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artigo

Sentido e consciência em uma clínica da


verdade1

Sense and consciousness in a clinical work of truth

Marcelo Pakman Resumo: Por meio da leitura do conceito de Abstract: Reading Jean-Paul Sartre’s concep-
Médico, psicoterapeuta, Jean-Paul Sartre de uma consciência intencional, tion of an intentional, transcendent, non-reflective
terapeuta familiar, transcendente e não-reflexiva, junto ao conceito consciousness together with Jean-Luc Nancy
conferencista, autor. de sentido de Jean-Luc Nancy, é feita uma con- concept of sense a contribution to the author’s
tribuição à posição crítico-poética do autor na critical-poetic position in psychotherapy is made.
psicoterapia. Quanto à caracterização clínica de Apropos de clinical characterization of percep-
percepções, ficções e alucinações, é apresen- tions, fictions and hallucinations and a clinical
tado um caso clínico no qual a distinção entre case in which the distinction among them re-
elas permanece esquiva; um trabalho clínico real mains elusive, a clinical work on truth is presen-
Tradução: é apresentado, não reduzível como retorno às ted, not reducible as a return to either materialist
Rodrigo Peixoto leituras materialistas ou idealistas de Descartes, or idealist readings of Descartes but legitimized
mas legitimado como apropriado para recuperar as appropriate to recover the singularity of vivid
a singularidade de uma experiência vívida que se experience that proved elusive for both scientific
provou esquiva aos empirismos científicos e lin- empiricisms and linguistic turn adopted positions
guísticos adotados no trabalho clínico. in clinical work.
1
Meu agradecimento a
Palavras-chave: alucinações, senso, consci- Keywords: hallucinations, sense, conscious-
María Jesús Arrojo Romero,
com quem refletimos ência, verdade, ética. ness, truth, ethics.
conjuntamente sobre o caso
clínico referido neste artigo,
bem como sobre os diversos
aspectos relacionados que aqui
se discutem.
2
Sartre usava o masculino Levando em conta estes três elementos [para Marx, necessidade, trabalho e pra-
genérico, como era habitual na
época, para referir-se aos seres zer], notamos, em primeiro lugar, que juntos estabelecem uma conexão rigorosa
humanos. entre um homem2 real, uma sociedade real e a realidade material circundante,
3
As traduções de todos que não é ele mesmo. (...) [Deste modo], a realidade dos seres humanos é teoriza-
os textos, cujos originais
consultados para este artigo
da e ligada à transcendência, a algo além deles mesmos, ao que se encontra fora
não estão em espanhol, são dele e os precede (Jean-Paul Sartre, 1961, p. 3).3
do autor.
4
Como se chamava, na época, Em 1845, o alienista4 francês Jean-Etienne Dominique Esquirol escreveu que:
o que hoje chamaríamos um
psiquiatra, e que destacava
a alienação psíquica de seus Uma pessoa se encontra sob o fluxo de uma alucinação, ou é um visionário, quan-
pacientes, que hoje chamamos
clientes ou consumidores, do tem uma convicção total de uma percepção sensorial, sem que nenhum objeto
desde que o mercado externo apropriado a exercitar tal sensação tenha operado uma impressão sobre
neoliberal avançou sobre os
serviços de saúde mental,
os sentidos (1965).
emprestando-lhes também sua
terminologia (Pakman, 2011).
Por sua vez, o psiquiatra alemão Emil Kraeppelin diria, em 1913, que:

Tendo como base as considerações clínicas de Esquirol e o que veio depois delas,
por razões práticas, a maior parte dos investigadores distinguiu percepções sen-
Recebido em: 10/10/2016
Aprovado em: 28/10/2016 soriais errôneas de dois tipos, ou seja, aquelas nas quais não existe nenhuma

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fonte externa de estímulos: as aluci- mais tarde seria retomado por Mela- A importância da abordagem
nações, e aquelas que só podem ser nie Klein (1921). Freud, embora não familiar na atenção 77
psicossocial
consideradas como uma falsificação subtraia a comparação da alucinação Ana Flávia Dias Tanaka Shimoguiri
Fernanda Silveira Serralvo
de uma percepção genuína mediante com a percepção, a promove a uma
as adições próprias de quem as vive: categoria na qual já não é subalterna
as ilusões (Blom, 2009). à percepção: “Não tenho dúvidas de
que esta animação do desejo resulte
Dessa forma, Kraeppelin, como em primeiro lugar no mesmo que a
mais tarde faria o psiquiatra suíço Eu- percepção, ou seja, a alucinação (1950,
gen Breuler, expressava em que medi- p. 362).” Ao efetuar tal movimento
da Esquirol, de quem fazia eco, esta- conceitual, Freud contribui com o
belecera, com sua definição, a tradição movimento que deixou de enfatizar as
duradoura que, até hoje, considera as imagens mentais como miméticas e de
alucinações como percepções sem ob- qualidade inferior ao real para subli-
jeto, e, portanto, como formas patoló- nhar, por sua vez, seu caráter produ-
gicas da percepção, a função psíquica tivo e seu pleno direito de existência
central no contato do que costumamos em um nível de igualdade com a per-
conceber como o psiquismo subjeti- cepção (Pakman, 2014). No entanto,
vo com a realidade objetiva do mundo apesar do movimento tectônico leva-
circundante.5 Sob a grande sombra de do a cabo por Freud na compreensão
Esquirol e Kraeppelin, a tradição psi- do psiquismo, ele estava mais interes-
quiátrica outorgava, assim, um cará- sado na incapacidade de transferência
ter disciplinar a mais antiga, e por um que dificultava a cura da psicose, e seu
bom tempo dominante, tradição de interesse geral nos fenômenos incons-
pensamento que considera a imagem cientes não o faria propenso a uma
fictícia ou fantástica sobre o modelo revisão da questão da percepção e da
da percepção, assumindo-a como uma ficcionalização como formas de cons-
forma subalterna da mesma. A quali- ciência. Para que o caráter da alucina-
dade vívida do fenômeno alucinatório ção como patologia da percepção e de
e a importância que cobra à existência contato com a realidade fosse questio-
da pessoa que o experimenta facilitam nado foi necessário esperar até que um
a adoção de uma concepção psiquiá- jovem Jean-Paul Sartre começasse a
trica que privilegia a percepção do real se ocupar do tema em “A imagem na
sobre o fictício, e que tende a assumir vida psicológica” (Wildorf & Ridrauf,
o material como objetivável apenas no apud Sartre, 2012). Essa dissertação de
espaço consensualmente exterior das 1926-27 antecipava as obras posterio-
coisas do mundo. res, concebidas como uma unidade,
Sigmund Freud atribuiria ao con- embora publicadas separadamente:
ceito de alucinação um papel originá- A imaginação (2012) e O imaginário
rio na distinção primária que o infante (2004b).
faz de um mundo como projeção do Sartre, fiel à fenomenologia de Ed-
desprazer que nasce das frustrações de mund Husserl (1999), entendeu que a
suas necessidades, bem como da rea- consciência humana é sempre inten-
tivação da lembrança do objeto que o cional, já que é sempre consciência de 5
Embora a relação entre os
satisfez anteriormente, concomitante algo, bem como é sempre transcenden- sonhos e as alucinações, bem
à re-emergência de sua necessidade e te, pois tais conteúdos da consciência como entre as alucinações e
certas intoxicações, já tivesse
involucrado no lançamento da dinâ- são sempre exteriores a ela mesma. sido assinalada antes que
mica do desejo (1985), conceito que Tanto a percepção quanto a fantasia Esquirol se ocupasse do tema.

