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A Psiquiatria Fenomenológica: um breve histórico1

Ida Elizabeth Cardinalli

Resumo

O artigo mostra como as idéias filosóficas inicialmente explicitadas por Husserl e,


posteriormente, por Heidegger foram aplicadas e desdobradas nos estudos psiquiátricos e
apresenta como a Fenomenologia foi compreendida pelos autores mais representativos da
Psiquiatria fenomenológica. No final, demonstra que a utilização do “método
fenomenológico” na Psiquiatria não corresponde à explicitação filosófica husserliana e
heideggeriana em sua totalidade.

Palavras-chave: Heidegger, Husserl, Psiquiatria fenomenológica

Abstract

The article shows how the philosophical ideas, initially explained by Husserl and
later on by Heidegger, have been applied and extended to the psychiatric studies, and also
presents how phenomenology has been understood by the most representative authors of
phenomenological Psychiatry. Finally, it demonstrates that the application of the
“phenomenological method” in Psychiatry does not entirely correspond to the husserlian
and heideggerian philosophical propositions.

Key words: Heidegger, Husserl, Phenomenological Psychiatry

I - Introdução

A apresentação do histórico do que é denominado, no sentido genérico, Psiquiatria


Fenomenológica foi organizada considerando os autores mais representativos dos três
momentos da Psiquiatria fenomenológica, descritos por Ellenberger2, visando a destacar os

1
Palestra apresentada na Associação Brasileira de Daseinsanalyse em 25-9-01.
2
Ellenberger, no texto Introduccion clínica a la fenomenologia psiquiátrica y analisis existencial, distingue
três etapas na Psiquiatria fenomenológica, denominando os estudos psicopatológicos de Jaspers como
Fenomenologia descritiva, os trabalhos de Minkowski e Von Gebsattel como Fenomenologia genético-

1
questionamentos compartilhados por estes pensadores e, também, assinalando algumas das
diferenças de posição assumidas por estes estudiosos.

Estes pesquisadores encontraram, num primeiro momento, no pensamento de


Husserl e, num segundo, no de Heidegger elementos para que seus estudos dos fenômenos
patológicos não mais ficassem restritos ao modelo de pesquisa da Ciência Natural. Eles
encontraram no pensamento filosófico fenomenológico e existencial uma possibilidade de
compreender as doenças na sua especificidade humana. Estes estudos apresentam, também,
a influência de outros filósofos como Dilthey e Bergson, conforme será mostrado
oportunamente.

Segue-se uma breve apresentação do pensamento de importantes teóricos da


Psiquiatria Fenomenológica.

II - A Psiquiatria Fenomenológica

1. Karl Jaspers é considerado como o primeiro pesquisador que aplica a


fenomenologia husserliana aos estudos psicopatológicos. Ele esclarece que emprega a
palavra fenomenologia no primeiro sentido explicitado por Husserl, isto é, como uma
“‘psicologia descritiva’ dos fenômenos da consciência” (Jaspers 2000, p.71), e não no
sentido pleno do conceito husserliano da fenomenologia eidética, que visa à essência dos
fenômenos. Assim, quando transpõe a fenomenologia husserliana para o campo da
Psicopatologia, visando ao esclarecimento da “vivência psíquica individual” dos pacientes
(Jaspers 2000, p.71), este autor utiliza-a num sentido mais restrito do que o pretendido por
Husserl, pois ele estabelece, inicialmente, os seguintes objetivos para seus estudos:
À fenomenologia compete apresentar de maneira viva, analisar em suas
relações de parentesco, delimitar, distinguir de forma mais precisa
possível e designar com termos fixos os estados psíquicos que os
pacientes vivenciam (op. cit.).

A fenomenologia, segundo Jaspers, pretende tanto captar a vivência do paciente


psiquicamente doente, isto é, aquilo que é “vivido diretamente pelo paciente”, quanto

estrutural e os estudos de Binswanger, Straus, Fischer e, também, alguns trabalhos de Minkowski e Von
Gebsattel como Fenomenologia categorial. (Cf. May et al. 1977, pp. 123-160).

