. Podemos di-
zer “eu te amo” de uma forma extremamente raivosa, como se
disséssemos “eu te odeio”. Podemos dizer “eu te amo” como
se tivéssemos pena, não necessariamente amor, e por aí vai a
questão da enunciação. No final das contas, é a enunciação que
fornece a significação.

6 O linguista Émile Benveniste desenvolveu a conceitualização do binô-


mio enunciado (o texto) e enunciação ( a maneira como é dito o texto
numa fala).

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A enunciação é aquilo a que o analista tem que estar
atento na sua atenção flutuante, ou seja, ele deve poder ouvir
além dos enunciados. É por isso que eu falo de brincadeira
nas minhas aulas que o analista não tem que prestar atenção,
porque quem presta atenção fica querendo entender o que o
outro está falando, o significado; o analista tem que ir para além
daquilo e tentar ouvir outra coisa, principalmente a enunciação,
que aponta para a significação do desejo em pauta. A enuncia-
ção é a maneira pela qual o sujeito está falando, o que implica o
tom, o volume, o andamento da fala. Se tomarmos emprestado
o vocabulário musical, trata-se da melopeia, termo grego que
significa a musicalidade, a entonação da palavra falada, presente
em lalíngua. Que surge muito cedo, como na “lalação” da crian-
ça, antes mesmo de aprender a falar com um vocabulário e uma
articulação gramatical. É o que os analistas na clínica de bebês
chamam de prosódia.

Outra forma ainda de manifestação do Inconsciente é


a enunciação corporal. Há uma forma de o sujeito falar e uma
forma dele reagir com o seu corpo, pois, ao falar, a enuncia-
ção da fala é uma e a maneira como o corpo reage é outra.
O sujeito pode estar com uma fala neutra, aparentemente sem
enunciação nenhuma, apenas recitação, e apresentar uma enun-
ciação gestual, uma enunciação corporal, a qual contribui para
dar propriamente a significação daquilo que ele está falando.
Por exemplo: o sujeito pode dizer “Eu amo a minha mulher”
enquanto bate na parede do consultório, como se a estivesse
esmurrando. Isso ocorre também virtualmente.

Temos, portanto, a enunciação verbal e a enunciação


corporal, esta última sendo muito importante também. A per-
formance do sujeito não está apenas na fala. Devemos levar
em consideração que Lacan, depois do Seminário 20, passou a

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se referir não mais ao sujeito do Inconsciente e sim ao “corpo
falante”.7 Trata-se do corpo que é propriamente performático:
ele fala pela palavra, mas tem algo que ele exprime com o seu
corpo e que possui uma enunciação própria. Uma enunciação
que às vezes chamo de gestual, mas enunciação corporal é uma
expressão melhor. Há peças teatrais que são atos sem palavras,
como as do Beckett; são atos performáticos, isto é, estão den-
tro da linguagem, mas não são da ordem da fala. A enunciação
corporal é muito importante como manifestação do Incons-
ciente, pois o Inconsciente não é exclusivo da fala, está no cor-
po e em sua performance.

Gostaria, para terminar, de fazer uma referência à minha


peça Hilda e Freud, na qual fiz o papel de Freud e trabalhei as
diversas formas de enunciação do texto freudiano em suas in-
terpretações: como ele diria aquilo, como estaria seu corpo? Ali
ficou muito clara para mim a questão da enunciação corporal.
Eu precisei sair do contexto da análise e ir para o teatro para me
dar conta da enunciação corporal. Temos que desenvolver mais
aquilo que Lacan menciona na última parte de seu ensino sobre o
sujeito como corpo falante. A enunciação corporal está presente
no corpo do ator, da atriz e do analisante também. É evidente
que Freud já tinha percebido isto na histeria. Na crise histérica, o
corpo está fazendo uma encenação que é uma manifestação do
Inconsciente. Não precisamos chegar a um ataque histérico para
saber que, na verdade, nosso corpo tem sua enunciação própria,
pela qual o desejo inconsciente se expressa.

Isso me levou a reconsiderar a questão das análises on-


line. Concluí que é importante o analisante permanecer com a

7 Lacan, 1975/1982, p. 178.

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câmera aberta para que a sua enunciação corporal não passe
desapercebida. Eu tenho como exemplo o caso em que a ana-
lisante falava alguma coisa em relação aos seus pais e disse:
“Minha mãe perguntou se eu queria ir para a casa dela”. A ana-
lisante, com expressão facial de enfado, disse que aceitou ir. A
sua expressão facial revelou muito mais do que apenas sua fala.
Na atenção flutuante, o analista não deve perder a enunciação
da fala certamente, mas tampouco a enunciação corporal.

Live do dia 22/03/2020.

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