Você está na página 1de 14
Manual de eee Vaya Co) ewe | Luiz Carlos Osorio ° Maria Elizabeth Pascual do Valle e colaboradores capitulo 6 SEPARAGAO OU ABANDONO? SANDRA FEDULLO COLOMBO. Entretanto, como vivernes apenas no presente, subjetivamente, a agao do passade no presente e a acao do presente no passado devem ‘ser esgotadas no momento presente. O momento presente € 0 INTRODUCAO Quando penso em encontros, cor- ro imediatamente para os desencontros. Quando chego neles, sou chamada nova- mente para os encontros. Penso em historias de vida, bagagens, mochilas nas costas, espe- rangas, perdas, varias herangas atravessan- do geragées. Nenhum desses pensamentos impede o valor do momento presente. Tudo se dé aqui e agora, e me conforta lembrar as palavras de Braudel, reproduz das por Spink e Medrado (2004), quando diz que cada momento atual retine momen. tos de origem e ritmo diferentes, pois 0 tem- po de hoje data simultaneamente de ontem, de anteontem, de outrora... O presente e 0 passado esclarecem-se mutuamente, com uma luz reciproca, Parece que essa compreensio da existéncia, do tempo, dos encontros, das despedidas e das histérias, que buscam| compartilhar e dar um significado a essas experiéneias humanas, fizeram parte desde cedo do meu aprendizado de convivéncia. A heranga de contar histérias, sejam fabu- las € metéforas, ou relatos cotidianos do viver, veio de minha av paterna, italiana, matriarca, que adorava cozinhar pratos tra- dicionais aprendidos com sua propria mae territério de encontro entre o passado e o presente. (Stern, 2007) e com seu marido. Essas comidas especiais eram cozinhadas durante horas, com expli- cacées detalhadas dos temperos para Dada, acozinheira da familia j4 ha 20 anos, quan- do nasci. Essas sessdes de culinaria vinham com as interessantes histérias da vida de meus bisavés e avés na Itélia, seus vinhe- dos, seus olivais, seus amores € traigées, a vinda para o Brasil, a volta para a Itélia, a impossibilidade de minha av6 aguentar vi- ver sem a propria mae e a morte de meu avd. Sinto o gosto dessas comidas feitas por Dada sob a rigida orientacdo de minha avd, mas ndo aprendi a fazé-las. O que apren- di profundamente foram os temperos des- sas histérias de encontros e desencontros. Penso que o sabor mais intenso era comple- Xo, 0 agridoce-sabor-do-separar-abandonar. ‘Tenho imagens deliciosas de minha avé sen- tada na minha cama, lugar onde as fadas, as bruxas, os bichos tinham conversas maravi- Ihosas sobre a vida, e onde o caldeirao das bruxas eram ensaios de alquimia. Percebo que os ensinamentos de mi nha avé passavam pela grande dificuldade que sentia de se separar das pessoas que constitufam sua histéria: era filha cagu- la de um casal que saira da Itdlia para se casar, pois ele era de familia diferenciada € nobre na Itélia, e os pais nao aceitaram 72 Luiz Carlos Osorio, Maria Elizabeth Pascual do Valle e cols. © casamento com uma camponesa de suas propriedades. Vieram para a Argentina, d pois para o Brasil e trouxeram a nostalgia dos desterrados, daqueles que nao se sen- tiram abencoados em sua partida e escolha. Os dois filhos mais velhos desse casamen- to fizeram também escolhas de casamen- tos nao aceitos. O primogénito engravidou uma moca muito pobre e a segunda filha fugiu de casa para se juntar a um italiano muito mais velho e jogador de cartas. Para evitar esse destino de casamentos ditos de- siguais, meu bisavd obrigou minha avé a se casar com um italiano, mais velho, bem posicionado, que ela nao queria, pois tinha 17 anos e era muito apegada 4 mae. A mu- danga para a Itilia com os filhos pequenos jamais foi aceita por minha avé e 10 anos depois retornaram ao Brasil por causa “das saudades que tinha de minha mae”, como explicava minha avé. Penso que através dessas histérias co- mego a perceber 0 movimento da roda da vida. O tema emocional pertencer e separar passa a ter um sentido intenso para mim. As relagGes se transformam através do tempo; quais se manterao concretamente, quais se- memérias importantes? Considero a familia 0 espago criado para que cada individuo possa desenvolver suas possibilidades nas diferentes etapas do ciclo da vida, formando pessoas para a so- ciedade mais ampla e permitindo que o tem- po avance do nascimento a morte. Sermos organicos, como diz Carmine Saccu, signi- fica que um dia partiremos, ou lembrando Gilberto Safra, quando escreveu que a vida se inaugura com nossa precariedade ¢ se despede com nossa finitude... $0 varios os encontros e intimeras as despedidas nessa caminhada pela vida. Penso que cada um de nds constréi uma histéria. de pertencer-partir-juntar- -separar, talvez abandonar-romper, Se pu- dermos partir, a roda prosseguird: 0 tempo existira; se rompermos, 0 tempo magica- mente paralisara. Lembremos da metéfora de Carmine Saccu (1994) da psicose como 0 sumo sacerdote da farailia, que magicamen- te mantém a paralisagao do tempo. Penso nos exercicios de Nyngma (pra: ticas da medicina tibetana) através dos quais se desenvolve a possibilidade de atravessar © desconforto, a dor e nao necessariamente resolvé-los, a questo nao seria aliviar rapi- damente, ou impedi-los, mas atravessar essa estrada, procurar novos recursos, permitir que 0 tempo avance. Acredito que a voz da minha av6 trazia as histérias do pertencer sem autorizacao para partir, falava do preco das