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Arte, Cultura e Imaginário:

reflexões interdisciplinares
Maria Auxiliadora Fontana Baseio
(Organizadora)

Arte, Cultura e Imaginário:


reflexões interdisciplinares
© Maria Auxiliadora Fontana Baseio (org.), 2020.
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por
quaisquer meios sem a autorização prévia da Editora.

Conselho Editorial
Terceira Margem Editora

Conselho Científico
Alzira Lobo de Arruda Campos – UNISA
Luciane Alves Santos – UFPA
Manoel Francisco Guaranha – UNISA
Marcelo Rito – FRS
Maria Zilda da Cunha – USP
Marília Gomes Ghizzi Godoy – UNISA
Sandra Trabbuco Valenzuela – FATEC/FAM

Colaboração Editorial
Angela Divina Oliveira
Isabella Tavares Sozza Moraes
Lucciano Franco de Lira Siqueira

Revisão e Preparação de Texto


Maria Auxiliadora Fontana Baseio

INLOTHES TESAURO E INFORMAÇÃO

I 585 Arte, Cultura e Imaginário: reflexões interdisciplinares /


Organizadora: Maria Auxiliadora Fontana Baseio -- São Paulo:
Terceira Margem, 2020, 14x21 - 458p.

ISBN: 978-65-89372-01-1
1. Interdisciplaridade
2. Ciências Humanas
3. Relações Culturais
4. Cultura
I. Título CDD 389.9 389
Sumário

Apresentação
Maria Auxiliadora Fontana Baseio 07

Heitor Villa-Lobos, a formação musical da criança e do


jovem entre o estético e o ideológico
Marcos Julio Sergl 11
Maria Auxiliadora Fontana Baseio
Maria Zilda da Cunha

Narrativas Mitopoéticas dos Mborai (Cantos Guarani


Mbya)
Alzira Lobo Arruda Campos 33
Marília Gomes Ghizzi Godoy

A construção do imaginário da morte e as práticas de


sepultamentos no Brasil oitocentista
Juliana Maria Martins 65

Jogos simbólicos e o imaginário na educação infantil


Maria de Lourdes Perez 91
Talita Destro Rost

Bruxaria contemporânea: imaginário e identidade na


religião wicca
Lucciano Franco de Lira Siqueira 103
Paulo Fernando de Souza Campos

Reflexões sobre o conceito de banalidade do mal, de


Hannah Arendt, sua interface com o imaginário e seu
diálogo com a atual conjuntura política brasileira
Marcial Ribeiro Chaves 121

Cultura digital, educação e o imaginário na sociedade


pós-moderna
Angela Divina Oliveira 147
Cidadão Kane e Boca de Ouro: ficção e realidade
Audrey Cristina Barbosa 185
Gleiciane Silva Santos Ózio
Rodrigo Nazario Geronimo Pinto

Contos de fadas e a Base Nacional Comum Curricular:


reflexões sobre a formação da criança
Luana Grohe Canto 197
Maria Auxiliadora Fontana Baseio

A constituição do eu no imaginário do sujeito e sua


reconstrução em análise
Maria Cecilia de Almeida Parasmo 213

Morte, simulacros e luto: uma análise do 1º Episódio da


Temporada 2 da série Black Mirror
Ednaldo Torres Felicio 229

Philip K. Dick e Equipe de Ajuste: análise do conto e da


adaptação para o filme os Agentes do Destino
Sandra Trabucco Valenzuela 261

Imaginário e cultura organizacional: uma contribuição


ao gerenciamento de riscos
Márcia Maria da Graça Costa 293
Luís Carlos Gruenfeld

Literatura e música: diálogos interdisciplinares


Lilian Fernandes Carneiro 313
Marcos Julio Sergl
Maria Auxiliadora Fontana Baseio

O imaginário nas narrativas dos educadores sociais da


pastoral do menor sobre “Projeto Escola de Cidadania”
na formação do adolescente
João Clemente de Souza Neto 337
Leandro Alves Lopes
Sebastião Jacinto dos Santos
O conto “Seminário dos Ratos”: uma construção estética
dos elementos contemporâneos do fantástico de Lygia
Fagundes Telles
Lorraine Martins dos Anjos 361

Categorias de análise da educação inclusiva: imaginário


pedagógico sob o véu da questão social
Vanderlei Fernandes Barreto 379

Tristão e Isolda: o amor-paixão em tradução intersemiótica


Jéssica Avelino Irmão 397

O imaginário na obra de Sophia de Mello Breyner


Andresen e a formação do leitor
Gorete Marcolino Pereira 417

Entrevista com Durval Muniz de Albuquerque Junior


437
.
Apresentação

O livro Arte, cultura e imaginário: reflexões interdisciplinares


constitui-se como uma coletânea produzida pelos participantes
do grupo de pesquisa “Arte, Cultura e Imaginário”, vinculado
ao Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas da
Universidade Santo Amaro, certificado pelo CNPq desde 2013
e filiado ao Centre de Recherches Internationales sur l’imaginaire –
CRI2i –, uma rede internacional fundada em 2012 em Cluj-
Napoca (Romênia), hoje com sede na França, que reúne cerca
de quarenta centros de pesquisa espalhados em todo o mundo
(da Coreia ao Brasil passando pela América do Norte e toda
a Europa), todos eles voltados aos estudos em torno da
temática do Imaginário.
A pesquisa no âmbito desse tema convoca-nos a
compreender as representações simbólicas que ancoram a vida
do homem como produtor de imagens. Com vigoroso
potencial criador, o imaginário mostra-se menos como um
conjunto de imagens que vagueiam na memória ou na
imaginação e mais como uma rede de símbolos, uma instância
fundadora dotada de dinamismo organizador. Compreendido
como elemento instaurador do pensar, do sentir e do fazer
humano, o imaginário desperta questionamentos capazes de
mover investigações que ultrapassam as fronteiras entre
saberes, estabelecendo-se, portanto, como um entrelugar.
Seu campo de exploração é vasto, congregando
diferentes pesquisadores, de variadas áreas do conhecimento
e com perspectivas e métodos singulares. Nesse sentido, o
conjunto de conceitos sobre o imaginário que os autores deste
livro visitam assinala sua força pluri e interdisciplinar, qualidade
que se procura preservar não apenas no livro, mas também
nos trabalhos do grupo de pesquisa, cujos princípios não se
fecham em abordagem única, mas se abrem à partilha de
diversidades e pluralidades interpretativas e metodológicas –
desde que direcionadas para a compreensão do homem e dos
fenômenos culturais e artísticos.
10 Apresentação
A despeito dos variados significados assumidos pelos
investigadores, o conceito de imaginário pode ser partilhado
naquilo que converge para uma apreensão desse tecido de
imagens como uma dimensão representativa dos fenômenos
imbricada numa dimensão afetiva. Embora tenhamos ciência
de que os estudos do imaginário não se restrinjam a tratativas
parcelares de áreas específicas, mas possuem abrangência
integradora dos vários campos do saber, tentaremos, apenas
para efeito de nortear a leitura, apontar alguns caminhos de
circunscrição dos capítulos deste livro.
Os textos aqui recolhidos são fruto de permanentes
discussões realizadas nos diversos encontros dentro e fora da
universidade, em espaços reais e virtuais, em eventos
científicos nacionais e internacionais. São 19 capítulos, escritos
por autores tanto do Programa de Mestrado Interdisciplinar
de Ciências Humanas da Unisa, quanto de outros programas
e de outros cursos e universidades, congregando pesquisadores
experientes e iniciantes que participam do grupo de pesquisa.
Essa publicação bienal conta com textos que discutem
as relações do imaginário com as artes, como Literatura e
Música: diálogos interdisciplinares, de Lilian Fernandes Carneiro,
Marcos Julio Sergl e Maria Auxiliadora Fontana Baseio; Cidadão
Kane e Boca de Ouro: ficção e realidade, de Audrey Cristina Barbosa,
Gleiciane Silva Santos Ózio e Rodrigo Nazario Geronimo
Pinto; Morte, simulacros e luto - uma análise do 1º Episódio da
Temporada 2 da Série Black Mirror, de Ednaldo Torres Felicio;
Philip K. Dick e Equipe de Ajuste: análise do conto e da adaptação
para o filme Os agentes do destino, de Sandra Trabucco Valenzuela;
O conto “Seminário dos Ratos”: uma construção estética dos elementos
contemporâneos do fantástico de Lygia Fagundes Telles, de Lorraine
Martins dos Anjos; Tristão e Isolda: o amor-paixão em tradução
intersemiótica, de Jéssica Avelino Irmão.
Apresentam-se, também, textos que assinalam
interlocuções do imaginário com a educação, tais como O
Imaginário na obra de Sophia de Mello Breyner Andresen e a formação
do leitor, de Gorete Marcolino Pereira; Heitor Villa-Lobos, a
formação musical da criança e do jovem entre o estético e o ideológico, de
Marcos Julio Sergl, Maria Auxiliadora Fontana Baseio e Maria
Zilda da Cunha; Jogos simbólicos e o imaginário na Educação Infantil,
Arte, Cultura e Imaginário 11
de Maria de Lourdes Perez e Talita Destro Rost; Contos de
Fadas e a Base Nacional Comum Curricular: reflexões sobre a formação
da criança, de Luana Grohe Canto e Maria Auxiliadora Fontana
Baseio; O Imaginário nas narrativas dos educadores sociais da Pastoral
do Menor: sobre “Projeto Escola de Cidadania” na formação do
adolescente, de João Clemente de Souza Neto, Leandro Alves
Lopes e Sebastião Jacinto dos Santos; Categorias de análise da
Educação Inclusiva: imaginário pedagógico sob o véu da questão social,
de Vanderlei Fernandes Barreto; Cultura digital, educação e o
imaginário na sociedade pós-moderna, de Angela Divina Oliveira.
No âmbito dos estudos do imaginário voltados à
Antropologia e seus trânsitos com a História, situam-se os
capítulos Narrativas mitopoéticas dos Mborai (Cantos Guarani
Mbya), de Alzira Lobo Arruda Campos e Marília Gomes
Ghizzi Goddoy; Bruxaria contemporânea: imaginário e identidade
na religião Wicca, de Lucciano Franco de Lira Siqueira e Paulo
Fernando de Souza Campos; A construção do imaginário da morte
e as práticas de sepultamentos no Brasil Oitocentista, de Juliana Maria
Martins.
Com um olhar voltado para a compreensão das
interfaces do imaginário com os processos culturais envolvidos
na gestão privada e pública, sinalizam-se os textos: Imaginário
e cultura organizacional: uma contribuição ao gerenciamento de riscos,
escrito por Márcia Maria da Graça Costa e Luís Carlos
Gruenfeld, e Reflexões sobre o conceito de banalidade do Mal, de
Hannah Arendt, sua interface com o Imaginário e seu diálogo com a
atual conjuntura política brasileira, de Marcial Ribeiro Chaves
Ademais, com o intuito de explicar o conceito de
imaginário em uma perspectiva lacaniana, aprecia-se o texto
A constituição do eu no imaginário do sujeito e sua reconstrução em
análise, de Maria Cecília de Almeida Parasmo.
Por fim, contamos com a entrevista do Prof. Dr.
Dur val Muniz Albuquerque Júnior, professor titular
aposentado pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte dedicado à pesquisa sobre as relações entre a narrativa
da história e a produção de subjetividades. O reconhecido
pesquisador foi convidado para o Ciclo de Palestras
organizado anualmente por nosso grupo de pesquisa e, com
muita generosidade, disponibilizou-se a conceder esta
12 Apresentação
entrevista, que muito nos elucida sobre os efeitos do
imaginário nas construções sociais, de forma a motivar
continuidades ou rupturas.
A obra que aqui se apresenta, Arte, cultura e imaginário:
reflexões interdisciplinares, reveste-se, para este grupo de pesquisa,
de um grande significado: por um lado, reflete o que se frutifica
de nosso trabalho investigativo compartilhado, por outro,
constitui-se como valiosa e oportuna contribuição
interdisciplinar para motivar novas pesquisas no campo das
Ciências Humanas e Sociais.

Maria Auxiliadora Fontana Baseio


Heitor Villa-Lobos, a formação musical da
criança e do jovem entre o estético e o
ideológico1
Marcos Julio Sergl2
Maria Auxiliadora Fontana Baseio3
Maria Zilda da Cunha4

A princípio, é possível generalizar dizendo que a


recepção de um evento sonoro implica captura de
possibilidades de um fenômeno complexo que, via percepção,
abarca qualidades de sentimento, além de mobilizar formas
de raciocínio para a intelecção desse fenômeno sensível.
Nessa perspectiva lógica, a linguagem sonora é um
sistema semiótico, que compreende dimensões artísticas
diferenciadas e possibilidades estéticas multiformes. Assim, a
linguagem musical possui, de fato, uma legitimação estética,
uma autonomia, como material sonoro nas mais diversas
poéticas musicais, assim, suas referências podem se voltar para
a própria materialidade acústica, é o caso da música absoluta.
Importa, no entanto, considerar o fato de a semiose sonora
projetar-se por contiguidade, e o faz prenhe de signos icônicos,
corporificando semelhanças nas qualidades de aparência

1
Este texto foi publicado pela USP, na Revista Literartes, v.1,n.10, 2019.
2
Pós-Doutor em Comunicações e Doutor em Artes pela Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
3
Pós-doutora em Letras pela Universidade do Minho, Braga, Portugal;
Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa
pela Universidade de São Paulo. Professora do Mestrado Interdisciplinar
em Ciências Humanas da Universidade Santo Amaro – UNISA, SP.
4
Pós-doutora em Letras pela Universidade do Minho, Braga, Portugal;
Pós-Doutora em Ciências, Educação e Humanidades pela UERJ; Doutora
em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela
Universidade de São Paulo. Professora da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – Departamento de
Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa.
14 Heitor Villa-Lobos, a formação musical...
(imagens), qualidades de movimento e formais (diagramas),
bem como promovendo a interação de significados
(metáforas). Isto possibilita a consecução de onomatopeias
musicais, aspectos da Affektenlehre5, da música de programa,
da música especulativa e a realização de alusões, de paródias
e metalinguagem.
Nessa ordem de ideias, se de fato não se pode perder
de vista a importância do aspecto icônico que reverencia a
significação musical, impossível é negar a força da
contiguidade e dos aspectos indiciais conectados ao contexto
cultural, étnico e social. Toda e qualquer obra artística insere-
se em relações dinâmicas, funcionando como índices de seu
tempo, dos esquemas nocionais de sua cultura e de sua época,
engendrando fatores que funcionam significativamente. É
assim que se pode afirmar que o nacionalismo, a música
engajada e, de certa forma, a música romântica representaram
seus objetos.
Segundo Langer, a música é “um tipo de linguagem
não do aqui-agora, mas de conteúdo conceitual genuíno,
[como um] símbolo do aspecto irracional da vida mental, da
Vontade” (LANGER, 2004, p. 219). Tal chave de
interpretação coloca possibilidades estéticas e o desafio das
assimilações reflexivas, que emergem nas múltiplas formas
de escuta, como questões para reflexão. Isto vale para os
compositores ou para teóricos. Nestes termos, a reflexão, a
escuta, a produção, a teoria e a materialidade acústica
engendram manifestações que vão gerir novos estilos e formas
composicionais. A própria escuta torna-se material
compositivo.
Gombrich (1986), na clave do visual, diz que o artista
não recria o que vê, mas vê o que recria a partir de categorias
de representação reveladoras de uma cosmovisão, amparada
por redes simbólicas que compreendem o imaginário
individual do artista, bem como o zeitgeist6 de seu tempo.
O presente capítulo focaliza importante músico
brasileiro do século XX, compositor, maestro, violoncelista,
5
Teoria dos afetos.
6
Espírito da época ou características genéricas de uma determinada época
histórica.
Arte, Cultura e Imaginário 15
pianista, violinista, que chegou a ser mundialmente conhecido,
embora nunca tenha se enquadrado definitivamente em
nenhum movimento cultural específico. Trata-se de Heitor
Villa-Lobos (1887-1959).
No intuito de evitar o risco de confundir a dimensão
educativa e política que o envolveu com o valor de sua obra
artística, tomamos um excerto do texto de Carlos Drummond
de Andrade, publicado logo após morte do compositor no
Correio da Manhã:
Há tantos falsos grandes, e tantos grandes
laboriosos, que só conseguem sê-lo à custa da
superposição calculada e teimosa de pedrinhas e
sarrafos; em Villa, a grandeza não era apenas
autêntica, mas espontânea, inelutável, independia
dele, do que ele pretendesse, pensasse ou dissesse;
até parecia brigar com o proprietário, às vezes
(ANDRADE, 1970 apud SANTOS, 2010, pp.
132-133).
A mensagem do poeta expressa a forte admiração que
detinha por Villa-Lobos e traz um testemunho apaixonado
pelo seu vigor artístico. Na esteira de Drummond, este ensaio
perspectiva a proeminência do valor do artista.
Na Semana da Arte Moderna, Villa Lobos teve como
interlocutor Mário de Andrade, para quem esse carioca era
um gênio criador, embora tecnicamente pouco preparado,
conforme declara:
O que atrapalha Villa-Lobos é a fantástica falta
de organização intelectual. A cabeça dele, cheia
de ensinamentos malgeridos, com falhas enormes
de instrução, mesmo musical, não lhe permite uma
visão estética segura nem do momento, nem da
própria obra. É incontestavelmente o mais
“genial” de nossos músicos, o que tem invenções
mais fortes, mais originais, o de brasilidade mais
livre e audaciosa; porém, em geral, o mérito dele
se resume a essas invenções. (TONI, 1987, p. 48)
16 Heitor Villa-Lobos, a formação musical...
Em 1933, Mário de Andrade sente-se pessimista por
seu companheiro de luta a favor da renovação das artes
dedicar-se ao regime de Vargas.
Falar sobre Villa-Lobos implica, portanto, investigar
duas motivações: a lúdica e estética, bem como a histórica e
ideológica, eis o objetivo que aqui se apresenta e ao qual se
busca alcançar por meio de investigação bibliográfica.
O movimento modernista brasileiro reuniu marcas do
primitivismo no final da década de 20, rebordando o
imaginário da terra de maneira muito singular, aliando, no
jogo estético, aspectos do mágico e também do ideológico
para expressar traços do mundo social, cultural e político do
tempo.
A música, assim como outros sistemas semióticos da
época modernista, mostra-se visceralmente sintonizada com
questões de nossa identidade, tematizando a “nossa terra” e
a “nossa gente”. O imaginário desse tempo mobiliza desejos,
sentidos e ações que pulsam em âmbito coletivo,
reorganizando formas de expressão do real, bem como
maneiras de transformá-lo criticamente.
Mário de Andrade, com quem Villa-Lobos
compartilha amizade e visão de mundo nos períodos iniciais
de sua carreira, enuncia, em Pauliceia desvairada, o verso
considerado lema do movimento: “Eu sou um índio tupi que
toca alaúde”. Nesse sentido, o índio selvagem é capaz de
entoar sua própria melodia com sons trazidos pelos europeus,
ou seja, o Brasil colonizado contempla-se na busca de seu
próprio rosto.
No âmago do movimento modernista, poetas,
ensaístas, artistas plásticos, músicos compartilhavam o
sentimento e o pensamento de que o velho modelo cultural
importado do colonizador já não se ajustava a seus ideais,
sendo necessário reconhecer e valorizar, em seus projetos
artísticos, a cultura e a identidade nacional.
Ao perscrutar a forma como Villa-Lobos expressa
musicalmente os valores sociais e culturais de seu tempo,
cumpre analisar um imaginário que reflete temáticas
identitárias do contexto. Para tanto, o conceito de textura
sonora é fundamental. Ela é resultado do uso de componentes
Arte, Cultura e Imaginário 17
sonoros simultaneamente, a partir da combinação de notas
que formam acordes e da escolha dos instrumentos que vão
tocar estas notas. Diz respeito a uma “massa sonora
verticalmente organizada, que considera, além do parâmetro
sonoro correspondente à altura das notas, os demais
parâmetros do som: tempo, intensidade e timbre, dentre outros
aspectos” (SPECHT, 2017, p. 23). É habitual compará-la a
um tecido: Qual é o material usado? (instrumentos e
sonoridades); qual é a densidade dele? (quantos instrumentos
são utilizados simultaneamente); qual é a percepção ao
manuseá-lo? (duro, leve, macio); qual é a coloração e a
estampa? (timbres, ornamentos). A textura musical funciona
da mesma forma que a textura do tecido. Ela toca no aspecto
sensorial, neste caso, auditivo (SPECHT, 2017).
Villa-Lobos geralmente escolhe texturas densas, com
sobreposições sonoras inusitadas para caracterizar o universo
tridimensional da floresta. Insere fonemas sem lógica para
mostrar códigos linguísticos diferentes dos europeus. “Os
processos por onde Villa-Lobos utilizou temas folclóricos ou
de inspiração popular em texturas ruidosas seriam como os
‘planos sinedóquicos’ observados na pintura surrealista ou
no cinema” (SALLES, 2009, p. 82) – herança que adveio das
vanguardas artísticas do início do século XX.
Uma das obras mais interessantes como textura densa
com uma quantidade significativa de camadas sonoras é o
Noneto, impressões rápidas de todo o Brasil, composta inicialmente
para nove instrumentos, com acréscimos posteriores. Além
de diversos instrumentos de percussão, como tam-tam,
tambor, pandeiro, xilofone, caixa e o triângulo, Villa-Lobos
incluiu originais brasileiros, como a puíta ou cuíca (afro-
brasileiro), chocalhos, cocos e um coro indígena com
melodias, gritos, ruídos e vocalizes.
No Choros nº 3, para coro masculino e sete
instr umentos ou para cada uma dessas for mações
separadamente, o compositor explora o imaginário a partir
de sons onomatopaicos diversos, com melodias Nozani-ná e
Ualalôce. Os ostinatos, repetição de determinada frase melódica
ou rítmica, reproduzem a noção de tempo cíclico, característica
das culturas autóctones.
18 Heitor Villa-Lobos, a formação musical...
Da mesma forma, podemos decodificar, em suas
estruturas melódicas e harmônicas, sons característicos
brasileiros, como do trem maria-fumaça, que percorria o
interior de nosso país, e do vento, pelo uso de sons
onomatopaicos e usos inusitados de instrumentos da
orquestra; a sinuosidade das montanhas, presente na
construção de melodias em graus disjuntos; a caudalosidade
dos rios, em orquestrações complexas; as vozes dos chorões,
na solicitação de performances específicas dos músicos; as
línguas dos índios, afrodescendentes e caboclos, pela seleção
de palavras sem significado lógico, mas com sonoridades
características desses segmentos étnicos. Pela escolha de
técnicas instrumentais e vocais específicas, procurou valorizar
aspectos de nossa cultura e identidade nacional. E estas
escolhas levaram e levam até hoje o ouvinte, seja criança ou
adulto, a reminiscências, e, consequentemente, ao
reconhecimento de um imaginário brasileiro.
Paisagens estas que devem ser entendidas não
através de uma leitura materialista e estática de
uma feição de um lugar, mas como sendo algo
gerador de referências históricas, simbologias e
identidades de um grupo. Sendo que assim, a
paisagem aqui é entendida [...] como as festas
típicas, a culinária, a religião, a música, etc., os
símbolos, os traços culturais do g rupo
(SEVERINO; SOUZA, 2006, pp. 15.327).
Esses sentimentos e preocupações expressos em seu
imaginário advêm de experiências vividas desde criança.
Induzido pelo pai, o musicista Raul Villa-Lobos, Heitor estava
constantemente ligado aos sons produzidos ao seu redor, seja
como curiosidade, seja como parte de seu aprendizado
musical.
Meu pai, além de ser homem de aprimorada
cultura geral e excepcionalmente inteligente, era
um músico prático, técnico e perfeito. [...]
Aprendi, também, a tocar clarinete e era obrigado
a discernir o gênero, estilo, caráter e origem das
obras, como declarar com presteza o nome da
Arte, Cultura e Imaginário 19
nota, sons ou ruídos que surgiam incidentalmente
no momento, como o guincho da roda de um
bonde, o pio de um pássaro, a queda de um objeto
de metal, etc. [...] (MARIZ, 1981, pp. 104-105).
Por Raul Villa-Lobos estar envolvido com a Revolução
Federalista do Rio Grande do Sul, foi acusado por Floriano
Peixoto de subversivo e teve que fugir com a família para
cidades do interior. Primeiramente, Sapucaia, no estado do
Rio de Janeiro, e depois, Bicas e Santana dos Cataguases, no
estado de Minas Gerais. Essa experiência foi muito rica para
Heitor, na ocasião com cinco anos de idade, pois ele pôde
conviver com a música sertaneja, pela qual se interessou muito,
e vivenciar as brincadeiras e os causos contados pelos locais,
fato que abriu sua percepção para o imaginário cultural da
terra desde cedo.
Também as viagens realizadas pelo compositor ao
longo do Brasil, algumas delas provavelmente fruto de sua
imaginação como parte do projeto de ser conhecido como
músico genuinamente brasileiro, mas, sobretudo, as viagens
para os estados de Pernambuco, Bahia e Espírito Santo,
percorrendo o interior, pequenas vilas, engenhos e fazendas,
influenciaram em sua vertente musical imaginativa.
Villa-Lobos estabelece com sua arte musical um
profícuo diálogo com o imaginário infantil de duas maneiras:
a) pelo aspecto descritivo dos efeitos sonoros inseridos em
suas ambientações para as músicas do repertório autóctone,
folclórico e popular brasileiro, já constantes do inconsciente
coletivo; b) pelas diversas formas de aproveitamento de lendas
e mitos do folclore brasileiro, em particular do indígena, a
partir dos quais ele adapta, cria, ambienta e reaproveita em
obras de grande envergadura, como os bailados, as obras
sinfônicas, os choros e a música para piano.
Mirelle Borges (2008) destaca o posicionamento de
Villa-Lobos no uso da música folclórica.

Villa-Lobos enfatiza os elos existentes entre a


sensibilidade infantil, o seu subconsciente e o
folclore. Por isso, as crianças deveriam estudar os
compositores clássicos, mas principalmente
20 Heitor Villa-Lobos, a formação musical...
estabelecer contato com a música folclórica, já que
tal estilo colocaria a criança em contato com o
ritmo. A partir da simplicidade, a criança seria
envolvida. As melodias adequadas então seriam
as cantigas de ninar, as canções de roda, marchas,
etc. A familiaridade das crianças com o folclore
advém das características psicológicas raciais, a
assimilação das melodias do folclore
desencadearia então a percepção das ressonâncias
ancestrais (BORGES, 2008, p. 76).
Também observamos a influência do folclore como
fator de busca de uma identidade brasileira e de uma paisagem
exótica única encontrada em nossas matas e em nossas
comunidades interioranas, em obras para instrumentos e em
obras sinfônicas e sinfônico-corais. O próprio Villa-Lobos
classificou-as em quatro grupos:
1º) Com influência folclórica indireta: Naufrágio de
Kleônicos (1916); Tédio da Alvorada (1917); Uirapuru (1917); Ciclo
Brasileiro (1936);
2º) Com alguma influência folclórica direta: Suíte de
Cânticos Sertanejos (1909); Danças dos Índios Mestiços (1916); Prole
do Bebê nº 1, Cirandinhas (1926); Lenda do Caboclo (1920);
3º) Com transfigurada influência folclórica: Série de
Choros (1920-1929); Mandú-Çarará (1940); Prole do Bebê nº 2
(1921); Saudades das Selvas Brasileiras (1927); Três Poemas Indígenas
(1926);
4º) Com transfigurada influência folclórica impregnada
do universo musical de Bach: Vidapura (1919); Bachianas
Brasileiras (1930-1945), entre centenas de outras obras, nas
quais busca a criação de uma paisagem sonora característica
da nossa terra, carregando o imaginário brasileiro por meio
de efeitos sonoros diversos. Villa-Lobos também classifica
uma quinta categoria, que designa como em pleno domínio
do universalismo (RIBEIRO, 1987, pp. 40-44).
O sistema de composição a partir do decalque do
contorno de montanhas e outros acidentes geográficos,
denominado música nas montanhas, foi um método de escrita
musical de incentivo ao imaginário infantil e à criatividade
das crianças. A transposição em papel quadriculado desses
Arte, Cultura e Imaginário 21

contornos, a partir de regras específicas, levava os pequenos


“a compor” melodias sobre a paisagem observada. A ideia
desse sistema foi incentivar a observação atenta da paisagem
ao seu redor.
A natureza brasileira é vista por Villa-Lobos como
um lugar ideal, paradisíaco, por sua monumentalidade e
misticismo. Uma parcela significativa de efeitos
onomatopaicos utilizados por ele e característicos de toda a
sua produção musical são originados de sua escuta na floresta
tropical. Ele buscou transportar para sua música a paisagem
sonora brasileira ao amalgamar em sua obra o som de pássaros,
da fauna, de efeitos sonoros e ruídos de nossas florestas, pois
é nelas que estão contadas as diversas lendas indígenas, que
pássaros maravilhosos se escondem e que o universo mítico
se aloja.
Descartando o sabiá, pássaro que representou a
identidade nacional durante o Romantismo
literário brasileiro, Villa-Lobos escolheu o
uirapuru, pássaro exótico, misterioso e mágico,
envolto numa mitologia rica vinculada à cultura
indígena e folclórica, muito difícil de ser visto ou
ouvido, e que povoava a floresta ‘maravilhosa’ do
Amazonas. [...] Conforme o conhecimento nativo,
o uirapuru tem um poder de encantamento sobre
os outros pássaros e feras da floresta. Quando
ele canta, todas as aves se agrupam ao redor para
ouvir o seu canto mavioso (VOLPI, 2009, p. 31).
O uirapuru é um dos pássaros mais conhecidos do
folclore brasileiro, sendo suas penas consideradas como
amuleto poderoso para obter sorte no amor, no jogo e nos
negócios, muito valorizadas no mercado informal das regiões
norte e nordeste do país. Richard Spruce (1908) define seu
nome “Uirá-purú” como pássaro malhado, de tamanho
próximo ao de um pardal. Ele grafou um tema cantado pelo
pássaro em sua estada no Amazonas.
22 Heitor Villa-Lobos, a formação musical...

Figura 1. Tema do canto do uirapuru, grafado por Richard Spruce.

Fonte: Brasiliana, 2009, p. 33.

Villa-Lobos, em seu Bailado Uirapuru (Lenda do


pássaro encantado), criou um tema muito próximo ao de
Spruce e o desenvolveu como elemento de estruturação de
toda a obra. A lenda contada no bailado cita a metamorfose
de um índio formoso no pássaro, que, ao ser flechado por
uma jovem índia, retoma sua forma humana e, novamente
ferido por outro índio, transforma-se em um pássaro invisível.
“Revela-se de especial importância o fato de que Villa-Lobos
foi o primeiro compositor brasileiro a criar uma lenda que
contém padrões míticos indígenas, como a metamorfose”
(VOLPI, 2009, p. 35). A metamorfose entre o mundo natural
e humano está presente nas narrativas indígenas. Porém, Villa-
Lobos foi o primeiro compositor brasileiro a utilizar esta
temática e transportá-la para o universo da música de concerto.
A música do Uirapuru está muito próxima da obra
Macunaíma, de Mário de Andrade, inclusive pela citação do
pássaro. As palavras de Mário de Andrade são transformadas
em música por meio de efeitos sonoros, como o som de grilos,
sendo realizado pelo piano, em um ostinato rítmico na região
mais grave do instrumento e a nota si cinco em stacatto
antecedida por uma apogiatura em lá sustenido, e pelo violino
na nota sol cinco em fusas intercaladas por pausas. O trecho
selecionado do livro nos dá a ideia da importância do pássaro
para o escritor.
Então o passarinho uirapuru agarrou cantando
com doçura e o herói entendeu tudo o que ele
cantava. E era que Macunaíma estava desinfeliz
Arte, Cultura e Imaginário 23
porque perdera a muiraquitã na praia do rio
quando subia no bacupari. Porém, agora, cantava
o lamento do uirapuru [...] (ANDRADE, 1990,
p. 28).
Quanto ao uso de técnicas que possibilitam a
imaginação do ouvinte, incluímos o poema sinfônico e bailado
Amazonas, pela inclusão do ostinato no piano e nas madeiras
para demonstrar o movimento ininterrupto das águas do rio
Amazonas e a orquestração ousada para indiciar a densidade
e a umidade da floresta. A ousadia no uso da instrumentação,
pela junção de instrumentos efetivos da orquestra com
instrumentos populares, que indica uma liberdade de
expressão, e a pesquisa para encontrar a identidade brasileira;
a originalidade; a mescla de técnicas de composição erudita
com técnicas da música popular; a utilização de melodias e
ritmos indígenas, afrodescendentes e populares fazem de
Heitor Villa-Lobos o representante mais significativo do
modernismo musical brasileiro do início do século XX.
As transformações que engendram o pensar, sentir e
agir de uma cultura estão diretamente articuladas com o
imaginário, essa instância que congrega o capital pensado do
homo sapiens, conforme afirma Gilbert Durand (1997). Sabe-
se estreita a relação entre o imaginário e as artes, de forma a
podermos designar a arte musical como linguagem dessa
instância imaginativa.
O imaginário nacional engendrou produções estéticas
e culturais de nosso país em muitos momentos históricos,
sendo marcante no Romantismo – de maneira exótica e
ufanista – e no Modernismo – de maneira crítica. Em ambos
os momentos culturais, a projeção de uma nova nação
brasileira demandava a imaginação de uma nova identidade.
O imaginário mítico que Mário de Andrade reinventa em sua
obra Macunaíma (1990) dialoga com o que Villa-Lobos assume
como tarefa: ajudar no processo de construção de um projeto
nacionalista para o Brasil, propondo revolucionar a linguagem
artística a partir de aspectos formais e temáticos.
Portanto, sua linguagem experimentalista, que instaura
uma ruptura com a linguagem convencional, funde elementos
24 Heitor Villa-Lobos, a formação musical...
do universo indígena, africano, europeu, formando um
compósito materializador da proposta estética da primeira
geração modernista, cujo desígnio era recriar um imaginário
da terra brasileira movimentado pelas pulsões de uma nova
identidade.
Para tanto, Villa-Lobos foi além da simples compilação
da música e da letra. Ele utilizou diversas técnicas de adaptação
e arranjos, que definiu como “ambientações”, desde um
contraponto sobre uma melodia, até uma polifonia complexa
e um acompanhamento que lembra o som do objeto ou ação
descrita, em uma busca pelas paisagens sonoras, conforme
conceito criado pelo músico canadense Murray Schafer, seja
pelo uso de um efeito sonoro, como uma apogiatura ou um
trinado, seja pela utilização de sons onomatopaicos.
Acrescenta Alejo Carpentier, que se torna amigo de
Villa-Lobos e comenta sua obra em uma série de artigos, entre
os quais o da Gaceta Musical, publicado em Paris:
E o admirável Tomás Teran se senta ao piano.
Executa prestigiosamente uma suíte das Cirandas
de Villa-Lobos... E a voz formidável da América,
com seus ritmos da selva, suas melodias primitivas,
seus contrastes e choques que evocam a infância
da humanidade, funde-se ao bochorno da tarde
estiva, através de uma música refinadíssima e
muito atual. O encantamento surte efeito. Os
martelos do piano – baquetas de tambor? –
golpeiam mil lianas sonoras, que transmitem ecos
do continente virgem (GUÉRIOS, 2003, p. 155
apud NEGWER, 2009, p. 163).
Seus choros sintetizam diferentes modalidades da
música brasileira indígena e popular, o carnaval, as serestas,
bem como a música dos índios e dos afro-brasileiros.
Ainda com o intuito de criar uma consciência da
identidade nacional brasileira, de fomentar o ensino musical
menos rígido que os grupos corais e líricos e de auxiliar na
construção do imaginário nacional pelo viés da música, Villa-
Lobos, ao voltar da Europa, em 1930, institucionaliza o ensino
da música nas escolas brasileiras, por meio do canto orfeônico,
Arte, Cultura e Imaginário 25
designativo de conjuntos vocais, normalmente existentes nas
escolas, formados por crianças e jovens (TACUCHIAN, 2009).
O músico acreditava que o canto em grupo seria a
resposta musical aos propósitos de Getúlio Vargas relativos à
educação como forma de unidade social e disciplinar, típicos
de um governo centralizador, conforme suas próprias palavras:
O canto orfeônico é uma das mais altas
cristalizações e o verdadeiro apanágio da música,
porque, com seu enorme poder de coesão, criando
um poderoso organismo coletivo, ele integra o
indivíduo no patrimônio social da Pátria (VILLA-
LOBOS apud RIBEIRO, 1987, p. 90).
Nesse aspecto, o projeto de canto orfeônico estava
alinhado às propostas do governo em buscar e solidificar o
“espírito nacional”, fundado nos valores da tradição, da raça,
da religião, da língua, das etnias formadoras do povo brasileiro
e da memória do passado. A carta enviada por Villa-Lobos
em 1932, ao presidente Getúlio Vargas, confirma isto: “[...]
eficaz de propaganda, no estrangeiro, sobretudo se for lançada
por elementos genuinamente brasileiros, porque desta forma
ficará mais gravada a personalidade nacional [...]” (CONTIER,
1998, p. 28).
Villa-Lobos obteve total apoio do governo Vargas e
pôde concretizar seu projeto de educação musical, primeiro
no âmbito do espaço físico da capital do país, por meio do
Decreto Municipal 4.387, a partir de seu cargo como diretor
da Superintendência de Educação Musical e Artística – SEMA,
criada por Anísio Teixeira (Secretário do Departamento de
Educação da Prefeitura do Rio de Janeiro) em 1932, e depois,
em 1938, em nível nacional.
A disciplina de canto orfeônico foi oficialmente
reconhecida pelo decreto 19.890, de 18 de abril de 1931, na
reforma instituída por Francisco Campos, primeiro ministro
da Educação e da Saúde, que definiu a organização do ensino
secundário no Brasil. O canto orfeônico foi incluído como
disciplina obrigatória do currículo nas três primeiras séries
do ensino fundamental.
Esse projeto fazia reverbar a ideia de Getúlio Vargas
sobre a reconstrução nacional, a partir do tripé: controle sobre
26 Heitor Villa-Lobos, a formação musical...
o trabalho, centralização do poder e unidade nacional, e
buscava fomentar a disciplina, a educação cívica e a educação
artística (VILLA-LOBOS, 1970).
Nada melhor do que uma atividade que unisse crianças
e jovens, envolvidos em um projeto aglutinador, o canto em
grupo, como forma de propaganda desse pensamento de
“Estado forte”, participando de apresentações diversas, em
particular as festas cívicas, com o objetivo de transmitir os
conceitos de “ordem, civismo, unidade nacional e participação
coletiva na totalidade da nação” [...] e que “se constituíram
como instrumento de legitimação desses símbolos na
imaginação coletiva” (TACUCHIAN, 2009, pp. 151-152).
É assim que, através de seus imaginários sociais,
uma coletividade designa a sua identidade, elabora
uma certa representação de si, estabelece a
distribuição dos papéis e das posições sociais,
exprime e impõe crenças comuns, constrói uma
espécie de código de ‘bom comportamento’ [...]
(BACZKO, 1985, p. 309).
Villa-Lobos estava em sintonia com o filósofo John
Dewey, que proclamava que a metodologia educacional
deveria visar a um fim social e um fundamento etnológico. A
ênfase no canto em grupo na sala de aula, em eventos nas
escolas e nas cerimônias cívicas em estádios de futebol com
milhares de jovens foi uma das tarefas pedagógicas do
compositor brasileiro para atingir estes objetivos.
O canto coletivo, com seu poder de socialização,
predispõe o indivíduo a perder no momento
necessário a noção egoísta da individualidade
excessiva, integrando-o na comunidade,
valorizando no seu espírito a ideia da necessidade
de renúncia e da disciplina ante os imperativos da
coletividade social, favorecendo, em suma, essa
noção de solidariedade humana, que requer da
criatura uma participação anônima na construção
das grandes nacionalidades (VILLA-LOBOS
apud RIBEIRO, 1987, p. 87).
Arte, Cultura e Imaginário 27
Para o compositor, era fundamental trabalhar a
memória, a educação cívica, a disciplina e a socialização, a
partir de letras e melodias folclóricas, pois elas eram passadas
de geração para geração oralmente.
Assim, confere-se a elas importante significação
cultural e social, pois eram cantigas na língua
portuguesa transmitidas com caráter de
socialização e ludicidade. Ambas não podem ser
separadas, pois a diacronia encontrou a forma na
sincronia, constituindo um todo e consequentemente
uma identidade da nossa cultura. [...] Os cantos
folclóricos criaram vida e circularam por nossa
cultura [...] (ROSÁRIO, 2014, p. 38).
O canto orfeônico “possibilitou uma prática
socializadora, por meio da mobilização de grandes
agrupamentos corais”, nos quais o participante sentia a
integração da coletividade social, em concentrações que
reuniam milhares de estudantes – quarenta e dois mil na
Semana da Pátria de 1940 – interpretando músicas do
cancioneiro infantil, hinos patrióticos e canções ufanistas, além
dos chamados “efeitos orfeônicos, reprodução onomatopaica
de ruídos naturais, articulados simultaneamente por todo o
grupo de cantores”, que provocavam verdadeiras catarses
coletivas (PAOLIELLO, 2006, p. 154). Conforme Souza,
a tendência de eliminar o sujeito em função do
coletivo, numa relação com a música basicamente
emocional, resulta numa perigosa direção dos
objetivos da música, onde o processo de
identificação com a pátria pode ser levado às
últimas consequências como a emocionalização
dos alunos e sua disposição em morrer pela pátria
(SOUZA, 1999, p. 19).
Essas manifestações públicas, envolvendo a comunidade em
geral, segundo o pensamento do governo, promoviam a busca pela
identidade e pelo orgulho nacional.
28 Heitor Villa-Lobos, a formação musical...
O patrocínio pelo regime varguista de cerimônias
cívicas procurava realizar uma síntese cultural em
monumentais rituais comemorativos de eventos
cívicos e históricos importantes. Estes rituais, que
serviram ao propósito múltiplo de unificar elites
e massas, também simbolizaram um tempo e um
espaço idílico no imaginário político brasileiro.
(PARADA, 2009, p. 21).
Carlos Drummond de Andrade deixou um texto
emotivo a respeito dessas concentrações, salientando o caráter
cívico aglutinador de tais eventos pelo uso de canções ufanistas
e de efeitos sonoros que alimentavam o imaginário dos
presentes.
A multidão em torno vivia uma emoção brasileira
e cósmica, estávamos tão unidos uns aos outros,
tão participantes e ao mesmo tempo tão
individualizados e ricos de nós mesmos, na
plenitude de nossa capacidade sensorial, era tão
belo e esmagador, que para muitos não havia outro
jeito senão chorar; chorar de pura alegria. Através
da cortina de lágrimas, desenhava-se a figura
nevoenta do maestro, que captara a essência
musical do nosso povo, índios, neg ros,
trabalhadores do eito, seresteiros do arrabalde; que
lhe juntara ecos e rumores de rios, encostas,
grutas, lavouras, jogos infantis, assobios e risadas
de capetas folclóricos (MAIA, 2000, p. 48).
Anísio Teixeira (1977) deixa clara a busca de Heitor
Villa-Lobos por uma sonoridade que levasse os intérpretes e
assistentes dessas concentrações a uma emoção coletiva,
fundada no imaginário das diferentes paisagens sonoras
brasileiras.
Quando começaram as grandes exibições
públicas, o povo cantou com as crianças e o país
assistiu maravilhado e comovido às harmonias de
suas florestas, dos grandes ventos dos seus
desertos, as melodias dos seus rios e as dores e
alegrias das suas diferentes raças, toda a epopeia
Arte, Cultura e Imaginário 29
enfim de um povo, misto e complexo, mergulhado
nas extensões tropicais de um continente, posta
em som, posta em ritmo, posta em música, numa
grande e lírica manifestação de afirmação e
grandeza (TEIXEIRA, 1977, p. 16).
Para tornar possível este canto coletivo com
qualidade, Villa-Lobos escreveu música simples, despojando-
a de elementos mais complexos de linguagem musical, pois a
finalidade era pedagógico-doutrinadora, objetivando a uma
coletividade disciplinada e não a demonstração de técnica
refinada. A formação de técnicos musicais virtuosos nunca
esteve presente na proposta do projeto de canto orfeônico.
Para este fim, foi criada a Escola Nacional de Música.
Para preencher a sua função de música
socializadora era necessário, em primeiro lugar,
que a música nacional tomasse conhecimento de
si mesma pela formação de uma consciência musical
brasileira e pela apreensão total do conjunto de
fenômenos históricos, sociais e psicológicos,
capazes de determinar os seus caracteres étnicos,
suas tendências naturais e o seu ambiente próprio
[grifo do autor] (VILLA-LOBOS, 1971, pp. 101-
102).
A “for mação de uma consciência nacional”,
fundamentada na ordem, civismo, culto à pátria e ao trabalho,
união e exaltação à natureza, foi apoiada metodologicamente
por cartilhas e livros didáticos, organizados e/ou compostos
por Villa-Lobos em ordem crescente de dificuldade,
enfatizando uma educação musical continuada sob a tutela
do Estado.
Villa-Lobos, como presidente da SEMA, editou o
seguinte material de apoio ao seu projeto: Canto Orfeônico,
Solfejos e o Guia Prático. A dissertação de mestrado de Marli
Batista Ávila, intitulada A Obra Pedagógica de Heitor Villa-Lobos:
uma leitura atual de sua contribuição para a educação musical no Brasil
(2010) traz um estudo aprofundado de todas as melodias dos
cinco livros de material de apoio reordenados por ordem de
dificuldade, com sugestões valiosas de atividades lúdicas, que
30 Heitor Villa-Lobos, a formação musical...
levam a criança à prática da brincadeira infantil e ao
desenvolvimento do imaginário na medida em que sugere
diversos gestos de imitação de pássaros e de personagens.
Muitas dessas atividades lúdicas estavam esboçadas em textos
e partituras originais do compositor.
O Canto Orfeônico foi escrito em dois volumes, para
diversas formações de vozes, desde uníssono (uma só melodia
cantada em conjunto), até arranjos a oito vozes mistas, com
ambientações de melodias folclóricas e de canções escritas
por músicos e poetas brasileiros. Foi pensado
pedagogicamente, pois as ambientações estão dispostas em
ordem crescente de dificuldade e constam observações de
como podem ser utilizados em sala de aula e acompanhados
por performances corporais; dois volumes de Solfejos, com o
intuito de incentivar a leitura musical e o Guia Prático.
O Guia Prático, escrito entre 1932 e 1936, composto
por cento e trinta e sete peças para coro infantil e infanto-
juvenil em sua primeira parte, com arranjos e harmonizações
em diversos níveis de dificuldade, foi o material didático
utilizado em todas as escolas brasileiras nesse período. Foi
pensado para servir de auxílio às atividades dos professores
de música, visando à educação cívico-social, à formação do
gosto artístico e à construção de um imaginário social (VILLA-
LOBOS, 1941; KRIEGER, 1974).
Segundo Villa-Lobos, deveria ter seis volumes,
divididos em: 1º) canções infantis; 2º) canções cívicas; 3º)
canções nacionais e estrangeiras; 4º) temas ameríndios e
canções afro-brasileiras; 5º) música universal; 6º) coletânea
de peças eruditas. Até hoje, apenas o primeiro volume foi
encontrado.
Representou um instrumento de trabalho para os
músicos que, na época estavam engajados no
movimento do Canto Orfeônico, liderado pelo
próprio Villa-Lobos, e que foi o mais importante
projeto de educação musical implementado no
país até nossos dias (TACUCHIAN, 2009, p. 8).
A busca de um repertório significativo, já presente no
inconsciente coletivo das crianças e jovens, influiu “na
Arte, Cultura e Imaginário 31
legitimação desse mesmo imaginário”, e a utilização do
folclore, com sua função socializadora, na fixação dele.
Para o compositor, era por meio do folclore que se
chegaria a uma “consciência musical brasileira”, pela
apreciação de uma música “verdadeiramente artística”
(VILLA-LOBOS, 1971, p. 126), pensamento coincidente com
a ideia da construção do “Brasil Novo”, a partir da Revolução
de 1930, que proclamava o folclore como “as falas das camadas
subalternas da sociedade”, sendo o sertão a fonte autêntica
da brasilidade (BORGES, 2008, p. 82).
Tendo o folclore como referência, o compositor
educador sintetizou seu pensamento e sua prática
pedagógica nesse trabalho, que, confor me
afirmou o compositor Edino Krieger (1974, p.
60) ‘[se apresenta] como reflexo simultâneo de
duas entidades culturais: de um lado o folclore,
de outro, o artista criador que dele se utiliza’
(PAOLIELLO, 2006, p. 155).
Villa-Lobos tinha consciência de sua relevância na
mudança histórico-cultural do início do século, bem como
do papel da educação musical na formação das crianças e
jovens.
O imaginário que expressa traduz aspirações estéticas
e também ideológicas. A despeito de associar-se, em
determinado momento, à ideologia política, não é desprezível
a força mágica da alma brasileira em todas as partituras nas
quais a corporifica.
O trabalho de Villa-Lobos destaca-se até hoje como
exemplo de autodescoberta musical não apenas do Brasil, mas
também da América Latina. Diferente de seus
contemporâneos sul-americanos, contrariou a hegemônica
herança musical europeia, valorizando sua pátria em seus
aspectos físicos, culturais e humanos, imprimindo, em sua
obra, a força mágica, as melodias e ritmos de nosso povo.
Villa-Lobos cria um imaginário musical que expressa a alma
do povo brasileiro.
O “embaixador cultural do Brasil”, de vanguardista a
funcionário da música, após a Era Vargas, retoma suas
32 Heitor Villa-Lobos, a formação musical...
atividades com a proposta de uma síntese entre o velho e o
novo, entre o genuíno e o universal.
Sabemos que o tecido artístico abriga movimentos
hermenêuticos potencializadores de leituras plurais, entretanto
não há como negar que Villa-Lobos exercita uma paradoxal
conciliação entre o efêmero e o eterno, o que eleva sua obra
à qualidade de arte.

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Narrativas Mitopoéticas dos Mborai
(Cantos Guarani Mbya)1
Alzira Lobo Arruda Campos2
Marília Gomes Ghizzi Godoy3

Os recortes epistemológicos proporcionados pela


análise literária apresentam-se como meramente circunstanciais
quando aplicados a sociedades não concorrenciais, como
aquelas dos índios brasileiros, para as quais as fronteiras entre
ficção e realidade histórica, cultura popular ou erudita não
apresentam caráter operatório para a compreensão de
discursos emanados de mitos. E, como tais, pertencentes ao
“grande tempo”, no qual, a distinção entre passado e presente
só existe em enunciados que revelam, muitas vezes, pontos
de vista dos estudiosos sobre fatos que atingiram dramaticamente
os modos de viver tradicionais indígenas, em suas adaptações/
resistências à violência da colonização branca. O mesmo
acontece quanto a análises ancoradas em literatura erudita ou
popular, categorias não aplicáveis, à evidência, a uma sociedade
igualitária, infensa às estruturas de classe. Trata-se, com efeito,
de um desafio enfrentado com sucesso por numerosos
estudiosos do discurso mítico, que se têm ocupado da “fala
instituinte” desse discurso (BORGES, 1998, p. 81).

1
Este capítulo está publicado originalmente na Intersecções. Revista de Estudos
sobre Práticas Discursivas e Textuais, v. 2, pp. 15 -180, 2018.
2
CAMPOS, Mestrado e Doutorado em História Social (USP/SP); Livre-
docente em Metodologia da História (UNESP/FRANCA); docente do
Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Santo
Amaro (UNISA/SP).
3
GODOY, Mestre em Antropologia Social (USP), doutora em Psicologia
Social (PUC-SP), professora do Mestrado em Educação, Administração
e Comunicação da Universidade São Marcos (2000-2012), professora do
Mestrado em Ciências Humanas da Universidade Santo Amaro (UNISA).
36 Narrativas Mitopoéticas dos Mborai...
A mitodologia durandiana, ao inaugurar um novo
método que enfoca o mito “latente ou manifesto em toda a
narrativa, não circunscrito ao tempo e ao espaço, mas preso à
sabedoria de culturas imemoriais e sempre presente na
extensão visionária” (TURCHI, 2003, p. 39) constitui o
conceito primordial desta análise. O mito é aqui avaliado como
uma expressão legítima da condição humana e das relações
sociais nos Guarani, por meio de configurações literárias desse
grupo – os mborai.
Ao entender o mito como “magna de significância” e
como constituidor da “razão imaginária que sustenta a
sociedade” (BORGES, 1998, p. 9), esta reflexão detém-se nas
narrativas mitopoéticas – os mborai –, procurando entender o
seu papel no reforçamento da identidade dos Guarani Mbya4,
como discurso fundador, em suas performances significativas.
Nesse sentido, pretende-se contribuir para as pesquisas sobre
o símbolo e o mito, que, modernamente,
provocaram um novo humanismo, envolvendo
toda a cultura humana, na interdisciplinaridade
da antropologia, da etnologia, da história das
religiões, da sociologia, da psicopatologia, das
estéticas e das literaturas. A mitodologia necessita,
pois, de caminhos distintos para enriquecer as
possibilidades hemenêuticas dos textos: a
mitocrítica e a mitanálise (TURCHI, 2003, p. 39).
Como um dos capítulos mais significativos da cultura
literária brasileira, embora e paradoxalmente pouco conhecido,
os mborai constituem um vetor eficaz para a compreensão da
identidade Guarani. E, dados os epistemas e conceitos que

4
A grafia Mbüá tem sido substituída por Mbya por vários autores, que
manifestam a sua preferência por uma palavra escrita com o menor
número de símbolos gráficos, fato que os levou a substituir a sexta vogal
“ü” pelo y. No entanto, esses mesmos autores respeitam a grafia tradicional
nas citações presentes em seus textos, posição aqui adotada. Cf. in:
LADEIRA, Maria Inês. O caminhar sob a luz: território mbya à beira do oceano.
São Paulo: Editora UNESP, 2007, pp. 20-21.
Arte, Cultura e Imaginário 37
regem o estudo literário de sociedades de tradição oral,
conduzem-nos à identidade do homem contemporâneo, em
sua complexidade, encontros e conflitos.
Adota-se a interdisciplinaridade como metodologia
para a análise dos mborai, uma vez que a não distinção entre
ficção e realidade – já problemática para a literatura não
indígena – faz com que os cânticos sagrados guarani espelhem
a materialidade histórica de sua existência, no ambiente de
exploração a que foram submetidas as etnias não europeias
durante a colonização e nas épocas subsequentes. Essa
materialidade liga-se a conceitos antropológicos sobre
identidade, diversidade cultural, alteralidade e plurietnicidade,
transcritos para os limites da reflexão aqui conduzida, no
perspectivismo indígena. Trata-se de contribuir com os relatos
sobre aspectos de culturas alheias às hegemônicas. Na
consideração de Rodrigo Petronio, o olhar sobre o Outro e a
descrição da alteridade, embora sempre tenham ocupado “um
lugar privilegiado na literatura e na construção do imaginário
humano”, apenas a partir do século XIX esse saber difuso
definiu-se como novo campo do conhecimento, a
antropologia, ciência que passou a conferir sentido à
abordagem em rede do homem, em especial pelo emprego
de seu método central, a etnografia, que consiste em estudar
as culturas a partir dos valores internos a elas:
O objetivo da etnografia não é apenas encontrar
equivalentes nas culturas ocidentais para palavras,
práticas e ideias não ocidentais. Seria preciso acima
de tudo compreender a partir de qual sistema de
valores (axiologia) os nativos as empregam. A
etnografia não se resume à tradução de termos.
Define-se por uma tentativa de transposição do
sentido. (PETRONIO, 2018, El).

A transposição de sentido é uma das estratégias usadas


para a adequação da análise literária aos mito-poemas guarani,
observando que o real é multidimensional, e o que poderia
ser entendido como uma insuficiência do método pode ser
melhor esclarecido como uma mereografia, isto é, partes que
não se totalizam em uma unidade, de acordo com algumas
38 Narrativas Mitopoéticas dos Mborai...
linhas avançadas da antropologia contemporânea, em especial
de Marylin Strathern. (PETRONIO, 2018, El).

Aculturação e resistência identitária indígena

Os primeiros contatos dos brancos com os índios


brasileiros deram-se nas condições de dominadores e
dominados, pois os descobridores portugueses tomaram posse
solene e imediata da nova terra posta em seu caminho para as
Índias. Os contatos pacíficos com os silvícolas logo se
transformaram na luta direta ou disfarçada entre brancos e
não brancos. Caracteres estranhos aos colonizadores
forneceram o alicerce justificativo para a aculturação dos novos
súditos da Coroa. Nudez, antropofagia e poligamia
transformaram-se em alvos preferenciais de um combate que
se prolongou pela história do Brasil, com o objetivo claro de
escravizar os primitivos habitantes da terra, que urgia
conquistar. Avant la lettre, surgiam as primeiras visões
etnológicas, claramente eurocentradas. Os indígenas andavam
nus, habitavam grandes cabanas coletivas, dormiam em redes
e se utilizavam de fogueiras para se aquecer. A sua alimentação
era composta por raízes, especialmente de mandioca, de milho,
frutas, peixes e caça, produzidos em roças rudimentares ou
coletados por meio da caça e da pesca. Os instrumentos por
eles utilizados eram machados, facas, porretes, lanças, arcos e
flechas de pedra lascada ou polida e madeira. Algumas etnias
construíam canoas, usadas para a pesca, o transporte e a guerra.
Não conheciam o uso de metais, até a chegada dos europeus
(MESGRAVIS, 2015, p. 15).
O estado de guerra constante entre etnias diversas foi
logo observado pelos portugueses, particularmente chocados
com os rituais antropofágicos a que assistiam e que se
encontram narrados minuciosamente em cartas, relatórios e
crônicas produzidas durante o primeiro século de colonização.
Nesse cenário, os indígenas foram sujeitos a um
processo de extermínio e de escravização pelo branco. Sem
defesa contra as doenças europeias, “caíam como folhas
Arte, Cultura e Imaginário 39
secas”, na versão jesuítica, debilitando suas aldeias e
extinguindo etnias inteiras. Para escapar, refugiaram-se nas
florestas ou se rebelaram em combates desiguais com os
portugueses. Uma grande migração de índios pela Amazônia,
em direção ao Peru, verificada em 1540, foi provocada por
um choque havido com colonos, mas teve como efeito a
interiorização das doenças europeias. O século XVI foi
marcado por uma resistência indígena generalizada,
assinalando levantes nas Capitanias de São Vicente, São Paulo,
Espírito Santo, Rio de Janeiro, Pernambuco e Ceará. O ano
de 1556 assinalou os Combates dos Caetés, que haviam
destruído o navio que levava D. Pero Fernandes Sardinha, o
primeiro bispo nomeado para o Brasil, devorando as vítimas
do naufrágio e recusando, segundo a crônica, a devorar o corpo
do bispo, de tanto que o odiavam. Após esse massacre, os
Caetés foram alvo de uma guerra de extermínio e os seus
remanescentes foram escravizados sob o artifício jurídico de
“guerra justa”, isto é, ataques defensivos que permitiam, contra
a legislação vigente, que índios amotinados fossem
apreendidos e usados como escravos pelos colonos
(MESGRAVIS, 2015, p. 18)
Outros levantes se assinalaram, como o das chamadas
Santidades, na Bahia, de caráter messiânico. Ao desembarcar
no litoral baiano, os portugueses encontraram nele uma
população indígena numerosa liderada por alguns homens,
chamados de “caraíbas”, que tinham o poder de se comunicar
com os espíritos dos ancestrais. Os caraíbas tupis, guerreiros
errantes e muito respeitados como “senhores da fala”, faziam
pregações pelas manhãs e durante festas que promoviam,
incentivando os indígenas a combater os portugueses e a
buscar a terra da bem-aventurança, onde moravam os
guerreiros antigos e onde não se morria jamais. As suas
pregações davam-se durante transes que os acometiam após
terem absorvido a fumaça de uma erva e conversado em
sussurros com cabaças mágicas, nas quais se alojavam o
espírito dos deuses. Enquanto durava o ritual, a aldeia ouvia a
voz de seus profetas, dançando ao som de flautas e batuques
e entoando uma melodia monótona e triste. Os portugueses
chamavam inicialmente esses rituais e os caraíbas que os
dirigiam de “santidades”, vendo-os, após um primeiro
40 Narrativas Mitopoéticas dos Mborai...
momento de perplexidade, como réplicas do sabá europeu.
Vainfas historiou as santidades em geral, consideradas como
rituais ou festas rebeldes dos tupi, detendo-se na Santidade
de Jaguaripe, que irrompeu ao sul do Recôncavo Baiano, por
volta de 1580, comandada por um caraíba já catequizado pelos
jesuítas, que incendiou engenhos e promoveu fugas em massa
dos aldeamentos. Essa santidade conseguiu cooptar as
simpatias de um poderoso senhor de engenho da época,
Fernão Cabral de Taíde, que propôs aliança e proteção à seita
de Jaguaripe, chegando a participar de seus rituais (VAINFAS,
1995, pp. 13-14), indício a apontar para o poder do discurso
dos caraíbas sobre os seus próprios inimigos naturais, isto é,
os colonizadores que combatiam.
A estreita relação entre os grupos étnicos em contato,
exemplificado pela Santidade de Jaguaripe, mostra um
processo interétnico, como o aqui analisado, referente à
aculturação em uma realidade especificamente antropológica:
o seu condicionamento e a sua resultante culturais. Os
processos relacionais consequentes aos contatos entre brancos
e índios desenrolaram-se de acordo com um esquema que
aponta para planos distintos, mas dependentes entre si: o
cultural, o social e o psíquico. A extraordinária complexidade
de um processo aculturativo aconselha uma visão conjunta
de disciplinas, numa integração de diferentes perspectivas. A
aculturação configura uma realidade viva que se funde na
unidade das disciplinas embora a perspectiva predominante
seja a do antropólogo, uma vez que:
não pode ser outra se não a da análise e discussão
do processo propriamente cultural, isto é, das
mudanças que se operam na herança social, sem
aprofundar em igual grau a pesquisa das
transformações ocorridas na estrutura das
personalidades individuais ou a das repercussões
havidas na existência social do grupo ou dos
grupos em apreço (SCHADEN, 1969, p. X).
Em estudo realizado mais tarde sobre a religião
indígena e o cristianismo, Schaden reflete sobre a interação
intensa ocorrida entre a cultura guarani e a cristã, observando
Arte, Cultura e Imaginário 41
que a etnia estudada era, por unanimidade, considerada como
profundamente religiosa, com um interesse manifesto por
tudo que significasse religião “verdadeira ou falsa”, como
assinalavam já os antigos missionários. Pesquisadores
modernos, como Nimuendajú, Cadogan, Haubert e Melià,
têm notado igualmente o espírito extraordinariamente místico
dos Guarani contemporâneos. Com efeito, conhece-se que
os grupos atuais, sujeitos à influência desintegradora do
contato com os brancos, encontram no apego à religião dos
antepassados o principal estímulo para fortalecer a sua
identidade étnica. Dessa forma, o notório êxito missionário
dos jesuítas pode ser explicado, prioritariamente, pela afinidade
entre a orientação da cultura tribal e os objetivos da pregação
cristã (SCHADEN, 1982, pp. 4-6).

Teoria antropológica e direitos dos indígenas


brasileiros: aculturação e identidade cultural

O termo “aculturação” tem merecido investimentos


constantes dos antropólogos para o esclarecimento de seu
significado, uma vez que implica visões ideologicamente
demarcadas pelo tempo e pelo espaço. Como substantivo,
apareceu por volta de 1880, na pena de um antropólogo
americano, para definir a transformação dos modos de vida e
de pensamento dos imigrantes em contato com a sociedade
americana. Em sentido estrito, a palavra não designa uma
simples “deculturação”, pois o prefixo “a” procede
etimologicamente do latim ad, que indica aproximação e não
privação. Foi preciso, no entanto, esperar por uma reflexão
surgida meio século mais tarde para que “aculturação” passasse
a indicar a reflexão sistemática dos cientistas sociais sobre os
fenômenos resultantes do encontro de culturas. Um comitê
designado pelo Conselho de Pesquisa em Ciências Sociais dos
Estados Unidos, em 1936, e composto por Roberto Redfield,
Ralph Linton e Melville Herskovits, encarregou-se de
organizar a pesquisa sobre os fatos da aculturação, produzindo
42 Narrativas Mitopoéticas dos Mborai...
o célebre Memorando para o Estudo da Aculturação, que assim
define o termo:
A aculturação é o conjunto de fenômenos que
resultam de um contato contínuo e direto entre
grupos de indivíduos de culturas diferentes e que
provocam mudanças nos modelos (patterns)
culturais iniciais de um ou dos dois grupos
(CUCHE, 2002, p. 115).
De acordo com o mesmo documento, “mudança
cultural” é uma expressão distinta de aculturação, pois refere-
se apenas a um de seus aspectos, podendo resultar de causas
internas ao grupo e não de contatos com outros grupos.
Portanto, é improvável que mudanças endógenas e exógenas
obedeçam às mesmas leis. Na mesma linha, não é possível
confundir “assimilação” com “aculturação”, uma vez que a
primeira deve ser entendida como a fase final da segunda,
implicando o desaparecimento integral da cultura de origem
de um grupo e a interiorização completa da cultura do grupo
dominante, o que é raro e improvável (CUCHE, 2002, pp.
115-116).
Os antropólogos americanos rejeitaram o conceito
simplista e etnocentrista de uma aculturação que funcionasse
a favor da cultura ocidental sobre povos dominados,
introduzindo o termo “tendência” para explicar que
aculturação não significa a conversão de uma cultura em outra,
mas a transformação da cultura inicial por meio da seleção de
elementos emprestados, segundo a “tendência” profunda da
cultura receptora de tal ou qual traço cultural (CUCHE, 2002,
pp. 117-118). De acordo com a teorização adotada, os
elementos técnicos e materiais de uma cultura são transferíveis
com maior facilidade do que os elementos pertencentes ao
universo simbólico, tais como os religiosos e os ideológicos
(CUCHE, 2002, p. 119).
Os índios brasileiros encontram-se presentes nesse
conceito, uma vez que adotaram com facilidade elementos
não simbólicos da cultura ocidental, mas conservaram aqueles
concernentes à religião e cultura tradicionais. Desse prisma, é
notório que a interação mais intensa entre a cultura guarani e
Arte, Cultura e Imaginário 43
a cristã ocorreu no tempo das reduções, nos séculos XVII e
XVIII, mas após a expulsão dos jesuítas por Pombal houve a
presença de outros missionários e de representantes da
sociedade ibero-indígena que, aos poucos, foi absorvendo o
maior contingente da população guarani. Diante de um
processo tão complexo, é lícito colocar-se a questão da
chamada “reguaranização” dos índios “campesinos”, que
foram adotando crenças e costumes de populações vizinhas
a eles, mas situadas fora da órbita da ação missionária. O que
parece certo é que a religião de todos os grupos que hoje
vivem no Brasil, no Paraguai ou na Argentina não é a cristã,
mas a guarani. No conjunto de suas crenças, ritos e cerimônias,
é difícil, se não impossível, determinar quais elementos
proviriam do cristianismo (SCHADEN, 1982, pp. 4-5).
Na medida em que a teoria antropológica absorveu e
tornou prioritários os conceitos de pluralismo e hibridismo
culturais em suas análises sobre identidades étnicas no universo
globalizado, a discussão sobre a autodeterminação dos
indígenas para a determinação de seus destinos como povo
têm-se tornado imperativos no cenário brasileiro.
As dimensões pluralistas da cultura e a construção do
debate democrático após a Constituição de 1988 geraram
reflexões sobre os aspectos pluralistas da cultura nas
sociedades modernas. Nesse quadro, os índios brasileiros
assumiram a primeira posição como atores políticos de seus
destinos, garantindo seus direitos ancestrais à terra e à
cidadania plena, à luz dos processos constitucionais e reformas
políticas, especialmente aqueles consubstanciados nas três
últimas décadas. Durante esse processo, as legislações
monárquicas e republicanas foram submetidas a uma crítica
radical: as leis não passariam de estratégias para aniquilar os
povos indígenas, desapropriando-os de suas terras,
subordinando-os aos brancos, discriminando-os e debilitando
as suas culturas originais. As políticas de assimilação adotadas
durante o século XIX espelharam-se no integracionismo
forçado de meados do século XX, numa linha que deu
continuidade à exclusão dos benefícios sociais, teoricamente
assegurados por leis, mas que, na realidade histórica, resultaram
em desigualdades extremas para a população indígena,
submetida a um regime de exploração próximo à servidão.
44 Narrativas Mitopoéticas dos Mborai...
Sob a pressão dos próprios atores sociais, nos últimos
anos reforçaram-se políticas de apoio estrutural aos indígenas,
considerando-os como povos com direitos à cidadania plena,
assegurados por um corpus legal que, além de afirmar os seus
direitos na atualidade, afirma o direito histórico que têm a
reparações do tratamento que receberam no passado. Com
base em entendimentos dos indígenas com o Estado Nacional
e a sociedade brasileira, apareceram duas propostas de âmbito
internacional, ratificados pelo Brasil: o Convênio 169 da OIT
(Organização Internacional do Trabalho), de 1989, sobre
Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes e a
Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos
Indígenas, de 2007. Esses diplomas configuraram um dossiê
de direitos indígenas, destinado a integrá-los às sociedades
democráticas, mas com espaços de autodeterminação e de
reconhecimento igualitário de sua dignidade como povos.
Com esse objetivo, o convênio 169 rompeu com o
integracionismo e estabeleceu um modelo nacional pluralista,
reconhecendo a autonomia dos povos indígenas e
estabelecendo, como prioridade, o direito incontestável que
teriam quanto à territorialidade nacional.
Corporificando essas medidas, a partir dos anos de
1980, os indígenas esforçaram-se para participar da política
nacional, estruturando-se em organizações próprias, como no
caso da UNI (União das Nações Indígenas), apoiada por vários
órgãos – INESC (Instituto de Estudos Socioeconômicos),
CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e Informação),
CDPI (Centro de Documentação e Pesquisa Indígena), ABA
(Associação Brasileira de Antropologia), e, principalmente, o
Cimi (Conselho Indigenista Missionário) –, que vieram a
compor um campo próprio de teoria e de práxis sobre os
indígenas, em suas reivindicações, direitos e cidadania. Entre
as realizações por eles alcançadas, vale ressaltar a inclusão do
capítulo “Dos índios” na atual Constituição Federal, cujos
artigos 231 e 232 declaram os direitos indígenas sobre as terras
que ocuparam historicamente e à conservação e livre exercício
de sua cultura. Além disso, foi-lhes assegurado o direito de
ingressar em juízo, em defesa de seus direitos e interesses,
como personalidades jurídicas plenas. Entretanto, do mesmo
modo do ocorrido em outras constituições latino-americanas,
Arte, Cultura e Imaginário 45
as estruturas históricas de dominação não se modificaram após
a incorporação dos direitos específicos dos indígenas ao texto
constitucional de 1988, ocorrendo um hiato de fato entre a
lei e as práticas sociais, em especial nos capítulos referentes
ao autogoverno e ao controle dos recursos naturais sobre os
territórios a eles demarcados.
Senhores de seus destinos, pelo menos na letra da lei,
e conscientes das condições multiculturais e pluriétnicas da
sociedade, os indígenas brasileiros enfrentam o desafio de
lutar contra as raízes eurocêntricas da História, que os
subjugou aos brancos colonizadores. Nesse campo, o
protagonismo indígena continua precário na formulação e
controle das políticas públicas do Estado, permanecendo ativo
o antigo vício tutelar do Estado Colonialista Brasileiro.

