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Espaço, gênero e poder:


conectando fronteiras

Joseli Maria Silva


Augusto Cesar Pinheiro da Silva

Organizadores

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SUMÁRIO

Apresentação
Joseli Maria Silva
Augusto Cesar Pinheiro da Silva

Prefácio
Tovi Fenster

Parte I  Espaço escolar, gênero e sexualidades

A escola como questionadora de um currículo homofóbico


Lúcia Facco

Borrando fronteiras: uma visão ampliada entre sexualidades e escolas


Cláudia Reis dos Santos

Questões de género e orientação sexual em espaço escolar


Eduarda Ferreira

Questões de género e orientação sexual em dois estudos de caso sobre


educação sexual no ensino básico em Portugal
Maria João de Jesus Duarte Silva, Cláudia Abrantes, Ana Carina Dias e
Raquel Magalhães

Parte II  Espaços generificados e poder

Colocando gênero na geografia: política e prioridades


Janice Monk

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Geometrías asimétricas del poder en geografía feminista: cuestionando
la hegemonía anglosajona
Maria Dolors García-Ramon

Género y violencia: una ostentación de género en cada concepto


Diana Lan

Geografia e gênero em assentamentos rurais: espaços de poder


Maria das Graças Silva Nascimento Silva

Mulheres e trabalho: novos e velhos dilemas


Susana Maria Veleda da Silva

Mães solteiras que estudam em Aotearoa, Nova Zelândia: uma política


de espaço paradoxal
Robyn Longhurst, Darrin Hodgetts e Ottilie Stolte

Parte III  Geografia, gênero e sexualidades

Os desafios para a expansão da geografia das sexualidades no Brasil e os


limites do diálogo científico internacional
Joseli Maria Silva

O que foi, terá sido? A geografia a partir do queer


David Bell

Epistemologias transnacionais da geografia das sexualidades


Jon Binnie

Território descontínuo e prostituição travesti no sul do Brasil


Marcio Jose Ornat

Cidades e (homo)sexualidades: heterotopias e constelações lésbicas e


gays em espaços urbanos
Paulo Jorge Vieira

Sobre os autores

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APRESENTAÇÃO

Essa publicação científica é a síntese de uma longa história de


superação de limites culturais, linguísticos e científicos no processo de
construção do saber geográfico em torno das relações entre espaço, gênero e
sexualidades. É o resultado de um desafio que a geógrafa Tovi Fenster, então
presidente da Seção de Gênero da União Geográfica Internacional (UGI),
realizou para nós, geógrafos latino-americanos, no ano de 2008. Neste ano
estava sendo promovido, na Tunísia, o encontro geral da referida entidade
geográfica, que tem como objetivo congregar pesquisas de geógrafos de todo
o planeta. Como a geografia latino-americana estava ainda pouco permeável
aos estudos de gênero e sexualidades, resolvemos tentar um diálogo na
esfera internacional, buscando interlocução para nossas pesquisas, a fim de
superar o contexto cultural e científico nacional ainda desfavorável ao
campo que estudamos.
Fizemos então nosso primeiro contato com a comissão organizadora
do evento da UGI, quando nos deparamos com uma configuração geopolítica
do conhecimento geográfico que tornava impossível nossa participação no
referido encontro. O alto valor cobrado pela inscrição, baseado em euros, e a
restrição das línguas oficiais  apenas o inglês e o francês  para a
comunicação entre pesquisadores colocavam boa parte dos geógrafos da
América Latina como excluídos de um encontro que se pretendia
internacional. A internacionalização do conhecimento geográfico se dava,
em realidade, entre geógrafos oriundos de países ricos, que definiam as
agendas científicas para a geografia mundial, pouco abertos ao diálogo que
pressupõe aceitação das diferenças entre os diversos espaços que compõem o
mundo científico globalizado.
Diante desses limites, fizemos nossas reivindicações com base nas
especificidades geográficas, que não tinham sido consideradas no formato do
encontro da UGI e que, a nosso ver, deveriam ser contempladas, justamente

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por se tratar de um evento da geografia, uma ciência que tem compromisso
com a compreensão da diferenciação espacial e com seus mecanismos de
exclusão. Nesse sentido, formulamos as seguintes perguntas aos
organizadores: 1. Se o objetivo de um evento da UGI é suscitar o diálogo
científico entre os geógrafos do mundo, por que ele não se adapta às
diferenças financeiras dos países, pelo menos no que diz respeito aos custos
de inscrição? Afinal, cada unidade de euro custa muitas unidades de moeda
nacional em contextos com câmbio desfavorável. 2. Se um evento é
internacional, qual a razão de aceitar apenas pesquisas nas línguas inglesa e
francesa? Não há justificativas para a exclusão do espanhol como língua
oficial do evento, já que esta é uma das mais faladas no mundo. 3. Qual a
razão de um evento geográfico de caráter internacional não contemplar as
diferenças mundiais e democratizar o acesso ao diálogo científico?
Acreditamos que a derrubada da hegemonia linguística e de referência
econômica possibilita a inclusão de pesquisadores de diversos países para
além do mundo europeu e norte americano, tornando a ciência geográfica
mais rica, plural e polifônica.
As críticas que fizemos naquele momento, ao invés de promover
maiores limites à construção de alianças científicas, possibilitaram um
importante diálogo junto à Seção de Gênero da UGI, que nos desafiou a
realizar um encontro na América Latina, evento que seria uma oportunidade
para a construção de uma interlocução internacional que contemplasse as
nossas diferenças espaciais relativas a gênero e sexualidades.
O desafio foi aceito por nós, e ele se concretiza agora, neste livro,
composto de três partes, que dizem respeito à organização do evento no Rio
de Janeiro, intitulado “I Seminário Latino-Americano de Geografia e
Gênero: Espaço, Gênero e Poder / Pré-encontro da Conferência
Regional da União Geográfica Internacional: Conectando Fronteiras”. O
livro celebra o encontro de pesquisadores de várias partes do mundo, como
Estados Unidos, Inglaterra, Espanha, Portugal, Nova Zelândia, Argentina e
Brasil, que, juntos, constroem um saber diverso e pluriversal.
A primeira parte do livro tem como tema central discussões em
torno do espaço escolar, gênero e sexualidades. Os autores entendem a
escola, para além de sua função formal de escolarização, como uma
espacialidade que se constrói cotidianamente por meio da socialização e do
encontro de diferentes identidades. Esses encontros envolvem as orientações
sexuais e de gênero, criando uma série de possibilidades de relações. A
escola pode tanto funcionar como um espaço heteronormativo e
discriminatório, como pode também se abrir para a emancipação e a
conquista de direitos cidadãos.
Os espaços generificados de poder constituem o eixo norteador da
segunda parte do livro. Os textos reunidos sob esta perspectiva têm em

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comum a ideia de que o espaço geográfico é uma instância da sociedade e
que ambos são constituídos por tensões entre grupos hierarquizados a partir
de determinadas características de valoração social, de modo que o gênero se
configura como um dos mais importantes elementos sociais de distribuição
de poder, permeando diferentes espacialidades.
A terceira parte é dedicada à discussão em torno da relação entre
geografia, gênero e sexualidades, e nela os autores produzem uma
abordagem pautada no gênero e na orientação sexual enquanto construções
sociais específicas no tempo e no espaço. Essa perspectiva desafia a
hegemonia heteronormativa da produção do espaço e desvela a pluralidade
das vivências espaciais humanas, tão largamente invisibilizadas em nossa
sociedade.
Enfim, nós esperamos que as páginas deste livro permitam a
emergência de novas trajetórias de exploração científica geográfica na área
de gênero e sexualidades, inspirando a geografia brasileira a contemplar a
riqueza da diversidade humana em sua relação com o espaço.

Joseli Maria Silva


Augusto Cesar Pinheiro da Silva

Organizadores

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PREFÁCIO

Recebi com muita satisfação o convite da Joseli para prefaciar o


livro com as palestras do I Seminário Latino-Americano de Geografia e
Gênero. Quando me pediu para escrevê-lo, a Joseli mencionou nossa
correspondência via e-mail, há alguns anos, que, segundo me disse, foi a
razão e a motivação para ela organizar este seminário.
Isto foi em julho de 2008, quando eu era presidente da Comissão de
Gênero e Geografia, ocupada, na época, com a organização da Conferência
Regional da União Geográfica Internacional (IGU) na Tunísia. Recebi um e-
mail um pouco irritado da Joseli, em que ela se queixava do fato de as
conferências da Comissão serem promovidas apenas na Europa, e somente
em língua inglesa (embora o inglês e o francês tenham sido as línguas
oficiais da IGU na Conferência na Tunísia, assim como são também as
línguas oficiais da própria IGU). Ela me questionou a respeito das razões de
a Comissão de Gênero e Geografia da IGU não promover conferências na
América Latina. E eu então lhe respondi que as conferências de nossa
Comissão são sediadas em lugares onde nossos membros se oferecem para
organizá-las! Nesta ocasião, eu lhe propus organizar uma conferência no
Brasil, prometendo-lhe que, se assim o fizesse, eu e a maioria de meus
colegas compareceríamos, desafiadoramente! Fico contente que esse desafio
tenha sido aceito e que a Joseli e o Augusto organizaram esta conferência,
fazendo-nos ir a esta parte tão bonita do mundo.
Escrever alguns parágrafos a respeito dos “desafios culturais e
linguísticos entre profissionais da geografia ao redor do mundo” e sobre
“como enfrentamos essas questões em nossas atividades acadêmicas” já
representa um desafio por si só! São tantos os trabalhos acadêmicos que têm
sido publicados a respeito desta questão tão complexa, que se torna quase
impossível apresentar uma discussão razoável sobre este tópico em um
prefácio tão curto. Assim, e ao invés disso, me proponho compartilhar com
vocês um pouco de minhas experiências pessoais e de meus pensamentos a
respeito dessas questões, na condição de pessoa que não tem o inglês como
primeira língua, e também como ex-presidente desta comissão que tem sido
exposta a várias questões e preocupações neste âmbito.
Gostaria de começar fazendo uma reflexão positiva dos próprios
benefícios que tenho obtido como integrante desta grande rede da Comissão

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de Gênero e Geografia do IGU, apesar dessa minha contínua e incessante
contenda para escrever e falar inglês. Minhas reflexões aqui são parte de um
artigo que escrevi para Gender, Place and Culture (FENSTER, 2007)1,
intitulado “Reinforcing Diversity: From the ‘Inside’ and the ‘Outside’”, que
foi dedicado à contribuição de Janice Monk para fortalecer a diversidade e
promover a colaboração no campo da geografia humana. Neste trabalho eu
mencionei meu primeiro contato com alguns dos membros de grupo no
encontro da IGU em Praga, em 1994. Foi a primeira conferência da IGU a
que assisti. Eu estava nervoso, solitário, não sabia “o que fazer” ou “como
me comportar” e me sentia muito isolado, na condição de uma entre algumas
poucas pessoas que trabalhavam com gênero e geografia em Israel naquele
tempo. O meu encontro com Jan e outras(os) geógrafas(os) feministas
marcou uma mudança em minha vida acadêmica. Ao longo dos anos, e
depois de participar da maioria das reuniões da Comissão, comecei a me
integrar, como parte de um grupo de apoio que me fazia sentir que pertencia
a uma rede acadêmica situada fora de meu contexto em Israel. Pude então
fazer mais para promover o estudo de gênero na geografia ‘dentro’ de meu
próprio contexto, tendo em vista que esse apoio e assistência de ‘fora’ fazia
da geografia feminista uma disciplina válida e ‘séria’. Este impacto
construtivo das atividades da Comissão, tenho certeza, afetará geógrafas(os)
feministas na América Latina, especialmente no Brasil durante e após esta
conferência. A conexão de nossos interesses e preocupações comuns, das
lutas feministas e das cadeias de apoio mundiais permite que cada um de
nós pesquise, escreva e ensine neste campo. E isto se aplica especialmente às
conjunturas culturais e políticas em que o gênero e o feminismo não são
disciplinas bem-vindas ou reconhecidas.
Dito isto, existem alguns desafios linguísticos e culturais que nós,
como geógrafas(os) feministas, enfrentamos e devemos reconhecer, tendo
em vista que eles se vinculam com forças acadêmicas centro/periferia que
ainda predominam em nosso mundo ‘globalizante’.
O primeiro desafio diz respeito ao domínio do mundo acadêmico
anglo-americano,2 expresso não somente no domínio da língua inglesa na
maioria dos encontros acadêmicos internacionais, como também no
domínio e na poderosa influência do mundo acadêmico anglo-americano
sobre o conjunto do conhecimento, sobre os discursos relevantes e novos
campos de interesse, e também sobre a própria terminologia acadêmica
envolvendo as noções de ‘dentro’ e ‘fora’.
1
Fenster, TOVI. Reinforcing diversity: from the ‘inside’ and the ‘outside’. Gender, Place
and Culture, v. 14, n. 1, p. 43-49, 2007.
2
Trata-se, sem dúvida, de uma afirmação um tanto genérica (também simplista, talvez), já
que ‘o mundo anglo-americano’ é muito diverso, por si só, além de comportar relações centro/
periferia.

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Todavia, devemos lembrar um outro desafio, o de que esse domínio
ainda existe por causa da atitude um tanto provincial por parte das
administrações universitárias, com suas regras de promoção, na ‘periferia’,
ou no mundo em que não se fala inglês. É essa atitude que dita a priorização
de publicações em inglês e a participação em conferências internacionais, em
detrimento de atividades acadêmicas locais, percebendo nessas práticas
quase que o único canal para a promoção acadêmica (com a exceção de
algumas universidades europeias, como na França, na Alemanha e, até certo
ponto, na Itália). Assim, essa política acadêmica periférica reforça o domínio
contínuo do mundo acadêmico anglo-americano.
Como disse antes, ser ‘forçada’ a escrever e a me apresentar em
inglês tem sido para mim uma maneira significativa de desenvolver minhas
redes acadêmicas fora de Israel e de promover a pesquisa e o ensino de
gênero e geografias feministas dentro de Israel. Isto significa que as
perspectivas de ‘dentro’ e ‘fora’ podem apresentar tanto efeitos positivos
como negativos, e é possível que as ‘fronteiras que se conectam’ entre o
mundo anglo-americano e os outros mundos estejam se tornando mais
visíveis, já que, cada vez mais, falantes que não têm o inglês como primeira
língua estão integrando conselhos editoriais de algumas das principais
revistas de geografia, e tendo em vista também que, em comitês
internacionais como o IGU, tem crescido a atuação de estudiosos de
universidades que não pertencem ao sistema anglo-americano.
Tenho certeza de que este Seminário será mais uma expressão das
‘fronteiras que se conectam’, ao expor a pesquisa latino-americana e
brasileira ao mundo ‘exterior’. Meu desejo é que todos nós tenhamos uma
conferência excitante e estimulante, bem como ainda muitas outras, no
futuro.

Tovi Fenster
Department of Geography and Human Environment,
Tel Aviv University
Tel Aviv, Israel

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Parte I

Espaço escolar, gênero e sexualidades

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A ESCOLA COMO QUESTIONADORA DE UM
CURRÍCULO HOMOFÓBICO

Lúcia Facco

Embora os conceitos de solidariedade, igualdade e respeito às


diferenças façam parte dos discursos da escola, por ser um local voltado para
a formação das crianças e adolescentes, na prática o que podemos observar é
que, nesse espaço, as ideias de discriminação e os preconceitos não estão de
fora. Pelo contrário, a escola é um local onde convivem os mais diversos
tipos de pensamento e, por isso mesmo, a prática discriminatória é muito
comum.
Isto ocorre porque, se a sociedade é constituída por uma diversidade
de culturas, crenças, etnias, estilos de vida etc., a escola, por ser a
representação de um microuniverso social, vai reproduzir todas as relações
sociais, inclusive as práticas de discriminação, em suas salas de aula, pátios,
corredores, banheiros, enfim, em todos os espaços por onde circularem
estudantes, funcionários e professores.

Os veículos da discriminação vão desde o currículo formal, que exclui


múltiplas e variadas maneiras de expressão cultural, passando pela
linguagem não-verbal, até chegarem, freqüentemente, ao nível dos
comportamentos e das práticas explícitas. (CANDAU, 2003, p. 24).

Embora tenham surgido estudos focados nas práticas


discriminatórias na escola, chega-se à conclusão de que, na maior parte dos
casos, essa instituição não faz nenhum trabalho específico no sentido de
buscar minorar o problema.
Formar uma cidadania plena “exige que todos os homens e mulheres
brasileiros sejam cidadãos/cidadãs com capacidade para entender a realidade
em que vivem, para dela participarem e transformarem-na.” (CANDAU,
2003, p. 31). E a escola tem importância fundamental em tal processo, dada

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a sua capacidade de influir fortemente na formação de crianças e
adolescentes.
Para nos aprofundarmos sobre as relações de discriminação, seria
interessante questionarmos a definição de “minoria social”. Mulheres,
negros e homossexuais são considerados minorias. No entanto, podemos
perceber que esse termo se baseia na ideia de dominação e não de
quantidade: as mulheres não podem ser consideradas como minoria, já que
formam mais de 50% da população mundial; quanto aos negros,
recentemente, Marcelo Paixão, diretor do Laeser (Laboratório de Pesquisas
da UFRJ), fundamentado em dados da PNAD (Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios) de 2005, afirmou que os brancos já são minoria no
Brasil; e os homossexuais, por sua vez, não podem ter os seus números
determinados, já que, devido ao medo do preconceito social, muitos não se
“assumem”.
Todavia, a identificação de “homem branco” com “maioria” persiste.
Podemos concluir, enfim, que os “donos do poder”, vistos como
representantes dos padrões de normalidade, são homens brancos,
heterossexuais, de classe média e formação judaico-cristã. Logo, tudo o que
foge desses padrões é diferente, é minoria, e a sociedade ocidental sempre
teve dificuldades em relação às diferenças.
Precisamente devido ao fato de esta classificação “maioria versus
minoria” transmitir a ideia de valoração, não basta aos grupos considerados
como “minorias” que se fortaleça a sua identidade. É imprescindível que se
faça um trabalho de conscientização dos que pertencem à “maioria”. As
questões relativas aos preconceitos não são exclusivas de determinados
grupos, mas sim de toda a sociedade, que deve ser levada a avaliar
criticamente as posições impregnadas na nossa cultura. “Ninguém diz para o
filho que ele deve discriminar o negro, mas a forma como se trata o
empregado, as piadas, os ditados e outros gestos influem na educação.”
(SILVA apud CANDAU, 2003, p. 29).
Os processos de discriminação costumam ter, na sociedade
ocidental, uma sutileza que dificulta sua identificação. Eles se encontram,
muitas vezes, nas “entrelinhas” dos discursos, nas rotinas, nos costumes,
perpetuando-se nas relações sociais. É uma “tática” silenciosa tão poderosa
que faz com que esses processos pareçam naturais.
Desintegrar essas práticas sociais vai exigir “um processo
consciente, cuidadoso e sistemático de desnaturalização, sensibilização,
reflexão e ação no plano pessoal e coletivo. [...] Trata-se de um processo
complexo e de longo prazo.” (CANDAU, 2003, p. 100-101).
Desde o século XIX, durante todo o século XX e no momento atual 
quando a globalização aproxima povos de culturas tão diferentes e, dentro de
cada um destes, verdadeiras “tribos urbanas” se organizam de acordo com

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interesses e modos de viver específicos , as “certezas”, que por tanto tempo
fizeram parte da formação cultural, começam a se desfazer diante das “crises
surgidas nas relações entre os gêneros, entre as classes e entre as raças que
ainda hoje discutimos, modificadas por um século de reflexões, lutas,
derrotas e vitórias.” (KOSS, 2000, p. 7).
Enfim, a tentativa de compreender a realidade do “outro” é condição
sine qua non para que as práticas discriminatórias sejam desconstruídas.
Há diversas teorias críticas que sugerem que os que estão aptos a
ensinar as lições de vida mais duradouras são justamente aqueles que de uma
maneira ou de outra estiveram ou estão à margem da sociedade. Afinal de
contas, por se mostrar em representações culturais não canônicas, a
experiência afetiva da marginalidade social nos obriga a transformar e/ou
criar estratégias críticas que deem conta dessas representações.
Segundo Stuart Hall (2002, p. 13), aquela identidade totalmente
unificada, completa, segura e coerente não passa de uma fantasia. À medida
que os mais variados sistemas de representação cultural vão surgindo, vemo-
nos diante de várias identidades com as quais poderíamos nos identificar, em
um momento ou em outro de nossas vidas. Essa constatação nos obriga a
“colocar nossas barbas de molho”. Em um instante uma identidade que era
do “outro” pode se tornar a nossa.
No entanto, a sociedade ainda crê nessa fantasia, e ela funciona em
termos binários, com pares opositivos regidos por relações de superioridade
e inferioridade: masculino versus feminino; branco versus negro;
homossexual versus heterossexual; rico versus pobre, etc. Normalmente, a
posição do lado “inferior” marca o indivíduo, formando uma espécie de
estigma (termo amplamente usado por Goffman).
A vigilância sobre o indivíduo e a comparação dele com cada um
dos outros exacerbam cruelmente o estigma que porventura carregue
consigo. Por isso, muitas vezes os estigmatizados preferem evitar contatos
com os não-estigmatizados, isolando-se ou procurando contato apenas com
portadores do mesmo estigma. Assim, ele poderá ter a sensação de
“desaparecer” ou “diluir-se” no meio de outros iguais.
De qualquer modo, o estigmatizado geralmente prefere se condenar
a um “autoexílio social”, na medida em que sua relação com os “outros” se
baseia, muitas vezes, em noções como “aceitação” ou “tolerância”. Estes
termos denotam a manutenção da relação desigual, já que só se “tolera” ou
se “aceita” algo que, em princípio, é passível de ser considerado
“intolerável” ou “inaceitável”.
Outra reação esperada de um indivíduo estigmatizado é a de tentar
“corrigir o seu defeito”. Se for um “defeito de comportamento”, o indivíduo
vai se forçar a modificá-lo. Alguns “defeitos físicos”, por mais
insignificantes que possam parecer, levam o sujeito a recorrer a cirurgias

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corretivas. Assim, há uma busca frenética por um ideal de comportamento e
um ideal de corpo.
Por mais que o estigmatizado deseje evitar contato social, muitas
vezes isso não é possível. A vida escolar, pelo menos nas grandes cidades, é
compulsória. Então, ele procura uma maneira de se relacionar com os outros,
já que isso é inevitável. “Considerando o que pode enfrentar ao entrar numa
situação social mista, o indivíduo estigmatizado pode responder
antecipadamente através de uma capa defensiva” (GOFFMAN, 1975, p. 26),
que pode ser um retraimento, uma timidez exacerbada, ou a agressividade.
Ou, pode ainda ser a alternância dos dois tipos de comportamento. Se a
agressividade pode provocar reações igualmente agressivas (ou mais, já que
ele estará medindo forças com vários indivíduos), por outro lado, fechar-se
também pode provocar reações como chacotas, por exemplo.
Por ter consciência das prováveis situações de discriminação que
terá de enfrentar, geralmente o indivíduo estigmatizado prefere se afastar das
relações sociais, e até de si mesmo.
O indivíduo estigmatizado (nos casos em que o estigma é aparente)
costuma ser, enquanto criança novinha, resguardado pela família dos olhares
curiosos que possam, de alguma forma, fazê-lo sentir o peso do estigma.
Mãe, pais, irmãos e avós procuram protegê-lo em um círculo fechado de
amor e aceitação incondicional. No entanto, chegará o momento em que esse
indivíduo terá que transpor a barreira protetora e se deparar com pessoas que
não mantêm com ele nenhum vínculo afetivo.
Apesar de Goffman afirmar que “freqüentemente se assinala o
ingresso na escola pública como a ocasião para a aprendizagem do estigma,
experiência que às vezes se produz de maneira bastante precipitada no
primeiro dia de aula, com insultos, caçoadas, ostracismo e brigas” (1975, p.
42), pelo que tenho observado, quanto menores as crianças com quem o
estigmatizado se relaciona, menos ele sofrerá. Os pequenos ainda não têm o
péssimo hábito de criticar e, se o estigma é muito aparente, no máximo os
amiguinhos lançarão olhares curiosos e perguntarão diretamente ao
indivíduo “como ele faz isso ou aquilo”. No entanto, as crianças tendem a
reproduzir os comportamentos que observam nos adultos.
Geralmente, em casos em que o estigma é uma diferença de
comportamento, como na homossexualidade, o sujeito estigmatizado procura
não ter relações de amizade mais profundas, para evitar que, num deslize,
seu estigma passe a ser conhecido. O medo de ser desmascarado faz com que
suas amizades sejam sempre superficiais.
Além disso, o jovem homossexual muitas vezes não encontra na
família o círculo protetor com que um jovem negro, por exemplo, pode
contar e se identificar. Pelo contrário, há muitas famílias que contribuem
ainda mais para o sofrimento desse jovem, agredindo-o física e moralmente.

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Apesar de ser muito frustrante a necessidade de disfarce,
infelizmente a maioria das pessoas ainda prefere ocultar os seus estigmas,
por medo da discriminação.
Conforme crescem as exigências sociais de adequação a
determinados modelos de normalidade, como de beleza, por exemplo, mais
inseguros e desconfortáveis se tornam os indivíduos que não correspondem a
esses modelos (quase toda a população).
No dia 7 de novembro de 2007, na Finlândia, um rapaz abriu fogo
contra colegas de escola e matou sete deles. Depois disso, cometeu suicídio.
No dia seguinte, um colega declarou que o atirador costumava ser
perseguido pelos colegas. As mesmas histórias se repetem de maneira
aterradora, cada vez com mais frequência, e a sociedade pergunta-se o que
fazer.
Mais recentemente, vimos o jovem Wellington entrar em uma escola
de Realengo, no Rio de Janeiro, e assassinar várias crianças, suicidando-se
em seguida. Novamente, relatos de ex-colegas garantiram que ele havia
sofrido perseguições dos colegas naquela escola, em sua época de estudante.
Diante de fatos como estes, dá para se ter uma ideia de como o
estigma pode afetar a vida de uma pessoa. Sendo assim, não podemos
estranhar o fato de existirem tantas pessoas que, sempre que possível, optam
pela discrição e não revelam os seus estigmas.
Aquele que encobre o seu estigma vive em um estado de tensão
constante. Ele teme ser “descoberto” a qualquer momento, e, a partir do seu
desmascaramento, sua vida pode “desabar”. Além disso, ele se sente covarde
e desleal para com os seus iguais, já que, para manter o seu disfarce, não
poderá reagir diante de comentários pejorativos que pessoas com as quais
convive poderão fazer a respeito daqueles que possuem o seu estigma.
Ao mesmo tempo, ele se sentirá deslocado no ambiente em que está,
pois percebe que sua permanência ali, a sua aceitação, se deve ao fato de ele
mascarar seu estigma. Em outras palavras: fingir ser o que não é, ou fingir
não ser o que é.
É muito comum gays e lésbicas “não assumidos” ouvirem piadinhas
sobre homossexuais e não fazerem nenhum comentário a respeito e até
forçarem o riso, quando, na verdade, sentem raiva dos comentários
preconceituosos.
Ainda há outras situações às quais o sujeito que encobre seu estigma
precisa se adaptar. Ele se obriga a “disfarçar” gestos, hábitos, omitir
comentários, enfim, fica constantemente atuando, pois atos naturais para os
não-estigmatizados representam um enorme esforço para ele.
Alguns indivíduos homossexuais chegam a se casar com pessoas do
sexo oposto para que não paire sobre sua orientação sexual nenhuma sombra
de dúvida. Essa situação gera, invariavelmente, sofrimento para todos os

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envolvidos no engodo. Outros, ainda, podem cometer atos de violência,
como o espancamento de homossexuais, também com o intuito de garantir
que os outros os vejam como heterossexuais.
Como podemos perceber, a ocultação dificilmente deixa de ter
consequências desagradáveis para o estigmatizado e para os que convivem
com ele.
De qualquer modo, muitos estigmatizados se condenam a não agir
naturalmente, mas sim de maneira que não choque a sociedade. Esta, na
verdade, sempre tentará impor limites de aceitação, aos quais o
estigmatizado deverá se ajustar caso deseje conviver em “harmonia”.
Esses limites são pré-existentes ao sujeito, e eles continuarão a
existir depois da sua morte. No entanto, eles vão se modificando lentamente,
já que a humanidade (que é quem os cria, no final das contas) não para de
caminhar. É certo, porém, que, para que os limites se modifiquem, alargando
as suas cadeias apertadas até que se rompam algum dia, num futuro talvez
muito distante, se faz necessário que os próprios estigmatizados forcem essas
cadeias. Caso permaneçam em uma posição “cômoda” (que de cômoda não
tem nada) de aceitação e enquadramento a esses limites, certamente ninguém
fará nada para mudá-los.
Afinal de contas, é muito confortável para o não-estigmatizado não
ser obrigado a enxergar o sofrimento do estigmatizado em seu esforço para
se ajustar ao que a sociedade considera como tolerável. Mais cômodo,
certamente, é pensar que este está tendo a oportunidade de se revelar.
Agradável sentir-se uma pessoa “boa e tolerante” por não discriminar. Será
que o sujeito não-estigmatizado, tão satisfeito consigo mesmo, enxergaria
com igual complacência uma menina que se vestisse e agisse como rapaz (o
“bofinho”) ou o gay que flertasse com ele? Ou seria tolerante apenas com os
homossexuais que agissem de acordo com regras de comportamento
determinadas socialmente?
Na verdade, esse processo de desvendamento funciona como um
círculo vicioso. A aceitação dos limites impostos está diretamente
relacionada à culpa que o sujeito estigmatizado assimila e mantém dentro de
si. A certeza de que “está errado”, ou pior, de que “é anormal”, faz com que
ele se conforme com a necessidade de se ajustar a todo custo. O esforço do
sujeito estigmatizado para se adaptar reforça, para o não-estigmatizado, a
“certeza” de que o estigma faz do seu portador um indivíduo “inferior”. Daí,
maior será o reforço da culpa para o estigmatizado, e assim por diante, ad
aeternum.
O ciclo precisa ser quebrado, tarefa que caberá ao estigmatizado. A
escola deveria ser uma instituição de grande valia para realizar o difícil e
lento processo de questionamento dos padrões castradores de
comportamento, imagem, afetividade.

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O caminho provavelmente está na aceitação do seu estigma, partindo
de uma revisão crítica do próprio conceito de normalidade e da classificação
de maioria e minoria com sentido valorativo.
Ao perceber que esses conceitos não são verdades absolutas e
imutáveis, o estigmatizado questionará sua classificação como “anormal”,
baseada no estigma que possui. Logo, maiores serão a naturalidade e a
espontaneidade com que ele o demonstrará. Assim, o seu grau de aceitação
pelos não-estigmatizados aumentará. Mas essa tática só surtirá efeito
positivo se a pessoa estiver segura de sua aceitação, se ela apaziguar os
conflitos internos gerados por seu estigma.
Voltando à velha escola, a impressão que temos é a de que se trata
de uma instituição que resiste aos novos tempos, às novas reflexões que se
fazem prementes, optando por permanecer em uma posição aparentemente
desvinculada de todas essas discussões, embora isso seja impossível, já que
elas permeiam todos os espaços e relações sociais.
No entanto, essa resistência não é inocente e, muito menos,
inconsequente. Para Althusser, “a permanência da sociedade capitalista
depende da reprodução de seus componentes propriamente econômicos [...]
e da reprodução de seus componentes ideológicos.” (ALTHUSSER apud
SILVA, 2005, p. 31).
Althusser diz ainda que a sociedade capitalista não conseguiria se
sustentar sem mecanismos e instituições que garantissem essa reprodução,
seja através da força e da repressão, a cargo dos aparelhos de estado, como a
polícia e o judiciário, seja através do convencimento e da ideologia, a cargo
da religião, da escola, da família, da mídia.
No ensaio “A ideologia e os aparelhos ideológicos de estado”,
Althusser afirma que a ideologia:

[...] é constituída por aquelas crenças que nos levam a aceitar as estruturas
sociais (capitalistas) existentes como boas e desejáveis. [...] A produção e a
disseminação da ideologia é feita, como vimos, pelos aparelhos ideológicos
de estado, entre os quais se situa, de modo privilegiado, na argumentação
de Althusser, justamente a escola. A escola constitui-se num aparelho
ideológico central porque, afirma Althusser, atinge praticamente toda a
população por um período prolongado de tempo. (SILVA, 2005, p. 31).

Já para Bourdieu e Passeron (apud SILVA, 2005, p. 34), a dinâmica


da reprodução social estaria centrada no processo de reprodução cultural. A
única cultura que teria prestígio seria a cultura das classes dominantes, com
seus valores, seus gostos, seus hábitos.
Enquanto os valores da classe dominante são considerados
constituintes da cultura, os valores das outras classes não seriam
considerados como tal. Através do mecanismo do domínio simbólico, tudo o

18
que não estiver ligado à cultura dominante é desprestigiado, indigno de ser
reproduzido, especialmente em locais considerados como “formadores” de
cidadãos, como, por exemplo, a escola.
Quando Bourdieu e Passeron (apud SILVA, 2005, p. 35) se referem
ao processo de dominação cultural, eles usam a expressão “dupla violência”.
Dupla porque o processo atuaria de duas maneiras: por um lado haveria a
imposição de um determinado tipo de cultura como sendo o único tipo
válido; e por outro, essa imposição é velada. Sendo assim, as pessoas
acabam pensando que não se trata de uma imposição, e sim, de algo natural.
Nos processos de formação social, algo semelhante acontece em
relação à sexualidade. A heterossexualidade é compulsória, já que a
sociedade a vê como a única forma de orientação sexual legítima. Todo o
resto seria desvio, ou antes, uma deformação “antinatural”.
Mas, quando surgiram os primeiros questionamentos a respeito da
tendenciosidade habilmente (ou nem tanto) oculta por trás dos processos
educacionais, grupos considerados minorias, portanto, culturalmente
subordinados,

[...] iniciaram uma forte crítica àquilo que consideravam como o cânon
literário, estético e científico do currículo universitário tradicional. Eles
caracterizavam esse cânon como a expressão do privilégio da cultura
branca, masculina, européia, heterossexual. O cânon do currículo
universitário fazia passar por “cultura comum” uma cultura bastante
particular – a cultura do grupo culturalmente e socialmente dominante.
(SILVA, 2005, p. 88).

É interessante prestarmos atenção ao fato de que esse movimento


crítico parte exatamente dos grupos considerados “minorias”, portanto, os
grupos que teriam a sua cultura desmerecida como tal. Afinal, segundo Paulo
Freire:

Quem, melhor que os oprimidos, se encontrará preparado para entender o


significado terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que
eles, os efeitos da opressão? Quem, mais que eles, para ir compreendendo a
necessidade da libertação? (FREIRE, 1987, p. 17).

No momento em que os conteúdos programáticos são selecionados,


ainda é muito pequena a preocupação em se trabalhar, dentro das salas de
aula, os preconceitos em relação ao considerado “diferente”, ou “minoria”.
Prefere-se ficar numa posição aparentemente confortável e segura, a partir da
qual se pretende transmitir os conhecimentos “universais”, seja lá o que se
entenda por isso.

19
Segundo Guacira Lopes Louro (1997, p. 57), a escola não apenas
entende de diferenças e desigualdades, como as produz. Ela possui aquele
“modelo” de estudante idealizado, que corresponde, com perfeição, ao que
se espera dele. Não sabendo lidar com os estudantes que não correspondem a
esse modelo, a escola acaba por contribuir para introjetar em todos, cada vez
mais, o pensamento discriminatório. Os preconceitos estão de tal forma
arraigados no pensamento social que, muitas vezes, os professores
reproduzem os discursos de discriminação sem perceber.
No momento em que surge na sala de aula, no meio de um grupo
aparentemente homogêneo, um estudante com comportamento de gênero
totalmente destoante do resto, geralmente surge uma espécie de desconforto
entre todos, inclusive o professor. Ninguém sabe muito bem o que fazer
diante daquele corpo que, ao desafiar o padrão, o modelo reprodutivo de
sexualidade imposto pela sociedade, coloca em xeque essa normatividade,
fazendo com que alguns a questionem.
Acontece que, na nossa sociedade, para que os futuros cidadãos
possam conviver pacificamente, torna-se necessário que sigam determinadas
regras de comportamento estabelecidas e pouco maleáveis. Uma delas seria a
regra dos comportamentos de gênero, que são socialmente construídos.
Em relação à sexualidade, a escola insiste em se dizer neutra. Cabe
aos professores e professoras (especialmente estas) um comportamento
aparentemente assexuado. Pensava-se, inclusive, que os livros não falavam
sobre sexo. Contudo, as coisas não são bem assim.

A instituição escolar tende a invisibilizar a sexualidade em um jogo de


pressupostos, inferências não-apresentadas e silêncios. Pressupõe-se, por
exemplo, que a sexualidade é assunto privado ou, ao menos, restrito ao lado
de fora da escola. Na verdade, a sexualidade está na escola porque faz parte
dos sujeitos o tempo todo e não tem como ser alocada no espaço ou em
algum período de tempo. Ninguém se despe da sexualidade ou a deixa em
casa como um acessório do qual pode se despojar. Na escola, também se
infere que todos se interessam ou se interessarão por pessoas do sexo
oposto e que suas práticas sexuais seguirão um padrão reprodutivo.
(MISKOLCI, 2005, p. 17-18).

Quando o estudante se apresenta de maneira diferente, com


comportamentos ou falas que indicam desejos diferentes dos considerados
“normais”, eles não são esquisitos em si mesmos. São nomeados estranhos
pelos colegas e professores, por não corresponderem ao modelo que se
espera deles, embora essa concepção de “diferente” seja absolutamente
subjetiva, variando de acordo com o ponto de vista de cada um.
A insistência em se dizer assexuada faz da escola uma “cúmplice” da
heterossexualidade reprodutiva. Seu poder de convencimento é grande, pois

20
essa instituição exerce o papel social de educadora e formadora de cidadãos.
Logo, poderíamos dizer que a escola é homofóbica, no momento em que não
reconhece o desejo sexual entre pessoas do mesmo sexo e, pior ainda, forma
cidadãos homofóbicos, pois transmite a eles a sua ideologia.
Apesar de ser uma questão delicada e extremamente trabalhosa, os
educadores, na medida em que percebem os mecanismos de exclusão dos
estudantes que possuem orientação sexual “diferente” da maioria, deveriam
intervir de maneira incisiva na questão, pois se negar a debater o assunto
equivale a compactuar com a situação.
O currículo tradicional é constituído por uma série de “saberes” que
se dizem naturais, mas na verdade o que temos é um “saber” hegemônico,
exaustivamente inculcado nas pessoas pelo poder constituído. Este filtra e
define qual é o limite do saber. O que é “verdadeiro”, o que é “falso”.
O currículo, no entanto, pode ser contornado, no dia a dia, pelos
educadores em suas salas de aula. Estes não podem recusar o seu papel
social no processo de humanização na constituição dos sujeitos. Mesmo
presos às regras e à burocracia das instituições, não podem deixar de pensar
na sua responsabilidade “pela abertura de novas possibilidades de
abordagem de uma questão ainda sem resposta: quem sou eu?!” (SOUZA
JÚNIOR, 2002, p. 121).
A partir do estímulo ao questionamento dos conceitos sociais
estabelecidos como “corretos” e “únicos”, os estudantes, estigmatizados e
não-estigmatizados, desenvolverão novas percepções, novos conhecimentos
a respeito das mais diversas possibilidades de ser e de viver, o que, no
mínimo, os fará enxergar o mundo com olhares desvencilhados de
preconceitos. Isto, sem dúvida, proporcionará a formação de sujeitos mais
solidários, além de mais inteligentes. Este, para mim, deveria ser o real
objetivo da educação: a formação integral de indivíduos verdadeiramente
preparados para viverem em uma sociedade mais justa, solidária e
equilibrada.

Referências

CANDAU, Vera Maria. Somos tod@s iguais? Escola, discriminação e educação em


direitos humanos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. 176p.)

21
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
107p. (O mundo, hoje, v. 21).
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada.
Tradução de Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
158p. (Coleção Biblioteca de Antropologia Social).
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 7. ed. Rio de Janeiro:
DP&A, 2002. 102p.
KOSS, Monika von. Feminino + Masculino: uma nova coreografia para a eterna
dança das polaridades. São Paulo: Escrituras Editora, 2000. 254p. (Coleção Ensaios
Transversais).
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-
estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997. 179p.
MISKOLCI, Richard. Um corpo estranho na sala de aula. In: ABRAMOWICZ,
Anete; SILVÉRIO, Valter Roberto (Org.). Afirmando diferenças: montando o
quebra-cabeça da diversidade na escola. Campinas: Papirus, 2005, p. 13-26.
(Coleção Papirus Educação).
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do
currículo. 2. ed. 8. reimpr. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. 156p.
SOUZA JÚNIOR, José Luiz Foureaux. Leitura de leituras: propostas de
continuidade acerca de literatura e homoerotismo. In: ______. (Org.). Literatura e
homoerotismo: uma introdução. São Paulo: Scortecci, 2002. p. 86-122.

22
BORRANDO FRONTEIRAS:
UMA VISÃO AMPLIADA ENTRE SEXUALIDADES E ESCOLAS

Cláudia Reis dos Santos

Tarde de atividade intensa em shopping de grande movimento na


cidade do Rio de Janeiro. Observamos crianças divertindo-se entre os
brinquedos típicos dessa natureza de comércio. Confinadas em grandes
módulos, atravessando fronteiras aparentes, vencendo obstáculos
construídos. Começamos a refletir sobre a relação do ser humano com o
desafio que as fronteiras parecem estimular.
Não raro seria a alusão entre a brincadeira inocente das crianças no
shopping e o ímpeto dos grandes navegadores do século XV, ou ainda, o
empenho demonstrado pelos participantes das inúmeras cruzadas. A natureza
apresenta limites, o homem estabelece as fronteiras.
A discussão entre limites e fronteiras tornou-se clássica no estudo da
geografia e pode ser considerada categoria de análise para a compreensão
dos fenômenos sociais. Podemos perceber a partir da particularidade entre os
conceitos de limite e fronteira alguns aspectos relevantes.

[Limite] [...] é um atributo do estado-nação, delimitando soberania, isto é,


demarcando a vigência de normas estatais diferenciadas em cada um dos
seus lados e extensivas no interior do território. A fronteira distingue os
territórios estatais, mas não os torna estanques, na medida em que fluxos de
pessoas, objetos e informação cruzam constantemente o limite.
(DORFMAN e ROSÉS, 2005, p. 196).

Tendo como premissa básica esse conceito, compreendemos que, ao


estabelecermos limites, impomos uma autoridade que estabelece regras por
uma única via. Ao limite não é permitido o diálogo, a troca, a interposição de
olhares. De acordo com o entendimento de Hissa (2006), limite seria algo
que se insinua entre mundos, com o objetivo de dividir o que não pode

23
permanecer ligado, de mostrar que existe diferença. Mas dentre todos os
significados, o mais decisivo é o que conduz à ideia de restringir a liberdade,
de ser um obstáculo ao trânsito livre. Nesse sentido, o limite é reconhecido
como o que se põe a vigiar o território e o domínio proibido, como se nele
houvesse uma vida autônoma e a vocação da guarda.
Ao analisarmos as premissas conceituais de fronteiras, percebemos
certa fluidez na relação com o outro. Ao mesmo tempo em que espaços são
demarcados, a relação entre eles apresenta certa permeabilidade, pois
promove a integração entre os atores sociais que participam de cada fato.

A fronteira estaria relacionada à área de difusão/propagação, desde espécies


vegetais e animais, quanto das províncias rochosas, de relevo ou de solo, ou
mesmo climáticas, do mesmo modo como analogamente se pode falar, em
termos sociais, das ‘áreas’ ocupadas por determinados grupos étnicos,
lingüísticos, políticos, etc. (MARTIN, 1994, p. 16).

Sendo assim, e pensando desde as crianças no shopping aos


navegadores do século XX, e a invenção do mundo globalizado, de que
modo limites e fronteiras vêm se desenhando na pós-modernidade, sobretudo
no tocante à atenção às subjetividades desses atores sociais?
A sociedade vem desenvolvendo mecanismo de estabelecimento de
limites em todos os âmbitos. Nesse movimento encontramos também a
educação e seus instrumentos de controle. A escola toma então seu papel de
reprodutora de uma determinada ideologia que atende os grupos que se
encontram no poder. Assim, conforme enuncia Michel Foucault (1977),
existem mecanismos de controle na escola destinados à disciplinarização dos
sujeitos participantes do processo educacional. Tais mecanismos:

[...] permitem o controle minucioso de operações do corpo, que realizam a


sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade
 utilidade são o que podemos chamar as ‘disciplinas’. Continuando a
discorrer sobre essa questão afirma que a [...] disciplina fabrica assim
corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos
econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos
políticos de obediência). (FOUCAULT, 1977, p. 126).

Fica clara a função social para a qual a escola foi criada. Em sua
essência, a escola deve criar limites e não favorecer a permeabilidade das
fronteiras. No sentido de estabelecer uma educação efetiva e democrática,
entendemos a necessidade de extrapolar essa função previamente
determinada e, para além de estimular as fronteiras, procurar borrá-las a
partir da diversidade que o ser humano pode apresentar. Etnia, gênero,
sexualidade, ideologia, visão de mundo, enfim, as categorias que são

24
utilizadas como marcadores sociais da subjetividade devem estar mescladas
na sociedade e, por conseguinte, na escola, buscando a constituição de
relações permeáveis entre as instituições e os atores que delas participam.
Nesse contexto, entendemos que analisar os instrumentos
pertencentes à instituição escolar que podem re/ratificar o determinismo de
determinadas performances sociais e, consequentemente, da função social da
escola, torna-se condição ímpar para estabelecer uma nova proposta
pedagógica no emergente século XXI.

As primeiras fronteiras: currículo e ideologia

A escola apresenta como metodologia principal dialogar com a


sociedade por intermédio de seu currículo. Para pensarmos como se
desenvolve uma proposta pedagógica, portanto, cabe estabelecer um diálogo
estreito com os diversos aspectos que o currículo assume no fazer
pedagógico cotidiano em nossa sociedade.
Para compreender a formalização desse currículo, sobretudo no
Brasil do século XX, parece interessante discutir a evolução das discussões
filosóficas que atravessam a construção do conceito de currículo conforme o
entendemos hoje. Do currículo técnico voltado para a organização de
conteúdos à perspectiva do currículo crítico, uma breve reflexão se faz
necessária para compreender a construção de uma outra escola, que se
integre à sociedade, mas não seja meramente instrumento de ratificação de
suas relações.
Compreender o currículo como expressão de ideologia na instituição
escolar é fundamental para legitimar o ideário que permeia as relações na
escola. A configuração material das expressões ideológicas dos atores
sociais que participam na formação da estrutura pedagógica das escolas se
anuncia nos currículos que elas dinamizam.
Ressaltamos a definição de escola  em detrimento de uma
instituição única e homogênea  materializando uma dada ideologia, pois
compreendemos que, mesmo sofrendo a influência do momento histórico a
que pertence, cada unidade institucional é formada por indivíduos que
carregam dentro de si um ideário próprio de sociedade, educação, escola,
currículo, enfim, conceitos utilizados como base para a experiência material
educacional expressa pelos currículos escolhidos por tais atores.
Entender os conceitos de cultura escolar e cultura da escola,
especialmente na concepção de Forquin (1993), parece ampliar a visão dos
vários prismas que habitam o espaço escolar e das relações entre os atores
sociais que nele convivem. Nesse sentido, ao acompanharmos o

25
desenvolvimento dos conceitos de função social da escola ao longo dos
tempos, deparamos-nos com as diversas teorias de currículo que os
sustentam. Entretanto, cabe ressaltar que essas teorias não foram criadas para
que os currículos se desenvolvessem. Ao contrário, ao estudarmos os
currículos praticados em cada período histórico, enquadramos e organizamos
suas características de modo a compreender a teoria que serve de arcabouço
no sentido de esclarecer a sua aplicação (SILVA, 2007).
Sendo assim, para compreender a formalização desse currículo,
sobretudo no Brasil do século XX, iniciaremos tratando da evolução das
discussões filosóficas que atravessam a construção do conceito de currículo
que entendemos hoje  da teoria tradicional de currículo, com sua vertente
técnica voltada para a organização de conteúdos, à perspectiva do currículo
crítico, trazendo em seu bojo a inclusão de atores sociais que se mantinham
em posição de meros espectadores da atuação educacional (SILVA, 2007),
apresentando também a construção das teorias pós-críticas que apontam um
aprofundamento maior da participação de todos, ampliando os limites de
atuação na construção e, sobretudo, na representação de suas identidades.
Posteriormente, tomaremos como base de discussão os conceitos de
cultura escolar e cultura da escola, sobretudo a partir da concepção de Jean-
Claude Forquin. Entendemos que as análises sobre as teorias do currículo
não podem desprezar a influência fundamental das culturas nas quais
transitam.

Concepções de currículo

Ao pensarmos na palavra currículo, várias concepções nos vêm à


mente, sendo o curriculum vitae a referência principal que nos parece
comum a todas. É o curso da vida que precisamos resumir para a garantia de
um emprego e para o ingresso em instituições de ensino, entre outros
propósitos. Logo, podemos considerar que seja necessária uma rígida seleção
de fatos importantes desse percurso no sentido de retratar em breves linhas a
vivência do sujeito.
Em busca da letra vernácula, encontramos “sm (lat curriculu) 1
Ação de correr. 2 Pequena carreira; atalho. 3 Curso. 4 Conjunto das matérias
de um curso escolar. 5 Parte de um curso literário. 6 V curriculum vitae.”
(MICHAELIS, 2007), o que, ao mesmo tempo em que amplia a visão,
destina à escola um conceito bastante limitado de matérias a serem
desenvolvidas durante um período. Considerando a articulação entre os
vários verbetes, podemos depreender ser o currículo o conjunto dessas
matérias que corre no âmbito escolar em busca de criar um atalho para se

26
chegar a algum lugar. Esse caminho e esse lugar não foram historicamente
escolhidos de forma aleatória.
Segundo Goodson (1995, p. 7), o termo curriculum é derivado da
palavra latina currere, que significa correr, curso ou carro de corrida, e
acrescenta, ainda, a “ordem como sequência” e a “ordem como estrutura”.
Tal ordenação foi, sem dúvida, o cerne das atenções sobre as discussões
curriculares nas pedagogias tradicionais. Preocupados com a forma e o
“modo de fazer” na estruturação do currículo, era por meio dessa forma que
se reproduzia a estrutura social vigente, em que:

[...] o interesse dos primeiros teóricos a estruturar o currículo estava na


preservação do consenso cultural e, ao mesmo tempo, em destinar aos
indivíduos o seu “lugar” adequado numa sociedade industrial
interdependente. (APPLE, 1982, p. 107).

A década de 1960 abriga, sobretudo na Europa, as discussões


fundamentais para as reflexões sobre o currículo escolar. Na verdade, em
várias partes do mundo a renovação política inspira as reflexões
educacionais, estimulando a desestruturação de uma pedagogia de traços
tradicionais para uma pedagogia mais permeável, mais dialógica, conforme
enunciava Paulo Freire, à época no Brasil.
Se, de um lado, o currículo em uma perspectiva educacional
tradicional comprometia-se com o conteúdo, em sua perspectiva de forma e
elaboração, por outro, a dimensão crítica do currículo traz a preocupação
com o conteúdo e as consequências que sua utilização pode gerar (SILVA,
2007). E, nessa dimensão que transborda da forma, as diversas facetas da
cultura e o forte papel da ideologia se apresentam como categorias
fundamentais de análise. Sendo assim, o multiculturalismo começa a tomar
forma nas atividades curriculares de modo geral, trazendo um desafio maior
aos profissionais de educação.
Pensar a cultura como um aspecto relevante a ser considerado na
organização escolar parece ser o grande desafio dessa instituição que tem por
objetivo historicamente construído a responsabilidade de abrigar e transmitir
essa cultura às futuras gerações. Ocorre que a própria escola está imersa no
caldo cultural de onde se origina. Sendo assim, conforme já refletimos
anteriormente, ela pode apresentar as características mantenedoras de uma
dada sociedade, assim como gerar em seu bojo a antítese desse mesmo
sistema (MARX e ENGELS, 1992). Admite-se, então, que a relação entre
cultura e escola se processa de forma orgânica:

Neste sentido pode-se dizer perfeitamente que a cultura é o conteúdo


substancial da educação, sua fonte e sua justificação última: a educação não
é nada fora da cultura e sem ela. Mas, reciprocamente, dir-se-á que é pela e

27
na educação, através do trabalho paciente e continuamente recomeçado de
uma “tradição docente”, que a cultura se transmite e se perpetua: a
educação “realiza” a cultura como memória viva, reativação incessante e
sempre ameaçada, fio precário e promessa necessária da continuidade
humana. Isto significa que, neste primeiro nível muito geral e global de
determinação, a educação e cultura aparecem como duas faces,
rigorosamente recíprocas e complementares, de uma mesma realidade: uma
não pode ser pensada sem a outra e toda reflexão sobre uma desemboca
imediatamente na consideração da outra. (FORQUIN, 1993, p. 17-18).

Nessa relação entre as faces da mesma moeda foram se desenhando


o perfil da cultura que a escola promove, perpetua, transmite, e o perfil da
cultura que ela própria impõe, com seus protocolos e os currículos que nela
transitam.
Conforme a teoria do Prof. Antônio Flávio Barbosa Moreira, que
aponta a fragilidade da formação inicial dos professores para lidar com essas
variantes do currículo  com o que concordamos indubitavelmente , tanto a
formação inicial como a continuada dos docentes deixam uma lacuna
enorme no que tange à relação entre as teorias e as práticas e, sobretudo, o
atendimento às subjetividades. O professor, por sua vez, por desconhecer o
papel primordial das teorias em sua formação, busca avidamente técnicas e
metodologias que, esvaziadas de sentido, logo se esgotam nelas mesmas,
transformando a procura em círculo vicioso.
Entretanto, ao se referir à necessidade da ênfase no discurso
sociológico na formação do docente, ele enuncia que “não é preciso ler Marx
no original para aprender sobre suas contribuições para o pensamento
pedagógico crítico” (MOREIRA in: COSTA, 2007, p. 76). A propósito da
alienação do trabalhador de seu objeto de trabalho, conforme enuncia Marx,
compreendemos que, se esperamos uma formação que atenda aos anseios
transformadores, precisamos nutrir os profissionais com uma estrutura sólida
de conhecimentos que extrapolem os conceitos mais superficiais com os
quais dinamizamos o currículo.
A escola, como formadora de sujeitos críticos, assim como uma
sociedade que deseje a equidade, depara-se com um grande desafio:
rediscutir essa lógica imobilizadora do capital, trazendo outras possibilidades
de relações sociais no sentido de uma transformação global. Daí a
necessidade de apropriação constante, por parte do professor, da produção
teórica sobre seu trabalho e os instrumentos que os norteiam.
Entendendo que, conforme enuncia Foucault (1977), o espaço
escolar apresenta mecanismos de controle dos corpos e, considerando que
desde a mais tenra idade, esses mecanismos estão dispostos de modo a
atender à formação dos corpos dóceis, pretendemos analisar mais

28
detidamente o período da educação infantil  compreendido entre três meses
e cinco anos e onze meses de idade.

Outras fronteiras: Educação Infantil, sexualidade e currículo


escolar

Desde a criação dos Referenciais Curriculares da Educação Infantil


(RCNEI), documento que norteia as ações pedagógicas entre os pequenos de
norte a sul do país, alinhado com os Parâmetros Nacionais de Educação, a
discussão sobre a sexualidade infantil vem inundando as salas dos
profissionais de educação nas escolas e das creches.
A partir dos estudos psicanalíticos, podemos perceber que a
sexualidade infantil não ocupa apenas o lugar de latência para uma
sexualidade adolescente ou até adulta. A sexualidade se expressa por
intermédio do prazer que é vivenciado na relação com o próprio corpo e na
relação com o outro, sobretudo com a mãe (FREUD, 1977). O chuchar
(sugar com deleite), a relação com áreas erógenas do corpo e a própria
relação de prazer que estabelece com elas torna a expressão da sexualidade
infantil desde o nascimento.
Tais informações nos trouxeram a possibilidade de observar o
universo infantil pela lente das relações de gênero e sexualidade. O conceito
de gênero se apresentou como uma importante categoria de análise das
brincadeiras e das relações infantis. Segundo Joan Scott (1995), gênero é um
elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças
percebidas entre os sexos, que fornece um meio de decodificar o significado
e de compreender as complexas conexões entre as várias formas de interação
humana. É a construção social que uma dada cultura estabelece ou elege em
relação a homens e mulheres. O conceito de gênero implica conhecer, saber
mais sobre as diferenças sexuais e seus significados. Compreender como são
produzidas, pelas culturas e sociedades, as diferenças nas relações entre
homens e mulheres. Portanto, como nos diz Scott (1995), gênero pode ser
entendido como a organização social da diferença sexual, e é na escola que
essa diferença se re/ratifica.
O espaço escolar apresenta uma dinâmica bastante variada,
atendendo a diversos grupos com interesses distintos. Ao observarmos a
educação infantil e suas marcas próprias, percebemos a metodologia de
projetos com ênfase na ludicidade como principais atividades desenvolvidas
entre os pequenos. Sendo assim, um olhar mais cuidadoso sobre o
desenvolvimento da brincadeira parece ser fundamental para a compreensão
da relação entre currículo, sexualidade e educação infantil.

29
A ludicidade na Educação Infantil: ampliando as fronteiras do
fazer pedagógico

A brincadeira ocupa um espaço primordial no planejamento da


Educação Infantil, já que, através dela, a criança elabora o mundo: sua
organização, suas crenças e seus costumes. A materialidade da sociedade é
experimentada através dessas brincadeiras, e o imaginário admite
elaborações das mais diversas. É através da brincadeira que a criança
re/ratifica conceitos, valores e papéis sociais, mesmo sem se dar conta desse
processo, conforme enuncia Kishimoto:

Entende-se que o jogo, por ser uma ação voluntária da criança, um fim em
si mesmo, não pode criar nada, não visa a um resultado final. O que
importa é o processo em si de brincar que a criança se impõe. Quando ela
brinca, não está preocupada com a aquisição de conhecimento ou de
qualquer habilidade mental ou física. (KISHIMOTO, 2000, p. 24).

Daí a importância do olhar atento às brincadeiras planejadas pelo


profissional de educação, nesse estágio de desenvolvimento humano. Ao
experimentar a realidade, sobretudo no tocante às construções sociais, os
valores de nossa cultura são expressos: conceitos e preconceitos. É nesse
momento que a intervenção pedagógica pode fazer a diferença na construção
de uma sociedade equânime.
Ao brincar de super-herói, a criança voa, apresenta superpoderes e
extrapola as condições do humano; em geral, profissionais de educação, pais
e responsáveis lidam muito bem com essa diversidade. Contudo, quando a
experimentação ocorre no âmbito do gênero e/ou da expressão da
sexualidade a intervenção toma contornos, muitas vezes bem definidos.
Quantas vezes ouvimos pelos corredores e salas de aula: “Não,
querido, esse brinquedo é das meninas”. Ou, ainda, “Isso não é
comportamento de uma menina”. Assim, o limite em detrimento do
estabelecimento de fronteiras fica claro. Enfim, o profissional, em geral,
absorve a ideologia dominante, conforme apresentamos anteriormente, e
ratifica conceitos distorcidos sobre gênero e sexualidade, muitas vezes sem
se dar conta. O próprio RCNEI fortalece essa discussão, quando discute o
papel do brincar.

