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NOTA DO EDITOR

1 – CONSCIÊNCIA, INCONSCIENTE E INDIVIDUAÇÃO

2 – SOBRE O EMPIRISMO DO PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO

3 – SOBRE O SIMBOLISMO DA MANDALA

4 – MANDALAS

ÍNDICE ONOMÁSTICO

ÍNDICE DE MATERIAIS
NOTA DO EDITOR

Os textos compilados neste livro foram extraídos da obra de Carl Gustav Jung Os
Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Foram selecionados aqueles capítulos que
se referem em menor ou maior medida ao significado que as formas
concêntricas, as mandalas, têm na teoria junguiana, e à simbologia que a elas
associa o psiquiatra e ensaísta suíço.

A presente edição é absolutamente fiel ao texto original do qual procede, motivo


pelo qual a numeração dos parágrafos, ainda que consecutiva, segue a obra de
procedência. Todos os demais – notas de rodapé, referências e demais
anotações – guardam total coerência com o texto.
1 – CONSCIÊNCIA, INCONSCIENTE E INDIVIDUAÇÃO*

489 A relação entre a consciência e o inconsciente, por um lado, e o processo de


individuação, por outro, são problemas que surgem com toda regularidade em uma fase
avançada do tratamento analítico. Por “analítico” entendo qualquer modo de proceder que
leve em conta a existência do inconsciente. Essa problemática, ao contrário, não existe para
um modo de proceder sugestivo. Mas creio que, em princípio, não serão demais algumas
palavras acerca da individuação.

490 Emprego o termo “individuação” no sentido de um processo que gera um


“indivíduo” psicológico, quer dizer, uma unidade1, uma totalidade independente,
indivisível. Supõe-se, em geral, que a consciência equivale à totalidade do indivíduo
psicológico. Porém a soma das experiências que se explicam com a ajuda unicamente da
hipótese

*
Uma primeira versão deste trabalho foi escrita em inglês, com o título “The Meaning of Individuation”, e
forma o capítulo inicial de The Integration of Personality (Farrar & Rinehart, New York y Toronto, 1939, y
Kegan Paul, Trench, Trubner & Co., London, 1940). A versão alemã levada a cabo pelo próprio autor
apareceu com o título atual no Zentralblatt für Psychotherapic und ibre Grenzgebiete XI/5 (Leipzig, 1939)
pp.257-270.

1
A física moderna (De Broglie) emprega para isto o conceito de “descontínuo”.
de processos psíquicos inconscientes faz surgir a dúvida de se o eu e seus conteúdos são
efetivamente idênticos com a “totalidade”. Se existem realmente processos inconscientes,
estes pertencem seguramente à totalidade do indivíduo, ainda que não sejam parte integrante
do eu consciente. Se fossem uma parte do eu, teriam que ser conscientes, pois tudo o que está
em relação imediata com o eu é consciente. A consciência é inclusive equivalente à relação
entre o eu e os conteúdos psíquicos. Os chamados fenômenos inconscientes estão em tão
escassa relação com o eu que em muitas ocasiões não se vacila em negar sua própria
existência. E no entanto aparecem dentro dos limites do comportamento humano. Um
observador atento pode vê-los facilmente, enquanto o observado não tem consciência nem
sequer do fato de que está revelando seus mais íntimos pensamentos ou até coisas que nunca
pensou conscientemente. Mas é um preconceito supor que algo que nunca se pensou não tem
lugar dentro da psique. Temos quantidade de provas de que a consciência está muito longe de
abarcar a totalidade da psique. Muitas coisas ocorrem semiconscientemente e outras tantas
acontecem inclusive de modo completamente inconsciente. Ao investigar detalhadamente, os
fenômenos de personalidade dupla e múltiplas se pode fazer muitas observações que
constituem um abundante material probatório. (me remeto às obras de Pierre Janet, Théodore
Flournoy, Morton Prince e outros.)

491 Em qualquer caso, a psicologia médica chegou a ter uma impressão em profundidade
da importância deste gênero de fenômenos que causam toda classe de sintomas psíquicos e
fisiológicos. Sendo assim as coisas, a hipótese da existência de um eu que expresse a
totalidade psíquica resulta insustentável. Ao contrário, faz-se evidente que a totalidade teria
que abarcar forçosamente tanto o imenso terreno do acontecer inconsciente como a
consciência, e que o eu só poderia ser o centro da consciência.
492 Desejar-se-á saber, como é natural, se o inconsciente possui também um centro.
Eu apenas me atreveria a supor que no inconsciente haja um princípio dominante análogo ao
eu. O fato é que tudo assinala na direção contrária. Se houvesse um centro assim, quase
poderíamos esperar que aparecessem regularmente signos de sua existência. Os casos de
desdobramento da personalidade seriam então fenômenos frequentes em lugar de algo
sumamente estranho que se dá poucas vezes. A forma como se apresentam os fenômenos
inconscientes costuma ser bastante caótica e assistemática. Os sonhos, por exemplo, não
mostram nem uma ordem manifesta nem tendência sistemática de nenhum gênero, como
deveria ser o caso se se baseassem numa consciência pessoal. Os filósofos Carl Gustav Carus e
Eduard von Hartmann tratam o inconsciente como um princípio metafísico, uma espécie de
espírito universal, sem rastro algum de personalidade ou de consciência do eu, e também a
“vontade” de Schopenhauer carece de eu. Os psicólogos modernos consideram assim mesmo
o inconsciente como uma função carente de eu, por debaixo do umbral da consciência.

