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Universidade Federal de Minas Gerais / FAFICH / Departamento de Filosofia

Disciplina: História da Filosofia Contemporânea II


Professora: Alice Serra / 2º. semestre de 2022

I. Introdução à fenomenologia de Husserl: considerações históricas e conceituais

I.1. Considerações introdutórias sobre a fenomenologia de Edmund Husserl (1859-1938) - por Alice
Serra (para uso didático)

“Repor as noções – seja qual for a sua evidência para o conhecimento que as fixa – na perspectiva
em que aparecem ao sujeito, será essa a principal preocupação da fenomenologia.” (E. Levinas,
Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger, p. 15)

“À procura do dado imediato anterior a qualquer tematização científica e autorizando-o, a


fenomenologia revela o estilo fundamental ou a essência da consciência desse dado, que é a
intencionalidade. No lugar da tradicional consciência ‘digerindo’, ou pelo menos ingerindo, o
mundo exterior [...], ela revela uma consciência que ‘eclode para’ [...], uma consciência em suma
que não é nada a mesmos que esteja em relação com o mundo.” (J. F. Lyotard, op. cit, p. 10)

A palavra fenomenologia remonta ao grego clássico φαινόµενον (phainómenon), ou seja,


“aquilo que é visível”, “aquilo que aparece”, “aquilo que se mostra”, designando em geral uma
experiência singular percebida pelos sentidos. A expressão fenomenologia não foi introduzida por
Edmund Husserl (1859-1938), embora este filósofo seja conhecido como o fundador deste que é um
dos mais importantes movimentos filosóficos do século XX.
O termo “fenomenologia” (Phänomenologie) aparece inicialmente no século XVIII, na obra de
Johann Heinrich Lambert (1728-1777) e, mais tarde, especialmente nas filosofias de Kant (1724-1804)
e Hegel (1770-1831). Em sua obra Novo Organon ou pensamentos sobre a investigação e significação
do verdadeiro e sua diferença em relação ao erro e à aparência1, Lambert privilegia a matemática e
a lógica como disciplinas capazes de fornecer um método mais adequado para a filosofia,
subestimando o papel dos fenômenos sensíveis nos processos cognitivos. Um pouco mais tarde, Kant,
na Crítica da Razão Pura (Kritik der reinen Vernunft, 1781/1787) contrapõe o termo “fenômeno” a
noumenon, assinalando um limite entre uma suposta coisa em si incognoscível, e aquilo que podemos
conhecer segundo a cooperação transcendental entre sensibilidade e entendimento. Por sua vez, na
Fenomenologia do Espírito (Phänomenologie des Geistes, 1807), Hegel vincula o termo
“fenomenologia” à ciência da experiência da consciência. Esta se inicia com a absoluta imediatez
daquilo que se manifesta à sensibilidade e culmina com o retorno da consciência a si ou conquista do
saber absoluto, processo que pressupõe diferentes mediações objetivas. Passando pelas diversas
experiências da relação a um objeto, a um outro eu, da linguagem, do trabalho, da arte, religião e
política, a fenomenologia do espírito entende-se ainda como uma progressiva superação da oposição
entre os polos subjetivo e objetivo, em direção à sua unidade dinâmica e processual.
Já no século XIX, o filósofo Franz Brentano (1838-1917) emprega o conceito de
fenomenologia ou psicologia descritiva para referir-se à ciência da consciência. Em sua obra principal
e que mais diretamente influenciou o pensamento de Husserl, a Psicologia de um ponto de vista
empírico (Psychologie aus empirischem Standpunkt, 1874), Brentano busca estabelecer as bases
teóricas para uma psicologia científica, de forma a pensar os resultados das pesquisas empíricas diante
da necessidade de elucidar os princípios segundo os quais se estruturariam os fenômenos psíquicos.

1
Neues Organon, oder Gedanken über die Erforschung und Bezeichnung des Wahren und dessen Unterscheidung von Irrtum und
Schein, 1764.