2
descrever de “maneira viva os estados psíquicos que os pacientes vivenciam”, conforme ele
afirma:
O importante na fenomenologia é, portanto, exercer a visão pregnante do
que é vivido diretamente pelo doente, a fim de poder reconhecer o que há
de idêntico dentro da multiplicidade (Jaspers 2000, p.73).

A fenomenologia descritiva, a primeira aplicação da fenomenologia às


investigações psiquiátricas, é definida por Jaspers como uma “descrição cuidadosa e exata
das experiências subjetivas dos doentes mentais, num esforço por ‘sentir empatiar’3
(einfühlen) o mais intimamente possível com as experiências do paciente” (Ellenberger
1977, p.129).

Ao mesmo tempo, ele esclarece que o seu trabalho não é um representante estrito da
corrente fenomenológica4, pois é também uma psicopatologia compreensiva. Aqui Jaspers
utiliza a distinção de Dilthey entre o “explicar” e o “compreender”, conforme mostra
Pereira5:
Jaspers, esse discípulo de Husserl, retoma a clássica distinção introduzida
por Dilthey, entre ‘explicar’ (Erklären) e ‘compreender’ (Verstehen).
Preocupado em definir os métodos próprios a cada Ciência, Dilthey
concebia a explicação como o procedimento essencial da ciência da
natureza. Já as ciências do espírito, incapazes de conferir a mesma
precisão a seus objetos, deveriam esforçar-se para estabelecer as conexões
de sentido entre os fenômenos sutis do espírito, de modo a tornar
acessível sua lógica interna (Pereira, 2000 b, p.6).

Quando Jaspers diz que sua Psicopatologia é também uma Psicologia


Compreensiva, ele pretende ir além da mera descrição fenomenológica da vivência dos
pacientes, visando a esclarecer o que ele denomina “conexões do psiquismo”. (Jaspers
2000, p.361). No esclarecimento das conexões do psiquismo, ele estabelece uma distinção
entre o modelo de causalidade da Ciência Natural, que é denominado “explicação causal de
fora”, e da “causalidade de dentro”. A primeira, a explicação causal de fora, é aquela que

3
Segundo Jaspers, a empatia é uma atitude ou uma disposição do psiquiatra em relação à experiência do
paciente, que permite a apreensão íntima do que é vivido pelo paciente.
4
Jaspers diz no prefácio da sétima edição do seu livro Psicopatologia Geral que “(...) o meu livro é, por
vezes, designado como representante da corrente fenomenológica ou da corrente compreensiva, só em parte
esta designação é correta, uma vez que o seu sentido é mais compreensivo” (Jaspers 2000, p. VII).
5
PEREIRA, M. E. C. (2000) “Sobre o estado atual e o futuro da psicopatologia: introdução a uma
Psicopatologia Fundamental”, texto não publicado, apresentado nos Estados Gerais da Psicanálise, Paris,
Sorbonne.

3
estabelece as conexões de determinação causal, isto é, que visa a identificar e explicar
objetivamente a regularidade entre os fatos. A segunda, “a explicação de dentro”, é
denominada compreensão genética e pretende esclarecer como um evento psíquico é
seguido por outro; assim, busca compreender, por exemplo, os seguintes fenômenos: as
reações vitais, o desenvolvimento das paixões, o conteúdo do sonho, o delírio, etc.
O autor não nega que os fenômenos humanos possam ser estudados através do
modelo explicativo causal; no entanto, ele ressalta que as dimensões efetivamente humanas,
as dimensões psíquicas, são mais bem esclarecidas pela compreensão genética.
O entendimento do fenômeno patológico, proposto por Jaspers, pode ser ilustrado
através do relato da experiência de um paciente esquizofrênico-catatônico descrito por
Kronfeld:

Durante o período de excitação não sentia exaltação (frenesi), nem sequer


um humor particular, fora de um prazer puramente animal que
experimentava em me mover. Não a excitação maligna de quem vai
cometer um assassinato; longe disso! Era totalmente inocente. Mas o
impulso era tão forte que não podia deixar de pular. Só posso me
comparar nestes momentos com um urso selvagem, ou um cavalo. Sentia
também uma euforia, um vigor, um prazer de viver que eu nunca tinha
sentido com tanta intensidade. Minha lembrança dos ataques de excitação
geralmente é lúcida, só que não consigo lembrar do começo do ataque.
Um estímulo externo, como um piso frio pode acordar uma pessoa e
devolvê-la a seu estado consciente. Então, ela se sente orientada e vê
tudo, mas não dá importância e deixa a excitação sem freio ou limite.
Sobretudo, não presta atenção nas pessoas, embora as veja e as ouça. Por
outro lado, está muito atenta em não cair. Quando a detêm e a colocam na
cama, surpreende-se do quão repentina foi a mudança, sente-se ofendida e
se defende. Então, a descarga do sistema motor, em vez de fazê-la pular, a
faz socar tudo ao seu redor, mas não em sinal de irritação. Não tem
concentração mental. Às vezes, o adverte um momento de lucidez. Nem
sempre! Mas, então, nota que é incapaz de construir uma frase ... Para
mim é como se todo esse período fosse de decomposição... Com tudo
isso, nunca tive o sentimento de perplexidade, nem de deficiência; nunca
senti que eu tivesse alguma perturbação, mas, sim, que fora de mim
estava o caos. Nunca tinha ansiedade. Todavia, lembro dos exercícios que
fazia no banho e como trepava... Lembro que, em algumas tardes, fazia
com freqüência grandes discursos, mas não lembro sobre o quê: tudo
fugiu da minha memória..., pensamentos confusos, pensamentos tão
pálidos e vaporosos, nada definido... (Ellenberger 1977, p. 130).

4
Vê-se que esta descrição difere da análise dos estados psicopatológicos em termos
de sintomas, síndromes e entidades patológicas, pois o psiquiatra concentra seu interesse
“na experiência subjetiva do paciente e se esforça para compreender seu estado de
consciência, com a finalidade de estabelecer o contato possível com ele” (Ellenberger 1977,
p. 130).

É importante salientar que, após o trabalho de Jaspers, a pesquisa psiquiátrica


incluiu o estudo fenomenológico dos estados de consciência, além do estudo clínico dos
sintomas objetivos, das síndromes e das entidades patológicas. E, deste modo, este autor
influiu na psiquiatria européia, inclusive nas pesquisas psiquiátricas de muitos autores que
não seguiram o caminho estrito da Fenomenologia.

Vê-se que a primeira tentativa de aplicação da fenomenologia para o estudo das


patologias humanas, a Psicopatologia de Jaspers, apresenta determinados pontos que
permaneceram em outros estudos da Psiquiatria fenomenológica, apesar de serem
desenvolvidos de outros modos, tais como: 1 - a busca de fundamentos filosóficos mais
pertinentes à compreensão do ser humano e das patologias humanas do que os oferecidos
pelo modelo da Ciência Natural, 2 - o questionamento do modelo explicativo causal da
Ciência Natural para o estudo dos fenômenos humanos, buscando outras formas de
explicação e/ou compreensão para as patologias psíquicas, que na teoria de Jaspers é
proposta como uma compreensão genética dos fenômenos psíquicos, 3 - a consideração de
que a posição fenomenológica oferece elementos para o esclarecimento e a descrição das
experiências dos pacientes, 4 - a procura da descrição do que é vivido e experienciado pelo
próprio paciente.