Contrariamente aos filósofos, eles tendem a fazer derivar da consciência as funções


subliminares. Janet pensa em certa debilidade da consciência, que é incapaz de reter todos os
processos psíquicos. Freud, por seu lado, prefere a ideia de que existem fatores conscientes
que reprimem certas tendências. Muito fala em favor de ambas as teorias, pois se dão
muitíssimos casos nos quais a debilidade da consciência é efetivamente a causa de que
desapareçam os conteúdos ou de que sejam reprimidos os conteúdos desagradáveis. É óbvio
que observadores tão conscienciosos como Janet e Freud não teriam estabelecido teorias em
que o inconsciente provém sobretudo de fontes conscientes se tivessem descoberto nas
manifestações do inconsciente pegadas de uma personalidade independente ou de uma
vontade autônoma.
493 Se é verdade que o inconsciente não consta de outra coisa senão conteúdos que
carecem casualmente de consciência, mas que no restante não se distinguem em absoluto do
material consciente, então se poderia identificar mais ou menos o eu com a totalidade da
psique. Porém a situação não é tão sumamente fácil. Ambas as teorias se baseiam sobretudo
em experiências com neurose. Nenhum dos dois autores dispõe de especial experiência
psiquiátrica. Se a tivessem, seguramente teriam ficado impressionados diante do fato de que o
inconsciente apresenta conteúdos completamente distintos dos da consciência, tão estranhos
que ninguém os pode compreender, nem o próprio paciente nem seu médico. O enfermo é
devorado por uma onda de pensamentos que lhe são tão alheios como à pessoa normal. Por
isso o chamamos “louco”: não podemos compreender suas ideias. Só podemos entender uma
coisa quando possuímos as necessárias condições prévias. Porém neste caso essas condições
estão tão afastadas de nossa consciência como estavam alheias do espírito do paciente antes
de tornar-se louco. Se não fosse assim, jamais teria se convertido em um doente mental.

494 Não existe, com efeito, nenhum âmbito conhecido por nós de imediato do qual
possamos derivar representações patológicas. Não se trata de modo algum de conteúdos mais
ou menos normais, roubados quase casualmente da consciência. Trata-se, pelo contrário, de
produtos de uma natureza para o momento, absolutamente estranha. Diferencia-se de todos
os pontos de vista, do material neurótico, que não pode ser considerado como totalmente
alheio ou estranho. O material de uma neurose se compreende humanamente, o de uma
psicose, não2.

2
Só me refiro, naturalmente, a certos casos de esquizofrenia, como por exemplo o célebre caso de Schreber (Denkwürdigkeiten eines
Nervenkranken) ou o caso publicado por Nelken (“Analystische Beobachtungen über Phantasien eines Schizophrenen”).
495 Este curioso material psicótico não pode ser derivado da consciência, porque
nesta não se dão as condições necessárias que ajudem a explicar o inusitado de tais
representações. Os conteúdos neuróticos podem ser integrados sem grande prejuízo do eu,
porém as ideias psicóticas, não. Estas seguem sendo inacessíveis, e sufocam em menor ou
maior grau a consciência do eu. Têm inclusive uma clara tendência de atrair o eu ao interior do
seu “sistema”.

496 Tais casos demonstram que em determinadas circunstâncias o inconsciente é


capaz de assumir o papel do eu. As consequências desse truque são a loucura e a confusão,
pois o inconsciente não é uma segunda personalidade com um funcionamento organizado e
centralizado, mas provavelmente uma soma descentralizada de processos psíquicos. Por outro
lado, nada do que produz o espírito humano está absolutamente fora do âmbito psíquico. Até
a ideia mais demencial tem que corresponder a algo que exista na psique.

