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Alucinação, anotações essenciais

Paulo Pedro P. R. Costa, agosto de 2021


http://medicinacomportamental.blogspot.com/

O conceito de "alucinação" em psiquiatria foi cunhado por Jean-Étienne D. Esquirol (1772-


1840) em 1838, como percepção sem objeto, já havendo nesta época, diferenciação de
alucinação, ilusão e/ou percepção distorcida e mesmo da simples divagação.

As alucinações são fenômenos “positivos” em contrastes com sintomas negativos de


perdas ou deficiências do campo visual. Consta que segundo Kaplan (1997), já se
catalogou diversos tipos de alucinações, sendo diferenciados catorze tipos. Por exemplo:
as pseudoalucinações (que não se projetam no espaço como uma alucinação e não
possuem a qualidade detalhada de uma coisa percebida); alucinações hipnagógicas (ao
adormecer); alucinações eidéticas (memória 'fotográfica'); percepções equivocadas tipo
“poliopia”, diplopia, visão multiplicada ou duplicada; palinopsia – repetição de uma cena
ocorrida.

As alucinações podem ocorrer em correlação com qualquer um dos cinco sentidos


isolados ou combinados.

O neuroantropólogo Oliver Sacks (1933 - 2015) em seu livro Hallucinations [A mente


assombrada. SP: Companhia das Letras, 2013] distingue ainda: [em capítulos próprios]:

1) Alucinações de cegos e deficientes visuais – Síndrome Charles Bonnet, quem primeiro


observou o movimento dos olhos dirigido a uma percepção sem objeto.

2) Alucinações relacionadas à privação e monotonia sensorial.

3) Anosmia e cheiros alucinatórios.

4) Vozes, citando Bleuler, ressalta “quase todos esquizofrênicos ouvem vozes, mas o
inverso não se aplica” ...um fenômeno que ocorre em todas as culturas e referido no
“Censo Internacional de Alucinações” realizado na Inglaterra em 1880 como comum em
10% das 17.000 pessoas entrevistadas. Destaca também o caráter hostil e persecutória das
“vozes” percebidas na psicose e a natureza das “alucinações musicais” (parasitas
auditivos).

5) Nas ilusões do parkinsonismo e encefalite letárgica assinala a importância dos efeitos


típicos da levodopa nesses pacientes.

6) Neste capítulo analisa os efeitos do “alucinógenos” incluindo desde as experiências


de W. James com Óxido Nitroso, os relatos sobre o cacto “mescal” e mescalina, o haxixe
e ópio das pesquisas de Quincey, Gautier, Baudelaire e Moreau, até os mais modernos
relatos de Klüver, Huxley, Hoffman e Shultes acerca do LSD, Psilocibina, outras plantas
e as recentes pesquisas correlacionando o efeitos de ativação “anormal” do sistema visual
responsável pela percepção de cor, visão estereoscópica de tamanho e profundidade,
padrões geométricas, em conexão sinestésica com outros sentidos ou não.

7) Analisa os flashes escotomas visuais e os padrões geométricos associados à


enxaquecas, que foram inclusive objetos de sua tese de mestrado.

8) Neste capítulo discorre sobre as epilepsias e seus pródomos, auras, gostos e cheiros
alucinatórios, sensações de “déjà vu”, flashbacks, crises sensitivas e extáticas.

9) do campo visual dividido: ...Não vemos com os olhos, vemos com o cérebro, que
possui dezenas de sistemas para analisar as informações que entram pelos olhos... Além
da deficiência ou perda da visão em um lado, pode haver também sintomas positivos:
alucinações na área cega ou de visão limitada. Cerca de 10% dos pacientes com
hemianopsia súbita tem esse tipo de alucinação e reconhecem de imediato que estão tendo
uma alucinação.
10) ...em Londres no Hospital de Middlesex, 1950, muitos pacientes com delírio. Estados
de flutuação da consciência causados às vezes com infecções com febre ou por problemas
como insuficiência dos rins ou do fígado, doença pulmonar ou diabetes mal controlado ...

