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Fenomenologia1

do grego phainomenin “o que aparece” (de phainein “mostrar, fazer


parecer” et logos “discurso, ciências

A psicopatologia fenomenológica se inspira da fenomenologia filosófica que foi fundada por


Husserl e retomada por Heidegger na Alemanha, assim como por Merleau-Ponty e Sartre na França.
Entretanto, seria um erro e mesmo um contrassenso apenas ver aí uma aplicação na psicopatologia de
uma doutrina filosófica, mesmo que seja antropológica, ou seja, de uma teoria. Por definição, o
fenomenólogo recorre apenas à experiência (Erfahrung) e admite a teoria apenas em um sentido muito
específico e etimológico da teoria grega como “visão” (schauen) e não no sentido usual de um sistema
de hipóteses concernentes àquilo que se passa por detrás dos fenômenos em uma abordagem
necessariamente reducionista (Blankenburg). Está aqui a razão pela qual a fenomenologia não pode
integrar o inconsciente freudiano, com a exceção de reencontrá-lo, se possível, da maneira que ele se
abre à experiência. E isto pode ser feito porque a fenomenologia, no mesmo movimento no qual ela se
restringe à experiência, expande o seu campo, tornando-se assim “escola da experiência”. Os dados
fenomenológicos não se confundem com os dados fenomenais, por mais fina que seja a descrição, e é
por isso que Jaspers permanece fora da psicopatologia fenomenológica (Minkowski), apesar de um
mal-entendido bastante difundido. Da mesma forma, a fortiori, para o uso banal e banalizado da
palavra “fenomenologia” no sentido de uma simples descrição das coisas em oposição ao que é a
explicação. Com efeito, o que deve ser na fenomenologia “fenômeno” não é de forma alguma o único
aspecto exterior das coisas, mas antes de tudo seu “logos”; Blankenburg acrescenta que “não é
somente o que é perceptível pelos sentidos que deve ser conduzido à um modo intuitivo de apreensão,
mas também às estruturas que as tornam evidentes e compreensíveis”. É a este alargamento da
experiência possível que visa a pretensão do fenomenólogo a uma visão eidética, ou seja, uma visão
das essências ou a conquista de uma experiência transcendental permitida pela redução
fenomenológica que libera o campo da consciência de uma restrição às únicas realidades espaço-
temporais.
A historia da psicopatologia fenomenológica não começa então com a Psicopatologia Geral
de Jaspers (1913) que se edifica sobre os dados psicológicos habituais, simplesmente mais puros e
rigorosos, mas a partir do início dos anos 1920 pelos trabalhos do “quadrunvirato” fenomenológico:
Minkowski, Binswanger, Strauss e Von Gebsattel. O domínio inicialmente privilegiado por estes
trabalhos foi o da melancolia no qual a experiência fenomenológica mostra a estagnação do tempo
vivido, a inibição do devir que não a sustenta, mas, em vez disso, se identifica a ela. Mais tarde, Von
Gebsattel reencontrará o mesmo transtorno do tempo vivido no obsessivo, confirmando assim uma
afinidade aparente já vista na clínica tradicional, mas sem ser capaz de fazer totalmente compreender
porque este transtorno se manifesta tanto como melancolia quanto como neurose obsessiva.
Se os outros fundadores da psicopatologia fenomenológica – menos inclinados a uma
referência filosófica que, na verdade, assim como foi com Husserl, Bergson está para Minkowski e
Scheler para Von Gensattel –, se aplicam, em seguida, na elucidação de fenômenos psicopatológicos
particulares, Binswanger imprimirá ao movimento uma modulação decisiva fundando a
Daseinsanálise (análise da presença) na qual a inspiração em Husserl é cedida àquela de Heidegger,
principalmente através de seu livro Ser e Tempo (1927). O objetivo é de compreender as
transformações, não da psiquê, mas do Dasein, do ser-no-mundo, da existência, ou melhor, da
presença-humana-no-mundo que tornam possíveis as formas psicóticas da existência como direções
significativas gerais do ser humano (direções de sentido), ameaças imanentes a toda presença humana,
ao invés de reduzi-las como a psicopatologia clínica aos sintomas. É isto que já é feito no trabalho
sobre a fuga de ideias (1931-1932), mostrando o ser-no-mundo como salto e turbilhão na mania, e o
que desenvolvem os cinco estudos sobre a esquizofrenia (1945 à 1953). A biografia de um
esquizofrênico, tanto na sua etapa pré-mórbida que na psicose clínica e principalmente no delírio,
aparece aí, como a ilustração de um ideal possível e de um projeto-de-mundo unitário.