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implicam duas formas alternativas de Embora a concepção de Sartre so-
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consciência, e são, enquanto conteúdo, bre alucinação e percepção não tenha
exteriores à própria consciência. Para sido integrada à psiquiatria, a julgar
Sartre, a alucinação já não é um fenô- pela persistência da ideia dominante
meno patológico perceptivo, mas sim de percepção sem objeto, acabou sen-
pertencente ao território da fantasia, e do um veículo para sua concepção da
com isso ele questiona que na alucina- consciência que é sempre, em princípio e
ção exista um problema de falta ou dis- ao mesmo tempo, consciência de si mes-
torção do contato com a realidade. Por ma e de um mundo exterior a ela que
mais complicado que seja, para quem faz seu conteúdo se desdobrar na exte-
experimenta as alucinações, torná-las rioridade ou na interioridade psíqui-
compatíveis em sua forma e conteúdo ca. A exterioridade dos conteúdos da
com aqueles com quem comparte, em consciência à mesma acontece quando
maior ou menor medida, sua cotidia- esses conteúdos são parte do espaço
nidade, não é evidente que tal experi- da realidade consensual no modo de
ência, sem dúvida dramática, implique consciência perceptiva, mas também
uma patologia da percepção e uma al- quando são parte de um espaço irreal,
teração concomitante do contato com como nos modos de consciência nos
a realidade. Assumir que esse é o caso quais a ficção é definitória ou tem um
vai em detrimento do componente fic- papel importante na relação com um
cionalizante ou fantasiador do fenôme- análogo da imagem perceptiva, como
no alucinatório, em cujo terreno Sartre acontece com a lembrança, a fantasia
diz ocorrer, desconhecendo o fato de e a confrontação com obras de arte
que percepção e imaginação sempre como o retrato, a fotografia, a caricatu-
se excluem mutuamente e se alternam. ra ou os rascunhos esquemáticos, bem
O que acontece é que, quando se trata como em outras situações que Sartre
do ato alucinatório, este “é um evento estudou em detalhe. A autoconsciência
puro que surge subitamente ao pacien- e a transcendência, com Sartre, sem-
te enquanto a percepção desaparece” pre se transformam em qualidades da
(Sartre, 2004b, p. 150). Quando acon- consciência até quando não é reflexiva,
tece o evento da “alucinação visual ou como acontece, em princípio, antes
auditiva, este é acompanhado de um da aquisição da linguagem, e nunca
colapso provisório da percepção”, mas deixa de sê-lo em muitos aspectos do
apesar de ser um atrativo poderoso, a funcionamento cotidiano nos quais o
concepção perceptiva e o mundo do caráter imediato do mundo que habi-
espaço consensual real exterior reapa- tamos se assume sem necessidade de
recem finalmente ao narrar o evento, reflexão nem de significados linguís-
ou seja, quando a consciência reflexiva ticos. Quem alucina sabe, no sentido
participa, o paciente localiza, com fre- de que tem consciência, que a expe-
quência, o evento alucinatório nesse riência é peculiar, e sente um toque
espaço da percepção. Diz Sartre: persecutório ou sinistro quando ela
acontece, embora a localize no espaço
O paciente, ao falar da cena da qual da percepção quando faz referência a
acaba de ser testemunha, diz que ela. Isso não acontece na consciência
ela é parte do mundo circundante: onírica, que também é peculiar, pois
“Eu, que acabei de ver o diabo, estou aprendemos logo cedo a localizar seu
aqui” se transforma facilmente em conteúdo em seu próprio espaço oníri-
“Acabei de ver o diabo aqui” (151). co irreal, auxiliados pelo fato de que o

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despertar nos reaproxima das circuns- para uma teoria das emoções (1962), A A importância da abordagem
familiar na atenção 79
tâncias que rodeiam o sono (a cama transcendência do Ego (1991) e alguns psicossocial
ou assento, a posição, os olhos que outros artigos (1939, 1948), a concep- Ana Flávia Dias Tanaka Shimoguiri
Fernanda Silveira Serralvo
se abrem etc.) e das leis que regem o ção da consciência de Sartre, integran-
espaço consensual cotidiano, no qual do criticamente Husserl e Heidegger,
não podemos, por exemplo, caminhar dava início ao desenvolvimento que
pelo ar sem apoiar os pés na terra. culminaria, em 1945, com O ser e o
Sempre temos consciência da es- nada, seu tratado de fenomenologia
pontaneidade dos objetos da consci- existencialista no qual elabora uma fi-
ência, sejam objetos do mundo real da losofia da liberdade. Sartre se postava,
consciência perceptiva ou objetos ir- assim, no caminho da fenomenologia,
reais da consciência fantasiante, e não que, para Gilles Deleuze (2006), fora
podemos nos apropriar totalmente de- inaugurado por Immanuel Kant, sem-
les como se fôssemos seus criadores, pre que o entendamos como o aban-
já que nos excedem quando o objeto dono da dicotomia atribuída a Platão
é real e se fazem presentes quando é (1991) entre essência, como realidade
irreal. Por isso, Sartre, ao contrário de última do ser transcendente da Ideia, e
Husserl, extrai a consciência do terri- a existência como forma impura e coti-
tório do Ego, que considera um agre- diana dessa forma ideal. Tal dicotomia
gado posterior correlato à reflexão e perdurou na concepção da imagem
à linguagem, além de deixar de com- como aparência, oposta à realidade
preender a ficção tendo como base o transcendente das Ideias platônicas ou
modelo da percepção, como já fizera à realidade material acessível através
Freud seguindo um caminho dife- dos dados e sentidos dos empiristas.
rente, para dotá-la de uma qualida- Dentro dessa dicotomia, a imagem
de plena de consciência, alternativa à era uma forma degradada e mimética
perceptiva. Com isso, a subjetividade do ser, mas também perduraria quan-
se torna um conceito mais amplo que do a ficção ou a fantasia começassem
o Ego e que o sujeito da linguagem e, a ser concebidas criativamente como
dada a articulação constitutiva entre a uma produção sem um fim mimético,
consciência e o mundo exterior a ela, e fosse então naturalizada como uma
fictício ou não, permanece a salvo do distinção do senso comum. Com sua
subjetivismo e do idealismo que atin- crítica das essências transcendentais,
giam, para Sartre, a fenomenologia de Kant deixava de conceber as imagens 6
Embora Ronald Aronson
Husserl6. A integração feita por Sartre como aparências miméticas ou criati- tenha argumentado que
Husserl outorgava à percepção
da filosofia de Heidegger também in- vas, para concebê-las como aparições uma complexidade que
clui uma crítica ao risco da abstração da realidade. Sartre não reconhece (1980),
Sartre pensava que Husserl se
e ao idealismo concomitante, para A promoção da fantasia ao status alinhara com as concepções
transformar-se em uma filosofia que, de modo pleno da consciência, em pé “alimentares” da percepção,
nas que a subjetividade
como a própria consciência, nunca de igualdade e com uma qualidade tão parecesse engolir o mundo,
se desprende do mundo, embora a singular quanto à da percepção, foi a apesar de reconhecer que, na
condição de possibilidade da hipertro- percepção, como mostrava
reflexão possa gerar a ilusão de fazê- Husserl, não é uma mera
-lo, quando prestamos atenção em seu fia que a ficção alcançaria com o de- impressão passiva, mas agrega
conteúdo ao gerar espaços abstratos senvolvimento do giro linguístico e do ativamente elementos durante
o processo, como acontece no
que podem chegar a ser metafísicos. pós-modernismo radical, que entroni- clássico exemplo do cubo que
Com seus primeiros trabalhos so- zou a realidade como simulacro da fic- se percebe como tal, embora
nunca exponha mais que três
bre a imaginação, junto a seu Esboço ção, invertendo a primazia clássica dos lados a nossa perspectiva.

