Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
reflexões interdisciplinares
Maria Auxiliadora Fontana Baseio
(Organizadora)
Conselho Editorial
Terceira Margem Editora
Conselho Científico
Alzira Lobo de Arruda Campos – UNISA
Luciane Alves Santos – UFPA
Manoel Francisco Guaranha – UNISA
Marcelo Rito – FRS
Maria Zilda da Cunha – USP
Marília Gomes Ghizzi Godoy – UNISA
Sandra Trabbuco Valenzuela – FATEC/FAM
Colaboração Editorial
Angela Divina Oliveira
Isabella Tavares Sozza Moraes
Lucciano Franco de Lira Siqueira
ISBN: 978-65-89372-01-1
1. Interdisciplaridade
2. Ciências Humanas
3. Relações Culturais
4. Cultura
I. Título CDD 389.9 389
Sumário
Apresentação
Maria Auxiliadora Fontana Baseio 07
1
Este texto foi publicado pela USP, na Revista Literartes, v.1,n.10, 2019.
2
Pós-Doutor em Comunicações e Doutor em Artes pela Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
3
Pós-doutora em Letras pela Universidade do Minho, Braga, Portugal;
Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa
pela Universidade de São Paulo. Professora do Mestrado Interdisciplinar
em Ciências Humanas da Universidade Santo Amaro – UNISA, SP.
4
Pós-doutora em Letras pela Universidade do Minho, Braga, Portugal;
Pós-Doutora em Ciências, Educação e Humanidades pela UERJ; Doutora
em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela
Universidade de São Paulo. Professora da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – Departamento de
Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa.
14 Heitor Villa-Lobos, a formação musical...
(imagens), qualidades de movimento e formais (diagramas),
bem como promovendo a interação de significados
(metáforas). Isto possibilita a consecução de onomatopeias
musicais, aspectos da Affektenlehre5, da música de programa,
da música especulativa e a realização de alusões, de paródias
e metalinguagem.
Nessa ordem de ideias, se de fato não se pode perder
de vista a importância do aspecto icônico que reverencia a
significação musical, impossível é negar a força da
contiguidade e dos aspectos indiciais conectados ao contexto
cultural, étnico e social. Toda e qualquer obra artística insere-
se em relações dinâmicas, funcionando como índices de seu
tempo, dos esquemas nocionais de sua cultura e de sua época,
engendrando fatores que funcionam significativamente. É
assim que se pode afirmar que o nacionalismo, a música
engajada e, de certa forma, a música romântica representaram
seus objetos.
Segundo Langer, a música é “um tipo de linguagem
não do aqui-agora, mas de conteúdo conceitual genuíno,
[como um] símbolo do aspecto irracional da vida mental, da
Vontade” (LANGER, 2004, p. 219). Tal chave de
interpretação coloca possibilidades estéticas e o desafio das
assimilações reflexivas, que emergem nas múltiplas formas
de escuta, como questões para reflexão. Isto vale para os
compositores ou para teóricos. Nestes termos, a reflexão, a
escuta, a produção, a teoria e a materialidade acústica
engendram manifestações que vão gerir novos estilos e formas
composicionais. A própria escuta torna-se material
compositivo.
Gombrich (1986), na clave do visual, diz que o artista
não recria o que vê, mas vê o que recria a partir de categorias
de representação reveladoras de uma cosmovisão, amparada
por redes simbólicas que compreendem o imaginário
individual do artista, bem como o zeitgeist6 de seu tempo.
O presente capítulo focaliza importante músico
brasileiro do século XX, compositor, maestro, violoncelista,
5
Teoria dos afetos.
6
Espírito da época ou características genéricas de uma determinada época
histórica.
Arte, Cultura e Imaginário 15
pianista, violinista, que chegou a ser mundialmente conhecido,
embora nunca tenha se enquadrado definitivamente em
nenhum movimento cultural específico. Trata-se de Heitor
Villa-Lobos (1887-1959).
No intuito de evitar o risco de confundir a dimensão
educativa e política que o envolveu com o valor de sua obra
artística, tomamos um excerto do texto de Carlos Drummond
de Andrade, publicado logo após morte do compositor no
Correio da Manhã:
Há tantos falsos grandes, e tantos grandes
laboriosos, que só conseguem sê-lo à custa da
superposição calculada e teimosa de pedrinhas e
sarrafos; em Villa, a grandeza não era apenas
autêntica, mas espontânea, inelutável, independia
dele, do que ele pretendesse, pensasse ou dissesse;
até parecia brigar com o proprietário, às vezes
(ANDRADE, 1970 apud SANTOS, 2010, pp.
132-133).
A mensagem do poeta expressa a forte admiração que
detinha por Villa-Lobos e traz um testemunho apaixonado
pelo seu vigor artístico. Na esteira de Drummond, este ensaio
perspectiva a proeminência do valor do artista.
Na Semana da Arte Moderna, Villa Lobos teve como
interlocutor Mário de Andrade, para quem esse carioca era
um gênio criador, embora tecnicamente pouco preparado,
conforme declara:
O que atrapalha Villa-Lobos é a fantástica falta
de organização intelectual. A cabeça dele, cheia
de ensinamentos malgeridos, com falhas enormes
de instrução, mesmo musical, não lhe permite uma
visão estética segura nem do momento, nem da
própria obra. É incontestavelmente o mais
“genial” de nossos músicos, o que tem invenções
mais fortes, mais originais, o de brasilidade mais
livre e audaciosa; porém, em geral, o mérito dele
se resume a essas invenções. (TONI, 1987, p. 48)
16 Heitor Villa-Lobos, a formação musical...
Em 1933, Mário de Andrade sente-se pessimista por
seu companheiro de luta a favor da renovação das artes
dedicar-se ao regime de Vargas.
Falar sobre Villa-Lobos implica, portanto, investigar
duas motivações: a lúdica e estética, bem como a histórica e
ideológica, eis o objetivo que aqui se apresenta e ao qual se
busca alcançar por meio de investigação bibliográfica.
O movimento modernista brasileiro reuniu marcas do
primitivismo no final da década de 20, rebordando o
imaginário da terra de maneira muito singular, aliando, no
jogo estético, aspectos do mágico e também do ideológico
para expressar traços do mundo social, cultural e político do
tempo.
A música, assim como outros sistemas semióticos da
época modernista, mostra-se visceralmente sintonizada com
questões de nossa identidade, tematizando a “nossa terra” e
a “nossa gente”. O imaginário desse tempo mobiliza desejos,
sentidos e ações que pulsam em âmbito coletivo,
reorganizando formas de expressão do real, bem como
maneiras de transformá-lo criticamente.
Mário de Andrade, com quem Villa-Lobos
compartilha amizade e visão de mundo nos períodos iniciais
de sua carreira, enuncia, em Pauliceia desvairada, o verso
considerado lema do movimento: “Eu sou um índio tupi que
toca alaúde”. Nesse sentido, o índio selvagem é capaz de
entoar sua própria melodia com sons trazidos pelos europeus,
ou seja, o Brasil colonizado contempla-se na busca de seu
próprio rosto.
No âmago do movimento modernista, poetas,
ensaístas, artistas plásticos, músicos compartilhavam o
sentimento e o pensamento de que o velho modelo cultural
importado do colonizador já não se ajustava a seus ideais,
sendo necessário reconhecer e valorizar, em seus projetos
artísticos, a cultura e a identidade nacional.
Ao perscrutar a forma como Villa-Lobos expressa
musicalmente os valores sociais e culturais de seu tempo,
cumpre analisar um imaginário que reflete temáticas
identitárias do contexto. Para tanto, o conceito de textura
sonora é fundamental. Ela é resultado do uso de componentes
Arte, Cultura e Imaginário 17
sonoros simultaneamente, a partir da combinação de notas
que formam acordes e da escolha dos instrumentos que vão
tocar estas notas. Diz respeito a uma “massa sonora
verticalmente organizada, que considera, além do parâmetro
sonoro correspondente à altura das notas, os demais
parâmetros do som: tempo, intensidade e timbre, dentre outros
aspectos” (SPECHT, 2017, p. 23). É habitual compará-la a
um tecido: Qual é o material usado? (instrumentos e
sonoridades); qual é a densidade dele? (quantos instrumentos
são utilizados simultaneamente); qual é a percepção ao
manuseá-lo? (duro, leve, macio); qual é a coloração e a
estampa? (timbres, ornamentos). A textura musical funciona
da mesma forma que a textura do tecido. Ela toca no aspecto
sensorial, neste caso, auditivo (SPECHT, 2017).
Villa-Lobos geralmente escolhe texturas densas, com
sobreposições sonoras inusitadas para caracterizar o universo
tridimensional da floresta. Insere fonemas sem lógica para
mostrar códigos linguísticos diferentes dos europeus. “Os
processos por onde Villa-Lobos utilizou temas folclóricos ou
de inspiração popular em texturas ruidosas seriam como os
‘planos sinedóquicos’ observados na pintura surrealista ou
no cinema” (SALLES, 2009, p. 82) – herança que adveio das
vanguardas artísticas do início do século XX.
Uma das obras mais interessantes como textura densa
com uma quantidade significativa de camadas sonoras é o
Noneto, impressões rápidas de todo o Brasil, composta inicialmente
para nove instrumentos, com acréscimos posteriores. Além
de diversos instrumentos de percussão, como tam-tam,
tambor, pandeiro, xilofone, caixa e o triângulo, Villa-Lobos
incluiu originais brasileiros, como a puíta ou cuíca (afro-
brasileiro), chocalhos, cocos e um coro indígena com
melodias, gritos, ruídos e vocalizes.
No Choros nº 3, para coro masculino e sete
instr umentos ou para cada uma dessas for mações
separadamente, o compositor explora o imaginário a partir
de sons onomatopaicos diversos, com melodias Nozani-ná e
Ualalôce. Os ostinatos, repetição de determinada frase melódica
ou rítmica, reproduzem a noção de tempo cíclico, característica
das culturas autóctones.
18 Heitor Villa-Lobos, a formação musical...
Da mesma forma, podemos decodificar, em suas
estruturas melódicas e harmônicas, sons característicos
brasileiros, como do trem maria-fumaça, que percorria o
interior de nosso país, e do vento, pelo uso de sons
onomatopaicos e usos inusitados de instrumentos da
orquestra; a sinuosidade das montanhas, presente na
construção de melodias em graus disjuntos; a caudalosidade
dos rios, em orquestrações complexas; as vozes dos chorões,
na solicitação de performances específicas dos músicos; as
línguas dos índios, afrodescendentes e caboclos, pela seleção
de palavras sem significado lógico, mas com sonoridades
características desses segmentos étnicos. Pela escolha de
técnicas instrumentais e vocais específicas, procurou valorizar
aspectos de nossa cultura e identidade nacional. E estas
escolhas levaram e levam até hoje o ouvinte, seja criança ou
adulto, a reminiscências, e, consequentemente, ao
reconhecimento de um imaginário brasileiro.
Paisagens estas que devem ser entendidas não
através de uma leitura materialista e estática de
uma feição de um lugar, mas como sendo algo
gerador de referências históricas, simbologias e
identidades de um grupo. Sendo que assim, a
paisagem aqui é entendida [...] como as festas
típicas, a culinária, a religião, a música, etc., os
símbolos, os traços culturais do g rupo
(SEVERINO; SOUZA, 2006, pp. 15.327).
Esses sentimentos e preocupações expressos em seu
imaginário advêm de experiências vividas desde criança.
Induzido pelo pai, o musicista Raul Villa-Lobos, Heitor estava
constantemente ligado aos sons produzidos ao seu redor, seja
como curiosidade, seja como parte de seu aprendizado
musical.
Meu pai, além de ser homem de aprimorada
cultura geral e excepcionalmente inteligente, era
um músico prático, técnico e perfeito. [...]
Aprendi, também, a tocar clarinete e era obrigado
a discernir o gênero, estilo, caráter e origem das
obras, como declarar com presteza o nome da
Arte, Cultura e Imaginário 19
nota, sons ou ruídos que surgiam incidentalmente
no momento, como o guincho da roda de um
bonde, o pio de um pássaro, a queda de um objeto
de metal, etc. [...] (MARIZ, 1981, pp. 104-105).
Por Raul Villa-Lobos estar envolvido com a Revolução
Federalista do Rio Grande do Sul, foi acusado por Floriano
Peixoto de subversivo e teve que fugir com a família para
cidades do interior. Primeiramente, Sapucaia, no estado do
Rio de Janeiro, e depois, Bicas e Santana dos Cataguases, no
estado de Minas Gerais. Essa experiência foi muito rica para
Heitor, na ocasião com cinco anos de idade, pois ele pôde
conviver com a música sertaneja, pela qual se interessou muito,
e vivenciar as brincadeiras e os causos contados pelos locais,
fato que abriu sua percepção para o imaginário cultural da
terra desde cedo.
Também as viagens realizadas pelo compositor ao
longo do Brasil, algumas delas provavelmente fruto de sua
imaginação como parte do projeto de ser conhecido como
músico genuinamente brasileiro, mas, sobretudo, as viagens
para os estados de Pernambuco, Bahia e Espírito Santo,
percorrendo o interior, pequenas vilas, engenhos e fazendas,
influenciaram em sua vertente musical imaginativa.
Villa-Lobos estabelece com sua arte musical um
profícuo diálogo com o imaginário infantil de duas maneiras:
a) pelo aspecto descritivo dos efeitos sonoros inseridos em
suas ambientações para as músicas do repertório autóctone,
folclórico e popular brasileiro, já constantes do inconsciente
coletivo; b) pelas diversas formas de aproveitamento de lendas
e mitos do folclore brasileiro, em particular do indígena, a
partir dos quais ele adapta, cria, ambienta e reaproveita em
obras de grande envergadura, como os bailados, as obras
sinfônicas, os choros e a música para piano.
Mirelle Borges (2008) destaca o posicionamento de
Villa-Lobos no uso da música folclórica.
Referências bibliográficas
1
Este capítulo está publicado originalmente na Intersecções. Revista de Estudos
sobre Práticas Discursivas e Textuais, v. 2, pp. 15 -180, 2018.
2
CAMPOS, Mestrado e Doutorado em História Social (USP/SP); Livre-
docente em Metodologia da História (UNESP/FRANCA); docente do
Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Santo
Amaro (UNISA/SP).
3
GODOY, Mestre em Antropologia Social (USP), doutora em Psicologia
Social (PUC-SP), professora do Mestrado em Educação, Administração
e Comunicação da Universidade São Marcos (2000-2012), professora do
Mestrado em Ciências Humanas da Universidade Santo Amaro (UNISA).
36 Narrativas Mitopoéticas dos Mborai...
A mitodologia durandiana, ao inaugurar um novo
método que enfoca o mito “latente ou manifesto em toda a
narrativa, não circunscrito ao tempo e ao espaço, mas preso à
sabedoria de culturas imemoriais e sempre presente na
extensão visionária” (TURCHI, 2003, p. 39) constitui o
conceito primordial desta análise. O mito é aqui avaliado como
uma expressão legítima da condição humana e das relações
sociais nos Guarani, por meio de configurações literárias desse
grupo – os mborai.
Ao entender o mito como “magna de significância” e
como constituidor da “razão imaginária que sustenta a
sociedade” (BORGES, 1998, p. 9), esta reflexão detém-se nas
narrativas mitopoéticas – os mborai –, procurando entender o
seu papel no reforçamento da identidade dos Guarani Mbya4,
como discurso fundador, em suas performances significativas.
Nesse sentido, pretende-se contribuir para as pesquisas sobre
o símbolo e o mito, que, modernamente,
provocaram um novo humanismo, envolvendo
toda a cultura humana, na interdisciplinaridade
da antropologia, da etnologia, da história das
religiões, da sociologia, da psicopatologia, das
estéticas e das literaturas. A mitodologia necessita,
pois, de caminhos distintos para enriquecer as
possibilidades hemenêuticas dos textos: a
mitocrítica e a mitanálise (TURCHI, 2003, p. 39).
Como um dos capítulos mais significativos da cultura
literária brasileira, embora e paradoxalmente pouco conhecido,
os mborai constituem um vetor eficaz para a compreensão da
identidade Guarani. E, dados os epistemas e conceitos que
4
A grafia Mbüá tem sido substituída por Mbya por vários autores, que
manifestam a sua preferência por uma palavra escrita com o menor
número de símbolos gráficos, fato que os levou a substituir a sexta vogal
“ü” pelo y. No entanto, esses mesmos autores respeitam a grafia tradicional
nas citações presentes em seus textos, posição aqui adotada. Cf. in:
LADEIRA, Maria Inês. O caminhar sob a luz: território mbya à beira do oceano.
São Paulo: Editora UNESP, 2007, pp. 20-21.
Arte, Cultura e Imaginário 37
regem o estudo literário de sociedades de tradição oral,
conduzem-nos à identidade do homem contemporâneo, em
sua complexidade, encontros e conflitos.
Adota-se a interdisciplinaridade como metodologia
para a análise dos mborai, uma vez que a não distinção entre
ficção e realidade – já problemática para a literatura não
indígena – faz com que os cânticos sagrados guarani espelhem
a materialidade histórica de sua existência, no ambiente de
exploração a que foram submetidas as etnias não europeias
durante a colonização e nas épocas subsequentes. Essa
materialidade liga-se a conceitos antropológicos sobre
identidade, diversidade cultural, alteralidade e plurietnicidade,
transcritos para os limites da reflexão aqui conduzida, no
perspectivismo indígena. Trata-se de contribuir com os relatos
sobre aspectos de culturas alheias às hegemônicas. Na
consideração de Rodrigo Petronio, o olhar sobre o Outro e a
descrição da alteridade, embora sempre tenham ocupado “um
lugar privilegiado na literatura e na construção do imaginário
humano”, apenas a partir do século XIX esse saber difuso
definiu-se como novo campo do conhecimento, a
antropologia, ciência que passou a conferir sentido à
abordagem em rede do homem, em especial pelo emprego
de seu método central, a etnografia, que consiste em estudar
as culturas a partir dos valores internos a elas:
O objetivo da etnografia não é apenas encontrar
equivalentes nas culturas ocidentais para palavras,
práticas e ideias não ocidentais. Seria preciso acima
de tudo compreender a partir de qual sistema de
valores (axiologia) os nativos as empregam. A
etnografia não se resume à tradução de termos.
Define-se por uma tentativa de transposição do
sentido. (PETRONIO, 2018, El).
Referências bibliográficas
1
Mestre em Ciências Humanas e Especialista em Arqueologia, História e
Sociedade pela Universidade Santo Amaro (UNISA). Programa de pós-
graduação lato sensu em andamento, no curso de Anatomia Funcional:
Humana e Comparada, pelo Instituto de Ciências Biomédicas da
Universidade de São Paulo (ICB-USP). Licenciada em História pelo
Centro Universitário Estácio de Sá. Membro no grupo de pesquisa Arte,
Cultura e Imaginário – UNISA. Atualmente, é devidamente filiada à
Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais (ABEC).
68 A construção do imaginário ...
valorizava fortemente a realização dos ritos fúnebres de
maneira coletiva. Tudo era explícito no momento da inumação
do corpo e as igrejas eram vistas como o local sagrado de
aprendizagem. Não era um tabu sentar nas covas dos mortos,
mesmo tendo que suportar os odores indesejados que o
ambiente proporcionava.
Já era de se esperar que a campanha sanitarista
intervisse, fortemente, no hábito de conviver com os mortos,
de maneira tão próxima. Para a medicina social, o convívio
com os mortos no núcleo urbano traria fortes consequências.
Os cadáveres eram fontes de poluição e doenças, por isso as
práticas de sepultar os mortos nas igrejas deveriam ser
realocadas para outra localidade, fora desses espaços. Não foi
fácil trazer à luz uma proposta que acabaria interferindo em
práticas culturais tão enraizadas. A ideia de cemitérios
extramuros provocaria a insatisfação do clérigo e dos fiéis
que ainda almejavam ter uma cova em solo sagrado. Ainda
assim, não demoraria para que os efeitos epidêmicos
impulsionassem, por definitivo, a prática de utilizar os
cemitérios públicos.
Este é um tema bastante complexo, porque forma
confluências culturais que perduram até os dias de hoje, mesmo
de maneira menos tradicional. Para analisar este percurso,
demarcado por uma concepção que incorpora o imaginário da
morte, a passagem dos mortos para o “outro mundo” e a
configuração de um novo espaço funerário, foram tomados como
referencial teórico os autores: Arnold van Gennep, Philippe Ariès,
Jacques Le Goff, João José Reis, José Carlos Rodrigues e Cláudia
Rodrigues – pesquisadores que trazem estudos influenciados pela
Antropologia e História das Mentalidades.
A morte
2
Comissão Teológica Internacional. A esperança da salvação para as
crianças que morrem sem Batismo, n. 24. Disponível em: <http://
www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/cti_documents/
rc_con_cfaith_doc_20070419_un-baptised-infants_po.html>. Acesso
em: 02 jan. 2020.
3
Comissão Teológica Internacional. A esperança da salvação para as
crianças que morrem sem Batismo, n. 26. Disponível em: http://bit.ly/
2YCqMok. Acesso em: 02 jan. 2020.
Arte, Cultura e Imaginário 75
Apesar da resistência por parte do sistema
fundamentalista da igreja católica, o clérigo foi pressionado a
aceitar, ou “[...] pelo menos fechar os olhos para os
africanismos nas cerimônias fúnebres. Contudo, não havia
dúvidas de que as regras católicas predominavam,
especialmente no lado público dos funerais” (REIS, 2019, p.
77).
Os registros históricos do artística de Jean-Baptiste
Debret, no documento intitulado Viagem pitoresca e histórica ao
Brasil, trazem cenas diversas sobre a vida cotidiana dos negros,
inclusive, momentos de cortejos funerários diversos
(DEBRET, 1972).
Fonte: Jean Debret. Convoi funèbre dun fils de riu nègre. Disponível
em: <https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/3452>. Acesso em:
04 mai. 2020.
76 A construção do imaginário ...
Fonte: Jean Debret. Enterrement d’une femme nègre. Disponível em: <https:/
/digital.bbm.usp.br/handle/bbm/3452>. Acesso em: 04 mai. 2020.
Referências bibliográficas
content/uploads/sites/31/2017/09/DAMATTA-Roberto-A-
Casa-e-a-Rua.pdf>. Acesso em: 09 fev. 2020.
_______. Individualidade e liminaridade: considerações sobre
os ritos de passagem e a modernidade. Mana, Rio de Janeiro,
v. 6, n. 1, pp. 7-29, 2000.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Tradução Rogério
Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
GENNEP, Arnold Van. The Rites of Passage [1909]. Chicago:
Phoenix Books/University of Chicago Press, 1960.
_______. Os ritos de passagem: estudo sistemático dos ritos da
porta e da solteira, da hospitalidade, da adoração, gravidez e
parto, nascimento, infância, puberdade, iniciação, coração,
noivado, casamento, funerais, estações etc. Tradução Mariano
Ferreira; Apresentações Roberto da Matta. 3. ed. Petrópolis:
Vozes, 2011.
LE GOFF, Jacques. O nascimento do purgatório. Tradução Maria
Fernanda Gonçalves de Azevedo. 2. ed. Lisboa: Editorial
Estampa,1995.
MARTINS, Juliana Maria. Memória e cultura material: cemitério
Campo da Saudade, município de Couto Magalhães (TO). 1.
ed. - Jundiaí [SP]: Paco Editorial, 2019.
MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e
o calundu. In: SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da
vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América
portuguesa. Coleção História da vida privada no Brasil, v. 1.
São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
MORAES, Vinicius de. Nova antologia poética. São Paulo:
Companhia das Letras; Companhia de Bolso, 2005.
MOTTA, Antonio. Estilos Mortuários e Modos de Sociedade
em Cemitérios Brasileiros Oitocentistas. Horizontes
Antropológicos, Porto Alegre, ano 16, n. 33, p. 55-80, jan./ jun.
2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ha/
v16n33/05.pdf>. Acesso em: 08 mar. 2020.
90 A construção do imaginário ...
OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. Barroco e Rococó nas
igrejas de Ouro Preto e Mariana. Brasília: Iphan; Programa
Monumenta, 2010.
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta
popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das
Letras, 1991.
_______. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista. In:
ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org.). História da vida privada
no Brasil Império. Coleção História da vida privada no Brasil,
vol. 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
_______. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista. In:
ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org.). História da vida privada
no Brasil Império. Coleção História da vida privada no Brasil,
vol. 2. São Paulo: Companhia de Bolso, 2019.
RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos mortos nas cidades dos vivos:
tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura; Departamento
Geral de Documentação e Informação Cultural; Divisão de
Editoração, 1997.
_______. Nas fronteiras do além: a secularização da morte no
Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 2005.
RODRIGUES, José Carlos. Tabu da morte. 2. ed. Rio de Janeiro:
Editora FIOCRUZ, 2006.
RUGENDAS, João Maurício. Viagem pitoresca através do Brasil.
São Paulo: Martins, 1940.
SILVA, Deuzair José. A (re)invenção do fim: lugares, ritos e
secularização da morte em Goiás no século XIX. 2012. 298f.
Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de
Goiás, Goiânia, 2012.
VIDE, Dom Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia. Impressas em Lisboa, no ano de 1719, e
em Coimbra, em 1720). São Paulo: Tip., 02 dez. 1853.
Disponível em: <http:// bit.ly/2OxceCN>. Acesso em: 09
fev. 2020.
Jogos simbólicos e o imaginário na
Educação Infantil
Maria de Lourdes Perez1
Talita Destro Rost2
Referências bibliográficas
1
Graduado em História. Mestrando no Programa Interdisciplinar em
Ciências Humanas da Universidade Santo Amaro – UNISA, São Paulo
(Bolsista parcial UNISA).
2
Doutor em História UNESP, Assis. Professor do Programa de Mestrado
Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Santo Amaro –
UNISA, São Paulo.
104 Bruxaria contemporânea ...
por não constituir um conjunto único, ou uma regra
unificadora.3
A releitura das bruxas, como agentes de um
movimento espiritual, está vinculada a determinadas práticas.
Feitiços e encantamentos, além da manipulação de poções e
realização de festivais, estão relacionados ao cotidiano da
bruxaria e são evocados principalmente em dias sagrados,
pautados nos solstícios e equinócios (VAN FEU, 2001c, pp.
20-29; VAN FEU, 2001b, p. 81; FRAZÃO, 2002, pp. 179-
185). Este aspecto permite considerar que as formas de
manifestação que regem a br uxaria contemporânea
estabelecem relações com o neopaganismo, mas também com
movimentos de contracultura presentes no Brasil com maior
força nas décadas de 1960 a 1980. Ambos apresentam a
perspectiva de reencantamento do mundo e podem ser
compreendidos como anarquismo religioso, o que colaborou
para a criação de correntes de pensamento espiritual, cujo
principal atributo é apresentar flexibilidade de dogmas
(BOSCATO, 2006).
Os dogmas podem ser percebidos somente nas
estruturas das comunidades das bruxas4, os chamados covens,
ou seja, grupo de bruxas que se reúnem para praticar feitiços
ou comemorar datas especiais, porém, do mesmo modo, sem
3
Existem, por exemplo, correntes de bruxaria derivadas da Wicca como
a Wicca Gardneriana, Wicca Alexandrina, Wicca Diânica, Wicca Celta e
outras denominações independentes como as da tradição Picta, entre as
quais emergem o ecletismo, a tradição hereditária ou familiar, Stregoneria,
também conhecida como bruxaria italiana, Tradição Asatrú, entre outras.
Na esteira dessas correntes, há segmentos criados por bruxos que podem
adotar uma infinidade de terminologias (VAN FEU, 2003, pp. 132-142).
4
A Bruxaria contemporânea é uma religiosidade seguida tanto por homens
como por mulheres. Porém, entre as obras que serviram de base para
este capítulo é comum que as autoras utilizassem o coletivo na forma
feminina “bruxas” para se referir a ambos, provavelmente para evidenciar
a importância dada à mulher na religião ou como quebra do padrão
seguido pela língua portuguesa que privilegia o masculino. Adotamos a
mesma abordagem neste estudo.
Arte, Cultura e Imaginário 105
estabelecer regra geral. A pluralidade de bruxarias existentes
permite reconhecer as chamadas ‘bruxas solitárias’, as quais
praticam a religião criando a sua própria liturgia. Deste modo,
dentre as diversas vertentes dos neopaganismos, o que parece
concentrar as identidades de seus praticantes é a crença em
alguns aspectos em comum, vale dizer, a sacralidade da
natureza, a vinculação inquebrantável entre físico e espiritual
e a possibilidade da magia.
Opondo-se aos discursos presentes na sociedade
patriarcal, que depreciam o feminino e ampliam a violência
simbólica, as bruxas contemporâneas apresentam o conceito
de sagrado feminino encontrado na crença e culto a deusas e
intimamente vinculado ao ato da criação e exaltação da mulher.
Os registros analisados permitiram indagar sobre os motivos
pelos quais o feminino assume capital importância entre
bruxas contemporâneas, isto é, em que medida os discursos
legitimam o Sagrado Feminino na Bruxaria Contemporânea
e quais relações se estabelecem entre o imaginário construído
para as bruxas medievais e modernas.
Para a reflexão proposta, o estudo utilizou publicações
nacionais escritas por integrantes da Bruxaria, em específico,
por Marcia Frazão e Eddie Van Feu, como os publicados na
revista Wicca 5. No caso do periódico, o estudo analisa a coluna
destinada aos leitores, os quais encaminharam opiniões,
dúvidas e mesmo relatos das dificuldades enfrentadas por
seguirem a Bruxaria. Os textos evidenciam a importância da
mulher exaltada como referência na bruxaria identificada
como A Arte ou Antiga Religião.
Não obstante, as bruxas possuem longa historicidade
em que foram tratadas como loucas, perigosas, ignorantes,
representantes dos resquícios deixados por cultos pagãos em
locais pouco catequizados pelo cristianismo, mas, em alguns
momentos, também como símbolo de resistência. Na
atualidade, os chamados pagan studies têm se preocupado em
estudar as bruxas contemporâneas como integrantes de uma
5
Os exemplares da coleção Wicca utilizados na construção desta
pesquisa eram originariamente vendidos em bancas de jornal,
estima-se que no período entre de 2001 e 2012.
106 Bruxaria contemporânea ...
nova religião (TERZETTI FILHO, 2010). Nesse sentido,
apresentar a historicidade das bruxas contemporâneas implica
retomar a construção de identidades que integram o
imaginário nas mais diferentes sociedades, todavia,
diferentemente das imagens distorcidas, as br uxas
contemporâneas têm filhos, famílias, empregos, mas
permanecem vítimas de preconceito e discriminação, sendo
historicamente perseguidas e mortas devido a um imaginário
que reverbera a bruxa pela representação da mulher má, que
pratica o mal, constituindo-se em um mito a ser combatido.
Segundo Pesavento (1995), o imaginário se constitui
pela representação, estabelecida na relação entre significantes
(imagens e palavras) e significados (suas representações),
processo que envolve uma dimensão simbólica composta
simultaneamente de concretude e representação. Sua
dimensão representativa, ou seja, imaginária, instaura-se nos
processos históricos que transpassam os grupos sociais. Na
dimensão do imaginário, conseguimos estabelecer conexão
com o conceito de identidades, constructos que, na pós-
modernidade, se estabelecem móveis, fluídos, agregando
elementos muitas vezes contraditórios, mas gerando o
sentimento de pertencimento ou comunidade. Como indicado
por Hall (2005), essas identidades culturais são imaginadas,
construídas com símbolos, mitos, tradições, ritos. A bruxa,
nestes termos, transforma-se em símbolo historicamente
construído, possui uma representação no imaginário social.
Partindo dessas premissas, buscamos analisar a
identidade da bruxa contemporânea baseada no conceito de
Sagrado Feminino, elemento presente na bruxaria do século
XXI. Deste modo, o capítulo reflete sobre a presença da
sacralidade feminina na Bruxaria Contemporânea como uma
possibilidade a mais para se compreender relações existentes
entre a construção das identidades das bruxas e os discursos
que as representam em diferentes momentos históricos.
6
Personagem da tragédia escrita por Eurípedes em 431 a.C. Medeia auxilia
Jasão a roubar o velo de ouro à despeito de seu pai. Foge com Jasão após
o acontecido e com ele tem filhos, mas por ele é abandonada quando em
Corinto, Jasão decide se casar com a filha do monarca. Como vingança
envia um vestido envenenado por artes mágicas para a noiva de Jasão,
que perece em chamas e assassina os próprios filhos (VIEIRA, 2010).
110 Bruxaria contemporânea ...
os textos permitem caracterizar dramas internos causados pela
quebra de paradigmas pessoais gerados pela nova religião, isto
é, devido às divergências que se apresentam em relação à
religiosidade predominante. Nos depoimentos publicados na
edição n. 25, é possível identificarmos conflitos que permeiam
temporalidades históricas, como quando uma seguidora da
bruxaria contemporânea escreve:
Eddie, de novo lhe escrevo... Não aguento mais...
Minha família quer que eu seja católica! Ela tem
que entender que essa não é uma religião que me
completa! [...] estou fazendo curso de Crisma [...].
Eu vou terminar o curso e, aos poucos, ir deixando
o catolicismo e continuar estudando para me
aperfeiçoar em magia... (WICCA, 2004, pp. 160-
161).
Os registros permitem identificar, no bojo dos
conflitos, a imposição de valores familiares e dogmas do
catolicismo arraigados na construção mítica da bruxaria. Ainda
que exista a escolha da correspondente em prosseguir
momentaneamente na religião católica, seu depoimento
mantém a preocupação em encontrar uma saída menos
conflituosa e seguir a religião com a qual aparentemente se
sente mais conectada. Em resposta, Eddie Van Feu sugere o
reconhecimento da prática mágica como inerente a todas as
religiões, inclusive no catolicismo.
Como prática mágica, podemos entender a liturgia e
a ritualização da Igreja Católica como uma forma de magia
na medida em que “[...] mesmo santos da Igreja Católica
praticavam magia, contra os bruxos pagãos, garantindo assim
o estabelecimento do cristianismo”– afirma Eddie Van Feu
(2001a, p. 27). Esse aspecto remonta outro relato publicado
na revista Wicca, que resgata a dúvida e a culpa causada ao
atribuir um sentido espiritual à realidade adversa vivida. A
leitora informa:
Estudo e pratico Wicca desde os 13 anos. Hoje
tenho 17 anos e uma filha. Essa minha filhinha
nasceu com o esôfago fechado, passou por uma
cirurgia de altíssimo risco com três dias de vida,
Arte, Cultura e Imaginário 111
ficou na UTI entubada, com dreno, com sonda,
enfim... Achamos que ela iria morrer. Mas graças
a Deus, está viva. Acontece que ela está sempre
no médico por algum motivo: gripe, garganta,
refluxo, pneumonia, etc... Não sei mais o que
fazer para melhorar a saúde do meu bebê. Ela já
tem um ano, gasta muito com remédios e eu
estou devendo até o olho da cara. Bom
resumindo, hoje eu li a Bíblia e lá dizia que se
você adorasse outros deuses, suas dores se
multiplicariam. Você acha que a bruxaria tem
algo haver com o sofrimento do meu bebê? Tipo,
algo que eu fiz de errado? Me ajuda, Eddie, pois
não quero deixar a Wicca, mas também não
quero ver meu bebê mal. Leio a Bíblia porque
também faço parte da salada mística da Eddie
(WICCA, 2004, pp. 158-159).
O termo empregado no final com a expressão “salada
mística da Eddie” é adotado por Eddie Van Feu para nomear
o sincretismo religioso que defende, ao misturar, sem receio,
diferentes códigos simbólicos e deuses em sua prática à
Bíblia, anjos e santos do catolicismo (WICCA, 2001, pp.
13-15). Embora essa mistura pareça ser aceita de forma
positiva pela autora, o conflito relatado pelos leitores é
marcante. Nesse processo, dois valores presentes nas
identidades consideradas contraditórias emergem: a crença
na magia e sua busca como religião e o discurso religioso
predominante que condena a prática.
Salvo os avanços alcançados, o tema da bruxaria
ainda é permeado pela representação lendária da bruxa como
mulher demoníaca, usada pelo diabo para praticar feitiços,
corruptora, representante do mal. O impacto desse
mecanismo opressor é resultado de um conhecimento
pautado em verdades absolutas ou pós-verdades, cuja
desconstrução exige o reconhecimento das diversas
manifestações da espiritualidade.
112 Bruxaria contemporânea ...
Identidade e memória: bruxaria, religião e
preconceito
Referências bibliográficas
1
Mestre em Políticas Sociais e Geógrafo Pela PUC-SP e Especialista em
Política Internacional pela Fundação Escola de Sociologia e Política de
São Paulo. Coordenador de Pesquisa e Iniciação Científica do Centro
Universitário Ítalo Brasileiro, onde é Editor Executivo da Revista
UNIITALO.