Não é de supor que determinadas cabeças contenham elementos que não se dão em outras.
Tampouco podemos supor que o inconsciente tenha a capacidade de tronar-se autônomo em
determinadas pessoas, a saber, nas que têm uma predisposição à enfermidade mental. É
muito mais provável que a tendência à autonomia seja uma propriedade mais ou menos geral
do inconsciente. Em certo sentido, a perturbação mental não é senão um exemplo excelente
de um fato escondido, porém que se dá de um modo geral. A tendência à autonomia se torna
evidente sobretudo nos estados afetivos, inclusive nos das pessoas normais. Em um estado
fortemente emocional se fazem e se dizem coisas que ultrapassam a medida habitual. Não é
preciso muito: o amor e o ódio, a alegria e a dor bastam muitas vezes para que o eu seja
substituído pelo inconsciente. Até as mais estranhas ideias podem apoderar-se em tais
ocasiões de pessoas que são saudáveis em todo o resto. Grupos, comunidades e até povos
inteiros podem ser atacados desse modo em forma de epidemias mentais.

497 A autonomia do inconsciente começa ali onde surgem emoções. As emoções são
reações instintivas, involuntárias, que transtornam a ordem racional da consciência mediante
explosões elementares. Os afetos não são “atos” da vontade, mas acontecem. No afeto
aparecem, não poucas vezes um traço de caráter que lhe resulta alheio, inclusive a parte
imediatamente implicada, ou em ocasiões também despontam involuntariamente conteúdos
ocultos. Quanto mais violento é um afeto, tanto mais se aproxima ao patológico, quer dizer, a
um estado em que a consciência do eu é eliminada por conteúdos autônomos que com
frequência foram antes inconscientes. Enquanto o inconsciente se encontrar em um estado
letárgico, parece como se este âmbito escondido não tivesse nenhum conteúdo. Por isso, para
nós, sempre é uma surpresa que possa surgir de repente, de um nada aparente, algo
desconhecido até então. No entanto, em seguida chega o psicólogo e explica que isto teve que
ocorrer por esta e esta razão. Porém, quem teria dito isto antes?

498 Dizemos que o inconsciente não é nada e no entanto é uma realidade em


potencial; o pensamento que vamos pensar, o ato que vamos realizar, inclusive o destino de
que nos lamentaremos amanhã já estão de modo inconsciente no hoje. O desconhecido que o
afeto põe a descoberto sempre existiu e, mais cedo ou mais tarde, se apresentaria à
consciência. Por isso sempre se deve contar com a existência do que ainda não foi descoberto.
Podem ser, como já disse, traços de caráter desconhecidos. Porém desta maneira também
podem sair à luz futuras possibilidades de desenvolvimento, talvez justamente em
Uma explosão afetiva que poderia mudar radicalmente uma situação. O inconsciente tem um
duplo rosto; por um lado, seus conteúdos remetem a um mundo instintivo pré-consciente,
pré-histórico, por outro lado, antecipa potencialmente um futuro, justo sobre a base de uma
preparação instintiva dos fatores que determinam o destino. Se se conhecesse por completo o
traçado básico, inconsciente, de uma pessoa, seria possível desde o princípio predizer em
grande parte seu destino.

499 Na medida em que essas tendências inconscientes – seja em forma de imagens


retrospectivas, seja em forma de antecipações – aparecem nos sonhos foram entendidas em
todos os milênios passados muito menos como regressões históricas do que como
antecipações do futuro; e com certa razão. Porque todo devir, acontece sobre a base do que
foi e do que, como marca de uma recordação, sempre seguirá sendo consciente ou
inconscientemente. Então, se o homem nunca nasce como invento totalmente novo mas que
sempre repete o estágio de desenvolvimento recém alcançado, contém inconscientemente,
como dado apriorístico, toda a estrutura psíquica que foi desenvolvendo pouco a pouco, em
um sentido de subida ou de descida em sua linha genealógica.

Este fato dá ao inconsciente seu aspecto “histórico”, porém ao mesmo tempo é a conditio sine
qua non de uma determinada configuração do porvir. Por esta razão frequentemente é muito
difícil decidir se uma determinada manifestação autônoma do inconsciente pode ser
entendida sobretudo como efeito (e, portanto, em sentido histórico) ou como finalidade (e,
portanto, em sentido antecipatório).

A consciência em geral, pensa sem atender a condicionamentos ancestrais e sim ter em conta
a influência desse a priori na configuração do destino. Enquanto nós pensamos em períodos de
anos, o inconsciente pensa e vive em períodos milenares. Por isso, se acontece algo
que consideramos uma assombrosa novidade, quase sempre é uma história antiguíssima.
Continuamos esquecendo, como as crianças, o que foi ontem. Continuamos vivendo em um
mundo maravilhosamente novo, em que o homem se considera surpreendentemente jovem
ou “moderno”. Este estado é uma prova inequívoca da juventude da consciência humana, que
ainda não é consciente de seus condicionamentos prévios.