1
Para tanto, Brentano se posiciona, por um lado, diante da filosofia transcendental kantiana e suas
reelaborações pelo idealismo alemão e, por outro, em relação à corrente da psicofísica que então se
expandia, em especial, a partir dos trabalhos de Hermann von Helmholz, Wilhelm Wundt e Gustav
Fechner. Brentano recusa a posição dos psicofísicos, segundo a qual as representações psíquicas seriam
derivadas da intensidade da impressão sensível sobre os órgãos dos sentidos. Isso implicaria uma
causalidade entre fenômenos físicos e fenômenos psíquicos, como se estes fossem resultantes
daqueles. Para Brentano, os fenômenos psíquicos são mais evidentes que os fenômenos físicos, ao
aparecerem diretamente à consciência, sem a mediação dos sentidos. Um fenômeno psíquico ou é uma
representação psíquica ou pressupõe uma representação. Assim, em atos de julgamento, de
imaginação, lembrança, crença ou em expressões de afeto, a intensidade desses atos deve se derivar
do respectivo conteúdo de representação consciente que lhes subjaz. Brentano contesta, com isso, que
os fenômenos psíquicos se determinem seja por estímulos externos, provenientes do mundo físico –
como afirmavam os psicofísicos – seja por estímulos inconscientes, como formulara Herbart. Em sua
tese da auto-fundamentação dos fenômenos psíquicos, Brentano apresenta a teoria da intencionalidade,
no sentido de que a consciência se volta a objetos ou é sempre consciência de algo (de uma objetividade
imanente):

Todo fenômeno psíquico é caracterizado através do que os escolásticos da Idade Média


designavam como a in-existência (ou existência mental) intencional de um objeto, e o que nós,
embora com expressões não tão inequívocas, denominaríamos relação a um objeto, direcionar-
se a um objeto (aqui não se deve compreender uma realidade) ou a objetividade imanente. Cada
[ato de consciência] contém em si algo como objeto, embora não da mesma maneira. Na
representação é algo representado, no julgamento é algo aceito ou rejeitado, no amor amado,
no ódio odiado, no desejo desejado, etc. Esta inexistência intencional é exclusivamente peculiar
aos fenômenos psíquicos. Nenhum fenômeno físico mostra algo semelhante.2

Aluno de Brentano em Viena em 1886/87 e a quem reconhece como mestre, Husserl herda de
Brentano a tarefa de descrever os diversos modos da intencionalidade e as diversas formas de
objetividade que aparecem à consciência. Husserl radicaliza a teoria da intencionalidade de Brentano
ao ressaltar que a consciência não se direciona a representações de objetividades, mas a objetividades
mesmas, implicando a insuficiência metodológica da separação entre fenômeno físico e fenômeno
psíquico. A fenomenologia, embora seja uma disciplina filosófica propriamente fundada por Husserl,
não corresponde simplesmente a doutrinas de Husserl, mas à fundamentação de um campo de estudos
com métodos próprios. Trata-se de métodos que não se confundem com os procedimentos e teorias das
ciências naturais, tal como estas se apresentavam no fim do século XIX. Nestas os fenômenos
geralmente são considerados como algo em que se manifestam propriedades e leis próprias, por
exemplo, peso, gravidade, extensão. Já os fenômenos para a fenomenologia são vividos da consciência,
contextos de consciência que constituem a experiência de algo. Este algo (die Sache) pode ser uma
coisa concreta que percebemos, um sentimento, um número, uma sentença lógica etc. Em cada caso,
as respectivas vivências da consciência se estruturam de um modo específico, de forma que o relativo
decurso da experiência seja reconhecido, por exemplo, como um instrumento determinado, como um
sentimento, um valor etc. O objeto da fenomenologia não é uma facticidade empírica dentre outras,
mas a consciência em sua intencionalidade: em sua propriedade essencial de ser sempre consciência
de algo, nas diferentes modalidades de ato e correlato. Assim também não se trata apenas de determinar
a diferença entre vivências de pensamento e validades lógico-matemáticas, mas de apresentar e
descrever como idealidades se manifestam nas próprias vivências da consciência. Tal será a exigência
da fenomenologia descritiva de fundamentar conceitos e leis lógicas em atos psíquicos intuitivos,
recusando ou descolocando o psicologismo e o logicismo.
2
Brentano, Psychologie vom empirischen Standpunkt, 1874, p. 124.