lealdades fa- miliares. Contava que, ao fazer escolhas in- dividuais, havia perigo de abandonar e ser abandonado. O paradoxo da conformidade e da diferenciagao, do pertencimento e da partida, é para mim a chave preciosa do en- contro humano. ‘COMO LEGITIMAR A. INDIVIDUALIDADE, O PERTENCER, AENTREGA E O PARTIR? Todo caminho pela vida é um longo aprendizado de se juntar e se separar, A construcéio desse pertencer e desse partir vem sendo feita com as herancas emocio- nais, afetivas e miticas das geracdes que nos precederam e com atualizadas através dos relacionamentos no tempo presente. Relembrando essas histérias que me constituem, percebo que minha construcao de realidade passou mais pelo emaranha- mento do que pela possibilidade de partir: Aescolha de meu nome, primogénita depois de 6 anos de um casamento, que s6 foi acei- to porque meu pai saiu de casa e avisou mi- nha av6, jd vitiva, de que sé voltaria se sua escolha fosse aceita, reflete essa forga po- derosa e fusional: Sandra em homenagem a Alessandro, meu tio paterno e padrinho, Sabina de minha avé paterna e madrinha, € Olga, minha av6 materna, que ao falecer deixou minha mae com 13 anos. Entendi, desde pequena, a importancia desse perten- cimento, pois, quando comecei a escrever meu nome, inclui mais um e, quando me perguntaram, expliquei que tinha o nome de todo mundo, por isso queria ter o nome Manual de terapia familiar— Volume 73 de minha mae também. Somente quando minha irma nasceu, e eu quis que dessem a ela o nome de nossa me, deixei de es- crever em minhas lig6es Sandra Sabina Olga Fedullo Mary! Revisitando essas lembrangas, surgem mais cenas sobre as construcées de perten- cer e separar: morava em uma casa enorme onde habitavam quatro geracées (bisavé pa terna, avé paterna, tio solteiro, meus pais e eu) ¢ varios empregados muito queridos, como a Luiza, nossa Dada, nossa vice-mae, vice-av6. Lembro-me de como me escondia no porao com os gatinhos, bem em siléncio, para conseguir um espaco sozinha, longe de todos, sempre amorosos comigo. Lembro-me do primeiro dia de aula, em uma enorme es- cola italiana, onde meu pai e meu tio estu- daram quando chegaram da Itdlia, fazendo adeus sentada em uma mesinha de quatro lugares, enquanto minha mae e avé enxuga- vam as ldgrimas, na porta da sala. E, quando minha mae chorava, sentida com as atitudes de minha avé? Eu corria de um lado para 0 outro dividida... aprendendo muito cedo a proteger minha mae e ao mesmo tempo agradar a minha avo. Um episédio, no entanto, parece para mim dos mais significativos na construgéo da cultura familiar da impossibilidade de partir sem abandonar e ser desleal. Nao te- nho imagens desse momento da vida fami- liar, tinha 3 anos e pouco quando v vivemos, mas esse fato permeou muitos didlogos fa- miliares. Lembro mais tarde as conversas € explicagées sobre esse momento, narradas em diferentes situagdes por minha mae, meu pai e minha av6. Mais tarde, fui eu que 0 revisitei ¢ encontrei novos significados. Apés a decisio de sair de Ribeiréo Preto, onde meu pai cuidava dos negécios da familia, vendendo-os e vindo para Sao Paulo, no final da Segunda Guerra, em fun- c&io de uma grande hostilidade aos italianos (a drogaria da familia precisou trocar de nome ¢ foi apedrejada), meu pai demorou a se encontrar profissionalmente. Acredito que tenha sido dificil abrir mao do negécio, das relacées sociais, do jeito de viver, da “pequena Italia” que haviam construido. Quando recebeu um convite para ser diretor de uma multinacional no Rio de Janeiro, meus pais adoraram, principalmen- te minha mie, que pela primeira vez mora- ria sozinha com o marido ea filha, teria sua propria casa ¢ ficaria perto de dois irmaos que haviam se casado e que residiam no Rio de Janeiro. A historia oficial da familia diz que meu pai adorava o trabalho, mas nao suportou o calor de Marechal Hermes, cida- de do interior do Rio de Janeiro onde esta- vaa fabrica, tendo emagrecido 20 quilos em um ano e sendo obrigado a voltar para Patilo, pois temiam que pudesse adoecer. Minha mae contava que tinha sido muito fe- liz. nessa época, mas que entendeu que meu pai sofria muito com o calor e aceitou que voltassemos para viver na casa da “grande” familia. Quando em minhas terapias ¢ interlo- cugées clinicas comecei a revisitar essas ma- ravilhosas histérias, passei a acreditar que 0 calor insuportével era uma metafora para a separacdo, pois como entender que as tem- peraturas do Rio de Janeiro eram mais in- suportaveis que as de Ribeirao Preto, onde haviam vivido tantos anos? Ao dividir com meus pais, j4 adulta, essas reflexdes, sor- riam um pouco surpresos, um pouco cons- trangidos, mas claramente curiosos com essa incrivel nova verso da histéria. Nessas histérias de familia, as escolhas de parti, separar, parece que eram vividas como abandono e deslealdade, trazendo a vivéncia do perigo da morte. A LIBERDADE DO TERAPEUTA Esta é mais uma longa histéria inicia~ da no final da década de 1980 e comeco dos anos de 1990, quando conheci Mony Elkaim e tive o prazer de trabalhar com ele algu- mas vivéncias clinicas, que me propiciaram 0 “pulo do gato” como terapeuta. Conheci Mony em uma grande con- feréncia internacional em Buenos Aires (1988), cujo objetivo era reunir os maiores pensadores contemporaneos em um gran- de férum de reflexéo sobre os caminhos 74 Luiz Carlos