A brincadeira favorece a auto-estima das crianças, auxiliando-as a superar


progressivamente suas aquisições de forma criativa. Brincar contribui,
assim, para a interiorização de determinados modelos de adulto, no âmbito

30
de grupos sociais diversos. Essas significações atribuídas ao brincar
transformam-no em um espaço singular de constituição infantil. (RCNEI,
1998, p. 27).

Sendo assim, o olhar dos profissionais de educação deve estar atento


à condução de atividades que propiciem equidade na oferta de materiais,
comportamentos e desenvolvimento da criatividade entre os pequenos. Nessa
etapa do desenvolvimento, a construção da identidade e das relações
interpessoais ocorre de forma mais significativa exigindo um cuidado
especial, sobretudo em parceria com toda a comunidade escolar e a família.

Considerações finais

Entendemos que transformar a sala de aula em um espaço não


sexista parece ser o grande desafio de profissionais que desejam construir
uma nova pedagogia mais democrática em direção da equidade. Equidade
que enuncia a diferença na igualdade. Esse conceito amplia as noções de
igualdade que vimos discutindo, em prol de uma educação de qualidade,
desde o início da década de 80 do século passado.
Quando nos depararmos com a diversidade em nossos bancos
escolares, passamos a perceber que, ao tratar todas as crianças como se
fossem um só ser, aprofundamos as diferenças, ratificamos preconceitos e
impedimos a riqueza de possibilidades que a relação entre os diferentes pode
proporcionar. O desafio de borrar fronteiras parece ser bem mais palatável
quando profissionais que atuam no cotidiano escolar empoderam-se da
ideologia que ratificam diariamente e têm a possibilidade de refletir sobre
ela.
Lidar com o diferente sugere despir-se de suas próprias convicções,
crenças arraigadas e conceitos cristalizados. Longe de desconsiderar o lugar
social do professor, estamos apontando na direção de colorir esses horizontes
com cores menos determinadas e mais fluídicas. Nos discursos mais
inflamados pela democracia no ensino, o aluno nos parece uma massa
uniforme, que tem as mesmas necessidades, anseios e, consequentemente,
uma identidade única.
Nesse ponto, ressaltamos a importância de uma educação equânime
que, no que diz respeito às categorias de gênero e sexualidade, deve estar
voltada para uma educação para a sexualidade, distante do conceito de
educação sexual. Ao pensarmos a educação para a sexualidade, buscamos
observar as individualidades e planejar atividades que contemplem a
diversidade que essa dimensão do sujeito pode assumir.

31
Trata-se de importante diferencial com relação à chamada educação
ou orientação sexual. Quando educamos para a sexualidade, buscamos não
construir a priori as performances sociais de meninos e meninas, tanto no
tocante às identidades de gênero como no que diz respeito à identidade
sexual. Não cabe orientar as crianças, mas apresentar diferentes formas de
viver suas identidades. Nesse ponto, a brincadeira é um recurso inesgotável
de possibilidades para as experimentações.
Diante do exposto, deixamos um convite aos profissionais da
educação com vistas a construir uma educação atenta ao indivíduo, em que
sua subjetividade seja no campo do gênero, da sexualidade, da etnia e da
posição sociohistórica, como pontos de partida para a construção de sua
escolaridade. Acreditamos que o respeito não se constrói apenas nos
discursos, mas por intermédio de uma prática afirmativa de atenção às
necessidades individuais que possibilite a construção de fronteiras cada vez
mais permeáveis, em detrimento de limites que, por sua essência, indicam a
rigidez de uma sociedade exclusiva.

Referências

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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federal do Brasil:
promulgada em 5 de outubro de 1988. Organização do texto: Juarez de Oliveira. 4.
ed. São Paulo: Saraiva, 1990. 168p. (Série Legislação Brasileira).
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto / Secretaria da Educação
Fundamental / Coordenação Geral de Educação Infantil. Critérios para um
atendimento em creches que respeite os direitos fundamentais das crianças.
Brasília: MEC, 1995.
BRASIL. Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Diretrizes e Bases da Educação
Nacional. Diário Oficial da União, ano CXXXIV, n. 248, 23/12/1996, p. 27833-
27481.
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SEF, 1998.
COSTA, Marisa Vorraber (Org.). A escola tem futuro? Rio de Janeiro: Lamparina,
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para os nacionais fronteiriços brasileiros uruguaios”. In: OLIVEIRA, Tito C. M. de
(Org.). Território sem limites: estudos sobre fronteiras. Campo Grande: Ed. UFMS,
2005, p. 195-228.

32
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conhecimento escolar. Tradução de Guacira Lopes Louro. Porto Alegre: Artes
Médicas Sul, 1993.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes,
1977.
FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição Standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago Editora, v. 7, 1977.
GOODSON, Ivor F. Currículo: teoria e história. Petrópolis: Vozes, 1995.
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da modernidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006, p. 19-111 e 159-198.
KISHIMOTO, Tizuko Morchida. Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. São
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MICHAELIS Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 2007.
MOREIRA, Antônio Flávio Barbosa. A escola poderia avançar um pouco no sentido
de melhorar a dor de tanta gente. In: COSTA, Marisa Vorraber. A escola tem
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SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação &
Realidade. Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, 1995.
SILVA, T. T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 2.
ed., 11a. reimpr. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

33
QUESTÕES DE GÉNERO E ORIENTAÇÃO SEXUAL
EM ESPAÇO ESCOLAR

Eduarda Ferreira

Introdução

A presente comunicação enquadra-se nas interseções entre as


questões de género, orientação sexual e espaço escolar. As identidades
sociais e o espaço têm uma relação mútua de constituição e reprodução, que
nos leva à constatação de que o espaço reflete as relações de poder e os
discursos hegemónicos, e de que a desigualdade se pode perpetuar através
das formas pelas quais o espaço é organizado, vivenciado, representado e
criado (MASSEY, 1999; MITCHELL, 2000; SMITH, 1991; VALENTINE,
2007).
Em particular, as identidades homossexuais têm uma forte relação
com dimensões espaciais. As marchas de orgulho, as vizinhanças auto-
organizadas com ambiente amigável para gays e lésbicas, os espaços
públicos específicos anunciados como seguros e livres de discriminação,
bem como as negociações de identidades relacionadas com os espaços
(assumir a orientação sexual apenas em locais específicos) têm como fator
comum a dimensão espacial.
Os direitos civis relacionados com a orientação sexual em Portugal
registraram um progresso considerável nos últimos anos (ROSENEIL et al.,
2009; FERREIRA e SILVA, 2010). A descriminalização da
homossexualidade em 1982, a união de facto entre pessoas do mesmo sexo
em 2001, o direito constitucional à não discriminação em 2004 e a aprovação
do casamento civil em 2010 foram alguns dos momentos mais significativos
no percurso, ainda inacabado, para a igualdade jurídica. No entanto, apesar
destas mudanças legislativas, a discriminação social em função da orientação
sexual continua a ser uma realidade generalizada (FRA, 2009). O
Eurobarómetro sobre Discriminação na União Europeia de 2009
(EUROPEAN COMMISSION, 2009) mostra que a maioria dos Portugueses
(58%) considera a orientação sexual como o principal fator de discriminação
em Portugal, à frente da origem étnica e da deficiência (ambos 57%) e da
idade (53%). A percentagem da população Portuguesa que aponta a

34
orientação sexual como o principal fator de discriminação é 9% superior à
média dos 27 países da União Europeia (UE).
Uma das formas mais dominantes de discriminação social é a
pressão para ocultar e limitar as sexualidades não normativas aos espaços
privados (VALENTINE, 1993). Em Portugal, um recente estudo sobre o
espaço público e a visibilidade LGBT (FERREIRA, 2011) mostra-nos que a
maioria dos gays e lésbicas restringe as expressões de afeto para com
pessoas do mesmo sexo aos espaços privados. Tendo em conta as mudanças
legislativas e sociais ocorridas em Portugal, é significativo que as/os jovens
lésbicas e gays que participaram no estudo continuem a apresentar
dificuldades em relação às expressões públicas de afeto para com pessoas do
mesmo sexo. O Eurobarómetro sobre Discriminação na União Europeia de
2009 (EUROPEAN COMMISSION, 2009) pode ajudar-nos a contextualizar
estes resultados, ao identificar os mais jovens como os que percecionam a
discriminação em função da orientação sexual como estando mais
generalizada. Mesmo num clima social mais favorável às sexualidades não
normativas, uma maior percepção da discriminação existente pode levar os
mais jovens a limitarem os seus comportamentos em público.
Durante os anos de juventude as questões identitárias assumem
particular relevo, e o espaço escolar é um ambiente privilegiado das
interações dos jovens. Neste contexto, a análise de potenciais impactos do
espaço escolar nas identidades sociais dos jovens pode contribuir para uma
maior compreensão deste tema.
Na presente comunicação serão abordados aspetos relacionados com
questões de género e de orientação sexual, e a forma como o espaço escolar
reflete e promove discursos hegemónicos que potenciam situações de
discriminação e de exclusão.
Num contexto de discriminação social em que o discurso
hegemónico da heteronormatividade está literalmente inscrito no espaço
público, o espaço virtual é muitas vezes utilizado como forma de expressão
da orientação sexual (BUCKINGHAM e WILLETT, 2006). A omnipresença
da tecnologia e das formas digitais de comunicação nas vidas das/os jovens
tornou a comunicação digital tão frequente e natural como a comunicação
face-a-face (GREEN e HANNON, 2007; FERREIRA e TOMÉ, 2010). Neste
contexto é relevante e pertinente fazer a análise de discursos de jovens
produzidos num contexto online. Neste artigo são analisados discursos de
jovens produzidos num fórum online de uma associação de jovens lésbicas,
gays, bissexuais, transgéneros e simpatizantes, com particular ênfase na
discriminação em função da orientação sexual em espaço escolar. De
seguida, são apresentados diversos projetos de intervenção no espaço escolar
português relacionados com a orientação sexual. No final do artigo é feita

35
uma reflexão sobre estratégias de intervenção para tornar a escola um espaço
seguro e inclusivo para todas e todos.
Embora, ao longo do artigo seja, por vezes, usada a sigla LGBT
(lésbicas, gays, bissexuais e transgéneros), este artigo foca essencialmente as
questões relacionadas com a orientação sexual.

Discursos de jovens LGBT na Internet

Para analisar os discursos de jovens LGBT sobre as suas


experiências em espaço escolar foi analisado o fórum online da Associação
rede ex aequo (REA) associação de jovens lésbicas, gays, bissexuais,
transgéneros e simpatizantes.3 Num recente estudo sobre a visibilidade
lésbica, gay, bissexual e transgénero no ciberespaço Português (FERREIRA,
2011) este fórum da REA foi identificado um dos espaços virtuais LGBT
mais participado e ativo.
Este fórum online tem como objetivo ser “um espaço saudável e
seguro para os jovens LGBT ou com dúvidas e seus familiares e amigos,
para esclarecer dúvidas, para quebrar o isolamento e a solidão, para a
discussão de temas LGBT pertinentes e para a promoção de apoio mútuo e
criação de amizades”4. Conta com a participação de cerca de 10.748
membros e tem uma média diária de 482 mensagens e de 30.166
visualizações por dia.5 Um dado interessante é a existência de uma média de
6 novos registos/participantes por dia. O fórum tem regras de utilização bem
definidas e os moderadores asseguram o cumprimento das mesmas. Não é
necessário fazer o registo para se ter acesso a todas as mensagens do fórum,
no entanto o mesmo é necessário para se poder participar e para consultar
áreas restritas, como o subfórum Associados, de acesso exclusivo aos
associados da rede ex aequo.
As identidades online permitem a reflexividade e escolha em termos
de auto-representações e é comum existirem identidades online inventadas
(BELL, 2001). Esta realidade tem de ser tida em conta ao analisarmos as
informações fornecidas nos registos das/os participantes. Mas apesar destas
limitações, é interessante salientar que a relação entre os registos de
participantes de sexo masculino e feminino é de 1:1.2, o que parece indicar
uma maior participação de jovens de sexo feminino. Este dado é
particularmente relevante face a vários estudos que apontam para uma menor
participação das raparigas em contextos online. O relatório E-Generation
3
http://www.rea.pt/
4
http://www.rea.pt/forum/
5
Dados recolhidos dia 13 de junho 2011.

36
relativo a um estudo a nível nacional sobre a utilização das tecnologias de
informação e comunicação em Portugal, coordenado por Gustavo Cardoso
(CARDOSO et al., 2007), aponta para uma maior importância da Internet na
vida dos rapazes; os rapazes utilizam mais tempo e com mais regularidade a
Internet do que as raparigas. Estudos mais recentes apontam para uma
diminuição nas diferenças entre rapazes e raparigas em termos de acesso e
uso básico da Internet, no entanto diversas investigações internacionais sobre
a utilização da Internet sugerem que o género continua a ser um fator
importante em termos da qualidade e da natureza do envolvimento com as
tecnologias (LIFF & SHEPHERD, 2004; LIVINGSTONE et al., 2010;
SELWYN e FACER, 2007; VAN DIJK, 2006).
O fórum está organizado por temas e tópicos. No Quadro 1 podemos
consultar a sua estrutura e o número de tópicos e posts para cada tema.
Tema Tópicos Posts
rede ex aequo
Fórum para assuntos sobre a associação 327 18.507
Geral
Fórum de temática LGBT para jovens de todo o país 939 140.040
Apoio
Fórum para receberes e dares apoio 456 40.038
Pais, Familiares e Amigos
Fórum para pais, familiares e amigos de jovens LGBT 21 1.536
Saúde e Bem-estar
Fórum para assuntos de saúde e bem-estar 107 26.494
Outras Conversas
Fórum para assuntos fora da temática LGBT 491 91.945
Questões Técnicas
Fórum para colocar perguntas sobre o funcionamento do fórum 45 3.314
Fóruns dos Grupos de Jovens Locais (num total de 8 subfóruns
locais)
Quadro 1  Estrutura do Fórum com o número de tópicos e de posts por tema
(dados recolhidos dia 13 junho 2011).

Existe uma grande diversidade de assuntos abordados. São


apresentados alguns exemplos dos tópicos dos temas mais participados no
Quadro 2.

Geral Apoio Saúde e Bem-estar Outros assuntos


 Cantinho dos Novos  Enquanto LGBT,  Pesos … 
Membros preciso de apoio...  HIV & outras IST’s
 Televisão e LGBTs  Dúvidas sobre  Masturbação!
 The L Word identidade sexual  Piercings & Tattoos
 Demonstração de  Ideações suicidas e  Fumas?

37
afetos!! auto-mutilação
 Declarações de Amor  “Medo/receio de
aparecer na 1ª
reunião ou nas
seguintes”
 Desabafos LGBT...
 Estás apaixonado?
 Sinto-me só...
Quadro 2  Exemplos dos tópicos dos temas mais participados
(pesquisa realizada dia 10 de junho 2011).

Este fórum online tem a participação maioritária de jovens e muitos


dos seus tópicos de discussão estão relacionados com as suas experiências
em contexto escolar.
Durante a primeira semana de junho de 2011 foi feita uma pesquisa
dos temas que abordavam questões relacionadas com a escola e foram
analisados os posts com data posterior a maio 2009 (intervalo de 2 anos
relativamente à data da pesquisa). O texto dos posts foi analisado com base
em técnicas das ciências sociais (JACKSON, 2001). Foram utilizadas duas
etapas de codificação, em primeiro lugar foram definidos códigos in vivo a
partir de termos usados pelos próprios participantes no fórum, e em segundo
lugar foram construídos códigos em função das questões em estudo
(STRAUSS, 1987). Na análise dos resultados da codificação, os diversos
códigos foram comparados entre si para gerar os temas dominantes.
Os tópicos do fórum mais participados sobre este assunto, são:
‘Discriminação na escola: como diminuí-la?’; ‘Tiveste/tens problemas de
discriminação na Escola?’; e ‘Bullying’. É interessante a existência de
tópicos sobre: ‘E se a tua turma descobrisse q um/a prof. é gay/lés?’ e
‘Professores LGBT’.
Um dos aspetos mais salientes é o registo de experiências de vários
tipos de discriminação no espaço escolar, não sendo só referidas situações
relacionadas com a orientação sexual. No entanto, a discriminação em
função da orientação sexual é referenciada como potencialmente mais
perturbadora das interações em espaço escolar e do bem-estar físico e
emocional dos jovens. Diversos estudos comprovam a relação entre as
experiências de bullying em contexto escolar e a existências de perturbações
no desenvolvimento sócio emocional de jovens lésbicas, gays e bissexuais,
com consequências negativas que se prolongam ao longo do seu percurso de
vida (EISENBERG e RESNICK, 2006; HATZENBUEHLER, 2011;
LEWIS, 2009; RUSSELL, 2011; SWAHN e BOSSARTE, 2007).

38
Sempre fui muito alta e magra e nerdy por isso, mesmo que eu fosse
heterossexual, eu ia sempre ser gozada. O facto de me chamarem nomes
devido à minha aparência física e ao facto de eu passar muito tempo
sozinha, também fazia com que eu tivesse uma atitude caustica e
desconfiada o que fazia com que ainda me insultassem mais. Até ao 9º ano,
a minha vida não foi muito fácil. [...]
[...] Passei anos da minha vida a pensar que era uma anormal por sentir-me
atraída por mulheres, a pensar que isto não me podia estar a acontecer, não
a mim. tive N paixões platónicas e elas nunca chegaram a saber de nada.
Tinha um medo terrível que se alguém soubesse que eu gostava de
mulheres me rejeitasse também e passei muitos anos a sentir que se alguém
soubesse que sou bissexual, ficava automaticamente sem amigos.
Atualmente, as coisas estão bem melhores, os meus amigos mais próximos
sabem, os namorados que tive, souberam e até já tive uma namorada. Sexo
feminino, 27 anos.6

Normalmente associada a este tipo de discriminação estão relatos de


grande isolamento e sofrimento. Um aspeto relevante é a identificação de
alteração nos padrões de comportamento, que vão para além de episódios
mais ou menos pontuais de agressão física ou verbal. Esta alteração nos
padrões de comportamento potencia a sensação de exclusão e isolamento.

Eu tive alguns p. ex. por volta do nono ano a maioria das raparigas da
minha turma deixou de se despir/vestir no balneário por minha causa...
quando eu entrava elas tapavam-se e esperavam que eu me vestisse e saísse
de lá para depois voltarem à vidinha delas... depois chegavam atrasadas!!!!
Sexo feminino, 22 anos.

A perceção de risco de discriminação pode levar a comportamentos


de evitamento, de medo e antecipação de situações de agressão, com a
consequente limitação da liberdade e da circulação. Este limitar do espaço
sentido como seguro tem consequências na autoestima e no autoconceito dos
jovens.

Conheço quem até tenha um género de fobia de passar perto de grupos de


jovens, receio enorme de dar nas vistas, etc por esse tipo de situações que
se passam nas escolas.
sinceramente? não tenho medo de passar a frente a grupos... Mas se puder
evitar, evito. é que os jovens podem ser muito cruéis... Mas pronto. Todos
somos uma vez ou outra, mas há pessoa que abusam. se calhar é melhor
andar sozinho que mal acompanhado. digo eu. Quem me dera que tivessem
medo de mim xD mas gozam mais comigo, mas este ano vai ser diferente.
Sexo feminino, sem idade registada.
6
Todas as citações são transcrições diretas dos posts do fórum.

39
O isolamento é muitas vezes relatado como uma vivência interior
da/o jovem, mais do que uma realidade exterior efetiva de estar isolado do
convívio com os outros. A perceção de poder ser discriminada/o leva as/os
jovens a desenvolverem estratégias de invisibilidade, com consequências
significativas ao nível do seu desenvolvimento sócio emocional. A
definição/construção dos aspetos da identidade relacionados com a
orientação sexual é um processo difícil, doloroso e inacabado (THOMPSON
e MORGAN, 2008), e os anos de juventude são determinantes no
desenvolvimento do processo identitário. A pressão do meio envolvente no
sentido da invisibilidade de um dos aspetos fundamentais no
desenvolvimento sócio emocional, a esfera afetiva e sexual, pode ter efeitos
prejudiciais significativos e duradouros (RUSSELL, 2011).

Felizmente nunca sofri agressões físicas na escola, mas fui uma criança e
adolescente que estava quase sempre sózinho, costumava ser gozado e
ninguém queria ser meu amigo, nem sequer falavam comigo, fiquei com
um trauma psicológico que até hoje continua presente na minha mente,
embora agora seja uma pessoa mais forte psicológicamente. Sexo
masculino, sem idade registada.

Muitas vezes a estratégia utilizada para lidar com a discriminação


passa por assumir uma postura de agressor/a como forma de proteção, o que
origina uma sensação de isolamento provavelmente ainda maior e o
desenvolvimento de ideias e sentimentos muito negativos em relação à
homossexualidade.

Eu nunca fui discriminado na escola simplesmente porque me juntei ao


lado dos que discriminavam. Já houve alturas em que tive vergonha daquilo
que fazia; agora só tenho ódio. Eu era um dos miudos mais homofobicos da
minha turma e, no entanto, isso nunca me fez deixar de ser homossexual.
Acusar os outros era a melhor maneira de ninguem suspeitar de mim. Isso
ate ao decimo ano. Depois deixei de fazer comentarios homofobicos porque
me desliguei bue da escola. Ha pouco tempo soube que todos os meus
amigos dessa altura sabiam que eu era homossexual (os segredos correm
mais rapido do que os gritos). Ninguem dizia nada. Nem eles, nem eu. O
silencio nao magoa tanto como os insultos. Mas magoa por mais tempo.
Sexo masculino, 29 anos.

Outra das ideias com maior expressão nos discursos dos jovens no
fórum online é a de que os adultos no espaço escolar evidenciam mais
comportamentos de discriminação do que as/os jovens, e de que as/os
professoras/es têm uma grande resistência em abordar temas relacionados

40
com a orientação sexual nas aulas, o que contraria a atual legislação
portuguesa. São referidos comentários negativos e ofensivos em relação à
homossexualidade feitos por professoras/es, e o justificarem não abordar
temas relacionados com a orientação sexual nas suas aulas para não
promoverem a homossexualidade.

Vocês acham que é normal uma diretora de turma, fazer, nas aulas
comentários homofóbicos? Eu já não falo dos colegas, porque é inevitável
que haja sempre aqueles comentários “olha que gay” “panel*iro” entre
outros, mas uma diretora de turma, a falar em “comportamentos anormais”
em relação à homossexualidade é horrível! Sexo masculino, 16 anos.
Sou delegado de turma, e ontem fui a uma reunião intercalar. Um dos
pontos referidos foi a educação sexual, ou seja, aquilo que iria ser abordado
de entre uma variada série de propostas. Obviamente que defendi que
deveria ser abordado a orientação sexual, falando ainda na possibilidade de
contactar a rede. Resultado: Proposta recusada. Motivo: Os Pais. Pois iria
causar muita polémica e muitos pensariam que iria tornar os filhos gays.
Sexo masculino, 18 anos.

Neste contexto é interessante analisar os posts relacionados com a


orientação sexual das/os professoras/es. O fórum online tem a participação
de pessoas de todas as idades, uma vez que não existem limites na inscrição
em função da idade. Mesmo se existisse um controlo da idade dos
participantes, a possibilidade de serem criadas identidade online permitiria
sempre a participação de qualquer pessoa. Algumas/ns professoras/es
também participam neste fórum e é interessante analisar os seus receios
perante a visibilidade da sua orientação sexual. O tema mais recorrente nos
posts das/os professoras/es é a gestão dos vários contextos espácio-temporais
em que tornam a sua orientação sexual visível. Diversos estudos abordam as
estratégias de negociação dos contextos espácio-temporais do processo de
“coming out”7 em que se adota uma postura de visibilidade relativamente à
orientação sexual só em determinados espaços e intervalos temporais
(VALENTINE, 1993; FERREIRA, 2011). Frequentemente estas estratégias
de negociação estão associadas a comportamentos de dissimulação/ocultação
da orientação sexual, a sentimentos de ansiedade e isolamento, e à existência
de conceitos negativos sobre a homossexualidade.

Bem, eu tambem sou assumida com amigos e família. Nas escolas a


história é outra. Quanto a colegas, não costumo abordar o tópico para não
ter que dizer nada sobre isso. com os alunos a questão nem sequer se põe,
porque não exponho a minha vida privada, mas às vezes lá vão fazendo os
7
“Coming out” é o termo utilizado para identificar o ato voluntário, em que o próprio decide
revelar a sua orientação sexual. http://en.wikipedia.org/wiki/Coming_out

41
comentarios ou as perguntas, e eu la vou inventando a historinha. se tiver
alguem na altura digo que é namorado, se nao tiver digo que nao tenho,
mas sou sempre muito generica. Sexo feminino, 24 anos.

É importante salientar que embora muitas/os professoras/es


assumam uma postura de invisibilidade no espaço escolar, alguns expressam
a sua convicção sobre a importância de serem abordados temas relacionados
com a orientação sexual na escola e manifestam disponibilidade para o fazer
nas suas aulas.

Eu como futura professora nao penso em assumirme publicamente perante


a escola onde trabalhar no entanto creio que terei a maior simplicidade em
o fazer com colegas que considere amigos e uma coisa nao dispenso...
puder abordar a tematica com os meus alunos para que estes nao sejam
criados com a discriminaçao que se vive hoje em dia... Sexo feminino, 23
anos.

Um dos tópicos frequentemente discutido no fórum é a existência ou


não de diferenças na discriminação a que lésbicas e gays estão sujeitos. Os
argumentos mais referidos prendem-se, por um lado, com a maior
discriminação dos gays pela perceção de uma vida sexual ativa e algo
promíscua, e por outro lado, com os padrões culturais e comportamentais da
sociedade portuguesa que encaram de forma positiva as expressões afetivas
entre mulheres potenciando a invisibilidade pública das lésbicas.

Para muitos (ignorantes, obviamente!), ser homossexual masculino ainda é


gostar de fornicar com homens e ponto  não é possível haver amor entre
homossexuais ou bissexuais masculinos. Ainda existe a idéia (em cabeças
fechadas) misógina e sexista de que a mulher não tem líbido ou de que para
a mulher o sexo não é importante. Será por isso que pessoas retrógradas
aceitam melhor o lesbianismo, associando-o mais facilmente ao amor ao
invés de sexo por sexo? Sexo masculino, 28 anos.

No entanto, vários argumentos são apresentados que sustentam a


perspetiva de existir uma maior discriminação em relação às lésbicas. Estes
argumentos cruzam as questões de género com as de orientação sexual,
salientando as características patriarcais da sociedade, a posição subalterna
das mulheres em vários contextos de vida, e o maior grau de visibilidade
pública que a homossexualidade masculina tem tido nas sociedades
ocidentais.

As lésbicas sofrem ainda de uma grande invisibilidade, além disso são


discriminadas duplamente, serem mulheres e serem homossexuais.

42
Pelo facto de ser socialmente bem aceite que duas mulheres andem de mãos
dadas na rua, as lésbicas passam invisiveis aos olhos da sociedade, no
entanto essa invisibilidade gera desconhecimento que provoca maior
preconceito ou que leva a maior discriminação. Os gays são atualmente um
pouco menos discriminados pelo facto de já serem “conhecidos à mais
tempo”. Sexo feminino, 21 anos.

Um dos factos mais salientes que ressalta da análise dos posts no


fórum é o sentimento de se estar sozinha/o, de não existir mais ninguém
homossexual nos seus espaços de interação. Mesmo sabendo que a
existência de um clima de discriminação social empurra as pessoas para a
invisibilidade, reforçando o estatuto de minoria da homossexualidade e da
bissexualidade, a falta de outros “iguais” é um sentimento particularmente
notório e forte.

Não vos parece que não existe ninguém ou quase ninguém LGB para além
de vocês? Na minha escola só sei de um rapaz que é e porque é evidente...
parece impossivel encontrar alguém... Bem, acho que também não me
devia queixar... Ninguém sabe que sou gay, talvez haja mais pessoas como
eu que não tão assumidas por terem medo das reacçoes e isso... a minha
escola, no geral, é bué homofóbica, raros são os dias em que não oiça um
comentario a gozar. Que raio de sociedade. Sexo masculino, sem idade
registada.

A grande maioria dos jovens LGBT vive em contextos familiares,


escolares e sociais heteronormativos, em que é esperado que eles/as sejam
heterossexuais. Nestes contextos a socialização da sua orientação sexual é
limitada. Esta realidade não promove a aprendizagem de estratégias para
lidar com a discriminação social que enfrentam, nem facilita a
consciencialização de que a exclusão social não está relacionada com as suas
características individuais mas sim com o contexto heteronormativo em que
vivem (RUSSELL, 2011). A falta de modelos positivos e visíveis para as/os
jovens homossexuais e bissexuais no seu processo de desenvolvimento é um
dos fatores determinantes para as dificuldades enfrentadas por lésbicas, gays
e bissexuais relatadas neste fórum.
De seguida são analisados projetos de intervenção em espaço escolar
em que a área de intervenção prioritária está relacionada com a orientação
sexual, e que promovem a visibilidade de sexualidades não-heterossexuais.

Projetos sobre orientação sexual em contexto escolar

43
De acordo com o relatório sobre Homofobia, Transfobia e
Discriminação em função da Orientação Sexual e Identidade de Género, da
Agência Europeia de Direitos Fundamentais (FRA, 2010), não é suficiente a
existência de leis anti-discriminação; é fundamental divulgar informação
fidedigna sobre experiências LGBT, e promover ativamente a aceitação
pública das identidades, comportamentos e relacionamentos LGBT, em
todos os países membros da União Europeia.
A educação é uma das áreas prioritárias de intervenção para a
promoção de uma sociedade mais inclusiva e respeitadora da diversidade.
Em Portugal, temos alguns exemplos de legislação que suporta e promove
estes princípios. A Lei da Educação Sexual em Meio Escolar (Lei n.º
60/2009 de 6 de agosto), apresenta como duas das finalidades da educação
sexual: “f) O respeito pela diferença entre as pessoas e pelas diferentes
orientações sexuais; [...] l) A eliminação de comportamentos baseados na
discriminação sexual ou na violência em função do sexo ou orientação
sexual”. O IV Plano Nacional para a Igualdade: Género, Cidadania e Não
Discriminação (2011-2013)8 na área estratégica 11 (Orientação Sexual e
Identidade de Género) inclui as seguintes medidas: “66. Sensibilizar
profissionais de áreas estratégicas para as questões da orientação sexual e
identidade de género” (inclui-se a área estratégica da educação); “67.
Promover a sensibilização de públicos juvenis para as questões da orientação
sexual e identidade de género”; e “68. Promover a dotação das redes
bibliotecárias municipais e escolares de uma oferta diversificada e inclusiva
na área da orientação sexual e identidade de género”.
No entanto, da lei à prática a distância é grande e existem poucos
projetos desenvolvidos no espaço escolar em que a área de intervenção
prioritária esteja relacionada com a orientação sexual. Consideramos
particularmente interessante que os projetos existentes com maior
dinamismo e alcance sejam promovidos por uma associação de jovens
lésbicas, gays, bissexuais, transgéneros e simpatizantes, com idades
compreendidas entre os 16 e os 30 anos, a rede ex aequo (REA).
Neste artigo apresentamos alguns dos projetos desenvolvidos pela
REA que abordam questões relacionadas com o facto de as escolas em
Portugal ainda não serem um espaço seguro para muitos jovens
homossexuais, bissexuais e/ou transgéneros, ou percecionados como tal:
Observatório de Educação  de dois em dois anos, é enviado ao Ministério
da Educação um relatório com a informação recolhida através de um
formulário online de queixas sobre situações de discriminação respeitantes
ao tema da orientação sexual e identidade de género que tenham ocorrido em
estabelecimentos escolares em Portugal, com o objetivo de que o Estado
8
http://www.igualdade.gov.pt/index.php/pt/menu-legislacao/planos-nacionais/588-resolucao-
do-conselho-de-ministros-no-52011

44
possa ter maior consciência dos problemas de agressão psicológica e/ou
física sofrida por jovens, professores e funcionários, assim como das
ocorrências de veiculação de informação incorreta, preconceituosa e
atentatória dos direitos humanos das pessoas lésbicas, gays, bissexuais,
transgéneras, no espaço escolar; Projeto Inclusão  campanha de cartazes
contra o bullying homofóbico nas escolas do 3º Ciclo do Ensino Básico,
Ensino Secundário e Ensino Universitário em Portugal, e realização de
formações sobre Bullying Homofóbico na Escola para profissionais que
trabalhem com jovens, com o objetivo de combater a discriminação e
preconceito que a juventude lésbica, gay, bissexual e transgénera é
confrontada nas escolas; Projeto Educação  organização de debates em
Escolas Básicas ou Secundárias em Portugal, e distribuição de brochuras
para professores e alunos, sobre Orientação Sexual e Identidade de Género,
com o objetivo de divulgar informação sobre os temas da homossexualidade,
bissexualidade e transgenerismo entre professores e alunos do 7º ao 12º ano,
formadores de professores, professores estagiários e alunos do Ensino
Superior.
O projeto Observatório de Educação9 já produziu 3 relatórios com
a informação recolhida através de um formulário online de queixas sobre
situações de discriminação respeitantes ao tema da orientação sexual e
identidade de género que tenham ocorrido em estabelecimentos escolares em
Portugal, nomeadamente em 2006, 2008 e 2010. O relatório de 2010 do
Observatório de Educação (REA, 2011) publicado em maio 2011, apresenta
os resultados de 103 formulários a reportar casos de homofobia e transfobia,
recebidos pelo Observatório entre novembro de 2008 e dezembro de 2010,
de adolescentes a partir dos 13 anos a adultos, na sua maioria alunos, mas
também professores e funcionários. Os participantes dividem-se em 56
pessoas do sexo feminino, 46 do sexo masculino e 1 transexual feminina. Os
relatórios de 2006 e de 2008, apresentavam respetivamente 20 formulários e
92 formulários. Tendo em conta que o período de recolha é de dois anos,
com exceção de 2006 que foi de 9 meses, estes números são francamente
reduzidos. Algumas razões apontadas pela REA para o número reduzido de
queixas são: muitas das vítimas não terem acesso e/ou conhecimento deste
Observatório, e o facto de muitas pessoas LGBT viverem sentimentos de
exclusão, isolamento, baixa autoestima e segregação social no mais profundo
silêncio. Apesar da dimensão do número das queixas apresentadas, a análise
qualitativa dos dados recolhidos permite entendermos melhor alguns aspetos
da realidade vivida nas escolas portuguesas pelos jovens LGBT. Apresentam
queixa quer as próprias vítimas quer testemunhas de situações de homofobia
ou transfobia. Os participantes do sexo masculino homossexuais ou
bissexuais são os que apresentam mais queixas enquanto vítimas de
9
http://www.rea.pt/observatorio.html

45
homofobia, mas os números de queixas apresentadas enquanto testemunhas
são semelhantes para ambos os sexos. As queixas de agressões verbais ou
psicológicas são as mais frequentes, perpetuadas por alunos e
maioritariamente no espaço escolar.
Um resultado particularmente relevante é o reduzido número de
vítimas que efetivamente apresenta queixa à Direção da escola ou às
autoridades. As razões apontadas prendem-se com o receio de as autoridades
tratarem o caso de forma leviana e pouco sigilosa, medo de retaliações ou de
piorar a situação, vergonha, e não quererem tornar pública a sua orientação
sexual.

[Não apresentei queixa] Porque não sou assumida, e se apresentasse algum


tipo de protesto acabaria por ter que assumir. 17F B Lisboa. (REA, 2011, p.
14).
[Não apresentei queixa] Por medo e sobretudo por vergonha. Também não
queria que os meus pais soubessem da minha orientação [sexual]. 19F B
Setúbal. (REA, 2011, p. 14).

Muitas vezes são os próprios agentes educativos, professores e


funcionários que são perpetradores de agressão, rompendo com o seu dever
enquanto profissionais de não terem comportamentos baseados na
discriminação em função da orientação sexual.

Senti-me indignado e maltratado por um professor achar normal propagar


homofobia no espaço escolas, durante uma aula. Senti que eu, juntamente
com outros colegas, fomos abusados num ambiente em que estávamos
vulneráveis porque nunca poderíamos reagir sob pena de praticamente estar
a fazer um coming out perante um anfiteatro cheio de estudantes. 21M G
Aveiro. (REA, 2011, p. 18).

Os jovens têm dificuldade em identificar adultos em que confiem


para falar sobre as agressões de que são vítimas, sendo o isolamento social o
sentimento mais dominante nas queixas apresentadas nestes relatórios. São
feitos relatos de situações de baixa autoestima, depressão, abuso de
substâncias e tentativa de suicídio, que estão em linha com resultados de
diversos estudos académicos que identificam estas situações como possíveis
consequências da discriminação e preconceito em jovens LGBT
(EISENBERG e RESNICK, 2006; HATZENBUEHLER, 2011; LEWIS,
2009; RUSSELL, 2011; SWAHN e BOSSARTE, 2007).

Eu sofria imenso por sentir que não podia ter uma adolescência igual à dos
meus amigos no que dizia respeito ao amor e à sexualidade. Tinha muita
consciência de mim próprio, e via-me como alguém que tinha tudo o

46
essencial  era bom aluno, tinha uma família com quem me dava bem e
amigos e perspetivas de futuro  mas não tinha nenhum namoro, não
conseguia participar nas conversas sobre gostar desta ou daquela pessoa,
sobre experiências, sobre sexo, também. E sentia que era capaz de trocar
tudo o resto por isso, por um bocadinho disso, por poder dar a mão à pessoa
de quem gostava, por poder falar à vontade do que sentia e olhar na direção
em que queria olhar mesmo que não fosse correspondido, mas pelo menos
não o seria às escondidas, como era o caso. 21M G Lisboa. (REA, 2011, p.
19).

O Projeto Inclusão10 tem como objetivo


combater a discriminação e preconceito com que a
juventude lésbica, gay, bissexual e transgénera é
confrontada nas escolas, através de uma campanha de
cartazes contra o bullying homofóbico nas escolas do 3º
Ciclo do Ensino Básico, Ensino Secundário e Ensino
Universitário em Portugal, e a realização de formações
sobre Bullying Homofóbico na Escola para profissionais
que trabalhem com jovens. Este projeto é financiado pela
Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG)
via Programa EEA Grants e pelo Instituto Português da
Juventude.
Foi lançada uma campanha de cartazes e postais
contra o bullying homofóbico nas escolas do 3º Ciclo do
Ensino Básico, Ensino Secundário e Ensino Universitário
em Portugal, e foram organizadas formações a nível
nacional (de outubro de 2010 a abril de 2011) sobre o
Bullying Homofóbico na Escola e a realidade da
juventude LGBT. Estas formações tinham como objetivo
que os participantes pudessem vir a ser agentes de Figura 1: Exemplo de postal utilizado na
formação nos seus próprios locais de trabalho e junto dos campanha do Projeto Inclusão
seus pares.
O Projeto Educação11 é um projeto contínuo da associação que visa
uma intervenção educacional através da disseminação de informação sobre
os temas da homossexualidade, bissexualidade e transgenerismo entre
professores e alunos do 7º ao 12º ano, formadores de professores,
professores estagiários e alunos do Ensino Superior. São organizados
debates nas escolas, a pedido das mesmas, dinamizados por jovens oradores
voluntários da REA, com idades compreendidas entre os 18 e os 30 anos.
Estes jovens recebem formação para serem oradores sobre a temática LGBT.

10
http://www.rea.pt/inclusao/
11
http://www.rea.pt/projectoeducacao/

47
Nos debates, para além da abordagem de temas LGBT, os jovens também
dão o seu testemunho pessoal, sendo importante realçar a postura de
visibilidade assumida por estes jovens num contexto de discriminação social.
No entanto, em entrevistas individuais realizadas a alguns destes jovens no
contexto do meu trabalho de investigação sobre a visibilidade LGBT em
Portugal, foram identificadas algumas situações interessantes de analisar.
Muitos dos jovens que desenvolvem estas atividades nas escolas e assumem
uma postura de visibilidade pública da sua orientação sexual nestes espaços,
não assumem a sua orientação sexual em contexto familiar nem no trabalho,
e não têm comportamentos afetivos com pessoas do mesmo sexo em espaços
públicos (FERREIRA, 2011). O estigma e preconceito associados à
homossexualidade podem fomentar a utilização de estratégias de negociação
de diferentes identidades sexuais em diferentes contextos espácio-temporais
(VALENTINE, 1993).
O Projeto Inclusão e o Projeto Educação utilizam materiais
produzidos pela REA para alunos e professores: Perguntas e Respostas
Sobre Orientação Sexual e Identidade de Género 12 e Educar para a
Diversidade: Um Guia para Professores sobre Orientação Sexual e
Identidade de Género13.
Estes projetos revestem-se de particular importância, não só pelas
atividades desenvolvidas a nível nacional, mas principalmente por serem
concebidos, desenvolvidos e implementados por jovens LGBT, que tomam
nas suas mãos a tarefa de promoverem a mudança no sentido de uma
sociedade mais igual e inclusiva.

A escola como espaço seguro e inclusivo: reflexão sobre


estratégias de intervenção

Apesar de as orientações de políticas de igualdade na União


Europeia incluírem a divulgação de informação fidedigna sobre experiências
LGBT e a promoção ativa da aceitação pública das identidades,
comportamentos e relacionamentos LGBT (FRA, 2010), ainda são raros os
exemplos de práticas efetivas que consubstanciem estas orientações.
No relatório Discrimination on grounds of sexual orientation and
gender identity in Europe, publicado pelo Conselho da Europa em junho
2011, é identificada a falta de qualidade e a abordagem heteronormativa no
que concerne às questões relacionadas com a orientação sexual, dos

12
http://www.rea.pt/arquivo/perguntas.pdf
13
http://www.rea.pt/arquivo/professores.pdf

48
materiais educativos existentes na esmagadora maioria dos países da União
Europeia (COUNCIL OF EUROPE, 2011).
No caso específico de Portugal, mesmo considerando a existência de
um enquadramento legislativo favorável ao desenvolvimento de intervenções
em espaço escolar que promovam o respeito pelas diferentes orientações
sexuais e a eliminação de comportamentos baseados na discriminação sexual
ou na violência em função do sexo ou orientação sexual (Lei n.º 60/2009 de
6 de agosto, Lei da Educação Sexual em Meio Escolar), os poucos exemplos
que existem são promovidos por associações LGBT e não pelos organismos
públicos.
Orientações difundidas pelo Conselho da Europa salientam o facto
de ser obrigação das direções das escolas providenciarem um ambiente
seguro para alunas/os e professoras/es LGBT, garantindo que estão
protegidos contra práticas de bullying (COUNCIL OF EUROPE, 2011). No
entanto, não é esta a realidade existente nas escolas portuguesas. Os
resultados do Observatório da Educação, relatados neste artigo, e diversas
notícias divulgadas pela comunicação social mostram uma realidade em que
prevalecem atitudes de homofobia por parte das/os responsáveis pelas
escolas portuguesas.
Um dos exemplos mais mediáticos de manifestação de homofobia
por parte da direção de uma escola ocorreu em Vila Nova de Gaia na Escola
Secundária António Sérgio, em novembro de 2005, quando duas alunas
foram admoestadas pela direção por terem manifestações de carinho, como o
beijar ou dar as mãos no espaço escolar. Os comportamentos afetivos entre
jovens no espaço escolar são comuns e frequentes. Qualquer pessoa que
trabalhe ou visite uma escola com alunos com mais de 13/14 anos,
certamente presencia diversos comportamentos afetivos entre jovens. Estes
comportamentos não têm qualquer consequência negativa para os jovens
envolvidos; mas se os comportamentos ocorrem entre jovens do mesmo sexo
a realidade é substancialmente diferente. Neste caso é frequente existirem
atitudes discriminatórias por parte da comunidade educativa, que podem
incluir situações de agressão e de bullying. O que é particularmente grave
neste exemplo é a atitude oficial da direção da escola que penalizou as
alunas, em vez de as proteger contra situações de discriminação, como é sua
obrigação. Este é apenas um exemplo entre muitos outros que ocorrem nas
escolas portuguesas, mas que não têm cobertura mediática e como tal
passam despercebidos na opinião pública.
Um estudo recente sobre o espaço público e a visibilidade LGBT em
Portugal (FERREIRA, 2011) mostra-nos que a maioria dos gays e lésbicas
restringe as expressões de afeto para com pessoas do mesmo sexo aos
espaços privados. Esta opção está relacionada com o contexto de
discriminação social e com a inscrição do discurso hegemónico da

49
heteronormatividade no espaço público, o que limita a visibilidade de
sexualidades não-heterossexuais. Tendo em conta as mudanças legislativas e
sociais ocorridas em Portugal nos últimos anos, é particularmente relevante
nos resultados deste estudo a conclusão de que as/os jovens lésbicas e gays
continuam a apresentar dificuldades em relação às expressões públicas de
afeto para com pessoas do mesmo sexo.
Para além de situações específicas de discriminação nas escolas, é
sobremaneira importante o papel do Ministério da Educação na definição e
implementação de políticas educativas para a igualdade. E neste âmbito a
situação não é mais animadora. Dois serviços do Ministério da Educação,
Direção-Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular e o Núcleo de
Educação para a Saúde, Ação Social Escolar e Apoios Educativos,
recusaram apoiar a distribuição nas escolas dos materiais do Projeto
Inclusão, uma campanha da responsabilidade da rede ex-aequo, já referida
neste artigo. O projeto tem como objetivo promover o combate à homofobia
e à transfobia nos estabelecimentos de ensino, e foi apoiado e financiado por
uma outra entidade estatal, a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de
Género. A justificação para a recusa em distribuir os cartazes e os folhetos,
que promovem a não discriminação de jovens gays e lésbicas, é o alegado
cariz ideológico dos mesmos. Diversos comentários de responsáveis do
Ministério de Educação, não assumidos oficialmente, apontavam para o
facto deste projeto ser considerado não uma campanha contra a
discriminação, mas sim uma campanha de promoção da homossexualidade.
Este tipo de argumentação é comum a muitas outras situações. Um
dos exemplos mais recentes ocorreu no Brasil, quando a Presidente Dilma
Roussef, secundada pelo Ministério de Educação, vetou a circulação oficial
dos materiais produzidos pelo Projeto Escola Sem Homofobia. Estes
materiais, habitualmente designados como “kit anti-homofobia”, foram
elaborados por especialistas e organizações não governamentais, como a
Pathfinder do Brasil, a ECOS  Comunicação em Sexualidade, e a
Reprolatina  Soluções Inovadoras em Saúde Sexual e Reprodutiva, em
trabalho realizado durante três anos em parceria com o Governo Federal. O
Kit foi avaliado pelo Conselho Federal de Psicologia, pela UNESCO, pela
UNAIDS, entre outras organizações, e foi analisado pelo Departamento de
Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação do Ministério da Justiça e pela
Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, que o consideraram adequado
para uso no Ensino Médio.
É interessante salientar que a divulgação sistemática, omnipresente e
dominante de imagens e mensagens relacionadas com a heterossexualidade
nunca é identificada como podendo ser negativa por promover a
heterossexualidade nos jovens. Estamos claramente perante uma situação de
preconceito e de discriminação.

50
Pelos exemplos relatados ao longo deste artigo podemos constatar
que a escola é um dos espaços onde jovens lésbicas, gays e bissexuais são
alvo de preconceito e discriminação. A escola tem como funções, entre
outras, formar as/os jovens para a cidadania, educar para a igualdade de
oportunidades e desenvolver o respeito pelos direitos humanos, e como tal
deve ser um dos locais prioritários de intervenção na luta contra a
discriminação.
Algumas propostas de estratégias de intervenção e políticas
educativas, baseadas nas propostas da Agência Europeia de Direitos
Fundamentais, que podem contribuir para a promoção da escola como um
espaço mais seguro e inclusivo para todas e todos, são:

Não assumir a universalidade da heterossexualidade


A constante suposição de que todas as pessoas são heterossexuais
torna invisíveis todas as outras formas de orientação sexual. Essa
invisibilidade dificulta a construção positiva de uma identidade não-
heterossexual. A linguagem utilizada no espaço escolar deve ser inclusiva,
i.e., sempre que se fale de questões relacionadas com as relações
interpessoais, deve existir referência explícita às várias formas possíveis de
orientação sexual, não limitando o discurso à heterossexualidade.

Garantir o direito à igualdade de oportunidades


A escola deve garantir o direito de todos os elementos da sua
comunidade à igualdade de oportunidades e de não discriminação. Para que
isto se torne efetivo, é necessário que sejam tomadas medidas dissuasivas de
todo e qualquer comportamento que colida com o respeito pelo outro. Uma
das formas de tornar esta prática possível é nomear entre os princípios pelos
quais a escola se rege o respeito pela diversidade e neles incluir,
explicitamente, a não discriminação em função da orientação sexual.

Disponibilizar documentação sobre questões relacionadas com


orientação sexual
Disponibilizar documentação com informação fidedigna sobre
experiências LGBT, em locais bem visíveis e de fácil acesso a todos os
estudantes e restantes elementos da comunidade educativa. Se a
documentação for colocada em locais pouco acessíveis e de alguma forma
menos visíveis, só contribui para reforçar a ideia de que falar de orientação
sexual é algo que não deve ser feito de forma aberta e explícita, promovendo
a invisibilidade destas questões.

Proporcionar modelos de comportamento não-heterossexista

51
Provavelmente, a forma mais eficaz de reduzir o heterossexismo é,
de uma forma sistemática e consistente, desenvolver comportamentos que
reforcem positivamente a diversidade e que condenem atos de discriminação
de qualquer tipo. Por exemplo, utilizar linguagem que demonstre respeito
pelo outro, intervir em situações de agressão verbal ou física, e incluir nas
aulas imagens diversificadas relativas aos afetos e formas diversas de
organização das famílias, não utilizando exclusivamente exemplos
heterossexuais, são algumas formas que podem proporcionar modelos
positivos.

Conclusões

O presente artigo abordou as questões de discriminação em função


de orientação sexual em contexto escolar, a partir da análise de discursos
produzidos por jovens LGBT num fórum online. Foram também
apresentados diversos projetos em desenvolvimento nas escolas portuguesas
relacionados com a discriminação em função da orientação sexual. As
políticas europeias e nacionais relacionadas com questões de igualdade,
foram o ponto de partida para a reflexão sobre estratégias de intervenção e
de políticas educativas no sentido de uma sociedade mais justa, igual e
respeitadora da diversidade. No final do artigo foram delineadas algumas
propostas que podem contribuir para a promoção da escola como um espaço
mais seguro e inclusivo para todas e todos.
Na análise global do trabalho apresentado ressalta uma ideia
fundamental: mais do que as mudanças legais, é urgente promover a
mudança social; e a visibilidade das orientações sexuais não-heterossexuais
no espaço público é um elemento essencial para a promoção dessa mudança
e para a igualdade efetiva na sociedade. Considerando que o clima social
ainda é dominado pela discriminação social, sabemos que a visibilidade de
uma orientação sexual não-heterossexual torna as pessoas vulneráveis e
expostas. Por isso entendemos que a visibilidade das orientações sexuais
não-heterossexuais no espaço público não deve ser da responsabilidade
exclusiva das pessoas individuais, mas também do próprio estado através das
suas instituições, como, por exemplo, as escolas públicas.
Para que este tipo de intervenção seja possível é necessário
desenvolver um sistema de valores não-heterossexista. Esta é uma tarefa
difícil se tivermos em consideração como todos nós fomos sujeitos a uma
educação repleta de modelos quase exclusivamente heterossexuais. Estes
modelos estiveram presentes não só na família e na escola, mas também nos
espaços públicos, na comunicação social, etc. O mundo à nossa volta, a

52
televisão, os filmes, as revistas, estão permanentemente a bombardear-nos
com imagens e estereótipos de relações amorosas entre um homem e uma
mulher. As músicas, filmes e livros que falam de amor e sexualidade, são
quase na sua totalidade sobre relações heterossexuais. Perante este cenário,
não é expectável que se consiga desenvolver competências que nos
permitam ter uma atitude não-heterossexista (FERREIRA, 2008). É
necessário disponibilizar formação adequada e específica. E tendo em conta
o momento atual em Portugal, em que tanto se fala de projetos de
concretização de políticas de educação sexual nas escolas, é não só
pertinente, mas urgente, proporcionar este tipo de formação às/aos
professoras/es e a todos os elementos da comunidade educativa.
Consideramos que a formação, nesta área, para ter potencial de mudança,
deverá incidir não só sobre questões específicas relacionadas com a
orientação sexual, mas também em como lidar com comportamentos
discriminatórios e em como educar para a igualdade e respeito mútuo.
Os profissionais da escola devem estar preparados para lidar com
todos os estudantes com que trabalham, incluindo os de orientação
homossexual, as suas famílias e também com aqueles que provêm de
famílias homoparentais. Devem ser desenvolvidas competências para
poderem responder a situações em que exista discriminação em função da
orientação sexual, independentemente das suas crenças pessoais. Não é
necessário que cada professor/a ou profissional de educação tenha uma
atitude pessoal favorável à homossexualidade; o que é imprescindível é que,
enquanto profissional, proporcione igualdade de tratamento a todos os
elementos da comunidade educativa.

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55
QUESTÕES DE GÉNERO E ORIENTAÇÃO SEXUAL EM
DOIS ESTUDOS DE CASO SOBRE EDUCAÇÃO SEXUAL
NO ENSINO BÁSICO EM PORTUGAL

56
Maria João de Jesus Duarte Silva
Cláudia Abrantes
Ana Carina Dias
Raquel Magalhães

Introdução

No presente artigo, apresentam-se e analisam-se episódios de dois


estudos de caso sobre a implementação da educação sexual no 2º ciclo do
ensino básico (5º e 6º anos de escolaridade) em Portugal, refletindo-se sobre
as questões de género e a sua relação com as questões de orientação sexual.
Esta reflexão enquadra-se num contexto sociocultural que integra um quadro
legislativo coerente e bastante largo, mas onde ainda falta fazer a transição
da igualdade “de jure” para a igualdade “de facto” (PAIS, 2010).
A abordagem realizada neste artigo baseia-se num conceito de
sexualidade que se centra na forma como cada pessoa se relaciona consigo,
com os outros e com o mundo em geral (APF, 2011), estando estas relações
fundadas na identidade sexual que, por sua vez, integra o sexo biológico, a
identidade de género, os papéis sexuais e a orientação sexual (SHIVELY e
DE CECCO, 1977).
O presente trabalho parte ainda da convicção de que o essencial é
educar no sentido do reconhecimento da diversidade da sexualidade humana
e do respeito pelo outro (FERREIRA, 2008). Aliás, de acordo com a
Constituição da República de Portugal (artigo 73º), a escola deve
proporcionar um espaço seguro a todos os jovens, educar para a igualdade de
oportunidades e desenvolver o espírito da tolerância e do respeito mútuo
(FERREIRA, 2008).
A igualdade entre mulheres e homens e a não discriminação
constituem, aliás, princípios fundamentais da Constituição da República
Portuguesa (RESOLUÇÃO DO CONSELHO DE MINISTROS N.º 5/2011).
A Constituição determina ainda, no seu artigo 9º, que é tarefa do Estado a
promoção da igualdade entre homens e mulheres (CIG, 2009). De igual
forma, no seu artigo 13º, a Constituição determina que todos os cidadãos têm
a mesma dignidade social e são iguais perante a lei e que ninguém pode ser
privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento
de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de

57
origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação
económica, condição social ou orientação sexual (CIG, 2009).
De acordo com o Fórum Económico Europeu, Portugal fez
significativos progressos nos últimos anos no que se refere à igualdade entre
homens e mulheres (CITE, 2010). Aquele Fórum analisou a situação da
igualdade de género em 134 países, tendo como parâmetros de avaliação a
redução das disparidades de género, no âmbito da participação económica e
política, no exercício do poder, direção e governância, empreendedorismo,
educação e saúde (CITE, 2010). Portugal entrou pela primeira vez no grupo
dos 35 países com mais igualdade de género no mundo (CITE, 2010). Mas o
relatório, denominado Global Gender Gap Report 2010, conclui também que
as mulheres continuam a ocupar menos posições de direção e a receber
salários, em média, inferiores aos dos homens, em trabalhos de igual valor,
mantendo-se a generalizada situação de fosso salarial entre homens e
mulheres e entre posições de chefia (CITE, 2010).
Na área da orientação sexual e identidade de género, é de destacar
que, em 2010, Portugal legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo
e, em 2011, simplificou o regime de mudança de sexo e nome no registo
civil das pessoas transexuais.
Elza Pais, Secretária de Estado para a Igualdade, refere que o IV
Plano Nacional para a Igualdade, instrumento, por excelência, de políticas
públicas nesta área, transitou da abordagem “Cidadania e Género” para a
abordagem “Género, Cidadania e Não Discriminação”, cruzando as questões
de género com todas as outras áreas de discriminação (PAIS, 2010). O
referido Plano criou uma área denominada “Orientação sexual e identidade
de género”, que inclui medidas que visam fazer as políticas chegar até às
pessoas, nomeadamente (PAIS, 2010): sensibilizar a população em geral, e
em particular a população mais jovem, para a discriminação de gays,
lésbicas, bissexuais e transexuais; capacitar profissionais de saúde, de
educação, forças de segurança, entre outros, para a intervenção nesta área.
No entanto, pode ainda observar-se quotidianamente em Portugal, e
nomeadamente nas escolas, a relação entre as questões de género e a
discriminação homofóbica. Ainda são bem visíveis, nas escolas portuguesas,
as manifestações dos estereótipos de género ligadas aos comportamentos
homofóbicos.
Na secção seguinte, será brevemente retratado o contexto legal e
educacional da educação sexual em Portugal. Seguidamente, serão
apresentadas e discutidas algumas atividades dos dois estudos de caso em
apreço, após o que se sintetizarão as principais conclusões.

58
Educação sexual em Portugal

Contexto legislativo

Apenas após a abolição da ditadura em Portugal, em abril de 1974, é


que começaram a surgir grupos de pessoas que defendiam a necessidade da
educação sexual na escola, devido, principalmente, às mudanças ocorridas
noutros países europeus e ao número elevado de adolescentes grávidas
(FRADE et al., 2003). Mais tarde, o aparecimento e aumento de casos de
IST, como a SIDA, foi outro fator que contribuiu para que a educação sexual
se fizesse nas escolas (FRADE et al., 2003).
A partir de 1977, a Direção-Geral do Ensino Básico solicitou aos
professores de Ciências da Natureza que incluíssem aspetos de educação
sexual na rubrica “Reprodução” nos conteúdos do atual 6º ano
(MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO et al., 2000). Passados quase dez anos, a
Assembleia da República aprovou a primeira lei regulamentando a educação
sexual e o planeamento familiar (LEI Nº 3/84 de 24 de março).
Em 1986 é aprovada a Lei de Bases do Sistema Educativo (LEI Nº
46/86, de 14 de outubro), que reconhece a necessidade, o direito e o dever da
escola promover a educação sexual. Em 1999, é publicada a Lei Nº 120/99,
de 11 de agosto, reforçando o direito da promoção da saúde sexual onde já se
fazia referência à SIDA e a outras IST, às relações interpessoais, à partilha
de responsabilidades e à igualdade entre os géneros (RAMALHO, 2008).
Entre o ano 2000 e 2010, a legislação que regula a educação
sexual foi sofrendo modificações (ver Quadro 1), sendo que
atualmente a aplicação da Educação Sexual nas escolas é
regulamentada através da Portaria Nº 196-A/2010, de 9 de abril, que
consagra o carácter de obrigatoriedade desta área. Nela, o Ministério
da Educação estabelece as orientações curriculares relativas aos
conteúdos a abordar na Educação Sexual. Os conteúdos definidos
devem ser trabalhados no âmbito da Educação para a Saúde, nas
áreas curriculares não disciplinares complementarmente com as
áreas curriculares disciplinares.