Os Guarani Mbya: nome e história

O Guarani antigo usava a palavra “aba” para indicar


índio, em oposição a “caray”, designativa de branco. Mbya é
como os Kayaguá do Paraguai se intitulam. Entre os
Apapocúva, essa expressão é usada para se referir a “povo”,
com a conotação de gente atrasada, quase de ralé, aplicada
predominantemente aos Kayguá, em relação aos quais o
Apapocúva se julga muito superior. Os Guarani usam como
autorreferência o termo “Nandéva”, quando se dirigem a um
interlocutor do mesmo grupo, e “Oréva” ao se dirigirem a
uma pessoa de outra tribo. Ambos os termos significam “nossa
Gente”, o primeiro incluindo o interlocutor, o segundo,
excluindo-o. Apenas aquele que fala o mesmo dialeto é
considerado como membro da tribo pelos Guarani
(NIMUENDAJÚ, 1987, p. 7).
A população Guarani do oriente paraguaio e de regiões
adjacentes do Brasil e da Argentina, com exceção dos Guayakí,
subdivide-se em três subgrupos: os Ñandeva, também
conhecidos como Xiripá, os Mbüá e os Kayowá, cada um
deles detentor de dialeto e peculiaridades culturais próprias.
De modo geral, o processo aculturativo dos Guarani revela
46 Narrativas Mitopoéticas dos Mborai...
grande resistência às mudanças consequentes de diferentes
situações de contato, especialmente quanto ao caráter
fundamental da religião. Desse ponto de vista, a adoção de
elementos do cristianismo reflete uma estratégia para melhor
conservar crenças e valores tradicionais. Os Mbüá que são os
mais numerosos, espalham-se por um vasto território do
Paraguai, compreendido desde o Norte do Iguatemi até as
Misiones e Entreríos da Argentina. O Brasil abriga muitos
núcleos pequenos de Mbüá situados em geral nos Estados do
Sul e na zona litorânea de São Paulo. Há alguns grupos situados
no Sul do Mato Grosso e no Estado de São Paulo. A grande
profusão de escritos sobre os Guarani deve-se obviamente
ao fato de que foi entre eles que se verificou o que Schaden
chama de:
a mais espetacular experiência ou empresa de
comunicação intercultural de que há notícia em
terras do Novo Mundo, a das reduções jesuítas
dos séculos dezessete e dezoito, que deu origem
a muitos textos de missionários, historiadores,
filósofos, literatos e, em época mais recente,
também de pesquisadores no campo da
antropologia e das ciências sociais em geral
(SCHADEN,1982, p. 2).
O trabalho desenvolvido por Nimuendajú intitulado
Os Mitos da Criação e da Destruição do Mundo como fundamento da
religião dos Apapocúva-Guarani, publicado em 1914, revelou aos
etnólogos um sistema mítico e religioso extraordinariamente
rico colocando um problema que continua a desafiar os
pesquisadores contemporâneos: compreender qual o impacto
dos ensinamentos cristãos dados pelos missionários jesuítas
nas reduções aos destinos das crenças indígenas. Nimuendajú
não pôde encontrar, em sua pesquisa, quase nada que pudesse
remontar à atuação dos jesuítas, concluindo que tudo aquilo
que poderia apontar como de origem cristã resumia-se:

na existência da cruz, do batismo, do caixão de


defunto, da ideia de representar heróis míticos por
meio de imagens esculpidas, da história da morte
Arte, Cultura e Imaginário 47
de Ñandedjáry (“Nosso Senhor”), no mito de um
herói lendário, Guyraýpotý. Quanto ao pavor da
destruição do mundo, verdadeira obsessão desses
como de outros Guarani, opina que, se fosse
realmente reminiscência do tempo das missões,
haveria aí uma prova cabal da capacidade dos
jesuítas de inculcar nos índios uma das ideias
fundamentais do cristianismo. Teriam neste caso
desviado o pensamento dos neófitos das atrações
terrenas, dirigindo-o para o Além. Mas não se
decide a aceitar essa explicação, porque, a seu ver,
os Apapokúva haviam mantido em tudo uma
visão do mundo inteira e coerentemente pagã, sem
o menor indício de tendências cristãs
(SCHADEN, 1982, p. 3).
Transportadores do mito, sujeitos/objetos de seu
discurso, os Guarani Mbya, como uma sociedade de tradição
oral, têm a sua estruturação étnica, histórica e religiosa baseada
no mito. Dele provém a sua identidade fundacional sempre
relembrada, de modo imemorial e ritualístico – memória viva
a refletir o status de suas relações sociais. Por tais motivos,
parece necessário apresentar um resumo etnográfico desse
povo.
Este estudo focaliza o subgrupo Mbya, que se
distinguiu por ser considerado mais isolado e arredio no
contato com os brancos, tendo permanecido desconhecido
até a segunda metade do século XVIII. A designação kaingua,
associada aos “selvagens”, é consensualmente admitida como
indicativa dos Mbya (GODOY, 2003, pp. 17-18). Na
atualidade, eles mesmos reforçam a forma de identificação
“ka’aguyre mbyte pe” (moradores do meio do mato). Em
situações nas quais se torna imperativo assumir um olhar de
distintividade, ouve-se a expressão nhandeva ete, sendo que o
termo nhandeva significa “nós índios” e ete, real verdadeiro
(DOOLEY, 1982, p. 54). Tais expressões retratam o caráter
de radicalismo com que os Mbya seguem suas tradições
(SCHADEN, 1974).
Entre as 28 terras indígenas existentes no estado de
São Paulo, destacam-se 18 aldeias Mbya, das quais apenas seis
48 Narrativas Mitopoéticas dos Mborai...
encontram-se homologadas. Essas aldeias compreendem uma
população de 1.802 habitantes (Diário Oficial da União,
FUNAI & ISA, fevereiro de 2013). A demografia das aldeias
varia de sete a 350 habitantes (Diário Oficial da União, FUNAI
& ISA, fevereiro de 2013). No entanto, ouvem-se notícias de
núcleos com maiores concentrações, como nos casos das
aldeias Tenonde Porã (São Paulo) e Ribeirão Silveira (São
Sebastião), cada uma das quais abriga 500 habitantes,
aproximadamente.
A situação contemporânea das aldeias guarani
espelham a ação imprevidente dos invasores portugueses, que
destruíram a notável realização cultural dos habitantes nativos,
isto é, a sua capacidade de sobreviver em seu meio natural.
Esses habitantes haviam armazenado no transcorrer de 12.000
anos seus próprios estoques de informação sobre a vida na
Mata Atlântica. E, como observa Warren Dean, tendo-se em
conta que cada aldeia acumulara recursos e experiências
diferentes de seus vizinhos, milhares de espécies da Mata
Atlântica tinham sido catalogadas na memória de seus
habitantes humanos. Uma vez retirados os indígenas de seus
habitats, como somente a tradição oral preservava essa cultura,
toda a informação acumulada começou a se deteriorar, e a
floresta se tornou estranha e carente de propósito humano
(DEAN, 1996, p. 83). Como guardiões da floresta, destruída
a ferro e fogo pelos brancos, os Guarani Mbya sobrevivem
em suas aldeias, envolvidos com o desafio perene de
reconquistar a autonomia decisória que lhes foi retirada, por
meio do xamanismo e de adoção de regras de sobrevivência
que não impliquem a sua visão sobre a Terra Sem Males.

Mitos e movimento messiânico na discursividade


Guarani

O mito da Terra Sem Males (yvy mara e’3 ) e a vida


voltada para um profetismo religioso constitui a representação
simbólica central dos Guarani, que buscam o seu
aperfeiçoamento espiritual contínua e ritualisticamente, uma
vez que, para eles, a vida terrena é identificada como um
Arte, Cultura e Imaginário 49
estágio de incompletude do indivíduo e de seu grupo. Assim,
as aldeias tornam-se o local de ações comprometidas com o
próprio modo de ser do Guarani, o seu nhandereko. As
memórias sobre um passado fortemente mitificado das tribos
operam sobre o cotidiano, como estratégias de autoidentidade
cultural, reativando o compromisso de serem adotados
costumes e normas estabelecidos por ancestrais fundadores.
Mito, como se sabe, pode ser definido como uma narrativa
de caráter simbólico, sobre histórias transcorridas em passados
imemoriais – no “grande tempo” – sobre a identidade do
grupo, com o objetivo de responder a questões sobre a origem
e destinos da etnia. O mito deve ter influências performativas
sobre a sociedade, inspirando as suas maneiras de ser e de se
identificar. Os mitos, em geral, fazem referência a casais
primordiais que teriam dado a origem e o significado simbólico
ao grupo, além de conter diretrizes para o futuro.
A bibliografia Guarani tem enfatizado que o
movimento messiânico é a raiz significante do processo de
um povoamento orientado miticamente pela procura da
“Terra Sem Males”, localizada no além-mar. Trata-se da região
yvy apy re (extremidade da terra) e também do reconhecimento
da Mata Atlântica como um antigo berço do povoamento
Guarani. Desta última, existem registros consagrados sobre a
flora e a fauna. É preciso entender que essa situação reflete
uma antiga era de formação do universo (a Primeira Terra)
conforme a concepção cósmica mbya. Com efeito, a Primeira
Terra, considerada ideal, verdadeira, é o local em que vigoram
os ideais de perfeição, o espelho do saber divino. Com a
destruição dessa era Yvy Tenonde (Terra Primeira), reconstruiu-
se, posteriormente, uma segunda, a Yvy Pyau (Terra Nova),
que distanciou os homens de suas propriedades divinas,
fazendo emergir a humanidade na condição de
aperfeiçoamento e especialização espirituais de seu destino –
teko axy (modo de ser imperfeito, doentio). As duas eras
encadeiam-se de forma apocalíptica (GODOY, 2003, p. 23).
A paisagem cultural e sociológica a identificar esse mito coloca
as divindades em moradias (amba) sagradas e os homens na
posição de assumir o compromisso de reverter a sua condição
de imperfeição. Etnólogos chamam a atenção para o fato de
50 Narrativas Mitopoéticas dos Mborai...
pajés competentes divergirem a respeito da localização do
paraíso e dos meios que devem ser usados para o seu encontro.
Alguns desses pajés consideram que os índios devem tornar
o corpo leve mediante o jejum e a dança, a fim de poderem
ascender ao zênite e ingressar no paraíso pelos portais celestes.
Essa crença é compartilhada ainda hoje pelos Guarani, que
acham que, após dançar uma noite inteira, ficam cansados e
com os joelhos duros, mas, ao continuar em suas danças, já
na terceira noite, o relaxamento dos músculos das pernas
começa a diminuir, como se o corpo se acostumasse ao
movimento uniforme, dando ao índio a conclusão de que
seu corpo começa a se tornar leve (UNKEL, 1987, pp. 97-
98). Alguns grupos consideram que a “Terra Sem Males”
ficaria no centro da superfície da terra, mas a maioria
esmagadora dos pajés buscava-a no leste, além do mar
(UNKEL, 1987, p. 98).
O papel central que o mar ocupa nas crenças Guarani
é estranho para um povo que vive nas regiões mais remotas
do território nacional e que tem um modo de vida
integralmente interiorano. Nenhum dos grupos que chegou
ao litoral estabeleceu-se em suas margens, procurou nele
navegar ou dele extrair o seu sustento. Como regra,
procuraram se estabelecer em regiões nas quais não pudessem
ver ou ouvir o mar, internando-se, por vezes, a mais de um
dia de viagem do litoral. As razões para essa atitude são
apontadas como decorrentes da impressão que lhes causa o
quebrar das ondas: um inimigo feroz que estaria sempre se
arremetendo sobre a terra (UNKEL, 1987, p. 99).
Na mitologia de todos os grupos Guarani hoje
existentes no Brasil, teriam ocorrido um Incêndio Universal
e um Dilúvio Universal, responsáveis pela destruição de uma
Terra anterior, como representações prováveis da antiga
tradição mítica da tribo. Schaden considera, a respeito, ser
possível que uma das versões atuais sobre a destruição do
mundo no futuro, em que se localizam elementos
evidentemente cristãos, deva-se aos ensinamentos sobre o
Juízo Final, transmitidos pelos missionários jesuíticos dos
séculos XVII e XVIII (SCHADEN, 1974, p. 163).
Arte, Cultura e Imaginário 51
No caminho correto a percorrer, que permitiria aos
Guarani aperfeiçoar suas vidas, o comando divino impõe-se,
exigindo a dedicação dos homens aos tekoa (local dos costumes,
a aldeia). A cosmogonia Guarani enfatiza a necessidade de se
reproduzir com perfeição o nhandereko (nosso modo de ser),
termo que exprime o universo simbólico mbya e o seu
desempenho mbaraete (força, fortaleza) nesse universo.
No seio dessa cosmovisão, situa-se a terra, conceituada
como uma realidade histórica incompleta e imperfeita. Em
contraste, a Terra Sagrada (Yvy ju) exprime-se como o ideal
da perfeição e como a fundadora da sacralidade. A construção
do mundo, expressa como terra verdadeira e terra sombria,
implica o sentido de messianismo e de profetismo, do tipo
apocalíptico, característico dos Guarani. Esse mito fundador
assume um sentido de crise que impulsiona os Guarani em
direção “à existência ou presença fantasmagórica da terra sem
males, mas que contribui, igualmente, para a reafirmação da
identidade mbya” (BORGES, 2002, p. 117). A relação íntima
entre a terra e o céu institui uma ordem sagrada, que norteia
os indivíduos em sua realidade mágico-profana. Nessa mesma
vertente, o domínio predominante do sagrado pressupõe um
tempo que toma sentido por meio da busca contínua do mito.

Profetismo, oralidade e memória

O xamanismo, definido como um fenômeno


transcendental, baseado na técnica arcaica do êxtase, ocupa
um lugar central na cultura tradicional indígena. Os xamãs
são indivíduos que descobrem a sua vocação, por meio de
um esquema baseado na tríade “sofrimento/morte/
ressurreição”, durante o qual sofrem uma morte simbólica e
renascem para a nova condição, que lhes garante a
comunicação privilegiada com o sobrenatural. Os sinais de
inspiração para a transformação dos índios em xamãs devem-
se à irrupção do sagrado em suas vidas, provocando uma
ruptura do cotidiano em que se inserem. Dá-se, então, um
ritual de iniciação que permite ao índio tocado pelos deuses
o acesso ao mundo dos seres invisíveis, tornando-o detentor
52 Narrativas Mitopoéticas dos Mborai...
de saberes ocultos e exclusivos, vistos como mistérios pela
sociedade profana (CICCARONE, 2008, p. 87).
Os xamãs dominam a arte terapêutica, pelo poder de
cura que detêm, manifestada no universo das subjetividades
no qual o público considera que o doente e o xamã são partes
indissociáveis do mesmo complexo xamanístico, representado
por dois polos: a experiência íntima do xamã e o consensus
coletivo (Levi-Strauss, 1975, p. 207). O doente, como
expressão do desequilíbrio cósmico, imprime significado a
uma lógica inerente a uma visão que expurga o mundo de
conflitos e ameaças.
No contexto da busca/vivência do mito, a cultura,
polarizada pela visão profética do destino humano, permanece
como o caráter central dos indivíduos, em sua caminhada em
direção à Terra Sem Males (Yvy mara e’). Por esse processo,
recriam-se as estruturas sociais, de tal forma que o modo de
ser (nhandereko) renova-se sempre e, nessa renovação, torna-
se original. Assim, os Guarani Mbya são tomados não por
uma nostalgia impulsiva, mas sim por uma atitude positiva,
marcada pela afirmação do conceito de kandire, que se traduz
como a possibilidade de alguém continuar vivo, ao mesmo
tempo que se torna imortal, como uma justa medida para os
mortais e os imortais (H. CLASTRES, 1978, pp. 89-89). Ayvu
significa a substância simultânea do divino e do humano (P.
CLASTRES, 1978, p. 27). E, como relembra Melià, para o
Guarani a palavra é tudo, ao mesmo tempo em que tudo,
para ele, é palavra (MELIÀ, 1989, p. 306). É por meio dos
discursos de origem divina, estruturados pela palavra mito,
que a sociedade se define como história. Portanto, a palavra
relatada do/no mito institui o imaginário social, mediante seus
efeitos discursivos. É ela que permite ao indivíduo-sujeito
afirmar-se no mundo, através de representações que
(con)formam um efeito de identidade aos membros da
sociedade, como co-partícipes de uma mesma história
(BORGES, 1998, p. 95).
É preciso frisar que o profetismo transfere a busca
real (geograficamente delineada e simbolicamente necessária)
de um lugar, identificado em visões e sonhos como existente
e à espera do único povo eleito como capaz de o alcançar por
meio de seu próprio esforço coletivo, de seu significado
Arte, Cultura e Imaginário 53
coletivo para o individual. Nesta última categoria, o profetismo
se define como uma busca pessoal de ascese, do retorno do
coração e da conduta às normas da vida antiga, sem a mescla
– na pessoa e na cultura – do mal inserto nos valores do
homem branco. Estaria aí a vocação coletiva da história,
transformada em um desejo de ética (BRANDÃO, 1990, p.
72).
O viver dos Mbya sustenta-se na esfera de sua
formação religiosa, esfera que dá origem a um desejo pleno
de poder: o de (re)integrar os homens ao convívio verdadeiro
com os deuses. Essa dimensão, conciliadora da distância e da
reversibilidade, abriga as experiências místicas e religiosas que
se dirigem continuamente para o além. Ademais, é ela que
define a passagem como “uma linha de fuga” para “um além
sempre adiável – e isto é o presente” (VIVEIROS DE
CASTRO, 1987, pp. XXXIII, XXXIV). Esse seria o espaço
de realização do desejo de ascensão e de transcendência da
condição humana (marcada pela efemeridade e pela
imperfeição). Espaço a definir a existência do homem como
intermediária entre a Terra Sem Mal, significando a nostalgia
do futuro, e a Terra Má, conceituando o tempo-espaço do
presente. Confrontado com o desafio de suas imperfeições, o
sujeito mbya existe e constrói sua historicidade e discursividade
(BORGES, 1999, p. 132).
O quadro acima delineado per mite que se
compreendam as práticas discursivas mbya em seus
compromissos com o imaginário mítico e em suas imposições
histórico-sociais. Nesse processo, a palavra ganha expressão,
mediante recursos da arte verbal, expressos em cantos, danças
e rezas. Como observam os Guarani, “a reza é um canto
dançado, assim como a dança é uma reza cantada”; portanto,
a palavra é o canto e este, por seu turno, é o caminho que
conduz o sujeito Guarani a se conformar à ética Guarani
(modo de vida ou teko) (BORGES, 2001, p.187).

Teoria literária e narrativas mitopoéticas: os


mborai
54 Narrativas Mitopoéticas dos Mborai...
As narrativas sobre os ameríndios têm uma longa
história, uma vez que se tornaram frequentes desde as
primeiras décadas que se seguiram à descoberta de Colombo.
Para a reconstrução do sujeito selvagem, como figura central
da cultura europeia moderna, os primeiros textos e imagens
sobre os primitivos habitantes do Novo Mundo têm sido
objeto de uma produção vigorosa e desigual, que mistura
lendas à realidade, configurando o imaginário europeu sobre
os novos súditos das Coroas Ibéricas. E, dessa forma,
definindo o papel do sujeito selvagem, em torno do qual se
delineiam as distinções entre natureza e cultura, no
desenvolvimento de uma semântica cultural europeia, no início
da Modernidade. Essas narrativas, como produtoras de
diferenças, foram usadas como estratégias retóricas utilizadas
para a justificação da dominação colonial, acomodadas aos
anseios expropriativos e aos repertórios tradicionais dos
sujeitos europeus. As respostas suscitadas pela América
convergiram, a partir dos primeiros tempos de sua
incorporação à Europa, para a assimilação gradual de sua
novidade, sempre do ponto de vista inabalavelmente europeu
(KIENING, 2014, p. 13). O território americano é mais do
que um lugar de passagem, é um lugar de disseminação
cultural, levando-se em conta que as trocas culturais e a
articulação de identidades criaram, em zonas de contato e
conflito, os chamados “entrelugares”, onde as novas
formações culturais se demarcam pelo espaço ao qual se
referem e no qual estabelecem relações. Nessa vertente,
Richard White e Homi Bhabha cunharam os conceitos de
middle ground e third space, que passaram em pouco tempo a
integrar o vocabulário dos estudos literários e culturais,
justamente porque designam o espaço menos
como grandeza física do que lugar de
manifestações linguísticas: “o terceiro espaço é
um espaço de linguagem”. As relações entre
territorialidade, cultura, espaço e identidade
articulam-se pela oscilação entre o sentido
dominante e o latente, o denotativo e o conotativo.
Arte, Cultura e Imaginário 55
Assim, no âmbito das discussões sobre o terceiro
espaço, a reflexão política sobre as diferenças
culturais é inextricável de determinada concepção
pós-estruturalista da linguagem (KIENING,
2014, p. 14).
E é, justamente nesse terceiro espaço, que os mboraí
se localizam, como produção literária sobre os índios, realizada
por eles próprios, a fim de se definirem como povos
autônomos e significativos, material e simbolicamente. Nesse
sentido, os critérios do que se considerava literatura alargaram-
se notavelmente nos últimos 50 anos, vindo a abranger escritos
“criativos” ou “imaginativos” e não todo o conjunto de obras
valorizadas pela sociedade, nos quais se incluíam os poemas
(EAGLETON, 2006, p. 26). O sentido moderno do termo
“literatura” surgiu a partir do século XVIII e sofreu notáveis
transformações desde essa época, uma vez que não é um
assunto imutável. A própria obra literária é mais difícil de ser
fixada:
Comumente, a crítica literária não determina
nenhuma leitura particular, desde que seja “crítica
e literária”; e o que é considerado crítica literária
é determinado pela instituição literária. Assim o
liberalismo da instituição literária [...] geralmente
não enxerga seus próprios limites constitutivos
(EAGLETON, 2006, p. 26).
As ideias acima evidenciam a dificuldade de aplicar
cânones literários às narrativas indígenas, sempre coletivas e
imemoriais, cujas concepções cosmológicas e de caráter
teogônico espelham-se nas experiências narrativas de canto e
dança, concebidas como mitopoemas, que se constituem ao
se materializarem na prática discursiva. E é do ponto de vista
do discurso que o mitopoema deve ser compreendido como
um locus, ou uma dimensão do real (do plenamente real) do
tempo-espaço mbya, isto é, da ordem, tanto simbólica quanto
sócio-histórica dos Guarani-Mbya. O locus singular, que se abre
no ato da perfor mance, torna-se simultaneamente
materializado e percorrido pelos membros da comunidade
56 Narrativas Mitopoéticas dos Mborai...
(BORGES, 2001, p. 190). As narrativas, como discursos
mitopoéticos, podem ser melhor compreendidas quando se
considera que o mito, qualquer que tenha sido a forma em
que chegou até nós, é sempre poesia. Em forma poética e
com recursos de fabulação, oferece um relato das coisas que
se apresentam como ocorridas (HUIZINGA, 1972, p. 154).
É igualmente por entender o mito como produto de uma
atividade criadora, poética, que ele pode ser designado como
um mitopoema, assim como o conjunto de mitos como
mitopoética e o narrador ou criador, como mitopoeta
(BORGES, 1998, p. 175).
Em relação à definição dos mborai como peças literárias,
é útil termos em conta que não existem padrões verdadeiros
para diferenciar uma estrutura literária de uma que não o é.
Na situação cultural de selvagens que possuem palavras
designativas de freixo e salgueiro, mas nenhuma para árvore,
seria preciso “ponderarmos se de fato não existe algo como
ser deficiente demais na capacidade de generalizar” (FRYE,
2014, p. 123). O pensamento de Frye torna-se útil a esta análise
especialmente quando se refere à teoria dos símbolos como
arquétipos, no campo do que ele chama de “fase mítica”. É
evidente que a sua “anatomia da crítica” dirige-se a autores
individuais do Ocidente, enquanto que a mitopoética guarani
é obra coletiva. No entanto, o princípio da fase formal da
crítica apontado por Frye, segundo o qual “um poema é uma
imitação da natureza” pode ser analogicamente encontrado
nos mborai, cujos símbolos unem os poemas entre si, de forma
a que uma crítica a eles aplicada teria por objeto final
“considerar não simplesmente um poema como uma imitação
da natureza, mas a ordem da natureza como um todo
conforme imitada por uma ordem correspondente de
palavras” (FRYE, 2014, p. 217). Nessa mesma linha de
reflexão, o aspecto arquetípico da arte “é uma parte da
civilização, e definimos civilização como o processo de criar
uma forma humana a partir da natureza”. Assim, um símbolo
arquetípico geralmente é um objeto natural com um sentido
humano (FRYE, 2014, p. 123), como podemos observar nos
mborai. De outro prisma, no ritual que acompanha os cânticos
Arte, Cultura e Imaginário 57
indígenas podemos ver a aplicação teórica da análise de Frye
ao se referir à imitação da natureza impregnada fortemente
pela magia:
O mágico parece se iniciar como algo próximo a
um esforço voluntário para recapturar um elo
perdido com o ciclo natural. Esse sentido de uma
captura deliberada de algo não mais possuído é
um traço distintivo do ritual humano. O ritual
constrói um calendário e se esforça para imitar a
correspondência precisa e sensível dos
movimentos dos corpos celestes e a reação da
vegetação a eles. [...] a poesia imita a ação humana
como um ritual total, e assim imita a ação de uma
sociedade humana onipotente que contém todas
as forças da natureza dentro de si (FRYE, 2014,
p. 245).

A fase anagógica, que identifica a passagem do sentido


literal ao místico, encontra-se mais profundamente na escritura
sagrada ou revelação apocalíptica dos mborai. Nestes, os deuses
e os heróis glorificados são a imagem central que a poesia usa
na tentativa de transmitir o sentido de poder ilimitado em
uma forma humanizada. Essas escrituras são documentos de
religião, que misturam o imaginativo com o existencial, o
passado com o presente e o futuro das etnias indígenas no
Brasil.
A música e outras sonoridades expressas no cosmos
(como o som dos pássaros, trovões, palavras, balbucios)
apresentam-se relevantes na comunicação estabelecida pelos
Mbyá com as divindades e outros seres humanos e extra-
humanos, para a perpetuação dessas relações e do próprio
cosmos. Nesse sentido, o corpo/a pessoa Guarani é
constituído/a sonoramente para se dispor e ter habilidades
de travar comunicação com os seres de outras ontologias. Os
Mbyá expressam sonoramente o seu mundo, compartilhando-
o com outros seres através de sons musicais, falados,
trovejados ou cantados, de forma que a existência do cosmo
consubstancie-se na dimensão sonora (BORGES, 1998, p.
118).
58 Narrativas Mitopoéticas dos Mborai...
Ao contrário do evolucionismo, os guarani encaram
os animais como humanos em sua origem. A divisão mítica
considera que os animais perderam os atributos herdados ou
próprios aos humanos, sendo, portanto, ex-humanos,
enquanto que os homens permaneceram iguais a si mesmos.
O pensamento indígena conclui que os animais e outros seres
do cosmos, por terem sido outrora humanos, continuam a
ser humanos, embora de modo não evidente. Como observa
Descola, o homem não constitui o referencial comum a todos
os seres da natureza, mas sim a humanidade, enquanto
condição (BASEIO; CUNHA, 2015, p. 103).
Os aspectos musicais da cultura guarani encontram-
se registrados em numerosos escritos de missionários, viajantes
e agentes administrativos coloniais, que se referem à maneira
incansável com que os ameríndios dedicavam-se a danças e
cantos, acompanhados pela música que produziam por meio
de instrumentos específicos, em festas frequentes. Esses textos
exaltam as performances dos índios, caracterizando-os como
exímios cantores, que se destacavam nas entonações musicais,
com uma impressionante precisão rítmica (WITTMANN,
2014, p. 53).
A musicalidade dos ameríndios logo se
incorporou ao sistema educacional-religioso jesuítico, sendo
usada como estratégia para a entrada em aldeias desconhecidas
e na educação infantil. A cultura musical foi introduzida no
trabalho missionário, tornando-se corriqueira entre os
inacianos. Assim, a alteridade musical ameríndia levou os
jesuítas até mesmo a adaptar as regras de sua Companhia,
levando-os a cantar missas nas florestas tropicais, fora dos
altares e locais consagrados ao culto (WITTMANN, 2014,
pp. 58-59).
A análise dos mborai, registrados em compact-discs,
que circulam pelas aldeias guarani, pode ser um fio condutor
para a compreensão do papel dos mbya na jornada mítica
Guarani em busca da Terra Sem Males. Nas aldeias do Estado
de São Paulo (Boa Vista, em Ubatuba, e Ribeirão Silveira, em
São Sebastião) e nos núcleos paulistanos há uma influência
muito grande dos seguintes Cds: CD1: Ñande Reko Arandu.
Memória Viva Guarani: [s.d.]; CD2: Ñande Arandu Pyguá.
Arte, Cultura e Imaginário 59
Memória Viva Guarani: 2004; e CD3: Guardiões Guarani.
Kyringue Nhembovy’a: 2011.
As temáticas centrais das narrativas gravadas
transmitem ensinamentos emanados diretamente dos mitos,
os quais regem, recorrentemente, a vida real e simbólica dos
Guarani, e podem ser organizadas em categorias onipresentes
nos cânticos sagrados. Tais categorias expressam:
1. A busca pela proteção e comunicação com
diferentes divindades, concebidas como paternidades e
maternidades míticas. Insere-se neste item os objetos
ritualísticos, integrados ao contexto mítico das divindades.
2. A busca da Terra Sem Males, com uma intenção de
“ir mesmo” (já’a katu: vamos de verdade).
3. A preparação de guerreiros e guerreiras para as lutas
diárias (xondaro, xondaria).
4. Os mymba’i, isto é, os animais de estimação de
Nhanderu, ao lado de outras coisas (mba’emo) da natureza
(frutos, árvores, animais, aves).
5. Os rituais religiosos que organizam um ciclo natural-
religioso, tempo/espaço para as crianças da comunidade (na
opy e dos grupos de canto e dança).
O sentido comunal da representação realça-se a cada
verso cantado, com palavras que se repetem: “todos dançam,
todos se alegram”. A aldeia, como locus material e espiritual
do povo, é adjetivada como “bela”, indicando tratar-se do
território adequado para se reverenciar o divino, a ele se
integrando. É provável que o monoteísmo, insinuado em
vários dos versos cantados, reflita a influência missionária
sobre o grupo, levando-o a projetar as suas crenças tradicionais
no cristianismo do colonizador. Como observa Capistrano
de Abreu:
Das suas lendas, que às vezes os conservavam
noites inteiras acordados e atentos, muito pouco
sabemos: um dos primeiros cuidados dos
missionários consistia e consiste ainda em apagá-
las e substituí-las (ABREU, 1954, p. 55).
As línguas por eles faladas divergiam quanto ao léxico,
mas obedeciam à mesma tipologia:
60 Narrativas Mitopoéticas dos Mborai...
Quanto ao léxico, obedece ao mesmo tipo das
línguas indígenas: o nome substantivo tinha
passado e futuro como o verbo; o verbo
intransitivo fazia de verdadeiro substantivo; o
verbo transitivo pedia dois pronomes, um
agente e outro paciente: a primeira pessoa do
plural apresentava às vezes uma flexão inclusiva
e outra exclusiva; no falar comum a parataxe
dominava. A abundância e flexibilidade dos
supinos facilitaram a tradução de certas ideias
europeias (ABREU, 1954, p. 55).
Nos mitopoemas aparecem, de forma expressiva,
verbos que indicam emoções e engajamento simbólico, tais
como: endu: “ouvir”, “perceber”, também registrado em
algumas expressões (Nhamoendu katu: nós entendemos
verdadeiramente (DOOLEY, 1982, p. 51); o, je’oi: registrado
como jaje’oi (vamos novamente), jaje’oiju (vamos outra vez),
roota (iremos), javy’a vamos alegres (DOOLEY, 1982, pp. 132,
268); v a : chegar, nhava jajerojy japorai (chegamos
reverenciando e cantando) (DOOLEY, 1982, p. 187); jerojy:
marchar em fila ( nhava jajerojy japorai (chegamos
reverenciando e cantando); jeroky: dançar; jajerojy jajeroky (nós
marchamos e nós dançamos); jerovia: exercer a fé (DOOLEY,
1982, p. 74).
O sentido de salvação coletiva apresenta-se nos
mborai, assim como a integração do homem a sua essência
divina. Um dos temas preferenciais é a referência à Terra sem
Males, situada além do oceano, assim como o modo de a ela
chegar, por meio das luzes propiciadas pelos ancestrais. Mais
uma vez, trata-se de uma invocação aparentemente
monoteísta, resultante de um hibridismo cultural, mas na qual
avulta o paganismo.
Nos apelos e invocações intermitentes dos poemas,
sobressai a necessidade coletiva de salvação, o que contraria
o individualismo das religiões cristãs, que se impôs, soberano,
a partir do século XVI, em decorrência do humanismo
renascentista. É interessante notar que o salvacionismo
coletivo “pagão”, expresso pelos mborai, aproxima-se da
concepção cristã vigente na Idade Média Ocidental, segundo
Arte, Cultura e Imaginário 61
a qual o povo de Deus deveria caminhar, sempre unido, em
direção à Jerusalém Celeste (a “Terra Sem Males”, numa
analogia estrita). Não se concebia, assim, uma salvação que
não fosse coletiva, dada a pouca representatividade jurídica
do indivíduo na sociedade. Nessa linha interpretativa, deveria
ser pouco problemático, para os catequistas, aproximar o mito
fundador indígena ao mito cristão, e o princípio divino,
integrador do caráter divino no panteão ameríndio, ao
monoteísmo desejado pelos evangelistas.
Os mboraí retratam alguns deuses, demonstrando a
resistência das crenças tradicionais politeístas, mesmo sob o
impacto da “colonização” monoteísta cristã.
O processo de análise literária dos cânticos sagrados
leva em conta que o caráter simbólico e alegórico ocidental
afasta-se dos termos significantes dos cânticos na cultura
Guarani, na qual a alegoria não diz “A” para se referir a “B”,
de modo inverso à conceituação de símbolo:
A alegoria parte de uma ideia (abstrata) para
resultar numa figura, enquanto o símbolo é
primeiramente e em si mesmo figura e, como tal,
fonte de ideias, entre outras coisas. Pois a
característica do símbolo é ser centrípeto, além
do caráter centrífugo da figura alegórica em
relação à sensação. O símbolo, assim como a
alegoria, é a recondução do sensível, do figurado,
ao significado; mas, além disso, pela própria
natureza do significado, é inacessível, é epifania,
ou seja, aparição do indizível, pelo e no significante
(DURAND, 1988, pp. l4-15).
O símbolo para o Guarani significa, de fato, a realidade
histórica. Os cânticos sagrados à ela remetem, diretamente.
O significado do “modo de ser” do homem une o espírito à
matéria, a epifania sagrada ao cotidiano: todos os atos são
sagrados, mesmo os mais comezinhos. Estamos, assim, diante
de uma cultura que rejeita a oposição binária clássica entre
valores, como faz o Ocidente.
A invocação do deus obedece à repetição da mesma ideia,
por meio de falas e gestos repetitivos, encenando um ritual
62 Narrativas Mitopoéticas dos Mborai...
que leva os participantes à comunhão divina, de natureza
xamânica. Ou, em outras palavras, à união do humano com o
divino. As referências constantes à luz, como atributo divino,
adotam formas derivadas de exakã: claridade, moexakã: clarear
(DOOLEY, 1982, p. 56).
A análise dos versos ressalta a junção de lugares
geograficamente situados “abaixo”, no qual está a
humanidade, com outros situados “acima”, em que moram
os deuses. Trata-se de mais uma referência constantemente
lembrada no decorrer da execução ritualística dos cânticos,
além da presença da luz, como propriedade divina.
Diversos mborai apresentam claramente o desejo de
perfeição do Guarani, visto no momento místico de atravessar
as “grandes águas”, em direção à Terra Sagrada. A Tupã, o
Pai, são consagradas as crianças, simbolizando a permanência
do grupo, o seu futuro, indicado objetivamente pela expressão
“Ano Novo”. A grande dimensão que as narrativas concedem
à presença das crianças (kyringue) e dos jovens (kunhataigue,
kunumigue) nos rituais indica a crença de que as camadas mais
jovens da sociedade são responsáveis pelos resultados
provenientes da caminhada ou jornada mítica em direção à
Terra Sem Males.
A arte verbal, expressa nos poemas, conduz os sujeitos
ao compromisso coletivo assumido pelas expressões “almas
palavras”, “belas palavras”, “belo saber” (arandu porã) (MELIÀ,
1989, pp. 293-357 ), destinadas a oferecer provas sobre a
existência dos Deuses e a concepção de um destino humano,
que transporta a essência real do ser.
As questões aqui discutidas dizem respeito ao
funcionamento discursivo da sociedade mbya, por meio da
análise da mitopoesia dos mborai. Os mitopoemas retratam o
caráter sagrado com que as palavras expressam o “belo saber”
(arandu porã). Os cantos são sentidos como recursos da arte
verbal, que são experimentados no convívio dos participantes,
quando assumem uma capacidade mística, como um reflexo
da cultura, que se faz representar por intermédio de sua
dimensão sagrada.
O centro de significação dos mborai, como
mitopoemas, compreende a concepção da temporalidade à
luz de uma discursividade, em processo que anula a distância
entre os narradores e o seu mundo mítico. Da mesma forma,
Arte, Cultura e Imaginário 63
o tempo inaugurado pela poesia e materializado no tempo
histórico apresenta-se por meio da memória viva, ou a
imemorialidade, configurando o grande patrimônio cultural
dos mbya. O tempo cosmológico – mítico-sagrado – funciona
como uma cronologia referencial para a memória social e a
conceituação da identidade étnico-cultural dos mbya. A
educação, ligada ao mito, assume um significado pelo qual a
existência humana é avaliada na plenitude ritualística dos
saberes poéticos.
A análise dos cânticos sagrados Guaranis extrapola
as fronteiras literárias estabelecidas classicamente entre o
erudito e o popular, a ficção e a realidade histórica, o profano
e o sagrado, impondo novas categorias que põem em questão
as divisões ocidentais acima enunciadas. Essas categorias
ligam-se a estudos contemporâneos sobre símbolos e signos,
vistos na dimensão de sociedades de tradição literária oral.
Os mborai expressam as vivências materiais e espirituais
dos Guarani no todo indivisível de seus rituais, rituais esses
que unem o passado ao presente e prenunciam um futuro
desejável – e alcançável, por meio de uma caminhada “correta”
em direção à Terra Sem Males. Essa caminhada, rumo à
morada dos deuses, conforma-se como uma visão coletiva,
que se reflete na identidade dos Guarani, como instituinte
imaginária de sua cultura.
A incorporação da literatura produzida pelos indígenas
brasileiros apresenta-se como decorrência inescapável do
reconhecimento legal de seus direitos como cidadãos plenos,
mas dotados de especificidades que devem ser respeitadas.
Nesse sentido, as teorias clássicas de análise literária aplicam-
se aos mboraí na medida em que levem em conta os caracteres
fundamentais da cultura guarani, que não distinguem a
realidade da ficção, o passado do presente ou do futuro,
categorias de base nos estudos literários clássicos. As crenças
indígenas incluem o imaginário à realidade humana, o tempo
ao “Grande Tempo” dos mitos.
64 Narrativas Mitopoéticas dos Mborai...

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A construção do imaginário da morte e as
práticas de sepultamentos no Brasil
oitocentista

Juliana Maria Martins1

Este capítulo trata de compreender as atitudes diante


da morte no cotidiano oitocentista brasileiro e suas
representações fúnebres culturais. Para isso, identifica-se como
se desenvolveu o imaginário da morte, tendo como base
registros que trazem referências para a compreensão do
cotidiano social oitocentista em torno do tema.
A proposta de desenvolver um diálogo sobre a morte
e os mortos, neste contexto, partiu-se do pressuposto de que,
no século XIX, a relação entre os vivos e os mortos foi
constituída a partir de uma natureza dramática, que transitava
entre o Paraíso e o Inferno. A igreja, no que lhe diz respeito,
procurava funcionar como uma instituição que administrava
todo o processo do funeral, era um espaço sagrado que
promovia o convívio direto entre os vivos e seus entes
queridos. No entanto, grandes transformações ocorreram no
momento em que os corpos foram proibidos de ser enterrados
nas igrejas. Este episódio foi considerado o pontapé inicial
para a consolidação do surgimento dos cemitérios públicos.
É sabido que os costumes funerários eclesiásticos são
de influência europeia e foram difundidos pelos portugueses
desde o início do período colonial, sendo adotados com maior
rigor até meados de 1850. A base do funeral ocidental cristão

1
Mestre em Ciências Humanas e Especialista em Arqueologia, História e
Sociedade pela Universidade Santo Amaro (UNISA). Programa de pós-
graduação lato sensu em andamento, no curso de Anatomia Funcional:
Humana e Comparada, pelo Instituto de Ciências Biomédicas da
Universidade de São Paulo (ICB-USP). Licenciada em História pelo
Centro Universitário Estácio de Sá. Membro no grupo de pesquisa Arte,
Cultura e Imaginário – UNISA. Atualmente, é devidamente filiada à
Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais (ABEC).
68 A construção do imaginário ...
valorizava fortemente a realização dos ritos fúnebres de
maneira coletiva. Tudo era explícito no momento da inumação
do corpo e as igrejas eram vistas como o local sagrado de
aprendizagem. Não era um tabu sentar nas covas dos mortos,
mesmo tendo que suportar os odores indesejados que o
ambiente proporcionava.
Já era de se esperar que a campanha sanitarista
intervisse, fortemente, no hábito de conviver com os mortos,
de maneira tão próxima. Para a medicina social, o convívio
com os mortos no núcleo urbano traria fortes consequências.
Os cadáveres eram fontes de poluição e doenças, por isso as
práticas de sepultar os mortos nas igrejas deveriam ser
realocadas para outra localidade, fora desses espaços. Não foi
fácil trazer à luz uma proposta que acabaria interferindo em
práticas culturais tão enraizadas. A ideia de cemitérios
extramuros provocaria a insatisfação do clérigo e dos fiéis
que ainda almejavam ter uma cova em solo sagrado. Ainda
assim, não demoraria para que os efeitos epidêmicos
impulsionassem, por definitivo, a prática de utilizar os
cemitérios públicos.
Este é um tema bastante complexo, porque forma
confluências culturais que perduram até os dias de hoje, mesmo
de maneira menos tradicional. Para analisar este percurso,
demarcado por uma concepção que incorpora o imaginário da
morte, a passagem dos mortos para o “outro mundo” e a
configuração de um novo espaço funerário, foram tomados como
referencial teórico os autores: Arnold van Gennep, Philippe Ariès,
Jacques Le Goff, João José Reis, José Carlos Rodrigues e Cláudia
Rodrigues – pesquisadores que trazem estudos influenciados pela
Antropologia e História das Mentalidades.

1. O imaginário da morte, as regras eclesiásticas


e destino do corpo no século XIX

A morte

A morte vem de longe


Do fundo dos céus
Arte, Cultura e Imaginário 69
Vem para os meus olhos
Virá pra os teus
Desce das estrelas
As loucas estrelas
Trânsfugas de Deus
Chega impressentida
Nunca inesperada
Ela que é na vida
A grande esperada!
A desesperada
Do amor fratricida
Dos homens, ai! dos homens
Que matam a morte
Por medo da vida
(MORAES, 2005, p. 41).
No ano de 1909, com a publicação do antropólogo
Arnold Van Gennep em Les Rites de Passage, verifica-se que os
rituais deveriam ser mais bem observados no âmbito social,
principalmente, no que tange aos seus mecanismos, com o
propósito de obter leituras a respeito da relação dos indivíduos,
dos grupos aos quais pertencem e de sua posição em
determinado contexto social (GENNEP, 1960; DAMATTA,
2000). Quando se trata de compreender as sociedades
tradicionais, tais estudos foram de suma importância, porque
a vida sempre esteve cercada de inúmeras passagens ou ritos
cerimoniais específicos. Um deles é, sem dúvida, o funeral.
Esse é um dos ritos mais importantes, porque
podemos observar o comportamento social em relação às
atitudes a serem seguidas pelos vivos quanto a seus mortos.
Arnold Van Gennep (2011) não deixou passar por
despercebido que as práticas mortuárias carregam consigo
estruturas ritualísticas, que podem ser observadas em três fases
distintas: o momento em que o morto é separado da vida
terrena, a liminaridade e a consolidação do morto no “outro
mundo”.
No livro Tabu da Morte, o historiador José Carlos
Rodrigues (2006) compreende que a separação do morto
representa, de maneira simbólica, o afastamento da vida
humana na Terra, com o propósito de consolidar sua passagem
no “mundo invisível” dos ancestrais. Nessa perspectiva,
70 A construção do imaginário ...
compreende-se que este é um processo penoso, porque exige
o máximo de esforço social coletivo, no que diz respeito à
etapa inicial de desagregação e introdução do morto no mundo
do além, geograficamente idealizado no imaginário da
sociedade da época.
Quer dizer que todos os esforços do funeral, na esfera
coletiva, estão vinculados a muitas categorias ou padrões
específicos de cada sociedade, principalmente, no domínio
cultural e social. Por esse motivo, a etapa do
[...] enterro, bem como as outras maneiras de lidar
com o corpo morto, é um meio de a comunidade
assegurar a seus membros que o indivíduo falecido
caminha na direção de seu lugar determinado,
devidamente sob controle (RODRIGUES, 2006,
p. 42).
A liminaridade, por sua vez, é a etapa da viagem do
morto, entretanto, “[...] sem ainda ter deixado o mundo terreno
e sem ter passado ainda a pertencer ao outro mundo”
(RODRIGUES, 1997, p. 173). Até o momento, vê-se que,
para compreender todas as etapas, não é tão simples como
parece, principalmente, se dentro de uma mesma sociedade
houver concepções distintas sobre o que aguarda os vivos
após a morte (GENNEP, 2011).
O historiador João Reis (1991), em A morte é uma festa,
ao contextualizar a concepção da morte no Brasil oitocentista,
explica que os ritos de separação estão interligados a várias
etapas no funeral brasileiro, principalmente, a lavagem do
corpo, o transporte, o processo de se desfazer dos objetos do
defunto e vários outros tabus que estavam interligados ao
luto. Era uma época em que os mortos dependiam dos vivos
para completar a sua passagem. Afinal, a “passagem” para o
Paraíso ou o Inferno não ocorria de maneira instantânea,
exceto para aqueles que não cumprissem com as rígidas regras
eclesiásticas. Se levarmos em consideração que as sociedades
interpretam a existência do corpo como uma forma de
“cosmo” que, em determinado instante, passará de um estágio
a outro, como no momento em que o “[...] homem passa da
pré-vida à vida e finalmente à morte [...]” (ELIADE, 1992, p.
Arte, Cultura e Imaginário 71
87), o funeral seria um meio de garantir a continuidade da
vida eterna.
É fundamental salientar que “[...] o ritual de morte é
compreendido como um rito de separação e se relaciona com
as concepções de sobrenatural e à diversidade social como
resultados das variáveis: sexo, idade e status” (RIBEIRO, 2007,
p. 58). De fato, a trajetória dos indivíduos nessa empreitada,
repleta de ritos, corresponde à necessidade dos seres humanos
em transformar o mundo e a si mesmos, para que possam
conviver e fazer parte de determinada sociedade.
Quando o antropólogo Roberto DaMatta (1992)
afirmou, em seu livro A casa & a rua, que muito antes dos
brasileiros terem consciência de que o significado da morte
estava relacionado com o não-ser e o nada, a maioria dos
indivíduos adquiria, a princípio, ciência dos mortos da própria
família, da “[...] casa, vizinhança, comunidade, nação e século”
(1992, p. 103).
“Essas ‘pessoas’ que, na forma de espíritos, almas,
espectros, heróis e fantasmas aparecem aos seus
conhecidos, colegas, compatriotas e confrades
para pedir alguma reza, missa, favor ou
homenagem” (DAMATTA, 1997, p. 103).
Neste caso, não é à toa que o funeral do morto era
um dos momentos mais importantes, porque consiste em um
evento que demonstra o comportamento social em
coletividade, não somente diante da morte, mas como
determinada atitude pode mudar, principalmente, quando se
trata daqueles que não conseguiam seguir com as regras
difundidas pelos representantes da igreja (REIS, 1991).
Entender o imaginário da morte na sociedade
oitocentista brasileira é, de fato, uma jornada que nos leva ao
contexto religioso e anseios sociais. “Embora as igrejas fossem
o local ideal de enterro, havia entre elas e dentro delas uma
geografia da morte que refletia hierarquias sociais e outras
formas de segregação coletiva” (REIS, 2019, p. 99). O que de
fato acreditava-se sobre o mundo dos mortos, a maneira como
os vivos se preparavam para a morte no decorrer da vida
terrena, a forma como os mortos seriam sepultados e o destino
72 A construção do imaginário ...
final da alma, de certa forma, estavam presentes nas
representações sociais oitocentistas (REIS, 2019).
Para melhor compreender a construção em torno da
morte e dos mortos na concepção cristã, inicialmente,
compreendia-se que não havia a morte, era o fim do corpo (a
matéria) e o início de uma nova jornada do espírito no mundo
que lhe proporcionaria a vida eterna. Esse imaginário do além-
cristão não foi construído sob uma perspectiva saudável.
Segundo Cláudia Rodrigues (1997), foi difundido com
fundamentos em uma natureza dramática, devido ao medo
do homem de morrer e o seu espírito não conseguir a vida
eterna ao lado da “graça divina” de Deus. Quanto mais as
pessoas tomavam consciência da existência de um possível
juízo final, momento em que todos seriam julgados pelas más
condutas praticadas em vida, tornaria o cotidiano social um
processo de manipulação e medo constante.
Assim, no fundo da espiritualidade, para que todos
tivessem uma boa morte, havia a necessidade de tomar todas
as precauções com antecedência. Desse ponto de vista, se
por qualquer motivo não prevalecessem os mandamentos
eclesiásticos, certamente, isso impediria o morto de instruir
“[...] sobre como dispor de seu cadáver, de sua alma e de seus
bens terrenos” (REIS, 1991, p. 192).
Quando o historiador francês Jacques Le Goff (1995)
traz, em O nascimento do purgatório, essa natureza de drama
explícito, afirma que boa parte dessa ideologia de pensamento
teve o seu processo de consolidação entre os séculos XII e
XIII, período em que as almas já transitavam entre o Inferno
e o Paraíso. Nos primeiros momentos do século XII, constata-
se que o imaginário em torno do bem e do mal, ambos
atribuídos ao êthos humano, já estava bem definido no plano
social (LE GOFF, 1995). Evidentemente, todos já estavam
cientes de que a “[...] sua sorte será essencialmente
determinada pela sua conduta em vida: a fé e as boas obras
decidirão a salvação, a impiedade e os pecados criminais
conduzirão ao Inferno” (LE GOFF, 1995, p. 163).
Posteriormente, outra categoria de homem surgiria,
aquela que daria uma terceira chance para a salvação da alma,
e que Jacques Le Goff (1995) afirma estar nos textos de Santo
Arte, Cultura e Imaginário 73
Agostinho, cujo homem não era visto como um ser totalmente
bom, tampouco totalmente mal. É possível que dessa nova
classificação tenha surgido o purgatório, com o intuito de dar
uma nova oportunidade ao homem de alcançar o “paraíso”,
um lugar onde as almas seriam direcionadas para aguardar
seu julgamento, um espaço de castigo temporário.
A construção de um território físico ou imaginário
no “outro mundo” é um fenômeno que está muito presente
na cosmovisão cristã. Le Goff acredita que esse fenômeno
está diretamente relacionado com a
[...] maneira como essa sociedade organiza o seu
espaço aqui embaixo e o espaço no além, pois os
dois espaços estão ligados através das relações que
unem as sociedades dos mortos e as sociedades
dos vivos (LE GOFF, 1995, p. 18).
Para compreender melhor a questão do espaço
imaginário, é necessário ater-se ao fato de que os espaços são
demarcados quando estabelecemos uma fronteira, como, por
exemplo, o que separa um pedaço de chão do outro
(DAMATTA, 1997). Não é prioridade deste texto debater a
natureza e o alcance do conceito de espaço em sua totalidade,
uma vez que seria um empreendimento de largo fôlego. Não
existe alguma
[...] medida orgânica, natural ou fisiológica de uma
categoria de pensamento e ação tão complexa quanto o
espaço, do mesmo modo que não há um órgão do corpo
para medir o tempo (DAMATTA, 1997, pp. 21-22).
Se retomarmos a ideia da remodelação cartográfica
do além, por exemplo, que consiste na elaboração de um novo
espaço, ajudaria a compreender que o Purgatório foi
desenvolvido com o propósito de duplo julgamento aos
mortos. O primeiro julgamento iniciaria no momento da
morte, e a segunda etapa seria concretizada apenas no dia do
juízo final. Diante dos fatos, a lógica do Purgatório está na
maneira mais rápida de aprovação das almas, que também
dependiam das penitências dos vivos a favor da “salvação da
alma” (LE GOFF, 1995).
74 A construção do imaginário ...

No que diz respeito às crianças, principalmente aquelas


que morriam sem passar pelo processo do batismo, não
existiria o Céu, tampouco o Inferno, apenas o Limbo 2. A
expressão limbo surgiu “[...] entre os séculos XII e XIII para
designar o ‘lugar de repouso’ destas crianças (o ‘limite’ das
regiões inferiores)”3. O limbo não corresponde ao mesmo
plano do Céu ou do Inferno, visto que os recém-nascidos
sequer cometeram pecados em vida. À vista disso, carregam
apenas o pecado original (BETTENCOURT, 1959; LE GOFF
1995).
Esses requisitos também se apresentavam como
exigência para os índios que ainda não haviam passado pelo
batismo. Muitos que faleciam nessa situação eram vistos como
cadáveres desprovidos de alma, logo, não seriam dignos de
receber um funeral adequado. O mesmo tratamento era dado
aos africanos (homens, mulheres e crianças) escravizados que
já estavam no Brasil. A eles eram impostas as regras da igreja,
todos passavam pelo batismo, recebendo um nome de origem
cristã. Todavia, os negros “[...] nunca abandonaram
inteiramente a tradição” (REIS, 2019, p. 76).
Em suas irmandades eles africanizaram o catolicismo,
celebrando santos patronos com mascaradas, a
percussão dos atabaques, danças cheias de energia
corporal, canções cantadas em línguas nativas e a eleição
fictícia de reis e rainhas negros. Por outro lado, o
catolicismo barroco, com sua efusão de ritos, símbolos
e cores, e com sula cultura processional de rua, não era
de todo estranho a eles. E, dada a flexibilidade da
religiosidade africana, havia sempre lugar para novos
rituais, símbolos e deuses (REIS, 2019, p. 76).

2
Comissão Teológica Internacional. A esperança da salvação para as
crianças que morrem sem Batismo, n. 24. Disponível em: <http://
www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/cti_documents/
rc_con_cfaith_doc_20070419_un-baptised-infants_po.html>. Acesso
em: 02 jan. 2020.
3
Comissão Teológica Internacional. A esperança da salvação para as
crianças que morrem sem Batismo, n. 26. Disponível em: http://bit.ly/
2YCqMok. Acesso em: 02 jan. 2020.
Arte, Cultura e Imaginário 75
Apesar da resistência por parte do sistema
fundamentalista da igreja católica, o clérigo foi pressionado a
aceitar, ou “[...] pelo menos fechar os olhos para os
africanismos nas cerimônias fúnebres. Contudo, não havia
dúvidas de que as regras católicas predominavam,
especialmente no lado público dos funerais” (REIS, 2019, p.
77).
Os registros históricos do artística de Jean-Baptiste
Debret, no documento intitulado Viagem pitoresca e histórica ao
Brasil, trazem cenas diversas sobre a vida cotidiana dos negros,
inclusive, momentos de cortejos funerários diversos
(DEBRET, 1972).

Figura 1: Cortejo fúnebre do filho de um rei negro

Fonte: Jean Debret. Convoi funèbre dun fils de riu nègre. Disponível
em: <https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/3452>. Acesso em:
04 mai. 2020.
76 A construção do imaginário ...

Figura 2: Enterro de uma mulher negra

Fonte: Jean Debret. Enterrement d’une femme nègre. Disponível em: <https:/
/digital.bbm.usp.br/handle/bbm/3452>. Acesso em: 04 mai. 2020.

Figura 3: Cortejo fúnebre de uma criança negra

Fonte: Jean Debret. Convoi funèbre de négrillons. Disponível em: <https:/


/digital.bbm.usp.br/handle/bbm/3541>. Acesso em: 04 mai. 2020.
Arte, Cultura e Imaginário 77
Pelo visto, a Figura 1 demonstra que os cortejos
fúnebres dos negros aparentavam ser festivos, com traços
tradicionais da sua cultura. Quando observamos a dinâmica
do cortejo,
[...] na frente vai o Negro Fogueteiro soltando
fogos de artifícios; em seguida o Mestre de
Cerimônias abre passagem; os Negros
Volteadores fazem piruetas e saltos mortais entre
eles para animar o cortejo, inclusive um deles toca
o tambor; a Porta Bandeira antecede ao
encaminhamento da rede que traz o corpo do
morto coberto por um pano mortuário onde
consta uma cruz; seguem o Diplomata vestido de
preto e outros ajudantes. Ao fundo, esfumaçado,
vemos um corredor de pessoas paradas assistindo
e comemorando a passagem do cortejo funerário
(BORGES, 2016, p. 452).
Na Figura 2, nota-se que o enterramento da mulher
difere dos enterros dos homens negros, pois era acompanhado
apenas por mulheres, com exceção dos carregadores do caixão,
o mestre da cerimônia e, principalmente, de quem toca o
tambor no decorrer do caminho. Vez ou outra, durante o
cortejo, ouviam-se rufos lúgubres que os negros faziam com
a ajuda do tambor (DEBRET, 1979).
Entre os moçambiques as palavras do canto
fúnebre são especialmente notáveis pelo seu
sentido inteiramente cristão, pois entre os outros
limitam-se as lamentações acerca da escravidão
[...] (DEBRET, 1979, p. 178).
Se o defunto fosse de classe indigente, o funeral não
seria tão tradicional. Os amigos e parentes depositavam o
corpo em uma rede para transportá-lo até a igreja. Então, o
corpo era deixado no muro do templo ou próximo à porta de
algum comércio local. Após essa exposição pública, era de
costume uma das mulheres presentes no cortejo,
[...] conservar acesa uma pequena vela junto à
rede funerária e recolhendo dos passantes
78 A construção do imaginário ...
caridosos módicas esmolas para completar a
importância necessária às despesas de
sepultamento [...] (DEBRET, 1979, p. 178).
Nos funerais apenas de influência católica, os
brasileiros mantinham o hábito de velar os mortos em casa,
deixando o corpo exposto,
[...] durante o dia ou mais, deitado, completamente
vestido, no caixão aberto e colocado sobre um
estrado fornecido pelo armador. Fecha-se o caixão
no momento de retirar o corpo para transportar
para a igreja onde é novamente aberto (DEBRET,
1979, p. 178).
Era comum presenciar o ato da extrema-unção nos
cortejos fúnebres, ambos em público.
Um personagem bastante requisitado nos velórios foi
a carpideira, aquela que organizava os prantos, as
“choradeiras”. Presenciava-se esse tipo de anunciação em
Portugal ou em determinadas colônias portuguesas na África.
Eram mulheres contratadas para lamentar a morte do defunto.
Essas práticas ritualísticas do catolicismo perduraram até o
final do século XIX (REIS, 2019).
Por certo, com tantas regras e devoções, ser enterrado
em lugares inapropriados causaria pânico em qualquer devoto.
Certa vez, quando Saint-Hilaire viajava pelo interior de Minas
Gerais, no ano de 1817, deparou-se com uma cruz na beira
da estrada que, segundo os relatos da época, foi posta por um
viajante que passava pelo local. De acordo com os rumores,
o viajante desconhecido relatou ter visto algumas almas do
Purgatório em forma de pomba. Todas rodeavam o seu cavalo
para solicitar preces. A cruz foi deixada na estrada como
símbolo da aparição das almas. No entanto, a cultura de
demarcar as estradas com cruzes pode ter outros significados,
principalmente, em memória de alguém que morreu no local
por situações diversas. Com relação a esse episódio, a cruz
foi posta na estrada como forma de lembrar a todos que
passavam pela local da obrigatoriedade em rezar pelas almas
que suplicavam por orações (REIS, 2019).
Arte, Cultura e Imaginário 79

Com certa frequência, as vítimas de assalto eram


assassinadas e enterradas na beira da estrada e, consequen-
temente, privadas de ter um funeral adequado. Em 1820,
quando o alemão Rugendas viajava entre os Estados de Minas
Gerais e Rio de Janeiro, também relatou ter visto uma cruz
no meio do caminho. De acordo com os relatos do viajante,
quando as vítimas eram assaltadas, nem a montaria escapava
da morte, eram abatidas e deixadas no local cujo morto foi
enterrado (REIS, 2019). Com toda essa crença em torno do
Purgatório, esse tipo de enterramento, com
[...] sepultura ao léu, em terra profana, ao lado de
animais, era uma fórmula perfeita de tormento para
as almas dos assim mortos e enterrados. Para salvá-
las faziam-se necessárias muitas rezas. As bases
daquelas cruzes se enchiam de pedras que
contabilizavam as preces ditas na intenção dos
mortos ali representados, ajudando-os a atravessar
o estado liminar em que viviam e integrando-se
definitivamente ao outro mundo (REIS, 2019, p. 74).
Quando se tratava do destino do corpo, não era de
costume que as regras fossem aplicadas a todos. Um bom
exemplo disso são as categorias de fiéis que o concílio de
Rouen classificou como aptas a solicitarem um espaço sagrado
para ser enterradas. A seguir, tem-se um trecho do documento:
O concílio de Rouen (1581) classificou em três
categorias os fiéis que podiam reivindicar
sepultura na igreja:
1° “Os consagrados a Deus, em especial os
homens”, a rigor as religiosas “porque o seu corpo
é muito especialmente o templo do Cristo e do
Espírito Santo”;
2° “os que receberam honras e dignidades da
Igreja (os clérigos ordenados) como no século (os
grandes) porque eles são os ministros de Deus e
os instrumentos do Espírito Santo”;
80 A construção do imaginário ...
3° “além disso (as duas primeiras categorias são
de direito, esta é uma escolha) aqueles que por
nobreza, ações e méritos se distinguiram no
serviço de Deus e da coisa pública.” Todos os
demais destinam-se ao cemitério. O concílio de
Reims (1683) distingue também as mesmas
categorias, mas as define de acordo com
características mais tradicionais:
1° duas categorias de direito, os padres e os
patronos das igrejas já reconhecidos na Idade
Média;
2° “aqueles que por nobreza, exemplo e méritos,
prestaram serviços a Deus e à religião”, estes só
são admitidos, conforme costume antigo, com a
permissão do bispo.
Os demais são enterrados no cemitério que,
“outrora os mais ilustres não desprezavam”. A
longa sequência esses textos, quando tomados à
letra, faria crer que a sepultura nas igrejas não
passava de uma exceção mais ou menos rara, mas
uma exceção (ARIÈS, 1981, p. 52).
Muitos eram sepultados nas igrejas com o propósito
de receberem a proteção dos santos e maior proximidade com
os vivos, tendo em vista que, constantemente, todos ocupavam
o mesmo espaço nas igrejas (ARIÈS, 2017).
Os mortos eram enterrados em um lugar ao
mesmo tempo de culto e de passagem como a
igreja, a fim de que os vivos se lembrassem deles
em suas preces e se recordassem que, como eles,
tornar-se-iam cinzas. O enterro ad sanetos era
considerado como um meio pastoral de fazer com
que se pensasse na morte e de interceder pelos
mortos (ARIÈS, 2017, p. 188).

Os enterros nas igrejas tinham muitos significados. Era


o espaço de aprendizagem e celebração cíclica da vida, que
incluía o batismo, o casamento e a morte (REIS, 1991).
Arte, Cultura e Imaginário 81
Outro detalhe eminente é o modo como as igrejas
compartimentavam as covas no seu interior. Não era fácil para
quem frequentava as missas. Não havia muitos assentos, a grande
maioria se organizava de pé, ajoelhada ou sentada no chão, como
podemos observar na Figura 4. Todas as atividades eram
desenvolvidas por cima das sepulturas (REIS, 1991).

Figura 4: Manhã de quarta-feira santa na igreja, Rio de Janeiro

Fonte: Jean Debret. Une matinée du Mercredi Saint, à l’église. Cavalhadas


(tournois). Disponível em: <https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/
3263>. Acesso em: 04/05/2020.