500 O “homem normal” me convence da autonomia do inconsciente mais ainda que o


doente mental. A teoria psiquiátrica pode alegar transtornos orgânicos, reais ou aparentes, do
cérebro, debilitando assim a importância do inconsciente. Porém este ponto de vista não é
aplicável quando se trata de humanidade normal e corrente. O que se vê que acontece no
mundo não são “nebulosos resíduos de atividades em outro tempo consciente” mas
manifestações de um pré-condicionamento anímico vivo, que segue existindo e sempre
continuará existindo. Se não fosse assim, estaria justificado nosso assombro. Porém
justamente aqueles que menos admitem a autonomia do inconsciente são os mais
surpreendidos. Devido à sua juventude e vulnerabilidade, nossa consciência tem uma
tendência, facilmente compreensível, a menosprezar o inconsciente, mais ou menos como
uma criança que, quando quer fazer algo por sua conta, não pode se mostrar muito
impressionado pela majestade de seus pais. Nossa consciência se desenvolveu, tanto
individual como historicamente, a partir da obscuridade e do crepúsculo de um estado original
de inconsciência, já haviam funções e processos psíquicos muito tempo antes que houvesse
consciência do eu. O “ter pensamentos” já existia antes que o homem pudesse dizer: “Sou
consciente de que penso”.

501 Os primitivos “perigos da alma” consistem principalmente em perigos a que está


exposta a consciência.
A fascinação, a feitiçaria, a perda da alma, a obsessão, etc., são sob todas as luzes fenômenos
de dissociação e de supressão da consciência por obra de conteúdos inconscientes. Nem
sequer o homem civilizado está livre do obscuro dos tempos primitivos. O inconsciente é a
mãe da consciência. Onde existe uma mãe, existe também um pai. Porém parece que este é
desconhecido. A consciência, esse ser juvenil, poderá negar o seu pai, porém não a sua mãe.
Seria demasiado pouco natural: em todas as crianças se pode ver com quanta vacilação e
lentidão se desenvolve a consciência do eu a partir de uma consciência fragmentária de
momentos ilhados, e como essas ilhas emergem pouco a pouco da completa obscuridade do
puramente instintivo.

502 A consciência provém de uma psique inconsciente que é mais antiga que ela e
segue funcionando junto com a consciência ou apesar da consciência. Ainda existem
numerosos casos em que os conteúdos conscientes se tornam outra vez inconscientes
(mediante a repressão, por exemplo), o inconsciente, como totalidade, está muito longe de
constituir só um resto da consciência. (São talvez resíduos da consciência as funções psíquicas
dos animais?)

503 Como já disse antes, existe pouca esperança de encontrar no inconsciente uma
ordem equivalente à consciência do eu. Não parece que estejamos em vias de encontrar uma
personalidade inconsciente do eu, algo assim como uma “anti-terra” pitagórica. Porém não se
pode deixar de observar o fato de que, o mesmo que a consciência vai despontando dentre a
escuridão do inconsciente, também o centro do eu surge de uma obscura profundidade em
que estava contida de algum modo enquanto existia em potencial. Da mesma maneira que
uma mãe humana só pode parir um filho humano cuja natureza mais pessoal, durante sua
existência potencial, já estava escondida nela, quase nos vemos obrigados a acreditar que
o inconsciente não pode ser tão somente uma acumulação de instintos e imagens. Algo tem
que torná-lo coerente e dar-lhe expressão ao conjunto. Seu centro, no entanto, não pode ser o
eu, posto que o eu nasceu na consciência e se dirige contra o inconsciente, excluindo-o na
medida do possível. Ou pode ser que o inconsciente tenha perdido seu centro pelo nascimento
do eu? Se assim fosse, seria de esperar que o eu fosse muito superior ao inconsciente quanto à
influência e importância. Então o inconsciente seguiria modestamente as pegadas da
consciência. Mas isto seria justo o que desejamos.

504 Por desgraça, os fatos mostram o contrário: a consciência está sujeita com mais
facilidade do que se deseja a influências inconscientes e estas são muito frequentemente mais
verdadeiras e mais sensatas que o pensar consciente. Ocorre mesmo assim que os motivos
inconscientes prevalecem com relativa frequência sobre as decisões conscientes, justamente
quando se trata das questões principais da vida. O destino individual depende inclusive em
grande medida de fatores inconscientes. Um exame exato mostra até que ponto as decisões
conscientes dependem de que não hajam perturbações no funcionamento da memória. Porém
a memória muitas vezes está sujeita a perturbadoras intromissões de conteúdos inconscientes.
Ademais, em geral funciona de maneira automática. Normalmente necessita das pontes da
associação, mas com frequência se serve delas de um modo tão pouco comum que faz falta
outro exame profundo de todo o processo de reprodução quando se quer averiguar como
puderam conseguir chegar à consciência certas recordações. E em não poucas ocasiões é
impossível encontrar essas pontes. Em tais casos não se pode rejeitar sem mais nem menos a
hipótese de que o inconsciente tem atividade própria. Outro exemplo é a intuição que se
baseia sobretudo em processos inconscientes de natureza muito complexa. Devido a
essa peculiaridade defini a intuição como “percepção através do inconsciente”.