59
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e iliar
a des ão dár
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e
Lei Nº 3/84 X X
Lei Nº 46/86 X X X
Lei Nº 120/99
X X X X X X X
Decreto-Lei Nº 259/2000 X X X X X X
Decreto-Lei Nº 6/2001
X X X X X X X
Lei Nº 12/2001
X X X
Despacho Nº 25 995/2005 X X X X X X X
Lei Nº 60/2009 X X X X X X X
Portaria Nº 196-A/2010 X X X X X X X X X

Quadro 1: Síntese do enquadramento legal e respetivos elementos-chave, em


Portugal.

A carga horária dedicada à Educação Sexual difere para cada nível


de ensino, não podendo ser inferior a 6 horas para o 2º ciclo do ensino
básico. De acordo com a referida Portaria Nº 196-A/2010, a Educação
Sexual deve ser desenvolvida em parceria entre a escola e as famílias, de
modo a respeitar o pluralismo das conceções existentes.
Segundo esta recente Portaria, os objetivos mínimos para o 2º ciclo
do ensino básico devem contemplar os seguintes conteúdos: Puberdade 
aspetos biológicos e emocionais; O corpo em transformação; Caracteres
sexuais secundários; Normalidade, importância e frequência das suas

60
variantes biopsicológicas; Diversidade e respeito; Sexualidade e género;
Reprodução humana e crescimento; Contraceção e planeamento familiar;
Compreensão do ciclo menstrual e ovulatório; Prevenção dos maus tratos e
das aproximações abusivas; Dimensão ética da sexualidade humana.
O presente artigo centra-se na análise da abordagem dos conteúdos
“Diversidade e respeito” e “Sexualidade e género” realizada em dois estudos
de caso.

Modelo(s) de abordagem

Segundo Ewles e Simnett (1999), podem-se distinguir cinco tipos de


abordagens de Promoção da Saúde, consoante o objetivo que se pretende:
Médica, Alteração de Comportamentos, Educacional, Centrada no Utente e
de Alteração Social. No mesmo entendimento, a Educação Sexual tem
também diversos modelos e abordagens, que foram surgindo ao longo do
tempo, algumas delas cruzando-se com as abordagens de promoção de
saúde.
Serrão (2009) refere que o Modelo de Educação Sexual para a
Revolução Sexual e Social, o Modelo de Educação Sexual como Educação
Moral (associado às abordagens médica e de alteração de comportamentos
na Promoção da Saúde) e o Modelo de Educação Sexual como forma de
Evitar Riscos (também associado à abordagem de alteração de
comportamentos na Promoção da Saúde) são denominados modelos médico-
preventivos ou biológicos por Vaz et al. (2006).
O quadro normativo existente em Portugal, que regula a Educação
Sexual como componente da educação, aponta para um conceito da
Educação Sexual que engloba tanto os aspetos biológicos e médicos como os
da formação pessoal e social (RAMALHO, 2008). Enquadra-se no modelo
de abordagem de promoção de saúde denominado Centrado no Utente e no
Modelo de Educação Sexual denominado “Desenvolvimento Pessoal e
Social” (SERRÃO, 2009).

Intervenção curricular em educação sexual: dois estudos de


caso exploratórios

Enquadramento

61
Nesta secção apresentam-se e reflete-se sobre os resultados de dois
estudos de caso de carácter exploratório que se centraram na intervenção
curricular em educação sexual. Os dois estudos realizaram-se ao longo de
cerca de dois meses em duas escolas do norte de Portugal e, em ambos, a
intervenção foi realizada por uma professora que era simultaneamente
investigadora. Os dados foram recolhidos utilizando a observação
participante, registos áudio e fotográficos, assim como os registos dos
alunos. No tratamento dos dados recolhidos pelas gravações áudio recorreu-
se à análise de conteúdo.
Um dos estudos de caso foi desenvolvido com uma turma de 5º ano
de escolaridade e outro com uma turma de 6º ano. A turma de 5º ano
integrava 27 elementos (12 de sexo feminino e 15 de sexo masculino), sendo
a sua média de idades de 10 anos, tendo um deles 12 anos. Habitam em
freguesias limítrofes à escola, maioritariamente com pai e mãe (destacando
dois que vivem monoparentalmente com a mãe e outros dois que moram
com outros familiares que não os pais). Destaca-se que dois elementos do
sexo masculino apresentam problemas comportamentais, sendo que esses
problemas ocorrem maioritariamente fora da sala de aula, no recreio.
A turma de 6º ano era constituída por 26 elementos (8 de sexo
feminino e 18 de sexo masculino), com idades compreendidas entre os 10 e
os 13 anos, sendo 11 a sua média de idades. Também neste caso, habitam em
freguesias limítrofes à escola, maioritariamente com o pai e com a mãe, com
a exceção de três alunos que vivem apenas com a mãe. Há também três
alunos que, além de morarem com ambos os pais, habitam simultaneamente
com os avós. É uma turma que apresenta dificuldades no cumprimento de
regras, com manifestações de falta de concentração e de empenho, havendo,
por vezes, conflitualidade, não revelando espírito de entreajuda.

Atividades sobre características masculinas e femininas

Nas atividades realizadas nos dois estudos de caso, trabalharam-se


os conteúdos: Puberdade  aspetos biológicos e emocionais; O corpo em
transformação; Caracteres sexuais secundários; Normalidade, importância e
frequência das suas variantes biopsicológicas; Diversidade e respeito;
Sexualidade e género; Reprodução humana e crescimento; Contraceção e
planeamento familiar. No entanto, apenas serão aqui apresentadas algumas
das atividades que abordaram as questões de género.
Embora trabalhando os mesmos conteúdos, com os mesmos
objetivos, as atividades desenvolvidas em cada estudo de caso foram

62
diferentes. No que se refere às características e comportamentos masculinos
e femininos:
 O estudo de caso do 5º ano de escolaridade integrou as seguintes
atividades: “Comportamentos Masculino ou Feminino?”, “Tarefas e
Responsabilidades da Família” e “Estou Satisfeito/a como Sou!”;
 O estudo de caso do 6º ano de escolaridade integrou as atividades
“Elaboração dos cartazes: Senhor, senhora, homem, mulher, rapaz, rapariga”
e “Atividade interativa: questões de género em características próprias e de
uma personagem”.
Na atividade “Comportamentos Masculino ou Feminino?” (adaptada
de NETO et al., 2008), foi pedido aos/às alunos/as que formassem grupos
heterogéneos relativamente ao seu sexo. Foram referidos alguns
comportamentos que os/as alunos/as tinham de qualificar como masculinos
e/ou femininos e após a resolução da atividade os resultados foram debatidos
e registados. A análise dos resultados permite constatar a presença de
sexismo nas respostas. Como exemplos de estereótipos, podem referir-se:
 Todas as respostas classificaram o comportamento “Passar a roupa
a ferro” como feminino, apesar de um aluno ter afirmado “o meu pai às
vezes passa a camisa dele a ferro” e outro ter referido que “o meu grupo
disse que eram as mulheres, mas se um homem morar sozinho tem de ser ele
a arrumar a casa e a passar a roupa a ferro!”. Realce-se, ainda, que uma
aluna declarou: “para mim dar a ferro é um castigo!”.
 Sete respostas classificaram “Conduzir um camião” como
masculino e apenas duas o classificaram como feminino.
Torna-se interessante constatar que o comportamento “Usar
maquilhagem” foi classificado sete vezes como feminino e apenas uma
como masculino, sendo que um aluno afirmou “há homens que usam cremes
e pintam-se”. Outros alunos evidenciaram exceções: “os rapazes também
podem usar! No carnaval!”; “os palhaços usam!”. Um outro aluno disse “só
se for gay!”, ligando a questão de género à da orientação sexual e
confundindo papel de género com orientação sexual.
Com o decorrer da atividade, facilmente encontravam situações onde
se podiam observar todos os comportamentos descritos em indivíduos de
ambos os sexos. Também nesta atividade foram mais os alunos do sexo
masculino a participar, sendo até um deles a exemplificar como as raparigas
urinavam de pé (o comportamento “Urinar de pé” foi sete vezes classificado
como masculino e apenas uma como feminino).
Na atividade “Elaboração dos cartazes: Senhor, senhora, homem,
mulher, rapaz, rapariga”, dividiu-se a turma de 6º ano em seis grupos e
atribuiu-se um dos seguintes termos a cada um deles: Masculino, Homem,
Senhor, Feminino, Mulher ou Senhora. Solicitou-se que, na cartolina
distribuída a cada grupo, escrevessem todos os termos que se relacionassem

63
com a palavra que lhes havia sido atribuída. Podiam pensar em vários temas:
profissões, sentimentos, atividades...
No que concerne às profissões, foram selecionadas, entre outras,
segurança para o sexo masculino e afirmaram que “segurança é mais de
homem, mas também há mulheres seguranças” e que “pode ser um polícia e
uma mulher polícia”. A propósito desta última afirmação, os alunos
acrescentaram que há mais homens na profissão de polícia porque esta “é
uma profissão perigosa” e “as mulheres têm medo”. Quando questionados
sobre a profissão de babysitter, escolhida para mulher/senhora/feminino, não
tiveram qualquer dúvida em asseverar que “há mais mulheres”, que estas
“sabem mais tomar conta das crianças” e “passam mais tempo com as
crianças”. No entanto, a determinada altura, surge uma discussão entre dois
alunos em que um defende que um homem também sabe cuidar de crianças e
exemplifica com a situação de um homem viúvo, já o outro continuava a
afirmar veemente que as mulheres passam mais tempo com as crianças e têm
mais jeito para tal. Depois de questionados sobre as restantes profissões,
acabam por afirmar que “todas as profissões podiam ser tanto de homem
como de mulher”.
Na atividade “Tarefas e Responsabilidades da Família” (adaptada de
NETO et al., 2008), foi pedido aos elementos da turma de 5º ano que
preenchessem a tabela “Tarefas Domésticas” conforme achassem ser uma
atividade a realizar pelo “João” ou pela “Joana”. As respostas indicaram que
a maioria das tarefas propostas poderia ser realizada por qualquer um dos
sexos, destacando-se as atividades de lavar a loiça, lavar a roupa e passar a
ferro como maioritariamente femininas e lavar o carro e fazer reparações
como tarefas maioritariamente masculinas. Mais uma vez, se constata que as
respostas das/os alunas/os ainda não refletem a igualdade de género definida
no quadro legal português.
Na “Atividade interativa: questões de género em características de
uma personagem e próprias” (COLECTIVO HARIMAGUADA, 2007;
SILVA, 2010), foram projetadas as seguintes características, sem
classificação “feminino” ou “masculino”: empreendedor, responsável,
afetuoso, cuidadoso, seguro, amável, com dotes de liderança, dialogante,
divertido, valente, sabe chorar, forte, carinhoso, desportista, terno, criativo,
sensual, emotivo, solidário. Foi solicitado às/aos alunas/os que sugerissem
algumas características tradicionalmente atribuídas às mulheres e aos
homens. As características masculinas sugeridas foram as tradicionalmente
utilizadas para este sexo: bruta, campeã, destemida e poderosa. Já nas
características femininas observa-se uma tendência para a falsidade:
mentirosa, traiçoeira e traidora. Registe-se o carácter agressivo/negativo do
vocabulário e características escolhidas pelas/os alunas/os.

64
Requereu-se, posteriormente, que os/as alunos/as escolhessem uma
personagem a seu gosto e que selecionassem, com base nas características
expostas e nas características propostas por eles, dez termos que pudessem
representar a figura por eles eleita.
Os/as participantes deste estudo selecionaram as seguintes
personagens: Mickey, David Carreira, Júlia Pinheiro, Cristiano Ronaldo,
Brolylegendarysupersayian. Observa-se, de imediato, que apenas uma
personagem é do sexo feminino sendo que duas das restantes são bonecos
animados. No que concerne às características selecionadas pelos diversos
grupos, verifica-se que na personagem Brolylegendarysupersayian todas as
características selecionadas são as identificadas inicialmente como
tipicamente masculinas (bruta, campeã, desportista, esperta, forte, líder,
poderosa, segura, solidária e valente) tendo acrescentado dois termos à lista
fornecida: animadora e musculosa. Já as restantes personagens apresentam,
no mínimo, duas características que identificaram como pertencentes ao sexo
oposto. O Mickey e o David Carreira considerados como amáveis e
carinhosos, e o Cristiano Ronaldo caracterizado, por exemplo, como sensual,
incerto e estiloso. É na personagem Júlia Pinheiro (uma apresentadora muito
popular na televisão portuguesa) que se observa um maior “equilíbrio” entre
as características que os próprios alunos identificaram como
tradicionalmente femininas ou masculinas, pois reconheceram esta
personagem como sendo líder, poderosa, valente e chata e ao mesmo tempo
como cuidadosa, carinhosa e amável.
Sequencialmente, solicitou-se aos/às alunos/as que escolhessem seis
características com que mais se identificassem (pessoalmente), informando-
se que poderiam manter o anonimato, sendo suficiente registar “sexo
masculino” ou “sexo feminino”. Nestas escolhas individuais verificou-se
que, apesar das características selecionadas mais frequentemente pelos
alunos serem desportista, forte e responsável, a verdade é que também os
termos cuidadoso, amável, carinhoso e sabem chorar foram escolhidos por
vários elementos masculinos da turma. No que concerne às escolhas das
alunas, as mais frequentes incidiram sobre amável e solidária, mas também
foram selecionadas desportista, líder e valente.
No cômputo geral, podemos afirmar que aquando a realização da
atividade interativa, facilmente os alunos identificaram as características que
eram consideradas tipicamente femininas ou masculinas. No entanto, quando
escolheram as características para a personagem selecionada e para si
próprios, tenderam a ultrapassar os estereótipos de género.
Na atividade “Estou Satisfeito(a) como Sou!” (adaptada de
SANDERS e SWINDEN, 1995), optou-se por dividir os alunos em grupos
unissexuais no sentido de os consciencializar sobre os seus sentimentos em

65
relação ao sexo a que pertencem. As questões e as respetivas respostas
podem ser consultadas no Quadro 2.

Opções dos alunos Frequência


 não podemos estar grávidos 3
 não se usa maquilhagem 2
Estou satisfeito por  não se usam sapatos de tacão 2
ser rapaz porque…  podemos fazer cristas no cabelo 1
 somos muito corajosos 1
 podemos ter um nome masculino 1
 sou feminina 1
 sou feliz 1
 gosto de ter filhos 1
 somos brincalhonas 1
Estou satisfeita por  gostamos muito de rapazes 1
ser rapariga  gostamos de fazer as tarefas de casa 1
porque…  somos mais inteligentes 1
 gostamos da nossa maneira de ser 1
 somos mais bonitas 1
 somos mais honestas 1
 temos comportamentos diferentes dos rapazes 1
 podia ficar grávida e dói muito 3
 usava maquilhagem e faz impressão 2
 andava de totós no cabelo 2
 não queremos ser muito críticos, mas tínhamos menos força e 1
coragem
Se fosse rapariga  fazia mais vezes a cama 1
eu…  andava de sutiã 1
 podia gostar de rapazes porque normalmente as raparigas gostam 1
de rapazes
 gostava de ser Maria Rapaz porque gostava de jogar futebol e ser 1
desportista
 não gostava de usar tacão alto para ficar mais alta 1
Se fosse rapaz eu…  não pintava as unhas 1
 não usava sutiã 1
 não podia ter filhos 1
 fazia a barba 1
 conduzia os carros 1
 não passava a ferro 1
 não punha a mesa 1
 lavava o carro 1
 jogava futebol 1
 talvez fosse mais forte e mais corajoso, embora as raparigas 1
também o fazem

66
 podia fazer desporto praticado pelos rapazes 1
 podia ter profissões diferentes adaptadas ao sexo masculino 1
Quadro 2: Opções das/dos alunas/os na atividade “Estou satisfeito/a como sou!”.

Mais uma vez, a análise dos resultados permite constatar a presença


de sexismo nas respostas das/os alunas/os, detetando-se estereótipos de
género relativos ao desempenho de tarefas domésticas, a características de
personalidade (coragem) e a papéis de género (usar maquilhagem e de
sapatos de tacão, praticar desporto, jogar futebol...), entre outros exemplos.
No que se refere à relação género  orientação sexual, constata-se que uma
aluna ao referir “podia gostar de rapazes porque normalmente as raparigas
gostam de rapazes” pode estar a considerar a minoria homossexual, embora
a inclusividade da sua resposta possa ser questionada, dada a utilização da
expressão “normalmente” (que pode significar “mais frequentemente” mas
também pode significar “se for normal”).
Quando colocada a questão “É possível ser homem/mulher e fazer
ou ter algumas das características listadas nos grupos das
mulheres/homens?”, as respostas foram afirmativas, tendo sido dada a
justificação “dá para as mulheres fazerem quase tudo o que os homens
fazem”. Esta justificação pode ser enquadrada na teorização que tem sido
realizada em alguns estudos feministas (LANDSTRÖM, 2007): a
feminilidade pode ser considerada como algo que as mulheres têm e podem,
ou não, expressar, o que torna o papel de género feminino “maleável” e o
masculino “congelado”.

Atividade sobre papéis sexuais nas relações íntimas

Na turma de 6º ano, foi desenvolvida a “Atividade baseada numa


‘imagem assexuada’” (PRAZERES, 2010): projetou-se a imagem (ver
Figura 1) e pediu-se a cada aluna/o que, individualmente, elaborasse uma
história sobre a mesma. Após análise das histórias, verificou-se que todos/as
consideraram as personagens como constituindo um casal heterossexual. A
maioria dos elementos da turma considerou que a personagem da esquerda,
posteriormente denominada “Personagem 1”, seria a mulher e a da direita
(Personagem 2) seria o homem.

67
Figura 1: Imagem “assexuada” (LOVE SESSIONS, 2010)

Posteriormente à composição da história, colocaram-se


algumas questões, sendo as respostas possíveis: “Personagem 1” ou
“Personagem 2”.
Questão Personagem 1 Personagem 2 Ambos
Quem deu o primeiro passo para que fosse possível
4 12 0
aquele encontro?
Quem sente mais a responsabilidade de conduzir o
11 15 0
que se está a passar?
Quem fica mais na expectativa? 18 8 0
Quem fala primeiro? 8 18 0
Quem manifesta primeiro o desejo de maior
10 16 0
intimidade sexual?
Quando tal acontece, quem deve fazê-lo? 6 20 0
Se for manifestada, por ambos, a intenção de ter
relações sexuais, a quem cabe falar na utilização de
13 6 7
métodos contracetivos e de prevenção de infeções de
transmissão sexual?
Quadro 3 : Respostas dos/as alunos/as às questões sobre a imagem “assexuada”.

Verificou-se que na maioria das respostas (ver Quadro 3), os alunos


selecionaram a Personagem 2 (considerada homem) como a responsável pelo
desenvolvimento do encontro e por tomar as iniciativas, especialmente na
questão “Quando tal (desejo de maior intimidade sexual) acontece, quem
deve fazê-lo?”. Já a Personagem 1 é a que fica “mais na expectativa”.
Apenas na última questão mencionaram e registaram que poderiam ser
ambos responsáveis pela ação mencionada, sendo de salientar, no entanto,
que mesmo assim a maioria optou pela “Personagem 1” no que concerne a
esta responsabilidade.

68
Após a realização destas atividades promoveu-se um debate sobre a
atividade, sendo interessante atentar à seguinte transcrição de um excerto dos
registos áudio:

AF: Mas oh ‘stora, já pode dizer quem é o homem e a mulher na imagem?


D: O homem é do lado direito e a mulher é do lado esquerdo.
AF: É… oh ‘stora, eu sou uma mulher e abraço o Bruno... Não quer dizer
que seja o homem o do lado direito.
T: O homem é maior.
R: A mulher é mais magrinha e o homem é mais gordo.
AF: Olha para mim e para o Bruno. Se fossemos um casal eu era mais
gorda e ele mais magro.
Prof.: Quem é que acha que a do lado esquerdo é uma mulher?
(Levantam todos o dedo, exceto um aluno)
JP: Pode ser um homem e outro homem ou uma mulher e outra mulher.
Prof.: Mas quando fizeram a história, TODOS consideraram um casal
heterossexual. Nenhum de vós falou na possibilidade de ser um homem e
outro homem ou uma mulher e outra mulher.
AF: ‘Stora, então se fosse eu e a ‘stora. Quem é que dava o primeiro passo?
Eu ou a ‘stora?
Prof.: No casal homossexual pode ser qualquer uma das mulheres ou
qualquer um dos homens. Mas coloco a questão: vamos supor que a
personagem dois era o rapaz e a personagem um era a rapariga, tal como
estavam a assumir inicialmente (se bem que já sabemos que pode ser ao
contrário e que pode ser um casal homossexual). Quem é que acha que
deveria ser a personagem dois a tomar a iniciativa para o encontro?
R: Normalmente são os rapazes que pedem às raparigas.
D: Foi a minha mãe que pediu em casamento o meu pai!
Após este debate, um aluno afirma “Professora, nestas coisas pode ser tanto
o homem como a mulher. Depende da personalidade de cada um”.

Torna-se interessante salientar que as respostas iniciais e


espontâneas foram unânimes quanto à heterossexualidade do casal, o que
revela uma atitude heterossexista, que, no entanto, é colocada em questão
por um aluno (JP: Pode ser um homem e outro homem ou uma mulher e
outra mulher). No que se refere aos comportamentos que as pessoas de cada
sexo “devem ter” nas relações de namoro ou similares, os/as alunos/as
revelaram, espontaneamente e uma vez mais, atitudes sexistas, que, também
uma vez mais, foram contestadas após debate e confronto com casos reais.

Conclusão

69
Este artigo apresentou e analisou episódios de dois estudos de caso
sobre a implementação da educação sexual no 2º ciclo do ensino básico em
Portugal, tendo como objetivo contribuir para a necessária reflexão, em
contextos escolares, sobre as questões de género e a sua relação com as
questões de orientação sexual.
Todos/as os/as participantes nestes dois estudos de caso
manifestaram, como era esperado, uma intensa curiosidade pelo tema.
Apesar de as duas turmas participantes serem turmas com características
diferentes  a turma de 5º ano era mais calma, ordenada na participação e
sem recurso ao calão e a do 6º ano mais indisciplinada, ruidosa, e com
vocabulário de alguma forma mais agressivo, usando por vezes calão  os
resultados dos dois estudos, no que se refere às questões de género e de
orientação sexual, foram muito similares.
Alunos e alunas evidenciaram conceções e atitudes sexistas face a
comportamentos e características de pessoas, classificando-as de acordo com
estereótipos de género. Apesar de, nas discussões que se seguiam às
classificações, reconhecerem que tais comportamentos e atitudes podem ser
encontrados quer em pessoas do sexo feminino quer em pessoas do sexo
masculino, ficava claro que alunos e alunas realçavam que se tratava de
minorias e/ou exceções. Para elas/es, era evidente que a maioria das pessoas
se comporta de acordo com o “(pres)suposto”.
Os diálogos e as atividades que requeriam uma análise mais aplicada
e específica, de personagens (de ficção ou mediáticas) concretas, conduziram
à desconstrução, mesmo que pontual, de estereótipos de género.
Também na atividade sobre questões de género nas relações íntimas
se evidenciaram atitudes sexistas e heterossexistas, que foram sendo
desconstruídas ao longo do debate e por confronto dos estereótipos com
exemplos concretos e reais.
Estes factos parecem confirmar alguma eficácia deste tipo de
atividades de educação sexual centradas nas questões de género. Por outro
lado, as alunas e os alunos mostraram reconhecer que as docentes desejavam
atitudes inclusivas, mudando as suas respostas (heteros)sexistas e
espontâneas para um discurso “quase inclusivo”, o que ilustra a importância
dos modelos que os/as professores/as oferecem às suas alunas e aos seus
alunos.
Deseja-se que este artigo possa contribuir para a promoção da
igualdade de género nas escolas, bem como para a prevenção da
discriminação e da violência homofóbica e de género. Até porque:

É preciso, assim, atentar para o fato de que a lógica de “homossociabilidade


homofóbica” própria de determinados espaços sociais (como bares, times e
torcidas organizadas de futebol, forças armadas, internatos, conventos,

70
seminários etc.) pode encontrar, no interior das escolas, novos meios e
oportunidades para produzir, reproduzir ou alimentar mecanismos de
discriminação e violência contra estudantes mulheres, LGBT, bem como
todo indivíduo cuja expressão de gênero parecer destoar da tida como
convencional. (JUNQUEIRA, 2009).

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73
Parte II
Espaços generificados e poder

74
COLOCANDO GÊNERO NA GEOGRAFIA:
POLÍTICA E PRIORIDADES

Janice Monk

Nos dias atuais é comumente aceita a ideia de que a pesquisa em


geografia é “situada”. Isso implica não somente considerar que o lugar é um
tema para a compreensão do nosso mundo, mas também que “aquilo” que
nós estudamos e “como” interpretamos o mundo são moldados por onde nós
mesmos nos situamos enquanto pesquisadores, não apenas geograficamente,
mas também pessoalmente, em termos de nossas identidades, prioridades e
modos de saber.
Neste texto, eu quero pautar três aspectos de como os estudos de
gênero estão situados na geografia. Minhas observações focarão as formas
em que os diferentes aspectos da política (pessoal, institucional e nacional /
global) afetam o que realizamos e o que temos possibilidade de realizar em
termos de pesquisas de gênero na geografia. Não vou enfatizar as questões
teóricas e as abordagens metodológicas da pesquisa, uma vez que elas têm
sido discutidas de forma considerável na literatura. Vou me ater a outros três
importantes temas que fazem parte do nosso trabalho cotidiano como
pesquisadores na área de gênero: 1) culturas e práticas organizacionais e
acadêmicas; 2) ensino; e 3) conexões com comunidades e movimentos
sociais fora do meio acadêmico.
Há muito tempo estas questões elencadas acima têm sido meu foco
de interesse. Em 1994, procurei analisar, por meio de uma série de estudos
de caso, a produção da geografia feminista em Place Matters (MONK,
1994). Depois voltei a este interesse coeditando, com Maria Dolors García-
Ramon, um volume da revista Belgeo, em 2007, sob o tema Feminists
Geographies Around the World. Esse último trabalho foi realizado a partir
da conferência que Maria Dolors organizou em Barcelona em 2006.

75
Grande parte da minha atenção ao estudo comparativo está
relacionada à minha participação na União Geográfica Internacional (UGI),
mais precisamente na Comissão de Gênero e Geografia. Eu compilei os
boletins de notícias da Seção Gênero da UGI por mais de duas décadas e
também gerenciei e mantive atualizada a lista de correio eletrônico de
pesquisadores de gênero de várias partes do mundo. Essas tarefas foram
recompensas, não só de forma profissional, mas também pessoal, pela
conquista de amizades prazerosas, oportunidades de visitar e colaborar com
geógrafos feministas em uma série de outros países, bem como conhecer as
múltiplas formas de realização dos trabalhos de gênero. Eu reconheço que
não posso ser abrangente neste texto e que minhas interpretações serão
parciais, limitadas especialmente pela língua. Além disso, devo reconhecer
que, como uma “outsider”, vejo o contexto aqui analisado de forma diferente
do ponto de vista de um pesquisador “insider”. Entretanto, tentei incluir
interpretações de geógrafos que me foram cedidas de diferentes partes do
mundo.

Desenvolvimento organizacional

Para ilustrar o desenvolvimento organizacional, começarei com um


breve relato sobre o surgimento e o trabalho da Comissão de Gênero e
Geografia dentro da UGI, assunto que examinei com mais detalhes em outro
texto (MONK, 2008). Análises semelhantes, como aquelas apresentadas nos
artigos da edição de 2007 da revista Belgeo, puderam identificar a forma
como se desenvolveu a atenção ao gênero dentro de vários contextos
regionais, nacionais ou subnacionais, apesar de haver diversidade de
detalhes.
As primeiras sessões acadêmicas dentro da União Geográfica
Internacional sobre gênero na geografia ocorreram em 1981 e 1982. A
primeira, quando sete artigos tratando de mulheres e gênero foram
apresentados em uma conferência na Califórnia, organizada pela Comissão
da UGI sobre o Desenvolvimento Rural. O objetivo de apresentar os artigos
no encontro era desenvolver uma conscientização feminista dentro das
correntes majoritárias da ciência geográfica. Os autores eram procedentes
dos EUA, Reino Unido e México. No ano seguinte, uma conferência na
Sardenha, sob os auspícios da Comissão da UGI sobre Geografia da
População, tratou de mulheres e migração. Nesta conferência estavam
presentes participantes da Ásia, América do Sul, EUA e Austrália. Alguns
dos artigos apresentados no evento foram publicados posteriormente em
italiano, e outros em inglês, em uma revista indiana. Esses trabalhos não são

76
usualmente mencionados nas interpretações sobre o início da história da
geografia feminista, e as citações tendem a recorrer a fontes britânicas, em
que os temas relacionados com mulheres e trabalho atraem mais atenção.
Os encontros na Califórnia e na Sardenha ilustram que determinados
sub-ramos da geografia dentro da UGI naquela época eram vistos como
relevantes para estudos das mulheres e gênero. Além disso, as lideranças
dessas comissões eram abertas para a introdução das pesquisas sobre as
mulheres, e as geógrafas que iniciaram os programas de pesquisa de gênero
já haviam formado laços acadêmicos com os líderes das duas referidas
comissões. As redes pessoais, desde o início, foram importantes para
promover o reconhecimento e a visibilidade dos estudos de gênero na
geografia em níveis internacionais e também nacionais.
A formação de redes mais amplas e uma possível institucionalização
da pesquisa de gênero dentro da UGI foram iniciadas no Congresso de Paris,
em 1984. Foi um desafio fazer os organizadores do Congresso reconhecerem
a legitimidade do pedido de uma reunião sobre gênero, apesar de a
solicitação ter sido feita com bastante antecedência ao Congresso. Os
organizadores não registraram a reunião de gênero no programa impresso,
nem especificaram um horário ou local para sua realização. No entanto, nós
conseguimos organizar uma reunião informal no local, em que cerca de
cinquenta pessoas participaram. Os participantes concordaram que ainda não
era hora de solicitar que um grupo formal dedicado a estudos de gênero fosse
desenvolvido dentro do UGI, mas decidiram criar uma lista de
correspondência com pessoas interessadas em permanecer em contato.
O exemplo citado anteriormente levanta questões sobre os desafios
em ganhar voz (e espaço) no campo científico. Entretanto, também nos leva
a questionar a necessidade de buscar uma autorização oficial ou, como
alternativa, podemos continuar trabalhando informalmente com outros
grupos já estabelecidos. Minha resposta a essas questões, depois de um
longo tempo, é de que não se trata de “uma ou outra” escolha, mas sim de
“ambas”. É preciso uma identidade separada, mas também é necessário
cooperar com os outros. A prática subsequente revelou que ambas são
valiosas. A Comissão de Gênero organizou vários eventos separados, mas
também, muitas vezes, colaborou em programas conjuntos com outras
Comissões da UGI, por exemplo, geografia política, educação geográfica,
saúde e desenvolvimento, geografia econômica e urbana. Uma vantagem de
trabalhar em separado é que discussões aprofundadas sobre gênero podem
ser alcançadas. E uma vantagem da colaboração é que as perspectivas de
gênero podem ser disseminadas a outros públicos.
Em 2011, um pouco mais de 500 pessoas estão na “listserv” da
Comissão de Gênero da UGI, embora nem todas estejam ativamente
envolvidas. Não é possível dar uma descrição precisa da distribuição

77
geográfica dos participantes. Grande parte deles usa endereços de internet,
como gmail ou yahoo, que não identificam o país de residência. Uma análise
da “listserv” de 2006 (ver Figuras 1 e 2), quando as localizações poderiam
ser facilmente identificadas, mostra algumas ausências e agrupamentos
distintos. Notáveis lacunas regionais estavam na Europa Oriental, África,
Ásia, Oriente Médio e América Central e do Sul, embora a UGI como
instituição inclua afiliações destas áreas do mundo. Relatórios sobre as
atividades de outras Comissões da UGI evidenciam que elas podem ter uma
distribuição geográfica internacional diferente daquela constatada na
Comissão de Gênero.


(Inserir Figuras 1 e 2 aqui)

Os mapas nos levam a especular como a política nacional e as


economias entram em jogo, bem como os idiomas. Uma simples, embora
incompleta, interpretação do agrupamento reflete não apenas o domínio
anglófono, mas também a liderança local, e tradições acadêmicas.
Consideremos, por exemplo, os evidentes números superiores de membros
afiliados à Comissão de Gênero na Espanha e na Itália em comparação com
os da França e da Alemanha. Cada um dos grupos estabeleceu significativas
comunidades geográficas de gênero, mas os paradigmas científicos vigentes
e as relações de poder muitas vezes inibem tanto o trabalho quanto o apoio
aos estudos de gênero pelos geógrafos.
Na Espanha, por exemplo, tem havido lideranças sustentadas pela
construção de programas e redes internacionais na Universidade Autônoma
de Barcelona, e na Itália houve a colaboração das geógrafas feministas para
além das fronteiras institucionais. Estas geógrafas desenvolveram volumes
especiais de revistas sob a temática de gênero e trabalharam em conjunto
para promover a inclusão das perspectivas de gênero no planejamento de
conferências nacionais na comunidade científica geográfica italiana.
Outras lacunas também reveladas nos mapas provavelmente refletem
questões políticas e profissionais específicas. No contexto da América do Sul
e Central, por exemplo, surge a questão de por que somente a Argentina e o
Brasil se vincularam à Comissão a partir de 2006.
As mudanças nesse quadro podem ocorrer em um tempo
relativamente curto, especialmente quando as lideranças locais emergem e a
organização das conferências do campo da geografia focam ou incluem
perspectivas de gênero, trazendo novas pessoas para contatos internacionais.
Isso ficou evidente com o crescimento da participação da Argentina na
“listserv” da Comissão de Gênero da UGI depois de 1997. O idioma e as

78
relações pessoais foram, mais uma vez, importantes. A pesquisadora
espanhola Maria Dolors García-Ramon, em função de sua língua, era
conhecida na Argentina não somente pelas suas pesquisas na área de gênero,
mas também por causa de seu trabalho na história da geografia.
A geógrafa espanhola fez palestras em Buenos Aires e Mendoza em
1995, e ela foi também convidada para ser palestrante no Encontro de
Geógrafos da América Latina (EGAL) em 1997, quando discursou sobre a
pesquisa de gênero. Naquele EGAL, uma mesa-redonda também ofereceu
apresentações de pesquisas de gênero e oportunidades de constituição de
redes de comunicação que introduziram geógrafos que não eram ligados à
Comissão. O mais notável exemplo de expansão de conexões internacionais
da Comissão de Gênero tem sido o caso da Índia. Desde a Conferência
“Contextualising Geographical Approaches to Studying Gender in Ásia”, em
2010, a comunidade indiana na “listserv” da Comissão de Gênero da UGI
saltou de algumas poucas pessoas para mais de setenta, constituindo o maior
grupo nacional na lista de afiliados.
Na escala regional, houve casos importantes de esforços
colaborativos para avançar nos estudos de gênero. Eles se valeram de
oportunidades políticas e ilustram aspectos de gestão, diferenças de
pressupostos e práticas culturais. Um caso significativo é a série de cursos
que se beneficiaram das metas da política e recursos financeiros da União
Europeia. Durante o período de 1990-1998, geógrafas feministas das
Universidades de Amesterdã, Autônoma de Barcelona, National Technical
de Atenas, Durham, Sheffield e Roskilde ministraram, em conjunto,
anualmente, um curso de gênero e geografia reunindo alunos das referidas
instituições. Um dos objetivos políticos da União Europeia em apoiar o
desenvolvimento de cursos sobre gênero foi o de criar uma elite intelectual
com uma identidade europeia.
Em uma análise criteriosa das experiências vividas por funcionários
e alunos dos referidos cursos de gênero financiados pela União Europeia,
Joos Droogleever Fortuijn (2002) escreveu sobre os “paradoxos da
diversidade”. Ela aponta que a implementação dos cursos tinha
características específicas, como a diversidade de línguas nativas dentro do
grupo e, especialmente, as diferenças da fluência em inglês, língua adotada
como padrão. Outra característica significava era a forma de lidar com as
consequentes hierarquias dentro das interações culturais dos componentes
dos grupos de diferentes nacionalidades. Os participantes precisavam
gerenciar e negociar as diferenças na aprendizagem e ensino das culturas,
tais como as formas de questionar e definir abordagens para a geografia
como uma disciplina. A questão que permeava o grupo era: Como criar um
equilíbrio entre a diversidade e a semelhança entre as culturas dos
participantes? Ao longo dos anos de implementação desse programa, o

79
diálogo e a cooperação na equipe proporcionaram uma evolução de
estratégias criativas para a relação entre os componentes.
A terceira observação sobre o desenvolvimento organizacional e o
lugar da geografia de gênero e das geógrafas feministas se desloca para a
escala local da universidade, o trabalho acadêmico e a forma como as
unidades locais são organizadas. O primeiro exemplo diz respeito à
autorização ou o reconhecimento dos grupos e centros de pesquisa e de
estudos de gênero na geografia dentro da estrutura universitária. Por
exemplo, na Universidade Nacional do Centro da Província de Buenos
Aires, em 2006, o Grupo de Gênero e Espaço tornou-se parte do Programa
de Pesquisa sobre Território e Sociedade quando este conquistou uma
posição no Programa Nacional de Incentivo da Comissão Nacional de
Pesquisa Científica e Técnica do governo (VELEDA DA SILVA e LAN,
2007).
O segundo exemplo é o da Universidade Autônoma de Barcelona,
onde o Grupo de Gênero, dentro do Departamento de Geografia, foi
formalmente reconhecido pela administração daquela universidade em 1995.
O grupo conquistou esta posição por ter usado uma estratégia que
demonstrou a sua capacidade de obter fundos e subsídios externos de órgãos
regionais, nacionais e internacionais. Além disso, incorporou vários outros
membros do seu departamento, incluindo pessoas mais antigas, pessoas mais
jovens e estudantes de pós-graduação. O avanço da reputação acadêmica do
grupo também se deu por meio da estratégia de publicação em revistas de
referência nacionais e internacionais (DIAZ-CORTÉS, GARCÍA-RAMON e
ORTIZ, 2007).
Outro aspecto relevante da organização institucional é o
compromisso das geógrafas feministas dentro de programas
interdisciplinares. A posição interdisciplinar pode ser a principal atividade
ou ser compartilhada entre a geografia e outras unidades. Isto não é uma
ocorrência excepcional nos Estados Unidos e Canadá. Geógrafas que têm
tais posições interdisciplinares podem manter seu perfil nacional e
internacional dentro do campo da geografia. Por exemplo, Linda Peake, da
York University, no Canadá. Ex-editora da revista Gender, Place and
Culture, ela é professora do Departamento de Ciências Sociais, onde leciona
no Programa de Estudos Urbanos e na Escola de Estudos da Mulher, sendo
também um membro dos programas de pós-graduação em Geografia e em
Estudos de Desenvolvimento. Tiffany Muller-Myrdahl, recém-eleita
presidente do Geographic Perspectives on Women Specialty Group da
Associação Americana de Geógrafos, mantém seu cargo principal no
Departamento de Estudos da Mulher na University of Lethbridge, no
Canadá. As geógrafas feministas ativas têm cargos principais ou ainda
conciliam atividades em unidades como Estudos da Mulher, Gênero, Estudos

80
das Mulheres e Sexualidade, ou ainda em pesquisas de Estudos Globais.
Pessoalmente, por vinte e cinco anos, meu cargo principal na Arizona
University foi no Southwest Institute for Research on Women, e isso não me
impediu de continuar sendo ativa na disciplina de geografia. Tais modelos de
organização institucional existentes em todo o país abriram oportunidades
para estudiosos feministas manterem seu trabalho como geógrafas(os) e, ao
mesmo tempo, levar as perspectivas geográficas a outros locais
institucionais.

Ensinando gênero e geografia

As publicações de geógrafas/os que abordam temas de gênero


geralmente apresentam resultados de investigação. Mas para a maioria de
nós, o ensino é também uma parte importante do nosso trabalho, uma
atividade que tem implicações nas mudanças da sociedade em geral e que
serve para preparar futuros profissionais da geografia. O “que”, “como” e
“quem” nós ensinamos sobre gênero provoca debates sobre prioridades e
política. O ensino geográfico sobre gênero deveria ou pode ser incluído no
nível educacional abaixo do nível universitário? Dentro das universidades,
ele deveria ser limitado a cursos para estudantes que se especializam em
geografia ou ser aberto para estudantes em geral, tais como aqueles em
programas interdisciplinares? Devem ser incluídos temas de gênero em
cursos de geografia humana geral ou apenas em cursos especializados de
gênero? No mestrado e doutorado? Quem toma tais decisões? Na geografia
feminista, reconhecemos que o contexto importa. Então, como é que o
contexto influência o ensino? Quais resistências e apoios existem para a
inovação? Que recursos estão disponíveis? Como lidamos com um grupo
diversificado de estudantes? Que estratégias pedagógicas são apropriadas
para lidar com as diferentes atitudes, valores e experiências que os alunos
trazem? Parece haver mais perguntas do que respostas prontamente
disponíveis. Para começar a abordá-las, vou primeiramente considerar o
nível escolar, introduzindo exemplos das experiências de algumas colegas.
Na Nova Zelândia, as normas para se alcançar o Certificado
Nacional de Educação exige que os estudantes do último ano do ensino
médio sejam capazes de lidar com a “leitura crítica”  ou seja, eles devem ser
capazes de aprender e reconhecer diferentes perspectivas sobre o mundo,
identificar e avaliar alternativas e pensar por si próprios. Alguns anos atrás,
quando uma questão em um exame público solicitava aos estudantes que
interpretassem algumas imagens urbanas a partir de uma perspectiva
feminista, um debate sobre a adequação da tarefa rapidamente apareceu na

81
mídia e entre o público. Detectaram-se visões negativas por parte de alunos
que foram convidados a usar uma lente de gênero em sua interpretação de
mundo (trecho do e-mail de Lee Thompson para Janice Monk em 3 de março
de 2009).
A forma de introduzir temas de gênero no ensino de “leitura crítica”
foi tema de um artigo de Lee Thompson e Tony Clay (2008). Os autores
publicaram um texto na revista New Zealand Geographer, com o objetivo de
auxiliar os professores a definir e compreender o conceito de “leitura
crítica”, associando-o aos temas de gênero. Eles ofereceram exemplos de
como isto poderia ser desenvolvido, ao introduzir perspectivas feministas no
currículo de geografia. Este caso ilustra não somente a questão da resistência
política, mas também que podemos apoiar os professores para introduzir as
abordagens de gênero na geografia e nos estudos críticos. Reconhecendo
isso, e também preocupados com os relatos de que as meninas não estavam
indo tão bem em geografia quanto os meninos, um grupo de geógrafos
associados ao Conselho Nacional de Educação Geográfica nos EUA obteve
um subsídio do governo para realizar programas de verão com professores,
para envolvê-los no desenvolvimento de maneiras de incluir alunos sob a
perspectiva da diversidade (gênero e raça / etnia), tanto em suas práticas
pedagógicas como nos conteúdos (MONK et al., 2000).
Também houve a inclusão de abordagens construtivistas e de gênero
na Estrutura do Currículo Nacional Indiano de 2005. Entretanto, sua
execução prática e a elaboração de materiais não foram asseguradas.
Descrevendo a sua experiência em um comitê de desenvolvimento de livros
didáticos do National Council for Education and Training (NCERT),
Anindita Datta relatou que o órgão não se envolveu seriamente com as
perspectivas de gênero ou com a sensibilidade ao seu público-alvo, meninas
rurais que haviam abandonado a escola (trecho de e-mail para Janice Monk,
7 de março e 10 de março de 2011).
Em nível universitário, uma questão política fundamental e atual é o
impacto das políticas econômicas neoliberais nos orçamentos do ensino
superior em vários países. A diminuição de investimentos implica priorizar
algumas áreas de interesse, diminuindo as chances de subsídios para cursos e
matrículas em cursos de geografia feminista. Este tema foi analisado e será
publicado na revista International Research in Geographic and
Environmental Education (no prelo). Um argumento recorrente dos autores
que compõem os artigos do volume da referida revista, como Droogleever
Fortuijn (no prelo), da Holanda, García-Ramon (no prelo), da Espanha, e
Longhurst (no prelo), da Nova Zelândia, é que as políticas econômicas
capitalistas recentes têm afetado a matrícula e os currículos estudantis. O
caminho de formação tem sido direcionado muito mais para uma abordagem

82
técnico-profissional, afastando-se das orientações culturais, sociais e críticas
associadas com temas de gênero.
Na mesma edição da referida revista, Sorina Voiculescu (no prelo),
da Romênia, escreve sobre o cenário pós-socialista de seu país, identificando
os desafios lá existentes. Ela argumenta que os recursos destinados à
educação priorizam a formação nas universidades politécnicas, engenharias e
direito. Ela também observa os desafios a longo prazo que resultam das
estruturas administrativas das universidades e da colocação de geógrafos nos
meios universitários. As barreiras são maiores quando a geografia está
vinculada ao âmbito das ciências físicas e naturais ao invés das áreas sociais
e culturais. Anindita Datta (2008) também identifica que a geografia indiana
está posicionada entre as faculdades de ciências da natureza, ao invés de
estar associada às ciências sociais. Essa vinculação da geografia com a
natureza constitui uma barreira estrutural para uma inclusão mais ampla da
perspectiva de gênero nas práticas de ensino.
Além da macropolítica das políticas econômicas nacionais e as
condições estruturais dentro das universidades, há questões de resistência de
colegas professores, pesquisadores e estudantes às abordagens de gênero na
geografia. Como aponta Robyn Longhurst (no prelo), a geografia feminista
floresceu na Universidade de Waikato, em comparação a outras
universidades na Nova Zelândia. Contudo, isso se deve a um contexto em
que, por várias décadas, tem havido atenção aos Estudos Indígenas Maori, o
que facilitou a inclusão do gênero. Segundo ela, houve também um aumento
da presença de geógrafas no quadro docente da instituição, em maior
proporção do que em outras universidades do país. Ao contrário da Nova
Zelândia, segundo Sorina Voiculescu (no prelo), a Romênia durante a era
socialista manteve uma tradição em que a geografia humana era basicamente
equiparada à geografia econômica, pelo interesse prático do Estado,
dificultando a expressão de gênero. Assim, nesse país são necessárias
grandes inovações para gerar abordagens que se envolvam com questões
culturais e sociais. Mas nem todas as perspectivas são negativas, segundo a
autora romena. Em sua avaliação, a modificação do contexto político da
Romênia na era pós-socialista abriu conexões internacionais que permitiram
construir laços que apoiaram tanto o seu desenvolvimento pessoal e
acadêmico como o ensino do gênero. Em cursos desenvolvidos
recentemente, ela promove a reflexão dos alunos sobre suas vidas pessoais,
relacionamentos e desafios. Ela relata que os alunos estão questionando os
papéis de gênero, questões de violência contra as mulheres, as relações
sexuais e a incidência de HIV / AIDS, e que os estudos de gênero passaram a
atrair tanto alunos como alunas que desejam explorar as novas realidades e
identidades em suas vidas, sob as transformações do sistema político.

83
No entanto, Sorina Voiculescu (no prelo) alerta que há também
obstáculos para o progresso profissional para geógrafas feministas porque
elas são vistas como estando fora dos limites da ciência geográfica. As suas
análises nos lembram que, quando assumimos o novo, é importante
refletirmos sobre aquilo que estamos trazendo de novidade, preservando e
ampliando, ao mesmo tempo, o valor dos tradicionais conceitos geográficos
de espaço, lugar, escala, e assim por diante. Também é importante refletir a
respeito de como, na condição de docentes e alunos, estamos nos
relacionando com as novas direções tecnológicas na área científica. Como os
métodos qualitativos e reflexivos que surgiram nos estudos feministas se
referem à crescente atenção às ciências da informação geográfica? Quais são
os argumentos emergentes para a integração metodológica (ver, por
exemplo, KWAN, 2008)? Discutindo as recentes tendências na Índia,
Anindita Datta (2008) indica como a introdução de gênero como categoria
analítica enriqueceu e ampliou o ensino em subcampos estabelecidos de
saúde, desenvolvimento, gestão de desastres e planejamento de políticas de
desenvolvimento. Ainda assim, progressos significativos na inclusão de
conteúdos de gênero são limitados, especialmente em nível de graduação,
embora o modelo curricular da University Grants Commission da Índia
tenha defendido um curso de gênero. A resistência em compreender o espaço
como socialmente construído permanece entre geógrafos influentes, sob a
alegação de que os temas sociais devem ser deixados para a análise dos
sociólogos. Assim, segundo o seu entendimento, a educação de graduação
em geografia deve aderir às abordagens tradicionais, com inovações
reservadas a programas de mestrado (Anindita Datta, e-mail para Janice
Monk, 14 de julho de 2011).
Eu gostaria de concluir esta discussão a respeito de ensino com
alguns comentários sobre pedagogia, não somente em aulas focadas em
gênero, mas também em outros cursos em que questões de gênero podem ser
ignoradas ou desprezadas por estudantes que as rejeitam ou que ainda não
chegaram a uma consciência de sua relevância. Por exemplo, quando Tiffany
Muller Myrdahl ministrou cursos em nível introdutório em geografia
humana e sobre as questões da população nos EUA, ela notou que alguns
alunos “pareciam desinteressados em pensamento crítico”. Eles fizeram
comentários como: “Eu esperava que este curso fosse sobre fatos”. Para
abordar e combater tais percepções quando se lida com temas como a
migração internacional ou políticas econômicas, ela começou a pedir aos
alunos para fazerem listas de “para quem” seriam os custos e benefícios das
políticas e práticas. Usando essa abordagem, ela foi, então, capaz de gerar
discussões sobre as formas pelas quais gênero, nacionalidade, raça e outros
aspectos da diversidade afetam a vida das pessoas (e-mail para Janice Monk
4 de março de 2009).

84
Em um curso na Universidade de Wollongong, na Austrália, Gordon
Waitt (e-mail para Janice Monk, 19 de fevereiro de 2010; ver, também,
WAITT et al., 2011) achou eficaz envolver os alunos numa pesquisa sobre
experiências sexuais e de gênero dentro de suas próprias culturas juvenis
(neste caso, o comportamento social em bares e clubes estudantis locais). No
desenvolvimento dessa pesquisa, os alunos não apenas examinaram
conceitos sobre gênero, mas também desenvolveram habilidades na revisão
da literatura, métodos de desenho de modelo de análise e investigação de
campo. Os estudantes também se engajaram na reflexão sobre as suas
próprias posicionalidades e adquiriram experiência na apresentação de seu
trabalho, tanto em formato web como em relatórios escritos.
Enfim, esses poucos exemplos apresentados podem nos levar a
refletir e compartilhar as nossas abordagens ao ensino de gênero por
caminhos que vão se conectar aos alunos, oferecendo-lhes habilidades e
conhecimentos geográficos básicos, para eles poderem desenvolver suas
habilidades críticas.

Fazer conexões para além do meio acadêmico

As bases da pesquisa e do ensino voltados para abordagens de


gênero estiveram imbricadas nas condições políticas e em movimentos
sociais para além do meio acadêmico. As direções do desenvolvimento da
perspectiva de gênero refletem as oportunidades bem como os obstáculos a
mudanças, vinculados a fatores econômicos e políticos globais e nacionais.
Estas questões são analisadas de diversas formas nos ensaios de um volume
da revista Belgeo intitulado “Geografias feministas ao redor do mundo”.
Estão presentes contribuições de Susana Veleda da Silva e Diana Lan
(2007), que abordam os casos da Argentina e Brasil, de Judit Timár (2007),
analisando o centro-leste da Europa, e de Mariama Awumbila (2007),
trazendo a abordagem dos países anglófonos da África. Ao invés de resumir
as contribuições desses trabalhos, vou explorar, a partir deles, as formas
como o trabalho atual e futuro de gênero pode envolver-se e apoiar esforços
dentro da sociedade, focando algumas possibilidades de colaboração e
divulgação das análises de gênero. Trago, assim, apenas dois exemplos: os
vários projetos de geógrafos suíços que se comprometeram com o
planejamento em órgãos de políticas públicas e as colaborações entre a
geógrafa canadense Geraldine Pratt e o Philippine Women Centre of British
Columbia, em Vancouver.
Geógrafas em Zurique e Berna empreenderam uma série de projetos
que abordam a equidade de gênero, especialmente em relação ao emprego

85
das mulheres e em questões de planejamento urbano. Elas aproveitam
recursos financeiros oferecidos pela Swiss Science Foundation, entre cujas
prioridades se inclui o apoio a pesquisas destinadas a solucionar problemas
nacionais urgentes e oferecer resultados práticos. Um desses recursos foi
destinado a Elisabeth Bühler, da Universidade de Zurique, permitindo a
produção do atlas de gênero da Suíça (BÜHLER, 2001, 2002). Além disso,
sua pesquisa sobre as implicações de gênero no projeto de parques públicos
em Zurique foi objeto de entrevistas de rádio e televisão. Heidi Kaspar
desenvolveu uma exposição pública em um parque, em colaboração com o
município de Zurique e com o Departamento da Igualdade. Nesta exposição
foi tratada a questão do medo das mulheres em parques, mediante o exame
do discurso de que estas áreas são perigosas para as mulheres  quando, na
verdade, as mulheres enfrentam mais perigos em espaços privados, sendo os
homens mais propensos a se tornarem vítimas em espaços públicos do que as
mulheres. A exposição recebeu notável atenção na imprensa (E-mail de
Elisabeth Bühler para Janice Monk, 8 de julho de 2011).
Atualmente, Yvonne Riano e Doris Wastl Walter, da Universidade
de Berna, estão colaborando com Elisabeth Bühler em um projeto sobre
desigualdades no acesso das mulheres migrantes ao emprego. A liderança do
projeto inclui representantes do governo e do Conselho de Igualdade de
Gênero, e ela também reflete os laços estabelecidos por Yvonne Riano com a
paz feminista, migrantes e organizações educacionais. A metodologia inclui
“MINGA” workshops, inspirados em um modelo Quéchua 14 em que grupos
de mulheres produzem e compartilham conhecimentos sobre as suas próprias
experiências de trabalho, usando-as para construir o seu capital social e
participar em discussões sobre quais políticas seriam adequadas para abordar
os problemas que elas enfrentam.
No curso de seu trabalho, neste e em outros projetos, Yvonne Riano
produziu não apenas artigos acadêmicos, mas também brochuras com
recomendações aos legisladores e a organizações não-governamentais.
Trabalhou com o Green Party para estabelecer um projeto de orientação que
agora faz parte dos programas do governo da cidade de Berna para as
mulheres migrantes. Ela também soube pelo chefe do programa de apoio a
migrantes da cidade de Berna que seus esforços têm sido fundamentais na
mudança de percepções públicas das mulheres migrantes, de “pessoas pobres
precisando de apoio do Estado” para: indivíduos cheios de potencialidades
que desenvolvem muitas estratégias para a integração econômica (Yvonne
Riano, e-mail para Janice Monk, 11 de julho de 2011).
A colaboração de Geraldine Pratt com o Philippine Women Centre
of B.C. em Vancouver durou cerca de quinze anos. O centro inicialmente
expressava as experiências do Canada’s live-in Caregiver Program, em que
14
A palavra quéchua “minga” significa trabalho ou cooperação comunitária.

86
as mulheres migrantes, muitas vezes com nível superior, recebiam vistos de
trabalho temporário para trabalhar em casas particulares cuidando de
crianças e idosos, enquanto suas próprias famílias eram deixadas nas
Filipinas. Essas mulheres experimentam baixa requalificação em seus
empregos ao cuidar de crianças e idosos. A pesquisa colaborativa avançou
para abordar as questões das relações entre as mulheres filipinas como mães
quando elas ganham residência permanente e são unidas a seus próprios
filhos. O centro tem lidado especialmente com as experiências de trauma
(Pratt, em colaboração com o Philippine Women Centre of BC, 2009). Mas,
além das publicações acadêmicas, Pratt e o Centro de Mulheres têm
trabalhado para conscientizar e falar a diversos públicos  incluindo os
legisladores e os meios de comunicação  sobre as injustiças, perdas e
traumas que o atual programa de imigração tem gerado. O trabalho de Pratt
experimentou diversas formas de articulação com o público e, mais
recentemente, produziu peças de teatro. O objetivo dessas ações é atingir
públicos mais amplos, para estimular as pessoas a refletir mais
profundamente sobre o contexto da expansão maciça de imigração
internacional de mulheres para a prestação de cuidados de crianças e idosos
no Canadá e em outros países. Para desenvolver e encenar o espetáculo
“Nanay” (Mãe), não apenas em Vancouver, mas em performances em
Berlim, eles se valeram de métodos participativos, como a criação
colaborativa do roteiro, produção, encenação e métodos de promover o
envolvimento do público. Tudo isso exigiu reflexão sobre ética e
consideração das abordagens que iriam elevar a consciência e envolver o
compromisso com outras organizações (JOHNSTON e PRATT, 2010). O
trabalho desenvolvido é claramente muito desafiador, moroso, com riscos e
incertezas sobre a eficácia das estratégias adotadas, muito além daqueles já
presentes nas culturas convencionais de pesquisa. No entanto, esse trabalho
nos leva, como geógrafas/os feministas, a refletir sobre como nos
envolvemos com a criação da mudança social e política para além dos
nossos próprios meios acadêmicos.

Pensamentos finais

Ao apresentar estes exemplos de esforços para promover os estudos


de gênero em diversos contextos, usei uma série de trabalhos de colegas que
têm sido generosos em compartilhar suas experiências. As prioridades
apontadas para o desenvolvimento da abordagem de gênero incluem a
construção e manutenção de organizações de apoio, a realização de
mudanças na sala de aula e relações com a comunidade. Esses esforços

87
levam à busca de estratégias políticas e ao estabelecimento de metas. Enfim,
outros exemplos poderiam ser citados. O meu objetivo aqui não é ser
definitiva, mas incentivar que o nosso trabalho seja considerado de formas
multifacetadas. Claramente, aqui no Brasil, a comunidade de geógrafos que
assumem lideranças nos estudos de gênero está se expandindo, e
compartilhar nossas experiências quando nos reunimos internacionalmente é
importante para avançar neste campo científico, bem como nas contribuições
que ele pode trazer à sociedade. .

Referências

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275, 2011.

89
GEOMETRÍAS ASIMÉTRICAS DEL PODER EN GEOGRAFÍA
FEMINISTA: CUESTIONANDO LA HEGEMONÍA ANGLOSAJONA

Maria Dolors García-Ramon

Me alegré en gran manera cuando se confirmó que se celebraría esta


conferencia de la Comisión de Género de la UGI en Rio de Janeiro ya que
suponía una ocasión magnífica para visibilizar la geografía feminista que se
lleva a cabo en Brasil (una buena parte en lengua portuguesa), y que es poco
conocida en la geografía internacional. El caso de Brasil no es una excepción
pues la hegemonía de la geografía feminista anglosajona ha sido muy
relevante en los últimos 30 años. Por lo tanto eventos como el actual  que
demuestran la enorme vitalidad de la geografía feminista en este país  sirve
de contrapunto al predominio anglosajón (o angloamericano), y para que
otras voces puedan ser oídas y tenidas en cuenta en la agenda internacional
de la geografía feminista. En este sentido recuerdo las palabras que escribí
en el prólogo del libro Geografias Subversivas de Joseli Silva hace un par de
años y en las que me reafirmo hoy totalmente con ocasión de este congreso:
“es subversivo entre otras razones porque replantea los cimientos
epistemológicos de la geografía feminista desde una lengua no hegemónica,
es decir da la voz a una geografía del género portuguesa bajo una perspectiva
latinoamericana y por lo tanto planta cara a una geografía feminista
anglófona que demasiadas veces se ha constituido como la única referencia a
nivel internacional. Pero esta hegemonía no solo se da en la geografía
feminista sino en la geografía en general. Y a esta situación más general me
referiré en primer lugar y posteriormente concretaré mis comentarios sobre
la geografía del género o geografía feminista.