2. Diferentes estudiosos, tais como Minkowski e Von Gebsattel, seguiram os passos


de Jaspers. Os estudos destes autores são denominados Fenomenologia genético-estrutural,
porque eles consideram ser necessário, além da descrição das vivências do paciente, o
esclarecimento das conexões e das inter-relações das vivências em cada patologia mental,
por meio da identificação de uma estrutura que organiza essas vivências perturbadas do
paciente.
Ao procurar descrever o transtorno gerador através do qual pode ser deduzido o
conteúdo da consciência e os sintomas do paciente, Minkowski desenvolve uma análise
5
estrutural dos fenômenos patológicos. Ele não considera que uma síndrome é uma simples
associação de sintomas, mas, sim, “a expressão de uma modificação profunda e
característica da personalidade inteira”. Como atrás do sintoma e da síndrome existe
sempre uma personalidade inteira, o autor vê a necessidade de se penetrar nos sintomas até
chegar à “personalidade viva” (Minkowski 1973, p. 209).
Minkowski e Von Gebsattel, por exemplo, nas investigações das vivências dos
pacientes melancólicos, assinalam que o transtorno básico nestes pacientes está relacionado
à experiência do tempo e, assim, consideram que os outros sintomas da melancolia devem
ser entendidos a partir desta experiência básica do tempo. Eles assinalam que os
melancólicos não experienciam o tempo “como uma energia propulsiva”, mas vivenciam
um refluxo da corrente do tempo. Deste modo, para estes pacientes, o futuro é percebido
como bloqueado, a atenção do paciente se dirige ao passado, e o presente é sentido como
estancado.
Minkowski baseia seus estudos no pensamento de Bergson, quando situa o tempo
vivido como a dimensão fundamental para o estudo das vivências patológicas. Para
Bergson, “a vida é um elã vital, uma onda e uma força que vão se organizando em formas
progressivas, sempre mais perfeitas, que se realizam no breve espaço de tempo daquele
organismo particular” (Rossi 1996, p.290). O tempo não é o cronológico, do relógio ou do
calendário, pois “o tempo vivido, na realidade, é duração. É sempre em si mesmo
essencialmente diferente, incomensurável, qualitativamente heterogêneo, intrinsecamente
qualitativo” (Rossi 1996, p. 291).
Minkowski dedica-se longamente ao estudo da esquizofrenia e conclui que a
perturbação básica desta patologia aparece na perda do contato vital com a realidade. A
partir da noção do autismo, percebe a perda do contato vital com a realidade como a
perturbação essencial da esquizofrenia (Minkowski 1973, p.254).
Quando utiliza a noção de impulso vital para os seus estudos da esquizofrenia, o
autor analisa como os princípios6 bergsonianos aparecem na vivência esquizofrênica,
concluindo que “a categoria que entra em crise nesta perda de realidade é a temporalização”

6
Para Bergson, na vida há dois princípios em oposição: “A inteligência e a intuição, o morto e o
vivo, o imóvel e o fluente, o ser e o acontecer, o espaço e o tempo vivido que são os diferentes
aspectos sob os quais se manifesta esta oposição fundamental” (Minkowski 1973, p. 254).
6
(Minkowski 1973, p.254), isto é, o tempo não é percebido como uma continuação ou
duração criadora.
Von Gebsattel procura estabelecer as relações entre as perturbações biológicas e
psicológicas, intituladas investigações construtivo-genética. Ele desenvolve também um
estudo sobre o mundo dos neuróticos compulsivos7, chamado teoria estrutural
fenomenológica-antropológica, em que diz que o mundo do compulsivo carece de formas
amistosas, inofensivas ou indiferentes. O mundo todo tem um caráter fisionômico, em que
todos os objetos se mostram em decomposição e deterioração e, assim, as coisas parecem
feias, sujas, repulsivas e repugnantes. Deste modo, ele assinala que o paciente não luta tanto
contra coisas repulsivas quanto contra um clima geral repelente, isto é, contra um mundo de
formas decadentes e de poderes destrutivos. O autor conclui, em última análise, que este
mundo é o resultado de um tipo concreto de obstaculização contra a auto-realização.

