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Alimentação, sobre mediação e indústria


cultural
10/ 10/2020 POR MARCIA TIBURI

Seres humanos são seres que habitam um mundo próprio situado na


intersecção entre a natureza e a cultura. Esse é o mundo da linguagem. Ser
humano significa habitar esse espaço criativo e recreativo, analítico e
comunicacional no qual acontece a construção da cultura em geral.

Quando falamos em linguagem e cultura, temos muitas vezes a sensação de


que nos distanciamos da natureza. Essa impressão tem algo de verdadeiro e
algo de falso. De fato, nos distanciamos cada vez mais da natureza em função
das formas de vida desenvolvidas ao longo das eras e épocas históricas. Mas,
por outro lado, continuamos alienados da natureza. A alienação não quer
dizer que estamos longe dela, mas que a abandonamos dentro da nossa
própria casa, em nossos corpos, em nossas vidas. E passamos a ter uma
relação danificada e conspurcada com ela.

O abandono da natureza é um processo subjetivo, que diz respeito às


instâncias afetivas, emocionais e conceituais, mas também à experiência que
temos com os nossos corpos. A subjetividade é a forma pela qual nos
entendemos, ela diz respeito ao campo do cotidiano nos quais estabelecemos
trocas com outras pessoas, com instituições, mas também com o olhar dos
outros, com o desejo dos outros, com o que somos e o que podemos nos
tornar.

O abandono da natureza é também um processo objetivo. No nosso cotidiano


urbano, a natureza foi deixada de lado, mas também foi transformada em
mercadoria. Se de um lado muitas cidades se constroem e se desenvolvem
totalmente avessas ao ambiente natural, muitas vezes destruindo rios e
matas de maneira impiedosa, por outro lado, áreas verdes e parques, se
tornam tão cobiçados quanto raros e passam a ser tratados como
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“commodities”. A relação que a maioria das pessoas e instituições desenvolve
OK
com a natureza é uma relação de dependência, mas não uma relação ética. A
relação de abandono que se tem com a natureza, quando a esquecemos e a
deixamos de lado, anda junto a uma relação de coisificação na qual a
natureza é reduzida à mercadoria.

O alimento é meio de comunicação, de expressão, de


construção de desejos comuns, de mundos humanos. É um
elemento simbólico, que constrói laços, que é político.

A relação humana com as mercadorias é uma relação que tende a não ser
ética, porque a mercadoria é, para nós, sempre uma coisa que pode ser usada
ou consumida e descartada. No século XVIII, Kant já dizia que a diferença
entre seres humanos e coisas estava no fato de que coisas tem preços e
pessoas não tem preço, mas tem dignidade. Um pouco mais tarde, no século
XIX, Marx, falou de “fetiche” para explicar o caráter abstrato da mercadoria
sobre a qual paira o desejo humano manipulado pelos poderes econômicos
que nunca agem sozinhos. Mas a natureza não é uma pessoa e também não
deveria ser vista como uma coisa. Por isso, precisamos compreender melhor
que lugar a natureza pode ocupar nas nossas vidas.

Em termos de história, o ápice do distanciamento em relação à natureza está


na industrialização seguida da pós-industrialização que experimentamos
hoje na era digital. A alienação para com a natureza, não significa, contudo,
que não tenhamos nenhuma relação com ela. Ao contrário, quer dizer que
temos uma relação alienada, ou seja, perturbada, estranha e ainda não
suficientemente elaborada.