505 Normalmente, a colaboração entre o inconsciente e a consciência funciona sem


fricções ou transtornos, de tal forma que nem sequer se nota a existência do inconsciente.
Porém se um indivíduo ou grupo social se afasta demasiado da base instintiva, então se
percebe todo o ímpeto das forças inconscientes. A colaboração do inconsciente é sensata e
metódica, e até quando se comporta de modo contraposto à consciência, sua expressão
continua sendo inteligentemente compensatória como se quisesse tratar de restabelecer o
equilíbrio perdido.

506 Há sonhos e visões de um gênero tão deliberado que certas pessoas se negam a
admitir que têm sua origem em uma psique inconsciente. Preferem supor que tais fenômenos
provêm de uma espécie de “superconsciência”. Tais pessoas estabelecem uma diferença entre
uma espécie de inconsciente fisiológico e instintivo e uma capa ou nível de consciência
“acima” da consciência a que chamam de “superconsciência”. Essa psique, que na filosofia
indiana leva o nome de “consciência superior”, corresponde na realidade ao que o Ocidente
chama de “inconsciente”. Mas existem uma série de observações que quase falam a favor de
uma possibilidade de uma consciência no inconsciente, como por exemplo certos sonhos,
visões e experiências místicas. Porém se supomos uma consciência no inconsciente,
imediatamente nos vemos confrontados com o fato de que não pode existir consciência sem
sujeito, isto é, sem um eu com o qual estejam relacionados os conteúdos. A consciência
necessita de um centro, quer dizer, um eu que seja consciente de algo. Não sabemos de
nenhum outro gênero de consciência sem eu. Não pode haver uma consciência em que
ninguém diga: “Sou consciente”.
507 Não vejo nenhum mérito em especular sobre coisas que não podemos saber. Por
isto me abstenho de afirmar nada que transpasse os limites da ciência. Nunca foi possível
descobrir no inconsciente uma espécie de personalidade, algo comparável ao nosso eu. Ainda
que não se possa encontrar um “segundo eu” (exceto nos raros casos de dupla personalidade),
as manifestações do inconsciente mostram de vez em quando rastros de personalidades. Um
exemplo comum disto é o sonho em que uma série de pessoas reais ou imaginárias
representam o pensamento do sonho. Em quase todas as dissociações importantes as
manifestações do inconsciente adotam um forte caráter de personalidade. Porém quando se
examina cuidadosamente o comportamento e os conteúdos espirituais dessas personificações,
salta à vista seu caráter fragmentário. Parecem representar complexos que se dissociaram de
um conjunto maior, e são qualquer coisa antes de centro pessoal do inconsciente.

508 A mim sempre impressionou o caráter de personalidade dos fragmentos


dissociados. Por isto me perguntei muitas vezes se não seria justificada a hipótese de que, se
tais fragmentos têm personalidade, a peça inteira de que foram separados deve ter muito mais
direito a exigir que seja considerada pessoal. A conclusão parece lógica, já que não tem
importância que os fragmentos sejam grandes ou pequenos. Por que não possuiria
personalidade todo o conjunto? A personalidade não tem como necessária premissa a
consciência. Esta pode dormir ou sonhar.

509 O aspecto geral das manifestações inconscientes é fundamentalmente caótico e


irracional, apesar de certos sintomas de inteligência e intencionalidade. O inconsciente cria
sonhos, fantasias, visões, emoções, ideias grotescas e outras coisas. É exatamente o que se
esperaria de alguém que está sonhando. Parece ser uma personalidade que nunca esteve
desperta e que nunca foi consciente de uma vida vivida e de uma continuidade própria.
Só resta a questão de se é possível a hipótese da existência de uma personalidade dormente e
escondida como esta. Pode ser que tudo o que tem caráter de personalidade e podemos
encontrar no inconsciente esteja contido na mencionada personificação. Como isto é muito
possível, todas as minhas suposições não conduziriam a nada, a não ser que houvessem provas
da existência de personalidades muito menos fragmentárias, quer dizer, mais completas, ainda
que escondidas.

510 Estou convencido de que existem tais provas. Por azar este material probatório
faz parte das sutilezas da análise psicológica. Por isto não é precisamente fácil dar uma ideia
disto de uma forma fácil e convincente.

511 Vou começar com uma breve constatação: no inconsciente de cada homem está
escondida uma personalidade feminina, e em cada mulher uma personalidade masculina.

512 É um fato bem conhecido que o sexo é determinado por uma maioria de genes
masculinos ou femininos. A minoria de genes do sexo oposto não se perde. Por isto, o homem
possui uma faceta de caráter feminino, quer dizer, tem uma figura feminina inconsciente: um
fato de que ele geralmente não é consciente em absoluto.