90
Hace mucho que me preocupa el tema de la hegemonía
angloamericana, probablemente porque la he vivido y sentido personalmente
desde muy joven, desde que fui a Berkeley a hacer un master en geografía en
1970 y porque por diversas razones he estado muy expuesta a la geografía
anglosajona. También he de decir desde el principio que mi perspectiva no
es anglo-céntrica pero, por supuesto, podría ser y es euro-céntrica…, sin
embargo, los países mediterráneos, están en la periferia de Europa, una
periferia que no ha sido “inventada” (BEST, 2009)  ahora incluso se habla
de los PIGS (cerdos) de la Unión Europea, jugando con las iniciales de
Portugal, Irlanda, Grecia, y España (Spain). Mi experiencia, pues, no está de
ninguna manera compenetrada con las decisiones que se toman en los
centros del poder y en los centros de la geografía ‘internacional’. Además,
en Cataluña (con una sociedad civil anclada sobre una fuerte identidad
regional y sobre una lengua propia, el catalán) tenemos una experiencia de
trabajo y diálogo diario con los/las geógrafos/as españoles/as y una
experiencia cotidiana de relacionarnos y de hablar en dos lenguas (catalán y
castellano/español) que se encuentra en una posición de poder asimétrica.
Por lo tanto, los problemas de lengua y poder y su relación asimétrica con el
“Otro” los he vivido a diario y es lo que me interesa discutir aquí. A nivel
internacional está claro que la consolidación de la hegemonía del inglés
como lengua global ha situado el discurso geográfico en un lugar de poder
privilegiado dentro de la comunidad académica internacional de
geógrafos/as y ello tiene numerosas consecuencias.
El tema de la hegemonía de la geografía anglosajona se ha venido
discutiendo en la última década últimos diez años en algunos foros
internacionales (sobre todo en los de género y los de geografía crítica)
(SHORT et al., 2001; MINCA, 2000; ALBET & BENACH, 2005; PAASI
2005). Por ejemplo en la Conferencia Internacional de Geografía Crítica que
tuvo lugar en Hungría en el 2002 los dos temas que dominaron las
discusiones tanto dentro como fuera de las conferencias fueron la hegemonía
angloamericana respecto a la producción de conocimiento en geografía, y el
estatus del inglés como lingua franca en la academia. Poco después de esta
Conferencia se publicaron algunos artículos (KITCHIN, 2003, GARCÍA-
RAMON, 2003, 2004; VAIOU, 2003; TIMAR, 2004; RODRÍGUEZ-POSE,
2006) pero en los últimos años parece que el tema ya haya pasado de moda
(las modas pasan muy deprisa en la geografía anglosajona) y que por lo tanto
queda muy “demodé” el tratarlo. Pero lo que es cierto es que si bien se ha
publicado sobre el tema es muy poco lo que se ha hecho y la situación no ha
cambiado (si es que no ha empeorado).Por ello es importante debatirlo sobre
todo en los foros de la geografía feminista que siempre ha demostrado un
gran interés por los conceptos del conocimiento “situado” (HARAWAY,

91
1995) así como por recuperar las voces silenciadas (femeninas) del pasado
de la geografía (MADDRELL, 2009).

La indisputada hegemonía de la geografía angloamericana

Hoy, quizás más que nunca en la historia de nuestra disciplina, se


observa una indisputada hegemonía internacional de una única geografía, la
angloamericana. Ésta establece las pautas del debate intelectual que tiene
lugar en distintas partes del mundo, en gran parte debido a la hegemonía del
inglés. Pero esta hegemonía lingüística es una forma de poder que mientras
dignifica ciertas tradiciones académicas desautoriza a otras. Además, el
lenguaje no sólo refleja el mundo externo sino que también lo materializa u
lo corporifica. Pues el lenguaje es más que una herramienta comunicativa de
intercambio de ideas; el lenguaje condiciona una manera de pensar y
establece el marco en el que expresamos nuestras experiencias y
percepciones. Por ello, el problema de las diferentes tradiciones académicas
en geografía debe ser incorporado en nuestra discusión sobre las lenguas y la
hegemonía de un pensamiento único. Es verdad que el discurso geográfico
se ha globalizado, pero su globalización ha sido parcial y desigual. Quienes
pueden hablar y escribir en inglés pueden contar con un público
internacional, pero quienes hablan y escriben en otras lenguas tienen una
difusión restringida no sólo a las conferencias internacionales sino a la
mayor parte de las revistas de geografía contemporáneas más destacadas y
conocidas. Nos guste o no, el acceso a estas publicaciones significa tener el
poder real para establecer las pautas del debate intelectual en geografía en
muchas zonas del mundo.
Parecería que las revistas consideradas “internacionales” serían el
foro natural en que las diferentes comunidades internacionales de geógrafos
pudieran comunicarse. Pero quizás el error sea identificar estas revistas
como un foro de discusión internacional. Un estudio llevado a cabo por unos
geógrafos españoles (GUTIÉRREZ y LÓPEZ-NIEVA, 2001) y publicado en
Progress in Human Geography demuestra que las publicaciones
denominadas ‘internacionales’ en inglés no son realmente internacionales y
que no han conseguido crear un foro global de discusión, o es que quizás
nunca en realidad se buscó ser este tipo de foro. El análisis se basa en una
muestra de 19 revistas elegidas entre las 30 que aparecen bajo la categoría
‘Geografía’ en el Social Sciences Citation Index. Si se toma en cuenta el
lugar de trabajo de los autores, Estados Unidos e Inglaterra, representan más
de las tres cuartas partes de todos los artículos publicados (73,4%). Canadá y
Australia le siguen de forma inmediata y la contribución de los países de

92
habla no inglesa es extremadamente baja (por ejemplo, Francia y Alemania
con escuelas de geografía muy potentes desde hace mucho tiempo, aparecen
con un valor simbólico bajo, de alrededor de 0,5%). Más aún, la mayor parte
de los miembros de los consejos editoriales de estas publicaciones provienen
de países de habla inglesa. Recientemente (2009) dos geógrafos europeos
(uno italiano y otro danés) constatan esta situación, a pesar de la diferencia
de años en su publicación (AALBERS & ROSSI, 2009).
Además estas revistas probablemente no son sentidas por muchos
geógrafos como un terreno adecuado para el encuentro y debate entre
diversas tradiciones geográficas pues existe una convicción bastante
generalizada entre nuestros colegas no anglos (por ej. italianos, franceses,
portugueses, españoles, brasileños, argentinos etc.) de que estas revistas
hacen referencia casi exclusivamente a los últimos debates teóricos dentro de
la geografía angloamericana y que no dan cabida a “Otras” tradiciones
(HANCOCK, 1999). Este sentimiento ha sido reforzado por el hecho de que
el sistema de evaluación (referees) de estas revistas es casi exclusivamente
angloamericano. Además me gustaría añadir que, en muchos países y para la
mayoría de las disciplinas, cada vez más, el Citation Index (es decir las
revistas incluidas en el ISI) se está convirtiendo en el punto de referencia
para medir la calidad de las publicaciones y las consiguientes promociones
académicas, y la geografía no es ninguna excepción en este aspecto (es cierto
que en los últimos años el ISI ha incluido algunas revistas no anglófonas
pero son escasas y con índices de impacto muy bajos, debido al sistema de
elaboración del ISI).
En definitiva si un libro o un artículo no está escrito en inglés (o
traducido a esta lengua) no existe para la comunidad angloparlante, es tan
simple como esto. Dejadme poner un ejemplo que me toca muy de cerca
pues el autor es español. Recuerdo que en Barcelona estábamos ya
familiarizados con la obra de Manuel Castells en español hacia el año 1969 y
la usábamos en nuestras investigaciones en geografía urbana (así como
también lo hacían algunos de nuestros colegas italianos y franceses); pero
Castells simplemente no existía para nuestros colegas de habla inglesa. En
1977, ocho años después, de repente, muchos de nuestros colegas
angloparlantes hacían profusas referencias al mismo y ello lo convirtió en el
académico más citado en geografía urbana en los foros “internacionales”. La
explicación es muy simple: su famoso libro La question urbaine (1972) fue
traducido del francés al inglés en 1977 (que es el año en que Harvey estaba
de sabático en Paris y conoció a Castells y a su obra).
Otro ejemplo significativo, esta vez en la geografía feminista
internacional es el caso del excelente manual publicado por el grupo WGSG
(1997), Feminist Geographies: exploration in diversity and difference. El
subtítulo realmente aboga por la diversidad y la diferencia (conceptos muy

93
queridos por la geografía del género). No obstante el contenido se refiere tan
solo a la geografía angloamericana y la bibliografía, con la excepción de un
par de referencias, sólo incluye las investigaciones publicadas y llevadas a
cabo por la geografía anglófona… y, en cambio se ignoran las
investigaciones de geógrafas italianas, españolas, portuguesas, griegas y
francesas, a pesar de que algunas de ellas publican en inglés¡ La geografía
feminista (y por descontado las autoras del libro) reconocen que el
conocimiento es situado pero me gustaría añadir que el conocimiento no solo
es situado dentro del mundo anglosajón… en mi opinión un título más
adecuado para este libro sería Feminist Geographies: exploration in
diversity and difference within the Anglo-Saxon world.
Aprender una lengua extranjera requiere tiempo y una gran dosis de
humildad (es muy cómodo hablar en una lengua en la que no se cometen
errores), pero este esfuerzo debe ser compartido por todo el mundo y no sólo
por aquellos que no tienen al inglés como lengua materna. Como mujer me
agrada la comparación hecha por una geógrafa del Grupo de Geografía
Crítica: “Si el inglés no es nuestra lengua materna, el esfuerzo realizado para
seguir los debates de la geografía internacional es grande y mucha gente lo
considera injusto. Lo mismo sucede con la subrepresentación de mujeres en
la disciplina; para una mujer que quiere seguir la ‘normalidad demográfica’
de una vida familiar competir por un buen trabajo significa un mayor
esfuerzo que para un hombre que puede apoyarse en las normas sociales que
le permiten contar con una compañera que acarreará con el mayor peso de
las responsabilidades familiares. Tanto el hablar inglés como el ser hombre
liberan más energía para el trabajo competitivo… estaría muy bien que todos
encontráramos tiempo para consideraciones de carácter más humano como
ampliar nuestra comprensión de otras lenguas y asumir responsabilidades
iguales en la vida familiar” (CRITICAL GEOGRAPHY FORUM
ARCHIVES, 1998).
Algunas veces se han escuchado voces que objetan que el
conocimiento de lenguas puede ser entendido también como un rasgo de
elitismo (CRITICAL GEOGRAPHY FORUM ARCHIVES, 1998). Para
quienes no tenemos el inglés como lengua materna, esta justificación del
monolingüismo es más bien chocante  e incluso insultante  y revela hasta
qué punto las ventajas de ser un angloparlante nativo puede considerarse una
especie de don “natural”.
Cabe señalar que la hegemonía anglosajona en geografía es muy
compleja (TIMAR, 2004) y que dentro mismo del ámbito anglófono se da
una graduación de hegemonías y unas geometrías variables del poder
(SAMERS & SIDAWAY, 2000). En la Conferencia Internacional de la UGI
en Australia en Brisbane en 2006 en una sesión sobre Antipodean Socio-
spatial theory se debatió brillantemente la preponderancia de la geografía

94
norteamericana y la británica como centros de poder dentro de la geografía
anglófona. En la conferencia plenaria del norteamericano Eric Shepard y los
posteriores comentarios de los australianos (Pauline McGuirk y Phillip
O’Neill) se llegó a denominar a estos dos países como las “Torres Gemelas”
de la geografía internacional y se criticó la “periferización” de algunos
países anglófonos como Australia y Nueva Zelanda. Pero esto no quita que
estos países no dejen de estar algo más próximos que los no anglófonos al
centro de poder, aunque no sea más que por el hecho de hablar inglés y por
lo tanto dominar la lingua franca, un instrumento claro de poder.
También es cierto que la internacionalización de la geografía no
siempre refuerza la hegemonía angloamericana y muchas veces puede tener
consecuencias muy positivas. Así pues se ha constatado que las corrientes de
geografía crítica se han introducido en Alemania gracias a la
internacionalización de la geografía alemana (BELINA et al., 2009). Y lo
mismo podríamos decir de la introducción de la geografía feminista y del
género en numerosos países donde es cierto que la geografía británica y
americana ha jugado un papel esencial (GARCÍA-RAMON & MONK,
2007). Frente a esta situación, creo que tenemos que plantear algunas
soluciones. Deberíamos buscar foros alternativos para la discusión
internacional en geografía, especialmente la feminista. No creo que sea
solución cerrarnos en nuestra propia tradición y escuela nacional aunque,
muchas veces, estemos tentados a hacerlo. Este tipo de parroquialismo es
peligroso y significa caer en el mismo tipo de errores que estamos criticando
hoy en el mundo de la geografía anglófona feminista.

Las diferencias que crea el lugar: algunos datos numéricos

A pesar de que la geografía y la teoría feminista han sido pioneras en


defender la diferencia y la diversidad, en la realidad diaria se olvida con
demasiada frecuencia. Por lo general, se acepta que los temas y las
metodologías de estudio de la geografía anglófona son la norma y el punto
de referencia para la geografía feminista mundial. Es cierto que en muchos
países debemos el inicio y los primeros desarrollos de la geografía del
género a su influencia pero ello no supone que la evolución posterior se
tenga que homologar con la de la anglosajona ya que las tradiciones
geográficas locales condicionan mucho su desarrollo. En un estudio
publicado a finales de lo 1980’s (GARCÍA-RAMON & CABALLÉ, 1998),
una joven colega y yo misma detectamos unas formas diferentes de la
evolución de la geografía del género según los países y lo estudiamos a
través del análisis de los artículos de 75 revistas geográficas publicadas en

95
23 países y en 12 lenguas diferentes. Los diversos temas tratados se podían
agrupar en cuatro modelos regionales de desarrollo de esta geografía. Las
revistas anglófonas  que eran la mayoría  se caracterizaban por un enorme
peso de la teoría, por un alto nivel de abstracción y por tratar temas como la
sexualidad, masculinidad y posicionalidad, prácticamente inexistentes en los
otros modelos en aquellos momentos. En las revistas francófonas y del área
mediterránea abundaban los estados de la cuestión sobre las novedades de la
geografía feminista en el mundo anglófono  lo que demuestra una cierta
dependencia metodológica de ésta  pero también se distinguían por el peso
de los temas del mundo rural, acusando la gran tradición de la geografía
rural en estos países. En el tercer modelo regional  países escandinavos y
centroeuropeos  eran mayoritarios los temas de ocupación y mercado de
trabajo, acusando la importante participación de la mujer en el mercado
laboral y el interés por el estado del bienestar, en particular en los
escandinavos. Y finalmente en el cuarto modelo  el de los países del Tercer
Mundo, y sobre todo en América Latina  predominaban los temas urbanos 
en particular la participación de las mujeres en los movimientos de base,
reflejando pues la difícil realidad de la vida política y social de las ciudades
de América Latina durante el periodo en que se agravaron los problemas del
endeudamiento exterior. Así mismo, en este modelo también los temas
rurales tenían un peso muy significativo (mayor que en las revistas
francófonas-mediterráneas), indicando la fuerte presencia del sector primario
en el Tercer Mundo de esas décadas.
Hace poco yo misma junto con una colega griega y otra danesa
publicamos un editorial en Gender Place and Culture sobre el tema de la
hegemonía angloamericana y analizamos bajo esta perspectiva el contenido
de la revista desde su origen en 1994 hasta 2005 (es decir 12 años)
(GARCÍA-RAMON et al., 2006). Estudiamos la procedencia de los autores/
as, la de las referencias bibliográficas incluidas en los artículos así como la
de los miembros del Consejo Editorial de la revista.
Observamos que de un total de 242 autores/as solo 19 no pertenecían
a universidades o centros de investigación angloamericanos, es decir un
7,3%. La autoría de EEUU y de Gran Bretaña representaba (por partes casi
iguales) el 64% del total y la del Canadá anglófono un 19%. Se ha de
constatar que el porcentaje de autoría de fuera del dominio anglófono no se
incrementaba sino que sucedía lo contrario. Agrupando los datos en periodos
de 3 años el primer trienio arrojaba un 6% de contribuciones, el segundo un
17%, el tercero un 10% y el último periodo volvía otra vez al 6%. Al
analizar la lengua de los libros reseñados de un total de 320 tan sólo 7 no
estaban escritos en inglés, es decir un 2,19% y en relación a los autores/as de
las reseñas tan sólo el 5% no eran anglosajones (de 7 países diferentes, 3
europeos, tres asiáticos y uno de América Latina).

96
En las bibliografías de los artículos observamos que las referencias
eran masivamente en inglés y llegaban al 95% del total, repartiéndose el 5%
restante entre el francés, el alemán y el español. Y cabe señalar que en tres
de los números examinados no había ni una sola referencia que no fuera en
inglés. Casi la totalidad de la bibliografía no inglesa la citaban sobre todo los
autores/as de fuera del ámbito anglosajón, aunque algunos autores
anglófonos incluían referencias bibliográficas no inglesas cuando escribían
sobre estudios de casos de fuera del ámbito anglosajón.
También analizamos la composición del Consejo Editorial y
observamos que representaba muy poco las diferentes tradiciones de
geografías feministas en el mundo. Si bien es cierto que al principio de la
revista (1994) 4 de los 19 miembros del Consejo Editorial eran de fuera del
ámbito angloamericano (de Francia, Grecia, Alemania y Canadá francés)
muy pronto (al año siguiente) fueron desplazados al Consejo Asesor (que es
mucho más amplio y con mucha menos incidencia). En el año 2000 se
incluyó en el Consejo Editorial una nueva persona de fuera del ámbito
anglosajón (de Singapur) pero en 2003 los tres miembros no anglos del
Consejo Asesor fueron dados de baja. No obstante cabe señalar que desde
1995 una de las editoras no pertenece al ámbito anglosajón (de Singapur).
Además cabe recordar que fue una de las editoras de la revista, Linda Peake,
la que nos animó a la realización de este tipo de estudio sobre la revista.
Pero parece que los cambios son difíciles o sobre todo lentos y se
tardará en ver los resultados. Desde 2006 la composición del Consejo
Editorial de la revista y las editoras no ha registrado grandes cambios en este
sentido si bien se ha de destacar que la editora jefe es de Singapur (era ya
editora desde 1995) y una de las nuevas editoras es de la periferia del mundo
anglosajón (Nueva Zelanda). También es cierto que observando la lista de
nombres de los censores (referees) de los dos años estudiados (218 nombres
en 2009 y 205 en 2010) la gran mayoría pertenecen al mundo anglófono pero
aparece también un número significativo de censores que no son originarios
de la esfera anglosajona.
Recientemente he puesto al día el análisis numérico que se publicó
en 2006 para todos los números de la revista de 2009 y 2010 (doce números
en total, un número igual al de los trienios analizados anteriormente). Es
interesante señalar que en este nuevo análisis se observan luces y sombras.
Por ejemplo el número de autores de fuera del ámbito anglosajón ha
aumentado ligeramente a un 13%, destacando el papel de Turquía y algunos
países europeos (también el papel de países anglófonos “periféricos” como
Nueva Zelanda y Australia se ha incrementado). Ello es evidente que es el
resultado de una cierta política editorial que aplaudimos. Pero el número de
referencias en inglés en los artículos sobrepasa el 95% anterior (la no anglos
son un 3,2%), lo que es un reflejo de la creciente hegemonía de la literatura

97
anglófona en este enfoque. Asimismo, en los dos años observamos que del
total de 33 reseñas de libro tan sólo hay uno que no se ha escrito en inglés
(en catalán, España). Pero entre los 64 autores de las reseñas el porcentaje de
autores no anglos ha aumentado sensiblemente a un 14% y ello también se
debe indiscutiblemente a la política editorial de la revista. Asimismo cabe
recordar que desde hace un par de años se publican los resúmenes en chino y
es de esperar que esta política de cierta apertura de la revista consiga sus
frutos en el próximo futuro.

Conocimientos “situados” en geografía feminista

Janice Monk (1995) afirmaba que el lugar es una categoría


fundamental en el desarrollo de la geografía del género, y que, por
consiguiente, las tradiciones geográficas de los países pesaban mucho. El
lugar pues importa en la producción de conocimientos situados y el
predominio de la geografía feminista anglófona se ha reflejado en la
selección de temas estudiados. Y así lo constatamos en la editorial de
Gender, Place and Culture a la que me he referido anteriormente pues es
evidente que el peso de las elaboraciones teóricas es muy importante en esta
revista surgida en unos momentos en que la geografía anglosajona se
caracterizaba por la crítica a las “Grandes Narrativas” y la fuerte irrupción
del “Giro cultural”, hechos que se reflejan en su contenido. Así pues
abundan artículos sobre temáticas relacionadas con la identidad, la
diferencia, la raza, la sexualidad, la “performatividad” de las masculinidades
y las feminidades, las identidades queer y los discursos postcoloniales, el
(trans)nacionalismo y la ciudadanía. En cambio, tienen poca presencia temas
corrientes en la geografía del género en España y América Latina como por
ejemplo empleo, globalización y reestructuración económica, violencia,
activismo y movimientos urbanos y rurales desde la base. Es cierto, sin
embargo, que en los últimos años los temas de sexualidad han penetrado en
estas otras geografías feministas, en particular en la brasileña.
En un Seminario Internacional que organizamos en Barcelona en
2006 titulado “Geografías del género en el mundo: cuestionando la
hegemonía anglosajona” (BELGEO, 2007) también constatamos que la
temática de la geografía feminista se veía muy influenciada por las diversas
tradiciones geográficas de los diferentes países (en el seminario estaban
representados 14 países). La geografía británica era la más proclive a
elaborar teorías de tipo general y, en cambio, en los países de África
subsahariana las investigadoras feministas buscaban temas relacionados con
las culturas locales (por ejemplo diferencias en la religión, la etnicidad, la

98
edad etc.), y estaban preocupadas porque existía un fuerte sesgo “occidental”
en las teorías sobre el desarrollo que habían penetrado en los estudios
feministas locales. En cambio la geografía del género de América Latina se
orientaba mucho más hacia los análisis de clase social, de la fuerza de
trabajo de las mujeres y temas de activismo, sobretodo en las zonas urbanas
(VELEDA DA SILVA & LAN, 2007). En el caso de España la geografía
feminista en los años 80’s y principios de los 90’s se dedicó a estudiar temas
rurales siguiendo por una parte la tradición ruralista de la geografía española
y por otra reflejando la fuerte crisis en la agricultura española al entrar en el
Mercado Común. Como la mayor parte de las participantes en el seminario
no pertenecían al mundo anglosajón, pocas referencias se hicieron a los
temas en boga en dicho ámbito, como por ejemplo el cuerpo, la sexualidad y
la reflexividad y el rol de las/los investigadores.
Es bien conocido que las metodologías que ha utilizado la geografía
feminista anglosajona han sido de tipo cualitativo, con algunas interesantes
excepciones (HANSON, 2002; KWAN & DING, 2008). Pero en otras
tradiciones y culturas geográficas las metodologías cualitativas no están muy
aceptadas o son muy poco conocidas y la geografía feminista de estos países
ha tendido a utilizar métodos cuantitativos y análisis estadísticos. No
obstante existe una tendencia creciente a utilizar metodologías cualitativas
en la geografía feminista fuera del ámbito anglosajón, y en algunos países
como en España ello ha contribuido a un reconocimiento progresivo de que
los métodos cualitativos son tan legítimos en geografía como los
cuantitativos. Y de este modo la geografía feminista ha jugado un papel muy
innovador desde una perspectiva metodológica.

Mirando al futuro y produciendo conocimientos “situados”

Frente a esta situación, creo que tenemos que plantear soluciones a


los problemas que hemos estado discutiendo. A nivel general, una primera
estrategia es expandir el conocimiento de lenguas entre todos los
geógrafos académicos y erradicar el monolingüismo de la geografía (por
lo tanto los congresos  como éste de Rio de Janeiro  han de ser
plurilingües, aquí se habla de hecho el portugués, español y el inglés). Una
segunda estrategia para incentivar la interacción es traducir más libros y
artículos al inglés. Durante muchos años, muchas de las comunidades
académicas de habla no inglesa hemos hecho un gran esfuerzo por traducir
los trabajos más importantes de la geografía internacional a las lenguas
nacionales. Esto es importante y muy útil pero no es suficiente. Sabemos
muy bien que si un libro no está escrito en inglés (o traducido a esta lengua)

99
no existe para la comunidad angloparlante y por lo tanto si las ideas se
quieren dar a conocer se ha de traducir a ese idioma que es la lingua franca.
Una tercera estrategia es trabajar para conseguir publicaciones
verdaderamente internacionales en las que las ‘Otras’ voces puedan ser
escuchadas aunque también sometidas al mismo tipo de rigor metodológico.
Por un lado, ello podría implementarse abriendo las revistas académicas
internacionales a otras lenguas, además del inglés (o alternativamente,
facilitar a los/las académicos/as no anglos la revisión de sus artículos en la
lengua propia), y, por el otro lado abriendo el sistema de evaluación, es decir
ampliando la red de evaluadores o referees escogidos de un mayor número
de países y teniendo en cuenta las lenguas que sean capaces de leer).
Deberíamos esforzarnos en encontrar foros alternativos para la
discusión internacional sobre la geografía del género y de hecho se están
haciendo ya muchos esfuerzos en esta línea. La Unión Geográfica
Internacional (UGI) es una plataforma que debemos utilizar en este sentido y
la Comisión de Geografía y Género ha jugado un rol muy activo desde su
creación en 1992 (Grupo de Estudio en 1988). Tiene alrededor de 500
miembros en su lista de correo que pertenecen a casi una cincuentena de
países. Desde sus comienzos publica una Circular en inglés dos veces al año
(que desde 2006 se traduce al español y al francés). El contenido es muy
interesante pues ayuda a mantenerse al día y a tejer redes de contacto con
personas de todo el mundo interesadas en la misma temática. La Comisión
organiza eventos como el presente de Rio de Janeiro varias veces al año en
lugares bien diferentes del planeta. Por ejemplo desde Mayo de 2009 ha
organizado congresos en países y continentes tan diversos como Hungría,
Singapur, Israel, Nueva Zelanda, India, Italia y próximamente Alemania
(Hamburgo) con ocasión de la celebración del próximo Congreso
Internacional de la UGI.
La mayor parte de los Grupos de Estudios institucionalizados sobre
Geografía Feminista (relacionados con las asociaciones profesionales
nacionales de geografía) se localizan en países anglófonos pero también se
han creado algunos grupos en otros países como el Grupo de los Países de
Habla Alemana, y también de manera más informal en América Latina
(GARCÍA-RAMON & MONK, 2007). Esta institucionalización es
importante y quizás en otros países deberíamos haberla llevado a cabo. Y lo
digo por el caso de España, donde se ha trabajado bastante en geografía y
género pero por diversas razones, nunca nos decidimos a crear un Grupo de
trabajo en la AGE porque creíamos que nuestros colegas lo verían un poco
como un proceso de ghetoización. Pero ahora, y con la perspectiva que dan
los años quizás la continuidad de la geografía feminista sería más fácil si se
hubiera institucionalizado mínimamente. Recientemente nuestras colegas
italianas han sido muy conscientes de este problema y en el seno de la

10
Asociación de Geógrafos Italianos se han constituido como un Grupo de
Estudio, un grupo muy dinámico con fuertes lazos no sólo nivel nacional
sino también internacional (CORTESI, 2007). Otro ejemplo de una iniciativa
reciente interesante para visibilizar los estudios de geografía feminista de
fuera del ámbito anglosajón la encontramos aquí en Brasil. Se trata de la
revista electrónica, titulada Revista Latino-americana de Geografia e
Gênero que se publica en inglés, portugués y español desde 2010. Cabe
señalar que tiene objetivos de muy amplias miras, a título de ejemplo el de
estimular la discusión académica tanto dentro del ámbito de América Latina
como fuera, y fomentar asimismo las relaciones con los estudiosos/as de
otras regiones del mundo. Es importante que publiquen en ella
investigadores/as de fuera del mundo anglófono pero también de dentro de
este ámbito pues lo que está claro es que ni nosotros ni los anglosajones nos
hemos de encerrar en nuestro mundo. Es cierto que hasta llegar a disponer de
unas revistas o plataformas de geografía feminista realmente
“internacionales” tenemos un camino largo y difícil pero todo intento de
favorecer un pluralismo (como dicha revista o este congreso) vale la pena a
fin de hacer posibles los contactos y los intercambios a nivel internacional.

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10
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10
GÉNERO Y VIOLENCIA:
UNA OSTENTACIÓN DE GÉNERO EN CADA CONCEPTO

Diana Lan

Que se pretende decir con una ostentación de género en cada


concepto, cuando planteamos GÉNERO Y VIOLENCIA?, en realidad se
pretende desentrañar la relación existente en nuestra cultura occidental entre
el género y la violencia.
La reflexión que nos anima es el género de estos sustantivos, así:
género es masculino y violencia es femenina, mostrando que existe una
preponderancia o ascendencia de un concepto sobre otro. Sin llegar a
plantear un quiasmo15, porque no nos basamos en un cruzamiento o
repetición de dos conceptos en orden invertido, sino que nos proponemos
analizar ambos conceptos para darle visibilidad a un problema que está
presente en todas las clases sociales.
Cuando el poder es ejercido por la fuerza sobre las personas, para
imponer cierta voluntad, se trata de violencia. Si esta violencia es transferida
de una persona hacia otra, es una forma de control que se apodera de la
libertad y de la dignidad de quien la padece.
Ahora bien cuando estos conceptos pasan a depender uno de otro
cobran significado en la construcción social de su análisis, entonces al hablar
de violencia de género, sobre todo cuando las víctimas son mujeres, estamos
pensando en el empoderamiento por parte del género masculino de la
violencia que es ejercida hacia el género femenino.
15
“El quiasmo es una figura retórica que consiste en un cruzamiento o repetición de dos
conceptos en orden invertido. El quiasmo obliga a los dos conceptos relacionados por una
expresión a intercambiar sus papeles, de manera que lo determinante se convierte en
determinado y viceversa”. (RAMÍREZ GONZÁLEZ, 1996).

10
La violencia (del latín violentia) es un accionar deliberado, que
provoca, daños físicos o psicológicos a otras personas, y se asocia con la
agresión física, aunque también puede ser psicológica, emocional, verbal,
sexual o política. Algunas formas de violencia son sancionadas por la ley o
por la sociedad, teniendo en cuenta que todo lo que se impone por la fuerza,
es considerado violencia.
Ahora bien, que es y como identificamos la violencia hacia las
mujeres?
En este caso remarcamos como uno de los términos es decisivo y
domina sobre el otro (violencia ejercida sobre género), porque la violencia
es un acto intencional dirigido a someter a otra persona. La mayoría de los
casos es aplicada por las personas que tienen el poder en una relación y que
puede producir daños definitivos, ya que implica un abuso de poder
mediante la fuerza.
La violencia no es algo natural, sino que es provocada por las
relaciones de dominación y subordinación, que casi siempre se da contra la
persona que parece más débil o contra la que es vulnerable o se encuentra
imposibilitada de defenderse.
Los tipos de violencia van desde una ofensa verbal hasta el
homicidio y se pueden dar dentro del mismo ámbito cotidiano.
En este trabajo expondremos como ejemplo la violencia doméstica o
familiar como una de las formas que toma la violencia de género, haciendo
hincapié en la ostentación de género de cada concepto, en particular la
violencia que se identifica con relaciones de poder desigual sobre las
víctimas, en este caso las mujeres.
La violencia contra las mujeres a lo largo de la historia de la
humanidad, se encuentra enraizado culturalmente y por ende naturalizado,
consistiendo en todo acto o amenaza de violencia física, psicológica,
sexual o económica que expresa la desigualdad existente entre varones y
mujeres.
La Campaña argentina por la equidad de género y contra la violencia

se propone sensibilizar a la población sobre esta gravísima problemática


para que, promoviendo una activa participación de la sociedad, asumamos
un compromiso colectivo para su transformación (MINISTERIO DE
SALUD, 2009).
El lema utilizado es: “Otra vida es posible. Tenemos derecho a una
vida sin violencia”, en la Imagen 1, realizada por Rep, queda explicitado
como la violencia es un problema de la sociedad en su conjunto.

Imagen 1: Campaña argentina por la equidad de género y contra la violencia.

10
Fuente: www.vivirsinviolencia.gov.ar

Analizaremos los circuitos espaciales construidos por la violencia


doméstica y las clases sociales que lo componen, tomando como caso
testigo, lo que sucede en la ciudad de Tandil, Argentina (LAN, 2011). Este
ejemplo lo tomaremos a partir de los conceptos propuestos, es decir género y
violencia, para llegar a entender el accionar deliberado y agresivo contra las
mujeres. Por medio del circuito espacial que recorren las víctimas en busca
de ayuda, intentaremos mostrar como estos conceptos (género y violencia)
están emparentados y como desde la esfera masculina se ostenta el poder,
ejerciendo la violencia como una forma de control que profundiza las
asimetrías que se dan entre el género masculino y femenino.

Circuitos espaciales de la violencia doméstica, signados por las


clases sociales que los componen

La violencia doméstica es un problema de género que está presente


en todas las clases sociales, sin embargo no siempre se manifiestan de la
misma manera. Entre los primeros lugares recorridos por las víctimas de
violencia doméstica, se destaca la Secretaría de Desarrollo Social, a través
del área destinada a víctimas de violencia familiar.

[…] muchas son las mujeres que nos dicen: ‘es la primera vez que hablo
sobre lo que me está pasando’. (Entrevistada 2; 2008).
Respecto a esto existe ‘un acuerdo’ con las trabajadoras de los centros
comunitarios. Ellas ni bien detectan un posible caso de violencia deben
derivarlo a la secretaría, por dos razones; por un lado, se encuentran muy
expuestas al violento tratando este problema en el mismo barrio, por otro,
es una forma de resguardo a la víctima […]. (Entrevistada 3; 2009).

10
Este suele ser el primer lugar al que acuden las víctimas de violencia
doméstica, en especial, las mujeres de clases sociales más desfavorecidas, ya
que la Secretaría de Desarrollo Social depende del Municipio y es la única
institución que cuenta con recursos económicos para dar alojamiento a las
personas afectadas por la problemática. Las personas que concurren, son:

Mujeres pobres y excepcionalmente mujeres no pobres. El significado de


los recursos económicos con que disponen es muy diferente en los dos
casos, a una mujer pobre, ofrecerle un lugar para alojarse en Villa Aguirre o
Villa Italia y recursos para sus hijos [alimento, ropa] es tocar el cielo con
las manos.
Para una mujer no pobre, muchas veces estos recursos no tienen el mismo
significado. Viene gente con necesidades básicas insatisfechas. La
violencia familiar atraviesa todas las clases sociales, pero acá vienen
mujeres muy pobres. Las mujeres no pobres, cuando vienen es para
constatar que lo que están sufriendo es violencia doméstica, o consultan por
la tenencia de los hijos o la cuota alimentaria, y muy pocas veces siguen
viniendo. (Entrevistada 3; 2009).

Las mujeres de clases altas en pocas ocasiones, solicitan ayuda en


esta institución. La problemática de la violencia doméstica en clases medias
y altas está ausente en estos registros, lo que no quiere decir que no padezcan
este problema. Sólo quedan asentadas las consultas de las víctimas de clases
sociales pobres, como se manifiesta en la siguiente entrevista:

Las mujeres de clase media alta por ejemplo, si bien pueden llegar a hacer
una consulta no sostienen la atención en el área. ¿Por qué? En el hospital,
notábamos que el primer filtro era la sala de espera, como una especie de
situación de incomodidad o la preocupación porque les diéramos un turno y
no las atendiéramos rápidamente. (Entrevistada 1; 2008).

El recorrido institucional de las mujeres con menos recursos que


padecen la problemática en la ciudad pareciera iniciarse en la Secretaría de
Desarrollo Social, lugar al que suelen recurrir en varias oportunidades hasta
radicar su primera denuncia. Las víctimas de violencia doméstica no pobres,
recurren sólo eventualmente al área y cuando lo hacen, estas consultas no se
mantienen. Como lo afirma una de las integrantes del área:

La violencia familiar atraviesa a todas las clases sociales, pero las que más
llegan son las mujeres pobres. (Entrevistada 2; 2008).

10
De esta forma, incipientemente se conformarían varios circuitos
espaciales de violencia doméstica, de acuerdo a la clase social a la que
pertenezcan las víctimas.
La Comisaría de la Mujer y la Familia, u otras comisarías, son los
lugares de la ciudad donde se radican las denuncias, y donde también se
puede recurrir a la asistencia de un equipo interdisciplinario. Allí, llegan
víctimas de todas las clases sociales (en muchos casos se constituye en el
paso previo para iniciar un proceso legal en el Tribunal de Familia); sin
embargo, las víctimas de violencia doméstica de sectores más
desfavorecidos, acostumbran hacer reiteradas consultas antes de radicar
denuncias, mientras que en clases sociales más acomodadas esta denuncia
suele ser sólo una condición necesaria para iniciar el proceso legal.

Si van a la Fiscalía, por lo general los mandan a la comisaría para que


hagan la denuncia también. Entonces, la persona para evitarse todas estas
molestias, si tiene poder adquisitivo lo hace directamente con su abogado y
el que no, se dirige a la comisaría. (Entrevistada 4; 2009).

En general, las víctimas pobres suelen presentar recorridos visibles


(a través de los registros que dejan en las diferentes instituciones) para llegar
a un proceso legal, donde en algunas oportunidades intentan conseguir un
patrocinio gratuito por parte del Estado. Por su parte, las víctimas de
violencia doméstica de clases sociales más favorecidas sólo se visibilizan en
las denuncias de la Comisaría de la Mujer y la Familia previo a comenzar la
atención del problema en el Tribunal de Familia.
El Tribunal de Familia recibe los casos de violencia doméstica
donde las víctimas han decidido denunciar la problemática. Las diferencias
de clase social son tangibles, también aquí, a través de las entrevistas
realizadas:

En ese caso [refiriéndose a las clases sociales medias y altas],


generalmente, van a comisaría pero terminan teniendo abogado, así que el
asesoramiento viene más por ese lado. A la Secretaría de Desarrollo Social
va realmente la persona totalmente desprotegida, la que no tiene
posibilidades económicas. (Entrevistada 5; 2009).

Se van estableciendo circuitos espaciales de la violencia de género


en la ciudad, a través del recorrido que realizan las víctimas por las
instituciones de ayuda, que dejan al descubierto diferentes expresiones
espaciales de acuerdo con las clases sociales y los barrios de la ciudad a los
que pertenecen las víctimas.

10
[…] aquellas mujeres pobres que se animan a denunciar, comienzan a
formar parte de un circuito espacial visible compuesto por hospitales, casas
de residencias transitorias, comisarías, etc., que le dan una impronta de
toma de conciencia a la problemática, no siendo de la misma manera para
mujeres de clases sociales acomodadas, que son las que pueden pagar a lo
largo de su peregrinar a servicios privados, transformado las diversas
manifestaciones de violencia en un circuito espacial oculto. (LAN, 2010, p.
74).

La violencia doméstica, como una de las formas que toma la


violencia de género, es transversal a la clase social de las víctimas; aunque
existan distintos trayectos espaciales debido a las posibilidades económicas
que dispongan.
En general los lugares de atención a las víctimas (Mapa 1) son: La
Secretaría de Desarrollo Social del Municipio, la Comisaría de la Mujer y la
Familia, el Tribunal de Familia y algunas organizaciones de la sociedad civil
que se encargan de prestar asesoramiento, como es el caso de la Biblioteca
Popular de las Mujeres.

Mapa 1: TANDIL. Lugares de atención a víctimas de violencia doméstica, 2010.

10
Mapa 16: Lugares de atención a víctimas de violencia doméstica. Ciudad de Tandil, 2010.

agf

adfad

Fuente: CIG-FCH-UNCPBA. (LÓPEZ PONS, 2011).

Así, podemos distinguir “circuitos espaciales de la violencia


doméstica signadas por las clases sociales que las recorren” (Gráfico 1), y
aunque consideramos que la violencia doméstica es transversal a todas las
clases sociales, detectamos “circuitos espaciales de la violencia doméstica en
clases sociales medias y altas” que permanecen ocultos, hasta el momento en
que las víctimas deciden denunciar.

Mujeres pobres y circuito espacial de la violencia doméstica

El circuito espacial de la violencia doméstica (Gráfico 1), se origina


cuando las víctimas salen del ámbito privado, al ámbito público en busca de
ayuda. De acuerdo con las entrevistas y registros a los que tuvimos acceso,
los lugares a los que recurren en primera instancia y con más frecuencia (en

110
general en situaciones críticas) son los Centros Comunitarios, Centros de
Salud Barriales o el Hospital Municipal Ramón Santamarina (donde las
trabajadoras sociales de las diferentes instituciones suelen derivarlas a la
Secretaría de Desarrollo Social). También, frecuentan los hogares de
familiares, amigos o vecinos.
Este es sólo el comienzo de un largo peregrinar para tratar de
resolver un problema que se gesta en el seno de nuestras sociedades: la
de género, y específicamente la violencia doméstica. 16
violenciaespacial
Circuito

Clases sociales Gráfico 1: Circuito espacial de la violencia doméstica.

Hogar de
la
víctima
Centros de
salud barrial-
Tribunal Hospital-
de Familia Hogares de
familiares y
amigos

Comisaría Secretaría
de la de
Mujer y la Desarrollo
Familia Social

Comisaría
más
cercana

Circuito Espacial de la Violencia Doméstica.

Subcircuitos de la violencia doméstica que las victimas recorren en reiteradas ocasiones


paralelamente al circuito de la violencia doméstica.

Circuito Espacial de
16
la Violencia Doméstica.
Los gráficos y mapas que representan los recorridos de las víctimas son una abstracción de
Subcircuitos derealidad,
la que tiene
la violencia por objeto
doméstica quevisibilizar los recorridos
las victimas recorren que realizan lasocasiones
en reiteradas víctimas con menos
recursos; sin embargo, estos recorridos pueden variar en intensidad y características según los
paralelamente al circuito de la
casos violencia doméstica.
particulares.

111
Fuente: LÓPEZ PONS, 2011.

Las víctimas de violencia doméstica sin recursos económicos deben


tratar de conseguir ayuda gratuita a través de las instituciones estatales, las
que recorren una y otra vez para tratar de solucionar el problema. El primer
lugar institucional al que frecuentemente llegan las víctimas es la Secretaría
de Desarrollo Social, allí, además de asesoramiento pueden encontrar
alojamiento y recursos básicos para ellas y sus hijos. Pero esta instancia
suele repetirse en varias oportunidades hasta que las víctimas deciden
denunciar (y a veces nunca lo hacen). La distancia entre su hogar y la
Secretaría de Desarrollo Social es el primer subcircuito que se repite, a veces
durante muchos meses hasta denunciar o salir del círculo de la violencia.
Consideramos como subcircuitos espaciales de la violencia
doméstica a aquellos recorridos menores que forman parte de un entramado
mayor dentro del circuito espacial de la violencia. Conforman Subcircuitos
espaciales los recorridos que las mujeres víctimas transitan desde sus
hogares a la Secretaría de Desarrollo Social, situación que se repite en
reiteradas oportunidades en las víctimas que carecen de recursos para poder
salir del problema. Este subcircuitos espaciales de la violencia doméstica se
repite aunque se siga transitando dentro del circuito espacial, ya que es el
único lugar que otorga ayuda económica para alojamiento y alimentos de las
víctimas.
Los subcircuitos espaciales son definidos en general por las mujeres
pobres, que son las víctimas de menores recursos y por ende la mayoría de
ellas solicitan ayuda económica y asesoramiento gratuito en las oficinas
estatales.
El segundo subcircuito que se conforma dentro del circuito espacial
de la violencia en clases sociales desfavorecidas, es el transitar de las
víctimas entre la Comisaría de la Mujer y la Familia (lugar donde no solo se
denuncia sino donde se puede conseguir asesoramiento a través del equipo
interdisciplinario) y el Tribunal de Familia. Este subcircuito lo realizan las
mujeres que han decidido iniciar un proceso legal y pretenden conseguir una
representación legal gratuita.
Desde el año 2008 las denuncias se pueden realizar en la Comisaría
de la Mujer y la Familia, lugar destinado específicamente para estos casos,
aquí también las víctimas sin recursos económicos suelen buscar
asesoramiento, siendo en algunas oportunidades el primer lugar donde
acuden. Cuando se necesitan recursos económicos como alojamiento,
alimentos, ropa, etc. se las deriva o se solicita colaboración a la Secretaría de
Desarrollo Social (única institución de la ciudad que cuenta con
posibilidades económicas para resolver estas necesidades). Pareciera que
para las víctimas de violencia doméstica de clases sociales más

112
desfavorecidas el lugar de consulta que primero recorren, es la Secretaría de
Desarrollo Social.
El circuito espacial de la violencia doméstica de sectores de clases
sociales desfavorecidas, parece no terminar acá. La decisión de realizar
denuncias y comenzar un proceso legal en general, es el último de los
recorridos que han realizado por la gran mayoría los organismos de la ciudad
en busca de ayuda económica o asesoramiento. Este último recorrido para
las víctimas de menos recursos, implica muchas veces solicitar una
representación legal gratuita.
Este circuito visibiliza los espacios de mayor vulnerabilidad de la
ciudad, aglomerado urbano de exclusión y de integración precaria, donde las
mujeres víctimas deben recorrer los diferentes lugares de ayuda para lograr
salir del problema. El Mapa 2, a través de las flechas claras, pretende ser una
abstracción de la realidad, que nos indica la frecuencia de los recorridos que
realizan las mujeres de estos barrios. El circuito espacial incluye a las
instituciones de la ciudad que atienden el problema de la violencia
doméstica. Es importante considerar que estos recorridos se repiten en varias
situaciones y que los lugares más visibles en las instituciones públicas
coinciden con los aglomerados urbanos de la ciudad identificados con las
clases sociales más pobres.
El Mapa 2 es la representación gráfica del recorrido que hacen con
mayor frecuencia las mujeres pobres, ya que existen otros lugares en el
circuito espacial que lo componen casas de familiares, amigos y vecinos, que
al pertenecer a la esfera privada no pudieron identificarse.
Además cabe aclararse que muchas de las víctimas recorren solo
parte de este circuito o de estos subcircuitos.
El circuito espacial de la violencia doméstica, como resultado del
trajinar de las clases sociales desfavorecidas, aparece en el ámbito público
por medio de los registros que estas instituciones realizan, aquí son más
visibles las víctimas que provienen de barrios carenciados pertenecientes a
los aglomerados urbanos de exclusión e integración precaria.

Mapa 2: Circuito espacial de la violencia doméstica frecuentado por las mujeres


pobres.

113
Mapa

djfaljfal

Adfadfa

Dafd

adadsd
Fuente: CIG-FCH-UNCPBA (LÓPEZ PONS, 2011).

Aunque la violencia doméstica se encuentra presente en toda la


ciudad, los Barrios pertenecientes al aglomerado urbano de exclusión:
Rodríguez Selvetti, Palermo, San Cayetano, San Juan, Movediza, Las
Tunitas, Villa Laza; junto al aglomerado de integración precaria (Barrio
Lisandro de la Torre, Barrio Metalúrgico); y la zona Oeste del aglomerado
de rururbano de integración; presentan las mayores tasas de violencia
doméstica registradas en oficinas públicas. Estos barrios, asociados con los
sectores más desfavorecidos de la ciudad, dejan al descubierto un problema
que se visibiliza a través los registros en oficinas públicas que ayudan a
víctimas de violencia doméstica dejando al descubierto un circuito espacial
visible.
Los barrios de la ciudad ubicados en el aglomerado urbano de
integración (en el centro comercial y financiero de la ciudad) característico
de las clases sociales dominantes presentan las menores tasas de violencia
doméstica (en algunos casos tasa cero) declaradas en oficinas públicas;
haciendo alusión a un circuito espacial mucho más reducido y oculto.
En las clases sociales más favorecidas la violencia doméstica, como
pudimos corroborar a través de las entrevistas, está presente en la ciudad. El
circuito espacial que realizan las víctimas de clases sociales medias y altas

114
es más acotado y en la mayoría de los casos se limita a consultar en el
Tribunal de Familia.
Es importante destacar que las víctimas tienen más recursos
económicos para realizar otros recorridos en busca de ayuda, aunque aquí se
suman otras cuestiones para no hacer público el problema: las
construcciones sociales y culturales propias de la clase social a la que
pertenecen, y el mayor poder económico y social del victimario; cuestiones
que podrían agravar la violencia a la que es sometida la víctima.

Circuito espacial de la violencia doméstica surgida de las clases


sociales medias y altas

Las mujeres de clases sociales medias y altas, padecen violencia


doméstica con la misma o mayor intensidad que las mujeres pobres, aunque
no existan suficientes registros oficiales de las mismas.

En las clases medias y altas la violencia doméstica es más feroz porque el


victimario tiene más recursos. (Entrevistada 6; 2010).

Las mujeres de los barrios más lujosos de la ciudad, aparecen en los


registros de la Comisaría de la Mujer y la Familia como parte las gestiones
previas a la denuncia de la problemática ante el Tribunal de Familia. Estas
mujeres en muy escasas oportunidades, suelen concurrir a instituciones que
brinden ayuda económica y asesoramiento gratuito; y cuando lo hacen no
mantienen las consultas. Situación opuesta a las víctimas de clases pobres,
que al no tener otra posibilidad de ayuda, asisten a las oficinas públicas
donde quedan los registros de los lugares que recurrieron.
Considerando que la violencia doméstica es transversal a la clase
social, posiblemente exista un circuito espacial oculto que no queda
establecido en oficinas públicas, habilitándose recién cuando deciden
denunciar o tratar el problema en el Tribunal de Familia.
De acuerdo a las entrevistas realizadas, se visibiliza en el Tribunal
de Familia, de manera ocasional en la Comisaría de la Mujer y la Familia; y
muy pocas veces en la Secretaría de Desarrollo Social. Este recorrido mucho
más reducido (de acuerdo con los registros de oficinas públicas) no las
excluye de la violencia que muchas veces se ve agravada por los estereotipos
culturales, sociales y económicos; ni de realizar otros circuitos que
permanecen ocultos a registros estatales17.

17
Suponemos, que talvez existan circuitos que quedan ocultos en el ámbito privado.

115
El Mapa 3 presenta una abstracción del circuito espacial de las
víctimas de violencia doméstica provenientes de los barrios de clases
sociales medias y altas (aglomerados urbanos de integración plena y zona
Sur-Este del aglomerado rururbano de integración), destacando el recorrido
visible al momento de decidir denunciar o iniciar un proceso legal.

Fuente: Elaboración personal.


Mapa 3: Circuito espacial de la violencia doméstica en clases sociales medias y
altas.

adjfalkjfal

adfadfafda

dhdghd
Fuente: CIG-FCH-UNCPBA. (LÓPEZ PONS, 2011).

116
Género y violencia: un compromiso de todas y todos

La violencia doméstica es un problema generado en nuestras


sociedades por construcciones de género, y como tales pueden ser
modificadas.
En Argentina, la violencia de género se expresa con mayor
frecuencia a través de la violencia doméstica o familiar y aunque existen
casos en todas las clases sociales, los espacios de mayor vulnerabilidad
económica suelen visibilizar el problema.
La violencia doméstica se produce en el ámbito privado de
relaciones de pareja y son avaladas en el ámbito público, a través de
estereotipos de género donde las víctimas (en general mujeres) aparecen
como causantes y provocadoras del problema.
La poca existencia de registro de datos continuos de denuncias o
tratamientos de este problema, dejan oculta esta realidad.
Los casos extremos de violencia llevan a la muerte y son
denominados feminicidios, “los crímenes conyugales o de pareja (mal
llamados ‘pasionales’) son generalmente el resultado de relaciones de
violencia que culminan con la muerte. Por eso muchas veces se definen estos
crímenes como ‘violencia de género llevada al extremo’. Se usa el término
‘feticidio’ para hacer visible que se trata de un tipo particular de crímenes, es
decir que son crímenes sexuales y de género”. (DIARIO CLARÍN,
28/2/2010).
La autoestima de una persona radica en los logros que alcanza frente
a sí misma y además debe reconocer sus debilidades para poder enfrentarlas
y modificarlas. Lograr un hogar que tenga equidad de género, es tarea de
todos los que en él se desarrollan y no puede depender de las tareas de una o
de las responsabilidades de otro, sino de la dedicación a las tareas en
beneficio de todos. Convivir en el hogar es mucho más que permitir o
ayudar, es resolver en pareja y compartir de manera pareja.
Lo que importa, más allá de las circunstancias y los contextos de los
femicidios, es que son muertes que podrían haberse evitado.
En los homicidios conyugales el crimen suele ser el resultado de un
aumento de violencia de los varones sobre las mujeres que pone en juego la
dominación, el sentido de propiedad o de control.
Es todavía frecuente escuchar que se trata de crímenes pasionales,
concepto totalmente ideológico en tanto la pasión aparece como un elemento
que justifica un rapto emocional, supuestamente amoroso e incontrolable,
ante una decepción, o una provocación insoportable. No hay más que
remitirse a los titulares de los periódicos para probar que se oculta lo
inaceptable, que es el asesinato de mujeres (Imagen 2).

117
La socióloga Cheiter (Centro de Encuentros cultura y mujer),
expresó: “el concepto de crimen pasional no es un concepto inocente:
perpetua la idea de que el criminal está poseído por fuerzas exteriores,
inmanejables por él mismo, el amor o la pasión, y que ha cometido un acto
que él no controla, que lo sobrepasa. Esto lleva a que se produzca una cierta
simpatía por el homicida. Incluso rodea al crimen de una cierta aureola
romántica. Nada más alejado de la realidad. Los números indican que, por
ejemplo en la Provincia de Buenos Aires, un 68% de los femicidios fueron
cometidos por la pareja y que el 98,3% de esos homicidas son varones”.
(DIARIO CLARÍN, 28/02/2011).

Imagen 2: Titulares de periódicos que encubren hechos de feticidios.

118
Fuente: Perfil.com, www.lv7.com.ar; www.26noticias.com.ar; www.actualidady
política.com.ar; www.puntal.com.ar

Como reflexión final, he tratado de mostrar que el problema básico


de la mentalidad occidental sobre la violencia de género, es el espacio del
poder o mejor dicho la voluntad de ejercer el poder es lo que ha originado la
asimetría y la postergación del género femenino por el masculino.
Por otro lado al estudiar la violencia contra la mujer, quedan
manifiestos los efectos negativos en las economías, en la salud, en la fuerza
de trabajo, en la sociedad, que niega la participación de la mujer en todos
los aspectos del desarrollo.
Debemos ser conscientes que el largo camino recorrido, a traído
cambios considerables, para la mujer y su respeto como ser humano.
Pero a pesar de las declaraciones, conferencias, planes de acción y
leyes, vivimos cotidianamente actos de violencia perpetrados contra el
género femenino, haciendo una clara ostentación de género de los conceptos.
El concepto de poder, desde la perspectiva de género, permite una visión
diferente para ir saliendo del lugar de víctimas, porque remite a la
posibilidad de cambiar estas relaciones, construidas culturalmente.

119
Referencias

DIARIO CLARIN. El error de llamarlo “crimen pasional”. 28/02/2010. http://edant.


clarin.com/diario/2010/02/28/policiales/g-02149441.htm
LAN, Diana. El circuito espacial de la violencia doméstica: Análisis de casos en
Argentina. Revista Latino-Americana de Geografia e Gênero, Ponta Grossa, v. 1, n.
1, p. 70-77, 2010.
______. Las mujeres pobres y el circuito espacial de la violencia doméstica en
Argentina. In: SILVA, Joseli M; ORNAT, Marcio J; CHIMIN JUNIOR, Alides B.
Espaço, gênero e feminilidades ibero-americanas. Ponta Grossa (Paraná):
Todapalavra Editora, 2011, p. 169-191.
LÓPEZ PONS, María Magdalena. Violencia doméstica y género en Tandil. CIG-
FCH-UNCPBA. (Trabajo inédito), 2011, 230 p.
MINISTERIO DE SALUD. Presidencia de la Nación. Campaña argentina por la
equidad de género y contra la violencia. “Otra vida es posible. Tenemos derecho a
una vida sin violencia”. 2009-2011. Acceso: julio de 2011.
www.vivirsinviolencia.gov.ar
RAMÍREZ GONZÁLEZ, José Luis. El espacio del género y el género del espacio.
Scripta Vetera. 1996. http://www.ub.edu/geocrit/sv-69.htm

12
GEOGRAFIA E GÊNERO EM ASSENTAMENTOS RURAIS:
ESPAÇOS DE PODER

Maria das Graças Silva Nascimento Silva

Quando cheguei aqui não tinha estrada era apenas um picadão


e tudo que plantei quando cheguei o bicho comeu.
(Trabalhadora rural do Assentamento Joana D’Arc III)

Introdução

A pesquisa “Geografia e gênero em assentamentos rurais: espaço de


poder” teve como fio condutor a identificação das transformações ocorridas
na vida das mulheres do Assentamento Rural Joana D’Arc III, por meio do
levantamento da forma como as políticas públicas chegam para as mulheres
rurais daquela área e da sua situação econômica. A implementação do Plano
Nacional de Políticas para as Trabalhadoras Rurais, desenvolvido pelo
Governo Federal, através do Ministério do Desenvolvimento Agrário
(MDA), e em parceria com a Secretaria Especial de Políticas para Mulheres
(SPM), tem possibilitado o crescimento da visibilidade feminina por meio do
acesso a determinadas políticas públicas. Uma delas é o alcance da
documentação civil e trabalhista, por meio do Programa Nacional de
Documentação da Trabalhadora Rural (PNDTR), que abre caminho para sua
inclusão em vários programas governamentais. Outra garantia significativa
para as trabalhadoras rurais é o direito à terra, que estimula a integração das
mulheres na gestão econômica dos assentamentos, possibilitada pelo

12
Programa Nacional de Reforma Agrária (INCRA). Outro programa ampliado
para atender as mulheres foi uma linha de crédito, por meio do Programa
Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF-MULHER) e
do Programa de Assistência Técnica, Social e Ambiental (ATES), que, desde
o ano de 2008, trabalham articulados com o Programa de Organização
Produtiva de Mulheres Trabalhadoras Rurais da Agricultura Familiar e da
Reforma Agrária.
As iniciativas governamentais dirigidas para as mulheres
trabalhadoras rurais, ao serem implementadas, geram uma série de
especificidades, resultantes, de um lado, da política estatal, e, de outro, da
vida cotidiana feminina nos assentamentos rurais. Nesse sentido, é preciso
investigar a forma como as políticas públicas estão sendo desenvolvidas
junto às mulheres-alvo dos programas do governo. Para tanto, o texto adota a
perspectiva de gênero associado com categorias como geração, etnia e
classe. Essa abordagem interseccional possibilita construir um quadro de
referência da realidade vivenciada pelas mulheres trabalhadoras rurais em
sua relação com seus direitos cidadãos e sua atuação como sujeitos sociais.