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dados empíricos dos sentidos sobre a e conhecer ocorrem na linguagem,
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imagem como mera mimese dela mes- encontramos o que Alain Badiou qua-
ma (Pakman, 2011). Porém, se Sartre lificou como idealismo linguístico
se somou ao movimento da ênfase do (Badiou & Žižek, 2009). Uma leitu-
ponto de vista da percepção do real ra materialista levaria, por sua vez, a
do ser à da possibilidade que abriam a ler a fórmula cartesiana como penso
fantasia e o fictício, o que já aparecera e portanto existo. Pensar mostra que
em Freud e que também recebeu con- existo e a existência seria a origem do
tribuições dos teóricos da hermenêuti- pensamento ou do conhecimento, pois
ca do século XX, Hans-George Gada- se não existisse não poderia conhecer
mer (1976) e Paul Ricoeur (1976), não nem pensar. Mas Sartre, embora con-
fez parte do movimento pós-moderno, sidere que o ser é condição necessária
que mais tarde levaria ao privilégio to- do pensamento e do conhecimento e
tal do possível sobre o ser, e que che- também da ação humana, não o en-
gou a conceber a realidade como um xerga como uma condição suficiente
simulacro, invertendo a lógica que que levaria a conceber o conteúdo do
fazia do mental uma cópia. Este privi- pensamento como uma consequên-
légio, que fazia regressar infinitamente cia imanente do ser, o que eliminaria
ao real em colusão com o giro linguís- a liberdade em nome de uma deter-
tico na filosofia e nas ciências huma- minação absoluta, como apresentou,
nas, buscou fundamentar-se na obra por exemplo, em sua conferência O
de Michel Foucault, Jacques Derrida e que é a subjetividade?, ditada no Ins-
Jean Baudrillard, entre outros, apesar tituto Gramsci de Roma, pertencente
das advertências deles mesmos con- ao Partido Comunista Italiano, em
tra as leituras idealistas dessa natureza 1961 (2016). Ao mesmo tempo, Sartre
(Pakman, 2014). tampouco comunga com o idealismo,
Sartre, embora tomasse como pon- clássico ou linguístico, que considera o
to de partida Renée Descartes (2000), pensamento e o conhecimento como
posicionava-se além das leituras mate- construções linguísticas que criam o
rialistas ou idealistas das três famosas que nomeiam. Sartre diz que “prover
palavras latinas da fórmula que cifra o realismo de um fundamento filosó-
sua filosofia: Cogito ergo sum. Embora fico” é o que “tratei de fazer por toda
cogito, do verbo cogitare, seja tradu- minha vida”. “Como dar ao homem
zido como penso ou conheço, e sum, tanto sua autonomia quanto sua reali-
7
E por isso mesmo qualificado do verbo ese, como sou ou existo, o dade entre os objetos reais, evitando o
por Foucault como um filósofo
do século XIX, talvez lhe termo ergo, em geral traduzido am- idealismo, mas sem cair em um mate-
atribuindo, injustamente, uma biguamente como portanto ou logo, rialismo mecanicista?” (1969, 36-37).
adesão imediata e acrítica
ao sujeito agente, quando
parece indicar o tipo de leitura impli- O movimento conceitual de Sartre,
na verdade articulava uma cada na fórmula. Uma leitura idealista talvez o último dos filósofos clássicos7,
concepção da subjetividade
que excedia a linguagem
diria: penso, logo existo. A existência é, apontava a uma consolidação da feno-
feita do ponto de vista de neste caso, uma consequência do que menologia em termos realistas e ma-
uma crítica do inconsciente penso. O conhecimento e o pensamen-
psicanalítico, que mudou ao
terialistas, e a uma caracterização da
longo de sua vida e o levou a to se tornam, então, a origem do ser. existência humana na qual a consciên-
encará-lo como alternando Se agregarmos, como aconteceu logo cia se intricava inevitavelmente com o
entre uma dupla consciência
ou uma não-consciência, após o auge da linguística e da sua in- mundo e suas determinações, não ape-
ambas as possibilidades corporação ao pensamento como giro nas sem conceder sua liberdade, mas
problemáticas à luz de suas
investigações da consciência. linguístico, o conceito de que pensar sendo protagonista dela.