As covas mediam de sete a oito palmos de


profundidade, no subsolo, protegidos por madeira ou pedras
de mármores. Era costume cobrir os cadáveres com cal,
porque ajudava no processo de decomposição e, em seguida,
depositava-se um montante de terra que era prensada por
calceteiras, trabalho braçal atribuído aos escravos. Certamente,
aqueles munidos de recursos financeiros eram enterrados na
parte interna. Para as pessoas com menor poder aquisitivo,
restava apenas locais de enterramentos no adro, área externa
do templo (REIS, 1991).
82 A construção do imaginário ...
Nesse período, a igreja não significava apenas um
templo sagrado, era o “[...] cemitério propriamente dito, no
sentido restrito, era, portanto, simplesmente o pátio da igreja
[...]” (ARIÈS, 1981, p. 56). Para se constituir um cemitério,
construía-se uma igreja para que os corpos pudessem ser
inumados. Ser enterrado na igreja era considerado um ato de
“[...] devoção mais espiritual, mais atenta aos signos físicos,
convidava, portanto, a negligenciar a destinação terrena do
corpo” (ARIÈS, 2017, p. 188).
Apesar do rigor que esta construção secular de crenças
supõe e provoca no horizonte social, um detalhe em específico
desperta a atenção nas Constituições Primeiras do arcebispado
da Bahia. Em determinado trecho, o documento demonstra
indignação com o costume de enterrar os negros em qualquer
lugar. Por este motivo, foram deferidas algumas multas aos
senhores de escravos que praticassem enterramentos
irregulares (VIDE, 1853).
O LVII das Constituições Primeiras das pessoas, a quem se
deve negar à sepultura eclesiástica determinava a existência de
necrópoles distintas para indivíduos de nacionalidades e/ ou
religiões diferenciadas (VIDE, 1853). Nessa situação, eram
recusadas as sepulturas eclesiásticas para os judeus, hereges,
blasfemos, assassinos, ladrões de igreja, excomungados e
crianças, negros ou índios não batizados.
Ambiente fúnebre tão reconfortante não era o
destino derradeiro de outros estrangeiros, que
eram pagãos ou recém-cristão – os escravos
africanos –, ou mesmo os brasileiros pobres
indigentes, na maioria negros e mestiços. Embora
muitos escravos recebessem sepultura eclesiástica
em suas irmandades, ou mesmo nas igrejas
paroquianas e conventuais, a maioria era levada a
cemitérios mantidos pelas Santas Casas, ou
enterrados à toa nas fazendas do interior (REIS,
1997, p. 130).
No livro História da Vida Privada no Brasil, organizado
por Luiz Felipe de Alencastro (1997), no capítulo “O cotidiano
da morte no Brasil oitocentista”, João Reis menciona que os
Arte, Cultura e Imaginário 83
espaços fúnebres reservados para os estrangeiros foram
construídos “[...] à concepção de uma necrópole longe da
cidade, integrado a um cemitério rural, que estava em moda
na Europa e, sobretudo, nos Estados Unidos” (REIS, 1997,
p. 130). Deve-se, sem dúvida, recolocar nesse contexto que,
devido ao medo dos castigos no pós-morte, as “[...]
chamuscaduras do Purgatório ou a perdição eterna na Geena,
levava, com certeza, muitos devotos à contrição e à via estreita
da virtude” (MOTT, 1997, pp. 176-177).
De modo geral, a morada dos mortos “[...] poderia
funcionar como uma excelente ajuda no encaminhamento da
alma e perante a Corte Celeste no instante do julgamento
final, constituindo uma das maiores inquietações das pessoas”
(SILVA, 2012, p. 249). Ao analisar a conjuntura dos eventos,
compreende-se que a sociedade não temia o fenômeno da
morte. A maior preocupação no momento era ter um enterro
digno, pois, “[...] morrer sem enterro significava virar alma
penada” (REIS, 1991, p. 171).
Todos esses costumes foram tomando novos contornos
e sentidos na segunda metade do século XIX, “[...] após a
ocorrência de alguns fatores históricos, como a campanha
sanitarista realizada por representantes da medicina social no
século XIX” (MARTINS, 2019, p. 99). Essa era uma empreitada
da medicina social, que promovia alternativas a fim de minimizar
as enfermidades que se alastravam nos núcleos urbanos. Com a
justificativa de implantar o processo de higienização pública, as
práticas de sepultar os mortos nas igrejas foram alvos de críticas,
porque, do ponto de vista da medicina social, contribuíam para
o surgimento de doenças (REIS, 1991; RODRIGUES, 1997;
RODRIGUES, 2006; MARTINS, 2019).
Cláudia Rodrigues (1997), em Lugares dos mortos nas
cidades dos vivos, enfatiza que diversas igrejas sofreram duras
críticas no Rio de Janeiro. Além disso, o medo das pessoas
com relação à contaminação pela febre amarela enfraqueceu
o hábito de sepultar os mortos nas igrejas.
Os cemitérios existentes, encarados como
insalubres, sofreram a crítica médica, que
propunha um projeto de cemitério “ordenado” e
“moralizante”, visando a neutralização dos efeitos
84 A construção do imaginário ...
mórbidos causados pelos cadáveres. Buscou-se
uma nova localização e organização interna. Pedia-
se o fim dos enterros em seus locais tradicionais
e a criação de cemitérios afastados da cidade
(RODRIGUES, 1997, p. 59).
Quanto maior fosse o esforço da medicina em acabar
com essas práticas, mais fundo ela penetrava em costumes
culturais que, de fato, seriam abalados. Entretanto, algumas
pessoas já relatavam insatisfação com a falta de higiene. Ao
frequentarem as igrejas, as pessoas caminhavam, sentavam e
oravam sobre os mortos, “[...] a todo o tempo sentindo seus
odores, expressando uma determinada sensibilidade olfativa
resultante da fé existente na sacralidade dos sepultamentos
eclesiásticos” (RODRIGUES, 1997, p. 21). Em determinadas
situações, moradores do núcleo urbano do Rio de Janeiro
relatavam episódios preocupantes.
O morador de uma casa à rua dos Passos, contígua
à igreja de Santa Efigênia, notou que de suas paredes
minava “uma substância gordurosa”, que um médico
atestou originar-se de cadáveres enterrados nos
carneiros do templo. O problema, entretanto, era
mais antigo e nem sempre ligado a situações
epidêmicas. Já em 1831, a comissão da SMRJ
encarregada de estudar o ar carioca denunciaria as
igrejas do Carmo, São Pedro e São Francisco de
Paula, onde “as emanações se filtrarão ao través das
paredes” (REIS, 1991, p. 259).
Para os médicos, o ideal seria construir cemitérios
afastados dos núcleos urbanos, de preferência, em áreas
arborizadas, com muros altos para afastar os animais das covas.
Esse seria um espaço fúnebre mais reservado (REIS, 1991), a
ideia de um cemitério:

[...] local onde esteja presente a finitude do homem


e sua individualidade. Finitude por estar no mundo
sob Deus, submisso, tornado nada; finitude que
é seu corpo, em suas propriedades, em sua
Arte, Cultura e Imaginário 85
constituição. Individualidade por estar apreendido
em seu túmulo, nome e vida, que é registrada,
anotada, calculada (MACHADO, 1989, p. 292).
Em Salvador, a proposta de ter um cemitério público
não foi bem aceita pela população. Em 25 de outubro do ano
de 1836, a revolta popular conhecida como “cemiterada” levou
à destruição do cemitério Campo Santo. No entanto, o maior
obstáculo naquele momento seria a própria igreja, pois seus
representantes mantinham interesses econômicos vinculados
às cerimônias mortuárias. “Os interesses eram praticamente
os mesmos que dos investidores que, com o mesmo discurso
higienista, propuseram estabelecimento de cemitérios
públicos, pela Lei n. 17 em 9 de maio de 1835” (REIS, 1991
apud MARTINS, 2019, p. 117).
A população viria a aceitar o cemitério apenas em
1855, devido ao surto da cólera-morbo, que matou entre 30 a
40 mil pessoas, com oito mil falecidos na capital. Com receio
do contágio, muitos padres e médicos fugiram dos doentes e,
principalmente, dos cadáveres. Por conseguinte, foi devido à
epidemia que o Campo Santo consolidou as atividades de
enterros fora do âmbito da igreja (REIS, 1991).
Goiás passou pelo mesmo problema. Os cemitérios
públicos surgiram devido ao número elevado de pessoas que
faleceram com a propagação da febre amarela (SILVA, 2012).
Todos os eventos citados referem-se a registros elaborados a partir
dos núcleos urbanos. No âmbito rural, “[...] a assistência paroquial
era diferente pela distância, pela própria ausência de padres e
sobretudo pela população a ser assistida” (REIS, 2019).
Conforme aponta Cláudia Rodrigues (1995), entre os
anos de 1812 a 1885, a zona urbana do Rio de Janeiro teve
maior atenção dos padres em seus funerais. Tirando os
problemas com as epidemias na segunda metade do século
XIX, foi possível contabilizar que 60% dos que faleceram
receberam a etapa do sacramento antes do óbito. Além disso,
foi confirmado que 41% passaram pelas etapas de penitências,
comunhão e extrema-unção.
Em Salvador, em uma média de 712 mortes, em 1835-
1836, pelo menos 52% não tiveram a sorte de receber o
sacramento tão desejado no momento da morte (apud REIS,
2019, p. 82). Apesar de tantas reviravoltas, enterrar os mortos
86 A construção do imaginário ...
em cemitérios a céu aberto não privaria os indivíduos de
manterem determinados hábitos, como: velórios e cortejos,
com a presença dos representantes da igreja, amigos e
familiares do morto (CASTRO, 2017).
Analisando o contexto social da esfera oitocentista
brasileira, é notória a herança cristã que, naquele momento,
assegurava que o imaginário da morte fosse repleto de opções
no pós-morte, e isso incluiria uma vida eterna ao lado da graça
divina de Deus. A crença na possibilidade de redimir os
pecados cometidos ao longo da vida teve origem apenas no
final do século XII, com o surgimento do Purgatório. É
possível discernir que tais perspectivas consolidar-se-iam no
cotidiano brasileiro de maneira a assegurar que a morte não
fosse temida, pois a maior preocupação era ter um lugar
devidamente adequado para o funeral e o enterro do corpo.
O contexto antropológico sobre os ritos de passagem,
difundidos por Arnold Van Gennep, foi de suma importância
para o entendimento das atitudes diante da morte praticadas
pela sociedade da época. Observar o funeral, do ponto de
vista do afastamento dos mortos, da etapa de liminaridade e
da consolidação da alma no destino final, possibilitou-nos
indagar sobre o quanto compreender o fenômeno da morte
é complexo, principalmente, no domínio das estruturas sociais.
O tema da secularização da morte, difundido pelos
pesquisadores João Reis, Cláudia Rodrigues e José Carlos
Rodrigues, apresenta um cenário da morte associado a uma
sociedade, naquele momento, ainda imbrincada ao imaginário
do Purgatório e a todas as fases tripartidas do funeral. Nessa
conjuntura, o Purgatório entraria como um processo de
revolução mental e social, porque emerge, por definitivo,
substituindo o dualismo que representava as únicas opções
difundidas no início dos primeiros séculos do cristianismo: o
Paraíso e Inferno. Surge, então, um plano intermediário que
resolveria todos os problemas daqueles que temiam não ter a
oportunidade de se redimir dos pecados.
Mais tarde, a fé em obter um lugar no Paraíso se
tornaria um grande negócio para a igreja, tendo em vista que
o mistério da morte e as incertezas do que, de fato, lhes
aguardavam, ainda era desconhecido. Tais afirmações podem
Arte, Cultura e Imaginário 87
ser comprovadas quando João Reis e Cláudia Rodrigues
discorrem no tocante às hierarquias sociais no processo de
ocupação das covas nas igrejas, além do mais, a população
mais privilegiada pela presença de um padre estava nos núcleos
urbanos. Geralmente, a grande maioria dessas pessoas tinham
maior poder aquisitivo, pois todas as etapas do funeral tinham
o seu preço.
Quando Jean-Baptiste Debret veio ao Brasil para
elaborar o registro em relação à sociedade brasileira, não pode
deixar de notar as peculiaridades fúnebres difundidas pelos
portugueses e escravizados, que ainda praticavam a religião
de origem. Havia hierarquias sociais, distinção de gênero,
contudo, a finalidade era a mesma, assegurar uma boa morte.
O que mais chama a atenção em todo o contexto é o fato das
populações restritas nas zonas rurais, sequer ter a certeza de
que teriam um auxílio ou amparo no final de sua vida.
No momento em que os documentos conhecidos por
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia determinam
a existência dos cemitérios rurais para os estrangeiros, ou
quando João Reis menciona que esses espaços também eram
destinados aos negros, índios e crianças não batizadas, sem
falar em toda a população considerada como indigna por não
se enquadrarem na posição de um “cidadão de bem”, de fato,
os enterros, em ambientes rurais, deveriam existir com maior
frequência, fora do teto das igrejas. Esse é um tema pouco
abordado. Os cemitérios rurais merecem maior atenção em
relação às condições do ambiente, padrão de enterramentos,
anseios e atitudes sociais, por não terem a assistência devida.
Levando em consideração o contexto atribuído ao
século XIX e seus eventos históricos, o comportamento diante
da morte tomaria novos rumos com os surtos epidêmicos,
pois as pessoas passaram a ter medo da morte repentina. Um
“imprevisto” desses sequer daria a chance aos indivíduos de
escolher o local do enterro. Esse é o momento em que os
cemitérios públicos conseguem consolidar suas atividades sem
maior resistência. Então, conclui-se que, no decorrer das
atitudes diante da morte e dos mortos, os costumes
relacionados ao funeral tomam novos contornos na segunda
88 A construção do imaginário ...
metade do século XIX, sobretudo, com a aprovação da “nova
morada dos mortos”, os cemitérios.

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Jogos simbólicos e o imaginário na
Educação Infantil
Maria de Lourdes Perez1
Talita Destro Rost2

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional


estabelece, em seu artigo 4o, que a Educação Infantil é uma
etapa da Educação Básica e que, para tanto, a própria LDBEN
estabelece critérios de como trabalhar nessa fase da educação.
Observa-se, nos Referenciais Curriculares Nacionais para a
Educação Infantil (RCNEI) e na Base Nacional Comum
Curricular – BNCC –, que ambos os documentos apresentam
uma nova forma de se olhar a Educação Infantil brasileira,
contemplando a criança com suas emoções, seus desejos e
interesses, inserindo uma abordagem sobre o imaginário
infantil nos currículos escolares. Propõe-se uma escola não
apenas como lugar para cuidar das crianças, mas também para
educá-las. Cuidar e educar passam a ter significados
pedagógicos; bebês e crianças passam a ser sujeitos de direitos.
Brincar é uma das atividades fundamentais para
o desenvolvimento da identidade e da autonomia.
O fato de as crianças, desde muito cedo, poderem
se comunicar por meio de gestos, sons e mais tarde
representarem determinado papel na brincadeira
faz com que elas desenvolvam sua imaginação.
Nas brincadeiras as crianças podem desenvolver
algumas capacidades importantes, tais como a
atenção, a imitação, a memória, a imaginação
(BRASIL, 1998, v. 2, p. 22).
A etapa da educação básica – educação infantil –
garante o brincar e o trabalho com o imaginário da criança
1
Mestre pela Universidade Santo Amaro. Graduada em Letras, Pedagogia e
Enfermagem.
2
Mestre pela Universidade Santo Amaro. Graduada em Letras e Pedagogia.
92 Jogos simbólicos e o imaginário ...
dentro e fora da sala de aula como metodologia pedagógica,
caminhando lado a lado no cuidar e garantir o
desenvolvimento e a formação da criança.
De acordo com o Referencial Curricular Nacional da
Educação Infantil (BRASIL, 1998, p. 23): “educar significa,
portanto, propiciar situações de cuidado, brincadeiras e
aprendizagem orientadas de forma integrada e que possam
contribuir para o desenvolvimento das capacidades infantis
de relação interpessoal de ser e estar com os outros em uma
atitude básica de aceitação, respeito e confiança, e o acesso,
pelas crianças, aos conhecimentos mais amplos da realidade
social e cultural.
Para Wallon (1979), o imaginário está presente nos
jogos simbólicos, nas brincadeiras de faz-de-conta, em que a
criança ressignifica o seu mundo e compreende a si e ao outro.
Piaget (1995) também defende o brincar como forma
de apropriar-se do conhecimento, porém estabelece fases para
esse desenvolvimento infantil. De zero a dois anos de idade,
chamou de estágio sensório-motor, em que o brincar está
relacionado às ações motoras; de três a seis anos de idade,
chamou de estágio pré-operatório, em que a criança começa
a adquirir a linguagem e se relaciona com o mundo e seu
social, momento no qual os jogos simbólicos e as brincadeiras
são formas de entendimento do mundo, de si e do outro.
Para Piaget:
Sua função consiste em satisfazer o eu por meio
de transformação do real em função dos desejos:
a criança que brinca de bonecas refaz sua própria
vida, corrigindo-a à sua maneira, e revive todos
os prazeres ou conflitos, revelando-os,
compensando-os, ou seja, completando a
realidade através da ficção. Em suma, o jogo
simbólico não é um esforço de submissão do
sujeito ao real, mas ao contrário, uma assimilação
deformada da realidade ao eu. De outro lado, a
linguagem intervém nesta espécie de pensamento
imaginativo, tendo como instrumento a imagem
ou o símbolo. Ora, o símbolo é um signo – como
a palavra ou signo muitas vezes compreendido
Arte, Cultura e Imaginário 93
pelo indivíduo, já que a imagem se refere a
lembranças e estados íntimos e pessoais. É,
portanto, neste duplo sentido que o jogo
simbólico constitui o polo egocêntrico do
pensamento. Pode-se dizer, mesmo, que ele é o
pensamento egocêntrico em estado quase puro,
só ultrapassado pela fantasia e pelo sonho
(PIAGET, 1995, pp. 28-29).
A criança, para seu desenvolvimento e aprendizagem,
tem a necessidade de repetições e, de acordo com Piaget, o
lazer orientado ajuda a criança a desenvolver hábitos que
podem perpetuar por toda sua vida, pois ela começa a perceber
o outro e a construir sua identidade pessoal e social ampliando
sua capacidade de entender o mundo.
Froebel (apud KISHIMOTO, 1996) compartilha desse
mesmo pensamento quando afirma que a criança precisa
aprender desde cedo a encontrar-se, por meio de suas
experiências e escolhas. Ela necessita de liberdade para usar
todo seu poder. Para que isso ocorra, um mediador deve
proporcionar um espaço adequado e acolhedor para que seu
desenvolvimento seja mais enriquecedor
Para Vygotsky (apud REGO, 1995), o brinquedo cria
uma zona de desenvolvimento proximal para a criança, e a
zona de desenvolvimento potencial vai despertar nela um
domínio psicológico, pois aquilo que não consegue fazer
sozinha no momento será capaz de fazê-lo futuramente.
De acordo com Vygotsky, através do brinquedo,
a criança aprende a atuar numa esfera cognitiva
que depende de motivações internas. Nessa fase
(idade pré-escolar) ocorre uma diferenciação entre
os campos de significado e da visão. O
pensamento que antes era determinado pelos
objetos do exterior passa a ser regido pelas ideias.
A criança poderá utilizar materiais que servirão
para representar uma realidade ausente, por
exemplo, uma vareta de madeira como uma espada
[…]. A criança passa a criar uma situação ilusória
e imaginária, como forma de satisfazer seus
desejos não realizáveis. Esta é, aliás, a característica
94 Jogos simbólicos e o imaginário ...

que define o brinquedo de um modo geral. A


criança brinca pela necessidade de agir em relação
ao mundo mais amplo dos adultos e não apenas
ao universo dos objetos a que ela tem acesso
(REGO, 1995, pp. 81-82).

O que importa é permitir que as manifestações infantis


e o imaginário estejam presentes no cotidiano da educação
infantil, pois umas querem ler ou ouvir contos de fadas, outras
folhear livros e mapas indagando sobre lugares, povos de
diferentes costumes. A escola deve estimular as crianças e,
nesse sentido, o professor será o mediador de novas
experiências. Deve estar ao lado do aluno, observando e
acompanhando seu desenvolvimento, para levantar problemas
que o levem a formular hipóteses com jogos simbólicos e
brinquedos adequados para idade, com objetivo de
proporcionar o desenvolvimento infantil e a aquisição de
conhecimentos em todos os seus aspectos.
Este estudo provém de uma pesquisa exploratória,
de natureza qualitativa, por meio do estudo da arte. A
metodologia utilizada para a realização deste trabalho é
baseada em uma pesquisa bibliográfica em artigos científicos
e livros de diferentes autores que discorrem sobre o tema.

Jogos simbólicos e imaginário infantil

Brincar possibilita a construção da identidade, a


conquista da autonomia, da socialização, a aquisição das regras
sociais, a ação diante das situações problemas e o
desenvolvimento da imaginação por meio de brincadeiras
como: faz-de-conta, jogo simbólico/re presentativo
(BARBOZA; VOLPINI, 2015).
A imaginação é um princípio basilar da educação
infantil, bem como a fantasia e o faz-de-conta, um processo
de desenvolvimento da espécie humana que se dá a partir da
criação e da recriação de objetos até torná-los realidade.
Vygotsky denomina esse processo de imaginação.
Arte, Cultura e Imaginário 95
A criação de uma situação imaginária não é algo
fortuito na vida da criança; pelo contrário, é a primeira
manifestação da emancipação da criança em relação
às restrições situacionais. O primeiro paradoxo
contido no brinquedo é que a criança opera com um
significado alienado numa situação real. O segundo
é que, no brinquedo, a criança segue o caminho do
menor esforço – ela faz o que mais gosta de fazer,
porque o brinquedo está unido ao prazer – e ao
mesmo tempo, aprende a seguir os caminhos mais
difíceis, subordinando-se a regras e, por conseguinte
renunciando ao que ela quer, uma vez que a sujeição
a regras e a renúncia à ação impulsiva constitui o
caminho para o prazer do brinquedo (VYGOTSKY,
1998, p. 130).
Na brincadeira, a criança consegue resolver e transpor
situações que, no mundo real, não conseguiria, e o brincar
passará a ser a compreensão do que se tornará parte de seu
conhecimento já consolidado. Ocorrerá uma nova relação
entre o significado e a percepção visual, ou seja, entre uma
situação no pensamento e uma situação real.
[...] necessariamente, tudo o que nos cerca e foi feito
pelas mãos do homem, todo o mundo da cultura,
diferentemente do mundo da natureza, tudo isso é
produto da imaginação e da criação humana que nela
se baseia. Qualquer invenção, “grandiosa ou
pequena”, diz Ribot, “antes de firmar-se, de realizar-
se de fato, manteve-se íntegra como uma construção
erigida na mente, por meio de novas combinações
ou correlações, apenas pela imaginação
(VYGOTSKY, 1996, p. 14).
Para Vygotsky (1996), o brincar é a etapa mais
importante da vida infantil e propicia a criação da situação
imaginária, o desenvolvimento da representação, o símbolo,
que diferencia o brincar animal do humano. O brincar carrega
o poder da comunicação, pois só brincam as pessoas que se
comunicam, que partilham das mesmas representações. Cunha
(2007) compartilha da visão de Vygotsky e afirma que, ao
96 Jogos simbólicos e o imaginário ...
brincar, vivenciando suas ideias em nível simbólico, as crianças
passam a compreender o significado das ações no mundo
real, pois aproximam os acontecimentos ao seu mundo de
possibilidades, tornando mais palpável uma situação
desconfortável a ela.
Froebel (apud KISHIMOTO, 1996) é considerado um
dos primeiros pedagogos a observar as atividades espontâneas
das crianças em jogos e brinquedos no jardim de infância
com um olhar diferente. A importância dos jogos foi
reconhecida por muitos educadores e suas origens datam
desde Platão, Horácio e Quintiliano. Essas atividades eram
vistas como recreação. No período de Sócrates, Aristóteles,
Sêneca e Tomás de Aquino, eles surgiram como relaxamento
após as atividades que exigiam esforço físico, intelectual e
escolar; eram considerados práticas informais. Já no
Renascimento, aparecem como instrumento de aprendizagem
dos conteúdos escolares e, no período do Romantismo,
apontam como conduta tipicamente infantil, sendo
considerada espontânea e livre, pois a criança era vista como
um ser que imitava e brincava. A brincadeira é como uma
ação metafórica, livre e espontânea da criança (KISHIMOTO,
1996).
Froebel, em suas pesquisas, percebeu que o jogo trazia
inúmeros benefícios às crianças, tais como: intelectuais, morais
e físicos; e o considerou como elemento-chave no
desenvolvimento integral infantil. O autor classifica o jogo
como atividade simbólica e o divide em duas partes: a primeira,
que denomina de brinquedos, e a segunda, de jogos. Para ele,
os brinquedos são atividades imitativas livres e os jogos
atividades livres, porém possuem emprego dos dons de
outrem. A criança que brinca livremente, ativamente,
esquecendo sua fatiga física, perseverando, pode tornar-se uma
pessoa mais determinada, altruísta, promovendo o seu bem e
dos demais. Além dos benefícios já mencionados, Froebel
percebeu que a criança pode aprender a linguagem por meio
das brincadeiras, relacionando sons e ideias (KISHIMOTO,
1996).
A palavra auxilia a criação imaginária, permitindo que
a criança se apoie concretamente por meio da ação lúdica e
Arte, Cultura e Imaginário 97
do objeto pivô para compor partes da cena lúdica. A linguagem
permite que a criança passe a mentalizar cenas imaginárias,
dispensando o apoio no objeto pivô, ou personagens,
dispensando a presença de participantes. Ou seja, ela permite
que a criança crie e aja com objetos ausentes, sem suporte
material, para compor personagens que estão fora do jogo,
mas, de alguma forma, estão conectados à criança que apenas
coordena as ações deles (GÓES, 2000).
Assim como Froebel, Orly de Assis (1984) propõe
categorias de jogos, como: jogos de exercícios, jogos
simbólicos e jogos de regras. A primeira categoria está
relacionada aos jogos que realizamos com as crianças de até
18 meses na fase sensório-motora. A segunda pauta-se no
surgimento da linguagem e da representação, tendo a imitação
como um jogo simbólico que permite à criança uma
assimilação egocêntrica do real. E a terceira refere-se ao
respeito e à subordinação pelas regras, favorecendo a
internalização de novos comportamentos.
O ato de brincar propicia a incorporação de valores
morais e culturais, pois as atividades lúdicas visam à
autoimagem, à autoestima, ao autoconhecimento e à
cooperação, porque conduzem à imaginação, à fantasia, à
criatividade e à criticidade. A criança brinca porque tem um
papel, um lugar específico na sociedade. Ela constrói
conhecimento. O jogo é a forma que as crianças encontram
para representar o contexto em que estão inseridas. Ao brincar,
ocorre um processo de troca, partilha, confronto e negociação,
gerando momentos de desequilíbrio e equilíbrio, e propiciando
novas conquistas individuais e coletivas (BERTOLDO;
RUSCHEL, 2000).
A criança que brinca precisa ser respeitada, pois ela
está em constante oscilação entre a fantasia e a realidade.
Precisa tanto de brinquedos, como de espaço, suficientemente
para que se sinta à vontade e dona de seu espaço
(BERTOLDO; RUSCHEL, 2000). Segundo Brougére (1998),
compreender a cultura lúdica para tornar o brincar uma
atividade dotada de significações sociais pela construção de
regras próprias é contribuir para a socialização da criança
(KISHIMOTO, 1996).
98 Jogos simbólicos e o imaginário ...
É durante a brincadeira do faz-de-conta que ela
expressa sua capacidade de dramatizar e aprender a
representar, tendo como referência a imagem de outra pessoa,
de um personagem, ou mesmo de um objeto. A criança
necessita do simbolismo para estabelecer relações sobre o
modo de relacionar-se com as pessoas, consigo mesma e com
o mundo. O pensamento de uma criança evolui, portanto, a
partir de suas ações e representações de sua própria realidade
na hora do brincar; expressando seus sentimentos de forma
lúdica, proporcionando a formação cognitiva, emocional e
social (BARBOZA; VOLPINI, 2015). Nas palavras de Cunha:
[...] o faz-de-conta não imita a realidade, mas ao
contrário, é um meio de sair dela, um jeito de
assumir um novo estado de espírito [...] a
imaginação é desafiada pela busca de soluções para
os problemas criados pela vivência dos papéis
assumidos. As situações imaginárias estimulam a
inteligência e desenvolvem a criatividade
(CUNHA, 2007, p. 23).
Esse caminho de descobertas leva a criança à
autonomia. O processo que a conduz deve possuir relação
com o jogo simbólico, sendo significativo para ela. Imaginando
e representando, por meio de ações lúdicas relacionadas ao
cotidiano, a criança permitirá a evolução de seu próprio
intelecto, auxiliando no enfrentamento de dificuldades
encontradas durante a vida (BARBOZA; VOLPINI, 2015).
No ambiente educacional, os jogos aparecem no
RCNEI como uma importante ferramenta para a prática
pedagógica, agindo como um recurso didático que favorece
o processo de desenvolvimento de ensino e aprendizagem.
É o professor que auxilia na estruturação das
brincadeiras na vida das crianças em sala de aula. Ele
proporcionará a oferta de determinados objetos, fantasias,
brinquedos ou jogos, bem como a delimitação e arranjo dos
espaços e do tempo para brincar. Por meio das brincadeiras,
os professores podem observar e constituir uma visão dos
processos de desenvolvimento das crianças individualmente
ou em grupos, observando suas capacidades sociais e recursos
afetivos e emocionais que dispõem no ato em si.
Arte, Cultura e Imaginário 99
É tarefa do educador organizar situações para que as
brincadeiras ocorram de maneira diversificada, propiciando
às crianças a possibilidade de escolherem temas, papéis, objetos
e companheiros com quem brincar ou demais jogos de regras
e de construção, para que suas emoções, sentimentos,
conhecimentos e regras sociais, sejam reorganizadas
internamente em cada criança (BRASIL, 1998). O jogo
educativo deve ser espontâneo e divertido, para que possam
favorecer a construção do conhecimento. Campos afirma que:
[...] O jogo ganha um espaço como a ferramenta
ideal da aprendizagem na medida em que propõe
estímulos ao interesse do aluno, desenvolve níveis
diferentes de experiência pessoal e social, ajuda a
construir suas novas descobertas, desenvolve e
enriquece sua personalidade, simboliza um
instrumento pedagógico que leva o professor à
condição de condutor, estimulador e avaliador da
aprendizagem, ele pode ser utilizado como
promotor de aprendizagem e das práticas
escolares (CAMPOS, 2003 apud BATISTA;
DIAS, 2012, p. 980).
Este mesmo autor ainda faz uma crítica de que pouco
se usam jogos em sala de aula e que os profissionais,
principalmente da educação infantil, desconhecem os
benefícios que os jogos proporcionam. Para ele, os professores
deveriam considerar a inclusão dos jogos nos planos didáticos,
a fim de aproximar a criança do conhecimento (BATISTA,
2012).
O imaginário criado pela criança ao brincar, segundo
Durand (apud ARAÚJO; TEIXEIRA, 2009), revela-se como
um lugar de entre saberes, um lugar do espelho, um “museu”
que armazena todas as imagens possíveis produzidas pelo
homem. E, neste local, encontramos uma dialética entre a
idolatria e a desconfiança, entre sonhos e delírios.
O referido autor considera o imaginário como: “o
‘museu’ de todas as imagens passadas, possíveis, produzidas
e a produzir, nas mais diferentes modalidades de produção,
pelo homo sapiens sapiens)”. Para ele, o imaginário implica
100 Jogos simbólicos e o imaginário ...
um pluralismo das imagens e uma estrutura sistêmica do
conjunto dessas imagens heterogêneas, mesmo divergentes,
como: o ícone, o símbolo, o emblema, a alegoria, a imaginação
criadora ou reprodutiva, o sonho, o mito, o delírio etc.
A valorização do imaginário é inseparável da
imaginação simbólica. Ele é identificado com o mito, sendo
constituído o primeiro substrato da vida mental. E, enquanto
tiver função simbólica, será considerada como um fator
importante de equilíbrio psicossocial. Para Durand (1979), a
função da imaginação consiste em equilibrar biológica,
psíquica e sociologicamente tanto os indivíduos, quanto as
sociedades frente à civilização tecnocrática e iconoclasta
(ARAÚJO; TEIXEIRA, 2009). Podemos, portanto, dizer que,
ao brincar, exercitando seu imaginário próprio, a criança
mantém o equilíbrio psicossocial e desenvolve habilidades
para, enfim, traduzir-se.
Segundo Bachelard, a imaginação está relacionada à
realidade. Ela é considerada como um elemento criativo e
autônomo. A imaginação, para ele, é a faculdade de integrar
as diversas esferas da existência, como o pensamento, a ação
e a emoção, em uma experiência significativa, por meio de
uma linguagem simbólica. As experiências, mediadas pelo
símbolo, possibilitam a integração e a racionalização. A atuação
do símbolo e da imaginação formam o campo do Imaginário,
que, neste caso, é intermediado pelo jogo (SERBENA, 2003).
No transcorrer deste estudo, fizemos alusão a
reflexões sobre a importância do ato de brincar, sobretudo
na educação infantil. Com a criação das brinquedotecas e
espaços lúdicos, podemos perceber a relevância do trabalho
com o imaginário para o desenvolvimento de nossas crianças,
em relação a outras e com o meio social em que vivem.
A brincadeira, o brinquedo e os jogos, engendrados
pelo imaginário, são condições pedagógicas relevantes para o
desenvolvimento da cognição, fortalecendo a memória, a
linguagem, a atenção, a criatividade, entre outros aspectos que
contribuem para o desenvolvimento psicológico e cognitivo
de crianças e adolescentes. O brincar, como recurso
pedagógico, deve ser encarado de forma responsável e
competente.
Arte, Cultura e Imaginário 101
Por meio da interação lúdica, percebemos
oportunidades significativas para o desenvolvimento integral
das crianças. Com ações pedagógicas relacionadas à fantasia,
criadas e estimuladas pelo imaginário, a criança pode
desenvolver-se mental e socialmente. O jogo proporciona esta
interação e, enquanto ela estiver brincando e fantasiando,
estará aprendendo a lidar com problemas diários.

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Bruxaria contemporânea: imaginário e
identidade na religião Wicca
Lucciano Franco de Lira Siqueira1
Paulo Fernando de Souza Campos2

A análise dos discursos produzidos no entorno das


mulheres identificadas como bruxas constituiu o objeto do
estudo e formaliza a presente reflexão. As identidades
construídas para essas mulheres evocam representações
danosas no imaginário social acerca da bruxaria. Tais
imaginários se manifestam no cotidiano e são percebidos tanto
nos discursos historiográficos sobre a figura da bruxa, quanto
nos contos de fadas longamente disseminados na cultura
ocidental de modo universalista (MICHELET, 1992;
BETTELHEIM, 1980).
Nas últimas décadas, as bruxas foram resgatadas por
movimentos feministas, espirituais e ecológicos, que
desconstroem discursos dominantes. A bruxa contemporânea
é adepta de uma religiosidade ligada a uma nova leitura dos
antigos paganismos, principalmente os europeus. A Bruxaria,
na atualidade, é uma forma de espiritualidade, pois se integra
aos chamados movimentos neopagãos. A Wicca, nome sempre
seguido pelo epíteto de Bruxaria Moderna, institui-se como a
religião mais popularmente conhecida e com base na bruxaria,
sendo uma de suas vertentes. Assim, pode-se, de imediato,
afirmar que o tema é complexo e impossível de ser delimitado

1
Graduado em História. Mestrando no Programa Interdisciplinar em
Ciências Humanas da Universidade Santo Amaro – UNISA, São Paulo
(Bolsista parcial UNISA).
2
Doutor em História UNESP, Assis. Professor do Programa de Mestrado
Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Santo Amaro –
UNISA, São Paulo.
104 Bruxaria contemporânea ...
por não constituir um conjunto único, ou uma regra
unificadora.3
A releitura das bruxas, como agentes de um
movimento espiritual, está vinculada a determinadas práticas.
Feitiços e encantamentos, além da manipulação de poções e
realização de festivais, estão relacionados ao cotidiano da
bruxaria e são evocados principalmente em dias sagrados,
pautados nos solstícios e equinócios (VAN FEU, 2001c, pp.
20-29; VAN FEU, 2001b, p. 81; FRAZÃO, 2002, pp. 179-
185). Este aspecto permite considerar que as formas de
manifestação que regem a br uxaria contemporânea
estabelecem relações com o neopaganismo, mas também com
movimentos de contracultura presentes no Brasil com maior
força nas décadas de 1960 a 1980. Ambos apresentam a
perspectiva de reencantamento do mundo e podem ser
compreendidos como anarquismo religioso, o que colaborou
para a criação de correntes de pensamento espiritual, cujo
principal atributo é apresentar flexibilidade de dogmas
(BOSCATO, 2006).
Os dogmas podem ser percebidos somente nas
estruturas das comunidades das bruxas4, os chamados covens,
ou seja, grupo de bruxas que se reúnem para praticar feitiços
ou comemorar datas especiais, porém, do mesmo modo, sem

3
Existem, por exemplo, correntes de bruxaria derivadas da Wicca como
a Wicca Gardneriana, Wicca Alexandrina, Wicca Diânica, Wicca Celta e
outras denominações independentes como as da tradição Picta, entre as
quais emergem o ecletismo, a tradição hereditária ou familiar, Stregoneria,
também conhecida como bruxaria italiana, Tradição Asatrú, entre outras.
Na esteira dessas correntes, há segmentos criados por bruxos que podem
adotar uma infinidade de terminologias (VAN FEU, 2003, pp. 132-142).
4
A Bruxaria contemporânea é uma religiosidade seguida tanto por homens
como por mulheres. Porém, entre as obras que serviram de base para
este capítulo é comum que as autoras utilizassem o coletivo na forma
feminina “bruxas” para se referir a ambos, provavelmente para evidenciar
a importância dada à mulher na religião ou como quebra do padrão
seguido pela língua portuguesa que privilegia o masculino. Adotamos a
mesma abordagem neste estudo.
Arte, Cultura e Imaginário 105
estabelecer regra geral. A pluralidade de bruxarias existentes
permite reconhecer as chamadas ‘bruxas solitárias’, as quais
praticam a religião criando a sua própria liturgia. Deste modo,
dentre as diversas vertentes dos neopaganismos, o que parece
concentrar as identidades de seus praticantes é a crença em
alguns aspectos em comum, vale dizer, a sacralidade da
natureza, a vinculação inquebrantável entre físico e espiritual
e a possibilidade da magia.
Opondo-se aos discursos presentes na sociedade
patriarcal, que depreciam o feminino e ampliam a violência
simbólica, as bruxas contemporâneas apresentam o conceito
de sagrado feminino encontrado na crença e culto a deusas e
intimamente vinculado ao ato da criação e exaltação da mulher.
Os registros analisados permitiram indagar sobre os motivos
pelos quais o feminino assume capital importância entre
bruxas contemporâneas, isto é, em que medida os discursos
legitimam o Sagrado Feminino na Bruxaria Contemporânea
e quais relações se estabelecem entre o imaginário construído
para as bruxas medievais e modernas.
Para a reflexão proposta, o estudo utilizou publicações
nacionais escritas por integrantes da Bruxaria, em específico,
por Marcia Frazão e Eddie Van Feu, como os publicados na
revista Wicca 5. No caso do periódico, o estudo analisa a coluna
destinada aos leitores, os quais encaminharam opiniões,
dúvidas e mesmo relatos das dificuldades enfrentadas por
seguirem a Bruxaria. Os textos evidenciam a importância da
mulher exaltada como referência na bruxaria identificada
como A Arte ou Antiga Religião.
Não obstante, as bruxas possuem longa historicidade
em que foram tratadas como loucas, perigosas, ignorantes,
representantes dos resquícios deixados por cultos pagãos em
locais pouco catequizados pelo cristianismo, mas, em alguns
momentos, também como símbolo de resistência. Na
atualidade, os chamados pagan studies têm se preocupado em
estudar as bruxas contemporâneas como integrantes de uma

5
Os exemplares da coleção Wicca utilizados na construção desta
pesquisa eram originariamente vendidos em bancas de jornal,
estima-se que no período entre de 2001 e 2012.
106 Bruxaria contemporânea ...
nova religião (TERZETTI FILHO, 2010). Nesse sentido,
apresentar a historicidade das bruxas contemporâneas implica
retomar a construção de identidades que integram o
imaginário nas mais diferentes sociedades, todavia,
diferentemente das imagens distorcidas, as br uxas
contemporâneas têm filhos, famílias, empregos, mas
permanecem vítimas de preconceito e discriminação, sendo
historicamente perseguidas e mortas devido a um imaginário
que reverbera a bruxa pela representação da mulher má, que
pratica o mal, constituindo-se em um mito a ser combatido.
Segundo Pesavento (1995), o imaginário se constitui
pela representação, estabelecida na relação entre significantes
(imagens e palavras) e significados (suas representações),
processo que envolve uma dimensão simbólica composta
simultaneamente de concretude e representação. Sua
dimensão representativa, ou seja, imaginária, instaura-se nos
processos históricos que transpassam os grupos sociais. Na
dimensão do imaginário, conseguimos estabelecer conexão
com o conceito de identidades, constructos que, na pós-
modernidade, se estabelecem móveis, fluídos, agregando
elementos muitas vezes contraditórios, mas gerando o
sentimento de pertencimento ou comunidade. Como indicado
por Hall (2005), essas identidades culturais são imaginadas,
construídas com símbolos, mitos, tradições, ritos. A bruxa,
nestes termos, transforma-se em símbolo historicamente
construído, possui uma representação no imaginário social.
Partindo dessas premissas, buscamos analisar a
identidade da bruxa contemporânea baseada no conceito de
Sagrado Feminino, elemento presente na bruxaria do século
XXI. Deste modo, o capítulo reflete sobre a presença da
sacralidade feminina na Bruxaria Contemporânea como uma
possibilidade a mais para se compreender relações existentes
entre a construção das identidades das bruxas e os discursos
que as representam em diferentes momentos históricos.

Imaginário negativo: a bruxa como agente


demoníaco
No começo da noite de sábado do dia 3 de maio de
2014, Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, foi amarrada e
Arte, Cultura e Imaginário 107

espancada por moradores do bairro de Morrinhos, na periferia


de Guarujá, região da Baixada Santista, São Paulo. Apesar de
encaminhada para atendimento médico, a gravidade das
agressões resultou em seu óbito. Os agressores, de acordo
com a divulgação do fato, confundiram-na com o retrato
falado apresentado em notícias vinculadas no perfil Guarujá
Alerta de uma rede social, em que foi apontada como uma
suposta bruxa que, segundo os boatos, estaria sequestrando
crianças com o intuito de empregá-las em rituais de magia
negra (FOLHA DE S. PAULO, 2014).
A matéria veiculada retrata um caso de agressão contra
uma mulher cuja imagem foi vinculada à figura da bruxa como
símbolo de maldade, deturpação do feminino e agente diabólica.
Não é gratuito que, na página on-line do jornal, o comentário de
um dos assinantes para a notícia resgata o período da ação da
Inquisição na Europa, no qual afirmava: “Está aberta a
temporada de caça às bruxas” (FOLHA DE S. PAULO, 2014).
Todavia, Fabiane Maria de Jesus não era bruxa e, mesmo assim,
foi vítima da representação negativa construída pelo imaginário
social ainda presente no século XXI.
De acordo com os estudos produzidos, o conceito
imaginário é constituído por símbolos que propiciam a
formação de ideias com as quais as pessoas interpretam e
representam o real. Assim, coletivamente, são valores,
emoções e expectativas que constroem o imaginário,
elementos intimamente relacionados com narrativas históricas
que propiciam a criação, recriação ou reordenação dos modos
como a realidade é compreendida. No que se refere à
religiosidade, o imaginário cria um discurso de realidade
marcado por interpretações fundadas em mitos
(LAPLANTINE; TRINDADE, 1996). Nessa perspectiva,
percebemos na bruxa um símbolo que assume a dimensão
diabólica, da ameaça que deve ser combatida, sobretudo, no
imaginário cristão ocidental.
De todo modo, a historiografia permite inferir que a
inferiorização da mulher é uma tradição presente desde a
antiguidade clássica. A figura de Pandora, a mitologia judaico-
cristã de Eva, entre outras, deslinda casos em que a mulher é
significada como corruptível, meio pelo qual o mal penetra a
108 Bruxaria contemporânea ...
sociedade (MICHELET, 1992; NOGUEIRA, 1995, p. 77).
Nos contos de fada, os exemplos são inúmeros.
A representação da mulher/bruxa como serva do
diabo é disseminada seguramente até o século XV, definida
pela crença na existência de festejos do Sabá, apostasias e
profanações de sacramentos. A crença moldada pelos
Inquisidores é perpetuada pelos juris seculares, culminando no
que viria a se tornar a grande caça às bruxas na Europa
moderna. Essa representação negativa torna-se ferramenta
estratégica da Igreja no combate das superstitiones, extratos
culturais remanescentes dos paganismos que se caracterizam
por algumas práticas voltadas a antigos símbolos de divindades
pagãs que perduraram durante o predomínio cristão, pois “[...]
o pior crime de Satã era a persistência do Paganismo [...]”
(NOGUEIRA, 1995, p. 73).
A mulher emerge como agente de satã na medida em
que é a principal educadora e transmite a seus filhos tradições
com as quais foi criada, como é possível observar no caso do
culto dos benandanti, no século XVII na Itália. Carlo Ginzburg
(1998) desvela como um culto agrícola é gradualmente
transfor mado em br uxaria pela ação dos tribunais
inquisitoriais. Para o autor:
[...] São crenças que os benandanti aprendem na
primeira infância, g eralmente das mães,
depositárias dessa herança de tradições, de
superstições; assim se explica que, no momento
em que eles se afastam das aldeias, às vezes contra
sua vontade, essas crenças se transformem num
vínculo muito forte, que liga e reúne os migrantes
[...] (GINZBURG, 1998, p. 126).

A feitiçaria, tratada como uma “[...] imploração


constante, no mundo ocidental, aos resquícios dos deuses do
paganismo[...]” (PALOU, 1988, p. 7), esvaziada de sua conexão
direta com deuses do sistema religioso a que estavam inseridos,
evoca a heresia demonolátrica e caracteriza a mulher como
seu principal agente. A sexualidade da mulher é representada
como ameaça, pois libidinosa por natureza, tentadora do
homem, que busca manter-se puro no mundo na medida em
Arte, Cultura e Imaginário 109
que o sexo é o meio preferencial da perdição (NOGUEIRA,
1995). Neste processo, a feiticeira se torna ainda mais
ameaçadora por seus filtros amorosos, que ludibriam os
homens e despertam paixões.
Assim, bruxas e feiticeiras são representadas pelo
estigma do infanticídio e remontam à figura de Medeia6,
responsável pela morte dos seus próprios filhos ou os filhos
dos outros. Por volta do século XVI, bruxas castelhanas, por
exemplo, recebiam a culpa pela morte de crianças em um
período em que a taxa de mortalidade infantil era elevada,
principalmente de recém-nascidos, bem como pelos
numerosos casos de infanticídio. Deste modo, recebiam a
culpa imediata, além de forjar, na cultura popular, a imagem
da bruxa como responsável pelas mortes (NOGUEIRA,
1995).
A representação das bruxas e feiticeiras como
mulheres abjetas permanece no imaginário social, inserida em
sistemas de crenças presentes no século XXI como herança
maldita. A religião, como uma estrutura legitimadora da
política, implica pensar a moral de seus seguidores e,
consequentemente, o reflexo de valores que impregna as
estruturas sociais. Tal processo gera a imposição, na forma
de pressão social, de adequação a uma determinada forma de
agir dada a partir da noção equivocada da existência de uma
identidade fixa (HALL, 2005). Nesse sentido, a hegemonia
cristã como prática discursiva possibilita a permanência de
representações negativas da bruxaria que molda o imaginário
social na contemporaneidade.
As evidências das construções discursivas evocadas
estão presentes na coluna de leitores da Revista Wicca, que
apresenta relatos referentes aos conflitos vividos por bruxas
contemporâneas na vida social mais ampla. Em muitos casos,

6
Personagem da tragédia escrita por Eurípedes em 431 a.C. Medeia auxilia
Jasão a roubar o velo de ouro à despeito de seu pai. Foge com Jasão após
o acontecido e com ele tem filhos, mas por ele é abandonada quando em
Corinto, Jasão decide se casar com a filha do monarca. Como vingança
envia um vestido envenenado por artes mágicas para a noiva de Jasão,
que perece em chamas e assassina os próprios filhos (VIEIRA, 2010).
110 Bruxaria contemporânea ...
os textos permitem caracterizar dramas internos causados pela
quebra de paradigmas pessoais gerados pela nova religião, isto
é, devido às divergências que se apresentam em relação à
religiosidade predominante. Nos depoimentos publicados na
edição n. 25, é possível identificarmos conflitos que permeiam
temporalidades históricas, como quando uma seguidora da
bruxaria contemporânea escreve:
Eddie, de novo lhe escrevo... Não aguento mais...
Minha família quer que eu seja católica! Ela tem
que entender que essa não é uma religião que me
completa! [...] estou fazendo curso de Crisma [...].
Eu vou terminar o curso e, aos poucos, ir deixando
o catolicismo e continuar estudando para me
aperfeiçoar em magia... (WICCA, 2004, pp. 160-
161).
Os registros permitem identificar, no bojo dos
conflitos, a imposição de valores familiares e dogmas do
catolicismo arraigados na construção mítica da bruxaria. Ainda
que exista a escolha da correspondente em prosseguir
momentaneamente na religião católica, seu depoimento
mantém a preocupação em encontrar uma saída menos
conflituosa e seguir a religião com a qual aparentemente se
sente mais conectada. Em resposta, Eddie Van Feu sugere o
reconhecimento da prática mágica como inerente a todas as
religiões, inclusive no catolicismo.
Como prática mágica, podemos entender a liturgia e
a ritualização da Igreja Católica como uma forma de magia
na medida em que “[...] mesmo santos da Igreja Católica
praticavam magia, contra os bruxos pagãos, garantindo assim
o estabelecimento do cristianismo”– afirma Eddie Van Feu
(2001a, p. 27). Esse aspecto remonta outro relato publicado
na revista Wicca, que resgata a dúvida e a culpa causada ao
atribuir um sentido espiritual à realidade adversa vivida. A
leitora informa:
Estudo e pratico Wicca desde os 13 anos. Hoje
tenho 17 anos e uma filha. Essa minha filhinha
nasceu com o esôfago fechado, passou por uma
cirurgia de altíssimo risco com três dias de vida,
Arte, Cultura e Imaginário 111
ficou na UTI entubada, com dreno, com sonda,
enfim... Achamos que ela iria morrer. Mas graças
a Deus, está viva. Acontece que ela está sempre
no médico por algum motivo: gripe, garganta,
refluxo, pneumonia, etc... Não sei mais o que
fazer para melhorar a saúde do meu bebê. Ela já
tem um ano, gasta muito com remédios e eu
estou devendo até o olho da cara. Bom
resumindo, hoje eu li a Bíblia e lá dizia que se
você adorasse outros deuses, suas dores se
multiplicariam. Você acha que a bruxaria tem
algo haver com o sofrimento do meu bebê? Tipo,
algo que eu fiz de errado? Me ajuda, Eddie, pois
não quero deixar a Wicca, mas também não
quero ver meu bebê mal. Leio a Bíblia porque
também faço parte da salada mística da Eddie
(WICCA, 2004, pp. 158-159).
O termo empregado no final com a expressão “salada
mística da Eddie” é adotado por Eddie Van Feu para nomear
o sincretismo religioso que defende, ao misturar, sem receio,
diferentes códigos simbólicos e deuses em sua prática à
Bíblia, anjos e santos do catolicismo (WICCA, 2001, pp.
13-15). Embora essa mistura pareça ser aceita de forma
positiva pela autora, o conflito relatado pelos leitores é
marcante. Nesse processo, dois valores presentes nas
identidades consideradas contraditórias emergem: a crença
na magia e sua busca como religião e o discurso religioso
predominante que condena a prática.
Salvo os avanços alcançados, o tema da bruxaria
ainda é permeado pela representação lendária da bruxa como
mulher demoníaca, usada pelo diabo para praticar feitiços,
corruptora, representante do mal. O impacto desse
mecanismo opressor é resultado de um conhecimento
pautado em verdades absolutas ou pós-verdades, cuja
desconstrução exige o reconhecimento das diversas
manifestações da espiritualidade.
112 Bruxaria contemporânea ...
Identidade e memória: bruxaria, religião e
preconceito

Como assinalado por Hall (2005, p.12), “[...] a


identidade costura o sujeito à estrutura [...]”, em outras
palavras, seus efeitos geram símbolos que nos identificam com
estruturas mais amplas, como nacionalidade ou comunidade,
logo, produz sentidos. Entretanto, a identidade constituída
na fabricação de sentidos estáveis passa por mudanças
paradigmáticas na pós-modernidade. Em um mundo de
redução das distâncias simbólicas pela fácil circulação de
informação, ideias e formas de interpretação de mundo, não
mais se atribui uma estrutura fixa, pois o autor considera o
conceito como algo plástico, em constante transformação,
como construção, portanto, une leituras de mundo muitas
vezes contraditórias.
A identidade das bruxas, formada por uma representação
negativa, ainda é presente no imaginário social que reifica a
bruxa como figura anômala. Na sociedade cristã ocidental,
tal representação remonta uma longa continuidade, que tem
na bruxa a figura central de práticas nocivas. Neste sentido,
religiões hegemônicas reproduzem discursos da intolerância
atribuídos a cultos e rituais minoritários, que encontram
ressonância com diversas práticas culturais para além do
universo das br uxas. Tais imposições constroem
representações negativas da figura da bruxa ou bruxo como
agentes do mal.
A representação da bruxa assim constituída perde
sentido e força entre as bruxas contemporâneas na medida
em que a imagem evocada por essa memória se encontra
vinculada à instituição do cristianismo em um momento
histórico no qual os hábitos eram pagãos. A influência cristã,
segundo Eddie Van Feu, teria penetrado na população não
de forma homogênea, tampouco sem resistência.
Muitas pessoas não quiseram converter-se à nova
religião do profeta que morreu na cruz e foram
eliminadas para que suas almas fossem assim,
piedosamente salvas e purificadas segundo
Arte, Cultura e Imaginário 113
disseram. Outras ainda se converteram na marra,
continuando a praticar seus rituais escondidos.
Outras converteram-se de coração ao ver os
milagres e ouvir a mensagem de amor universal
que aquele jovem profeta havia deixado. Elas
adaptaram seus rituais e encantamentos, buscando
alívio e solução agora em nome de Jesus e em
nome de Deus que Ele nos afirmou ser seu Pai.
Se antes uma mulher acendia uma vela entoando
cânticos a Beltane, agora ela acendia uma vela
rezando o pai-nosso (VAN FEU, 2001a, p. 26).
A interpretação aponta que bruxas contemporâneas
herdaram das bruxas vítimas da Inquisição esses fluxos de
sentido, que atribuem aos praticantes da bruxaria lugares
inóspitos, impróprios, avessos aos dogmas que regem a
doutrina cristã. Para Frazão (2002), as bruxas assumiram uma
postura de mártires que tentaram combater essa imposição
espiritual, mantendo-se fiéis às suas práticas. Considerando a
manutenção da Igreja Católica Medieval sobretudo em relação
ao conceito de patriarcado e por depreciar o feminino, a autora
afirma:
Naquele período, porém a mulher já havia sido
assassinada pelas retas de uma sociedade fálica.
Havia somente poucas guerrilheiras tentando
bravamente manter a Velha Religião; guerrilheiras
que curavam sem sangrias, usando apenas os
instrumentos da Terra, as ervas; guerrilheiras que
auxiliavam nos partos e davam a mãe o conforto
do feminino[...] (FRAZÃO, 2002, p. 30).
É necessário ressaltar que Frazão (2002) e Van Feu
(2001) tratam o período histórico da Inquisição de modo
distinto e, mesmo que exista uma confluência entre as duas
perspectivas, Van Feu (2001) encontra nas bruxas não a figura
de guerrilheiras, mas de indivíduos usados pela Igreja Cristã
como ameaça, como estratégia para disseminar desconfiança
e adquirir maior influência social. Para a autora:
Naquela época era tudo do Diabo. Entre as
superstições populares, havia a crença de que as
114 Bruxaria contemporânea ...
bruxas podiam causar tempestades, doenças e
impotência sexual. Uma vez que tempestades não
são exatamente um fenômeno raro, impotência
sexual menos ainda e doença nunca faltou em
lugar e época alguma podia-se encontrar bruxos
e bruxas em qualquer lugar! Nesse estranho
mundo onde a Lei é a superstição, era fácil atribuir
aos feiticeiros a responsabilidade por fatos
corriqueiros e as oportunidades e justificativas
para a tortura e perseguição eram inumeráveis
(VAN FEU, 2001a, p. 44).
A Bruxaria, na atualidade, é interpretada por seus
praticantes como “a velha religião”, noção que pode ser
compreendida ao se perceber, em ambas as autoras, a ideia
de continuidade dos antigos paganismos, como elemento que
teria se mantido marginalizado pelo Cristianismo. Não
obstante, a bruxa cultua a vida representada pela divindade
da natureza, a lua, a Grande Mãe. Nessa perspectiva, a figura
do Diabo não pertence à bruxaria, mas é produto do
Cristianismo. O Diabo é “[...] a figura criada para seduzir a
mulher e governá-la a tornando a bruxa, a feiticeira”
(FRAZÃO, 2002, p. 30).
Os discursos historicamente construídos contrários à
mulher são reinterpretados pelas bruxas da atualidade pelo
sentimento de medo da potência feminina, de sua ligação com
a natureza. Os paganismos, elementos que são resgatados
pelos movimentos de Contracultura, mobilizados por jovens
durante o período da ditadura militar (1964-1984), evocam
posicionamentos contrários aos valores sociais representados
por uma cultura predominantemente intransigente. Como
afirma Boscato (2006, p. 8), “A Contracultura pode assumir
diferentes formas no decorrer da História, se compreendida
como uma resistência à cultura oficial que nos é imposta pelo
sistema capitalista”.
Nesse ponto, o que mais parece significativo ao
analisarmos as correntes espirituais das bruxas no século XXI
e a influência dos discursos originados dos movimentos de
contracultura é o conceito de Anarquismo Contracultural ou
Anarquismo Espiritual da Contracultura. Essa perspectiva
Arte, Cultura e Imaginário 115
encontra ressonância em um discurso religioso e espiritual
que não aceita instituições reguladoras das práticas espirituais,
criado para diferenciar o Anarquismo clássico, que “[...] tinha
absoluta confiança nas Ciências Humanas e Naturais [que]
não estavam em contradição como portadoras das sementes
de uma nova civilização [...]” (BOSCATO, 2006, p. 22). Ou
seja, que defende mudanças profundas na medida em que
cria uma revalorização das espiritualidades étnicas e encontra
no âmbito das artes e da religiosidade uma ferramenta de
resistência, pois “[...] toda ideologia religiosa também é uma
ideologia política na medida em que atua como força
legitimadora de uma ordem social estabelecida.” (BOSCATO,
2006, p. 24). Assim, o autor permite considerar que:
A releitura da Espiritualidade ocidental sob novas
interpretações deve ser observada como a atitude
de uma juventude que buscava novos caminhos
para a organização social, pois o pensamento
mítico e as práticas sociais são elementos que
sempre caminham juntos, um construindo e
justificando o outro, dentro de uma dialética do
imaginário (BOSCATO, 2006, p. 62).
Baseada nos conhecimentos de correntes ocultistas
dos séculos XIX e XX, a revalorização de povos e
religiosidades marginalizados pela cultura oficial busca a
superação da realidade estruturada em rígidos valores sociais.
A retomada dessas religiões marginalizadas pelo cristianismo
resgata a figura das divindades e da natureza como sagrada,
assim, culminam em uma maior preocupação com o meio
natural, algo possibilitado pela crença da magia relacionada
ao reencantamento do mundo que organiza a bruxaria
contemporânea.
Fundamental nesse processo é a presença do feminino
e a conceituação de sagrado feminino na contracultura, como
oposição ao cristianismo patriarcal. Ao analisar o sagrado
feminino na obra do cantor Raul Seixas, o autor propõe que
“A Lua Cheia é o protótipo da bruxa, em estado de êxtase” e
“ a morada da fada que é tida como a megera do amor, a
grande indesejada pelas religiões patriarcais, por evocar o
116 Bruxaria contemporânea ...
sagrado feminino, considerado profano por um Deus
masculino” (BOSCATO, 2006, p. 185). Vale dizer, a
identificação da espiritualidade em contraposição ao sagrado
oficial, nascido do patriarcado.
O trabalho de Marcireau (1976), cuja tradução e
publicação no Brasil remonta o contexto dos movimentos
contraculturais, defende que houve um período do
matriarcado no qual o sagrado feminino antecedeu a
representação masculina de divindade. Segundo o autor:
Todos os mitólogos concordam em reconhecer
que o aparecimento da divindade masculina, na
História, é bastante tardia. Os deuses-homens são
deuses recentes, novos nos Panteões, tendo
sucedido aos deuses-animais e às grandes deusas.
A passagem da divindade feminina à divindade
masculina não se operou, é evidente, de um dia
para o outro. Os especialistas da história das
religiões dizem que o culto do deus masculino é
uma extensão do culto da grande deusa. Na
origem, a deusa era representada sozinha (mas
recordemos que, nas imagens mais antigas, ele
aparecia sempre grávida). Nas épocas que
precederam ao advento do deus masculino a deusa
começou a aparecer com uma criança nos braços
(como a Virgem Maria). Uma imagem bastante
antiga mostra-nos uma deusa sentada em seu
trono com uma criança sobre os joelhos. Em outra
representação, um adolescente estende sua mão
direita a uma deusa sentada. Depois do Deus
criança, depois do Deus jovem, surgiu, finalmente
o Deus idoso que tão bem conhecemos, do tipo
Javé, Júpiter ou Zeus. Trata-se do deus tipicamente
patriarcal (MARCIREAU, 1976, p. 195).

Na Bruxaria, o conceito sagrado feminino assume


caráter fundamental entre as bruxas, pois sua principal
divindade é, com frequência, a personificação da natureza, a
lua, a Deusa. É interessante perceber que a narrativa construída
por Marcireau (1976) revela o surgimento, de forma linear,
Arte, Cultura e Imaginário 117
de um deus homem, que encontra confluência com a linha
de raciocínio existente na liturgia da Wicca, na qual o Deus
homem é considerado filho e consorte da grande Deusa.
Ambas as divindades são relacionadas ao mundo natural,
porém há predominância feminina dada pelo conceito
totalizante de natureza ou “Mãe Natureza [...] o ser que gerava
a vida” em todas as suas formas (VAN FEU, 2001a, p. 24).
Assim, a bruxa retira o humano do centro da criação na medida
em que:
Descobrir-se bruxa é estar em perfeito equilíbrio
com a Grande Mãe. É saber-se parte do ciclo
natural da vida, não deixando, em momento
algum, de se ver tal qual o restante dos seres,
animais, vegetais e minerais. Quando conseguimos
estabelecer esse elo mágico entre nós e outros
seres, estamos começando a ser bruxas.
(FRAZÃO, 2002, p. 18).
Desse modo, a percepção de que a Bruxa está
intimamente conectada com a figura da Grande Mãe, em uma
totalidade com todas as outras formas de existência natural,
desarticula a hegemonia nas quais estão fundados os discursos
dominantes. O sagrado feminino é apresentado pelas autoras
como um conceito múltiplo, pois abarca não somente uma
Deusa, mas o reconhecimento de todas essas faces do
feminino como uma única divindade maior:
Pude então reconhecê-la (A Grande Mãe) na mulher
sereia, senhora dos mares e do mistério da criação, a
Yemanjá dos africanos, a Afrodite dos gregos... Pude
vê-la ao chegar à primavera, com sua face Perséfone;
ao vento frio de inverno, com sua face Hécate; ao
cair das folhas de outono, com sua face Deméter; e,
no desvario das tardes de verão, com sua face Diana.
(FRAZÃO, 2002, p. 52).
Cabe destacar que a referência a Yemanjá, elencada
entre as divindades de origem grega, permite perceber que,
na bruxaria, antigas divindades pagãs são apresentadas ao lado
de outras divindades oriundas de religiões politeístas.
Evidenciam-se, assim, valores de uma religião libertária na
118 Bruxaria contemporânea ...
medida em que há uma possibilidade para sincretismos. Todas
as Deusas, como mulheres, são a mesma Deusa Mãe na
bruxaria “[...] aprendemos que o nome da Deusa, a Grande
Mãe, pode ser variado: Gaia, Yemanjá, Istar, Maria, Isis,
Deméter e muitos outros” (FRAZÃO, 2002, p. 36). Assim, o
conceito de sagrado feminino se torna fundamental para os
princípios presentes entre bruxas, que dialogam diretamente
com os valores libertários e movimentos de contracultura,
bem como na flexibilidade de cultos.
A bruxaria no século XXI é uma religião politeísta e,
no Brasil, evoca deuses originados nos antigos paganismos
europeus, divindades de religiões asiáticas, africanas e afro-
brasileiras. A bruxaria contemporânea propõe aos seus
seguidores o reencantamento do mundo na medida em que
sua prática reside na crença da eficácia da magia intermediada
por rituais, feitiços, encantamentos e poções que são
possibilitados pelo sagrado feminino ou pela sacralidade da
natureza. Assim, encontra nas mulheres o princípio
fundamental de seu culto.
Diante do exposto, é possível considerar que o sagrado
feminino se organiza por intermédio da representação da
Deusa ou Grande Mãe, que confere ao feminino lugar de
predominância no discurso religioso da criação do mundo e
destaca as mulheres como preponderantes, algo
diametralmente oposto à forma com que se organizam as
sociedades no processo histórico. As bruxas contemporâneas
encontram, nos discursos de misoginia presentes antes,
durante e após a Inquisição promovida pela Igreja Católica,
cujo ápice atinge a Idade Moderna, uma forma de resistência
e de poder da figura da mulher, que tenta ininterruptamente
suprimir o lugar do feminino e o poder da mulher.

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Reflexões sobre o conceito de banalidade
do mal, de Hannah Arendt, sua interface
com o imaginário e seu diálogo com a atual
conjuntura política brasileira
Marcial Ribeiro Chaves1

Este trabalho se propõe a fazer uma reflexão sobre o


conceito de banalidade do mal presente na obra da filósofa
alemã Hannah Arendt, adepta das ideias de Heidegger e que
vivenciou um dos momentos mais tenebrosos do século XX,
o nascimento e a deflagração do nazismo. Retomando o
conceito de banalidade do mal, cunhado pela autora em sua
polêmica obra Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade
do mal, percebe-se uma interlocução com a situação atual
causada pela onda conservadora que alçou ao poder no Brasil
um grupo político de extrema direita, cujo líder máximo exalta
publicamente a ditadura militar e a tortura, prestigia
presencialmente atos antidemocráticos que reivindicam
intervenção militar no país e fechamento da Suprema Corte,
além de, frequentemente, proferir insultos contra profissionais
da imprensa e ameaçar publicamente o Estado Democrático
de Direito com falas alusivas a um possível golpe.
Em decorrência disso, passamos a assistir, também,
ao recrudescimento do racismo, da intolerância religiosa e de
gênero no âmbito da sociedade brasileira. O trabalho
pretende, ainda, esboçar uma breve análise da relação entre
esses pensamentos, procurando demonstrar como ações
radicais podem acabar se naturalizando perante nossa

1
Mestre em Políticas Sociais e Geógrafo Pela PUC-SP e Especialista em
Política Internacional pela Fundação Escola de Sociologia e Política de
São Paulo. Coordenador de Pesquisa e Iniciação Científica do Centro
Universitário Ítalo Brasileiro, onde é Editor Executivo da Revista
UNIITALO.
122 Reflexões sobre o conceito de banalidade ...
percepção, muito embora a temática esteja em pauta em
grande parte da mídia e, também, nos textos acadêmicos.
Não obstante, procuraremos fazer uma discussão sobre
a interface do pensamento da autora com o conceito de imaginário
cunhado por Wunenburger (2007), segundo o qual, “remete a
um conjunto bastante flexível de componentes, abrangendo
pensamentos religiosos, produções artísticas, concepções pré-
científicas, ficções, ideologias políticas e sociológicas.
Em termos de procedimentos metodológicos, foram
realizadas pesquisas bibliográficas, tanto em títulos de autoria
de Hannah Arendt, como também de autores que já a
interpretaram em suas obras. Após a discussão do conceito
de banalidade do mal, buscamos outros autores que tratam
de assuntos correlatos à temática em questão, a fim de
estabelecer seu diálogo com a atual conjuntura brasileira.

Hannah Arendt: trajetória

Nascida Johanna Arendt em 14 de outubro de 1906,


em Hannover, Alemanha, e morta em Nova Iorque, Estados
Unidos, em quatro de dezembro de 1975, foi uma filósofa
política alemã de origem judaica, uma das mais influentes do
século XX. Radicada nos Estados Unidos, amplamente
reconhecida como uma intelectual dentre os mais originais e
influentes (e polêmicos) pensadores políticos do século XX,
passou sua infância e parte da juventude em Königsberg, a
mesma cidade de Immanuel Kant. Seus antepassados vieram
de Königsberg, na Prússia (a cidade atual r ussa de
Kaliningrado), para onde voltaram seu pai, o engenheiro Paul
Arendt, que sofria de sífilis, sua mãe Martha e ela, quando
Hannah tinha somente três anos. Depois da morte de seu
pai, em 1913, foi educada de forma bastante liberal por sua
mãe, que tinha tendências socialdemocratas. Nos círculos
intelectuais de Königsberg, nos quais se criou, a educação de
meninas era comum. Por meio de seus avós, conheceu o
judaísmo reformista. Não pertencia a nenhuma comunidade
religiosa, mas sempre se considerou judia, inclusive
participando do movimento sionista.
Arte, Cultura e Imaginário 123

Aos quatorze anos, já havia lido a Crítica da razão


pura, de Kant 2, e aPsicologia das concepções do mundo, de Jaspers.
Aos 17 anos, é obrigada a abandonar a escola por
problemas disciplinares, indo, então, sozinha, para Berlim,
onde, sem haver concluído sua formação, teve aulas de
teologia cristã e estudou, pela primeira vez, a obra de Soren
Kierkegaard.3
Nos anos 1920, além de se aprofundar em Teologia,
estudou os clássicos como aluna especial na Universidade de

2
Immanuel Kant (Königsberg, 22 de abril de 1724 – Königsberg, 12
de fevereiro de 1804) foi um filósofo prussiano (Alemão). Amplamente
considerado como o principal filósofo da era moderna, Kant operou,
na epistemologia, uma síntese entre o racionalismo continental (de
René Descartes, Baruch Espinoza e Gottfried Wilhelm Leibniz, onde
impera a forma de raciocínio dedutivo), e a tradição empírica inglesa
(de David Hume, John Locke, ou George Berkeley, que valoriza a
indução).Nascido de uma modesta família de artesãos, depois de um
longo período como professor secundário de geografia, Kant veio a
estudar filosofia, física e matemática na Universidade de Königsberg
e, em 1755, começou a lecionar ensinando Ciências Naturais. Em
1770, foi nomeado professor catedrático da Universidade de
Köni gsberg, cidade da qual nunca saiu, l evando u ma vi da
monotonamente pontual e só dedicada aos estudos filosóficos.
Realizou numerosos trabalhos sobre ciências naturais e exatas.
3
Sören Aabye Kierkegaard (Copenhague, 5 de maio de 1813 –
Copenhague, 11 de novembro de 1855) foi um filósofo, teólogo, poeta
e crítico social dinamarquês, amplamente considerado o primeiro
filósofo existencialista. Durante sua carreira, ele escreveu textos
críticos sobre religião organizada, cristianismo, moralidade, ética,
psicologia e filosofia da religião, mostrando um gosto particular por
figuras de linguagem, como a metáfora, a ironia e a alegoria. Grande
parte do seu trabalho filosófico aborda as questões de como alguém
vive sendo um “único indivíduo”, priorizando a realidade humana
concreta sobre o pensamento abstrato e destacando a importância da
escolha e do comprometimento pessoal. Ele se posicionou contra os
críticos literários chamados de idealistas e contra filósofos de seu
tempo.
124 Reflexões sobre o conceito de banalidade ...
Berlim. Em 1924, ingressou na Universidade de Marburg,
onde estudou filosofia com Martin Heidegger4.
Em 1926, foi para Heidelberg, onde estudou com o
filósofo Karl Jaspers5, junto a quem defendeu a sua tese de
doutorado O conceito de amor em Agostinho, publicada em 1929.
No final desta década, ela se envolveu com a política judaica
por meio do movimento sionista e, no começo da década
seguinte, em 1933, com a ascensão do nazismo e o incêndio do
Parlamento Alemão em Berlim, cidade onde ela residia desde
1930 com seu primeiro marido, foi perseguida e presa por suas
atividades, tendo, então, fugido para Paris com sua mãe.
4
Martin Heidegger (Messkirch, 26 de setembro de 1889 – Friburgo em
Brisgóvia, 26 de maio de 1976) foi um filósofo, escritor, professor universitário
e reitor alemão. Foi um pensador seminal na tradição continental e
hermenêutica filosófica, e é “amplamente reconhecido como um dos filósofos
mais originais e importantes do século XX.” É mais conhecido por suas
contribuições para a fenomenologia e existencialismo, embora, como a
Enciclopédia de Stanford de Filosofia adverte, “seu pensamento deve ser
identificado como parte de tais movimentos filosóficos apenas com extremo
cuidado e qualificação”. Seu primeiro e mais conhecido livro, Ser e Tempo
(1927), embora inacabado, é uma das obras filosóficas centrais do século
XX. Em sua primeira divisão, Heidegger tentou se afastar das questões
“ônticas” sobre os seres para as questões ontológicas sobre o Ser, e recuperar
a questão filosófica mais fundamental: a questão do Ser, do que significa
para algo ser. Heidegger abordou a questão através de uma investigação
sobre o ser que tem uma compreensão do Ser, e faz a pergunta sobre ele, a
saber, o Ser Humano, que ele chamou de Dasein (“estar lá”). Heidegger
argumentou que o Dasein é definido por Care, seu modo de ser-no-mundo
praticamente engajado e preocupado, em oposição a pensadores racionalistas,
como René Descartes, que localizou a essência do homem em nossas
habilidades de pensamento.
5
Karl Theodor Jaspers (Oldemburgo, 23 de fevereiro de 1883 – Basileia, 26 de
fevereiro de 1969) foi um filósofo e psiquiatra alemão. Estudou medicina e, depois
de trabalhar no hospital psiquiátrico da Universidade de Heidelberg, tornou-se
professor de psicologia da Faculdade de Letras dessa instituição. Desligado de seu
cargo pelo regime nazista em 1937 foi readmitido em 1945 e, três anos depois,
passou a lecionar filosofia na Universidade de Basileia. O pensamento de Jaspers
foi influenciado pelo seu conhecimento em psicopatologia e, em parte, pelo
pensamento de Kierkegaard, Nietzsche e Max Weber. Sempre teve interesse em
integrar a ciência ao pensamento filosófico na medida em que, para Jaspers, as
ciências são por si só insuficientes e necessitam do exame crítico que só pode ser
dado pela filosofia. Esta, por sua vez, deve basear-se numa elucidação, a mais
completa possível, da existência do homem real, e não da humanidade abstrata.
Arte, Cultura e Imaginário 125
Durante o restante da década, trabalhou em
organizações judaicas cuja principal função era ajudar a
preparar jovens judeus na imigração para a Palestina. Nesse
período, tornou-se amiga de Walter Benjamin e Raymond
Aron. Em 1940, com a guerra entre a Alemanha e a França,
ela, sua mãe e Heinrich Blücher, seu segundo marido, foram
detidos por algum tempo em campos de internamento.
Em 1941, fugiram, via Lisboa, para os Estados Unidos,
onde se radicaram em definitivo.