Contextualização da pesquisa empírica

A pesquisa foi desenvolvida no assentamento rural Joana D’Árc III,


município de Porto Velho, no estado de Rondônia, que fica a 100 km da sede
do município, pela BR-319. A área de estudo é uma das partes que compõem
uma área que está dividida em três setores. Os setores I e II foram
constituídos por um conjunto de pessoas provenientes do núcleo urbano de
Porto Velho, e o setor III, foco desta pesquisa, é composto por parte dos
integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O
assentamento Joana D’Árc III, ocupado inicialmente por 141 famílias em
2001, foi idealizado para abrigar famílias provenientes do município de
Corumbiara que tinham passado pelo triste e violento episódio conhecido
como o “Massacre de Corumbiara”, em 1995.
O assentamento Joana D’arc III é formado por seis agrovilas: Padre
Ezequiel, Chico Mendes, Sergio Rodrigues, União dos Camponeses,
Pequena Vanessa e Vencedora. Cada agrovila é constituída por 24 lotes. A
pesquisa foi realizada com 37 famílias (sendo 27 homens e 10 mulheres) que
possuem terras em seu nome no Assentamento. Além da pesquisa de campo,
debruçamo-nos sobre algumas pesquisas já realizadas nessa região e na área
do entorno (PINHEIRO, 2010; SILVA, 2010; HOLANDA FILHO, 2009).

12
Sobre as famílias do Assentamento

O assentamento é considerado novo, e muitas das famílias pioneiras


já não vivem mais no Joana D’Árc III. Problemas como a precariedade das
estradas, dificultando o tráfego em longos períodos de chuva, a falta de
escolas, a baixa fertilidade do solo, o difícil acesso à água, a distância da
área urbana de Porto Velho e as dificuldades associadas à venda da produção
constituem as razões para a desistência de várias das famílias que iniciaram a
ocupação do assentamento. Assim, o conteúdo social da área foi sendo
renovado por outras famílias, provenientes de movimentos sociais de luta
pela terra.
A idade das pessoas entrevistadas se concentra em dois grupos: entre
45 e 59 anos e entre 25 e 34 anos, tanto para homens quanto para mulheres.
Os dois grupos constituem uma população relativamente jovem, fator que
influencia a sua organização produtiva. As características de idade, força e
sexo moldam a forma como cada família desenvolve suas atividades e
também quem se encaixa no melhor perfil para realizar as tarefas rurais,
levando à ideia de que os homens jovens acabam se constituindo em um
elemento fundamental para a produção nos assentamentos rurais.
A média de filhos por família no assentamento em estudo é de três,
considerada baixa em comparação com os dados de outros assentamentos,
como o Nazaré e o Boa Vitória, em que as famílias têm, em média, cinco
filhos. Isto se deve ao fato de que os casais do assentamento ainda são
predominantemente jovens, o que sinaliza a possibilidade do aumento do
número de filhos por família. Contudo, há que se considerar, nesse aspecto,
que a participação das mulheres em movimentos sociais permite que elas
tenham um maior acesso a informações sobre saúde e controle reprodutivo.
Além disso, o uso de tecnologias para o trabalho rural diminuiu a
necessidade de uma família numerosa para a produção dos assentados.
Contudo, ainda hoje aqueles que ainda não contam com técnicas e
equipamentos necessitam da mão de obra familiar, o que faz com que o
número de filhos aumente.
A população infantil do assentamento se concentra na faixa etária
entre 06 a 11 anos de idade, o que indica que os filhos ainda não atingiram
grande capacidade produtiva. Além disso, esse grupo ainda está em fase
escolar. O período da presença das crianças na escola acaba facilitando aos
pais o trabalho na agricultura. As famílias que têm filhos na faixa etária entre
12 e 17 anos adquirem certa vantagem, já que os filhos acabam aliviando
parte do trabalho, fazendo com que as famílias trabalhem, no total, uma
média de oito horas por dia. Já nas famílias que são compostas por filhos nas
faixas etárias de 0 a 05 anos e de 06 a 11 anos, o tempo total de trabalho

12
familiar é de oito a doze horas por dia, em função da pequena
disponibilidade de mão de obra dentro do núcleo familiar.

Ausência da documentação e o acesso à terra

No Brasil, segundo o Censo 2000, há quase 15 milhões de mulheres


trabalhadoras rurais, grande parte delas sem acesso a cidadania, saúde e
educação, e também sem o reconhecimento da sua condição de agricultoras
familiares, trabalhadoras rurais, quilombolas, ribeirinhas ou camponesas
(BUTTO e HORA, 2008). As mulheres representam 47,8% da população
residente no meio rural (PNAD, 2006).
Segundo estimativas da FAO, apenas 1% das propriedades no
mundo estão nas mãos das mulheres. A pesquisa revela que no
Assentamento Rural Joana D’Árc III, das 37 famílias com as quais
realizamos entrevistas, apenas 10 mulheres são proprietárias das terras,
embora, em comparação com épocas anteriores, esse número possa ser
considerado expressivo. A história revela que a posse dos bens da família
cabia exclusivamente ao homem, mesmo que este fosse um parente distante.
A propriedade da terra no nome da mulher pode gerar maior autonomia nas
tomadas de decisões e, quando compartilhada com seu companheiro, a
participação feminina é mais respeitada.
A Portaria 981/2003 do INCRA estabeleceu a titulação conjunta da
terra nos lotes de assentamentos constituídos por um casal, e ela também
garantiu a titularidade da terra para a mulher independentemente da sua
condição civil, desde que chefe de família (BUTTO e HORA, 2008). As
mulheres do Joana D’Arc III foram beneficiadas por esta ação. Entre as dez
mulheres identificadas como proprietárias de terras, havia três chefes de
família, sendo uma viúva, uma separada e outra solteira. As outras sete
mulheres detêm a titulação da terra em conjunto com seus companheiros.
Para que as mulheres possam receber o título da terra, é necessário
que elas possuam documentos pessoais, e isso é uma das dificuldades que as
mulheres enfrentam para a ampliação de seu acesso à terra e para serem
beneficiadas por outras políticas do governo. A conquista dos documentos
pessoais não foi uma ação considerada importante no universo feminino
rural, de acordo com a pesquisa realizada; entretanto, a falta deles se
configura como um fator limitante, já que inviabiliza, além do acesso à terra,
o alcance de outros serviços públicos, bem como a filiação das mulheres em
associações, cooperativas, e sindicatos.
Em 2004, o MDA criou o Programa Nacional de Documentação da
Trabalhadora Rural-PNDTR, que faz a emissão de documentos civis e

12
trabalhistas, além de repassar informações sobre as políticas públicas. Desde
sua implantação, esse programa tem atuado em Rondônia junto às mulheres
trabalhadoras rurais, ribeirinhas, quilombolas e indígenas. A ação do
programa desenvolvido por iniciativa do governo federal possibilitou a
participação das mulheres do assentamento Joana D’Arc III, em especial as
mais jovens. Todavia, esse direito cidadão básico tem sido negado a muitos
brasileiros moradores de Porto Velho. Para se ter uma dimensão do processo,
em uma ação de seis dias do referido programa nesta cidade em 2010, foram
beneficiadas 4.650 pessoas de ambos os sexos.

O trabalho e a ajuda

A mulher rural é submetida a uma dupla e até tripla jornada de


trabalho cotidianamente. O trabalho doméstico realizado por elas não é
valorizado socialmente e não se vincula diretamente à produção, e assim,
não é remunerado mediante salário (BLAY, 1978). O trabalho doméstico nas
áreas rurais é quase que totalmente de responsabilidade feminina. Desde a
infância, as meninas são preparadas para executar as tarefas da casa, como
cuidar dos irmãos mais novos, lavar roupa, cozinhar e cuidar dos animais
domésticos, da horta e de pequenos cultivos próximos da casa, incluindo
jardins.
Além da responsabilidade de todo o trabalho ligado à casa, as
mulheres trabalham nas atividades da agricultura juntamente com seus
companheiros. Embora elas desempenhem atividades na lavoura juntamente
com os homens, seus companheiros consideram a atuação feminina no
trabalho agrícola como “uma ajuda” e não propriamente como um trabalho
produtivo. Isso se reflete nas tomadas de decisões sobre a propriedade, que,
em geral, são masculinas. O trabalho da mulher rural continua sendo
considerado apenas na esfera reprodutiva, invisível e desvalorizado; já o
trabalho do homem é ligado à produção e à comercialização, angariando
expressão monetária, o que gera sua valorização na sociedade.

Como homens e mulheres trabalham a terra

Homens e mulheres têm uma relação diferenciada com a terra. Em


geral, elas utilizam técnicas menos agressivas ao meio ambiente, e a
produção está relacionada principalmente com a plantação de hortaliças,
leguminosas, arroz, feijão, café, frutas e outros produtos destinados à

12
subsistência da família. Além dessas atividades consideradas femininas, elas
também participam do cultivo de outros produtos.
No processo de preparação da terra para o plantio, os homens, em
sua maioria, usam o trator para essa atividade, e as mulheres fazem o roçado,
aproveitam áreas de capoeira, fazem o aceiro que evita as grandes queimadas
e usam adubo orgânico. Essas formas variadas desenvolvidas por homens e
mulheres com relação à terra têm sido estudadas por meio da perspectiva
teórica conhecida como ecofeminismo. Segundo essa abordagem, as
mulheres têm uma relação de maior “harmonia com a natureza” do que os
homens, advinda de sua função de cuidar da família, desenvolvendo um
sentido de preservação de recursos para as futuras gerações. Os homens, pelo
contrário, tendem a utilizar técnicas mais agressivas ao meio ambiente, como
derrubadas e queimadas para a preparação do solo. No que diz respeito ao
cultivo, os homens têm preferência por produtos destinados à
comercialização.
No Assentamento Joana D’Arc III, os produtos destinados à venda,
segundo informações das pessoas entrevistadas, são a banana, a mandioca e
a farinha. A comercialização é uma atividade masculina, e as mulheres
casadas costumam atribuir aos homens o trato com recursos financeiros. As
mulheres solteiras, separadas e viúvas também não desenvolvem a atividade
de comercialização de forma direta. Para tanto, elas se valem de figuras
masculinas da família, como o filho mais velho, um outro parente ou um
amigo da família.
O Programa de Assistência Técnica, Social e Ambiental (ATES) não
se efetivou e, embora os técnicos desenvolvam atividades de assistência à
agricultura, o programa não tem considerado as especificidades de gênero da
atuação feminina na produção do campo. As mulheres apontam a
necessidade de assistência técnica a fim de habilitá-las para outros
programas de auxílio, como o do Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar (PRONAF-MULHER), que é uma linha de crédito
pouco acessada por elas. Há apenas um registro feminino de acesso ao
programa, mas isso em um outro assentamento, o Joana D’Arc I.
As mulheres rurais desenvolvem várias atividades no processo de
produção de mercadorias para o comércio, mas elas não participam
propriamente do processo de decisão sobre as vendas e os investimentos a
serem realizados na propriedade rural. O transporte dos produtos das áreas
rurais para os postos de venda urbanos também é uma tarefa masculina,
realizada com apoio da Secretaria Municipal de Agricultura (SEMAGRIC),
que, uma vez por semana, às terças-feiras, cede um caminhão para levar a
produção até o “mercado do produtor rural”, na cidade de Porto Velho. Além
dessa forma de circulação dos produtos, há também a utilização dos ônibus

12
e, em alguns casos, a comercialização pode ser realizada no próprio local de
produção.

O empoderamento nas dimensões econômica, pessoal, social


e política

A noção de empoderamento vem sendo utilizada na avaliação do


impacto de políticas públicas sobre as condições de gênero, e os
assentamentos são um recorte empírico privilegiado no uso e na discussão do
empoderamento. O mesmo visa descrever a alteração radical dos processos e
estruturas que garantem a transformação social, exigindo espaços
democráticos e participativos, bem como a organização de mulheres.
(BRUMER e ANJOS, 2008).
Na dimensão econômica, consideram-se as perspectivas de aumento
da renda, da quantidade e qualidade nutricional dos alimentos e da qualidade
de vida da família, assim como o controle das mulheres sobre os resultados
econômicos de seu trabalho (BRUMER e ANJOS, 2008). No assentamento
Joana D’Arc III há várias atividades femininas que se transformam em
aumento da renda familiar, como o cultivo de frutas, hortaliças e legumes; a
criação de animais domésticos, como galinhas e porcos; o beneficiamento de
alguns produtos, como a bananada, compotas de frutas, fécula da mandioca e
outras. Assim, as mulheres do assentamento, apesar da pequena valorização
social de seu trabalho, têm desenvolvido várias formas de aumento de
rendimentos familiares, além de manter seu tradicional papel na reprodução
familiar.
A alimentação diversificada e saudável do grupo familiar é mantida
mediante o trabalho feminino, por meio de seus cuidados com pomares,
canteiros de hortaliças e legumes, além de todo o trabalho de preparo e
conservação dos alimentos. E tudo isso a mulher faz além de sua jornada de
trabalho na roça, ao lado do companheiro. Há ainda alguns empreendimentos
isolados, bem interessantes do ponto de vista da capacidade empreendedora
feminina, como é caso de uma senhora que vende refeições prontas e tem
como fregueses as pessoas que visitam o assentamento e até mesmo os
motoristas que trabalham na linha de transporte que liga o assentamento à
cidade.
A dimensão pessoal do empoderamento feminino no assentamento
Joana D’ Arc III, que ensejaria o aumento da autoestima e da autoconfiança,
está prejudicada pela ausência de estruturas que possibilitem o cuidado
pessoal. Entre os serviços essenciais ausentes figuram saúde e educação. As
mulheres assentadas não fazem exames periódicos de prevenção de doenças

12
e, embora tenham vontade de estudar, não há programas educacionais
adultos na área, apenas infantis.
Além disso, as relações entre as instituições governamentais de
assistência técnica e financeira e os assentados são direcionadas à figura
masculina. As reuniões das associações são compostas, e nelas, muitas
vezes, a presença feminina é maior, mas o discurso é direcionado aos
homens. Assim, a presença física das mulheres é invisibilizada pelo perfil de
relações dialógicas de poder, inviabilizando a presença feminina e sua
capacidade de intervenção nas decisões que devem ser tomadas em conjunto.
As instituições governamentais de apoio continuam destinando cursos e
treinamentos aos assentados com base em uma concepção dual e bi-
polarizada da divisão sexual do trabalho. Às mulheres são ofertados cursos
de artesanato, culinária, corte e costura, confecção de produtos de higiene e
limpeza, e aos os homens, atividades vinculadas à plantação, produção e
comercialização de mercadorias agrícolas.
Embora as instituições tenham esse perfil de reforçar a divisão dos
papéis de gênero, na prática cotidiana esse perfil está sendo questionado
pelas mulheres do assentamento Joana D’Arc III, já que, segundo o
levantamento realizado, boa parte das mulheres participa também das
atividades direcionadas para os homens. Outro fato interessante é que os
homens têm participado mais intensamente de programas tradicionalmente
frequentados por mulheres. Um exemplo interessante foi um treinamento
realizado no assentamento para o combate à “praga da banana”, no qual as
mulheres foram as que mais dominaram e disseminaram a tecnologia de
combate à praga. Essa ação feminina foi bastante importante, já que a
banana é um produto fundamental no sustento das famílias. O assentamento
Joana D’Arc III é um dos mais importantes produtores de banana na região
do município de Porto Velho.
O empoderamento feminino na dimensão social e na dimensão
política se concentra na capacidade das mulheres para mudar e questionar
sua submissão em todas as instâncias em que ela se manifesta, assim como
na ampliação de sua participação em instâncias de poder social (BRUMER e
ANJOS, 2008). As mulheres trabalhadoras rurais do Joana D’Arc III
construíram sua vida em meio a uma trajetória de participação em
movimentos sociais, desde a conquista da terra. Embora elas tenham um
papel secundário no movimento organizado e nos enfrentamentos físicos
com os adversários, elas têm consciência de sua importância nessa
organização, ainda que não se apresentem como lideranças para alcançar as
instâncias de poder.
A Associação dos Assentados Rurais do Projeto Joana D’Arc III
(AARPROJD) é formado por um número expressivo de mulheres, mas
nenhuma delas assumiu a direção da Associação, desde que ela foi criada,

12
em 2001. Além disso, a composição atual da diretoria não registra presenças
femininas. Entretanto, as mulheres participam das assembleias, ainda que
façam poucas intervenções públicas. Elas tomam a palavra poucas vezes,
notadamente em assuntos relacionados às famílias, como educação dos
filhos, saúde e outros. Quando o tema do diálogo dentro da Associação é
relativo à produção e venda dos produtos, a relações políticas com as
instituições de fomento, à elaboração de documentos e outros, há um
predomínio masculino, apesar de algumas mulheres apresentarem maior
escolarização que alguns dos homens associados. É interessante observar
que, quando os casais trazem seus filhos menores para as reuniões da
Associação, são as mulheres que se encarregam dos cuidados das crianças, e
elas saem mais cedo para o preparo de refeições, atribuindo ao homem a
função pública da tomada de decisões políticas na Associação.
Houve uma tentativa de criar uma organização das mulheres
trabalhadoras rurais no Assentamento, mas sem sucesso. Elas reivindicaram
um espaço físico onde pudessem desenvolver cursos, oficinas, enfim, um
local de referência para elas, onde também pudessem desenvolver algumas
atividades de lazer. Infelizmente, no Assentamento, o lazer é uma atividade
que não faz parte do universo feminino. Os homens desenvolvem atividades
esportivas, como o futebol, e eles se encontram em bares, para conversar
com os amigos, promovendo até mesmo algumas festas. Embora as mulheres
ainda não tenham conquistado seu projeto, há esforços sendo desenvolvidos,
como a conquista de uma área e a busca de parceiros para financiamento do
empreendimento.

Considerações finais

A partir desse histórico de luta e organização, é possível afirmar que


as mulheres do Assentamento têm uma visão particular e diferenciada de seu
papel na sociedade. Ao passar por todos estes processos, elas começam a
perceber que têm direitos e que podem lutar por eles. Isso pode ser
facilmente identificado nas reuniões da Associação, em que elas sempre
estão presentes, ainda que não ocupem nenhum cargo de direção, mas sua
participação, muitas vezes trazendo seus filhos menores e fazendo poucas
intervenções, já é um avanço.
O sexo e o estado civil têm grande importância quando se trata da
participação de homens e mulheres nas tomadas de decisões. A figura
masculina ainda é tida como chefe da família, e é o homem quem toma as
principais decisões, isso porque se atribui a ele uma maior habilidade em
lidar com os negócios. Em muitos casos, ainda, é ele quem define o produto

12
cultivado para a comercialização. As mulheres vêm se impondo muito
lentamente, mas já é um começo, e alguns homens já dão abertura para o
diálogo no que diz respeito às suas opiniões e decisões. Nos casos de
titulação conjunta em que a mulher encabeça a titularidade, ela passa a ter
um maior poder de decisão, ainda que tenha que dividir esse papel com o
marido, que é o que acontece na maioria das vezes.
Pela trajetória tanto de homens quanto de mulheres em movimentos
sociais, estes reproduzem no assentamento o nível de organização que
obtiveram ao longo destas experiências, por meio de cooperativas e
associações, entre outros. Estes ambientes contribuem para quebrar os
pensamentos arcaicos do modelo masculino nas tomadas de decisões, pois a
participação das mulheres nesses ambientes não é restrita, e como foi
observado nas visitas de campo, elas participam das reuniões das associações
não apenas como ouvintes. Pode-se afirmar que essa experiência levou os
assentados a terem acesso à informação, o que propiciou a queda de alguns
preconceitos entre eles com relação à participação das mulheres nas tomadas
de decisões. A noção de empoderamento diz respeito a mudanças ou, pelo
menos, à melhoria das condições sociais de existência de mulheres com
poucos recursos sociais e políticos. As mulheres do Joana D’Arc III estão
começando a despertar para essas possibilidades. Mas para que isso aconteça
efetivamente, é necessária toda uma eficiência na gestão de políticas
públicas que chegam até elas.

Referências

BLAY, Eva. A. Trabalho doméstico: a mulher na indústria paulista. São Paulo:


Ática, 1978.
BRUMER, Anita; ANJOS, Gabriele dos. Relações de gênero em assentamentos: a
noção de empoderamento em questão. In: LOPES, Adriana L.; BUTTO Andrea.
Mulheres na Reforma Agrária: a experiência recente no Brasil. Brasília: MDA,
2008.
BUTTO, Andrea; HORA, Karla Emanuela R. Mulheres e Reforma Agrária no
Brasil. In: LOPES, Adriana L.; BUTTO Andrea. Mulheres na Reforma Agrária: a
experiência recente no Brasil. Brasília: MDA, 2008.
HOLANDA FILHO, Zenildo Ferreira. Impactos sociambientais do uso de cultivares
de banana resistentes à Sigatoka-Negra: estudo de caso em assentamento de
reforma agrária em Rondônia. Dissertação (Mestrado em Geografia)  Universidade
Federal de Rondônia, Porto Velho, RO, 2009.

13
PINHEIRO Tainá Trindade. Qual o lugar da mulher no Assentamento Joana D’Arc
III? Relatório de Pesquisa PIBIC – UNIR, Porto Velho. 2010.
SILVA. Viviane Néry. Assentamento rural Joana D’Arc III: um olhar na
perspectiva de gênero. Relatório de Pesquisa PIBIC – UNIR, Porto Velho, 2010.

13
MULHERES E TRABALHO:
NOVOS E VELHOS DILEMAS18

Susana Maria Veleda da Silva

Introdução

O texto corresponde às reflexões construídas ao longo de minha


trajetória como professora e pesquisadora. Nesta trajetória, incorporo a teoria
feminista e, mais especificamente, o trabalho a partir da perspectiva das
relações de gênero. Relações que perpassam transversalmente todas as
questões sociais, econômicas e culturais que fundamentam a sociedade atual.
Entendo gênero sob duas perspectivas: como uma categoria de análise que
problematiza todas as desigualdades hierárquicas oriundas das diferenças
percebidas entre os sexos construídas social e culturalmente, e como um
instrumento político para desconstruí-las. Parto do pressuposto
empiricamente constatado de que os seres humanos (mulheres e homens)
entram no mundo do trabalho em condições diferenciadas e que isso acarreta
uma desigualdade de oportunidades no que se refere ao acesso, à
permanência, ao tipo de trabalho e à remuneração. Estas condições são
produzidas pela tradicional divisão sexual do trabalho (DST), que impõe
papéis e funções para mulheres e homens, expressando-se no espaço público
e no privado.

18
Texto base para palestra no I Seminário Latino-Americano de Geografia e Gênero: espaço,
gênero e poder e Pré-encontro da Conferência Regional da UGI: conectando diferenças
através de fronteiras espaciais. Rio de Janeiro, 08-11 de novembro de 2011. Disponível em:
http://www.gete.net.br/ocs/index.php/ugi/SGGUGI.

13
O mundo do trabalho remunerado, exercido majoritariamente no
espaço público, torna-se cada vez mais competitivo, e a participação das
mulheres, embora não seja recente, cresceu nos últimos quarenta anos,
apresentando um processo de aceleração no último quartel. No Brasil, em
1995, a participação de mulheres na população economicamente ativa (PEA)
cresceu 63% em relação a 1985, enquanto a participação masculina cresceu
20%. Em 2006, as mulheres representavam 43% da PEA, e 42% estavam
ocupadas; os homens representavam 56% e 52%, respectivamente. 19 O
crescimento da presença das mulheres na PEA significa mudanças
importantes, mas não necessariamente um equilíbrio de oportunidades entre
os sexos no que se refere às condições/relações de trabalho. Assim, o
objetivo do ensaio consiste em refletir sobre velhos e novos dilemas que
rondam o acesso das mulheres ao mundo do trabalho, e suas consequências.
O recorte espacial para as reflexões aqui apresentadas é o município
portuário de Rio Grande (RS), localizado no sul do Brasil. 20
As mulheres ainda vivem velhos dilemas relacionados com a DST,
oriunda da sociedade patriarcal, já que elas são consideradas como “força de
trabalho secundária” (ABRAMO, 2010) e as únicas responsáveis pelos
afazeres domésticos (BRUSCHINI e RICOLDI, 2008). Considero que a
DST também fomenta novos dilemas decorrentes do acesso a profissões
consideradas masculinas, como a necessidade de afirmar sua feminidade e o
papel de cuidadoras/responsáveis pelos(as) filhos(as) e a família. Assim, as
mulheres se fragmentam pela necessidade de escolher entre duas saídas
contraditórias e igualmente insatisfatórias: o acesso ao mundo do trabalho
remunerado na sua plenitude, com objetivos de obter independência
econômica e empoderamento, e a consequente perda do posto de
“responsáveis” pelos afazeres domésticos e dos cuidados materno-familiares,
que afirmam sua feminidade.21
O texto divide-se em três partes. A primeira apresenta considerações
sobre as mudanças gerais ocorridas no mundo do trabalho nas últimas
décadas, e a segunda contextualiza, através de indicadores sociais e
econômicos selecionados, a situação do Brasil no que se refere às
oportunidades desiguais entre homens e mulheres no mundo do trabalho
remunerado e não remunerado. Finalmente, a terceira parte conclui o ensaio

19
População economicamente ativa (PEA) é aquela que trabalha ou está buscando trabalho.
Os dados quantitativos referem-se às Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílio
(PNADs/IBGE 1985, 1995, 2006). Ver Tabela 1, no final do texto.
20
Ver Figura 1, no final do texto.
21
Do inglês empowerment, que significa “o processo de fortalecimento político das mulheres
obtido através de múltiplas ações de ordem legal, econômica, cultural e psicológica”
(BRUSCHINI et al., 1998, p. 71).

13
com reflexões sobre o tema a partir de um contexto local  o município de
Rio Grande (RS), Brasil.

Mulheres e as mudanças contemporâneas no mundo do


trabalho

Até meados dos anos 70 do século XX, o modelo fordista era


predominante nos paises capitalistas. Embora autores como Sayer e Walker
(1992a) demonstrem as dificuldades em se definir o fordismo, é possível
atribuir algumas características gerais a esse sistema de produção, tendo
como referência, por exemplo, a escola de regulação francesa (AGLIETTA,
1979). A produção fordista, que se caracteriza, principalmente, pela rigidez
na produção e nas relações de trabalho, passa por um processo de
flexibilização. Segundo Humphrey (1989), o processo abrange três aspectos
de flexibilidade que atingem diretamente a força de trabalho: a) das práticas
de emprego  salários, número de trabalhadores(as), horário de trabalho,
contratos terceirizados; b) das funções  alocação dos(as) trabalhadores(as)
em diferentes tarefas ou funções dentro da empresa; c) das relações entre
empresas  sistemas de subcontratação, de redes de trabalho temporário e
externo.
Concordo com Sayer e Walker (1992b), quando argumentam que a
relação fordismo/flexibilização não constitui um processo binário, e que, por
isso, não pode ser explicada por teorias dualistas. As mudanças recentes
ocorridas na indústria e no mundo do trabalho combinam as duas práticas.
Acontecem simultaneamente, de maneiras diversas, em diferentes lugares e
tempos, e indicam a importância de estudos empíricos que analisem o
contexto local. A análise da reestruturação econômica e das diferentes
formas de trabalho deve ser desenvolvida sob a ótica das relações
socioespaciais, considerando também categorias de análise como as relações
de gênero, a etnia/cor da pele, a escolaridade, a renda, a geração e a
orientação sexual.
O crescimento da participação das mulheres no mercado de trabalho
ampliou a sua visibilidade nos estudos relativos ao tema (MONK e
HANSON, 1989). Assim, a ótica deste ensaio se fixa na categoria gênero.
Com a introdução desta categoria, os estudos, antes associados ao trabalho
realizado somente no âmbito da produção assalariada e exercido no espaço
público (BORDERÍAS, et al., 1984), abrangem também o trabalho
doméstico, exercido no espaço privado.
Durante a década de 1970, os estudos econômicos de paradigma
neoclássico, como os da escola de Chicago, ainda que considerassem a

13
família como uma unidade harmônica, sem conflitos e descontextualizada,
mostraram a importância das relações familiares e situaram a análise da
atividade doméstica (trabalho reprodutivo) no mesmo nível conceitual que o
do trabalho remunerado (trabalho produtivo). Os estudos marxistas também
se preocuparam em conceituar a natureza do trabalho doméstico e suas
relações com o modo de produção capitalista, como submetido à “lógica do
capital”, assim como a subordinação das mulheres, para algumas feministas,
está vinculada à “lógica do patriarcado”. Para as feministas marxistas, a
análise do trabalho feminino se dá a partir das dicotomias  patriarcado
versus capitalismo e família versus mercado de trabalho. A DST tem, na
força de trabalho feminina, um “exército de reserva”, e a subordinação das
mulheres é funcional ao capitalismo. Significa que a presença ou a ausência
das mulheres no mercado de trabalho é fruto do controle da força de trabalho
feminino pelos homens nas sociedades patriarcais (BORDERÍAS, et al.,
1984). Segundo Benería (1981), as diferentes formas de machismo se
apoiam em uma base econômica definida pela organização da produção e da
reprodução social. Assim, o domínio dos homens sobre as mulheres
desenvolve-se historicamente pela necessidade de controlar a reprodução e
seus vários aspectos, definindo uma sociedade patriarcal.
Os estudos sobre a subordinação das mulheres e da DST passam por
três aspectos fundamentais: a) o controle exercido sobre as atividades
reprodutoras das mulheres em distintas sociedades; b) o cuidado dos
filhos(as), outros parentes e os afazeres domésticos associados à manutenção
e à reprodução da força de trabalho e sua ligação com o papel diferenciado
das mulheres na reprodução biológica; c) a participação das mulheres na
produção está condicionada ao seu papel na reprodução.
As atividades remuneradas das mulheres são frequentemente uma
extensão do trabalho reprodutivo no âmbito do espaço doméstico e privado,
relacionadas com idade, escolaridade e escassa mobilidade física. Para as
sociedades patriarcais, a remuneração das mulheres é complementar, e sua
presença é mais importante na reprodução, enquanto cabe aos homens o
papel de provedores da família. Quando as mulheres trabalham como
assalariadas no âmbito do espaço público, elas estão nas atividades
informais, temporárias e precárias, ou então em setores de atividades formais
de baixa remuneração.22
Porém, a DST, como uma relação social, é dinâmica, e as ideias
construídas social e culturalmente modificam-se ao longo do tempo.
Portanto, as análises do acesso ao trabalho remunerado devem conter fatores
que incorporem as mudanças (quantitativas e qualitativas), relacionadas com
22
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) recomenda a necessidade de superar a
visão da mulher como “força de trabalho secundária” (OIT, 2010). Disponível em:
http://www.oit.org.br/info/downloadfile.php?fileId=442. Acesso em: 15/06/2011.

13
produção/reprodução, com as políticas públicas de desenvolvimento, com as
transformações culturais, com a incorporação da força de trabalho feminina e
com a expansão de novas e velhas formas de trabalho, por exemplo: trabalho
em domicilio, teletrabalho, trabalhos flexíveis, temporários e/o informais.
Quando as mulheres assumem empregos considerados “de homens” ou
masculinos, como engenharias, construção civil ou mesmo postos de chefia,
a associação entre as funções materno-cuidadoras e o gênero feminino são
postas em xeque.
O acesso maciço das mulheres de classe média ao mundo do
trabalho remunerado passou a acontecer, de forma geral, a partir dos anos
70, e ele representa um dos eventos mais importantes do final do século XX.
Todavia, essa presença está marcada pela feminização do trabalho. As
mulheres entram no mercado de trabalho predominantemente ocupando
postos de trabalho em tempo parcial (flexíveis), que lhes permitem conciliar
o trabalho produtivo com o trabalho reprodutivo, mas com salários também
parciais (RECCIO, 1998).
A expressão “feminização do trabalho” não significa somente mais
mulheres no mercado produtivo; atualmente, o conceito é associado à
precarização do trabalho e/ou a trabalhos em que o(a) empregador(a)
considera importante determinados atributos supostamente femininos, para
que o(a) trabalhador(a) tenha um melhor desempenho em suas atividades.
Segundo Antunes (1999), o capitalismo tem se apropriado da DST de
maneira desigual e diferenciada. De fato, ele se apropria tanto das velhas
como das novas divisões, articulando-as conforme as necessidades do
capital. O capital redefine outras divisões sexuais do trabalho, que se
articulam com a DST tradicional: nos setores onde a presença do maquinário
e da tecnologia (capital intensivo) é maior, predominam os homens, e
naqueles em que a exploração do trabalho manual e repetitivo (trabalho
intensivo) é maior, predominam as mulheres (POLLERT, 1996). 23 A
qualificação que um(a) trabalhador(a) deve ter para exercer determinado
trabalho também é um conceito social e culturalmente construído e, portanto,
mulheres e homens podem exercer trabalhos feminizados, isto é,
precarizados. Considero que devemos atentar para o uso dos termos
feminização e precarização do trabalho e sobre sua associação, pois a relação
de algo negativo ao termo feminização reforça os preconceitos, tal como
argumentavam Bruschini et al. (1998, p. 21) em relação à associação entre a
pauperização das mulheres e a “feminização da pobreza”.
Na década de 1980, Monk e Hanson (1989, p. 43) apontavam que os
estudos sobre mulheres e trabalho em Geografia deveriam se voltar às
contribuições das transformações no trabalho/emprego feminino, às
23
Rossini (2010) identificou esta relação em pesquisa sobre a agricultura canavieira em
Ribeirão Preto (SP).

13
mudanças na economia espacial, e também a como a natureza do emprego
feminino é afetada por estas mudanças. Considero que são questões ainda
pendentes em economias em expansão, como a brasileira.
A seguir, apresento alguns indicadores selecionados sobre a inserção
das mulheres no mercado de trabalho brasileiro.

Mulheres e trabalho no Brasil: alguns elementos para reflexão

A partir dos anos 70 do século XX, também ocorre um aumento da


participação feminina no mercado de trabalho brasileiro. O fenômeno foi
apontado por Bruschini (1994, p. 179) como “uma das mais marcantes
transformações sociais ocorridas no país”. Segundo Leone (2000), o
crescimento ocorreu em um contexto de expansão da economia, com um
acelerado processo de industrialização e uma crescente urbanização. Assim,
as brasileiras se introduziram no mercado de trabalho ocupando postos de
trabalho flexível, precários e, em grande parte, pertencentes ao setor
informal.
Durante a década de 80, o país sofreu mudanças importantes na sua
organização política e econômica, devido à implantação das práticas
neoliberais. A crise da dívida externa, os planos de ajuste econômico e as
restrições dos gastos públicos no social levaram a uma maior precariedade
do mercado de trabalho e ao aumento da exclusão social. O crescimento da
participação feminina no mercado de trabalho se mantém a partir desta
década, apesar da retração da atividade econômica e da consequente
deteriorização das ocupações. A força de trabalho translada-se do setor
industrial para o setor terciário e, segundo Bruschini (2000), os setores mais
destacados na geração de empregos foram a prestação de serviços, o
comércio, as atividades sociais e a administração pública. Muitos dos novos
postos eram informais, com baixa produtividade e salários menores que os
da indústria, e eles foram preenchidos por mulheres.
Os anos 90 se caracterizaram pela abertura econômica, pelas poucas
inversões de capital no setor social e pela flexibilização e terceirização da
economia (MALAGUTI, 2000). De acordo com Bruschini (2000), o
comércio absorveu mais mulheres do que homens, com uma maior
flexibilização nas relações de trabalho, marcadas por um aumento das
atividades informais e precárias.
O perfil da PEA vem mudando com a entrada maciça das mulheres
na força de trabalho. Para Bruschini (2000, p. 13), a mudança está inserida
nas transformações sociais, culturais, políticas, econômicas e demográficas
pelas quais o Brasil vem passando, as quais se intensificaram nas últimas

13
décadas. A autora aponta alguns indicadores das transformações: a queda da
taxa de fecundidade, o envelhecimento da população, o aumento do número
de famílias chefiadas por mulheres, a expansão da escolaridade, os novos
valores relativos ao papel das mulheres na sociedade brasileira e a
redemocratização do país.
De fato, o estado conjugal, a presença de filhos, a idade, a
escolaridade, as características e a estrutura do grupo familiar e o ciclo de
vida são fatores determinantes para a participação das mulheres no mercado
de trabalho, mas eles não são importantes para determinar a participação dos
homens no mesmo mercado.
A respeito dos setores ocupados, Bruschini (2000), ao analisar os
dados das PNADs (1985 e 1995), demonstrou que as mulheres eram maioria
no setor de serviços, no comércio, na educação, nas indústrias têxteis, de
vestuário e de calçados, bem como nas indústrias químicas e de
microeletrônica, além de haver uma grande concentração de trabalhadoras na
área rural. Também ocorreu um incremento da participação feminina em
postos de trabalho mais qualificados e em profissões como arquitetura,
odontologia, medicina, jornalismo e até um tímido crescimento nas
engenharias. O aumento de sua participação nos cargos de chefia, gerentes,
administradoras de empresas, empresárias ou empregadoras pode indicar
mudanças a curto ou médio prazo nas relações econômicas e sociais.
No entanto, dados de 2009 apontam que as mulheres ainda
constituem maioria nos serviços domésticos (17,0% mulheres e 0,9%
homens), na educação, saúde e serviços sociais (16,7% mulheres e 3.9%
homens), em outros serviços coletivos sociais e pessoais (5,9% mulheres e
3,0% homens) e em alojamento e alimentação (4,8% mulheres e 3,2%
homens) (DIEESE, 2011).
No que se refere à remuneração, as mulheres brasileiras
acompanham a regra mundial, que é a de ganhar menos do que os homens. A
explicação para a desigualdade salarial não se sustenta nos dados
quantitativos, como afirma Bruschini (2000), passando pelo estudo das
relações de gênero. Segundo esta pesquisadora, a

[...] discriminação contra as mulheres, em relação aos ganhos obtidos no


mercado de trabalho, não é devida nem aos setores econômicos nos quais
se inserem, nem ao número de horas trabalhadas, nem ao tipo de posição ou
vínculo que elas têm com o trabalho, nem às ocupações comumente
desempenhadas e nem ao seu nível de escolaridade. Mesmo as que
conseguem ascender na estrutura hierárquica das empresas, ou da
administração pública, assumindo posições de maior responsabilidade e de
maiores ganhos, estão sujeitas a ganhar menos que seus colegas. Segundo
dados do Ministério do Trabalho, por exemplo, em 1992 os funcionários
públicos de nível superior ganhavam, em média, 9,1 salários mínimos,

13
enquanto as funcionárias de igual nível recebiam 6,1 salários.
(BRUSCHINI, 2000, p. 48).

Nos últimos quarenta anos o perfil das mulheres que entraram no


mercado de trabalho mudou  de jovens, solteiras e sem filhos, para adultas,
casadas e com filhos. Esse fenômeno se deve a diversos fatores, entre eles a
necessidade de complementar a renda familiar, a escolaridade elevada das
mulheres e o menor número de filhos(as). Além disso, ele indica mudanças
na identidade feminina tradicional e nas relações familiares. Caetano e Maas
afirmam que “as mulheres mais jovens entram no mercado encontrando
melhores condições do que as mulheres mais velhas, em que pese às
assimetrias de gênero” (2009, p. 21). Todavia, como aponta Mendes em seu
estudo a respeito das famílias monoparentais femininas, essas trabalhadoras
têm dificuldades para romper com seus papéis de gênero tradicionais:

Apesar delas terem assumido atribuições consideradas tradicionalmente


masculinas, o mesmo não ocorre em relação aos homens, que na maioria
das vezes não as substitui no âmbito do doméstico, e quando o faz é
parcialmente, alegando que determinados serviços não podem e não devem
ser feitos por homens. Sendo assim, a administração da casa e filhos
continua ainda sob a responsabilidade da mulher, o que faz com que a sua
carga de trabalho seja não só duplicada [...], mas quadruplicada, exercendo
a um só tempo papéis distintos que requerem eles próprios suas atividades
específicas, quais sejam, o de líder comunitária, trabalhadoras avulsas, dona
de casa, mãe e esposa! (2002, p. 8).

Segundo dados de 2009, o tempo médio semanal dedicado aos


afazeres domésticos segundo a condição de atividade ainda é muito desigual
entre mulheres e homens. Enquanto as mulheres economicamente ativas
despendem 22,4 horas semanais, os homens gastam 9,8 horas do seu tempo
em atividades domésticas. As mulheres não economicamente ativas gastam
27,7 horas semanais e os homens na mesma condição, 11,2 (DIEESE, 2011).
A partir de 2003, as políticas econômicas e sociais e os programas
estatais implementados num contexto de crescimento econômico e
incremento do consumo provocam novas transformações no mundo do
trabalho. Segundo Fishlow (2011, p. 186), as famílias brasileiras tiveram um
aumento do consumo de 1,1% em 2002 para 3,1% em 2006. Todavia, os
rendimentos da população ocupada mantêm um significativo corte de gênero
e de escolaridade. A diferença se amplia com o aumento de anos de
escolaridade. Em 2003, os dados sobre o rendimento-hora das pessoas
ocupadas por sexo e escolaridade indicavam que as mulheres e os homens
com 12 anos ou mais de escolaridade recebiam, por hora trabalhada, R$ 9,80

13
e R$ 16,20, respectivamente.24 Em 2008, a Pesquisa Mensal de Emprego
(PME) para as regiões metropolitanas do Brasil indicava que as mulheres
com nível superior recebiam 60% dos rendimentos dos homens com o
mesmo nível de escolaridade. Em 2010, pesquisa nacional apontou que os
setores que detinham maior remuneração média eram os financeiros, os
extrativos minerais e os industriais, ainda ocupados majoritariamente por
homens. O fato pode ser observado pela diferença da média dos rendimentos
mensais entre homens e mulheres no Brasil, em dezembro de 2010,
respectivamente, R$ 1.876,58 e R$ 1.553,44 (RAIS/MTE, 2010).
O acesso ao mundo do trabalho remunerado com baixos rendimentos
e com a dupla, tripla ou quádrupla jornada de trabalho, aliado a uma onda
conservadora que culpa as mulheres pelo fracasso da família
tradicional/patriarcal (BADINTER, 2011), devem ser problematizados à luz
das teorias feministas não essencialistas, para que o empoderamento e a
independência econômica conquistados pelas mulheres através das lutas dos
movimentos feministas não sofram um retrocesso.
O caso relatado a seguir não esgota o tema, mas possibilita uma
reflexão primária. Trata-se de um exemplo local de como políticas nacionais
como o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) têm repercussões no
acesso ao mundo do trabalho.25

Mulheres e trabalho: o caso de Rio Grande (RS), Brasil

De acordo com o Censo Demográfico de 2010, Rio Grande,


município localizado no sul do estado do Rio Grande do Sul (RS), possui
uma população de 197.228 pessoas, sendo 102.245 mulheres e 94.983
homens. O município passa, desde 2007, por transformações econômicas e
socioespaciais oriundas do PAC, com a implementação de um polo naval,
com empreendimentos privados na área industrial e na construção civil, bem
como de investimentos públicos, especialmente projetos de habitação e
saneamento. O Produto Interno Bruto (PIB) per capita teve um incremento
significativo a partir de 2007, passando de R$ 22.870 para R$ 27.624 em
2008.26

24
Ver Tabela 2, no final do texto.
25
O PAC é um programa nacional de desenvolvimento que visa atingir três objetivos: a
aceleração do crescimento econômico, o aumento do emprego e a melhoria das condições de
vida da população brasileira, a partir de três eixos: investimentos em infraestrutura, medidas
econômicas e medidas institucionais e de gestão (ver BRASIL, 2007).
26
Fundação de Economia e Estatística (FEE), PIB dos Municípios do RS, Séries Históricas,
diversos anos.

14
As transformações são consideradas positivas tanto pela população
em geral como pelos agentes hegemônicos, em grande parte por causa da
demanda por força de trabalho (MARTINS, 2010)27. Em primeiro de maio
de 2009, uma reportagem do jornal local Diário Popular trazia:

No distrito industrial de Rio Grande serão um pouco mais de um ano 32


novas empresas e pelo menos oito mil novos postos de trabalho. Em seis
anos a expectativa é de a cidade subir do sétimo para o terceiro lugar em
PIB no Estado e expandir outras 40 mil novas vagas de emprego. (grifo
meu) (p. 3).

Dois anos depois, as expectativas de vagas caem para 10 mil, porém


o discurso continua otimista. A Revista Conexão Marítima, de circulação
local, divulga:

Em menos de uma década, o município portuário renovou as perspectivas


econômicas após se tornar a sede de um pólo naval em solo gaúcho. Os
maciços investimentos da área de petróleo e gás começaram com a P-53, a
plataforma encomendada pela Petrobrás, e seguem com os projetos
confirmados da P-55, da P-63 e da P-58, além da construção de pelo menos
oito cascos em série para plataformas que serão utilizadas na exploração da
camada pré-sal. Obras que podem gerar mais de 10 mil empregos diretos
(grifo meu) e milhares de outros indiretos, impondo desafios de
infraestrutura. (REVISTA CONEXÃO MARÍTIMA, 2011, p. 28).

No novo contexto, as mulheres do município veem a possibilidade


de ingressar no mercado de trabalho, particularmente em profissões ou
empregos de maior rendimento, que ainda são considerados masculinos. 28
Como vimos, desde os anos 70 do século XX, estudos apontam que
as mulheres brasileiras ocupam majoritariamente postos de trabalho nos
setores dos serviços e do comércio. Na indústria, as mulheres estão
preferencialmente nos ramos de fabricação de produtos alimentícios e têxteis
(SAFFIOTI, 1978, 1979, 1981; BLAY, 1978; BRUSCHINI, 1998, 2000;
KON, 2002), que, historicamente, são considerados guetos femininos de
ocupação, pois derivam da função materno/cuidadora das mulheres na
tradicional DST.29
27
As transformações econômicas também demandam a reorganização de áreas portuárias, que
ocasionam conflitos, já que impõem remoções dos moradores destas áreas (ver MARTINS,
2010; LESSA, 2010).
28
Ver as listas de vagas de empregos oferecidos pelo Sistema Nacional de Emprego (SINE 
Rio Grande/RS). Disponível em: http://www.dihitt.com.br/barra/sine-de-rio-grande-rs-
oferece-110-oportunidades-de-emprego. Acesso em: 26/06/2011.
29
Setores de serviços incluem serviços sociais como saúde e educação, serviços pessoais de
confecção e domésticos e serviços auxiliares às empresas, classificados de acordo com a

14
A análise do novo contexto de absorção da força de trabalho
feminina em Rio Grande precisa ser comprometida teoricamente, mas atenta
à realidade. Concordo com Saffioti (2000), quando argumenta que “só as e
os estudiosos do tema têm o privilégio de abandonar os pré-conceitos
necessários à análise da condição feminina. Obviamente, não bastam os
conceitos. Dados também são necessários” (p. 71). Assim, em Rio Grande os
dados sobre emprego formal apontam para permanências e mudanças na
distribuição da força de trabalho feminina e masculina. O Relatório Anual de
Informações Sociais (RAIS) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)
informa que no período 2006-2010 o setor da indústria absorveu mais
trabalhadores do que trabalhadoras, apresentando um crescimento de 136%
para os homens e 71% para as mulheres. Os setores de serviços apresentam
um crescimento de 130% para as mulheres e 118% para os homens e o
comércio, 138% e 116%, respectivamente. Os setores que abrigam maior
número de mulheres em relação aos homens  o comércio e os serviços 
apontam para a permanência de uma situação de desvantagem para as
mulheres, pois o emprego nestes setores tem rendimentos inferiores aos
outros setores industriais como metalurgia, química, equipamentos e
veículos automotores, entre outras classificações que são ocupadas
majoritariamente por homens.30
Em relação ao trabalho informal no comércio em Rio Grande,
constato que a maioria das mulheres entrevistadas que trabalhavam como
camelôs era dona de casa ou provinha de atividades pouco remuneradas
(VELEDA DA SILVA, 2004)31. As alternativas que encontravam para
trabalhar em uma atividade formal, como, por exemplo, os serviços de
limpeza, eram poucas, e elas não agradavam a essas mulheres, tendo em
vista que são consideradas de pouco prestígio social e trazem baixos
rendimentos. Trabalhar no comércio informal garantia maiores ingressos e
permitia conciliar com os afazeres familiares e domésticos. A flexibilidade
do horário de trabalho é uma característica importante, pois as mulheres
continuam assumindo-se como responsáveis por essas tarefas. Importante
frisar que, no que se refere à distribuição e responsabilidades pelos afazeres
domésticos, o poder de negociação das mulheres cresce na medida em que
ocupam uma melhor posição no mundo do trabalho remunerado e obtêm
maiores ganhos.

Comissão Nacional de Classificação (CONCLA/CNAE). Disponível em: www.cnae.ibge.gov.


br. Acesso em: 01/06/2011.
30
Os dados do RAIS/MTE referem-se a trabalhadores/funcionários formais. Disponível em:
http://www.mte.gov.br/rais/default.asp. Acesso em: 24/06/2011.
31
Camelô é o nome popular de trabalhadores(as) no comércio informal.

14
No século XXI, as trabalhadoras rio-grandinas apontam para um
rompimento no que se refere aos velhos guetos ocupacionais, pois estão
buscando e ocupando postos de trabalho tradicionalmente ocupados por
homens, como no setor de transportes, na metalurgia e na construção civil.
Este último apresenta o maior crescimento percentual de trabalhadoras para
o período 2006-2010. A construção civil apresentou uma variação de 527%
de incremento de trabalhadoras e de 126% de trabalhadores (RAIS/MTE,
2011). O dilema entre ocupar postos de trabalho dos guetos masculinos e
perder a feminidade passa a ser tema constante nos jornais de circulação
local. Nas reportagens, as mulheres afirmam sua essência feminina,
enfatizando os cuidados com o corpo e as habilidades que as destacam no
mercado de trabalho, como cuidado e atenção aos detalhes e o capricho, o
que as habilita a serem preferidas para tarefas como a instalação de
cerâmicas na construção civil.32
Em 2009, o setor industrial do município absorvia 5.222
funcionários, sendo 1.589 mulheres, número equivalente a 30,4% dos
funcionários. A metalurgia é um subsetor das indústrias de transformação
que também engloba, entre outros, a fabricação de produtos alimentícios.
Historicamente, Rio Grande abrigou um dos maiores parques industriais
pesqueiros do país. Segundo MARTINS (2002, n.p.), “até o começo da
década de 90 o parque industrial pesqueiro instalado em Rio Grande
correspondia a aproximadamente 50 por cento da capacidade da indústria
pesqueira no Brasil”. As mulheres compõem uma importante fração da força
de trabalho absorvida por essas empresas. Em 2009, do total de mulheres
trabalhadoras na indústria de transformação, 63,3% estavam nas fábricas de
conserva de pescado, que empregavam 1.734 trabalhadores, sendo 58%
mulheres.33
Ainda que os números não apontem para um deslocamento da força
de trabalho feminino de um setor tradicional como as indústrias alimentícias
para as novas empresas que se instalam em Rio Grande, a partir do polo
naval, os discursos midiáticos apontam mudanças na distribuição da força de
trabalho feminino. Nesse sentido, vejamos um trecho da reportagem “Mãos
femininas sem medo do trabalho pesado”, publicada em 2008 pelo jornal
Diário Popular:

Elas não têm receio de pegar pesado. Deixam a feminilidade um pouco de


lado, vestem um macacão de couro, colocam óculos de proteção e

32
Ver as seguintes reportagens do jornal Diário Popular: “Soldas, máscaras e unhas
vermelhas”, 13/02/2010, p. 7; “Mulheres na construção”, 13/02/2010, p. 10; “O talento
feminino avança no pólo naval”, 31/10/2010, p. 7; “Avanços e desafios no caminho das
mulheres”, 8-9/03/2011, p. 7; “A sensibilidade feminina ao volante”, 10/07/2011, p. 7.
33
Ver Tabela 3, no final do texto.

14
transformam-se em soldadoras dedicadas. A escolha é cada vez mais
freqüente entre as mulheres que buscam conquistar uma vaga no mercado
de trabalho. Os investimentos do pólo naval atraem a população feminina à
procura de um emprego e despertam o interesse por áreas antes
direcionadas exclusivamente aos homens. (grifos meus) (DIÁRIO
POPULAR, 14/12/2008, p. 15).

A função de soldadora na metalurgia é saudada positivamente, tanto


pelas trabalhadoras, como um trabalho bem melhor do que os outros já
realizados por elas (professoras, empregadas domésticas ou secretárias),
como pelos sindicatos. O presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Rio
Grande afirma:

A quatro anos não se encontravam mulheres trabalhando no pólo naval [...].


Só eram contratadas para cargos em escritórios ou funções
administrativas. Agora as empresas estão mais abertas à contratação.
[...] A transformação nesse cenário ocorreu durante a construção da
plataforma P-53, em que muitas empresas se instalaram na cidade e já
chegaram com profissionais femininas. (grifo meu) (DIÁRIO POPULAR,
31/10/2010, p. 7).

Mas o acesso à profissão de soldadora cria um dilema entre “vaidade


e dedicação”. Uma soldadora que deixou a profissão de professora afirma:
“Sou vaidosa. Então saio daqui e me arrumo. Todo mundo fala que eu não
pareço uma soldadora” (grifo meu) (DIÁRIO POPULAR, 14/12/2008, p.
15). O que o senso comum define como “soldadora”? Por que é preciso
afirmar a feminidade para ser soldadora? 34
O ingresso das mulheres no mercado de trabalho como soldadoras
pode ser problematizado também a partir da DST. As permanências podem
ser observadas na nota do jornal: “Ela chega em casa perto das 20 horas e
ainda tem tempo para ser dona de casa [grifo meu] e cuidar do filho
pequeno e do pai” (DIÁRIO POPULAR, 31/10/2010, p. 7). Concordo com
Bruschini e Ricoldi (2008, p. 63) quando afirmam que “qualquer pesquisa
que tenha como objeto a vida familiar cotidiana deve remeter
necessariamente ao trabalho doméstico”. Entendo que qualquer pesquisa que
trate do acesso das mulheres ao trabalho remunerado deve considerar
também o trabalho doméstico, pois a maior ou menor responsabilidade das
mulheres pelos afazeres domésticos, neles incluídos os cuidados
materno/familiares, é decisiva no ingresso, na permanência, no tipo de

34
A frase “Vaidade e dedicação” é subtítulo da reportagem “Mãos femininas sem medo do
trabalho pesado”, Diário Popular, 14/12/2008, p. 15.

14
trabalho e na remuneração. O corolário disso pode ser o dilema entre o
trabalho como empoderamento ou como fardo para a subsistência. 35
Por outro lado, se “a preferência por mulheres é no cargo de
soldadora, já que o exercício pode provocar no homem, alteração hormonal e
gerar esterilidade” (DIÁRIO POPULAR, 31/10/2010, p. 7), o incentivo para
as mulheres ingressarem no mercado de trabalho como soldadoras também
pode ser problematizado como um processo de afirmação da feminidade de
cunho essencialista e uma feminização/precarização do trabalho.
No setor de serviços, a presença de uma mulher como motorista de
ônibus é saudada por um jornal local, com destaque para o diferencial que a
feminidade traz ao exercício da profissão; porém, aponta preocupação com
relação ao preconceito no mercado de trabalho:

Ela é a única em um grupo de 34 profissionais. E tem como diferencial


não apenas o fato de ser mulher em um cargo majoritariamente masculino.
A dedicação e a sensibilidade impostas diariamente pela motorista [...]
para carregar centenas de pessoas em um ônibus da linha urbana do
município conquistam os passageiros e deixam a sua marca em um
mercado de trabalho ainda preconceituoso. (grifos meus) (DIÁRIO
POPULAR, 10/07/2011, p. 7).

A carreira profissional interrompida pela maternidade é registrada


no depoimento de uma motorista de ônibus, que

[...] trabalhou por um ano e oito meses, engravidou e teve que parar. Após
o nascimento da filha, ficou cinco anos dedicada à maternidade e no final
de 2009 decidiu que era hora de voltar. “já estava sentindo falta da direção”
lembra. [...] No entanto, a volta para o mercado de trabalho foi diferente do
que ela esperava. Ao contrário do começo da carreira, quando tudo
aconteceu de forma rápida e inesperada, desta vez as oportunidades eram
poucas e quando apareciam vinham acompanhadas de uma grande barreira:
o preconceito. “por diversas vezes me vi rejeitada pelo simples fato de
ser mulher”, lamenta por ver a experiência e a habilidade contando menos
que o gênero. (grifos meus) (DIÁRIO POPULAR, 10/07/2011, p. 7).

O dilema entre assumir uma carreira profissional e conciliá-la com a


função materno/cuidadora é resolvido com a eliminação de uma das opções.
Porém, a volta ao trabalho produtivo é difícil, e a trabalhadora constatou que
sua competência profissional foi posta em dúvida pelo fato de ser mulher.
35
As mulheres, ao assumirem a responsabilidade pelos afazeres no âmbito do espaço
doméstico, podem fazê-lo por uma imposição real, como em uma família monoparental
feminina, ou em outros arranjos familiares, mas com um(a) companheiro(a) não
participativo(a) e/ou machista, ou imaginária, derivada dos constructos culturais da sociedade
patriarcal, que impõem a função doméstica/cuidadora às mulheres.

14
A análise dos dados nacionais e locais aponta que a igualdade de
oportunidades entre mulheres e homens no mundo do trabalho ainda aparece
como uma meta a ser atingida; porém, a crescente participação das mulheres
no trabalho produtivo reflete, além das mudanças econômicas e políticas,
mudanças culturais, demográficas e sociais. A tendência otimista parece
apontar para um caminho sem volta. Em um futuro próximo, homens e
mulheres terão igualdade de oportunidades? Percebo que a sociedade
brasileira comprometida com a equidade de gênero precisa estar atenta para
que o caminho não seja interrompido por tendências conservadoras que
insistem em estabelecer papéis tradicionais e fixos para mulheres e homens.
Para evitar tal retrocesso, é necessário questionar os estereótipos baseados no
gênero no que se refere aos papéis desempenhados por mulheres e homens
nos espaços privado e público. Ao desconstruir esses papéis, transformam-se
os padrões de comportamento, e o ambiente doméstico torna-se um lugar
onde se pode negociar de forma igualitária a repartição dos afazeres
domésticos e os cuidados materno-familiares, incrementando,
consequentemente, a solidariedade entre seus membros. Eliminar os guetos
ocupacionais oriundos da discriminação sexual e buscar um equilíbrio na
repartição das tarefas domésticas parece ser um passo importante para que as
pessoas tenham igualdade de oportunidades no mundo do trabalho produtivo
e remunerado.
Os exemplos empíricos apresentados não esgotam o tema, mas
permitem problematizar faces de nossa sociedade que não podemos ignorar.
Alguns questionamentos ainda estão pendentes, pois os velhos dilemas
persistem, ainda que apareçam com roupagem de novos. Como sugerir novas
pautas de negociação entre os homens e as mulheres no que tange à DST
tradicional? Qual a cota de responsabilidade da sociedade (mulheres e
homens) e dos poderes públicos frente às desigualdades existentes entre
trabalhadores e trabalhadoras? Em que medida a discriminação diminui ou
aumenta através de práticas ou de discursos? Para o caso empírico
apresentado, quais serão as repercussões dos investimentos do PAC e do
polo naval para o emprego feminino e a consequente situação das mulheres
no espaço privado? Como desconstruir o falso dilema entre o emprego das
mulheres em guetos ocupacionais masculinos e a suposta perda da
feminidade? Penso que este é o papel dos(as) pesquisadores(as) e dos(as)
professores(as), fazer perguntas consideradas inconvenientes por sociedades
que tendem ao pensamento único e, através delas, romper hegemonias e
propor novas alternativas.

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comercio callejero e informal en el sur de Brasil. Tese (Doutorado em Geografia) 
Universidad Autònoma de Barcelona, Espanha, 2004.

15
Figuras

Figura 1: Município de Rio Grande, localizado no Estado do Rio Grande do Sul,


Brasil.