122 Reflexões sobre o conceito de banalidade ...
percepção, muito embora a temática esteja em pauta em
grande parte da mídia e, também, nos textos acadêmicos.
Não obstante, procuraremos fazer uma discussão sobre
a interface do pensamento da autora com o conceito de imaginário
cunhado por Wunenburger (2007), segundo o qual, “remete a
um conjunto bastante flexível de componentes, abrangendo
pensamentos religiosos, produções artísticas, concepções pré-
científicas, ficções, ideologias políticas e sociológicas.
Em termos de procedimentos metodológicos, foram
realizadas pesquisas bibliográficas, tanto em títulos de autoria
de Hannah Arendt, como também de autores que já a
interpretaram em suas obras. Após a discussão do conceito
de banalidade do mal, buscamos outros autores que tratam
de assuntos correlatos à temática em questão, a fim de
estabelecer seu diálogo com a atual conjuntura brasileira.
2
Immanuel Kant (Königsberg, 22 de abril de 1724 – Königsberg, 12
de fevereiro de 1804) foi um filósofo prussiano (Alemão). Amplamente
considerado como o principal filósofo da era moderna, Kant operou,
na epistemologia, uma síntese entre o racionalismo continental (de
René Descartes, Baruch Espinoza e Gottfried Wilhelm Leibniz, onde
impera a forma de raciocínio dedutivo), e a tradição empírica inglesa
(de David Hume, John Locke, ou George Berkeley, que valoriza a
indução).Nascido de uma modesta família de artesãos, depois de um
longo período como professor secundário de geografia, Kant veio a
estudar filosofia, física e matemática na Universidade de Königsberg
e, em 1755, começou a lecionar ensinando Ciências Naturais. Em
1770, foi nomeado professor catedrático da Universidade de
Köni gsberg, cidade da qual nunca saiu, l evando u ma vi da
monotonamente pontual e só dedicada aos estudos filosóficos.
Realizou numerosos trabalhos sobre ciências naturais e exatas.
3
Sören Aabye Kierkegaard (Copenhague, 5 de maio de 1813 –
Copenhague, 11 de novembro de 1855) foi um filósofo, teólogo, poeta
e crítico social dinamarquês, amplamente considerado o primeiro
filósofo existencialista. Durante sua carreira, ele escreveu textos
críticos sobre religião organizada, cristianismo, moralidade, ética,
psicologia e filosofia da religião, mostrando um gosto particular por
figuras de linguagem, como a metáfora, a ironia e a alegoria. Grande
parte do seu trabalho filosófico aborda as questões de como alguém
vive sendo um “único indivíduo”, priorizando a realidade humana
concreta sobre o pensamento abstrato e destacando a importância da
escolha e do comprometimento pessoal. Ele se posicionou contra os
críticos literários chamados de idealistas e contra filósofos de seu
tempo.
124 Reflexões sobre o conceito de banalidade ...
Berlim. Em 1924, ingressou na Universidade de Marburg,
onde estudou filosofia com Martin Heidegger4.
Em 1926, foi para Heidelberg, onde estudou com o
filósofo Karl Jaspers5, junto a quem defendeu a sua tese de
doutorado O conceito de amor em Agostinho, publicada em 1929.
No final desta década, ela se envolveu com a política judaica
por meio do movimento sionista e, no começo da década
seguinte, em 1933, com a ascensão do nazismo e o incêndio do
Parlamento Alemão em Berlim, cidade onde ela residia desde
1930 com seu primeiro marido, foi perseguida e presa por suas
atividades, tendo, então, fugido para Paris com sua mãe.
4
Martin Heidegger (Messkirch, 26 de setembro de 1889 – Friburgo em
Brisgóvia, 26 de maio de 1976) foi um filósofo, escritor, professor universitário
e reitor alemão. Foi um pensador seminal na tradição continental e
hermenêutica filosófica, e é “amplamente reconhecido como um dos filósofos
mais originais e importantes do século XX.” É mais conhecido por suas
contribuições para a fenomenologia e existencialismo, embora, como a
Enciclopédia de Stanford de Filosofia adverte, “seu pensamento deve ser
identificado como parte de tais movimentos filosóficos apenas com extremo
cuidado e qualificação”. Seu primeiro e mais conhecido livro, Ser e Tempo
(1927), embora inacabado, é uma das obras filosóficas centrais do século
XX. Em sua primeira divisão, Heidegger tentou se afastar das questões
“ônticas” sobre os seres para as questões ontológicas sobre o Ser, e recuperar
a questão filosófica mais fundamental: a questão do Ser, do que significa
para algo ser. Heidegger abordou a questão através de uma investigação
sobre o ser que tem uma compreensão do Ser, e faz a pergunta sobre ele, a
saber, o Ser Humano, que ele chamou de Dasein (“estar lá”). Heidegger
argumentou que o Dasein é definido por Care, seu modo de ser-no-mundo
praticamente engajado e preocupado, em oposição a pensadores racionalistas,
como René Descartes, que localizou a essência do homem em nossas
habilidades de pensamento.
5
Karl Theodor Jaspers (Oldemburgo, 23 de fevereiro de 1883 – Basileia, 26 de
fevereiro de 1969) foi um filósofo e psiquiatra alemão. Estudou medicina e, depois
de trabalhar no hospital psiquiátrico da Universidade de Heidelberg, tornou-se
professor de psicologia da Faculdade de Letras dessa instituição. Desligado de seu
cargo pelo regime nazista em 1937 foi readmitido em 1945 e, três anos depois,
passou a lecionar filosofia na Universidade de Basileia. O pensamento de Jaspers
foi influenciado pelo seu conhecimento em psicopatologia e, em parte, pelo
pensamento de Kierkegaard, Nietzsche e Max Weber. Sempre teve interesse em
integrar a ciência ao pensamento filosófico na medida em que, para Jaspers, as
ciências são por si só insuficientes e necessitam do exame crítico que só pode ser
dado pela filosofia. Esta, por sua vez, deve basear-se numa elucidação, a mais
completa possível, da existência do homem real, e não da humanidade abstrata.
Arte, Cultura e Imaginário 125
Durante o restante da década, trabalhou em
organizações judaicas cuja principal função era ajudar a
preparar jovens judeus na imigração para a Palestina. Nesse
período, tornou-se amiga de Walter Benjamin e Raymond
Aron. Em 1940, com a guerra entre a Alemanha e a França,
ela, sua mãe e Heinrich Blücher, seu segundo marido, foram
detidos por algum tempo em campos de internamento.
Em 1941, fugiram, via Lisboa, para os Estados Unidos,
onde se radicaram em definitivo.
6
O Mossad (palavra em hebraico que significa “O Instituto”) é o serviço
secreto ou o instituto de inteligência e operações especiais do Estado de
Israel. Criado em 13 de dezembro de 1949, a partir de sugestão do primeiro-
ministro de Israel, David Ben-Gurion, o Mossad é considerado por muitos
analistas o serviço secreto mais eficiente e mais temida do mundo,
ultrapassando a CIA, americana, e a antiga KGB, soviética. É um serviço
civil que obedece diretamente ao primeiro-ministro de Israel e não contratam
militares para trabalhar na sua organização, apesar de, frequentemente, realizar
atividades conjuntas com as Forças de Defesa de Israel. Tem os seus quartéis-
generais situados no norte de TelAviv e conta com oito departamentos.
126 Reflexões sobre o conceito de banalidade ...
Ao longo do julgamento de Eichamn, nazista
responsável por gerir a logística das deportações em massa
dos judeus para os guetos e campos de extermínio durante o
período da Segunda Guerra Mundial, Arendt passou a
entender que tudo o que ele havia cometido fora como um
ato burocrático, sem refletir a respeito. Apesar de ter plena
noção da gravidade de seus atos, ele agiu como um funcionário
que cumpria ordens. Tratava-se de uma pessoa absolutamente
“normal”, um típico burocrata, manipulado pela ideologia
alemã, um mero executor de ordens, que zelava por seus
deveres e pelo cumprimento de seu trabalho.
Eichmann, para a acusação, era o monstro perverso,
responsável por todas as atrocidades cometidas aos judeus, mas
a autora o descreveu perante o julgamento nos seguintes termos:
[...] aquele homem dentro da cabine de vidro
construída para sua proteção: altura mediana,
magro, meia-idade, quase calvo, dentes tortos e
olhos míopes, que ao longo de todo o julgamento
fica esticando o pescoço para olhar o banco das
testemunhas (sem olhar nem uma vez para a
platéia), que tenta desesperadamente, e quase
sempre consegue, manter o autocontrole, apesar
do tique ner voso que lhe retorce a boca
provavelmente desde muito antes do começo
deste julgamento (ARENDT, 1999, p. 15).
A perversidade do sistema totalitário cria pessoas
destituídas da mínima capacidade de distinguir o bem do mal,
de atentar para as consequências de suas ações, pois se
encobrem no coletivo. Cegos, buscam, unicamente, ascender
socialmente no exercício de suas profissões sem questionar o
éthos que lhes compete.
Essa “normalidade de entorpecimento” de Eichmann,
que lhe impedira de se distanciar de seus atos e de refletir
sobre eles, é apontada por Arendt (1999, pp. 64-65) como
uma realidade que encerrava a sociedade alemã. Eichmann
não era exceção: as distorções feitas por ele eram a
regularidade. No regime nazista, somente as exceções é que
poderiam ser consideradas a normalidade quando fora daquele
círculo (ARENDT, 1999, pp. 38, 71)
Arte, Cultura e Imaginário 127
Para Arendt (1999), o pensamento, como uma
manifestação do ato de pensar, não é o conhecimento, mas a
habilidade de distinguir o bem do mal, o belo do feio, o bom do
ruim. É o pensar de forma consciente que possibilita a autonomia
nas pessoas para que contemplem a sua liberdade de forma digna
e protagonizem as próprias capacidades dos juízos morais.
Hannah Arendt apontou para a necessidade de
refletirmos sobre o fato de que regras arbitrariamente
preestabelecidas nos tornam incapazes de gozar das faculdades
básicas do espírito individual, sequestrando nossa liberdade.
Ao negar ao homem a liberdade de pensar, refletir, julgar e
escolher, fomentamos a existência do totalitarismo.
Para Arendt (1999), o mal é a ausência de pensamento,
vinculando-se à capacidade humana de discernir o bem do
mal. Eichmann respondeu por seus atos mecanizados, por
suas más ações diante de um sistema capaz de tornar uma
simples conduta repetitiva em completa alienação. A
banalidade do mal é quando não mais se percebe o próprio
agir, não se consegue colocar no lugar do outro e ter a
dimensão do que representa o próprio ato.
Os buracos de esquecimento não existem. Nada
humano é tão perfeito, e simplesmente existem
no mundo pessoas demais para que seja possível
o esquecimento. Sempre sobra um homem para
contar a história. Portanto, nada pode ser
‘praticamente inútil’, pelo menos a longo prazo.
Seria de grande utilidade prática para a Alemanha
de hoje, não meramente para o seu prestígio no
estrangeiro, mas para a sua condição interna
tristemente confusa, se houvesse mais dessas
histórias para contar. Pois a lição dessas histórias
é simples e está ao alcance de todo o mundo.
Politicamente falando, a lição é que, em condições
de terror, a maioria das pessoas se conformará,
mas algumas pessoas não, da mesma forma que a
lição dos países aos quais a Solução Final foi
proposta é que ela ‘poderia acontecer’ na maioria
dos lugares, mas não aconteceu em todos os
lugares. Humanamente falando, não é preciso
nada mais, e nada mais pode ser pedido dentro
128 Reflexões sobre o conceito de banalidade ...
dos limites do razoável, para que este planeta
continue sendo um lugar próprio para a vida
humana (ARENDT, 1999, p. 254).
O mal de Eichmann não provém do sobrenatural, mas
de um homem surpreendentemente normal. Esse é o mal
moderno, um mal que, por não ter um motivo especial – um
vilão, um pecado, um trauma, um demônio –, pode ser um
mal infinito, um mal cometido por qualquer pessoa normal:
aquela que tem família, paga seus impostos, vai à igreja, realiza
festas com amigos e familiares e, inclusive, por aquela que se
elege Presidente da República.
Apesar de ter sido publicado em 1963, o livro e o
pensamento de Hannah Arendt ainda permanecem muito vivos
e fecundos hoje. A banalidade do mal pode ser vista e sentida
em nosso cotidiano, seja pela reprodução de discursos de ódio –
que são diariamente difundidos pela grande mídia e pela massa
que a acompanha cegamente –, seja pelo desrespeito aos direitos
humanos, ou mesmo pela banalização da violência no cotidiano.
A incapacidade de pensar ainda é um dos grandes problemas de
nosso tempo, que produz comportamentos que flertam
abertamente com o fascismo7 em nosso país.
7
Segundo o filósofo e historiador Norberto Bobbio, o termo fascismo se refere
principalmente à sua dimensão histórica. Esta, constituída pelo fascismo italiano e
posteriormente pelo fascismo alemão. Apesar da dificuldade em encontrar uma
única definição para o fascismo, as características observadas em diversos regimes
fascistas possibilitam a elaboração de uma definição geral, que frisa os aspectos
mais comuns desse regime. De forma geral, o fascismo é um regime autoritário
com concentração total do poder nas mãos do líder do governo. Esse líder deveria
ser cultuado e poderia tomar qualquer decisão sem consultar previamente os
representantes da sociedade. Além disso, o fascismo defende uma exaltação da
coletividade nacional em detrimento das culturas de outros países. Além de
totalitários, os governos fascistas objetivavam expandir seu território por meio de
conflitos internacionais. Para isso, realizavam altos investimentos na produção de
armas e equipamentos de guerra. Para garantir a manutenção de seu governo, os
líderes fascistas controlavam os meios de comunicação de massa, por onde
divulgavam sua ideologia e controlavam todas as informações disseminadas.
Qualquer crítica ao governo era aniquilada mediante uso da violência e do terror.
Aqueles considerados inimigos de um governo fascista eram punidos com prisão
ou morte. Fonte: https://www.politize.com.br/fascismo/ Acesso em: 09.08.2020.
Arte, Cultura e Imaginário 129
8
Jean-Jacques Wunenburger (28 de outubro de 1946) é um filósofo francês.
Especialista em estudos sobre a imaginação, sua obra busca uma aproximação
com a antropologia para analisar símbolos e mitos nas suas relações com o
racionalismo no mundo contemporâneo Formou-se em Filosofia em 1969,
pela Universidade de Dijon, onde foi discípulo de Gilbert Durand.
Posteriormente, fez seu Doutorado sobre a instituição e a experiência da
festa, que defendeu em 1973. Além de lecionar na Universidade Jean Moulin
Lyon 3, é o diretor do Centro Gaston Bachelard de Pesquisa sobre o
Imaginário e a Racionalidade, da Universidade de Bourgogne.
130 Reflexões sobre o conceito de banalidade ...
Segundo Wunemburger (2007), esses grupos revestem
seus imaginários de materiais emprestados da teologia milenarista:
9
Milton Almeida dos Santos (Brotas de Macaúbas, 3 de maio de 1926 –
São Paulo, 24 de junho de 2001) foi um geógrafo, escritor, cientista,
jornalista, advogado e professor universitário brasileiro. Graduado em
Direito, destacou-se por seus trabalhos em diversas áreas da geografia,
em especial nos estudos de urbanização do Terceiro Mundo. Foi um
dos grandes nomes da renovação da geografia no Brasil ocorrida na
década de 1970. Também se destacou por seus trabalhos sobre a
globalização nos anos 1990. A obra de Milton Santos caracterizou-se
por apresentar um posicionamento crítico ao sistema capitalista, e seus
pressupostos teóricos dominantes na geografia de seu tempo. Milton
Santos ganhou o prêmio VautrinLud, em 1994, o de maior prestígio na
área da geografia. O prêmio é considerado “o Nobel da geografia”.
Milton Santos foi o primeiro e é o único geógrafo da América Latina a
ter ganhado o prêmio em questão. Foi agraciado postumamente em
2006 com o Prêmio Anísio Teixeira.
10
O conceito de democracia de mercado em Milton Santos está
intrinsecamente vinculado à contundente argumentação crítica que ele
faz à globalização e aos demais processos em curso no mundo atual que
se balizam a partir da capacidade que têm de gerar o aprofundamentodas
desigualdades sociais e, consequentemente, violências estruturais. O autor
entende a globalização como um processo multidimensional e, dentre
suas dimensões, está a dimensão política representada pela democracia
de mercado. Fonte: CHAVES, M.R. O conceito de Democracia de
Mercado em Milton Santos e suas interfaces com a atual crise política
brasileira. URL:www.italo.com.br/portal/cepep/revista eletrônica.html.
São Paulo SP, v.7, n.3, pp. 247-265, jul/2017.
Arte, Cultura e Imaginário 133
Essa segunda natureza vai tomando lugar sempre
maior em cada indivíduo, o lugar do cidadão vai
ficando menor, e até mesmo a vontade de se tornar
cidadão por inteiro se reduz (SANTOS, 1987, p. 69).
11
Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Minas
Gerais (1973), mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas
Gerais (1995) e doutorado em Filosofia pela Universidade Federal de
Minas Gerais (2004). Atualmente, é adjunto da Faculdade Jesuíta de
Filosofia e Teologia. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase
nas áreas de História da Filosofia, Filosofia Política e Ética, atuando
principalmente nos seguintes temas: Estado, guerra civil inglesa,
banalidade do mal, totalitarismo e violência.
12
Possui graduação em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco
(1992), mestrado em Filosofia Política e Social pela Universidade Federal
de Pernambuco (1996), mestrado em Filosofia pela New School for Social
Research, NY-USA (1998), doutorado em Filosofia pela New School for
Social Research, NY-USA (2003). Pós-Doutorado na Birkbeck Law
School, London University. Coordenadora Adjunta da Cátedra Unesco
(PUC-Rio): Direitos Humanos: Violência, Governo e Governança.
Professora do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro e professora adjunta na Universidade do Estado
do Rio de Janeiro.
13
Gerhard Scholem filósofo e historiador judeu-alemão. Especialista na
mística judaica e conhecido como fundador do moderno estudo da cabala
foi o primeiro professor de misticismo judaico na Universidade Hebraica
de Jerusalém. Sua família era de origem asquenaze, e Scholem foi ligado
ao movimento sionista. Entre seus amigos mais próximos estavam
Hannah Arendt, Leo Strauss, Walter Benjamin e Theodor Adorno, sendo
a correspondência trocada com os dois últimos publicada.
134 Reflexões sobre o conceito de banalidade ...
denota que banalidade não significa uma bagatela, nem uma
coisa que se produza frequentemente (SOUKI, 1998, p.
103). Arendt distingue banal de lugar-comum (ASSY, 2001,
p. 143). Lugar comum diz respeito a um fenômeno que é
trivial, cotidiano, que acontece com frequência, com
constância, com regularidade. Banal, por sua vez, não
pressupõe algo que seja comum, mas algo que esteja
ocupando o espaço do que é comum. Um ato mau torna-
se banal não por ser comum, mas por ser vivenciado como
se fosse algo comum. A banalidade não é normalidade,
mas passa por ela, ocupa indevidamente o lugar da
normalidade. “O mal por si nunca é trivial, embora ele
possa se manifestar de tal maneira que passe a ocupar o
lugar daquilo que é comum” (ASSY, 2001, p. 144).
13
Criada pela Lei Federal nº 7.668, de 22 de agosto de 1988, a Fundação
Cultural Palmares (FCP) foi o primeiro organismo do executivo federal
a dedicar-se às demandas do movimento negro que reemergiu na cena
pública brasileira no contexto das lutas contra a ditadura militar e em
defesa democratização do Brasil. Sediada no então Ministério da Cultura,
a referida fundação é fruto dessa mobilização política e cultural dos negros
brasileiros, que, no contexto do centenário da Abolição, lutaram para
que o símbolo da resistência à escravidão, o quilombo dos Palmares,
fosse reconhecido no espaço de interação entre a sociedade civil e o
Governo Federal. Desde então, pela presidência da Fundação Palmares
passaram eminentes intelectuais e artistas negros, a exemplo de Joel
Rufino, Dulce Pereira, Carlos Moura, Zulu Araújo, Hilton Cobra, Ubiratan
Castro Araújo dentre outros. Das iniciativas da FCP, muitas delas dizem
respeito ao combate ao racismo por meio da disseminação de informações
históricas, de produções artísticas voltados para a valorização da história
e cultura da população afro-brasileira. A partir de meados da década de
1990, a FCP também teve papel fundamental ao promover os primeiros
estudos histórico-antropológicos para o reconhecimento de comunidades
quilombolas no país. Com o Decreto presidencial 4.887 de 2003, a FCP
tornou-se responsável por emitir a certificação que consiste no primeiro
passo do longo processo de regularização dos seus territórios. Até ontem,
constavam no site da instituição os nomes de 3.386 comunidades
quilombolas pela Fundação, além de 192 certificações em análise e 38
comunidades esperando a visita técnica do órgão. Infelizmente, ao final
do mesmo dia em que foi anunciada a nomeação de Sérgio Camargo, o
site da Fundação já não estava mais disponível, o que traz vivo temor
sobre a segurança da grande massa de documentação acumulada pela
instituição. Por ser uma instituição histórica, de referência no combate
ao racismo no Brasil e por desempenhar funções fundamentais para as
populações negras, de terreiro e quilombolas, espera-se que o Presidente
da Fundação Palmares possa ter, no mínimo, qualificações e conhecimento
técnico e histórico do cargo que ocupa. Esse não é o caso do recém-
nomeado Sérgio Camargo. Por esses motivos, este cargo não pode ser
ocupado por alguém que recuse a agenda e que negue a importância da
missão que dá nome à Fundação. Fonte: https://cebrap.org.br/nota-da-
afro-sobre-a-nomeacao-do-presidente-da-fundacao-palmares/ Acesso
em: 03.07.2020.
136 Reflexões sobre o conceito de banalidade ...
De acordo com áudio divulgado pelo jornal O
Estado de S. Paulo, o presidente da Fundação Palmares teria
declarado que não concederia benefícios a praticantes de
religiões de matriz africana: “Não vai ter nada para terreiro na
Palmares, enquanto eu estiver aqui dentro. Nada. Zero. Macumbeiro
não vai ter nem um centavo”, disse.
O referido presidente da Fundação Palmares é só
mais um dentre os demais assessores do atual governo
federal que praticam o mal contra os outros com o
propósito de levantar vantagens políticas. Em outros
momentos, o mesmo Sergio Camargo já havia dito que a
escravidão tinha sido algo positivo e que o movimento
negro era uma escória maldita que abriga vagabundos¨.
Como visto, a filósofa Hannah Arendt cunhou a
expressão “banalidade do mal” quando analisou o
julgamento de Eichmann, um dos nazistas levados ao
tribunal. Com essa expressão, a filósofa se referia ao mal
que não está enraizado, nem praticado como atitude
deliberadamente maligna. A banalização do mal é feita pelo
ser humano comum que não se responsabiliza pelo que
faz de ruim ou acha que o que faz de ruim não tem
consequências para os outros; o sujeito que não reflete,
não pensa. Arendt se referiu a Eichmann como uma pessoa
tomada pelo “vazio do pensamento”, como um tolo que
não pensava, que repetia clichês e era incapaz de um exame
de consciência – e que, por tudo isso, banalizava o mal
que praticava.
Esse pensamento de Arendt, contudo, não se
aplica ao Presidente da Fundação Palmares. Este não é
o tipo de tolo que a autora descreve (muitos eleitores
do atual governo o são, é verdade, mas não é o caso do
Sr. Sérgio Camargo). Alguém que é negro e é alçado à
presidência de uma fundação cuja missão é justamente
apoiar a luta da população negra e o combate ao racismo
Arte, Cultura e Imaginário 137
Estrutural14, sabe bem o que está fazendo, sabe quando está
perpetrando o mal. O caso de Sergio Camargo está mais para
o que a escritora Eliane Brum15, em notável texto publicado
em El País, chamou de “boçalidade do mal”.
14
De maneira ainda mais branda e por muito tempo imperceptível, essa forma de
racismo tende a ser ainda mais perigosa por ser de difícil percepção. Trata-se de um
conjunto de práticas, hábitos, situações e falas embutido em nossos costumes e que
promove, direta ou indiretamente, a segregação ou o preconceito racial. Podemos
tomar como exemplos duas situações:1. O acesso de negros e indígenas a locais que
foram, por muito tempo, espaços exclusivos da elite, como universidades. O número
de negros que tinham acesso aos cursos superiores de Medicina no Brasil antes das leis
de cotas era ínfimo, ao passo que a população negra estava relacionada, em sua maioria,
à falta de acesso à escolaridade, à pobreza e à exclusão social.2. Falas e hábitos pejorativos
incorporados ao nosso cotidiano tendem a reforçar essa forma de racismo, visto que
promovem a exclusão e o preconceito mesmo que indiretamente. Essa forma de
racismo manifesta-se quando usamos expressões racistas, mesmo que por
desconhecimento de sua origem, como a palavra “denegrir”. Também acontece quando
fazemos piadas que associam negros e indígenas a situações vexatórias, degradantes ou
criminosas ou quando desconfiamos da índole de alguém por sua cor de pele. Outra
forma de racismo estrutural muito praticado, mesmo sem intenção ofensiva, é a adoção
de eufemismos para se referir a negros ou pretos, como as palavras “moreno” e “pessoa
de cor”. Essa atitude evidencia um desconforto das pessoas, em geral, ao utilizar as
palavras “negro” ou “preto” pelo estigma social que a população negra recebeu ao
longo dos anos. Porém, ser negro ou preto não é motivo de vergonha, pelo contrário,
deve ser encarado como motivo de orgulho, oque derruba anecessidade de se “suavizar”
as denominações étnicas com eufemismos. Disponível: https://brasilescola.uol.com.br/
sociologia/racismo.htmAcessoem: 23/08/2020.
15
Jornalista brasileira de 54 anos. Formou-se pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul em 1988 e ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais
de reportagem. Trabalhou 11 anos como repórter do jornal Zero Hora, de Porto Alegre,
e 10 como repórter especial da Revista Época, em São Paulo. Desde 2010, atua como
freelancer. É autora de um romance – Uma Duas (LeYa) – de três livros de reportagem:
Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A vida que ninguém vê (Arquipélago
Editorial), ganhador do Prêmio Jabuti de Reportagem em 2007, e O Olho da Rua
(Globo) – e de um livro de crônicas: A Menina Quebrada (Arquipélago Editorial, Prêmio
Açorianos 2013), que reúne 64 de suas colunas escritas no site da revista Época, além de
ter participado da compilação de reportagens especiais sobre os Médicos sem Fronteiras
Dignidade!, que incluiu também autores como Mario Vargas Llosa. De 2009 a 2013,
manteve uma coluna no site da Revista Época, e desde outubro de 2013 no jornal El
País. Em 28 de janeiro de 2010, foi uma das ganhadoras do 27º Prêmio Internacional
de Jornalismo Rei de Espanha, pela reportagem “O Islã dos Manos”, sobre a presença
da religião islâmica nas periferias de cidades brasileiras, matéria publicada na revista
Época, em fevereiro do ano anterior. Em julho de 2013, Eliane lançou uma coletânea
com 64 crônicas e artigos de opinião publicados originalmente no site da Revista Época,
e ganhou, no mesmo ano, o Prêmio Açorianos de Melhor Livro do Ano, por “A
Menina Quebrada”. É codiretora de três documentários: Uma História Severina, Gretchen
Filme Estrada e Laerte-se.
138 Reflexões sobre o conceito de banalidade ...
Em seu texto, a jornalista pondera que a banalidade do mal
de Arendt se instala a partir da ausência do pensamento crítico
e explana que a boçalidade do mal é uma das explicações possíveis
para o atual momento, é fenômeno ligado à expansão do uso
das redes sociais, que permitiu as pessoas expressarem
livremente o seu eu mais profundo. Em sua rica análise, Eliane
revela sua preocupação com o destilar do ódio das pessoas a
partir do anonimato possibilitado pelas redes e faz uma relação
desse fato com o atual quadro insólito vivido pela sociedade
das fakenews, que, propositalmente, alardeiam desinformação
e notícias falsas para destruir reputações, inclusive com
dinheiro público, haja vista o chamado gabinete do ódio.16
Antes de finalizar seu texto com a icônica frase Já demos um
passo além da banalidade. Nosso tempo é o da boçalidade, Brum
assevera:
Meu objetivo aqui é chamar a atenção para um
aspecto que me parece muito profundo e definidor
de nossas relações atuais. A sociedade brasileira, assim
como outras, mas da sua forma particular, sempre
foi atravessada pela violência. Fundada na eliminação
do outro, primeiro dos povos indígenas, depois dos
16
“Gabinete do ódio” é como internamente integrantes do governo passaram
a se referir ao grupo formado por três servidores ligados ao vereador do Rio
de Janeiro Carlos Bolsonaro (PSC), filho “02” do presidente. Os assessores
Tércio Arnaud Tomaz, José Matheus Sales Gomes e Mateus Matos Diniz
produzem relatórios diários, com suas interpretações sobre fatos do Brasil e
do mundo e são responsáveis pelas redes sociais da Presidência da República.
A decisão de pedir acesso aos IPs e dados dos computadores desses servidores
foi tomada depois que a deputada Joice Hasselmann (PSL-SP), ex-líder do
governo no Congresso, prestou depoimento na CPI, na quarta-feira (4 de
setembro de 2020), acusando os assessores do presidente de disseminar
notícias falsas durante o horário de serviço.” A decisão de pedir acesso aos
IPs e dados dos computadores desses servidores foi tomada depois que a
deputada Joice Hasselmann (PSL-SP), ex-líder do governo no Congresso,
prestou depoimento na CPI da fakenews no dia 04 de dezembro de 2019,
acusando os assessores do presidente de disseminar notícias falsas durante o
horário de serviço.” Fonte: https://www.gazetadopovo.com.br/republica/
gabinete-do-odio-alvo-cpmi-fake-news. Acesso em: 10.09 de 2020.
Arte, Cultura e Imaginário 139
negros escravizados, sua base foi o esvaziamento do
diferente como pessoa, e seus ecos continuam fortes.
A internet trouxe um novo elemento a esse contexto.
Quero entender como indivíduos se apropriaram de
suas possibilidades para exercer seu ódio – e como
essa experiência alterou nosso cotidiano para muito
além da rede.
Sobre o ódio já lembrado nos escritos de Arendt e
que viceja nesses tempos solapados pela onda conservadora17
que tem varrido o mundo, cabe uma pequena reflexão sobre
os discursos de ódio, um ato que hoje se torna trágico, com o
ressurgimento de velhas e novas ideologias de ódio e
17
Para Luiz Felipe de Alencastro, professor emérito da Universidade da
Sorbonne, em Paris, e docente na Fundação Getúlio Vargas (FGV), a
onda conservadora atual apoiada na insatisfação da classe média. “Eu
acho que é uma gente que se sentiu ameaçada por uma ascensão social
de pessoas mais modestas. Os últimos debates sobre concentração de
renda mostram que os ricos continuaram ricos, e os pobres avançaram
em detrimento da classe média. Isso levou a uma exacerbação dessa
mentalidade quase de apartheid social”, pondera. Outro fator que tem
acentuado a presença de ideias mais tradicionais é o crescimento das
igrejas pentecostais e neopentecostais no Brasil, pontua Reginaldo Prandi,
sociólogo da USP. O número de evangélicos no país aumentou 61,45%
entre 2000 e 2010, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE). Em 2000, cerca de 26,2 milhões se disseram evangélicos, ou
15,4% da população. Em 2010, eles passaram a ser 42,3 milhões, ou
22,2% dos brasileiros. Atualmente, a Frente Parlamentar Evangélica
(FPE), liderada pelo deputado João Campos (PRB), tem 92 deputados
no Congresso. Os membros da FPE são a principal vitrine da mistura de
política e religião no Brasil. Dezenas de projetos de cunho conservador
ligados aos deputados da frente vêm sendo levados ao Congresso. “Isso
[conservadorismo] é efeito do crescimento do segmento evangélico e de
alguns setores de posição ideológica mais à direita, e que até agora não se
sentiam à vontade para se expressar”, argumenta Álvaro Moisés. “Esses
agrupamentos que estão colocando a cabeça de fora e assumindo suas
identidades estavam escondidos. Eles tinham medo de se manifestar
contra a liberdade sexual, contra a união de pessoas do mesmo sexo”,
analisa.Fonte:https://www.dw.com/pt-br/a-nova-onda-conservadora-
no-brasil/a-41644248. Acesso em: 06.08.2020.
140 Reflexões sobre o conceito de banalidade ...
discriminação dos diferentes. Mas além desse perigo real que
a extrema-direita e as ideologias de várias tendências
ressuscitam, existe outro, oposto, que, segundo Juan
Arias,18colunista do El Pais, à banalidade do mal se opõe, hoje,
o chamado “esquecimento do bem”, como se a humanidade
estivesse possuída definitivamente pelo mal, sem espaços para
a bondade.
E em meio ao esquecimento do bem, conforme assinala o
jornalista, assistimos todos, incólumes, a uma profusão de
discursos de ódio19, muitos deles disseminados por partes
significativas das denominações evangélicas neopentecostais,
cujos líderes têm protagonismos explícitos no atual governo,
que, convenhamos, anunciou, desde o início, quais eram os
princípios e valores que norteavam suas ações.
18
Juan Arias Martínez é jornalista, filólogo e escritor, nascido em Arboleas,
Almería (Espanha) em1932. Ordenado sacerdote dos Missionários do
Sagrado Coração, ordem da qual se tornou Secretário Geral em Roma,
Juan Arias estudou teologia, filosofia, psicologia, filologia e línguas
semíticas na Universidade de Roma. Depois de pedir a Paulo VI uma
dispensa para deixar o ministério sacerdotal, ele se casou vinte anos após
sua secularização. Ele continuou com grande atividade como escritor
sobre questões religiosas e correspondentes da imprensa hispânica no
Vaticano. Ele foi correspondente do El País em Roma e no Vaticano.
Suas primeiras entrevistas para o El País datam de 1977, e se estendem
até os dias de hoje. Acompanhou São João Paulo II por todo o mundo,
escrevendo a crônica de suas viagens. Atualmente, e há anos, ele é
correspondente no Brasil.
19
O Discurso de Ódio é uma forma de pensamento, fala e posicionamento
social que incita à violência contra diferentes grupos da sociedade. Pode
ser verbalizado ou escrito e sua intenção é discriminar as pessoas devido
a suas diferenças, sejam estas de raça, cor, etnia, religião, orientação sexual,
deficiências, classe etc. O Discurso de Ódio tem por base o ódio em si
ao diferente e todos os preconceitos e prejuízos que decorrem desse
sentimento. É considerado crime no Brasil e também um atentado aos
Direitos Humanos. Fonte: https://www.infoescola.com/sociologia/
discurso-de-odio. Acesso em: 12 08 2020.
Arte, Cultura e Imaginário 141
No livro Intolerância religiosa: Impactos do neopentecostalismo
no campo religioso afro-brasileiro, organizado por Vagner
Gonçalves da Silva20, os autores dos diversos capítulos
delineiam, de forma bem apurada, as características dessa
intolerância, que, a despeito da brutal violência que produz,
vem sendo naturalizada em nosso país. O livro resulta das
análises em torno dos ataques que grupos religiosos
neopentecostais, notadamente da Igreja Universal do Reino
de Deus, vêm realizando contra os cultos e adeptos das
religiões de origem africana. Alguns casos são divulgados
abertamente pelos meios de comunicação, outros apenas
constam em documentações jurídicas, variando desde ataques
realizados no âmbito das igrejas, em seus cultos televisionados,
até agressões físicas e impedimentos para a realização de
rituais.
Em um dos artigos que compõe o livro organizado
por Silva, denominado Pentescostais em ação: a demonização dos
cultos afro-brasileiros, de autoria de Ricardo Mariano 21 ,
contemplam-se as justificativas teológicas que legitimam o
20
Vagner Gonçalves da Silva é professor no Departamento de Antropologia
da Universidade de São Paulo. Sua atuação acadêmica é dedicada
principalmente às temáticas da etnografia das populações afro-brasileiras,
antropologia urbana e teoria antropológica. Vagner obteve o título de bacharel
em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (1987). Pela mesma
instituição, obteve os títulos de mestre (1992), doutor (1998) e livre-docente
(2013) em Antropologia Social. Entre 2008 e 2009, realizou estágio pós-
doutoral na Harvard University (W.E.B. Du Bois Institute for African and
African American Research) e na City University of New York (Graduate
Center), onde também foi professor visitante. Atualmente, desenvolve
pesquisas na área das populações afro-brasileiras, enfocando temas como
religiosidade (candomblé, umbanda, neopentecostalismo, intolerância
religiosa), relações entre religião e cultura brasileira (festas populares, música,
capoeira, literatura, cinema etc.), artes afro-brasileiras e representação
etnográfica (trabalho de campo e etnografia em hipermídia). Participa do
CERNe, Centro de Estudos de Religiosidades Contemporâneas e das Culturas
Negras do Departamento de Antropologia da USP.