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Sartre localizou sua terceira posi- ou inconsciente.8 Segundo Nancy, esta A importância da abordagem
ção, o começo de sua obra, na tradição não “é a presença ordinária do real” familiar na atenção 81
psicossocial
do existencialismo, e tentou configurá- (2005, 11) que os dados dos sentidos Ana Flávia Dias Tanaka Shimoguiri
Fernanda Silveira Serralvo
-la em uma unidade coerente de exis- provêm à nossa percepção, por mais
tencialismo e marxismo em sua obra complexa que seja tal concepção da
tardia (2006, 2004a, 1968). Uma con- percepção, como acontece no empi-
sequência fundamental de sua posição rismo científico. As imagens, em todas
é, em primeiro lugar, que o pensamen- suas formas e modos, são pulsos da
to e o conhecimento não se limitam à realidade que avançam a si mesmos
reflexão, já que a consciência primária distinguindo-se de um fundo criado
não reflexiva, anterior à linguagem, no próprio ato de fazer-se presentes e
e que a excede quando esta se torna afirmando a materialidade, exterior no
presente é, em todo caso, um conheci- sentido de Sartre, que tem sempre, ao
mento pré-predicativo. Ou seja, que se que parece, uma qualidade de textura
dá na dimensão do ser mais do que na vívida (Pakman 2014, 120). Toda ima-
de conhecer, sustentada pela dicotomia gem é a aparição de um sentido, que é
sujeito-objeto; e, em segundo lugar, que e que faz sentido, como nascimento à
esta consciência imediata pré-predica- presença do real de um mundo.
tiva implica uma autoconsciência que A concepção de Sartre de uma cons-
não é reflexiva, já que não se toma a si ciência primária não-reflexiva aponta
mesma como objeto de conhecimento. na mesma direção desse sentido pri-
Podemos ler esta concepção de Sartre mário do mundo que não se esgota
da consciência primitiva não reflexi- em um empirismo ingênuo de costas
va, cujo ser implica ser consciente de aos processos de mediação sociais,
si mesma sem objetivar-se, junto à culturais e políticas. Desde cedo, a
concepção de, por exemplo, Jean-Luc observação de bebês no contexto da
Nancy (2012, 2008, 1997), do sentido dualidade que forma com quem cuida
(como diferente do significado lin- deles em um entorno humano (Win-
guístico) e da presença (como diferen- nicott, 1982) torna visível que, antes
te da representação; tema elaborado de sua entrada na linguagem e na re-
também em uma tradição de pensa- flexão como conhecimento objetivado
mento diferente por Alain Badiou, por parte de um sujeito, nosso mun-
2006, 1988), que está na base do de- do humano implica uma orientação
senvolvimento do meu trabalho sobre sensorial e motriz que constitui sua
uma concepção crítico-poética da psico- experiência como o que chamei eco-
terapia (Pakman, 2011, 2014). Nancy, logia sensório-motriz do colo (2014,
incluindo criticamente a obra de Jac- 2011) na qual vai se configurando a
ques Derrida e Martin Heideg­ger, le- subjetividade como experiência vívi-
vou a concepção de Kant da imagem, da de uma consciência/mundo. Esse
8
Uso os termos fantasiante
para este ainda ligada a um sujeito sentido do mundo, que não é uma ou ficcionalizante em vez de
transcendental, a ser uma ontologia de compreensão reflexiva ou linguística consciência imaginativa, como
mundos ou realidades que chegam de do que é ou existe, e que é central às seguiu fazendo Sartre, porque
incorporo plenamente a
maneira descontínua à existência, que competências precoces estudadas por concepção de Kant da imagem
se fazem presentes sem assumir ne- Jean Piaget (1971), é o modo primário como aparição da realidade,
o que faz da percepção e da
nhum lugar transcendente de origem, da expe­riên­cia humana não-reflexiva fantasia modos dessa aparição
uma condição última de seu ser, seja e imediata na qual crescemos, e não ou, em termos de Sartre,
modos de consciência, já que
divino ou metafísico, ideal ou mate- se identifica com o mundo empíri- a consciência implica sempre a
rial, subjetivo ou objetivo, consciente co dos dados da sensorialidade nem aparição de um mundo.

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com a dimensão de significações das Tanto Sartre quanto Nancy, entre
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quais esse sentido primário e imedia- outros, assinalam um caminho que
to do mundo é condição de possibili- legitima a singularidade da experiên-
dade. Além disso, o desenvolvimento cia além da dicotomia entre realida-
dessas competências acontece no seio de consensual e ficção, entre objeti-
da dualidade do bebê e seu cuidador vidade e uma concepção subjetivista
(com frequência, a mãe no princípio) da subjetividade, inclinada a cair no
e estabelece, além de uma ontologia empirismo ligado à explosão das neu-
existencial, as orientações éticas pri- rociências que só reconhece os dados
márias em termos de um impulso em dos sentidos e a racionalidade como
direção a uma vida melhor como busca formas de acesso a uma realidade que
incessante. O sentido do mundo, que é se esgota neles, ou então a cair no ide-
tanto mundo quanto consciência não alismo, que se tornou cada vez mais
reflexiva de si, se dá como um sentido linguístico desde que o giro linguístico
que nunca falta, que nunca é negativo se instalou como o novo horizonte da
e que oscila entre a qualidade de que psicoterapia, a partir dos anos 1990.
a vida vale a pena ser vivida e a vida Tal concepção é curiosamente corre-
fútil. lativa à mercantilização do campo da
A localização feita por Sartre do saúde mental e à captura deste campo
psiquismo em continuidade com o por parte das companhias de seguros
mundo exterior, ao ser ambos trans- de saúde portadoras dos princípios
cendentes à consciência, encaixa-a ir- da economia neoliberal de mercado.
remediavelmente ao espaço no qual, Enquanto o avanço da biologia dos
na minha concepção crítico-poética, neurotransmissores e a primazia da
os sentidos do mundo são capturados psicofarmacologia foram correlativos
por micropolíticas dominantes que à inclusão da saúde mental no mer-
transformam a vida em roteiros repeti- cado, o pós-modernismo promoveu
tivos (Foucault, 2000, 1994, 1985; Pak- a diluição da materialidade de um
man, 2014, 2011). No mesmo espaço mundo transformado em simulacro,
se desdobram também as resistências a enquanto avançava uma versão do so-
essas micropolíticas dominantes atra- cial e do cultural costurada (Badiou,
vés de eventos poéticos, no sentido do 2006) ao linguístico. Esta posição
termo poiesis como chegada à presen- aparentemente oposta ao empiris-
ça ou aparição como existente (Cha- mo neurocientífico resultou também
teau, 2014; Goyet 2014). O mundo conveniente ao campo de uma saúde
não cessa de aparecer como imagens, mental que as companhias de seguros
perceptivas ou fictícias, como sentido, administraram concebendo sobre ba-
ou, usando um termo de Sartre, como ses bioconducionistas. As paredes das
consciência entrelaçada com o mundo, práticas privadas não foram capazes, é
a dimensão de uma subjetividade en- claro, de deter um processo micropolí-
tendida como lugar de liberdade frente tico cujos dispositivos de saber/poder
às determinações históricas, e que não davam forma a novos sujeitos profis-
se reduz ao sujeito epistemológico do sionais que sustentavam essas práti-
conhecimento reflexivo dos objetos do cas enquanto eram constituídos pelas
mundo nem ao sujeito que nasce com mesmas (Foucault, 2000, 1996, 1985;
a linguística Saussuriana, seja o ego do Pakman, 2011).
enunciado ou o sujeito da enunciação Essa dicotomia entre o empirismo
ou do inconsciente. e as posições do giro linguístico, em