11) ...padrões ou texturas geométricas involuntárias que aparece pouco antes de


adormecer – alucinações hipnagógicas, para usar o termo cunhado pelo psicólogo francês
Alfred Maury em 1848. Estima-se que elas ocorram na maioria das pessoas, pelo menos
ocasionalmente, embora possam ser tão sutis que passam despercebidas...

12) Narcolepsia e pesadelos ...hoje sabemos que o hipotálamo secreta hormônios da


“vigília” as orexinas, que são deficitárias nas pessoas com narcolepsia congênita... A
palavra que designa pesadelo em inglês “nightmare” originalmente se referia a uma
mulher demoníaca (“mare”) que durante a noite (night) sufocava que dormia deitando-se
sobre o seu peito... (também conhecida como “Old Hag” velha megera)...Ernest Jones
ressaltou que os pesadelos diferem dos sonhos comuns em sua invariável sensação de
uma presença aterrorizante, dificuldade de respirar e percepção de que está paralisado ...
Adler observou que é um estado diferente do sono ...a pessoa está acordada de um modo
parcial ou dissociado...

13) ...parece haver no cérebro um mecanismo fisiológico primário que gera ou facilita a
alucinação – um mecanismo fisiológico primário relacionado à irritação local,
“liberação”, distúrbio de neurotransmissores ... que não tem muita relação com as
circunstâncias, o caráter, as emoções, as crenças ou o estado mental do indivíduo.
...flashbacks triviais ou comoventes estão associados a convulsões dos lobos
temporais. Experiências carregadas de emoções produzem uma impressão indelével no
cérebro e o compelem à repetição ...podem ser de vários tipos luto (às vezes assumem a
forma de uma voz), traumas ...que podem também derivar de um esmagado sentimento
de culpa...O Transtorno de Estresse Pós Traumático TEPT) está associado à flashbacks,
pesadelos, ruminação obsessiva requerem medicação além de psicoterapia...Nesse grupo
da “mentes assobradas” inclui-se ainda “amigos imaginários”, alucinações propositais da
infância, vivências de êxtase religioso, exorcismos e comunicação com espíritos.

14) Doppelgängers ("duplo/réplica ambulante/andante"),autoscopia, EEC Experiências


Extra Corpóreas está associado à paralisia do sono, estados de quase morte e a convulsões
e estímulos do giro angular direito em cirurgias do cérebro em vigília.

15) Membros fantasmas e os rearranjos da imagem esquema corporal são alucinações


complexas (mais de um sentido) associadas à alterações tipo estranhamento de partes do
corpo, paresias, impressões de presença, vultos ou sombras e sensação de ser observado.

Hallucinations ...look inside: Amazon

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Na psicanálise...

... Miss Lucy, uma governanta inglesa contratada por uma família vienense, consultou
Freud em 1892, em função de uma alucinação olfativa acompanhada de crises
depressivas. Sentia-se perseguida por um cheiro de pudim queimado. Utilizando o
mesmo método empregado com Elisabeth, Freud usou a palavra recalque para mostrar
que os sintomas de sua paciente provinham do amor inconsciente que ela nutria pelo
patrão. p.206

Alucinação negativa, foraclusão, negação, renegação

O termo foraclusão foi introduzido pela primeira vez por Jacques Lacan, em 4 de julho
de 1956, na última sessão de seu seminário dedicado às psicoses e à leitura do comentário
de Sigmund Freud sobre a paranóia do jurista Daniel Paul Schreber.