21
Doutor em Sociologia e professor do Programa de Pós-graduação em
Ciências Sociais da PUCRS. Realiza pesquisas na área da sociologia da
religião. Suas principais pesquisas abordam temas do pentecostalismo e
neopentecostalismo.
142 Reflexões sobre o conceito de banalidade ...
ataque às religiões afro. Nesse estudo, Mariano discute os
conceitos e questões sobre tolerância, intolerância,
discriminação e liberdade religiosa. O referido autor deixa
claro que, na teologia neopentecostal, o demônio tem papel
de centralidade, pois o combate a ele se constitui uma das
principais estratégias de evangelização. O autor entende o
neopentecostalismo como uma religião que reforça a
intolerância, pois esta é alimentada pela “raiva”, pelo “ódio”
a que se opõe. Embora esclareça que algumas igrejas adotem
princípios de tolerância, mesmo que isso não signifique a não
descriminalização, Mariano compreende que a ortodoxia cristã
é um poderoso mecanismo para demonizar as crenças, as
práticas e os agentes religiosos rivais e que é permanente desde
o período medieval.
Para Silva (2007), essa batalha espiritual travada pela
IURD contra as religiões afro-brasileiras destoa da imagem
construída do Brasil como país da “tolerância” ou da
“mistura”. Há um descompasso entre essa guerra e a ideologia
do sincretismo e do encontro cultural, tão arraigada na
memória nacional.
O livro termina com uma discussão promovida por
Hédio Silva Jr.22 sobre os aspectos jurídicos da discriminação
racial e religiosa. O artigo “Notas sobre Sistema Jurídico e
Intolerância Religiosa no Brasil” investiga a suposta neutralidade
da lei, tendo como base as Constituições que vigeram no Brasil.
A investigação aponta para uma triste constatação, a de que a
concepção de raça atrelada ao fator religioso tem expropriado
dos afrodescendentes os direitos de igualdade.
Embora o Estado brasileiro seja considerado laico,
Silva Jr. comprova que a discriminação contra as religiões afro,
bem como as discriminações étnicas continuam vivas e
atuantes na sociedade com garantias de legitimidade, inclusive
nas ações do Estado. Algumas reações estão sendo investidas
22
Advogado; doutor em Direito Constitucional pela PUC-SP. Atuou como
consultor na Secretaria Especial Igualdade Racial da Presidência da
República, na Unesco e no Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento. Foi coordenador da Comissão direitos Humanos da
seccional paulista da OAB de São Paulo.
Arte, Cultura e Imaginário 143
no âmbito jurídico em prol das questões étnicas e religiosas,
embora sejam tácitas as dificuldades de reação das religiões
afro ante as leis brasileiras e os argumentos dos operadores
do direito ligados a IURD. A disparidade na conquista de
direitos é evidente, porém o livro encerra seu último artigo
alimentando esperanças plausíveis de resistência em nome da
igualdade, apelando para o âmbito jurídico.
No momento atual, quando se observa a clara expansão
das igrejas neopentecostais e a diminuição do número de
católicos no país, como têm apontado as pesquisas recentes, o
livro Intolerância religiosa: impactos do neopentecostalismono campo
religioso afro-brasileiro traz consideráveis contribuições para se
pensar esse viés da intolerância no âmbito da conjuntura atual.
Se, por um lado, encontram-se as religiões afro-
brasileiras - que há mais de um século lutam por definir seus
direitos, buscando conquistar espaço e reconhecimento na
sociedade, mesmo lutando contra diversas perseguições e
séculos de preconceito racial –, de outro, temos um grupo
que cresce de forma incisiva, alcançando considerável destaque
no cenário político como enor me força no governo
conservador atual. Acrescente-se a isso a ascensão de Sérgio
Camargo à Presidência da Fundação Cultural Palmares, um
homem negro que opta por reproduzir o discurso torpe do
atual governo e tripudiar sobre a luta da população negra, tal
como vimos anteriormente.
Como visto nos diversos argumentos até agora
expostos, a banalização do mal no sentido de naturalizar a
desigualdade e a exclusão, neste momento, é a situação que
melhor nos define como sociedade. Há um descolamento total
da ética, da humanidade ou da humanização em se tratando
de determinados sujeitos, e determinados é a melhor expressão
a se utilizar aqui, pois esse estado de coisas reforça o racismo
e a violência estruturais. Há uma banalização da morte de
jovens, negros e moradores de periferias, sejam adultos ou
crianças. Deve ser doloroso para as mães de crianças mortas
de forma violenta, sejam por balas ou nos hospitais públicos,
por exemplo, verem tamanhas manifestações em prol da volta
da ditadura, do fechamento do Supremo, entre outras
barbaridades, e poucas manifestações em seu favor, mesmo
em se tratando da morte covarde de seres humanos.
144 Reflexões sobre o conceito de banalidade ...
Já há algum tempo, temos presenciado uma
individualização cada vez crescente das relações, muitas
desculpas, mas sempre o mesmo e anômalo comportamento
de desumanização, decorrente do racismo incrustado na
sociedade brasileira e em suas instituições.
Tais comportamentos têm sido, deliberadamente,
encorajados nos tempos que correm. Não se enxerga
resistência organizada que estimule com o mesmo vigor que
não apoiemos a punição contínua daqueles que estão em
situação mais vulnerável, e assim o é porque parte da sociedade
brasileira apoia incondicionalmente todas essas violações,
apoia e cerra os olhos para tudo isso.
Esse texto procurou abordar uma espécie de
naturalização contemporânea da violência a partir da análise
do sentido da banalidade do mal na perspectiva de Hannah
Arendt. Ao abordar o tema, buscamos evidenciar a violência
como uma das expressões da banalidade do mal que, em
nossos dias, manifesta-se como instrumento ou como ação –
em níveis e esferas variadas da convivência. Se o mundo muda
transpassado por ações violentas, as ações violentas tornam
o mundo mais violento, sobretudo quando os meios violentos
se tornam indispensáveis para a manutenção e para a garantia
de poder.
A violência banalizada a que nos referimos vai ao
encontro do que entendemos como discriminação,
intolerância, preconceito, racismo, que, por sua vez, são
expressões da desigualdade e das arbitrariedades seculares,
estruturais e cumulativas que têm mantido os privilégios de
um grupo em detrimento da difusão de direitos fundamentais
para a totalidade da população do nosso país.
Por outro lado, quando parte da grande mídia trata
do tema como se os negros e as demais minorias não
existissem, constatamos que vivemos numa estrutura social
racista, que perfila discursos, olhares e ações para traduzir, na
prática, as definições de discriminação, preconceito e
intolerância, fortemente imbricadas, e deter minar a
manutenção das desigualdades e injustiças.
Quando um grupo político assume um governo, por
meio do voto popular, anunciando abertamente que manda
na sociedade em razão de uma suposta superioridade racial,
Arte, Cultura e Imaginário 145
econômica, sexual ou religiosa e que, portanto, não se pode
permitir que determinados grupos sejam considerados
cidadãos plenos e que é necessário que negros, indígenas,
mulheres, LGBTs, e afro-religiosos não tenham direito a
buscar lugares mais importantes na sociedade e não tenham
garantido total acesso a seus direitos, essa atitude concorre
para a banalização de um mal que já ultrapassa séculos, mas
que se agrava, pois se reveste de um discurso proferido pelo
poder máximo do país.
Pouco a pouco, esses lunáticos vão desmantelando
estruturas que foram forjadas a custo de muita luta e de muito
trabalho de conscientização, para ficarmos em poucos
exemplos: já destruíram tudo o que foi feito em termos de
política ambiental, a extinção do Ministério do Trabalho é
apenas a largada na empreitada da usurpação dos direitos
trabalhistas que não cessam de ser tolhidos, manter até o
limite um Ministro da Educação que perseguia os professores
e as universidades públicas, que fazia todo tipo de comentário
torpe sobre minorias, entre outras atitudes, é o exemplo mais
emblemático da banalidade do mal que grassa nos tempos
que correm.
Por fim, gostaríamos de deixar patente que este texto
se inscreve no conjunto de escritos produzidos por
acadêmicos, jornalistas, professores e demais profissionais que
pensam o Brasil e que repudiam peremptoriamente o
sentimento de intolerância, o racismo, a desigualdade, bem
como o autoritarismo e toda e qualquer forma de cerceamento
do Estado Democrático de Direito.
Referências bibliográficas
1
Mestra em Ciências Humanas. Docente dos cursos de Graduação e
Pós-Graduação Lato Sensu, Coordenadora de cursos MBA na
Universidade Santo Amaro – Unisa. Pesquisadora do Grupo Arte, Cultura
e Imaginário.
148 Cultura digital, educação e o imaginário ...
aspectos, acontecem o desenvolvimento do meio social, a
evolução das técnicas, da modernidade e as transformações
educativas.
Adorno (1995, p. 140) diz que, em tempos passados,
os conceitos eram compreensíveis por si mesmos a partir da
totalidade de uma cultura; contudo, no contexto da pós-
modernidade, “tornaram-se problemáticos nestes termos. No
instante em que indagamos: “Educação – para quê?”, onde
este “para quê” não é mais compreensível por si mesmo,
ingenuamente presente, tudo se torna inseguro e requer
reflexões complicadas”.
Percebe-se que, ao trazer a indagação “educação para
quê?”, o autor expõe a questão do receptor na aprendizagem,
que, muitas vezes, está inserido em fatores socioculturais,
como sugere Adorno (1995, p. 144), “a importância da
educação em relação à realidade muda historicamente [...] a
realidade se tornou tão poderosa que se impõe ao homem
[...]”. Isto é, o modelo de educação vigente estaì à serviço do
fator social humano, para o autor, “a educação [...], por meio
da escola, da universidade teria neste momento de
conformismo onipresente muito mais a tarefa de fortalecer a
resistência do que de fortalecer a adaptação”.
Dialogando com esse pensamento, Morin (2011, pp.
49-50) aduz que “cabe à educação do futuro cuidar para que
a ideia de unidade da espécie humana não apague a ideia de
diversidade, e que a da sua diversidade não apague a da
unidade”, para Morin, não se separa a vida intelectual da vida
de experiências, pois elas estão em constante movimento e
são cheias de antagonismos e aproximações.
Campos (2004) citada por Campos et al. (2018, p. 7)
converge ao considerar “que a educação e os sistemas de
ensino estão diante do desafio de procurar soluções de alta
amplitude, utilizando-se de um instr umental
compartimentado”, e acrescenta ainda, que “[...] compete aos
sistemas educacionais contemporâneos formar indivíduos
aptos a entender questões colocadas por um universo
globalizado”.
Só assim se pode educar na pós-modernidade. Morin
(2011) exalta a importância de organizar os conhecimentos
Arte, Cultura e Imaginário 149
de modo que possa intervir nas questões e problemas do
mundo. Entende-se que é preciso estimular a mudança de
pensamento, a tal ponto, que caracterize uma reforma
paradigmática, portanto, na opinião do autor, este aspecto
passa a ser a questão essencial da educação. Ainda nesta linha,
Adorno (1995, p. 148), no diálogo com Becker, diz “O defeito
mais grave com que nos defrontamos atualmente consiste
em que os homens não são mais aptos à experiência, mas
interpõem entre si mesmo e aquilo a ser experimentado aquela
camada estereotipada a que é preciso se opor”.
A autonomia do sujeito na educabilidade e
emancipação estão fincadas na natureza humana e, por essa
razão, torna-se necessário libertar da ignorância, dito isto,
acentua-se que a educação tem papel fundamental na
formação do cidadão, principalmente ao considerar que o ser
humano tem capacidade para gerir seu próprio destino.
Para Mizukami (2016, p. 1), a interpretação dos
fenômenos, quer seja biológica, sociológica, psicológica,
resulta nas relações sujeito e ambiente, “deriva de uma tomada
de posição [...] subjacentes ao conceito de homem, de mundo,
de aprendizagem, conhecimento, sociedade, cultura etc. estão
presentes – implícita ou explicitamente – algumas dessas
posições”.
Ainda para autora, o fenômeno educativo é humano,
histórico e multidimensional, nele estão presentes as
dimensões humanas, técnica, cognitiva, emocional,
sociopolítica e cultural, por essa razão estará em permanente
construção “Há várias formas de se conceber o fenômeno
educativo [...], não é uma realidade acabada que se dá a
conhecer de forma única e precisa em seus múltiplos aspectos.
É um fenômeno humano, histórico e multidimensional”
(MIZUKAMI, 2016, p. 1).
Isto é, o discente é um sujeito inacabado e, por
conseguinte, recebe múltiplas influências do meio social. Para
a autora, o conhecimento humano é baseado em diferentes
abordagens, algumas são intuitivas, outras práticas e há aquelas
fundamentadas na imitação de outros modelos, mas, em todas,
identifica-se a complexidade educacional.
150 Cultura digital, educação e o imaginário ...
Um dos maiores desafios da educação no século XXI
dá-se em promover mudanças que acompanhem o
desenvolvimento científico, tecnológico, social, cultural,
econômico e ambiental, tendo em vista contribuir para a
conquista de uma sociedade mais justa, neste sentido, apropria-
se aqui, do pensamento de Campos (2015, p. 61), quando diz:
“seria preciso, enfim, atender ao apelo [...].de Edgar Morin,
para o pensar complexo, que una novos parceiros a esse
mercado, provindos indiferentemente das ciências exatas, das
biológicas, das tecnológicas”.
Para Campos, as mudanças só serão possíveis mediante
“o diálogo entre as disciplinas, que fez com que os saberes
unitários e fechados passassem a saberes plurais e abertos”
Continua a autora, “esse diálogo se debruce sobre os grandes
problemas da humanidade, transportando tais problemas para
a investigação científica e propondo soluções capazes de fazer
avançar um conhecimento comprometido com o capital
humano” (CAMPOS, 2015, pp. 61-62).
Embora a autora refira-se às transformações nas
ciências em geral, transporta-se seu pensamento para a
educação, pois, com a chegada da cultura digital, entende-se
que as discussões sobre novas possibilidades educativas sejam
amplificadas, posicionando o processo educacional de maneira
que estabeleça elo entre a sala de aula e o contexto do
ciberespaço.
Esse contexto induz à necessidade de investir no
desenvolvimento de docentes para que possam recuperar a
dimensão essencial do ensino e da aprendizagem, de modo a
contribuir com a formação de profissionais que irão atuar na
sociedade, de maneira inovadora e ética, com o cuidado
necessário nas relações entre os seres humanos e o meio
ambiente (MORIN, 2004).
A atuação docente também requer um olhar
interdisciplinar para estabelecer relações entre os conteúdos
de sua disciplina com os das outras áreas do conhecimento,
já que a educação é influenciada pelas diversas realidades nas
quais está inserida. Observa-se que o nível atual de mudanças
gera alterações nas maneiras de planejar e concretizar o
processo educativo. Morin afirma que a educação do futuro
possui amplas, profundas e graves inadequações, muito em
Arte, Cultura e Imaginário 151
função dos saberes, de um lado, estarem “desunidos, divididos,
compartimentados e, de outro lado, as realidades ou os
problemas cada vez mais multidisciplinares, transversais,
multidimensionais, transnacionais, globais e planetários”
(MORIN, 2004, p. 33).
Sabe-se que a educação reproduz a sociedade em que
está inserida, por essa razão, traz uma obrigatoriedade de dar
respostas e intervir nos contextos gerados pelo meio social.
Nesse sentido, seu desafio é compreender as teorias e criar
condições para modificar percepções, atitudes e posturas que
se manifestam nas relações sociais.
Mizukami (2016) acredita que a prática educacional
brasileira tenha influência da abordagem escolanovista, dada a
importância atribuída aos aspectos didáticos. Talvez, aqui,
justifique-se a dificuldade que o professorado encontra em
colocar o aluno na posição de protagonista de seu aprendizado.
Entretanto, Bacich e Moran (2018) dizem que os professores
buscam modificar o formato de suas aulas, transformando-as
em momentos experienciais de aprendizagens, segundo eles,
as tecnologias digitais podem apoiar os docentes neste sentido,
“é certo que as pessoas não aprendem da mesma forma, no
mesmo ritmo e ao mesmo tempo”, os autores entendem que
um caminho viável para colocar o estudante como protagonista
pode ser por meio da inserção das tecnologias digitais.
De acordo com Tedesco (2015, p. 26), “A educação
tem a particularidade de antecipar o futuro [...] construir desde
agora uma educação justa, será possível uma sociedade justa
no futuro”, deste modo, pode-se dizer que uma proposta
educativa para construir sociedades mais equilibradas, inicia-
se em mudanças que permitem ver possibilidades, tais como
conhecer e utilizar a tecnologia da comunicação e da
informação para melhorar a prática educativa e as condições
de trabalho dos profissionais da educação, “é nesse sentido
que adquire uma renovada validade a hipótese acerca da
centralidade da educação e do conhecimento nas estratégias
destinadas a construir sociedades mais justas” (TEDESCO,
2015, p. 29).
As oportunidades que surgem na sociedade pós-
moderna colaboram com os processos educacionais. Levy
152 Cultura digital, educação e o imaginário ...
(1999) aponta a interconexão que o ciberespaço oferece como
condição de novas propostas de aprendizagem no universo
do saber em fluxo. Os saberes disponibilizados por meio das
tecnologias digitais mediados pelo ciberespaço apresentam
novas perspectivas.
Em consonância com a contemporaneidade, os
processos educacionais devem ser pensados e organizados
de modo a não se enquadrar em velhos modelos, mas ter a
lucidez de encontrar, nas situações concretas, novas
oportunidades para suas potencialidades. Entende-se que é
neste novo cenário que o professor demonstra suas
capacidades e revela, no fazer, o domínio dos saberes e o
compromisso com o que é realmente necessário.
De acordo com Tedesco (2015, p. 25), há “uma forte
tendência de se concentrar tudo no presente, no aqui e agora”.
Continua o autor: “esse traço da cultura atual gera um impacto
significativo na educação, já que se supõe que a tarefa educativa
consiste em transmitir o patrimônio cultural e em preparar
para um determinado futuro”. Para o autor, o fato de incluir
a tecnologia na educação é uma estratégia geral de política
educativa, principalmente em países como o Brasil, que é
composto por diversidades culturais, econômicas e sociais.
É necessário ir além da especulação de como será o
futuro e propor como nós queremos que ele seja. Esse
pensamento nos remete ao discurso de Albert Camus –
Prêmio Nobel de Literatura proferido em Estocolmo em 10
de dezembro de 1957: “Sem dúvida, cada geração se sente,
condenada a reformar o mundo. No entanto, a minha sabe
que não o reformará. Mas, a sua tarefa é talvez ainda maior.
Ela consiste em impedir que o mundo se desfaça” 2.
A globalização exige novas configurações e
caracteriza-se por se mostrar, cada vez mais, opaca à medida
que é empregada para explicar uma multiplicidade de
experiências. Para Bauman (2004), a sociedade está
2
Tradução da autora. “Chaque génération, sans doute, se croit vouée à refaire le
monde. La mienne sait pourtant qu’elle ne le refera pas. Mais sa tâche est peut-être
plus grande. Elle consiste à empêcher que le monde se défasse.”
Arte, Cultura e Imaginário 153
fragmentada e, por isso, mal coordenada, visto que a realidade
individual está dividida em diversos episódios delicadamente
conectados, possibilitando a exposição para uma diversidade
de comunidades de ideias e princípios e, com isso, o indivíduo
passa a estar totalmente ou parcialmente fora do lugar.
Neste contexto, Lévy (1999) pergunta: “Como manter
as práticas pedagógicas atualizadas com esses novos processos
de transação de conhecimento?”
Entende-se que a disponibilidade da informação
conduz à atualização dos processos educacionais. Por existir
a facilidade de acesso a diferentes conteúdos, há, também, a
cobrança para modernização. Compreende-se, ainda, que a
globalização demanda novos saberes e, consequentemente,
desafia os projetos educacionais.
Observa-se, também, que se atribuem múltiplos
sentidos à presença das tecnologias digitais no ensino, para
alguns elas podem solucionar as questões pedagógicas,
principalmente ao suprimir o uso de recursos analógicos e
estáticos, para outros, são fatores de transformações, já que
são o alicerce da sociedade da informação.
Ademais, a sociedade contemporânea sofre impacto
das transformações produzidas pelo entrecruzamento das
forças geradas na modernidade, neste sentido, a serialização
na produção e a reestruturação da comunicação modificam
as formas de socialização, assim como o significado do que é
privado e público.
Para Lévy (1999), a revolução das tecnologias de
informação e comunicação representa uma dimensão de
mutação antropológica de grande amplitude. Ainda para o
autor, quanto mais o ciberespaço se amplia, torna-se mais
global, um universo sem totalidade e um ambiente que não
tem nem centro nem linha diretriz, é amplo e sem conteúdo
específico.
Entende-se que o avanço da internet, dos dispositivos
móveis e de outros aplicativos baseados em técnicas alterou
radicalmente a forma de socializar, construir, colaborar e
inovar. Essa dinâmica social possibilita pensar a identidade
cultural a partir das novas tecnologias, considerando um
processo em que se destaca a ação de diversos indivíduos
154 Cultura digital, educação e o imaginário ...
envolvidos na produção de sentidos, conforme Bauman,
(2004) só é possível entender os sentimentos, estilo de vida e
o comportamento humano, quando se analisa o contexto
social, cultural e político.
A coletividade nos conduz a pensar a sociedade não
como uma ação simples, já que, ao refletir no contexto
contemporâneo, torna-se complexa. Bauman (2004) define a
sociedade contemporânea como modernidade líquida, ao
considerar que as relações que compõem o mundo estão em
um estado muito próximo ao líquido, sem liga o suficiente
para manter as unidades juntas e sólidas, a fluidez impera nas
relações e provoca incertezas em cada ação.
Bauman (2001) reitera que a natureza explosiva da
modernidade líquida tem aderência com a cultura digital, já
que as ações tendem a ser voláteis, transitórias e direcionadas
ao propósito individual, por essa razão sua duração é curta,
embora barulhenta.
No contexto contemporâneo, as pessoas mudam e se
transformam sob a influência das representações e dos
sistemas culturais. Essas mudanças engendram um processo
fundamental e abrangente da modernidade. As sociedades
modernas são, por definição, sociedades em transformações
constantes, rápidas e permanentes, logo convergem para
cibercultura no sentido de que ela cria forma de sociabilidade
ao usar as tecnologias digitais como vetores de agregação
social.
Cada vez mais, as interações sociais ocorrem no
entorno das tecnologias, pode-se afirmar que a sociedade
mudou e, por essa razão, exige modificações nos paradigmas
em diferentes atividades, dentre elas, a educacional. De acordo
com Levy (1999, p. 157), mediante o advento tecnológico, se
estabelece uma nova concepção, “o ciberespaço suporta
tecnologias intelectuais que amplificam, exteriorizam e
modificam numerosas funções cognitivas humanas”, tais
como “memória (bancos de dados, hiperdocumentos, arquivos
digitais de todos os tipos), imaginação (simulações), percepção
(sensores digitais, telepresença, realidades virtuais), raciocínios
(inteligência artificial, modelização de fenômenos complexos).
As novas formas de acesso à informação e de
construção do conhecimento articulam-se às perspectivas de
Arte, Cultura e Imaginário 155
educação, democratizando-as, já que se multiplicam e
atualizam-se de forma exponencial. Isso acaba por questionar
os modelos tradicionais de ensino, que focam, apenas, na
transmissão de informação. Estimula-se, portanto, repensar
o processo educacional, “o ciberespaço como suporte da
inteligência coletiva é uma das principais condições de seu
próprio desenvolvimento” (LEVY, 1999, p. 29).
A reflexão sobre a cultura digital na educação incentiva
novos pensamentos e posiciona-a em seu real papel, que é o
de caráter educativo e/ou formador das atividades econômicas
e sociais e não apenas questões formais de ensino, “uma vez
que os indivíduos aprendem cada vez mais fora do sistema
acadêmico, cabe aos sistemas de educação implantar
procedimentos de reconhecimento dos saberes e savoir-faire
adquiridos na vida social e profissional (LEVY, 1999, p. 175)”.
Lévy (1999, p. 174) ainda diz: “[...] o tempo necessário
para homologar novos diplomas e para constituir os cursos
que levam até eles não está mais sincronizado com o ritmo
de evolução dos conhecimentos”. Do mesmo modo, as novas
exigências da sociedade atual levam as instituições de ensino
a se reposicionar e promover reflexões sobre o processo
educativo em uma atitude de abertura às novas possibilidades
de se ofertar ao aluno espaços contextualizados de
aprendizagem, reforça, ainda mais, a necessidade de
transformação no processo educacional, posto que é
determinado por fatores provenientes do contexto histórico-
social.
Por essa razão, algumas correntes modernas da
educação buscam rearticular seus discursos em face das
transformações que marcam a contemporaneidade, como
afirma Tori (2017, p. 26), “a escola que vislumbro deve ser
não apenas “sem distância”, mas também “sem limites”, sem
barreiras entre teoria e prática, entre real e virtual, entre
presente e distante, entre disciplinas, entre diferentes níveis,
entre diferentes culturas, entre possível e impossível”.
Ao analisar os significados do ensino e aprendizagem
no contexto da sociedade em rede e correlacionar com Castells
(1999) e Kranzberg (s/d), quando menciona que a tecnologia
não é boa, nem ruim, também não é neutra, logo, não é o
156 Cultura digital, educação e o imaginário ...
fim, reafirma que ela existe para servir a humanidade ao ofertar
seus serviços para todos em todo o mundo.
Esse pensamento conflui com a ideia de “organizações
de aprendizagem”, apresentada por Senge (1990, p. 11),
fundamentalmente, quando diz “[...] as pessoas expandem
continuamente sua capacidade de criar os resultados que
realmente desejam, [...] onde a aspiração coletiva é libertada e
onde as pessoas aprendem continuamente a aprender em grupo”.
Para o referido autor (1990, p. 22), a palavra
“aprendizagem” perdeu seu significado, principalmente na
maneira como é usada na contemporaneidade: “[...] a
“aprendizagem” perdeu seu significado básico no uso
contemporâneo, e passou a ser sinônimo de “assimilar
informação”, o que tem uma remota conotação com o
verdadeiro significado da palavra”.
Convém notar que, em se tratando de educação, a
estratégia tecnológica pode enriquecer sobremaneira, pois
ajuda a aumentar o processo de aprendizagem, frisa-se que,
mais importante do que a tecnologia, é a maneira como será
utilizada, deve ser aplicada quando, de verdade, facilitar o
processo ensino-aprendizagem.
Tedesco (2015), ao citar Levy (1999), diz que o aspecto
central se refere à ampliação da visão educacional,
principalmente, nos atributos institucionalizados, menciona
que as tecnologias favorecem novos estilos de aprendizagem,
fundamentalmente no que tange ao compartilhamento entre
as pessoas e a ampliação do potencial da inteligência coletiva.
Para o autor, a abertura que as tecnologias oferecem à
reconstrução do conhecimento põe por terra a ideia de que
existe um conhecimento pronto e acabado.
Assim, é possível dizer que, na sociedade
contemporânea, a educação está no epicentro das discussões
estratégicas sob os seguintes pilares: primeiro, no sentido
social, já que exige aprender a viver juntos; segundo, em termos
cognitivos, ao reivindicar o aprender a aprender.
Essa ideia converge com o pensamento freiriano em
relação à postura crítica do aprendiz, sua autonomia e
libertação, criando, assim, uma ponte para a educação voltada
ao potencial humano. Observa-se que, mesmo com o avanço
da tecnologia, mediante as possibilidades ofertadas pela
Arte, Cultura e Imaginário 157
internet, em sala de aula, quase sempre, o aluno apenas recebe
a informação de maneira passiva, sem estímulos à crítica. Para
corroborar, Morin (2000, p. 64) comenta “o que agrava a
dificuldade de conhecer nosso Mundo é o modo de pensar
que atrofiou em nós”, o autor ainda diz, “nos remete à reforma
do pensamento, [...], necessária para conceber o contexto, o
global, o multidimensional, o complexo”.
A contemporaneidade e todas as mudanças exigem
transição do conhecimento disponibilizado pela educação
centrada no falar e ditar, para uma educação da comunicação
dialógica, estimulando os discentes a atuarem como coautores
de sua formação, encorajando sua autonomia.
Freire (1996) destaca como essencial que o aluno, no
processo educacional, se coloque como sujeito corresponsável
na produção do saber. Ainda para o autor, ensinar não é
transferir conhecimento, mas possibilitar ambientes que
facilitem a produção e a reconstrução dos saberes.
De acordo com Freire (1987, p. 68), o indivíduo alcançará
sua libertação a partir de uma reflexão problematizadora: “[...] a
educação libertadora, problematizadora já não pode ser um ato
de narrar, depositar ou transferir conhecimento e valores aos
educandos meros pacientes da educação ‘bancária’”.
Portanto, ensinar é, também, trocar experiências, e os
elementos da cibercultura podem apoiar a relação professor-
aluno, de modo que a aprendizagem aconteça mediante o
uso da tecnologia e não por meio dela, pois ela, por si só, não
ensina, apenas favorece a construção do conhecimento,
provoca a curiosidade e estimula o interesse em saber mais,
de descobrir o desconhecido e instiga à realidade, muitas vezes,
libertando o indivíduo da alienação.
Levy, em entrevista para o Correio do Povo (2015,
s.p.)3 comenta:
3
SILVA, Juremir Machado da. Pierre Lévy: a revolução digital só está no começo.
Correio do Povo, Rio Grande do Sul, 12 abr. 2015. Disponível em: <https://
www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/pierre-l%C3%A9vy-a-
revolu%C3%A7%C3%A3o-digital-s%C3%B3-est%C3%A1-no-
come%C3%A7o-1.305512>. Acesso em: 31 de outubro 2020.
158 Cultura digital, educação e o imaginário ...
A internet pode ser analisada em dois aspectos
conceitualmente distintos, mas praticamente
interdependentes e inseparáveis. Por um lado, a
infosfera, os dados, os algoritmos, imateriais e
ubíquos. São as nuvens. Por outro lado, os
rece ptores, os gadgets, os smartphones, os
dispositivos móveis de todos os tipos, os
computadores, os data-centers, os robôs, tudo
aquilo que é inevitavelmente físico e localizado:
os objetos. As nuvens não podem funcionar sem
os objetos. Os objetos não podem funcionar sem
as nuvens. A internet é a interação constante do
localizado e do desterritorializado, a interação dos
objetos e das nuvens. Tudo isso pode logicamente
ser deduzido da automatização da manipulação
do simbólico por meio de sistemas eletrônicos.
Sentiremos cada vez mais, de agora em diante as
consequências disso tudo em nossas vidas
cotidianas.
As necessidades definidas na pedagogia da autonomia
podem ser desenvolvidas com o apoio dos elementos que
compõem a cibercultura. Para corroborar, Lemos (2004, p.
9) assinala: “A cibercultura potencializa aquilo que é próprio
de toda dinâmica cultural, a saber o compartilhamento, a
distribuição, a cooperação, a apropriação dos bens
simbólicos”, portanto, aqui se encontra uma perspectiva que
pode guiar a maneira como nos posicionamos acerca das
tecnologias aplicadas nos processos educacionais, visto que
essa perspectiva assinala, apenas, um meio utilizado pelo
sujeito para atender uma necessidade.
A articulação entre educação e tecnologia está em
encontrar a adequada aplicação desses elementos no processo
ensino-aprendizagem. De acordo com Porto e Régnier (2003),
tanto os métodos de ensino-aprendizagem, como os docentes
estão sob forte pressão para mudar, muito em decorrência da
evolução das novas tecnologias e do surgimento da geração
digital, por essa razão, é preciso criar outras formas de ensino,
inclusive, o professor do futuro terá de assumir outros papéis,
tais como geradores e administradores de novos experimentos
de aprendizagem e de consultores e orientadores dos alunos.
Arte, Cultura e Imaginário 159
Outra questão fundamental em relação aos aspectos
tecnológicos é que a interconectividade alcança patamares
altos, permitindo comunicação e interação tanto local como
global. Essa aceleração impacta nas estruturas educacionais,
estimulando a adoção de novas tecnologias.
4
Pesquisa sobre o uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nas
escolas brasileiras – TIC Educação 2017. cetic.br. Disponível em: <https://
cetic.br/pesquisa/educacao/publicacoes>. Acesso em: 31 outubro de 2020.
160 Cultura digital, educação e o imaginário ...
tecnologias, entende-se que tornar acessível oferece melhores
condições de vida a todos e a possibilidade de se inserirem à
sociedade em rede. Além disso, a sociedade passa por
transformações de toda ordem, fundamentalmente, no sentido
de inter-relacionar economia, cultura e informação, como
mecanismo de inclusão. Diante desse contexto, uma indagação
parece necessária: como desenvolver a inclusão digital com o
enorme contingente de analfabetos inseridos na sociedade
brasileira?
Este âmbito parece antagônico ao que Castells (2003)
considera como sociedade em rede. Para o autor, ela é
determinada por usuários, que são os principais produtores,
pois, além de adaptarem a tecnologia a seus usos, também a
transformam. Neste sentido, a sociedade informacional e suas
transformações afetam os aspectos culturais e as relações,
portanto, a globalização vincula à exclusão no momento em
que os elementos da cibercultura não atingem de maneira
democrática todas as pessoas, “os processos de transformação
social sintetizados no tipo ideal de sociedade em rede
ultrapassam a esfera de relações sociais e técnicas de produção:
afetam a cultura e o poder de forma profunda” (CASTELLS,
1999, pp. 502-503).
A exclusão digital é um fenômeno complexo e de
várias dimensões, portanto, é preciso pensar para além do
acesso ao ciberespaço, este não é suficiente para superá-la. A
depender da conjuntura do país, as dificuldades de inclusão
serão mais incisivas para uma faixa da população, os efeitos
da alienação digital são mais visíveis nas regiões mais pobres
e distantes.
Segundo Castells (1999, p. 503), “embora as relações
capitalistas de produção ainda persistam [...], capital e trabalho
tendem cada vez mais a existir em diferentes espaços e tempos:
o espaço dos fluxos e o espaço dos lugares, tempo instantâneo
de redes computadorizadas versus tempo cronológico da vida
cotidiana”.
Estar fora do espaço dos fluxos é estar cada vez mais
próximo da condição de oprimido, para Freire (2014, p. 115),
“somente o diálogo, que implica um pensar crítico, é capaz,
também de gerá-lo. Sem ele não há comunicação e sem esta
não há verdadeira educação”. De acordo com Miranda e
Arte, Cultura e Imaginário 161
Mendonça (2005), é necessário estimular a democratização
da informação e ampliar o acesso aos espaços de criação e de
relações coletivas de modo a permitir a retroalimentação do
conhecimento.
A exclusão digital não é um fenômeno apenas
econômico, também não é caracterizada pela ausência de
acesso às ferramentas, é exclusão porque falta o acesso à
educação, à participação social e aos direitos básicos de
cidadania.
A segunda variável demonstra que a exclusão digital
pode ter outras características, mais comportamentais, já que
se refere à disposição pessoal dos usuários em não se
integrarem à cultura digital. Marques (2014) diz que há aqueles
com situação financeira suficiente para adquirir computadores
e utilizá-los ao contratar serviços de conexão de alta
velocidade. Possuem capital cultural para aprender a operar
tais recursos de maneira autônoma, o ponto é que nem todos
querem se aproximar do ambiente de comunicação digital, a
não ser para desempenhar tarefas cotidianas, como transações
bancárias. O autor ainda menciona que alguns indivíduos,
mesmo diante da ausência de condição socioeconômica para
adquirir computadores ou assinaturas de serviços para acesso
à internet, foram capazes de encontrar outras formas de
conexão.
Por essa razão, devem-se considerar as fronteiras que
a cultura digital estabelece e o surgimento de outras
desigualdades, isto é, a cada nova tecnologia aparecem
determinadas reivindicações que podem abrir outras
compreensões acerca da exclusão digital. Lévy (1999, p. 237)
corrobora esta ideia ao afirmar que “cada novo sistema de
comunicação fabrica seus excluídos”. E ainda: “De forma
mais ampla, cada universal produz seus excluídos, o universal,
mesmo se ele ‘totaliza’ em suas formas clássicas, jamais
engloba o todo”.
A distribuição desigual de acessos entre a população
brasileira é reflexo dos níveis desiguais de riquezas e educação.
Para Miranda e Mendonça (2005), é difícil compreender a
exclusão digital, visto que possui múltiplas definições e há
pontos de vista conflitantes sobre os principais fatores que a
162 Cultura digital, educação e o imaginário ...
afetam. A este ponto do estudo, cabe perguntar: é razoável
considerar a falta de acesso à internet como um impeditivo
para incrementar a tecnologia nas práticas educativas?