3. Os primeiros trabalhos de Binswanger foram fortemente influenciados pela


fenomenologia husserliana, e apenas os seus trabalhos posteriores revelam a presença do
pensamento heideggeriano.
Na primeira etapa, quando Binswanger se dedica ao estudo fenomenológico das
doenças psíquicas, ele diferencia a Psiquiatria Fenomenológica da proposta da
fenomenologia husserliana, que visa à captação da essência dos fenômenos. Ele esclarece
que esta, apenas oferece conceitos básicos que fomentam o esclarecimento da investigação
fenomenológica da psicopatologia8.
Para Binswanger, a perspectiva fenomenológica difere também da Psicopatologia
clássica e da Psicanálise, pois estas utilizam a observação e a descrição das vivências do
paciente como elementos para elaborar uma teoria que explique os sintomas do paciente. A
perspectiva fenomenológica pretende, prioritariamente, captar a vivência íntima,
penetrando nas significações e no próprio fenômeno anormal através da expressão
lingüística do paciente, como o autor esclarece na seguinte citação:
O fenomenólogo, ao analisar a vivência patológica, contempla-a, em
primeiro termo, não como modo (espécie) conceitualmente fixado de um

7
Este estudo é apresentado de modo condensado, sob o título “ El mundo de los compulsivos”, no livro
Existencia (Cf. May, R. et al. 1977, pp. 212-234).
8
Cf. Binswanger. Sobre fenomenologia [1922]. In Artículos y Conferencias Escogidas. Madrid, Gredos,
1973.

7
gênero psicopatológico, a fim de refletir sobre ela e continuar elaborando,
mas procura adaptar-se às significações que a expressão lingüística do
enfermo suscita nele e busca penetrar no próprio fenômeno anímico
anormal indicado pela linguagem (Binswanger [1922] 1973, p.44).

Num segundo momento, quando Binswanger utiliza o pensamento heideggeriano


para o estudo psiquiátrico, ele inaugura um modo novo de abordar o fenômeno patológico,
denominado existencial ou daseinsanalítico. Binswanger é o primeiro estudioso a perceber
que as idéias heideggerianas, contidas em Ser e Tempo (1927), podem contribuir para o
estudo dos fenômenos patológicos. Assim, ele modifica o seu foco de estudo da
compreensão das vivências patológicas do paciente, relativas aos estados da consciência,
para a explicitação da existência ou, mais especificamente, para o projeto de mundo do
paciente.
O autor esclarece que a sua análise existencial não pretende estabelecer teses
ontológicas e, sim, afirmações ônticas, isto é, “declarações de achados efetivos sobre
formas e configurações da existência tal como se apresenta na realidade” (Binswanger
1947, p.236).
Segundo Binswanger, as teses heideggerianas sobre a existência, como ser-no-
mundo, permitem superar a velha dicotomia sujeito e objeto. Assim, ele diz: “somente
graças ao conceito de transcendência do ser-no-mundo pode-se superar o defeito fatal de
toda a Psicologia (...), esse defeito fatal a que me refiro é a teoria da dicotomia do mundo
em sujeito e objeto” (op. cit., p. 237).
Os estudos binswangerianos são intitulados Fenomenologia categorial, por
Ellenberger, uma vez que o mundo dos pacientes é descrito segundo categorias, tais como:
temporalidade, espacialidade, causalidade e materialidade. Quando Binswanger e outros
pesquisadores descrevem as experiências dos pacientes, baseados nestas categorias, eles
não se atêm, como é habitual na Psiquiatria clássica, em identificar a desorientação
temporal ou espacial do paciente. Eles procuram observar como os pacientes experienciam
o tempo ou o espaço. Na causalidade, é focalizado o entendimento do paciente sobre o que
determina as suas experiências, isto é, se o paciente compreende que suas experiências
ocorrem ao acaso ou de acordo com uma determinação imutável, como é freqüente na
experiência dos depressivos. A materialidade, por sua vez, refere-se à qualidade do que se