Osorio, Marla Elizabeth Pascual do Valle e cols. da ciéncia contemporanea e a compreen- so das relacées humanas na formagdo da subjetividade ¢ na intersecao com a sociedade. Entre esses pensadores, encontrava- -se Mony que, em uma grande assembleia de quase mil pessoas, emocionou-nos e fez: -nos mergulhar em nossas préprias histérias de vida, convidando-nos a sair do lugar de profissionais que falavam sobre as relagées humanas para o de pessoas que tinham his torias de afeto para compartilhar e refletir. Mony nao nos deixa de fora! Somos cha- mados como terapeutas a revisitar nossas historias de encontros e conflitos, nossas ressonancias so acordadas e nossos sen- timentos passam a fazer parte da historia que esta sendo vivida naquele momento. Penso, como ele, que revisité-las, conhe- cer mais profundamente nossos enredos, fortalece-nos na posigao de autores de nos- sas construgées de mundo e, como narra- dores, estamos incluidos naquela narracao, através das distingdes que realizamos, o que deixamos dentro ¢ o que deixamos fora de nossos relatos, e quais os significados que construimos. A riqueza de experiéncias e pontos de vista diferentes comprova a singularidade de cada natrador e, portanto, a relatividade de sua histéria. Ao sairmos da posicéo ab- soluta, abrimos caminho para o relativo, as diferentes versoes da realidade, os diversos pontos de vista; abandonamos a busca de culpados ¢ inocentes, ou de quem estd certo e de quem esté errado. A consciéncia e a liberdade me pare- cem maravilhosas para poder trabalhar a partir do que me constitui e ser responsé- vel por convidar 0 outro a realizar um en- contro humano que acordard as histérias de todos os envolvidos, para que possamos transformé-las. A partir desses encontros com Mony, senti-me totalmente autorizada a ver o processo terapéusico como um en- contro humano especial, em que todos os envolvidos so convidados a estar presen tes com suas histérias de vida, para que, em clima de cooperacio, delicadeza e res: peito, encontrem vivéncias alternativas que possam transformar as coreografias que ge- ram conflito e dor. A libertacdo do terapeuta como ser hu- mano, narrador, autor referente e relativo, mas totalmente consciente do lugar que esté sendo chamado a ocupar: um colaborador para ampliagao das reflexdes e das vivencias afetivas que esto saturadas de impedimen- tos € que se transformaram em tramas asfi- xiantes (Colombo, 2009). O encontro humano, em minha opi- nigo, acontece nos pontos de intersegio das ressondincias e gera a ampliagio do aqui e agora, fornecendo os caminhos para as vi- véncias reflexivas do espaco terapéutico; nao estando, no entanto, o terapeuta auto- rizado a esquecer seu lugar como construtor responsavel pelo espaco reflexivo ampliador. Como diz, Daniel Stern (2007), toda vivén: cia significativa se da na intersubjetividade; nesse lugar, aqui e agora, que pode ocorrer a transformacao. No entanto, essa concepcao nao ignora a diferenga de funcéio que o lugar de cada um traz para a relacéo. A horizontalidade que se propée na relacdo transforma a no- Gao do exercicio do poder entre as pessoas, mas no desconhece a diferenga de compro- misso. Abolimos a relagao de poder sobre 0 outro, mas acreditamos no uso do poder com 9 outro em direcio a caminhos alternativos. Muitos terapeutas me dizem ficar confusos ¢ com medo dessa postura para a qual os con- vido, pois acreditam que proponho que se “misturem”, palavra que ouco como um risco de perder os contornos de sua prépria indivi- dualidade, perdendo-se no encontro. Gostaria de enfatizar que 0 encontro pressupée con- tornos que nos diferenciam; pois, para me encontrar com alguém, preciso reconhecé-lo como outro, fora de mim e comigo. A fuséo seria o derretimento dessas fronteiras, a perda de si mesmo. O risco de nos misturarmos e nos perdermos no espaco terapéutico ocorre quando essa horizonta- lidade € vivida sem a consciéncia da inter- secao das ressonancias, fazendo de nossas vozes internas, nao legitimadas por nds, as vozes de nossos clientes, que dessa forma ficarao privados da possibilidade de terem Manual de terapiafariiar—Volume tt 75 suas préprias vozes ouvidas. Quantos en- redos estaremos confirmando quando nao ouvimos nossas vozes internas ¢ assim nao abrimos espaco para as vozes de nossos clientes e consequentemente ao que se pas- sa no espaco entre nds? Quantas vezes classificamos dentro de nés um cliente, para evitarmos perceber a porta de nossa histéria que essa pessoa abriu e que nos perturbou? Relatei, em um artigo, a histéria “da familia dos cangurus” (Fedullo, 1994),t na qual fui tomada pelo desejo de abandoné-los, sem me dar conta de que tinham aberto minhas portas para a dor do legado da impossibilidade de partir e da minha propria bolsa marsupial. Todas essas reflexdes me levaram a criar oficinas para terapeutas e fazer a pes- quisa “Cuidando do cuidador”, como relatei no capitulo “O papel do terapeuta na tera- pia familiar”, do Manual de Terapia Familiar (2009) © SILENCIO CHEIO DE SIGNIFICADOS Outro encontro que me marcou e abriu novos espacos e concepgées de ser terapeu- ta aconteceu na metade dos anos de 1990, com Tom Andersen, que para mim simboli- zou 0 que ha de mais humano, acolhedor e respeitoso como terapeuta. Estimulou-me a dar nome e énfase a uma experiéncia que sempre foi muito im- portante