De acordo com Silveira (2001), na sociedade
contemporânea, quem não souber manejar as plataformas
tecnológicas e recursos digitais estará cada vez mais distante
da produção do conhecimento, portanto, assegurar o acesso
ao ciberespaço é possibilitar a obtenção da informação, o que
permite ao indivíduo certa autonomia no seu processo de
desenvolvimento.
Esse contexto consente argumentar que, para
construir uma sociedade em rede, a infraestrutura é fator
relevante, sem essa interface abrangente que permite conexões
eficazes, é inviável estabelecer ações para inserir a cibercultura
na realidade social.
De acordo com Lévy (1999), as mudanças sociais e
culturais decorrem da evolução técnica que a
contemporaneidade oferece, entretanto, países como o Brasil,
com graves problemas apresentados ao longo da evolução
econômico-social e a limitada capacidade em resolvê-los,
demonstram um significativo descompasso em relação à
velocidade das transformações provenientes do ciberespaço.
Portanto, utilizar a cibercultura, como um meio impulsionador
para o sistema social e educacional, repousa, também, sobre
a vontade política e dos responsáveis pelas práticas de
formação.
Bill Gates, citado na reportagem publicada em 12/
09/20005, declarou acerca da expectativa de que os fatores
tecnológicos reduziriam o abismo informático nos países em
vias de desenvolvimento: “este desafio é comparável ao do
analfabetismo. No futuro, o nível de educação primária será
o elemento mais importante, porque todos os outros
conhecimentos estarão ao alcance na Internet”. Desta
maneira, “os governos deveriam permitir a todos ler e escrever
e a Internet se encarregaria do resto.
5
RIEST, Philippe. Tecnologia pode reduzir “abismo” entre países ricos e
pobres. Folha Online. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/
folha/informatica/ult124u1534.shtml>. Acesso em: 31 de outubro de 2020.
Arte, Cultura e Imaginário 163
6
ALFANO, Bruno. ‘A educação deve ser pensada durante a vida inteira’, diz
Zygmunt Bauman. Globo.com Disponível em: <https://oglobo.globo.com/
sociedade/educacao/a-educacao-deve-ser-pensada-durante-vida-inteira-diz-
zygmunt-bauman-17275423>. Acesso em: 30 de outubro de 2020.
164 Cultura digital, educação e o imaginário ...
personalidade dos indivíduos. Os elementos que compõem a
cibercultura estimulam relações fluidas e superficiais, assim
como alimentam uma construção da personalidade individual
e do outro de maneira subjetiva e imaginária.
Lemos (2003) apresenta a cultura digital como
resultante dos desdobramentos das relações da tecnologia com
a modernidade. Nessa perspectiva, pode-se dizer que o
imaginário que existe na cibercultura se dá pela força social
impulsionada pelas imagens e representações coletivas.
O imaginário encontra-se refletido no cotidiano, por
meio de símbolos, rituais, transmissões e se faz sentir em todas
as formas de conhecimentos, práticas e representações sociais.
O imaginário é “um arcabouço de elementos que se
reorganizam de tempos em tempos. Os elementos mudam
de carga simbólica para se adequarem à realidade que os
circunda, mas também pode ser o motivador de mudanças
nessa mesma realidade” (LOPES, 2015, p. 62).
Castoriadis (1982) refere-se ao simbólico como tudo
aquilo que se apresenta no mundo social-histórico, para o
autor, atos individuais e coletivos não acontecem fora de uma
rede simbólica, nesse sentido, as instituições criadas na
sociedade pós-moderna têm a sua existência simbólica. Já
Wunenburger (2003) destaca que o imaginário é concebido a
partir de imagens e narrativas que podem moldar visões de
mundo, condutas e estilos de vida.
Essa perspectiva de posicionar a cultura, diante da
aceleração do tempo e diminuição dos espaços em função da
chegada das tecnologias digitais de informação e comunicação
afeta, também, a vida das pessoas. A entrada dos apelos visuais
nos lares influencia o modo de pensar e de agir, portanto,
transformações culturais dominam o cotidiano e a privacidade.
As articulações entre esses pressupostos são valiosas,
já que influenciam o imaginário social, principalmente ao
considerar o pensamento de Castoriadis (1995, p. 12), tudo
que existe em uma sociedade é produzido por ela, “de seu
ponto de chegada ao ponto de partida”, conduzindo a
reconsideração do pensamento herdado, “[...] da sociedade
instituinte e da sociedade instituída, do imaginário social, da
instituição da sociedade como sua própria obra, do social-
Arte, Cultura e Imaginário 165
histórico como modo de ser mal conhecido pelo pensamento
herdado.”
Compreende-se, então, que as percepções trazem uma
dimensão imaginária, já que há um lado representativo e outro
emocional dando lugar a descrições literais ou interpretativas,
convergindo com o pensamento de Castells (1999, p. 354),
quando diz: “a comunicação, decididamente, molda a cultura
porque, como afirma Postman, “nós não vemos... a realidade...
como ‘ela’ é, mas como são nossas linguagens”, e ainda,
“nossas linguagens são nossas mídias. Nossas mídias são
nossas metáforas. Nossas metáforas criam o conteúdo de
nossa cultura”.
A convergência das tecnologias na educação exige
mais do que uma simples mudança tecnológica, é um requisito
necessário para o envolvimento dos alunos nas atividades,
isso porque a realidade vivida pelo alunado está permeada
por diversos aparatos tecnológicos, influenciando e
transformando as interações sociais e as buscas por
informações fora do contexto escolar. Castells (2003) afirma
que são as demandas da sociedade e do contexto histórico
que determinam a busca por novas tecnologias e a aplicação
está relacionada aos interesses individuais.
Na sociedade em rede, a educação é convidada a
priorizar certas competências para uma ação diversificada, a
corrida em busca de novos currículos com propostas
interdisciplinares demonstra que a área educacional se
encontra em um movimento que procura por novas
alternativas.
Moran (2009) afirma que o docente é constantemente
desafiado a tornar o conteúdo verdadeiramente relevante
diante de tantas possibilidades. Para o autor, as tecnologias
abrem novas oportunidades para superar barreiras de acesso
ao conhecimento, de modo que a congruência das mudanças
presentes na sociedade articula-se em favor de uma visão
emancipadora para a educação.
O pensamento freiriano tem como propósito uma
educação emancipadora que possibilite ao aluno tornar-se
autor de sua própria história; desta maneira, cabe ao sistema
educacional oferecer meios de acesso aos bens culturais, a
166 Cultura digital, educação e o imaginário ...
atividade de explorar ambientes virtuais exige técnicas de
ensino-aprendizagem, dito isto, eleva-se a importância do
professor no processo, já que pode ensinar o aluno a ser um
explorador de interesses no universo da cibercultura.
Apesar de o aluno estar inserido em um contexto
complexo de relações, promover mudanças não requer apenas
estimular o uso das tecnologias, envolve outros fatores,
aquisição de equipamentos, desenvolver as habilidades dos
professores. Castells (2002) aponta que, na atualidade, as
tecnologias digitais são parte da infraestrutura que possibilita
uma gama de comunicações no planeta, facilita a apropriação
de linguagens e favorece experimentar um outro modo de
viver e conviver, portanto, as propostas pedagógicas não
podem limitar o acesso às inovações técnicas.
A concepção do professor acerca do uso de
tecnologias no trabalho pedagógico exige estabelecer uma
nova relação com o saber, de modo a ultrapassar os limites
dos recursos tradicionais, portanto, antes de introduzir as
TDICs nas aulas, é necessário entendê-las para utilizar de
maneira que contribuam com a mudança no processo de
ensino-aprendizagem, transformando salas de aulas em
espaços para discussões. Tal perspectiva conflui com a prática
educativa freiriana, que defende a necessidade de o aluno
assumir o papel de sujeito na produção de seus saberes,
posicionando-se como autor do conhecimento.
As ações didáticas mediadas pela cibercultura
conduzem a movimentos colaborativos e coloca o processo
de ensinar e aprender na esfera da liberdade. Por isso, é
relevante que o ambiente educacional seja um lugar em que o
aluno tenha a possibilidade de interferir no conhecimento e,
assim, contribuir com a sociedade. Freire (1996) afirma que
os estudantes se transformam em indivíduos ativos na
construção e reconstrução do saber ensinado. Contudo, cabe
aqui uma provocação: o estudante brasileiro sabe, realmente,
utilizar as TDICs de modo a contribuir com o exercício de
sua autonomia na aprendizagem?
A autonomia é uma construção cultural e depende da
relação do homem com os outros e com o conhecimento,
Arte, Cultura e Imaginário 167
então, neste processo, o ato de ensinar é fundamental e
pressupõe uma relação dialógica, é um processo de
interlocução mediado por indagações à procura de
inteligibilidade dos fenômenos sociais, culturais ou políticos
(FREIRE, 1996).
Este conceito implica um conjunto de habilidades que
não é fácil encontrar nos alunos devido ao histórico de
aprendizagem passiva; em contrapartida, também não são
munidos de atitudes para aulas expositivas quando o tema é
complexo, necessitam de outros recursos para reter a atenção,
o que os fazem, em certa medida, imediatistas. Diante deste
cenário, não se pode negar que é necessário repensar a
educação no contexto da sociedade pós-moderna, em que
tudo se modifica velozmente.
O professor não é mais o detentor do conhecimento,
a cultura digital trouxe uma nova relação com a informação,
logo o que deve ser aprendido demanda percursos diferentes,
portanto está, gradativamente, mais difícil canalizar os
programas e currículos que sejam válidos para todos os
estudantes. Conforme Lévy (1999), é necessário construir
novos modelos no espaço dos conhecimentos.
Elementos eletrônicos, cada vez mais, apresentam
papel importante no ambiente educacional, a escola quando
não permite o uso do aparelho, está cerceando o aluno ao
direito de participar da convergência tecnológica. Esse
pensamento convoca a seguinte reflexão: como utilizar as
TDICs não só de maneira ética, mas de modo que favoreça o
processo ensino-aprendizagem?
Os alunos da atualidade estão inseridos no ciberespaço
quase 24 horas, portanto a educação não escapa desse
fenômeno. Segundo Harvey (1989, p. 22), a transitoriedade
das coisas dificulta a preservação de todo sentido de
continuidade histórica, “a modernidade, por conseguinte, não
apenas envolve uma implacável ruptura com todas e quaisquer
condições históricas precedentes, como é caracterizada por
um interminável processo de rupturas e fragmentações
internas inerentes”. Entretanto, a educação deve-se pautar
em valores que colaboram para formar sujeitos conscientes
168 Cultura digital, educação e o imaginário ...
de que a valorização das regras contribui para a organização
das relações humanas.
Para Bauman (2004), perderam-se certas âncoras
sociais que garantiam segurança e liberdade, o indivíduo
precisa de tal apoio, visto que a identidade, na pós-
modernidade, é frágil e superficial. Essa dinâmica possibilita
pensar a identidade do estudante, a partir das novas
tecnologias, considerando um processo em que se destaca a
ação de diversos sujeitos envolvidos na produção de sentidos.
Hall (1992) entende que as identidades que
propulsionavam conformidade subjetiva com as necessidades
objetivas da cultura entraram em declínio, a identificação que
projeta a identidade das pessoas está cada vez mais efêmera,
oscilante e problemática, na pós-modernidade, o indivíduo é
conceituado como alguém que não tem identidade fixa,
per manente e unificada, visto que se transfor ma
continuamente, sobretudo sob o impacto dos fatos que
representam os meios culturais.
As novas tecnologias, por si só, não são capazes de
desenvolver o conhecimento dos educandos, mas podem ser
facilitadoras do aprendizado. A utilização dos recursos
midiáticos pode trazer ganhos para a educação, mas, para isso,
é importante que a escola e os educadores compreendam o
ciberespaço como um ambiente em que recursos são
modificados em uma velocidade extraordinária. Nessa
contextualização quase contraditória, cabe a reflexão: o
ambiente educacional está preparado para acompanhar essas
mudanças e na mesma velocidade?
Exercer a docência nesse contexto de crise gerado
pelas pressões e transformações requer tomar consciência do
fluxo de acontecimentos que advém da cibercultura. A
performance digital nos coloca diante de possibilidades
variadas de ação e de comunicação e, assim, o ouvir e o sentir
tornam-se mais relevantes.
Os educadores devem estar atentos a essa realidade,
porque, embora seja uma novidade em termos de metodologia
de ensino, é importante entender que os alunos vão para a
escola com uma experiência sociocultural e de utilização destes
meios que supera a dos educadores.
Arte, Cultura e Imaginário 169
Os estudantes vivem num contexto virtual e
demandam do ambiente escolar todas as alternativas de mídias.
Esse novo cenário, para muitos, é desconhecido; para os
estudantes, é natural. Assim, pode-se utilizar a tecnologia para
criação de uma nova forma de atuação, em que alunos e
professores são sujeitos ativos no processo de ensino e
aprendizagem. O professor não tem mais que lidar só com as
disciplinas clássicas, é necessário compreender a nova
dinâmica da pós-modernidade.
Os elementos do ciberespaço devem ser utilizados no
ambiente escolar como ferramenta facilitadora para a prática
docente. Logo, é necessário desmistificar a ideia de substituição
do professor pela máquina; para tanto, exige-se compreensão
de que os instrumentos são mecanismos utilizados para
promover o desenvolvimento cognitivo e sociocultural, com
isso favorece a formação do sujeito, pois, a tecnologia, por si
só, não ensina, ela sempre vai precisar da mediação humana.
Por outro lado, o conhecimento desses problemas
pressupõe novos padrões que poderão contribuir para inserção
das tecnologias no fazer pedagógico, viabilizar a construção
colaborativa entre os profissionais na exploração das
tecnologias como meio que facilita o pensar e o agir no
ambiente escolar, investir no desenvolvimento dos docentes,
de modo a oportunizar uma reflexão sobre as problemáticas
no contexto da sala de aula.
As TDICs na educação devem ser utilizadas como
um recurso para auxiliar o professor na integração dos
conteúdos curriculares, sua finalidade não se encerra nas
técnicas de digitação e/ou conceitos básicos de
funcionamento do computador, existe todo um leque de
oportunidades que deve ser explorado, afinal, a sociedade atual
está pautada pelos padrões da pós-moder nidade,
fundamentalmente, os tecnológicos, incorporando exigências,
como mais flexibilidade e integração nos espaços educacionais.
Muda-se não apenas as metodologias, é a própria
concepção da educação que necessita ser repensada, como
defende Mizukami (2016), ao afirmar que existem muitas
maneiras de idealizar o fenômeno educativo, razão pela qual
não é uma realidade acabada.
170 Cultura digital, educação e o imaginário ...
Conforme Moran (s/d)7, existe uma inércia na cultura
que impede os avanços tecnológicos. “As tecnologias
per mitem mudanças profundas que praticamente
permanecem inexploradas pela inércia da cultura tradicional,
pelo medo, pelos valores consolidados”. Para o autor, em razão
desse imobilismo, o desafio aumenta no sentido de ter uma
educação de qualidade que integre todas as dimensões do ser
humano, como fatores sensorial, intelectual, emocional, ético
e tecnológico. Para corroborar, Morin (2011) diz que ensinar
a condição humana é enxergar a identidade do aluno.
O ciberespaço oferece aos alunos diversas ferramentas
para aprenderem sozinhos, nessa concepção e na esteira da
pós-modernidade, a educação parece estar marcada pela
urgência de estudantes que querem aprendizagens pautadas
pela criatividade. Portanto, o debate não está pautado apenas
na definição de papéis e na capacidade do professor em usar
os recursos ofertados pela tecnologia, é preciso atentar-se para
as oportunidades que a contemporaneidade oferece como
práticas de autodesenvolvimento e de convivência que podem
levar os alunos a fazerem suas próprias escolhas.
É possível dizer que o ensino com foco em conteúdos
está cada vez mais distante das demandas do estudante do
século XXI, a educação caminha para uma aprendizagem
autônoma em que o aluno deverá ser capaz de estabelecer
ações educativas, caracterizando a construção de sua própria
trajetória de formação. Esse contexto se aproxima do que foi
pregado pela Escola Nova, ao romper com a educação
tradicional e incorporar a Pedagogia Ativa.
As rápidas e constantes transformações são capazes
de proporcionar novas concepções, não é uma simples questão
de ponto de vista, é uma ressignificação dos papéis. Embora
a inserção de ferramentas tecnológicas na educação não seja
garantia de qualidade no processo ensino-aprendizagem, os
professores precisam de alternativas pedagógicas. Silva (2009)
afirma que a atualidade exige do professor domínio das
7
MORAN, J. M. Para onde caminhamos na educação. Disponível em: <http:/
/www.eca.usp.br/prof/moran/site/textos/educacao_inovadora/
caminhamos.pdf>. Acesso em: 20 dez 2018.
Arte, Cultura e Imaginário 171
ferramentas disponíveis no ciberespaço. O autor reitera que
muitos professores usam a tecnologia com desconfiança e
não sabem integrá-la à sua prática, no entanto, quando bem
aplicadas, mostram-se importantes para o processo
educacional, ao oferecer acesso a novos recursos pedagógicos.
Matéria publicada em 11 de março de 20168 aborda:
Muitos educadores questionam se a tecnologia
será o principal agente disruptivo na educação.
Não, o principal agente disruptivo serão os
educadores. Ao mesmo tempo, a educação não
sofrerá um processo de disrupção sem a
tecnologia. Colocar a tecnologia dentro das salas
de aula de hoje e esperar que a educação mude é
um devaneio. Temos que pensar em que educação
queremos ter e quais os instrumentos,
tecnológicos ou não, usaremos para atingir nossos
objetivos.
O professor precisa se situar no universo da tecnologia,
de acordo com Lévy (1999), a escola contemporânea deve
ter a capacidade de gerar competências variadas, principal-
mente as relacionadas ao papel do professor.
Ao considerar o contexto investigado e as novas
formas de comunicação e interatividade emergentes de uma
sociedade em rede busca-se compreender as oportunidades
de enriquecimento dos processos educativos por meio dos
elementos disponibilizados no ciberespaço, acredita-se que,
para incorporar essas transformações nos processos de ensinar
e aprender, é preciso repensar o padrão educacional brasileiro.
Para Foucault (1984, p. 13), “existem momentos na
vida onde a questão de saber se pode se pensar diferentemente
do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é
indispensaìvel para continuar a olhar ou a refletir”. Na esteira
8
PEREIRA, Emerson Bento. Educação, Disrupção e Tecnologia.
Estadao.com Disponível em: <https://educacao.estadao.com.br/blogs/
colegio-bandeirantes/educacao-disrupcao-e- tecnologia>. Acesso em 30 de
outubro de 2020.
172 Cultura digital, educação e o imaginário ...
do autor, propõe-se refletir sobre a disrupção no ensino-
aprendizagem a partir do uso da tecnologia.
A cultura digital trouxe outras possibilidades de acesso
ao conhecimento, dentro e fora da sala de aula, novos
comportamentos se estabeleceram e a mobilidade abriram
oportunidades para a expansão do estudo, as mudanças de
comportamento dos jovens decorrentes desse movimento
foram automaticamente transferidas para a educação.
A interatividade no ambiente virtual só existe mediante
a movimentação dos sujeitos aprendentes, assim, não basta
disponibilizar interfaces, se os estudantes não tiverem
habilidades de comunicação, neste momento, evidencia ainda
mais a importância do professor como mediador da
aprendizagem.
Por outro lado, as produções que emergem da
comunicação interativa entre os sujeitos são os hipertextos,
isto é, quando a interação passa a interatividade e oferece ao
aprendente textos que se conectam a outros por meio das
interfaces criadas no contexto do ambiente virtual de
aprendizagem. Novamente, a participação do docente torna-
se necessária, pois as interfaces de conteúdos fazem convergir
diversas linguagens que, por si só, serão mero entretenimento,
contudo, se bem aplicadas, potencializam a aprendizagem.
A simulação, como recurso digital, pode ser usada com
o intuito de apoiar a aprendizagem. Tori (2006) considera a
simulação, como: a ideia de interação associada com a
capacidade de o computador detectar as entradas do usuário
e modificar, instantaneamente, o ambiente virtual; o
envolvimento e engajamento do aluno com determinada
atividade de maneira ativa; a realidade aumentada,
diferentemente da realidade virtual, que busca criar um mundo
virtual à parte, tem o objetivo de suplementar o mundo real
com objetos virtuais gerados computacionalmente, de tal
forma que aparentem coexistir no espaço real.
São várias as questões quando se discute a utilização
das mediações tecnológicas para desenvolver o processo
formativo, uma delas é a aprendizagem autônoma. Sabe-se
que o estudante, em sua trajetória educacional foi esculpido
pelos referenciais do modelo presencial, por essa razão quase
Arte, Cultura e Imaginário 173
sempre demonstra problemas com a organização do tempo e
a comunicação a distância, demonstra dificuldade em sentir-
se responsável por sua própria aprendizagem. O fato é que o
aluno, ao usar espaços virtuais para aprender, precisará
construir uma nova identidade, revisitando o que é elaborado
em seu percurso educacional, esse movimento fragmenta o
indivíduo moderno e estabelece o que, para Hall (1992), é a
“crise de identidade”.
Assim, a “crise de identidade” é vista como parte de
um processo mais amplo de mudança, desloca as estruturas e
os processos centrais das sociedades modernas e abala os
quadros de referência que davam aos sujeitos uma ancoragem
estável no mundo social. Essas mudanças tendem a provocar,
nos estudantes, sensações de deslocamentos e
questionamentos a respeito de si mesmos.
Na medida em que os meios de representação cultural
aumentam e se modificam provoca uma abundância
perturbadora de possíveis identidades, convergindo, assim,
com a configuração dos recursos digitais que colocam à
disposição do público uma variedade de conexões que
independe da situação geográfica, do recurso ou do usuário.
Na atualidade, ensinar e aprender estão diante de uma
nova dinâmica, o acesso à informação tornou-se rápido e
efêmero, portanto, professores e alunos são constantemente
desafiados a adquirir novos conhecimentos. Além disso, os
alunos de hoje são aqueles que cresceram manipulando as
tecnologias, assim o estudante pode levar à sala de aula suas
experiências virtuais. De acordo com Tori (2010), o estudante
pode criar uma espécie de hibridização ou blended learning, essa
convergência entre as experiências presenciais e virtuais
desencadeará o estilo e a forma de atuar, tanto no presencial
como no virtual. Esse contexto requer adaptação dos
profissionais da educação para utilizar os elementos que
integram o ciberespaço como facilitadores do processo de
ensino-aprendizagem.
Uma vez que o uso das tecnologias aumenta, pode-se
transformar o modelo educacional, principalmente, ao inserir
as TDICs como recurso para enriquecer a aprendizagem.
Portanto, é preciso entender a relação entre tecnologias e
174 Cultura digital, educação e o imaginário ...
práticas educativas, já que elas, em conjunto, podem gerar
ganhos no desempenho tanto do professor, quanto do aluno.
Mas também, podem provocar divergências na medida em
que os recursos são utilizados apenas como ferramentas, sem
repensar o processo, logo, os elementos disponibilizados no
ciberespaço, sozinhos, não agregam inovação ao modelo de
ensino.
Os diversos intercâmbios de conhecimentos
desencadeados pela cibercultura exigem uma reformulação
no processo de ensino-aprendizagem. É necessário, portanto,
pensar no que pode ser feito a partir das TDICs, suas
especificidades técnicas e seu potencial pedagógico. Quando
utilizadas apropriadamente, em conjunto com outras
atividades que favorecem o aprendizado ativo, podem
estimular os alunos na construção do seu conhecimento.
Para Vygotsky (1996), o professor deve utilizar
metodologias de ensino para atender diferentes alunos, já que
estes não aprendem da mesma maneira, isto significa, o
educador deve perguntar, com frequência, qual o sentido de
determinado conteúdo e método, portanto, estabelece-se a
importância de atualização, de modo a acompanhar as
mudanças.
O uso das tecnologias faz emergir práticas que alteram
as relações professor-aluno e o papel da docência. Para alguns,
o docente é um mediador de situações de aprendizagem, nesta
nova realidade, privilegia-se a construção coletiva mediada
tanto pelo professor, quanto pela tecnologia.
Essa nova proposta pedagógica precisa ser analisada,
afinal, as transições tendem a apresentar resistências, pois
impõem a mudança de modelos e impactam no processo de
construção de identidade do professorado. Evidencia-se a
capacidade que as identidades possuem em receber influência
das forças produtivas da sociedade para estabelecer novas
linhas no processo cultural, principalmente em épocas, como
a que vivemos na atualidade, em que a produção e
disponibilidade de informações instauram mudanças de
hábitos e costumes, expandindo o capital intelectual e cultural
que compõem a sociedade moderna.
175 Cultura digital, educação e o imaginário ...
Ao longo da análise, buscou-se qualificar os aspectos
negativos e positivos da introdução tecnológica na identidade
cultural e educacional no contexto brasileiro, o que nos faz
pensar que esse entendimento pode ser em função da
concepção que o sujeito tem do mundo. “O imaginário é,
portanto mais próximo das percepções que nos afetam do
que das concepções abstratas que inibem a esfera afetiva”,
diz Wunenburger, “por outro lado, só há imaginário se um
conjunto de imagens e de narrativas forma uma totalidade
mais ou menos coerente” [...] (WUNENBURGER, 2003, pp.
11-12).
Compreende-se, então, que as percepções comportam
um lado representativo e outro emocional, deste modo, podem
dar lugar a descrições literais ou interpretativas. Em artigo de
opinião publicado em 08 de janeiro de 2016, Professor
Henrique Vailati Neto, diretor do Colégio FAAP – SP9 diz:
“Como todas as ferramentas, o uso adequado, não importa o
preço ou capacidade de recursos, é fator essencial para que se
obtenham resultados positivos no processo de aprendizagem”.
Isto significa que as instituições de ensino não podem ficar
fechadas atrás de seus muros, significa, ainda, que os alunos
têm acesso a um aparato tecnológico que o faz olhar para o
processo ensino-aprendizagem com uma nova visão, inserida
na era tecnológica e na sociedade digital.
Ainda para o Professor Henrique: “[...] transformaram
suas aulas em verdadeiros soníferos didáticos ao [...] submeter
seus alunos a belíssimas telas de Power point, onde a figura do
professor era esmaecida e perdia a sua imprescindível função
de motivador do aprendizado”. Nesta perspectiva, o uso das
tecnologias digitais de informação e comunicação deve se dar
de forma criativa, incorporando-se as ferramentas digitais aos
processos de produção do conhecimento; as tecnologias
devem estar presentes nas diversas atividades de sala de aula,
9
Os riscos da tecnologia na educação. Estadao.com. Disponível em: https:/
/educacao.estadao.com.br/blogs/colegio-faap/os-riscos-da-tecnologia-na-
educacao/ Acesso em: 31 de outubro de 2020.
176 Cultura digital, educação e o imaginário ...
de acordo com a intencionalidade de propiciar aos estudantes
a aprendizagem pela experiência e mediante objetivos claros.
Ao considerar essas transformações, significa olhar
sensivelmente para os estudantes contemporâneos, crianças,
adolescentes e jovens, que têm, em sua cultura, a estreita
ligação com diferentes dispositivos tecnológicos e suas
linguagens. A forma como o pensamento desses sujeitos se
organiza está repleta de referências, formas e conteúdos
obtidos das TDIC, negar esta realidade, na escola, é promover
barreiras à interação entre educadores e educandos e
desconsiderar o contexto social e cultural dos estudantes.
Segundo Castoriadis (1982, p. 159), “A instituição é
uma rede simbólica, socialmente sancionada, onde se
combinam em proporções e em relações variáveis um
componente funcional e um componente imaginário”.
Portanto, introduz-se o sentido de virtualidade, por ser ela
uma extensão da realidade, um símbolo que representa algo
verdadeiro e imaginário. Lévy (1999, p. 22) diz: “é impossível
separar o homem de seu ambiente material, assim como dos
signos e das imagens por meio dos quais ele atribui sentido à
vida e ao mundo”, e ainda, “[...] as palavras, as construções
de linguagem entranham-se nas almas humanas, fornecem
meios e razões de viver aos homens e suas instituições [...].
Castells nos ajuda no entendimento de que não existe
oposição entre a realidade e a virtualidade. Para o autor, a
percepção da realidade depende de símbolos, isto é, a realidade
é apreendida por meio dos elementos que compõem a
linguagem, portanto, a realidade traz algo de virtual, “a
realidade, como é vivida, sempre foi virtual porque sempre é
percebida por intermédio de símbolos formadores da prática
com algum sentido que escapa à sua rigorosa definição
semântica” (CASTELLS, 1999, p. 395).
Nessa perspectiva, Castoriadis (1982, p. 169)
estabelece que “existem significações relativamente
independentes dos significantes [...]. Essas significações
podem corresponder ao percebido, ao racional ou ao
imaginaìrio”. Logo, pode-se dizer que estas concepções
transcendem e incluem a diversidade dos sistemas de
representação historicamente transmitidos à cultura, portanto,
Arte, Cultura e Imaginário 177
o imaginário é efetivado por meio das diferentes linguagens
que fazem os indivíduos interagirem.
Uma vez que as pessoas vivem baseadas na linguagem
e em experiências vividas, entrarão em contato com
representações simbólicas, deste modo, Castells (1999, p. 395)
diz: “essa gama de variações culturais do significado das
mensagens é o que possibilita nossa interação mútua com
uma multiplicidade de dimensões, algumas explícitas, outras
implícitas”.
Para contribuir com a ideia de realidade percebida
vitualmente, Moran (2000, p. 12) comenta, “Sem dúvida as
tecnologias nos permitem ampliar o conceito de aula, de
espaço e tempo, de comunicação audiovisual, e estabelecer
pontes novas entre o presencial e o virtual, entre o estar
juntos e o estarmos conectados”. Portanto, os autores estão
em consonância e em contribuição. Tori (2017, p. 115) aduz,
“a realidade virtual (RV) possibilita que se disponibilizem
aos alunos interações realistas com ambientes sintéticos,
constituindo-se assim em importante meio para redução
de distâncias”. Provoca o autor, “uma visita virtual ao
Coliseu de Roma ou às pirâmides do Egito, com a
possibilidade de caminhar por esses espaços, observá-los
e interagir com seus conteúdos, pode não substituir a visita
in loco, [...] oferece uma sensação de proximidade muito
maior que a simples visualização de imagens e vídeos”.
A realidade virtual bem utilizada pode proporcionar
ao professor possibilidades, vantagens e praticidades em
adquirir informações para a construção de conhecimentos.
Acredita-se que, ao inserir inovação no processo
educacional, deve-se considerar a cultura como fator
relevante, visto que as modificações e a melhoria na prática
não exigem apenas a compreensão intelectual dos sujeitos,
seja ele estudante ou professor, pede-se, também, uma
atitude transformadora, inclusive das condições referentes
à cultura herdada.
Ademais, a educação necessita alinhar-se à sociedade
contemporânea. Freire (1996) é defensor da educação baseada
na realidade, contudo, a educação que apenas utiliza a
tecnologia sem uma mediação pedagógica gerará resultados
178 Cultura digital, educação e o imaginário ...
insignificantes, é preciso que se faça uma educação capaz de
dar voz e vez ao sujeito, provocando mudanças na relação
consigo mesmo e com seu entorno, ampliando o papel de
cidadão.
Portanto, cabe à educação acompanhar esse movimento
e construir processos educacionais transformadores e alinhados
às necessidades da sociedade contemporânea. “A cultura é
mediada e determinada pela comunicação, [...] nossos sistemas
de crenças e códigos historicamente produzidos são
transformados de maneira fundamental pelo novo sistema
tecnológico e o serão ainda mais com o passar do tempo”
(CASTELLS, 1999, p. 354).
O filósofo francês Gilles Lipovetsky no encontro
internacional “Educação 360”10 realizado no Rio de Janeiro
em setembro de 2017 e em entrevista ao jornal O Globo, diz,
para enfrentar os desafios do século XXI, é necessário criar
uma educação global, um ensino que considere tanto o saber
técnico, quanto o desenvolvimento pessoal, sem esquecer da
necessária compreensão do mundo. Para ele, essa é a única
maneira de criar uma geração capaz de lidar com os problemas
contemporâneos. Essa proposta tem eco no pensamento de
Edgar Morin (1998) e a religação dos saberes no universo
globalizado.
O conhecimento técnico é necessário, mas
devemos formar seres humanos, e não somente
“pessoas úteis”. Precisamos de uma educação que
leve em conta o homem em sua globalidade, como
um cidadão, e não o veja apenas como produtor e
trabalhador. Para isso, educação não pode ser
tratada como luxo. É uma exigência frente aos
desafios do século XXI (LIPOVETSKY, 2017, s.p).
10
NICODEMUS, Mariana. Filósofo francês defende educação global para
enfrentar desafios do século XXI. O Globo, Rio de Janeiro, 21 de set. 2017.
Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/filosofo-
frances-defende-educacao-global-para- enfrentar-desafios-do-seculo-xxi-
21855486>. Acesso em: 15 jul. 2018.
Arte, Cultura e Imaginário 179
O texto acima converge com a ideia defendida por
Morin (2011), para quem o homem não nasceu humano, foi
aos poucos aprendendo por meio da evolução, da adaptação
e da construção cultural. Na concepção do autor, cabe à
educação ajudar as mentes a compreenderem a complexidade
humana.
Lipovetsky, em entrevista, continua afirmando que “o
saber oferece autonomia aos indivíduos. A cultura geral é
indispensável para elevar a capacidade crítica dos jovens e
libertar seus espíritos, de maneira que tenham ferramentas
para colocar as informações em perspectiva e entender o
presente”.
Desta maneira, afirma-se que os processos simbólicos
são constituidores do ser humano, das suas ações e,
consequentemente, da sua cultura, assim as tecnologias da
informação desenvolvidas para possibilitar, difundir, ou
transformar tais processos têm uma relação direta com a
mente humana, que passa a ser fonte de riqueza e poder na
nova sociedade.
Castells (1999) afirma que a sociedade em rede atingiu
todo âmbito de atributos sociais, não só na interação, mas
também no desenvolvimento de comunidades virtuais, que
são transitórias e fugazes do ponto de vista dos atores sociais.
Na perspectiva do autor, é inegável que os meios
disponibilizados por essas tecnologias colocam em sinergia o
espaço virtual com o espaço físico, consolidando a era da
conexão e interação e, modificando, com isso, as relações e o
comportamento humano. Castells (2003, p. 8) afirma que “os
impactos dessas transformações foram tão grandes, que o
momento atual é visto como uma transição para uma nova
forma de sociedade – a sociedade em rede.” E ainda:
Uma rede é um conjunto de nós interconectados.
A formação de redes é uma prática humana muito
antiga, mas as redes ganharam vida nova em nosso
tempo transformando-se em redes de informação
energizadas pela internet. As redes têm vantagens
extraordinárias como ferramentas de organização
em virtude de sua flexibilidade e adaptabilidade
180 Cultura digital, educação e o imaginário ...
inerentes, características essenciais para se
sobreviver e prosperar num ambiente em rápida
mutação (CASTELLS, 2003, p. 7).
Evidencia-se, então, uma cultura cibernética que nasce
da convergência das novas tecnologias e da conexão em rede,
promovendo reconfigurações em todos os patamares do corpo
social e atingindo a todos que estão conectados. Nesse
contexto, há de ressaltar o papel das tecnologias como
elemento impulsionador da estrutura de rede, dela também
faz parte uma cultura convergente de virtualidade real
construída a partir de um sistema de mídia onipresente,
interligado e altamente diversificado que proporciona a
transformação das bases materiais da vida – do tempo e do
espaço – mediante a criação de um lugar de fluxos e de um
tempo intemporal como expressões das atividades e das elites
dominantes (CASTELLS, 1999).
Do mesmo modo é o Imaginário tecnológico, na
concepção de Rüdiger (2002, p. 9):
[...] formação da tecnocultura contemporânea
implica a tecnologia não só como força econômica
articulada cientificamente, o que não pode de jeito
algum ser esquecido, mas também como uma
espécie de ideologia, que preferiríamos chamar
[...] de imaginário (tecnológico).
O caráter dos lugares sociais ocupados pelos meios
de comunicação e a imbricação com as novas tecnologias
imprimem características ao imaginário social, isto é, a
cibercultura, não tem qualquer problema, a dúvida está em
como o ser humano vai lidar com os aspectos tecnológicos
no futuro.
Aqueles que defendem a tecnologia na educação
argumentam que são necessárias profundas mudanças nos
métodos de ensino-aprendizagem e em todo o sistema
educacional, de modo a reservar ao cérebro humano o que
lhe é peculiar, a capacidade de pensar de maneira crítica e
questionadora, em vez de, apenas, desenvolver a memória.
Além disso, a sociedade contemporânea criou outros
espaços de conhecimentos, a empresa, o ambiente social e
Arte, Cultura e Imaginário 181
residencial tornaram-se educativos, isto é, cada vez mais, as
pessoas estudam fora dos espaços tradicionais, visto que, ao
acessar o ciberespaço, encontram informações que respondem
as demandas de conhecimento, como previa McLuhan (1969),
o planeta transformou-se em sala de aula, visto que o
ciberespaço está em todo o lugar e em todo o tempo.