8
apresenta no mundo do paciente, por exemplo, se as coisas e o mundo aparecem fluidas,
claras, iluminadas, ou pesadas, sombrias, escuras.
Para Binswanger, o conhecimento da estrutura da existência, explicitada por
Heidegger, fornece uma chave sistemática para a investigação imediata da análise
existencial. Ele busca o esclarecimento da existência dos pacientes, baseado nos existencias
ontológicos heideggerianos, conforme mostra a citação:
Sabemos que temos de verificar o tipo de espacialidade e temporalidade,
de iluminação e disposição; a configuração, matéria e movimento da
concepção do mundo através da qual se orienta uma forma determinada
de existência ou sua configuração individual (Binswanger 1947, p.246).

Assim, Binswanger compreende as patologias como flexões da estrutura ontológica


do ser-aí, e os sintomas não são vistos como fenômenos isolados, mas, sim, como
pertencentes a um todo “no sentido da unidade de um desenho do mundo” (op. cit., p.251).
A Psiquiatria daseinsanalítica de Binswanger foi duramente questionada por
Heidegger, conforme podemos verificar nos Seminários de Zollikon, especialmente nos
Diálogos de 8 de março de 1965 e de 23 e 26 de novembro de 1965. As críticas
heideggerianas da posição de Binswanger podem ser desdobradas em alguns
questionamentos, dos quais apenas dois serão citados.
A primeira crítica, que é a mais conhecida, refere-se ao fato de Binswanger
pretender corrigir a ontologia heideggeriana, quando ele acrescenta o fenômeno ôntico
amor à estrutura ontológica do Dasein, denominada cuidado (Sorge). Heidegger assinala
que o cuidado no sentido ontológico denomina a totalidade estrutural do Dasein, uma vez
que o cuidado caracteriza a existencialidade, a facticidade, a decadência e a unidade destas.
Assim, do ponto de vista heideggeriano, é necessário diferenciar o cuidado no
sentido da explicitação ontológica da totalidade estrutural do Dasein, do sentido ôntico de
cuidar ou descuidar de si mesmo e de outros. Para Heidegger, o cuidado não pode ser
comparado e completado com o fenômeno ôntico, amor, pois “enquanto totalidade
originária de sua estrutura, a cura (cuidado) se acha, do ponto de vista existencial a priori,
‘antes’ de toda atitude e ‘situação’ da pre-sença (Dasein)” (Heidegger 1988, p.258).
Heidegger esclarece que o amor, entendido de modo antropológico, é considerado
de modo igualmente decisivo na compreensão do ser como cuidado. Segundo o filósofo,
entretanto, o maior problema da posição assumida por Binswanger refere-se ao fato de

9
mostrar que o psiquiatra não percebeu que a “analítica do Dasein pergunta pela constituição
fundamental ontológica e não quer simplesmente descrever fenômenos ônticos do Dasein”
(Heidegger 2001, p.142).
O segundo questionamento de Heidegger assinala que a ontologia fundamental é
eliminada da Psiquiatria daseinsanalítica binswangeriana, quando estabelece a ontologia
fundamental como uma dimensão separada da sua psiquiatria daseinsanalítica, uma vez que
Binswanger compreende o ser-no-mundo e a transcendência do Dasein como fenômenos
ônticos independentes da relação do Dasein com o ser (op. cit., p. 238).
Esta segunda crítica heideggeriana refere-se tanto à posição de Binswanger, que já
foi apresentada, de acrescentar o amor ao cuidado, como também à sua proposta para o
arcabouço do “Edifício da Psiquiatria como ciência”. No artigo “De la dirección analítico
existencial de la investigação em Psiquiatria”9, o autor assinala:
“A análise existencial se edifica sobre a analítica existencial, de certo modo,
como uma planta baixa”, ou, “sobre o primeiro piso do edifício psiquiátrico
da psicopatologia e da biopatologia (...), se levanta agora o da psico e
somato-terapia ...” (Binswanger 1946, p.451).