Banalidade do mal: conceituação

O livro de Arendt, Eichmann em Jerusalém: um relato sobre


a banalidade do mal, é resultado da análise do julgamento do
nazista Otto Adolf Eichmann em 1961. Arendt foi designada
pela revista The New Yorker para fazer a cobertura jornalística
do julgamento que, ao final, gerou o seu mais polêmico livro e
que, posteriormente, acabou por levar a uma acentuada rejeição
da autora junto às comunidades judaicas pelo mundo afora.
O Mossad 6, em 11 de maio de 1960, capturou
Eichmann no subúrbio de Buenos Aires, levando-o,
posteriormente, para Israel (ARENDT, 1999, pp. 32, 259).
O julgamento, dessa feita, iniciou-se em 11 de abril de 1961,
encerrando-se perante a Corte Distrital de Jerusalém em 15
de dezembro de 1961, com a pronúncia da sentença de morte
do acusado (ARENDT, 1999, pp. 105, 270).

6
O Mossad (palavra em hebraico que significa “O Instituto”) é o serviço
secreto ou o instituto de inteligência e operações especiais do Estado de
Israel. Criado em 13 de dezembro de 1949, a partir de sugestão do primeiro-
ministro de Israel, David Ben-Gurion, o Mossad é considerado por muitos
analistas o serviço secreto mais eficiente e mais temida do mundo,
ultrapassando a CIA, americana, e a antiga KGB, soviética. É um serviço
civil que obedece diretamente ao primeiro-ministro de Israel e não contratam
militares para trabalhar na sua organização, apesar de, frequentemente, realizar
atividades conjuntas com as Forças de Defesa de Israel. Tem os seus quartéis-
generais situados no norte de TelAviv e conta com oito departamentos.
126 Reflexões sobre o conceito de banalidade ...
Ao longo do julgamento de Eichamn, nazista
responsável por gerir a logística das deportações em massa
dos judeus para os guetos e campos de extermínio durante o
período da Segunda Guerra Mundial, Arendt passou a
entender que tudo o que ele havia cometido fora como um
ato burocrático, sem refletir a respeito. Apesar de ter plena
noção da gravidade de seus atos, ele agiu como um funcionário
que cumpria ordens. Tratava-se de uma pessoa absolutamente
“normal”, um típico burocrata, manipulado pela ideologia
alemã, um mero executor de ordens, que zelava por seus
deveres e pelo cumprimento de seu trabalho.
Eichmann, para a acusação, era o monstro perverso,
responsável por todas as atrocidades cometidas aos judeus, mas
a autora o descreveu perante o julgamento nos seguintes termos:
[...] aquele homem dentro da cabine de vidro
construída para sua proteção: altura mediana,
magro, meia-idade, quase calvo, dentes tortos e
olhos míopes, que ao longo de todo o julgamento
fica esticando o pescoço para olhar o banco das
testemunhas (sem olhar nem uma vez para a
platéia), que tenta desesperadamente, e quase
sempre consegue, manter o autocontrole, apesar
do tique ner voso que lhe retorce a boca
provavelmente desde muito antes do começo
deste julgamento (ARENDT, 1999, p. 15).
A perversidade do sistema totalitário cria pessoas
destituídas da mínima capacidade de distinguir o bem do mal,
de atentar para as consequências de suas ações, pois se
encobrem no coletivo. Cegos, buscam, unicamente, ascender
socialmente no exercício de suas profissões sem questionar o
éthos que lhes compete.
Essa “normalidade de entorpecimento” de Eichmann,
que lhe impedira de se distanciar de seus atos e de refletir
sobre eles, é apontada por Arendt (1999, pp. 64-65) como
uma realidade que encerrava a sociedade alemã. Eichmann
não era exceção: as distorções feitas por ele eram a
regularidade. No regime nazista, somente as exceções é que
poderiam ser consideradas a normalidade quando fora daquele
círculo (ARENDT, 1999, pp. 38, 71)
Arte, Cultura e Imaginário 127
Para Arendt (1999), o pensamento, como uma
manifestação do ato de pensar, não é o conhecimento, mas a
habilidade de distinguir o bem do mal, o belo do feio, o bom do
ruim. É o pensar de forma consciente que possibilita a autonomia
nas pessoas para que contemplem a sua liberdade de forma digna
e protagonizem as próprias capacidades dos juízos morais.
Hannah Arendt apontou para a necessidade de
refletirmos sobre o fato de que regras arbitrariamente
preestabelecidas nos tornam incapazes de gozar das faculdades
básicas do espírito individual, sequestrando nossa liberdade.
Ao negar ao homem a liberdade de pensar, refletir, julgar e
escolher, fomentamos a existência do totalitarismo.
Para Arendt (1999), o mal é a ausência de pensamento,
vinculando-se à capacidade humana de discernir o bem do
mal. Eichmann respondeu por seus atos mecanizados, por
suas más ações diante de um sistema capaz de tornar uma
simples conduta repetitiva em completa alienação. A
banalidade do mal é quando não mais se percebe o próprio
agir, não se consegue colocar no lugar do outro e ter a
dimensão do que representa o próprio ato.
Os buracos de esquecimento não existem. Nada
humano é tão perfeito, e simplesmente existem
no mundo pessoas demais para que seja possível
o esquecimento. Sempre sobra um homem para
contar a história. Portanto, nada pode ser
‘praticamente inútil’, pelo menos a longo prazo.
Seria de grande utilidade prática para a Alemanha
de hoje, não meramente para o seu prestígio no
estrangeiro, mas para a sua condição interna
tristemente confusa, se houvesse mais dessas
histórias para contar. Pois a lição dessas histórias
é simples e está ao alcance de todo o mundo.
Politicamente falando, a lição é que, em condições
de terror, a maioria das pessoas se conformará,
mas algumas pessoas não, da mesma forma que a
lição dos países aos quais a Solução Final foi
proposta é que ela ‘poderia acontecer’ na maioria
dos lugares, mas não aconteceu em todos os
lugares. Humanamente falando, não é preciso
nada mais, e nada mais pode ser pedido dentro
128 Reflexões sobre o conceito de banalidade ...
dos limites do razoável, para que este planeta
continue sendo um lugar próprio para a vida
humana (ARENDT, 1999, p. 254).
O mal de Eichmann não provém do sobrenatural, mas
de um homem surpreendentemente normal. Esse é o mal
moderno, um mal que, por não ter um motivo especial – um
vilão, um pecado, um trauma, um demônio –, pode ser um
mal infinito, um mal cometido por qualquer pessoa normal:
aquela que tem família, paga seus impostos, vai à igreja, realiza
festas com amigos e familiares e, inclusive, por aquela que se
elege Presidente da República.
Apesar de ter sido publicado em 1963, o livro e o
pensamento de Hannah Arendt ainda permanecem muito vivos
e fecundos hoje. A banalidade do mal pode ser vista e sentida
em nosso cotidiano, seja pela reprodução de discursos de ódio –
que são diariamente difundidos pela grande mídia e pela massa
que a acompanha cegamente –, seja pelo desrespeito aos direitos
humanos, ou mesmo pela banalização da violência no cotidiano.
A incapacidade de pensar ainda é um dos grandes problemas de
nosso tempo, que produz comportamentos que flertam
abertamente com o fascismo7 em nosso país.

7
Segundo o filósofo e historiador Norberto Bobbio, o termo fascismo se refere
principalmente à sua dimensão histórica. Esta, constituída pelo fascismo italiano e
posteriormente pelo fascismo alemão. Apesar da dificuldade em encontrar uma
única definição para o fascismo, as características observadas em diversos regimes
fascistas possibilitam a elaboração de uma definição geral, que frisa os aspectos
mais comuns desse regime. De forma geral, o fascismo é um regime autoritário
com concentração total do poder nas mãos do líder do governo. Esse líder deveria
ser cultuado e poderia tomar qualquer decisão sem consultar previamente os
representantes da sociedade. Além disso, o fascismo defende uma exaltação da
coletividade nacional em detrimento das culturas de outros países. Além de
totalitários, os governos fascistas objetivavam expandir seu território por meio de
conflitos internacionais. Para isso, realizavam altos investimentos na produção de
armas e equipamentos de guerra. Para garantir a manutenção de seu governo, os
líderes fascistas controlavam os meios de comunicação de massa, por onde
divulgavam sua ideologia e controlavam todas as informações disseminadas.
Qualquer crítica ao governo era aniquilada mediante uso da violência e do terror.
Aqueles considerados inimigos de um governo fascista eram punidos com prisão
ou morte. Fonte: https://www.politize.com.br/fascismo/ Acesso em: 09.08.2020.
Arte, Cultura e Imaginário 129

Banalidade do mal e imaginário

Para Jean-Jacques Wunenburger8, pesquisador sobre


as estruturas e funções dos mitos, das imagens e dos símbolos
em correlação ao pensamento científico, filosófico e cultural,
o imaginário é uma instância produzida no coletivo a partir
de um conjunto de elementos simbólicos que expressam uma
visão de mundo permeada de ethos (valores, ideias e costumes).
Seus estudos versam sobre uma abordagem filosófica
que compreende o imaginário como um termo que “remete
a um conjunto bastante flexível de componentes”
(WUNEMBURGER, 2007, p. 7), abrangendo, portanto,
pensamentos religiosos, produções artísticas, concepções pré-
científicas, ficções, ideologias políticas e sociológicas, que se
configuram num conjunto de imagens relacionadas, que
expressam pensamentos, sentimentos, aspirações e
experiências dos seres humanos.
No livro O Imaginário, de Wunenburger (2007), há um
capítulo denominado “Explorações de imaginário”, e, em seu
item I- Imaginários de um grupo social: utopia e milenarismo, o autor
menciona que, em cada sociedade, os grupos providos de
uma identidade ou de uma finalidade próprias adotam um
imaginário próprio (WUNEMBURGER 2007, p. 74).
Para o autor, grupos de ativistas políticos criam imaginários
particularmente deslumbrantes, o que nos remete à situação do
Brasil de hoje, onde os apoiadores do atual presidente o chamam,
com frequência, de mito, e os mais fervorosos fazem alusão a um
tempo em que, segundo eles, o país era muito melhor, o tempo da
ditadura e do autoritarismo que vicejou de 1964 a 1985.

8
Jean-Jacques Wunenburger (28 de outubro de 1946) é um filósofo francês.
Especialista em estudos sobre a imaginação, sua obra busca uma aproximação
com a antropologia para analisar símbolos e mitos nas suas relações com o
racionalismo no mundo contemporâneo Formou-se em Filosofia em 1969,
pela Universidade de Dijon, onde foi discípulo de Gilbert Durand.
Posteriormente, fez seu Doutorado sobre a instituição e a experiência da
festa, que defendeu em 1973. Além de lecionar na Universidade Jean Moulin
Lyon 3, é o diretor do Centro Gaston Bachelard de Pesquisa sobre o
Imaginário e a Racionalidade, da Universidade de Bourgogne.
130 Reflexões sobre o conceito de banalidade ...
Segundo Wunemburger (2007), esses grupos revestem
seus imaginários de materiais emprestados da teologia milenarista:

Apropriando-se dos esboços utópicos, numerosos


ativistas sociais acreditaram assim renovar os modelos
e deixar inflamar-se outra vez por novos desejos de
absolutos. A impaciência da ação que incita a realizar
concretamente os ideais sonhados impele a imaginar
um grande número de cenários que ilustram os
arrebatamentos da imaginação social na esteira das
utopias literárias (WUNEMBURGER, 2007, p. 75).
O trecho acima traduz, com clareza, algumas facetas dos
ativistas que apoiam o atual governo e pregam explicitamente a
volta aos ideais conservadores e autoritários. Tais ativistas
propagam suas ideias pelas redes sociais, mas buscam sustentação
teórica por meio do guru do Presidente da República e de todos
os que seguem essa vertente da onda conservadora que assolou
o país. O escritor Olavo de Carvalho8, que se autointitula filósofo,
9
Olavo Luiz Pimentel de Carvalho (Campinas, 29 de abril de 1947) é um ensaísta
brasileiro, influenciador digital e ideólogo que foi jornalista e astrólogo
Autoproclamado filósofo, é um representante do conservadorismo no Brasil. Desde
2005 ele vive em Richmond, Virgínia, Estados Unidos. Carvalho alega ter sido
militante filiado ao Partido Comunista Brasileiro em sua juventude, de 1966 a
1968 e opositor da ditadura militar brasileira, tornando-se anticomunista
posteriormente. Ele é apontado como o responsável pelo surgimento da Nova
Direita brasileira e considerado guru do presidente da República Jair Bolsonaro, o
que Carvalho rejeita. Trabalhou como jornalista em veículos como Folha de S.
Paulo, Planeta, Bravo!, Primeira Leitura, Jornal do Brasil, Jornal da Tarde, O Globo, Época,
Zero Hora e Diário do Comércio. Como astrólogo, colaborou no primeiro curso de
extensão universitária em astrologia da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP), em 1979, oferecido a formandos em psicologia. Como escritor,
seu primeiro livro é de 1980, intitulado A Imagem do Homem na Astrologia. Em 2013
lançou O Mínimo que Você Precisa Saber para não Ser um Idiota. Sua obra também
inclui O Jardim das Aflições (1995), O Imbecil Coletivo (1996), dentre outros livros. A
atuação de Carvalho como polemista é caracterizada pela recusa ao discurso
politicamente correto e pela presença de ataques ad hominem e termos chulos. Seus
livros e artigos divulgam teorias conspiratórias e informações incorretas. Ele
também fomenta discursos de ódio e anti-intelectualistas. Crítico da modernidade
demonstra interesse por filosofia histórica, história dos movimentos revolucionários,
tradicionalismo e religião comparada. Seus escritos no campo da filosofia são
rejeitados pelos especialistas.
Arte, Cultura e Imaginário 131
fornece as utopias literárias, as mais esdrúxulas, junto com um
grupo de empresários-pastores evangélicos (neopentecostais),
que, por sua vez, tratam de dar o revestimento moral-religioso
para os diversos discursos desse grupo. Para Wunemburger,
esse impulso do imaginário ativista toma, por sua vez, caminhos
múltiplos, chegando mais ou menos a quebrar as sujeições da
racionalidade política (2007, p. 75).
E, de fato, o que menos se vê nos discursos e práticas
desses ativistas é racionalidade, profundamente negacionistas,
alardeiam que não existem mudanças climáticas, negam o
aquecimento global, bem como parte de suas causas – o
desmatamento –, recusam-se a obedecer protocolos científicos
para redução de contaminação em meio à pandemia, gritam aos
quatro ventos que a terra é plana, muitos negam, inclusive, que
tenha havido ditadura (no sentido do autoritarismo) no país.
Junta-se a eles o discurso falso moralista de
empresários-pastores evangélicos, apoiadores de primeira hora
de todo esse imbróglio político-ideológico, que têm como
base de suas pregações a doutrina da prosperidade, por meio
da qual arrecadam quantias bilionárias, que, em última análise,
incitam o consumo de diversas formas.
A futilidade do consumo exacerbado, o sistema
dominante que produz corrupção e desigualdades estruturais,
a violência estrutural, que, mesmo silenciosamente, destrói e
aniquila subjetividades, sem contar as guerras, que colocam
povos contra povos, ainda em nosso tempo são exemplos da
banalidade do mal no imaginário do nosso cotidiano, no qual,
sem pensar, sem refletir sobre sua condição e suas ações,
pessoas e instituições produzem e reproduzem o mal.
As críticas sobre o culto incessante ao consumo e suas
consequências já vêm sendo feitas por muitos de nossos
132 Reflexões sobre o conceito de banalidade ...
pensadores, como o célebre Milton Santos. 9 Na ótica
miltoniana, a democracia de mercado10 traz em seu bojo aspectos
que nos remetem à análise da forma como os que detêm os
meios de comando utilizam-se do verdadeiro culto ao
consumo que persiste nos tempos atuais para perpetrar a
perversidade sistêmica em vigor. Na sua obra, O Espaço do
Cidadão, de 1987, o autor já abordava o fato de que havia uma
crescente importância da figura do consumidor em detrimento
da figura do cidadão.
Quando se confundem cidadão e consumidor, a
educação, a moradia, a saúde, o lazer aparecem como
conquistas pessoais e não como direitos sociais. Até
mesmo a política passa a ser uma função do consumo.

9
Milton Almeida dos Santos (Brotas de Macaúbas, 3 de maio de 1926 –
São Paulo, 24 de junho de 2001) foi um geógrafo, escritor, cientista,
jornalista, advogado e professor universitário brasileiro. Graduado em
Direito, destacou-se por seus trabalhos em diversas áreas da geografia,
em especial nos estudos de urbanização do Terceiro Mundo. Foi um
dos grandes nomes da renovação da geografia no Brasil ocorrida na
década de 1970. Também se destacou por seus trabalhos sobre a
globalização nos anos 1990. A obra de Milton Santos caracterizou-se
por apresentar um posicionamento crítico ao sistema capitalista, e seus
pressupostos teóricos dominantes na geografia de seu tempo. Milton
Santos ganhou o prêmio VautrinLud, em 1994, o de maior prestígio na
área da geografia. O prêmio é considerado “o Nobel da geografia”.
Milton Santos foi o primeiro e é o único geógrafo da América Latina a
ter ganhado o prêmio em questão. Foi agraciado postumamente em
2006 com o Prêmio Anísio Teixeira.
10
O conceito de democracia de mercado em Milton Santos está
intrinsecamente vinculado à contundente argumentação crítica que ele
faz à globalização e aos demais processos em curso no mundo atual que
se balizam a partir da capacidade que têm de gerar o aprofundamentodas
desigualdades sociais e, consequentemente, violências estruturais. O autor
entende a globalização como um processo multidimensional e, dentre
suas dimensões, está a dimensão política representada pela democracia
de mercado. Fonte: CHAVES, M.R. O conceito de Democracia de
Mercado em Milton Santos e suas interfaces com a atual crise política
brasileira. URL:www.italo.com.br/portal/cepep/revista eletrônica.html.
São Paulo SP, v.7, n.3, pp. 247-265, jul/2017.
Arte, Cultura e Imaginário 133
Essa segunda natureza vai tomando lugar sempre
maior em cada indivíduo, o lugar do cidadão vai
ficando menor, e até mesmo a vontade de se tornar
cidadão por inteiro se reduz (SANTOS, 1987, p. 69).

Dentre os fundamentos teóricos para realização deste


trabalho ressaltam-se ideias de autores que analisaram a obra
de Arendt, dentre os quais Bethania Assy, que tem diversos
escritos publicados sobre a obra da autora. Buscamos,
também, subsídios no livro de Nadia Souki 11 sobre banalidade
do mal.
Bethania de Albuquerque Assy12, brasileira, estudiosa
dos Direitos Humanos e profunda conhecedora da obra da
autora, afirma que, para Arendt, banalidade não quer significar
algo sem importância, tampouco algo que possa ser assumido
como normal. Em sua resposta a Sholem13, Hannah Arendt

11
Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Minas
Gerais (1973), mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas
Gerais (1995) e doutorado em Filosofia pela Universidade Federal de
Minas Gerais (2004). Atualmente, é adjunto da Faculdade Jesuíta de
Filosofia e Teologia. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase
nas áreas de História da Filosofia, Filosofia Política e Ética, atuando
principalmente nos seguintes temas: Estado, guerra civil inglesa,
banalidade do mal, totalitarismo e violência.
12
Possui graduação em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco
(1992), mestrado em Filosofia Política e Social pela Universidade Federal
de Pernambuco (1996), mestrado em Filosofia pela New School for Social
Research, NY-USA (1998), doutorado em Filosofia pela New School for
Social Research, NY-USA (2003). Pós-Doutorado na Birkbeck Law
School, London University. Coordenadora Adjunta da Cátedra Unesco
(PUC-Rio): Direitos Humanos: Violência, Governo e Governança.
Professora do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro e professora adjunta na Universidade do Estado
do Rio de Janeiro.
13
Gerhard Scholem filósofo e historiador judeu-alemão. Especialista na
mística judaica e conhecido como fundador do moderno estudo da cabala
foi o primeiro professor de misticismo judaico na Universidade Hebraica
de Jerusalém. Sua família era de origem asquenaze, e Scholem foi ligado
ao movimento sionista. Entre seus amigos mais próximos estavam
Hannah Arendt, Leo Strauss, Walter Benjamin e Theodor Adorno, sendo
a correspondência trocada com os dois últimos publicada.
134 Reflexões sobre o conceito de banalidade ...
denota que banalidade não significa uma bagatela, nem uma
coisa que se produza frequentemente (SOUKI, 1998, p.
103). Arendt distingue banal de lugar-comum (ASSY, 2001,
p. 143). Lugar comum diz respeito a um fenômeno que é
trivial, cotidiano, que acontece com frequência, com
constância, com regularidade. Banal, por sua vez, não
pressupõe algo que seja comum, mas algo que esteja
ocupando o espaço do que é comum. Um ato mau torna-
se banal não por ser comum, mas por ser vivenciado como
se fosse algo comum. A banalidade não é normalidade,
mas passa por ela, ocupa indevidamente o lugar da
normalidade. “O mal por si nunca é trivial, embora ele
possa se manifestar de tal maneira que passe a ocupar o
lugar daquilo que é comum” (ASSY, 2001, p. 144).

A banalização do mal na atual conjuntura política


brasileira

Aproximando o conceito de banalidade do mal de


Arendt, para a atual conjuntura, é possível percebermos
que esse mal assume feições diversas – sobretudo o mal
midiatizado – e é produzido a partir de certa necessidade
de afirmação perante determinado grupo social. É uma
subjetividade, uma personalidade, ou mesmo uma ideologia
ao contrário, que funciona como um suporte às ações
perversas do dia a dia. Esse mal poderá ser superado pelo
pensamento emancipador, pelo reconhecimento do outro
como sujeito político e sujeito de direitos, entendendo que
a barbaridade do mal também constrói pequenos – e, em
certos casos invisíveis – campos de concentração a apartar
povos, pessoas, indivíduos e sociedades de uma convivência
pacífica e democrática.
No dia cinco de junho de 2020, o Ministério Público
Federal (MPF) requisitou a abertura de um inquérito
policial para apurar possível crime de racismo praticado
Arte, Cultura e Imaginário 135
pelo presidente da Fundação Cultural Palmares14, Sérgio
Camargo. De acordo com denúncia recebida pela procuradoria,
o investigado disse, em reunião com auxiliares, declarações de
cunho racista contra todos os praticantes de religião de matriz
africana.

13
Criada pela Lei Federal nº 7.668, de 22 de agosto de 1988, a Fundação
Cultural Palmares (FCP) foi o primeiro organismo do executivo federal
a dedicar-se às demandas do movimento negro que reemergiu na cena
pública brasileira no contexto das lutas contra a ditadura militar e em
defesa democratização do Brasil. Sediada no então Ministério da Cultura,
a referida fundação é fruto dessa mobilização política e cultural dos negros
brasileiros, que, no contexto do centenário da Abolição, lutaram para
que o símbolo da resistência à escravidão, o quilombo dos Palmares,
fosse reconhecido no espaço de interação entre a sociedade civil e o
Governo Federal. Desde então, pela presidência da Fundação Palmares
passaram eminentes intelectuais e artistas negros, a exemplo de Joel
Rufino, Dulce Pereira, Carlos Moura, Zulu Araújo, Hilton Cobra, Ubiratan
Castro Araújo dentre outros. Das iniciativas da FCP, muitas delas dizem
respeito ao combate ao racismo por meio da disseminação de informações
históricas, de produções artísticas voltados para a valorização da história
e cultura da população afro-brasileira. A partir de meados da década de
1990, a FCP também teve papel fundamental ao promover os primeiros
estudos histórico-antropológicos para o reconhecimento de comunidades
quilombolas no país. Com o Decreto presidencial 4.887 de 2003, a FCP
tornou-se responsável por emitir a certificação que consiste no primeiro
passo do longo processo de regularização dos seus territórios. Até ontem,
constavam no site da instituição os nomes de 3.386 comunidades
quilombolas pela Fundação, além de 192 certificações em análise e 38
comunidades esperando a visita técnica do órgão. Infelizmente, ao final
do mesmo dia em que foi anunciada a nomeação de Sérgio Camargo, o
site da Fundação já não estava mais disponível, o que traz vivo temor
sobre a segurança da grande massa de documentação acumulada pela
instituição. Por ser uma instituição histórica, de referência no combate
ao racismo no Brasil e por desempenhar funções fundamentais para as
populações negras, de terreiro e quilombolas, espera-se que o Presidente
da Fundação Palmares possa ter, no mínimo, qualificações e conhecimento
técnico e histórico do cargo que ocupa. Esse não é o caso do recém-
nomeado Sérgio Camargo. Por esses motivos, este cargo não pode ser
ocupado por alguém que recuse a agenda e que negue a importância da
missão que dá nome à Fundação. Fonte: https://cebrap.org.br/nota-da-
afro-sobre-a-nomeacao-do-presidente-da-fundacao-palmares/ Acesso
em: 03.07.2020.
136 Reflexões sobre o conceito de banalidade ...
De acordo com áudio divulgado pelo jornal O
Estado de S. Paulo, o presidente da Fundação Palmares teria
declarado que não concederia benefícios a praticantes de
religiões de matriz africana: “Não vai ter nada para terreiro na
Palmares, enquanto eu estiver aqui dentro. Nada. Zero. Macumbeiro
não vai ter nem um centavo”, disse.
O referido presidente da Fundação Palmares é só
mais um dentre os demais assessores do atual governo
federal que praticam o mal contra os outros com o
propósito de levantar vantagens políticas. Em outros
momentos, o mesmo Sergio Camargo já havia dito que a
escravidão tinha sido algo positivo e que o movimento
negro era uma escória maldita que abriga vagabundos¨.
Como visto, a filósofa Hannah Arendt cunhou a
expressão “banalidade do mal” quando analisou o
julgamento de Eichmann, um dos nazistas levados ao
tribunal. Com essa expressão, a filósofa se referia ao mal
que não está enraizado, nem praticado como atitude
deliberadamente maligna. A banalização do mal é feita pelo
ser humano comum que não se responsabiliza pelo que
faz de ruim ou acha que o que faz de ruim não tem
consequências para os outros; o sujeito que não reflete,
não pensa. Arendt se referiu a Eichmann como uma pessoa
tomada pelo “vazio do pensamento”, como um tolo que
não pensava, que repetia clichês e era incapaz de um exame
de consciência – e que, por tudo isso, banalizava o mal
que praticava.
Esse pensamento de Arendt, contudo, não se
aplica ao Presidente da Fundação Palmares. Este não é
o tipo de tolo que a autora descreve (muitos eleitores
do atual governo o são, é verdade, mas não é o caso do
Sr. Sérgio Camargo). Alguém que é negro e é alçado à
presidência de uma fundação cuja missão é justamente
apoiar a luta da população negra e o combate ao racismo
Arte, Cultura e Imaginário 137
Estrutural14, sabe bem o que está fazendo, sabe quando está
perpetrando o mal. O caso de Sergio Camargo está mais para
o que a escritora Eliane Brum15, em notável texto publicado
em El País, chamou de “boçalidade do mal”.
14
De maneira ainda mais branda e por muito tempo imperceptível, essa forma de
racismo tende a ser ainda mais perigosa por ser de difícil percepção. Trata-se de um
conjunto de práticas, hábitos, situações e falas embutido em nossos costumes e que
promove, direta ou indiretamente, a segregação ou o preconceito racial. Podemos
tomar como exemplos duas situações:1. O acesso de negros e indígenas a locais que
foram, por muito tempo, espaços exclusivos da elite, como universidades. O número
de negros que tinham acesso aos cursos superiores de Medicina no Brasil antes das leis
de cotas era ínfimo, ao passo que a população negra estava relacionada, em sua maioria,
à falta de acesso à escolaridade, à pobreza e à exclusão social.2. Falas e hábitos pejorativos
incorporados ao nosso cotidiano tendem a reforçar essa forma de racismo, visto que
promovem a exclusão e o preconceito mesmo que indiretamente. Essa forma de
racismo manifesta-se quando usamos expressões racistas, mesmo que por
desconhecimento de sua origem, como a palavra “denegrir”. Também acontece quando
fazemos piadas que associam negros e indígenas a situações vexatórias, degradantes ou
criminosas ou quando desconfiamos da índole de alguém por sua cor de pele. Outra
forma de racismo estrutural muito praticado, mesmo sem intenção ofensiva, é a adoção
de eufemismos para se referir a negros ou pretos, como as palavras “moreno” e “pessoa
de cor”. Essa atitude evidencia um desconforto das pessoas, em geral, ao utilizar as
palavras “negro” ou “preto” pelo estigma social que a população negra recebeu ao
longo dos anos. Porém, ser negro ou preto não é motivo de vergonha, pelo contrário,
deve ser encarado como motivo de orgulho, oque derruba anecessidade de se “suavizar”
as denominações étnicas com eufemismos. Disponível: https://brasilescola.uol.com.br/
sociologia/racismo.htmAcessoem: 23/08/2020.
15
Jornalista brasileira de 54 anos. Formou-se pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul em 1988 e ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais
de reportagem. Trabalhou 11 anos como repórter do jornal Zero Hora, de Porto Alegre,
e 10 como repórter especial da Revista Época, em São Paulo. Desde 2010, atua como
freelancer. É autora de um romance – Uma Duas (LeYa) – de três livros de reportagem:
Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A vida que ninguém vê (Arquipélago
Editorial), ganhador do Prêmio Jabuti de Reportagem em 2007, e O Olho da Rua
(Globo) – e de um livro de crônicas: A Menina Quebrada (Arquipélago Editorial, Prêmio
Açorianos 2013), que reúne 64 de suas colunas escritas no site da revista Época, além de
ter participado da compilação de reportagens especiais sobre os Médicos sem Fronteiras
Dignidade!, que incluiu também autores como Mario Vargas Llosa. De 2009 a 2013,
manteve uma coluna no site da Revista Época, e desde outubro de 2013 no jornal El
País. Em 28 de janeiro de 2010, foi uma das ganhadoras do 27º Prêmio Internacional
de Jornalismo Rei de Espanha, pela reportagem “O Islã dos Manos”, sobre a presença
da religião islâmica nas periferias de cidades brasileiras, matéria publicada na revista
Época, em fevereiro do ano anterior. Em julho de 2013, Eliane lançou uma coletânea
com 64 crônicas e artigos de opinião publicados originalmente no site da Revista Época,
e ganhou, no mesmo ano, o Prêmio Açorianos de Melhor Livro do Ano, por “A
Menina Quebrada”. É codiretora de três documentários: Uma História Severina, Gretchen
Filme Estrada e Laerte-se.
138 Reflexões sobre o conceito de banalidade ...
Em seu texto, a jornalista pondera que a banalidade do mal
de Arendt se instala a partir da ausência do pensamento crítico
e explana que a boçalidade do mal é uma das explicações possíveis
para o atual momento, é fenômeno ligado à expansão do uso
das redes sociais, que permitiu as pessoas expressarem
livremente o seu eu mais profundo. Em sua rica análise, Eliane
revela sua preocupação com o destilar do ódio das pessoas a
partir do anonimato possibilitado pelas redes e faz uma relação
desse fato com o atual quadro insólito vivido pela sociedade
das fakenews, que, propositalmente, alardeiam desinformação
e notícias falsas para destruir reputações, inclusive com
dinheiro público, haja vista o chamado gabinete do ódio.16
Antes de finalizar seu texto com a icônica frase Já demos um
passo além da banalidade. Nosso tempo é o da boçalidade, Brum
assevera:
Meu objetivo aqui é chamar a atenção para um
aspecto que me parece muito profundo e definidor
de nossas relações atuais. A sociedade brasileira, assim
como outras, mas da sua forma particular, sempre
foi atravessada pela violência. Fundada na eliminação
do outro, primeiro dos povos indígenas, depois dos

16
“Gabinete do ódio” é como internamente integrantes do governo passaram
a se referir ao grupo formado por três servidores ligados ao vereador do Rio
de Janeiro Carlos Bolsonaro (PSC), filho “02” do presidente. Os assessores
Tércio Arnaud Tomaz, José Matheus Sales Gomes e Mateus Matos Diniz
produzem relatórios diários, com suas interpretações sobre fatos do Brasil e
do mundo e são responsáveis pelas redes sociais da Presidência da República.
A decisão de pedir acesso aos IPs e dados dos computadores desses servidores
foi tomada depois que a deputada Joice Hasselmann (PSL-SP), ex-líder do
governo no Congresso, prestou depoimento na CPI, na quarta-feira (4 de
setembro de 2020), acusando os assessores do presidente de disseminar
notícias falsas durante o horário de serviço.” A decisão de pedir acesso aos
IPs e dados dos computadores desses servidores foi tomada depois que a
deputada Joice Hasselmann (PSL-SP), ex-líder do governo no Congresso,
prestou depoimento na CPI da fakenews no dia 04 de dezembro de 2019,
acusando os assessores do presidente de disseminar notícias falsas durante o
horário de serviço.” Fonte: https://www.gazetadopovo.com.br/republica/
gabinete-do-odio-alvo-cpmi-fake-news. Acesso em: 10.09 de 2020.
Arte, Cultura e Imaginário 139
negros escravizados, sua base foi o esvaziamento do
diferente como pessoa, e seus ecos continuam fortes.
A internet trouxe um novo elemento a esse contexto.
Quero entender como indivíduos se apropriaram de
suas possibilidades para exercer seu ódio – e como
essa experiência alterou nosso cotidiano para muito
além da rede.
Sobre o ódio já lembrado nos escritos de Arendt e
que viceja nesses tempos solapados pela onda conservadora17
que tem varrido o mundo, cabe uma pequena reflexão sobre
os discursos de ódio, um ato que hoje se torna trágico, com o
ressurgimento de velhas e novas ideologias de ódio e

17
Para Luiz Felipe de Alencastro, professor emérito da Universidade da
Sorbonne, em Paris, e docente na Fundação Getúlio Vargas (FGV), a
onda conservadora atual apoiada na insatisfação da classe média. “Eu
acho que é uma gente que se sentiu ameaçada por uma ascensão social
de pessoas mais modestas. Os últimos debates sobre concentração de
renda mostram que os ricos continuaram ricos, e os pobres avançaram
em detrimento da classe média. Isso levou a uma exacerbação dessa
mentalidade quase de apartheid social”, pondera. Outro fator que tem
acentuado a presença de ideias mais tradicionais é o crescimento das
igrejas pentecostais e neopentecostais no Brasil, pontua Reginaldo Prandi,
sociólogo da USP. O número de evangélicos no país aumentou 61,45%
entre 2000 e 2010, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE). Em 2000, cerca de 26,2 milhões se disseram evangélicos, ou
15,4% da população. Em 2010, eles passaram a ser 42,3 milhões, ou
22,2% dos brasileiros. Atualmente, a Frente Parlamentar Evangélica
(FPE), liderada pelo deputado João Campos (PRB), tem 92 deputados
no Congresso. Os membros da FPE são a principal vitrine da mistura de
política e religião no Brasil. Dezenas de projetos de cunho conservador
ligados aos deputados da frente vêm sendo levados ao Congresso. “Isso
[conservadorismo] é efeito do crescimento do segmento evangélico e de
alguns setores de posição ideológica mais à direita, e que até agora não se
sentiam à vontade para se expressar”, argumenta Álvaro Moisés. “Esses
agrupamentos que estão colocando a cabeça de fora e assumindo suas
identidades estavam escondidos. Eles tinham medo de se manifestar
contra a liberdade sexual, contra a união de pessoas do mesmo sexo”,
analisa.Fonte:https://www.dw.com/pt-br/a-nova-onda-conservadora-
no-brasil/a-41644248. Acesso em: 06.08.2020.
140 Reflexões sobre o conceito de banalidade ...
discriminação dos diferentes. Mas além desse perigo real que
a extrema-direita e as ideologias de várias tendências
ressuscitam, existe outro, oposto, que, segundo Juan
Arias,18colunista do El Pais, à banalidade do mal se opõe, hoje,
o chamado “esquecimento do bem”, como se a humanidade
estivesse possuída definitivamente pelo mal, sem espaços para
a bondade.
E em meio ao esquecimento do bem, conforme assinala o
jornalista, assistimos todos, incólumes, a uma profusão de
discursos de ódio19, muitos deles disseminados por partes
significativas das denominações evangélicas neopentecostais,
cujos líderes têm protagonismos explícitos no atual governo,
que, convenhamos, anunciou, desde o início, quais eram os
princípios e valores que norteavam suas ações.

18
Juan Arias Martínez é jornalista, filólogo e escritor, nascido em Arboleas,
Almería (Espanha) em1932. Ordenado sacerdote dos Missionários do
Sagrado Coração, ordem da qual se tornou Secretário Geral em Roma,
Juan Arias estudou teologia, filosofia, psicologia, filologia e línguas
semíticas na Universidade de Roma. Depois de pedir a Paulo VI uma
dispensa para deixar o ministério sacerdotal, ele se casou vinte anos após
sua secularização. Ele continuou com grande atividade como escritor
sobre questões religiosas e correspondentes da imprensa hispânica no
Vaticano. Ele foi correspondente do El País em Roma e no Vaticano.
Suas primeiras entrevistas para o El País datam de 1977, e se estendem
até os dias de hoje. Acompanhou São João Paulo II por todo o mundo,
escrevendo a crônica de suas viagens. Atualmente, e há anos, ele é
correspondente no Brasil.
19
O Discurso de Ódio é uma forma de pensamento, fala e posicionamento
social que incita à violência contra diferentes grupos da sociedade. Pode
ser verbalizado ou escrito e sua intenção é discriminar as pessoas devido
a suas diferenças, sejam estas de raça, cor, etnia, religião, orientação sexual,
deficiências, classe etc. O Discurso de Ódio tem por base o ódio em si
ao diferente e todos os preconceitos e prejuízos que decorrem desse
sentimento. É considerado crime no Brasil e também um atentado aos
Direitos Humanos. Fonte: https://www.infoescola.com/sociologia/
discurso-de-odio. Acesso em: 12 08 2020.
Arte, Cultura e Imaginário 141
No livro Intolerância religiosa: Impactos do neopentecostalismo
no campo religioso afro-brasileiro, organizado por Vagner
Gonçalves da Silva20, os autores dos diversos capítulos
delineiam, de forma bem apurada, as características dessa
intolerância, que, a despeito da brutal violência que produz,
vem sendo naturalizada em nosso país. O livro resulta das
análises em torno dos ataques que grupos religiosos
neopentecostais, notadamente da Igreja Universal do Reino
de Deus, vêm realizando contra os cultos e adeptos das
religiões de origem africana. Alguns casos são divulgados
abertamente pelos meios de comunicação, outros apenas
constam em documentações jurídicas, variando desde ataques
realizados no âmbito das igrejas, em seus cultos televisionados,
até agressões físicas e impedimentos para a realização de
rituais.
Em um dos artigos que compõe o livro organizado
por Silva, denominado Pentescostais em ação: a demonização dos
cultos afro-brasileiros, de autoria de Ricardo Mariano 21 ,
contemplam-se as justificativas teológicas que legitimam o

20
Vagner Gonçalves da Silva é professor no Departamento de Antropologia
da Universidade de São Paulo. Sua atuação acadêmica é dedicada
principalmente às temáticas da etnografia das populações afro-brasileiras,
antropologia urbana e teoria antropológica. Vagner obteve o título de bacharel
em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (1987). Pela mesma
instituição, obteve os títulos de mestre (1992), doutor (1998) e livre-docente
(2013) em Antropologia Social. Entre 2008 e 2009, realizou estágio pós-
doutoral na Harvard University (W.E.B. Du Bois Institute for African and
African American Research) e na City University of New York (Graduate
Center), onde também foi professor visitante. Atualmente, desenvolve
pesquisas na área das populações afro-brasileiras, enfocando temas como
religiosidade (candomblé, umbanda, neopentecostalismo, intolerância
religiosa), relações entre religião e cultura brasileira (festas populares, música,
capoeira, literatura, cinema etc.), artes afro-brasileiras e representação
etnográfica (trabalho de campo e etnografia em hipermídia). Participa do
CERNe, Centro de Estudos de Religiosidades Contemporâneas e das Culturas
Negras do Departamento de Antropologia da USP.
21
Doutor em Sociologia e professor do Programa de Pós-graduação em
Ciências Sociais da PUCRS. Realiza pesquisas na área da sociologia da
religião. Suas principais pesquisas abordam temas do pentecostalismo e
neopentecostalismo.
142 Reflexões sobre o conceito de banalidade ...
ataque às religiões afro. Nesse estudo, Mariano discute os
conceitos e questões sobre tolerância, intolerância,
discriminação e liberdade religiosa. O referido autor deixa
claro que, na teologia neopentecostal, o demônio tem papel
de centralidade, pois o combate a ele se constitui uma das
principais estratégias de evangelização. O autor entende o
neopentecostalismo como uma religião que reforça a
intolerância, pois esta é alimentada pela “raiva”, pelo “ódio”
a que se opõe. Embora esclareça que algumas igrejas adotem
princípios de tolerância, mesmo que isso não signifique a não
descriminalização, Mariano compreende que a ortodoxia cristã
é um poderoso mecanismo para demonizar as crenças, as
práticas e os agentes religiosos rivais e que é permanente desde
o período medieval.
Para Silva (2007), essa batalha espiritual travada pela
IURD contra as religiões afro-brasileiras destoa da imagem
construída do Brasil como país da “tolerância” ou da
“mistura”. Há um descompasso entre essa guerra e a ideologia
do sincretismo e do encontro cultural, tão arraigada na
memória nacional.
O livro termina com uma discussão promovida por
Hédio Silva Jr.22 sobre os aspectos jurídicos da discriminação
racial e religiosa. O artigo “Notas sobre Sistema Jurídico e
Intolerância Religiosa no Brasil” investiga a suposta neutralidade
da lei, tendo como base as Constituições que vigeram no Brasil.
A investigação aponta para uma triste constatação, a de que a
concepção de raça atrelada ao fator religioso tem expropriado
dos afrodescendentes os direitos de igualdade.
Embora o Estado brasileiro seja considerado laico,
Silva Jr. comprova que a discriminação contra as religiões afro,
bem como as discriminações étnicas continuam vivas e
atuantes na sociedade com garantias de legitimidade, inclusive
nas ações do Estado. Algumas reações estão sendo investidas

22
Advogado; doutor em Direito Constitucional pela PUC-SP. Atuou como
consultor na Secretaria Especial Igualdade Racial da Presidência da
República, na Unesco e no Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento. Foi coordenador da Comissão direitos Humanos da
seccional paulista da OAB de São Paulo.
Arte, Cultura e Imaginário 143
no âmbito jurídico em prol das questões étnicas e religiosas,
embora sejam tácitas as dificuldades de reação das religiões
afro ante as leis brasileiras e os argumentos dos operadores
do direito ligados a IURD. A disparidade na conquista de
direitos é evidente, porém o livro encerra seu último artigo
alimentando esperanças plausíveis de resistência em nome da
igualdade, apelando para o âmbito jurídico.
No momento atual, quando se observa a clara expansão
das igrejas neopentecostais e a diminuição do número de
católicos no país, como têm apontado as pesquisas recentes, o
livro Intolerância religiosa: impactos do neopentecostalismono campo
religioso afro-brasileiro traz consideráveis contribuições para se
pensar esse viés da intolerância no âmbito da conjuntura atual.
Se, por um lado, encontram-se as religiões afro-
brasileiras - que há mais de um século lutam por definir seus
direitos, buscando conquistar espaço e reconhecimento na
sociedade, mesmo lutando contra diversas perseguições e
séculos de preconceito racial –, de outro, temos um grupo
que cresce de forma incisiva, alcançando considerável destaque
no cenário político como enor me força no governo
conservador atual. Acrescente-se a isso a ascensão de Sérgio
Camargo à Presidência da Fundação Cultural Palmares, um
homem negro que opta por reproduzir o discurso torpe do
atual governo e tripudiar sobre a luta da população negra, tal
como vimos anteriormente.
Como visto nos diversos argumentos até agora
expostos, a banalização do mal no sentido de naturalizar a
desigualdade e a exclusão, neste momento, é a situação que
melhor nos define como sociedade. Há um descolamento total
da ética, da humanidade ou da humanização em se tratando
de determinados sujeitos, e determinados é a melhor expressão
a se utilizar aqui, pois esse estado de coisas reforça o racismo
e a violência estruturais. Há uma banalização da morte de
jovens, negros e moradores de periferias, sejam adultos ou
crianças. Deve ser doloroso para as mães de crianças mortas
de forma violenta, sejam por balas ou nos hospitais públicos,
por exemplo, verem tamanhas manifestações em prol da volta
da ditadura, do fechamento do Supremo, entre outras
barbaridades, e poucas manifestações em seu favor, mesmo
em se tratando da morte covarde de seres humanos.
144 Reflexões sobre o conceito de banalidade ...
Já há algum tempo, temos presenciado uma
individualização cada vez crescente das relações, muitas
desculpas, mas sempre o mesmo e anômalo comportamento
de desumanização, decorrente do racismo incrustado na
sociedade brasileira e em suas instituições.
Tais comportamentos têm sido, deliberadamente,
encorajados nos tempos que correm. Não se enxerga
resistência organizada que estimule com o mesmo vigor que
não apoiemos a punição contínua daqueles que estão em
situação mais vulnerável, e assim o é porque parte da sociedade
brasileira apoia incondicionalmente todas essas violações,
apoia e cerra os olhos para tudo isso.
Esse texto procurou abordar uma espécie de
naturalização contemporânea da violência a partir da análise
do sentido da banalidade do mal na perspectiva de Hannah
Arendt. Ao abordar o tema, buscamos evidenciar a violência
como uma das expressões da banalidade do mal que, em
nossos dias, manifesta-se como instrumento ou como ação –
em níveis e esferas variadas da convivência. Se o mundo muda
transpassado por ações violentas, as ações violentas tornam
o mundo mais violento, sobretudo quando os meios violentos
se tornam indispensáveis para a manutenção e para a garantia
de poder.
A violência banalizada a que nos referimos vai ao
encontro do que entendemos como discriminação,
intolerância, preconceito, racismo, que, por sua vez, são
expressões da desigualdade e das arbitrariedades seculares,
estruturais e cumulativas que têm mantido os privilégios de
um grupo em detrimento da difusão de direitos fundamentais
para a totalidade da população do nosso país.
Por outro lado, quando parte da grande mídia trata
do tema como se os negros e as demais minorias não
existissem, constatamos que vivemos numa estrutura social
racista, que perfila discursos, olhares e ações para traduzir, na
prática, as definições de discriminação, preconceito e
intolerância, fortemente imbricadas, e deter minar a
manutenção das desigualdades e injustiças.
Quando um grupo político assume um governo, por
meio do voto popular, anunciando abertamente que manda
na sociedade em razão de uma suposta superioridade racial,
Arte, Cultura e Imaginário 145
econômica, sexual ou religiosa e que, portanto, não se pode
permitir que determinados grupos sejam considerados
cidadãos plenos e que é necessário que negros, indígenas,
mulheres, LGBTs, e afro-religiosos não tenham direito a
buscar lugares mais importantes na sociedade e não tenham
garantido total acesso a seus direitos, essa atitude concorre
para a banalização de um mal que já ultrapassa séculos, mas
que se agrava, pois se reveste de um discurso proferido pelo
poder máximo do país.
Pouco a pouco, esses lunáticos vão desmantelando
estruturas que foram forjadas a custo de muita luta e de muito
trabalho de conscientização, para ficarmos em poucos
exemplos: já destruíram tudo o que foi feito em termos de
política ambiental, a extinção do Ministério do Trabalho é
apenas a largada na empreitada da usurpação dos direitos
trabalhistas que não cessam de ser tolhidos, manter até o
limite um Ministro da Educação que perseguia os professores
e as universidades públicas, que fazia todo tipo de comentário
torpe sobre minorias, entre outras atitudes, é o exemplo mais
emblemático da banalidade do mal que grassa nos tempos
que correm.
Por fim, gostaríamos de deixar patente que este texto
se inscreve no conjunto de escritos produzidos por
acadêmicos, jornalistas, professores e demais profissionais que
pensam o Brasil e que repudiam peremptoriamente o
sentimento de intolerância, o racismo, a desigualdade, bem
como o autoritarismo e toda e qualquer forma de cerceamento
do Estado Democrático de Direito.

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WUNENBURGER, Jean Jacques. O imaginário. Trad. Maria
Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 2007.
Cultura digital, educação e o imaginário
na sociedade pós-moderna

Angela Divina Oliveira1

Em cada sociedade, a educação posiciona-se de


maneira própria e assume papel de condutora dos indivíduos
que buscam significados peculiares na história da humanidade.
Conforme Cambi (1999, p. 512), “tanto as práticas quanto as
teorias ressentiram-se diretamente da massificação da vida
social, da evolução de grupos sociais tradicionalmente
subalternos, da criação de um novo estilo de vida [...]”.
Para o autor, a Pedagogia Ativa propõe que a
aprendizagem deve partir de problemas ou situações que
propiciam dúvidas ou descontentamento intelectual, pois os
problemas surgem das experiências reais e estimulam a
cognição para mobilizar práticas de investigação e resolução
criativa. Para ele, é no século XX que a escola sofre profundas
mudanças.
As escolas novas entendem a necessidade de contrapor
o processo de formação arcaico da época, propõem
transformar e romper o modelo de educação formal e
positivista ao introduzir um ato inovador de educar. O foco,
a priori, foi na reforma dos métodos e técnicas utilizados para
ensinar.
Entende-se, portanto, que este movimento objetivou
transformar os pensamentos das pessoas de maneira a ser
um ponto de partida para mudar não somente o campo
educacional, mas também a sociedade. Situando a relação do
saber na sociedade pós-moderna, a partir de uma junção desses

1
Mestra em Ciências Humanas. Docente dos cursos de Graduação e
Pós-Graduação Lato Sensu, Coordenadora de cursos MBA na
Universidade Santo Amaro – Unisa. Pesquisadora do Grupo Arte, Cultura
e Imaginário.
148 Cultura digital, educação e o imaginário ...
aspectos, acontecem o desenvolvimento do meio social, a
evolução das técnicas, da modernidade e as transformações
educativas.
Adorno (1995, p. 140) diz que, em tempos passados,
os conceitos eram compreensíveis por si mesmos a partir da
totalidade de uma cultura; contudo, no contexto da pós-
modernidade, “tornaram-se problemáticos nestes termos. No
instante em que indagamos: “Educação – para quê?”, onde
este “para quê” não é mais compreensível por si mesmo,
ingenuamente presente, tudo se torna inseguro e requer
reflexões complicadas”.
Percebe-se que, ao trazer a indagação “educação para
quê?”, o autor expõe a questão do receptor na aprendizagem,
que, muitas vezes, está inserido em fatores socioculturais,
como sugere Adorno (1995, p. 144), “a importância da
educação em relação à realidade muda historicamente [...] a
realidade se tornou tão poderosa que se impõe ao homem
[...]”. Isto é, o modelo de educação vigente estaì à serviço do
fator social humano, para o autor, “a educação [...], por meio
da escola, da universidade teria neste momento de
conformismo onipresente muito mais a tarefa de fortalecer a
resistência do que de fortalecer a adaptação”.
Dialogando com esse pensamento, Morin (2011, pp.
49-50) aduz que “cabe à educação do futuro cuidar para que
a ideia de unidade da espécie humana não apague a ideia de
diversidade, e que a da sua diversidade não apague a da
unidade”, para Morin, não se separa a vida intelectual da vida
de experiências, pois elas estão em constante movimento e
são cheias de antagonismos e aproximações.
Campos (2004) citada por Campos et al. (2018, p. 7)
converge ao considerar “que a educação e os sistemas de
ensino estão diante do desafio de procurar soluções de alta
amplitude, utilizando-se de um instr umental
compartimentado”, e acrescenta ainda, que “[...] compete aos
sistemas educacionais contemporâneos formar indivíduos
aptos a entender questões colocadas por um universo
globalizado”.
Só assim se pode educar na pós-modernidade. Morin
(2011) exalta a importância de organizar os conhecimentos
Arte, Cultura e Imaginário 149
de modo que possa intervir nas questões e problemas do
mundo. Entende-se que é preciso estimular a mudança de
pensamento, a tal ponto, que caracterize uma reforma
paradigmática, portanto, na opinião do autor, este aspecto
passa a ser a questão essencial da educação. Ainda nesta linha,
Adorno (1995, p. 148), no diálogo com Becker, diz “O defeito
mais grave com que nos defrontamos atualmente consiste
em que os homens não são mais aptos à experiência, mas
interpõem entre si mesmo e aquilo a ser experimentado aquela
camada estereotipada a que é preciso se opor”.
A autonomia do sujeito na educabilidade e
emancipação estão fincadas na natureza humana e, por essa
razão, torna-se necessário libertar da ignorância, dito isto,
acentua-se que a educação tem papel fundamental na
formação do cidadão, principalmente ao considerar que o ser
humano tem capacidade para gerir seu próprio destino.
Para Mizukami (2016, p. 1), a interpretação dos
fenômenos, quer seja biológica, sociológica, psicológica,
resulta nas relações sujeito e ambiente, “deriva de uma tomada
de posição [...] subjacentes ao conceito de homem, de mundo,
de aprendizagem, conhecimento, sociedade, cultura etc. estão
presentes – implícita ou explicitamente – algumas dessas
posições”.
Ainda para autora, o fenômeno educativo é humano,
histórico e multidimensional, nele estão presentes as
dimensões humanas, técnica, cognitiva, emocional,
sociopolítica e cultural, por essa razão estará em permanente
construção “Há várias formas de se conceber o fenômeno
educativo [...], não é uma realidade acabada que se dá a
conhecer de forma única e precisa em seus múltiplos aspectos.
É um fenômeno humano, histórico e multidimensional”
(MIZUKAMI, 2016, p. 1).
Isto é, o discente é um sujeito inacabado e, por
conseguinte, recebe múltiplas influências do meio social. Para
a autora, o conhecimento humano é baseado em diferentes
abordagens, algumas são intuitivas, outras práticas e há aquelas
fundamentadas na imitação de outros modelos, mas, em todas,
identifica-se a complexidade educacional.
150 Cultura digital, educação e o imaginário ...
Um dos maiores desafios da educação no século XXI
dá-se em promover mudanças que acompanhem o
desenvolvimento científico, tecnológico, social, cultural,
econômico e ambiental, tendo em vista contribuir para a
conquista de uma sociedade mais justa, neste sentido, apropria-
se aqui, do pensamento de Campos (2015, p. 61), quando diz:
“seria preciso, enfim, atender ao apelo [...].de Edgar Morin,
para o pensar complexo, que una novos parceiros a esse
mercado, provindos indiferentemente das ciências exatas, das
biológicas, das tecnológicas”.
Para Campos, as mudanças só serão possíveis mediante
“o diálogo entre as disciplinas, que fez com que os saberes
unitários e fechados passassem a saberes plurais e abertos”
Continua a autora, “esse diálogo se debruce sobre os grandes
problemas da humanidade, transportando tais problemas para
a investigação científica e propondo soluções capazes de fazer
avançar um conhecimento comprometido com o capital
humano” (CAMPOS, 2015, pp. 61-62).
Embora a autora refira-se às transformações nas
ciências em geral, transporta-se seu pensamento para a
educação, pois, com a chegada da cultura digital, entende-se
que as discussões sobre novas possibilidades educativas sejam
amplificadas, posicionando o processo educacional de maneira
que estabeleça elo entre a sala de aula e o contexto do
ciberespaço.
Esse contexto induz à necessidade de investir no
desenvolvimento de docentes para que possam recuperar a
dimensão essencial do ensino e da aprendizagem, de modo a
contribuir com a formação de profissionais que irão atuar na
sociedade, de maneira inovadora e ética, com o cuidado
necessário nas relações entre os seres humanos e o meio
ambiente (MORIN, 2004).
A atuação docente também requer um olhar
interdisciplinar para estabelecer relações entre os conteúdos
de sua disciplina com os das outras áreas do conhecimento,
já que a educação é influenciada pelas diversas realidades nas
quais está inserida. Observa-se que o nível atual de mudanças
gera alterações nas maneiras de planejar e concretizar o
processo educativo. Morin afirma que a educação do futuro
possui amplas, profundas e graves inadequações, muito em
Arte, Cultura e Imaginário 151
função dos saberes, de um lado, estarem “desunidos, divididos,
compartimentados e, de outro lado, as realidades ou os
problemas cada vez mais multidisciplinares, transversais,
multidimensionais, transnacionais, globais e planetários”
(MORIN, 2004, p. 33).
Sabe-se que a educação reproduz a sociedade em que
está inserida, por essa razão, traz uma obrigatoriedade de dar
respostas e intervir nos contextos gerados pelo meio social.
Nesse sentido, seu desafio é compreender as teorias e criar
condições para modificar percepções, atitudes e posturas que
se manifestam nas relações sociais.
Mizukami (2016) acredita que a prática educacional
brasileira tenha influência da abordagem escolanovista, dada a
importância atribuída aos aspectos didáticos. Talvez, aqui,
justifique-se a dificuldade que o professorado encontra em
colocar o aluno na posição de protagonista de seu aprendizado.
Entretanto, Bacich e Moran (2018) dizem que os professores
buscam modificar o formato de suas aulas, transformando-as
em momentos experienciais de aprendizagens, segundo eles,
as tecnologias digitais podem apoiar os docentes neste sentido,
“é certo que as pessoas não aprendem da mesma forma, no
mesmo ritmo e ao mesmo tempo”, os autores entendem que
um caminho viável para colocar o estudante como protagonista
pode ser por meio da inserção das tecnologias digitais.
De acordo com Tedesco (2015, p. 26), “A educação
tem a particularidade de antecipar o futuro [...] construir desde
agora uma educação justa, será possível uma sociedade justa
no futuro”, deste modo, pode-se dizer que uma proposta
educativa para construir sociedades mais equilibradas, inicia-
se em mudanças que permitem ver possibilidades, tais como
conhecer e utilizar a tecnologia da comunicação e da
informação para melhorar a prática educativa e as condições
de trabalho dos profissionais da educação, “é nesse sentido
que adquire uma renovada validade a hipótese acerca da
centralidade da educação e do conhecimento nas estratégias
destinadas a construir sociedades mais justas” (TEDESCO,
2015, p. 29).
As oportunidades que surgem na sociedade pós-
moderna colaboram com os processos educacionais. Levy
152 Cultura digital, educação e o imaginário ...
(1999) aponta a interconexão que o ciberespaço oferece como
condição de novas propostas de aprendizagem no universo
do saber em fluxo. Os saberes disponibilizados por meio das
tecnologias digitais mediados pelo ciberespaço apresentam
novas perspectivas.
Em consonância com a contemporaneidade, os
processos educacionais devem ser pensados e organizados
de modo a não se enquadrar em velhos modelos, mas ter a
lucidez de encontrar, nas situações concretas, novas
oportunidades para suas potencialidades. Entende-se que é
neste novo cenário que o professor demonstra suas
capacidades e revela, no fazer, o domínio dos saberes e o
compromisso com o que é realmente necessário.
De acordo com Tedesco (2015, p. 25), há “uma forte
tendência de se concentrar tudo no presente, no aqui e agora”.
Continua o autor: “esse traço da cultura atual gera um impacto
significativo na educação, já que se supõe que a tarefa educativa
consiste em transmitir o patrimônio cultural e em preparar
para um determinado futuro”. Para o autor, o fato de incluir
a tecnologia na educação é uma estratégia geral de política
educativa, principalmente em países como o Brasil, que é
composto por diversidades culturais, econômicas e sociais.
É necessário ir além da especulação de como será o
futuro e propor como nós queremos que ele seja. Esse
pensamento nos remete ao discurso de Albert Camus –
Prêmio Nobel de Literatura proferido em Estocolmo em 10
de dezembro de 1957: “Sem dúvida, cada geração se sente,
condenada a reformar o mundo. No entanto, a minha sabe
que não o reformará. Mas, a sua tarefa é talvez ainda maior.
Ela consiste em impedir que o mundo se desfaça” 2.
A globalização exige novas configurações e
caracteriza-se por se mostrar, cada vez mais, opaca à medida
que é empregada para explicar uma multiplicidade de
experiências. Para Bauman (2004), a sociedade está

2
Tradução da autora. “Chaque génération, sans doute, se croit vouée à refaire le
monde. La mienne sait pourtant qu’elle ne le refera pas. Mais sa tâche est peut-être
plus grande. Elle consiste à empêcher que le monde se défasse.”
Arte, Cultura e Imaginário 153
fragmentada e, por isso, mal coordenada, visto que a realidade
individual está dividida em diversos episódios delicadamente
conectados, possibilitando a exposição para uma diversidade
de comunidades de ideias e princípios e, com isso, o indivíduo
passa a estar totalmente ou parcialmente fora do lugar.
Neste contexto, Lévy (1999) pergunta: “Como manter
as práticas pedagógicas atualizadas com esses novos processos
de transação de conhecimento?”
Entende-se que a disponibilidade da informação
conduz à atualização dos processos educacionais. Por existir
a facilidade de acesso a diferentes conteúdos, há, também, a
cobrança para modernização. Compreende-se, ainda, que a
globalização demanda novos saberes e, consequentemente,
desafia os projetos educacionais.
Observa-se, também, que se atribuem múltiplos
sentidos à presença das tecnologias digitais no ensino, para
alguns elas podem solucionar as questões pedagógicas,
principalmente ao suprimir o uso de recursos analógicos e
estáticos, para outros, são fatores de transformações, já que
são o alicerce da sociedade da informação.
Ademais, a sociedade contemporânea sofre impacto
das transformações produzidas pelo entrecruzamento das
forças geradas na modernidade, neste sentido, a serialização
na produção e a reestruturação da comunicação modificam
as formas de socialização, assim como o significado do que é
privado e público.
Para Lévy (1999), a revolução das tecnologias de
informação e comunicação representa uma dimensão de
mutação antropológica de grande amplitude. Ainda para o
autor, quanto mais o ciberespaço se amplia, torna-se mais
global, um universo sem totalidade e um ambiente que não
tem nem centro nem linha diretriz, é amplo e sem conteúdo
específico.
Entende-se que o avanço da internet, dos dispositivos
móveis e de outros aplicativos baseados em técnicas alterou
radicalmente a forma de socializar, construir, colaborar e
inovar. Essa dinâmica social possibilita pensar a identidade
cultural a partir das novas tecnologias, considerando um
processo em que se destaca a ação de diversos indivíduos
154 Cultura digital, educação e o imaginário ...
envolvidos na produção de sentidos, conforme Bauman,
(2004) só é possível entender os sentimentos, estilo de vida e
o comportamento humano, quando se analisa o contexto
social, cultural e político.
A coletividade nos conduz a pensar a sociedade não
como uma ação simples, já que, ao refletir no contexto
contemporâneo, torna-se complexa. Bauman (2004) define a
sociedade contemporânea como modernidade líquida, ao
considerar que as relações que compõem o mundo estão em
um estado muito próximo ao líquido, sem liga o suficiente
para manter as unidades juntas e sólidas, a fluidez impera nas
relações e provoca incertezas em cada ação.
Bauman (2001) reitera que a natureza explosiva da
modernidade líquida tem aderência com a cultura digital, já
que as ações tendem a ser voláteis, transitórias e direcionadas
ao propósito individual, por essa razão sua duração é curta,
embora barulhenta.
No contexto contemporâneo, as pessoas mudam e se
transformam sob a influência das representações e dos
sistemas culturais. Essas mudanças engendram um processo
fundamental e abrangente da modernidade. As sociedades
modernas são, por definição, sociedades em transformações
constantes, rápidas e permanentes, logo convergem para
cibercultura no sentido de que ela cria forma de sociabilidade
ao usar as tecnologias digitais como vetores de agregação
social.
Cada vez mais, as interações sociais ocorrem no
entorno das tecnologias, pode-se afirmar que a sociedade
mudou e, por essa razão, exige modificações nos paradigmas
em diferentes atividades, dentre elas, a educacional. De acordo
com Levy (1999, p. 157), mediante o advento tecnológico, se
estabelece uma nova concepção, “o ciberespaço suporta
tecnologias intelectuais que amplificam, exteriorizam e
modificam numerosas funções cognitivas humanas”, tais
como “memória (bancos de dados, hiperdocumentos, arquivos
digitais de todos os tipos), imaginação (simulações), percepção
(sensores digitais, telepresença, realidades virtuais), raciocínios
(inteligência artificial, modelização de fenômenos complexos).
As novas formas de acesso à informação e de
construção do conhecimento articulam-se às perspectivas de
Arte, Cultura e Imaginário 155
educação, democratizando-as, já que se multiplicam e
atualizam-se de forma exponencial. Isso acaba por questionar
os modelos tradicionais de ensino, que focam, apenas, na
transmissão de informação. Estimula-se, portanto, repensar
o processo educacional, “o ciberespaço como suporte da
inteligência coletiva é uma das principais condições de seu
próprio desenvolvimento” (LEVY, 1999, p. 29).
A reflexão sobre a cultura digital na educação incentiva
novos pensamentos e posiciona-a em seu real papel, que é o
de caráter educativo e/ou formador das atividades econômicas
e sociais e não apenas questões formais de ensino, “uma vez
que os indivíduos aprendem cada vez mais fora do sistema
acadêmico, cabe aos sistemas de educação implantar
procedimentos de reconhecimento dos saberes e savoir-faire
adquiridos na vida social e profissional (LEVY, 1999, p. 175)”.
Lévy (1999, p. 174) ainda diz: “[...] o tempo necessário
para homologar novos diplomas e para constituir os cursos
que levam até eles não está mais sincronizado com o ritmo
de evolução dos conhecimentos”. Do mesmo modo, as novas
exigências da sociedade atual levam as instituições de ensino
a se reposicionar e promover reflexões sobre o processo
educativo em uma atitude de abertura às novas possibilidades
de se ofertar ao aluno espaços contextualizados de
aprendizagem, reforça, ainda mais, a necessidade de
transformação no processo educacional, posto que é
determinado por fatores provenientes do contexto histórico-
social.
Por essa razão, algumas correntes modernas da
educação buscam rearticular seus discursos em face das
transformações que marcam a contemporaneidade, como
afirma Tori (2017, p. 26), “a escola que vislumbro deve ser
não apenas “sem distância”, mas também “sem limites”, sem
barreiras entre teoria e prática, entre real e virtual, entre
presente e distante, entre disciplinas, entre diferentes níveis,
entre diferentes culturas, entre possível e impossível”.
Ao analisar os significados do ensino e aprendizagem
no contexto da sociedade em rede e correlacionar com Castells
(1999) e Kranzberg (s/d), quando menciona que a tecnologia
não é boa, nem ruim, também não é neutra, logo, não é o
156 Cultura digital, educação e o imaginário ...
fim, reafirma que ela existe para servir a humanidade ao ofertar
seus serviços para todos em todo o mundo.
Esse pensamento conflui com a ideia de “organizações
de aprendizagem”, apresentada por Senge (1990, p. 11),
fundamentalmente, quando diz “[...] as pessoas expandem
continuamente sua capacidade de criar os resultados que
realmente desejam, [...] onde a aspiração coletiva é libertada e
onde as pessoas aprendem continuamente a aprender em grupo”.
Para o referido autor (1990, p. 22), a palavra
“aprendizagem” perdeu seu significado, principalmente na
maneira como é usada na contemporaneidade: “[...] a
“aprendizagem” perdeu seu significado básico no uso
contemporâneo, e passou a ser sinônimo de “assimilar
informação”, o que tem uma remota conotação com o
verdadeiro significado da palavra”.
Convém notar que, em se tratando de educação, a
estratégia tecnológica pode enriquecer sobremaneira, pois
ajuda a aumentar o processo de aprendizagem, frisa-se que,
mais importante do que a tecnologia, é a maneira como será
utilizada, deve ser aplicada quando, de verdade, facilitar o
processo ensino-aprendizagem.
Tedesco (2015), ao citar Levy (1999), diz que o aspecto
central se refere à ampliação da visão educacional,
principalmente, nos atributos institucionalizados, menciona
que as tecnologias favorecem novos estilos de aprendizagem,
fundamentalmente no que tange ao compartilhamento entre
as pessoas e a ampliação do potencial da inteligência coletiva.
Para o autor, a abertura que as tecnologias oferecem à
reconstrução do conhecimento põe por terra a ideia de que
existe um conhecimento pronto e acabado.
Assim, é possível dizer que, na sociedade
contemporânea, a educação está no epicentro das discussões
estratégicas sob os seguintes pilares: primeiro, no sentido
social, já que exige aprender a viver juntos; segundo, em termos
cognitivos, ao reivindicar o aprender a aprender.
Essa ideia converge com o pensamento freiriano em
relação à postura crítica do aprendiz, sua autonomia e
libertação, criando, assim, uma ponte para a educação voltada
ao potencial humano. Observa-se que, mesmo com o avanço
da tecnologia, mediante as possibilidades ofertadas pela
Arte, Cultura e Imaginário 157
internet, em sala de aula, quase sempre, o aluno apenas recebe
a informação de maneira passiva, sem estímulos à crítica. Para
corroborar, Morin (2000, p. 64) comenta “o que agrava a
dificuldade de conhecer nosso Mundo é o modo de pensar
que atrofiou em nós”, o autor ainda diz, “nos remete à reforma
do pensamento, [...], necessária para conceber o contexto, o
global, o multidimensional, o complexo”.
A contemporaneidade e todas as mudanças exigem
transição do conhecimento disponibilizado pela educação
centrada no falar e ditar, para uma educação da comunicação
dialógica, estimulando os discentes a atuarem como coautores
de sua formação, encorajando sua autonomia.
Freire (1996) destaca como essencial que o aluno, no
processo educacional, se coloque como sujeito corresponsável
na produção do saber. Ainda para o autor, ensinar não é
transferir conhecimento, mas possibilitar ambientes que
facilitem a produção e a reconstrução dos saberes.
De acordo com Freire (1987, p. 68), o indivíduo alcançará
sua libertação a partir de uma reflexão problematizadora: “[...] a
educação libertadora, problematizadora já não pode ser um ato
de narrar, depositar ou transferir conhecimento e valores aos
educandos meros pacientes da educação ‘bancária’”.
Portanto, ensinar é, também, trocar experiências, e os
elementos da cibercultura podem apoiar a relação professor-
aluno, de modo que a aprendizagem aconteça mediante o
uso da tecnologia e não por meio dela, pois ela, por si só, não
ensina, apenas favorece a construção do conhecimento,
provoca a curiosidade e estimula o interesse em saber mais,
de descobrir o desconhecido e instiga à realidade, muitas vezes,
libertando o indivíduo da alienação.
Levy, em entrevista para o Correio do Povo (2015,
s.p.)3 comenta:

3
SILVA, Juremir Machado da. Pierre Lévy: a revolução digital só está no começo.
Correio do Povo, Rio Grande do Sul, 12 abr. 2015. Disponível em: <https://
www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/pierre-l%C3%A9vy-a-
revolu%C3%A7%C3%A3o-digital-s%C3%B3-est%C3%A1-no-
come%C3%A7o-1.305512>. Acesso em: 31 de outubro 2020.
158 Cultura digital, educação e o imaginário ...
A internet pode ser analisada em dois aspectos
conceitualmente distintos, mas praticamente
interdependentes e inseparáveis. Por um lado, a
infosfera, os dados, os algoritmos, imateriais e
ubíquos. São as nuvens. Por outro lado, os
rece ptores, os gadgets, os smartphones, os
dispositivos móveis de todos os tipos, os
computadores, os data-centers, os robôs, tudo
aquilo que é inevitavelmente físico e localizado:
os objetos. As nuvens não podem funcionar sem
os objetos. Os objetos não podem funcionar sem
as nuvens. A internet é a interação constante do
localizado e do desterritorializado, a interação dos
objetos e das nuvens. Tudo isso pode logicamente
ser deduzido da automatização da manipulação
do simbólico por meio de sistemas eletrônicos.
Sentiremos cada vez mais, de agora em diante as
consequências disso tudo em nossas vidas
cotidianas.
As necessidades definidas na pedagogia da autonomia
podem ser desenvolvidas com o apoio dos elementos que
compõem a cibercultura. Para corroborar, Lemos (2004, p.
9) assinala: “A cibercultura potencializa aquilo que é próprio
de toda dinâmica cultural, a saber o compartilhamento, a
distribuição, a cooperação, a apropriação dos bens
simbólicos”, portanto, aqui se encontra uma perspectiva que
pode guiar a maneira como nos posicionamos acerca das
tecnologias aplicadas nos processos educacionais, visto que
essa perspectiva assinala, apenas, um meio utilizado pelo
sujeito para atender uma necessidade.
A articulação entre educação e tecnologia está em
encontrar a adequada aplicação desses elementos no processo
ensino-aprendizagem. De acordo com Porto e Régnier (2003),
tanto os métodos de ensino-aprendizagem, como os docentes
estão sob forte pressão para mudar, muito em decorrência da
evolução das novas tecnologias e do surgimento da geração
digital, por essa razão, é preciso criar outras formas de ensino,
inclusive, o professor do futuro terá de assumir outros papéis,
tais como geradores e administradores de novos experimentos
de aprendizagem e de consultores e orientadores dos alunos.
Arte, Cultura e Imaginário 159
Outra questão fundamental em relação aos aspectos
tecnológicos é que a interconectividade alcança patamares
altos, permitindo comunicação e interação tanto local como
global. Essa aceleração impacta nas estruturas educacionais,
estimulando a adoção de novas tecnologias.