para mim, o siléncio! Aprendi o valor do siléncio com minha mie e nos encontros com Andersen (1994), e, mais recentemente, relendo Gilberto Safra (2005) — muitas estrelas foram se juntando aessa constelagio. Memérias importantes de minha infan- cia envolvem minha mae costurando, trico- tando, bordando ou pintando em seu atelié, ambiente tomado de cores, tecidos, linhas, telas, caixas, caixinhas, recortes de revistas, lds, agulhas, tesouras... tesouros que me en- cantavam. E... siléncio... minha mae passava horas coneretizando esses sonhos. Gostava de entrar nesse mundo magico, costurar alguma coisa, desenhar, aprender tric. Mas no compreendia naquele momento que es- tava também aprendendo a refletir, pensar e usufruir de um siléncio fecundo em cria- Ges, desejos, imagens e paz interior. Minha mie adorava fazer longas caminhadas sozi- nha e algumas vezes saiu do Itaim, onde vi- viamos, e foi até o Pari, na Igreja de Santo Anténio, do qual era devota. Dizfamos, “ma- mie, é muito longe... vocé vai sozinha...”, e ela respondia que ia com seus pensamen- tos e que era uma caminhada para colocar uma étima energia na vida da familia, para que féssemos iluminados em nossos proje- tos € para que ela pudesse refletir e tomar decisdes. Percebo que minha mie jé tinha sua caminhada interior para Santiago de Compostela, sua busca do Sagrado, seu si- léncio preenchido de significados. Ha muito pouco tempo pude nomear os diferentes significados do siléncio, claro que intuitivamente transitava pelas diferen- cas, clinicamente sempre converso muito com meus clientes sobre as vozes internas, as vozes desesperadas ¢ aquelas que podem ser ampliadoras e sonhadoras No entanto, quando li Safra, em uma entrevista maravilhosa que deu para Andréa Bonfim Perdigio (2005), identifiquei-me totalmente: “Para mim é muito claro que nao hd possibilidade de um gesto realmente significative ou de um pensamento que de fato tenha um porte, que no brote de dreas experienciais silenciosas”. E, mais adian- te, ‘Infelizmente, a histéria de uma pes- soa (a situagdo em que nasceu, 0 percurso que teve) afeta positiva ou negativamente a chance de estar no siléncio; e eu obser- vo que ele possibilita ao ser humano ter um estado de abertura e de fecundidade, que é um lugar” (p. 113). Minha consciéncia de que o siléncio € um lugar em que podemos ou nao pene- trar despidos para um encontro com nés mesmos, € que foi ou néo aprendido e au- torizado pelas experiéncias afetivas que nos constitufram como seres humanos, foi ainda mais agucada. Acredito, como ele, que algumas pes- soas passam a vida sem ter tido a experiéncia 76 Luiz Carlos Osorio, Maria Elizabeth Pascual do Valle e cols. de ter um lugar, e assim a vivéncia do silén- cio pode ser sentida como o terror do va- zio, do qual precisamos fugir a todo custo, a vivéncia de ser abandonado, nao simples. mente de estar s6, a que denomina siléncio = terror. Nessa dimensao, pode estar tam bém o medo do prdprio vazio, representa do pelo meu préprio ser desconhecido para mim mesmo, levando-me a tentar preencher com qualquer presenga esse espago que nao posso experimentar. Penso que a vivéncie da continéncia, de ser recebido e embalado, de ter um lu- gar dentro do outro, nos conduz a experién- cias de confianca na presenca humana, e nos constitui como presenga e no somen- te caos-auséncia-vazio-terror. Acredito que esse caminho também nos permite a cons- truco da vivéncia do lugar, meu e do outro, que se estende além da presenca. O lugar que, mesmo na auséncia, se mantém, pois vai além dela. Essas vivéncias se constituem sutilmente e na integridade do encontro, e nao podemos esquecer que nem sempre a palavra é continéncia e presenca, pode ser também rufdo e auséncia; falar pode ndo ser conversar, dividir, acolher as vozes, pode também desenhar uma evitacéo do encon- tro € ser solidao, dor, invisibilidade. Assim como, se agitar se nao é necessariamente se colocar em movimento, podendo significar desespero e paralisia. Qual o significado que podemos dar & necessidade de ligar 0 som, a TY, a internet, assim que chegamos ao siléncio de nossas casas? Levarmos 0 iPhone, enquanto faze- ‘mos uma caminhada no bosque? Ou, quando com nossos filhos peque- nos, os afogamos em estimulos, ensina- mentos, brinquedos que fazem varios sons, tocam miisicas, campainhas junto com luzes € cores? Ou ainda, ndo podermos passar uma tarde “sem fazer nada”? Nossa cultura contempordnea valori- za o “fazer mil coisas”, o “ter muitos inte resses”, ser “eficiente na gestao do tempo”, mas a valorizacéo do encontro humano, onde tudo se dé, fica esquecida, ou, quando aparece, as luzes so focadas na cintilancia ena fugacidade da paixdo. Assim, vemos criangas pequenas com compromissos de grandes executivos, e grandes executivos em busca de pequenos espacos de siléncio e paz interior. 