Referências bibliográficas
1
Graduação em Comunicação Social pela Faculdade Radial FARSP,
especialização em Artes Cênicas pela Faculdade Paulista de Artes (FPA),
formada em Licenciatura em Artes Visuais pela FPA, mestranda em
Ciências Humanas pela Universidade de Santo Amaro – UNISA.
2
Graduação em Direito pela Faculdade de Itu - FADITU, pós-graduada
em Didática do Ensino Superior e MBA Direito Imobiliário, mestranda
em Ciências Humanas pela Universidade de Santo Amaro – UNISA.
3
Graduação em Direito pelo Instituto Municipal de Ensino Superior de
Assis – IMESA/FEMA, especialização em Direito Civil e Direito
Processual Civil pela Universidade de Londrina – UEL, mestrando em
Ciências Humanas – Universidade de Santo Amaro – UNISA.
186 Cidadão Kane e Boca de Ouro...
esse fenômeno peculiar de consciência a que chamamos de
conhecimento (1999, p. 19)”. Talvez por isso o primeiro lugar
a que o jornalista Jerry Thompson, personagem do filme
Cidadão Kane (1941), tenha se dirigido tenha sido a biblioteca
de Walter Parks Thatcher, a fim de colher informações para
criar uma matéria a respeito da vida de Kane. Mas precisaria
ser algo novo, sob novo ângulo, pois, nas palavras do jornalista,
“não basta contar o que um homem fez; é preciso contar
quem ele foi”.
O filme Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, conta
a investigação de um jornalista sobre as últimas palavras em
vida do magnata da comunicação, Charles Foster Kane. O
renomado jornalista, no início do filme, em seus últimos
suspiros de vida, adoecido em seu leito, diz Rosebud, suas
últimas palavras.
Para tentar descobrir o que ou quem é Rosebud,
Thompson faz uma série de entrevistas com pessoas que
conviveram diretamente com o Sr. Kane. O jornalista
Thompson conheceria seu objeto de estudo somente por meio
de relatos de pessoas que conviveram com Kane. Hessen
expressa que “qualquer explicação ou interpretação deve ser
precedida de uma observação e uma descrição exatas do
objeto”. Diz ainda que, antes de filosofar, ou, no caso, falar
sobre um personagem, “é necessário examiná-lo com exatidão
(1999, p. 19).
A segunda obra, um clássico do teatro brasileiro, a
peça “Boca de Ouro”, de Nelson Rodrigues, possui um enredo
bem semelhante a Cidadão Kane, pois o jornalista Caveirinha,
ao saber sobre o assassinato do bicheiro de Madureira, vai
entrevistar uma pessoa do passado do falecido para tentar
descobrir quem verdadeiramente era essa figura da mitologia
suburbana carioca, o bandido Boca de Ouro.
Não podemos afirmar que Nelson Rodrigues tenha
se inspirado no filme de Welles para escrever a peça, que
estreou 20 anos após o lançamento de Cidadão Kane. Pelo
contrário, em uma entrevista a José Lino Grunevald (1923 –
2000), Rodrigues critica Orson Welles: “Não consigo admirar
Cidadão Kane – é um Pirandello muito suburbano” (REVISTA
FILME CULTURA, 1973, p. 51).
Arte, Cultura e Imaginário 187
Um ponto interessante acerca das duas obras
encontra-se em primoroso artigo sobre o dramaturgo Luigi
Pirandello. A jornalista Luciana Barbio, em reportagem para
o jornal O Globo do dia 06/12/2016 descreve, de forma precisa
e sucinta, o seu estilo dramatúrgico: “Sua obra trata
preponderantemente do que pode ser verdade ou mentira.
Explorar o tema da transitoriedade do ser: somos vários eus,
eternamente em mutação”.
Martha Ribeiro, em artigo sobre Pirandello, explica que:
Referências bibliográficas
BARBIO, Luciana. Luigi Pirandello, que revolucionou o teatro,
foi celebrado no Rio em 1927. O Globo. 06/12/2016.
Disponível em: <https://acervo.oglobo.globo.com/em-
destaque/luigi-pirandello-que-revolucionou-teatro-foi-
celebrado-no-rio-em-1927-20605246#ixzz6Tyo2quPv.>.
Acesso em: 03/08/20.
CIDADAO Kane. Direção: Orson Welles. Intérpretes: Joseph
Cotten, Orson Welles, Agnes Moorehead, George Coulouris, Ray
Collins, Erskine Sanford, William Alland, Paul Stewart, Fortunio
Bonanova, Georgia Backus, Gus Schilling, Everett Sloane, Ruth
Warrick, Dorothy Comingore e Philip Van Zandt. Distribuidor:
Warner Bros. Entertainment. 1941. DVD 119 min
DA MATTA, R. Carnavais, malandros e heróis: para uma
sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
FROEMMING, L. S; RIBEIRO, Márcia Regina. Melancolia
como herança no filme Cidadão Kane. In: Revista Mal-estar e
Subjetividade, vol. VII, núm. 2, pp. 385-404, Universidade de
Fortaleza. Fortaleza, 2007.
196 Cidadão Kane e Boca de Ouro...
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de
Janeiro: DP&A, 2006.
HESSEN, Johannes. Teoria do Conhecimento. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
LAPLANTINE, F.;TRINDADE, L. O que é imaginário. São
Paulo: Brasiliense, 2003.
MOTTA, Luis. G. A narrativa mediada e a permanência da tradição:
percurso de um anti-herói brasileiro. Estudos de Literatura
Brasileira Contemporânea UNB, 2011. Disponível em:
<h t t p s : / / w ww. s c ie lo. b r / sc ie lo. p h p ? p i d = S 2 31 6-
40182011000200185&script=sci_abstract&tlng=pt acesso
em 03/08/20>. Acesso em 13.09.2020.
PAIVA, Samuel. Representações do marginal na cultura brasileira: A peça e o
filme boca de ouro. XXIII Congresso Brasileiro de Ciência da
Comunicação em Manaus/Cinema e Vídeo, 2000. Disponível em:
< h t t p : / / w w w. p o r t c o m . i n t e r c o m . o r g. b r / p d f s /
31e2d0d04c3853c1008d75d7c1600c75.pdf>. Acesso em:
18.09.2020.
PORTO, M. D; MARTINS, Francisco; TEIXEIRA, Z. D.
Ressentimento e perversão na obra Boca de Ouro, de Nelson
Rodrigues. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental.
Vol 21, n. 4, 2018.
REVISTA FILME CULTURA,Brasília, n.24,1973. Disponível
em: http://revista.cultura.gov.br/item/filme-cultura-n-24/.
Acesso em: 23.09.2020
RIBEIRO, Martha. O confronto entre ator e Personagem em
Pirandello. In: Revista Contexto, ano 17. Espírito Santo:
Universidade Federal do Espírito Santo, 2010, pp. 127-155;
RODRIGUES, Nelson. Teatro completo de Nelson Rodrigues. v. 3
2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2004.
_______. Flor de Obsessão: as 1000 melhores frases de Nelson
Rodrigues. São Paulo: SP. Companhia das Letras, 1997.
SARTRE,J. P. A imaginação. Porto Alegre/RS, L&Pm Pocket, 2010.
Contos de fadas e a Base Nacional Comum
Curricular: reflexões sobre a formação da
criança1
Luana Grohe Canto2
Maria Auxiliadora Fontana Baseio3
1
Texto publicado na Revista Uniítalo, v. 11, n. 1, pp. 65-85, jan. 2021.
2
Mestranda no Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas da
Universidade Santo Amaro – Unisa. Pós-graduada em Arte-educação pela
Faculdade Paulista de Artes. Graduada em Administração e Pedagogia pela
Universidade Santo Amaro. Docente e coordenadora adjunta do curso
Pedagogia Ead da Universidade Santo Amaro.
3
Pós-doutora em Estudos Portugueses e Lusófonos no Instituto de Letras e
Ciências Humanas da Universidade do Minho, Braga, Portugal; Doutora em
Letras – Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa - pela
Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil; Professora do Mestrado
Interdisciplinar em Ciências Humanas – UNISA-SP, Brasil e da Faculdade
Rudolf Steiner – SP, Brasil.
4
A Base Nacional Comum Curricular, definida na lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/1996), é um documento oficial
que norteia os currículos e propostas pedagógicas dos sistemas e rede ensino
do Brasil. O documento correspondente às etapas educação infantil e ensino
fundamental foi homologado em 2017 e passou a sem implementado em 2018.
198 Contos de fadas e a Base Nacional Comum Curricular...
5
Segundo a obra aristotélica Ética a Nicômaco, ética é a arte de o indivíduo
saber viver na dimensão social, agregando valores e respeitando o próximo
(1991).
206 Contos de fadas e a Base Nacional Comum Curricular...
psíquicas básicas humanas, que estão presentes em pessoas
de qualquer parte do mundo e em qualquer tempo. Para ela:
“É uma linguagem que todos entendem”.
Entretanto, é importante salientar que a literatura
oferece essa possibilidade de reflexão, aprendizagem e de
vivência dessa fantasia, porém, para que os sonhos se
concretizem na vida real, é necessário ter atitudes e
comportamentos que façam acontecer. Com Nelly Novaes
Coelho, reiteramos a seguinte afirmação:
É simplesmente fascinante o caminhar em meio
a essa floresta de arquétipos que são os contos de
fadas e descobrir os mil e um significados do rei,
de heróis, princesas, sapos e rãs encantados,
cabelos, anéis, madrastas, ilhas, gigantes e anões,
fadas, bruxas, rainhas estéreis, concepções mágicas
etc. Mas não podemos esquecer que na vida real
não existem fadas nem madrinhas que venham
realizar por magia aquilo que não temos vontade
de fazer (COELHO, 2003, p. 118).
Ou seja, a literatura promove, por meio do imaginário,
a formação de consciência de mundo e funciona como uma
inspiração para compreender a experiência humana, mas é
de suma importância que o indivíduo, ao vivenciá-lo,
desenvolva atitudes na vida pessoal e social.
Desse modo, os contos de fadas propiciam à criança
experiências importantes por meio da linguagem simbólica
engendrada nas teias do imaginário. Além de proporcionar
uma ampliação do repertório de conhecimentos, oportuniza
sua formação para a vida individual e em sociedade.
Referências bibliográficas
1
Mestre pela Unisa – Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas.
Licenciada em Letras pela Faculdade de Filosofia e Letras de Moema;
Licenciada em Psicologia pelas Faculdades Metropolitanas Unidas;
Formação em Psicanálise nos Institutos associados à Escola Brasileira
de Psicanálise-Seção São Paulo-EBP-SP.
214 A constituição do eu no imaginário...
forma de energia para permitir a comunicação entre o corpo
e a mente da criança na tentativa de resgate daquele traço.
De acordo com Lacan, a formação do eu refere-se a
uma função que se inscreve numa aventura original
identificatória, na medida em que a criança consegue
estabelecer o domínio antecipado da imagem do seu próprio
corpo, a partir da visão que ela tem da forma total do corpo
do seu semelhante.
Entre os seis e dezoito meses de vida, embora imatura
neurologicamente, a criança já demonstra interesse por sua
própria imagem no espelho. Neste início de vida e, em virtude
da imaturidade neurológica que ela apresenta, a imagem que
o infans vê é a dele,sem dúvida, mas ao mesmo tempo, é a
imagem de um outro que ele enxerga.
Ocorre, nessa fase de desenvolvimento, uma alienação
imaginária primordial, na qual se observa, por meio da visão
da sua imagem projetada no espelho, uma expressão de júbilo
reveladora de uma guinada no desenvolvimento do seu
psiquismo. Trata-se de um determinado momento em que a
criança faz da sua imagem um exercício triunfante pela
demonstração da apreensão antecipada da fantasia de domínio
do seu próprio corpo.
A partir daquela experiência, o sujeito estará para
sempre marcado por uma falta como registro de sua
identidade, a qual se evidenciará a cada vez que ele se deparar
com a imagem de completude de um outro semelhante.
A alienação seguida do júbilo, experienciados pela
criança frente à primeira visão de completude da sua imagem,
resultarão na percepção de uma falta equivalente a uma perda
de objeto, sendo que esta perda será responsável pelo
nascimento da causa do desejo do sujeito. Desde então, a cada
vez que a criança se deparar com a visão de completude da
sua imagem ou da imagem de um outro, ocorrerá a repetição
da percepção, anterior e primeira, de uma falta que poderá
ser vivenciada como desarvoramento e, equiparada à angústia
do nascimento, apontada por Lacan como o primeiro dos
fenômenos afetivos (LACAN, 1987, p. 32).
Na sua última clínica, Lacan chamará àquele ponto
de angústia como encontro com o real, equivalente a um
Arte, Cultura e Imaginário 215
determinado vazio, entendido como um lugar de ausência
absoluta de significação.
Embora sejam muito próximos os pontos elucidativos
do processo de formação do eu entre Freud e Lacan, no que
se refere à semelhante condição de percepção de totalidade
da imagem, o que vem diferenciar a abordagem entre ambos
diz respeito ao fato de Freud considerar a origem do desejo
como a falta da satisfação de completude da criança, enquanto
Lacan leva ainda em conta a falta que surge da ordem do
vazio de uma absoluta falta de referência frente a uma
irremediável perda de objeto.
Durante o processo da formação do eu, a criança
apresenta um interesse lúdico por sua imagem especular e
esse fato vem destacar a visão diversa que a Psicologia e a
Psicanálise têm sobre o assunto. Se de um lado, a Psicologia
enquadra o homem na psicologia animal ou comparada, que
aposta na existência de comportamentos adaptativos para
remover a percepção de desconforto nessa fase da vida, a
psicanálise, ao contrário, vem demonstrar que aquele interesse
singular do indivíduo, pela imagem do outro semelhante vem
revelar um comportamento totalmente inadaptável do lactante
humano, explicado pela situação constitutiva de desamparo,
desde o seu nascimento.
De acordo com Sigmund Freud, o processo da
formação do eu corresponde à Bejahung (apud LACAN, 2009,
p. 81) equivalente ao sim da marca identificatória individual e
específica do sujeito, propiciadora do surgimento do registro
simbólico, como condição necessária para a permissão do
acesso às suas identificações.
O mundo da criança, segundo Melanie Klein (apud
LACAN, 2009, p. 112), produz-se a partir do sim
correspondente ao continente que é o corpo da mãe e ao
conteúdo desse corpo. Nesse sentido, a criança fantasia que
os primeiros objetos com os quais ela se relaciona são
perigosos para ela, sendo que o estilo dessa incorporação é o
da destruição. Assim é que, durante o processo inicial da vida,
a criança acentuará a percepção de exterioridade dos objetos
leite e fezes, ao mesmo tempo em que os rejeitará como
objetos maus e perigosos. Esses objetos serão isolados do
216 A constituição do eu no imaginário...
primeiro continente universal, que é a imagem fantasiada do
corpo da mãe, império total da primeira realidade infantil.
Freud denomina por narcisismo primário (apud
LACAN, 2009) esse acontecimento psíquico que se vincula
ao registro imaginário, o qual reenvia o sujeito às suas
identificações formadoras. Essa experiência que se estabelece
imaginariamente propicia a relação do eu do sujeito ao outro,
porém, como potencial desencadeador do instinto de
destruição ou de agressividade. Esse fenômeno é explicado
na medida em que o sujeito projeta o seu sadismo para fora e
vê retornar para si as suas próprias projeções, introjeções e
expulsões.
No prosseguir da fundamentação freudiana a respeito
do desenvolvimento do eu, Lacan retoma o jogo do fort da
(apud LACAN, 2009), que traduzido do alemão por lá e aqui,
vem ilustrar a experiência na qual a criança inicia o seu
processo de separação e no qual pronuncia, pela primeira vez,
a palavra mãe.
Este jogo se refere à observação feita por Sigmund
Freud a uma criança que puxa, de forma recorrente, em sua
direção, ou seja, de volta para si, um carretel que ela mesma
havia jogado para longe de si mesma. Nota-se, entretanto,
que, quando o carretel se aproxima dela, ela o repulsa de forma
a rechaçá-lo e anulá-lo. É, portanto, nesse jogo de presença e
ausência do carretel que se evidenciará a deliberação do
afastamento da anterior presença da mãe, pela criança, cuja
invocação irá marcar a sua separação dessa mãe, bem como a
sua entrada como ser da fala no mundo da linguagem.
Antes da linguagem, o desejo só existe no plano da
relação imaginária especular, projetado e alienado no outro
como suporte do desejo do sujeito. Essa função alienante do
eu equivale à alienação primordial na qual se engendra a mais
radical agressividade acompanhada pelo desejo de
desaparecimento desse outro. Todavia, essa agressividade, em
relação ao seu semelhante, mantém-se com a aquisição da
linguagem propiciada por sua entrada no mundo simbólico,
por lhe parecer o outro saber mais dele do que ele próprio.
Será a entrada da criança no mundo da linguagem,
como ponto de junção entre a natureza e a cultura, que
permitirá ao sujeito sair do nó de servidão imaginária e passar
Arte, Cultura e Imaginário 217
para o nível do amor. Trata-se de um momento da sua história
no qual o sujeito, fazendo uso do seu mundo de fantasia, terá
instrumentos para estabelecer e formular as suas identificações
formadoras, as quais, numa medida ilusória, serão valorizadas
pelo real entendido aqui como realidade.
A primeira manifestação da linguagem na criança
ocorre aos 18 meses, momento em que o desejo se humaniza.
Na medida em que o símbolo permite a inversão exemplificada
pelo fort da, em que a coisa existente e presente é anulada,
abre-se o caminho para a negação, que é correlata à
constituição do discurso do sujeito. Originalmente, estabelece-
se, de um lado, o masoquismo primordial, que é a afirmação
do sim, equivalente à presença da mãe e, de outro, a primeira
negação ou expulsão, ambos originários da coisa que é a mãe.
De acordo com Freud, o eu é definido como uma
evolução instintiva formada pela composição de pulsões
parciais, a partir da sua admissão na consciência. Estas teriam
sido compostas por uma sucessão de identificações feitas pelo
sujeito em relação aos seus objetos amados. Na obra
Traumdeutung (apud LACAN, 2009), o autor inspira-se na
Geologia para a criação do esquema de camadas inconscientes,
que ele denomina por S1, S2, e, etc., a fim de explicar o
desenvolvimento do processo do inconsciente. Trata-se de
uma correlação estabelecida entre imagens e lembranças cujos
traços ficaram recalcados, ou esquecidos no psiquismo, em
nível tanto de camadas mais recentes, quanto de camadas
anteriores.
Referindo-se ao registro do inconsciente na situação
analítica, analista- paciente, Freud faz uma analogia entre o
processo analítico e o descascar de uma cebola, que equivaleria
ao acesso que o sujeito teria, por meio de camadas, às suas
sucessivas identificações, que, embora registradas, não teriam
ficado acessíveis à memória.
O sentido pleno do termo imagem em análise refere-
se à fundamentação da relação imaginária do eu em relação
ao seu processo de formação. O sujeito carregará a marca
desse desenvolvimento por toda a sua vida na medida em
que estará submetido ao fato de só se ver e se conceber como
um outro que não ele mesmo, ou seja, ele só terá meios de se
perceber de forma realizada e total a partir da miragem fora
218 A constituição do eu no imaginário...
de si, de onde se desenvolverá toda a sua vida de fantasia por
meio das suas identificações.
O verdadeiro eu da criança corresponde ao seu eu
ideal, que equivale ao amor de que ela gozou no início da sua
vida e que está relacionado para onde o seu primeiro amor se
dirigiu. O ideal do eu, por sua vez, equivale a uma
transformação daquela primeira forma de amar, por meio do
deslocamento da libido, entendida como energia envolvida
na sua expressão. Trata-se de uma nova forma de amor por
meio da qual a criança procura recuperar, a qualquer preço, a
sua perfeição narcisista do primeiro amor da infância, ao qual
ela não quer renunciar.
No percurso da sua vida, então, a cada vez que o
sujeito, imaginariamente, se aperceber cativado por um dos
seus semelhantes, tenderá vir à tona o seu eu ideal,
acompanhado do desejo e, nesse engodo da identificação
espacial, surgirão suas fantasias que, originárias de
identificações primárias, se sucederão desde a imagem da perda
inicial de objeto até a forma da completude imaginária do seu
corpo.
O declínio da experiência fundante da formação do
eu, entre os seis e dezoito meses, é brusco e as representações
do período anterior, em algum momento, desaparecem,
produzindo-se a introjeção ou esquecimento das identificações
do indivíduo, como consequência do declínio do complexo
de Édipo, relativo à separação da figura materna e à aquisição
da lei pela função pai.
As identificações são elementos formadores da
fantasia e, responsáveis pelo processo no qual o simbolismo
se liga ao sentimento. Essa ocorrência imaginária, também
chamada de narcisismo secundário, ou de segundo narcisismo,
é correlata à relação que o sujeito estabelece com o mundo
em geral. Trata-se da constituição das identificações que o
sujeito produziu durante o processo de reflexão da sua imagem
no espelho as quais, em algum momento do seu
desenvolvimento, foram afastadas da consciência.
Nessa experiência de identificação, na qual os traços
da relação imaginária e libidinal do sujeito se veem
representados, o sujeito passa a se conceber como o ideal do
Arte, Cultura e Imaginário 219
seu eu, estando, assim, criada a condição para o surgimento
daquele esquecimento estrutural ou recalque.
É esperado, pois, que ocorra o afastamento do
narcisismo primário ou eu ideal, para que tenha lugar essa
outra forma de ideal, que se refere à realização do eu do sujeito
no plano imaginário, cuja satisfação vincula-se à memória,
lembrança ou experiência evocada do passado.
Trata-se de um processo que resulta na formação do
supereu como uma instância que, engendrando a ordem, a
regra ou a lei, refere-se à internalização das identificações, as
quais, em forma de representações exteriores ao sujeito,
transformam aquilo que estava destacado dele em algo
circunscrito a ele próprio.
No caso de o sujeito não ter vivenciado a experiência
primária de identificação dual, o outro da relação tenderá a
não existir e ele ficará, então, refém da sua própria imaginação.
Nesta eventualidade, o sujeito passa a existir apenas como
depositário das identificações imaginárias desprovidas do
reconhecimento do outro. Como resultado dessa ocorrência,
ele será forçado a se submeter, à sua revelia, às irrupções
imaginárias desordenadas que, a qualquer momento, poderão
brotar na sua consciência.
Poderá ocorrer, também, de o ideal do eu situar o
sujeito no seu eu ideal, localizado no nível da captação
narcísica. O momento do surgimento dessa fusão trará a
desregulação do aparelho psíquico e não se entenderá mais
nada. Trata-se de uma situação de origem especular e
imaginária em que se está apaixonado e louco e na qual se
passa a amar o seu próprio eu no outro. Surge a repetição da
experiência do passado no que se refere às identificações
imaginárias de investimento libidinal do eu frente à imagem
de um outro.
Nas vertentes da linguagem e da palavra, a formação
do ideal do eu equivale, portanto, à constituição do registro
simbólico, que se refere a uma segunda forma de ideal imposta
à criança pelo lado externo de sua existência.
Linguagem e fala, porém, não são a mesma coisa. O
sujeito já nasce inserido na linguagem, mas pode não falar e,
220 A constituição do eu no imaginário...
portanto, não responder, fato que poderá ocorrer se a
linguagem não atingiu o sistema imaginário do sujeito.
As primeiras palavras da criança revelam o controle
motor que se traduz na aquisição da linguagem. Trata-se da
autonomia da função simbólica na realização humana.
De início há uma linguagem já toda formada de que
nos servimos e os seus primeiros fragmentos tocam a criança
em forma de advérbios como “ talvez”, “ainda não”, antes da
palavra substantiva.
Anteriormente à dimensão da palavra, não há nem
falso nem verdadeiro. Tudo está aí no mundo, porém, é com
o nascimento da palavra que surge a dimensão da verdade e
da mentira, sendo a sua constituição de ordem, essencialmente,
ambígua tanto do lado semântico, quanto subjetivo.
A situação do sujeito é caracterizada pelo lugar que
ele ocupa no mundo simbólico ou no mundo da linguagem.
Toda palavra tem função criadora e envolve muitos sentidos,
sustentando muitas funções e, tendo por trás de si, oculto no
discurso, aquilo que o sujeito quer dizer, sendo que, por trás
do querer dizer, haverá sempre e, ainda, outro querer dizer.
A palavra faz surgir a coisa e é um conceito que, pelo
fato de substituir a coisa, estará sempre onde a coisa não está.
Os conceitos não surgem da experiência humana e sim das
primeiras denominações a partir das próprias palavras, como
instrumentos para delinear coisas.
Diferentemente da definição de linguagem e conceito,
a razão se refere a um conjunto de determinações existentes
no domínio do sentido e está associada ao pensamento.
O sentido de pensar refere-se à faculdade que o ser
humano tem em substituir a coisa pela palavra, sendo que o
símbolo ou palavra só é válido quando ele se organiza num
mundo de símbolos a partir do imaginário.
A esse respeito, Jacques Lacan exemplifica o ato de
pensar pela palavra elefante (LACAN, 2009), sugerindo que
se reflita sobre uma série de compreensões contidas na história
dessa palavra, desde a travessia de um rio por exemplo. Pode-
se, portanto, obter a presença do elefante, não havendo a
necessidade de que ele esteja no local. De forma análoga, o
autor aponta para o fato de o sol ser representado por um
círculo, ao se fazer alusão a ele.
Arte, Cultura e Imaginário 221
Será, pois, pela comunicação simbólica que a criança
aprenderá a reconhecer o seu desejo que ela vê invertido no
outro. Há, portanto, um primeiro jogo de báscula, em que o
sujeito troca o seu eu pelo desejo que ele vê no outro.
Estabelece-se, a partir deste ponto, marca da integração do
sujeito à forma do seu eu, em que o desejo do outro é o
desejo do sujeito, mediado pela linguagem.
A psicanálise considera três dimensões do ser:
imaginário, simbólico e real. Entre o imaginário e o simbólico
está o amor; entre o imaginário e o real está o ódio; entre o
real e o simbólico está a ignorância.
O amor distingue-se do desejo. Só se fala em amor
quando a relação simbólica se faz presente, porque sem a
palavra haverá, somente, fascinação imaginária e não o amor.
Pode-se, entretanto, falar em amor como paixão imaginária
quando ele se difere do amor em si. Este não surge para
qualquer parceiro ou qualquer imagem, pelo fato de ser muito
específico.
Relativamente ao processo analítico, ele se desenvolve
pela palavra como instrumento de expressão utilizado pelo
indivíduo, a fim de comunicar ao analista a sua queixa. Este,
por sua vez, solicita ao analisando que fale tudo o que lhe
vem à cabeça sob a forma da associação livre, o que equivale
dizer, sem autocrítica.
A presença da linguagem como o terceiro elemento
constitutivo e estrutural do progresso analítico estará presente
como instrumento para tratar da reconstituição da história
do sujeito, na qual cada caso é tomado na sua singularidade
até os limites sensíveis de cada um.
O sujeito que se engaja em um determinado processo
analítico, na procura da verdade, deve encontrar um analista
que o conduza às vias do acesso àquele saber por meio de
uma operação dialética que leve em conta o engano, sempre
presente naquela procura.
Na medida em que o analista ouve a confissão da
história do sujeito, na primeira pessoa, por um tempo
suficientemente longo, será necessário que o sujeito, ao mesmo
tempo, também a ouça por meio de tudo aquilo que ecoa do
seu próprio discurso.
222 A constituição do eu no imaginário...
No desenrolar do tratamento psicanalítico, acontece
uma específica relação entre analista e analisando, na qual a
função dinâmica do eu estará presente no diálogo que se
estabelece. Na medida em que o sujeito trabalha na
reconstrução da sua história, por meio do relato das suas
sucessivas identificações do passado, o sistema do eu torna
compreensível o comportamento inter-humano que se
instalou, por meio das defesas, negações, inibições, fantasias
fundamentais e barragens que orientam e dirigem a fala do
sujeito em análise.
Durante o percurso analítico, a história do sujeito é
vivida no passado e historiada no presente, sendo que aquilo
que o sujeito revive e rememora do seu passado, em relação
aos eventos formadores da sua existência, não é tão importante
quanto o que ele reconstrói. Trata-se de um processo em que
opera a junção do simbólico e do imaginário, na qual importa
mais reescrever a história do que relembrá-la. Esta deve ser
autenticada pelo sujeito na medida em que as suas lembranças
forem revividas com o auxílio dos vazios que se apresentam
durante as suas associações.
O estabelecimento da transferência é condição
necessária para que o sujeito encontre na palavra uma abertura
necessária para a confissão das suas questões na busca da
verdade, por meio de uma relação que escolheu estabelecer
com determinado analista que leve em conta a dimensão da
ignorância relativa ao seu não saber.
Conceituada por Lacan como um dos quatro conceitos
fundamentais em psicanálise (MILLER, 1987, p. 56), a
transferência localiza-se no registro do imaginário do sujeito
e se estabelece em uma análise como o ponto de identificação
do sujeito ao outro. Ela existe como função presente em
toda a análise e vincula-se, em particular, ao ponto de
identificação do sujeito ao outro do analista. Sem a
transferência, a análise se torna inviável porque é ela que
estabelecerá, nessa relação díade, uma identificação em nível
de imagem narcísica que provocará no sujeito uma falta
estrutural e o consequente surgimento do seu desejo. Esta
experiência imaginária, por sua vez, possibilitará a ocorrência
da fala do sujeito, que no afã de preencher aquela insustentável
falta, deverá promover o desenrolar do processo analítico.
Arte, Cultura e Imaginário 223
O momento fecundo da análise desponta com o
surgimento de um ponto de angústia, definido como resultado
da repetição da percepção de uma sobra da completude da
imagem primeva que o sujeito vivenciou, denominado por
Freud como recalque e, por Lacan, como objeto perdido por
ele definido como objeto causa de desejo.
O curso de uma análise será palco da revivescência de
experiências de espelhamento duais e imaginárias do passado,
provocadas por antigas confrontações da imagem do sujeito
em relação a um outro semelhante. Esse trabalho analítico
de tentativa de compleição imaginária pela via da palavra
refere-se à busca da reintegração do desejo do sujeito e implica
a ocorrência de relatos que estiveram presentes nas suas
diferentes fases de identificações imaginárias, por meio da
encarnação do simbólico no vivido imaginário. Frente às
manifestações do sujeito, ao longo do monólogo das suas
palavras, na tentativa de satisfazer seu inexprimível desejo,
situa-se o analista em cuja posição de escuta poderá ou não
intervir, acrescentando algo naquela fala.
No interior do processo analítico, são desfeitas as
amarras da palavra em face da projeção máxima do narcisismo
do sujeito em que ele enxerga no outro do analista uma
completude à qual jamais terá acesso. Faz parte da técnica
psicanalítica, portanto, que o analista promova cortes naquela
percepção de completude, a fim de que o analisando tenha
chances de se reconhecer nas etapas do seu desejo, por meio
dos objetos que participaram da sua encarnação.
Graças a essa experiência, instalada na dimensão da
palavra, surge a revelação da relação imaginária concernente
a certos pontos cruciais do encontro do analisando com o
analista. O discurso, desligado das convenções que lhe são
próprias, invade o sujeito numa equivocação profunda.
Buracos e pontos esquecidos que não foram integrados à sua
história vêm à tona e, em vão, clamam por explicação ou
solução.
A fala do analisando corresponde ao discurso do
inconsciente, o qual representa o discurso do outro
semelhante, formado por palavras em que não importa a
224 A constituição do eu no imaginário...
biunivocidade do signo e no qual toda significação reenvia a
uma outra significação.
Existe a possibilidade de o analisando colocar o
analista na posição de supereu. Trata-se da censura, que é
uma instância que divide o mundo simbólico do sujeito numa
parte acessível e reconhecida e numa parte inacessível e
interditada. Quanto mais o sujeito reprime seus instintos, ou
quanto mais a sua conduta é moral, mais o supereu exagera
na sua pressão, tornando-se cada vez mais severo e exigente.
A análise é transformadora quando ocorrem fatos na
situação transferencial com o analista que evocam situações
antigas que reportam ao passado do paciente. Este fato se
explica porque surge uma modulação idêntica de tempo
quando a palavra antiga e a palavra atual são colocadas no
mesmo parêntese de tempo. Assim ocorrendo, a palavra do
analista adquire o mesmo valor que a palavra antiga,
ressaltando-se, neste contexto, o valor da palavra em análise.
A resistência, de acordo com Sigmund Freud, é, por
sua vez, um conceito que atravessa todo o processo analítico
e que surge no momento em que o núcleo patógeno repele o
discurso e que a revelação da palavra ou o domínio da sua
verdade não se diz. Trata-se da face da revelação do
inconsciente quando este se expressa por deformação e
silêncio. A resistência pode também ser entendida como tudo
o que destrói e interrompe a continuidade do tratamento.
Freud (apud LACAN, 2009) explica que há um certo
desejo recalcado pelo sujeito o qual não possui tradução direta
e possível pelo fato de haver sempre, entre os elementos do
recalque, algo que participa da ordem do inefável. O desejo
inconsciente é impossível de se exprimir, porém, encontra
forma de se expressar entre os elementos da linguagem,
desinvestidos de desejo, como por exemplo, fonemas
dispersos, restos verbais do dia e pelo alfabeto em geral.
Neste mesmo contexto, o autor faz analogia do
processo de uma análise com imagens verbais vagando ao
longo dos condutores nervosos, permitindo que, dessa forma,
se possa pensar na materialização da palavra. Ele, também,
faz alusão à metáfora do Palimpsesto, termo utilizado na Idade
Média para traduzir a ideia da página branca como documento
primitivo no qual havia inscrições que incidiam sobre outras,
Arte, Cultura e Imaginário 225
as quais eram raspadas várias e consecutivas vezes, mas que
deixavam sempre algo de suas marcas.
De acordo com a descoberta freudiana, a originalidade
e a essência do tratamento analítico é a de o sujeito ter
percebido a relação problemática de si próprio em conjunção
com o sentido dos seus sintomas, não cabendo ao analista,
em momento algum do processo analítico, promover a
revelação desse sentido.
O inconsciente do eu do sujeito é feito daquilo que o
seu desenvolvimento simbólico não assimilou e a cujo acesso
a sua memória está fechada. Trata-se de um material que é
desconhecido da imagem estruturante do sujeito e que deverá
por ele ser simbolizado pela via da fala.
Há emoções no interior do paciente que, ao serem
encarnadas e projetadas, ou seja, ao serem simbolizadas, fogem
daquelas emoções iniciais. A emoção pode se apresentar
invertida, deslocada ou inibida pelo fato de se manter presa
na ordem simbólica, a partir da qual os registros do imaginário
e do real se ordenam.
O aspecto afetivo não é uma densidade especial que
falta à elaboração intelectual na fala do paciente. Em situação
de análise, não é para se dar importância específica ao lado
afetivo que acompanha a palavra. Consta da regra analítica
que o conteúdo do discurso do paciente é de importância
relativa e, portanto, não será o discurso dramatizado que irá
trazer maior ou menor consistência a ele.
Diferentemente da noção da constituição do eu do
sujeito, Freud esclarece que a existência do ego tem o
desconhecimento como função fundamental. Se por um lado
ele se caracteriza por sua função vazia, por outro, ele diz tratar-
se daquela função que estabelece contato com o mundo da
percepção.
Para ter minar e, como for ma ilustrativa da
inconsistência do significante na sua vã tentativa de capturar
o significado das palavras e das coisas no imaginário do sujeito,
cito Lacan (2009) ao se utilizar da óptica para a demonstração
de que objeto imaginário e objeto real e, imagem real e imagem
virtual se confundem.
Inicialmente, o autor faz uma analogia entre a
anterioridade da existência do ser da criança em relação ao
226 A constituição do eu no imaginário...
nascimento do seu eu, pela apresentação de um buquê de
flores real. Ele demonstra que a criança, assim como o buquê,
simplesmente, estão lá, submetidos à própria sorte, tratando-
se de uma realidade de nível caótico, que não delimita nada,
nem objetos, nem desejos, nem instintos.
Lacan prossegue, com o experimento do buquê
invertido, citado no Seminário 1 (2009), referindo-se ao
nascimento do eu primitivo, que é feito de forma indireta,
por etapas, da mesma forma como o relato do experimento
do buquê invertido, que apresenta a correlação do processo,
também indireto, da visão humana como análogo à experiência
que ocorre na retina, membrana do olho que capta, de forma
invertida, sinais luminosos de imagens, tratando-se, em ambos
os casos, da formação de uma imagem real.