Cultura digital e exclusão social

Em razão do crescente uso dos meios digitais, o termo


Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) foi ampliado
para Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação
(TDIC). De acordo com estudos como o apresentado pela
pesquisa TIC Educação 2017, produzido pelo Centro de
Estudos sobre as Tecnologias da Infor mação e da
Comunicação4, o uso do telefone celular está presente nas
atividades de ensino e aprendizagem. Em 2015, 36% dos
professores de escolas públicas afirmaram realizar atividades
educacionais com o uso do telefone celular, esse percentual
subiu para 53% em 2017. Entre os professores de escolas
particulares, o percentual era de 46% em 2015, passou para
69% em 2017, a proporção de alunos que afirmaram utilizar
o dispositivo para realizar atividades para a escola a pedido
dos professores confirma a sua relevância no processo de
aprendizagem: 53% entre os alunos de escolas públicas e 60%
entre os de escolas particulares.
Estes números evidenciam duas variáveis: a primeira
é a constatação de que a desigualdade perpassa o contexto
digital; a segunda são os fatores atitudinais que dependem da
disposição pessoal dos usuários em integrarem-se à cultura
digital.
A primeira circunstância conflui com o pensamento
de Castells (1999) quando se refere à inclusão digital como
um processo de democratização do acesso às novas

4
Pesquisa sobre o uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nas
escolas brasileiras – TIC Educação 2017. cetic.br. Disponível em: <https://
cetic.br/pesquisa/educacao/publicacoes>. Acesso em: 31 outubro de 2020.
160 Cultura digital, educação e o imaginário ...
tecnologias, entende-se que tornar acessível oferece melhores
condições de vida a todos e a possibilidade de se inserirem à
sociedade em rede. Além disso, a sociedade passa por
transformações de toda ordem, fundamentalmente, no sentido
de inter-relacionar economia, cultura e informação, como
mecanismo de inclusão. Diante desse contexto, uma indagação
parece necessária: como desenvolver a inclusão digital com o
enorme contingente de analfabetos inseridos na sociedade
brasileira?
Este âmbito parece antagônico ao que Castells (2003)
considera como sociedade em rede. Para o autor, ela é
determinada por usuários, que são os principais produtores,
pois, além de adaptarem a tecnologia a seus usos, também a
transformam. Neste sentido, a sociedade informacional e suas
transformações afetam os aspectos culturais e as relações,
portanto, a globalização vincula à exclusão no momento em
que os elementos da cibercultura não atingem de maneira
democrática todas as pessoas, “os processos de transformação
social sintetizados no tipo ideal de sociedade em rede
ultrapassam a esfera de relações sociais e técnicas de produção:
afetam a cultura e o poder de forma profunda” (CASTELLS,
1999, pp. 502-503).
A exclusão digital é um fenômeno complexo e de
várias dimensões, portanto, é preciso pensar para além do
acesso ao ciberespaço, este não é suficiente para superá-la. A
depender da conjuntura do país, as dificuldades de inclusão
serão mais incisivas para uma faixa da população, os efeitos
da alienação digital são mais visíveis nas regiões mais pobres
e distantes.
Segundo Castells (1999, p. 503), “embora as relações
capitalistas de produção ainda persistam [...], capital e trabalho
tendem cada vez mais a existir em diferentes espaços e tempos:
o espaço dos fluxos e o espaço dos lugares, tempo instantâneo
de redes computadorizadas versus tempo cronológico da vida
cotidiana”.
Estar fora do espaço dos fluxos é estar cada vez mais
próximo da condição de oprimido, para Freire (2014, p. 115),
“somente o diálogo, que implica um pensar crítico, é capaz,
também de gerá-lo. Sem ele não há comunicação e sem esta
não há verdadeira educação”. De acordo com Miranda e
Arte, Cultura e Imaginário 161
Mendonça (2005), é necessário estimular a democratização
da informação e ampliar o acesso aos espaços de criação e de
relações coletivas de modo a permitir a retroalimentação do
conhecimento.
A exclusão digital não é um fenômeno apenas
econômico, também não é caracterizada pela ausência de
acesso às ferramentas, é exclusão porque falta o acesso à
educação, à participação social e aos direitos básicos de
cidadania.
A segunda variável demonstra que a exclusão digital
pode ter outras características, mais comportamentais, já que
se refere à disposição pessoal dos usuários em não se
integrarem à cultura digital. Marques (2014) diz que há aqueles
com situação financeira suficiente para adquirir computadores
e utilizá-los ao contratar serviços de conexão de alta
velocidade. Possuem capital cultural para aprender a operar
tais recursos de maneira autônoma, o ponto é que nem todos
querem se aproximar do ambiente de comunicação digital, a
não ser para desempenhar tarefas cotidianas, como transações
bancárias. O autor ainda menciona que alguns indivíduos,
mesmo diante da ausência de condição socioeconômica para
adquirir computadores ou assinaturas de serviços para acesso
à internet, foram capazes de encontrar outras formas de
conexão.
Por essa razão, devem-se considerar as fronteiras que
a cultura digital estabelece e o surgimento de outras
desigualdades, isto é, a cada nova tecnologia aparecem
determinadas reivindicações que podem abrir outras
compreensões acerca da exclusão digital. Lévy (1999, p. 237)
corrobora esta ideia ao afirmar que “cada novo sistema de
comunicação fabrica seus excluídos”. E ainda: “De forma
mais ampla, cada universal produz seus excluídos, o universal,
mesmo se ele ‘totaliza’ em suas formas clássicas, jamais
engloba o todo”.
A distribuição desigual de acessos entre a população
brasileira é reflexo dos níveis desiguais de riquezas e educação.
Para Miranda e Mendonça (2005), é difícil compreender a
exclusão digital, visto que possui múltiplas definições e há
pontos de vista conflitantes sobre os principais fatores que a
162 Cultura digital, educação e o imaginário ...
afetam. A este ponto do estudo, cabe perguntar: é razoável
considerar a falta de acesso à internet como um impeditivo
para incrementar a tecnologia nas práticas educativas?
De acordo com Silveira (2001), na sociedade
contemporânea, quem não souber manejar as plataformas
tecnológicas e recursos digitais estará cada vez mais distante
da produção do conhecimento, portanto, assegurar o acesso
ao ciberespaço é possibilitar a obtenção da informação, o que
permite ao indivíduo certa autonomia no seu processo de
desenvolvimento.
Esse contexto consente argumentar que, para
construir uma sociedade em rede, a infraestrutura é fator
relevante, sem essa interface abrangente que permite conexões
eficazes, é inviável estabelecer ações para inserir a cibercultura
na realidade social.
De acordo com Lévy (1999), as mudanças sociais e
culturais decorrem da evolução técnica que a
contemporaneidade oferece, entretanto, países como o Brasil,
com graves problemas apresentados ao longo da evolução
econômico-social e a limitada capacidade em resolvê-los,
demonstram um significativo descompasso em relação à
velocidade das transformações provenientes do ciberespaço.
Portanto, utilizar a cibercultura, como um meio impulsionador
para o sistema social e educacional, repousa, também, sobre
a vontade política e dos responsáveis pelas práticas de
formação.
Bill Gates, citado na reportagem publicada em 12/
09/20005, declarou acerca da expectativa de que os fatores
tecnológicos reduziriam o abismo informático nos países em
vias de desenvolvimento: “este desafio é comparável ao do
analfabetismo. No futuro, o nível de educação primária será
o elemento mais importante, porque todos os outros
conhecimentos estarão ao alcance na Internet”. Desta
maneira, “os governos deveriam permitir a todos ler e escrever
e a Internet se encarregaria do resto.

5
RIEST, Philippe. Tecnologia pode reduzir “abismo” entre países ricos e
pobres. Folha Online. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/
folha/informatica/ult124u1534.shtml>. Acesso em: 31 de outubro de 2020.
Arte, Cultura e Imaginário 163

Em entrevista para Globo.com6, Zygmunt Bauman,


ao ser questionado sobre “qual a diferença entre educar na
era pré-moderna e na modernidade líquida dos dias atuais?”,
afirma:
Como o educador E. O. Wilson observou,
“estamos nos afogando em informação e, ao
mesmo tempo, famintos por sabedoria”. [...].A
mudança da sociedade moderna de sólida para
um estágio líquido coincide, segundo a
terminologia de Byung-Chul Han (teórico sul-
coreano), com a passagem da “sociedade da
disciplina” para a “sociedade de desempenho”.
O fato é, na atualidade, a informação e o conhecimento
passaram a ser mercadorias de valor, o principal elemento
nas economias globalizadas, portanto, “a situação é paradoxal”,
como diz Morin (2011, p. 81), a educação ao submeter-se
aos fatores de mercado deixa de ser uma instituição social e
abandona sua missão prioritária, “[...] a missão propriamente
espiritual da educação: ensinar a compreensão entre as pessoas
como condição e garantia da solidariedade intelectual e moral
da humanidade”.
A multiplicação e a fragmentação dos conhecimentos
e as constantes mudanças nas áreas do saber trazem para os
conteúdos e métodos de ensino-aprendizagem uma
obsolescência que os expõem à crítica de vários setores sociais,
portanto, o debate está estabelecido, acerca das dissonâncias
entre escola, inovações tecnológicas e as novas gerações de
estudantes.
A cibercultura ajuda a expandir o mundo e suas
possibilidades de contato humano, de transações e transmissão
de saberes, de conhecimentos e descobertas, mas também
prolifera incompreensões na comunicação quanto à exposição
da imagem, impactando no comportamento dos grupos e na

6
ALFANO, Bruno. ‘A educação deve ser pensada durante a vida inteira’, diz
Zygmunt Bauman. Globo.com Disponível em: <https://oglobo.globo.com/
sociedade/educacao/a-educacao-deve-ser-pensada-durante-vida-inteira-diz-
zygmunt-bauman-17275423>. Acesso em: 30 de outubro de 2020.
164 Cultura digital, educação e o imaginário ...
personalidade dos indivíduos. Os elementos que compõem a
cibercultura estimulam relações fluidas e superficiais, assim
como alimentam uma construção da personalidade individual
e do outro de maneira subjetiva e imaginária.
Lemos (2003) apresenta a cultura digital como
resultante dos desdobramentos das relações da tecnologia com
a modernidade. Nessa perspectiva, pode-se dizer que o
imaginário que existe na cibercultura se dá pela força social
impulsionada pelas imagens e representações coletivas.
O imaginário encontra-se refletido no cotidiano, por
meio de símbolos, rituais, transmissões e se faz sentir em todas
as formas de conhecimentos, práticas e representações sociais.
O imaginário é “um arcabouço de elementos que se
reorganizam de tempos em tempos. Os elementos mudam
de carga simbólica para se adequarem à realidade que os
circunda, mas também pode ser o motivador de mudanças
nessa mesma realidade” (LOPES, 2015, p. 62).
Castoriadis (1982) refere-se ao simbólico como tudo
aquilo que se apresenta no mundo social-histórico, para o
autor, atos individuais e coletivos não acontecem fora de uma
rede simbólica, nesse sentido, as instituições criadas na
sociedade pós-moderna têm a sua existência simbólica. Já
Wunenburger (2003) destaca que o imaginário é concebido a
partir de imagens e narrativas que podem moldar visões de
mundo, condutas e estilos de vida.
Essa perspectiva de posicionar a cultura, diante da
aceleração do tempo e diminuição dos espaços em função da
chegada das tecnologias digitais de informação e comunicação
afeta, também, a vida das pessoas. A entrada dos apelos visuais
nos lares influencia o modo de pensar e de agir, portanto,
transformações culturais dominam o cotidiano e a privacidade.
As articulações entre esses pressupostos são valiosas,
já que influenciam o imaginário social, principalmente ao
considerar o pensamento de Castoriadis (1995, p. 12), tudo
que existe em uma sociedade é produzido por ela, “de seu
ponto de chegada ao ponto de partida”, conduzindo a
reconsideração do pensamento herdado, “[...] da sociedade
instituinte e da sociedade instituída, do imaginário social, da
instituição da sociedade como sua própria obra, do social-
Arte, Cultura e Imaginário 165
histórico como modo de ser mal conhecido pelo pensamento
herdado.”
Compreende-se, então, que as percepções trazem uma
dimensão imaginária, já que há um lado representativo e outro
emocional dando lugar a descrições literais ou interpretativas,
convergindo com o pensamento de Castells (1999, p. 354),
quando diz: “a comunicação, decididamente, molda a cultura
porque, como afirma Postman, “nós não vemos... a realidade...
como ‘ela’ é, mas como são nossas linguagens”, e ainda,
“nossas linguagens são nossas mídias. Nossas mídias são
nossas metáforas. Nossas metáforas criam o conteúdo de
nossa cultura”.
A convergência das tecnologias na educação exige
mais do que uma simples mudança tecnológica, é um requisito
necessário para o envolvimento dos alunos nas atividades,
isso porque a realidade vivida pelo alunado está permeada
por diversos aparatos tecnológicos, influenciando e
transformando as interações sociais e as buscas por
informações fora do contexto escolar. Castells (2003) afirma
que são as demandas da sociedade e do contexto histórico
que determinam a busca por novas tecnologias e a aplicação
está relacionada aos interesses individuais.
Na sociedade em rede, a educação é convidada a
priorizar certas competências para uma ação diversificada, a
corrida em busca de novos currículos com propostas
interdisciplinares demonstra que a área educacional se
encontra em um movimento que procura por novas
alternativas.
Moran (2009) afirma que o docente é constantemente
desafiado a tornar o conteúdo verdadeiramente relevante
diante de tantas possibilidades. Para o autor, as tecnologias
abrem novas oportunidades para superar barreiras de acesso
ao conhecimento, de modo que a congruência das mudanças
presentes na sociedade articula-se em favor de uma visão
emancipadora para a educação.
O pensamento freiriano tem como propósito uma
educação emancipadora que possibilite ao aluno tornar-se
autor de sua própria história; desta maneira, cabe ao sistema
educacional oferecer meios de acesso aos bens culturais, a
166 Cultura digital, educação e o imaginário ...
atividade de explorar ambientes virtuais exige técnicas de
ensino-aprendizagem, dito isto, eleva-se a importância do
professor no processo, já que pode ensinar o aluno a ser um
explorador de interesses no universo da cibercultura.
Apesar de o aluno estar inserido em um contexto
complexo de relações, promover mudanças não requer apenas
estimular o uso das tecnologias, envolve outros fatores,
aquisição de equipamentos, desenvolver as habilidades dos
professores. Castells (2002) aponta que, na atualidade, as
tecnologias digitais são parte da infraestrutura que possibilita
uma gama de comunicações no planeta, facilita a apropriação
de linguagens e favorece experimentar um outro modo de
viver e conviver, portanto, as propostas pedagógicas não
podem limitar o acesso às inovações técnicas.
A concepção do professor acerca do uso de
tecnologias no trabalho pedagógico exige estabelecer uma
nova relação com o saber, de modo a ultrapassar os limites
dos recursos tradicionais, portanto, antes de introduzir as
TDICs nas aulas, é necessário entendê-las para utilizar de
maneira que contribuam com a mudança no processo de
ensino-aprendizagem, transformando salas de aulas em
espaços para discussões. Tal perspectiva conflui com a prática
educativa freiriana, que defende a necessidade de o aluno
assumir o papel de sujeito na produção de seus saberes,
posicionando-se como autor do conhecimento.
As ações didáticas mediadas pela cibercultura
conduzem a movimentos colaborativos e coloca o processo
de ensinar e aprender na esfera da liberdade. Por isso, é
relevante que o ambiente educacional seja um lugar em que o
aluno tenha a possibilidade de interferir no conhecimento e,
assim, contribuir com a sociedade. Freire (1996) afirma que
os estudantes se transformam em indivíduos ativos na
construção e reconstrução do saber ensinado. Contudo, cabe
aqui uma provocação: o estudante brasileiro sabe, realmente,
utilizar as TDICs de modo a contribuir com o exercício de
sua autonomia na aprendizagem?
A autonomia é uma construção cultural e depende da
relação do homem com os outros e com o conhecimento,
Arte, Cultura e Imaginário 167
então, neste processo, o ato de ensinar é fundamental e
pressupõe uma relação dialógica, é um processo de
interlocução mediado por indagações à procura de
inteligibilidade dos fenômenos sociais, culturais ou políticos
(FREIRE, 1996).
Este conceito implica um conjunto de habilidades que
não é fácil encontrar nos alunos devido ao histórico de
aprendizagem passiva; em contrapartida, também não são
munidos de atitudes para aulas expositivas quando o tema é
complexo, necessitam de outros recursos para reter a atenção,
o que os fazem, em certa medida, imediatistas. Diante deste
cenário, não se pode negar que é necessário repensar a
educação no contexto da sociedade pós-moderna, em que
tudo se modifica velozmente.
O professor não é mais o detentor do conhecimento,
a cultura digital trouxe uma nova relação com a informação,
logo o que deve ser aprendido demanda percursos diferentes,
portanto está, gradativamente, mais difícil canalizar os
programas e currículos que sejam válidos para todos os
estudantes. Conforme Lévy (1999), é necessário construir
novos modelos no espaço dos conhecimentos.
Elementos eletrônicos, cada vez mais, apresentam
papel importante no ambiente educacional, a escola quando
não permite o uso do aparelho, está cerceando o aluno ao
direito de participar da convergência tecnológica. Esse
pensamento convoca a seguinte reflexão: como utilizar as
TDICs não só de maneira ética, mas de modo que favoreça o
processo ensino-aprendizagem?
Os alunos da atualidade estão inseridos no ciberespaço
quase 24 horas, portanto a educação não escapa desse
fenômeno. Segundo Harvey (1989, p. 22), a transitoriedade
das coisas dificulta a preservação de todo sentido de
continuidade histórica, “a modernidade, por conseguinte, não
apenas envolve uma implacável ruptura com todas e quaisquer
condições históricas precedentes, como é caracterizada por
um interminável processo de rupturas e fragmentações
internas inerentes”. Entretanto, a educação deve-se pautar
em valores que colaboram para formar sujeitos conscientes
168 Cultura digital, educação e o imaginário ...
de que a valorização das regras contribui para a organização
das relações humanas.
Para Bauman (2004), perderam-se certas âncoras
sociais que garantiam segurança e liberdade, o indivíduo
precisa de tal apoio, visto que a identidade, na pós-
modernidade, é frágil e superficial. Essa dinâmica possibilita
pensar a identidade do estudante, a partir das novas
tecnologias, considerando um processo em que se destaca a
ação de diversos sujeitos envolvidos na produção de sentidos.
Hall (1992) entende que as identidades que
propulsionavam conformidade subjetiva com as necessidades
objetivas da cultura entraram em declínio, a identificação que
projeta a identidade das pessoas está cada vez mais efêmera,
oscilante e problemática, na pós-modernidade, o indivíduo é
conceituado como alguém que não tem identidade fixa,
per manente e unificada, visto que se transfor ma
continuamente, sobretudo sob o impacto dos fatos que
representam os meios culturais.
As novas tecnologias, por si só, não são capazes de
desenvolver o conhecimento dos educandos, mas podem ser
facilitadoras do aprendizado. A utilização dos recursos
midiáticos pode trazer ganhos para a educação, mas, para isso,
é importante que a escola e os educadores compreendam o
ciberespaço como um ambiente em que recursos são
modificados em uma velocidade extraordinária. Nessa
contextualização quase contraditória, cabe a reflexão: o
ambiente educacional está preparado para acompanhar essas
mudanças e na mesma velocidade?
Exercer a docência nesse contexto de crise gerado
pelas pressões e transformações requer tomar consciência do
fluxo de acontecimentos que advém da cibercultura. A
performance digital nos coloca diante de possibilidades
variadas de ação e de comunicação e, assim, o ouvir e o sentir
tornam-se mais relevantes.
Os educadores devem estar atentos a essa realidade,
porque, embora seja uma novidade em termos de metodologia
de ensino, é importante entender que os alunos vão para a
escola com uma experiência sociocultural e de utilização destes
meios que supera a dos educadores.
Arte, Cultura e Imaginário 169
Os estudantes vivem num contexto virtual e
demandam do ambiente escolar todas as alternativas de mídias.
Esse novo cenário, para muitos, é desconhecido; para os
estudantes, é natural. Assim, pode-se utilizar a tecnologia para
criação de uma nova forma de atuação, em que alunos e
professores são sujeitos ativos no processo de ensino e
aprendizagem. O professor não tem mais que lidar só com as
disciplinas clássicas, é necessário compreender a nova
dinâmica da pós-modernidade.
Os elementos do ciberespaço devem ser utilizados no
ambiente escolar como ferramenta facilitadora para a prática
docente. Logo, é necessário desmistificar a ideia de substituição
do professor pela máquina; para tanto, exige-se compreensão
de que os instrumentos são mecanismos utilizados para
promover o desenvolvimento cognitivo e sociocultural, com
isso favorece a formação do sujeito, pois, a tecnologia, por si
só, não ensina, ela sempre vai precisar da mediação humana.
Por outro lado, o conhecimento desses problemas
pressupõe novos padrões que poderão contribuir para inserção
das tecnologias no fazer pedagógico, viabilizar a construção
colaborativa entre os profissionais na exploração das
tecnologias como meio que facilita o pensar e o agir no
ambiente escolar, investir no desenvolvimento dos docentes,
de modo a oportunizar uma reflexão sobre as problemáticas
no contexto da sala de aula.
As TDICs na educação devem ser utilizadas como
um recurso para auxiliar o professor na integração dos
conteúdos curriculares, sua finalidade não se encerra nas
técnicas de digitação e/ou conceitos básicos de
funcionamento do computador, existe todo um leque de
oportunidades que deve ser explorado, afinal, a sociedade atual
está pautada pelos padrões da pós-moder nidade,
fundamentalmente, os tecnológicos, incorporando exigências,
como mais flexibilidade e integração nos espaços educacionais.
Muda-se não apenas as metodologias, é a própria
concepção da educação que necessita ser repensada, como
defende Mizukami (2016), ao afirmar que existem muitas
maneiras de idealizar o fenômeno educativo, razão pela qual
não é uma realidade acabada.
170 Cultura digital, educação e o imaginário ...
Conforme Moran (s/d)7, existe uma inércia na cultura
que impede os avanços tecnológicos. “As tecnologias
per mitem mudanças profundas que praticamente
permanecem inexploradas pela inércia da cultura tradicional,
pelo medo, pelos valores consolidados”. Para o autor, em razão
desse imobilismo, o desafio aumenta no sentido de ter uma
educação de qualidade que integre todas as dimensões do ser
humano, como fatores sensorial, intelectual, emocional, ético
e tecnológico. Para corroborar, Morin (2011) diz que ensinar
a condição humana é enxergar a identidade do aluno.
O ciberespaço oferece aos alunos diversas ferramentas
para aprenderem sozinhos, nessa concepção e na esteira da
pós-modernidade, a educação parece estar marcada pela
urgência de estudantes que querem aprendizagens pautadas
pela criatividade. Portanto, o debate não está pautado apenas
na definição de papéis e na capacidade do professor em usar
os recursos ofertados pela tecnologia, é preciso atentar-se para
as oportunidades que a contemporaneidade oferece como
práticas de autodesenvolvimento e de convivência que podem
levar os alunos a fazerem suas próprias escolhas.
É possível dizer que o ensino com foco em conteúdos
está cada vez mais distante das demandas do estudante do
século XXI, a educação caminha para uma aprendizagem
autônoma em que o aluno deverá ser capaz de estabelecer
ações educativas, caracterizando a construção de sua própria
trajetória de formação. Esse contexto se aproxima do que foi
pregado pela Escola Nova, ao romper com a educação
tradicional e incorporar a Pedagogia Ativa.
As rápidas e constantes transformações são capazes
de proporcionar novas concepções, não é uma simples questão
de ponto de vista, é uma ressignificação dos papéis. Embora
a inserção de ferramentas tecnológicas na educação não seja
garantia de qualidade no processo ensino-aprendizagem, os
professores precisam de alternativas pedagógicas. Silva (2009)
afirma que a atualidade exige do professor domínio das

7
MORAN, J. M. Para onde caminhamos na educação. Disponível em: <http:/
/www.eca.usp.br/prof/moran/site/textos/educacao_inovadora/
caminhamos.pdf>. Acesso em: 20 dez 2018.
Arte, Cultura e Imaginário 171
ferramentas disponíveis no ciberespaço. O autor reitera que
muitos professores usam a tecnologia com desconfiança e
não sabem integrá-la à sua prática, no entanto, quando bem
aplicadas, mostram-se importantes para o processo
educacional, ao oferecer acesso a novos recursos pedagógicos.
Matéria publicada em 11 de março de 20168 aborda:
Muitos educadores questionam se a tecnologia
será o principal agente disruptivo na educação.
Não, o principal agente disruptivo serão os
educadores. Ao mesmo tempo, a educação não
sofrerá um processo de disrupção sem a
tecnologia. Colocar a tecnologia dentro das salas
de aula de hoje e esperar que a educação mude é
um devaneio. Temos que pensar em que educação
queremos ter e quais os instrumentos,
tecnológicos ou não, usaremos para atingir nossos
objetivos.
O professor precisa se situar no universo da tecnologia,
de acordo com Lévy (1999), a escola contemporânea deve
ter a capacidade de gerar competências variadas, principal-
mente as relacionadas ao papel do professor.
Ao considerar o contexto investigado e as novas
formas de comunicação e interatividade emergentes de uma
sociedade em rede busca-se compreender as oportunidades
de enriquecimento dos processos educativos por meio dos
elementos disponibilizados no ciberespaço, acredita-se que,
para incorporar essas transformações nos processos de ensinar
e aprender, é preciso repensar o padrão educacional brasileiro.
Para Foucault (1984, p. 13), “existem momentos na
vida onde a questão de saber se pode se pensar diferentemente
do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é
indispensaìvel para continuar a olhar ou a refletir”. Na esteira

8
PEREIRA, Emerson Bento. Educação, Disrupção e Tecnologia.
Estadao.com Disponível em: <https://educacao.estadao.com.br/blogs/
colegio-bandeirantes/educacao-disrupcao-e- tecnologia>. Acesso em 30 de
outubro de 2020.
172 Cultura digital, educação e o imaginário ...
do autor, propõe-se refletir sobre a disrupção no ensino-
aprendizagem a partir do uso da tecnologia.
A cultura digital trouxe outras possibilidades de acesso
ao conhecimento, dentro e fora da sala de aula, novos
comportamentos se estabeleceram e a mobilidade abriram
oportunidades para a expansão do estudo, as mudanças de
comportamento dos jovens decorrentes desse movimento
foram automaticamente transferidas para a educação.
A interatividade no ambiente virtual só existe mediante
a movimentação dos sujeitos aprendentes, assim, não basta
disponibilizar interfaces, se os estudantes não tiverem
habilidades de comunicação, neste momento, evidencia ainda
mais a importância do professor como mediador da
aprendizagem.
Por outro lado, as produções que emergem da
comunicação interativa entre os sujeitos são os hipertextos,
isto é, quando a interação passa a interatividade e oferece ao
aprendente textos que se conectam a outros por meio das
interfaces criadas no contexto do ambiente virtual de
aprendizagem. Novamente, a participação do docente torna-
se necessária, pois as interfaces de conteúdos fazem convergir
diversas linguagens que, por si só, serão mero entretenimento,
contudo, se bem aplicadas, potencializam a aprendizagem.
A simulação, como recurso digital, pode ser usada com
o intuito de apoiar a aprendizagem. Tori (2006) considera a
simulação, como: a ideia de interação associada com a
capacidade de o computador detectar as entradas do usuário
e modificar, instantaneamente, o ambiente virtual; o
envolvimento e engajamento do aluno com determinada
atividade de maneira ativa; a realidade aumentada,
diferentemente da realidade virtual, que busca criar um mundo
virtual à parte, tem o objetivo de suplementar o mundo real
com objetos virtuais gerados computacionalmente, de tal
forma que aparentem coexistir no espaço real.
São várias as questões quando se discute a utilização
das mediações tecnológicas para desenvolver o processo
formativo, uma delas é a aprendizagem autônoma. Sabe-se
que o estudante, em sua trajetória educacional foi esculpido
pelos referenciais do modelo presencial, por essa razão quase
Arte, Cultura e Imaginário 173
sempre demonstra problemas com a organização do tempo e
a comunicação a distância, demonstra dificuldade em sentir-
se responsável por sua própria aprendizagem. O fato é que o
aluno, ao usar espaços virtuais para aprender, precisará
construir uma nova identidade, revisitando o que é elaborado
em seu percurso educacional, esse movimento fragmenta o
indivíduo moderno e estabelece o que, para Hall (1992), é a
“crise de identidade”.
Assim, a “crise de identidade” é vista como parte de
um processo mais amplo de mudança, desloca as estruturas e
os processos centrais das sociedades modernas e abala os
quadros de referência que davam aos sujeitos uma ancoragem
estável no mundo social. Essas mudanças tendem a provocar,
nos estudantes, sensações de deslocamentos e
questionamentos a respeito de si mesmos.
Na medida em que os meios de representação cultural
aumentam e se modificam provoca uma abundância
perturbadora de possíveis identidades, convergindo, assim,
com a configuração dos recursos digitais que colocam à
disposição do público uma variedade de conexões que
independe da situação geográfica, do recurso ou do usuário.
Na atualidade, ensinar e aprender estão diante de uma
nova dinâmica, o acesso à informação tornou-se rápido e
efêmero, portanto, professores e alunos são constantemente
desafiados a adquirir novos conhecimentos. Além disso, os
alunos de hoje são aqueles que cresceram manipulando as
tecnologias, assim o estudante pode levar à sala de aula suas
experiências virtuais. De acordo com Tori (2010), o estudante
pode criar uma espécie de hibridização ou blended learning, essa
convergência entre as experiências presenciais e virtuais
desencadeará o estilo e a forma de atuar, tanto no presencial
como no virtual. Esse contexto requer adaptação dos
profissionais da educação para utilizar os elementos que
integram o ciberespaço como facilitadores do processo de
ensino-aprendizagem.
Uma vez que o uso das tecnologias aumenta, pode-se
transformar o modelo educacional, principalmente, ao inserir
as TDICs como recurso para enriquecer a aprendizagem.
Portanto, é preciso entender a relação entre tecnologias e
174 Cultura digital, educação e o imaginário ...
práticas educativas, já que elas, em conjunto, podem gerar
ganhos no desempenho tanto do professor, quanto do aluno.
Mas também, podem provocar divergências na medida em
que os recursos são utilizados apenas como ferramentas, sem
repensar o processo, logo, os elementos disponibilizados no
ciberespaço, sozinhos, não agregam inovação ao modelo de
ensino.
Os diversos intercâmbios de conhecimentos
desencadeados pela cibercultura exigem uma reformulação
no processo de ensino-aprendizagem. É necessário, portanto,
pensar no que pode ser feito a partir das TDICs, suas
especificidades técnicas e seu potencial pedagógico. Quando
utilizadas apropriadamente, em conjunto com outras
atividades que favorecem o aprendizado ativo, podem
estimular os alunos na construção do seu conhecimento.
Para Vygotsky (1996), o professor deve utilizar
metodologias de ensino para atender diferentes alunos, já que
estes não aprendem da mesma maneira, isto significa, o
educador deve perguntar, com frequência, qual o sentido de
determinado conteúdo e método, portanto, estabelece-se a
importância de atualização, de modo a acompanhar as
mudanças.
O uso das tecnologias faz emergir práticas que alteram
as relações professor-aluno e o papel da docência. Para alguns,
o docente é um mediador de situações de aprendizagem, nesta
nova realidade, privilegia-se a construção coletiva mediada
tanto pelo professor, quanto pela tecnologia.
Essa nova proposta pedagógica precisa ser analisada,
afinal, as transições tendem a apresentar resistências, pois
impõem a mudança de modelos e impactam no processo de
construção de identidade do professorado. Evidencia-se a
capacidade que as identidades possuem em receber influência
das forças produtivas da sociedade para estabelecer novas
linhas no processo cultural, principalmente em épocas, como
a que vivemos na atualidade, em que a produção e
disponibilidade de informações instauram mudanças de
hábitos e costumes, expandindo o capital intelectual e cultural
que compõem a sociedade moderna.
175 Cultura digital, educação e o imaginário ...
Ao longo da análise, buscou-se qualificar os aspectos
negativos e positivos da introdução tecnológica na identidade
cultural e educacional no contexto brasileiro, o que nos faz
pensar que esse entendimento pode ser em função da
concepção que o sujeito tem do mundo. “O imaginário é,
portanto mais próximo das percepções que nos afetam do
que das concepções abstratas que inibem a esfera afetiva”,
diz Wunenburger, “por outro lado, só há imaginário se um
conjunto de imagens e de narrativas forma uma totalidade
mais ou menos coerente” [...] (WUNENBURGER, 2003, pp.
11-12).
Compreende-se, então, que as percepções comportam
um lado representativo e outro emocional, deste modo, podem
dar lugar a descrições literais ou interpretativas. Em artigo de
opinião publicado em 08 de janeiro de 2016, Professor
Henrique Vailati Neto, diretor do Colégio FAAP – SP9 diz:
“Como todas as ferramentas, o uso adequado, não importa o
preço ou capacidade de recursos, é fator essencial para que se
obtenham resultados positivos no processo de aprendizagem”.
Isto significa que as instituições de ensino não podem ficar
fechadas atrás de seus muros, significa, ainda, que os alunos
têm acesso a um aparato tecnológico que o faz olhar para o
processo ensino-aprendizagem com uma nova visão, inserida
na era tecnológica e na sociedade digital.
Ainda para o Professor Henrique: “[...] transformaram
suas aulas em verdadeiros soníferos didáticos ao [...] submeter
seus alunos a belíssimas telas de Power point, onde a figura do
professor era esmaecida e perdia a sua imprescindível função
de motivador do aprendizado”. Nesta perspectiva, o uso das
tecnologias digitais de informação e comunicação deve se dar
de forma criativa, incorporando-se as ferramentas digitais aos
processos de produção do conhecimento; as tecnologias
devem estar presentes nas diversas atividades de sala de aula,

9
Os riscos da tecnologia na educação. Estadao.com. Disponível em: https:/
/educacao.estadao.com.br/blogs/colegio-faap/os-riscos-da-tecnologia-na-
educacao/ Acesso em: 31 de outubro de 2020.
176 Cultura digital, educação e o imaginário ...
de acordo com a intencionalidade de propiciar aos estudantes
a aprendizagem pela experiência e mediante objetivos claros.
Ao considerar essas transformações, significa olhar
sensivelmente para os estudantes contemporâneos, crianças,
adolescentes e jovens, que têm, em sua cultura, a estreita
ligação com diferentes dispositivos tecnológicos e suas
linguagens. A forma como o pensamento desses sujeitos se
organiza está repleta de referências, formas e conteúdos
obtidos das TDIC, negar esta realidade, na escola, é promover
barreiras à interação entre educadores e educandos e
desconsiderar o contexto social e cultural dos estudantes.
Segundo Castoriadis (1982, p. 159), “A instituição é
uma rede simbólica, socialmente sancionada, onde se
combinam em proporções e em relações variáveis um
componente funcional e um componente imaginário”.
Portanto, introduz-se o sentido de virtualidade, por ser ela
uma extensão da realidade, um símbolo que representa algo
verdadeiro e imaginário. Lévy (1999, p. 22) diz: “é impossível
separar o homem de seu ambiente material, assim como dos
signos e das imagens por meio dos quais ele atribui sentido à
vida e ao mundo”, e ainda, “[...] as palavras, as construções
de linguagem entranham-se nas almas humanas, fornecem
meios e razões de viver aos homens e suas instituições [...].
Castells nos ajuda no entendimento de que não existe
oposição entre a realidade e a virtualidade. Para o autor, a
percepção da realidade depende de símbolos, isto é, a realidade
é apreendida por meio dos elementos que compõem a
linguagem, portanto, a realidade traz algo de virtual, “a
realidade, como é vivida, sempre foi virtual porque sempre é
percebida por intermédio de símbolos formadores da prática
com algum sentido que escapa à sua rigorosa definição
semântica” (CASTELLS, 1999, p. 395).
Nessa perspectiva, Castoriadis (1982, p. 169)
estabelece que “existem significações relativamente
independentes dos significantes [...]. Essas significações
podem corresponder ao percebido, ao racional ou ao
imaginaìrio”. Logo, pode-se dizer que estas concepções
transcendem e incluem a diversidade dos sistemas de
representação historicamente transmitidos à cultura, portanto,
Arte, Cultura e Imaginário 177
o imaginário é efetivado por meio das diferentes linguagens
que fazem os indivíduos interagirem.
Uma vez que as pessoas vivem baseadas na linguagem
e em experiências vividas, entrarão em contato com
representações simbólicas, deste modo, Castells (1999, p. 395)
diz: “essa gama de variações culturais do significado das
mensagens é o que possibilita nossa interação mútua com
uma multiplicidade de dimensões, algumas explícitas, outras
implícitas”.
Para contribuir com a ideia de realidade percebida
vitualmente, Moran (2000, p. 12) comenta, “Sem dúvida as
tecnologias nos permitem ampliar o conceito de aula, de
espaço e tempo, de comunicação audiovisual, e estabelecer
pontes novas entre o presencial e o virtual, entre o estar
juntos e o estarmos conectados”. Portanto, os autores estão
em consonância e em contribuição. Tori (2017, p. 115) aduz,
“a realidade virtual (RV) possibilita que se disponibilizem
aos alunos interações realistas com ambientes sintéticos,
constituindo-se assim em importante meio para redução
de distâncias”. Provoca o autor, “uma visita virtual ao
Coliseu de Roma ou às pirâmides do Egito, com a
possibilidade de caminhar por esses espaços, observá-los
e interagir com seus conteúdos, pode não substituir a visita
in loco, [...] oferece uma sensação de proximidade muito
maior que a simples visualização de imagens e vídeos”.
A realidade virtual bem utilizada pode proporcionar
ao professor possibilidades, vantagens e praticidades em
adquirir informações para a construção de conhecimentos.
Acredita-se que, ao inserir inovação no processo
educacional, deve-se considerar a cultura como fator
relevante, visto que as modificações e a melhoria na prática
não exigem apenas a compreensão intelectual dos sujeitos,
seja ele estudante ou professor, pede-se, também, uma
atitude transformadora, inclusive das condições referentes
à cultura herdada.
Ademais, a educação necessita alinhar-se à sociedade
contemporânea. Freire (1996) é defensor da educação baseada
na realidade, contudo, a educação que apenas utiliza a
tecnologia sem uma mediação pedagógica gerará resultados
178 Cultura digital, educação e o imaginário ...
insignificantes, é preciso que se faça uma educação capaz de
dar voz e vez ao sujeito, provocando mudanças na relação
consigo mesmo e com seu entorno, ampliando o papel de
cidadão.
Portanto, cabe à educação acompanhar esse movimento
e construir processos educacionais transformadores e alinhados
às necessidades da sociedade contemporânea. “A cultura é
mediada e determinada pela comunicação, [...] nossos sistemas
de crenças e códigos historicamente produzidos são
transformados de maneira fundamental pelo novo sistema
tecnológico e o serão ainda mais com o passar do tempo”
(CASTELLS, 1999, p. 354).
O filósofo francês Gilles Lipovetsky no encontro
internacional “Educação 360”10 realizado no Rio de Janeiro
em setembro de 2017 e em entrevista ao jornal O Globo, diz,
para enfrentar os desafios do século XXI, é necessário criar
uma educação global, um ensino que considere tanto o saber
técnico, quanto o desenvolvimento pessoal, sem esquecer da
necessária compreensão do mundo. Para ele, essa é a única
maneira de criar uma geração capaz de lidar com os problemas
contemporâneos. Essa proposta tem eco no pensamento de
Edgar Morin (1998) e a religação dos saberes no universo
globalizado.
O conhecimento técnico é necessário, mas
devemos formar seres humanos, e não somente
“pessoas úteis”. Precisamos de uma educação que
leve em conta o homem em sua globalidade, como
um cidadão, e não o veja apenas como produtor e
trabalhador. Para isso, educação não pode ser
tratada como luxo. É uma exigência frente aos
desafios do século XXI (LIPOVETSKY, 2017, s.p).

10
NICODEMUS, Mariana. Filósofo francês defende educação global para
enfrentar desafios do século XXI. O Globo, Rio de Janeiro, 21 de set. 2017.
Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/filosofo-
frances-defende-educacao-global-para- enfrentar-desafios-do-seculo-xxi-
21855486>. Acesso em: 15 jul. 2018.
Arte, Cultura e Imaginário 179
O texto acima converge com a ideia defendida por
Morin (2011), para quem o homem não nasceu humano, foi
aos poucos aprendendo por meio da evolução, da adaptação
e da construção cultural. Na concepção do autor, cabe à
educação ajudar as mentes a compreenderem a complexidade
humana.
Lipovetsky, em entrevista, continua afirmando que “o
saber oferece autonomia aos indivíduos. A cultura geral é
indispensável para elevar a capacidade crítica dos jovens e
libertar seus espíritos, de maneira que tenham ferramentas
para colocar as informações em perspectiva e entender o
presente”.
Desta maneira, afirma-se que os processos simbólicos
são constituidores do ser humano, das suas ações e,
consequentemente, da sua cultura, assim as tecnologias da
informação desenvolvidas para possibilitar, difundir, ou
transformar tais processos têm uma relação direta com a
mente humana, que passa a ser fonte de riqueza e poder na
nova sociedade.
Castells (1999) afirma que a sociedade em rede atingiu
todo âmbito de atributos sociais, não só na interação, mas
também no desenvolvimento de comunidades virtuais, que
são transitórias e fugazes do ponto de vista dos atores sociais.
Na perspectiva do autor, é inegável que os meios
disponibilizados por essas tecnologias colocam em sinergia o
espaço virtual com o espaço físico, consolidando a era da
conexão e interação e, modificando, com isso, as relações e o
comportamento humano. Castells (2003, p. 8) afirma que “os
impactos dessas transformações foram tão grandes, que o
momento atual é visto como uma transição para uma nova
forma de sociedade – a sociedade em rede.” E ainda:
Uma rede é um conjunto de nós interconectados.
A formação de redes é uma prática humana muito
antiga, mas as redes ganharam vida nova em nosso
tempo transformando-se em redes de informação
energizadas pela internet. As redes têm vantagens
extraordinárias como ferramentas de organização
em virtude de sua flexibilidade e adaptabilidade
180 Cultura digital, educação e o imaginário ...
inerentes, características essenciais para se
sobreviver e prosperar num ambiente em rápida
mutação (CASTELLS, 2003, p. 7).
Evidencia-se, então, uma cultura cibernética que nasce
da convergência das novas tecnologias e da conexão em rede,
promovendo reconfigurações em todos os patamares do corpo
social e atingindo a todos que estão conectados. Nesse
contexto, há de ressaltar o papel das tecnologias como
elemento impulsionador da estrutura de rede, dela também
faz parte uma cultura convergente de virtualidade real
construída a partir de um sistema de mídia onipresente,
interligado e altamente diversificado que proporciona a
transformação das bases materiais da vida – do tempo e do
espaço – mediante a criação de um lugar de fluxos e de um
tempo intemporal como expressões das atividades e das elites
dominantes (CASTELLS, 1999).
Do mesmo modo é o Imaginário tecnológico, na
concepção de Rüdiger (2002, p. 9):
[...] formação da tecnocultura contemporânea
implica a tecnologia não só como força econômica
articulada cientificamente, o que não pode de jeito
algum ser esquecido, mas também como uma
espécie de ideologia, que preferiríamos chamar
[...] de imaginário (tecnológico).
O caráter dos lugares sociais ocupados pelos meios
de comunicação e a imbricação com as novas tecnologias
imprimem características ao imaginário social, isto é, a
cibercultura, não tem qualquer problema, a dúvida está em
como o ser humano vai lidar com os aspectos tecnológicos
no futuro.
Aqueles que defendem a tecnologia na educação
argumentam que são necessárias profundas mudanças nos
métodos de ensino-aprendizagem e em todo o sistema
educacional, de modo a reservar ao cérebro humano o que
lhe é peculiar, a capacidade de pensar de maneira crítica e
questionadora, em vez de, apenas, desenvolver a memória.
Além disso, a sociedade contemporânea criou outros
espaços de conhecimentos, a empresa, o ambiente social e
Arte, Cultura e Imaginário 181
residencial tornaram-se educativos, isto é, cada vez mais, as
pessoas estudam fora dos espaços tradicionais, visto que, ao
acessar o ciberespaço, encontram informações que respondem
as demandas de conhecimento, como previa McLuhan (1969),
o planeta transformou-se em sala de aula, visto que o
ciberespaço está em todo o lugar e em todo o tempo.

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Cidadão Kane e Boca de Ouro: ficção e
realidade
Audrey Cristina Barbosa1
Gleiciane Silva Santos Ózio2
Rodrigo Nazario Geronimo Pinto3

O presente trabalho objetiva traçar semelhanças entre


duas grandes obras de escritores de universos diametralmente
opostos, a fim de contribuir com as discussões sobre
imaginário ilustrado nos dois roteiros, a identidade e como
os vemos na chamada pós-modernidade.
Podemos iniciar observando que, no mundo pós-
moderno, vivemos em uma sociedade manipulada pelo
homem e por sua inteligência. Implica dizer, é o sujeito que
determina o objeto, e não o objeto que determina o sujeito.
Entretanto, ambos se relacionam, especialmente sob a ótica
da Teoria do Conhecimento. Por meio desta, podemos analisar
duas importantes obras que nos ajudam a observar a relação
do nosso pensamento com os objetos: o filme Cidadão Kane e
a peça de teatro Boca de Ouro.
Com base na Teoria do Conhecimento, Johanes
Hessen expressa que devemos nos ater a três elementos:
sujeito, imagem e objeto. E prossegue: “devemos, pois,
aprender com um olhar penetrante e descrever com exatidão

1
Graduação em Comunicação Social pela Faculdade Radial FARSP,
especialização em Artes Cênicas pela Faculdade Paulista de Artes (FPA),
formada em Licenciatura em Artes Visuais pela FPA, mestranda em
Ciências Humanas pela Universidade de Santo Amaro – UNISA.
2
Graduação em Direito pela Faculdade de Itu - FADITU, pós-graduada
em Didática do Ensino Superior e MBA Direito Imobiliário, mestranda
em Ciências Humanas pela Universidade de Santo Amaro – UNISA.
3
Graduação em Direito pelo Instituto Municipal de Ensino Superior de
Assis – IMESA/FEMA, especialização em Direito Civil e Direito
Processual Civil pela Universidade de Londrina – UEL, mestrando em
Ciências Humanas – Universidade de Santo Amaro – UNISA.
186 Cidadão Kane e Boca de Ouro...
esse fenômeno peculiar de consciência a que chamamos de
conhecimento (1999, p. 19)”. Talvez por isso o primeiro lugar
a que o jornalista Jerry Thompson, personagem do filme
Cidadão Kane (1941), tenha se dirigido tenha sido a biblioteca
de Walter Parks Thatcher, a fim de colher informações para
criar uma matéria a respeito da vida de Kane. Mas precisaria
ser algo novo, sob novo ângulo, pois, nas palavras do jornalista,
“não basta contar o que um homem fez; é preciso contar
quem ele foi”.
O filme Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, conta
a investigação de um jornalista sobre as últimas palavras em
vida do magnata da comunicação, Charles Foster Kane. O
renomado jornalista, no início do filme, em seus últimos
suspiros de vida, adoecido em seu leito, diz Rosebud, suas
últimas palavras.
Para tentar descobrir o que ou quem é Rosebud,
Thompson faz uma série de entrevistas com pessoas que
conviveram diretamente com o Sr. Kane. O jornalista
Thompson conheceria seu objeto de estudo somente por meio
de relatos de pessoas que conviveram com Kane. Hessen
expressa que “qualquer explicação ou interpretação deve ser
precedida de uma observação e uma descrição exatas do
objeto”. Diz ainda que, antes de filosofar, ou, no caso, falar
sobre um personagem, “é necessário examiná-lo com exatidão
(1999, p. 19).
A segunda obra, um clássico do teatro brasileiro, a
peça “Boca de Ouro”, de Nelson Rodrigues, possui um enredo
bem semelhante a Cidadão Kane, pois o jornalista Caveirinha,
ao saber sobre o assassinato do bicheiro de Madureira, vai
entrevistar uma pessoa do passado do falecido para tentar
descobrir quem verdadeiramente era essa figura da mitologia
suburbana carioca, o bandido Boca de Ouro.
Não podemos afirmar que Nelson Rodrigues tenha
se inspirado no filme de Welles para escrever a peça, que
estreou 20 anos após o lançamento de Cidadão Kane. Pelo
contrário, em uma entrevista a José Lino Grunevald (1923 –
2000), Rodrigues critica Orson Welles: “Não consigo admirar
Cidadão Kane – é um Pirandello muito suburbano” (REVISTA
FILME CULTURA, 1973, p. 51).
Arte, Cultura e Imaginário 187
Um ponto interessante acerca das duas obras
encontra-se em primoroso artigo sobre o dramaturgo Luigi
Pirandello. A jornalista Luciana Barbio, em reportagem para
o jornal O Globo do dia 06/12/2016 descreve, de forma precisa
e sucinta, o seu estilo dramatúrgico: “Sua obra trata
preponderantemente do que pode ser verdade ou mentira.
Explorar o tema da transitoriedade do ser: somos vários eus,
eternamente em mutação”.
Martha Ribeiro, em artigo sobre Pirandello, explica que:

o teatro passa a atrair Pirandello porque é o lugar


onde o texto escrito pode se transformar em ação,
onde as verdades – não ‘a’ verdade – encontram
voz e expressão: nem ao lado do autor, nem ao
lado do ator (e muito menos ao lado do
encenador) (RIBEIRO, 2010, p. 143).
Refletindo sobre a realidade em que o homem se
comporta sob influência do imaginário, que consiste em um
sistema de representação coletiva vivenciado entre os
personagens, podemos destacar que o simbólico está
entrelaçado de sentimentos de dominação, autoritarismo,
poder.
Assim, o texto trará aspectos relevantes para que
possamos refletir sobre o imaginário, que se reconstrói ou
transforma o real, rompendo fronteiras do tempo e do espaço
em sua lógica própria.
Ensinam Laplantine e Trindade (2003, p. 27) que “o
processo do imaginário constitui-se da relação entre sujeito e
o objeto que percorre desde o real, que parece ao sujeito
figurado em imagens, até a representação possível do real”.
O filme Cidadão Kane inicia mostrando o magnata da
comunicação pronunciando a palavra Rosebud em seu leito de
morte. Nota-se que este é o único momento do filme em que
o personagem principal efetivamente aparece. A partir desta
cena, o Sr. Kane passa a ser mostrado de acordo com o ponto
de vista (lembranças, idealizações e necessidades) dos demais
personagens entrevistados pelo jornalista. Detalhe importante
é a visão do outrora magnata que Orson Welles quis deixar
no imaginário do público.
188 Cidadão Kane e Boca de Ouro...
Entretanto, há similaridades com a peça de Nelson
Rodrigues. Em Boca de Ouro, o único momento em que o
personagem-título aparece através de si próprio é no início
da trama, quando exige que o dentista arranque todos os seus
dentes (mesmo os sadios) para implantar dentes de ouro. Em
todas as outras vezes que Boca de Ouro aparece, este é
retratado do ponto de vista de Dona Guigui, que apresenta
três versões diferentes da personalidade dele. Conforme
mudam o estado de espírito de Dona Guigui e o sentimento
desta em relação ao falecido, muda, também, sua versão da
história.
Tanto em Cidadão Kane como em Boca de Ouro, as
personagens entrevistadas pelos jornalistas são figuras
retratadas como em decadência, que pertenceram ao passado
das personagens centrais. Samuel Paiva observa, ainda, que:
À imprensa cabe reconstituir o mito de Boca de
Ouro, trazendo a público suas histórias
particulares a partir do relato daqueles que
conviveram com o famoso bicheiro (numa
estratégia similar àquela verificável em Cidadão
Kane (1941), filme de Orson Welles, no qual um
jornalista, para reconstituir o mistério em torno
de Kane, o magnata da imprensa, procura as
pessoas que conviveram com ele, costurando,
dessa forma, toda a narrativa). Acompanhando
os depoimentos à imprensa, o espectador, tanto
da peça, como do filme, tem acesso à personagem
do Boca de Ouro. O interessante, aqui, será, então,
perceber os investimentos empreendidos pelos
entrevistados sobre a imagem mitológica do
bicheiro, para se perceber os elementos em jogo
na elaboração do seu mito (PAIVA, 2000, p. 5).
Há outras semelhanças em ambas as histórias, a relação
familiar na infância dos personagens é uma delas. Kane é
retirado do convívio da mãe e do pai ainda criança. A mãe
opta por matriculá-lo em colégios bem-conceituados e longe
da família para, ao atingir a maioridade, estar preparado para
gerir a fortuna herdada. Sobre essa relação familiar,
Froemming e Ribeiro dizem:
Arte, Cultura e Imaginário 189
Podemos supor, desde as cenas iniciais, que a mãe
de Kane representou este objeto amado e, ao mesmo
tempo, odiado, já que ela o abandonou ainda criança.
Esta ambivalência se perpetua pela vida afora e Kane
passa a tratar mal todos com quem se relaciona, como
o amigo, as esposas, o próprio tutor, repetindo, e,
poderíamos até dizer, provocando a situação de
abandono, a partir dessa ambivalência
(FROEMING; RIBEIRO, 2007, p. 397).
Essa ligação de Kane com a mãe fica evidente no filme
durante a seguinte fala do personagem Leland:
– Casou-se por amor. Amor! Por isso fez tudo...
Por isso entrou na política! Queria que os votantes
o amassem também. O que ele queria da vida era
amor. Essa é sua história. Como perdeu, não podia
retribuir, por não tê-lo. Amava a si próprio, é
claro... E profundamente. E a mãe, sempre a amou
(Cidadão Kane, Orson Welles, 1941).
Boca de Ouro também cresce sem a presença dos pais.
Não conheceu sua mãe, apenas ouvia os outros dizendo que
nascera em uma pia de banheiro de gafieira. No entanto, tinha
uma imagem idealizada da mãe: chamava-a de “virgem de
ouro”.
É comum o homem guardar alguma mágoa do
passado. De certa maneira, responsabiliza decisões (boas ou
más) do presente a questões antigas da vida particular,
principalmente se esse passado o fez sofrer.
Sobre isso Hélio Pelegrino, em 1961, publicou, em O
Jornal, uma crítica sobre a peça, da qual destacamos:
Boca de Ouro, nascido de mãe pândega, parido
num reservado de gafieira, tendo perdido o
paraíso uterino para defrontar-se com uma
realidade hostil e inóspita, sentiu-se condenado à
condição de excremento. Seu primeiro berço foi
a pia da gafieira, onde a mãe, aberta a torneira, o
abandonou num batismo cr uel e pagão
(RODRIGUES, 2004, p. 285).
190 Cidadão Kane e Boca de Ouro...
Nesse sentido, no filme Cidadão Kane, pelo viés da
Teoria do Conhecimento, destacamos que a personagem não
teve infância dentro de um convívio familiar. Passou boa parte
da sua infância longe dos pais, especificamente sem o afeto
materno.
Dentro do mesmo contexto, o personagem Kane
obtinha uma única verdade. Lembremos, porém, que a verdade
não se resume apenas a um único objeto, mas à própria
compreensão do pensamento do indivíduo. Não podemos
dizer qual é a verdade. Sabemos que depende de como se
forma o juízo do sujeito. Algo considerado “verdade” por
uma pessoa pode ser não o ser por outra. Sartre (2010) diz
que, por meio da imaginação, podemos acreditar em um
mundo melhor por meio de nossas ações.
As duas personagens – Kane e Boca – assemelham-
se na origem de famílias pobres e que conquistaram poder,
podemos dizer que Kane, por meio do American way of life
(“jeito americano de viver”), e Boca, pela criminalidade
presente no Brasil.
No Brasil, o chamado “poder paralelo”, muitas vezes,
tem mais apreço popular do que o poder oficial, pois acaba
sendo a única forma de ascender socialmente. Sobre isso, Da
Matta conclui que:
No Brasil, como em outras sociedades
hierarquizantes, o personagem – de modo inverso
– nunca deve ser o homem comum, aquele que
na dramatização representa a si mesmo por meio
de sua rotina achatada e desinteressante (DA
MATA, 1997, p. 257).
Na rubrica inicial da peça, o autor indica:

“Boca de ouro”, banqueiro de bicho, em


Madureira, é relativamente moço e transmite uma
sensação de plenitude vital. Homem astuto,
sensual e cruel. Mas como é uma figura que vai,
aos poucos, entrando na mitologia suburbana,
pode ser encarnado por dois ou três intérpretes,
como se tivesse muitas caras e muitas almas. Por
Arte, Cultura e Imaginário 191
outras palavras: diferentes tipos para diferentes
comportamentos do mesmo personagem
(RODRIGUES, 2004, p. 195).
Essa possibilidade de a personagem ser representada
por mais de um ator é uma indicação de que ela teria
personalidades diferentes, dependendo da situação vivenciada,
ou que poderia ser descrita de acordo com a visão de mundo
de quem a narra. Para Hall (2006, p.13), “o sujeito assume
identidades diferentes em diferentes momentos, identidades
que não são unificadas ao redor de um ‘’eu” coerente.
Ainda sobre o sujeito, lembremos a lição de Hall acerca
da identidade do sujeito pós-moderno, segundo a qual:
[...] à medida que os sistemas de significação e
representação cultural se multiplicam, somos
confrontados por uma multiplicidade
desconcertante e cambiante de identidades
possíveis, com cada uma das quais poderíamos
nos identificar – ao menos temporariamente
(HALL, 2006, p. 13).
Outrossim, a Teoria do Conhecimento explica como
a realidade pode ser criada por cada um. A presença da Teoria
do Conhecimento estudada por Hessen é bem presente nas
entrevistas das duas obras, se relacionados os objetos (Kane
e Boca de Ouro) aos sujeitos entrevistados para a confecção
do trabalho a que alude o enredo:
Visto a partir do objeto, o conhecimento aparece
como um alastramento, no sujeito, das
determinações do objeto. Há uma transcendência
do objeto na esfera do sujeito correspondendo à
transcendência do sujeito na esfera do objeto.
Ambas são apenas aspectos diferentes do mesmo
ato. Neste ato, porém, o objeto tem
preponderância sobre o sujeito. O objeto é o
deter minante, o sujeito é o deter minado
(HESSEN, 1999, pp. 20-21).
192 Cidadão Kane e Boca de Ouro...
Nem é preciso esforço para notar que o objeto é
deveras determinante, na medida em que levou autores de
diferentes épocas e culturas a extrair elementos significativos
para a elaboração de seus respectivos trabalhos.
A fim de checar a veracidade dos relatos, Hessen(1999)
propõe o que chama de “verdade do conhecimento”, aferida
pela concordância da “figura” com o objeto, e mais: seu
conteúdo é relacional porque há o relacionamento do
conteúdo do pensamento da “figura” com o objeto.
Do mesmo modo, estudos da psicologia também nos
ajudam a compreender por que as personagens centrais das
obras podem ser descritas de maneiras diferentes. A esse
respeito, Porto Martins e Teixeira explicam:
A característica de ser um mito suburbano
encarnado por dois ou três personagens, como
se tivesse muitas caras e muitas almas, é ilustrativa
do mecanismo de projeção. Ele só existe por meio
do olhar e do discurso dos outros personagens.
Ou seja, por meio da projeção daqueles que, ao
falarem de ‘Boca de Ouro’, falam também de si, e
ao criarem a sua imagem mítica, revelam-se nos
seus sonhos de poder megalômano e despotismo
narcisista (MARTINS; TEIXEIRA, 2018, p. 832).
Isso fica evidente na fala da personagem D. Guigui
ao jornalista Caveirinha, ao saber que Boca de Ouro tinha
morrido, tentando mudar o seu depoimento anterior. Ela diz:
“O “Boca” tinha, até tinha uma pinta, Lorde! Mas voltando:
eu disse aqueles troços, mas te juro, foi a maldita vaidade...”
(RODRIGUES, 2004, p. 219).
Na casa de Kane, a Mansão Xanadu, há a presença de
acúmulo de objetos, principalmente obras de arte. Essa foi a
maneira de Welles mostrar como o personagem lida com os
seus relacionamentos: fria e imponentemente, construindo
um castelo em um reino particular.
A casa de Boca de Ouro não é descrita em detalhes,
mas uma semelhança está presente: a forma de ostentação de
poder. Como Boca não tem uma educação voltada às artes, é
por meio de dinheiro em espécie e joias que ele evidencia sua
Arte, Cultura e Imaginário 193
riqueza. Grandes quantias são exibidas a todos que frequentam
a casa. Lá são realizadas muitas negociações ilícitas da
personagem, ajuda aos necessitados em troca de futuros apoios
e até mesmo assassinatos por causa de dinheiro. Desta forma,
o bicheiro, que em dois momentos da peça é chamado de
“deus asteca”, autoafirma-se, às vezes ajudando os pobres, às
vezes tirando vidas, assim como sua visão de Deus. Sobre
essa dualidade de Boca, Motta pondera:
Nesse sentido, o personagem rodrigueano “Boca
de Ouro” encaixa-se perfeitamente no típico anti-
herói, pois: “[...] é um herói de caráter
contraditório, bom e mau, perverso e protetor,
vítima do sistema, rebelde e revolucionário, cínico
e cruel, que se debate entre a comunhão e a
oposição ao mundo” (MOTTA, 2011, p. 201).
Apesar de viverem em realidades, tempos e espaços
distintos, ao observarmos as características das personagens
Kane e Boca pode-se estabelecer, ao menos, alguma similitude
como, por exemplo, ambos serem proprietários de grandes
fortunas e esbanjarem suas riquezas, usando-as para comprar
tudo e todos.
O próprio escritor Nelson Rodrigues trata sobre o
relacionamento humano entre o eu e o outro, trazendo
questões relacionadas à classe social, moralidade, ética e
política que, de alguma forma, se torna real, ou, no
pensamento de François Laplantine e Liana Trindade, “o
imaginário em liberdade que rompe os limites do real” (2003).
Rodrigues foi preciso quando expressou que “o homem pode
viver sem amor e não pode viver sem ódio. Como precisa
odiar alguém, e não tem ninguém para odiar, odeia-se a si
mesmo.” (RODRIGUES, 1997, p. 122).
De outra forma, examinando o comportamento do
sujeito Kane, é necessário consignar que o descontrole da
compra de objetos traz uma ideia de preenchimento, ou seja,
de que algo faltava, existia um vazio que necessitava ser
preenchido. Assim, a personagem demonstra que teve várias
desilusões na sua vida, que não aparecem com nitidez, mas
que são reconstruídas pelo imaginário, que rompe fronteiras
de tempo e espaço (LAPLANTINE; TRINDADE, 2003).
194 Cidadão Kane e Boca de Ouro...
No final de ambas as obras, as personagens centrais
têm os seus objetos referenciais de identidade, simbolicamente
distanciados de si, tornando-se sem valor após a morte. Em
Kane, Rosebud é o nome da marca do trenó com o qual brincava
quando criança, uma possível alusão à única fase de sua vida
em que foi verdadeiramente feliz. No entanto, destituído de
qualquer elemento evidenciado no enredo, ao menos quanto
ao valor dado por Kane, o trenó acaba queimado como um
lixo qualquer da mansão Xanadu.
Já em Boca de Ouro, os dentes do personagem-título
são roubados e ele é enterrado sem a dentadura. Sem a coroa
de dentes, Boca deixa de ser “Rei do crime” e o seu corpo
passa ser igual ao de vários pobres de uma nação de banguelas.
“Mas o povo carioca é formidável, de amargar esse povo! E
de uma irreverência deliciosa! Ali, na fila já estão fazendo
piadas com o pobre defunto. Um já disse é o Boca de Ouro!
De araque!” (RODRIGUES, 2004, p. 257).
Para concluir, a possibilidade de leitura das obras a
partir da Teoria do Conhecimento envolve a relação entre
sujeito e objeto. Os jornalistas são os sujeitos pesquisando o
objeto Kane e o objeto Boca de Ouro. Eles procuraram
diversas fontes (os entrevistados) para conseguir uma
descrição exata do objeto. Contudo, como o próprio texto de
Hessen descreve: “O conceito de verdade é um conceito
relacional. [...] Uma representação inadequada, por sua vez,
pode ser verdadeira, pois, apesar de incompleta, pode ser
correta se as características que contém existirem efetivamente
no objeto”.
Em ambas as obras os aspectos emocionais de cada
entrevistado fazem surgir uma nova verdade. O jornalista que
ouviu os relatos e escreveu a reportagem também transforma os
fatos de acordo com o seu entendimento e seu imaginário.
Além disso, de certa maneira, tanto Cidadão Kane como
Boca de Ouro fazem uma crítica à imprensa sensacionalista. Apesar
de não serem apresentados os leitores dos textos escritos pelos
personagens jornalistas, podemos dizer que, se fossem, surgiriam
ainda outras verdades. Um novo conhecimento de acordo com
a vivência e interpretação do leitor.
Por meio das personagens protagonistas do filme e
da peça, mostra-se ao público a imagem de pessoas atribuídas
de qualidades físicas e morais, reais ou não, mas que, no mundo
do imaginário, são representativas, cabendo a cada um
Arte, Cultura e Imaginário 195
interpretar o que realmente é certo ou errado, verdadeiro ou
falso. Cabe transcrever uma importante contribuição de
Trindade: “A ciência como a arte, aliás, não busca copiar a
realidade e descrever o mundo tal como é, mas elaborar
sistemas simbólicos para “apreciá-lo” (2003, p. 27). Tal era o
propósito de ambos os autores ao trabalhar o imaginário e
sua rede de símbolos, construindo personalidades fortes cuja
identidade trouxe importantes contribuições para o debate
acadêmico e, principalmente, na arte a que se propuseram: o
cinema e o teatro.
Por fim, insta esclarecer que não só a linguagem
verbal, mas, também, a não-verbal, das personagens nos
trazem diversas interpretações, tais como a maneira de vestir,
de falar, de agir e de comportar-se. Segundo Foster, o homem
livre, que vivia num mundo imaginário de felicidade e poder,
utilizava-se de símbolos que, de alguma forma, traziam uma
representação.