15
Fonte: CaderNAU, v. 1, n. 1, 2007. Base Cartográfica Digital do Rio Grande do Sul
(1:250.000). UFRGS, 2006. Adaptado por Edílson W. Pedroso Júnior, geógrafo,
CREA RS143232.

15
15
Tabelas

Tabela 1: Brasil, pessoas de 10 anos ou mais de idade (mil pessoas)


por condição de atividade e ocupação por sexo, 2006.
PEA / PO* PEA % PO % PEA nº absolutos PO nº absolutos
Mulheres 43 42 42.619 37.918
Homens 56 52 54.910 51.400
* PEA: População Economicamente Ativa; PO: População Ativa Ocupada.
Fonte: IBGE - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, 2006. Elaborado por
Susana M. V. Silva.

reais) por sexo e


Tabela 2: Brasil, rendimento-hora da população ocupada (em
anos de estudo, 2003.
Sexo/anos de estudo Total Até 4 anos 5 a 8 anos 9 a 11 anos 12 anos ou mais
Mulheres 4,00 1,90 2,40 3,40 9,80
Homens 4,80 2,40 3,40 5,00 16,20
Fonte: IBGE. Diretoria de Pesquisas, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios,
2003. Elaborado por Susana M. V. Silva.

Tabela 3: Número de estabelecimentos e pessoas ocupadas por sexo


na classe Preservação do pescado e fabricação de produtos do pescado
em Rio Grande, 2009.
Pessoas ocupadas
Número de
Classe CNAE 2.0
estabelecimentos
Masculino (%) Feminino (%) Total
Preservação do pescado e
fabricação de produtos 19 728 42 1006 58 1734
do pescado
Fonte: Relação Anual de Informações Sociais - RAIS (2010). Elaborado por
Luciano Lucas, geógrafo do Núcleo de Análises Urbanas (NAU), FURG.

15
MÃES SOLTEIRAS QUE ESTUDAM EM AOTEAROA, NOVA
ZELÂNDIA: UMA POLÍTICA DE ESPAÇO PARADOXAL

Robyn Longhurst
Darrin Hodgetts
Ottilie Stolte

Este artigo enfoca as experiências de 12 mulheres que combinam a


maternidade com o estudo universitário em Aotearoa, Nova Zelândia.
Argumentamos que essas mulheres ocupam “espaços paradoxais”. O artigo
surgiu de pesquisas realizadas em 2010 para a Missão da cidade de
Auckland. A Missão presta serviços para algumas das pessoas mais
marginalizadas de Auckland e está atualmente planejando uma iniciativa
chamada Single Parent Initiative – SPI, para fornecer orientação e habitação
para as famílias monoparentais engajadas no ensino superior. Nossa pesquisa
teve como objetivo oferecer informações sobre restrições e apoios para
famílias monoparentais comprometidas com o estudo (ver HODGETTS,
STOLTE e LONGHURST, 2010). Embora o nosso projeto mais amplo tenha
sido focado em famílias monoparentais  entrevistamos 12 mães solteiras e 2
pais solteiros  neste artigo nos concentramos nas experiências das mães
porque muitos dos espaços materiais, discursivos e emocionais (como “culpa
materna”) associados com a maternidade são altamente relacionados com
questões de gênero (CHASE e ROGERS, 2001).
O artigo está dividido em quatro seções. A primeira seção descreve a
noção de “uma política de espaço paradoxal”, da geógrafa feminista Gillian
Rose (1993), que nós usamos para refletir as experiências das participantes
deste estudo. Na segunda seção, descrevemos o processo metodológico

15
utilizado para realizar a pesquisa. As entrevistas semiestruturadas foram a
principal fonte de dados, ao mesmo tempo em que nós também revisamos a
literatura internacional e também da Nova Zelândia sobre as experiências de
ensino superior de mães solteiras. A terceira e quarta seções oferecem
insights sobre a ocupação do espaço paradoxal das participantes e seus
sentimentos muitas vezes contraditórios, como culpa e orgulho na medida
em que elas continuamente fazem malabarismos para conciliar as demandas
do estudo e os cuidados com os filhos. Finalmente, o documento conclui que
a noção de Rose de “uma política de espaço paradoxal” permitiu-nos
compreender com mais profundidade a maneira como mães solteiras
envolvidas no estudo superior ocupam uma variedade de espaços sociais
simultaneamente e que, embora às vezes isto seja desafiador, também é
potencialmente fortalecedor.

Gillian Rose: “uma política de espaço paradoxal”

O livro de Gillian Rose Feminism and Geography: the limits of


geographical knowledge desafia os leitores a refletir criticamente sobre a
produção de diferentes formas de conhecimento geográfico. Rose apresenta
um argumento de que há uma noção específica do saber e do conhecimento,
como masculino, exaustivo, racional e associados com a mente em vez do
corpo (como se os dois pudessem ser separados) que marginaliza as
mulheres na produção do conhecimento geográfico (outros tipos de
conhecimentos poderiam ser substituídos aqui). Para sustentar este
argumento, busca fundamentação profundamente na interação intelectual
fértil das teorias pós-estruturalista feminista, psicanalítica e geográfica.
No capítulo final de Feminism and Geography, Rose propõe a noção
de “uma política de espaço paradoxal”. Ela quer reimaginar uma geografia
que não se baseia em machismo ou em um sistema dualista que domina o Eu
e marginaliza os Outros, mas o desafia. Rose “reconhece o poder do discurso
hegemônico, mas também insiste na possibilidade de resistência” (p. 155). O
Feminismo, ela argumenta, precisa ocupar tanto o centro quanto a margem 
para ser móvel, múltiplo e contraditório , de modo a “ameaçar as
polaridades que estruturam o imaginário geográfico dominante” (p. 155)
(sobre movimento entre o centro e a margem, ver também HOOKS 1984).
Este conceito, que implica um repensar radical de lugar, espaço e
gênero, abriu possibilidades para novas formas de pensar sobre as relações
de pessoas/lugares. Nós acreditamos que isto inclui novas maneiras de
refletir sobre as experiências de mães solteiras do ensino superior e os
espaços que elas ocupam.

15
As participantes nesta pesquisa ocupam uma grande variedade de
espaços, como casas, escolas, creches, arenas culturais e esportivas, clínicas
e centros médicos, escritórios de assistência social, transportes públicos e
salas de aula. Elas se envolvem com muitas pessoas (como amigos,
familiares, “assistentes sociais”, médicos, agentes de saúde e professores) e
experimentam uma grande variedade de emoções, muitas vezes
contraditórias. Por exemplo, por um lado, diversas participantes se sentem
bem sobre engajar-se no estudo que pode potencialmente melhorar sua
situação familiar e impulsioná-las a ocupar mais espaços profissionais e de
classe média, mas por outro lado, elas se sentem mal porque o estudo
superior faz com que elas passem menos tempo com seus filhos,
transformando-as em mães solteiras estereotipadas e negligentes. No restante
do trabalho, nós continuamos a usar a noção de Rose de uma “política de
espaço paradoxal” para refletir mais profundamente sobre como nossas
participantes navegam os espaços paradoxais materiais, discursivos e
emocionais que ocupam diariamente como mães solteiras engajadas no
ensino superior. Nós certamente não somos as primeiras a usar essa noção
para aprofundar a compreensão das relações entre conhecimento, corpos,
espaço e gênero (por exemplo, ver DESBIENS, 1999; MAHTANI, 2001; e
para mais informações sobre como geógrafos feministas usaram esta noção,
ver BONDI e DAVIDSON, 2005). Apesar disso, acreditamos que a noção de
“uma política de espaço paradoxal” continua a ser uma referência central e
uma etapa de grande relevância na qual este artigo se fundamenta. 36

Uma nota sobre método(logia)

Esta pesquisa é baseada principalmente em entrevistas


semiestruturadas e uma revisão da literatura sobre as mães solteiras e suas
experiências no estudo superior. 37 Como dito anteriormente, ela surgiu a
partir de pesquisa que foi realizada para a Missão da cidade de Auckland.
Todas as entrevistadas estão estudando ou estudaram no passado, enquanto
elas eram mães solteiras. Suas idades variavam entre 26-50. As idades dos
seus filhos variavam entre 2-29. Oito das mães tinham um filho, três tinham
dois filhos, e uma tinha cinco filhos. As mulheres classificavam-se em
36
Feminism and Geography foi revisto extensivamente tanto nas páginas de revistas de
Geografia (FALCONER AL-HINDI, 1996; BURGESS, 1994; KOFMAN, 1994; HOLCOMB,
1995) como nas páginas de outras revistas (BONDI, 1995; HAYDEN, 1997; NORWOOD,
1994; MORIN, 1995). Uma de nós (LONGHURST, 2008a) escreveu sobre Feminismo e
Geografia em textos-chave em Human Geographers.
37
A aprovação ética para este estudo foi obtida na School of Psychology, Ethical Review
Committee, na Waikato University.

15
diferentes etnias e qualificações profissionais que elas buscavam e
alcançavam. Nenhuma diferença significativa surgiu entre as participantes
matriculadas nas duas universidades.
As participantes foram recrutadas por meio de um procedimento
conhecido como bola de neve, em que os pesquisadores abordavam várias
estudantes conhecidas que eram mães solteiras e, então, encaminhava-as a
outras mães solteiras para o estudo. As entrevistas foram conduzidas por
uma de nós, em lugares e horários combinados. Cada entrevista começou
com um processo de consentimento formal. Um resumo dos temas-chave foi
utilizado como um guia para manter as entrevistas focadas e assegurar uma
cobertura razoavelmente consistente nas entrevistas. As participantes
também foram incentivadas a falar sobre outros temas que elas achassem
relevantes. Sentimos que era importante para as participantes serem
incentivadas a contar histórias sobre aspectos de suas vidas ao invés de
simplesmente responder às perguntas. Nenhuma das pesquisadoras neste
projeto é mãe solteira, mas uma de nós é uma mãe que se engajou no estudo
enquanto seus dois filhos eram pequenos, mas com o apoio de seu parceiro.
Todas tivemos, entretanto, a experiência de ensinar educar e/ou
supervisionar mães solteiras. Coletivamente, esta experiência estendeu-se
por mais de três décadas.
Uma vez realizadas, as entrevistas foram transcritas na íntegra. Em
seguida, extratos das entrevistas foram sistematicamente codificados sob
algumas rubricas temáticas, tais como o emprego, finanças, família e
amigos, motivações, apoio, estresse e problemas de saúde. Estávamos
aproximadamente na metade das entrevistas quando começamos a perceber
um tema comum, no qual as participantes manifestavam ocupar diariamente
um conjunto de espaços, muitas vezes bastante contraditórios, e que
experimentavam uma gama de emoções, muitas vezes bastante
contraditórias. Nós não mudamos nossas perguntas para as participantes
restantes por conta disso, mas cada vez mais começamos a prestar atenção a
essas coisas. Depois de completar o relatório para a Missão da cidade de
Auckland, para os fins deste artigo, retomamos as transcrições a fim de
prestar uma atenção mais crítica às expressões das participantes sobre os
espaços e emoções paradoxais.
Além das entrevistas, também coletamos informações sobre famílias
monoparentais a partir de relatórios do censo da Nova Zelândia e realizamos
uma extensa revisão da literatura de pesquisa sobre experiências de pais ou
mães solteiras no ensino superior, tanto na Nova Zelândia como em escala
internacional. Grande parte da literatura existente sobre este tema foi
produzida na América do Norte, Europa e Austrália (EDWARDS, 1993;
BURNS, SCOTT e COONEY, 1993; HINTON-SMITH, 2008). Um aspecto
relevante é a ênfase dada à educação como um caminho para a ascensão

15
social e a necessidade de educadores e serviços sociais se comprometerem
com o apoio a estudantes solteiras/os com família, para obter os benefícios
da educação para si e suas famílias (ADAIR, 2001; BHATTI, 2003; BOK,
2004; YAKABOSKI, 2010).

Mães solteiras como outsiders culturais

Em 2006, na Nova Zelândia, havia 357 mil crianças com idade


inferior a 15 anos vivendo em famílias monoparentais (Estatísticas da Nova
Zelândia de 2008). Esta estatística representa um aumento em números reais
e na proporção de famílias monoparentais. 38 Apesar disso, muitas mães
solteiras continuam a ser vistas como outsiders culturais. Mesmo aquelas
nascidas e/ou socializadas em posições de classe média, como mães solteiras
provavelmente experimentam um declínio na renda (OECD 2007;
CHEUNG, 2007), uma relativa desvantagem em termos de rendimento
escolar (COTTERELL, VON RANDOW e WHELDON, 2008), saúde
precária (AVISON e DAVIES 2005) e um declínio no “capital cultural”
(BOURDIEU, 1984).
Como outsiders, é provável que elas sejam tratadas pelos outros de
uma maneira que as leva a se sentirem inadequadas (LONGHURST,
HODGETTS e STOLTE, em revisão). Muitas estudantes, no entanto, como
universitárias, também se sentem orgulhosas da sensação de realização, de
restaurar a sua autoestima e confiança depois de terminar um relacionamento
devido ao estudo, e empenhar-se na direção de um trabalho e uma carreira
que é mais gratificante e proporciona segurança financeira.
Os espaços materiais, discursivos e psicanalíticos ocupados por
mães solteiras são muitas vezes altamente paradoxais, e eles podem levar a
uma sensação de se sentir uma outsider cultural. Por exemplo, Lauren, que
tem 44 anos, uma filha de 11 anos e um filho de 18 anos de idade, sem o
apoio da família, explica:

38
O número de pais solteiros na Nova Zelândia subiu de 58.473 em 1981 (quando a
população média da Nova Zelândia era de 3.156.700) para 145.032 em 2006 (quando a
população média da Nova Zelândia era de 4.186.900) (estatísticas monoparentais família da
Estatísticas da Nova Zelândia 2008; população média das Estatísticas da Nova Zelândia de
2011). Estes números significam que, em 1981, pais solteiros compreendiam
aproximadamente 1,8% da população total, enquanto em 2006 eles compreendiam 3,5% da
população.

15
Pareceu estranho estar na Uni. Eu costumava olhar ao redor das salas de
aula e pensar “que diacho” eu estou fazendo aqui? e eu fiz isso por um
longo tempo. Então, sim, um pouco “[um] peixe fora d’água”.

Lauren expressa um sentimento de ‘não pertencer’ ao espaço da


universidade, embora, quando era jovem, ela tenha frequentado uma escola
particular para meninas na Remuera (um subúrbio de classe média alta de
Auckland), e a educação era valorizada em sua família. Ela nunca se
imaginou indo para a universidade. Após deixar a escola, Lauren concluiu
um curso de secretariado de um ano, mas mais tarde descobriu que “as
secretárias são tratadas como merda a maior parte do tempo”. Lauren
também se sentia atraída desde muito cedo para se tornar ‘mãe e dona de
casa’. Quando seu casamento acabou, no entanto, ela percebeu que nem
trabalhar como secretária, nem ser uma dona de casa eram opções viáveis
financeiramente para ser a principal provedora de seus dois filhos. Ela
decidiu, portanto, estudar psicologia na universidade.
Lauren ocupa uma série de espaços paradoxais em sua vida. Seu ex-
marido foi diagnosticado com esquizofrenia. Os dois filhos de Lauren foram
diagnosticados com déficit de atenção e hiperatividade. Ao longo dos anos,
Lauren passou seu tempo em espaços muitas vezes nocivos, como clínicas,
transportes públicos e órgãos de assistência social.
Quando jovem, entretanto, ela residia em espaços mais de classe
média, como a escola particular para meninas. Mais tarde, como mãe solteira,
ela passou a ocupar os espaços da universidade. Durante os anos nos quais
Lauren criou seus filhos, ela também passou tempo em creches, escola e em
casa. No entanto, muitas vezes ela não ocupou espaços de consumo
explicando: “Eu certamente não tinha nenhum dinheiro para gastar”. Em vez
disso, Lauren economizou o pouco dinheiro que tinha para oferecer a seus
filhos mais oportunidades de aprendizagem, como karatê e aulas de dança.
A situação de Lauren é desafiadora, mas não muito incomum entre as
nossos participantes. Muitas ocupam diariamente um conjunto de espaços
paradoxais. Junto aos espaços de classe média da universidade elas também
ocupam espaços associados a dificuldades financeiras e privações, como os
escritórios de Trabalho e Renda da Nova Zelândia (WINZ  agência de
assistência social do governo), nos quais as mães solteiras que têm um
“benefício” em relação ao qual elas devem regularmente “prestar
informações”. Hazel, uma mulher Maori de 50 anos, com cinco filhos,
observa: “Eles [WINZ] nos tratam como mendigos”. Sarah, uma mãe
Pakeha39 (europeia) de um filho, se sente da mesma forma e sugere:

39
Termo que se refere aos neozelandeses de origem europeia.

16
E a coisa da reivindicação de um benefício, a coisa toda em torno de entrar
no Trabalho e Renda e ter a sua vida colocada num triturador, é horrendo,
Cara! Isso me deixa realmente irritada. Eu posso entender por que uma
pessoa entrou no Trabalho e Renda e esfaqueou alguém alguns anos atrás.
Eu posso entender como as pessoas se sentem assim, é tão humilhante.

Debra, que tem uma filha de 11 anos de idade, acha que ir ao


escritório do Trabalho e Renda é tão estressante que ela agora leva uma de
suas irmãs com ela às reuniões de apoio. A pressão de ser tratada como uma
“mendiga” e as dificuldades financeiras que acompanham o fato de ela ser
uma estudante que está criando os filhos frequentemente afetam o bem-estar
da família. Ser mãe solteira é uma posição social estigmatizada, de que
muitas das participantes estavam ansiosas para escapar, buscando maior
qualificação, mas muitas vezes isso produz nelas um sentimento de como se
estivessem lutando, não só financeiramente, mas também para oferecer a
seus filhos tempo e atenção suficiente. Isto tende a gerar sentimentos de
culpa e vergonha.
Dada a forma como a maternidade é construída nas estruturas
normativas da nossa cultura (mães devem ser ‘boas’  carinhosas, afetuosas,
bem dotadas, altruístas  ver Longhurst, 2008b; e Gregor, 2011), a maioria
das mães se sente culpada em algum momento e em algumas situações, mas
mães solteiras estão sujeitas a julgamentos ainda mais duros e moralistas.
Mães solteiras frequentemente são idealizadas pela sociedade como pessoas
que deveriam se sentir “mal” por sobrecarregar os contribuintes, por criar os
filhos sem um pai presente, pela falta de disciplina e fibra moral, e por não
dar atenção suficiente aos seus filhos (LONGHURST, 2008b). Caitlin, que
está em seus 30 e poucos anos e tem a custódia total de seu filho, comenta:

Eu acho que é muito fácil chegar ao ponto onde você sente que está fazendo
tudo de maneira errada e isso parece ser realmente um dilema da mãe
solteira. Você sabe que não está se dedicando o suficiente para fazer o
trabalho corretamente por causa de sua vida em casa, e em sua vida em casa
você não está muito suficientemente sendo uma boa mãe, porque você tem
que passar muito tempo estudando. Existe o potencial de se sentir muito
mal, realmente culpada.

A conciliação constante de tempo e dinheiro e a falta de apoio


experimentado por algumas mães solteiras podem aumentar os níveis de
estresse, que acabam por ter um impacto negativo sobre a sua saúde. Os
problemas de saúde que surgiram em nossas participantes incluíam artrite
viral, enxaquecas, depressão e problemas mentais, resultando em uma
necessidade de prorrogações de prazo para trabalhos a serem entregues na
universidade. A falta de sono, como consequência de as mães passarem

16
longas horas estudando, mas também por causa das condições precárias e
apertadas de habitação, é uma questão séria. Hazel, que tem cinco filhos, diz:

Foi realmente muito difícil. No final tivemos que conseguir... um lugar para
estudante que era muito frio e úmido... tivemos de limpar a parte de dentro e
o exterior que estava imundo, as calhas... tivemos que transformar uma
parte da garagem em um quarto porque o meu sobrinho veio morar conosco,
bem... ele precisava mudar de escola... aquele quarto era úmido e quando
chovia a chuva passava por baixo da porta e entrava no quarto.

Sarah, para cobrir as despesas, alugou o quarto de seu filho para um


casal. Ela também alugou um terceiro quarto na casa. Sarah e seu filho
dividiram o mesmo quarto por dois ou três anos, até ele estar com 9 anos,
quando conseguiram comprar sua própria casa. Falta de sono, saúde precária
e poucos recursos financeiros podem levar a situações difíceis. Por exemplo,
para Rachel era difícil levar sua filha de cinco anos ao médico quando ela
precisava de cuidados médicos. Rachel explica:

Ela é uma menina tão miudinha, sabe, ela não está bem agora, sim, e sua
mãe [referindo-se a si mesma na primeira pessoa] não tem sequer um carro
para levá-la aos médicos nesta tarde. Então, vamos ter de ir de ônibus para a
cidade e andar três quarteirões na chuva, sabe, muita culpa. Eu tinha um
carro no início do ano, mas vendi porque eu não podia sustentá-lo.

De certa forma, as mães solteiras que são estudantes do ensino


superior parecem estar em uma situação de “impasse”. As mulheres
demonstram uma vontade de “vencer as dificuldades sozinhas”, para
suportarem as condições da vida difícil, virarem-se com o que têm, e serem
criativas. No entanto, as mães solteiras envolvidas no estudo superior ainda
tendem a ser julgadas com severidade pelos outros e, às vezes, por elas
mesmas. Algumas participantes mencionaram não desejarem ser um ‘fardo’
para os contribuintes, conformando-se assim aos julgamentos conservadores
e morais em relação aos ‘pobres que precisam de atenção’, e expressaram
culpa, possivelmente, como uma forma de construir moralmente posições
mais ‘dignas’ para si mesmas. Divulgar a culpa permite que se apresentem
como mães atenciosas e preocupadas, tirando o máximo proveito de uma
situação adversa.

Mães solteiras no “espaço abençoado” da universidade

16
Embora ocupem esses espaços de luta, nossas participantes também
ocupam o “espaço abençoado” da universidade. A Universidade tem sido
tradicionalmente associada com a elite privilegiada. Embora atualmente um
grupo muito mais amplo de pessoas (incluindo mães solteiras) frequentem a
universidade, ela ainda é uma instituição que tende a ser bem-vista pela
maioria, sendo associada com a aprendizagem, novas maneiras de pensar,
formação profissional, melhoria de emprego e perspectivas de carreira, e
aumento de capital cultural e status social. Talvez sem surpresa, portanto,
muitas participantes neste estudo relataram sentir-se alentadas pelo estudo
superior, porque ele oferece estímulo intelectual, acena com a possibilidade
de se tornarem um modelo para os filhos e proporcionar uma vida melhor
para eles, e também ajuda a combater as percepções negativas sobre o fato
de serem mães solteiras.
Rachel recebe pouco apoio de sua família para equilibrar seus papéis
como mãe solteira e estudante. Ela explica que o envolvimento no estudo
superior é um modo de contrariar a visão depreciativa dos membros de sua
família.

Por que estou optando por fazê-lo? Eu não quero que minha filha cresça
pensando que sua mãe é burra. Eu quero que a minha família veja que estou
realmente fazendo alguma coisa, porque minha família é [sic] bem contra
eu ter que depender do DPB [Benefício para Fins Domésticos]. Então, é
provavelmente mais para provar para eles que eu não arruinei a minha vida
por ter minha filha. Sim, eu só estou tentando provar que estão errados.

Muitas das participantes refletiram sobre como tinham sido


surpreendidas e encorajadas pelo sucesso com seus estudos. Experiências
positivas significativas para as mães solteiras eram associadas com uma
concretização de capacidade e interesse em aprender. Para Hazel, o ensino
universitário proporciona uma validação de suas capacidades para além do
que ela (e outras pessoas em sua vida, como professores de sua escola)
imaginou ser possível:

Eu nunca acreditei que eu iria acabar na Universidade, porque isso era algo
que as pessoas inteligentes faziam. Eu nunca pensei que eu era inteligente.
Eu vi alguns dos meus outros amigos Maori indo para a universidade, mas
nunca pensei ser privilegiada o suficiente.

Da mesma forma, Caitlin, que tinha concluído um doutorado, falou


sobre o sentimento de orgulho e realização que pode ser obtido com o estudo
universitário, e como isso é particularmente importante para as mães
solteiras: “Na verdade, um sentimento real de orgulho e realização no final.

16
Um verdadeiro sentido de ‘na verdade eu sou boa’.” Suzanne, que agora
também completou seus estudos, sente-se do mesmo modo, e comenta:

O estudo foi muito fortalecedor, eu costumava me sentir completamente


impotente, sendo jovem e fazendo parte do DPB [Benefício para Fins
Domésticos]. Mesmo tendo uma família maravilhosa, eu me sentia como
merda. As pessoas olham para você porque você é jovem e, obviamente,
não tem qualificações profissionais. Foi incrível. Me deu uma verdadeira
sensação de poder e eu nunca mais vou ter que ficar sem trabalho.

A maioria das participantes parece ter adquirido um forte senso de


identidade ao participar do ensino superior. Catherine diz: “Eu gosto de estar
em ambientes onde as pessoas florescem e crescem, e um ambiente de
aprendizagem é sempre assim”. O estudo superior oferece uma plataforma
positiva para as mães solteiras construírem e manterem uma identidade
positiva, apesar de sua dependência dos benefícios do governo. Quando as
mães solteiras se dão bem em seus estudos, elas percebem que não são
cidadãs ‘fracassadas’ e que elas podem fazer e fazem contribuições positivas
para a sociedade (AUSTIN e MCDERMOTT, 2003).

Conclusão: “a ocupação simultânea de centro e margem”

A ocupação simultânea de centro e margem pode criticar a


autoridade do machismo, ajudando algumas feministas a refletir sobre
reconhecer as diferenças entre mulheres e continuar a luta por uma mudança
na condição de mulheres (ROSE, 1993, p. 152-53). Feministas, argumenta
Rose (1993, p. 140-41), desafiam os posicionamentos insider/outsider,
ocupando o espaço paradoxal tanto do centro quanto da margem
“implica[ndo] em geometrias radicalmente heterogêneas” que são “vividas,
experimentadas e sentidas”. As mães solteiras envolvidas no estudo superior
podem também ser vistas e estar localizadas em vários espaços sociais ao
mesmo tempo, desafiando os posicionamentos insider/outsider. Isso não quer
dizer que mães solteiras são feministas (embora algumas sejam), mas sim
que elas são muitas vezes vistas pelos outros e por si próprias como
simultaneamente representando, para as estruturas políticas, uma habilidade
(educadas, potencial de ocupação “profissional”, cidadã contribuinte) e um
compromisso (financiadas pelos contribuintes, vivendo em famílias não
normativas). Isso nem sempre é uma posição fácil de ocupar, mas, como
Rose sugere, há um potencial subversivo na ocupação simultânea do centro e
da margem. Estamos de acordo sobre esse potencial em relação a mães

16
solteiras que são estudantes. A tensão produzida por ocuparem tanto a
margem quanto o centro é, às vezes, difícil de suportar, mas também pode ser
usada de forma produtiva.
Para nós, tem sido útil fundamentar a metáfora de Rose, de uma
política de espaço paradoxal, na realidade material da vida de nossas
participantes. Para algumas, ser lançada às margens impulsionou nelas o
desejo de progredir. Estar localizado às margens pode ser produtivo. Pode
impulsionar as pessoas a quererem tornar-se parte do centro, mas também
pode impulsionar as pessoas a criticarem o centro. A metáfora de Rose nos
permitiu ver a vida de nossas participantes além das categorias e espaços
dualistas dominantes.
Para algumas de nossas participantes, o posicionamento paradoxal
provocou um desejo de aprender mais e de participar de debates e
discussões, de se tornarem pensadoras críticas capazes de questionar as
normas hegemônicas, incluindo normas em torno da maternidade e do
núcleo familiar.
Além disso, algumas das nossas participantes, através do estudo,
conheceram outras mães solteiras e, juntas, elas compartilharam não somente
ideias, atribuições e tarefas domésticas, mas também histórias sobre suas
vidas.
Quando as pessoas se veem através de diferentes lentes, e em
diferentes espaços, simultaneamente, elas adquirem um potencial para se
transformar, nas dimensões emocional, social, econômica e política. Mães
solteiras podem se tornar fortalecidas ao ver suas vidas, relações e os
espaços que ocupam de forma diferente, a partir das margens e do centro.
Elas são capazes de desenvolver capacidades como provedor financeiro,
aumento de capital cultural, desenvolver suas capacidades de pensar
criticamente, ocupar novos lugares e espaços, e revelar um forte senso de
confiança e independência. No entanto, elas também sabem o que é estar nas
margens (emocionalmente, discursivamente, e materialmente). Elas podem
falar de espaços múltiplos. Muitas de nossas participantes tinham uma aguda
percepção das formas em que o poder funciona em corpos, corpos que estão
inscritos por gênero, maternidade, recursos financeiros, classe social, raça,
cultura, etnia, educação e assim por diante. As formas das mães solteiras são
moldadas por esses espaços múltiplos e contraditórios nos quais habitam. A
metáfora de Rose, de “uma política de espaço paradoxal”, nos oferece uma
rota útil para o “mapeamento” da vida de 12 mães solteiras na Nova
Zelândia que estão estudando, mas ela também oferece oportunidades para
“mapear” vidas de outros indivíduos e grupos que estão localizados, de
maneira múltipla, tanto dentro como fora de uma variedade de espaços
heterogêneos.

16
Agradecimentos

Gostaríamos de agradecer a nossa parceira de pesquisa, a Missão da


cidade de Auckland, que desencadeou a ideia para esta pesquisa, facilitou o
acesso a algumas das participantes e fez uma doação para cobrir os custos da
pesquisa. Gostaríamos também de agradecer às mães solteiras que tiveram
tempo para compartilhar suas experiências conosco.

Referências

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Educational Review, v. 71, n. 2, p. 217-239, 2001.
AUSTIN, Sandra; MCDERMOTT, Kathryn A. College persistence among single
mothers after welfare reform: an exploratory study. Journal of College Student
Retention, v. 5, n. 2, p. 93-112, 2003.
AVISON, William R.; DAVIES, Lorraine. Family structure, gender, and health in
the context of the life course. Journals of Gerontology. Social Sciences, v. 60, n. 2,
p. 113-116, 2005.
BHATTI, Ghazala. Social justice and non-traditional participants in higher
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16
Parte III

Geografia, gênero e sexualidades

16
OS DESAFIOS PARA A EXPANSÃO DA GEOGRAFIA
DAS SEXUALIDADES NO BRASIL E OS LIMITES DO
DIÁLOGO CIENTÍFICO INTERNACIONAL

Joseli Maria Silva

Introdução

Meu propósito é abordar as dificuldades enfrentadas no campo da


ciência geográfica para o desenvolvimento de investigações na área de
sexualidades, trazendo para a discussão nossas pesquisas e ações
institucionais. Além disso, são utilizados exemplos de situações concretas
que temos vivido como pesquisadores brasileiros e ativistas políticos,
trabalhando com travestis40 que atuam na atividade de prostituição.
A abordagem da sexualidade na Geografia brasileira é recente, tal
como evidenciado em Ornat (2008) e Silva (2009a). Esse campo de
abordagem científica tem enfrentado vários desafios para sua expansão,
tanto dentro do país como na interlocução internacional. Uma pesquisa
elaborada pelo Grupo de Estudos Territoriais (GETE) considerando o estrato
de periódicos científicos melhor avaliados pelos órgãos do governo

40
As pessoas que colaboraram com a pesquisa se autoidentificam como “travestis”, utilizando
a expressão no feminino. Assim, para respeitar a linguagem expressa pelo grupo, esse texto
seguirá esta mesma tendência.

17
brasileiro evidencia a fraca participação dos temas relativos à sexualidade
nesse segmento.

17
As sexualidades, além de outros campos temáticos como gênero e
raça, estão praticamente ausentes dos veículos considerados melhor
qualificados da Geografia do país. O fato é, no mínimo, curioso, já que mais
de 45% da população brasileira não é branca e 50% não é masculina. Além
disso, a Parada Gay de 2011 na cidade de São Paulo conseguiu reunir 4,5
milhões de pessoas, e esse evento rendeu 175 milhões de reais ao
município.41 Apesar dessa expressão social e, portanto, também espacial,
essas áreas temáticas não despertaram significativo interesse na Geografia
brasileira. As ausências são construídas, e elas não podem ser consideradas
como mero acaso, mas frutos de uma forma de pensar e agir que permeia o
cotidiano acadêmico de produção científica. O texto trata das dificuldades de
publicações dos trabalhos sobre sexualidades na área de geografia dentro do
Brasil, bem como as limitações de interlocução entre pesquisadores de
diferentes culturas na escala internacional. Além disso, aponta para os
problemas sociais que o discurso científico hegemônico gera quando produz
versões unilaterais a respeito de grupos sociais vulneráveis, sem que esses
tenham acesso e possam discutir sobre aquilo que o meio científico-
acadêmico produz sobre eles.

As barreiras nacionais

No Brasil, algumas barreiras se erguem vinculadas ao preconceito da


academia geográfica em torno de temas, de determinados grupos e da forma
de utilização da sua linguagem em textos científicos. Essas dificuldades,
certamente, não são exclusividades do Brasil. Entretanto, a sociedade
brasileira apenas recentemente tem assumido os debates sobre o respeito à
diversidade sexual na arena de Estado. Essa conquista tardia é reflexo de
41
Fonte: jornal O Globo, edição de 26/06/2011.

17
uma sociedade com fortes traços homofóbicos, que perpassam o meio
científico, ainda grandemente conservador.
A estrutura burocrática de disseminação do conhecimento científico
tem relutado em abrir espaço para a abordagem das sexualidades na
Geografia brasileira. Trago para a discussão a situação de um artigo na área
de sexualidades submetido para avaliação em um periódico científico
brasileiro em abril de 2009. Depois de dezessete contatos com os
responsáveis pelo periódico científico, feitos por iniciativa dos autores, a
resposta sobre a situação do artigo submetido veio somente em maio de
2011. Um dos pareceres trazia o seguinte trecho, que evidencia argumentos
pouco científicos, mas impregnados de preconceito por parte do avaliador
em relação à forma como os relatos dos grupos sociais pesquisados foram
utilizados no artigo submetido:

[...] vejo que há diversas passagens com termos sexuais considerados fortes
ao longo do texto. Entendo que essa discussão vem sendo introduzida na
Geografia brasileira recentemente, necessitando de reflexões maiores.
Considero importante manter o conteúdo em detrimento da forma. Algumas
expressões que trazem à tona a dramaticidade dos sujeitos envolvidos
podem ser substituídas por citações indiretas ou termos menos agressivos. 42

As expressões consideradas agressivas na escrita do artigo eram os


trechos de transcrição direta da fala das pessoas pesquisadas, respeitando sua
forma de linguagem. Entretanto, para que os avaliadores não se sintam
“insultados”, é preciso transformar a linguagem dos grupos de entrevistados
em uma forma de expressão a ser aceita no mundo acadêmico.
Frente às limitações impostas para a disseminação da abordagem das
sexualidades nos periódicos científicos da Geografia brasileira, tomamos a
iniciativa de criar a Revista Latino-Americana de Geografia e Gênero, em
2009, que acolhe artigos vinculados à relação entre espaço, gênero e
sexualidades. Essa iniciativa tem facilitado nossa expressão, mas ela não
desenvolveu ainda um diálogo com outras perspectivas dentro do campo
disciplinar.
Além dos periódicos científicos, outra frente de disseminação da
abordagem das sexualidades na escala nacional tem sido os encontros
científicos da área de Geografia. Após várias reivindicações de acolhimento
de nossas pesquisas, finalmente, em 2011, conseguimos aprovar um grupo
de trabalho dentro do Encontro Nacional de Pós-Graduação. Essas
conquistas parecem pequenas para países em que a perspectiva da
sexualidade está consolidada, como os anglo-saxões. Contudo, para nós,

42
Trecho da avaliação recebida da revista [nome ocultado] em 06/05/2011.

17
geógrafos/as brasileiros/as, é um grande passo para a abertura do campo
científico.

As barreiras internacionais

As dificuldades encontradas na escala nacional nos levaram a tentar,


no âmbito internacional, um canal de expressão e diálogo das pesquisas
sobre sexualidades. Escolhemos periódicos espanhóis, ingleses e norte-
americanos. Os editores dos periódicos espanhóis, já no primeiro contato,
disseram que o tema não era conveniente para suas revistas. Por outro lado,
os periódicos de língua inglesa foram receptivos, já que a abordagem
geográfica das sexualidades é mais habitual. Esse caminho tem sido penoso
também, mas por limitações diferentes daquelas apontadas no âmbito
nacional.
Além das dificuldades naturais da expressão escrita em uma língua
estrangeira, há outro importante elemento a ser considerado, que, a meu ver,
está relacionado com uma concepção de ciência segundo a qual existe um
único referente teórico, considerado o “mais evoluído” para medir a
qualidade teórica dos artigos submetidos aos periódicos de língua inglesa.
Os parâmetros utilizados pelos avaliadores dos periódicos científicos
de língua inglesa se valem, como indicador, do estágio das discussões
teóricas em seus próprios países, e nossa abordagem teórica aparece como
sendo atrasada, porque tomamos como base o nosso contexto científico e
cultural.
Os trechos de pareceres que se seguem foram recebidos por nós e
exemplificam a tendência adotada pelos revisores de língua inglesa,
pautados pela sua própria produção científica:

“First, it is not well linked to the literature (in English) on feminist and
queer geography.”
“As such, the paper provides important and interesting empirical work but
does not position it within the current literature that a paper seeking
publication in [name of journal] would usually target.”

Toda produção científica é fruto de um espaço-tempo, dependente


de contextos técnicos, econômicos e políticos que são desconsiderados pelos
revisores, já que eles tomam a teoria produzida em seu contexto como
parâmetro de adequação. A posição adotada pelos revisores me parece um
tanto contraditória no processo de avaliação de artigos procedentes de países
não anglófonos, uma vez que os pesquisadores das geografias queer e
feminista consideram fundamental a adoção das perspectivas de

17
posicionalidade e reflexibilidade. Creio que essas perspectivas devem
permear também os processos de revisão e os possíveis diálogos entre
pesquisadores de várias partes do mundo.
Ao contrário do que ocorre no Brasil, em que a maioria dos
periódicos científicos é “open access”, os periódicos científicos anglo-saxões
são controlados por um mercado editorial privado que cobra, em moeda
forte, pelo acesso ao conhecimento produzido pelos pesquisadores. Assim,
pesquisadores oriundos de países em que a diferença cambial é significativa
simplesmente não podem acessar a produção científica recente. Eu não estou
me referindo apenas às dificuldades de acesso à língua, mas de uma política
editorial capitalista perversa que privatiza o conhecimento e coloca boa parte
dos pesquisadores fora do acesso a ele.
Já tentamos inverter essa lógica, convidando pesquisadores para
publicar suas pesquisas no Brasil, e nos propusemos a traduzir sua produção
científica para o português, para disseminar a área de sexualidades no Brasil.
Entretanto, não obtivemos êxito. As justificativas apresentadas pelos
pesquisadores são os direitos autorais retidos pelas empresas pelas quais
publicam seus artigos e também a pequena validade que uma publicação
científica brasileira teria em seu país segundo o ranking de “Impact Factor”.
Outra tentativa foi a compra dos direitos autorais de artigos já
publicados por meio de “academic publishers”, tais como Routledge, Taylor
& Francis Group e Sage Publications. Com exceção da Sage, as demais
empresas cobram direitos autorais a preços impagáveis para nós. Contudo, é
exatamente essa produção científica capturada pelo mercado privado que se
constitui na referência para avaliação de artigos oriundos de outros contextos
mundiais cujas desvantagens cambiais impossibilitam o acesso.
Assim, pesquisadores brasileiros enfrentam, em seu próprio país, um
contexto científico ainda fortemente preconceituoso com relação à
abordagem das sexualidades na Geografia, e em outros espaços, onde o tema
poderia ser acolhido, os pesquisadores brasileiros não correspondem às
exigências colocadas pelos avaliadores.
A configuração de hegemonia anglo-americana nas relações de
produção e circulação de conhecimento científico e as suas consequências
têm sido preocupação de vários autores, como García-Ramon (2003), Aabers
(2004), Whitehand (2005), Paasi (2005), Rodríguez-Pose (2006) e Longhurst
(2007). Entretanto, penso que as barreiras entre nossos mundos científicos
vão muito além dos obstáculos linguísticos que podem ocorrer em relação
aos países pertencentes aos blocos econômicos privilegiados. Os limites são
fruto de uma profunda segmentação, que divide recursos tecnológicos e
informacionais entre o norte e o sul do mundo acadêmico. As regras do jogo
científico estão definidas de forma igualitária para todos em um mundo cada
vez mais globalizado. Entretanto, as normas são definidas por poucos, ou,

17
pior ainda, por aqueles que detêm o poder de ditar os parâmetros que devem
ser considerados para decidir quem pode participar do seleto mundo da
geografia considerada como “de qualidade internacional”.

As armadilhas do silêncio e da construção de versões unilaterais


sobre os “outros”

Apesar da visão autocentrada do mundo acadêmico anglófono, como


apontado por Samers e Sidaway (2000), Best (2009) e Longhurst (2007),
creio que, de qualquer forma, temos sobrevivido a esse modelo de produção
científica. Mas minha preocupação vai além do mundo acadêmico. Como
ativista pela luta em favor dos direitos humanos e da diversidade sexual,
minha inquietação com esse modelo de produção e circulação científica é a
construção de versões que se tornam hegemônicas a respeito de
determinados grupos sociais, pouco ou nada contestadas, inclusive pelas
pessoas pesquisadas. Afinal, se a ciência cumpre um papel fundamental de
constituição da compreensão do mundo, pode-se afirmar que é o olhar anglo-
americano que tem criado formas hegemônicas de interpretação de relações
sociais, as quais servem de modelo para ações e políticas de Estado que
atingem outros espaços, para muito além do mundo anglófono.
Gostaria de ilustrar esse argumento com resultados de dois trabalhos
que desenvolvi com travestis brasileiras. O primeiro é o resultado de um
trabalho em grupo junto com travestis da ONG Renascer, de leitura e
discussão da versão brasileira (traduzida em 2008) do livro de Don Kulick,
Travesti: Sex, Gender and Culture among Brazilian Transgendered
Prostitutes, publicado em inglês em 1998.
Don Kulick realizou uma interessante pesquisa etnográfica junto ao
grupo de travestis na cidade de Salvador, no nordeste brasileiro, e chama a
atenção para o fato de que a subjetividade travesti constitui uma identidade
brasileira. Para ele, o sexo e o gênero são realizações contingentes,
decorrentes da prática, e sendo assim, possuem especificidades espaciais,
havendo diferenças entre a cultura euro-americana e a brasileira. Kulick
(1998) argumenta que, nos Estados Unidos e na Europa, o sistema de gênero
fundamenta-se nas diferenças anatômicas dos sexos, propiciando
sentimentos em que a dissonância entre corpo e gênero deve ser corrigida
através da transformação da genitália. Para o autor, as travestis brasileiras,
no entanto, organizam o sistema de gênero fundamentado na “sexualidade”.

No Brasil, embora as diferenças anatômicas sejam certamente levadas em


conta, a genitália parece estar inter-relacionada com sua função, ou melhor,

17
com sua capacidade de ser utilizada desta ou daquela maneira. Na
configuração brasileira de sexo e gênero, o critério determinante para
identificar homens e mulheres não é tanto a genitália em si, mas o papel
que a genitália desempenha no intercurso sexual. Aqui, o lócus da diferença
de gênero é o ato da penetração. Se a pessoa ‘só’ penetra é homem. Se a
pessoa é penetrada, é diferente de homem  e aí pode ser um “viado” ou
uma mulher. (KULICK, 2008, p. 236).

A pesquisa de Don Kulick traz elementos importantes para sustentar


a ideia de que a travesti constitui uma identidade própria a partir do contexto
cultural brasileiro, e essa afirmação é muito interessante e proveitosa para
nós, pesquisadores brasileiros. Contudo, quando o autor expressa suas ideias
sobre as identidades das travestis brasileiras, acaba por simplificar sua
existência, desconsiderando a possibilidade de que o universo travesti pode
configurar inúmeras outras composições entre sexo, gênero e desejo. O autor
argumenta:

A todo instante, é a penetração que dá a chave de explicação e definição


das identidades travestis. A penetração constitui a moldura interpretativa da
qual elas se valem para estar e agir no mundo, e para compreender o estado
e a ação dos outro. [...] Assim, a diferença relevante em um sistema desse
tipo não é entre “homens” e “mulheres”, a diferença relevante é entre
“comer” (penetrar) e “dar” (ser penetrado); é entre quem come e quem dá,
em um sistema em que o ato de ser penetrado tem poder transformativo.
(KULICK, 2008, p. 238).

Essa parte do livro acabou gerando polêmicas, notadamente entre


aquelas que não se sentiram contempladas no modelo de Don Kulick.
Diamante43 expressa sua indignação com as seguintes palavras:

Mas como? Eu passei uma vida inteira para saber que eu sou uma travesti.
E agora vem esse tal de... Como é mesmo o nome dele? Sei lá! Vem dizer
que eu não sou o que eu penso que eu sou? Eu vou falar com ele, porque eu
sou sim uma travesti e como eu faço pra falar isso para ele? (Trecho de fala
de Diamante em trabalho de leitura do livro de Don Kulick, em
12/06/2010).

Embora haja um código moral entre as travestis, que organiza os


gêneros com base na penetração, as identidades travestis extrapolam esta
organização binária e oposicional. Apesar de esse código ser válido na
atividade de prostituição, a convivência com as travestis evidencia que elas
constituem configurações muito mais ricas e diversas do que as propostas

43
Nome fictício.

17
simplistas de Kulick (1998). Há conjugalidades entre travestis, entre as
travestis e mulheres, e entre travestis e homens, cujas práticas sexuais têm
sido plurais, ultrapassando, assim, a barreira do binarismo de penetrar/ser
penetrada(o).
Outro ponto controverso é que Don Kulick utiliza a denominação
“transgendered prostitutes” como sinônimo de travesti. Esta expressão,
apesar de ter sido introduzida nos estudos acadêmicos brasileiros que
utilizam a bibliografia inglesa, não foi assimilada pelas travestis brasileiras.
A insistência em tornar visível o grupo de travestis dentro do movimento
pela diversidade sexual no Brasil tem produzido o fortalecimento de sua
identidade em torno do termo travesti, ao invés de diminuir a sua utilização,
como sugerem os pesquisadores anglo-americanos. São comuns as
brincadeiras das travestis a respeito do termo “transgênero”. Elas fazem
piadas com o termo similar “transgênico”, dizendo: “Eu não sou soja para
ser ‘transgênica’, sou travesti!”.
A figura abaixo mostra a sigla do movimento, com dois “T”, o que
reflete a insistência das travestis, que não concordam em estar reunidas sob o
mesmo rótulo das transexuais ou transgêneros.

Foto: Cris Tapuia, em 28/06/2011.44

44
Fonte: http://marinorbrito.blogspot.com/2011/06/senadora-marinor-prestigia-o-ato-solene.
html. Acesso em: 03/08/2011.

17
Enfim, mesmo com essa resistência cultural e linguística, as travestis
brasileiras puderam saber, apenas dez anos depois, o que uma produção
científica publicada em inglês falou sobre elas, e ainda não puderam
expressar suas ideias a respeito.
Quando não se estabelece um diálogo sobre as versões que nossas
pesquisas constituem de “outros”, prevalece a versão daquele que está em
situação privilegiada, e muitas vezes isso gera problemas, como é o caso das
contradições de versões que se criaram em torno da prostituição de travestis
brasileiras na Espanha, fruto de minha pesquisa de pós-doutorado.
Apesar de todo o avanço de direitos humanos no que toca à
diversidade sexual na Espanha, é importante dizer que isso se refere apenas
àqueles que são considerados cidadãos espanhóis. No caso das travestis
brasileiras que se prostituem na Espanha, elas figuram apenas nos sites e
jornais que publicam anúncios de venda de serviços sexuais ou, ainda, em
notícias policiais, quando a Guardia Civil divulga alguma ação classificada
como sendo de combate ao “Tráfico de Seres Humanos”. Minhas entrevistas
evidenciam que elas também não são ouvidas, e quando não são
classificadas como pessoas traficadas pela polícia, figuram como criminosas,
fazendo parte de uma “máfia brasileira”. Para uma pessoa responsável pela
APRAMP (Associación para la prevención, reinserción e atención de la
mujer prostituída) que entrevistei, as brasileiras, juntamente com as pessoas
procedentes do leste europeu, constituem as principais “máfias” a serem
enfrentadas pelo governo espanhol. Interessante é que as travestis são
consideradas como mulheres trans pelos responsáveis da instituição, mas as
travestis brasileiras não se reconhecem assim.
Contudo, em minhas entrevistas com dez travestis brasileiras que se
prostituíam na Espanha, não há o reconhecimento de serem criminosas e
nem mesmo de terem sido traficadas. Não estou desqualificando o
sofrimento pelo qual elas passam e nem mesmo desmerecendo a exploração
que sofrem. O meu argumento é que as políticas públicas internacionais têm
sido realizadas com um olhar unilateral, que considera muito pouco a versão
que as pessoas “ditas traficadas” constroem das práticas que realizam.
Quando comentei com minhas colegas travestis que eu iria para a
Espanha, recebi uma série de propostas de trocas de favores entre nós.
Segundo elas, eu poderia facilitar sua entrada na Espanha e, em troca, elas
poderiam me “sustentar” com dinheiro que conseguiriam fazendo programas
sexuais. Expliquei que eu teria recursos do governo brasileiro para me
sustentar e que me tornar uma “pesquisadora cafetina” não fazia parte de
meus planos. Essas propostas acabaram gerando várias brincadeiras entre
nós, revelando a naturalidade com que vários atos ilícitos, como a entrada na

17
Espanha para viver ilegalmente e o repasse de somas de dinheiro, fruto da
prostituição, em troca de hospedagem e proteção, eram consideradas ações
perfeitamente enquadradas nos códigos morais do grupo. Essa naturalização
se constitui em uma vivência cotidiana de exclusão, preconceito e violência
que sofrem por parte da família, da escola, do Estado e da sociedade
brasileira como um todo, como constatado em Silva (2009b) e Ornat (2009).
São pessoas que têm seus direitos cidadãos violados constantemente e,
assim, não têm muito a perder, aventurando-se em um outro país, mesmo em
situação de ilegalidade.
O fato é que a falta de diálogo intercultural para compreender a
lógica das travestis brasileiras que se deslocam para a Espanha para prestar
serviços sexuais pode gerar uma série de injustiças, ainda maiores do que as
que elas já têm sofrido. As falas das travestis brasileiras refletem a existência
de um código moral próprio, não compreendido por elas como tráfico de
seres humanos, conforme entende a sociedade espanhola. O trecho abaixo
revela alguns dos elementos a serem considerados:

Sabe, a polícia muitas vezes não entende o mundo da gente sabe. Eles
acham que é crime o que a gente faz. Eles não entendem. Dizem que uma
pessoa que tem uma casa e por exemplo recolhe uma travesti, investe nela e
depois quer o dinheiro que investiu de volta é cafetinagem. Mas veja, vem
uma travesti, quer colocar peito, quer uma peruca e você ajuda ela se
montar e ensina a vida à ela. Como que faz o serviço, como se defender,
como ser uma travesti. Você faz a travesti e depois, é claro, quer o que
investiu de volta. Imagina, uma pessoa que geralmente nem a mãe quer, a
família rejeita e só tem a gente. Mas a polícia não entende a gente, como é
que é a vida da gente e acha que isso é crime. Mas não é, é a forma como a
gente vive, como podemos viver. (Entrevista realizada com Ágape em
Madri, em 14/05/2008).

As redes que se instituem para o agenciamento de travestis


brasileiras contêm elementos que envolvem afetividade, confiança e
significados religiosos. Isso acaba dificultando a compreensão, por parte dos
policiais, de suas formas de organização. Os relatos que se seguem são
paradigmáticos nesse sentido.

Olha, tráfico de travesti é mais difícil. De mulher é mais comum. Mas de


brasileira, te digo, quando vem, vem já sabendo que vai trabalhar de puta
mesmo. Sabe e ainda quer trabalhar de puta, porque dá mais. O que
acontece é que o povo quer vir pra Europa e quando não tem condições de
pagar um bilhete de avião e se manter aqui por um tempo até arrumar um
trabalho tem que se submeter. Olha, todas as brasileiras que eu conheço
aqui e que estão aqui há algum tempo fazem esse tráfico. Elas acham, bah!
Eu tô na Europa e tenho dinheiro, tem brasileira que tá lá, quer vir e não

18
tem como vir. Elas pensam assim: “Bem, eu tô aqui, pago o bilhete de
avião para elas virem pra cá, vô no aeroporto e busco elas no aeroporto, pra
mim, isso custa mil euros pra pagar o bilhete dela e coloco ela pra trabalhar
no meu piso. Bem, eu paguei 1000,00 euros pra trazer ela, mas vou cobrar
dela 6000,00.” E é assim que se faz dinheiro. Vai cobrando por semana e
normalmente é feito assim um acordo verbal e se você não pagar eu vou te
“dar um doce” como se fala no Brasil. Manda dar uma surra, batem e
cortam o cabelo, deixam careca. Daí é assim: “Ah! você não vai pagar?
Então volta pro Brasil e se não voltar, amanhã tem mais ‘doce’”. Mas é
assim que funciona, sabe. (Entrevista realizada com Tália, em Madrid, em
18/05/2008).
A pessoa que me deu o dinheiro é uma pessoa muito boa, uma pessoa
muito amiga e até hoje é uma grande amiga minha. Uma pessoa que não te
explora, não te incomoda, não te dá nenhum tipo de problema. Inclusive, eu
agradeço muito a ela. Foi ela que me ajudou, foi ela que me deu a luz.
Queira ou não ela me deu a luz. Cobrando ou não cobrando, ela me deu a
luz. (Entrevista realizada com Pandora, em Madrid, em 16/09/2008).
Olha, eu sonhava em vir, mas aconteceu sabe. Foi de uma hora para outra
que aconteceu. Eu sonhava e tinha conseguido uma casa no Brasil e daí
surgiu uma oportunidade. Uma mulher brasileira me convidou. Me
telefonou e perguntou se eu não queria vir para a Europa e eu falei, quero,
mas não dei muito caso sabe. Daí, a sobrinha dela já apareceu com a
passagem com tudo e pensei assim, bem se Deus tá abrindo as portas pra
mim, eu vou né. (Entrevista realizada com Ágape, em Madri, em
14/05/2008).

Essas redes informais, contudo, apresentam uma grande eficiência


de organização e de ações, pois são controladas pelos seus membros a partir
de um código moral estabelecido e pactuado. Sua vivência na Espanha é
marginal, pulverizada e dinâmica, organizada em redes informais que
dificultam seu enraizamento e a captação da cultura do país receptor. Elas
resistem às normas estabelecidas, já que sua usual vivência marginal na
sociedade brasileira naturaliza os elementos de ilegalidade que acabam
fazendo parte de sua existência. A organização de suas redes de atividades
de prostituição envolve vários elementos de afetividade e religiosidade, que
dificultam a compreensão de suas práticas como sendo “tráfico de seres
humanos”, mesmo que a sociedade espanhola assim a classifique.

Considerações finais

18
Enfim, minha ideia era evidenciar os limites que temos enfrentado
no Brasil para a expansão do campo das sexualidades. Trouxe as barreiras
internas, bem como as dificuldades de diálogo acadêmico no âmbito
internacional entre pesquisadores oriundos de diferentes culturas e contextos
políticos e econômicos. Mas, sobretudo, evidenciei que o mundo acadêmico
não está isolado e é bastante eficaz na elaboração de versões sobre “os
outros”. Em um mundo em que os processos sociais são globais, a falta de
diálogo entre pesquisadores de diferentes culturas pode produzir ainda mais
exclusão e silenciamento. Verifico a necessidade de intensificarmos os
diálogos entre pesquisadores que possuem diferentes contextos espaciais de
produção científica. Enfim, espero que o pronunciamento de alguém que fala
a partir da periferia do mundo científico sobre um grupo também periférico
socialmente possa servir para construir caminhos possíveis de diálogo
acadêmico e enriquecimento da compreensão da diversidade humana.

Referências

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18
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WHITEHAND, J. W. R. The problem of anglophone squint. Area, v. 37, n. 2, p.
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18
O QUE FOI, TERÁ SIDO?
A GEOGRAFIA A PARTIR DO QUEER

David Bell

Neste artigo, gostaria de pensar sobre três itens. Primeiramente,


quero observar a trajetória das geografias de sexualidades, ou, mais
precisamente, refletir “como a observação é feita”, explorando as maneiras
pelas quais a história do “desenvolvimento” das geografias das sexualidades
é “contada”. Gostaria de examinar as ênfases e omissões, os instrumentos
retóricos e o emprego de palavras em sentido figurado que são utilizados
para explicar as geografias das sexualidades. Em segundo lugar, trago para a
discussão as “ecologias queer”, que me parecem prometer um novo tipo de
geografia queer. Em terceiro, refletirei sobre a direção na qual o campo das
geografias das sexualidades ainda deve prosseguir, avançando em pesquisas
na área da sexualidade infantil e do sexo intergeracional, que atravessa a
divisão geracional adulto-criança. Apesar de poucos, já existem alguns
trabalhos importantes nessa área.
De forma geral, meu objetivo é mapear algumas das principais
características das geografias das sexualidades e, ao realizar esta tarefa,
também refletir sobre o que essas histórias podem nos dizer a respeito da
disciplina da Geografia como um todo, e em particular sobre sua relação com
a alteridade, e assim refletir, conforme as palavras de Lynda Johnston e
Robyn Longhurst (2010, p. 161), sobre a forma como aconteceu a
possibilidade de sermos “capazes de falar sobre corpos, poder, sexualidade,

18
erotismo, amor, desejo, dor, prazer e ao mesmo tempo geografia” (ênfase
minha).
Então, para começar, examino como o desenvolvimento das
geografias das sexualidades é narrado. Pensando em como eu iria abordar
esta reflexão, comecei refletindo sobre “rememorar”. Comecei a pesquisar e
refletir sobre o que significa rememorar. Três diferentes orientações me
vieram rapidamente à mente. Uma, é o livro Feeling Backward, de Heather
Love (2007). Um livro sobre as perdas e a história queer, que questiona as
partes do passado esquecidas na hora de narrar uma “história de sucesso”
sobre a cultura queer. Quais histórias são negadas em uma narrativa de
progresso, o empreendimento que Jeffrey Weeks (2007) chama The World
We Have Won? O segundo é o livro de Mark Turner (2003) Backward
Glances. Esse livro é sobre a prática de homens gays de buscar sexo
anônimo/casual em lugares públicos. 45 Nele, o rememorar assume um
significado próprio e é repleto de possibilidades. Portanto, adotarei os dois
sentidos de recordar, tanto das voltas ao passado que estão repletas de filtros,
conforme Love (2007), mas também o sentido do potencial latente do
processo de recordar de Turner (2003). A terceira referência, em que estou
particularmente inspirado, é o fantástico trabalho de Clare Hemmings (2005,
2011) sobre como a teoria feminista conta a história de seu próprio passado
recente. Em “Telling Feminist Stories” (2005) e Why Stories Matter (2011) a
autora disseca os fundamentos da “limpeza” do passado da teoria feminista
que rotineiramente é exibido em artigos de revistas; com esse procedimento,
ela identifica três estruturas narrativas predominantes, bem como algumas
estratégias interessantes de contar a história. Ela nomeia estas estruturas
narrativas como progresso, perda e retorno, e as estratégias que me
interessam particularmente são a periodização (em décadas) e um foco nas
gerações. Ela observa que as escritoras feministas são cúmplices em recontar
a história dessa maneira: “a história dominante que cultivamos é garantida
pelas nossas publicações e práticas pedagógicas apesar de conhecermos suas
complexidades obscuras. Que partes desta história são tão consistentemente
reproduzidas que elas são percebidas como se falassem por si, sem a
necessidade de maior elaboração?”, questiona a autora (HEMMINGS, 2005,
p. 117). Para ser claro, Hemmings não está interessada em corrigir qualquer
erro na narrativa da história; em vez disso, ela quer refletir sobre o
funcionamento de como essas histórias se realizam, ou como a forma de
contar o passado constrói o presente e o futuro.
Eu também tenho pensado muito sobre os passados que a geografia
narra para construir uma história sobre seu presente e futuro. Já há alguns
anos eu tenho trabalhado arduamente com esta narrativa, ministrando um
curso sobre as histórias, filosofias e teorias da geografia humana. Esta
45
Prática comumente chamada de “cruising”.