2
I.2. Considerações introdutórias sobre a fenomenologia de Husserl na perspectiva da história da
filosofia: Husserl e Descartes / II. Husserl e Kant – Influências e críticas (Resumo para aula: Alice
Serra)

I. Husserl e Descartes

“Descartes não entrevê a novidade radical do ego autêntico [...] e, como Colombo, acreditou
ter aportado num velho país quando tinha diante de si um continente inteiramente novo.”
(Husserl, Erste Philosophie I, p. 63 s.).

I.1. Influência de Descartes

. O ideal de evidência => crítica às certezas imediatas e aos pré-conceitos – crítica a tudo o que parece
se apresentar como evidente.
. A necessidade de reforma de todos os campos do saber e busca de um fundamento seguro.
. O ensaio de dúvida cética => não como recusa da verdade proveniente dos sentidos e outros âmbitos,
mas a époché como ato de colocar entre parênteses em atitude permanente => dúvida mais abrangente
que a cartesiana: mesmo o eu, em suas dimensões empírica e psicológica, situado no mundo, será
colocado entre parênteses.
=> A via cartesiana como uma das vias para o acesso à experiência: 1) ciências fundadas na
fenomenologia; 2) a colocação entre parênteses da crença na existência no mundo; 3) a conquista do
cogito e sua ampliação.

I.2. Críticas a Descartes

. Infidelidade de Descartes aos seus próprios princípios => o “conteúdo doutrinal” do cartesianismo
deve ser abandonado “por fidelidade aos princípios de Descartes”: reforçar o princípio da ausência de
pressupostos que ele professava, mas superar a proeminência da ciência matemática da natureza.
. Descartes teria desconhecido o verdadeiro significado do “subjetivo” => independência da
subjetividade em relação ao mundo como uma “separação real” entre duas substâncias.
. Dualismo: alternativa entre a presença plena do objeto na ideia intelectual e sua ausência ou
deficiência na dimensão sensível.
. “Separação real” e “transcendência real” dos objetos em relação à sua “manifestação”.
. O “ego autêntico” é reduzido a ego psicológico, a “imanência” é entendida como imanência real =>
crítica à ideia de representação moderna.

Þ A verdadeira redução deverá significar o fim da oposição e da exterioridade entre duas “regiões
de seres”.

II. Husserl e Kant

“A obra de Kant contém ouro em grande abundância. Mas é preciso quebrá-lo e derretê-lo no fogo
da crítica radical, a fim de extrair seu conteúdo.” (Husserl, Hua XXV, p. 206).

“[...] [a fenomenologia] é pós-kantiana pois procura evitar a sistematização metafísica; é uma


filosofia do século XX que almeja restituir a este século sua missão científica fundando em novas
bases as condições da ciência. [...] Kant pesquisava já as condições a priori do conhecimento, mas

3
esse a priori prejulga a solução. A fenomenologia rejeita até mesmo tal hipótese. Daí seu estilo
interrogativo, seu radicalismo, seu inacabamento essencial.” (J. F. Lyotard, A fenomenologia, p.
8)

“[...] toda intuição originária que se doa é uma fonte de legitimação do conhecimento, tudo que
nos é oferecido originariamente na ‘intuição’ [...] deve ser apreendido como se doa, mas também
somente nos limites em que se doa.” (Husserl, HUA XIX/1: Logische Untersuchungen, p. 51).

II.1. Importância de Kant

. Influência da tradição filosófica kantiana, sobretudo a partir de Natorp (neokantismo de Marburg).


. o “ouro” em Kant teria sido a revolução copernicana como retorno à subjetividade transcendental.
. A revolução copernicana como mudança radical de perspectiva: dos objetos da experiência para a
experiência dos objetos.
. Kant demonstrou como podemos ter um conhecimento objetivo e universal, a despeito do caráter
limitado de nossa capacidade de conhecer.
. Passagem de um modelo de conhecimento infinito ou “teocêntrico” (Luft) para um modelo
antropocêntrico de conhecimento, introduzindo a perspectiva como uma característica de nossa
cognição humana.
. Kant seria um precursor da fenomenologia ou um “primeiro fenomenólogo” (Luft), ao insinuar que
o ser deve ser dado sob uma certa perspectiva e deve ser apreendido como ele se dá, enquanto
fenômeno => Necessidade de afirmar a ideia de perspectiva na experiência, como oposta a uma ideia
de perspectiva abstrata ou “sem perspectiva”.
. A partir de 1913 Husserl concebe sua fenomenologia como uma forma de filosofia transcendental.
Ele se apropria deste conceito kantiano, mas explicita que seu idealismo transcendental seria um novo
método, que inverte o a priori, partindo das modalidades de doação na primeira esfera, às condições
de sua validação, implicando aquilo que também se constitui de modo implícito.