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colusão efetiva frente ao avanço do ca subjacente a essas duas posições do- A importância da abordagem
familiar na atenção 83
mercado de saúde mental, costuma minantes não pode eliminar comple- psicossocial
levar a duas atitudes possíveis fren- tamente o nível da experiência vívida e Ana Flávia Dias Tanaka Shimoguiri
Fernanda Silveira Serralvo
te aos fenômenos que se apresentam cotidiana que nos permite assumir que
clinicamente: seja buscar a realidade estamos frente a uma percepção, uma
transformando-nos em detetives em ficção ou algo que parece um fenôme-
busca de evidência objetiva ou con- no psicótico.
sensual, de costas à dimensão da fic- Apesar da dominância das posições
ção, seja bancando interpretadores de teóricas empiristas e do giro linguís-
significados, desentendendo-nos da tico no nível da consciência reflexiva
realidade perceptiva para ocupar-nos, quando chega o momento de intervir
por outro lado, da “realidade psíqui- terapeuticamente, é difícil evitar total-
ca”, concebida como inconsciente ou mente o sentido de estar frente uma
relacional, mas sempre a abordando situação que nos parece real ou irreal,
de maneira interpretativa. Duas ati- neste último caso uma ficção inocente,
tudes que se sustentam, sobretudo, uma mentira ou uma psicose entendi-
na adoção de certos modelos que pas- da como falta de contato com a reali-
sam a formar parte de nossa identida- dade, apesar da concepção de Sartre,
de profissional, modelos que passam que mostra que não é isso o que está
também por momentos históricos nos em jogo na alucinação. Para fazer a
quais se tornam mais ou menos domi- diferença entre uma alucinação, que
nantes, como são agora aqueles rela- parece ter uma característica real para
cionados com o empirismo científico quem a relata, e uma percepção nor-
promovido com o avanço das neuroci- mal, aportamos nossa própria concep-
ências ou com o giro linguístico, que, ção como tertium comparationis, e daí
embora seriamente questionado por seguimos para considerá-la uma per-
vários filósofos dos últimos vinte anos, cepção patológica ou anormal já que
experimenta uma dominância tardia carece do objeto que a cravaria ao real
no campo da psicologia, psicoterapia e e seria sua razão de existir. O sentido
especialmente da terapia familiar. Am- da consciência irreflexiva não desa-
bas as posições desconhecem o nível parece com a linguagem significante,
de sentido, já que o assimilam ao sig- e continua visível nas habilidades que
nificado, como se fossem dois termos nos permitem, por exemplo, encon-
para o mesmo conceito, seja guiando trar um caminho em nossas casas na
a concepção do mundo, como na po- escuridão noturna ou subir as escadas
sição do giro linguístico, seja conside- enquanto prestamos atenção em outra
rando supérflua essa dimensão frente coisa, sem darmos conta reflexivamen-
ao empirismo que deve guiar toda te das relações espaciais que poderiam
postura científica. Esse nível de cons- ser descritas de acordo com a geome-
ciência imediata não reflexiva é des- tria e a dinâmica dos corpos, nem tem
conhecido em sua importância como a ver com os significados que possa-
nível intermediário entre o empírico mos atribuir a nossos movimentos ou
e o hermenêutico, correlativa ao nível a esses lugares em um nível discursivo.
também intermediário do existencia- Quando nossa consciência imedia-
lismo entre o materialismo mecani- ta se alinha à nossa posição teórica no
cista e o idealismo, tanto metafísico nível de saber profissional, podemos
quanto linguístico. Mas a micropolíti- estabelecer com confiança a distinção

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entre alucinação e percepção, e na me- ta, ou quando a atribuição de psicose
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dida em que conseguimos identificar não parece viável, não é raro que nos
se um paciente ou cliente está em um sintamos burlados e busquemos ainda
estado psicótico, ou o descartamos, mais a posição do detetive em busca
esta efetividade profissional resulta da verdade. Mas essa verdade, por um
autovalidante. Se tomamos o caminho lado, não é simplesmente uma verdade
da interpretação de significados ou empírica neutra e desapegada, já que
o trabalho com narrativas e estamos costuma ser acompanhada do mal-
atentos à construção social que assu- -estar de sermos burlados intencional-
mimos, esgota-se o fenômeno e a dis- mente ou estarmos equivocados pro-
tinção perde importância, sempre que fissionalmente. Por outro lado, é uma
nos deparamos com o fato de que nos- busca que contradiz, na experiência, o
so caminho não corresponde a alguma que a aderência conceitual e ideológi-
experiência efetiva no campo cotidia- ca a uma hermenêutica interpretativa,
no no nível de consciência imediata à postura da interpretação sem fim
e não-reflexiva, na qual experimenta- frente a uma realidade que nos parece
mos um sentido de que uma experiên- construída sem resto algum e produto
cia não consensual está acontecendo, de interpretações, nos faria descartar
já que não podemos deixar de existir conceitualmente como inútil.
nessa instância, seja qual for a posição Vamos tomar como exemplo o caso
que adotemos reflexivamente, a partir de Raimundo, homem de uns cinquen-
de nossos modelos teóricos. Seja como ta anos que vem à consulta por estar
for, tanto nossa capacidade profissional “sumamente deprimido” e padecer de
quanto nossa própria sanidade exigem uma “intensa ansiedade” quando “ro-
a manutenção dos limites de distinção deado de gente”, a ponto de não con-
entre percepção e fantasia, ou então seguir encontrar rumo em sua vida,
desentender-nos deles em uma atitude que lhe parece cada vez mais fútil, em-
que às vezes não corresponde à nossa bora isso não o leve a ter ideias nem
inserção cotidiana no mundo em que impulsos suicidas. Ray, como gosta
nos movemos efetivamente e habita- de ser chamado, diz à sua terapeuta, a
mos com nossos clientes. No entanto, mesma de anos antes, que seu pedido
devemos notar que, no caso claro da de terapia coincide com o aumento de
alucinação, só a habilidade profissio- seus sintomas desde o momento em
nal está em jogo na comparação, mas que seu único irmão, Karl (com quem
quando encontramos uma situação na mora e a quem atribui ter sofrido uma
qual existe incerteza entre percepção, série de alucinações auditivas desde a
mentira e alucinação, também costu- adolescência, problema que o levou
ma entrar em jogo, para o profissional, a tomar medicação prescrita por um
certa suscetibilidade frente à possibi- psiquiatra), o atacou recentemente
lidade de ser enganado, o que faz com com um taco de beisebol. Ray explica
que ele se aferre ainda mais à realida- o incidente de forma muito detalha-
de perceptiva. Ou seja, quando ocorre da, incluindo que foi desencadeado
uma colisão entre diversos aspectos após ter confrontado seu irmão sobre
da experiência cotidiana, quando en- sua prática de misturar remédios com
contramos situações clínicas nas quais drogas vendidas nas ruas. Ray pensava
a distinção entre percepção e ficção e que essa prática de Karl exacerbava as
realidade e fantasia permanece incer- “vozes” e o tornava agressivo, e relatou