18
história é muitas vezes contada de maneira terrivelmente ordenada, com
muita reorganização retrospectiva e edição. Mas há também um superávit
para o que nós poderíamos chamar de “história honesta da geografia”, onde
aparecem as interrupções, os retornos dos reprimidos, os fantasmas. Uma
forma pela qual estas histórias se materializam é através de histórias
pessoais, considerações que adicionam detalhes complicados, que promovem
o debate, que nos mostram os truques que nossas memórias nos pregam, que
nos lembram que as histórias são muito mais confusas do que fingimos ser
(ver BELL, 2010, para uma argumentação mais detalhada; ver também
PLUMMER, 2010). Assim, como Hemmings, o que eu quero fazer aqui é ler
uma seleção dessas histórias a fim de identificar seus pontos em comum e
para perguntar, como ela claramente expressa, “como esta história [...] foi
contada e aceita? Por que eu quero contar essa história, e contando-a, que
tipo de sujeito eu posso ser?” (HEMMINGS, 2005, p. 119).
Agora, eu tenho que confessar que não realizei o meticuloso trabalho
que constitui o livro de Hemmings  ela pesquisa enormes arquivos de
artigos de revistas, enfocando aspectos como práticas de citação, reiterações,
citando (e responsabilizando) os principais teóricos, e assim por diante.
Minha análise é, em contrapartida, rápida e simples. Mas ela tem sua própria
lógica: enquanto Hemmings exclusivamente explora artigos de revistas (por
boas razões), eu escolhi examinar as histórias contadas em três locais
diferentes, com autores que representam lugares diferentes em relação à
história em si.
Um deles é, à la Hemmings, de um brilhante artigo de abertura de
uma revista, neste caso, escrito por alguém irrefutavelmente identificado
como um protagonista-chave na história em si; o segundo é a introdução a
uma coleção posicionada como o trabalho de uma “nova geração” de
geógrafos queer; e o terceiro é de um recente livro sobre “teoria” na
geografia humana. O próximo desvio da metodologia de Hemmings também
deve ser observado: ela não cita os autores dos artigos que disseca, listando-
os apenas por revista e data  mais uma vez, por boas razões (mas que frustra
o leitor curioso, que passa horas tentando adivinhar  ou usando o Google 
quem são os autores!). Eu escolhi não conceder o anonimato aos meus
narradores.
Bem, primeiramente analisemos um artigo de Gill Valentine, “The
Ties that Bind: Towards Geographies of Intimacy” (2008). Neste ensaio,
Valentine sugere maneiras pelas quais as geografias das sexualidades e
geografias das crianças e jovens podem ser levadas a uma perspectiva
produtiva, por exemplo, centrando o foco na família ou em relações íntimas 
eu retornarei mais tarde a este aspecto do seu trabalho. Aqui eu só quero
examinar os três parágrafos introdutórios, nos quais ela rascunha o
desenvolvimento das geografias das sexualidades. Ela usa conhecidos

18
dispositivos de enquadramento, muito semelhantes àqueles destacados na
leitura de histórias feministas de Hemmings: periodização em décadas,
ênfase em uma narrativa do desenvolvimento, a valorização de momentos
em destaque, e também omissões importantes. Embora o trabalho nesta área
tenha começado no final dos anos 80, ele só se estabelece realmente “na cena
geográfica” em meados da década de 90 (VALENTINE, 2008, p. 2098); um
impacto fundamental é a introdução da teoria queer à geografia, e Valentine
enfatiza como este trabalho “teve um efeito profundo sobre as formas
disciplinares de pensar e ver o mundo”  com a teoria queer sendo vista
como tendo atravessado a geografia humana, alcançando ampla aceitação e
sendo “transformadora” (Ibid.). A primeira omissão clara é, então, destacada
 a heterossexualidade  rapidamente seguida por uma segunda: a falta de
atenção às relações pessoais. Este último ponto, é claro, estabelece o cenário
para o restante do trabalho de Valentine, que reflete sobre como a geografia
poderia abordar “intimidade”, envolvendo alguns trabalhos sobre crianças e
jovens. O que me interessa mais no momento é o esboço geral que ela
produz nesta observação: registrando os tópicos que este trabalho tem
explorado, ela fornece um prático mapa de bolso: “o campo de geografias de
sexualidades tem sido notavelmente centrado em indivíduos queer e seus
corpos, identidades, ‘o armário’, os processos de se tornar público, as
experiências de exclusão social e as reivindicações à cidadania”. Isto é
equiparado por uma “segunda vertente de trabalho” que tem se “focado em
comunidades lésbicas, gays e bissexuais, especificamente em termos de
consumo, a produção do espaço queer, e geografias mais específicas da
‘cena’, paradas de orgulho gay e sexo público” (Ibid., ênfase minha). Então,
aqui, os principais marcos são décadas, a teoria queer, e o foco nos
indivíduos e comunidades (transpondo a escala intermediária de casa /
família / relacionamentos). E uma final comparação interdisciplinar  a
sociologia tem sido melhor em refletir sobre as relações íntimas do que a
geografia, apesar de uma dividida desconfiança disciplinar de reproduzir
heteronormatividade, escreve Valentine.
Em seguida, então, analisemos a introdução de Gavin Brown, Kath
Browne e Jason Lim em sua co-editada coleção Geographies of Sexualities:
Theory, Practices and Politics (2007). Como observado anteriormente, este
livro representa a chegada de uma “nova geração” de geógrafos queer, e ele
é marcado por um desejo de levar a subdisciplina a novas direções (sobre as
gerações no estudo das sexualidades, ver PLUMMER, 2010). Em sua
introdução, os autores pagam seu tributo à história das geografias das
sexualidades, produzindo um outro mapa para seguirmos, e outra narrativa
de progresso para celebrarmos (ao mesmo tempo, inevitavelmente marcando
as lacunas que seu livro objetiva preencher). No princípio eles caracterizam
este “campo relativamente jovem” como tendo “florescido durante a última

18
década”, acrescentando que “a importância e a influência das geografias das
sexualidades se espalharam firmemente, embora não sem resistência, por
toda a disciplina de Geografia e além” (BROWN et al., 2007, p. 1). Então,
uma narrativa bastante triunfalista! Eles, então, prosseguem com uma
periodização que reenfatiza “a última década” como a época de mais ação,
observando que, enquanto eles “acreditam que certa ortodoxia teórica está
começando a desenvolver-se na subdisciplina, [...] ainda existe um saudável
pluralismo teórico “dentro do trabalho que agora está sendo produzido”
(Ibid., p. 5). Seu subsequente mapa histórico pode ser resumido da seguinte
forma: a década de 80 gay, caracterizada por trabalho em guetos e
gentrificação; início da década de 90 lésbica, que também anuncia um
interesse geral na “diferença” e que depois se transforma em queer, graças ao
pós-estruturalismo e a Judith Butler; um retorno à heterossexualidade por
volta do final dos anos 90; uma mudança geográfica para as questões da
globalização (e “diferença” de novo, vista principalmente em termos de
sexualidades não-ocidentais), e agora um interesse nas ideias de afeto,
teorias transformadas e novas teorias, política e métodos (a estrutura de
enquadramento do livro como um todo). Para mim, o elemento central da
história contada aqui diz respeito aos limites da teoria queer, como os autores
a colocam, “dado que a teoria queer é um corpo de trabalho que em grande
parte, embora não exclusivamente, foi desenvolvido dentro das ciências
humanas, sua adoção dentro da arena geográfica predominantemente
orientada para as ciências sociais tem apresentado problemas e interessantes
pontos de partida. [...] Alguns dos principais desafios enfrentados pelos
geógrafos interessados nos fenômenos sexuais na última década têm sido a
forma de materializar e espacializar os insights da teoria queer”. (Ibid., p.
13).
Há, de fato, uma interessante ambivalência na forma como este
ensaio introdutório molda a teoria queer, tendo algumas ressonâncias em
relação ao complicado relacionamento da teoria feminista com o queer, um
tema fundamental na obra de Clare Hemmings. Nas narrativas de “perda” da
história da teoria feminista, Hemmings destaca como a teoria queer “vem
para descrever, e seus temas para personificar, os piores excessos da síntese
do pós-modernismo e do pós-estruturalismo, de anexos acadêmicos míopes e
da sobreposição da interdisciplinaridade das ciências humanas em relação às
severas ciências sociais (ou outras disciplinas puras)” (HEMMINGS, 2011,
p. 90). De fato, em incontáveis narrativas, ela identifica a encenação de uma
oposição entre teoria queer e feminista, com a “queer dos anos 90” sendo
vista como uma distração lamentável de questões feministas “do mundo
real”. A tarefa para o feminismo, nas histórias que Hemmings interpreta, é,
portanto, retornar às preocupações materiais e sociais, deixando para trás,
como ela diz, “a virada cultural que se provou inadequada na tarefa de

18
analisar, e mais ainda na de transformar, o mundo social” (Ibid., p. 117).
Como ela conclui, “ser um teórico queer  e as pessoas que se reconhecem
em tal designação também conhecerão esta caricatura  é ser visto como
necessariamente alienado de preocupações sociais e políticas mais amplas”
(Ibid., p. 120). Aqui, entretanto, embora considerações como aquelas feitas
por Brown et al. não sejam tão fatalistas sobre a teoria queer, permanecem,
no entanto, assombradas pelas mesmas preocupações, mas, neste caso, a
geografia é vista como portadora de uma solução, em sua capacidade de
“domar” os excessos da teoria queer e fundamentá-la no mundo material e
social. Assim, enquanto Gayle Rubin (2011, p. 19) escreve que “estudos
sobre LGBTQ  lésbica, gay, bissexual, transgênero e queer  ainda estão
lutando para estabelecer uma presença institucional duradoura” nas ciências
sociais, em oposição às Ciências Humanas, o mapa fornecido por Brown et
al. começa a sugerir que a geografia poderia bem ser o lugar onde essa
presença duradoura é aglutinante, mas somente se a narrativa de “retorno”
for superada.
É revelador, na verdade, que alguns temas-chaves ou questões estão
ausentes das narrativas que eu estou considerando aqui: feminismo, virada
cultural e pós-modernismo são quase invisíveis nas histórias contadas até
agora. A omissão da virada cultural e do pós-modernismo parece concordar
com o trabalho de Hemmings sobre a narrativa feminista e seu desejo de ver
a política identitária queer pós-moderna e pós-estruturalista dos anos 90
como uma fase que é melhor esquecer, e que certamente se desenvolveu a
partir dos seus próprios problemas (para saber mais sobre este assunto, ver
BELL, 2010).
Por isso, é interessante ver que pelo menos algumas dessas questões
não desapareceram da versão em livro desta história. E o livro que eu escolhi
para analisar é Geographical Thought, de Anoop Nayak e Alex Jeffrey
(2011). Como todos sabemos, os livros vêm sobrecarregados com seus
próprios mecanismos de narrativa e maneiras de contar histórias  seu modo
de abordar e o seu público imaginado são diferentes, seu trabalho é diferente,
e suas ferramentas são diferentes: o capítulo de Nayak e Jeffrey começa com
os “objetivos de aprendizagem”, o primeiro em especial nos diz que seu
capítulo sobre “Geografias da Sexualidade” irá “explorar como os estudiosos
da geografia cultural se inspiraram nas perspectivas feministas para
examinar o objeto de pesquisa geográfica” (NAYAK e JEFFREY, 2011, p.
149, ênfase minha). Embora seja um pouco incômodo, este anúncio
imediatamente enfatiza a cultura e o feminismo como pedras de toque ou
direcionadores  embora, algumas páginas adiante, eles escrevam sobre o seu
“desejo de afastar-se de apresentar este trabalho como um complemento ao
trabalho dentro da geografia feminista” (Ibid., p. 152). Também é digno de
nota que Nayak e Jeffrey introduzam os seus leitores a Freud, Foucault e

18
Butler como companheiros na exploração do campo. Apesar desta
peculiaridade, a sua discussão é principalmente uma narrativa de progresso,
que funciona assim: “trabalho acadêmico inicial [na década de 80] que
procurou ‘escrever sobre a sexualidade’, apresentando a noção de sexo,
desejo, e sexualidade como temas adequados para o debate acadêmico. Esse
trabalho evoluiu ao longo dos anos 1990 para se afastar do ‘mapeamento das
sexualidades’, para explorar as formas de subjetividade e prática espacial que
poderiam ser iluminadas através de uma compreensão da sexualidade. [...] A
terceira área de estudo foi a de implantar as ferramentas teóricas e empíricas
desenvolvidas para entender a homossexualidade e a bissexualidade, a fim de
analisar a heterossexualidade” (Ibid., p. 160-1). Seus teóricos e textos
centrais aqui são: Manuel Castells, pelo “gay eighties”; Gill Valentine, por
seu trabalho em múltiplas identidades e espaços na “difference nineties”; e
Phil Hubbard, pelo “straight noughties”. A narrativa de progresso global aqui
apresentada também é vista como heroica em sua transformação da
disciplina: “a geografia da sexualidade não é apenas um assunto que os
geógrafos estudam: ela desafia as próprias práticas, suposições e construções
da geografia acadêmica” (Ibid., p. 168). A narrativa é também moldada
como sendo sustentada por um compromisso político (colocado em termos
de cidadania sexual).
Assim, nos três casos apresentados aqui, podemos ver alguns arcos
narrativos comuns, algumas ênfases interessantes, repetições, digressões e
silêncios. É uma experiência estranha, ler uma história da qual você faz
parte, ver seu próprio trabalho exemplificando certos momentos do conto.
Como Clare Hemmings, o meu interesse não é corrigir ou ajustar contas, ele
está em perguntar o que está em jogo na forma como a história fica
estabelecida, e o que está em jogo quando escolhemos rememorar? Clive
Barnett (1995) tem castigado a geografia humana pela sua preocupação com
seu próprio passado, sua obsessão com a sua própria biografia. Embora eu
concorde, um pouco, com este sentimento, estou mais inclinado a pensar
sobre o processo de organizar e acondicionar o passado; como Heather Love
(2007) relata, há um perigo inerente nas narrativas de progresso que nos
obrigam a esquecer ou reescrever “passados ruins”.
Ela nos lembra de perguntar o que foi perdido no mundo que nós
conquistamos. Mark Turner (2003) também observa as possibilidades
imprevisíveis de rememorar, e isso se parece muito com o que Hemmings
está tentando obter  uma maneira diferente de recordar (ver BELL, 2010,
para mais discussão). Isso faz parte de um projeto maior, neste caso: o
projeto de historiar a geografia e de interrogar essas histórias, olhando para
trás de forma diferente. Um último aspecto do trabalho de Hemmings: ela
discute como a história da teoria feminista é sempre moldada em termos de
gerações, e eu tenho que confessar a sensação de um sentido definido da

19
minha própria posição geracional (como ela) como um produto dos “pós” da
década de 90. E isto é revelado em meu relacionamento com os alunos de
graduação, que são cada vez mais pós-pós-estruturalistas e que estão
ocupados com a reontologização das coisas, ou pensam através de lentes
fenomenológicas ou afetivas, e para os quais a minha versão da “teoria”
parece, para ser franco, obsoleta.
Às vezes lutamos para compartilhar uma visão de mundo, e
alcançamos ferramentas radicalmente diferentes com as quais pensar.
“Esquecer Foucault?!?” Parece que eu passo a maior parte do meu tempo
perguntando, surpreso. Como Hemmings (2011, p. 147) observa, em
narrativas de progresso, “os erros de uma geração mais velha são afastados, e
as conexões ingênuas do então jovem são substituídas” pelas novas ideias do
“agora jovem”. Como ela diz, nesta lógica “gerações anteriores de
feministas não entendem as preocupações políticas ou teóricas
contemporâneas, na verdade, a falta de entendimento continua a ser crucial
para o sentido que a nova geração tem de si mesma, como progredir, como
deixar as questões (e temas) mais antigas para trás”. Apenas em narrativas de
retorno Hemmings vê o potencial intergeracional, “mas o que deve ser
abandonado  epistemologicamente e ontologicamente  geralmente
permanece distinto” (Ibid., p. 147-8; ver também PLUMMER, 2010). Isto
leva Hemmings a ponderar sobre o que caracteriza uma geração no que é
essencialmente uma comunidade de prática  a minha resposta seria, quando
você começa a se sentir velho, ontológica e epistemologicamente!
A questão da diferença de gerações na teoria e no ativismo queer
tem sido bem discutida, entre outros por Binnie e Klesse (2011) e Ken
Plummer (2010), e este trabalho me parece ser especialmente frutífero em
refletir sobre como se constituem as gerações. Como Plummer (2010, p. 170)
resume: “mais estudos de sexualidades humanas deveriam começar a
questionar sobre quais gerações estão falando aqui e como elas se
interconectam, e deveriam ser muito mais claros sobre como as diferentes
gerações, a qualquer momento, passam a viver e a falar sobre suas
sexualidades. Quais gerações dominam, quem fala e quem não fala?”
E, certamente, um definidor fundamental das gerações intelectuais é
a rejeição das ideias do “velho” pelas do “novo”. Enquanto Brown et al.
(2007) não descartam completamente a teoria queer em suas histórias
geracionais, outros teóricos estão começando a se perguntar se agora estamos
em uma teoria pós-queer. Em uma série divertida de ponderações nesta obra,
co-editada por Janet Halley e Andrew Parker (2011), os colaboradores
misturam considerações pessoais de suas próprias biografias intelectuais com
um questionamento mais amplo de o que é a teoria hoje e para onde ela está
indo, como eles perguntam logo na abertura do livro, “o que a teoria queer se
tornou agora que ela tem um passado?” (HALLEY e PARKER, 2011. p. 1).

19
Alguns colaboradores continuam a celebrar a capacidade do queer, enquanto
outros são mais sanguíneos sobre o passado, presente e futuro. No geral, esta
coleção, que tem o título provocativo After Sex? On Writing Since Queer
Theory, sugere uma virada geracional semelhante àquela que Hemmings
discute  um modo de olhar o passado que não é ingenuamente nostálgico,
mas faz questão de rememorar de forma produtiva, como forma de também
olhar para frente. Acho que fiz uma pergunta relacionada à que se encontra
no início de seu livro: “o que a geografia queer se tornou agora que ela tem
um passado?” E como este passado é narrado? Ecoando o subtítulo de Halley
e Parker, eu pergunto: o que devemos fazer da geografia a partir do queer?
Então, é hora de olhar em frente! No restante deste artigo, quero
refletir um pouco a respeito dos lugares para onde a geografia queer está se
direcionando produtivamente, ou para onde ela pode se direcionar (ao
mesmo tempo, fazer perguntas sobre o direcionamento das direções, ou as
orientações das geografias de sexualidades, tomando emprestada a expressão
de Sara Ahmed, 2006). Inicialmente a minha atenção volta-se para o trabalho
sobre ecologias queer. Esta corrente evanescente de trabalho interdisciplinar
tem uma série de possibilidades que vão desde a noção de pastoralismo
queer e trabalho antimetronormativo em culturas queer rurais (por exemplo:
HERRING, 2010), para o trabalho que explora ideias queer da natureza e do
natural e busca refletir o queer além do humano e do antroponormativo (por
exemplo: GIFFNEY e HIRD, 2008), até a exploração das afinidades
potenciais políticas que cruzam o ativismo queer e ecológico (por exemplo:
MORTIMER-SANDILANDS e ERICKSON, 2010). O que particularmente
me emociona sobre este trabalho é o seu potencial para transgredir a
distinção entre geografia humana e física, de provocar um diálogo que pode,
enfim, criar uma geografia queered  influenciada pelo queer a ponto de
ultrapassar fronteiras tradicionais  que perturba a disciplina (e o disciplinar
da disciplina). Pois, como muitos escritores que refletem sobre ecologias
queer nos lembram, não há nada tão indisciplinado como a natureza. Uma
geografia queered que iria, assim espero, continuar a recusar a fácil distinção
entre humanos e não humanos, humano e físico, ciência e ciência social.
E novas abordagens teóricas e metodológicas  com as quais a
geografia está sempre brincando promiscuamente  também estão permitindo
à geografia explorar novos terrenos, ou explorar de novas formas, que
também atravessam fronteiras. Geografias relacionais, teoria ANT (actor-
network theory), teoria não-representacional... tudo isso abre caminhos
interessantes de repensar como uma geografia queered pode se apresentar.
Enquanto os críticos logo se cansam do modismo e da suposta opacidade
destas novas mudanças, eu prefiro ver isso como um sinal de vida, de
vivacidade em uma disciplina que resiste ao sossego. A ecologia queer tem,
eu diria, o potencial para empurrar esta vivacidade em direções fecundas,

19
mantendo-nos alerta. Um aspecto fundamental do trabalho ecológico queer
foi o interesse em “animais queer” e sexo interespécies (entre as minhas
discussões favoritas estão HIRD, 2004, e TERRY, 2000). Parte deste
trabalho é esboçada em um capítulo de “erotismo rural” no texto de Johnston
e Longhurst, Space, Place, and Sex (2010).
Algo me impressionou quando examinei este livro, e ele é o suporte
de meu ponto de discussão final neste documento: o livro tem quatro páginas
de discussão de sexo de interespécies animais  principalmente entre os
humanos e golfinhos ou cavalos  mas não tem nenhuma discussão específica
sobre sexo intergeracional ou sexualidades das crianças, a não ser como parte
de uma discussão de duas páginas de violência sexual e abuso em um
capítulo sobre a casa. Isso me parece uma estatística interessante e muito
reveladora. A coleção de Brown et al (2007) igualmente considera apenas as
crianças através do capítulo de Matt Sothern, que utiliza o trabalho de Lee
Edelman (2005) em “The Child” sobre as crianças como antiqueer, e vice-
versa (ao que eu voltarei logo em seguida).
Sendo assim, eu não sou a única pessoa a detectar este estranho
silêncio. Gill Valentine (2008) observa que as geografias das crianças e
geografias de sexualidades não tiveram muita interação, embora em sua
discussão sobre as possíveis sinergias ela também evite o sexo
intergeracional. Binnie e Klesse (2011), entretanto, tocam em uma questão
mais central: “as questões de idade, geração e intergeracionalidade têm sido
conceitos relativamente negligenciados dentro da teoria queer e em outros
estudos de sexualidade de forma mais ampla”. E Chris Philo (2011), em um
recente editorial para a revista Children’s Geography, faz uma observação
semelhante, baseada em algumas palestras de radiodifusão de Foucault.
Como Philo observa, Foucault estava interessado em como “a sociedade
construiu a percepção de ‘infância’ e ‘sexualidade’, como categorias de fato
completamente distintas, que nunca deveriam ser misturadas” (PHILO, 2011,
p. 124). Foucault passou a discutir a sexualidade infantil e questões
espinhosas, tais como o consentimento e a habilidade das crianças para
entender e explicar a sua própria sexualidade.
Philo, em seguida, se interroga sobre os limites das geografias das
crianças, a abordagem “centrada na criança”, que normalmente se esforça em
tornar as experiências das crianças evidentes, mas pode fugir envergonhada
de fazê-lo aqui.
Ele também se pergunta por que ainda há melindres sobre
“pesquisas acadêmicas que unem as categorias de crianças e sexualidade”
(Ibid., p. 125), concluindo que “é talvez surpreendente quão pouco fluxo tem
havido entre os dois subcampos das geografias das crianças e das geografias
de sexualidades [...] também que mais não tenha sido dito sobre as
geografias da pedofilia” e que “permaneça certa relutância em [perguntar] a

19
fronteira entre ‘infância’ e ‘sexualidade’, ainda mais quando surge o assunto
de encontros sexuais além da divisa adulto-criança” (Ibid., p. 126; ele
reconhece o trabalho pioneiro de Julia Cream, 1993). Claramente, um
poderoso tabu permanece aqui. Como Ken Plummer (2010) escreve: “a
teoria queer parece ter ignorado ‘relações pedófilas’ [...] eles apenas
desconcertaram a cena um pouco e ficaram bem longe da mais estigmatizada
de todas as sexualidades”, admitindo sua própria cumplicidade nisto (que ele
confessa ter sido “profundamente covarde”, Ibid., p. 169.). Isso não quer
dizer que a criança esteja ausente da teoria queer, é claro, ou na forma de
criança “proto-queer” em trabalhos, como Tendencies de Eve Sedgwick
(1994; para criticas, ver LESNIK-OBERSTEIN e THOMSON, 2002), ou,
mais recentemente, em No Future, de Lee Edelman (2005), onde, em “The
Child”, a criança simboliza o futuro e é mantida em oposição aos sem futuro,
antirreprodutivos, autodestrutivos, mas aqui a criança é assexuada, até
mesmo antissexual  como Matt Sothern (2007) escreve, esta criança limpa a
sujeira do sexo (hetero), ao reconectá-lo à reprodução e tornando a questão
pura e inocente (ver também BINNIE e KLESSE, 2011, para uma
esclarecedora discussão das diferentes figurações da “criança queer”).
Mesmo assim, a fronteira que Foucault viu se solidificando permanece firme
no lugar. Eu vejo o combate a esta fronteira  ou ao menos seu
reconhecimento  como um grande desafio que as geografias de sexualidades
ainda têm de enfrentar, apesar de sua entusiasta adesão à “diferença” e a
(sub)culturas sexuais, e também apesar de sua entusiasta despatologização e
de-demonização das “perversões”.
Neste artigo, eu procurei tanto rememorar como perscrutar: eu me
interesso em saber como a história das geografias de sexualidades é narrada,
e o que está em jogo nesse relato. Como disse anteriormente, é uma
experiência ambivalente ler a história da qual você mesmo faz parte. Minha
tarefa aqui não foi ser corretivo; em vez disso, meu interesse é na forma que
a história toma como ela é contada. Esta é uma história de identidade
disciplinar, de genealogia, ordenada como “desenvolvimento” ou
“progresso”, na qual a geografia se abre para o estudo das sexualidades e,
como resultado, se transforma para melhor. Mas acho que uma história mais
complicada emerge quando nós prestamos atenção em como olhamos para
trás. Este é um projeto inacabado que eu espero que abra espaço para
discussão sobre nossos investimentos nas histórias que contamos. É, em
parte, uma história sobre gerações  sobre como “o presente não é
simplesmente o presente: é um composto de assombração do passado, de
vidas se movendo e sedimentos deixados para trás” (PLUMMER, 2010, p.
176), bem como de futuros imaginados ou não. E ao olhar para frente,
identifiquei os trabalhos sobre ecologias queer como locais produtivos de
investigações neste momento, e assim, poderia até mesmo ter o potencial

19
transgressivo à geografia queer para romper a divisão humana/física que nos
impede de termos algumas conversas interessantes.
Dada a ambivalência da disciplina sobre este binário em particular,
parece especialmente produtivo tentar transgredir a divisa. Finalmente, eu
considerei um tema que parece continuar a promover respostas cheias de
melindre: a interação entre as geografias das crianças e as geografias de
sexualidades. O que isto nos diz, eu penso ser uma outra história sobre a
disciplina; torna-se o “caso limite” que ajusta as considerações triunfalistas
das infinidades de geografias sexuais e o tom autoelogioso do balanço em
relação à forma com que a disciplina lida com “corpos, força, sexualidade, o
erótico, amor, desejo, dor, prazer e geografia”  apontando os lugares que
permanecem fora do mapa.

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19
EPISTEMOLOGIAS TRANSNACIONAIS
DA GEOGRAFIA DAS SEXUALIDADES

Jon Binnie

Introdução

Neste artigo, eu quero pensar sobre o papel da nação e do


transnacionalismo dentro das geografias das sexualidades. Ao fazê-lo eu
quero refletir sobre o paroquialismo em dois contextos específicos: primeiro,
em relação às geografias das sexualidades anglo-americanas, isto é, a
extensão das geografias das sexualidades anglo-americanas é paroquial, com
uma teoria universalizante baseada em uma estreita faixa de localizações
geográficas (e perspectivas teóricas), e, segundo, o tratamento de estudos
queer e da sexualidade no trabalho geográfico sobre sexualidades, ou seja, a
marginalização do trabalho geográfico nos estudos queer e da sexualidade.
Ao refletir sobre o primeiro, desejo refletir sobre algumas intervenções
anteriores a respeito da localização das geografias de sexualidades, e sobre o
último, desejo refletir sobre como nós, como geógrafos, podemos melhorar a
nossa contribuição para os estudos queer e de sexualidade. Os geógrafos
estão cada vez mais preocupados (e enfrentam pressão institucional) em
chegar além do meio acadêmico para fazer um trabalho participativo e se
conectar com as comunidades fora da universidade. Neste contexto, a
preocupação em narrar a história do desenvolvimento das geografias das
sexualidades pode parecer um pouco paroquial. No entanto, eu acredito que
é importante compreender os contextos filosóficos, políticos, econômicos e

19
institucionais que regem as geografias das sexualidades, e como isso pode
evoluir. Essas observações são muito enraizadas na minha localização dentro
da universidade britânica, mas também da perspectiva de alguém que tem
feito um trabalho comparativo transnacional sobre a cidadania sexual na
Europa (BINNIE, 1997a) e trabalhou no projeto transnacional comum e
coletivo sobre a política de localização das geografias de sexualidades
(BINNIE, LONGHURST e PEACE, 2001) e em redes ativistas
transnacionais (BINNIE e KLESSE, 2011).

A institucionalização das geografias das sexualidades

Geógrafos da sexualidade têm procurado reivindicar um lugar no


quadro da Geografia acadêmica e, até certo ponto, as geografias das
sexualidades se tornaram institucionalizadas dentro da geografia anglo-
americana. Por exemplo, vimos a fundação do Sexuality and Space
Speciality Group, da Associação de Geógrafos Americanos, e do Space,
Sexualities and Queer Research Group, da Royal Geographical Society. A
institucionalização é uma coisa boa em termos de recursos: ser reconhecido e
estar empregado. Significa que no currículo da Geografia anglo-americana
Social e Cultural é difícil ignorar a sexualidade (embora não se possa dizer o
mesmo da Geografia Econômica e Política, em que a sexualidade continua a
ser marginal). Mas as geografias das sexualidades representam muito mais
do que simplesmente um outro tópico a ser incorporado ao currículo e regras
da Geografia. Anoop Nayak e Alex Jeffrey (2011, p. 168) argumentam que:
“a geografia das sexualidades não é apenas um assunto que os geógrafos
estudam: ela desafia as próprias práticas, suposições e constitui a Geografia
acadêmica”. Talvez esta seja a própria natureza desse desafio que exige
deliberação e reflexão, especialmente por aqueles que têm procurado
desafiar a “linearidade” da Geografia desde o início dos anos 90.
Apesar do grande volume de trabalhos produzidos hoje em dia sobre
as geografias das sexualidades, a disciplina da Geografia permanece
nitidamente marginal nos estudos queer e de sexualidade. Embora uma série
de questões e problemas que podemos considerar geográficos, como nação,
transnacionalismo, cidades, geopolítica, migração, turismo e viagens, esteja
à frente dos debates nos estudos queer e de sexualidade, o trabalho de
geógrafos sobre estes temas é raramente citado ou destacado nessas
discussões. Por exemplo, em sua discussão sobre “temporalidade queer e
geografias pós-modernas” em seu livro In a queer time and place, Judith
Halberstam (2005, p. 12-13) sugere que “A literatura sobre sexualidade e
espaço está crescendo rapidamente, mas ela tende a se focar em homens

19
gays, e ela é muitas vezes comparativa apenas na medida em que toma
comunidades sexuais gays de homens brancos como um modelo altamente
evoluído que outras culturas sexuais buscam imitar e reproduzir”. Mesmo
Halberstam sendo cética quanto ao trabalho sobre sexualidade e espaço ser
dominado por um foco em homens gays, ela deixa de citar ou reconhecer o
trabalho geográfico nas geografias lésbicas, por exemplo, de Gill Valentine,
Lynda Johnston e Linda Peake. No entanto, a discussão de Halberstam sobre
os geógrafos pós-modernos se refere ao trabalho de David Harvey e Ed Soja.
Em resposta a tais práticas de marginalização das geografias das
sexualidades nos estudos queer e de sexualidade, argumento que precisamos
mais e mais de profundas avaliações sobre o desenvolvimento da geografia
das sexualidades para dar-lhe alguma solidez, substância, profundidade e
torná-la visível. Não está claro para mim o que é distintivo da geografia da
sexualidade em relação à história ou antropologia da sexualidade.
Uma das características próprias do trabalho sobre sexualidade e
espaço, talvez devido aos limites relativamente permeáveis da geografia, tem
sido o fato de que estudiosos não-geógrafos da sexualidade como Davina
Cooper, Jasbir Puar e Carl Stychin têm publicado em revistas geográficas. A
pioneira coleção Mapping Desire: Geographies of Sexualities incluiu
capítulos de não-geógrafos, como Greg Woods, Angie Hart e Sally Munt.
No início dos anos 90, geógrafos das sexualidades, muitas vezes se sentindo
isolados dentro da disciplina, procuraram olhar para fora, para outras
disciplinas, em busca de inspiração e apoio, e a interdisciplinaridade foi
necessária diante da resistência institucional da Geografia à sexualidade, o
que autores como Bob McNee (1984), David Bell (1995) e eu próprio (1997)
documentamos. Com o objetivo de compreender como e por que o trabalho
geográfico sobre a sexualidade abriu caminho em meados da década de 90
no Reino Unido, precisamos reconhecer as mudanças nas universidades
britânicas e a maneira como o financiamento de pesquisas foi estruturado no
ensino superior britânico naquela época. A expansão do número de
estudantes na década de 90 indicou que havia mais posições acadêmicas, e a
introdução do RAE (Research Assessment Exercise) mostrou que a pesquisa
era medida por critérios transparentes e objetivos. Sugeriu-se que a RAE
tenha sido prejudicial em termos de acelerar a produção acadêmica; na
negligência do ensino; na distorção na organização dos resultados da
investigação  o aumento da pressão levando a uma fragmentação na
publicação dos textos; no acesso restrito privilegiado a uma hierarquia de
revistas reconhecidas como de classe mundial. Isso faz parte da
neoliberalização da universidade, que também tem uma política sexual e de
gênero (MORRISH e SAUNTSON, 2010). Esta neoliberalização das
universidades também significou que, em termos de geografias de
sexualidades, os pesquisadores viram uma oportunidade para garantir

19
posições dentro das universidades, as quais, como empregadores
pragmáticos, reconheceram o valor econômico dos pesquisadores das
sexualidades na medida em que esta área tornou-se muito próspera em
publicações, particularmente dentro do rol das revistas de referências
internacionais de alto nível, tais como Society and Space. Porém, para
competir por status e posições com pesquisadores em outras partes da
disciplina, é preciso publicar ainda mais extensivamente e com mais
frequência nas revistas de Geografia anglo-americana de alto nível. Também
é necessário demonstrar interesses de pesquisa “mais amplos”, que não
sejam “meramente queer”, parafraseando a crítica de Judith Butler (1997) a
Nancy Fraser (1995) no tocante ao enquadramento da estrutura da política
sexual como exemplo da política de reconhecimento em oposição à política
de redistribuição. A neoliberalização do ensino superior no Reino Unido
também significou que ele está cada vez mais se tornando um privilégio dos
filhos dos ricos. Isto significa que, para a classe trabalhadora queer, as
chances de obter acesso aos espaços acadêmicos estão diminuindo.

Contestando as geografias das sexualidades

Como qualquer estudante de cidadania sabe, a inclusão no regime


gera exclusões. Então, precisamos pensar sobre o que foi excluído das
geografias contemporâneas das sexualidades, visto que ela se tornou
institucionalizada dentro da Geografia anglo-americana. Richard Phillips
(2006a, p. 163) critica o foco estreito das geografias das sexualidades em
homens gays metropolitanos: “Ao se tornarem tão preocupadas com os
homossexuais em cidades ocidentais, as pesquisas na área geraram uma
imagem duplamente limitada das geografias sexuais”. Esta crítica do suposto
foco excessivo na sexualidade gay ressoa na discussão de Natalie Oswin a
respeito daquilo que ela vê como as limitações das geografias queer. Isto é
algumas vezes visto como uma caricatura descontextualizada e,
decididamente, pouco generosa do trabalho sobre geografias queer. Oswin
(2008) argumenta que as geografias queer em grande parte omitiram e
negligenciaram a política de raça (e classe) e que elas têm sido simplistas em
seus enquadramentos supostamente liberais do queer, negligenciando outras
formas de diferença, incluindo o material. Isto soa como um eco da
discussão anterior sobre queer de Jasbir Puar (2002, p. 944), em que ela
argumenta que “o potencial crescente do queer é absolutamente contingente
na teorização interseccional de raça, etnia, classe e gênero com o queer, e
através dele”.

20
Tendo em conta os argumentos de Phillips e Oswin, é importante se
opor às narrativas evolucionárias comemorativas das geografias das
sexualidades. Isto é particularmente verdade quando se busca refletir através
das diferenças nacionais e transnacionais das geografias das sexualidades.
Apesar do trabalho sob as perspectivas queer a respeito de gênero e
identidades de gênero (BELL et al., 1994.), o trabalho sobre transgêneros e
gênero queer tem sido um pouco esparso dentro das geografias de
sexualidades (todavia, ver NAMASTE, 1996; DOAN, 2007). Precisamos
entender como essas exclusões acontecem, ou como alguns trabalhos
pioneiros anteriores sobre estas questões ficaram esquecidos, e precisam ser
redescobertos ou reinventados. Por exemplo, o trabalho de David Bell
(1994) sobre a bissexualidade é omitido da crítica de Natalie Oswin (2008)
sobre a negligência da bissexualidade e transgêneros na geografia queer.
Nos últimos anos tem havido uma avalanche de reflexões sobre as
noções de temporalidade queer (LOVE, 2007; EDELMAN, 2004;
FREEMAN, 2010; MUÑOZ, 2009). Esses trabalhos apresentaram insights
sobre a relação entre queer e tempo  tais como noções de crescer. Parece-
me que precisamos de um projeto para as geografias das sexualidades que se
concentre nas ‘espacialidades queer’, e precisamos pensar de forma mais
substancial, extensiva e rigorosa com a gramática espacial da teoria queer.
Em que sentido os geógrafos podem contribuir com o queer, ou, talvez, com
a espacialização do queer? Para responder a esta questão, eu defendo uma
epistemologia transnacional das geografias das sexualidades.

Epistemologias transnacionais das geografias das sexualidades

Derek Conradson e Alan Latham (2005, p. 227-233) argumentam


que: “o transnacionalismo nos permite considerar o que significa viver em
um mundo interconectado e topologicamente complexo sem recorrer a
narrativas excessivamente abstratas ou imponentes de transnacionais globais
para descrever essa conectividade”. Certamente, houve exemplos de
investigações para além da nação  por exemplo, o trabalho de Gill Valentine
e Robert Vanderbeck sobre a sexualidade e as redes globais de fé
(juntamente com Joanna Sadgrove, Kevin Ward e Johan Andersson)
(ANDERSSON et al., 2011; VANDERBECK et al., 2011). No entanto,
outros autores argumentaram que às vezes há problemas com relação às
maneiras como o “reino” queer transnacional é enquadrado de uma forma
etnocêntrica dentro do meio acadêmico dos EUA (ver, por exemplo,
BACCHETTA, 2002). Refletir sobre as geografias das sexualidades em um

20
contexto comparativo nacional é importante para entender como diferentes
geografias das sexualidades foram produzidas em contextos específicos. A
nação realmente importa no processo de institucionalização e prática das
geografias das sexualidades. Por exemplo, comentando sobre o que
entendem como a localização paradoxal da Nova Zelândia, Lynda Johnston e
Robyn Longhurst (2010. p. 158) observam que elas são parte integrante e
contribuem para as geografias anglo-americanas. “A maioria de nós pensa e
escreve em inglês e também publica principalmente em revistas e livros
anglo-americanos. Por outro lado, os geógrafos na Nova Zelândia tendem a
dar atenção a questões “de baixo”, tais como colonização, subjetividades e
espaço rural, e geografias Maori” (JOHNSTON e LONGHURST, 2010, p.
158).
São esses temas “de baixo”, como a colonização, que têm obtido
relevância nas discussões das geografias sexuais em relação à política sexual
do imperialismo (LEGG, 2007; PHILLIPS, 2006a, 2006b, 2007). Jan Monk
(1994) argumentou que as diferenças nacionais no desenvolvimento da
geografia feminista, embora importantes, foram pouco abordadas de forma
sistemática. Diferenças nacionais são importantes, e nós precisamos
constantemente desenvolver novas linguagens teóricas para compreender as
relações entre nacionalismos e sexualidades.

Laços queer de comparação

Precisamos reconhecer as diferenças nacionais na pesquisa e prática


das geografias das sexualidades, sem reificá-las. Por exemplo, Robert Kulpa
criticou o conceito de “homonacionacionalismo” (conceito que associa as
ideias de homossexualidade, nação e nacionalismo) de Jasbir Puar (2005),
que se baseia nos EUA e na Guerra contra o Terror, e a forma como algumas
organizações gays e lésbicas conservadoras e tradicionais foram cooptadas
em uma lógica de homofobia muçulmana, para promover um projeto
nacionalista neoimperial da Guerra contra o Terror encetada pelos EUA.
Embora este conceito de homonacionacionalismo tenha sido extremamente
importante na geração de bolsas para estudos queer sobre raça, geopolítica e
cidadania (HARITAWORN, ERDEM e TAUQIR, 2008), outros estudiosos
questionaram a aplicabilidade ou utilidade política deste conceito em outros
contextos geopolíticos. Precisamos de uma pluralização dos discursos e
linguagens teóricas sobre como nós discutimos as relações entre
nacionalismos e sexualidades, como Andrew Parker et al. (1992, p. 3)
argumentam: “não há narrativa privilegiada da nação, não há ‘nacionalismo
em geral’, de tal forma que qualquer modelo único possa ser considerado

20
adequado à sua miríade de contraditórias formas históricas”. Devemos
reconhecer a importância dos diferentes contextos nacionais e locais quando
conceituamos as relações entre nacionalismos e sexualidades. Por exemplo,
ao discutir o trabalho de Agnieszka Graff sobre o nacionalismo na Polônia,
onde os queer são realmente os Outros dentro das narrativas nacionalistas, e
patologizados como não-poloneses, Robert Kulpa (2011, p. 56) argumenta
que Graff “insiste que na Polônia (e falando nisso, talvez em outros países da
CEE46)  onde ideias nacionalistas xenófobas parecem ocupar uma esfera
cultural pré-eminente – o resgate do patriotismo (o amor ao país) pode muito
bem ser a melhor estratégia, de uma maneira geral. Ela insiste que as pessoas
gays e lésbicas não devem desistir de suas reivindicações de ‘amor nacional’
e deixar esta poderosa forma de imaginação/identificação social para ab/uso
dos populistas e xenófobos”. No entanto, não basta reconhecer as diferenças
nacionais na produção de conhecimento geográfico sobre sexualidades.
Também temos que reconhecer e desafiar as relações assimétricas de poder
no ato da comparação, na prática das geografias das sexualidades.
Precisamos problematizar as narrativas de progresso linear nas geografias
das sexualidades e não devemos imaginar que, só porque as geografias das
sexualidades anglo-americanas têm dominado o campo até esta data,
trabalhos mais inovadores e desafiadores não possam vir de outro lugar, por
exemplo, de locais e contextos onde as relações entre sexualidades,
intimidades, corpos e espaços possam ser imaginados de maneira diferente,
para além dos locais que até agora têm dominado as geografias das
sexualidades.
Jennifer Robinson (2011) argumenta que há uma tendência para que
a produção de conhecimento não-ocidental seja ignorada ou omitida dentro
da teoria urbana, que tende a ver as suas próprias localizações geográficas
como tendo aplicabilidade universal. Para contrapor esta tendência, devemos
nos esforçar para conduzir um trabalho que seja comparativo, com mais
projetos comuns e colaborativos, para além das fronteiras nacionais. Esse
trabalho tem que interrogar as identidades e fronteiras nacionais, e as
maneiras pelas quais elas são sexualizadas. A releitura da introdução que eu
co-escrevi a um livro de ensaios que examinam a relação entre os corpos,
cidades e espaços (BINNIE, LONGHURST e PEACE, 2001) me fez refletir
sobre os laços queer forjados por meio de projetos comuns e coletivos para
superar o isolamento e a marginalização institucional que nós sentíamos tão
46
Sigla para “Central and Eastern Europe”, que diz respeito a ex-países comunistas na Europa
depois do colapso da cortina de ferro em 1980-1990. Interessante referência nesse sentido é
MIZIELINSKA, Joanna; KULPA, Robert. ‘Contemporary peripheries’: queer studies,
circulation of knowledge and East/West divide. In: KULPA, Robert; MIZIELINSKA, Joanna
(Ed.). De-Centring Western Sexualities: Central and Eastern European Perspectives. Farnham:
Ashgate, 2011, p. 11-26.

20
intensamente naquele tempo. Ao forjar esses laços queer, precisamos
reconhecer as conquistas e as limitações das geografias das sexualidades,
bem como as relações de poder que constituem e são reproduzidas tanto
dentro das geografias das sexualidades como nas narrativas do seu
desenvolvimento.

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20
TERRITÓRIO DESCONTÍNUO E PROSTITUIÇÃO TRAVESTI
NO SUL DO BRASIL

Marcio Jose Ornat

Palavras iniciais

O objetivo desta reflexão é evidenciar como a prostituição travesti


no sul do Brasil se realiza por meio da instituição de territórios descontínuos
que, por sua vez, constituem a identidade do ser travesti. O termo travesti,
conforme propõe Peres (2005 e 2007), define pessoas que se identificam
com imagens e estilos de vida femininos, desejando apropriar-se de
elementos que constituem feminilidades, e assim, realizam transformações
corporais para atingir o ideal almejado. A exploração do campo de pesquisa
ocorreu entre maio de 2008 e dezembro de 2010; foram realizadas vinte e
duas entrevistas com travestis e cafetinas 47 que retiram seu sustento da
atividade de prostituição. Além disso, foram ainda feitas sete entrevistas com
Organizações Não Governamentais 48 que possuem relação com o grupo
investigado. Todas as entrevistas foram transcritas e analisadas por meio da
análise do conteúdo dos discursos como proposto por Bardin (1977). Os
resultados da pesquisa são apresentados em duas partes. Na primeira, são
levantados os elementos constituintes da existência travesti que colocam os
limites teóricos existentes na Geografia Brasileira para a sua compreensão.
Na segunda seção do texto são evidenciados os fatores que possibilitam a

47
Dezenove entrevistas feitas no Brasil e três na Espanha. Estas últimas foram realizadas pela
pesquisadora Joseli Maria Silva, em 2008, e fazem parte do acervo documental do Grupo de
Estudos Territoriais (GETE).
48
ONGs com sedes em Curitiba (PR), Florianópolis (SC), Joinville (SC), Ponta Grossa (PR),
Porto Alegre (RS) e Sapiranga (RS).

20
instituição dos territórios descontínuos que forjam a existência travesti no sul
do Brasil, como: as motivações de deslocamento entre cidades,
características espaciais de conectividade, estratégias de deslocamento,
atividades referentes à prostituição e o controle dos territórios.

Território e existência travesti

Como toda vivência humana, as travestis têm uma existência


espacial que é constantemente rememorada pela imbricação entre espaço e
elementos identitários, fortemente vinculada, no Brasil, à prática da
prostituição. Apesar dos avanços dos direitos cidadãos, conquistados na
sociedade brasileira nos últimos anos, as travestis, em sua grande maioria,
retiram seu sustento da atividade comercial sexual. Essa atividade tem sido
possibilitada pelo processo de apropriação de espaços, que se faz por meio
de uma mediação estratégica entre sujeitos e estruturas espaciais.
A apropriação do espaço por meio de estratégias de sujeitos tem sido
tratada pela ciência geográfica como constituindo territórios, e esse conceito,
rico em possibilidades de compreensão da relação entre espaço, poder e
sujeitos, possui uma longa trajetória de proposições (RATZEL, 1990;
GOTTMANN, 1973; SACK, 1986; RAFFESTIN, 1993). Souza (1995) e
Wastl-Walter e Staeheli (2004), ao desenvolverem seus argumentos em torno
do conceito de território, trazem a perspectiva de que um espaço apropriado
por um grupo, tornado território, se faz por meio do estabelecimento de
fronteiras, as quais são mantidas mediante relações de força. Esses
elementos definidores do território (espaço apropriado, fronteira e poder)
trazem a ideia de que o território não pode ser reduzido à noção de fixidez e
inércia. Nesse sentido, a compreensão do território contempla práticas
sociais vinculadas com o estabelecimento de diferenças entre as pessoas,
sendo formas de imposição de ideias a indivíduos e atividades, ou, como
afirma Souza (1995), relacionando-se a quem manda e influencia em
determinadas espacialidades, e a como o faz.
Os argumentos apresentados anteriormente (WASTL-WALTER e
STAEHELI, 2004; SOUZA, 1995) possibilitam a aproximação da análise da
prostituição travesti, já que esta se pauta por elementos de poder, de
apropriação espacial e estabelecimento de diferenças entre grupos que se
configuram em fronteiras entre ‘eu’ e ‘outros’. Contudo, essas proposições
foram limitantes no que diz respeito ao fato de que a prostituição travesti,
foco deste texto, apresenta uma multiplicidade de vivências que se
conformam escalarmente e, além disso, a cada escala de análise os sujeitos

20
se reposicionam em seus feixes de relações de poder, configurando
territórios fluidos, dinâmicos e relacionais.
A compreensão das relações dinâmicas foi amplamente discutida por
Rose (1993) ao tratar do espaço paradoxal. Para ela, os sujeitos não ocupam
posições fixas nas relações de poder, em uma configuração oposicional
envolvendo subordinado e subordinador, ou ainda, insider e outsider, mas
eles estabelecem configurações móveis, nas quais podem estar
simultaneamente nas margens das relações de poder e também no centro,
dependendo da escala e do foco de análise. O espaço, assim, é elemento
fundamental na análise de posicionamentos de sujeitos dos feixes de tensão
das relações de poder, Assim, Rose (1993) constrói um distinto sentido de
espaço, que é multidimensional, contingente e em movimento e paradoxal.
As proposições de Rose (1993) possibilitam a visualização de
resistências que constroem as configurações espaciais dinâmicas, em
constante processo de transformação. É nesse sentido que ela afirma a
impossibilidade de conceber o espaço como fixo, passível de ser mapeado
em sua forma horizontal e de simples oposição de sujeitos de forma
bipolarizada. Para ela, o espaço se faz pela multiplicidade de dimensões em
que os sujeitos simultaneamente instituem, pelas relações de poder
tensionadas, variadas possibilidades espaciais.
A vivência cotidiana das travestis em atividade de prostituição,
compreendida por meio das propostas teóricas de Rose (1993), pode
evidenciar que elas não estão apenas nas margens, mas encontram fissuras e
manifestam seu poder, subvertendo a lógica da simples exclusão ou
subordinação social. Além dessa possibilidade de análise a partir de Rose
(1993), há ainda outro elemento a ser considerado, que é a imbricação que o
fenômeno da prostituição travesti faz com várias escalas espaciais. Ao
discutir a imbricação das escalas espaciais em relação aos fenômenos, Souza
(1995, p. 93) propõe a ideia de território descontínuo, que, segundo ele, é
“uma rede que articula dois ou mais territórios contínuos”.
Nesse sentido, a associação entre Rose (1993) e Souza (1995)
possibilita uma interessante compreensão da prostituição travesti no sul do
Brasil, aqui denominado território descontínuo paradoxal. As falas das
pessoas entrevistadas evidenciam que a prostituição travesti se realiza por
intermédio de pontos de escalas geográficas de atuação, formadas por
paradoxos de centro e margem de relações de poder. A instituição do
território descontínuo paradoxal se faz por meio de vários elementos, que
serão tratados em seguida, como: fatores motivacionais de deslocamento,
fatores espaciais de conectividade, estratégias de deslocamento e,
finalmente, os elementos que constituem a atividade da prostituição e as
práticas de controle dos territórios.

20
Os elementos instituintes do território descontínuo paradoxal
da prostituição travesti no sul do Brasil

A conformação da atividade da prostituição travesti articula a escala


intraurbana com as relações que se estabelecem entre municípios e até
mesmo com a escala internacional. A cada escala alçada por uma travesti,
por meio da articulação de vários elementos, pode-se verificar o
reposicionamento dos sujeitos nas relações de poder e, consequentemente,
nos territórios instituídos.
O discurso das pessoas entrevistadas foi organizado segundo
interpretação de redes semânticas, agrupadas em cinco categorias 49 , como
segue: fatores motivacionais de deslocamento (17,4% das evocações),
fatores espaciais de conectividade (23,4%), estratégias de deslocamento
(17,1%), prostituição (20,5%) e controle do território (15%).

Motivações de deslocamento entre cidades

O eixo discursivo reunido em torno das motivações de deslocamento


foi constituído pelas evocações relacionadas com motivos financeiros,
manutenção da novidade, transformação do corpo, fuga de determinadas
espacialidades e a busca de ampliação de relacionamentos como pode ser
visualizado no gráfico abaixo:

49
O sexto grupo de evocações, com menor intensidade (6,6% do total), relaciona-se com as
seguintes categorias: relação travestis; relações policiais; relação clientes; relação com o
outro; relação com companheiro; relação com ONGs; transformação do corpo; relação
cafetina; sentimento de diferença; e sentimento de frustração.

21
Espacialidade Território Descontínuo

Fatores Motivacionais de Deslocamento (%)

Conexão com outras atividades 1,52%

Transformação do corpo devido a melhora financeira 12,12%


Desrespeito da 'con veniência' 3,03%
Rejeição familiar 4,55%

Fuga de espacialid ades 12,12%


Motivos financeiros 33,33%
Motivos financeiros e ampliação de conhecimento 6,06%

Relação entre deslo camento e manutenção da 'novidade' 21,21%


Ampliação de conh ecimento e relacionamentos 6,06%

Gráfico 1  Entrevistas realizadas entre maio de 2008 e dezembro de


2010.

(No Gráfico 1, acima, devem ser feitas as seguintes modificações: 1.


No título, tirar a inicial maiúscula da segunda e terceira palavras:
“Espacialidade território descontínuo”; 2. A mesma coisa com relação ao
subtítulo: “Fatores motivaconais de deslocamento”; 3. os “fatores”, que vêm
a seguir, com uma letra menor, estão meio amontoados, acavalados ou muito
próximos uns dos outros ou da imagem, de modo que é preciso dar uma
ajeitada)

Uma das maiores motivações para o deslocamento diz respeito ao


aumento de rendimentos, ensejado por dois elementos fundamentais,
também presentes no discurso das travestis. Um deles é a necessidade de
manter a sensação de novidade, tanto corpórea como de habilidades sexuais
para os clientes de determinada área. Pile (1996) argumenta que o corpo é
um lugar de intensa articulação entre relações de poder, aversão e desejo,
que se fazem e desfazem por meio da vivência espacial. As travestis
desenvolvem estratégias espaciais a fim de conseguir tirar proveito do fato
de os clientes da prostituição buscarem o inusitado e o desconhecido para
viver suas fantasias sexuais. Como afirma Binnie (2001), o espaço da cidade
cria constantemente essas várias possibilidades eróticas.
Á medida que a travesti e seus serviços tornam-se rotina, os
rendimentos começam a diminuir, e isso as leva a buscar outras cidades,
inclusive mediante a intermediação entre cafetinas. As travestis utilizam-se
do conhecimento de várias cafetinas, localizadas em diferentes cidades, para

211
acelerar sua rotatividade entre as cidades e, consequentemente, melhorar
seus rendimentos. Isso porque elas estabelecem relações espaciais
conformadas pelo desejo e pela fantasia em torno da exploração de novas
corporeidades, para utilizar a ideia de Rose (1999). Os deslocamentos
espaciais entre cidades aumentam os rendimentos, atraem clientes sexuais e
também carregam o imaginário do êxito, já que, quanto mais uma travesti
percorre diferentes cidades, inclusive em outros estados e países, ela se torna
símbolo de glamour e sucesso entre as outras.
As possibilidades de deslocamento entre cidades, que resultam em
atração de clientes e ganhos financeiros, só são viabilizadas por meio do
acesso à rede de cafetinas. Assim, quanto mais relações uma travesti
estabelece com diferentes cafetinas, mais facilmente ela se desloca entre
vários locais. Por outro lado, quanto mais uma travesti é requisitada, mais
lucro a cafetina obtém. É nesse sentido que se cria uma forte dinâmica de
conexão entre vários pontos, em diferentes espacialidades, e a
interdependência entre travesti e cafetina, bem como entre cafetinas.
Outra forte evocação relacionada à categoria de motivações de
deslocamento é a possibilidade de transformação do corpo biologicamente
masculino para o feminino, por meio da aquisição de técnicas de intervenção
física, desde a ingestão de hormônios, a utilização de silicone industrial e
cirurgias plásticas. Assim, as transformações do corpo são possíveis por
meio do sucesso financeiro, e o aumento de rendimentos se faz no processo
de rotatividade.
A noção de “fuga de espacialidades” foi composta pelas falas que
destacam a rejeição e o preconceito que as travestis sofrem ao longo de sua
existência. Buscar novos locais é uma forma de evitar o agravamento de
conflitos e de manter a esperança de novos relacionamentos. A ampliação
das redes de relacionamentos pessoais, última categoria de evocações que
compõem o eixo discursivo sobre fatores motivacionais de deslocamento, é
fundamental para uma travesti, já que a atividade de prostituição se sustenta
em redes de pessoalidade, as quais, por sua vez, ampliam os meios de
rotatividade entre as cidades, o que propicia um aumento de rendimentos.

Características espaciais de conectividade

As travestis elegem determinadas localizações para estabelecer seus


deslocamentos, em função das características espaciais que elas são capazes
de manipular. Uma importante categoria que aparece no discurso das
travestis, compondo o território descontínuo, refere-se às características
espaciais de conectividade. Elas apontam como elementos importantes a

21
relação com cafetinagem, ajuda de travestis, relação entre militância e
cafetinagem, relação entre ONGs, repressão policial e cafetinagem, ajuda de
travestis e cafetinas e as cidades industriais. Interessante observar que o bom
relacionamento familiar que elas podem desenvolver evita a busca de
deslocamento e, portanto, isso funciona como um fator negativo de
conectividade espacial. O gráfico que segue evidencia o peso dos elementos
que compõem os fatores de conectividade elencados pelas travestis.

Gráfico 2  Fonte: Entrevistas realizadas entre maio de 2008 e dezembro de 2010.

Espacialidade Território Descontínuo

Fatores Espaciais de Conectividade (%)


Cidade industrial 1,14% Ajuda cafetinagem e travestis 1,14%
Repressão policial e cafetinagem 1,14%

Boa relação família – não con ectividade 2,27%


Relação entre Ongs 4,55%
Relação entre militância e cafetinag em 7,95%

Ajuda de travestis 13,64%


Cafetinagem 68,18%

(No Gráfico 2, acima, devem ser feitas as seguintes modificações: 1.