II.2. Críticas a Kant a partir de Brentano

Influência parcial em Husserl da crítica de Brentano a Kant (e à filosofia moderna):


Quatro fases da filosofia: 1) a investigação científica rigorosa, seguida de quatro fases de decadência:
2) primazia da sabedoria prática e miscelânia entre fé e razão; 3) abandono ao ceticismo; 4) abandono
ao subjetivismo. (Brentano, Versuch über die Erkenntnis)
=> Brentano: Necessidade de contornar o excesso de subjetivismo de Kant a partir de uma psicologia
de base empírica / Husserl: a partir de um retorno às coisas mesmas: críticas ao sentido kantiano de a
priori.
=> As correspondências de Husserl com Natorp e Cohen teriam possibilitado a Husserl livrar-se do
antikantismo radical de Brentano e reconfigurar o sentido de transcendental (Dussort).

II.3. Críticas de Husserl a Kant

. O que deve ser esclarecido não é somente a possibilidade dos juízos sintéticos a priori ou a
possibilidade do conhecimento, mas, num nível anterior ao fato da ciência e sua fundamentação
transcendental, as diferentes validades dos objetos que se constituem via diferentes intencionalidades,
em diferentes doações de sentido.
. Para a fenomenologia somente há ser na medida em que é experienciado/vivido => o sujeito que o
vivencia não coincide com um ponto de vista absoluto, mas também não se limita aos conhecimentos
do mundo físico.

4
. Recusa da distinção entre coisa em si e aparência, entre o mundo como em si e como dado na
experiência do ser humano.
. Kant teria deixado de lado o mundo quotidiano da percepção, os juízos sintéticos a posteriori, a
multiplicidade das vivências constituintes.
. Recusa de que o julgamento analítico se reduza a uma simples tautologia => quais seriam as condições
da consciência de identidade e as diferenças subjacentes à unidade ideal?
. Kant teria perguntado como a metafísica é possível, como a ciência é possível, mas não como a
filosofia transcendental é possível => fenomenologia transcendental de Husserl: necessidade de uma
“auto-crítica permanecente” (Dussort).
. Kant apresenta a Husserl o ideal da filosofia científica, enquanto uma ciência fundada na experiência
humana do mundo / Husserl visa a estabelecer a fenomenologia como ciência rigorosa das aparências,
ou como ciência eidética do ser tal como ele é dado à consciência que o experimenta.
. Kant teria uma noção implícita de intencionalidade quando ele passa da coisa em si para a aparência
e da aparência como aparência-para em direção a um sujeito humano => Husserl pretende ir além de
um modelo antropologista de conhecimento: “À essência de todo ser pertence uma relação com a
consciência” (Hua XXXVI, 36). Aqui estaria implicada toda e qualquer consciência passível de ter
intencionalidade.
. A eidética transcendental e a fenomenologia da sensibilidade secundária como superações da estética
transcendental de Kant.
. O fato não é mais que a cognição humana exista, que a ciência da natureza exista, mas que haja a
experiência fenomenológica como tal (als solche) => este é o fato cujas condições de possibilidade
transcendentais devem ser esclarecidas.

Referências bibliográficas

DEPRAZ, Natalie. Compreender Husserl. Trad. Fábio dos Santos.Petrópolis: Vozes, 2007.

DUSSORT, H. Husserl juge de Kant. Revue philosophique de la France et de l’étranger, 4, 1959, p.


532-544.

LUFT, Sebastian. From Being to Givenness and Back: Some Remarks on the Meaning of
Transcendental Idealism in Kant and Husserl. International Journal of Philosophical Studies, 15(3),
p. 367–394.

MOURA, Carlos A. R. Cartesianismo e fenomenologia: exame de paternidade. Analítica, vol. 3, nº1,


p. 195-218.

SANTOS, José H. Do Empirismo à Fenomenologia: A crítica do psicologismo nas Investigações


Lógicas de Husserl. São Paulo : Loyola, 2010.

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