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também seus próprios pensamentos embora sejam coerentes com os bilhe- A importância da abordagem
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e ações durante a interação prévia ao tes que leva ao psiquiatra, escritos com psicossocial
ataque, bem como a posterior inter- uma torrente de conhecimentos e ha- Ana Flávia Dias Tanaka Shimoguiri
Fernanda Silveira Serralvo
venção da polícia. Ray dizia ter dei- bilidades literárias notáveis. Em outros
xado de ir às sessões que frequentou casos, às vezes aparecem evidências
durante anos, pois, ao mesmo tempo, independentes de algumas coisas re-
frequentava um psiquiatra que, segun- latadas, o que desconcerta ainda mais
do ele, não confiava nas razões que ele quem não considera Ray crível ou con-
alegava para ter tomado um medica- fiável, como ele mesmo relata algumas
mento ao ter sido diagnosticado com vezes ter notado nos outros, embora
um déficit de atenção. No entanto, em quase nunca pareça entender o moti-
termos gerais, Ray se mostrava evasivo vo. Estariam frente a uma pessoa que
quando o terapeuta, para entender me- mentia por alguma conveniência, que
lhor a situação a que ele se referia, fazia vivia delirando em uma realidade al-
perguntas sobre tal situação ou sobre ternativa, que fabulava?
as reações dos demais frente à sua con- Sartre diz que “uma verdade apa-
duta. Além disso, essa nova consulta rece de três modos possíveis: é minha
acontece no âmbito de um programa verdade; é a verdade que chegou a
no qual psicoterapeutas, médicos clí- ser para o outro; é a verdade univer-
nicos, assistentes sociais e outros pro- sal” (1992, p. 65). À luz do conjunto
fissionais interatuam com frequência da obra de Sartre, podemos entender
entre si (e com o paciente sabendo dis- que a verdade para mim é a verdade da
so), e alguns dos profissionais que têm consciência imediata não-reflexiva, a
contato com Ray começam a dizer ao verdade só acessível à minha consciên-
terapeuta que não o consideram uma cia acompanhada de autoconsciência.
pessoa confiável ou crível, coincidindo É uma experiência vívida, da qual só
com e amplificando um sentido seme- eu posso dar testemunho. No segun-
lhante ao apresentado pelo terapeuta do caso, a verdade para outro é tanto
em seus encontros clínicos. Certo dia, a verdade imediata da consciência, já
quando Ray se apresenta dizendo que que todo outro tem suas verdades para
seu irmão Karl cometera suicídio, um si, quanto a verdade reflexiva alcança-
desses profissionais chega a revisar da pela observação de um objeto por
os avisos fúnebres locais em busca de parte de um sujeito de conhecimento,
uma referência sobre alguém com o que pode ser descontínua com a ver-
nome do seu irmão, e, em outra oca- dade para mim. Claro que eu também
sião, tenta averiguar se, como diz Ray, posso ser o sujeito dessa verdade, as-
ele já foi professor de uma conhecida sim como todo outro tem sua verdade
universidade. Tais buscas, em geral, para si mesmo do primeiro tipo. Esta
não revelam nada que possa esclarecer verdade de observação não tem mo-
as pessoas que duvidam da credibi- tivo para ter um caráter universal, e é
lidade de Ray se ele diz realidades ou possível correlacioná-la com a verdade
fantasias. Quando Ray começa a rela- da autoconsciência, embora ambas
tar que também ouve vozes, as dúvi- sejam descontínuas. O testemunho,
das aumentam na equipe terapêutica, neste caso, pode ser racionalmente
e suas explicações sobre seu fracasso questionado devido à descontinuida-
em encontrar trabalho não esclarecem de entre ambas. A verdade do terceiro
sua pobreza nem sua posição social, tipo, universal, é uma verdade empíri-

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ca resultante do conhecimento reflexi- empírica, já que os fatos relatados por
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vo que, embora tenha seus efeitos so- Ray eram de alguma maneira, e deste
bre todos, nem sempre implica alguém modo não era incognoscível para ele
que tenha alguma experiência existen- nem para outros, mesmo quando não
cial direta com a mesma, como acon- conhecido por todos nem reconhecido
tece no caso da verdade existencial do por ele mesmo. O que podemos asse-
primeiro tipo, nem uma verdade de verar é que o sentido de não estar frente
observação direta, embora deva existir a alguém confiável para outros era uma
ao menos uma verdade de observa- verdade existencial, mesmo quando
ção indireta, como costuma acontecer Ray não enxergava motivo para isso.
nos processos científicos em cujo caso Se todos os que o enxergavam como
deve poder ser contrastada com algu- não crível ou confiável fossem des-
ma experiência (Popper, 1992). confiados em geral, é possível que
Em relação ao testemunho, o mun- esse sentido não estivesse relacionado
do é verdade existencial do primeiro a um fato empírico, mas ainda assim
tipo, mesmo quando é fictício, quan- seria um problema existencial ou de
do não se pode testemunhar mais, seja sentido para Ray, em quem não con-
por quem o sustenta em sua consciên- fiavam, e ele sofreria as consequências,
cia sem poder ser observado por ou- às vezes junto com outros, já que al-
tros, seja como obra consensualmente guns confiavam nele, ao menos em al-
artística externalizada. Ao contrário guns aspectos de sua vida, ao conviver
da verdade histórica, onde se comple- com ele ou ter com ele uma relação, e
mentam dois tipos de testemunhos di- poderiam se ver atingidos por sua falta
ferentes: os das verdades existenciais do de confiabilidade frente aos demais. O
primeiro tipo daquilo que só eu posso terapeuta buscou uma maneira de le-
ser consciente e os das verdades exis- var à terapia esse sentido para outros,
tenciais de outros com o testemunho que era uma verdade existencial. Para
de verdades empíricas daquilo que ou- ser conectada a uma verdade empí-
tros podem observar direta ou indireta- rica, seria preciso encontrar um fato
mente, e que assume às vezes o caráter que pudesse ser visto como uma men-
de verdade universal. A complexida- tira ou ocultamento. Isso foi o que o
de que essas opções abrem é enorme. terapeuta privilegiou nessa situação: a
Uma pessoa pode saber que mente, verdade existencial que estava, no en-
mas mesmo assim outras pessoas a tanto, intimamente ligada à verdade
admiram, sem enxergá-la como al- universal, mas entendendo que a pri-
guém que mentiu ou como uma men- meira era o elemento de sentido a tra-
tirosa, ou justificando sem sentir que tar. Seu irmão existia ou não existia na
as engana, ou sabendo que as engana, realidade cotidiana, e no caso de exis-
mas assumindo que tem bons moti- tir, estaria ou não morto. Não conse-
vos para fazê-lo. Outra pessoa pode guia trabalho porque não havia ou não
não ser vista como confiável porque fora aceito, e teria ou não trabalhado
aparece mentindo, e pode saber que na universidade a que se referia, e no
é vista assim sem se ver como alguém caso de ser verdade, teria concluído-a
que mente, engana ou dá motivos para ou não pelos motivos que alegara. Mas
tal desconfiança. Esse último parecia pedir ou forçar uma confissão poderia
acontecer no caso de Ray. Como acon- arruinar o trabalho sobre a verdade
tece no caso da verdade existencial, existencial de que parecia não ser crí-
esta se relaciona com uma verdade vel nem confiável e de que isso estaria