0 olhar para fora de si mesmo, para fazer e néo o ser, est no centro das queixas clinicas das pessoas, dos casais, das familias. E das criancas levadas em nossos consulté- tios como porta-vozes do pedido de ajuda das familias, com seus “sintomas”, dificul- dades com o sono, dificuldades na escola, dificuldades com os limites, agressividade, que narram a falta de continéncia, acolhi- mento, convivéncia, relagées amorosas sig- nificativas, de interesse verdadeiro entre as pessoas da familia PERTENCIMENTO £ AUTONOMIA Finalizando essa longa narragao, acre- dito que o tema separaciio ou abandono é fruto de distingdes singulares que faco a partir de minha experiéncia de vida, dos encontros ¢ desencontros, das vivéncias de minha familia nas geragdes que me precede- ram e de meus mais de 40 anos de trabalho clinico com familias. De todo esse enredo, percebo que 0 tema separacao e abandono é para mim o cerne da condigéo humana e, portanto, do trabalho terapéutico. Com essa visio, enfat zo que os terapeutas, no meu ponto de vista, necessitam mergulhar nessas éguas profun- das para que surja talvez.a possibilidade de que as vivéncias de abandono possam ser ressignificadas e se transformem em separa- gdes, em que a perda possa ser vivida como perda da presenga do outro, e néo como vazio de si mesmo, pois o aprendizado e a meméria de ter lugar no outro protegem a nogao de estar autorizado a existir. O apren- dizado humano de confiar e ser autorizado a pertencer (ter lugar no outro) e se separar (ter lugar em si mesmo e nao perder 0 ou- tro) ¢ iniciado desde antes do nascimento e cada passo do caminho pela vida é marca- do por esses dois movimentos. A énfase a um ou ao outro estd ligada as necessidade: inerentes ao ciclo vital (necessidades mais fusionais ou mais exogémicas) ou a momen- tos criticos decorrentes de “desastres” que envolvem quebra de expectativas, de ro- teiros escritos para a vida (mortes prema- turas, perdas profissionais ou econdmicas ou de satide, conflitos politicos ou étnicos, desastres da natureza), sem esquecermos que cada um de nés traz em sua bagagem, através das herangas transgeracionais, um lugar nessa trama de afetos e emogdes que nos habilita mais ou menos a ser recebido e legitimado nessa histori Para cada relagio oferecemos toda essa complexidade de experiéncias, con- cretizadas no lugar em que nos colocamos e oferecemos ao outro. Na construcao des- ses lugares, esté embutida nossa bagagem e todo o contetido que ela contém. Quando trabalhamos terapeuticamen- te com nossos clientes revisitamos essas tramas que se entrelagam e desembocam no enredo do presente, que tantas vezes confirma os medos e dores das histérias do passado. Nossas reflexdes trazem inexoravel- mente a crenca na importancia do processo de individuacao de cada ser humano. O ca- minho do vir a ser, partindo da precarieda- de e dependéncia absolutas, passando pela necessidade essencial de pertencer e cami- nhando para a singularidade, escolhas separacées, culminando com a vivéncia de sua propria finitude, reflete 0 paradoxo en- tre pertencimento e autonomia. Poder separar-se, viver a separacao com o siléncio que nao tem a presenca do outro, mas onde nao se perde a presenca de si mesmo, talvez seja uma linda metafora de um processo de individuacdo bem-vivido. Assim como a perda, que traz um siléncio vazio e estéril de si mesmo, é, ao contrario, uma experiéncia do rompimento da fusao, onde 0 outro ainda sou eu, onde a partida © abandono, o vazio de mim mesmo. Essas questées da existéncia humana se tornam corpo e dor em nossos consultérios, nas relag6es que travam batalhas infindaveis para construir a proximidade e a distancia, que permitiro a construgdo da autonomia dentro da entrega do pertencimento. Manual de terapia familiar — Volume Il cE) ‘AS VOZES DE ALGUNS CLIENTES A seguir, transcrevo um trecho de uma carta de uma pessoa que me procurou du- rante um processo de divércio, apés uma uniao muito dificil, feita de uma atracio se- xual intensa, que evoluiu para uma grande dificuldade na convivéncia e no respeito € dificuldades com os filhos do primeiro ca- samento. O tinico momento em que para- vam as hostilidades era na relaco sexual. Essa situagio culminou em uma briga e na separacao do casal. Meu cliente sentia-se sozinho, desrespeitado e explorado. O pedi- do de ajuda veio por estar sofrendo muito com crises de angiistia, perda de peso, medo de nunca mais ter alguém que 0 amasse ou nunca mais se sentir intenso sexualmente. = Quando fico sem atividade, sinto um vazio dentro de mim. Nao acho que seja de tristeza, apenas um vazio emocional. ta Tenho tide dificuldade para dormir. ‘Antes eu acordava & noite ¢ dormia faci mente. Hoje, quando acordo, fico pensando na minha separacao, e isso nao tem me dei- xado dormir bem. Sinto também que, quando sinto falta de ‘sexo, tendo a ficar mais para baixo, chegando a ficar triste e sentindo uma dor no peito, é como se existisse um vazio dentro de mim. Estou em Milao. Nao sei se foi uma boa decisio ter vindo sozinho para cA... As lem= Nao estou preparado para estar apenas comigo em paz. Em funcao do fuso horério, comecei a acordar muito cedo € o tormen- to dos pensamentos néo me deixa dormi ‘Agora sto 6 horas € jé estou acordado ha pelo menos uma hora e meia, pelo segundo dia consecutivo. Ai vem a sensagio de vazio, dor no peito e angiistia. Tipicos da solidao. Preciso me fortalecer. Ainda nao estou pre- parado para viver apenas comigo. Seu relato é sensivel e delicado, é um homem que se descreve com muito receio de nao ser amado, de nao ser visto, de nao ser escolhido. 