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Contos de fadas e a Base Nacional Comum
Curricular: reflexões sobre a formação da
criança1
Luana Grohe Canto2
Maria Auxiliadora Fontana Baseio3

A primeira etapa da educação básica é decisiva para a


formação pessoal e social da criança, como indivíduo criativo,
crítico e cooperativo. As instituições de educação pré-escolar
devem proporcionar momentos que sejam diversificados, que
enriqueçam e aumentem as possibilidades de a criança adquirir
competências e saberes que a acompanharão ao longo de toda
a vida. É ainda responsabilidade da instituição escolar e
também dos educadores da primeira infância promover um
contato direto com a literatura.
Na primeira infância, as aprendizagens ocorrem por
meio da brincadeira e das interações. A Base Nacional Comum
Curricular3 propõe que a criança, nesta etapa do ensino, tenha
condições de aprender e de se desenvolver a partir das

1
Texto publicado na Revista Uniítalo, v. 11, n. 1, pp. 65-85, jan. 2021.
2
Mestranda no Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas da
Universidade Santo Amaro – Unisa. Pós-graduada em Arte-educação pela
Faculdade Paulista de Artes. Graduada em Administração e Pedagogia pela
Universidade Santo Amaro. Docente e coordenadora adjunta do curso
Pedagogia Ead da Universidade Santo Amaro.
3
Pós-doutora em Estudos Portugueses e Lusófonos no Instituto de Letras e
Ciências Humanas da Universidade do Minho, Braga, Portugal; Doutora em
Letras – Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa - pela
Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil; Professora do Mestrado
Interdisciplinar em Ciências Humanas – UNISA-SP, Brasil e da Faculdade
Rudolf Steiner – SP, Brasil.
4
A Base Nacional Comum Curricular, definida na lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/1996), é um documento oficial
que norteia os currículos e propostas pedagógicas dos sistemas e rede ensino
do Brasil. O documento correspondente às etapas educação infantil e ensino
fundamental foi homologado em 2017 e passou a sem implementado em 2018.
198 Contos de fadas e a Base Nacional Comum Curricular...

experiências, caracterizadas pelas ações e interações


vivenciadas com os indivíduos de seu convívio. Será que, ao
narrar contos de fadas no ambiente educacional, é possível
promover o desenvolvimento dos campos de experiências
propostos pela Base Nacional Comum Curricular? De que
maneira essas narrativas contribuem para a formação da
criança?
O objetivo deste estudo é analisar como os contos de
fadas, ao serem narrados na primeira infância, podem
promover experiências que permitam que a criança faça
descobertas sobre si mesma e sobre os outros, considerando
as propostas dos campos de experiências estabelecidos pelo
documento legal analisado.
Neste capítulo, explicitamos discussões de cunho
teórico-metodológico que articulam os estudos do imaginário,
na perspectiva de Carl Jung e Von Franz, relacionando-os
com os campos de experiências apontados nas diretrizes da
Base Nacional Comum Curricular, a fim de investigar as
contribuições acerca da narração de contos de fadas para a
formação da criança.

Contos de fadas, imaginário e formação da


criança

Primeiramente, é importante fundamentar um


conceito de literatura, pois muitos autores concebem essa arte
apenas em sua forma escrita. Sabemos que os contos de fadas,
embora hoje sejam reconhecidos em livros, originalmente
tiveram uma matriz oral. Nesse sentido, compartilhamos com
Antonio Candido a compreensão tratada no livro Vários escritos:
Chamarei de literatura, da maneira mais ampla
possível, todas as criações de toque poético,
ficcional ou dramático em todos os níveis de uma
sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o
que chamamos folclore, lenda, chiste, até as
Arte, Cultura e Imaginário 199
formas mais complexas e difíceis da produção
escrita das grandes civilizações (CANDIDO,
2012, pp. 174-175).

E continua o autor, literatura significa:

Um certo tipo de função psicológica [...]. A


produção e fruição desta se baseiam numa espécie
de necessidade universal de ficção e de fantasia,
que de certo é coextensiva ao homem, pois
aparece invariavelmente em sua vida, como o
indivíduo e como grupo, ao lado da satisfação das
necessidades mais elementares. E isso ocorre no
primitivo e no civilizado, na criança e no adulto,
no instruído e no analfabeto (CANDIDO, 2012,
p. 82).
Conforme apresentado por Candido, a literatura é
acolhida tanto no aspecto da oralidade, quanto da escrita, e
pode ser analisada na perspectiva do imaginário associado ao
âmbito psicológico.
Os contos de fadas, segundo Nelly Novaes Coelho
(2003), são histórias de origem celta que valorizam questões
espirituais, éticas e existenciais e que têm, como propósito,
compreender os fenômenos que estão relacionados à condição
da vida humana e ao conhecimento interior do indivíduo.
Complementando, Nelly Novaes Coelho (2003, p. 21)
descreve: “Os contos de fadas fazem parte desses livros
eternos que os séculos não conseguem destruir e que, a cada
geração, são redescobertos e voltam a encantar leitores ou
ouvintes de todas as idades”. São narrativas que possuem
enredos repletos de mitos, arquétipos e símbolos, cujas
representações podem ser estudadas, entre outras perspectivas,
por meio da psicologia analítica junguiana, que constitui nossa
proposta.
A partir do estudo sobre os contos de fadas, Jung afirma:
Os contos de fadas, do mesmo modo que os
sonhos, são representações de acontecimentos
psíquicos. Mas enquanto os sonhos apresentam-
200 Contos de fadas e a Base Nacional Comum Curricular...
se sobrecarregados de fatos de natureza pessoal,
os contos de fadas encenam dramas da alma, com
materiais pertencentes em comum a todos os
homens. [...] Mitos e contos de fadas dão
expressão a processos inconscientes e, ao escutá-
los, permitimos que esses processos revivam e
tornem-se atuantes, restabelecendo, assim, a
conexão entre consciente e inconsciente (JUNG,
2013, p. 257).
Em consonância, Von Franz (1981 p. 15) aponta que
“os contos de fadas são a expressão mais pura e mais simples
dos processos psíquicos do inconsciente coletivo [...] eles
representam os arquétipos na sua forma mais simples, plena
e concisa”. Ou seja, os contos, além de entreter, refletem vários
tipos de questões, entre elas as existenciais e as sociais
produzidas e reproduzidas pelo ser humano.
No livro A interpretação dos contos de fadas, a teórica
destaca que é importante observar, em uma história, os
seguintes pontos: lugar, tempo, personagens, problemática,
desenvolvimento da trama e o desfecho da narrativa. A partir
dessas observações, é possível analisar as imagens arquetípicas
e, consequentemente, o processo de manifestação dessas
imagens ancestrais presentes no inconsciente coletivo. Sobre
isso, a autora faz a seguinte consideração:
[...] todos os contos de fadas tentam descrever
apenas um fato psíquico, mas este fato é tão
complexo, difícil e distante de se representar em
seus diferentes aspectos, que centenas de contos
e milhares de versões (com variações musicais),
são necessárias até que esse fato desconhecido
penetre na consciência, sem que isso consiga
exaurir o tema. Este fato desconhecido é o que
Jung chama de SELF, que é a totalidade psíquica
de um indivíduo e também, paradoxalmente, o
centro regulador do inconsciente coletivo. Cada
indivíduo e cada nação têm suas próprias formas
de experienciar esta realidade psíquica (FRANZ,
1981, p. 16).
Arte, Cultura e Imaginário 201
Para entender o significado de mitos, símbolos e
arquétipos presentes nos contos de fadas, auxilia-nos as ideias
de Nelly Novaes Coelho (2003, p. 85) ao afirmar: “mitos
nascem na esfera do sagrado; arquétipos correspondem à
esfera humana e símbolos pertencem à esfera da linguagem,
pela qual mitos e arquétipos são nomeados e passam a existir
como verdade”. Mitos e arquétipos compõem a matéria-prima
das narrativas dos contos, ou seja, as representações e os
símbolos incorporam a linguagem a ser expressa, tornando
as histórias comunicáveis e significativas para o ouvinte ou
leitor.
As imagens míticas, engendradas nos contos por meio
de uma linguagem simbólica, podem expressar forças da
natureza (sol, chuvas, tempestades, noite), nascimentos,
doenças, mortes, circunscrevendo situações existenciais
associadas à esfera do sagrado. Nelly Novaes Coelho (2003,
p.88) afirma: “o Mito (a criação literária), construído pela
imaginação, responde pela zona obscura e enigmática do
mundo e da condição humana, zona inabarcável pela
inteligência”.
Os arquétipos representam os impulsos irracionais que
emergem do inconsciente, mobilizando as atitudes e o
comportamento humano. Para Jung, “os arquétipos são os
elementos inabaláveis do inconsciente, mas mudam
constantemente de forma” (2002, p. 179) e, para von Franz
(1981, p. 17), “um arquétipo é um impulso psíquico específico
que produz seus efeitos como um único raio de irradiação e,
ao mesmo tempo, um campo magnético expandindo-se em
todas as direções”.
Referindo-se aos arquétipos, representados por figuras
ou personagens, Nelly Novaes Coelho (2003) acrescenta:
Limitando-nos à esfera da literatura, podemos
definir arquétipos como representações das grandes
forças ou impulsos da alma humana: o instinto de
sobrevivência, o medo, o amor, o ódio, o ciúme,
os desejos, o sentimento do dever, a ânsia de
imortalidade, a vontade de domínio, a coragem
ou heroísmo, o narcisismo, a covardia, a inveja, o
egoísmo, a luxúria, a fé (necessidade de crer num
202 Contos de fadas e a Base Nacional Comum Curricular...
Ser Superior ou num Absoluto), a profunda
ligação com a Mãe (o Feminino, a Anima), o
respeito ou temor ao Pai (o Masculino, o Animus),
a rivalidade entre irmãos[...] (COELHO, 2003, p.
92).
Os símbolos associados aos mitos e arquétipos dão
origem à linguagem simbólica, ou seja, uma forma de
comunicação por meio de figuras ou imagens, que se
expressam por meio do imaginário. Nessa perspectiva, Coelho
(2003) relata:

Foi pela transformação dos mitos e arquétipos


em linguagem simbólica, pois sem esta eles não
existiriam, que a Sabedoria da vida neles contida,
pôde difundir por todo o mundo, transformada
em contos (de fadas ou maravilhosos), em novelas
de cavalaria, lais, romances, cantigas[…]
(COELHO, 2003, p. 94).
O fundo arquetípico presente nos contos representa
sentimentos complexos e organizados, passível de
compreensão pelas crianças. Os arquétipos presentes nos
contos mostram que é natural ter sentimentos bons e
pensamentos destrutivos. Por meio dos enredos das histórias
e seus respectivos personagens, é possível exteriorizar o que
se passa no interior do indivíduo, possibilitando o
autoconhecimento, promovendo uma solução de conflitos
internos e proporcionando melhor comunicação com o
mundo.
Reis, rainhas, príncipes, fadas bruxas, duendes,
objetos mágicos, profecias, obstáculos, ameaças,
auxiliares, provas quase impossíveis de serem
vencidas são símbolos de situações arquetípicas:
vivências éticas, sociais, existenciais etc. que vêm
sendo revividas desde a origem dos tempos, sob
diferentes formas, em virtude do desejo de
autorealização do eu em relação ao outro (ao
mundo) que impulsiona o ser humano
(COELHO, 2003, p. 117).
Arte, Cultura e Imaginário 203
Os contos de fadas perderão o valor para a criança se
os significados não forem construídos por ela. Afinal, é por
meio dos contos, em razão da linguagem simbólica, que ela
começa a entender o sentido da sua existência e fazer relações
com as suas próprias vivências. Com o amadurecimento, ela
passa a compreender que as narrativas promovem um diálogo
com a sua realidade e com os respectivos valores presentes
no seu meio social.
Os símbolos e arquétipos presentes nestas narrativas
ajudam a criança nos processos de descoberta e de
conhecimento de si, além de incentivá-la a nunca perder a
esperança, ter coragem, enfrentar os medos e inseguranças,
ter atitudes de solidariedade, de bondade, de amor e de
compreensão de que o bem pode vencer o mal.
Von Franz afirma:
Quando se conta histórias de fadas para as crianças,
elas se identificam ingênua e imediatamente e
captam toda a atmosfera e sentimento que a história
contém. Se a história do patinho é contada, todas
as crianças que têm complexo de inferioridade
esperam que no fim elas também se tornem uma
princesa. Isso funciona exatamente como deveria
ser; o conto oferece um modelo para a vida, um
modelo vivificador e encorajador que permanece
no inconsciente contendo todas as possibilidades
positivas da vida (FRANZ, 1981, p. 74).
As narrativas abordam o processo de transformação,
de mudança, de encarar medos e desafios. A criança também
passa pelo mesmo processo no decorrer de sua vida. Para
Bettelheim (1996), embora, situado em outra abordagem
teórica, os contos proporcionam à criança uma maneira de
colocar ordem no caos interno de seus pensamentos e
sentimentos, fazendo com que ela se conheça e se entenda
melhor. Por isso, essas narrativas, por meio do imaginário,
provocam na criança reflexões sobre o seu cotidiano e auxiliam
no enfrentamento de suas dificuldades e fragilidades.
Questões relacionadas a valores éticos e morais podem
ser despertadas por meio dos contos de fadas. É importante
trabalhar estes valores com as crianças da primeira infância,
204 Contos de fadas e a Base Nacional Comum Curricular...
por se tratar de uma fase em que a construção da personalidade
está em processo de formação e estes aspectos, ao serem
trabalhados por meio dos contos de fadas, podem contribuir
para o estímulo da conduta ética e da valorização da condição
humana.
As narrativas dos contos de fadas promovem uma
reflexão sobre a vida, oferecendo à criança possibilidades de
resolução de seus conflitos internos, de suas angústias,
impasses, criando e recriando situações que a auxiliam na
realização de seus desejos e objetivos. Coelho (2003, p. 118)
afirma:
[...] é simplesmente fascinante o caminhar em
meio a essa floresta de arquétipos que são os
contos de fadas e descobrir os mil e um
significados do rei, de heróis, princesas, sapos e
rãs encantados, cabelos, anéis, madrastas, ilhas
gigantes e anões, fadas […].
A linguagem utilizada nessas narrativas é permeada
pelo maravilhoso, de maneira que o sobrenatural se revela
aceito com naturalidade pela criança. Habitualmente, as tramas
iniciam com as seguintes frases “Era uma vez”, “Certa vez”,
“Conta uma antiga lenda”, “Num certo castelo”, que
convidam a abandonar o mundo concreto para ingressar no
imaginário, permitindo, assim, que a criança faça parte da
história como se estivesse vivenciando as aventuras,
despertando seus sentidos e emoções, além da motivação de
ouvir, ler e reler as narrativas. Sobre este pensamento,
Dieckman afirma:
“Era uma vez”. Assim começam geralmente para
nós a maioria dos contos de fada, e então eles
nos levam de volta a tempo distante e desde muito
passado, no qual acontecem coisas extraordinárias,
impossíveis para o pensamento racional, e aí
existem monstros, bruxas, fadas e mágicos ou
animais falantes (DIECKMAN, 1986, p. 14).
Arte, Cultura e Imaginário 205
Tudo isso dialoga com a forma simbólica de linguagem
e de compreensão da vida que a criança apresenta. Para ela, o
mundo encantado, experienciado nas histórias, permite que
ela faça uma busca do seu interior ao mesmo tempo em que
estabelece contato com o meio social em que vive.
Os contos, também, dimensionam valores sociais e
morais, principalmente do bem e do mal. Essa abordagem é
de extrema importância para a formação da criança, tanto de
seu caráter e personalidade, quanto de sua sociabilidade, pois
está associada a comportamentos e atitudes que poderão
impactar, de forma positiva ou negativa, a compreensão de si
e de sua convivência social.
Os contos de fadas reinscrevem, com a linguagem do
imaginário, a luta contra os obstáculos da existência humana.
As dificuldades são inerentes à vida, contudo lutar para superá-
las, sem ferir ao próximo é a maior vitória que podemos
alcançar. Esta perspectiva está ligada à construção de valores
morais e éticos, que são fundamentais para o desenvolvimento
social da criança. O conceito de ética5 aqui apresentado está
associado aos valores morais constituídos pelo homem e seu
comportamento social em relação ao próximo, diante da
sociedade em que vive.
Ainda no âmbito da educação, os contos, além de
entreter as crianças, podem orientá-las e educá-las. Eles
exercem papel importante na sua formação, pois, conforme
ela cresce, descobre novas perspectivas e isto lhe proporciona
a certeza de que realmente amadureceu em compreensão, já
que a mesma história passa a revelar-lhe uma série de fatos
novos, fazendo-a refletir sobre os medos, angústias e
compreender que é possível superar os obstáculos e vencer
as incertezas, como os personagens das histórias. Em
consonância, Von Franz afirma: “O estudo dos contos de
fadas é essencial para nós, pois eles delineiam a base humana
universal”. (1981, p. 38). Segundo a autora, por meio dessas
narrativas, é possível analisar entrar em contato com estruturas

5
Segundo a obra aristotélica Ética a Nicômaco, ética é a arte de o indivíduo
saber viver na dimensão social, agregando valores e respeitando o próximo
(1991).
206 Contos de fadas e a Base Nacional Comum Curricular...
psíquicas básicas humanas, que estão presentes em pessoas
de qualquer parte do mundo e em qualquer tempo. Para ela:
“É uma linguagem que todos entendem”.
Entretanto, é importante salientar que a literatura
oferece essa possibilidade de reflexão, aprendizagem e de
vivência dessa fantasia, porém, para que os sonhos se
concretizem na vida real, é necessário ter atitudes e
comportamentos que façam acontecer. Com Nelly Novaes
Coelho, reiteramos a seguinte afirmação:
É simplesmente fascinante o caminhar em meio
a essa floresta de arquétipos que são os contos de
fadas e descobrir os mil e um significados do rei,
de heróis, princesas, sapos e rãs encantados,
cabelos, anéis, madrastas, ilhas, gigantes e anões,
fadas, bruxas, rainhas estéreis, concepções mágicas
etc. Mas não podemos esquecer que na vida real
não existem fadas nem madrinhas que venham
realizar por magia aquilo que não temos vontade
de fazer (COELHO, 2003, p. 118).
Ou seja, a literatura promove, por meio do imaginário,
a formação de consciência de mundo e funciona como uma
inspiração para compreender a experiência humana, mas é
de suma importância que o indivíduo, ao vivenciá-lo,
desenvolva atitudes na vida pessoal e social.
Desse modo, os contos de fadas propiciam à criança
experiências importantes por meio da linguagem simbólica
engendrada nas teias do imaginário. Além de proporcionar
uma ampliação do repertório de conhecimentos, oportuniza
sua formação para a vida individual e em sociedade.

Contos de fadas e educação: reflexões em torno


da Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

No ambiente educativo, a contação de histórias não é


vista apenas como recurso recreativo. Trata-se de uma
atividade valiosa pedagogicamente e, quando bem utilizada e
Arte, Cultura e Imaginário 207
trabalhada, pode ser muito proveitosa, proporcionando à
criança múltiplas aprendizagens.
Ao contar mos um conto é como se
estabelecêssemos uma ponte entre as imagens do
conto, as nossas de contador e as do mundo interior
da criança (BONAVENTURE, 1992, p. 19).
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Infantil, documento oficial vigente no Brasil a partir 2010,
abordam eixos norteadores para a construção desse nível de
ensino. Entre os objetivos mencionados estão as condições
que “promovam o relacionamento e a interação das crianças
com diversificadas manifestações de música, artes plásticas e
gráficas, cinema, fotografia, dança, teatro, poesia e literatura”
(BRASIL, 2010, p. 26).
Também é mencionada, neste documento, a
capacidade de criar condições que “possibilitem às crianças
experiências de narrativas, de apreciação e interação com a
linguagem oral e escrita, e convívio com diferentes suportes
e gêneros textuais orais e escritos” (BRASIL, 2010, p. 26).
Com isso, é possível observar que as diretrizes curriculares
proporcionam orientações que direcionam o trabalho do
professor de maneira que cabe a ele relacionar a literatura
infantil com conteúdos, recursos pedagógicos e vivências do
cotidiano do aluno.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é o
documento oficial mais recente que define as diretrizes para
os currículos escolares. Considerando que as aprendizagens
e o desenvolvimento das crianças se dão por meio das
interações e brincadeiras, pode-se compreender que a literatura
se apresenta como importante conhecimento para desenvolver
métodos e vivências que envolvam os alunos no ambiente
escolar.
A organização curricular da Educação Infantil na
BNCC foi estruturada em cinco campos de experiências, que
asseguram à criança os direitos de conviver, brincar, participar,
explorar, expressar-se e conhecer-se.
Os campos de experiências propostos pela BNCC são:
Eu, o outro e o nós; Corpo, gestos e movimentos; Traços,
208 Contos de fadas e a Base Nacional Comum Curricular...
sons, cores e formas; Escuta, fala, pensamento e imaginação;
Espaços, tempos, quantidades, relações e transformações. Eles
se formam a partir das vivências e dos saberes vividos no
cotidiano da criança.
A seguir, serão apresentados os objetivos de cada
campo de experiência:
Eu, o outro e o nós: propõe vivências que permitam
que a criança desenvolva a construção da própria identidade
e a construção das relações com os seus pares, além de ampliar
a possibilidade de se conhecer e conhecer o outro, respeitando
as diferenças.
Corpo, gestos e movimentos: possibilita a exploração
do espaço, dos sentidos, dos movimentos dos corporais que
produzem conhecimento e experiências sociais e culturais.
Traços, sons, cores e formas: proporciona o contato
com as experiências estéticas, permitindo que a criança
vivencie expressões e linguagens.
Escuta, fala, pensamento e imaginação: promove
experiências de comunicação, explorando o uso da linguagem
oral e escrita. Neste campo, o uso da literatura como recurso
pedagógico se faz muito presente.
Espaços, tempos, quantidades, relações e
transformações: permite que a criança explore o mundo físico
externo e o mundo sociocultural, proporcionando a ela o
estímulo da curiosidade e a experiência de explorar o mundo
ao seu redor.
Embora a BNCC proponha a prática da literatura
apenas no campo de experiência denominado “Escuta, fala,
pensamento e imaginação”, é possível verificar que os outros
campos também apresentam à criança, possibilidades de
aprendizados e desenvolvimento de experiências ao ouvir essas
narrativas, conforme veremos a seguir:
No que se refere ao campo “Eu, o outro e o nós”,
entendemos que, ao ouvir contos de fadas, a criança pode
viajar no mundo da fantasia e encontrar múltiplos significados
para os símbolos presentes nas histórias e relacioná-los com
sua própria vida e com a vida de seus pares, possibilitando
que ela faça descobertas sobre sua identidade e sobre o meio
em que convive.
Arte, Cultura e Imaginário 209
Quanto ao campo “Corpo, gestos e movimentos”,
nota-se que, ao utilizar a dramatização para narrar contos de
fadas, a criança pode interagir com a história, fantasiando-se
e vivenciando o drama de seus personagens favoritos. Essa
atividade permite que ela explore o movimento do corpo, a
expressão dos gestos, dos sentimentos e dos sentidos.
No que se refere ao campo “Traços, sons, cores e
formas”, observa-se que a criança, ao ter contato com os
contos de fadas em livros ou outros suportes, desenvolve o
gosto pela arte da palavra, aguça a criatividade, a imaginação
e a sensibilidade estética, além de experienciar o contato com
as linguagens artísticas visuais. Ao solicitar que a criança
proponha novos direcionamentos para os enredos das
histórias, com novos desfechos, com a expressão em novas
semioses, ela tem a oportunidade de entrar no mundo da
fantasia, criar e recriar.
No que concerne o campo “Espaços, tempos,
quantidades, relações e transformações”, ao promover rodas
de conversa sobre as histórias dos contos de fadas, é estimulada
a capacidade de diálogo entre as crianças. Essa proposta
pedagógica promove o desenvolvimento das habilidades
socioemocionais e socioculturais, pois as crianças aprendem
a ouvir, a entender como o outro pensa e a respeitar limites
de espaço e tempo. Neste campo, é possível promover,
também, o contato físico com os livros, permitindo o
desenvolvimento da experiência de manipular objetos,
explorar texturas, novas materialidades e fazer descobertas.
Relacionando a experiência com a literatura, a BNCC afirma:
As experiências com a literatura infantil, propostas
pelo educador, mediador entre os textos e as crianças,
contribuem para o desenvolvimento do gosto pela
leitura, do estímulo à imaginação e da ampliação do
conhecimento de mundo (BRASIL, 2017).
Sobre a experiência, vale retomar as ideias do autor
Jorge Larrosa, que diz:
A experiência é algo que (nos) acontece e que às
vezes treme, ou vibra, algo que nos faz pensar,
algo que nos faz sofrer ou gozar, algo que luta
210 Contos de fadas e a Base Nacional Comum Curricular...
pela expressão, e que às vezes, algumas vezes,
quando cai em mãos de alguém capaz de dar forma
a esse tremor, então somente então se converte
em canto (LARROSA, 2020, p. 10).
Nessa perspectiva, um fator importante que pode ser
salientado entre os campos de experiências é o da
intencionalidade educativa, que permite valorização da
compreensão do indivíduo, do grupo e das relações. Sobre
isto, a base destaca:
Essa intencionalidade consiste na organização e
proposição, pelo educador, de experiências que
permitam às crianças conhecer a si e ao outro e
de conhecer e compreender as relações com a
natureza, com a cultura e com a produção
científica, que se traduzem nas práticas de
cuidados pessoais (alimentar-se, vestir-se,
higienizar-se), nas brincadeiras, nas
experimentações com materiais variados, na
aproximação com a literatura e no encontro com
as pessoas (BNCC, 2017, p. 35).
A BNCC propõe práticas que unem a língua e a
literatura, respeitando sempre a situação em que se encontra
o aluno, criando condições de trabalhar o texto literário de
maneira que possa desenvolver enriquecimento cultural e
humanizador.
As aprendizagens ocorrem por meio das interações e
das vivências no cotidiano escolar da criança, como propõe a
Base Nacional Comum Curricular, ao sugerir práticas
pedagógicas que estabelecem fundamentos metodológicos
para sua formação. Ao propor aos educadores a experiência
com a literatura, possibilita que a criança adquira
conhecimento de mundo, além de assegurar uma formação
socioemocional.
Por meio das experiências vivenciadas nos contos de
fadas, a criança realiza uma leitura de si e do outro em vários
níveis. Muitos portais são abertos para vivificação de verdades
humanas, às vezes ocultas e armazenadas no inconsciente
coletivo, trazendo significados e valor simbólico para os
Arte, Cultura e Imaginário 211
dilemas existenciais. Essas narrativas guardam valores cuja
apreensão permite à criança uma percepção do real em suas
múltiplas significações presentes no mundo social.
A magia que reveste o imaginário nas narrativas dos
contos de fadas fascina porque cria diálogo com o vivido, o
que faz muito sentido para a vida real e afetiva das crianças,
trazendo ensinamentos imprescindíveis sobre a condição
humana.

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Cristina Antunes, João Wanderley Geraldi. 1. ed. Belo
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A constituição do eu no imaginário do
sujeito e sua reconstrução em análise
Maria Cecília de Almeida Parasmo1

Jacques Lacan faz do registro do imaginário, em 1945,


a dimensão própria da psicanálise e a sua primeira intervenção
neste campo refere-se ao estádio do espelho, em 1936, no
Congresso Internacional de Marienbad, República Tcheca.
A inextricável relação entre os registros imaginário,
simbólico e real é construída por Lacan em 1953, fase em
que o autor, ao iniciar a realização dos seus Seminários, realça
a abordagem dos conceitos de Sigmund Freud.
A função imaginária é uma estrutura essencial da
constituição humana na psicanálise, trabalhada por Sigmund
Freud à luz da relação narcísica e por Jacques Lacan a partir
do estádio do espelho, baseado na experiência de Henri
Wallon.
Tendo sempre presente a preocupação de facilitar a
compreensão das pessoas em relação aos conceitos
psicanalíticos cientificamente trabalhados (LACAN, p. 380),
Freud elabora os conceitos do nascimento do eu e do desejo
na sua obra A Interpretação dos Sonhos (1900). Ele parte da
experiência da primeira satisfação da criança para fundamentar
o surgimento do eu e do desejo, a partir de um traço de
memória deixado pela associação de uma primeira percepção
ligada a uma determinada imagem.
A partir do estabelecimento do traço de satisfação
daquela experiência perceptiva, a percepção da primeira
satisfação será reevocada toda a vez que o sujeito se deparar
com uma falta e ocorrerá o surgimento da pulsão como uma

1
Mestre pela Unisa – Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas.
Licenciada em Letras pela Faculdade de Filosofia e Letras de Moema;
Licenciada em Psicologia pelas Faculdades Metropolitanas Unidas;
Formação em Psicanálise nos Institutos associados à Escola Brasileira
de Psicanálise-Seção São Paulo-EBP-SP.
214 A constituição do eu no imaginário...
forma de energia para permitir a comunicação entre o corpo
e a mente da criança na tentativa de resgate daquele traço.
De acordo com Lacan, a formação do eu refere-se a
uma função que se inscreve numa aventura original
identificatória, na medida em que a criança consegue
estabelecer o domínio antecipado da imagem do seu próprio
corpo, a partir da visão que ela tem da forma total do corpo
do seu semelhante.
Entre os seis e dezoito meses de vida, embora imatura
neurologicamente, a criança já demonstra interesse por sua
própria imagem no espelho. Neste início de vida e, em virtude
da imaturidade neurológica que ela apresenta, a imagem que
o infans vê é a dele,sem dúvida, mas ao mesmo tempo, é a
imagem de um outro que ele enxerga.
Ocorre, nessa fase de desenvolvimento, uma alienação
imaginária primordial, na qual se observa, por meio da visão
da sua imagem projetada no espelho, uma expressão de júbilo
reveladora de uma guinada no desenvolvimento do seu
psiquismo. Trata-se de um determinado momento em que a
criança faz da sua imagem um exercício triunfante pela
demonstração da apreensão antecipada da fantasia de domínio
do seu próprio corpo.
A partir daquela experiência, o sujeito estará para
sempre marcado por uma falta como registro de sua
identidade, a qual se evidenciará a cada vez que ele se deparar
com a imagem de completude de um outro semelhante.
A alienação seguida do júbilo, experienciados pela
criança frente à primeira visão de completude da sua imagem,
resultarão na percepção de uma falta equivalente a uma perda
de objeto, sendo que esta perda será responsável pelo
nascimento da causa do desejo do sujeito. Desde então, a cada
vez que a criança se deparar com a visão de completude da
sua imagem ou da imagem de um outro, ocorrerá a repetição
da percepção, anterior e primeira, de uma falta que poderá
ser vivenciada como desarvoramento e, equiparada à angústia
do nascimento, apontada por Lacan como o primeiro dos
fenômenos afetivos (LACAN, 1987, p. 32).
Na sua última clínica, Lacan chamará àquele ponto
de angústia como encontro com o real, equivalente a um
Arte, Cultura e Imaginário 215
determinado vazio, entendido como um lugar de ausência
absoluta de significação.
Embora sejam muito próximos os pontos elucidativos
do processo de formação do eu entre Freud e Lacan, no que
se refere à semelhante condição de percepção de totalidade
da imagem, o que vem diferenciar a abordagem entre ambos
diz respeito ao fato de Freud considerar a origem do desejo
como a falta da satisfação de completude da criança, enquanto
Lacan leva ainda em conta a falta que surge da ordem do
vazio de uma absoluta falta de referência frente a uma
irremediável perda de objeto.
Durante o processo da formação do eu, a criança
apresenta um interesse lúdico por sua imagem especular e
esse fato vem destacar a visão diversa que a Psicologia e a
Psicanálise têm sobre o assunto. Se de um lado, a Psicologia
enquadra o homem na psicologia animal ou comparada, que
aposta na existência de comportamentos adaptativos para
remover a percepção de desconforto nessa fase da vida, a
psicanálise, ao contrário, vem demonstrar que aquele interesse
singular do indivíduo, pela imagem do outro semelhante vem
revelar um comportamento totalmente inadaptável do lactante
humano, explicado pela situação constitutiva de desamparo,
desde o seu nascimento.
De acordo com Sigmund Freud, o processo da
formação do eu corresponde à Bejahung (apud LACAN, 2009,
p. 81) equivalente ao sim da marca identificatória individual e
específica do sujeito, propiciadora do surgimento do registro
simbólico, como condição necessária para a permissão do
acesso às suas identificações.
O mundo da criança, segundo Melanie Klein (apud
LACAN, 2009, p. 112), produz-se a partir do sim
correspondente ao continente que é o corpo da mãe e ao
conteúdo desse corpo. Nesse sentido, a criança fantasia que
os primeiros objetos com os quais ela se relaciona são
perigosos para ela, sendo que o estilo dessa incorporação é o
da destruição. Assim é que, durante o processo inicial da vida,
a criança acentuará a percepção de exterioridade dos objetos
leite e fezes, ao mesmo tempo em que os rejeitará como
objetos maus e perigosos. Esses objetos serão isolados do
216 A constituição do eu no imaginário...
primeiro continente universal, que é a imagem fantasiada do
corpo da mãe, império total da primeira realidade infantil.
Freud denomina por narcisismo primário (apud
LACAN, 2009) esse acontecimento psíquico que se vincula
ao registro imaginário, o qual reenvia o sujeito às suas
identificações formadoras. Essa experiência que se estabelece
imaginariamente propicia a relação do eu do sujeito ao outro,
porém, como potencial desencadeador do instinto de
destruição ou de agressividade. Esse fenômeno é explicado
na medida em que o sujeito projeta o seu sadismo para fora e
vê retornar para si as suas próprias projeções, introjeções e
expulsões.
No prosseguir da fundamentação freudiana a respeito
do desenvolvimento do eu, Lacan retoma o jogo do fort da
(apud LACAN, 2009), que traduzido do alemão por lá e aqui,
vem ilustrar a experiência na qual a criança inicia o seu
processo de separação e no qual pronuncia, pela primeira vez,
a palavra mãe.
Este jogo se refere à observação feita por Sigmund
Freud a uma criança que puxa, de forma recorrente, em sua
direção, ou seja, de volta para si, um carretel que ela mesma
havia jogado para longe de si mesma. Nota-se, entretanto,
que, quando o carretel se aproxima dela, ela o repulsa de forma
a rechaçá-lo e anulá-lo. É, portanto, nesse jogo de presença e
ausência do carretel que se evidenciará a deliberação do
afastamento da anterior presença da mãe, pela criança, cuja
invocação irá marcar a sua separação dessa mãe, bem como a
sua entrada como ser da fala no mundo da linguagem.
Antes da linguagem, o desejo só existe no plano da
relação imaginária especular, projetado e alienado no outro
como suporte do desejo do sujeito. Essa função alienante do
eu equivale à alienação primordial na qual se engendra a mais
radical agressividade acompanhada pelo desejo de
desaparecimento desse outro. Todavia, essa agressividade, em
relação ao seu semelhante, mantém-se com a aquisição da
linguagem propiciada por sua entrada no mundo simbólico,
por lhe parecer o outro saber mais dele do que ele próprio.
Será a entrada da criança no mundo da linguagem,
como ponto de junção entre a natureza e a cultura, que
permitirá ao sujeito sair do nó de servidão imaginária e passar
Arte, Cultura e Imaginário 217
para o nível do amor. Trata-se de um momento da sua história
no qual o sujeito, fazendo uso do seu mundo de fantasia, terá
instrumentos para estabelecer e formular as suas identificações
formadoras, as quais, numa medida ilusória, serão valorizadas
pelo real entendido aqui como realidade.
A primeira manifestação da linguagem na criança
ocorre aos 18 meses, momento em que o desejo se humaniza.
Na medida em que o símbolo permite a inversão exemplificada
pelo fort da, em que a coisa existente e presente é anulada,
abre-se o caminho para a negação, que é correlata à
constituição do discurso do sujeito. Originalmente, estabelece-
se, de um lado, o masoquismo primordial, que é a afirmação
do sim, equivalente à presença da mãe e, de outro, a primeira
negação ou expulsão, ambos originários da coisa que é a mãe.
De acordo com Freud, o eu é definido como uma
evolução instintiva formada pela composição de pulsões
parciais, a partir da sua admissão na consciência. Estas teriam
sido compostas por uma sucessão de identificações feitas pelo
sujeito em relação aos seus objetos amados. Na obra
Traumdeutung (apud LACAN, 2009), o autor inspira-se na
Geologia para a criação do esquema de camadas inconscientes,
que ele denomina por S1, S2, e, etc., a fim de explicar o
desenvolvimento do processo do inconsciente. Trata-se de
uma correlação estabelecida entre imagens e lembranças cujos
traços ficaram recalcados, ou esquecidos no psiquismo, em
nível tanto de camadas mais recentes, quanto de camadas
anteriores.
Referindo-se ao registro do inconsciente na situação
analítica, analista- paciente, Freud faz uma analogia entre o
processo analítico e o descascar de uma cebola, que equivaleria
ao acesso que o sujeito teria, por meio de camadas, às suas
sucessivas identificações, que, embora registradas, não teriam
ficado acessíveis à memória.
O sentido pleno do termo imagem em análise refere-
se à fundamentação da relação imaginária do eu em relação
ao seu processo de formação. O sujeito carregará a marca
desse desenvolvimento por toda a sua vida na medida em
que estará submetido ao fato de só se ver e se conceber como
um outro que não ele mesmo, ou seja, ele só terá meios de se
perceber de forma realizada e total a partir da miragem fora
218 A constituição do eu no imaginário...
de si, de onde se desenvolverá toda a sua vida de fantasia por
meio das suas identificações.
O verdadeiro eu da criança corresponde ao seu eu
ideal, que equivale ao amor de que ela gozou no início da sua
vida e que está relacionado para onde o seu primeiro amor se
dirigiu. O ideal do eu, por sua vez, equivale a uma
transformação daquela primeira forma de amar, por meio do
deslocamento da libido, entendida como energia envolvida
na sua expressão. Trata-se de uma nova forma de amor por
meio da qual a criança procura recuperar, a qualquer preço, a
sua perfeição narcisista do primeiro amor da infância, ao qual
ela não quer renunciar.
No percurso da sua vida, então, a cada vez que o
sujeito, imaginariamente, se aperceber cativado por um dos
seus semelhantes, tenderá vir à tona o seu eu ideal,
acompanhado do desejo e, nesse engodo da identificação
espacial, surgirão suas fantasias que, originárias de
identificações primárias, se sucederão desde a imagem da perda
inicial de objeto até a forma da completude imaginária do seu
corpo.
O declínio da experiência fundante da formação do
eu, entre os seis e dezoito meses, é brusco e as representações
do período anterior, em algum momento, desaparecem,
produzindo-se a introjeção ou esquecimento das identificações
do indivíduo, como consequência do declínio do complexo
de Édipo, relativo à separação da figura materna e à aquisição
da lei pela função pai.
As identificações são elementos formadores da
fantasia e, responsáveis pelo processo no qual o simbolismo
se liga ao sentimento. Essa ocorrência imaginária, também
chamada de narcisismo secundário, ou de segundo narcisismo,
é correlata à relação que o sujeito estabelece com o mundo
em geral. Trata-se da constituição das identificações que o
sujeito produziu durante o processo de reflexão da sua imagem
no espelho as quais, em algum momento do seu
desenvolvimento, foram afastadas da consciência.
Nessa experiência de identificação, na qual os traços
da relação imaginária e libidinal do sujeito se veem
representados, o sujeito passa a se conceber como o ideal do
Arte, Cultura e Imaginário 219
seu eu, estando, assim, criada a condição para o surgimento
daquele esquecimento estrutural ou recalque.
É esperado, pois, que ocorra o afastamento do
narcisismo primário ou eu ideal, para que tenha lugar essa
outra forma de ideal, que se refere à realização do eu do sujeito
no plano imaginário, cuja satisfação vincula-se à memória,
lembrança ou experiência evocada do passado.
Trata-se de um processo que resulta na formação do
supereu como uma instância que, engendrando a ordem, a
regra ou a lei, refere-se à internalização das identificações, as
quais, em forma de representações exteriores ao sujeito,
transformam aquilo que estava destacado dele em algo
circunscrito a ele próprio.
No caso de o sujeito não ter vivenciado a experiência
primária de identificação dual, o outro da relação tenderá a
não existir e ele ficará, então, refém da sua própria imaginação.
Nesta eventualidade, o sujeito passa a existir apenas como
depositário das identificações imaginárias desprovidas do
reconhecimento do outro. Como resultado dessa ocorrência,
ele será forçado a se submeter, à sua revelia, às irrupções
imaginárias desordenadas que, a qualquer momento, poderão
brotar na sua consciência.
Poderá ocorrer, também, de o ideal do eu situar o
sujeito no seu eu ideal, localizado no nível da captação
narcísica. O momento do surgimento dessa fusão trará a
desregulação do aparelho psíquico e não se entenderá mais
nada. Trata-se de uma situação de origem especular e
imaginária em que se está apaixonado e louco e na qual se
passa a amar o seu próprio eu no outro. Surge a repetição da
experiência do passado no que se refere às identificações
imaginárias de investimento libidinal do eu frente à imagem
de um outro.
Nas vertentes da linguagem e da palavra, a formação
do ideal do eu equivale, portanto, à constituição do registro
simbólico, que se refere a uma segunda forma de ideal imposta
à criança pelo lado externo de sua existência.
Linguagem e fala, porém, não são a mesma coisa. O
sujeito já nasce inserido na linguagem, mas pode não falar e,
220 A constituição do eu no imaginário...
portanto, não responder, fato que poderá ocorrer se a
linguagem não atingiu o sistema imaginário do sujeito.
As primeiras palavras da criança revelam o controle
motor que se traduz na aquisição da linguagem. Trata-se da
autonomia da função simbólica na realização humana.
De início há uma linguagem já toda formada de que
nos servimos e os seus primeiros fragmentos tocam a criança
em forma de advérbios como “ talvez”, “ainda não”, antes da
palavra substantiva.
Anteriormente à dimensão da palavra, não há nem
falso nem verdadeiro. Tudo está aí no mundo, porém, é com
o nascimento da palavra que surge a dimensão da verdade e
da mentira, sendo a sua constituição de ordem, essencialmente,
ambígua tanto do lado semântico, quanto subjetivo.
A situação do sujeito é caracterizada pelo lugar que
ele ocupa no mundo simbólico ou no mundo da linguagem.
Toda palavra tem função criadora e envolve muitos sentidos,
sustentando muitas funções e, tendo por trás de si, oculto no
discurso, aquilo que o sujeito quer dizer, sendo que, por trás
do querer dizer, haverá sempre e, ainda, outro querer dizer.
A palavra faz surgir a coisa e é um conceito que, pelo
fato de substituir a coisa, estará sempre onde a coisa não está.
Os conceitos não surgem da experiência humana e sim das
primeiras denominações a partir das próprias palavras, como
instrumentos para delinear coisas.
Diferentemente da definição de linguagem e conceito,
a razão se refere a um conjunto de determinações existentes
no domínio do sentido e está associada ao pensamento.
O sentido de pensar refere-se à faculdade que o ser
humano tem em substituir a coisa pela palavra, sendo que o
símbolo ou palavra só é válido quando ele se organiza num
mundo de símbolos a partir do imaginário.
A esse respeito, Jacques Lacan exemplifica o ato de
pensar pela palavra elefante (LACAN, 2009), sugerindo que
se reflita sobre uma série de compreensões contidas na história
dessa palavra, desde a travessia de um rio por exemplo. Pode-
se, portanto, obter a presença do elefante, não havendo a
necessidade de que ele esteja no local. De forma análoga, o
autor aponta para o fato de o sol ser representado por um
círculo, ao se fazer alusão a ele.
Arte, Cultura e Imaginário 221
Será, pois, pela comunicação simbólica que a criança
aprenderá a reconhecer o seu desejo que ela vê invertido no
outro. Há, portanto, um primeiro jogo de báscula, em que o
sujeito troca o seu eu pelo desejo que ele vê no outro.
Estabelece-se, a partir deste ponto, marca da integração do
sujeito à forma do seu eu, em que o desejo do outro é o
desejo do sujeito, mediado pela linguagem.
A psicanálise considera três dimensões do ser:
imaginário, simbólico e real. Entre o imaginário e o simbólico
está o amor; entre o imaginário e o real está o ódio; entre o
real e o simbólico está a ignorância.
O amor distingue-se do desejo. Só se fala em amor
quando a relação simbólica se faz presente, porque sem a
palavra haverá, somente, fascinação imaginária e não o amor.
Pode-se, entretanto, falar em amor como paixão imaginária
quando ele se difere do amor em si. Este não surge para
qualquer parceiro ou qualquer imagem, pelo fato de ser muito
específico.
Relativamente ao processo analítico, ele se desenvolve
pela palavra como instrumento de expressão utilizado pelo
indivíduo, a fim de comunicar ao analista a sua queixa. Este,
por sua vez, solicita ao analisando que fale tudo o que lhe
vem à cabeça sob a forma da associação livre, o que equivale
dizer, sem autocrítica.
A presença da linguagem como o terceiro elemento
constitutivo e estrutural do progresso analítico estará presente
como instrumento para tratar da reconstituição da história
do sujeito, na qual cada caso é tomado na sua singularidade
até os limites sensíveis de cada um.
O sujeito que se engaja em um determinado processo
analítico, na procura da verdade, deve encontrar um analista
que o conduza às vias do acesso àquele saber por meio de
uma operação dialética que leve em conta o engano, sempre
presente naquela procura.
Na medida em que o analista ouve a confissão da
história do sujeito, na primeira pessoa, por um tempo
suficientemente longo, será necessário que o sujeito, ao mesmo
tempo, também a ouça por meio de tudo aquilo que ecoa do
seu próprio discurso.
222 A constituição do eu no imaginário...
No desenrolar do tratamento psicanalítico, acontece
uma específica relação entre analista e analisando, na qual a
função dinâmica do eu estará presente no diálogo que se
estabelece. Na medida em que o sujeito trabalha na
reconstrução da sua história, por meio do relato das suas
sucessivas identificações do passado, o sistema do eu torna
compreensível o comportamento inter-humano que se
instalou, por meio das defesas, negações, inibições, fantasias
fundamentais e barragens que orientam e dirigem a fala do
sujeito em análise.
Durante o percurso analítico, a história do sujeito é
vivida no passado e historiada no presente, sendo que aquilo
que o sujeito revive e rememora do seu passado, em relação
aos eventos formadores da sua existência, não é tão importante
quanto o que ele reconstrói. Trata-se de um processo em que
opera a junção do simbólico e do imaginário, na qual importa
mais reescrever a história do que relembrá-la. Esta deve ser
autenticada pelo sujeito na medida em que as suas lembranças
forem revividas com o auxílio dos vazios que se apresentam
durante as suas associações.
O estabelecimento da transferência é condição
necessária para que o sujeito encontre na palavra uma abertura
necessária para a confissão das suas questões na busca da
verdade, por meio de uma relação que escolheu estabelecer
com determinado analista que leve em conta a dimensão da
ignorância relativa ao seu não saber.
Conceituada por Lacan como um dos quatro conceitos
fundamentais em psicanálise (MILLER, 1987, p. 56), a
transferência localiza-se no registro do imaginário do sujeito
e se estabelece em uma análise como o ponto de identificação
do sujeito ao outro. Ela existe como função presente em
toda a análise e vincula-se, em particular, ao ponto de
identificação do sujeito ao outro do analista. Sem a
transferência, a análise se torna inviável porque é ela que
estabelecerá, nessa relação díade, uma identificação em nível
de imagem narcísica que provocará no sujeito uma falta
estrutural e o consequente surgimento do seu desejo. Esta
experiência imaginária, por sua vez, possibilitará a ocorrência
da fala do sujeito, que no afã de preencher aquela insustentável
falta, deverá promover o desenrolar do processo analítico.
Arte, Cultura e Imaginário 223
O momento fecundo da análise desponta com o
surgimento de um ponto de angústia, definido como resultado
da repetição da percepção de uma sobra da completude da
imagem primeva que o sujeito vivenciou, denominado por
Freud como recalque e, por Lacan, como objeto perdido por
ele definido como objeto causa de desejo.
O curso de uma análise será palco da revivescência de
experiências de espelhamento duais e imaginárias do passado,
provocadas por antigas confrontações da imagem do sujeito
em relação a um outro semelhante. Esse trabalho analítico
de tentativa de compleição imaginária pela via da palavra
refere-se à busca da reintegração do desejo do sujeito e implica
a ocorrência de relatos que estiveram presentes nas suas
diferentes fases de identificações imaginárias, por meio da
encarnação do simbólico no vivido imaginário. Frente às
manifestações do sujeito, ao longo do monólogo das suas
palavras, na tentativa de satisfazer seu inexprimível desejo,
situa-se o analista em cuja posição de escuta poderá ou não
intervir, acrescentando algo naquela fala.
No interior do processo analítico, são desfeitas as
amarras da palavra em face da projeção máxima do narcisismo
do sujeito em que ele enxerga no outro do analista uma
completude à qual jamais terá acesso. Faz parte da técnica
psicanalítica, portanto, que o analista promova cortes naquela
percepção de completude, a fim de que o analisando tenha
chances de se reconhecer nas etapas do seu desejo, por meio
dos objetos que participaram da sua encarnação.
Graças a essa experiência, instalada na dimensão da
palavra, surge a revelação da relação imaginária concernente
a certos pontos cruciais do encontro do analisando com o
analista. O discurso, desligado das convenções que lhe são
próprias, invade o sujeito numa equivocação profunda.
Buracos e pontos esquecidos que não foram integrados à sua
história vêm à tona e, em vão, clamam por explicação ou
solução.
A fala do analisando corresponde ao discurso do
inconsciente, o qual representa o discurso do outro
semelhante, formado por palavras em que não importa a
224 A constituição do eu no imaginário...
biunivocidade do signo e no qual toda significação reenvia a
uma outra significação.
Existe a possibilidade de o analisando colocar o
analista na posição de supereu. Trata-se da censura, que é
uma instância que divide o mundo simbólico do sujeito numa
parte acessível e reconhecida e numa parte inacessível e
interditada. Quanto mais o sujeito reprime seus instintos, ou
quanto mais a sua conduta é moral, mais o supereu exagera
na sua pressão, tornando-se cada vez mais severo e exigente.
A análise é transformadora quando ocorrem fatos na
situação transferencial com o analista que evocam situações
antigas que reportam ao passado do paciente. Este fato se
explica porque surge uma modulação idêntica de tempo
quando a palavra antiga e a palavra atual são colocadas no
mesmo parêntese de tempo. Assim ocorrendo, a palavra do
analista adquire o mesmo valor que a palavra antiga,
ressaltando-se, neste contexto, o valor da palavra em análise.
A resistência, de acordo com Sigmund Freud, é, por
sua vez, um conceito que atravessa todo o processo analítico
e que surge no momento em que o núcleo patógeno repele o
discurso e que a revelação da palavra ou o domínio da sua
verdade não se diz. Trata-se da face da revelação do
inconsciente quando este se expressa por deformação e
silêncio. A resistência pode também ser entendida como tudo
o que destrói e interrompe a continuidade do tratamento.
Freud (apud LACAN, 2009) explica que há um certo
desejo recalcado pelo sujeito o qual não possui tradução direta
e possível pelo fato de haver sempre, entre os elementos do
recalque, algo que participa da ordem do inefável. O desejo
inconsciente é impossível de se exprimir, porém, encontra
forma de se expressar entre os elementos da linguagem,
desinvestidos de desejo, como por exemplo, fonemas
dispersos, restos verbais do dia e pelo alfabeto em geral.
Neste mesmo contexto, o autor faz analogia do
processo de uma análise com imagens verbais vagando ao
longo dos condutores nervosos, permitindo que, dessa forma,
se possa pensar na materialização da palavra. Ele, também,
faz alusão à metáfora do Palimpsesto, termo utilizado na Idade
Média para traduzir a ideia da página branca como documento
primitivo no qual havia inscrições que incidiam sobre outras,
Arte, Cultura e Imaginário 225
as quais eram raspadas várias e consecutivas vezes, mas que
deixavam sempre algo de suas marcas.
De acordo com a descoberta freudiana, a originalidade
e a essência do tratamento analítico é a de o sujeito ter
percebido a relação problemática de si próprio em conjunção
com o sentido dos seus sintomas, não cabendo ao analista,
em momento algum do processo analítico, promover a
revelação desse sentido.
O inconsciente do eu do sujeito é feito daquilo que o
seu desenvolvimento simbólico não assimilou e a cujo acesso
a sua memória está fechada. Trata-se de um material que é
desconhecido da imagem estruturante do sujeito e que deverá
por ele ser simbolizado pela via da fala.
Há emoções no interior do paciente que, ao serem
encarnadas e projetadas, ou seja, ao serem simbolizadas, fogem
daquelas emoções iniciais. A emoção pode se apresentar
invertida, deslocada ou inibida pelo fato de se manter presa
na ordem simbólica, a partir da qual os registros do imaginário
e do real se ordenam.
O aspecto afetivo não é uma densidade especial que
falta à elaboração intelectual na fala do paciente. Em situação
de análise, não é para se dar importância específica ao lado
afetivo que acompanha a palavra. Consta da regra analítica
que o conteúdo do discurso do paciente é de importância
relativa e, portanto, não será o discurso dramatizado que irá
trazer maior ou menor consistência a ele.
Diferentemente da noção da constituição do eu do
sujeito, Freud esclarece que a existência do ego tem o
desconhecimento como função fundamental. Se por um lado
ele se caracteriza por sua função vazia, por outro, ele diz tratar-
se daquela função que estabelece contato com o mundo da
percepção.
Para ter minar e, como for ma ilustrativa da
inconsistência do significante na sua vã tentativa de capturar
o significado das palavras e das coisas no imaginário do sujeito,
cito Lacan (2009) ao se utilizar da óptica para a demonstração
de que objeto imaginário e objeto real e, imagem real e imagem
virtual se confundem.
Inicialmente, o autor faz uma analogia entre a
anterioridade da existência do ser da criança em relação ao
226 A constituição do eu no imaginário...
nascimento do seu eu, pela apresentação de um buquê de
flores real. Ele demonstra que a criança, assim como o buquê,
simplesmente, estão lá, submetidos à própria sorte, tratando-
se de uma realidade de nível caótico, que não delimita nada,
nem objetos, nem desejos, nem instintos.
Lacan prossegue, com o experimento do buquê
invertido, citado no Seminário 1 (2009), referindo-se ao
nascimento do eu primitivo, que é feito de forma indireta,
por etapas, da mesma forma como o relato do experimento
do buquê invertido, que apresenta a correlação do processo,
também indireto, da visão humana como análogo à experiência
que ocorre na retina, membrana do olho que capta, de forma
invertida, sinais luminosos de imagens, tratando-se, em ambos
os casos, da formação de uma imagem real.
A fim de explicar essa correlação, ele coloca um vaso
com flores diante de um espelho côncavo, que produz, da
mesma forma como no olho, uma imagem real e invertida
desse objeto (LACAN, 2009, p. 107). Para que isso ocorra,
ele demonstra que, a cada raio luminoso que emana daquele
objeto real colocado no mesmo plano do centro da superfície
esférica, corresponde simetricamente, por convergência dos
raios refletidos sobre aquela superfície, no mesmo plano, um
outro ponto luminoso e, portanto, uma outra imagem real e
invertida daquele objeto.
Porém, quando a visão da imagem é produzida a partir
dos raios de luz que vêm bater na retina, é uma imagem virtual
que o olho enxerga fora. Quando há a projeção da imagem
em um espelho plano, o resultado da projeção será também o
de uma imagem virtual, ou seja, a partir de um objeto real
colocado fora do espelho, forma-se uma imagem virtual
dentro, o que significa que se vê uma imagem onde ela não
está.
Por meio da óptica, ele vem comprovar, então, a
impossibilidade de o sujeito enxergar e representar, de forma
direta, o objeto e a imagem que a ele corresponde.
No processo de uma análise, a não correspondência
direta entre objeto e imagem tem destacada consequência na
comprovação da ambiguidade da palavra em relação à imagem
que se faz representar por ela. A utilização da palavra, como
Arte, Cultura e Imaginário 227
representante da percepção humana vem, portanto, destacar
o nível sempre presente de falseabilidade na tentativa de se
apreender o objeto pela palavra, evidenciando-se, assim, a
estreita relação, embora de incompletude, existente entre o
mundo real e o mundo imaginário, na economia psíquica.
A questão que, então, se coloca é a de qual o lugar da
verdade na fala do sujeito?

Referências bibliográficas

FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. 1.ed. Rio de


Janeiro: Imago, 1972.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de
Freud,1953-1954. Trad. Betty Milan. 2.ed. Rio de Janeiro:
Zahar, 2009.
_______. A Família. 111. ed. Lisboa: Assírio & Alvim,1987.
_______. Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1998. (Campo freudiano no Brasil).
MILLER, J. M. Percurso de Lacan: uma introdução. 2.ed. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
.
Morte, simulacros e luto: uma análise do
1º Episódio da Temporada 2 da série Black
Mirror1

Ednaldo Torres Felicio2

Jons: –O que está pintando?


Pintor: – A Dança da Morte.
Jons: – E aquela é a Morte?
Pintor: –Sim, ela dança com todos os outros.
Jons: – Por que você pinta tamanha
insensatez?
Pintor: – Eu achei que isso poderia lembrar
as pessoas de que elas devem morrer.
Jons: – Bom, isto não as tornará mais felizes.
Pintor: – Por que sempre devemos fazer as
pessoas mais felizes? Não é má ideia assustá-
las uma vez ou outra.
Jons: –Daí elas fecharão os olhos e se
recusarão
a olhar sua pintura.
Pintor: – Ah, elas olharão. Um esqueleto é
quase mais interessante do que uma mulher
nua.

(Ingmar Bergman, O Sétimo Selo)

1
“Be Right Back”, 2013. Roteiro: Charlie Brooker. Direção: Owen Harris.
2a. Temporada, ep. 1. 44 min. Disponível em: NETFLIX. Acesso em: 08
abr. 2019.
2
Mestre em Ciências Humanas pela Universidade de Santo Amaro
(UNISA/SP), pós-graduado em Gestão de Vendas pela Universidade
Paulista (UNIP/SP).
230 Morte, simulacros e luto...
A série inglesa Black Mirror é, em si, uma crítica mordaz
à sociedade do espetáculo. Embora faça parte da cultura de
massa, incluída no espetáculo midiático, a série televisiva,
produzida, atualmente, pelo serviço de streaming Netflix, não
se propõe apenas a divertir ou a entreter; seu conteúdo,
linguagem e estética falam com o corpo sem órgãos ao qual
se refere Deleuze, podendo ser, em última instância,
estimulante para fluxos desconexos ou, em uma análise
superficial, exemplo de possíveis fluxos, um espelho negro
onde possíveis Narcisos se reconhecem.
Ao assistir Black Mirror, entendemos estar diante de
uma obra pouco convencional, que se propõe a ir além do
entretenimento e contém, entre suas imagens, mensagens
poderosas que ultrapassam as luzes da televisão e dos clichês
presentes na maioria dos produtos ofertados pela chamada
indústria cultural.
Nossa análise de “Be Right Back”, primeiro episódio
da temporada 2, contemplará discussões sobre o espetáculo,
a morte e o luto. Dividimos o episódio nos chamados estágios
do luto, sendo: I) Negação e isolamento: Falaremos sobre
a morte e seu impacto sobre os que ficam; como a personagem
que morre era compulsiva por internet, também falaremos
sobre as redes sociais como espetáculo, fenômeno chamado
pelo sul-coreano Byung-Chull Han de Sociedade Positiva, na
qual as pessoas apenas têm espaço para assuntos e imagens
felizes e positivas; II) Raiva: Neste ponto, analisaremos,
guiados pelo roteiro, o olhar filosófico sobre a morte e a
aceitação da morte dos que amamos, bem como a
possibilidade do não-ser; III) Barganha e Depressão:
Simulacros da realidade são tratados nesta parte de nosso
trabalho. Faremos uma relação entre o filme Frankestein, de
James Whale (1931), com o clone da personagem morta e a
ideia de vida criada artificialmente, como simulação; IV)
Aceitação: Neste ponto, escreveremos sobre o despertar da
esposa que percebe no clone do marido, apenas uma cópia
do que este fora, dando a si mesma a oportunidade de
caminhar em frente. Falaremos, também, sobre as metáforas
visuais utilizadas pelo diretor do episódio, tais como subir e
descer escadas e a figura do sótão da casa, como guardiã de
memórias daqueles que morreram.
Arte, Cultura e Imaginário 231

I. Negação e isolamento3

A morte. A apavorante morte dos que amamos em


vida. Este primeiro capítulo da segunda temporada começa
contando a história de um casal feliz, da morte de um deles,
do luto do outro e da tecnologia como forma de fuga da
realidade.
Martha (Hayley Atwell) e Ash (Domhnall Gleeson)
são um casal jovem que se muda para uma casa no campo.
Logo, na primeira cena, somos apresentados aos gostos de
Ash, que está vendo, dentro do carro, uma reportagem sobre
tecidos fabricados que ajudarão pessoas com membros
amputados4, enquanto Martha entrou em uma loja para
comprar comida. Nas cenas seguintes, percebemos o humor
de Ash, seus gostos musicais (ele diz gostar de Bee Gees) e sua
compulsão por postar em redes sociais.
A música escolhida, aliás, fala muito sobre a
personagem e será importante em um momento posterior do
episódio:
I know your eyes in the morning sun
I feel you touch me in the pouring rain
And the moment that you wander far from me
I wanna feel you in my arms again5

(BEE GEES, “How deep is your love”, 1977).

3
Segundo Kubler-Ross (apud ONARI, s/d), os estágios do luto são: 1.
Negação e isolamento; 2. Raiva; 3. Barganha; 4. Depressão; 5.
Aceitação.Para fluidez do texto e coerência com a narrativa/descrição
do roteiro, optamos em analisar os itens 3 e 4 como um só.
4
Como veremos, estes tecidos terão importância à frente, na história.
5
Conheço seus olhos num sol da manhã/ Sinto que me toca numa pesada chuva/ E
no momento que você vaga pra longe de mim/ Eu quero sentir você em meus braços
novamente (tradução nossa).
232 Morte, simulacros e luto...
Ash tem costume de navegar pela internet; fato que,
desde a primeira cena com a esposa, percebemos ser um
incômodo para ela.
Se em Platão as sombras estavam dentro da caverna e
iludiam prisioneiros, temos, a partir do advento da internet e
sua compatibilidade com aparelhos móveis como o celular,
sombras produzidas em telas brilhantes que enfeitiçam pessoas
cotidianamente. Imagens postadas de formas espetacularizadas
mostram pessoas perfeitas e sorridentes pela internet. Mais
que postar uma foto da Torre Eiffel, é necessário postar uma
selfie6 diante da torre simbólica de Paris.

O conceito de espetáculo unifica e explica uma


grande diversidade de fenômenos aparentes. Suas
diversidades e contrastes são as aparências dessa
aparência organizada socialmente, que deve ser
reconhecida em sua verdade geral. Considerado
de acordo com seus próprios termos, o espetáculo
é a afirmação da aparência e a afirmação de toda
vida humana – isto é, social como simples
aparência. Mas a crítica que atinge a verdade do
espetáculo o descobre como a negação visível da
vida; como negação da vida que se tornou visível.
(DEBORD, 2016, p. 16).