Eu dei a esta figura, permito-me dá-lo por sabido, o nome de ânima. Para não repetir o já
conhecido, remeto aos trabalhos correspondentes3. Esta figura aparece com frequência nos
sonhos, onde se pode observar ao vivo todos os atributos que coloquei em relevo em
publicações anteriores.

3
Tipos psicológicos. Definições s. v. Alma [OC 6,1]; As relações entre o eu e o inconsciente [OC 7,2], segunda
parte, capítulo 2; Psicologia e alquimia [OC 12], segunda parte, e “sobre o arquétipo com especial
consideração ao conceito de ânima” [trabalho 3 deste volume].
513 Outra figura não menos importante e bem definida é a da sombra, que, assim
como a ânima, aparece projetada em pessoas adequadas ou muitas vezes também,
personificada como tal, nos sonhos. A sombra coincide com o inconsciente “pessoal” (que
corresponde ao conceito freudiano de inconsciente). Como a ânima, esta figura foi
representada com bastante frequência na literatura. Faço referência à relação Fausto-
Mefistófeles, e também a Elixiere des Teufels, de Hoffmann, para mencionar duas
caracterizações típicas. A figura da sombra personifica tudo o que o sujeito não reconhece
porém – direta ou indiretamente se impõe a ele, por exemplo deficientes traços de caráter e
outras tendências incompatíveis. Na sequência, remeto também à bibliografia4.

514 O fato de que o inconsciente personifique, inclusive nos sonhos, certos conteúdos
de carga afetiva é a razão da minha terminologia, destinada a um uso prático, ter adotado a
personificação e expressá-la na formulação do nome.

515 Além das figuras indicadas, existem algumas outras que são menos frequentes e
menos chamativas porém que se configuraram na literatura e na mitologia. Menciono por
exemplo a figura do herói5 e a do “ancião sábio6”, para citar também duas das mais
conhecidas.

516 Todas estas figuras entram na consciência de modo totalmente autônomo, tão
rápido como se fossem estados patológicos. Em relação à ânima, gostaria de chamar a atenção
sobre o caso de Nelken7.

4
Toni Woff Einfübrung in die Grundlagen der komplexen Psychologic, Jung, “Sobre os arquétipos do inconsciente coletivo”
[trabalho 1 deste volume; também Aion, OC 9/2, cap.2].
5
Cf. Símbolos de transformação [)C 5], passim.
6
“Acerca da fenomenologia do espírito nos contos populares” [trabalho 8 deste volume].

7
Nelken, 1.c.
O mais notável é, também, que esses carácteres têm relações das mais assombrosas com
relatos poéticos, religiosos ou mitológicos, sem que se possa mostrar que essas relações sejam
reais. Quer dizer, são formações analógicas espontâneas. Um caso deste gênero inclusive deu
lugar a uma acusação de plágio: em sua Atlântida, o escritor francês Pierre Benoit fez uma
exposição da ânima e de seu mito clássico que constitui um paralelo exato de Ella, de Rider
Haggard. O processo não teve resultado, ou seja, Pierre Benoit não conhecia Ella. (Poderia se
tratar também neste caso de engano criptomnéstico, que frequentemente é dificílimo
eliminar.) o aspecto claramente histórico da ânima, e também sua intensificação com a irmã, a
mãe, a mulher, a filha, unido ao correspondente motivo do incesto, encontra-se em Goethe
(“Ó, tu foste em tempos já sem vida minha irmã ou minha mulher*”) e também na figura da
ânima da rainha ou femina alba da alquimia. O alquimista inglês Ireneo Filareto, em escritos de
1645, observa que a “rainha” era “irmã, mãe e esposa” do rei. (Comentário às Duodecim
portae de Sir george Ripley, obra publicada em alemão em 1741 e que talvez (?) tenha
conhecido Goethe.) porém a mesma ideia se encontra também, muito exagerada, no paciente
de Nelken e em uma boa quantidade de casos observados por mim, nos quais era excluída sem
nenhuma dúvida qualquer influência literária. Além do mais, o complexo de ânima forma parte
do mais antigo acervo da alquimia latina8.

 No poema “Por quê nos olhas profundamente?” (À senhora von Stein).