78 Luiz Carlos Osorio, Maria Elizabeth Pascual do Valle e cols. Sua histéria tem momentos muito dolo- rosos como a perda da primeira esposa, com um cancer fulminante, muito jovem, deixan- do dois filhos pequenos, aos quais se dedicou totalmente. A perda desse amor fechou-o por anos para novos relacionamentos. Ninguém estava autorizado a pene- trar suas barreiras, sé havia passagens atra- vés da atragao sexual, da beleza, da posse. Assim, depois de alguns anos, aconteceu a segunda uniao, que, na descricao dele, era baseada na atracdo sexual, nica area em que se sentia realizado, recebido, competen- te e sendo capaz de satisfazé-la. A sensacao de desamor, de nao ser visto foi se instalan do, parece-me que, para os dois, evoluin- do para uma separacdo cheia de brigas € advogados. Em nosso percurso, revisitamos a fer- tilidade e 0 amor romAntico do primeiro ca- samento, a paixdo sexual a inseguranca da segunda unido e a esterilidade e a severi- dade do modelo de afeto de sua familia de origem. Em sua bagagem, o siléncio da au- séncia da presenca do outro confirmava o risco do vazio de si mesmo e a diivida de existir um lugar para ele no outro. O othar do outro definia a presenga de si mesmo. Sua falta desconstrufa o seu pr6- prio lugar e trazia a dor da prépria invisibi- Tidade: “ai vem a sensagao de vazio, dor no peito e angustia. Tipicos da solidao...”. Em sua bagagem para a vida, a divida da existéncia de um lugar era muito presen- te. O amor adolescente que se tornou casa- mento, familia, dois filhos desconfirmaram essa hist6ria! A traicdo da doenca, 0 deses- pero, a vivéncia do abandono a confirma- ram com forca novamente, e, a partir desse momento, todas as histérias foram construf- das para confirmar esse destino. As rela- Ges foram pautadas por impetos fusionais (atragées sexuais irresistiveis) e cortes ame- drontados. Essas experiéncias do segundo casamento parece que puseram em movi- mento as vivéncias de abandono reciproco, que estdo sendo concretizadas na batalha judicial, onde as sombras e caréncias dessa relaco esto sendo expostas. Abandono ou separacao? Uma separagao que acorda os abando- nos de toda a vida. Nesse momento, quero trazer algumas imagens clinicas de processos de separagao vividos como abandono. Meus colegas e alunos sabem o quan- to gosto da linguagem das imagens, pois, como escrevi no artigo citado anteriormente (Colombo, 2006, p. 18), penso na imagem como narrativa, em que no encontro com 0 observador despertam-se histérias que con- tém o presente e memérias profundas de um mundo relacional. Ao abrir espaco para os clientes criarem imagens de suas vivéncias, penso que auto- rizamos a ampliacao da historia individual e da relacional que esta sendo vivida aqui e agora (Figura 6.1). FIGURA 6. Imagem de aprisionamento-protecio-contencao. Assim, a imagem do aprisionamento- -protecio-contencao, para nao permitir ne- nhuma aproximagao, conta a histria de uma encantadora adolescente com confli- tos de crescimento com os pais, que resol- ve fazer um intercdmbio em outro pais, 0 que desagrada profundamente & familia Nesse proceso de negociaces dolorosas, mas ao mesmo tempo cada vez mais corajo- sas e com intimidade, vém & tona as ofensas Manual de terapia familiar Volumett — 79 sexuais do tio materno sofridas por ela. 0 caminho da individuagao, tao doloroso nes- sa familia, explodiu ao se viver a forca fusional que impedia o respeito e protecdo aos contor- nos individuais e as fronteiras. A falta de con- fianca e intimidade nas relacdes e 0 exercicio de poder vertical patriarcal foram revisitados com dor e coragem nessa histéria. A Figura 6.2, onde o rosto contorcido de um homem chora e uma mulher com 0 filho nos bragos parece estar em desespe- ro, enquanto a crianga grita, representa um dos trabalhos mais tocantes para mim. Eles vieram para sentir se poderiam reconstruir © casamento, no qual nao estavam felizes, com vidas muito paralelas, poucas conver- sas ¢ interesses comuns. Fizeram tratamen- to para engravidar durante dois anos, com inseminagées, vividas pelo casal de forma muito invasiva. Grande insatisfagdo dela por ter deixado a vida profissional, mas nao se sentindo segura para afastar-se do filho, pois relatava suas experiéncias de crianca, criada no meio de muitos irmaos e irmas e que nao tinha nem a propria cama para dormir. Cada um dormia onde deitasse. Ele, adotado ainda bebé por um casal sem filhos, cresceu conhecendo a prépria histéria e, na adolescéncia, procurou a mae bioldgica, que estava casada e tinha mais dois filhos. 0 apego da esposa ao filho fazia todo sentido ele dizia que é “assim que uma mae deve ser”, mas que s6 conseguia cuidar do filho quando safa com ele, em casa nao sabia como fazer. Dizia que ele € a esposa eram dois desconhecidos, nao tinham relaciona- mento sexual ha anos. Nao queria mai car casado e cuidaria do filho e do sustento dela. Senti que o vazio de nao ter lugar es- tava acordado de uma forma singularmente dolorosa na historia de ambos e que o que mais temiam do destino estava se repetindo Passo a passo através da repeticao da vivén- cia da invisibilidade e da auséncia do outro, que carrega a auséncia de si mesmo. De al- guma forma tentavam, ao dar ao filho um, lugar to absoluto, transformar a historia da descendéncia, sacrificando seu proprio lu gar sem se darem conta de que essa heranga dolorosa se manteria viva. FIGURA 6.2 Imagem de tristeza e abandono. Na Figura 6.3, 0 casal narra suas brigas a impossibilidade verbalizada por ele de fi- car junto. “Quero me separar, no aguento 0s gritos, nao suporto viver com ela, sinto que vou morrer, no quero voltar para casa”, ao que cla respondia, “grito porque ele nao me ouve, s6 gritando ele reage”. No meio desses relatos, contam a “infidelidade” dele com uma colega de trabalho. FIGURA 6.3 grito que amedronta e afasta. 