Essa negação visível da vida dita real leva ao


paradoxo de um esgotamento de imagens, ao mesmo tempo
em que há uma procura excessiva por consumir e produzi-las
nas redes sociais.
Byung-Chull Han (2017, pp. 30-31) chama de
Sociedade Positiva aquela que tem apenas espaço para assuntos
felizes, risos, positividade. Segundo o filósofo sul-coreano,
Na fotografia digital toda a negatividade é expurgada.
Não precisa mais de câmara escura nem de

6
Neologismo a partir do termo inglês self-portrait, que significa autorretrato.
Selfie é uma fotografia tirada de si mesmo, a partir de câmeras incorporadas
em aparelhos celulares.
Arte, Cultura e Imaginário 233

processamento, não precisa ser precedida por nenhum


negativo. É puro positivo. Extintos estão o devir, o
envelhecer, o morrer: ‘não só partilha (a foto) o destino
do papel (perecível), mesmo que seja fixado em material
mais duro, nem por isso menos mortal: como um
organismo vivo é gerado de grânulos nucleares de prata,
floresce por um momento para logo envelhecer. [...] A
fotografia digital caminha de mãos dadas com uma
forma de vida totalmente distinta, que se afasta cada
vez mais da negatividade. É uma fotografia transparente
sem nascimento e sem morte, sem destino e sem evento.
O destino não é transparente, e à fotografia transparente
falta o adensamento semântico e temporal. Assim, ela
não fala.
O filósofo sul-coreano continua a escrever sobre a
sociedade expositiva, que impõe uma exposição do indivíduo
para que todos o vejam, qualifiquem-no e o acompanhem:
Na sociedade expositiva cada sujeito é seu próprio
objeto-propaganda; tudo se mensura em seu valor
expositivo. A sociedade exposta é uma sociedade
pornográfica; tudo está voltado para fora,
desvelado, despido, desnudo, exposto. O excesso
de exposição transforma tudo em mercadoria
“que está à mercê da corrosão imediata, sem
qualquer mistério”. A economia capitalista
submete tudo à coação expositiva, é só a
encenação expositiva que gera valor, deixando de
lado todo e qualquer crescimento próprio das coisas.
Ela não desaparece no escuro, mas na
superiluminação: consideradas do ponto de vista
geral, as coisas visíveis não acabam no escuro ou
no silêncio, mas se volatizam naquilo que é mais
visível do que o mais visível: a obscenidade. (HAN,
2017, pp. 31-32).
As palavras de Han descritas acima são, praticamente,
um eco de Debord:
O espetáculo se apresenta como uma enorme
positividade, indiscutível e inacessível. Não diz
234 Morte, simulacros e luto...
nada além de “o que aparece é bom, o que é bom
aparece”. A atitude que por princípio ele exige é a
da aceitação passiva que, de fato, ele já obteve por
seu modo de aparecer sem réplica, por seu
monopólio de aparência (DEBORD, 2016, pp.
16-17).
As redes sociais são, portanto, forças motrizes do
espetáculo positivo e narcisístico. Brandão e Felício comentam
sobre a necessidade de aceitação daqueles que postam de
forma contínua e seguida nas redes sociais:
Tal qual Narciso apaixonado no lago, vivemos
fascinados por nossa imagem em nossos
paramundos. Postamos fotos de momentos
íntimos nas redes e esperamos ansiosos por likes
e compartilhamentos. Expomos nossas vidas
cotidianas em busca de cliques que indiquem que
estamos no caminho certo, aprovados pela
sociedade fluida. Falamos menos e clicamos mais,
com cada vez menos qualidade (BRANDÃO;
FELÍCIO, 2018, p. 228).
Em entrevista ao El País, Bauman alertava para o fato
de as redes sociais serem instrumentos de individualização;
quando fascinados pela virtualidade, perderíamos nossas
capacidades de socialização física:
A questão da identidade foi transformada de algo
preestabelecido em uma tarefa: você tem que criar
a sua própria comunidade. Mas não se cria uma
comunidade, você tem uma ou não; o que as redes
sociais podem gerar é um substituto. A diferença
entre a comunidade e a rede é que você pertence
à comunidade, mas a rede pertence a você. É
possível adicionar e deletar amigos, e controlar as
pessoas com quem você se relaciona. Isso faz com
que os indivíduos se sintam um pouco melhor,
porque a solidão é a grande ameaça nesses tempos
individualistas. Mas, nas redes, é tão fácil adicionar
e deletar amigos que as habilidades sociais não
são necessárias. Elas são desenvolvidas na rua,
Arte, Cultura e Imaginário 235
ou no trabalho, ao encontrar gente com quem se
precisa ter uma interação razoável. Aí você tem
que enfrentar as dificuldades, se envolver em um
diálogo (BAUMAN, 2016, s.p.).
Jenkins (2009) reforça a ideia de uma construção que
converge sempre para a mudança de uma atitude passiva de
espectadores dos meios de comunicação, para uma atitude
ativa junto aos meios no sentido de escrever e deixar gravada
sua própria história:

Cada um de nós constrói a própria mitologia pessoal,


a partir de pedaços e fragmentos de informações
extraídos do fluxo midiático e transformados em
recursos através dos quais compreendemos nossa
vida cotidiana. Por haver mais informações sobre
determinado assunto do que alguém possa guardar
na cabeça, há um incentivo extra para que
conversemos entre nós sobre a mídia que
consumimos (JENKINS, 2009, p. 30).
Enquanto o ser humano do início do século XXI,
compulsivamente, usa suas redes sociais, não percebe que
milhões de dados de sua individualidade ficam nas mãos de
outrem, que sequer tem uma identidade física. Han (2017)
lembra que, de forma gratuita e voluntária, cedemos todos os
tipos de informações, desde fotos a gostos musicais ou
orientações políticas, passando por vídeos e mensagens que
gravam nossas vozes e nossas formas de agir.
Essas infor mações, jogadas aleatoriamente e
armazenadas pela internet, são elementos fundamentais do
roteiro de “Be Right Back”.
O roteiro de Brooker, assim como em outros
episódios, dá ao espectador algumas dicas do que está por
vir. Na cena em que Ash posta uma foto de quando era criança
na rede social, esperando que as pessoas possam achá-la
engraçada, Martha joga nele uma toalha e diz que era para
ver se ele ainda era sólido; pois, segundo ela, o namorado
some quando navega na internet. Ao explicar a foto postada,
Ash diz que fez isso para que as pessoas a achem engraçada
236 Morte, simulacros e luto...
(“fofo” nas palavras de Martha), e explica que aquela foto, na
realidade, trazia lembranças tristes, pois remetia ao primeiro
passeio em família após a morte de seu irmão, bem como o
silêncio no carro durante todo o percurso. Ash termina com
outro indicativo do que virá a seguir na história: na volta do
passeio, após guiar o carro pela primeira vez, a mãe havia
tirado todas as fotos do irmão da parede da casa e as colocou
no sótão, fazendo a mesma coisa com as fotos do pai quando
este falecera.7

II. Raiva

Em seu livro Intermitências da Morte, Saramago (2005,


p. 73) conta a história de um país fictício onde, sem maiores
explicações, as pessoas pararam de morrer. Em determinado
momento, duas personagens dialogam sobre a morte: um
espírito das águas e um aprendiz de filósofo. Em certa altura
da conversa, o espírito das águas diz: “Porque cada um de
vós tem a sua própria morte, transporta-a consigo num lugar
secreto desde que nasceu, ela pertence-te, tu pertences-lhe.”
(SARAMAGO, 2005, p. 73).
A história de “Be Right Back” toma outro rumo,
quando Ash vai entregar o carro alugado e não volta. Vitimado
em um acidente, Ash encontra-se com a Morte que carregava
consigo. Começamos a acompanhar a dor de Martha.
Diversos filósofos debruçaram-se sobre o morrer.
Epicuro, ao exortar o homem a não temer a morte, diz:
Acostuma-te à ideia de que a morte, para nós não
é nada, visto que todo bem e todo mal residem
nas sensações, e a morte é justamente a privação
de sensações. A consciência clara de que a morte

7
Significativo o fato da mãe dirigir o carro pela primeira vez e, em
seguida, guardar no sótão as fotos do filho morto. Mais que guiar
um automóvel, a mãe sente necessidade de guiar a própria vida e
caminhar para frente.
Arte, Cultura e Imaginário 237
não significa nada para nós proporciona a fruição
da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo
infinito e eliminando o desejo da imortalidade.
Não existe nada de terrível na vida para quem
está perfeitamente convencido de que não há nada
de terrível em deixar de viver. É tolo, portanto,
quem diz ter medo da morte, não porque a
chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o
aflige a própria espera: aquilo que não nos
perturba quando presente não deveria afligir-nos
enquanto está sendo esperado.
Então, o mais terrível de todos os males, a morte,
não significa nada para nós, justamente porque,
quando estamos vivos, é a morte que não está
presente; ao contrário, quando a morte está
presente, nós é que já não estamos. A morte,
portanto, não é nada, nem para os vivos, nem para
os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao
passo que estes não estão mais aqui. E, no entanto,
a maioria das pessoas ora foge da morte, ora a
deseja como descanso dos males da vida.
(EPICURO, 2002, pp. 27-29).
A morte de Ash é, forçosamente, o começo de uma
nova vida para Martha. Como ponto inexorável da existência
humana, pode ser vista como fim para os que vão e mudança
para os que ficam. A filosofia tem, na morte, uma de suas
questões centrais, desde os filósofos da Antiguidade até os
contemporâneos.
Em O Sétimo Selo, filme de 1957, do diretor sueco
Ingmar Bergman, um cavaleiro medieval volta das Cruzadas
e encontra seu país devastado pela peste. Triste, chamado
Antonius Block, desiludido e angustiado, encontra-se com a
Morte e a desafia para uma partida de xadrez.
– Quem é você?
– Sou a Morte.
– Veio me buscar?
– Eu ando com você há muito tempo.
– Eu sei.
– Está preparado?
238 Morte, simulacros e luto...
– Meu corpo está, mas eu não.
(A Morte abre a capa e se aproxima do Cavaleiro)

– Espere!
– Está bem, mas não posso adiar.
– Você joga xadrez?
– Como sabe?
– Eu já vi nas pinturas.8
– Posso dizer que jogo muito bem.
– Não é mais esperto que eu.9
– Por que quer jogar comigo?
– Isso é problema meu.
– Tudo bem.
– Se eu vencer, viverei. Se for xeque-mate, me
deixará em paz.
(O Sétimo Selo, Ingmar Bergman, 1957).

No diálogo acima, retirado da película de Ingmar


Bergman, temos uma representação de nossa luta diária contra a
morte. Jogamos xadrez com ela a todo instante: ao atravessar
uma rua, ao comer peixes com espinha, ao sairmos para o
trabalho, ao entupirmos nossas veias com gordura saturada. Em
outra cena adiante, no mesmo filme, Block está em uma igreja e
procura um padre para confessar seus pecados. A Morte o engana
e se faz passar por padre. O cavaleiro começa sua confissão:

BLOCK: O vazio é um espelho, eu vejo meu rosto


e sinto delírio e horror. Minha indiferença aos
homens me fechou totalmente e vivo agora num
mundo de fantasmas, um prisioneiro em meus
sonhos.
MORTE: Ainda assim você não quer morrer.
BLOCK: Sim, eu quero.
MORTE: O eu você está esperando?

8
Em cena anterior, Block havia visto uma pintura da morte jogando
xadrez em uma igreja.
9
No filme, a Morte é um homem.
Arte, Cultura e Imaginário 239
BLOCK: Conhecimento.
MORTE: Você quer uma garantia.
BLOCK: Chame do que você quiser.
[...]
BLOCK: Então a vida é um terror sem sentido.
Nenhum homem pode viver com a morte e saber
que tudo é nada.
MORTE: A maioria das pessoas não pensa nem
na morte ou no nada.
BLOCK: Até que eles chegam no final da vida e
veem a escuridão.
MORTE: Ah, esse dia.
BLOCK: Eu percebo. Devemos transformar
nosso medo em um ídolo e chamá-lo de Deus.
MORTE: Você não é fácil.
BLOCK: A Morte me visitou essa manhã.
Estamos jogando xadrez. Esse adiamento me
permite fazer uma tarefa vital.
MORTE: Qual tarefa?
BLOCK: Minha vida inteira tem sido uma procura
sem significado. Digo isso sem amargura ou
autocondenação. Eu sei que é o mesmo para
todos. Mas quero usar meu adiamento para uma
ação significante.
MORTE: Então você joga xadrez com a Morte.
BLOCK: Ele é um jogador habilidoso, mas ainda
não perdi uma peça.
MORTE: Como você conseguirá vencer a Morte?
BLOCK: Com uma combinação de bispos e
cavalos. Irei quebrar seu flanco.
(A MORTE SE MOSTRA A BLOCK)
MORTE: Eu devo me lembrar disso.
BLOCK: Traidor, você me trapaceou! Mas vou
arranjar um jeito.
MORTE: Continuaremos nosso jogo nos
dormitórios.
BLOCK (olhando para a mão direita): Essa é
minha mão. Eu posso movê-la. O sangue está
240 Morte, simulacros e luto...
pulsando em minhas veias. O Sol ainda está em
seu apogeu... E eu, Antonius Block... Estou
jogando xadrez com a morte!

(O Sétimo Selo, Ingmar Bergman, 1957).


A morte, que engana Block, também engana a todos
nós. Quantos de nós, em nossa luta diária por sobrevivência
carregamos o tumor que se espalhará em metástases sem
sabermos? Quantos de nós temos, no sangue, a diabetes, tal
qual bomba relógio a pulsar em nosso coração e continuamos
ignorantes a comer chocolates? Quantos de nós, assim como
o Ash, de “Be Rigth Back”, se despedirão ingênuos da amada
para guiar um carro e nunca mais voltar para casa?

Figura 1 – o Cavaleiro joga xadrez com a Morte em O sétimo Selo.


Arte, Cultura e Imaginário 241
Sobre a imanência da vida, em seu último artigo
publicado antes de se suicidar, Deleuze (2016) deixa-nos um
texto eloquente. Desde o seu título, Imanência, uma vida...9, a
obra fala-nos, profundamente, sobre a vida como um espaço
finito entre o nascer e o morrer. A começar pela dialética
entre os termos vida e imanência, como também pelo fato de
terminar com reticências:
Uma vida contém apenas virtuais. Ela é feita de
virtualidades, acontecimentos, singularidades. O
que se chama virtual não é alguma coisa a que
falte realidade, mas que se empenha num processo
de atualização seguindo o plano que lhe dá sua
realidade própria. O acontecimento imanente se
atualiza num estado de coisas e num estado vivido
que fazem com que ele se produza. O próprio
plano de imanência se atualiza num Objeto e num
Sujeito aos quais ele se atribui. Mas, por pouco
separáveis que eles sejam de sua atualização, o
plano de imanência é ele mesmo virtual, tanto
quanto os acontecimentos que o povoam são
virtualidades. Os acontecimentos ou
singularidades dão ao plano toda sua virtualidade,
como o plano de imanência dá aos
acontecimentos virtuais uma realidade plena. Ao
acontecimento considerado como não atualizado
(indefinido) nada falta. Basta colocá-lo em relação
com seus concomitantes: um campo
transcendental, um plano de imanência, uma vida,
singularidades. Uma ferida se incarna ou se
atualiza num estado de coisas e num vivido; mas
é ela mesma um puro virtual no plano de
imanência que nos impele numa vida. Minha ferida
existia antes de mim... Não uma transcendência
da ferida como atualidade superior, mas sua

9
Último texto publicado por Deleuze: Revista Philosophie, nº 47, setembro
de 1995, pp. 3-7. Ele também se encontra na coletânea Deux regimes de
fous. Textes et entretiens 1975-1995. Paris: Minuit, 2003, pp. 359-363.
Tradução de Sandro Kobol Fornazari.
242 Morte, simulacros e luto...
imanência como virtualidade sempre no cerne de
um meio (campo ou plano). Há uma grande
diferença entre os virtuais que definem a
imanência do campo transcendental e as formas
possíveis que os atualizam e que o transformam
em algo transcendente (DELEUZE, 2016, p. 181).

Melani (2013, p. 201) nos lembra que, para Freud,


existem dois instintos fundamentais: o instinto de
vida e o instinto de morte. A vida psíquica é afetada,
ou mais propriamente dominada, pelo conflito
entre esses dois instintos. Um, tendendo ao amor
e à construtividade, manifesta-se mais claramente
em desejos sexuais; o outro, mais propenso ao
ódio e à destruição, manifesta-se principalmente
nos desejos de agressividade.
Em palestra realizada no programa Café Filosófico,
exibido pela TV Cultura (2018), o psicoterapeuta Ivan
Capelatto disse que:
O medo da perda foi descrito por Freud como
instinto de morte. As vezes o nosso medo de
perder a coisa querida, a coisa desejada, é tão
grande que isto nos aproxima da nossa própria
morte. Isso faz com que nós, os humanos, em
todas as épocas, fiquemos extremamente abalados
com a possibilidade da perda e às vezes nós, no
egoísmo sádico até dizemos que preferimos que
nós morrêssemos ao invés de nosso amado, de
nosso filho, nosso esposo, nossa esposa, deixando
para eles a dor (Café Filosófico, TV Cultura, 2018).
Martha tem dificuldades em aceitar a morte de Ash,
algo comum em processos de luto. Durante o velório, ela
escuta de uma parente, Sara (Sinnead Matthews), que perdera
o marido há algum tempo: “Não é real, não é? No velório do
Mark, eu sentei pensando que não era real. As pessoas não
pareciam reais, as vozes delas não eram reais.” (“Be Right
Back”, 2013)
Arte, Cultura e Imaginário 243
Por saber que seu marido não tivera tempo de jogar
xadrez com a morte e prolongar um pouco mais sua vida,
Martha está destruída emocionalmente. Quando Sara propõe
uma alternativa para Martha conversar com o morto e aliviar
a dor, Martha se levanta da cadeira aos gritos, num acesso de
raiva. Antes de gritar com Sara, Martha escuta desta que o
programa que ela sugere seria perfeito com o esposo morto,
uma vez que ele estava sempre conectado.
É claro que Sara fora inconveniente em um momento
de dor lancinante, mas a reação de Martha vai além da
inconveniência e revela uma explosão de frustração com a
imanência que levou para longe de si o seu amado.
Para Nietzsche, a morte pode ser encarada de forma
covarde ou voluntária. Por morte voluntária, Nietzsche,
segundo Nasser (2008), entende o não apego à longevidade,
o querer a morte para afirmar a si mesmo; por outro lado, a
morte covarde é fundamentada da seguinte maneira:
Por fim, a raiva da morte surge na esteira da raiva
do tempo. O espírito de vingança, ao condenar o
tempo que impede o homem de ser inteiramente
aquilo que se é, condena a morte inevitável quando
diz: “tudo perece, tudo, portanto, merece
perecer!”. Nesse sentido, a raiva do homem
dirigida à inescapável finitude causada pelo tempo
reflete-se, como não poderia deixar de ser, na
repulsa da morte, o acaso mais radical (NASSER,
2008, p. 106).
Nasser (2008, p. 108) pondera sobre Nietzsche que,
para os que encaram a morte de forma covarde, enxergam-na
da seguinte forma: “A morte que rouba, violenta, ataca, frustra,
limita etc., é um sintoma mórbido do homem cujo tempo é
aquele pai que devora seus próprios filhos”.
Schopenhauer (2000, p. 59) entende a morte como
uma diferenciação entre o homem e os outros animais, pois
O animal vive sem conhecimento verdadeiro da
morte: por isso o indivíduo animal goza
imediatamente de todo o caráter imperecível da
espécie, na medida em que só se conhece como
244 Morte, simulacros e luto...
infinito. Com razão apareceu, necessariamente
entre os homens, a certeza assustadora da morte.
Ainda para o filósofo, o homem e o animal
compartilham um instinto de vida que faz com que ambos
fujam da possibilidade da morte, entretanto o filósofo alemão
escreve sobre o apego do ser humano à vida:
O apego sem limites à vida que aqui aparece não
pode, todavia, ser originado do conhecimento e da
ponderação: diante destes parece antes tolo; pois o
valor objetivo da vida é bastante incerto, e resulta
pelo menos duvidoso se a ela não seria preferível o
não-ser, e mesmo se a experiência e a ponderação
tiverem a última palavra, o não ser tem de triunfar.
Se se batesse nos túmulos para perguntar aos mortos
se querem ressuscitar, eles sacudiriam a cabeça
negando (SCHOPENHAUER, 2000, p. 59).
Se nos debruçarmos sobre o não-ser, podemos pensá-
lo não apenas como uma condição pós-morte, mas também
como uma condição pré-vida.
Se o que faz a morte aparecer-nos tão terrível fosse
o pensamento do não-ser, então teríamos de pensar,
com calafrio igual, no tempo em que ainda não
éramos. Pois é incontestavelmente certo que o não
ser após a morte não pode ser diferente daquele
anterior ao nascimento, e, portanto, também não é
lastimável. Uma infinidade inteira fluiu, quando ainda
não éramos: mas isso não nos aflige de modo algum.
Ao contrário, o fato de que após o intermezzo
momentâneo de uma existência efêmera deva seguir-
se uma segunda infinitude na qual não mais seremos, o
achamos duro e até mesmo insuportável. Deveria
então essa sede de existência ter nascido do fato de
que nós a degustamos e a achamos deveras adorável?
[...] (SCHOPENHAUER, 2000, p. 65).

Em seu Discurso de defesa, Sócrates (2009) diz uma


frase incisiva de separação entre ele e aqueles que ficarão vivos:
“Mais eis que chegou a hora de partir, eu para morrer, vós
Arte, Cultura e Imaginário 245
para viver. Qual de nós terá a melhor sorte? Ninguém o sabe,
somente Deus.” (s/p).
É difícil para Martha aceitar a condição de não-
existência de Ash. O vazio que a falta do marido representa
deixa em sua vida a angústia. Fromm (1979) diz que “na
medida em que vivamos no modo de ter, devemos recear a
morte.” Ela tinha o marido; agora, não mais. É quando Sara
a inscreve, sem que ela saiba, em um programa virtual, em
que a amiga poderia se “comunicar” com o marido morto,
ou melhor, com as lembranças que ele deixou impressas nas
redes sociais.

III. Barganha, Depressão

Martha e Ash haviam se mudado para a casa onde ele


crescera. Sozinha, no seu novo lar, ela tropeça em lembranças
do marido; como, por exemplo, as marcações de crescimento
feitas pela mãe dele, quando criança. No sótão, por sua vez,
ela encontra as fotos do irmão e do pai, falecidos, de Ash, às
quais este havia se referido no começo do episódio.
Martha, nesse momento, começa, inclusive, a ter
sintomas de gravidez.
Se tivermos em mente que, não apenas como
acabou de ser levado em consideração, vida e
morte são dependentes dos mínimos acasos, mas
que a existência dos seres orgânicos é em geral
efêmera, que animais e plantas nascem hoje e
amanhã morrem e que nascimento e morte se
seguem em rápida mudança, enquanto é
assegurada ao reino inorgânico, tão inferior, uma
duração muito mais longa, todavia apenas à
matéria absolutamente informe uma duração
infinitamente longa, a qual reconhecemos até a
priori; então, penso que já à concepção meramente
empírica, no entanto objetiva e imparcial, de uma
tal ordem das coisas, tem de seguir-se o
pensamento que se trata apenas de um fenômeno
246 Morte, simulacros e luto...
superficial e um tal contínuo nascer e perecer de
maneira alguma concerne à raiz das coisas, mas
só pode ser relativo, e mesmo aparente, e que a
verdadeira essência íntima de cada coisa, furtanto-
se por toda parte à nossa mirada e sempre cheia
de mistério, não é atingida. Antes subsiste
indestrutível (SCHOPENHAUER, 2000, p. 80).
Em “Be Right Back”, não é a essência de Ash, no
sentido de alma, do que ele foi, que entra em contato com
Martha. É um programa que capturou todas as informações
que ele, quando estava vivo, deixou impresso na internet, como
pegadas ou impressões digitais e, agora, desenvolve uma
comunicação com a viúva. Podemos dizer, portanto, que quem
conversa com Martha não é Ash, mas seu simulacro.
Pode-se viver com uma ideia de uma verdade
alterada. Mas o seu desespero metafísico
provinha da ideia de que as imagens não
escondiam absolutamente nada e de que, em
suma, não eram imag ens, ma s de fato
simulacros perfeitos, para sempre radiantes no
seu fascínio próprio (BAUDRILLARD, 1991,
p. 12).
No começo de seu livro, Simulacro e Simulação,
Baudrillard (1991, p. 7) cita o Eclesiastes: “O simulacro nunca
oculta a verdade – é a verdade que oculta o que não existe. O
simulacro é verdadeiro.” Qual é o limite entre o simulacro, a
simulação e o real? Para Kant (2001), a verdade ou a ilusão
não estão no objeto, mas no juízo ou conceito que formamos
sobre ele, a coisa-em-mim.
Isto não significa forçosamente que o mundo
da ilusão seja declarado inexistente. Mais: é de
eliminá-lo, trata-se de explicar como se produz
a ilusão e de dar razão dela. Este é o sentido da
famosa expressão platônica “ salvar as
aparências” (ou ilusões) porque o mundo da
ilusão não é o real, mas tão pouco é imaginário.
A ilusão não desaparece, continuamos a ver o
Arte, Cultura e Imaginário 247
bastão quebrado dentro da água e recto fora dela,
mas tenta-se mostrar em que fundamenta este
engano e qual é a realidade (MORA, 2001, p. 136).
A ideia da distopia apresentada neste episódio não é,
como em muitos outros casos, absurda. Milhares de perfis de
pessoas mortas continuam disponíveis pelas redes sociais. Luz
e Moraes escrevem:
A imagem nas redes sociais, da pessoa que já,
fisicamente não está viva, pertence agora aos
inúmeros comentários dos colegas, parentes,
amigos e curiosos que deixam recados e curtem
as fotos da pessoa como se estivessem realmente
falando com a imagem, ‘com a pessoa’. A situação
enunciada é repetida inúmeras vezes nos perfis
das redes sociais de pessoas mortas e pode até
ser considerada tão absurda que se questiona a
necessidade de registrar comentários para a foto
da pessoa e compartilhar comentários como se
estivesse ‘dando’ um recado para a pessoa da foto
que já é considerada sem vida, morta. Diante do
espetáculo, e que tal representação sobre o olhar
do outro e sobre a imagem da pessoa morta,
nos provoca a reflexão de imaginar que tal
experiência possa transferir uma mera ilusão de
morte, ou até mesmo de autoafirmação de não
aceitação dela, da morte? (LUZ; MORAES,
2016, p. 2).
A realidade, no roteiro deste primeiro episódio da
segunda temporada de Black Mirror, era que Ash havia
morrido, mas, para Martha, a volta do ente que havia morrido,
embora seja simulacro, é como o bastão que, quebrado na
água, traz uma aparência que ela torce e quer crer como real.
248 Morte, simulacros e luto...

A semelhança reunida, reconhecida, recluída, a


semelhança evidente por si mesma nunca é senão
uma salvação de aparência. A semelhança aquieta,
ela nos afasta do hic11. Mas, quando surge a
semelhança – ou seja, quando ela aparece por
aparição, por inevidência, por inquietude, por
abertura e por estranhamento: quando, por exemplo,
“a noite revela-se feita de órgãos e preenchida de
uma espera física” –, ela não revela nada menos, seja
por equívoco ou por desvio, que uma “verdade”
fundamental impossível de ser dita de outra maneira
(DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 26).
Como ser vivo, na história de “Be Right Back”, Ash
já não é. A voz que Martha ouve (assim como posteriormente
o clone de Ash) é apenas um serviço para simular. Se, num
primeiro momento, Martha recusa a ideia de recuperar Ash
por meio de um programa, em seguida, foge de tal modo à
realidade, que se afasta da família e amigos para viver tão
somente com Ash.
Em Frankestein, de James Whale (1931), adaptação
clássica do livro homônimo de Mary Shelley12, temos aquela
que talvez seja uma das frases mais famosas da história do
cinema: em meio a uma tempestade de raios, Dr. Frankstein
(Boris Kaloff), ao ver que o braço da criatura se move, grita
de forma delirante com seu ajudante corcunda: “Está vivo!
Está vivo!”13

11
Hic et nunc, aqui e agora em latim. Expressão muito usada na filosofia
a partir do Existencialismo.
12
Segundo o site Wikipedia, o filme se baseou em uma peça dos anos
1920 atribuída a Peggy Webling.
13
It´s alive! It’s alive!
Arte, Cultura e Imaginário 249
Figura 2 – Cena clássica do filme Frankestein, de 1931, “It’s alive!”

No momento em que o clone de Ash nasce, não há


raios, mas som de fermentação de um corpo com tecidos
pré-fabricados13. Uma Martha espantada vê, pela primeira vez,
o clone de Ash descer nu as escadas.
Sua descida tem forte significado. Ash deixa de ser
uma lembrança, algo espiritualizado, e se materializa14. O clone,
ao encontrar Martha, usa o bom humor do sujeito que fora
sua matriz e diz: “Podia ter deixado umas roupas para mim.
Quero dizer, que entrada mais indigna, esta, não é?” (“Be
Right Back”, 2013).
O clone é, incrivelmente, semelhante ao verdadeiro
Ash, não só na aparência, mas também na sensação da pele.

13
Provavelmente os tecidos que Ash, quando vivo, viu em uma reportagem
no seu carro, durante a primeira sequência do episódio e a qual nos
referimos anteriormente.
14
Adiante, abordaremos o simbolismo de descer escadas, ir ao sótão,
enfim, as metáforas de alto em baixo/subir e descer utilizadas pelo diretor
deste episódio.
250 Morte, simulacros e luto...
Martha faz amor com o clone. “Você parece com ele num dia
bom”, diz a fascinada esposa, que comenta sobre a textura da
pele e os poros no clone.
Segundo Baudrillard (1991, p. 9), “dissimular é fingir
não ter o que se tem. Simular é fingir o que não se tem. O
primeiro refere-se a uma presença, o segundo a uma ausência”.
Embora a criatura nunca minta e diga ser o Ash real, ela simula
que é. Suas reações, embora semelhantes às do original, não
são idênticas; afinal, o clone é baseado naquilo que ele fora,
ou ainda, de forma mais aprofundada, nas impressões que ele
deixou pela internet.
Didi-Huberman explora o tema da imagem e o nada:
Se o mundo das semelhanças pode ser dito “vasto
como a noite”, é antes porque nunca se consegue
acabar com uma semelhança: ela envia sempre
para uma outra, ao menos. Mas é também por
um conjunto de razões mais antropológicas (que
constituem sistema ou, melhor, “versões” de um
mesmo fenômeno). De um lado, a semelhança
interroga o vivente e sua genealogia, o desejo e
sua força; nesse sentido, dirá Blanchot, a imagem
“é uma felicidade” inesgotável. “Sim, a imagem é
felicidade, – mas perto dela permanece o nada,
em seu limite ele aparece, e toda a potência da
imagem, tirada do abismo no qual ela se funda,
só pode exprimir-se apelando para ele. A
semelhança questiona-nos, portanto, também
desde a morte: a imago é sempre a imagem daquele
ou daquela que não existe mais. Ora, a própria
morte é inesgotável e interminável para os
viventes (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 31).
Martha tem dificuldades para separar o representado
do que agora o representa, ela está envolvida, emocionalmente,
em um duro processo de luto, que a levou a um estado
melancólico, depressivo. Willian James (apud SPINOLA,
2013, p. 14) diz que “a realidade está onde colocamos nossa
atenção”. Assim, tal afirmação “revela uma confusão entre o
que é real e o que tem significado para nós, ou seja, aquilo
que faz sentido para nós” (SPINOLA, 2013, p. 14).
Arte, Cultura e Imaginário 251
As emoções de Martha a colocam em confusão. Após
fazer amor com o clone de Ash, Martha começa a perceber
detalhes que não a agradam, como por exemplo o fato de ele
passar a noite deitado de olho aberto, uma vez que imagem
que é não precisa dormir.
As emoções passam por gestos que fazemos sem
nos dar conta que vêm de muito longe do tempo.
Esses gestos são como fósseis em movimento.
Eles têm uma história muito longa – e muito
inconsciente. Eles sobrevivem em nós, ainda que
sejamos incapazes de observá-los em nós
mesmos. Darwin sem dúvida tinha razão ao dizer
que as emoções são gestos primitivos. Mas, na
sua ideia de “primitivo”, ele via somente a natureza
(daí a relação estabelecida entre os chimpanzés
que grunhem e as crianças que choram). O sentido
de “primitivo” foi melhor entendido no âmbito
das ciências humanas a partir do momento em
que os etnólogos e os sociólogos falaram das
emoções sobre o ângulo de uma história cultural
(DIDI-HUBERMAN, 2016, p. 32).
Não é suficiente ao clone de Ash ser semelhante ao
original. Martha vai, aos poucos, descobrindo que aquele não
possui tudo o que este tinha. As atitudes, principalmente
aquelas que seriam mais irracionais, são diferentes. Um
exemplo é quando o clone diz não gostar de Bee Gees, que
como vimos anteriormente, era uma banda da qual Ash
gostava.
De todas as próteses que marcam a história do
corpo, o duplo é sem dúvida a mais antiga. Mas o
duplo não é justamente uma prótese: é uma figura
imaginária que, como a alma, a sombra, a imagem
no espelho persegue o sujeito como o seu outro,
que faz com que seja ao mesmo tempo ele próprio
e nunca se pareça consigo, que o persegue como
uma morte sutil e sempre conjurada. Contudo,
nem é assim: quando o duplo se materializa,
quando se torna visível, significa uma morte
iminente (BAUDRILLARD, 1991, p. 123).
252 Morte, simulacros e luto...
IV. Aceitação

Após receber a visita da irmã, Martha desperta de seu


entorpecimento em relação ao clone de Ash, quando aquela,
ao ver as roupas masculinas no banheiro, comenta estar feliz
por Martha ter continuado a vida e seguido em frente. Isso
porque ela acreditava que aquelas roupas eram de um outro
homem, de um novo relacionamento. Aos poucos, porém, as
diferenças entre o esposo morto e o clone incomodam ainda
mais Martha, que começa a encarar o novo como algo
estranho, como o Dr. Frankenstein ao observar seu monstro:
Sua pele amarela mal encobria os músculos e
artérias da superfície inferior. Os cabelos eram de
um negro luzidio e como que empastados. Seus
dentes eram de um branco imaculado. E, em
contraste com esses detalhes, completavam a
expressão horrenda dois olhos aquosos, parecendo
diluídos nas grandes órbitas sem que se engastavam,
a pele apergaminhada e os lábios retos e de um
roxo-enegrecido (SHELLEY, s/d, p. 56).
Para Martha, o clone causa repugnância, mas não é
necessariamente um monstro, que, para Fabris, é uma
combinação, como se nota:
do “impossível com o proibido” [um misto] [...]
dos reinos humano e animal: homem com cabeça
de boi e de ave. Misto de duas espécies: porco
com cabeça de carneiro. Misto de dois indivíduos:
ser com duas cabeças e um corpo ou com dois
corpos e uma cabeça. Misto de dois sexos: Misto
de vida e de morte: feto que consegue sobreviver
alguns minutos, alguns dias, apesar de uma
morfologia particular. Misto de formas: ser sem
braços nem pernas, lembrando uma cobra. A
monstruosidade pode ser, pois, definida como
uma “transgressão” dos limites naturais, dotada
da capacidade de “tocar, abalar, inquietar o direito,
Arte, Cultura e Imaginário 253
seja o direito civil, o direito canônico ou o direito
religioso”. (FABRIS, 2017, p. 70)
Todas as imperfeições que Martha começa a perceber
no clone nos levam à noção da reprodutibilidade técnica da
qual nos fala Benjamin:
O aqui e agora do original constitui o conceito de
sua autenticidade e sobre o fundamento desta
encontra-se a representação de uma tradição que
conduziu esse objeto até os dias de hoje como
sendo o mesmo e o idêntico objeto. A esfera da
autenticidade, como um todo, subtrai-se à reprodutibilidade
técnica – e, naturalmente, não só a que é técnica
(BENJAMIN, 2012, p. 19).
Benjamin (2012) continua a explicar sobre como a
cópia perde em relação ao original. Para ele, o que desaparece,
na reprodutibilidade, é a aura do original. Baudrillard (1991,
p.128) acrescenta que “O que se perdeu é o original, que só
uma história, ela própria nostálgica e retrospectiva, pode
reconstruir como ‘autêntica’”.
Martha, agora, quer sair das sombras onde se
escondeu. Ao mandar que o clone se jogue do alto da colina
dos suicidas, ela diz: “Você é só algumas nuances de você.
Você não tem uma história. Você é só uma atuação de algo
que você fazia sem pensar, e isso não é o suficiente” (“Be
Right Back”, 2013).
Baudrillard escreve que o imaginário da representação
desaparece na simulação, o encanto da abstração desaparece,
assim como toda a metafísica.
Já não existe coexistividade imaginária: é a
miniaturização genética que é a dimensão da
simulação. O real é produzido a partir de células
miniaturizadas, de matrizes e de memórias, de
modelos de comando – e pode ser reproduzido um
número indefinido de vezes a partir daí. Já não tem
de ser racional, pois já não se compara com nenhuma
instância, ideal ou negativa. É apenas operacional.
Na verdade, já não está envolto em nenhum
imaginário (BAUDRILLARD, 1991, p. 8).
254 Morte, simulacros e luto...
Após simular ser Ash e chorar (orientado por Martha)
enquanto implora pela vida, damos um salto no tempo e
vamos para o aniversário da filha de Martha. A menina lembra
à mãe, que precisa de outro pedaço para levar para Ash, que
está no sótão. Mas, a fala da menina também é um simulacro,
pois a garota sabe que aquilo que está lá não come, ela o
utiliza como desculpa para que ela mesma coma a outra fatia
de bolo.
Ash, no sótão, lembra a sequência do início do
episódio, quando o original comentou que a mãe guardava as
fotos dos parentes falecidos ali.
A figura do sótão deve ser aqui levada em conta.
Cômodo superior das casas, metaforicamente, pode
representar espiritualidade ou um lugar onde se guardam as
lembranças, os segredos, oposto à ideia de porão, cuja metáfora
significa olhar para os subsolos de nossa alma no sentido de
procurar nossas almas, a fim de descobrir aquilo que nos
oprime e nos machuca profundamente.
Bachelard cita Jung para explicitar as diferenças
metafóricas entre sótão e porão:
Eis como o psicanalista C. G. Jung se serve da
imagem dupla do porão e do sótão para analisar os
medos que moram na casa. Encontraremos no livro
de Jung: L’Homme à Ia Découverte de Son Âme (O
Homem na Descoberta de Sua Alma), tradução
francesa, página 203, uma comparação que deve
tornar clara a esperança que tem o ser consciente
“de aniquilar a autonomia dos complexos
desbatizando-os”. A imagem é a seguinte: “A
consciência se comporta então como um homem
que, ouvindo um barulho suspeito no porão, se
precipita para o sótão para constatar que aí não há
ladrões e que, por consequência, o barulho era pura
imaginação. Na realidade, esse homem prudente não
ousou aventurar-se ao porão”.
À medida que a imagem explicativa empregada por
Jung nos convence, nós, leitores, revivemos
fenomenologicamente os dois medos: o medo no
sótão e o medo no porão. Em lugar de enfrentar
Arte, Cultura e Imaginário 255
o porão (o inconsciente), “o homem prudente”
de Jung busca coragem nos álibis do sótão. No
sótão, camundongos e ratos podem fazer seu
alvoroço. Quando o dono da casa chegar, eles
voltarão ao silêncio de seu buraco. No porão seres
mais lentos se agitam, menos apressados, mais
misteriosos. No sótão, os medos se
“racionalizam” facilmente. No porão, mesmo para
um ser mais corajoso que o homem evocado por
Jung, a “racionalização” é menos rápida e menos
clara; não é nunca definitiva. No sótão, a
experiência do dia pode sempre apagar os medos
da noite. No porão há escuridão dia e noite.
Mesmo com uma vela na mão, o homem vê as
sombras dançarem na muralha negra do porão
(BACHELARD, 2014, p. 209).
Martha não consegue, simplesmente, livrar-se do clone
de Ash; pelo contrário, guarda-o no sótão, como lembranças
sem medo, quase que espiritualizadas. Lembranças boas, já que,
enquanto monstros se escondem nos porões, saudades boas
guardam-se no sótão. “Enfim, a escada do sótão mais abrupta,
mais gasta, nós a subimos sempre. Há o sinal de subida para a
mais tranquila solidão. Quando volto a sonhar nos sótãos de
outrora, não desço mais” (BACHELARD, 2014, p. 214).
Figura 3 – O sótão.

Fonte: Netflix
256 Morte, simulacros e luto...
Fruto de uma relação entre o exibicionismo nas redes
sociais por parte de Ash e da dor da perda por parte de Martha,
o clone Ash fora aceito, enfim, por parte da viúva, como uma
representação, não como a essência do que era seu marido.
“Be Right Back” mostra ao espectador um exemplo
de distopia plausível ao usar a tecnologia para falar de temas
humanos, como perda, ausência e morte.
Talvez uma das mais belas e poéticas análises sobre a
morte seja a de Guimarães Rosa, feita em 16 de novembro de
1967, em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras,
ao se referir a João Neves da Fontoura, de quem ele assumiria e
com elas terminamos esta análise de “Be Right Back”:
[...] De repente, morreu: que é quando um homem
vem inteiro pronto de suas próprias profundezas.
Morreu, com modéstia. Se passou para o lado
claro, fora e acima de suave ramerrão e terríveis
balbúrdias. Mas – o que é um pormenor de
ausência. Faz diferença? “Choras os que não
devias chorar. O homem desperto nem pelos
mortos nem pelos vivos se enluta” – Krishna
instrui Arjuna, no Bhágavad Gita. A gente morre
é para provar que viveu. [...]Alegremo-nos,
suspensas ingentes lâmpadas. E: “Sobe a luz sobre
o justo e dá-se ao teso coração alegria!” - desfere
então o salmo. As pessoas não morrem, ficam
encantadas.
Com o encanto do imortal Guimarães Rosa, cientes
de nosso caminhar para o encanto final da vida, findamos
este capítulo.

Referências Bibliográficas

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins


Fontes, 2000.
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulações. Lisboa: Relógio
D’agua, 1991.
Arte, Cultura e Imaginário 257
BLACK MIRROR. 2a. temporada, ep. 1: “Be Right Back”.
Roteiro: Charlie Brooker. Direção: Owen Harris. Reino
Unido: Netflix, 2013. 44 min. Disponível em: NETFLIX.
Acesso em: 08 abr. 2019.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade
técnica. Porto Alegre: Editora Zouk, 2012.
BRANDÃO; FELICIO. De Cem anos de Solidão à Modernidade
Líquida. Universidade Federal de Campo Grande. Revista Letras
Raras, v. 7, n. 2, 2018.
_______. De cem anos de solidão à modernidade líquida. In:
Imagem: Reflexo do mundo e do homem? Embu-Guaçu: Lumen et
Virtus, 2017.
CAFÉ FILOSÓFICO. Responsabilidade: uma virtude
psíquica ou uma aquisição cultural? Ivan Capelatto. Produção:
CPFL/TV Cultura. Abril de 2018. Disponível em: <https://
www.youtube.com/watch?v=oy77qdXnWf4>. Acesso em:
26/10/2018.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro:
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.
Philip K. Dick e Equipe de Ajuste: análise
do conto e da adaptação para o filme Os
Agentes do Destino
Sandra Trabucco Valenzuela (Fatec/FAM)1

En tierra, en humo, en polvo, en sombra, en nada.


Luis de Góngora (1582)

Introdução a Philip K. Dick

Philip K. Dick (1928-1982) é um dos autores mais


reconhecidos de ficção científica, seja por seu sucesso com o
público leitor, seja pela crítica especializada. Com 44 romances
e 120 contos publicados em livros e revistas, Philip K. Dick
começou a publicar seus contos em 1952, no entanto, foi
somente em 1962 que seu primeiro livro é lançado, O Homem
do Castelo Alto2 (The man in the High Castle), conquistando o
Hugo Awards de Melhor Romance de fantasia ou ficção
científica, pela Worldcon – The World Science Fiction
Convention. O enredo dessa obra baseia-se na premissa em
que os países do Eixo – Alemanha e Japão – teriam vencido a
Segunda Guerra, criando-se uma nova configuração política
mundial e, também, obrigando os judeus a assumirem novas
identidades e gerando um novo sistema social.

1
Pós-Doutora na área de Literatura Comparada pela Universidade de
São Paulo (USP); Doutora e Mestre em Literatura pela USP; Bacharel e
Licenciada em Letras (USP), Especialista em História da Arte e Cinema.
Docente da Fatec-Carapicuíba e da FAM, em São Paulo. Escritora
premiada e pesquisadora, é também produtora e apresentadora do
programa “Mega Séries”, Rádio Mega Brasil Online.
2
DICK, Philip K. Homem do Castelo Alto. Trad. Fabio Fernandes. São
Paulo: Aleph, 2015.
262 Philip K. Dick e Equipe de Ajustes...
Assim, motivos e temas correntes na obra de Philip
K. Dick já se fazem presentes em O Homem do Castelo Alto e
em outros contos: futuro distópico e/ou alternativo numa
sociedade dominada por governos ditatoriais e manipuladores,
que geram o caos social, a distorção da realidade,
retrofuturismo, confusão mental por meio de paradoxos,
utopia, memória e cibercultura.
Especialmente para a publicação de contos de ficção
científica, Dick valeu-se de pseudônimos, como Richard
Philips e Jack Dowland, para poder publicar seus textos,
considerando que muitas revistas especializadas em Sci-Fi não
permitiam a publicação de mais de um conto do mesmo autor
em um único exemplar.
A biografia de Philip K. Dick é marcada por problemas
derivados de distúrbios psicológicos, como agorafobia,
esquizofrenia e paranoia, que eram, por sua vez, agravados
pelo consumo de drogas. Segundo Carrère (2016), um
episódio ocorrido ainda durante a primeira infância de Dick
foi determinante em sua vida: a morte de Jane, sua irmã gêmea,
de apenas cinco semanas, que faleceu de subnutrição. Naquele
momento de luto, a família decidiu que, quando Philip
morresse, também seria enterrado no Cemitério Riverside,
em Fort Morgan, no Colorado, ao lado da irmã e, para tanto,
construiu uma lápide com os dois nomes lado a lado: Jane e
Philip, deixando incompleta a data de morte do menino.
Quando Philip K. Dick faleceu, em 1982, ele foi de fato
sepultado ao lado da irmã (CARRÈRE, 2016, p. 9). Ao longo
da vida, Dick assumiu a morte da irmã como uma presença/
ausência persistente, o que o levou a abordar, com frequência,
em sua obra, a questão do duplo e do universo alternativo.

“Equipe de Ajuste” (1954), de Philip K. Dick: o


imaginário, leitura e análise

O conto “Equipe de Ajuste” (“Adjustment Team”),


estruturado em nove partes, foi lançado na revista especializada
em ficção científica, Orbit, set.-out. de 1954, com duas artes de
Jack Faragasso; a ilustração da capa da publicação é de Ed Valigursky.
Arte, Cultura e Imaginário 263
“Equipe de Ajuste” estrutura suas imagens por meio
do imaginário religioso, que circula nas sociedades, desde as
culturas primitivas: o mito da Criação. O conceito de
imaginário aqui abordado considera que:
Às definições negativas dadas pela tradição filosófica
ocidental [...], a corrente da antropologia do
imaginário, iniciada por Jung, Eliade, Bachelard,
Durand, opõe uma definição positiva, “plena”: o
imaginário é o produto do pensamento mítico. O
pensamento mítico é um pensamento concreto que,
funcionando sobre o princípio da analogia, se
exprime por imagens simbólicas organizadas de
maneira dinâmica. A analogia determina as
percepções do espaço e do tempo, as construções
materiais e institucionais, as mitologias e as ideologias,
os saberes e os comportamentos coletivos
(LEGROS et al., 2014, p. 10).
A efabulação de “Equipe de Ajuste” oferece ao leitor
a possibilidade de questionar a sua própria realidade, por meio
da narrativa ancorada no fantástico:
O que é que vivifica o fantástico e vem lhe dar a sua
verdadeira densidade, senão a simples vida cotidiana,
com seus problemas, sua comicidade, seus ridículos,
sua mistura íntima de cuidados, de angústias, de
pitoresco, de ternura? (HELD, 1980, p. 28)
O enredo se inicia com o diálogo entre o Escriturário
e um cão falante, cuja tarefa é evocar a presença de alguém
com base no que está determinado em um Livro. Na parte 2,
é introduzido o protagonista Ed Fletcher, um funcionário
público, casado com Ruth; numa manhã como outra qualquer,
depois de tomar café da manhã, Ruth sai apressada para o
trabalho. Na parte 3, ocorre o erro por parte do Escriturário
e do cão, que caiu no sono e acabou se atrasando um minuto
para a evocação, fato que alterará todo o curso dos eventos.
Até este momento da narrativa, a montagem paralela (1ª. parte,
Escriturário e cão; 2ª. parte, Fletcher e Ruth; 3ª. parte,
Escriturário e cão erram o “Plano”) torna-se evidente, aguçando
264 Philip K. Dick e Equipe de Ajustes...
a curiosidade e estranhamento no leitor: não fica claro por que
um cão conversa com um Escriturário, ou seja, há uma
personificação do cachorro, enquanto o Escriturário não tem
nome ou qualquer caraterística física, ele é apenas um
encarregado de uma tarefa especificada num Livro.
O erro constatado na parte 3 – a evocação correta
faria com que um amigo viesse de carro buscar Fletcher para
trabalhar, fazendo com que ele chegasse cedo –, gera, na parte
4, consequências e instabilidade no chamado “Plano”: ao invés
de receber um amigo, é um vendedor de seguros que bate à
porta, o que provoca o atraso de Fletcher para o trabalho.
Porém, quando ele estava a caminho, ocorre o inusitado: “o
sol havia apagado” (DICK, 2012, p. 275) e tudo – pessoas e
coisas – transformou-se em cinzas, o silêncio e o vazio
tomaram todos os espaços. Esse é o momento em que surge
o conflito principal do conto.

Figura 1 – Capa da Orbit, v. 1, n. 4, 1954, com o conto “Adjust-


ment Team”, de Philip K. Dick.

Fonte: Disponível em: <https://bit.ly/2JfkLrP>. Acesso em: 25 nov. 2020.


Arte, Cultura e Imaginário 265
Ed Fletcher, o Escriturário e o Evocador

No início do conto, o narrador onisciente propõe um


espaço-tempo cotidiano, sem precisão de data, alternando
como uma câmera de cinema sua posição para narrar os fatos.
A imagem proposta pelo foco nar rativo pode ser
compartilhada com qualquer leitor que tenha vivido num
espaço urbano a partir de meados do século XX: “Era uma
manhã clara. A grama estava úmida e as calçadas brilhavam à
luz do sol, que também refletia e cintilava nos carros
estacionados” (DICK, 2012, p. 269).
Embora Philip K. Dick seja mais conhecido pelo gênero
de ficção científica, em “Adjustment Team” destaca-se a
presença do fantástico. A nor malidade inicial e sua
subsequente subversão inserem a narrativa no âmbito do
fantástico, ressaltando a sensação de medo provocada pela
quebra do real, no momento em que o sol se apaga e tudo se
transforma em pó, em cinzas. A situação para o protagonista
é aterrorizante e inexplicável por leis da física ou de qualquer
tentativa de racionalidade por parte de Fletcher ou do leitor,
que também é apanhado de sobressalto. De acordo com Roas,
a narrativa fantástica nos situa inicialmente dentro
dos limites do mundo que conhecemos, do
mundo que (digamos assim) controlamos, para
logo rompê-lo com um fenômeno que altera a
maneira natural e habitual como as coisas ocorrem
nesse espaço cotidiano. E isso converte tal
fenômeno em impossível, e, como tal, em
inexplicável, incompreensível. [...] O fenômeno
fantástico supõe uma alteração do mundo familiar
do leitor, uma transgressão dessas regularidades
tranquilizadoras [...]. O fantástico nos faz perder
o pé em relação ao real. E, diante disso, não cabe
outra reação senão o medo (ROAS, 2014, p. 138).
Vale ressaltar que o papel do cão é de “evocador”, isto
é, cabe a ele chamar ou trazer à memória determinado assunto.
No entanto, o cão mostra-se sonolento e, de certo modo,
266 Philip K. Dick e Equipe de Ajustes...
desinteressado pelo mundo físico, numa atitude de desdém
com relação ao espaço-tempo vivido pelos humanos: “O
cachorro dormia dentro da casinha, de costas para o mundo”
(DICK, 2012, p. 269). Assim, o diálogo estabelecido entre o
Escriturário e o cão revela que – embora ele continue agindo
como um cão – possui atitudes humanas, questionando a
pressa que lhe é imposta para cumprir a missão. Ambos
observam pela janela Ed Fletcher, que deve sair para trabalhar
às oito e meia, pois deverá estar no perímetro do Setor T137
antes que o processo de alteração comece.

Figura 2 – Orbit, v. 1, n. 4, 1954, 1ª. página do conto “Adjustment


Team”, de Philip K. Dick.

Fonte: Edição facsimilar de Orbit3

3
Disponível em: <http://bit.ly/3pN8s5S>. Acesso em: 22 nov. 2020.
Arte, Cultura e Imaginário 267

Já o Escriturário, pelo contrário, mostra-se preocupado


em manter à risca tudo o que a chamada “planilha de
transição” indica, sempre explicando com detalhes ao cão o
que deve ser feito, utilizando ainda a expressão “pelo amor
de Deus”, o que revela, por meio da linguagem, sua vinculação
à fé e à existência de Deus.
– Pelo amor de Deus – exclamou o Escriturário
[...] Você aí, acorde.
[...]
– Missão importante. [...] Estão ajustando o Setor T137
agora de manhã. Começando às nove em ponto. –
Consultou o relógio de bolso. – Alteração de três horas.
Acaba ao meio-dia (DICK, 2012, p. 269).
Na parte 2, Ed Fletcher e sua esposa Ruth tomam
preguiçosamente café da manhã e se preparam para ir
trabalhar, como faziam todas as manhãs. Esta ação é
importante para evidenciar uma situação cotidiana e de
absoluta normalidade, contrapondo-se ao estranhamento
gerado pelo diálogo entre o cão e o Escriturário.
As duas primeiras partes do conto de Dick tratam
exatamente de compor essa quebra inusitada e inexplicável:
quem são os personagens e por que o Escriturário incumbe
um cão falante de realizar uma missão? Qual a relação que se
estabelece entre os personagens Escriturário, cão e Fletcher?
O que é o Setor T137?
A parte 3 apresenta o momento em que, embora
estimulado pelo Escriturário, o cão adormece e perde a hora,
subvertendo a ordem estabelecida previamente pelo
Escriturário e pelo Plano proposto, gerando um caos, que
exige medidas rápidas para tentar fazer com que Fletcher
chegue a tempo.
Na parte 4, Fletcher ainda está em casa fazendo a barba,
quando ouve alguém tocar a porta: depreende-se que o
vendedor, portando pasta e chapéu, que bate à porta de
Fletcher destina-se a interferir na ordem natural das coisas,
retendo-o por mais tempo, ao oferecer-lhe seguros.
Considerando que o cão falhara, o que se estabelece é a
desordem e esse vendedor faz parte dessa desordem. Tanto é
268 Philip K. Dick e Equipe de Ajustes...
que Ed Fletcher acaba comprando um seguro de dez mil
dólares, mais porque desejava que o vendedor fosse embora
logo, do que por necessidade. A ironia da situação é que um
vendedor de seguros é o prenúncio do caos que está por vir.
Ed Fletcher segue, então, apressado para o trabalho,
pensando que seria repreendido pelo chefe (“velho Douglas”)
por ter se atrasado. Durante o percurso, as imagens e
percepções de Fletcher foram-se modificando:
Ed hesitou. Talvez pudesse alegar que ficou preso
no elevador. Em algum ponto entre o segundo andar
e o terceiro. [...]
E parou, rígido.
O sol havia apagado. Estava brilhando e, no instante
seguinte, já não estava mais lá. Ed olhou para cima
de súbito. Nuvens cinzentas passavam, dando voltas.
Nuvens enormes e sem forma. Nada mais. Uma
névoa densa e sinistra que fazia tudo oscilar e
escurecer. Ele sentiu arrepios desconfortáveis. O que
era isso? (DICK, 2012, pp. 274-275).
O mal-estar de Fletcher e a mudança do céu introduzem
à trama elementos inusitados, que perturbam a realidade
cotidiana vivenciada pela personagem e que também é
compartilhada pelo leitor. Quando o sol se apaga e as nuvens
cinzentas repentinamente começam a girar em círculos, é sinal
de que algo está errado dentro do mundo físico. A névoa
densa dificulta a percepção visual, estabelecendo um clima
de devaneio, sonho ou, ainda, irrealidade. O cinza domina o
ambiente, interferindo na compreensão racional do visível:
Se todo o nosso meio ambiente fosse composto
por um valor homogêneo e invariável de uma
tonalidade intermediária de cinza, a meio caminho
entre o branco e o negro, seria possível ver, ou
seja, não experimentaríamos a sensação de
cegueira criada por um ambiente totalmente
negro. No entanto, a capacidade de discernir o
que estaríamos vendo seria totalmente eliminada
de nossas percepções. Em outras palavras, no
processo da visão, o contraste de tom é de
Arte, Cultura e Imaginário 269
importância tão vital quanto a presença da luz
(DONDIS, 2007, p. 110).
Assim, a incompreensão, o desconhecido e o mistério são
as sensações chaves que determinam a percepção de um clima
de desestabilização do real: a narrativa fantástica “se compraz
em apresentar a homens como nós o inexplicável, mas dentro
do nosso mundo real” (VAX apud ROAS, 2014, p. 75).
A cena ganha contornos assustadores para Fletcher, no
entanto, ele prossegue rumo ao edifício onde funciona o seu
escritório:
[...] Ed olhou à sua volta, transtornado, tentado
enxergar através da névoa em movimento. Nenhuma
pessoa. Nenhum carro. Nenhuma luz. Nada.
O edifício agigantava-se adiante, fantasmagórico. Ele
estendeu a mão, hesitante...
Uma parte do prédio caiu. Desmoronou numa
torrente de partículas. Feito areia. Ed ficou
boquiaberto, com cara de bobo. [...]
– Ei – balbuciou Ed. – O que está havendo?
O vendedor não respondeu. Ed estendeu o braço
na direção dele. Sua mão tocou o braço cinza do
vendedor... e o atravessou.
– Meu Deus – exclamou Ed.
O braço do vendedor se soltou. Caiu no chão do
saguão, desintegrando-se em fragmentos. Pedaços
de fibra cinza. Como poeira. Ed ficou zonzo.
– Socorro! – gritou, ao encontrar a voz (DICK, 2012,
p. 275).
Todo o trecho é encadeado por sequências de frases
curtas e fragmentadas, o que acentua tanto o ritmo da
respiração ofegante – do narrador e da personagem –,
provocada pelo medo de Fletcher, como a fragmentação
material de objetos e das pessoas: o discurso se dilui
juntamente com o mundo material. O edifício se desintegra,
assim como as pessoas, dissolvendo-se em partículas
acinzentadas, como se fossem apenas pó, numa reminiscência
do texto bíblico:
270 Philip K. Dick e Equipe de Ajustes...
Com o suor do seu rosto você comerá o seu
pão, até que volte à terra, visto que dela foi
tirado; porque você é pó e ao pó voltará
(BÍBLIA, Gênesis, 3, 19).
A respeito da linguagem e da construção e manipulação
da realidade, Dick considera que a utilização das palavras
determina, também, as formas de controle da mente e da
percepção das pessoas:
A ferramenta básica para a manipulação da
realidade é a manipulação de palavras. Se você
pode controlar o significado das palavras, você
pode controlar as pessoas que devem usar as
palavras. George Orwell deixou isso claro em seu
romance 1984. Mas outra forma de controlar a
mente das pessoas é controlar suas percepções.
Se você conseguir que eles vejam o mundo como
você, eles pensarão como você. A compreensão
segue a percepção. Como você faz com que eles
vejam a realidade que você vê? Afinal, é apenas
uma realidade entre muitas (DICK, 1995).
Em consonância com as palavras de Dick, Bozzetto
(apud ROAS, 2014, p. 172) reflete a respeito da linguagem e
da literatura fantástica, ao classificar como “operadores de
confusão” as estratégias discursivas que adensam a incerteza
diante da percepção de tais fenômenos:
metáforas, sinédoques, comparações, paralelismos,
analogias, antíteses, oxímoros, neologismos e
expressões ambíguas do tipo “pensei ter visto”,
“acho que vi”, “era como se”, assim como a utilização
reiterada de adjetivos de forte conotação, como
“sinistro”, “fantasmagórico”, “aterrorizante”,
“incrível” e outros desse mesmo campo semântico
(ROAS, 2014, p. 172).
Nesta “retórica do indizível” (BELLEMIN-NOËL
apud ROAS, 2014, p. 172), encontramos no texto de Dick
diálogos inusitados, como é o caso daquele estabelecido entre
o cão e o Escriturário:
Arte, Cultura e Imaginário 271
[Cão] – Isso significa que tenho que fazer uma
evocação. [...] O que a evocação das oito e
quinze trará?
[Escriturário] – Trará um Amigo com Carro.
Para levá-lo mais cedo ao trabalho (DICK,
2012, p. 270).
Dentro do contexto do conto, o termo “evocação”
ganha nova dimensão quanto ao seu significado, criando, no
leitor, um reforço na questão da incompreensão ou da criação
de um novo paradigma de significado, antes desconhecido
do leitor. O que faz um cão evocador? Todos os evocadores
desse universo paralelo são cães e será que também todos os
cães são evocadores? A instância narrativa não esclarece em
nenhum momento como é executado o processo da
“evocação”, surgindo apenas a expressão: “– Au! – evocou”
(DICK, 2012, p. 272).
O termo original em inglês utilizado por Dick para
evocador e o respectivo verbo é “summoner”, “summon”,
cuja tradução mais específica seria “convocar oficialmente”
(Collins Dictionary Online4). A opção do tradutor foi o verbo
“evocar”, termo que pode sugerir, em língua portuguesa, um
significado mais amplo do que o proposto no original em
inglês, considerando a inclusão de um paradigma semântico
relacionado ao religioso, como é possível observar na definição
do Dicionário Caldas Aulete:
1. Invocar ou convocar (esp. algo sobrenatural); fazer
aparecer por meio de invocação, esconjuro ou
exorcismo: evocar a ajuda dos santos: evocar os espíritos
2. Fazer presente na lembrança; reproduzir na
imaginação, no espírito (uma imagem qualquer): O
pobre sonhador evocava um mundo perfeito [...]
3. Jur. Deslocar (uma causa) de um tribunal a
outro: O presidente poderá evocar o processo e redistribuí-
lo (Aulete Digital5).
4
Disponível em: https://www.collinsdictionary.com/pt/dictionary/english/
summon Acesso em: 23 nov. 2020.
5
Disponível em: http://www.aulete.com.br/evocar Acesso em: 23 nov. 2020.
272 Philip K. Dick e Equipe de Ajustes...
A opção por um termo que remeta ao religioso
efetuada pelo tradutor justifica-se pela continuidade da
narrativa, em que o campo semântico altera-se para o religioso,
como é o caso de pessoas e objetos se transmutarem
repentinamente em pó. Essa ideia pode ser encontrada em
diversas passagens do texto bíblico, sem que, no entanto, tais
passagens sejam explicitadas no conto: “E formou o Senhor
Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o
fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente” (BÍBLIA,
Genesis, 2,7); ou ainda, “Todos vão para um lugar; todos foram
feitos do pó, e todos voltarão ao pó” (BÍBLIA,
ECLESIASTES, 3, 20). Essas passagens remetem à criação
divina e à morte, respectivamente.
A remissão ao texto bíblico também pode justificar o
quadrante especificado para o “ajuste”: T137. Sem autor
identificado, o Salmo 137 é um cântico de Sião, que aborda o
desespero daqueles que sofreram na destruição de Jerusalém
empreendida pelo povo de Edom e da Babilônia, em 586 a.
C. Trata-se de um rogo, uma exposição de um desejo expresso,
uma verdadeira vociferação emocionada, conforme Hermann
Gunkel (1998), uma “lamentação coletiva”, que trata dos
seguintes temas: lamentação na Babilônia pela lembrança da
destruição de Sião (v. 1-3); desejo de rever Jerusalém e voltar
a cantar em louvor a Deus (v. 4-6); anseio de vingança contra
o povo de Edom e da Babilônia pela destruição de Jerusalém
(v. 7-9). Um dos hinos mais conhecidos dos Salmos é o
versículo 1: “Junto aos rios da Babilônia, ali nos sentamos e
choramos” (BÍBLIA, SAL 137,1).
Ao identificar a intertextualidade com o Salmo 137,
pode-se inferir que o conto associa a ideia de lamento coletivo,
relacionando-o ao “Plano”, ou seja, o número 137 introduz o
conflito, carregado de lamento. Os conceitos de destruição e
sofrimento são inerentes à referida intertextualidade.
A percepção do personagem Ed Fletcher ao chegar
no escritório era que tudo havia desmoronado; suas mãos
atravessavam as pessoas em cinzas: “Nada se mexia. Nenhum
som. Nenhuma vida. O escritório inteiro era poeira cinza –
sem vida e sem movimento” (DICK, 2012, p. 277). Desse
modo, além da perturbação da visão, Flechter associa a
Arte, Cultura e Imaginário 273
percepção do tato acentuando a sensação de estar diante de
uma cena apocalíptica de destruição, numa autoconsumação:
A textura é o elemento visual que com frequência
serve de substituto para as qualidades de outro
sentido, o tato. Na verdade, porém, podemos
apreciar e reconhecer a textura tanto através do
tato quanto da visão, ou ainda mediante uma
combinação de ambos. [...] A textura deveria
funcionar como uma experiência sensível e
enriquecedora. Infelizmente, nas lojas caras, os
avisos “Não tocar” coincidem, em parte, com o
comportamento social, e somos fortemente
condicionados a não tocar as coisas ou pessoas
de nenhuma forma que se aproxime de um
envolvimento sensual. O resultado é uma
experiência tátil mínima, e mesmo o temor do
contato tátil [...] (DONDIS, 2007, pp. 70-71).
De repente, Fletcher vislumbra um homem de jaleco
branco e atrás dele vinham outros, com equipamentos
intrincados. Foram eles os responsáveis por constatar que algo
estava errado e que Fletcher ainda estava carregado,
energizado. Em pânico, Fletcher foge daqueles homens e,
quando já está na rua, a vida parece retomar seu curso. O
primeiro pensamento de Fletcher é o questionamento sobre
sua sanidade: “vagou sem direção, sem propósito, perdido
num estado de confusão e horror” (DICK, 2012, p. 278).

Ed Fletcher e sua fuga

Na parte 5, o conto, mais uma vez, desloca-se para a


perspectiva do Escriturário, que está no gabinete
administrativo e aguarda em agonia quais serão as represálias
pelo erro e, novamente, menciona: “Deus. Tanta confusão e
sofrimento” (DICK, 2012, p. 279).
274 Philip K. Dick e Equipe de Ajustes...
Figura 3 – Orbit, v. 1, n. 4, 1954, 9ª. página do conto “Adjustment
Team”, de Philip K. Dick.

Fonte: Edição facsimilar de Orbit7

7
Disponível em: <https://bit.ly/35Jc0Pe>. Acesso em: 27 nov. 2020.
Arte, Cultura e Imaginário 275
O Chefe do Escriturário é descrito como um Velho,
de olhos azul-claros que exprimiam ternura, rosto enrugado,
cabelos longos e brancos, usava um longo manto. O gabinete
ficava no alto, de onde comandava, além dos Escriturários,
também os Vigilantes e Evocadores. Ao entender a situação,
o Velho determinou que Fletcher fosse levado até ele, pois
era tarde demais para desenergizá-lo. A imagem do Velho
remete à figura criada por Michelangelo Buonarroti (1475-
1564), no afresco da Capela Sistina, em A Criação de Adão:

Figura 4 – A Criação de Adão, Michelangelo, Capela Sistina, 1508-1512.

Fonte: A Criação de Adão. Disponível em: <https://bit.ly/3md6Elz>.


Acesso em: 27 nov. 2020.

Na parte 6, ainda sem compreender o que vivenciou,


Fletcher busca Ruth para compartilhar a experiência terrível
de ver tudo se transformar em cinzas, em pó, além de ter de
fugir dos homens de jaleco branco, porém, mesmo incrédula,
ela o apoia e quer que ele volte para certificar-se de que não
há o que temer. No entanto, Fletcher reage: “Depois do que
eu vi? Ouça, Ruth. Vi o tecido da realidade se rasgar. E vi...
por trás. Por baixo. Vi o que realmente estava lá. E não quero
voltar. Não quero ver pessoas de pó novamente. Nunca mais”
(DICK, 2012, p. 283).
276 Philip K. Dick e Equipe de Ajustes...
O discurso de Fletcher revela que ele entendeu o que
viu, pois tudo isso está introjetado em seu imaginário religioso;
ele passa a duvidar do que é realidade, acreditando que há
algo além do visível. Quem são os homens de jaleco branco?
Fazem parte de alguma força religiosa criadora ou de alguma
força alienígena, ou alguma realidade paralela? Nada ainda
está claro.
As palavras de Fletcher fazem relembrar novamente
as palavras de Philip K. Dick, proferidas em 1978, no texto
“Como construir um universo que não se desintegre dois dias
depois” (“How to build a universe that doesn’t fall apart two
days later”)8:

Sempre foi minha esperança escrever


romances e contos que se fizessem
a pergunta: “o que é realidade?”, e
que algum dia eu obteria a resposta.
Essa também era a esperança de
maioria de meus leitores. Anos se
passaram. Escrevi mais de trinta
romances e mais de uma centena de
contos, mas ainda não consegui
definir o que é o real. Um dia, uma
estudante universitária no Canadá
me pediu para definir a realidade [...]
Eu pensei a respeito e, por fim, eu
disse: Realidade é aquilo que, quando
você para de acreditar nela, ela não
vai embora”. [...] Era 1972. Desde
então, eu não fui capaz de definir
realidade com mais lucidez (DICK,
1978, tradução nossa).

A interpretação da realidade foi uma questão


permanente na obra de Dick. No conto “Equipe de Ajuste”,

8
Disponível em: <http://bit.ly/2JUGDJQ>. Acesso em 22 nov. 2020.
Arte, Cultura e Imaginário 277
a discussão faz-se presente na forma ambígua de diálogo
religioso, mas também de ficção científica: seria aquela
realidade paralela apenas uma construção proveniente de
algum governo, corporação ou seria de fato uma experiência
religiosa? No mesmo artigo antes citado, publicado em 1978,
Dick considera que:
[...] hoje vivemos numa sociedade em que
realidades espúrias são fabricadas pela mídia, por
governos, por grandes corporações, por grupos
religiosos, grupos políticos – e o hardware
eletrônico existe para entregar esses
pseudomundos direto na mente do leitor, do
espectador, do ouvinte.[...] (DICK, 1978, tradução
nossa).
Por outro lado, Fletcher comenta: “Vi o tecido da
realidade se rasgar. E vi... por trás. Por baixo. Vi o que realmente
estava lá.” (DICK, 2012, p. 283). Configura-se aqui a ideia de
“rasgar a cortina” da fantasia e da ficção e observar a realidade,
a construção do jogo cênico, em que o Velho de olhos claros
é o diretor de cena e os humanos, os atores. Os homens de
jaleco, o Escriturário e os Evocadores formam a equipe de
ajuste, são os responsáveis pela organização e disposição dos
elementos nesta encenação:
No espetáculo teatral, em geral a equipe é
composta por vários profissionais especializados.
O encenador ou diretor concebe o espetáculo
como um todo (a partir do texto dramático a
ser encenado ou de outra proposta sem uso do
texto), dirige o trabalho dos atores e coordena
todo o grupo. Os atores criam as personagens,
atuam. O cenógrafo cria a cenografia,
acompanha a execução dos cenários pelos
cenotécnicos, pintores ou outros profissionais
(como por exemplo os aderecistas, os que
fazem os efeitos especiais etc.). [...] A cenografia
pode ser considerada uma composição em um
espaço tridimensional – o lugar teatral. Utiliza-
se de elementos básicos, como cor, luz, formas,
277 Philip K. Dick e Equipe de Ajustes...
volumes e linhas. Sendo uma composição, tem
peso, tensões, equilíbrio ou desequilíbrio,
movimento e contrastes (MANTOVANI,
1989, pp. 5-6).
Seria aquela realidade vivida por Fletcher apenas uma
encenação? A realidade paralela observada em decorrência
da falha seria, então, a “vida real”?
Fletcher e Ruth retornam ao local de trabalho de Ed,
e tudo parecia normal. Entretanto, Fletcher percebeu
“mudanças sutis e infindáveis” tanto nas pessoas, como nos
detalhes: tudo tinha sido alterado para coisas semelhantes. A
mesa, que era de carvalho, agora era de mogno, o próprio
chefe de Ed, Nathan Douglas (o Velho Douglas), estava mais
jovem e magro, seus olhos agora eram verdes em vez de pretos.
Fletcher percebeu que havia ali uma nova versão da realidade
anterior e decidiu fugir, tomado pelo terror.
Ao refugiar-se numa cabine telefônica, Fletcher
percebeu que a cabine atravessou o teto do prédio e subiu
para muito além das nuvens. O espaço narrativo da cabine
telefônica constitui uma intertextualidade com relação à figura
do herói Superman, que deixava a vida cotidiana como Clark
Kent de lado sempre que entrava numa cabine,
transformando-se, então, no poderoso herói Superman,
personagem dos quadrinhos criado por Joe Shuster e Jerry
Siegel, e lançado na revista Action Comics, de 1938.