8
f. a célebre Vivio Arislei (Artis auriferae II, pp. 246 ss.) que também existe em tradução alemã (Ruska, Die Vision des
Aristeus, pp. 22 ss.).
517 Sim, partindo dos sonhos, das fantasias e ideias delirantes dos pacientes,
estudam-se cuidadosamente as personalidades arquetípicas e seu comportamento9, tem-se
uma impressão em profundidade desta ampla e imediata relação com representações
mitológicas que o profano há tempos deixou de conhecer. Estas representações formam uma
espécie de grupo de estranhas entidades que se quisesse dotar de consciência do eu; quase
parecem apropriadas para isso. No entanto, esta ideia não encontra confirmação nos fatos. Em
sua maneira de se comportar, nada fala em prol de uma consciência do como a que
conhecemos. Apresentam, pelo contrário, todos os signos das personalidades fragmentárias:
estáticas, fantasmagóricas, sem problemas, sem autorreflexão, sem conflitos, sem dúvidas,
sem sofrimento; quiçá como deuses que não têm filosofia, mais ou menos como deuses
brâmanes do Samyutta-Nikâya, cujas errôneas opiniões necessitam de Buda para que as
retifique. Porém à diferença de outros conteúdos continuam sendo elementos estranhos no
mundo da consciência. São por isso desagradáveis intrusos, pois impregnam a atmosfera de
uma sensação de inquietantes pressentimentos, até o medo e o transtorno mental.

518 Quando se investigam seus conteúdos, quer dizer, o material fantástico que
constitui sua fenomenologia, encontram-se inumeráveis vinculações arcaicas e históricas, ou
seja, imagens de natureza arquetípica10. Este curioso fato permite tirar conclusões relativas à
“localização” do ânimus e da ânima dentro da estrutura psíquica: parece evidente

9
Um exemplo deste método na Psicologia e alquimia [OC 12}, segunda parte.
10
Em meu livro Símbolos de transformação [OC 5} descrevi o caso de uma jovem com uma “história heroica”, ou seja, com
uma fantasia do ânimus que produziu abundante colheita de material mitológico. Rider Haggard, Benoit e Goethe (em
Fausto) sublinharam o caráter histórico da ânima.
que vivem funcionam nas camadas mais profundas do inconsciente, a saber, na camada
profunda filogenética que designei com o nome de inconsciente coletivo. Essa localização
explica muito de seu caráter estranho: eles trazem para a consciência efêmera uma vida
psíquica desconhecida que pertence a um passado distante. É o espírito de nossos
desconhecidos ancestrais, seu modo de pensar e de sentir, seu modo de viver a vida no
mundo, os deuses e os homens. O fato de que existam essas camadas arcaicas é
provavelmente a raiz da crença em reencarnações e em lembranças e “existências anteriores”.
Como o corpo constitui uma espécie de museu de sua história filogenética, o psíquico também
faz o mesmo. Não temos nenhum motivo para supor a estrutura especial da psique seja a
única no mundo que não possa oferecer uma história que vá além de suas manifestações
individuais. Nem sequer à nossa consciência se pode negar uma história que abarca em torno
de cinco mil anos. Só a consciência do eu tem a cada vez um novo princípio e um final precoce.
Porém a psique inconsciente não só tem antiguidade infinita como também a possibilidade de
continuar crescendo e se integrando em um futuro igualmente distante. Ela conforma a
espécie humana, da qual é igualmente parte integrante o corpo, que é individualmente
perecível, mas coletivamente de idade incomensurável.

519 A ânima e o ânimus vivem em um mundo muito diferente do outro exterior, um


mundo em que o pulso do tempo é infinitamente lento e no qual o nascimento e a morte dos
indivíduos contam pouco. Não deve causar surpresa sua estranha natureza, tão estranha que
seu acesso à consciência muitas vezes equivale a uma psicose. O ânimus e a ânima, por
exemplo, pertencem sem nenhum gênero de dúvida ao material que vem à luz na
esquizofrenia.
520 O que disse sobre o inconsciente coletivo pode dar uma ideia mais ou menos
suficiente do que eu penso que significa este termo. Se voltarmos ao problema da
individuação, nos confrontamos com uma tarefa um tanto fora do comum: a psique consta de
duas metades incongruentes, que deveriam formar uma totalidade. Tende-se a pensar que a
consciência do eu é capaz de assimilar o inconsciente, ou ao menos se espera que seja possível
uma solução assim. Porém, por desgraça, o inconsciente é verdadeiramente inconsciente, ou
seja, o indivíduo não o conhece. E como se pode assimilar algo desconhecido? Mesmo que se
possa formar uma ideia bastante completa da ânima e de outras figuras, isto não significa que
se tenha penetrado nas profundidades do inconsciente. Tem-se a esperança de dominar o
inconsciente, os yogin, alcançam plenitude em samâdhi, um estado de êxtase que, pelo que
sabemos, corresponde a um estado de inconsciência. Não há importância que eles chamem ao
nosso inconsciente de “inconsciente universal”; o fato é que, no caso dos yogin o inconsciente
absorveu a consciência do eu. Eles não têm presente que uma ‘consciência universal” é uma
contradictio in adiccto, já que excluir, selecionar, diferenciar é a raiz e a essência de tudo o
que reclama o direito de chamar-se “consciência”. Ao contrário, uma “consciência universal”
do ponto de vista da lógica, é idêntica à inconsciência. É certo, não obstante, que quando se
aplicam exatamente os métodos do canon pali ou do yoga- sûtra se chega a um notável
aumento da consciência.