80 Luiz Carlos Osorio, Maria Elizabeth Pascual do Valle e cols. As esculturas foram feitas, cada um em um canto da sala, e, quando as colocamos juntas, surgiu uma emogéo muito intensa, ‘como um susto de se verem nessas imagens € construindo essa relagao. Suas histérias eram entrelagadas a situagées de muita violéncia doméstica, temiam que a entrega e a aproximacao trou- xessem traicdes e dor, relatavam 0 desejo de paz, mas se protegiam o tempo todo. Ele parecia transitar, procurando nao ser visto, escondendo-se entre os méveis da casa, e ela © “chamava”, amedrontando-o com os gri- tos. 0 destino do abandono, que era sentido como a maior violéncia, estava sendo cons- truido passo a passo como uma coreografia das lealdades inquestiondveis as vivéncias € modelos transgeracionais. Ele era espancado na infancia por fa- zer xixi na calga e depois por ir mal na esco- la, saindo de casa aos 17 anos para “cuidar da prdpria vida”, e ela chorava porque 0 pai “abandonou minha mae para viver com outra, ¢ nunca mais minha mae foi feliz”. Apego doloroso, fusional, no qual nunca se pode confiar, onde néio podemos nos apre- sentar ¢ sentimos que precisamos nos ca- muflar, ou virar um objeto, ou virar “uma serpente”. VAMOS OUVIR OS TERAPEUTAS? Caminhando em nossas reflexées, par- tindo da bagagem de historias familiares que me constituiram frente aos vinculos &s concepgdes sobre 0 caminhar humano em diregao & singularidade e A individua- jo, enfrentando e construindo separacées ¢ também, as vezes, vivendo-as como aban- donos, passando por algumas imagens ¢ narrativas clinicas, quero agora dar voz a alguns colegas terapeutas ¢ agradecer-lhes por terem aberto seus mundos para contri- buir com nossas indagacées. Colhi 15 depoimentos muito interes- santes a partir da pergunta disparadora de nossas reflexdes: quais as diferencas que vocé sente entre separagao e abandono? Vamos ouvi-los, enquanto abrem um pouco suas mochilas e oferecem suas cren- gas to delicadamente humanas sobre 0 partir, Depoimentos: Ey sinto que as duas sto iguais, Toda se- paragdo que eu vivo ou alguém de minha fa- milia vive ou viveu 6 sentida por mim como. um abandono. Nez Separacio ~ separar para crescer. Abandonar — deixar, nao ser mais, desist. ‘Separacao - a dor ¢ esperanca de se ver de novo, de estar junto em um momento no futuro. ‘Abandono ~ dor da auséncia que nio tem esperanca, que nao tem esperanca de se ver de novo. Uma coisa final Nea A separaco pode ser uma coisa opcio- ral, Consensual para um processo de indivi- duacao para a pessoa ser independente. Ela ‘ngo é uma cofsa ruim e prejudicial. Pode-se continuar com contato de muitas maneiras. (© abandono & debar uma pessoa ou coisa de lado, Também pode nao ser ruim no sentido de querer desapegar-se e aban- donar aquele sentimento. ‘© pior do abandono € quando somos o abandonado, pois afte coloca numa situacio que vocé ndo gostaria e nao escotheu estar. Eu tenho duas experiéncias de abandono ‘que nem foram de pessoas tao importantes, mas me fizeram sofrer muito mais do que muitas separagGes pelas quis jé passe! wes: Entendo por abandono 0 esquecimnen- to da outra pessoa que fica sem nenhura protecéo da parte de quem abandonou. A Manual de terapia familar — Volume! 81 ‘pessoa abandonada fica sem poder contar com 6 colo alettioso ¢ toda e qualquer pro- tegio necessdria para um saucivel desen- Entendo por separagao um processo de corte “tempordrio” no qual pode suben- tender que as pessoas envolvidas poderdo ‘seguir se cuidando por outras vias sem se ferirem no processo relacional. A meu ver, a Separagio, quando necesséria, & um proces- ‘so no qual acontece a cura e 0 crescimento mituo. : wee. ‘Abandono 6 quando h4 um corte (inten- ional ou nao) entre as partes, mas que po- deria ser evitado com algum tipo de ajuda, ‘trabalho. Separacao 6 um corte que ocorre entre as partes, mas que faz parte do proceso da vida (casamento, morte, safda dos filhos, di- véreio, etc). Sinto como se 6 abandono tivesse uma Intencionalidade daquele que deixa o outro. (Uma saida sem olhar para tras (por nao con- seguir em grande parte das vezes), me re- mete a relag6es verticais. Na separagéo, a meu ver, ocorre um distanciamento que ocorre dentro de uma horizontalidade onde ambas se afastam vol- tadas face a face, mas caminhando em sen- tidos opostos. weg Abandono — Quando a pessoa dei- xa de se importar com o outro. Auséncia de afeto e amor pelo outro. Um lugar da indiferenca. Separacao — Quando a pessoa conse- ‘gue olhar para o outro, mas também nao se exclul da relagao e junto com 0 outro con- segue buscar 0 seu caminho. © outro possi- bilita meu encontro! wee Separacao: ndo estar junto com direito a festa de despedida. Nao estar junto por circunsténcias externas, mas BEM pertinho jase blogic amor, bem-querer, “torcida’ e pans: & e cicts ene te “echau'” ou “até logo...” falando “adeus”. E também pode ser “tchau” com cara de adeus. E ir embora sem abrago apertado. E nao olhar para trés (nem pra frente com aquela pessoa). i N10 ‘Separacao:— envolve acordo = @comunicado: = €viver um processo = pode haver respostas = pode nio ser tio