A fim de explicar essa correlação, ele coloca um vaso
com flores diante de um espelho côncavo, que produz, da
mesma forma como no olho, uma imagem real e invertida
desse objeto (LACAN, 2009, p. 107). Para que isso ocorra,
ele demonstra que, a cada raio luminoso que emana daquele
objeto real colocado no mesmo plano do centro da superfície
esférica, corresponde simetricamente, por convergência dos
raios refletidos sobre aquela superfície, no mesmo plano, um
outro ponto luminoso e, portanto, uma outra imagem real e
invertida daquele objeto.
Porém, quando a visão da imagem é produzida a partir
dos raios de luz que vêm bater na retina, é uma imagem virtual
que o olho enxerga fora. Quando há a projeção da imagem
em um espelho plano, o resultado da projeção será também o
de uma imagem virtual, ou seja, a partir de um objeto real
colocado fora do espelho, forma-se uma imagem virtual
dentro, o que significa que se vê uma imagem onde ela não
está.
Por meio da óptica, ele vem comprovar, então, a
impossibilidade de o sujeito enxergar e representar, de forma
direta, o objeto e a imagem que a ele corresponde.
No processo de uma análise, a não correspondência
direta entre objeto e imagem tem destacada consequência na
comprovação da ambiguidade da palavra em relação à imagem
que se faz representar por ela. A utilização da palavra, como
Arte, Cultura e Imaginário 227
representante da percepção humana vem, portanto, destacar
o nível sempre presente de falseabilidade na tentativa de se
apreender o objeto pela palavra, evidenciando-se, assim, a
estreita relação, embora de incompletude, existente entre o
mundo real e o mundo imaginário, na economia psíquica.
A questão que, então, se coloca é a de qual o lugar da
verdade na fala do sujeito?
Referências bibliográficas
1
“Be Right Back”, 2013. Roteiro: Charlie Brooker. Direção: Owen Harris.
2a. Temporada, ep. 1. 44 min. Disponível em: NETFLIX. Acesso em: 08
abr. 2019.
2
Mestre em Ciências Humanas pela Universidade de Santo Amaro
(UNISA/SP), pós-graduado em Gestão de Vendas pela Universidade
Paulista (UNIP/SP).
230 Morte, simulacros e luto...
A série inglesa Black Mirror é, em si, uma crítica mordaz
à sociedade do espetáculo. Embora faça parte da cultura de
massa, incluída no espetáculo midiático, a série televisiva,
produzida, atualmente, pelo serviço de streaming Netflix, não
se propõe apenas a divertir ou a entreter; seu conteúdo,
linguagem e estética falam com o corpo sem órgãos ao qual
se refere Deleuze, podendo ser, em última instância,
estimulante para fluxos desconexos ou, em uma análise
superficial, exemplo de possíveis fluxos, um espelho negro
onde possíveis Narcisos se reconhecem.
Ao assistir Black Mirror, entendemos estar diante de
uma obra pouco convencional, que se propõe a ir além do
entretenimento e contém, entre suas imagens, mensagens
poderosas que ultrapassam as luzes da televisão e dos clichês
presentes na maioria dos produtos ofertados pela chamada
indústria cultural.
Nossa análise de “Be Right Back”, primeiro episódio
da temporada 2, contemplará discussões sobre o espetáculo,
a morte e o luto. Dividimos o episódio nos chamados estágios
do luto, sendo: I) Negação e isolamento: Falaremos sobre
a morte e seu impacto sobre os que ficam; como a personagem
que morre era compulsiva por internet, também falaremos
sobre as redes sociais como espetáculo, fenômeno chamado
pelo sul-coreano Byung-Chull Han de Sociedade Positiva, na
qual as pessoas apenas têm espaço para assuntos e imagens
felizes e positivas; II) Raiva: Neste ponto, analisaremos,
guiados pelo roteiro, o olhar filosófico sobre a morte e a
aceitação da morte dos que amamos, bem como a
possibilidade do não-ser; III) Barganha e Depressão:
Simulacros da realidade são tratados nesta parte de nosso
trabalho. Faremos uma relação entre o filme Frankestein, de
James Whale (1931), com o clone da personagem morta e a
ideia de vida criada artificialmente, como simulação; IV)
Aceitação: Neste ponto, escreveremos sobre o despertar da
esposa que percebe no clone do marido, apenas uma cópia
do que este fora, dando a si mesma a oportunidade de
caminhar em frente. Falaremos, também, sobre as metáforas
visuais utilizadas pelo diretor do episódio, tais como subir e
descer escadas e a figura do sótão da casa, como guardiã de
memórias daqueles que morreram.
Arte, Cultura e Imaginário 231
I. Negação e isolamento3
3
Segundo Kubler-Ross (apud ONARI, s/d), os estágios do luto são: 1.
Negação e isolamento; 2. Raiva; 3. Barganha; 4. Depressão; 5.
Aceitação.Para fluidez do texto e coerência com a narrativa/descrição
do roteiro, optamos em analisar os itens 3 e 4 como um só.
4
Como veremos, estes tecidos terão importância à frente, na história.
5
Conheço seus olhos num sol da manhã/ Sinto que me toca numa pesada chuva/ E
no momento que você vaga pra longe de mim/ Eu quero sentir você em meus braços
novamente (tradução nossa).
232 Morte, simulacros e luto...
Ash tem costume de navegar pela internet; fato que,
desde a primeira cena com a esposa, percebemos ser um
incômodo para ela.
Se em Platão as sombras estavam dentro da caverna e
iludiam prisioneiros, temos, a partir do advento da internet e
sua compatibilidade com aparelhos móveis como o celular,
sombras produzidas em telas brilhantes que enfeitiçam pessoas
cotidianamente. Imagens postadas de formas espetacularizadas
mostram pessoas perfeitas e sorridentes pela internet. Mais
que postar uma foto da Torre Eiffel, é necessário postar uma
selfie6 diante da torre simbólica de Paris.
6
Neologismo a partir do termo inglês self-portrait, que significa autorretrato.
Selfie é uma fotografia tirada de si mesmo, a partir de câmeras incorporadas
em aparelhos celulares.
Arte, Cultura e Imaginário 233
II. Raiva
7
Significativo o fato da mãe dirigir o carro pela primeira vez e, em
seguida, guardar no sótão as fotos do filho morto. Mais que guiar
um automóvel, a mãe sente necessidade de guiar a própria vida e
caminhar para frente.
Arte, Cultura e Imaginário 237
não significa nada para nós proporciona a fruição
da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo
infinito e eliminando o desejo da imortalidade.
Não existe nada de terrível na vida para quem
está perfeitamente convencido de que não há nada
de terrível em deixar de viver. É tolo, portanto,
quem diz ter medo da morte, não porque a
chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o
aflige a própria espera: aquilo que não nos
perturba quando presente não deveria afligir-nos
enquanto está sendo esperado.
Então, o mais terrível de todos os males, a morte,
não significa nada para nós, justamente porque,
quando estamos vivos, é a morte que não está
presente; ao contrário, quando a morte está
presente, nós é que já não estamos. A morte,
portanto, não é nada, nem para os vivos, nem para
os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao
passo que estes não estão mais aqui. E, no entanto,
a maioria das pessoas ora foge da morte, ora a
deseja como descanso dos males da vida.
(EPICURO, 2002, pp. 27-29).
A morte de Ash é, forçosamente, o começo de uma
nova vida para Martha. Como ponto inexorável da existência
humana, pode ser vista como fim para os que vão e mudança
para os que ficam. A filosofia tem, na morte, uma de suas
questões centrais, desde os filósofos da Antiguidade até os
contemporâneos.
Em O Sétimo Selo, filme de 1957, do diretor sueco
Ingmar Bergman, um cavaleiro medieval volta das Cruzadas
e encontra seu país devastado pela peste. Triste, chamado
Antonius Block, desiludido e angustiado, encontra-se com a
Morte e a desafia para uma partida de xadrez.
– Quem é você?
– Sou a Morte.
– Veio me buscar?
– Eu ando com você há muito tempo.
– Eu sei.
– Está preparado?
238 Morte, simulacros e luto...
– Meu corpo está, mas eu não.
(A Morte abre a capa e se aproxima do Cavaleiro)
– Espere!
– Está bem, mas não posso adiar.
– Você joga xadrez?
– Como sabe?
– Eu já vi nas pinturas.8
– Posso dizer que jogo muito bem.
– Não é mais esperto que eu.9
– Por que quer jogar comigo?
– Isso é problema meu.
– Tudo bem.
– Se eu vencer, viverei. Se for xeque-mate, me
deixará em paz.
(O Sétimo Selo, Ingmar Bergman, 1957).
8
Em cena anterior, Block havia visto uma pintura da morte jogando
xadrez em uma igreja.
9
No filme, a Morte é um homem.
Arte, Cultura e Imaginário 239
BLOCK: Conhecimento.
MORTE: Você quer uma garantia.
BLOCK: Chame do que você quiser.
[...]
BLOCK: Então a vida é um terror sem sentido.
Nenhum homem pode viver com a morte e saber
que tudo é nada.
MORTE: A maioria das pessoas não pensa nem
na morte ou no nada.
BLOCK: Até que eles chegam no final da vida e
veem a escuridão.
MORTE: Ah, esse dia.
BLOCK: Eu percebo. Devemos transformar
nosso medo em um ídolo e chamá-lo de Deus.
MORTE: Você não é fácil.
BLOCK: A Morte me visitou essa manhã.
Estamos jogando xadrez. Esse adiamento me
permite fazer uma tarefa vital.
MORTE: Qual tarefa?
BLOCK: Minha vida inteira tem sido uma procura
sem significado. Digo isso sem amargura ou
autocondenação. Eu sei que é o mesmo para
todos. Mas quero usar meu adiamento para uma
ação significante.
MORTE: Então você joga xadrez com a Morte.
BLOCK: Ele é um jogador habilidoso, mas ainda
não perdi uma peça.
MORTE: Como você conseguirá vencer a Morte?
BLOCK: Com uma combinação de bispos e
cavalos. Irei quebrar seu flanco.
(A MORTE SE MOSTRA A BLOCK)
MORTE: Eu devo me lembrar disso.
BLOCK: Traidor, você me trapaceou! Mas vou
arranjar um jeito.
MORTE: Continuaremos nosso jogo nos
dormitórios.
BLOCK (olhando para a mão direita): Essa é
minha mão. Eu posso movê-la. O sangue está
240 Morte, simulacros e luto...
pulsando em minhas veias. O Sol ainda está em
seu apogeu... E eu, Antonius Block... Estou
jogando xadrez com a morte!
9
Último texto publicado por Deleuze: Revista Philosophie, nº 47, setembro
de 1995, pp. 3-7. Ele também se encontra na coletânea Deux regimes de
fous. Textes et entretiens 1975-1995. Paris: Minuit, 2003, pp. 359-363.
Tradução de Sandro Kobol Fornazari.
242 Morte, simulacros e luto...
imanência como virtualidade sempre no cerne de
um meio (campo ou plano). Há uma grande
diferença entre os virtuais que definem a
imanência do campo transcendental e as formas
possíveis que os atualizam e que o transformam
em algo transcendente (DELEUZE, 2016, p. 181).
11
Hic et nunc, aqui e agora em latim. Expressão muito usada na filosofia
a partir do Existencialismo.
12
Segundo o site Wikipedia, o filme se baseou em uma peça dos anos
1920 atribuída a Peggy Webling.
13
It´s alive! It’s alive!
Arte, Cultura e Imaginário 249
Figura 2 – Cena clássica do filme Frankestein, de 1931, “It’s alive!”
13
Provavelmente os tecidos que Ash, quando vivo, viu em uma reportagem
no seu carro, durante a primeira sequência do episódio e a qual nos
referimos anteriormente.
14
Adiante, abordaremos o simbolismo de descer escadas, ir ao sótão,
enfim, as metáforas de alto em baixo/subir e descer utilizadas pelo diretor
deste episódio.
250 Morte, simulacros e luto...
Martha faz amor com o clone. “Você parece com ele num dia
bom”, diz a fascinada esposa, que comenta sobre a textura da
pele e os poros no clone.
Segundo Baudrillard (1991, p. 9), “dissimular é fingir
não ter o que se tem. Simular é fingir o que não se tem. O
primeiro refere-se a uma presença, o segundo a uma ausência”.
Embora a criatura nunca minta e diga ser o Ash real, ela simula
que é. Suas reações, embora semelhantes às do original, não
são idênticas; afinal, o clone é baseado naquilo que ele fora,
ou ainda, de forma mais aprofundada, nas impressões que ele
deixou pela internet.
Didi-Huberman explora o tema da imagem e o nada:
Se o mundo das semelhanças pode ser dito “vasto
como a noite”, é antes porque nunca se consegue
acabar com uma semelhança: ela envia sempre
para uma outra, ao menos. Mas é também por
um conjunto de razões mais antropológicas (que
constituem sistema ou, melhor, “versões” de um
mesmo fenômeno). De um lado, a semelhança
interroga o vivente e sua genealogia, o desejo e
sua força; nesse sentido, dirá Blanchot, a imagem
“é uma felicidade” inesgotável. “Sim, a imagem é
felicidade, – mas perto dela permanece o nada,
em seu limite ele aparece, e toda a potência da
imagem, tirada do abismo no qual ela se funda,
só pode exprimir-se apelando para ele. A
semelhança questiona-nos, portanto, também
desde a morte: a imago é sempre a imagem daquele
ou daquela que não existe mais. Ora, a própria
morte é inesgotável e interminável para os
viventes (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 31).
Martha tem dificuldades para separar o representado
do que agora o representa, ela está envolvida, emocionalmente,
em um duro processo de luto, que a levou a um estado
melancólico, depressivo. Willian James (apud SPINOLA,
2013, p. 14) diz que “a realidade está onde colocamos nossa
atenção”. Assim, tal afirmação “revela uma confusão entre o
que é real e o que tem significado para nós, ou seja, aquilo
que faz sentido para nós” (SPINOLA, 2013, p. 14).
Arte, Cultura e Imaginário 251
As emoções de Martha a colocam em confusão. Após
fazer amor com o clone de Ash, Martha começa a perceber
detalhes que não a agradam, como por exemplo o fato de ele
passar a noite deitado de olho aberto, uma vez que imagem
que é não precisa dormir.
As emoções passam por gestos que fazemos sem
nos dar conta que vêm de muito longe do tempo.
Esses gestos são como fósseis em movimento.
Eles têm uma história muito longa – e muito
inconsciente. Eles sobrevivem em nós, ainda que
sejamos incapazes de observá-los em nós
mesmos. Darwin sem dúvida tinha razão ao dizer
que as emoções são gestos primitivos. Mas, na
sua ideia de “primitivo”, ele via somente a natureza
(daí a relação estabelecida entre os chimpanzés
que grunhem e as crianças que choram). O sentido
de “primitivo” foi melhor entendido no âmbito
das ciências humanas a partir do momento em
que os etnólogos e os sociólogos falaram das
emoções sobre o ângulo de uma história cultural
(DIDI-HUBERMAN, 2016, p. 32).
Não é suficiente ao clone de Ash ser semelhante ao
original. Martha vai, aos poucos, descobrindo que aquele não
possui tudo o que este tinha. As atitudes, principalmente
aquelas que seriam mais irracionais, são diferentes. Um
exemplo é quando o clone diz não gostar de Bee Gees, que
como vimos anteriormente, era uma banda da qual Ash
gostava.
De todas as próteses que marcam a história do
corpo, o duplo é sem dúvida a mais antiga. Mas o
duplo não é justamente uma prótese: é uma figura
imaginária que, como a alma, a sombra, a imagem
no espelho persegue o sujeito como o seu outro,
que faz com que seja ao mesmo tempo ele próprio
e nunca se pareça consigo, que o persegue como
uma morte sutil e sempre conjurada. Contudo,
nem é assim: quando o duplo se materializa,
quando se torna visível, significa uma morte
iminente (BAUDRILLARD, 1991, p. 123).
252 Morte, simulacros e luto...
IV. Aceitação
Fonte: Netflix
256 Morte, simulacros e luto...
Fruto de uma relação entre o exibicionismo nas redes
sociais por parte de Ash e da dor da perda por parte de Martha,
o clone Ash fora aceito, enfim, por parte da viúva, como uma
representação, não como a essência do que era seu marido.
“Be Right Back” mostra ao espectador um exemplo
de distopia plausível ao usar a tecnologia para falar de temas
humanos, como perda, ausência e morte.
Talvez uma das mais belas e poéticas análises sobre a
morte seja a de Guimarães Rosa, feita em 16 de novembro de
1967, em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras,
ao se referir a João Neves da Fontoura, de quem ele assumiria e
com elas terminamos esta análise de “Be Right Back”:
[...] De repente, morreu: que é quando um homem
vem inteiro pronto de suas próprias profundezas.
Morreu, com modéstia. Se passou para o lado
claro, fora e acima de suave ramerrão e terríveis
balbúrdias. Mas – o que é um pormenor de
ausência. Faz diferença? “Choras os que não
devias chorar. O homem desperto nem pelos
mortos nem pelos vivos se enluta” – Krishna
instrui Arjuna, no Bhágavad Gita. A gente morre
é para provar que viveu. [...]Alegremo-nos,
suspensas ingentes lâmpadas. E: “Sobe a luz sobre
o justo e dá-se ao teso coração alegria!” - desfere
então o salmo. As pessoas não morrem, ficam
encantadas.
Com o encanto do imortal Guimarães Rosa, cientes
de nosso caminhar para o encanto final da vida, findamos
este capítulo.
Referências Bibliográficas
1
Pós-Doutora na área de Literatura Comparada pela Universidade de
São Paulo (USP); Doutora e Mestre em Literatura pela USP; Bacharel e
Licenciada em Letras (USP), Especialista em História da Arte e Cinema.
Docente da Fatec-Carapicuíba e da FAM, em São Paulo. Escritora
premiada e pesquisadora, é também produtora e apresentadora do
programa “Mega Séries”, Rádio Mega Brasil Online.
2
DICK, Philip K. Homem do Castelo Alto. Trad. Fabio Fernandes. São
Paulo: Aleph, 2015.
262 Philip K. Dick e Equipe de Ajustes...
Assim, motivos e temas correntes na obra de Philip
K. Dick já se fazem presentes em O Homem do Castelo Alto e
em outros contos: futuro distópico e/ou alternativo numa
sociedade dominada por governos ditatoriais e manipuladores,
que geram o caos social, a distorção da realidade,
retrofuturismo, confusão mental por meio de paradoxos,
utopia, memória e cibercultura.
Especialmente para a publicação de contos de ficção
científica, Dick valeu-se de pseudônimos, como Richard
Philips e Jack Dowland, para poder publicar seus textos,
considerando que muitas revistas especializadas em Sci-Fi não
permitiam a publicação de mais de um conto do mesmo autor
em um único exemplar.
A biografia de Philip K. Dick é marcada por problemas
derivados de distúrbios psicológicos, como agorafobia,
esquizofrenia e paranoia, que eram, por sua vez, agravados
pelo consumo de drogas. Segundo Carrère (2016), um
episódio ocorrido ainda durante a primeira infância de Dick
foi determinante em sua vida: a morte de Jane, sua irmã gêmea,
de apenas cinco semanas, que faleceu de subnutrição. Naquele
momento de luto, a família decidiu que, quando Philip
morresse, também seria enterrado no Cemitério Riverside,
em Fort Morgan, no Colorado, ao lado da irmã e, para tanto,
construiu uma lápide com os dois nomes lado a lado: Jane e
Philip, deixando incompleta a data de morte do menino.
Quando Philip K. Dick faleceu, em 1982, ele foi de fato
sepultado ao lado da irmã (CARRÈRE, 2016, p. 9). Ao longo
da vida, Dick assumiu a morte da irmã como uma presença/
ausência persistente, o que o levou a abordar, com frequência,
em sua obra, a questão do duplo e do universo alternativo.
3
Disponível em: <http://bit.ly/3pN8s5S>. Acesso em: 22 nov. 2020.
Arte, Cultura e Imaginário 267
7
Disponível em: <https://bit.ly/35Jc0Pe>. Acesso em: 27 nov. 2020.
Arte, Cultura e Imaginário 275
O Chefe do Escriturário é descrito como um Velho,
de olhos azul-claros que exprimiam ternura, rosto enrugado,
cabelos longos e brancos, usava um longo manto. O gabinete
ficava no alto, de onde comandava, além dos Escriturários,
também os Vigilantes e Evocadores. Ao entender a situação,
o Velho determinou que Fletcher fosse levado até ele, pois
era tarde demais para desenergizá-lo. A imagem do Velho
remete à figura criada por Michelangelo Buonarroti (1475-
1564), no afresco da Capela Sistina, em A Criação de Adão:
8
Disponível em: <http://bit.ly/2JUGDJQ>. Acesso em 22 nov. 2020.
Arte, Cultura e Imaginário 277
a discussão faz-se presente na forma ambígua de diálogo
religioso, mas também de ficção científica: seria aquela
realidade paralela apenas uma construção proveniente de
algum governo, corporação ou seria de fato uma experiência
religiosa? No mesmo artigo antes citado, publicado em 1978,
Dick considera que:
[...] hoje vivemos numa sociedade em que
realidades espúrias são fabricadas pela mídia, por
governos, por grandes corporações, por grupos
religiosos, grupos políticos – e o hardware
eletrônico existe para entregar esses
pseudomundos direto na mente do leitor, do
espectador, do ouvinte.[...] (DICK, 1978, tradução
nossa).
Por outro lado, Fletcher comenta: “Vi o tecido da
realidade se rasgar. E vi... por trás. Por baixo. Vi o que realmente
estava lá.” (DICK, 2012, p. 283). Configura-se aqui a ideia de
“rasgar a cortina” da fantasia e da ficção e observar a realidade,
a construção do jogo cênico, em que o Velho de olhos claros
é o diretor de cena e os humanos, os atores. Os homens de
jaleco, o Escriturário e os Evocadores formam a equipe de
ajuste, são os responsáveis pela organização e disposição dos
elementos nesta encenação:
No espetáculo teatral, em geral a equipe é
composta por vários profissionais especializados.
O encenador ou diretor concebe o espetáculo
como um todo (a partir do texto dramático a
ser encenado ou de outra proposta sem uso do
texto), dirige o trabalho dos atores e coordena
todo o grupo. Os atores criam as personagens,
atuam. O cenógrafo cria a cenografia,
acompanha a execução dos cenários pelos
cenotécnicos, pintores ou outros profissionais
(como por exemplo os aderecistas, os que
fazem os efeitos especiais etc.). [...] A cenografia
pode ser considerada uma composição em um
espaço tridimensional – o lugar teatral. Utiliza-
se de elementos básicos, como cor, luz, formas,
277 Philip K. Dick e Equipe de Ajustes...
volumes e linhas. Sendo uma composição, tem
peso, tensões, equilíbrio ou desequilíbrio,
movimento e contrastes (MANTOVANI,
1989, pp. 5-6).
Seria aquela realidade vivida por Fletcher apenas uma
encenação? A realidade paralela observada em decorrência
da falha seria, então, a “vida real”?
Fletcher e Ruth retornam ao local de trabalho de Ed,
e tudo parecia normal. Entretanto, Fletcher percebeu
“mudanças sutis e infindáveis” tanto nas pessoas, como nos
detalhes: tudo tinha sido alterado para coisas semelhantes. A
mesa, que era de carvalho, agora era de mogno, o próprio
chefe de Ed, Nathan Douglas (o Velho Douglas), estava mais
jovem e magro, seus olhos agora eram verdes em vez de pretos.
Fletcher percebeu que havia ali uma nova versão da realidade
anterior e decidiu fugir, tomado pelo terror.
Ao refugiar-se numa cabine telefônica, Fletcher
percebeu que a cabine atravessou o teto do prédio e subiu
para muito além das nuvens. O espaço narrativo da cabine
telefônica constitui uma intertextualidade com relação à figura
do herói Superman, que deixava a vida cotidiana como Clark
Kent de lado sempre que entrava numa cabine,
transformando-se, então, no poderoso herói Superman,
personagem dos quadrinhos criado por Joe Shuster e Jerry
Siegel, e lançado na revista Action Comics, de 1938.
Fletcher e o Velho
9
Disponível em: <https: bit.ly/2JUGDJQ>. Acesso em 22 nov. 2020.
Arte, Cultura e Imaginário 281
certa. E até entendi o que causou tudo isso. [...]
Excesso de trabalho (DICK, 2012, p. 295).
Porém, Ruth, desconfiada e ciumenta, percebeu que
se tratava de uma mentira: “Com quem estava? Aonde foi?
Conte! Cedo ou tarde, vou acabar descobrindo!” (DICK, 2012,
p. 296). Ed Fletcher sentia-se acuado pela esposa e não sabia
como escapar da conversa. Foi então que um vendedor de
aspiradores de pó bateu à porta para fazer uma demonstração,
distraindo Ruth.
A chegada do vendedor de aspiradores retoma a cena
da chegada do vendedor de seguros na parte 4 do conto. A
presença desse vendedor sugere que este foi enviado por
algum Evocador no momento exato em que Fletcher não
conseguiria evitar a pressão da esposa. A descrição do
aspirador recorda os aparelhos intrincados utilizados pelos
homens de jaleco branco que perseguiram Fletcher.
Ao final, na parte 9 do conto, Fletcher entende a
cumplicidade entre ele e o Velho; acende um cigarro, olha
para cima e agradece.
Ed Fletcher passa por três momentos diferentes
dentro da narrativa: no início, Fletcher é uma pessoa com
uma vida cotidiana comum; de repente, devido ao erro no
ajuste, ele se depara com uma realidade paralela e
incompreensível, a qual lhe causa pânico; e, por fim, ao
compreender que a realidade faz parte de um plano maior,
que se trata de uma realidade fabricada, Fletcher aceita e se
sente grato por sua vida continuar como antes:
Em seu coração
o homem planeja o seu caminho,
mas o Senhor determina
os seus passos
(BÍBLIA, Provérbios, 16, 9).
O conto propõe a existência de um ser superior que
organiza toda a vida humana com base num plano. A realidade,
portanto, transforma-se num palco, numa encenação
manipulada onde não cabe o livre-arbítrio, já que há uma
predestinação direcionada pelo plano. Dessa forma, na diegese
282 Philip K. Dick e Equipe de Ajustes...
ficcional, a única realidade possível é a realidade do Criador,
aquela que Fletcher presenciou por engano.
Cabe aqui apontar algumas definições sobre o livre-
arbítrio. O Dicionário Houaiss define livre-arbítrio como a
“possibilidade de decidir, escolher em função da própria
vontade, isenta de qualquer condicionamento, motivo ou causa
determinante” (HOUAISS, 2015). Da perspectiva teológica,
para Santo Agostinho, o livre-arbítrio era um bem dado por
Deus, mesmo que o homem o empregue de forma equivocada,
provocando o mal. Por sua vez, Abelardo – teólogo e filósofo
escolástico (1079-1142), definiu o livre-arbítrio como dádiva
de Deus, contudo, era “governado pela natureza humana,
cheia de vícios. Enquanto fosse seguida a vontade de Deus, o
indivíduo estaria realmente livre, sem a sujeição a nenhum
tipo de vício” (ABELARDO apud DIEBE, 2019).
No texto “Como construir um universo que não se
desintegre dois dias depois” (“How to build a universe that
doesn’t fall apart two days later”, 1978), Philip K. Dick discute
também o que é a realidade:
Então eu questiono em minha escrita: o que é
real? Porque somos incessantemente
bombardeados com pseudorrealidades fabricadas
por pessoas muito sofisticadas, usando
mecanismos eletrônicos muito sofisticados. Não
desconfio de seus motivos, desconfio de seu
poder. Eles têm muito disso. E é um poder
surpreendente: o de criar universos interiores,
universos da mente. Eu deveria saber. Eu faço a
mesma coisa. É meu trabalho criar universos,
como base de um romance após o outro. Eu tenho
de construí-los de modo que eles não se
desintegrem dois dias depois. [...] No entanto, [...]
gosto de construir universos que se desintegram.
Gosto de vê-los se desmontarem e gosto de ver
como os personagens dos romances lidam com
10
Disponível em: <https://urbigenous.net/library/how_to_build.html>.
Acesso em 27 nov. 2020.
Arte, Cultura e Imaginário 283
esse problema. Eu tenho um amor secreto pelo
caos. [...] (DICK, 1978) 10 .
Na narrativa de “Equipe de Ajuste”, o Velho de olhos
azuis é o responsável pela construção da realidade e seu
desenvolvimento. O impacto causado pelo contato direto com
a equipe que cuida dessa cenografia da vida provoca o choque,
pois, repentinamente, são expostos os mecanismos do
espetáculo que a equipe ambienta e ilustra, contextualizando
um espaço-tempo que faça sentido, ao materializar o
imaginário criado para aqueles que são, ao mesmo tempo,
atores e público da pseudorrealidade encenada.
11
Disponível em: <https://www.imdb.com/title/tt1385826/>. Acesso
em: 26 nov. 2020.
284 Philip K. Dick e Equipe de Ajustes...
refere-se à inserção de trechos clássicos em filmes, a alusão
“pode tomar a forma de uma evocação verbal ou visual de
outro filme, como um meio expressivo de propor um
comentário sobre o mundo ficcional do filme aludido”
(STAM, 2013, p. 232).
Cahir (2006) define o processo de adaptação da
literatura para o filme da seguinte forma:
Como um trabalho literário, um filme é resultado
do processo de composição, o significado do mesmo
é “fazer através da justaposição”. Composição
literária e fílmica, diferentemente da pintura, por
exemplo, ambos incluem uma série de imagens em
constante mudança. A estrutura composicional de
ambos é criada a partir da união de uma sequência
de unidades menores: na literatura, um parágrafo
(ou estrofe) e, no filme, uma tomada. Parágrafos,
estrofes e planos funcionam simultaneamente como
unidades singulares e separadas e como partes
integradas e inseparáveis de toda a obra. A junção
das unidades menores cria todo o design do filme
ou do livro (CAHIR, 2006, pp. 46-47, tradução
nossa).
Cahir (2006) defende que o desafio de adaptar contos
é bastante diferente da adaptação de romances ou peças
teatrais. Num romance, é comum que o adaptador escolha o
que deve ser cortado no intuito de suprimir passagens literárias.
Contudo, a adaptação de contos apresenta problemas
diferentes: ao invés de decidir o que omitir do original, a
brevidade inerente ao conto exige que o texto seja expandido
e não abreviado. O estudo da adaptação de contos para o
cinema deve incluir a provocativa exploração de razões,
métodos e significados através dos quais o cinema possa
estender a fonte literária (CAHIR, 2006, p. 186).
Na transposição do conto de Dick para a narrativa
fílmica, Ed Fletcher transforma-se no personagem David
Norris – interpretado por Matt Damon – que é um jovem
congressista destinado ao sucesso como político, no entanto,
sua trajetória é abalada ao conhecer a bailarina Elise Sellas –
Arte, Cultura e Imaginário 285
papel vivido pela atriz Emily Blunt –, fato este que contraria
o chamado “Plano”. Os “agentes do destino” passam, então,
a tentar evitar esse romance a todo custo, atuando como
intermediários, que manipulam as ações humanas, pois ambos
estão predestinados ao sucesso, desde que não estabeleçam
nenhuma relação.
Como no conto, a narrativa fílmica aborda questões
filosóficas fundamentais, como fé e livre-arbítrio, em oposição
ao “Plano” ou à predestinação. O “Plano” exerceria a mesma
função dos oráculos na mitologia clássica, nos quais tudo já
estaria escrito e pré-determinado. Caberia ao ser humano o
papel de joguete dos deuses, despojado de seu livre-arbítrio.
Os agentes do destino seriam intermediários entre
Deus e a humanidade. Tanto no conto como no filme, os
agentes interferem na vida de pessoas comuns, sem serem
identificados e assumindo diversas personalidades. Se no
conto, o Evocador é um cão que vigia Ed Fletcher, no filme,
o Evocador é uma espécie de anjo que cuida de David Norris,
o protagonista do filme. O conflito em ambas as narrativas
ocorre quando o Evocador adormece e o protagonista tem
seu destino alterado. No filme, o Evocador toma o partido
de Norris, acaba voltando-se contra os desígnios previstos e
passa a agir em favor da concretização do romance,
entendendo que o amor pode oferecer outra oportunidade
que estaria para além do “Plano”, inaugurando possibilidades
inusitadas. O “Plano” é controlado por meio de pequenos
cadernos, que permanecem em poder dos agentes, e que
revelam, em “tempo real”, como em um mapa, o que pode
acontecer e se houver algum conflito ou imprevisto que possa
abalar a execução do “Plano”.
286 Philip K. Dick e Equipe de Ajustes...
Referências bibliográficas
1
Mestre em Ciências Humanas, Mestrado Interdisciplinar em Ciências
Humanas, Área Interdisciplinar, Universidade Santo Amaro – UNISA,
São Paulo-SP, Brasil.
2
Mestre em Ciências Contábeis (PUC/SP), professor da Universidade
Santo Amaro- SP.
294 Imaginário e cultura organizacional...
símbolos e memórias próprios de cada comunidade. É preciso
considerar, portanto, que, por meio de seu planejamento
estratégico e das tecnologias administrativas adotadas, visando
à sua sustentabilidade e crescimento, as organizações estão
inseridas em uma sociedade na qual o imaginário coletivo está
presente. A partir dessas considerações, a questão que se
coloca para o presente estudo é: de que maneira o imaginário
está presente na cultura organizacional e como isso se relaciona
com o gerenciamento de riscos nas organizações? A hipótese
adotada é que os colaboradores das organizações possuem
diferentes visões de mundo, influenciadas por múltiplos
fatores, dentre os quais o próprio imaginário coletivo, que
afetaria o comportamento das pessoas, moldando ou
modificando a cultura organizacional e influenciando diversos
processos, inclusive o gerenciamento de riscos organizacionais.
Nesse sentido, o presente estudo tem o objetivo de analisar
como o imaginário está presente na cultura organizacional e
seu possível impacto em termos de gerenciamento de riscos
corporativos.
O estudo do papel do imaginário na cultura
organizacional e seu impacto no gerenciamento de riscos
fornece importante contribuição para a sociedade e para as
organizações, tendo em vista sua abordagem multidisciplinar
e a oportunidade de reflexão sobre algo que, potencialmente,
é capaz de impactar, de forma relevante, as organizações.
Imaginário
Gestão de riscos
Metodologia
Referências bibliográficas
1
Mestre em Ciências Humanas pela Universidade Santo Amaro – UNISA;
Educadora Universitária na Rede UNIESP – Faculdade Santo André – FASA;
Professora Particular de Língua Inglesa e Espanhola na VINCO – aulas particulares.
2
Pós-Doutor em Comunicações e Doutor em Artes pela Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – USP.
3
Pós-doutora em Letras pela Universidade do Minho – Portugal; Doutora
em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela
Universidade de São Paulo – USP. Professora do Mestrado Interdisciplinar
em Ciências Humanas da Universidade de Santo Amaro – UNISA.
4
Importa ressaltar que este poema foi traduzido para o francês pela primeira
vez por Baudelaire e, depois dele, em vários idiomas. Na língua portuguesa,
temos diversos autores, como Fernando Pessoa, Machado de Assis e, mais
recentemente, Milton Amado. Elegemos a tradução de Fernando Pessoa
por ser considerada pelo crítico laureado, Ivo Barroso, a mais clássica.
314 Literatura e música...
percepções, sentimentos e atitudes dos seres humanos como
sujeitos do processo de leitura. Compete mencionar
semelhante entendimento da literatura na visão de que “o
imaginário das obras se mostra assim como um espaço de
realização, de fixação e de expansão da subjetividade. Mas,
por intermédio dessa representação, o artista visa a algumas
imagens novas, que por sua vez farão parte da subjetividade
de cada um” (WUNENBURGER, 2003, p. 58).
Esse imaginário permite transmitir e compartilhar as
experiências do cotidiano, englobando todos os sentidos enquanto
envolve cada um na sua particularidade. Sabemos que as artes –
o teatro, o cinema, a música, a literatura, entre outras – são
expressões do imaginário, favorecendo o movimento de
introspecção, no momento em que o pensamento é nutrido por
imagens provenientes destas vivências.
Deste ponto de vista, quando um expectador se
apega a um quadro privilegiado, um leitor passa o
tempo com as personagens de um romance, o
divertimento superficial se aprofunda em processo
simbólico no qual o sujeito pode conhecer-se melhor,
[...], até mesmo mudar-se a si mesmo. Enfim, [...], a
arte, por fornecer imagens aperfeiçoadas, [...], ou
abrindo a porta aos possíveis e aos sonhos, dá acesso
a uma felicidade inédita, um regozijo dos sentidos,
uma plenitude de existência (WUNENBURGER,
2003, pp. 58-59).
Entendemos que, por intermédio do processo simbólico,
podemos nos reconhecer como indivíduos. Este simbólico pode
ser interpretado por nós ao depararmos com sua manifestação
no universo das distintas linguagens. Sabemos que o universo do
imaginário é rico de projeções que articulam saberes, imagens e
expressões de conhecimento de mundo.