Porém, à medida que vai aumentando a consciência, cada um de seus conteúdos vai perdendo
claridade. Por fim, a consciência se torna ampla, porém crepuscular; um número infinito de
coisas desemboca em uma totalidade pouco clara, o que quase vem a constituir uma total
identidade dos dados subjetivos e objetivos.
Tudo isto este bem, mas é apenas recomendável em regiões situadas ao norte do trópico de
Câncer.

521 Esta é a razão pela qual devemos tratar de procurar outra solução. Acreditamos
na consciência do eu e no que chamamos realidade. As realidades de um clima nórdico são de
certo modo tão convincentes que nos sentimos muito melhor se não as esquecemos. Para nós,
faz sentido ocupar-mo-nos com a realidade. Por isto, a consciência do eu europeia tende a
absorver o inconsciente, e se isso resulta impraticável, tenta-se ao menos reprimi-lo. Porém
quando se entende algo do inconsciente, sabe-se que não pode ser absorvido. Sabe-se
também que não é factível reprimi-lo apenas, porque sabemos que o inconsciente é vida e que
essa vida se volta contra nós quando é reprimida, como acontece na neurose.

522 A consciência e o inconsciente não resultam um conjunto total se um é reprimido


e enfraquecido pelo outro. Se hão de combater-se mutuamente, que seja ao menos um
combate honesto, com os mesmos direitos para ambas partes, pois ambos são aspectos da
vida. A consciência deveria defender seu bom juízo e suas possibilidades de autoproteção, e a
vida caótica do inconsciente também deveria ter a possibilidade de obedecer sua própria
natureza na medida em que nós possamos suportá-lo. Isto significa luta declarada e, por vezes
colaboração declarada. Assim deveria ser, ao que parece, a vida humana. É o velho jogo do
martelo e a bigorna. O ferro que sofre entre ambos é forjado até resultar numa totalidade
indestrutível: o “indivíduo”.

523 Isto é mais ou menos o que chamo de “processo de individuação”. Como já sugere
o nome, trata-se de um processo ou desenvolvimento progressivo que surge do conflito de
ambos atos básicos psíquicos. Apresentei, ao menos em seus traços fundamentais, a
problemática desse Conflito em meu trabalho As relações entre o eu e o inconsciente. Porém
um capítulo muito especial é a simbologia do processo, de enorme importância, tanto teórica
como prática, para conhecer como continua esse processo entre a consciência e o
inconsciente. Minhas investigações dos últimos anos se ocuparam sobretudo com esse tema. c
Trata-se, naturalmente, de processos que não têm importância para os processos iniciais do
tratamento psíquico. Em casos mais difíceis, no entanto, como por exemplo quando existem
transferências que permanecem estancadas, esses símbolos se desenvolvem. Seu
conhecimento é de uma importância que não deve ser subestimada no tratamento de tais
casos, principalmente quando se trata de pacientes cultos.

524 Quanto à harmonização de dados conscientes e inconscientes, não é possível dar


receitas de como levá-la a cabo. Trata-se de um processo vital irracional que se expressa em
determinados símbolos. Pode ser tarefa do médico fomentar com sua ajuda esse processo. Em
tal caso, o conhecimento dos símbolos é indispensável, pois neles se realiza a união dos
conteúdos conscientes e inconscientes. Dessa união resultam novas situações ou posições de
consciência. Por isso chamei a união dos opostos de “função transcendental11”. Conseguir que
a personalidade passe a ser uma totalidade é a meta de uma psicoterapia que não pretenda
unicamente curar sintomas.

11
Tipos psicológicos OC 6, Definições, s. v. Função transcendente, e OC 8, 2.
Os inesgotáveis conhecimentos de Carl Gustav Jung sobre
simbologia de tradições místicas, religião e filosofia, lhe
permitiram dar-se conta da existência de certos símbolos
comuns em todas as representações espirituais e rituais,
presentes de forma quase universal na mitologia de todos os
povos. Trata-se de formas e imagens da natureza coletiva que
remetem a um substrato humano comum, o inconsciente
coletivo, e das quais mais dependem as mais profundas
motivações da conduta humana. Jung prestou especial atenção a
algumas dessas imagens, as formas mandálicas, cuja
manifestação espontânea na mente humana interpretou como
um intento instintivo da psique de reorientar-se, de franquiar
seus abismos, de reconectar-se consigo mesma. Daí a
importância que o psiquiatra suíço outorgou ao trabalho com
mandalas como método terapêutico de cura psíquica.

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