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provavelmente afetando toda sua vida tre, nós, seres humanos, tendemos a A importância da abordagem
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cotidiana. A verdade histórica era feita seguir em direção à má fé desde o mo- psicossocial
tanto de verdade empírica quanto de mento em que somos seres cindidos Ana Flávia Dias Tanaka Shimoguiri
Fernanda Silveira Serralvo
verdade existencial, mas o papel de de- entre dois modos de ser, o ser-em-si
tetive poderia colocar em risco o pa- do que está acabado, das coisas e dos
pel de terapeuta, enquanto conservar objetos, por um lado, e o ser-para-si de
este último, transformando-o em um uma consciência que está sempre em
interpretador, negava que o que havia movimento, orientando-se no mundo
que interpretar estava ligado à verda- que a transcende, já que, como Sartre
de empírica. O terapeuta, resistindo não deixa de insistir, não somos [em
frente aos dois papéis, pôs em primei- nossa consciência] o que somos [ob-
ro plano a dimensão do sentido de não jetivados] e somos [objetivados como
ser confiável e, em um equilíbrio sutil, seres-em-si] o que não somos [na
evitou correr o risco de não proteger consciência que é para-si e se funda-
sua dignidade dizendo-lhe, por exem- menta na possibilidade da negação do
plo: “Não trabalho como confessor, ve- que é-em-si, indo além dele] (2013, p.
jamos juntos, se possível, que motivos 95-125). Como expressão dessa cisão
poderiam ter os que não confiam em entre dois modos de ser é que atuamos
você para não fazê-lo.” Se isso resulta- com frequência como se não fôssemos
va igualmente ameaçador, dizia: “De mais do que somos e as manifestações
que maneira o fato de não confiarem desta má fé são variadas, mas represen-
em você poderia afetá-lo ou teria afe- tam um escape da liberdade ao tratar-
tado sua vida?” Logo pôde conversar -nos a nós mesmos e aos demais como
com Ray, quando este se sentiu seguro se estivéssemos totalmente determina-
de que não seriam exigidas confissões, dos ou como se nossa liberdade fosse
sobre como essa desconfiança que pura e absoluta, como se fôssemos
ele começou a reconhecer, progressi- consciências transparentes fora de um
vamente, como algo para que ele ao mundo. Pois ser apenas o que somos
menos contribuía afetava permanen- é estar, seja determinados como obje-
temente suas relações e minava seus tos, seja puramente livres, como uma
esforços. Ray começou a conceber seu abstração incorpórea, diáfana, irreal,
fracasso social e profissional, sua fal- em ambos os casos sem a textura do
ta de amigos e sua vida amorosa à luz mundo. E essa duplicidade constituti-
dessa verdade existencial. Certo dia, o va é negociada sem fim, por exemplo,
terapeuta lhe perguntou: “O que você armando, como Ray, uma vida que
acha que faz melhor, gerar desconfian- seja coerente ao preço de apresentar-
ça sobre si mesmo ou amenizá-la?” -se como uma incerteza e que não
Ray respondeu: “Não sei amenizá-la... se pode confrontar com uma moral
sou prisioneiro dessa má reputação, como se fosse um engano intencional,
por isso às vezes desapareço.” “E para mas como um esforço de boa fé que
onde vai, Ray?”, perguntou o terapeu- legitime tal duplicidade e se apresente
ta. “Para onde ninguém desconfia de no sentido da consciência/mundo que
mim”, ele respondeu, e ambos sorri- não pode ser uma unidade de acordo
ram, sabendo que seria um lugar va- com os princípios morais mais do que
zio, que Ray habitava em total solidão. como uma abstração ideal.
Ray estava preso ao que Sartre cha- Nós também podemos atuar de
ma de uma situação de má fé. Para Sar- má fé como terapeutas quando, por

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exemplo, seguimos em direção a bus- na experiência uma dicotomia essen-
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car evidências, transformando-nos em cial entre o empírico e o interpretativo
detetives. Mas se não o fazemos e nos que preenchesse todas as possibilida-
refugiamos no terreno da ficção, sob o des. Esta dicotomia leva a uma grande
nome de realidade psíquica ou cons- escotomização do sentido imediato
trução social, não apenas tomamos da consciência/mundo que esquiva a
uma atitude que não é a habitual para poiesis primária em que o mundo nos
nos movermos no mundo cotidiano, aparece ou nasce à presença, e que é
mas também evitamos as que encontra anterior lógica e cronologicamente à
alguém como Ray, que, quando apre- distinção entre realidade e fantasia,
senta aos demais a incerteza do cará- entre sujeito e objeto epistemológicos.
ter real ou irreal de aspectos da sua Evitemos, nesse caso, o fenômeno de
vida, acha difícil compossibilitar9, fazer sentido não interpretativo para buscar
possível juntos no cotidiano, essas ex- a percepção ou o significado abstrato
periências centrais para ele com sua que diluem a realidade vívida do mun-
relação com os outros. Isso o levava do tal como ela aparece na consciência
ao isolamento e à separação dessas ex- irreflexiva imediata, embora perma-
periências. Por isso o preço para quem neça capturado pelas micropolíticas
nos expõe a tal incerteza é o isolamen- que estruturam as situações vitais com
to para manter ordens de experiência seus dispositivos de saber/poder, seus
que não se pode unir entre si, ou seja, sujeitos e seu imaginário social (Pak-
sempre com outros, conosco. man, 2014, 2011).
Queremos saber se a realidade é Mas a realidade psíquica da cons-
externa ou interna, mas o sentido da ciência sempre inclui a realidade do
consciência/mundo que surge na eco- mundo transcendente à mesma. No
logia do colo é prévio e excede esta dis- caso de Ray, o terapeuta foi guiado cli-
tinção dicotômica. É, em primeiro lu- nicamente pelo sentido da experiência
gar, o modo humano primário de estar com essa pessoa assinalada pela incer-
em um mundo orientado em termos teza. Também era parte do sentido da
do que importa à nossa vida, e que não situação que ele sofria, pois Ray não
coincide com o que descreveria um resultava convincente nem confiável,
observador externo, de uma posição e não podemos dizer se sofria de ver-
inacessível à experiência subjetiva, e é dade ou de mentira (Sartre, 2013). A
também, em segundo lugar, a condi- experiência era que, em muitos mo-
ção de possibilidade de significado. E mentos, o terapeuta não sabia se esta-
persiste sempre como uma dimensão va frente a um fato ou a uma ficção, e
da linguagem enraizada nessa ecologia isto tinha efeitos sobre quem entrava
sensório-motriz do colo à que já nos em contato com Ray. Nessa situação,
referimos. É o modo primário da rea­ estava em jogo a questão da verdade
lidade de consciência/mundo irredu- existencial ou ontológica do senti-
tível a uma realidade empírica inerte do em um acaso, e não somente uma
ou a um mundo feito de significados verdade epistemológica empírica. Os
linguísticos. A loucura não se pode que buscam a verdade no empírico a
afirmar com facilidade nesses casos usarão como critério de patologia e de
9
Conceito importante na em que a atribuição da percepção ou cura, os que se movem no mundo do
obra de Leibniz e Spinoza,
retomado e estudado por
da fantasia não é clara. Insistimos nes- significado passaram por cima dessa
Deleuze (2006). ses dois caminhos como se existisse questão e se interessaram pelo mundo