Desse modo, foi escolhido um conto americano e uma
música inglesa para serem estudados em suas respectivas
traduções, observando diálogos a partir da proposta dos
Estudos Comparados de Literatura. Ao trabalharmos nessa
perspectiva, entendemos o que Carvalhal descreve sobre a
obra ter flexibilidade de interpretações, considerando a
recepção do leitor, no sentido de a análise permitir relações
Arte, Cultura e Imaginário 315
interliterárias. É no ambiente comparativo que encontramos
as particularidades de um trabalho de estudo, conforme segue
No horizonte do comparativista está o “autor
enquanto leitor” e todos os aspectos da recepção
de uma obra estrangeira num determinado
contexto que possam ter importância para o autor
enquanto leitor e para a sua eventual recepção
pessoal. Assim, tornam-se objeto da investigação
comparativista a tradução da obra, o aparato
critico que a acompanha, os dados da edição
(CARVALHAL, 2006, p. 72).
Além disso, percebe-se que, a cada leitura, o
conhecimento se amplia independente se tratamos de uma
tradução ou livro original, porque o olhar crítico sobre a obra
traz muito sobre a estética literária a que pertence. Neste
contexto, é favorável trabalharmos textos traduzidos, uma vez
que possibilitaremos acesso a outros leitores, com isso
difundindo a obra literária, proporcionando interculturalidade
e favorecendo aprendizado de maneira globalizada. Tânia
Carvalhal complementa
Permitem, enfim, que no estudo de uma determinada
obra ou de determinado escritor se identifiquem as
interpretações dominantes, que derivam do contexto
literário e social da época e que dirigem a recepção
daquela obra ou daquele escritor. Assim, em literatura
comparada, nesse tipo de estudo, a interpretação é uma
“metainterpretação” (CARVALHAL, 2006, p. 73).
Este processo de recepção de conhecimento é
produtivo no sentido em que confronta não somente sistemas
literários, como também artísticos e esclarece aproximações e
contrastes apresentados por meio das leituras. Na busca por
elementos para investigar comparativamente, encontramos em
Carvalhal a justificativa de que tanto os estudos de uma cultura,
como de outras representações artísticas são perfeitamente
conectados para entendermos, de maneira interdisciplinar e
crítica, o mundo que nos cerca.
316 Literatura e música...
Literatura e música: uma análise comparada
Nunca mais
(Freddie Mercury)
Não há mais existência na minha vida
Os mares secaram
E a chuva parou de cair
Por favor, não chore mais
Você não vê?
Escute a brisa
Sussurre para mim, por favor
Não me mande para o caminho de nunca mais
Até mesmo os vales abaixo
Onde os raios do sol
São tão mornos e suaves
Agora não há nada para crescer
Você não vê?
Por que você teve que me deixar? (Nunca mais)
Por que você me decepcionou? (Nunca mais)
Você me mandou para o caminho de nunca mais
Quando você disse que não me ama mais
Ah, ah, nunca mais, nunca mais
(Fonte: tradução livre dos autores)
Apesar de a letra da canção ser curta, em comparação
com o poema com 108 versos, percebemos a possibilidade
de relação entre os dois em alguns aspectos significativos. A
começar pelo título da música, podemos referenciar à insistente
resposta do corvo, todas as vezes que o narrador o inquere sobre
Arte, Cultura e Imaginário 319
a amada. Mesmo não existindo a palavra “corvo” na canção, é
pela repetição da palavra “nevermore” que se torna possível
buscar ligação à resposta que ele dá ao narrador.
NUNCA MAIS = NEVERMORE
048-Disse o Corvo, “Nunca mais”. = Quoth the
Raven, “Nevermore”.
Mantendo a análise sobre o título da música e o pássaro
do conto (corvo = raven), Araújo (2002, p. 64) chama a atenção
sobre a característica de Poe em trabalhar as palavras nas mais
diversas formas; entre elas acrósticos, nomes invertidos,
anagramas. Com isto, podemos notar que as palavras NEVER
e RAVEN formam um anagrama, que, na tradução, não foi
possível apresentar (NUNCA <–>CORVO).
Poe marca seus textos com a concepção de que a
beleza dos escritos está no estranhamento e no exótico,
predominantemente encontrados na literatura fantástica.
Camarani reverbera a ideia de Castex de que foi por volta de
1830 que a literatura fantástica passou a ser explorada como
pesquisa científica, no propósito de buscar explicações para
os desconcertos da mente humana e os fenômenos que
avançam para os campos do estranhamento, do exótico e do
sobrenatural. Entre eles, temos o sonambulismo, a possessão,
os transes. O teórico ainda afirma que este comportamento
domina o movimento romântico em suas produções, repletas
de “motivos alucinantes, pesadelos e frenesis” (CASTEX apud
CAMARANI, 2014, p. 34).
É relevante considerar que, historicamente, a literatura
fantástica tem visceral relação com o gótico com destaque
para o sobrenatural, em resistência ao racionalismo do período
Iluminista (séc. XVIII e XIX). Nessa época, o egocentrismo
humano tomou o lugar das crenças, em que medos ou
pesadelos envolvendo fantasmas e monstros passaram a ter
explicações racionais. Camarani disserta sobre a afirmação
de Roas em que a obra poeana se dedica “a iluminar a vida
secreta do personagem, descrevendo seus delírios e
configurando um realismo psicológico” (ROAS apud
CAMARANI, 2014, p. 37).
320 Literatura e música...
Essa particularidade pode ser notada tanto na canção,
quanto no conto, pois tratam de um narrador solitário e triste,
falando da ausência de sua amada. Entendemos que ela esteja
morta pelos trechos com alusão ao mundo celestial e estar
entre os anjos. Na música, quando menciona “o caminho de
nunca mais” e, no conto, ao clamar pela “amada, hoje entre
hostes celestiais”.
Na letra da música, o protagonista faz perguntas para
as quais recebe sempre as mesmas respostas:
Você não vê?
Por que você teve que me deixar? (Nunca mais)
Por que você me decepcionou? (Nunca mais)
Esse trecho da canção assemelha-se à angústia do amante
no conto, enquanto pergunta ao corvo diversas vezes sobre sua
amada, porém recebe sempre a mesma monótona resposta, que
mais parece um eco e igualmente pode ser a própria consciência
do protagonista, buscando uma esperança de retorno.
065-E o bordão de desesp’rança de seu canto
cheio de ais
066-Era este “Nunca mais”.
Araújo (2002, p. 99) lembra que esta monotonia vinda
da resposta do corvo é fundamentada na característica do autor
em salientar a melancolia e a tristeza, baseadas no tema da morte.
Ao explorar a mente, Poe utiliza recursos psicológicos
com abundância. Para isso, dedica-se aos detalhes que
envolvem loucura e emoções extremas. Recorre ao “estilo
deliberadamente doloroso e as explicações elaboradas nas
histórias aumentam o senso do horror por fazer os eventos
parecerem muito vívidos e plausíveis” (BESSA, 2008, p. 48).
Outro verso remetido ao conto é o momento em que
são citadas as condições do tempo e os elementos da natureza,
vinculados à tristeza e à solidão. Esta característica pode ser
encontrada também na música.
Não há mais existência na minha vida
Os mares secaram
E a chuva parou de cair
Por favor, não chore mais
Arte, Cultura e Imaginário 321
Você não vê?
Escute a brisa
Sussurre para mim, por favor
Não me mande para o caminho de nunca mais
Até mesmo os vales abaixo
Onde os raios do sol
São tão mornos e suaves
Agora não há nada para crescer (grifos nossos)
Ademais, Bachelard (1997, p. 70) menciona que, na
poesia de Poe, “se alguém ou alguma coisa fala na superfície,
é um vento ou um eco, algumas árvores da margem que
confiam suas queixas umas às outras, é um fantasma que sopra,
que sopra baixinho”. Este eco é tratado por Chevalier (1986,
p. 433) como símbolo da regressão e da passividade, que por
ser um estado passageiro, antecede uma transformação. Além
disso, evoca as noções de duplo e sombra, que percebemos
no imaginário noturno de Durand.
029-E a única palavra dita foi um nome cheio
de ais –
030-Eu o disse, o nome dela, e o eco disse os
meus ais,
031-Isto só e nada mais. (grifo nosso)
Aproximando-se ao poema, encontramos em Durand a
correlação entre o sofrimento mediante a passagem do tempo e a
angústia da proximidade da morte. Para a formação do imaginário
humano, acontecem reações conflitantes, em decorrência da sua
dualidade entre ser sujeito que tem um tempo determinado para
deixar este mundo e sem possibilidade de retorno. Em contraponto
ao momento de passagem do mito, o autor ilustra:
Argumento muito próximo da metamorfose
múltipla é o motivo mitológico do túmulo vegetal:
o corpo de Osíris é encerrado num cofre de
madeira, que por sua vez é metido num tronco de
esteva que servirá para fazer a trave mestra do
palácio real. Mas nasce sempre uma planta da
morte, do herói, e anuncia a sua ressurreição: do
corpo de Osíris nasce o trigo, de Átis as violetas e
de Adônis as rosas. Esse ramo, essa vergôntea
322 Literatura e música...
são, para a imaginação, indutores da esperança
ressurrecional (DURAND, 2012, p. 298).
No nosso caso, os poetas nas duas análises não têm
esperança de rever a amada.
025-Noite, noite e nada mais.
026-A treva enorme fitando, fiquei perdido
receando,
027-Dúbio e tais sonhos sonhando que os
ninguém sonhou iguais.
028-Mas a noite era infinita, a paz profunda e
maldita,
029-E a única palavra dita foi um nome cheio de
ais –
030-Eu o disse, o nome dela, e o eco disse os
meus ais,
031-Isto só e nada mais.
032-Para dentro então volvendo, toda a alma em
mim ardendo,
033-Não tardou que ouvisse novo som batendo
mais e mais.
034- Por certo, disse eu, aquela bulha é na minha
janela.
035-Vamos ver o que está nela, e o que são estes
sinais.
036-Meu coração se distraia pesquisando estes
sinais.
037-É o vento, e nada mais.
Nessas estrofes, percebemos que Poe acena para uma
moldura em que o belo e o melancólico compõem a evocação
do “sussurrar do vento ou no bater da porta, ou mesmo na
insistente resposta do corvo” (ARAÚJO, 2002, p. 97), com
referência ao nome de Lenore.
Na musicalidade que engendra o conto e marcadamente
na música, notamos a presença do imaginário noturno que,
segundo Durand (2012, p. 348), tem, também, função de
organizar as imagens no plano musical, porque a música traz
esta conciliação e controle sobre os opostos, como também evita
a perda da vivência em relação ao passar do tempo. É na música
Arte, Cultura e Imaginário 323
que se encontra a harmonia para o alcance de “uma imagem
carregada de afetividade”. Ao que se percebe a seguir:
Não há mais existência na minha vida
Os mares secaram
E a chuva parou de cair
Até mesmo os vales abaixo
Onde os raios do sol
São tão mornos e suaves
Agora não há nada para crescer (grifos nossos)
Em semelhante análise, vemos, em Bachelard (1997, p.
67), o imaginário da água com sua dualidade de contrários em
relação à morte/vida. Nas estrofes acima destacadas, o poeta
inicia seu lamento por considerar que sua vida se extinguiu
partindo da ideia de ausência de água e, com isso, conclui que
“agora não há nada para crescer”. Poe, em suas obras, traz a
simbologia da água, entendida como “águas imóveis”, que, na
perspectiva de Bachelard, “evocam os mortos, porque as águas
mortas são águas dormentes”.
Ao terminar a música, destacamos a deprimente
conclusão do amante ao sentir que nada haverá que o console e
total inexistência de esperança em relação à amada.
Você me mandou para o caminho de nunca mais
Quando você disse que não me ama mais
Ah, ah, nunca mais, nunca mais
Semelhantemente, o final do poema traz esta angústia e
expõe “uma paralisante cena de morte-em-vida” (BESSA, 2008,
p. 48). Ademais, em Bachelard,
[...] a imagem que domina a poética de Edgar Poe é
a imagem da mãe moribunda. Todas as outras
amadas que a morte arrebatará, Helena, Francês,
Virgínia, renovarão a imagem primordial, reavivarão
a dor inicial, aquela que marcou para sempre o pobre
órfão. O humano, em Poe, é a morte. Descreve-se
uma vida pela morte (BACHELARD, 1997, p. 48).
Araújo discorre sobre as possíveis musas que inspiraram
Poe a tecer o poema; entre elas sua mãe e sua esposa, convertidas
em uma silhueta, “que é bela porque está morta” (ARAÚJO,
Arte, Cultura e Imaginário 324
2002, p. 97). Entendemos Poe em sua demonstração íntima
com a morte, que a transforma em essência de uma vida
sufocada, uma recordação tão profunda a ponto de se fixar
no âmago da consciência, apesar de nunca transpassar os
limites dos sonhos.
Quando mencionarmos sonhos, somos remetidos ao
que o conto se assemelha – um sonho, um pesadelo.
Percebemos, assim, a dualidade presente na figura do “Corvo,
na noite infinda” (negro) e no “alvo busto de Atena” (branco).
Em Chevalier (1986, p. 391), vemos que a simbologia do
pássaro carrega em si a ideia de comunicação com o mundo
dos mortos. Pela capacidade de voar, torna-se mensageiro
daqueles que já não estão mais entre os vivos.
Além disso, pelo fato de comer car nes em
decomposição provoca repulsa e, por vezes, pode ser
considerado também um pássaro de mau agouro. O autor
define que “nos sonhos, o corvo é mais do que mau presságio,
símbolo negativo ligado ao medo de desgraça”. O pássaro
pode ainda representar os sentimentos mais íntimos, a partir
dos quais “é criada então uma luta que simboliza o combate
psíquico entre pensamentos”.
Quando estudamos sobre o símbolo presente em
Atena, temos a representação da espiritualidade. Para os
gregos, é a deusa da sabedoria, de quem o nascimento surge
da necessidade emergente de luz sobre o mundo, após o
Apocalipse. Atena surge do céu como: “a que fecunda como
chuva e que ilumina como sol [...]Ela é a deusa do equilíbrio
interior, [...] a deusa atinge apenas essa perfeição no final de
uma longa evolução; e isso reflete a evolução da consciência
humana”, com isso, todos os seus elementos se integram em
harmonia. Junto com seu irmão Apolo, “simbolizam as
funções psíquicas sensatas, nascidas da visão dos últimos
ideais: a suprema verdade” e mais ainda, simboliza a própria
“combatividade espiritual” (CHEVALIER, 1986, p. 148).
103-E o Corvo, na noite infinda, está ainda, está
ainda,
104-No alvo busto de Atena que há por sobre os
meus umbrais.
105-Seu olhar tem a medonha dor de um demônio
Arte, Cultura e Imaginário 325
que sonha,
106-E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão
mais e mais.
107-E a minh’alma dessa sombra que no chão há de
mais e mais,
108-Libertar-se-á… nunca mais! (grifos nossos)
O fato de o corvo estar sobre o busto de Atena leva-
nos a interpretar que os pensamentos maus estão em nível
mais elevado que os bons, uma vez que a deusa representa a
espiritualidade, a elevação; porém, o corvo está sobre ela, com
toda sua carga negativa. Há um duelo entre a esperança de
retorno e o medo do “nunca mais”. A estrofe acima remete
ao imaginário noturno dissertado por Durand sobre as
contradições – noite (negro)/alvo (branco) – luz/sombra –
demônio(negativo) que sonha(positivo) e do pássaro noturno,
na figura do corvo.
Semelhantemente, notamos em Durand (2012, p. 67)
a ênfase desta angústia: “A noite recolhe na sua substância
maléfica todas as valorizações negativas precedentes. As trevas
são sempre caos e ranger de dentes”. Encontramos referências
sobre a influência que o poema trouxe para várias outras obras,
inclusive a nossa escolha musical.
O poema inspirou incontáveis outras obras em todos
os campos, desde música a teatrais e cinemáticos.
Mesmo Freddie Mercury se deixou infectar pelas
penas negras do corvo e, em 1974, compôs a canção
Nevermore, inspirada no poema de Poe. 6
Seguiremos com nossa interpretação, buscando ligações entre
as obras de Poe e Freddie Mercury e seus contextos de produção.
9
Farrokh Bommi Bulsara, nome real de Freddie Mercury, nasceu em 5 de
setembro de 1946 na cidade de Zanzibar, Tanzânia. Teve formação em música
no internato e artes gráficas na escola técnica. Em sua adolescência, tocou
em outras bandas e em festas na escola, antes de entrar para o Queen. Filho
de descendentes persas, fugitivos da invasão islamita, passou a residir na
Índia, onde seu pai prestava serviços ao governo britânico. Aos sete anos, foi
matriculado em um internato de missionários anglicanos em Mumbai, com
isso, afastado dos pais e da irmã recém nascida. Quando vivenciou sua primeira
experiência de solidão e isolamento. Foi neste período que teve acesso às
músicas clássicas de Beethoven, Bach, como também Mozart, tanto que
demonstrou interesse por canto lírico e formou-se em teoria musical. Seu
apelido Freddie surgiu do diminutivo de Frederick, porque os amigos não
conseguiam pronunciar “Farrokh”. Encantou-se com as aulas de artes
dramáticas. Era a época do rock, do jazz, de Elvis Presley, Marilyn Monroe,
Clark Gable e Marlon Brando. Todos estes trouxeram influências ao jovem
Freddie. Porém, aos 15 anos apaixonou-se por Sanjay, filho do jardineiro da
escola, fato que desequilibrou sua vida, pois a notícia se espalhou pelo
internato, seus pais foram notificados e foi forçado a voltar para Zanzibar
cheio de culpa e envergonhado. Ainda segundo a revista (2016, p. 8), em
1964, devido aos problemas políticos por causa do partido árabe-muçulmano,
toda a família Bulsara migrou para a Inglaterra. Aos vinte anos, decidiu morar
sozinho para seguir o sonho de ser artista. Este início de carreira foi muito
difícil, muitas vezes ficava sem comer para pagar as contas e preocupava
seus pais por sua excessiva magreza. Já na banda Queen, com todo o sucesso,
em sua mansão de Kensington, sua intimidade era livre de regras ou limites.
Nas décadas de 70 e 80, a homofobia era declarada, talvez por isso, Freddie
nunca assumiu seu desejo para com outros homens. Foi casado com Mary
Austin por seis anos, considerada o amor de sua vida. Declarou que apesar
de toda a fama, nunca conseguiu manter um relacionamento e que tinha
medo de morrer sozinho. Manteve segredo tanto dos fãs quanto da imprensa,
sobre ter contraído o vírus do HIV em 1987. Faleceu 24 horas após tornar
pública sua condição física, em 23 de novembro de 1991, aos 45 anos.
Arte, Cultura e Imaginário 329
A década de setenta foi marcada por várias crises
econômicas pelo mundo. Era o tempo da Guerra Fria, do Vietnã,
como também das ditaduras. Com isso, na Inglaterra, há uma
“multiplicação de vozes, questões e conflitos, que desequilibraram
o que parecia ser a plácida unanimidade da grande tradição
ocidental [...]que lida com problemáticas de raça, etnia, gênero e
sexualidade” (SILVA, 2006, p. 299). Nesse sentido, é possível
ligar os sentimentos de morte que ele declara na música.
Esse período foi marcado por uma sensação generalizada
de ruptura de valores e pela melancolia do tempo que não se
recupera. Nas artes, existe a representação do amor não
correspondido, às vezes platônico, saudosismo exagerado, além
do antagonismo da solidão em meio à multidão, obstinação pela
morte e destaque para o hedonismo (busca do prazer para aliviar
a dor) (SILVA, 2006). Mesmo com todo esse contexto, ainda
vemos no texto uma tentativa de externar alguma perda amorosa.
Podemos notar esse aspecto de perda na música nos
momentos em que o poeta menciona “não há mais existência na
minha vida” (o sentimento exacerbado de morte), “não me mande
para o caminho de nunca mais” (o medo da morte), e a
constatação do amor não correspondido no instante em que
afirma: “você me mandou para o caminho de nunca mais”,
“quando você disse que não me ama mais”.
A banda ganhou destaque com a veiculação desse disco.
Houve um aspecto que chamou a atenção, ao invés de ser “lado
A” e “lado B”, foi intitulado como “lado branco”, com músicas
românticas escritas por Brian May e “lado negro”, com canções
compostas por Freddie Mercury, mais introspectivas e obscuras,
no qual se encontra na faixa 3 Nevermore, a única balada.
Ao buscarmos referência sobre a melodia que estamos
trabalhando, encontramos outras canções que denotam a
personalidade tristonha e solitária de Mercury, como My melancholy
blues – 197710.
10
Conheça dez canções do Queen que revelam questões pessoais dos
integrantes integrantes. Paulo Cavalcanti – publicado em 16/08/2014, às
14h19.Disponível em: http://rollingstone.uol.com.br/artigo/conheca-
dez-cancoesdo-queen-que-revelam-questoes-pessoais-dos-integrantes/.
Acesso em: 21 out. 2018.
330 Literatura e música...
Nevermore está inserida no contexto de melodias
características do sentimento de emoção e melancolia da
música do gênero blues, pelo abaixamento da terça maior em
menor, e trata da temática dos sentimentos resultantes do
desgosto de um abandono. É a terceira canção do lado dois
do LP original, o chamado Black Side (Lado Negro), composto
por canções com temática mais fantasiosa, em contraposição
ao White Side (Lado Branco), com canções emotivas. Esta
subdivisão de opostos entre os lados branco e negro remete-
nos aos enredos de ópera.
A inclusão de Nevermore no segundo disco, de nome
“Queen II”, aponta para uma busca eclética de sonoridades.
Ela soa como uma vinheta ou uma abertura para a música
seguinte The March of the Black Queen, quase como um recitativo
e ária de uma ópera. Enquanto Nevermore é introspectiva, com
o uso de poucos instrumentos acompanhantes, piano e
sintetizadores, The March of the Black Queen apresenta
polirritmia e polimetria e rico uso de recursos instrumentais,
em uma estrutura musical ousada.
Percebemos a ênfase do imaginário noturno na
construção melódica e harmônica desta canção, conforme
explicamos a seguir.
Esta é a primeira composição de Freddie Mercury em
forma de balada, abrindo o leque de possibilidades de estilo
da banda, que foi definida como um conjunto de rock, em
suas diversas vertentes, a saber: hard rock, heavy metal, pop rock,
glam rock ou classic rock, vaudeville, ópera, rockabilly e progressivo.
Esta música é relativamente simples para os padrões
da banda Queen. A harmonia está em Fá Maior, com poucos
cromatismos. Não há ponte contrastante entre as partes, sendo
o segundo verso uma extensão e continuidade do primeiro.
Estruturalmente se divide em introdução (2 compassos) /
verso 1 (13 compassos) / verso 2 (21 compassos) / cadência
final (2 compassos). É uma canção predominantemente
melódica, sem instrumentos de percussão e guitarra, e com a
velocidade variando conforme a intenção da letra, em ritmo
sincopado livre, propiciando liberdade ao cantor para
interpretar e dar sentimento ao texto.
O acompanhamento do piano, criado dentro da
técnica do período renascentista denominada baixo de Alberti,
Arte, Cultura e Imaginário 331
ou seja, a utilização de harpejos dentro da estrutura básica
tônica (F), subdominante (Bb) e dominante com sétima (C7),
intercalada com acordes relativos de ré menor (tr) e lá menor
(sr), ainda pontuados pela Dominante da Dominante com
sétima (G7), cria um tecido sonoro harmônico presente no
contexto do universo do imaginário pelas cadências plagais.
Esta estrutura harmônica “simples”, que sustenta uma
linha melódica de alta expressividade remete-nos a dualidades
(mundo real x mundo imaginado, realidade x sonho, imaginário
diurno x imaginário noturno, hedonismo x depressão). Este
acompanhamento nos direciona para uma possibilidade de
paisagem sonora noturna (imaginário noturno), dentro dos
parâmetros do pensamento de Murray Schafer (1991), na
utilização de tonalidades maiores (imaginário diurno) e
tonalidades menores (imaginário noturno).
A linha melódica é construída predominantemente
por intervalos de segundas e terças, fato que possibilita uma
interpretação de pensamento mais voltado para o interior,
para o imaginário atrelado ao fantástico, sendo que o intervalo
disjunto – sexta maior ascendente, no refrão, junto com a
terça menor descendente na palavra see em uma região vocal
hiperaguda, cria um sentimento de angústia, de
impossibilidade de retorno, quando menciona na letra o texto
“você me mandou para o caminho de nunca mais, quando
disse que não me ama mais”. A tonalidade de lá menor reforça
este caráter em similaridade com o pensamento de Durand.
O trecho anymore e cant’you see? direciona a composição
ao universo modal (sistema musical medieval) ao utilizar a
cadência plagal. Dentro do universo tonal, no qual a canção
está escrita, o direcionamento neste trecho ao modalismo
remete ao imaginário noturno, ao universo do “nunca mais”
como impossibilidade de retorno e também a uma forma de
fuga da realidade, pelo salto para o desconhecido, pelo
abandono e pela consequente angústia da morte, sonoramente
representados pelo salto de sexta maior ascendente, que
funciona como um grito pelo medo ante o imprevisível.
A constatação de que não há volta para o universo
modal (no texto, representado pelo relacionamento físico
emocional rompido pelo abandono do outro) é enfatizado
no final da música pela repetição em forma de eco da palavra
332 Literatura e música...
nevermore, antes cantada no sistema modal, e agora repetida
duas vezes na tonalidade principal (Fá Maior). Também, a
condução melódica na forma balada vai ser fonte de inspiração
para outras composições futuras como Bohemian Rhapsody. O
caráter descritivo musical é inspirado pela forma literária
escolhida, a balada.
Fica-nos a impressão, após ouvir a canção, de que
Freddie revela o lado emocional de sua personalidade, mais
introspectivo, desconhecido dos fãs, pois, em seus shows,
mostrava uma performance com gestos teatrais, possibilitados
por sua prática no ballet, como o microfone lembrando um
cetro, capas de rainha, no envolvimento da plateia cantando
os refrãos.
Ele traduzia seu caráter romântico e aspectos de sua
vida particular nas composições, em particular, a solidão, a
timidez, a vulnerabilidade e a desconfiança nas pessoas. É
claro que sensações emocionais resultam de um repertório
de escuta, de um domínio das diversas vertentes musicais e
do momento físico emocional de cada ouvinte, no momento
da escuta.
À guisa de conclusão, o trabalho, na perspectiva da
interdisciplinaridade, articulando literatura e música,
possibilitou uma análise acerca dos recursos estéticos que se
organizam nas diferentes linguagens, revelando marcas tanto
do estilo individual de cada artista, quanto de cada contexto
cultural e histórico. Para tanto, elegemos trabalhar o conto
“O Corvo”, do escritor romântico americano Edgar Allan
Poe e sua inter-relação com a música Nevermore escrita nos
anos 70, por Freddie Mercury, da banda britânica Queen.
A inter-relação texto-construção melódico-harmônica
está presente nas opções de estilo composicional de Mercury
ao utilizar ambiguidades entre o universo modal (emocional)
e o universo tonal (racional), entre o uso de intervalos
melódicos em graus conjuntos nas estrofes e intervalos
melódicos em saltos no refrão e na performance suave nas
estrofes e o canto em fortíssimo no refrão, soando como um
clímax. Estas dualidades sonoras enfatizam a incerteza do
retorno e a constatação de que não há mais esperança, uma
constatação do “nunca mais”.
Arte, Cultura e Imaginário 333
Pode-se dizer que, frente ao contexto de produção de
Edgar Allan Poe comparado ao contexto de produção de
Freddie Mercury, encontramos proximidade na representação
simbólica de ambos. Essa comparação nos revela fortes traços
do imaginário que se apresenta nas diversas manifestações
artísticas, em forma de sentimentos e atitudes dos seres
humanos, enquanto participantes do processo de interpretação
e consequente entendimento da leitura individual deste sujeito.
A perspectiva analítica de Ricardo Araújo e Maria
Cristina Bessa nos permitiu pontuar aspectos do conto “O
Corvo”, traduzido por Fernando Pessoa e a livre tradução da
canção Ne vermore. Como base metodológica, nos
concentramos nos fundamentos dos estudos comparados de
literatura, bem como nos estudos do imaginário em Gaston
Bachelard e Gilbert Durand.
Partindo destas teorias, encontramos, neste conto,
associações com a canção, quando imageticamente
destacamos que ambos demonstram sofrimento pela
passagem do tempo, com consequente pavor da morte e
sentimentos psíquicos dúbios em relação ao mundo exterior.
Neste caso, temos a presença do corvo no conto, às vezes
considerado, simbolicamente, um animal de mau agouro,
retrato do duelo mental. Sua voz pode ser interpretada como
a consciência do amante e a monótona resposta, transformada
num eco infinito, reverberação da voz em espaços diretamente
atrelados ao imaginário noturno. Na canção, temos a ausência
de vida, representada pela escassez de água, com isso,
nenhuma esperança de retorno ou ressurreição.
O conto apresenta, em forma de pesadelo ou transe,
a agonia do amante ao ser constatado, pela resposta monótona
de um cor vo, que sua amada “nunca mais” voltará.
Semelhantemente na canção, percebemos, em lamento, a
tristeza do protagonista pelo abandono do ser amado, a partir
do momento em que esse foi enviado para o mundo do “nunca
mais”. Os símbolos envolvidos nesse trânsito imaginário, tanto
na literatura quanto na música, apesar de serem gêneros
distintos, com linguagens singulares e diversas, traduzem
aspectos do regime noturno de que trata Durand.
334 Literatura e música...
A análise comparada favoreceu a compreensão de cada
produção artística, de seus contextos e de seus possíveis
diálogos e ao mesmo tempo ampliou conhecimento para
novas interpretações. Reiterando Umberto Eco, a obra é aberta
e pode ser lida de distintas maneiras. Além disso, podemos
ressaltar a viabilidade de utilizar textos traduzidos, ao favorecer
acesso a outros leitores. Dessa forma, difundimos a obra
clássica, proporcionando interculturalidade e favorecendo
aprendizado mais abrangente e sensível.
Referências bibliográficas
1
Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da
Cultura e do Curso de Pedagogia da Universidade Presbiteriana Mackenzie
Membro do Instituto Catequético Secular São José; da Pastoral do Menor da
Região Episcopal Lapa.
2
Mestrando em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie. Orientador Pedagógico Pastoral do Centro Social Nossa
Senhora do Bom Parto. Coordenador da Pastoral do Menor da Região Episcopal
Belém/Arquidiocese de São Paulo e assessor da Pastoral do Menor do Estado de
São Paulo triênio 2018/2020.
3
Mestre em Ciências Humanas pela UNISA; Doutorando bolsista do Programa
Educação, Arte e História da Cultura, Universidade Presbiteriana Mackenzie;
Professor de Filosofia e Sociologia na Secretaria de Educação do Estado de São
Paulo.
338 O imaginário das narrativas dos educadores...
desses adolescentes. No intuito de promover a formação do
protagonismo do adolescente, a Escola de Cidadania
proporciona aos educadores o estudo partilhado como
promoção de garantia dos Direitos Humanos em
conformidade com a educação social.
O estudo se fundamenta no trabalho da Pastoral do
Menor (PAMEN) no estado de São Paulo. Trata-se de pesquisa
com educadores sociais que, na sua trajetória de vida,
vivenciaram, na prática, o cotidiano da Escola de Cidadania.
As informações colhidas com esses educadores, que
participaram dos encontros e entrevistas, registram lembranças
de suas trajetórias de vida e, a partir do imaginário expresso
em ações do passado e do presente, traçaram-se e
interpretaram-se dados para avaliar que, mesmo nos conflitos,
esses educadores na sua adolescência vivenciaram o que hoje
avaliam como significativo na reconstrução da identidade de
crianças e adolescentes atendidos nessa entidade.
A escolha dessa experiência, dentre muitas que se
denominam Escola de Cidadania, está de acordo com a
integração do trabalho de formação cidadã de todos os
envolvidos, aprimorando o desenvolvimento da comunicação
e da identidade cultural, e deve-se à tradição que a Pastoral
do Menor construiu ao longo de mais de 40 anos em todas as
regiões do Brasil, na defesa dos direitos de crianças e
adolescentes.
A partir de uma metodologia participativa, envolvemos
diferentes atores, como crianças, adolescentes, jovens,
familiares, educadores sociais e membros da comunidade local.
Pesquisar sobre o que fundamenta a Escola de
Cidadania leva-nos a compreender que suas bases estão
fundamentadas na garantia de Direitos Humanos em sintonia
com a formação para a integração social cidadã. Esta pesquisa
requer que coloquemos como exemplo e modelo de Escola
de Cidadania a PAMEN, que lida, principalmente, com as
práticas pedagógicas da Educação Social, acionando as
estruturas sociológicas e antropológicas para a percepção dos
fenômenos simbólicos que definem esse público atendido.
Os argumentos reconstruídos pelas lembranças dos
educadores sociais referendam as práticas de intervenção com
Arte, Cultura e Imaginário 339
crianças, adolescentes e jovens como forma de resgate da
pertença comunitária. Esses sujeitos deverão ser vistos como
cidadãos que pertencem a uma comunidade que os integra,
como seres humanos em for mação, que buscam a
reconstrução de suas vidas no resgate de justiça social.
As análises dos discursos desses educadores,
proporcionadas pelas lembranças, recriam a identidade pessoal
desses sujeitos, proporcionando, pelas percepções pessoais,
maior aderência ao projeto de uma educação para a cidadania.
No entanto, ao passo que realiza projetos de formação em
cidadania, o educador social dá visibilidade à sua tarefa de
compreender as bases simbólicas da sociedade, que afetam
diretamente de modo excludente, gerando dilemas que
infringem os direitos das crianças e adolescentes.
Fundamentação teórica
Metodologia
3
Durand (2001) cita em seguida a passagem do ‘filho pródigo” que volta a
casa do pai porque perdeu tudo, e o desespero da vida que se confronta com
as necessidades básicas agora o interpela a voltar. Nas narrativas dos
educadores, o regresso tem o sentido da volta com modificação na vida:
antes eram atendidos como adolescentes infratores e agora voltam, depois
de anos, como participantes do quadro de educadores sociais, e, assim, lidam
com seus próprios sentimentos do passado em detrimento da realidade futura
em que a realidade se confunde em imagens e símbolos do vivido no que
agora é avaliado. São confrontos pessoais que têm de ser festejados.
Arte, Cultura e Imaginário 347
A pesquisa envolveu 22 educadores, que participaram
em diferentes momentos da coleta de dados, a qual se deu
por meio de questionário, entrevista e roda de conversa, além
de análise de documentos da Pastoral do Menor e fontes
bibliográficas, dentre elas: Costa (2000) – que considera a
juventude com características cujas dimensões integram uma
fase de conflitos pessoal e social –; Freire (2005); Gadotti
(2000) e Giustina (1987), entre outros, que auxiliam nas
argumentações. Os resultados a partir das percepções dos
educadores revelaram a importância da figura do educador
mediador, que, por meio da pedagogia libertária, promove
educação para a cidadania, gerando incidência nos territórios
e espaços de participação social.
As rodas de conversas realizaram-se a partir do convite
feito a alguns dos professores envolvidos na pesquisa, o qual
foi realizado pela coordenação da Pastoral do Menor de
Sorocaba. Assim, participaram oito professores das rodas de
conversas, com idades entre 18 a 55 anos, sendo três do sexo
masculino e quatro do sexo feminino, com tempos de
experiência na pastoral diversificado, variando de 2 a 20 anos.
De acordo com a formação educacional, o grupo foi
composto por cinco educadores com ensino superior
completo e três com o ensino médio completo.
O grupo, a princípio, como forma de ir adentrando
ao processo de participação, realizou dinâmicas, resgatando
as imagens que afetaram, de forma positiva ou negativa, as
suas vidas. As narrativas de alguns educadores assemelham-
se com a realidade de seus assistidos. Por isso, enquanto a
violência se repete no comportamento dos adolescentes como
“imagens simbólicas” (FERNANDEZ, 2008, p. 223), os
educadores sociais propõem que a Escola de Cidadania possa
desenvolver a cultura da criação das imagens da solidariedade
e acreditam que isso ocorre não de forma assistencialista, mas
como meio de corresponsabilidade de todos os envolvidos
na formação de pessoas e de grupos.
Os discursos apontam que os educadores sociais
reconstroem o trabalho da PAMEN a partir dos passos dados
na construção de suas histórias pessoais, que engendram
aspectos imaginários.
348 O imaginário das narrativas dos educadores...
Narrativas dos educadores sociais
Referências bibliográficas
1
Mestre em Ciências Humanas pela UNISA –Universidade de Santo Amaro,
graduada em Letras pela UNISA – Universidade de Santo Amaro, Pedagogia
pela UNINOVE – Universidade Nove de Julho e História pela UNIMES –
Universidade de Santos, com especialização em Literatura e Estudos
Linguísticos e MBA em Gestão escolar pela FMU – Faculdade das Nações
Unidas, participante do grupo de pesquisa Arte Cultura e Imaginário.