1
Verbete publicado em: Porot, A. (1996). Manuel alphabétique de psychiatrie. Paris: PUF.
Tradução: Lucas Bloc. Uso exclusivo em sala de aula.
Ainda que ela pressuponha a atitude fenomenológica, a Daseinsanalyse de Binswanger
permitiu certa confusão entre fenomenologia e pensamento existencial ou, pior, “psicologia
humanista”. O pensamento existencial pode proceder de maneira fenomenológica, mas também sem
referência à fenomenologia – o que foi o caso de Kierkegaard ou de Nietzsche – e assumir, então, o
aspecto de uma teoria privilegiando certos valores na sua apreensão da vida humana. Apreendidos
isoladamente, os conceitos existenciais não são mais fenomenológicos que as noções de psiquismo ou
de sistema nervoso central. É isto que faz a ambiguidade em psicopatologia de trabalhos como os de
Storch para as psicoses, como os tardios e de inspiração espiritualista de von Gebsattel sobre as
neuroses ou ainda como a Antropologia compreensiva de Zutt e Kulenkampff. É também a
ambiguidade da noção de psicoterapia existencial. A fenomenologia pode, certamente, modificar a
abordagem terapêutica e lhe dar outro sentido, mas seria inadequado esperar por isso, em uma simetria
enganosa com a psicanálise, uma técnica psicoterápica específica, pois a noção mesmo de uma técnica
e, logo, por via de consequência, de uma teoria, lhe é estranha.
Os desenvolvimentos mais recentes da psicopatologia fenomenológica são marcados por uma
inflexão ou, de preferência, por uma re-inflexão na direção da obra de Husserl e, principalmente, do
Husserl tardio, aquele do mundo vivido (Lebenswelt) e da intersubjetividade. Este movimento já é
iniciado por Binswanger a partir de sua retomada dos problemas da melancolia e da mania (1960),
visto por alguns com certo exagero, como um “retorno à Husserl”. Mas este movimento é também o
de uma fenomenologia de alguma forma estática, visando experienciar o sentido unitário de um
quadro psiquiátrico, na direção de uma fenomenologia genética que se confronta com um problema
por muito tempo abandonado nas pesquisas psicológicas e psicanalíticas, o da biografia e do modo no
qual se integram, parecendo romper completamente sua continuidade, as manifestações psíquicas
anormais. O livro de Tellenbach sobre a melancolia (1961) é a melhor ilustração pela ênfase colocada
sobre as noções de tipo melancólico, de situação pré-depressiva e de endokinèse. Paralelamente, a
obra de Blankenburg e especialmente seu livro A perda da evidência natural nos esquizofrênicos
(1971) mostram da melhor forma a necessidade e também os primeiros resultados de uma clarificação
conceitual e metodológica da psicopatologia fenomenológica. É aqui, sem dúvida, que aparece, mais
claramente, que para o psiquiatra a fenomenologia não deve ser um método entre outros e ainda menos
um método psicoterápico, mas a ocasião de uma tomada de consciência e de uma reflexão radical
sobre a natureza mesma da doença mental e sobre a significação das diferentes abordagens da
psiquiatria: dito de outra forma, a fenomenologia em psicopatologia é, fundamentalmente, uma crítica
da razão psiquiátrica.

A. Tatossian e J.-M. Azorin

Referências
H. Spiegelberg, Phenomenology in psychology and psychiatry. An historical introduction, Evansto,
Etats-Unis, Northwestern Univ. Press., 1972.
A. Tatossian, Phénoménologie des psychoses, Rapport au LXXVII Congrès de Psychiatr. Neurol. De
langue française (Angers, 1979), Paris, Masson, 1979.

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