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que consideraram da realidade psí- completamente. O que a psicoterapia A importância da abordagem
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quica ou da construção social do sig- pode fazer, como a boa literatura não psicossocial
nificado. Mas o núcleo de uma clínica pode fazer porque simplesmente nar- Ana Flávia Dias Tanaka Shimoguiri
Fernanda Silveira Serralvo
da verdade não está na verdade epis- ra, e não porque narra desprendendo-
temológica da correspondência entre -se da realidade ou dando às costas a
as coisas e o intelecto, mas na verda- ela, mas porque às vezes consegue que
de existencial do sentido do mundo, “qualquer que seja o grau de abstração
ou do mundo como sentido, que está ou esquematização, encontramos aqui
sempre relacionada à verdade histórica o personagem que cada um de nós é,
que deve ser subtraída como um espec- para nós e para os outros” (107).
tro que retorna do mundo dos signos, E também:
entendidos quase com exclusividade
como processos de significação, que nos É necessário que esse personagem
rodeia. Essa verdade não representa (como Dom Quixote, por exemplo)
um retorno ao cartesianismo substan- [...] se comporte de maneira inusual.
cialista, já que não se reduz aos dados (...) E então, sem deixar de ser inusu-
supostamente imediatos dos sentidos, al, devemos ser capazes de sentir nele
negando os processos de mediação todas as contradições do seu tempo
sociais, culturais e linguísticos, mas (106).
nos permite uma resistência ao infi-
nito adiamento do real que a atenção Para tanto, não basta o simples fato
exclusiva ao giro linguístico exige, de narrá-lo ou escrevê-lo, já que, como
trazendo de contrabando o retorno assinala Nancy:
a uma posição idealista na qual tudo
é inscrição na linguagem reduzida a Escrever, assim como inscreve sig-
processos de significação, a narrativas, nificações, exscreve ao sentido. (...)
a construções sociais ou metáforas. A Mostra que aquilo do que se trata, a
subjetividade (2016, p. 6), como queria coisa mesma, a “vida” ou “o grito” de
Sartre, é um sistema em interioridade Bataille, e finalmente a existência de
entendido como certo tipo de ação tudo o que está “em questão” no tex-
interna (2016, p. 3), não uma relação to, que tudo isso está fora do texto,
cognitiva consigo mesmo, mas: que sucede fora da escritura (1990,
p. 63).
Este fato constante, o fato individu-
al e real da vida de cada pessoa, ou Não apenas a história, mas a boa
seja, que somos encarnações; ou seja, literatura, excrevem o real. Embora o
que somos a singularização de todo façam de maneiras distintas, já que no
o universo de sistemas dentro dos caso da história sabemos que as coi-
quais vivemos. Isso é o que somos, sas aconteceram de certo modo que é
o que cada um de nós é, e isso é o potencialmente testemunhável, ainda
que mostram nossas novelas (2016, quando o testemunho não seja palpá-
p. 106). vel, como mostrou Giorgio Agamben
(2002) retomando Primo Levi (1989).
Essa subjetividade implica que não Na ficção, por outro lado, existe tam-
vivemos com plena consciência das bém a textura do mundo, mas seus
contradições de nosso tempo, às quais protagonistas o experimentaram no
encarnamos sem que nos determinem domínio da autoconsciência no es-

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paço não consensual onde habitam o sustentar univocamente, requer a seres
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escritor e seu personagem, de modo cindidos e limitados como nós um tra-
que não tem por que coincidir, já que balho permanente que se abra, uma e
o personagem pode exceder a consci- outra vez, ao que não cessa de apare-
ência do escritor. O romance histórico cer como realidade e verdade em nos-
é uma transação na qual, com frequên- sa consciência, e deve ser subtraído da
cia, não podemos assegurar que o que nuvem de signos que habitamos, com
aconteceu foi realmente vivido como suas morais principistas engastadas em
os referentes históricos reais viveram, estruturas de má fé. Por isso a verdade
mas sabemos que foi vivido de alguma é um trabalho de imaginação, de com-
maneira, e em circunstâncias que se possibilidade, de sustentação de eventos
relacionam a ele, e que podem ser cap- que trazem a verdade existencial com
turadas do ponto de vista da verdade outros aspectos de nossa vida, oscilan-
existencial de um observador, aberta do entre os sujeitos que costumamos
à verdade histórica, com seus aspec- ser e a subjetividade mais ampla de
tos universais. Por isso, é fundamental uma consciência/mundo em devenir,
não confundir o fato de que algo que que aparece sem cessar e traz consigo
aconteceu se inscreva na linguagem e o impulso ético em direção a uma vida
que o testemunho seja uma condição que vale a pena ser vivida, que ponha à
de seu conhecimento, assim como prova toda a moral principista.
do conhecimento que vem à luz, por Por isso a psicoterapia como uma
exemplo, na arqueologia, com o fato clínica da verdade deve mostrar o que
mesmo que vem à luz e com a expe- rompe com as determinações mate-
riência de sua visibilidade cuja exis- rialistas que nos fariam ser somente o
tência Deleuze (2013), sublinhando-a que somos, como a idealização de nos
com razão, separa de enunciação na vermos como donos absolutos e vo-
obra de Foucault. Tudo o que se ins- luntaristas de nosso destino, oscilando
creve em um sistema de significações entre esses dois polos sem cair neles,
exscreve, ao mesmo tempo: ou seja, permanecendo em um nível
intermediário do sentido, em uma sub-
À própria coisa, à “existência”, ao jetividade na qual reside o umbral en-
“real”, que somente é exscrito e cujo tre as duas maneiras básicas que para
ser somente está em jogo na inscri- Sartre tem o ser: o ser-em-si no mun-
ção. Inscrevendo significações, es- do e o ser-para-si (2013). Este umbral
crevemos a presença do que subtrai é o que cria uma existência humana na
a toda significação, sendo o que é qual o mundo e a consciência vivem
(vida, paixão, substância...). O ser a aventura sem fim da liberdade, que
da existência pode ser apresentado: não é um princípio somente de conhe-
apresenta-se a si mesmo quando é cimento reflexivo e linguístico, mas
exscrito (Nancy, 1988, p. 64). de uma onto-ética do sentido. O que
conta é se podemos compossibilitar
Somente à luz de uma clínica da ver- nossas vidas com outros na presença
dade, podemos assumir a responsabi- do que não deixa de aparecer de modo
lidade, o risco e a coragem que impli- incessante, nos pulsos em que se dá o
ca o fato de dizê-la, a Parrhesia a que sentido do mundo para a consciência,
Foucault dedicou suas últimas aulas incluídas as consequências de nossas
(2012). Dizer a verdade não é fácil, não ações. Uma ética que deve questionar
podemos simplesmente assegurar nem toda moral na situação singular em que

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se faz pertinente. Sem uma clínica da Deleuze, G. (2013) [1985]. Michel Fou- A importância da abordagem
verdade que encarne uma onto-ética, cault. El saber. Curso sobre Foucault. familiar na atenção 91
psicossocial
nos entregamos ao que Sartre chama- Tomo I. Buenos Aires: Cactus. Ana Flávia Dias Tanaka Shimoguiri
Fernanda Silveira Serralvo
va vontade de ignorância que “postula     (2006) [1980-86-87]. Exaspe-
que nada é com exceção do que cria- ración de la filosofía. El Leibniz de
mos”, projetando um mundo no qual Deleuze. Buenos Aires: Cactus.
“1: o que não sabemos não existe; 2: o Descartes, R. (2000) [1637]. Discour-
que sabemos só existe na medida em se on Method and Related Writings.
que o sabemos; 3: escolhemos saber ou Nova York: Penguin.
não saber” (1992, p. 52). A onto-ética Esquirol, J.-E. D. (1965). Mental mala-
de uma clínica da verdade, por sua vez, dies. A treatise on insanity. A facsi-
encontra-se aberta aos eventos poéticos mile of the English edition of 1845.
que não desconhecem o irreparável da Hunt, E.K. (Trad.), Nova York, NY:
história pessoal social, mas podem nos Hafner Publishing Company.
subtrair da vida regrada das micropo- Foucault, M. (2000). Power. Essential
líticas dominantes, dinamizando suas Works of Foucault 1954-1984. Vo-
morais abstratas e principistas à luz da lume II. James Faubion (Comp.).
busca incessante de uma sempre vaci- Nova York: The New Press.
lante vida melhor, uma vida que valha     (1994 [1966]). The Order of
a pena ser vivida.10 Things: An Archeology of the hu-
man Sciences. Nova York: Vintage
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