4. Outros psiquiatras e psicanalistas, como Straus, Kuhn, Van den Berg, Buytendijk,
Boss, foram estimulados pelos estudos binswangerianos a se aproximarem das idéias de
Heidegger para o estudo das patologias físicas e psíquicas. No entanto, os estudos de
Medard Boss10 não podem ser vistos meramente como uma continuidade das idéias de
Binswanger, uma vez que ele introduz modificações significativas ao pensar as patologias
segundo a orientação do próprio Heidegger.
A obra de Boss revela que seu interesse prioritário está voltado para o âmbito
psicoterápico e não para o da elaboração de um tratado psicopatológico, mesmo quando
busca compreender os modos patológicos de o homem realizar o seu existir.
Para o autor, anteriormente à caracterização das patologias, é necessário esclarecer
os fundamentos a partir dos quais cada ciência pensa o homem. Ele questiona as teorias
psicológicas e psiquiátricas que mantêm os fundamentos da Ciência Natural. Considera,
também, que a ontologia heideggeriana oferece elementos mais adequados para o estudo do

9
BINSWANGER, L. (1973) Artículos Y Conferencias Escogidas, Ed. Gredos.

10
homem, pois permite priorizar as dimensões humanas no estudo dos modos saudáveis e
patológicos do existir do homem.
A explicitação do existir humano como Dasein e ser-no-mundo, segundo Boss,
propicia o esclarecimento da natureza existencial dos fenômenos patológicos e permite
compreendê-los como manifestações específicas do ser humano.
Nesta perspectiva, as patologias não são pensadas isoladamente e separadas do
existir humano. Não há simplesmente uma doença compreendida isoladamente nela mesma.
Assim, Boss inova a compreensão habitual das doenças humanas, ao pensá-las como
modalização do existir. Elas são maneiras de o homem realizar o seu existir, que, ao mesmo
tempo, revelam alguma restrição em sua realização.
Holzhey-Kunz situa a diferença entre a Psicopatologia daseinsanalítica de
Binswanger e de Boss em relação ao desdobramento da noção de ser-no-mundo realizado
pelos dois estudiosos. Binswanger preocupa-se com o esclarecimento da patologia a partir
do esboço de mundo dos pacientes, enquanto Boss enfatiza o mundo como possibilidade
para ser. Neste sentido, Boss evita o conceito de esboço de mundo e, em seu lugar, são
usados os termos “âmbito de abertura e clareira de mundo” (Cohn 1997, p. 18).

Esta diferenciação pode ser observada nos textos dos dois autores, quando
Binswanger se dedica à caracterização e à descrição do mundo dos pacientes, como vemos,
por exemplo, o mundo do esquizofrênico, dos compulsivos, etc. Boss, por sua vez, visa à
caracterização e descrição dos modos de existir, sejam estes saudáveis ou patológicos,
como por exemplo, o modo de existir esquizofrênico.

Finalmente, enfatizamos a importância do estudo e da discussão dos autores da


Psiquiatria fenomenológica ou existencial, visando ao esclarecimento das especificidades,
das semelhanças e das diferenças de cada posição, e não à destruição dos trabalhos dos
autores mais antigos, uma vez que o aprofundamento e o esclarecimento das idéias destes
autores permitem, sobretudo, repensar os fenômenos patológicos.

10
Medard Boss é considerado o mais fiel seguidor da proposta de Heidegger para os campos da Psicologia e
da Psicopatologia, pois seu trabalho é o resultado de um trabalho realizado em conjunto com o filósofo,
conforme pode ser verificado nos Seminários de Zollikon.

11
Bibliografia

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al. (1967). Existencia. Madrid, Ed. Gredos, pp. 235-261.

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Publications.

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Gredos.

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