362 O conto “Seminário dos Ratos”...
de Telles (1998), observa-se a valorização do “eu”, por meio
de uma sondagem psicológica, provocando indagações no
leitor.
2
Todorov (2010) compreendeu o Fantástico como um gênero que fica entre
outros dois gêneros – o maravilhoso e o estranho. Para esse autor, a presença
desse recurso ocorre quando o sobrenatural não podia ser explicado e essa
decisão era definida pelo próprio leitor. Além disso, o fantástico vinha sempre
relacionado com o medo. As definições apresentadas pelo autor conseguiam
contemplar as obras publicadas até o século XIX, porém os contos que
surgiram no século XX apresentavam uma estrutura diferenciada das
tradicionais; nesses, o sobrenatural manifesta-se de outra forma.
3
Remo Ceserani (2006) analisou o fantástico como um modo literário, sendo
ele o responsável por desestabilizar a realidade da obra, que se baseia em um
ambiente normal do cotidiano.
Arte, Cultura e Imaginário 363
David Roas, no livro Ameaças do Fantástico (2014),
analisou o fantástico como categoria estética, de forma que o
texto – não necessariamente elaborado em linguagem literária,
mas podendo ser musical, pictórica, entre outras –
minuciosamente criado com aspectos da realidade em tensão
com elementos sobrenaturais, coloca o leitor em hesitação,
por meio do uso de elementos estéticos.
O fantástico, nos contos de Lygia Fagundes Telles,
caracteriza-se pela utilização de elementos trabalhados
esteticamente nos veios do texto, com os quais cria efeitos de
um mundo real assombrado por sensações contraditórias,
objetivando provocar o medo. Por meio do “jogo de palavras”
e de metáforas, o fantástico é construído esteticamente em
suas obras como forma de avivar suas críticas sociais.
Os contos do livro Mistérios (1998), de Lygia
Fagundes Telles, abordam o fantástico como categoria estética,
tal for mulado por David Roas (2014). O fantástico
contemporâneo, como o criado pela escritora, é construído
no decorrer do enredo, é desenvolvido pelos elementos
estéticos e linguísticos utilizados como recursos nos contos,
fazendo uso das metáforas e da escrita repleta de simbologias
que remetem a características presentes na literatura e no
imaginário da autora e de sua época.
Segundo Wunenburger (2007, p. 11), o imaginário
é “um conjunto de produções mentais ou materializadas em
obras, com base em imagens visuais (quadros, desenhos,
fotografias) e linguísticas (metáfora, símbolo e relato).” Tem-
se, portanto, um conjunto coerente e dinâmico relacionado a
uma função simbólica.
No livro analisado, Mistérios (1998), tem-se uma
narrativa com elementos imagéticos, utilizando da categoria
estética do fantástico como um meio de representar os
elementos sobrenaturais e imaginários, apresentando um texto
esteticamente construído em sua forma imaginativa.
Iser, em seus estudos sobre a recepção, relaciona o
fantástico com o imaginário, como se nota:
Na Literatura fantástica, todavia, o imaginário se
objetiva por ser tematizado. Por isso, assume um
caráter de objeto que – a despeito das variações
364 O conto “Seminário dos Ratos”...
monótonas comuns a diversos desses textos –
consiste na existência factual do não-real [...] Mas,
como a fantasia é objetivada por sua tematização
e constitui a realidade do impossível, ela provoca
no leitor uma divisão da consciência (ISER, 2013,
p. 321).
De acordo com o referido autor, a duplicidade criada
pela Literatura Fantástica deve permanecer durante a leitura
realizada pelo leitor.
Ao analisar os contos da escritora Lygia Fagundes
Telles (1998), observa-se que as narrativas geralmente operam
com temas complexos, como: indagações pessoais e sociais,
o ambiente familiar, a busca pela identidade, o amor
verdadeiro, possíveis crimes e questões políticas, morte,
abandono, suicídios. Em razão do uso estético de recursos de
linguagem, a autora consegue suavizar questões angustiantes,
produzindo uma literatura envolvente que aproxima o leitor
da aura do mistério. O emprego de metáforas, do duplo4, da
metamorfose5 são estratégias recorrentes para encantar o
leitor.
Trindade e Laplantine (1997, p. 79) mostram que o
imaginário tem comprometimento com o real, e não com a
realidade apresentada, pois, o segundo constitui-se, na
natureza, já o primeiro está relacionado à interpretação
atribuída à própria natureza por meio das representações
realizadas subjetiva ou objetivamente. Nessa concepção, o
imaginário passa a recriar e reorganiza a realidade, ou seja, a
4
Para Lamas (2004), as narrativas de Lygia Fagundes Telles trabalham com
o dualismo humano, o duplo que “emerge como personificação deste
antagonismo humano, trazendo a dualidade como uma impressão de
estranheza entre os limites” (LAMAS, 2004, p. 46). O duplo mostra a
inquietação interior da personagem, podendo ser do tempo ou do espaço.
5
De acordo com o livro Dicionários de Símbolo,s o processo de metamorfose é
realizado por “expressões do desejo, da censura, do ideal, da sanção, saídas
das profundezas do inconsciente e tomando a forma na imaginação criadora.”
(CHEVALIER, 2017, p. 608) Metamorfose é o processo de mudança, de
transformação de uma pessoa ou coisa em outro sujeito ou objeto.
Arte, Cultura e Imaginário 365
partir do momento em que se relaciona com as dimensões da
interpretação e da representação, ele está condicionado ao
real.
Os contos presentes na obra Mistérios (1998) apresentam
enredos repletos de temas conflituosos, abordam os “mistérios”
como elemento fundamental de sua estrutura. Os enredos
apresentam situações e acontecimentos que distorcem a realidade
apresentada, desestabilizando, provocando hesitação, que são
fatores relevantes para a construção estética do fantástico de
acordo com David Roas (2014).
Para ele, resgatando Todorov, o elemento que
sustenta a Literatura Fantástica é o sobrenatural, ou seja, sua
base está ambientada em torno da presença do sobrenatural,
sendo ele inexplicável pelas leis naturais. Para considerarmos
uma história como fantástica, precisamos observar o seu
cenário, pois ele deve ser similar ao real. Esse espaço precisará
sofrer a influência de um fenômeno sobrenatural que
conseguirá desestabilizar a realidade lida. O fantástico tem
como prioridade desestabilizar o leitor.
O estudo apresentado por Roas (2014) foi difundido
pelo teórico Jaime Alazraki (2001), que se dedicou aos textos
fantásticos do século XX. Segundo este autor, essas obras
apresentam características próprias e singulares, pertencentes
a uma nova modalidade de fantástico, que ele denominou
como Neofantástico.
No son intentos que busquem devastar la realidade
conjurando lo sobrenatural – como se propuso el género
fantastico em el más allá de esa fachada racionalmente
construída. Para distinguirlos <<neofantásticos>> para
esse tipo de relatos. Neofantásticos porque a pesar de pivotear
alrededor de sus abuelos del siglo XIX por su visíon,
intencción y su modus operandi (ALAZRAKI, 2001, p.
276).
De acordo com Alazraki, temos, com o
neofantástico, uma nova estrutura de textos fantásticos,
baseadas no uso de metáforas, o que refutam as teorias
literárias formuladas pelos autores clássicos como Todorov,
que necessitavam de conceitos como o medo na sua
366 O conto “Seminário dos Ratos”...
construção para revalidar o texto como sendo ou não
fantástico.
Pode-se compreender com Alazrak que “el relato
fantastico dirigido a provocar um miedo en el lector, un terror
dirante el cual trastabillan sus supuestos lógicos, no se da en
el cuento neofantástico.” (ALAZRAK, 2001, p. 276). Os textos
fantásticos tradicionais apresentados por Todorov utilizam
do medo como um artifício para justificar a presença do
fantástico no enredo. Todavia, o neofantástico não precisa
do medo para gerar o conflito.
A utilização de metáforas nessas obras são as
responsáveis por transmitirem o teor de mistério nesses textos
neofantásticos. O suspense é fundamental para provocar a
desestabilidade, o autor utiliza sua narrativa para construir o
fantástico, cada detalhe apresentado por ele é fundamental. Além
disso, com o uso das metáforas, os relatos fantásticos operam
com elementos da imaginação, o autor constrói narrativas
instigantes, que são as responsáveis por apresentarem uma dupla
realidade, repleta de elementos fantásticos.
O medo nas obras fantásticas surge com o intuito de
provocar arrepios, de desestabilizar o leitor que se vê diante de
acontecimentos que quebram a veracidade do seu cotidiano. O
pânico provocado no leitor não é algo exclusivamente do modo
fantástico, mas ele exerce uma função semelhante aos outros
modos literários de provocar o terror, o horror e o pavor.
Para Ceserani,
O fantástico operou, como todo o verdadeiro e
grande modo literário, uma forte reconversão do
imaginário, ensinou aos escritores caminhos novos
para capturar significados e explorar experiências,
forneceu novas estratégias representativas.
Justamente porque se trata de um modo, e não
simplesmente de um gênero literário, ele se
caracteriza por um leque bastante amplo de
procedimentos utilizados e por um bom número
de temas tratados em outros modos e gêneros da
literatura (CESARANI, 2006, p. 103).
Os escritores do modo fantástico obtiveram, com
esse estilo literário, a oportunidade de experimentar um novo
Arte, Cultura e Imaginário 367
procedimento nas suas concepções narrativas. Por meio das
obras fantásticas, temos o uso de elementos linguísticos e
literários de outras narrativas concentrados em apenas um
texto, contemplando seus princípios, sem perder a
originalidade e as características que apresentam os enredos
do modo fantástico.
Esse efeito assinalado por Ceserani (2006) é
conceituado por Roas (2014) como uma espécie de “hiper-
realismo”, visto que ele reproduz as mesmas técnicas dos
textos realistas.
[...] poderíamos pensar no fantástico como uma
espécie de “hiper-realismo”, uma vez que, além de
reproduzir as técnicas dos textos realistas, ele obriga
o leitor a confrontar continuamente sua experiência
da realidade com a dos personagens: sabemos que
um texto é fantástico por sua relação (conflituosa)
com a realidade empírica. Porque o objetivo
fundamental de toda narrativa fantástica é questionar
a possibilidade de um rompimento da realidade
empírica. É por isso que ela vai além do tipo de
uma leitura gerado por uma narração realista ou por
um conto maravilhoso, em que, ao não se propor
transgressão alguma (o mundo e os acontecimentos
narrados no texto realista são “normais”, cotidianos,
e o texto maravilhoso se desenvolve em um mundo
autônomo, sem contato com o real), automatiza
nossa recepção, por assim dizer, sem exigir o
contínuo entrar e sair do texto para compreender o
que está acontecendo e, sobretudo, o que o texto
prende. Em última instância, diante das histórias
narradas nos contos fantásticos, não podemos
manter nossa recepção limitada à realidade textual
(ROAS, 2014, pp. 53-54).
Os textos fantásticos trazem o “hiper-realismo”,
responsável por tornar a leitura a mais realista possível, de
modo que o leitor se encontra em um contexto real, com
acontecimentos semelhantes ao seu dia a dia e, por meio desses
acontecimentos, precisa identificar uma situação conflituosa.
368 O conto “Seminário dos Ratos”...
Por isso, o fantástico instaura a ambiguidade, ao se
construir com elementos do real, porém, ao mesmo tempo,
irreal, provocando questionamento da realidade, ou seja, “a
narrativa fantástica está ambientada, então, em uma realidade
cotidiana que se constrói com técnicas realistas e ao mesmo
tempo destrói, inserindo nela outra realidade, incompreensível
para a primeira.” (ROAS, 2014, p. 54). Para o teórico
contemporâneo, a estrutura narrativa que o fantástico entrama
é basicamente formada por características realistas, que são
integradas ao universo fantástico, a fim de provocar
questionamentos no leitor.
Na Literatura Fantástica, reconhece-se como uma
construção realizada por intermédio dos princípios realistas,
que trazem, em seu núcleo narrativo, elementos inexplicáveis,
os quais participam da narração, dando, assim, o teor de
ambiguidade da história, textualizando o fantástico, cujo
objetivo é provocar a dúvida entre o real e o irreal.
Essas características são mantidas nas narrativas
neofantásticas, conforme Alazraki. Para o autor, “[...] La
metáfora corresponde a la visión y descripción de esos
aguajeros em nuestra percepción casual de la realidade.”
(ALAZRAKI, 2001, p. 278). O uso da linguagem metafórica
nos enredos neofantásticos é responsável por instalar o insólito
nas narrativas, o mundo real vê-se diante do mundo fictício.
Encontramos, ainda, nas obras neofantásticas, as metáforas
epistemológicas “[...] Lhamo metáforas epistemológicas a esas
imagenes del relato neofantastico que no son modos de
nombrar lo innombrale por el lenguage cientifico, una óptica
que ve donde nuestra visíon al uso fala.” (ALAZRAK, 2001,
p. 278). As metáforas epistemológicas são as responsáveis por
exemplificar as imagens produzidas pelo imaginário, que não
se podem renomear.
O neofantástico apresenta uma estrutura que assume
a solidez do mundo real como se fosse uma máscara, o mundo
verdadeiro tem vestígio do mundo irreal, o sobrenatural
permeia o natural.
O fantástico clássico utiliza o “medo” na sua
concepção, esse elemento é fundamental para a veracidade
da história. Nessas obras, o leitor é apresentado a uma
realidade sobrenatural, que tem como objetivo provocar o
Arte, Cultura e Imaginário 369
medo por meio de uma narrativa que intensifica sensações
conflituosas. Por outro lado, as obras ditas neofantásticas,
possuem um enredo baseado em elementos fantásticos, cujo
intuito, na construção dos textos do século XX, é construir
uma atmosfera fantástica, ou seja, ambígua.
As narrativas fantásticas da escritora Lygia Fagundes
Telles estão ambientadas em um contexto do século XX, em
que poderíamos utilizar os conceitos que nos aproximam do
fantástico contemporâneo ou neofantástico.
Dentre os dezenove contos que se apresentam na obra
Mistérios (1998), o texto intitulado “Seminário dos Ratos” traz
uma narrativa instigante, em que a crítica política fica nas
entrelinhas. Nesse conto, pode-se observar, claramente, o seu
posicionamento sobre as relações internas, de poder, o
dinheiro e a pouca importância dada aos problemas da
população. A autora utilizou de elementos fantásticos como
meios estéticos para trabalhar com essas questões.
Referências bibliográficas
2
Nesse trabalho, o termo Escola compreende escolas públicas ou privadas.
Arte, Cultura e Imaginário 381
estaduais ou federais, como demonstrado no artigo “O Futuro
das Universidades Públicas”, publicado pelo Jornal da USP
(2018). Conforme Charles Mady:
As universidades públicas brasileiras, estaduais
e federais, estão em constante declínio nestas
últimas décadas. As razões são sobejamente
conhecidas, mas pouco abordadas de forma
construtiva por motivos vários, muitas vezes
relacionados a corporativismos poderosos, que
deveriam ser enfrentados de forma corajosa.
Agudamente, a falta de recursos financeiros é,
sem dúvida, causa de enormes dificuldades, além
da dificuldade de se aplicar critérios para um
melhor empreg o do pouco que há. Para
comprovar, basta consultar os órgãos da
imprensa sobre problemas de gestão nas mais
variadas áreas, levando a população a concluir
que o dinheiro público está sendo mal
administrado (MADY, 2018).
Depreende-se desse artigo a falta de interesse daqueles
que poderiam fazer a diferença, em especial, o Ministério da
Educação. Nesse aspecto, não há qualquer interesse de que a
educação torne pessoas cônscias de seus direitos e
prerrogativas que protejam o cidadão, como assevera Barreto:
Não é surpresa que a educação brasileira vive
sérios problemas: as mazelas governamentais –
atributo que não é exclusivo dos atuais
governantes –, nas esferas municipais, estaduais
e intensamente na federal, aliadas a um descaso
decorrente de muitos anos de inépcia e falta de
vontade política ampliam a desigualdade social
e agravam, sobremaneira, a crise da leitura nas
salas de aula (BARRETO, 2016, p. 117)
Ao criarmos diálogo entre as prerrogativas da questão
social na perspectiva da Educação inclusiva, que, na verdade,
é excludente para muitos, há um abismo intransponível entre
o que de fato “é” e o que “deveria ser” a educação no Brasil.
382 Categorias de análise da educação inclusiva...
Dessa forma, denota-se que há problemas recorrentes
com a Educação de nível superior, pois o acesso do aluno a
este tipo de ensino mostra-se excludente, ao considerarmos a
mensalidade configurada e a permanência dos alunos em
universidades particulares de ponta.
De outro lado, o contexto social, a região geográfica
constituída como periferia, em que os alunos estão inseridos,
é, seguramente, considerada como aspectos relevantes no
processo de uma Educação excludente.
A educação no ensino superior nas instituições
particulares e, em especial, nas regiões periféricas da cidade
de São Paulo, passa por profundas alterações, seja pela questão
governamental, reduzindo o financiamento estudantil, ou pela
falta de recursos oriundos do próprio estudante, que deixa a
universidade devido ao alto custo das mensalidades,
considerando que a educação pública não atende a todos e,
em especial, ao público de baixa renda.
Diante deste cenário, é razoável conceber que a
questão econômica é prerrogativa fundamental nessa relação
e, portanto, as diferenças sociais denotam o grau das
desigualdades dos alunos de periferia, bem como seu acesso
ao nível superior.
A educação inclusiva, nessa abordagem econômica,
redunda no direito à educação, porém, esta, nas IES
particulares, é mercadoria que se estabelece com preço e este
valor mensura a capacidade do aluno de inserção na academia.
Portanto, o direito é relativo a quem pode pagar e não de
quem necessita, pois conforme Marx (1996, pp. 165-166), “os
valores-de-uso só se realizam pelo uso ou pelo consumo.
Constitui o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a
forma social dessa riqueza”.
Depreende-se que somos todos mercadorias balizadas
pelo poder de consumo, de compra, de acumulação de riqueza.
Isto é inclusão ou exclusão no espaço acadêmico? Diante de
um Estado burguês, que detêm o capital, está-se acima dessas
nuances, conforme Netto (1986, p. 17) retrata “[...] como a
sociedade burguesa se funda na exploração e na opressão da
maioria pela minoria [...]”.
Arte, Cultura e Imaginário 383
Entrementes, esse cenário apresenta o porquê de as
IES particulares manterem uma educação bancária, que tem
o aspecto de “encher os educandos de conteúdos” (FREIRE,
1987, p. 57), pois é mais fácil criar indivíduos robóticos, que
apenas memorizem o conteúdo, do que seres pensantes e
cônscios de seus direitos.
É razoável conceber dessa assertiva que, de fato, é
mais fácil gerenciar pessoas que não tenham interesse em
reivindicar melhor qualidade no ensino, até porque os
discentes não sabem, ou têm dificuldade na avaliação da
qualidade das Instituições de Ensino Superior.
De outro lado, no processo de avaliação, alguns
docentes não estão preparados para atender alunos excluídos
pela sociedade, à margem de um sistema que não propicia
políticas sociais de inclusão, como se observa nas regiões mais
afastadas do centro da cidade de São Paulo.
Estes alunos devem, a princípio, receber acolhimento
necessário, pois o poder sobre eles, no olhar de subserviência
ou incapacidade intelectual, é progressivo, quando são
estigmatizados diante de suas realidades socioeconômicas e
epistemológicas.
Ao realizar avaliações, provas ou quaisquer
instrumentos de controle, sem, contudo, desqualificar o aluno,
conforme percebemos “As mudanças em relação à avaliação
talvez sejam as mais difíceis de serem realizadas pelos atores
educacionais, porque envolvem relações de poder e de
controle e por se realizar de maneira formal e informal”
(JACOMINI, 2010, p. 64). Neste texto, a professora e
pesquisadora Márcia Aparecida Jacomini instiga a pensarmos
de forma diferenciada o processo de avaliação, pois essa
relação de poder pode, em certo aspecto, provocar no aluno
sentimento de desmotivação a ponto de abandonar seus
estudos.
Nota-se que a avaliação pode circunscrever um
processo desigual, como assevera Philippe Perrenoud (1999,
p. 14): “A escola conformou-se com as desigualdades de êxito
por tanto tempo quanto elas pareciam na ordem das coisas”.
Depreende-se que a formação dos alunos dependia, nesse
olhar, do interesse individual do discente; não havia, portanto,
preocupação com o desnível social ou cognitivo.
384 Categorias de análise da educação inclusiva...
Adorno (1995), por sua vez, esclarece que, também,
quando o papel dos docentes no contato com provas de
competência em concursos, estes professores sentem
apreensão sobre o processo de avaliação e, até mesmo,
“incompreensão de seu sentido”, percebemos que o debate
acerca do processo de avaliação ocorre em várias dimensões
– professor e aluno.
De outro lado, o Estado segue inoperante e
desinteressado frente às necessidades de comunidades
periféricas, sem qualquer acesso às políticas sociais, ou
enfrentamento das desigualdades sociais, como se percebe
na assertiva de Maria Carmelita Yazbek (2006, p. 35):
“Sabemos que a política social no Brasil tem funcionado
ambiguamente na perspectiva de acomodação das relações
entre Estado e a sociedade civil [...] a intervenção do Estado
vem se revelando inoperante e incapaz [...]”.
Outro olhar, nesse cenário, é consubstanciado por José
Paulo Netto (2011), demonstrando como o Estado, de forma
a preservar aspectos continuístas da Ditadura, mostra-se, ainda
nos tempos atuais, impactando fortemente as universidades,
estas, segundo o autor, apresentam aspectos burocráticos,
disfuncionais, em cuja base não há como perceber sua própria
identidade.
A Educação inclusiva faz-se entre ambas as partes
envolvidas no processo de formação, seja no olhar do
professor ou do aluno quando há um crescimento das pessoas,
abertura para o diálogo franco, em que existam portas abertas
para quem educa e para quem é educado.
A interação entre a realidade de inclusão de alunos à
margem da sociedade e como são tratadas as prerrogativas
de avaliação reafirma as perspectivas apontadas, tanto em
Paulo Freire, quanto em Adorno.
Não existe educação sem que ela seja uma
comunicação transversal, passando por diversos aspectos do
próprio conhecimento, como a história de vida.
Sara Paín (1999, p. 89) elucida-nos “quando
consideramos os dois processos como provenientes de uma
mesma estrutura”. De outro lado, temos olhares diversos sobre
o mesmo contexto e, sob outra perspectiva, Milton Santos
Arte, Cultura e Imaginário 385
(2002, p. 24) ressalta acerca das questões demográficas em
que vivem aqueles sob condições de vulnerabilidade: “Não
há pacto social sem pacto territorial concomitante, mesmo
que este não venha explicitado”, ou seja, aspectos relacionados
aos espaços geográficos e periféricos contribuem para a devida
compreensão dos sujeitos que vivem sob condições precárias
e tentam acesso ao ensino superior.
Compreende-se que a educação tem por finalidade a
formação do indivíduo e também o reforço dos laços sociais
e a promoção da integração de todos no corpo social, pode-
se entender que ela assume a autonomia na medida em que
interage nesse corpo social, considerando que pode ser
transformadora em nossa sociedade, como preconiza Freire:
“Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela
tampouco a sociedade muda” (FREIRE, 2015, p. 77), ou seja,
sem educação, não há como identificar uma sociedade justa,
que atinja todo o tecido social.
Ao considerarmos essa análise de ressignificação, ou
seja, da necessidade de formar alunos críticos e socialmente
responsáveis, sendo a escola um espaço dialógico para tal
formação, no que concerne o papel do docente, este deverá
possuir formação diferenciada em diversos aspectos da
função-educador e humanizados, como assevera o Prof.
Alexandre Filordi de Carvalho (2014).
O desafio é possibilitar que cada indivíduo possa
construir sua própria identidade, incluindo-o vários setores,
tais como: político, religioso, artístico, econômico, familiar
etc., pertencendo a uma pluralidade e não apenas a um eixo
que exclui e domina. A escola deve funcionar como
instrumento mediador da sociedade, conduzindo não só a
aprendizagem do saber, mas também do saber comportar-se
como cidadão.
Dessa forma, a educação não será mecanicamente
reprodutivista e tecnicista, mas se ocupará, cada vez mais, das
questões referentes às carências da sociedade e ampliará suas
responsabilidades para além do ensino acadêmico.
Neste aspecto, evidencia-se que o processo de ensino-
aprendizagem não pode ser estanque, ao contrário, trata-se
de um olhar diferenciado e constante, como afirma Freire
386 Categorias de análise da educação inclusiva...
(1979, p. 35): “a educação tem caráter permanente, não há
seres educados e não educados, estamos todos nos educando.”
Nessa perspectiva, cabe ressaltar que a questão social
é oriunda das mazelas, do desrespeito aos direitos do cidadão,
bem como da corrupção avassaladora que aflige o Brasil há
muitos anos e, notadamente, em todos os tipos de poder, seja
de direita, ou de esquerda.
Se no século XIX, Karl Marx (1818 – 1883) já alertava
para o fato de o homem ser balizado como mercadoria pelo
capital, a questão social está intrinsecamente relacionada com
políticas sociais e na relação decorrente desta acerca da
produção e riqueza frente às recorrentes situações de
pauperização da classe social desfavorecida e não incluída na
elite capitalista, apesar de a primeira manter a segunda, como
se percebe na afirmativa de Lara e Maranhão:
Podemos perceber que a chamada questão social
situa-se visceralmente no interior das relações
sociais de produção capitalista [...] A questão social,
aloja-se, portanto, na lei geral da acumulação
capitalista, pois, quanto maior a riqueza social e o
capital tornado potência social e produtiva
dominante, maior é a pobreza que atinge o
conjunto da população trabalhadora (LARA;
MARANHÃO, 2019, p. 44)
Diante do exposto, é compreensível notar que a
questão social não é um tema apreciado por aqueles que
acreditam que o Brasil, em 2020, está em grande expansão
econômica, social e política. Essas pessoas, ao contrário do
que possa parecer, têm plena consciência de que a desigualdade
social é abismal.
Não há como negar que vivemos sob a égide de um
capitalismo fundamentado sob princípios que privilegiam
elites políticas, religiosas, esta, inclusive, pode, em certo
aspecto, configurar o olhar do capitalismo, como assevera
Walter Benjamin:
O capitalismo deve ser visto como uma religião,
isto é, o capitalismo está essencialmente a serviço
das mesmas preocupações, aflições inquietações
Arte, Cultura e Imaginário 387
a que outrora as assim chamadas religiões
quiseram oferecer resposta. A demonstração da
estrutura religiosa do capitalismo, que não é só
uma formação condicionada pela religião, como
pensou Weber, mas um fenômeno essencialmente
religioso nos levaria ainda hoje a desviar para uma
polêmica generalizada e desmedida. Não temos
como puxar a rede dentro da qual nos
encontramos (BENJAMIN, 2013, p. 21).
Nota-se que, segundo esse autor, o capitalismo tem
uma fundamentação muito mais arraigada em nossa sociedade
do que meramente possa transparecer para o incauto. Não se
trata apenas do poder de compra, de possuir bens. O
capitalismo, como religião, engendra construções simbólicas,
representações instituídas no imaginário, como aponta
Castoriadis (1995). Envolve vários aspectos, de ordem cultural,
social e até mesmo psicológica, pois indivíduos de baixa renda
que não tiveram acesso às necessidades básicas para sua
sobrevivência, certamente, não estão inseridos no rol de
profissionais cujas carreiras e salários proporcionam bem-estar
para suas famílias, tampouco são pertencentes à elite de
universidades, enfim, não são vistos como vencedores segundo
o olhar do capitalismo.
Indivíduos fora desses grupos de privilégios vivem à
margem da sociedade e assim podem construir suas próprias
representações. Nesse cenário, Laplantine e Trindade (1997,
p. 27) afirmam: “O processo do imaginário constitui-se da
relação entre o sujeito e o objeto que percorre desde o real,
que aparece ao sujeito figurado em imagens, até representação
possível do real.”
Ao analisarmos essas categorias acerca do acesso à
educação, é possível depreender aspectos do imaginário em
sua relação não somente com um indivíduo, mas também em
relação à sociedade em que está inserido, expresso no conjunto
de suas realizações e crenças. (WUNENBURGER, 2007).
Evidencia-se, portanto, que o imaginário atua em linha tênue
entre o real e o simbólico. Nessa perspectiva, é possível
compreender a educação inclusiva e os atores que dela fazem
parte.
388 Categorias de análise da educação inclusiva...
O que deveria ocorrer no espaço escolar, em outra
perspectiva, embasa o olhar de Moacir Gadotti:
Na sociedade da informação, o papel social da
escola foi consideravelmente ampliado. É uma
escola presente na cidade, no município, criando
novos conhecimentos, relações sociais e humanas,
sem abrir mão do conhecimento historicamente
produzido pela humanidade, uma escola científica
e transformadora (GADOTTI, 2010, p. 15).
Sob outro aspecto acerca do papel social da escola, a
professora Dra. Lílian do Valle, da Universidade Estadual do
Rio de Janeiro, apresenta a escola pública e as crises recorrentes
da educação pública, bem como acerca da construção que a
sociedade realiza sobre o futuro do ensino público que afeta
o acesso à educação, da seguinte maneira: “A escola pública
vai mal, estudando a história dessa instituição, verificamos
que, onde foi implantada, este diagnóstico é tão recorrente
que deve mesmo ser tomado como conatural à sua existência”
(VALLE, 1997, p. 7).
Depreende-se da fala da professora que, apesar do
roteiro expresso, a escola, no escopo do imaginário, apresenta
nuances de aspectos políticos, estruturais, bem como
epistemológicos. “A educação é como um espelho fiel que
nos reproduz com clareza o que uma sociedade é, o que ela
deseja de si e o que ela afirma desejar” (VALLE, 1997, p. 8).
A sociedade, na perspectiva histórica, delineia como
foi e como será a educação pública e até mesmo a privada,
pois quaisquer projetos devem ter significados sociais e
respectivos investimentos que a sociedade imagina ter como
poder de ação.
Este cenário é dialético e histórico, como se observa nas
ponderações da pesquisa elaborada pela professora Lílian do Vale:
Para instalar o tempo escolar em suas raízes
históricas e evidenciar sua dependência em relação
a uma matriz de significações sociais definidas, é
necessário aceitar que a noção de Escola Pública
pode ser situada e datada, não se apresentando
nem como uma espécie de produção espontânea
Arte, Cultura e Imaginário 389
da vida social, nem como um universal das
sociedades ou, ao menos, das sociedades
modernas. Tal como a Escola pública se inscreve
em um determinado projeto político de sociedade
e traz a marca do tipo de investimentos sociais
que permitiram seu nascimento e constituição e
que, continuamente renovados, explica sua
permanência, a noção de tempo escolar é tecida
por um conjunto de significações sociais da qual
depende: para desvendar sua crise, é preciso
entender sua emergência (VALE, 1997, p. 23).
Não há como dissociar a educação de Políticas
Públicas e, nesse caso, em se tratando de Brasil, o tema
Educação toma um rumo que embasa diversas teorias,
postulados ideológicos que demandam extensos debates e
pesquisas. Contudo, perceber a educação também como
política social é atribuir o papel do Estado e respectiva
construção ideológica do governo brasileiro em 2020, como
podemos depreender da afirmação:
As políticas sociais têm sua gênese e dinâmica
determinadas pelas mudanças qualitativas
ocorridas na organização da produção e nas
relações de poder que impulsionaram a redefinição
das estratégias econômicas e político-sociais do
Estado nas sociedades capitalistas [...] Situar a
educação como política social do Estado capitalista
significa, antes de tudo, admitir a refuncionalização
social dos sistemas educacionais em face das
mudanças qualitativas ocorridas na fase
monopolista do capitalismo, tanto em relação à
organização da produção quanto em relação às
estruturas jurídico-políticas e às relações globais
(NEVES, 1999, pp. 11-16).
Nota-se, na perspectiva de Lúcia Neves, que tratar
acerca da educação no imaginário político é criar categorias
de análises políticas sobre a produção do Estado capitalista e
respectivos interesses que estes mantêm nos sistemas
educacionais.
390 Categorias de análise da educação inclusiva...
A educação é fruidora de emoções, sensações,
conceitos, representações que se projetam no cotidiano dos
atores que dela fazem parte. Nessa perspectiva, não é propício
o rótulo de quem manda e de quem obedece em sala de aula,
mas, no olhar de Paulo Freire (1996, p.25), “Não há docência
sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das
diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de
objeto um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem
aprende ensina ao aprender”.
Dessa forma, não há como imaginar o espaço escolar
sem a construção de intercâmbios entre educadores e
educandos, além da constatação de que a educação, no
imaginário social, é plural em suas manifestações culturais,
artísticas, científicas, como afirmam Baseio e Cunha (2018, p.
11), se pudermos ampliar para outros âmbitos: “Sabe-se que
as manifestações artísticas estão presentes em todas as
sociedades humanas em maior ou menor grau e apresentam-
se de tantas maneiras diferentes quanto são seus autores e
culturas”.
Referências bibliográficas
1
Graduada em Letras pela Universidade Santo Amaro em 2020, orientada
pela Prof. Dra. Maria Auxiliadora Fontana Baseio. O texto apresentado é
de pesquisa resultante de TCC, com adaptações.
398 Tristão e Isolda...
e Isolda, tanto no âmbito da cultura celta, quanto da cultura
ocidental, buscando entender uma leitura da união atrelada
ao amor-paixão e outra leitura associada à morte e ao adultério,
não deixando de observar os diálogos da narrativa com o
amor cortês medieval.
No movimento de circulação e de deslocamento dessa
narrativa tradicional, observaremos, metodologicamente, a
partir dos estudos comparados de literatura e dos estudos de
tradução propostos por Julio Plaza, de que modo foi realizada
a tradução intersemiótica e a maneira pela qual as imagens se
aclimataram na literatura infanto-juvenil.
Síntese da narrativa
Referências bibliográficas
1
Graduada em Letras pela Universidade Santo Amaro em 2020, orientada
pela Prof. Dra. Maria Auxiliadora Fontana Baseio. O texto apresentado é
de pesquisa resultante de TCC, com adaptações.
418 O imaginário na obra de Sophia de M. B. Andresen...
POEMA
Referências bibliográficas
1
Durval Muniz Albuquerque Júnior nasceu em 1961, na cidade de
Campina Grande, Paraíba. Sua construção identitária passa pela origem
sulista da mãe e o berço paraibano do pai, essa constituição é evidenciada
em suas obras. Possui graduação em Licenciatura Plena em História pela
Universidade Estadual da Paraíba. Mestre e Doutor em História pela
Universidade Estadual de Campinas. Pós-Doutorado em Educação pela
Universidade de Barcelona e em Teoria e Filosofia da História pela
Universidade de Coimbra. Professor titular aposentado pela Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Atualmente é professor visitante da
Universidade Estadual da Paraíba. Professor permanente dos Programas
de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco
e Universidade Federal do Rio Grande do Norte. O historiador Durval
Muniz de Albuquerque Júnior dedica à pesquisa sobre as relações entre
a narrativa da história e a produção de subjetividades.
438 Entrevista com Durval Muniz de A. Junior...
no dia 21 de outubro de 2020, quando o recebemos em uma
palestra virtual no Grupo de Pesquisa Arte, Cultura e Imaginário.
Na ocasião, construindo um diálogo a respeito de sua obra A
invenção do nordeste e outras artes, ele desnudou esse conceito que
transpassa identidades, gêneros e subjetividades e que, por meio
do imaginário, tem a capacidade de apagar a multiplicidade de
uma região tão expressiva do território brasileiro.
A entrevista que se segue nasce de um convite feito e
amavelmente aceito, após esse primeiro encontro, visando à
publicação no presente livro. Realizada por meio de vídeo
chamada, no dia 19 de novembro de 2020, a conversa foi
direcionada por uma série de perguntas pulsantes fomentadas
pela palestra anterior, sendo, subsequentemente, transcrita nas
páginas que se seguem. As respostas que nos foram ofertadas
perpassam os impactos da arte, o peso da cultura em relação
ao imaginário e a retroalimentação que se estabelece entre
esses três elementos. Simultaneamente, ao nos depararmos
com o processo de decomposição dos sentidos, percebemos
a Interdisciplinaridade manifesta por meio dos diversos
autores dedicados às mais diferentes áreas do conhecimento
que fazem coro às falas do Prof. Durval, abarcando temas
variados, como a escrita da História, a ordem do discurso, as
influências das imagens nas visões de mundo, a materialidade
do imaginário, a importância da imaginação na produção
historiográfica e a problemática das identidades, entre outros
possíveis temas que cabem ao leitor suscitar.
Ficha Técnica