No título, tirar a inicial maiúscula da segunda e terceira palavras:
“Espacialidade território descontínuo”; 2. A mesma coisa com relação ao
subtítulo: “Fatores espaciais de concetividade”; 3. os “fatores”, que vêm a
seguir, com uma letra menor, estão meio amontoados, acavalados ou muito
próximos uns dos outros ou da imagem, de modo que é preciso dar uma
ajeitada; 4. na sigla “Ongs”, as primeiras três letras devem ser em caixa alta:
“ONGs” )

A relação entre travesti e cafetina é o mais forte elemento da


conectividade espacial, como mostra o gráfico. As travestis devem dominar
os códigos morais do grupo, já que as cafetinas possuem uma rede
extremamente eficiente de comunicação entre elas, além de disputarem entre
si. Por outro lado, as cafetinas vivem da exploração do trabalho sexual das
travestis, mas suas relações ultrapassam a fronteira puramente econômica, e
as travestis são consideradas, muitas vezes, como suas protegidas, isto é,
aquelas que ajudam e acolhem. Assim, a relação cafetina/travesti é paradoxal
no sentido de que, ao mesmo tempo em que a exploração acontece, muitas

21
vezes permeada pela violência física, há afetos positivos entre elas. Em
geral, as cafetinas de travestis são travestis mais velhas que, com o tempo de
serviço, conseguiram montar uma estrutura espacial de atividade de
prostituição. Assim, há vários elementos de identidade que alimentam a
relação entre elas. A cafetina se projeta na travesti jovem, e esta, por sua vez,
pretende um dia poder exercer a atividade da cafetinagem. A relação entre
cafetina e travesti se estabelece por meio de redes de pessoalidade,
colocando-se como uma estratégia de sobrevivência em uma sociedade que
as impede de usufruir seus direitos cidadãos.
As cafetinas se colocam como proprietárias de pensões que abrigam
travestis, já que a sociedade normalmente as rejeita e as coloca em situação
de marginalidade. Nesse contexto, as cafetinas se constituem em
possibilidade de segurança e proteção em uma sociedade que, conforme
Duncan (1996), tem a tradição de rejeitar os grupos que apresentam, além da
dissonância entre corpo e gênero, um comportamento considerado imoral
pela sociedade.
As várias “pensões” distribuídas por diversas cidades muitas vezes
estabelecem relações entre si pelo estabelecimento das redes de
pessoalidade, e o reconhecimento da “pensão” como local de acolhimento e
proteção ocorre por meio de um longo processo de trabalho de conquista de
confiança entre as travestis no grupo. A confiança, por sua vez, se evidencia
pela capacidade de se valer de influência junto à polícia, pelo domínio de
certos espaços intraurbanos, pela competência no uso da violência, além de
acúmulo financeiro, carisma e respeito dentro do grupo de travestis.
As cafetinas são reconhecidas como pontos fixos e elas constituem o
mais importante fator de conectividade; as relações de amizade entre
travestis constituem o segundo fator mais relevante. Ter uma amiga travesti
em determinada cidade é fundamental para que outra travesti consiga
adentrar o espaço intraurbano e exercer a atividade de prostituição. Assim,
quanto mais amigas uma travesti consegue manter em sua rede de
relacionamentos, mais aumentam suas chances de acessar com facilidade
outras cidades.
Outro fator significativo de conectividade apontado nas falas das
travestis é a militância pelos direitos humanos e a participação em
Organizações Não Governamentais (ONGs). Tendo em vista o fato de que a
grande maioria das travestis trabalha no comércio de serviços sexuais,
quando elas fazem parte de ONGs, mesclam as duas redes de pessoalidade.
Dentro dos movimentos sociais, elas conhecem pessoas que se tornam
elementos que possibilitam o deslocamento e a conectividade entre várias
cidades. Por outro lado, as próprias ONGs necessitam acionar as redes de
pessoalidade estabelecidas na prostituição para reforçar a militância. Assim,
paradoxalmente, prostituição, cafetinagem e movimento social constituem

21
elementos de conectividade espacial que possibilitam deslocamentos e a
manutenção de rendimentos financeiros no comércio sexual. Duas
importantes instituições se destacam na instituição dessas redes: a
Articulação Nacional de Travestis, Transexuais e Transgêneros (ANTRA) e
o Encontro Nacional de Travestis e Transexuais (ENTLAIDS).

Estratégias de deslocamento

As motivações para fazer o deslocamento, associadas com as


características espaciais que fazem com que as travestis elejam determinadas
cidades, levam-nas à criação de estratégias para alcançar as espacialidades
vislumbradas. O Gráfico 3 evidencia que elas recorrem a uma série de
estratégias diferentes para alcançar seus objetivos.

Gráfico 3  Fonte: Entrevistas realizadas entre maio de 2008 e dezembro de 2010.

Espacialidade
Estratégias deTerritório Descontínuo
Deslocamento (%)

Ligação com outra atividade 1,54% Sem ajuda 1,54%

Especifidades de estratégias 6,15%


Auxílio financeiro 6,15%
Auxílio de travestis e cafetinas 9,23%
Auxílio de travestis 44,62%

Auxílio de cafetão – cafetina 13,85%

Conveniência 16,92%

(No Gráfico 3, acima, devem ser feitas as seguintes modificações: 1.


No título, tirar a inicial maiúscula da segunda e terceira palavras:
“Espacialidade território descontínuo”; 2. A mesma coisa com relação ao
subtítulo: “Estratégias de deslocamento”; 3. Substituir “Especifidades” por
“Especificidades”; 4. No segmento “Auxílio de cafetão  cafetina”, substituir
o travessão por uma barra transversal, sem aspaços: “Auxílio de
cafetão/cafetina”; 5. Com relação às estratégias que vêm a seguir, com uma
letra menor, elas estão meio amontoadas, acavaladas ou muito próximos
umas das outras ou da imagem, de modo que é preciso dar uma ajeitada)

21
Tendo em vista que os fatores motivacionais de deslocamento estão
ligados ao aumento de vantagens econômicas e considerando que a
conectividade entre diversas cidades está dominada por redes de
pessoalidade entre cafetinas e outras travestis, uma importante estratégia
para deslocar-se é dominar o conhecimento a respeito de como funcionam as
redes de pessoalidade e os códigos de conveniência que permeiam o grupo.
A inserção em redes de amizade e a utilização de um nome de uma
travesti que conquistou reconhecimento dentro do grupo social são
importantes estratégias para viabilizar deslocamentos entre cidades.
Conhecer uma travesti central nas relações de poder na cidade em que se
pretende entrar é fundamental para exercer a prostituição em determinadas
localidades. Há ainda a estratégia de conseguir a proteção de travestis mais
velhas, ou seja, daquelas que ocupam posições de prestígio nas
espacialidades da prostituição, normalmente chamadas de madrinhas.
Para conquistar as pessoas que se transformam em elementos
estratégicos para deslocamentos e conquista de outras cidades é preciso
conhecer e dominar os códigos de conveniência, conforme aponta Mayol
(1996). A conveniência é um conjunto de normas não escritas, mas
reconhecidas por todas as pessoas que compõem o grupo. As normas
incluem a necessidade de manter amizades e adotar uma a posição de
humildade frente às travestis que dominam os locais que desejam adentrar.
Quando uma travesti corresponde às normas e condutas do grupo,
ela pode utilizar-se das redes de indicações que se estabelecem entre as
“proprietárias de pensões”. Essas indicações das cafetinas abrem ou fecham
portas para as travestis em várias cidades.
As estratégias utilizadas pelas travestis para deslocamento
internacional passam majoritariamente pela intervenção das cafetinas,
enquanto as estratégias de deslocamentos nacionais podem ocorrer pelo
domínio de redes de amizades entre travestis. As indicações positivas de
“donas de pensão” dependem de pagar regularmente a parte que cabe à
cafetina e evitar chamar a atenção da polícia com o uso de drogas ou a
prática de outras ações ilegais.
As estratégias de deslocamento e conquista de outros locais em
escala internacional, como a Europa, são geralmente mediadas pelas redes de
cafetinagem que têm maiores condições de organizar a viagem, preparar os
documentos necessários e prover o dinheiro. A maior conquista para uma
travesti é alçar a escala internacional de prostituição. Isso lhe confere poder e
prestígio junto às outras travestis, bem como a possibilidade de ganho
financeiro em moeda valorizada em relação ao mercado nacional. Assim, as

21
travestis desenvolvem inúmeras estratégias para conquistar espacialidades
lucrativas e de prestígio. Por outro lado, as redes de cafetinas se organizam
para tirar vantagem dessa busca, e assim se estabelece uma relação de
dependência entre elas, o que não é classificado como algo ilegal pelo grupo.
Entretanto, as travestis contraem dívidas enormes, em geral o triplo da soma
de dinheiro investida pelas cafetinas, as quais mantêm as travestis, mesmo
no exterior, sob seu domínio, em função das fortes redes de controle.

Atividades referentes à prostituição

A motivação das travestis para se deslocarem, as características dos


locais que permitem as conexões e as estratégias que elas aprendem a
desenvolver estão imbricadas com o objetivo de exercer, com a melhor
eficiência possível, a atividade de prostituição, que, por sua vez, se
desenvolve por meio da vivência espacial (HOWELL, 2001). As evocações
que estruturam a categoria de prostituição podem ser visualizadas no
gráfico50 abaixo:

Espacialidade Território Descontínuo


Prostituição (%)
Brutalidade da noite 1,28% Relação entre boates e territórios 1,28%

Acesso a um mundo desconhecido 2,56% Fantasia da prostituição 2,56%

Retorno financeiro 5,13%


Relações de cafetinagem 7,69%

Deslocamento entre espacialidades 47,44%


Relação entre travestis 11,54%

Diferenciações de comportamento espacial 20,51%

Gráfico 4  Fonte: Entrevistas realizadas entre maio de 2008 e dezembro de 2010.

(Preciso ter acesso a este gráfico, para saber se tem alguma correção
a fazer. Em último caso, Cláudia, dê uma olhada você, porque você sabe

50
Tendo em vista que os elementos Retorno financeiro, Fantasia da prostituição, Acesso a
um mundo desconhecido, Relação entre boate e territórios e Brutalidade da noite totalizam
em média 0,52% do total de evocações relacionadas ao Território Descontínuo, eles não serão
problematizados.

21
exatamente o que precisa ser feito. Daí, uniformize com os três gráficos
precedentes)

Conforme evidencia o gráfico de intensidade de evocações, a


prostituição travesti está fortemente vinculada com os deslocamentos entre
diferentes cidades. Portanto, a atividade de prostituição travesti possui uma
espacialidade específica. As entrevistas registraram 98 cidades vivenciadas
pelo grupo a partir da atividade da prostituição. Deste total, 26,89%
estiveram relacionadas a cidades localizadas em outros países, como
Argentina, Itália e Espanha. As evocações também apontaram para um
deslocamento realizado para outros países europeus, sem a especificação da
cidade, como Portugal, França, Suíça e Alemanha. Das cidades brasileiras,
66,17% estão localizadas na Região Sul do Brasil. Outra informação de
fundamental importância diz respeito ao fato de que 75,01% destes
deslocamentos que estruturam o território descontínuo paradoxal da
prostituição travesti através da espacialidade do território brasileiro ocorrem
segundo cidades com população de até 490.000 habitantes, o que evidencia
que as grandes cidades brasileiras não são seus alvos preferenciais.
As evocações em torno das diferenciações de comportamento dos
corpos nas mais variadas espacialidades da prostituição referem-se ao tipo de
vestuário e comportamentos durante o trottoir. Entre as evocações que foram
reunidas em torno da categoria “relações entre travestis” no universo da
prostituição aparecem as disputas e concorrências para conquistar os clientes
e obter mais recursos econômicos. Outro elemento estruturante das falas que
trataram da evocação segundo a categoria prostituição diz respeito às
atividades de cafetinagem como elementos estruturantes da prática
comercial sexual. Contudo, se a cafetinagem se coloca na categoria anterior
como estratégia de deslocamento, quando associada à categoria de
prostituição, as cafetinas são recordadas como pontos fundamentais de
controle tanto da rua como da casa, poder de definição de deslocamentos e
avalista de boa conduta segundo normas morais estabelecidas pelo grupo.

Estratégias de controle dos territórios

A prostituição, como evidenciado anteriormente, está fortemente


vinculada a diferentes espacialidades, e o exercício do controle do espaço se
dá pela capacidade estratégica de manipular as redes de pessoalidade que

21
imperam entre as travestis e que promovem as vantagens econômicas dentro
do grupo.
Neste sentido, a busca de apropriação do espaço por relações de
poder institui os territórios, reunindo 15% das evocações dos discursos das
pessoas entrevistadas. Os elementos discursivos relativos ao controle do
território podem ser visualizados no gráfico que segue.

Espacialidade Território Descontínuo


Controle do Território (%)

Inserção segundo amizades 3,51% Relações entre travestis 12,28%


Inserção segundo conquista 7,02%

Controle segundo posição de cen tralidade 14,04%

Violência 15,79%

Inserção segundo cafetinagem 47,37%

Gráfico 5  Fonte: Entrevistas realizadas entre maio de 2008 e dezembro de 2010.

(Preciso ter acesso a este gráfico, para saber se tem alguma correção
a fazer. Em último caso, Cláudia, dê uma olhada você, porque você sabe
exatamente o que precisa ser feito. Daí, uniformize com os quatro gráficos
precedentes)

O controle do território descontínuo se estabelece pela capacidade de


articulação dos elementos estratégicos que visam à eficiência do comércio
sexual. Para que essa eficiência se estabeleça de forma produtiva, as relações
de poder devem ser compreendidas, a partir de Foucault (1988), como
desiguais e móveis, envolvendo cafetinas e travestis de forma
interdependente e relacional.
Desta forma, no que respeita à inserção nas atividades de
prostituição a partir da cafetinagem, o que as falas das travestis apontam se
vincula com o fato de que essas atividades controlam as relações sociais que
se estabelecem através da espacialidade da prostituição, avalizando ou não a
permanência de determinada travesti na espacialidade da prostituição. Esse
controle relaciona-se com a conexão entre a necessidade de hospedar-se na
“pensão para travestis” e a possibilidade de permanecer na rua. Essas

21
relações de controle dos territórios também se fazem a partir da proteção que
é propiciada pela participação na lógica da prostituição que envolve travestis
e cafetinas. As relações entre cafetinas a partir de ações de controle dos
territórios se fazem ora de forma harmônica, ora de forma conflituosa.
A cafetinagem se coloca como um elemento considerável nas
atividades de controle dos territórios. O ser “filha de uma cafetina”, como
dito pelas travestis, relaciona-se com o pagamento da diária de sua pensão,
potencializando tanto a atividade da prostituição quanto a proteção a esta
pessoa.
As atividades de controle dos territórios da prostituição travesti,
além da ação da cafetinagem a partir do convencimento, também se realizam
a partir de ações de violência, e esse elemento totaliza 16% das evocações
relacionadas à categoria controle do território. Além das ações de violência
entre travestis relacionadas a municípios onde não existe a prática da
cafetinagem, a violência também é um elemento presente nas cidades onde a
prostituição travesti é, como dito pelas próprias travestis, “gerenciada por
cafetinas”. Assim, a violência é uma constante na vida das travestis.
Os últimos elementos relacionados à categoria controle do território
referem-se às conquistas realizadas pelas travestis a partir de redes de
amizade, segundo a participação em redes de pessoalidade. As ações
nascidas dessas relações são de fundamental importância para que cada
travesti consiga acessar as espacialidades da prostituição travesti. A busca
empreendida pelas travestis, como evidenciado a partir de todas as
evocações, não se relaciona com a possibilidade de dominar a cidade como
um todo, mas sim, de poder participar das lógicas de funcionamento da
prostituição travesti.

Palavras finais

Este texto evidenciou a prostituição travesti no sul do Brasil por


meio da instituição do território descontínuo paradoxal. Esse território se
institui por meio de uma multiplicidade de relações, como as motivações de
deslocamentos que as travestis desenvolvem, as características espaciais que
elas elegem para realizar as conexões espaciais e as estratégias que elas
estabelecem para dominar os demais sujeitos das redes de pessoalidade, para
obter eficiência no trabalho sexual, que se faz de forma permanente pelo
controle do território.
O território descontínuo paradoxal da prostituição travesti é fluido,
móvel e dinâmico. Assim, ele é capaz de revelar a resistência do grupo frente
aos processos de exclusão. As travestis lutam pela sobrevivência e são a

22
razão da existência do território descontínuo da prostituição, de modo que
elas estão posicionadas de forma central nas relações de poder. Ao mesmo
tempo, de forma paradoxal, para que o território se mantenha, elas são
deslocadas para as margens das relações de poder, passando a depender dos
agentes da cafetinagem. Nesse sentido, as travestis instituem complexas
geografias específicas, que inspiram cada vez mais a imaginação geográfica
dos pesquisadores contemporâneos.

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22
CIDADES E (HOMO)SEXUALIDADES:
HETEROTOPIAS E CONSTELAÇÕES LÉSBICAS E GAYS
EM ESPAÇOS URBANOS51

Paulo Jorge Vieira

Introdução

Esta é uma primeira saída de campo pelos espaços de diversão nocturna


lésbica e gay da Lisboa: do mesmo modo como um flâneur benjaminiano, a
minha observação desta noite é experimental, e pretende essencialmente
fazer o reconhecimento de um dos terrenos por onde vou circular no
percurso etnográfico que agora início: o Bairro Alto. Esta saída tem a
companhia de um dos participantes nesta etnografia, Filipe A., que comigo
circula por espaços de diversão nocturna como “As Primas”, “Purex”,
“Sétimo Céu”, etc. [...] Circulámos ao longo desta noite  entre as 23 horas
e a 02 horas  por estes espaços observando, comentando o modo como
lésbicas e gays se cruzam nestas ruas, e usam  e usufruem  deste território
urbano  cosmopolita  da cidade de Lisboa.
É no cruzar da Rua do Diário de Notícias e da Travessa da Espera que
animação vai surgindo numa noite de sábado neste frio mês de Fevereiro.
Este é o centro nevrálgico das sociabilidades lésbicas e gays no Bairro
Alto: conhecida por alguns como simplesmente “esquina” ou por outros,
51
Texto integrado na elaboração de uma tese de mestrado em Geografia (População,
Sociedade e Território) do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, orientada por
Jorge Macaista Malheiros (IGOT  Universidade de Lisboa) e Ana Cristina Santos (Centro de
Estudos Sociais  Universidade de Coimbra e BISR  University of London) a quem agradeço
todo o apoio prestado. Agradeço ainda os comentários de Ana Cristina Santos, André Carmo,
Eduarda Ferreira, Jorge Macaista Malheiros e Paulo Miguel Madeira.

22
mais elaborados, “esquina g”. Filipe A. arrancou-me uma gargalhada
quando me disse qual era o nome com que baptizou este espaço da cidade
“pana’esquina”. Divertido, este nome é uma das muitas subversões
linguísticas e simbólicas, mas também materiais, que a população lésbica e
gay produz no seu processo de resistência à heteronormatividade. São
alguns destes processos de subversão e resistência que são desconhecidos
da produção hegemónica das ciências sociais portuguesas que de algum
modo é hoje essencial questionar.52

Foi deste modo que a 6 de Fevereiro de 2010 começava este


processo  acredito que mais do que resultado a investigação é um processo
(SILVA, 2009)  de que hoje de alguma forma gostaria de reflectir. Este
texto pretende assim mais do que apresentar alguns dados, pretende
questionar os modos como poderemos pensar a espacialidade  conceito
fundamental da geografia contemporânea  a partir da diversidade em função
da orientação sexual, e dos seus modos de uso e apropriação de espaços
públicos e semi-públicos da cidade de Lisboa.
Este texto pretende assim reforçar o papel do território como um
elemento fundamental na análise contemporânea da inclusão/exclusão social
essencialmente devido às reconfigurações teóricas e analíticas que têm sido
feitas em torno deste conceito (HUBBARD, 2005b; SIBLEY, 1995; STOER
e MAGALHÃES, 2005).
É a partir das vivências urbanas da população lésbica e gay e das
suas performatividades nos territórios do seu quotidiano que se compaginam
em formas diferenciadas de cosmopolitismo urbano (BINNIE, 2004a,
2004b) em inter-relação com a definição de cosmopolitismo subalterno
(SANTOS, 2006) que se pretende pensar a cidade, sendo que o meu caso de
estudo se tem debruçado sobre Lisboa.
Este texto pretende questionar o modo como a geografia e os estudos
urbanos têm investigado a relação entre cidade e diversidade em função da
orientação sexual partindo de um modelo diferenciado que tem privilegiado
a investigação sobre os chamados “bairros gays” e os processos de
zonificação e territorialização da orientação sexual (JORDE, 2005). Deste
modo potenciamos neste texto alguns aspectos teóricos que permitam pensar
a ligação entre cidade e (homo)sexualidades para além do “bairro” e da
investigação centrada nessa temática no quadro do que tem sido elementos

52
Nota retirada do caderno de campo etnográfico de uma saída de campo de dia 6 de
fevereiro de 2010. Propomos neste projecto na parte sobre metodologia e realização de
observação de campo por 18 meses sendo que os meses de fevereiro e março corresponderão
ao momento de construção de uma rede de participantes, bem como, um momento inicial de
contacto mais direccionado para a investigação com os diferentes espaços de encontro e lazer
de lésbicas e gays da cidade de Lisboa.

22
críticos surgidos em inúmeros estudos (ALDRICH, 2004; BELL, 2001;
BELL e BINNIE, 2000; BROWNE, LIM e BROWN, 2009).

Do “bairro”: dos espaços das “identidades”

Cidade queer

Ao longo dos últimos 20 anos no campo disciplinar da geografia


surgiu um programa de investigação considerável em termos de produção
teórica e de estudos de caso, sobre a organização espacial das vidas de
homens gays e mulheres lésbicas (CASTELLS, 1983; DOYLE, 1996;
KNOPP, 1992; BELL e VALENTINE, 1995). Historicamente é a obra de
Manuel Castells  The City and the Grassroots  em que este sociólogo
urbano estudou as correlações entre sexualidade e espaço urbano na cidade
de São Francisco (CASTELLS, 1983) que inicia o interesse científico pelo
tema. No campo da geografia destaca-se, no entanto, uma obra introdutória à
(nova) geografia cultural, de Peter Jackson, intitulada Maps of Meaning
(JACKSON, 1989), onde o autor, utilizando as conclusões de Castells,
discute os significados da espacialidade e dos territórios na construção das
identidades gays e lésbicas.
Ao longo dos anos 90, a geografia humana começa assim a ver
surgir, essencialmente, na “cartografia da investigação geográfica” um
conjunto crescente de teses de mestrado e de doutoramento, livros e artigos
em revistas científicas sobre temáticas relacionadas com a espacialização e
territorialização da sexualidade humana (BINNIE e VALENTINE, 1999).
Michael Brown e Larry Knopp, dois dos geógrafos norte-americanos que
têm trabalhado nas “geografias queer”, afirmam de um modo  algo
polémico  que “no último quarto de século, as ortodoxias disciplinares na
geografia foram sujeitas a tais devastadoras críticas que deixou a geografia
ainda com maior dificuldade em encontrar o seu centro” (BROWN e
KNOPP, 2003, p. 313), salientando que “os estudos sobre a sexualidade e a
teoria queer têm sido uma potente força [...] nos projectos que questionam as
visões e explanações geográficas do mundo e dos seus lugares” (BROWN e
KNOPP, 2003, p. 314) e que levarão obrigatóriamente ao repensar da
geografia enquanto ciência (KNOPP, 2004) e à investigação geográfica
sobre sexualidade com particular destaque (OSWIN, 2008).
Como em outras áreas de conhecimento um dos pontos cimeiros  e
ao mesmo tempo seminal  da investigação geográfica sobre a sexualidade
humana é a publicação do livro Mapping Desire: Geographies of Sexualities,

22
organizado por David Bell e Gill Valentine (BELL e VALENTINE, 1995).
Esta obra colectiva em que estão publicados 19 ensaios juntou uma nova
geração de geógrafos que vinha há algum tempo a dedicar atenção às
temáticas da sexualidade, sendo a maioria dos estudos dedicados a temáticas
em torno da homossexualidade.53 No entanto, antes da publicação desta obra
existiam já alguns estudos sobre os modelos de espacialização das
sexualidades, nomeadamente estudos na área da geografia urbana e cultural
dedicados na sua maioria aos estudos dos “gay ghettos”, desenvolvidos por
geógrafos, que assim aproveitavam a crescente visibilidade do movimento
LGBT (BROWN e KNOPP, 2003, p. 314). 54 Como referem os organizadores
deste volume, era sentida a necessidade de “colocar as sexualidades no
mapa” reforçando a indispensabilidade de promover uma investigação sobre
as sexualidades que vá ao encontro do crescente interesse, nascido das
perspectivas pós-estruturalistas, pós-colonialistas e pós-moderna nas ciências
sociais, pelo corpo e pelas suas formas discursivas e materiais, como
elementos-chave da investigação social (BELL e VALENTINE, 1995).
Posterior à publicação desta obra, o desenvolvimento crescente da
investigação sobre sexualidade e geografia alcançou outros territórios de
investigação marcando já presença no espaço académico francês (LEROY,
2005; BLIDON, 2008), espanhol (GARCÍA ESCALONA, 2000; SANTOS
SOLLA, 2002; FERNÁNDEZ SALINAS, 2007) e brasileiro (ORNAT,
2008; SILVA, 2009) referindo apenas países com quem temos mais
proximidade cultural; tendo igualmente diversificado muito as suas
perspectivas ontológicas e epistemológicas e “invadido” outros subcampos
disciplinares da geografia como seja a geografia do turismo (JOHNSTON,
2005), a geografia rural (SMITH e MANCOSKE, 1997), a geografia história
(PHILLIPS, 2002), etc.

53
De referir que não apenas o tema gay e lésbico é tratado pelas geografias das sexualidades
mas surgem outras áreas de interesse na geografia social e cultural das sexualidades, como
seja a investigação sobre a prostituição e a espacialização urbana deste fenómeno social, em
particular os ‘red light districts’, sendo que na área se destaca a investigação de Phil Hubbard,
que culminou na publicação da obra Sex and the City: Geographies of Prostitution in the
Urban West (HUBBARD, 2005a).

54
A maioria destes estudos era desenvolvida por geógrafos sociais ou geógrafos urbanos,
sendo Larry Knopp um dos mais profícuos autores que, no final dos anos 80, cruzando teorias
de inspiração marxista e feminista em torno da sexualidade, tentaram investigar o papel das
comunidades lésbicas e gay nos processos de gentrificação urbana, área de estudos que
continuou a ter um desenvolvimento posterior e que originou alguns dos mais interessantes
estudos em metrópoles europeias e norte-americanas.

22
Usos e apropriação do espaço

Quando pensamos a partir de Lisboa e partindo de um grupo social


(lésbicas e gays) e do conceito de espaços/espacialidades (MASSEY, 2005)
surge o modo de uso e apropriação do espaço centrado nas características
deste grupo nomeadamente na dificuldade de expressão pública de afectos
que origina um uso  que diremos particular  de determinados espaços,
especialmente urbanos.
A ocupação do espaço público urbano sempre foi considerada como
um factor importante para o desenvolvimento das sociedades
contemporâneas. A facilidade de encontro sempre foi potenciada por uma
acessibilidade maior ao espaço público, as ruas, as praças… e outros espaços
múltiplos. A busca por lugares de encontro e maior interacção social sempre
foi uma característica da comunidade lésbica e gay que, como alternativa,
buscava (e ainda busca) refúgio em determinados pontos das grandes
cidades, dos quais “se apropria” (VIEIRA, 2005, 2010).
Steve Pile55 sugere a ideia de que “as narrativas do self são
inerentemente espaciais; e são espacialmente constituídas”, substanciando a
sua explicação a partir da influência do filósofo alemão Walter Benjamim, e
do seu pensamento nomeadamente da ideia da cidade como memória. Os
cafés, o passear na rua tudo isso “allows memory to flood in”. Essa memória
de encontros sexuais, essa memória de que “o desejo é cartografado nas ruas,
[...] que atravessar espaços é sexual, que passear perdido pelas ruas é
intrinsecamente sexual”. Como refere Pile “é por isso possível pensar o
espaço como organizador e produtor de género e sexualidade, mas também o
género e a sexualidade como produtores de cidade” (PILE, 2002, p. 112).
Mas, mostram também como essa mesma sexualidade vai construindo
diferentes espaços como centrais nas vivências urbanas de toda a população.
Espaços, esses, que o olhar menos atento da cidade caracterizará como
minoritário, escondido, excludente, mas que na realidade aparecem como
modelos de sociabilidade de grande importância para determinadas franjas
da população.
A cidade é assim o espaço da multidão e do anonimato onde as
interacções sociais (mas também sexuais) são potenciadas  ou legíveis como
afirma em Metropolitan Lovers Julie Abraham (ABRAHAM, 2009)  bem

55
Um dos muitos geógrafos pós-estruturalistas ingleses, marcado por uma influência do
pensamento psicanalítico lacaniano. Tem vindo a escrever algumas das mais interessantes
páginas sobre cidade, corpo e sexualidade. Num livro, recente publicado, Temporalities,
Autobiography and Everyday Life, Steve Pile publica um capítulo intitulado “Memory and the
city”.

22
como a concentração de serviços de apoio e de consumo para esta
população. É também o espaço de construção de sentimento de pertença a
uma “comunidade”, ou grupo social, devido a uma maior interacção social
com os seus pares. Peter Nardi salienta pois a importância das redes de
amizade na construção deste modelo de pertença plasmado em redes de
amizades como dinâmicas onde gays e lésbicas são capazes de criar,
transformar, manter e reproduzir as suas identidades e comunidades
(NARDI, 1999).

Urbanismo queer

As expressões no modo de vida urbano de lésbicas e gays, ou se


quisermos, o urbanismo queer, estão fortemente relacionadas com a
construção da visibilidade urbana e têm como elementos centrais a
existência de espaços de lazer e de encontro, bem como espaços
comunitários e de intervenção social (LEES, 2004).
Esses espaços de lazer comunitário ganham um realce
fundamental nas espacialidades gays e lésbicas pela importância que o
movimento físico, os modos de comunicação e inter-relações no
quotidiano têm na construção dos modelos de vivência urbana desta
população reforçando, por outro lado, o sentido com que esses
mesmos quotidianos são informados pela relação entre homofobia e
visibilidade. São assim espaços de encontro que se tornam essenciais,
como afirma Inês Menezes no seu estudo antropológico sobre as
sociabilidades gays em Lisboa:

Assim, os bares não são simplesmente espaços físicos para uma


experimentação (sexual e social) mais segura; nem é apenas fisicamente
que poderemos ler a sua delimitação dentro da cidade. Neles se procede
também à elaboração de um discurso colectivo de diferenciação pela
positiva, de oposição ao discurso da sociedade envolvente acerca da
homossexualidade. Num certo sentido, estes são também locais de
resistência discursiva, de fronteiras de significação. (MENESES, 2000, p.
937).

Neste sentido as questões da segurança dos territórios e dos espaços


de encontro são elementos fundamentais da investigação sobre a temática
das geografias das sexualidades (BINNIE e SKEGGS, 2004). Efectivamente

22
a temática da insegurança56 no espaço urbano tem sido um elemento de
investigação recente na geografia, mas que nos parece fundamental abordar.
Rachel Pain57 analisa como se constrói socialmente do medo da violência e
do crime a partir de identidades sociais diversificadas. Reforçando a ideia de
que “muita gente associa fortemente o medo com lugares específicos”, Pain
(2001, p. 899) salienta ainda que as identidades sociais  em que analisa o
género, a raça e a idade  são potenciadas por outros factores como classe,
local de residência, rendimentos, e também a orientação sexual. Reforçando
nesse sentido o papel que têm as diferentes formas de exclusão,
nomeadamente os actos (sub)criminais, Rachel Pain inclui nestes o assédio e
a segregação racista, sexista e homófoba, e que ela identifica como presentes
nos diferentes espaços da cidade, “relembrando a algumas pessoas a sua
vulnerabilidade ao crime e aumentando o medo.” (PAIN, 2001, p. 902).
Assim, a cidade fornece o espaço de encontro e de mobilidade  por
vezes seguro  que as “minorias sexuais” parecem necessitar, o que mais
uma vez reforça a importância da cidade na construção das subjectividades
gays e lésbicas como elemento fundamental na construção de outras
espacialidades e territorialidades.

Ir além do “bairro” ou, como abrir a cidade

Armário e visibilidade

Os conceitos sociais e culturais de “armário” e “visibilidade” são


figuras centrais da investigação sobre sexualidades e espaço urbano. É no
ensaio Epistemologia do Armário  um dos textos fundamentais da teoria
queer – que Eve Kosofsky Sedgwick propõe “que muitos dos ‘nós’
principais do pensamento e da cultura ocidental do século XX estão
estruturados  de facto fracturados  por uma crise crónica, hoje endémica, de
definição da homo/heterossexualidade, sobretudo a masculina, e que está
datada desde o final do século XIX” (SEDGWICK, 2004, p. 11). A autora
reforça o olhar bifocado, mas ambivalente, sobre a metáfora do armário 
note-se o carácter espacial desta metáfora como o assinalou Michael Brown
56
Veja-se, por exemplo, o volume editado por Loreta Lees, The emancipatory city, editado
em 2004, dedicado às questões de segurança no espaço urbano, à violência e ao medo, ou aos
crimes de ódio (LEES, 2004).
57
Publicou em 2001 um texto na revista Urban Studies intitulado “Gender, Race, Age and
Fear in the City”, em que (re)visitou grande parte dos estudos realizados nesta área.

22
no livro Closet Space (2000)  afirmando que, ao mesmo tempo, “o armário
responde às necessidades representacionais mais íntimas” (SEDGWICK,
2004, p. 9) e, por outro lado, “o armário é a estrutura que melhor sintetiza a
opressão gay deste século” (p. 11).
Assim, para as lésbicas e gays o armário e as suas múltiplas
construções societárias  a invisibilidade “desejada” da homossexualidade
por muitos homossexuais será disso um exemplo  constituem uma forma de
resistência, pois, como afirma Sedgwick, “a epistemologia do armário
conferiu à cultura e à identidade gay uma maior consistência ao longo deste
século” (SEDGWICK, 2004, p. 8), criando modelos específicos (invisíveis e
codificados) de sociabilidade urbana, como sejam as formas de “engate” em
espaço público urbano. Mas o armário é também o símbolo da mentira e da
opressão, pois “a robustez do armário é permanentemente confirmada” (p.
12), estando sempre presente no modo como as vivências sociais e espaciais
se constroem. Como afirma Sedgwick, “ele continua a afirmar-se como um
elemento fundamental do seu relacionamento social; por mais corajosos e
francos que sejam, por mais afortunados quanto ao apoio das suas
comunidades, serão poucos os gays em cujas vidas o armário deixa de
constituir uma presença central” (SEDGWICK 2004, p. 8), num jogo, louco
e esquizofrénico, em que “estar dentro do armário e sair do armário são
imagens que interagem com regularidade” (p. 11). É neste jogo de entrar e
sair do armário, de assumir em ritmos, registos e espaços diferenciados, é
neste jogo com o armário que se faz o quotidiano dos homossexuais, um
quotidiano de espaços públicos, semi-públicos e privados. Este jogo é
estranho, difícil e muitas vezes cheio de regras desconhecidas e incoerências
fortes, como seja o discurso “senso-comum” que continuamente nos remete
para a invisibilidade do espaço privado, uma “incoerência [...],
enfaticamente contida nos termos da distinção entre público e privado”, mas
que ao mesmo tempo “corrói o actual quadro que regula a existência gay”
(SEDGWICK, 2004, p. 10), codificando “um sistema excruciante de ‘double
blinds’  duplo constrangimento ou duplo entrave , oprimindo
sistematicamente as pessoas, identidades e comportamentos gay, minando os
próprios alicerces da sua existência através de restrições contraditórias
impostas ao discurso” (p. 11), ou seja, uma sociedade que coloca lésbicas e
gays no “quarto” (dizendo que esta questão é um aspecto estritamente
privado) e oprimindo  com as críticas públicas à constituição de guetos
urbanos  qualquer forma de visibilidade, e que controla os discursos e
espaços de afirmação e visibilidade.
É pois no espaço – neste caso urbano – que o armário se pode
plasmar tal como Michael Brown salienta ao afirmar que no “espaço do
armário, sendo simultaneamente discursivo e material, estas dimensões
dependem e trabalham uma com a outra” (BROWN, 2006, p. 317). Este

23
autor reafirma ainda que “o armário como metáfora espacial prova a recusa,
confinamento e ocultação das vidas e experiências queer” (p. 317). Todavia,
na sua duplicidade como “estrutura espacial da heteronormatividade, o
armário pode ser fixado como um local de opressão, mas pode ser também
um local de resistência e criatividade” (p. 317).
Neste sentido o espaço urbano é atravessado por uma linha divisória
 entre estar fora e estar dentro do armário  que marca os discursos
científicos sobre o tema. Assim, muitas vezes a expressão mais clara dessa
linha de fronteira simbólica é a assumpção do espaço urbano como espaço
heterossexualizado ou heteronormativo. Chris Brickell, num artigo publicado
na revista Gender, Place and Culture intitulado “Heroes and invaders: gay
and lesbian pride parades and the public/private distinction in New Zealand
media accounts”, argumenta sobre este “carácter heterossexual do espaço
urbano”. Socorrendo-se de autores como Jon Binnie e Gill Valentine,
Brickel afirma:

Quando os espaços urbanos são heterossexualizados é esperado que seja


apresentado como heterossexuais e não como gays e lésbicas. A
heterossexualização do espaço urbano ocorre de um modo ao mesmo tempo
subtil e aberto, que incluiu o auto-policiamento dos gays e lésbicas, a sua
exclusão física de espaços particulares, a manifestação da desaprovação
moral, ou a ameaça do uso de violência. Enquanto a heterossexualidade é
omnipresente, as identidades homossexuais “em público” são muitas vezes
percebidas como tendo saído do seu lugar certo  a esfera privada, a casa, o
armário. (BRICKELL, 2000, p. 163).

Assim, o autor refere como a homossexualidade  e a sua expressão


pública em espaço urbano  é vista como um “outro” fora do lugar, sendo
peremptório ao defender que a homossexualidade só é tolerada quando se
mantém no plano e no espaço privado pois a presença da visibilidade gay e
lésbica em espaço público é vivenciada como uma “intolerável brecha na
fronteira” (BRICKELL, 2000, p. 165). “No entanto a omnipresença da
heterossexualidade não é reconhecida” (p. 165), o que leva muitos a
afirmarem que ela não é publica, isto porque a “heterossexualidade é
naturalizada e universalizada de tal que forma que é invisível em espaço
público, apesar das práticas heterossexuais serem de facto dominantes e
omnipresentes” (p. 165).
Na realidade a heterossexualidade é, como Brickell afirma,
“invisivelmente visível” (BRICKELL, 2000, p. 166), isto porque a
heterossexualidade é visível porque é tudo o que há, e por outro lado é
invisível porque não é reconhecida como sendo a “heterossexualidade”.
É pois neste sentido que surge um outro elemento estruturante da
investigação nas geografias das sexualidades. Esse conceito é o de

23
visibilidade. Efectivamente se o conceito de armário explica em parte a
invisibilidade social, e muitas vezes espacial, das questões gays e lésbicas, o
conceito de visibilidade torna-o ponto-chave de quase toda a investigação na
temática. Na realidade, o que a investigação nas ciências sociais estuda é
quase sempre as diferentes formas de visibilidade deste fenómeno. Tal como
refere Andrew Tucker  num recente livro sobre visibilidades queer na
Cidade do Cabo  a visibilidade pode se definir como sendo:

Na sua essência, este é um conceito geográfico que examina como os


grupos queer são capazes de superar a heteronormatividade de espaços
urbanos, nomeadamente, as opções estratégias que estão disponíveis para
eles levar a cabo este combate. (TUCKER, 2009. p. 3).

Este autor reforça ainda a importância da visibilidade no espaço e


esfera pública redefinindo a importância desta na construção de elementos
diferenciadores de expressão urbana em função de diferentes marcadores
sociais como seja a raça, etnia ou classe social (TUCKER, 2009, p. 19).
Efectivamente a correlação entre classe social, população LGBT e
visibilidade encaminha-nos por outro lado para o debate sobre consumo e
identidades como marcadores espacializados deste fenómeno.
Por outro lado, é nesta visibilidade da relação entre consumo e
identidade que se encontra a centralidade e a hegemonia na investigação nas
ciências sociais sobre as espacialidades urbanas e a população gay e lésbica,
em especial, como referimos anteriormente, devido à importância dos
espaços de lazer nocturno como espaços de pertença e sociabilidades desta
população (JAYNE, 2006, p. 116)
A produção de zonificações da diferença a que Dereka Rushbrook se
refere corresponde na maioria dos países ocidentais (ainda que de um modo
aparentemente diferenciado em Portugal) à criação dos referenciados bairros
gays. Partindo da demonstração da “heteronormatividade assumida do
espaço social, a dinâmica espacial das exclusões sustentada pela homofobia,
e os imperativos espaciais das subjetividades sexuais” (WAITT et al., 2008),
a investigação geográfica sobre espaços urbanos e espaços lésbicos e gays
cedo destacou a inter-relação entre homossexualidade/cidade e espaços de
lazer. Larry Knopp e Jon Binnie (em 1995) estudaram a materialidade dos
espaços comerciais gays e lésbicos urbanos (KNOPP, 1995; BINNIE, 1995),
tendo Jon Binnie, em particular, estudado o caso de Amsterdão como destino
turístico, avaliando o modo como os media usavam estereótipos dos homens
gays como “affluent, avid consumers and tastemakers” (BINNIE, 1995, p.
199).
As cidades adquirem assim não apenas um papel importante na
construção das identidades gays e lésbicas (BELL e BINNIE, 2004) como na

23
(re)produção desses espaços gays e lésbicos como elementos fundamentais
no turismo urbano em algumas cidades ocidentais. Dereka Rushbrook, ao se
referir aos bairros gays como zonas comerciais e residenciais gays e lésbicas,
salienta que se tornaram espaços de interesse turístico através de um
processo de “mercantilização” e de cosmopolitismo dos espaços urbanos,
reforçando a construção de efeitos de alteridade na fruição turística, o que
leva a um processo de etnicização crescente da população gay e lésbica
(RUSHBROOK, 2002, p. 112). Como afirma Rushbrook, a respeito da
importância dos bairros gays como espaços turísticos:

Embora essa tendência poderia facilmente ser atribuída ao sucesso dos


movimentos pelos direitos civis gays e o reconhecimento dos gays como
um nicho de mercado, tem sido acompanhada por outras formas de
transformação urbana, nomeadamente a mercantilização do espaço público
relacionado com um crescimento do turismo e uma mudança rumo a uma
forma empresarial de gestão urbana. [...]. Para marcar uma posição para o
cosmopolitismo, uma das formas mais desejáveis de capital cultural
contemporânea, enfatizam a sua diversidade étnica. Em um número
crescente de casos, o espaço “queer” funciona como uma forma desta
diversidade étnica, provisoriamente promovido pelas cidades, tanto como
equivalente a outros bairros étnicos e como um indicador independente de
cosmopolitismo. (RUSHBROOK, 2002, p. 183).

Este processo de etnicização dos espaços gays e lésbicos


corresponderá de algum modo a processos de fragmentação urbana e de
estetização da vida social referidos em outro tipo de análises. Assim, no
decurso de passagem da cidade industrial para a cidade pós-industrial,
recoloca a importância no “marketing de lugar”, que no caso dos espaços
gays e lésbicos é potenciada por políticas públicas que referenciam em
alguns casos os mesmos como elementos decisivos da promoção turística
das cidades (RUSHBROOK, 2002, p. 187) ou então como componentes
liminais de consumo gays e lésbico como elementos representacionais dos
espaços urbanos (LUGOSI, 2007, p. 105) que se reproduzem
ideologicamente como espaços comunitários e de consumo.
Mark Jayne no livro Cities and Consumptions salienta por outro lado
os perigos para a excessiva centralidade do consumo na construção das
identidades gays e lésbicas pelas exclusões que cria:

O consumo é hoje central para o modo como a cidadania é definida, a


gestão e disciplina do self ocorre através de nossas escolhas como
consumidores. O crescimento da visibilidade das lésbicas e gays associada
ao marketing gay e desenvolvimento de seu discurso da “economia rosa”
que facilitou a articulação das reivindicações de direitos, mas também
gerou debate sobre a natureza das liberdades conquistadas e as exclusões

23
produzidas. Inclusões e exclusões são baseadas em torno da capacidade de
consumir. (JAYNE, 2006, p. 118).

Heterotopias

É pois este processo de etnicização das identidades gays e lésbicas,


de zonificação da diferença e de critica do consumo com marca identitária
que se torna essencial na construção de um modelo de estudo das
espacialidades lésbicas e gays que vá além dos processos de procedimentos
centrados em dinâmicas localistas neoliberais e “etnicistas” (BINNIE,
2004a).
É por isso necessário potenciar a investigação a partir das expressões
materiais e discursivas da dupla entre “armário” e “visibilidade” que, sendo
expressões de uma determinada sociabilidade, são indelevelmente pelo
“armário” enquanto expressão de heteronormatividade, e pela “visibilidade”
como modelo de resistência a essa mesma heteronormatividade e expressão
das alterações sociais, culturais e económicas das sociedades
contemporâneas.
Para isso propomos os conceitos de heterotopia (e de constelação) 
sobre os quais a seguir reflectimos  como elementos caracterizadores das
referidas espacialidades lésbicas e gays em espaços urbanos.
O conceito de heterotopia, tal como proposto por Michel Foucault,
aparece pela primeira vez no prefácio do livro As Palavras e as Coisas
(1966), mas é no ano seguinte que o pensador francês, numa conferência no
Círculo Francês de Estudos Arquitectónicos, ressalta a importância do
espaço na sociedade contemporânea, não como um espaço morto, estagnado,
mas como um espaço que adquire sentido e significado. O autor reafirma
assim que, se no século XIX, o debate que predominava era sobre a História,
no final do século XX  e nós acrescentaríamos durante o início do século
XXI  o espaço e a espacialidade são elementos centrais da teoria social. Mas
reafirma Foucault que longe eram os tempos de um espaço absoluto, e que
hoje estaríamos sim perante um conjunto de espaços/espacialidades
heterogéneos, complexos, justapostos e que se entrecruzam em diversos
pontos. Tal como afirma Foucault:

A época actual seria talvez de preferência a época do espaço. Estamos na


época do simultâneo, estamos na época da justaposição, do próximo e do
longínquo, do lado a lado, do disperso. Estamos em um momento em que o
mundo se experimenta, acredito, menos como uma grande via que se
desenvolveria através dos tempos do que como uma rede que religa pontos
e que entrecruza sua rede. (FOUCAULT, 2008).

23
Michel Foucault defende assim nesse pequeno texto que o foco da
análise social deveria se relacionar e direcionar para as relações humanas
contidas nestes espaços diferenciados, que ele denomina heterotopias (numa
clara oposição à utopia como um espaço irreal, sem lugar real/fixo). As
heterotopias são assim espaços de bastantes tensões e conflitos que podem
ser míticos ou reais, e imateriais ou materializáveis ao mesmo tempo
(JOHNSON, 2006). Afirma, por isso que as heterotopias são:

[...] espaços reais  espaços que existem e que são formados na própria
fundação da sociedade  que são algo como contra-sítios, espécies de
utopias realizadas nas quais todos os outros sítios reais dessa dada cultura
podem ser encontrados, e nas quais são, simultaneamente, representados,
contestados e invertidos. (FOUCAULT, 2008).

Para tanto, Foucault sugere por isso a criação de uma


heterotopologia (um campo científico) com o intuito de estudar e analisar as
manifestações sociais ocorridas nestes espaços diferentes, apresentando por
isso seis princípios explicativos e constitutivos das heterotopias,
(FOUCAULT, 2008, p. 18-22), que reescrevo, de seguida, possibilitando a
abertura do campo da geografia das sexualidades para uma reflexão crítica
em torno deste conceito foucaultiano:
1. Toda cultura produz heterotopias e que estas podem ser:
heterotopia de crise, e/ou a heterotopia de desvio, e se caracteriza pelos
comportamentos desviantes de seus indivíduos em relação às normas de
conduta impostas pela sociedade. Mas corresponde também nesse olhar
material aos espaços do desvio e as praticas sócio-espaciais que observamos
no trabalho de campo.
2. De acordo com o contexto social, cultural, etc., a heterotopia
assume novos papéis, estando por isso em permanente mudança.
Repensando a ininterrupta mudança de práticas e dos espaços dá-nos pois
uma percepção não fixa e em contínua transformação desses mesmos
espaços e práticas.
3. As heterotopias têm o poder de justapor num lugar vários espaços
e espacialidades, sendo por isso marcadas pela diversidade. São assim
elementos espaciais que agregam outros espaços/espacialidades e que os
potenciam como diversidade e multiplicidade. Usos diferenciados e
múltiplos de mesmos espaços físicos são exemplos mais do que
paradigmáticos dessas espacialidades, adquirindo em alguns casos novas
funcionalidades, ou em outras, práticas e usos simbolicamente significativos.
4. As heterotopias são elementos explicativos da relação entre
espaço e tempo que ele define como heterocronias. As heterotopias são

23
assim acumulativas do tempo, como as bibliotecas e museus, mas, também,
múltiplas nos diferentes usos do tempo e dos quotidianos, sendo
diferenciadoras dos mesmos. Usos esses diferenciados também no continuo
espaço tempos e na temporalidades do quotidiano (dia/noite).
5. As heterotopias possuem um sistema de abertura e fechamento
que as isolam do espaço em torno, potenciando os conflitos e os usos
diferenciados dos espaços por grupos sociais.
6. O último dos princípios salienta que as heterotopias têm em
relação ao espaço a função de potenciar visibilidades das diversidades de
espacialidades e usos do espaço.
Neste sentido, e a partir destas proposições, o conceito de
heterotopia pode ser potenciado e usado na explicação das espacialidades
lésbicas e gays de inúmeros espaços urbanos, tal como temos vindo a
defender para o caso de Lisboa (VIEIRA, 2009), pois reforça a visibilidade
dessas mesmas espacialidades na análise do espaço-tempo das sociabilidades
das minorias sexuais, bem como as geometrias de poder nas dinâmicas
sociais urbanas das minorias sexuais (PHILO, 2000).

Constelações

Outro conceito fundamental na proposta de modelo de análise que


apresentamos é o de constelação, que propomos seja elemento e conceito
explicativo e, ao mesmo tempo, locativo das espacialidades lésbicas e gays
de Lisboa: afirmamos na nossa hipótese de trabalho que o modo de
apropriação distinto lésbicas e de gays plasma-se numa constelação de
pontos com significados sociais diversos, promotores de sociabilidades não
(hetero)normativas.
O conceito de constelação que usamos neste projecto ressoa e bebe
claramente a sua origem na obra inacabada de Walter Benjamin, que foi
posteriormente publicada com o título The Arcades Project e que se torna
central como elemento da construção e explicação do pensamento
benjaminiano, particularmente nos seus escritos sobre cidade e urbanismo
(BENJAMIN, 1999).
Assim, se numa primeira leitura, e para o senso comum, uma
constelação é um grupo de estrelas que aparecem próximas umas das outras
no céu, e que quando são ligadas formam uma imagem de um animal,
objecto ou seres fictícios, Walter Benjamin ressignifica o conceito, pois, para
este pensador alemão o conceito de constelação não é apenas um conjunto de
estrelas, ou uma imagem proveniente de qualquer imagética, mas sim, algo
que se constrói num imaginário de significados que lhe podem ser

23
atribuídos. Assim, as diferentes narrativas traçadas sobre os agrupamentos de
estrelas correspondem a construções linguísticas e culturais, mas também
materiais, de espaços de significado particular ou único para um ou mais
grupos sociais (HIERNAUX-NICOLAS, 1999).
A perspectiva benjaminiana nos estudos queer  visto ser quase
inexistente na geografia (SAVAGE, 2000)  foi essencialmente desenvolvida
a partir da obra de Dianne Chisholm Queer Constellations: Subcultural
Space in the Wake of the City, onde esta autora desenvolve e estrutura uma
análise  no âmbito dos estudos culturais  do espaço urbano das relações do
mesmo com as comunidades lésbicas e gays (CHISHOLM, 2005). Assim,
numa perspectiva que pretende ir além do dominante heteronormativo,
Chisholm redefine o espaço urbano a partir das relações culturais e sociais
existentes, usufruindo da proposta teórica de Walter Benjamin presente
essencialmente na investigação que este realizou sobre Paris (CHISHOLM,
1999, 2002).
Partindo assim da entidade do flâneur  que em nosso estudo tanto
pode corresponder às discursividades dos participantes como ao nosso olhar
etnográfico  como uma entidade única no espaço da cidade, a autora
potencia o limiar de observação deste como “escrita da cidade”, introduzindo
assim a noção de constelação como uma representação não-realista do
espaço, por isso metafórica, mas que plasma as relações e materialidades
reais no espaço urbano (CHISHOLM, 2002). De referir ainda que o conceito
de constelação potencia uma representação não heteronormativa dos espaços
e das espacialidades ao reafirmar a existência ao mesmo tempo de
imaginários singulares e múltiplos da cidade e das sociabilidades urbanas.

Conclusão

Ao longo deste ensaio pretendemos abrir perspectivas teóricas sobre


os modos como a geografia poderá potenciar a investigação sobre
espacialidade lésbicas e gays, ultrajando a rigidez dos territórios
gentrificados dos “bairros gays”. Pretendemos assim criar espaços de
visibilidade e análise teórica que potenciem um olhar critico queer sobre o
“direito à cidade”, levando a uma necessária forma de repensar o modo
como a geografia deve estudar os modos de apropriação e uso da cidade por
parte de lésbicas e gays.

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24
SOBRE OS AUTORES

Ana Carina Dias (carinaadias@gmail.com)


Mestre em Ensino Experimental das Ciências pela Escola Superior de
Educação do Instituto Politécnico do Porto, em Portugal, e professora na
Escola Básica de 2º e 3º Ciclos de Alfena.

Augusto Cesar Pinheiro da Silva (acpinheiro08@gmail.com)


Doutor em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e
professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde ocupa
o cargo de coordenador da Pós-Graduação em Geografia (PGE); professor
Adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; líder do grupo de
pesquisa GeTERJ (Gestão Territorial no Estado do Rio de Janeiro).

Cláudia Abrantes (claudiaabrantes@iol.pt)


Mestre em Ensino Experimental das Ciências pela Escola Superior de
Educação do Instituto Politécnico do Porto, em Portugal, e professora na
Escola Básica de 2º e 3º Ciclos de Valadares.

Cláudia Reis dos Santos (claudiareis@oi.com.br)


Assistente da Gerência de Educação da 1ª CRE - Secretaria Municipal de
Educação do Rio de Janeiro; professora on-line do Curso de Pós-Graduação
em Gênero e Sexualidade do CLAM/IMS/UERJ; professora on-line nos
temas etnia, diversidade, gênero e sexualidade para professores da rede
pública de ensino a distância no curso Gênero e Diversidade na Escola,
oferecido por meio de convênio entre o Centro Latino-Americano em
Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ) e o Ministério da
Educação.

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Darrin Hodgetts (dhdgetts@waikato.ac.nz)
Professor doutor na Universidade de Waikato, Faculdade de Psicologia, na
Nova Zelândia, suas pesquisas estão vinculadas com a relação entre
psicologia social / sociedade / comunidade, mídia e comunicação.

David Bell (d.j.bell@leeds.ac.uk)


Professor do Curso de Geografia da Universidade de Leeds, na Inglaterra,
pesquisa sobre culturas rurais e urbanas, sexualidades, ciências e
tecnologias, consumo e estilos de vida.

Diana Lan (dianalan50@hotmail.com)


Geógrafa, pesquisadora do Centro de Investigaciones Geográficas e docente
da Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires, em
Tandil, Argentina; coordenadora da Rede de Estudos de Geografia e Gênero
da América Latina (Argentina).

Eduarda Ferreira (epcferreira@gmail.com)


Investigadora associada do e-Geo Centro de Estudos de Geografia e
Planeamento Regional, desenvolve o projeto Representing Spaces of
(In)Equality: Layers of Visibility.

Janice Monk (jmonk@email.arizona.edu)


Professora do Curso de Geografia da Universidade do Arizona, nos Estados
Unidos, suas pesquisas estão vinculadas às relações entre espaço e gênero e
geografias feministas.

Jon Binnie (j.binnie@mmu.ac.uk)


Professor da Universidade de Manchester Metropolitan e pesquisador da
área de geografia social e cultural, notadamente nas esferas de gênero,
sexualidades e cidadania.

Joseli Maria Silva (joseli.genero@gmail.com)


Geógrafa, coordenadora do Grupo de Estudos Territoriais e da Rede de
Estudos de Geografia e Gênero da América Latina (Brasil), é docente da
Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), onde atua no Mestrado em
Gestão do Território.

Lúcia Facco (lufacco@oi.com.br)


Doutora em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, atuando nos seguintes temas: literatura brasileira, ideologia,

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literatura contemporânea, homoerotismo, literatura infanto-juvenil e
educação.

Marcio Jose Ornat (geogenero@gmail.com)


Geógrafo, pesquisador do Grupo de Estudos Territoriais e da Rede de
Estudos de Geografia e Gênero da América Latina, é docente da
Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).

Maria das Graças Silva Nascimento Silva


(gracinhageo@hotmail.com)
Professora Adjunta do Departamento de Geografia da Universidade Federal
de Rondônia, desenvolve pesquisas na área de geografia cultural e relações
sociais de gênero, com ênfase em políticas públicas e desenvolvimento
regional; coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas em Geografia, Mulher e
Relações Sociais de Gênero.

Maria Dolors García-Ramon (mariadolors.garcia.ramon@uab.es)


Professora catedrática do Departamento de Geografia da Universidade
Autônoma de Barcelona e pesquisadora da área de gênero e geografia.

Maria João de Jesus Duarte Silva (mjosilva@yahoo.com)


Doutora em Engenharia do Ambiente, professora coordenadora na Escola
Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto, em Portugal, e
investigadora nas áreas de educação ambiental, interfaces multissensoriais e
gênero em educação.

Ottilie Stolte (ottilie@waikato.ac.nz)


Professora doutora na Universidade de Waikato, Faculdade de Psicologia, na
Nova Zelândia, suas pesquisas estão relacionadas com a interface entre as
questões sociais e humanas, geográficas e sociais aplicadas, perspectivas
psicológicas.

Paulo Jorge Vieira (pjovieira@gmail.com)


Geógrafo, pesquisador do Centro de Estudos Geográficos, Instituto de
Geografia e Ordenamento do Território (IGOT), na Universidade de Lisboa.

Raquel Magalhães (raquelsofia00@hotmail.com)


Mestre em Promoção da Saúde e do Meio Ambiente pela Universidade do
Minho e professora na Escola Básica de 1º Ciclo e Jardim de Infância do
Foral, Agrupamento de Escolas de Santo Tirso, em Portugal.

Robyn Longhurst (longhurst@waikato.ac.nz)

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Professora da Universidade de Waikato, na Nova Zelândia, atua como
presidente da Seção de Gênero da União Geográfica Internacional e é editora
da revista Gender Place and Culture.

Susana Maria Veleda da Silva (sucasilva@yahoo.com.br)


Professora doutora da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), atua na
área de Geografia Humana, principalmente com os seguintes temas:
população, trabalho e comércio, com ênfase nas relações de gênero.

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