Para compreender a gênese desse conceito, há que relacioná-lo com a utilização que
Hippolyte Bernheim fez, em 1895, da noção de alucinação negativa: esta designa a
ausência de percepção de um objeto presente no campo do sujeito após a hipnose. Freud
retomou o termo, porém não mais o empregou a partir de 1917, na medida em que, em
1914, propôs uma nova classificação das neuroses, psicoses e perversões no âmbito de
sua teoria da castração. Deu então o nome de Verneinung ao mecanismo verbal pelo qual
o recalcado é reconhecido de maneira negativa pelo sujeito, sem no entanto ser aceito:
“Não é meu pai.”...p. 245

Lacan inspirou-se no trabalho de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), Phénoménologie


de la perception, e sobretudo nas páginas desse livro dedicadas à alucinação como
“fenômeno de desintegração do real”, componente da intencionalidade do sujeito. P.246

... o conceito de real é inseparável dos outros dois componentes desta, o imaginário* e o
simbólico, e forma com eles uma estrutura. Designa a realidade própria da psicose
(delírio, alucinação), na medida em que é composto dos significantes foracluídos
(rejeitados) do simbólico... p. 645

Nascida em Rostov, Sabina Spielrein era de uma família judia abastada e culta. Educada
segundo princípios tradicionais, manifestou desde a infância uma imaginação
transbordante, até o dia em que foi vítima de uma alucinação: viu dois gatos ameaçadores
instalados sobre sua cômoda, o que a levou depois a ter angústias noturnas e uma fobia
por animais e doenças. p.725

Roudinesco, Elisabeth, Plon, Michel. Dicionário de psicanálise. RJ: Zahar, 1998.

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A tese de que uma “vivência de dor” é simétrica da vivência de satisfação, é logo à


primeira vista paradoxal: por que o aparelho neurônico iria repetir até à alucinação uma
dor que se define por um aumento de carga, se a função do aparelho é evitar qualquer
aumento de tensão? ... perceberíamos, a nosso ver, que a dor física como violação do
limite corporal deveria antes ser tomada como um modelo daquela agressão interna que
a pulsão constitui para o ego. Em vez de repetição alucinatória de uma dor efetivamente
vivida, a “vivência de dor” deveria ser compreendida como o aparecimento, quando da
revivescência de uma experiência que em si mesma pode não ter sido dolorosa dessa
“dor” que para o ego é a angustia. p.110 (Defesa)

Na sua primeira elaboração metapsicológica do funcionamento psíquico, Freud atribuiu


um papel de primeiro plano à noção de Ego, No projeto de uma psicologia científica, a
função do Ego é essencialmente inibidora. Naquilo que é descrito por Freud como
“vivência de satisfação”, o Ego intervém para impedir que a imagem “mnésica” do
primeiro objeto satisfatório adquira uma força tal que desencadeie um “indicador de
realidade”, tal como a percepção de um objeto real. Para que o indicador de realidade
assuma para o sujeito o valor de critério, isto é, para que a alucinação seja evitada e para
que a descarga se produza quer na ausência quer na presença do objeto real, é necessário
que seja inibido o processo primário que consiste numa livre propagação da excitação até
a imagem. Vemos assim que, embora o Ego seja o que permite ao sujeito não confundir
seus processos internos com a realidade, isso não significa que ele tenha um acesso
privilegiado ao real, um padrão ao qual comparar as representações. Este acesso direto à
realidade Freud reserva um sistema autônomo chamado de sistema de percepção “W” ou
“w” ... p.128 (Ego ou Eu)

Laplanche J. Pontalis. Vocabulário da psicanálise. SP: Martins Fontes, 2001

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Genesis 22
E aconteceu depois destas coisas, que provou Deus a Abraão, e disse-lhe: Abraão! E ele
disse: Eis-me aqui.

E disse: Toma agora o teu filho, o teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra
de Moriá, e oferece-o ali em holocausto sobre uma das montanhas, que eu te direi.

Então se levantou Abraão pela manhã de madrugada, e albardou o seu jumento, e tomou
consigo dois de seus moços e Isaque seu filho; e cortou lenha para o holocausto, e
levantou-se, e foi ao lugar que Deus lhe dissera.