doloroso = envolve 0 cuidado com 0 sentiment de outro ‘Abandono:- desconsideragio — invisibitidade — fugacruel ~ desespero ~ falta de continéncia ww Uma vez ouvi algo sobre esses dois te- mas, que fez muito sentido para mim. © abandono implica algo que toca a crianga. Seja ela real ou “interna”: uma crianga sofre ABANDONO, um adulto so- fre uma separacao. Em outras palavras, um bebé est4 numa situagao de extrema vulnerabilidade e de- pendéncia, ele nao participa da separacao, ‘ele 6 abandonado, caso algo acontega que o separe do seu cuidador: J& um adulto est numa relagéo entre iguais, ele participa do processo que pode culminar numa separacio, nao é passivo e pode ter recursos internos para lidar com a separagao. Separagio, na minha experiéncia, ocor- re quando pessoas estao impedidas de esta- rem juntas fisicarnente em relacao, quando © desejo ¢ presente. Elas estao juntas em pensamento, sentimento, alma (0 impedi- mento é externo). 82 Acredito que, no abandono, a prépria pessoa que abandona abre mao de parte de si mesma. Por impedimentos internos (pos- sivelmente por no ter recebido, ter sofride ‘abandono) nao encontra a fonte para cuidar, ‘estar junto, partithar, acaba abandonando- +8e, © a relacao nao pode ser construida com 6 outro (0 impedimento ¢ interno). ws Recentemente minha irm se _mudou para Franca e pude vivenciar uma experién- cia “dolda de separacdo: uma separacao ‘onde 0 contacto fisico nao mais existe ou passa a existir com hora e lugar previamen- ‘te marcados: mas, ao mesmo tempo, uma Separacao que nao mata a intimidade da re- facao. Continuamos trocando confidéncias, mas agora de um modo novo. Sinto essa separagdo muito diferen- te de um abandono, pois no abandono do ha espago para preocupagées com 0 ‘abandonado. Para existir abandono, pelo menos uma pessoa deve se sentir abandonada, excluida, ‘esquecida, rejeitada... A separacio pode ser suldada, enquanto 0 abandono nao. Neg Nao tenho clareza... Muitas vezes a separacao é 0 mesmo que 0 abandono. Racionalmente penso que 0 abandono exclui definitivamente o outro ¢ a separacao ‘nao, ela apenas coloca um espaco, que nao precisa ser intocavel, impenetravel. Sinto a separagéo como abandono, ‘quando 0 outro de quem preciso ndo esté Presente e sinto entao, as vezes, abandono nna auséncia. A morte me trouxe separacao e abandono. Hoje me senti abandonada e se- Parada de mim mesma! Distante! Entre “separacio e abandono”, me lem- bra uma “trappola” recidivante em meu ca- ‘minho, que travava (e trava menos) algumas Portas giratorias: a confusio entre autono- mia e tsolamento. Luiz Carlos Osorio, Maria Elizabeth Pascual do Valle e cols. ‘Tendo vivido em contextos normativos muito mais do que reflexivos, construf mui- tas de minhas diferenciacoes sob a sombra da expulsio do paraiso. Ter sido expulso, mesmo quando € uma construcao, deixa uma nostalgia. Vemos as pessoas ali, dancan- doe levitando alegremente, como fazem todos os que fazem parte e comemoram as congregacdes e sabemos que nunca se- remos reaceitos. E ainda nao conseguimos ‘construir outros contextos de pertencimen- to e adequacio. COM QUAIS DESSAS VOZES GOSTARIAMOS. DE NOS ENCONTRAR? Como sabemos, minha curiosidade re- pousa na crenga de que os terapeutas abri rao sua bagagem vivencial para a viagem com seus clientes. O que oferecerfio para esse encontro? Poderdo, na interseco das ressonancias, construir espacos ampliadores para ressignificar os abandonos que parali- sam, em separacGes? Poderao ampliar a pre senga do si mesmo nas relages? Autorizarao a construcao da permissao para que o tempo transcorra e possamos ressignificar nossas historias de ficar e partir? Com quais des sas vozes gostarfamos de nos encontrar para ampliarmos nossas vivéncias de separacao e abandono para caminharmos mais um tre. cho da estrada de nossa individualidade e podermos construir relagdes de pertenci- mento que nao confirmem nossas historias paralisadoras? REFERENCIAS. ANDERSEN, T. El equipo reflexivo: dilogos sobre los didlogos. Barcelona: Gedisa, 1994. COLOMBO, S. F Em busca do sagrado. In: CRUZ, H.M, (Org.). Papai, mamde vocé e eu? Casa do Psiedlogo, 2000. Manual de terapia familiar — Volume II 83 COLOMBO, S. E Gritos ¢ sussurros: trabalhando com casais. In: COLOMBO, S. FE (Org.). Gritos ¢ Ssussurros, intersegSes € ressondncias. Sao Paulo: Vetor, 2006. ¥. 1. COLOMBO, S. E © papel do terapeuta em terapia familiar: uma ética relacional. In: VALLE, M. E.5 OSORIO, L. C. (Org.). Manual de terapia familiar. Porto Alegre: Artmed, 2009. ELKAIM, M. Si me amas, non me ames, Espana’ Gedisa, 1989. FEDULLO, $. O divércio. In: CASTILHO, T. (Org.). Te- ‘mas em terapia familiar. Sdo Paulo: Plexus, 1994. SACCU, C. A complexidade. In: CASTILHO, T. (Org). Temas em terapia familiar. $0 Paulo: Plexus, 1994 SAFRA, G. A experiéncia de lugar. In: PERDI A.B. (Org.). Sobre o silencio. Sdo Paulo: Pulso, 2008. SAFRA, G. A face estética do self: teoria e clinica. ‘So Paulo: Unimasco, 1999. SPINK, M. J.; MEDRADO, B. Producaode sentidos no cotidiano: uma abordagem tedrico-metodolégi- ca para andllise das praticas discursivas. In: SPINK, J. (Org.). Prdticas de sentidos no cotidiano. S40 Paulo: Cortez, 2004. STERN, D. N. O momento presente na psicoterapia ena vida cotidiana, $0 Paulo: Record, 2007. ULLMAN, L. Mutagdes. Sao Paulo: Cosac Naify, 2008.

Você também pode gostar