Parte dessa relação alienada diz respeito à alimentação. O alimento que para
muitos ainda é considerado sagrado, como para os povos ameríndios, foi
rebaixado à mercadoria pelas sociedades industriais e urbanas. Nesse
contexto, o agronegócio vem se constituindo como uma verdadeira
deturpação da produção alimentar. Não é por acaso que enquanto o
agronegócio cresce, a fome no mundo também cresce. É o neoliberalismo em
ação no seu gesto habitual de devorar o mundo e, desse modo, de produzir
uma
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LER O da.PTavareza
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O agronegócio e a indústria alimentícia fazem parte do que podemos chamar
de Indústria Cultural da Alimentação. Nessa indústria, o alimento é o centro
dos interesses dos mais diversos poderes econômicos e políticos. A
alimentação é transformada em dispositivo do mercado. Não mais um direito
humano fundamental a ser assegurado a todos os seres humanos, não mais
um elemento sagrado contra a ignomínia da fome. O alimento é reduzido à
fetiche nas modas alimentares associadas à questões de classe. Podemos nos
perguntar o que comem os ricos e o que comem os pobres e entenderemos
que lugar o alimento ocupa na desigualdade de classes. Reduzido à coisa, a
objeto, o alimento é sequestrado por empresas e governos que não tem
limites éticos e nem políticos na produção de agrotóxicos e na expropriação
das sementes, elas mesmas fonte do saber natural que deveria ser respeitado
por todos os seres humanos e por todas as culturas como conhecimento da
humanidade.

Nesse sentido, devemos nos preocupar com políticas da alimentação, mas


também com a ética da alimentação. Se por um lado, é preciso que governos
estejam engajados em formas mais saudáveis de produção alimentar e ao
direito à alimentação para além dos controles da indústria e do mercado, por
outro lado precisamos compreender em que sentido a alimentação está
presente em nossas vidas.

O alimento não deveria ser tratado como uma coisa e reduzido à mercadoria.
Se seres humanos são seres de linguagem e de cultura, isso quer dizer que o
alimento também faz parte dessas esferas. Nesse sentido, o alimento é uma
mediação fundamental. Em resumo, o alimento é parte da linguagem, ele é
um operador de partilhas as mais diversas. Por meio da alimentação, não
apenas saciamos a nossa fome. Mas quando a saciamos, nos sentimos
humanos e integrados ao mundo também em um nível simbólico, pois na
fome parece que toda a dignidade humana foi destruída.

Para além da fome, o alimento é elemento de rituais, sejam religiosos, em que


se comemora a fartura, em que se faz a oferenda, mas também o meio em
torno do qual pessoas confraternizam, divertem-se, fazem amigos. O
alimento é meio de nutrição do nosso corpo e cada vez mais um mediador
das ciências, como, por exemplo, no campo da nutrição. Como somos seres de
linguagem e de cultura, e quando estamos livres da fome que atinge ainda
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uma imensa parte da população mundial,


OK
o alimento é mediação para as
mais diversas atividades, inclusive da diversão e do entretenimento. Que o
alimento seja mediação quer dizer que ele é meio de comunicação, de
expressão, de construção de desejos comuns, de mundos humanos. Alimento
é um elemento simbólico, que constrói laços, que é político, não é por acaso
que a Indústria Cultural da Alimentação o reduz à coisa para ter poder sobre
ele e, assim, sobre os sujeitos humanos.

A alimentação danificada e sequestrada que temos hoje, devido ao


agronegócio e à indústria cultural da alimentação, participa da relação
alienada que temos com a natureza. Contudo, a alimentação pode ser
retomada como um elo entre a linguagem e a cultura humana com a
natureza. A alimentação pode ser o caminho para construirmos um outro
mundo possível. Por isso a luta pela soberania alimentar, pela agricultura
familiar e pelo direito dos povos à terra na qual cultivar alimentos para um
mundo melhor é também a luta pela dignidade da condição humana junto à
natureza da qual sempre faremos parte na posição de seres que a destroem
ou na posição de seres capazes de gratidão prática em relação à vida que nos
foi legada e de cujo caráter sagrado não devemos nos alienar.

Original da Revista Soberania Alimentaria

MARCIA TIBURI

Escritora e filósofa brasileira, professora da Universidade Paris 8

 OPINIÃO
 AGRICULTURA , ALIMENTAÇÃO, CAPITALISMO, DIREITOS HUMANOS , ECOLOGIA , MUNDO
RURAL
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 A ESTRATÉGIA “DO PRADO AO PRATO” OBRIGA-NOS A PENSAR O FUTURO SEM MEDO
OK
 PELA SOBERANIA ALIMENTAR: VAMOS PRODUZIR, COMPRAR E COMER LOCALMENTE

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