Ao terceiro dia levantou Abraão os seus olhos, e viu o lugar de longe.

(Gênesis 22:1-4) ...

Então falou Isaque a Abraão seu pai, e disse: Meu pai! E ele disse: Eis-me aqui, meu
filho! E ele disse: Eis aqui o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro para o holocausto?

E disse Abraão: Deus proverá para si o cordeiro para o holocausto, meu filho. Assim
caminharam ambos juntos.

(Gênesis 22:7,8)...

E estendeu Abraão a sua mão, e tomou o cutelo para imolar o seu filho;

Mas o anjo do Senhor lhe bradou desde os céus, e disse: Abraão, Abraão! E ele disse: Eis-
me aqui.

Então disse: Não estendas a tua mão sobre o moço, e não lhe faças nada; porquanto agora
sei que temes a Deus, e não me negaste o teu filho, o teu único filho.
Então levantou Abraão os seus olhos e olhou; e eis um carneiro detrás dele, travado pelos
seus chifres, num mato; e foi Abraão, e tomou o carneiro, e ofereceu-o em holocausto,
em lugar de seu filho.

(Gênesis 22:10-13)...

Então o anjo do Senhor bradou a Abraão pela segunda vez desde os céus, E disse: Por
mim mesmo jurei, diz o Senhor: Porquanto fizeste esta ação, e não me negaste o teu filho,
o teu único filho,

Que deveras te abençoarei, e grandissimamente multiplicarei a tua descendência como as


estrelas dos céus, e como a areia que está na praia do mar; e a tua descendência possuirá
a porta dos seus inimigos;

E em tua descendência serão benditas todas as nações da terra; porquanto obedeceste à


minha voz.

(Gênesis 22:15-18)...
Bíblia Online - ACF - Almeida Corrigida
https://www.bibliaonline.com.br/acf/gn/22

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Nesse caso das visões de Abraão podemos perguntar qual comportamento foi
semelhante ao derivado de uma alucinação?

- Imaginar Deus ordenando um ordem anti-ética (contra seus próprios princípios)?

- Deus lhe salvado do filicídio (um impulso homicida) e lhe proporcionado a coragem de
ser um patriarca?

A resposta pode estar nessa ou em outra crença religiosa:

Por exemplo lê-se no Dharmapada, (caminho do Dharma) o mais conhecido e traduzido


texto budista, registrada, pela primeira vez, na forma escrita (até então, era preservada
exclusivamente por via oral) entre os anos 88 e 76 a.C., no Ceilão:

“Como na casa de bom teto, onde a chuva não entra, numa mente com
treinamento* o desejo nunca entrará". (Darmapada. 1:14)

* atenção e vigilância – darma e meditação

Darmapada, a doutrina budista em versos. Porto Alegre: L&PM, 2010


VER TAMBÉM
Silva, Regina Cláudia Barbosa daEsquizofrenia: uma revisão. Psicologia USP [online].
2006, v. 17, n. 4 [Acessado 2 Agosto 2021] , pp. 263-285. Disponível em:
<https://doi.org/10.1590/S0103-65642006000400014>. Epub 30 Set 2010. ISSN 1678-
5177. https://www.scielo.br/j/pusp/a/Vt9jGsLzGs535fdrsXKHXzb/?lang=pt

Waters F, Fernyhough C. Hallucinations: A Systematic Review of Points of Similarity


and Difference Across Diagnostic Classes. Schizophr Bull. 2017;43(1):32-43.
doi:10.1093/schbul/sbw132 https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5216859/

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Abrahams sacrifice

Rembrandt van Rijn, 1655 [wikimedia commons]


https://www.artsy.net/artwork/rembrandt-van-rijn-abrahams-sacrifice

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Disponível também, com outros textos e imagens afins em

Arte & testes gráficos


https://www.facebook.com/ArteExplicaArte/

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