Fletcher e o Velho

A parte 7 do relato começa com Fletcher numa


câmara, com um contador (vestindo paletó azul, colete,
corrente de relógio) e, mais atrás, estava o Velho de cabelos
brancos. Fletcher acredita que está morto, mas a ideia é
descartada pelo próprio Velho. Assim, o medo sentido de
início dá lugar à vibração, a sentimentos de reverência e
fascinação. O Velho confirma: Fletcher não poderia ter visto
o ajuste realizado pela equipe e deveria prometer que jamais
contaria o fato a alguém.
Arte, Cultura e Imaginário 279
Por fim, Fletcher compreende o percurso de que havia
participado:
Sentiu uma premonição arrepiar o corpo. – Eu
deveria ter sido modificado como os outros, mas
acho que algo deu errado. [...] Bom, não contarei
a ninguém. [...] Pode ter certeza. É como se eu
tivesse mudado (DICK, 2012, p. 291).
Porém, quando o Velho concluiu que ele já havia
contado tudo à esposa, fica transtornado: “– Sua esposa sabe.
O Velho contorceu o rosto, furioso. – Uma mulher. Tinha
que contar justo para uma...” (DICK, 2012, p. 291).
A desconfiança do Velho com relação à mulher
remonta ao relato bíblico da primeira mulher, Eva, que por
sua desobediência e curiosidade, foi expulsa do Paraíso. A
leitura negativa e a má fama das mulheres também se fazem
presentes no mito de Pandora, na mitologia clássica, cuja
história retrata a primeira mulher criada por Zeus como castigo
a Prometeu, quem roubara o fogo dos deuses, para dar alento
a outra criação: o homem. Desse modo, depreende-se, a partir
desses dois mitos, que a existência da mulher constitui uma
represália ao homem (não ao ser humano), que, embora bela,
é inescrupulosa, desobediente, curiosa e intrometida.
Observa-se, portanto, um diálogo que os diferentes
mitos da criação: o Velho reveste-se do imaginário religioso
de uma força criadora superior que pode ser proveniente do
mito judaico-cristão ou da mitologia greco-latina. Tal relação
entre as diferentes concepções míticas é uma preocupação
explicitada por Philip K. Dick:
N o Timeu, de Platão, os Deuses não criam o
universo, como o faz o Deus cristão; Ele
simplesmente o encontra um dia. Está num estado
de caos total. Deus começa a trabalhar para
transformar o caos em ordem. Essa ideia me atrai,
e eu a adaptei para se adequar à minhas próprias
necessidades intelectuais: e se nosso universo
começasse como algo não totalmente real, uma
espécie de ilusão, como a religião hindu ensina, e
280 Philip K. Dick e Equipe de Ajustes...
Deus, por amor e bondade para conosco, estivesse
transmutando-o lentamente, lenta e secretamente,
em algo real?
Não estaríamos cientes dessa transformação, uma
vez que não sabíamos que nosso mundo era
primeiramente uma ilusão (DICK, 1978). 9
Segue-se a sequência em que o Velho esclarece o
motivo de suas intervenções nas atividades humanas,
justificando o rejuvenescimento do Velho Douglas:
Daqui a alguns dias, Douglas terá a chance de adquirir
uma grande área de floresta inexplorada no oeste
do Canadá. Ele terá de usar grande parte de seus
bens. O antigo Douglas, menos viril, hesitaria. É
fundamental que ele não hesite. Tem que comprar a
área e desmatar a floresta de imediato. Somente um
homem mais jovem, um Douglas mais jovem,
realizaria isso... (DICK, 2012, p. 292).
Esse esclarecimento do Velho determina que Ele tem
um plano que deve ser seguido à risca. Caso algum elemento
esteja fora do contexto pré-determinado dentro dessa grande
encenação, cabe à equipe de ajuste reordenar e reajustar o
que for necessário, intervindo diretamente na realidade
teatralmente constituída.

Fletcher volta para casa

Na parte 8 do conto, Ed Fletcher retorna para casa ao


pôr do sol e é recebido com um abraço de Ruth, ainda
preocupada pelo sumiço do marido desde o início da tarde.
Fletcher preparou um discurso para colocar um fim aos
questionamentos da esposa:
Percebi – declarou – que a coisa toda estava na
minha cabeça. Você estava certa, Ruth. Totalmente

9
Disponível em: <https: bit.ly/2JUGDJQ>. Acesso em 22 nov. 2020.
Arte, Cultura e Imaginário 281
certa. E até entendi o que causou tudo isso. [...]
Excesso de trabalho (DICK, 2012, p. 295).
Porém, Ruth, desconfiada e ciumenta, percebeu que
se tratava de uma mentira: “Com quem estava? Aonde foi?
Conte! Cedo ou tarde, vou acabar descobrindo!” (DICK, 2012,
p. 296). Ed Fletcher sentia-se acuado pela esposa e não sabia
como escapar da conversa. Foi então que um vendedor de
aspiradores de pó bateu à porta para fazer uma demonstração,
distraindo Ruth.
A chegada do vendedor de aspiradores retoma a cena
da chegada do vendedor de seguros na parte 4 do conto. A
presença desse vendedor sugere que este foi enviado por
algum Evocador no momento exato em que Fletcher não
conseguiria evitar a pressão da esposa. A descrição do
aspirador recorda os aparelhos intrincados utilizados pelos
homens de jaleco branco que perseguiram Fletcher.
Ao final, na parte 9 do conto, Fletcher entende a
cumplicidade entre ele e o Velho; acende um cigarro, olha
para cima e agradece.
Ed Fletcher passa por três momentos diferentes
dentro da narrativa: no início, Fletcher é uma pessoa com
uma vida cotidiana comum; de repente, devido ao erro no
ajuste, ele se depara com uma realidade paralela e
incompreensível, a qual lhe causa pânico; e, por fim, ao
compreender que a realidade faz parte de um plano maior,
que se trata de uma realidade fabricada, Fletcher aceita e se
sente grato por sua vida continuar como antes:
Em seu coração
o homem planeja o seu caminho,
mas o Senhor determina
os seus passos
(BÍBLIA, Provérbios, 16, 9).
O conto propõe a existência de um ser superior que
organiza toda a vida humana com base num plano. A realidade,
portanto, transforma-se num palco, numa encenação
manipulada onde não cabe o livre-arbítrio, já que há uma
predestinação direcionada pelo plano. Dessa forma, na diegese
282 Philip K. Dick e Equipe de Ajustes...
ficcional, a única realidade possível é a realidade do Criador,
aquela que Fletcher presenciou por engano.
Cabe aqui apontar algumas definições sobre o livre-
arbítrio. O Dicionário Houaiss define livre-arbítrio como a
“possibilidade de decidir, escolher em função da própria
vontade, isenta de qualquer condicionamento, motivo ou causa
determinante” (HOUAISS, 2015). Da perspectiva teológica,
para Santo Agostinho, o livre-arbítrio era um bem dado por
Deus, mesmo que o homem o empregue de forma equivocada,
provocando o mal. Por sua vez, Abelardo – teólogo e filósofo
escolástico (1079-1142), definiu o livre-arbítrio como dádiva
de Deus, contudo, era “governado pela natureza humana,
cheia de vícios. Enquanto fosse seguida a vontade de Deus, o
indivíduo estaria realmente livre, sem a sujeição a nenhum
tipo de vício” (ABELARDO apud DIEBE, 2019).
No texto “Como construir um universo que não se
desintegre dois dias depois” (“How to build a universe that
doesn’t fall apart two days later”, 1978), Philip K. Dick discute
também o que é a realidade:
Então eu questiono em minha escrita: o que é
real? Porque somos incessantemente
bombardeados com pseudorrealidades fabricadas
por pessoas muito sofisticadas, usando
mecanismos eletrônicos muito sofisticados. Não
desconfio de seus motivos, desconfio de seu
poder. Eles têm muito disso. E é um poder
surpreendente: o de criar universos interiores,
universos da mente. Eu deveria saber. Eu faço a
mesma coisa. É meu trabalho criar universos,
como base de um romance após o outro. Eu tenho
de construí-los de modo que eles não se
desintegrem dois dias depois. [...] No entanto, [...]
gosto de construir universos que se desintegram.
Gosto de vê-los se desmontarem e gosto de ver
como os personagens dos romances lidam com

10
Disponível em: <https://urbigenous.net/library/how_to_build.html>.
Acesso em 27 nov. 2020.
Arte, Cultura e Imaginário 283
esse problema. Eu tenho um amor secreto pelo
caos. [...] (DICK, 1978) 10 .
Na narrativa de “Equipe de Ajuste”, o Velho de olhos
azuis é o responsável pela construção da realidade e seu
desenvolvimento. O impacto causado pelo contato direto com
a equipe que cuida dessa cenografia da vida provoca o choque,
pois, repentinamente, são expostos os mecanismos do
espetáculo que a equipe ambienta e ilustra, contextualizando
um espaço-tempo que faça sentido, ao materializar o
imaginário criado para aqueles que são, ao mesmo tempo,
atores e público da pseudorrealidade encenada.

O filme Os Agentes do Destino (The Adjustment


Bureau)

O filme Os Agentes do Destino (The Adjustment Bureau),


de 2011, dirigido e roteirizado por George Nolfi, é uma
adaptação do conto “Equipe de Ajuste” (“Adjustment
Team”), de Philip K. Dick, e identificado como gênero
“romance, ficção científica e thriller” (IMDB, 2011)11.
Ao afirmar que uma obra é uma adaptação,
anunciamos abertamente sua relação declarada com
outra(s) obra(s). É isso que Gerard Genette (1982,
p. 5) entende por um texto em “segundo grau”,
criado e então recebido em conexão com um texto
anterior. Eis o motivo pelo qual os estudos de
adaptação são frequentemente estudos comparados
(HUTCHEON, 2013, p. 27).
Este tipo de citação a outra produção audiovisual é
entendida por Genette como intertextualidade, isto é,
“copresença efetiva de dois textos” (STAM, 2013, p. 231),
seja na forma de citação, plágio ou alusão. Enquanto a citação

11
Disponível em: <https://www.imdb.com/title/tt1385826/>. Acesso
em: 26 nov. 2020.
284 Philip K. Dick e Equipe de Ajustes...
refere-se à inserção de trechos clássicos em filmes, a alusão
“pode tomar a forma de uma evocação verbal ou visual de
outro filme, como um meio expressivo de propor um
comentário sobre o mundo ficcional do filme aludido”
(STAM, 2013, p. 232).
Cahir (2006) define o processo de adaptação da
literatura para o filme da seguinte forma:
Como um trabalho literário, um filme é resultado
do processo de composição, o significado do mesmo
é “fazer através da justaposição”. Composição
literária e fílmica, diferentemente da pintura, por
exemplo, ambos incluem uma série de imagens em
constante mudança. A estrutura composicional de
ambos é criada a partir da união de uma sequência
de unidades menores: na literatura, um parágrafo
(ou estrofe) e, no filme, uma tomada. Parágrafos,
estrofes e planos funcionam simultaneamente como
unidades singulares e separadas e como partes
integradas e inseparáveis de toda a obra. A junção
das unidades menores cria todo o design do filme
ou do livro (CAHIR, 2006, pp. 46-47, tradução
nossa).
Cahir (2006) defende que o desafio de adaptar contos
é bastante diferente da adaptação de romances ou peças
teatrais. Num romance, é comum que o adaptador escolha o
que deve ser cortado no intuito de suprimir passagens literárias.
Contudo, a adaptação de contos apresenta problemas
diferentes: ao invés de decidir o que omitir do original, a
brevidade inerente ao conto exige que o texto seja expandido
e não abreviado. O estudo da adaptação de contos para o
cinema deve incluir a provocativa exploração de razões,
métodos e significados através dos quais o cinema possa
estender a fonte literária (CAHIR, 2006, p. 186).
Na transposição do conto de Dick para a narrativa
fílmica, Ed Fletcher transforma-se no personagem David
Norris – interpretado por Matt Damon – que é um jovem
congressista destinado ao sucesso como político, no entanto,
sua trajetória é abalada ao conhecer a bailarina Elise Sellas –
Arte, Cultura e Imaginário 285
papel vivido pela atriz Emily Blunt –, fato este que contraria
o chamado “Plano”. Os “agentes do destino” passam, então,
a tentar evitar esse romance a todo custo, atuando como
intermediários, que manipulam as ações humanas, pois ambos
estão predestinados ao sucesso, desde que não estabeleçam
nenhuma relação.
Como no conto, a narrativa fílmica aborda questões
filosóficas fundamentais, como fé e livre-arbítrio, em oposição
ao “Plano” ou à predestinação. O “Plano” exerceria a mesma
função dos oráculos na mitologia clássica, nos quais tudo já
estaria escrito e pré-determinado. Caberia ao ser humano o
papel de joguete dos deuses, despojado de seu livre-arbítrio.
Os agentes do destino seriam intermediários entre
Deus e a humanidade. Tanto no conto como no filme, os
agentes interferem na vida de pessoas comuns, sem serem
identificados e assumindo diversas personalidades. Se no
conto, o Evocador é um cão que vigia Ed Fletcher, no filme,
o Evocador é uma espécie de anjo que cuida de David Norris,
o protagonista do filme. O conflito em ambas as narrativas
ocorre quando o Evocador adormece e o protagonista tem
seu destino alterado. No filme, o Evocador toma o partido
de Norris, acaba voltando-se contra os desígnios previstos e
passa a agir em favor da concretização do romance,
entendendo que o amor pode oferecer outra oportunidade
que estaria para além do “Plano”, inaugurando possibilidades
inusitadas. O “Plano” é controlado por meio de pequenos
cadernos, que permanecem em poder dos agentes, e que
revelam, em “tempo real”, como em um mapa, o que pode
acontecer e se houver algum conflito ou imprevisto que possa
abalar a execução do “Plano”.
286 Philip K. Dick e Equipe de Ajustes...

Figura 5 – Os Agentes do Destino (The Adjustment Bureau), 2011.

Fonte: Divulgação. The Adjustment Bureau, 2011.


Arte, Cultura e Imaginário 287
Assim, o romance entre os protagonistas, que é o fio
condutor do filme, está ausente na narrativa do conto, já que
Ed Fletcher é casado e mantém um relacionamento estável
com sua esposa Ruth.
O romance proibido é um plot (enredo) a mais que
desperta o interesse do público, introduzindo um elemento
na narrativa fílmica porque o conto, por si só, talvez não
oferecesse, em termos de extensão e núcleo narrativo, como
explica Cahir (2006, p. 186), a possibilidade de realização de
um longa-metragem. Além disso, conta também o interesse
do público, que deve ser fisgado pela emoção da aventura
romântica na forma de um amor proibido, capaz de vencer
todos os obstáculos para se concretizar, alavancado por um
elenco de primeira linha, caso de Matt Damon e Emily Blunt.
Enquanto o conto propõe uma narrativa fantástica, o
filme concentra-se numa temática romântica, em que o amor
vence sempre: mesmo quando o “Plano” é outro, o Amor
acaba conquistando a prioridade e o Plano de Deus é alterado.
O interesse do filme está nas soluções encontradas na
adaptação do roteiro, criando agentes do destino que, por
agirem bem diante dos olhos das pessoas, devem valer-se de
recursos e truques criativos para não serem descobertos ou
percebidos.
Se no conto os agentes não são vistos pelos humanos,
no filme eles estão presentes na vida cotidiana e são visíveis.
Para se deslocar entre os mundos paralelos e entre os setores
da cidade, os agentes se utilizam de portas comuns, que
funcionam como portais míticos, que possibilitam transferir-
se de um lugar a outro, encurtando distâncias dentro desse
espaço-tempo ficcional. Para conseguir passar por esses
portais, é preciso conhecer o Plano e seus mapas e, se for um
humano, é preciso estar acompanhado por um dos agentes.
No conto de Dick, a única descrição dos agentes
ocorre no momento em que estes vestem jaleco branco e
estão em ação, ajustando o escritório e as pessoas que estão
lá. No filme, os agentes são identificados pelo uso de ternos e
chapéus, como revela o cartaz de divulgação (Figura 5), através
das duas sombras projetadas nos edifícios de Nova York.
Na parte 4 do conto de Dick, Fletcher abre a porta ao
vendedor de seguros, que dá início ao diálogo: “Bom dia,
288 Philip K. Dick e Equipe de Ajustes...
senhor. – Tocou o chapéu. – Desculpe o incômodo tão cedo...”
(DICK, 2012, p. 273). Esta é a única cena em que temos, no
conto, a menção e uma ação relativa a um chapéu. A imagem
pode ter gerado, na adaptação do conto, a ideia de caracterizar
todos os Escriturários e Evocadores com o estereótipo de
vendedores de seguro representado nesse conto, ou seja,
homens de terno usando chapéu. Tocar o chapéu para passar
pelas portas tornou-se o elemento mágico necessário.
Da perspectiva simbólica, o chapéu remete ao poder,
à responsabilidade de assumir uma ideia ou liderança. Na
medida que o personagem David Norris coloca sobre sua
cabeça o chapéu, ele assume o poder de definir o seu próprio
destino.
Por sua vez, segundo Chevalier e Gheerbrant (2006,
pp. 735-6), as portas na tradição cristã traduzem a própria
representação de Cristo, representando o acesso à revelação:
“Eu sou a porta, quem entrar por Mim, será salvo” (BÍBLIA,
João, 10, 9).

A Intertextualidade do mítico religioso


A presença do elemento mítico religioso,
especificadamente do mito da Criação de linha Judaico-Cristã
e também da Mitologia Clássica, ganham destaque como
elementos estruturais do conto “Equipe de Ajuste”, de Philip
K. Dick. A articulação desse imaginário mítico dá-se por meio
da narrativa fantástica, constituída por um enredo em que o
personagem principal, Ed Fletcher, é confrontado com a sua
própria concepção de mundo real, ao conhecer de perto o
“Plano” divino que predestina a humanidade para
determinadas ações e fins. O livre-arbítrio apresenta-se como
um questionamento: submeter-se ou não ao Plano? Escolher
ou acatar o que lhe é proposto? O que é real e o que é
construção da realidade? O mundo da divindade é real ou o
mundo físico da personagem? As reflexões que o texto propõe
ficam em aberto.
No conto, Ed Fletcher sucumbe ao destino pré-
determinado pelo Plano, amedronta-se diante do Velho de
olhos azuis, e termina por guardar para si o conhecimento
sobre a realidade e a realidade criada pelo Plano. Fletcher
Arte, Cultura e Imaginário 289
agradece, ao final, pela vida concedida a ele, por não precisar
contar nada a Ruth, por poder desfrutar do Plano agora de
forma consciente, porém, com o medo de falhar em algum
momento. Ed Fletcher sucumbe ao Plano e abre mão, por medo,
de seu livre-arbítrio. Fletcher sabe que nada em sua vida é de
fato real, porém, o receio de ver novamente, por trás da cortina,
o maquinário que constrói toda a cena teatral da realidade
sobrepõe-se à sua vontade. Ele aceita fazer parte do Plano.
No filme Os Agentes do Destino (2011), o par romântico
dobra os desígnios do Plano, lutando até o final pelo Amor de
ambos. O livre-arbítrio vence, pois David Norris decide e insiste
em reencontrar Elise Sellas, enfrentando todos os obstáculos e
intercorrências em seu percurso de aproximação ao ser amado.
David, ao contrário de Ed Fletcher, não se curva, não se
amedronta. Elise, por sua vez, acompanha David porque ela
também o ama e não desiste dele. O jogo de cena empreendido
pelo Plano não supera a vontade dos personagens, que escolhem
viver juntos. O casal enfrenta o Plano, superando dificuldades,
encarando o poder superior e contrapondo-se a ele. No
desfecho do filme, depreende-se que é possível alterar o Plano,
visto que é o próprio Deus quem, ao final, autoriza o
relacionamento do casal, abrindo uma nova perspectiva de vida
para ambos e para aqueles que os cercam.
Dentro desse imaginário mítico da Criação, se no
conto não há como escapar do Plano, ou seja, o Poder
constituído é imutável, na adaptação fílmica os personagens
vivenciam um desfecho esperançoso, de empoderamento do
humano sobre o mítico, que abre mão do Plano inicial com
vistas a uma reformulação, em que os seres humanos têm a
chance de escolher suas ações, enfrentando e assumindo as
consequências.

Referências bibliográficas

AGENTES do destino, Os. (The Adjustment Bureau). Direção:


George Nolfi. Produção: George Nolfi, Universal Pictures.
Intérpretes: Matt Damon, Emily Blunt, Antohony Mackie,
290 Philip K. Dick e Equipe de Ajustes...
Terence Stamp e outros. Roteiro Adaptado: George Nolfi.
EUA: Universal Pictures, 2011. 105 min. Cor. Baseado no
conto “Adjustment Team”, 1954, Philip K. Dick.
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Imaginário e cultura organizacional: uma
contribuição ao gerenciamento de riscos
Márcia Maria da Graça Costa1
Luís Carlos Gruenfeld2

Uma sociedade democrática é formada por pessoas


com diferentes visões de mundo, pensamentos, ideias, valores
e crenças. A vida em sociedade é marcada pela complexidade
das relações pessoais e institucionais que se refletem nas ações
práticas e corriqueiras do cotidiano e, simultaneamente, por
fatores e elementos mais sutis, caracterizados pela subjetividade,
tais como arte, cultura, imaginário, ética, poder, liberdade,
política, valores, crenças, ideias, cidadania, mercado, estética
e democracia.
Uma organização nasce dentro desse contexto social
e contribui para modificá-lo. Ao elaborar seu planejamento
estratégico, a organização define sua missão (propósito), visão
(o que espera ser no futuro) e valores. Esses valores indicam
as atitudes e comportamentos esperados por parte de seus
colaboradores. A definição de missão, visão e valores, e a
maneira como estes últimos são vividos na prática, ajudam a
moldar a cultura organizacional e a influenciar a percepção
de terceiros sobre a organização. Na medida em que as
organizações interagem entre si e com o conjunto da
sociedade, ocorrem relações de troca e abre-se o caminho
para que uma influência mútua possa acontecer. Essa
influência ocorre de forma natural, em função da dinâmica
social e do imaginário coletivo estabelecido em função de
aspectos históricos e culturais, que resultaram em costumes,

1
Mestre em Ciências Humanas, Mestrado Interdisciplinar em Ciências
Humanas, Área Interdisciplinar, Universidade Santo Amaro – UNISA,
São Paulo-SP, Brasil.
2
Mestre em Ciências Contábeis (PUC/SP), professor da Universidade
Santo Amaro- SP.
294 Imaginário e cultura organizacional...
símbolos e memórias próprios de cada comunidade. É preciso
considerar, portanto, que, por meio de seu planejamento
estratégico e das tecnologias administrativas adotadas, visando
à sua sustentabilidade e crescimento, as organizações estão
inseridas em uma sociedade na qual o imaginário coletivo está
presente. A partir dessas considerações, a questão que se
coloca para o presente estudo é: de que maneira o imaginário
está presente na cultura organizacional e como isso se relaciona
com o gerenciamento de riscos nas organizações? A hipótese
adotada é que os colaboradores das organizações possuem
diferentes visões de mundo, influenciadas por múltiplos
fatores, dentre os quais o próprio imaginário coletivo, que
afetaria o comportamento das pessoas, moldando ou
modificando a cultura organizacional e influenciando diversos
processos, inclusive o gerenciamento de riscos organizacionais.
Nesse sentido, o presente estudo tem o objetivo de analisar
como o imaginário está presente na cultura organizacional e
seu possível impacto em termos de gerenciamento de riscos
corporativos.
O estudo do papel do imaginário na cultura
organizacional e seu impacto no gerenciamento de riscos
fornece importante contribuição para a sociedade e para as
organizações, tendo em vista sua abordagem multidisciplinar
e a oportunidade de reflexão sobre algo que, potencialmente,
é capaz de impactar, de forma relevante, as organizações.

Imaginário

O ser humano “é um ser que cria valores, e a


consciência da morte instaura o primeiro valor: a vida. “
(MOSÉ, 2012, p. 24). O ser humano tem consciência da vida,
de si mesmo e do ato de pensar e de imaginar. A temática do
imaginário vem sendo discutida há muitos anos por filósofos,
sociólogos, psicólogos, teólogos e outros interessados no tema,
com distintas visões ao longo da história:
O termo “imaginário” tem significados diferentes
para cada um de nós. Para uns, o imaginário é
Arte, Cultura e Imaginário 295
tudo o que não existe; uma espécie de mundo
oposto à realidade dura e concreta. Para outros, o
imaginário é uma produção de devaneios de
imagens fantásticas que permitem a evasão para
longe das preocupações cotidianas. Alguns
representam o imaginário como um resultado de
uma força criadora radical própria à imaginação
humana. Outros o vêem apenas como uma
manifestação de um engodo fundamental para a
constituição identitária do indivíduo (BARBIER,
1994, p. 15).
Durand (2012) refuta as visões que relegam o
imaginário a um nível primitivo, o imaginário é visto pelo
autor como
[...] o conjunto das imagens e relações de imagens
que constitui o capital pensado do homo sapiens –
aparece-nos como o grande denominador
fundamental onde se vêm encontrar todas as
criações do pensamento humano. O Imaginário
é esta encruzilhada antropológica que permite
esclarecer um aspecto de uma determinada ciência
humana por um outro aspecto de uma outra
(DURAND, 2012, p. 18).
Ferreira e Eizirik (1994) utilizam o conceito de
imaginário social como um sistema simbólico que reflete as
práticas sociais, crenças e ritos encontrados no convívio social,
produzindo impactos nos vários comportamentos e papéis
na sociedade, que passam a ser reais para determinado grupo.
Dos ritos cotidianos nascem relações que passam a ser vistas
como naturais, reforçando estruturas hierárquicas e relações
de poder. Essas relações de poder são também abordadas
por Maffesoli (2010) quando afirma que o poder econômico,
político e simbólico é geralmente o final da filosofia da história
e das filosofias morais, posto que é em nome do Bem, do
Ideal, do Humano, da Classe e outras entidades abstratas que
se cometem grandes infâmias. Trata-se de moralistas que falam
em nome da Humanidade e da Razão, tendo o poder como
real motivação.
296 Imaginário e cultura organizacional...
Cultura organizacional

Uma organização é uma sociedade humana com


determinado propósito, na qual ocorrem diversas interações sociais.
O conceito de cultura adotado por aqueles que se
dedicam ao estudo da administração tem origem
sociológica ou antropológica, e de modo geral é
definida como: um conjunto de valores, crenças,
ideologias, hábitos, costumes e normas que
compartilham os indivíduos na organização e que
surgem da interação social, os quais geram padrões
de comportamento coletivos que estabelecem uma
identidade entre seus membros, identificando-os
com a organização a qual pertencem e os
diferenciando de outras (DIAS, 2013, p. 69).
A cultura organizacional depende de inúmeros fatores
intrínsecos à organização, mas sujeita-se a receber a influência
externa. Essa afirmação está em linha com o que assevera
Carvalho (1985) no sentido de que um grupo, independentemente
de sua finalidade ou porte, possui uma representação
imaginária subjacente compartilhada pelos membros do
grupo. As organizações captam as mudanças sociais e
respondem a elas:
Sabemos que as organizações, especialmente as
grandes empresas privadas, apresentam uma
maior facilidade em captar as mudanças sociais e
responder mais rapidamente a elas que as demais
instituições. Elas respondem não apenas de
maneira operacional mas também de forma
simbólica, via cultura organizacional e repasse de
todo um imaginário (FREITAS, 2000, p. 6).
Nas organizações, é fundamental que os colaboradores
se envolvam continua e progressivamente para aprimoramento
dos processos e políticas internas, colaborando para a
consecução dos objetivos organizacionais. Daí a importância
de implantar a cultura de forma precoce e trabalhar para seu
Arte, Cultura e Imaginário 297
compartilhamento, pois isso influencia os pensamentos,
sentimentos, perce pções e comportamentos dos
colaboradores, formando uma cultura interna mais propícia
para a prática de valores desejados, que dão uma melhor forma
à gestão. (ASSI, 2019).

Gestão de riscos

A sustentabilidade (econômica, social e ambiental) das


organizações é respaldada por uma boa governança e gestão
de riscos. Na definição de Oliveira (2018, p. 135), “risco é o
estado de conhecimento em que são conhecidas as situações
futuras que possam surgir e suas respectivas probabilidades
de ocorrência”. Os riscos para as organizações relacionam-
se, entre outros, a aspectos operacionais, financeiros,
regulatórios, estratégicos, tecnológicos, sistêmicos, sociais e
ambientais. Esses riscos precisam ser gerenciados, buscando-
se assegurar que todos contribuam para a conformidade
(compliance) com princípios, valores, políticas, procedimentos,
normas internas, leis e regulamentos (IBGC, 2015). Uma vez
identificados, devem ser avaliados quanto à probabilidade de
ocorrência, impacto potencial – caso se materializem – e
avaliação das ações que seriam necessárias para mitigação do
risco (ASSI, 2019). O IBGC (2017) salienta que os riscos
estão presentes nas atividades empresariais e que precisam
ser gerenciados para que se possam assumir somente riscos
calculados, reduzir a volatilidade de resultados, colaborar para
a consecução dos objetivos estratégicos e a longevidade da
organização. O gerenciamento de riscos corporativos é
compreendido pelo Instituto como
[...] um sistema intrínseco ao planejamento estratégico
de negócios, composto por processos contínuos e
estruturados – desenhados para identificar e responder
a eventos que possam afetar os objetivos da
organização – e por uma estrutura de governança
corporativa – responsável por manter esse sistema
vivo e em funcionamento (IBGC, 2017, p. 14).
298 Imaginário e cultura organizacional...
O TCU (2018) analisa dez passos necessários para uma
boa gestão de riscos, que podem ser assim resumidos: a)
Gerenciar riscos proativamente; b) Aprender sobre gestão de
riscos; c) Definir responsabilidades; d) Estabelecer uma
política de gestão de riscos; e) Definir o processo de gestão
de riscos; f) Identificar os riscos-chave; g) Monitorar os riscos;
h) Manter canais de comunicação com as partes interessadas;
i) Fazer com que a gestão de riscos seja integrada aos processos
organizacionais; j) Buscar contínuo aprimoramento da gestão
de riscos.

Metodologia

Trata-se de pesquisa descritiva, bibliográfica e


qualitativa. É uma revisão da literatura que buscou integrar
aspectos relativos ao imaginário, cultura e risco organizacional,
passando por aspectos éticos, de compliance e outros
relacionados a esses temas. Abrange outros estudos e
bibliografia sobre os assuntos. Optou-se por uma abordagem
multidisciplinar, com a finalidade de compreender diferentes
visões e contribuir para o conhecimento do tema investigado.
O levantamento da literatura se deu principalmente por meio
de artigos científicos nas bases da Scielo e Spell. As palavras-
chave foram: Risco; Cultura Organizacional; Imaginário e
“Compliance”. Os critérios de inclusão de artigos não levaram
em consideração a data de publicação, por ser este considerado
um critério pouco relevante para o tema estudado, visto que
há materiais interessantes com diferentes datas de publicação.

Resultados e discussão sobre o imaginário

Para a compreensão de como o imaginário está


presente na cultura organizacional e seu impacto em termos
de gerenciamento de riscos corporativos, utilizou-se uma
abordagem multidisciplinar e abrangente, somando, entre
Arte, Cultura e Imaginário 299
outros, aspectos éticos e culturais às questões do imaginário,
da cultura organizacional e dos riscos corporativos. Afinal,
como afirmam Cyrulnik e Morin (2012, p. 11), o ser humano
deve ser considerado como “ser biológico, cultural, psicológico
e social” e “a imaginação, o imaginário e o mito são realidades
fundamentais”.
A discussão sobre o imaginário abrange a sociedade
em geral, inclusive as organizações que delas fazem parte,
considerando-se um contexto democrático que pressupõe a
legitimidade de um regime de governo e um regime político,
devidamente reconhecidos pelos cidadãos. Para tanto, a
democracia precisa se constituir como um valor, é necessário
que a cultura e as políticas culturais priorizem a construção
de um imaginário social que esteja em consonância com os
ideais democráticos, em especial os valores da cidadania, tais
como dignidade humana, solidariedade, resistência pacífica e
não discriminação (PORTO, 2019).
Os pensamentos, convicções e valores são afetados,
ainda que de forma inconsciente, pela visão de mundo e pelas
ideias desenvolvidas durante a história (FERRY, 2007). A
filosofia reconhece a limitação da dimensão puramente
racional e lógica, como se observa nas reflexões de Pondé
(2019) acerca do fato de que a filosofia racionalista é “pobre
de espírito” e deve ser superada pela mística, por um lado, e
pelo ceticismo como método, por outro, pois “a filosofia sem
a mística é rasa e excessivamente presa à dimensão racional e
lógica do conhecimento” (PONDÉ, 2019, p. 63). Para
Maffesoli (2019, p.33), “o silêncio das palavras racionais e o
apelo aos sentidos constituem uma analogia: uma elevação
que conduz ao divino”. Até mesmo a Economia não pode
ser reduzida a estatísticas, equações e gráficos, precisa reservar
espaço para a imaginação, tendo em vista que
[...]a ciência não existiria sem o pensamento e a
imaginação. Pois é de perguntas sem respostas – não
raro pertinente a mundos que construímos a partir
de estranhos jogos entre o sensível e o cognitivo –
que surgem muitos dos questionamentos que fazem
a ciência avançar (BOLLE, 2020, p. 25).
300 Imaginário e cultura organizacional...
Isso tudo aponta que o imaginário vai influenciar as
decisões e comportamentos das pessoas. E aquilo que afeta o
imaginário social afeta a cultura organizacional. Como
exemplo, vale destacar as expressões a seguir, bastante
difundidas no imaginário da sociedade brasileira:
Leis que prejudicam o Brasil
Lei do mais forte: Quem pode manda, quem tem
juízo obedece.
Lei de Gerson: É preciso levar vantagem em tudo.
Lei de Robertão: É dando que se recebe.
Leis dos espertos: E os outros podem e fazem,
por que nós não?
Lei dos marxistas e outros grupos: Os fins
justificam os meios
(HUMBERG, 2018, p. 27).
Essas características do imaginário coletivo não
parecem deslocadas de questões individuais, inclusive no
âmbito psicológico, e de questões relacionadas ao
desenvolvimento moral da sociedade. Quanto ao
desenvolvimento moral, afirma Bonder (2012):
Num Brasil de instituições educacionais tão
fragilizadas por abandono e “desinvestimento”,
ou mesmo tão corroído pelo comportamento
moral de sua elite e liderança, não é de surpreender
a grande incidência de cidadãos vivendo suas vidas
em níveis imediatistas e individualistas de
desenvolvimento moral (BONDER, 2012, p. 23).
A força do imaginário abre as portas para o
autoengano, no sentido de que “O delírio do todo é o resultado
da confluência dos delírios das partes. É no microcosmo do
indivíduo que encontramos o berço e o locus do repertório do
autoengano em sua espantosa diversidade.” (GIANNETTI,
1997, p. 53). É a passagem da racionalidade para a
racionalização porque “todos nós temos uma tendência
inconsciente a afastar de nossa mente o que possa contradizê-
la, em política como em filosofia. Tendemos a minimizar ou
rejeitar os argumentos contrários.” (MORIN, 2011, p. 70).
Arte, Cultura e Imaginário 301
A experiência do pensamento que se baseia na
experiência coletiva tem por base a realidade e alimenta as
bases de uma visão criadora, essencial às sociedades. Trata-se
de uma dinâmica contra o “Pensamento Oficial”, que traz
respostas prontas, meramente racionais, abstratamente
eficazes, mas não aplicáveis na prática. (MAFFESOLI, 2009).
Percebe-se, da análise dos autores estudados, que o
ser humano, em toda sua complexidade, tem no Imaginário
parte relevante de sua constituição e que a sociedade e as
organizações em particular são afetadas pelo imaginário social.

Sobre a cultura organizacional

O ser humano lida com diferentes sentimentos,


pensamentos e crenças e, muitas vezes, não é possível
distinguir com exatidão o que motiva uma determinada ação:
“Não temos de optar entre razão e sentimentos, mas sim
aceitar ambos e aprender a discernir, a ponderar diante de
cada situação que a vida nos oferece.” (GIKOVATE, 2002, p.
15). As relações entre sentimento e intelecto (e a mente cultural
humana) foram estudadas por Damásio (2018):
É evidente que a seleção natural trabalhou
arduamente moldando e esculpindo esses modos
de reagir em ambientes sociais até construir o
andaime da mente cultural humana. Juntos, os
sentimentos subjetivos e a inteligência criativa
atuaram nessa montagem, criando instrumentos
culturais que atendem às necessidades de nossa
vida” (DAMÁSIO, 2018, p. 32).
A possibilidade de fazer as próprias escolhas significa
uma escolha moral. Nesse sentido, Giannetti (2007) questiona:
O que significa habitar um mundo em que a
capacidade de escolha moral existe? E, se ela existe,
quais seriam as funções da ética – dos valores
individuais (moralidade pessoal) e das normas de
conduta (moralidade cívica) – na convivência
302 Imaginário e cultura organizacional...
humana em sociedade e no desempenho econômico
dos indivíduos, empresas e nações? (GIANNETTI,
2007, p. 10).
A resposta a essas questões deve levar em consideração
a complexidade do ser humano e dos aspectos morais.
Devemos também reconhecer de uma vez que
todos os dilemas morais do mundo adulto
encontram-se por mais primitivos que sejam, entre
“bons” ou “ruins”. A imagem arquetípica de dois
anjos que nos sopram aos ouvidos, de um lado:
“faça algo bom”, de outro: “faça algo ruim”, não
expressa a complexidade das questões morais
adultas, mesmo em seus níveis mais elementares.
Isto explica o porquê de tantos discursos adultos
apresentarem consensos tão unânimes que, no
entanto, falham ao traduzir-se em postura ou
comportamento (BONDER, 2012, p. 22).
É necessário que algo seja feito para que o ser humano
promova mudanças na forma de pensar em si mesmo, suas
relações com os outros e com o mundo: “Mas sem
deslumbramentos, arroubos reformistas, messianismos e
utopismos. E, principalmente, sem a convicção enganosa e
tão amplamente adotada de que “nós estamos certos e eles
errados””. (MARIOTTI, 2010, p.13). Essas reflexões revelam
a complexidade do humano, da vida em sociedade, dos
aspectos éticos e dos reflexos no campo individual e
empresarial. Nesse contexto, insere-se o famoso “jeitinho
brasileiro”. O que se convencionou chamar de “jeitinho
brasileiro” é parte integrante da cultura organizacional
brasileira e, nesse contexto, frequentemente, ocorrem
problemas motivados por desvios em relação ao que o senso
comum considera correto, motivo pelo qual o brasileiro
deveria refletir mais sobre seu comportamento e cumprir
normas e leis de modo mais efetivo. (FLECK, 2012).
Um dos mais importantes livros sobre cultura
organizacional, escrito por Gareth Morgan, denominado
Arte, Cultura e Imaginário 303
Imagens da Organização, recebeu interessante análise de Santi
(2018):
Em As imagens da organização (1998), Gareth
Morgan faz um trabalho de levantamento das
principais metáforas utilizadas para se referir às
organizações. Nas metáforas, mais do que um
imaginário, Morgan encontra um modo de pensar
e agir. É como se fossem profecias auto-realizadas.
As imagens da organização seriam uma dimensão
tangível de um paradigma e, ao mesmo tempo,
um modo de impor uma Gestalt, uma
configuração mental. Cada capítulo é amplamente
ilustrado com exemplos vindos da literatura, da
História e também de empresas atuais (SANTI,
2018, pp. 253-254).
Humberg (2018) comenta que, para a conquista de
um bom clima organizacional, existe a necessidade da
implantação de Programas de Compliance, que devem estar
respaldados em uma cultura de integridade e ética (além de
uma combinação de educar, cuidar, confiar e controlar). A
Ética pode ser considerada uma ciência da conduta humana,
da aprovação ou desaprovação da ação dos homens, da virtude
como prática do bem, relativos à pessoa ou da comunidade.
(SÁ, 2004).
Para Steinberg (2011), existe uma cultura única em
cada organização e um grande desafio para os gestores é
construir a cultura desejada, que terá papel primordial no
sucesso da organização. A cultura abrange a atmosfera
profissional da organização, seus valores, costumes e tradições.
Um aspecto crítico de uma cultura corporativa que respeita a
integridade e os valores éticos é a comunicação, tanto interna
como externa. A cultura é um fator crítico que impacta todas
as demais ações na organização. Falconi (2009) afirma que as
organizações são constituídas por pessoas e outros recursos,
motivo pelo qual há sempre uma curva de aprendizado para
aquilo que se pretende melhorar. Assim, empresas
excepcionais são resultado de pessoas excepcionais e cultura
de alto desempenho. A respeito da cultura organizacional e
304 Imaginário e cultura organizacional...
com uma postura pragmática, afirma que, na agenda do líder,
deve constar: “[...] cuidar da Cultura predominante na
organização, trabalhando no sentido de fixar valores que
garantirão o seu futuro. Estes valores devem estar incluídos
nos quesitos da avaliação do desempenho.” (FALCONI, 2009,
p. 15).
Terra e Bianchi (2018, p. 5) afirmam que “ética e
compliance têm uma relação direta, embora subjetiva. Esta
relação, porém, não deve estar exclusivamente relacionada ao
que é errado, não permitido.”
Bonder (2019, p. 72) explica que compliance tem o
significado de observância: “distinta da ética que deriva de
um julgamento, a observância é um comportamento.
Representa uma conformidade, uma submissão a padrões
acordados que atendem mais pelo compromisso do que pelo
discernimento.”
Estudar a cultura organizacional equivale a estudar a
sociedade complexa em que a organização está inserida. Isso
faz com que o estudo seja muito mais abrangente do que
simplesmente o que aparece na estrutura formal, pois os
aspectos sociais ganham importância. Somente a análise
cultural permite estudar relações que estão além da estrutura
formal. Assim, o estudo da cultura organizacional é essencial
para análises organizacionais que auxiliarão nos processos
internos de tomada de decisão. (DIAS, 2013).

Sobre o gerenciamento de riscos organizacionais

O gerenciamento de riscos envolve pessoas e uma


atuação destacada da liderança. Conforme Steinberg (2011),
risco é a incerteza em relação a determinado evento, a
possibilidade de ocorrência de um determinado evento que
pode produzir resultados negativos. Assumir riscos é da
natureza dos negócios, porém é necessário conhecer os riscos
e como gerenciá-los para atingir os propósitos desejados. O
gerenciamento de riscos organizacionais pode colaborar, tanto
no nível estratégico como tático, a aprimorar as respostas aos
Arte, Cultura e Imaginário 305
riscos identificados, reduzir surpresas nas operações (e os
prejuízos que poderiam causar), identificar oportunidades de
negócios, tomar decisões para alocação de seu capital, entre
outras. Como afirma Morin (2020, p. 35), ao falar de sua
ecologia da ação, “[...] toda e qualquer decisão exige uma
estratégia que integre o imprevisto. Trata-se, portanto, de
prever a eventualidade do imprevisto”.
A gestão empresarial é sustentada pelas ideias de
controle interno e de risco e pela atividade de auditoria como
função integrada ao tripé planejamento, execução e controle.
Os gestores precisam tomar decisões e a qualidade da decisão
passa por considerar os aspectos de “controle interno” e
“risco”. (GIL; ARIMA; NAKAMURA, 2013). Não somente
o comportamento humano é essencial para a gestão de riscos,
como também é importante ressaltar a influência decisiva que
recebe da atuação da liderança:
Gerenciar riscos é iterativo e auxilia as organizações
no estabelecimento de estratégias, no alcance de
objetivos e na tomada de decisões fundamentadas.
Gerenciar riscos é parte da governança e liderança,
e é fundamental para a maneira como a
organização é gerenciada em todos os níveis. Isto
contribui para a melhoria dos sistemas de gestão.
Gerenciar riscos é parte de todas as atividades
associadas com uma organização e inclui interação
com as partes interessadas.
Gerenciar riscos considera os contextos externo
e interno da organização, incluindo o
comportamento humano e os fatores culturais
(ABNT/CEE, 2018, p. 5).
O papel da liderança é preponderante quando se trata
de temas éticos e de cultura organizacional e foge à
racionalidade estrita. A temática foi estuda por Lapierre (1989),
que fornece uma visão interessante associada ao imaginário:
Assim, de um lado, surgem o imaginário da
plenipotência e o pensamento mágico (os
administradores e os líderes tomam seus desejos
por realidades, querem se mostrar infalíveis no
306 Imaginário e cultura organizacional...
controle total das pessoas à sua volta, na procura
da notoriedade e de conquistas notáveis ...) e de
outro lado, o imaginário da impotência e da
desvalorização de si (os administradores se sentem
incapazes, indignos e inadequados, presos por um
intenso sentimento de culpa ...) (LAPIERRE,
1989, p. 35).
Para Bonder (2019, p. 9), “ao experimentar a sensação
animal de perigo, o ser humano criou a ideia de risco, um
instrumento interpretativo fantástico, medular para nossa
evolução”. A essa perspectiva do “ser humano que criou a
ideia de risco”, pode-se adicionar a possibilidade de
autoengano:
Abrir-se à dúvida radical – à possibilidade de que
estejamos seriamente enganados sobre nós
mesmos e sobre as crenças, paixões e valores que
nos governam – é abrir-se à oportunidade de rever
e avançar. É ousar saber quem se é para poder
repensar a vida e tornar-se quem se pode ser”
(GIANNETTI, 1997, p. 11).
O IBGC (2015, p. 4) ressalta que “a gestão eficaz de
riscos é dada pela qualidade da estrutura de governança, dos
recursos humanos, das estratégias, da cultura, pela percepção
dos riscos trazidos pela qualidade do ambiente de negócios,
dos processos, dos controles e da tecnologia empregados”.
Pelo exposto, fica clara a importância, para a gestão
de riscos, dos aspectos relacionados ao ser humano em sua
complexidade, sob vários pontos de vista: o imaginário social
e a perspectiva individual, os aspectos éticos, questões
psicossociais, a cultura geral e a cultura organizacional, o estilo
da liderança, a governança corporativa e os aspectos de
compliance (conformidade).
Esta pesquisa procurou responder à seguinte questão:
de que maneira o imaginário está presente na cultura
organizacional e como isso se relaciona com o gerenciamento
de riscos nas organizações?
A revisão da literatura e as análises efetuadas demonstraram
que o termo imaginário possui diferentes significados ao longo
Arte, Cultura e Imaginário 307
da história, constituindo-se no capital pensado do ser humano,
das imagens e relações de imagens. Desse conceito deriva o
de imaginário social, com seus símbolos, crenças e ritos que
moldam os vários comportamentos sociais. O imaginário
social é afetado pela forma como as informações são
difundidas na sociedade e por relações de poder.
Por outro lado, respondendo parcialmente à questão
formulada, pode-se afirmar que o imaginário afeta a cultura
das organizações, tendo em vista que estas são agrupações
humanas que possuem representações imaginárias
compartilhadas pelos membros do grupo. Trata-se do repasse
do imaginário, das organizações captando as mudanças sociais
e respondendo a essas mudanças. Compreendendo esse
mecanismo, as organizações necessitam aprimorar sua cultura
interna e o compartilhamento dessa cultura. Para isso, terão
que considerar os sentimentos, os pensamentos, os aspectos
éticos envolvidos em cada situação.
Respondendo à segunda parte da questão, sobre o
impacto na gestão de risco organizacional, é fundamental
perceber que tudo parte do ser humano e sua peculiar estrutura
biológica, cultural, psicológica e social. Perceber que o
imaginário não é uma fantasia e, sim, parte de uma realidade
fundamental. Dessa forma, a gestão de riscos será impactada
fortemente pela cultura organizacional, em especial os
exemplos da liderança. A gestão de riscos é impactada pela
complexidade do ser humano, pelo imaginário social e pela
perspectiva individual. Por um lado, pelo ambiente de
negócios, metas, governança, controles, conformidade e
observância, tecnologias, estilo da liderança e uma estratégia
que integre o imprevisto. Por outro lado, questões
psicossociais, crenças pessoais, paixões, valores, conduta ética,
integridade, virtudes, comunicação, autoengano, apetite pelo
risco e a tomada de decisões.
Nesse sentido, foi possível aceitar a hipótese de que
os colaboradores das organizações possuem diferentes visões
de mundo e que estas são influenciadas de várias maneiras
por fatores múltiplos que resultam do imaginário, contribuindo
na formação da cultura organizacional e para o gerenciamento
de riscos organizacionais. Da mesma forma, conclui-se que
foi possível atingir o objetivo de analisar como o imaginário
308 Imaginário e cultura organizacional...
está presente na cultura organizacional e seu impacto no
gerenciamento de riscos corporativos, tendo em vista que o
estudo dos diferentes autores conduz para a constatação da
complexidade do ser humano, principalmente nas questões
éticas e de comportamento, do imaginário como parte
relevante de sua constituição, com evidentes reflexos na cultura
organizacional e gerenciamento de riscos.
Sugere-se que novos estudos sejam realizados,
conservando o aspecto multidisciplinar, mas efetuando
pesquisas de campo com questionários desenvolvidos para
detectar aspectos da análise de risco influenciados pelo
imaginário e cultura organizacional em uma organização em
particular.

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Literatura e música: diálogos interdisciplinares
Lilian Fernandes Carneiro1
Marcos Julio Sergl2
Maria Auxiliadora Fontana Baseio3

Tudo o que vemos ou parecemos, não passa de um sonho


dentro de um sonho. (Edgar Allan Poe).

O presente capítulo baseia-se em atividade de análise


textual com foco na interdisciplinaridade, articulando duas artes:
a literatura e a música. Esta análise comporta a comparação
entre o conto “O corvo”, do autor norte-americano Edgar Allan
Poe, traduzido por Fernando Pessoa4, e a livre tradução da
música Nevermore da banda britânica de rock, Queen, na
perspectiva analítica de Ricardo Araújo e Maria Cristina Bessa.
A base metodológica concentra-se nos fundamentos dos
estudos comparados de literatura e nos estudos do imaginário,
com Gaston Bachelard e Gilbert Durand.
No ato de ler, torna-se inevitável a atividade da
imaginação e o dinamismo das subjetividades, pois toda
representação artística como jogo ou encenação movimenta

1
Mestre em Ciências Humanas pela Universidade Santo Amaro – UNISA;
Educadora Universitária na Rede UNIESP – Faculdade Santo André – FASA;
Professora Particular de Língua Inglesa e Espanhola na VINCO – aulas particulares.
2
Pós-Doutor em Comunicações e Doutor em Artes pela Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – USP.
3
Pós-doutora em Letras pela Universidade do Minho – Portugal; Doutora
em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela
Universidade de São Paulo – USP. Professora do Mestrado Interdisciplinar
em Ciências Humanas da Universidade de Santo Amaro – UNISA.
4
Importa ressaltar que este poema foi traduzido para o francês pela primeira
vez por Baudelaire e, depois dele, em vários idiomas. Na língua portuguesa,
temos diversos autores, como Fernando Pessoa, Machado de Assis e, mais
recentemente, Milton Amado. Elegemos a tradução de Fernando Pessoa
por ser considerada pelo crítico laureado, Ivo Barroso, a mais clássica.
314 Literatura e música...
percepções, sentimentos e atitudes dos seres humanos como
sujeitos do processo de leitura. Compete mencionar
semelhante entendimento da literatura na visão de que “o
imaginário das obras se mostra assim como um espaço de
realização, de fixação e de expansão da subjetividade. Mas,
por intermédio dessa representação, o artista visa a algumas
imagens novas, que por sua vez farão parte da subjetividade
de cada um” (WUNENBURGER, 2003, p. 58).
Esse imaginário permite transmitir e compartilhar as
experiências do cotidiano, englobando todos os sentidos enquanto
envolve cada um na sua particularidade. Sabemos que as artes –
o teatro, o cinema, a música, a literatura, entre outras – são
expressões do imaginário, favorecendo o movimento de
introspecção, no momento em que o pensamento é nutrido por
imagens provenientes destas vivências.
Deste ponto de vista, quando um expectador se
apega a um quadro privilegiado, um leitor passa o
tempo com as personagens de um romance, o
divertimento superficial se aprofunda em processo
simbólico no qual o sujeito pode conhecer-se melhor,
[...], até mesmo mudar-se a si mesmo. Enfim, [...], a
arte, por fornecer imagens aperfeiçoadas, [...], ou
abrindo a porta aos possíveis e aos sonhos, dá acesso
a uma felicidade inédita, um regozijo dos sentidos,
uma plenitude de existência (WUNENBURGER,
2003, pp. 58-59).
Entendemos que, por intermédio do processo simbólico,
podemos nos reconhecer como indivíduos. Este simbólico pode
ser interpretado por nós ao depararmos com sua manifestação
no universo das distintas linguagens. Sabemos que o universo do
imaginário é rico de projeções que articulam saberes, imagens e
expressões de conhecimento de mundo.
Desse modo, foi escolhido um conto americano e uma
música inglesa para serem estudados em suas respectivas
traduções, observando diálogos a partir da proposta dos
Estudos Comparados de Literatura. Ao trabalharmos nessa
perspectiva, entendemos o que Carvalhal descreve sobre a
obra ter flexibilidade de interpretações, considerando a
recepção do leitor, no sentido de a análise permitir relações
Arte, Cultura e Imaginário 315
interliterárias. É no ambiente comparativo que encontramos
as particularidades de um trabalho de estudo, conforme segue
No horizonte do comparativista está o “autor
enquanto leitor” e todos os aspectos da recepção
de uma obra estrangeira num determinado
contexto que possam ter importância para o autor
enquanto leitor e para a sua eventual recepção
pessoal. Assim, tornam-se objeto da investigação
comparativista a tradução da obra, o aparato
critico que a acompanha, os dados da edição
(CARVALHAL, 2006, p. 72).
Além disso, percebe-se que, a cada leitura, o
conhecimento se amplia independente se tratamos de uma
tradução ou livro original, porque o olhar crítico sobre a obra
traz muito sobre a estética literária a que pertence. Neste
contexto, é favorável trabalharmos textos traduzidos, uma vez
que possibilitaremos acesso a outros leitores, com isso
difundindo a obra literária, proporcionando interculturalidade
e favorecendo aprendizado de maneira globalizada. Tânia
Carvalhal complementa
Permitem, enfim, que no estudo de uma determinada
obra ou de determinado escritor se identifiquem as
interpretações dominantes, que derivam do contexto
literário e social da época e que dirigem a recepção
daquela obra ou daquele escritor. Assim, em literatura
comparada, nesse tipo de estudo, a interpretação é uma
“metainterpretação” (CARVALHAL, 2006, p. 73).
Este processo de recepção de conhecimento é
produtivo no sentido em que confronta não somente sistemas
literários, como também artísticos e esclarece aproximações e
contrastes apresentados por meio das leituras. Na busca por
elementos para investigar comparativamente, encontramos em
Carvalhal a justificativa de que tanto os estudos de uma cultura,
como de outras representações artísticas são perfeitamente
conectados para entendermos, de maneira interdisciplinar e
crítica, o mundo que nos cerca.
316 Literatura e música...
Literatura e música: uma análise comparada

A premissa dos Estudos Comparados vem do


fundamento de ser uma maneira específica de interpretar textos,
envolvendo a literatura e seus intercâmbios com outras formas
de representação artística ou cultural. Trata-se de diálogos entre
sistemas de signos. Umberto Eco (1991, p. 39) defende que os
sistemas são interdependentes, bem como passíveis de
convergências e divergências, dependendo da visão do intérprete,
pois possibilitam compreender e reviver amplos significados, pois,
segundo o autor, as obras são “abertas”.
Entendemos que o conto seja uma obra aberta,
passível de múltiplas leituras. O que se propõe é trabalhar a
canção como uma possível leitura interpretativa do conto,
bem como identificar e descobrir conexões entre ambos a
partir de elementos do imaginário.
Ao tratar dos elementos de compreensão literária,
Antonio Cândido (1997, p. 34) afirma que a leitura de um
texto integra elementos sociais e psíquicos, sendo também
necessário considerar fatores não literários, incluindo os
diversos temas constantes na obra, os quais manifestam o
estado espiritual ou social de um período. Os textos têm
relevância “porque inventam uma vida nova, segundo a
organização formal, tanto quanto possível nova, que a
imaginação imprime ao seu objeto”.
Estudamos as traduções do conto americano “O corvo”
e da música Nevermore interpretada pela banda britânica Queen,
a fim de estabelecermos associação da literatura com a música,
providenciando conexão entre o imaginário que tece tanto as
obras de Poe, quanto a melodia de Freddie Mercury (letra em
inglês, inserida no rodapé)5. Pelo fato de percebermos referências
5
“Nevermore:There’s no living in my life anymore /The seas have gone dry /
And the rain’s stopped falling/Please don’t you cry any more / Can’t you see /
Listen to the breeze / Whisper to me please/Don’t send me to the path of
nevermore/Even the valley’s below / Where the rays of the sun / Were so warm
and tender/Now haven’t anything to grow / Can’t you see? / Why did you have
to leave me? (nevermore)/Why did you deceive me? (nevermore)/ You sent me to
the path of nevermore/When you say you didn’t love me anymore / Ah ah
nevermore nevermore”.
Arte, Cultura e Imaginário 317
e imagens reincidentes, optamos por numerar as linhas do
conto, para direcionar as supostas associações.
Bessa descreve um resumo deste conto de horror, que
pode mostrar como é a trama:
Seu mais conhecido poema (tanto durante a
vida quanto agora) é “The Raven” (O Corvo),
de 1845. Neste lúgubre poema, o narrador
insone e assombrado, que estivera lendo e
lamentando a morte de sua “Lenore perdida”
à meia-noite, é visitado por um corvo – um
pássaro que come carne de cadáver, portanto
um símbolo da morte –, que pousa sobre sua
porta e que repete ameaçadoramente o famoso
refrão do poema: “nevermore” (nunca mais)
(BESSA, 2008, p. 48).
Para tratar deste estudo, buscamos em Gilbert Durand
(2012) uma compreensão sobre o imaginário. Para ele, são
representações construídas pela experiência e tem relação com
a corporeidade. As primeiras imagens surgem por condicionantes
reflexológicos, ou seja, por impulsos ascensionais, por práticas
digestivas, por movimentos rítmicos e cíclicos da sucção e da
sexualidade. Trata-se de expressões que envolvem os
sentimentos humanos, estados psíquicos interiores e suas
relações com o mundo exterior. Esse sistema organizado de
imagens estr utura-se por manifestações simbólicas
entrelaçadas, engendrando, assim, pensamentos, sentimentos
e ações do ser humano.
Durand (2012) afirma que o imaginário se constitui a
partir da compreensão de nossa finitude, do sofrimento pela
passagem do tempo, no pavor da morte, sentimentos a partir
dos quais se organizam imagens arquetipais, que conferem
uma face para essa angústia. Formas de combate a essa
angústia do tempo e da morte são providenciadas pelos
regimes de imagens, agr upadas semanticamente em
constelações simbólicas em dois regimes – o diurno e o
noturno – associados à tripartição reflexológica. O Regime
Diurno do simbolismo é de constituição heroica, estruturado
pela dominante postural, relacionada à tecnologia das armas,
à sociologia do mago e do guerreiro, aos rituais de elevação e
318 Literatura e música...
de purificação, enquanto o Regime Noturno liga-se às dominantes
digestiva e cíclica. O Regime Diurno da imagem sustenta-se pela
separação, pelas imagens antitéticas. O Regime Noturno assenta-
se sob o signo da conversão e do eufemismo, abrigando uma
estrutura mística (antifrásica) e sintética (dramática). Nesse regime,
reúnem-se imagens simbólicas relacionadas às trevas, relacionadas
à noite e ao movimento de queda.
Nossa leitura reconhece, nas obras analisadas, a
presença de constelações simbólicas que demarcam o regime
noturno da imagem. Traçamos um perfil analítico partindo
de trechos da letra da música e percepções de interligação
com o conto, o que será descrito a seguir.

Nunca mais
(Freddie Mercury)
Não há mais existência na minha vida
Os mares secaram
E a chuva parou de cair
Por favor, não chore mais
Você não vê?
Escute a brisa
Sussurre para mim, por favor
Não me mande para o caminho de nunca mais
Até mesmo os vales abaixo
Onde os raios do sol
São tão mornos e suaves
Agora não há nada para crescer
Você não vê?
Por que você teve que me deixar? (Nunca mais)
Por que você me decepcionou? (Nunca mais)
Você me mandou para o caminho de nunca mais
Quando você disse que não me ama mais
Ah, ah, nunca mais, nunca mais
(Fonte: tradução livre dos autores)
Apesar de a letra da canção ser curta, em comparação
com o poema com 108 versos, percebemos a possibilidade
de relação entre os dois em alguns aspectos significativos. A
começar pelo título da música, podemos referenciar à insistente
resposta do corvo, todas as vezes que o narrador o inquere sobre
Arte, Cultura e Imaginário 319
a amada. Mesmo não existindo a palavra “corvo” na canção, é
pela repetição da palavra “nevermore” que se torna possível
buscar ligação à resposta que ele dá ao narrador.
NUNCA MAIS = NEVERMORE
048-Disse o Corvo, “Nunca mais”. = Quoth the
Raven, “Nevermore”.
Mantendo a análise sobre o título da música e o pássaro
do conto (corvo = raven), Araújo (2002, p. 64) chama a atenção
sobre a característica de Poe em trabalhar as palavras nas mais
diversas formas; entre elas acrósticos, nomes invertidos,
anagramas. Com isto, podemos notar que as palavras NEVER
e RAVEN formam um anagrama, que, na tradução, não foi
possível apresentar (NUNCA <–>CORVO).
Poe marca seus textos com a concepção de que a
beleza dos escritos está no estranhamento e no exótico,
predominantemente encontrados na literatura fantástica.
Camarani reverbera a ideia de Castex de que foi por volta de
1830 que a literatura fantástica passou a ser explorada como
pesquisa científica, no propósito de buscar explicações para
os desconcertos da mente humana e os fenômenos que
avançam para os campos do estranhamento, do exótico e do
sobrenatural. Entre eles, temos o sonambulismo, a possessão,
os transes. O teórico ainda afirma que este comportamento
domina o movimento romântico em suas produções, repletas
de “motivos alucinantes, pesadelos e frenesis” (CASTEX apud
CAMARANI, 2014, p. 34).
É relevante considerar que, historicamente, a literatura
fantástica tem visceral relação com o gótico com destaque
para o sobrenatural, em resistência ao racionalismo do período
Iluminista (séc. XVIII e XIX). Nessa época, o egocentrismo
humano tomou o lugar das crenças, em que medos ou
pesadelos envolvendo fantasmas e monstros passaram a ter
explicações racionais. Camarani disserta sobre a afirmação
de Roas em que a obra poeana se dedica “a iluminar a vida
secreta do personagem, descrevendo seus delírios e
configurando um realismo psicológico” (ROAS apud
CAMARANI, 2014, p. 37).
320 Literatura e música...
Essa particularidade pode ser notada tanto na canção,
quanto no conto, pois tratam de um narrador solitário e triste,
falando da ausência de sua amada. Entendemos que ela esteja
morta pelos trechos com alusão ao mundo celestial e estar
entre os anjos. Na música, quando menciona “o caminho de
nunca mais” e, no conto, ao clamar pela “amada, hoje entre
hostes celestiais”.
Na letra da música, o protagonista faz perguntas para
as quais recebe sempre as mesmas respostas:
Você não vê?
Por que você teve que me deixar? (Nunca mais)
Por que você me decepcionou? (Nunca mais)
Esse trecho da canção assemelha-se à angústia do amante
no conto, enquanto pergunta ao corvo diversas vezes sobre sua
amada, porém recebe sempre a mesma monótona resposta, que
mais parece um eco e igualmente pode ser a própria consciência
do protagonista, buscando uma esperança de retorno.
065-E o bordão de desesp’rança de seu canto
cheio de ais
066-Era este “Nunca mais”.
Araújo (2002, p. 99) lembra que esta monotonia vinda
da resposta do corvo é fundamentada na característica do autor
em salientar a melancolia e a tristeza, baseadas no tema da morte.
Ao explorar a mente, Poe utiliza recursos psicológicos
com abundância. Para isso, dedica-se aos detalhes que
envolvem loucura e emoções extremas. Recorre ao “estilo
deliberadamente doloroso e as explicações elaboradas nas
histórias aumentam o senso do horror por fazer os eventos
parecerem muito vívidos e plausíveis” (BESSA, 2008, p. 48).
Outro verso remetido ao conto é o momento em que
são citadas as condições do tempo e os elementos da natureza,
vinculados à tristeza e à solidão. Esta característica pode ser
encontrada também na música.
Não há mais existência na minha vida
Os mares secaram
E a chuva parou de cair
Por favor, não chore mais
Arte, Cultura e Imaginário 321
Você não vê?
Escute a brisa
Sussurre para mim, por favor
Não me mande para o caminho de nunca mais
Até mesmo os vales abaixo
Onde os raios do sol
São tão mornos e suaves
Agora não há nada para crescer (grifos nossos)
Ademais, Bachelard (1997, p. 70) menciona que, na
poesia de Poe, “se alguém ou alguma coisa fala na superfície,
é um vento ou um eco, algumas árvores da margem que
confiam suas queixas umas às outras, é um fantasma que sopra,
que sopra baixinho”. Este eco é tratado por Chevalier (1986,
p. 433) como símbolo da regressão e da passividade, que por
ser um estado passageiro, antecede uma transformação. Além
disso, evoca as noções de duplo e sombra, que percebemos
no imaginário noturno de Durand.
029-E a única palavra dita foi um nome cheio
de ais –
030-Eu o disse, o nome dela, e o eco disse os
meus ais,
031-Isto só e nada mais. (grifo nosso)
Aproximando-se ao poema, encontramos em Durand a
correlação entre o sofrimento mediante a passagem do tempo e a
angústia da proximidade da morte. Para a formação do imaginário
humano, acontecem reações conflitantes, em decorrência da sua
dualidade entre ser sujeito que tem um tempo determinado para
deixar este mundo e sem possibilidade de retorno. Em contraponto
ao momento de passagem do mito, o autor ilustra:
Argumento muito próximo da metamorfose
múltipla é o motivo mitológico do túmulo vegetal:
o corpo de Osíris é encerrado num cofre de
madeira, que por sua vez é metido num tronco de
esteva que servirá para fazer a trave mestra do
palácio real. Mas nasce sempre uma planta da
morte, do herói, e anuncia a sua ressurreição: do
corpo de Osíris nasce o trigo, de Átis as violetas e
de Adônis as rosas. Esse ramo, essa vergôntea
322 Literatura e música...
são, para a imaginação, indutores da esperança
ressurrecional (DURAND, 2012, p. 298).
No nosso caso, os poetas nas duas análises não têm
esperança de rever a amada.
025-Noite, noite e nada mais.
026-A treva enorme fitando, fiquei perdido
receando,
027-Dúbio e tais sonhos sonhando que os
ninguém sonhou iguais.
028-Mas a noite era infinita, a paz profunda e
maldita,
029-E a única palavra dita foi um nome cheio de
ais –
030-Eu o disse, o nome dela, e o eco disse os
meus ais,
031-Isto só e nada mais.
032-Para dentro então volvendo, toda a alma em
mim ardendo,
033-Não tardou que ouvisse novo som batendo
mais e mais.
034- Por certo, disse eu, aquela bulha é na minha
janela.
035-Vamos ver o que está nela, e o que são estes
sinais.
036-Meu coração se distraia pesquisando estes
sinais.
037-É o vento, e nada mais.
Nessas estrofes, percebemos que Poe acena para uma
moldura em que o belo e o melancólico compõem a evocação
do “sussurrar do vento ou no bater da porta, ou mesmo na
insistente resposta do corvo” (ARAÚJO, 2002, p. 97), com
referência ao nome de Lenore.
Na musicalidade que engendra o conto e marcadamente
na música, notamos a presença do imaginário noturno que,
segundo Durand (2012, p. 348), tem, também, função de
organizar as imagens no plano musical, porque a música traz
esta conciliação e controle sobre os opostos, como também evita
a perda da vivência em relação ao passar do tempo. É na música
Arte, Cultura e Imaginário 323
que se encontra a harmonia para o alcance de “uma imagem
carregada de afetividade”. Ao que se percebe a seguir:
Não há mais existência na minha vida
Os mares secaram
E a chuva parou de cair
Até mesmo os vales abaixo
Onde os raios do sol
São tão mornos e suaves
Agora não há nada para crescer (grifos nossos)
Em semelhante análise, vemos, em Bachelard (1997, p.
67), o imaginário da água com sua dualidade de contrários em
relação à morte/vida. Nas estrofes acima destacadas, o poeta
inicia seu lamento por considerar que sua vida se extinguiu
partindo da ideia de ausência de água e, com isso, conclui que
“agora não há nada para crescer”. Poe, em suas obras, traz a
simbologia da água, entendida como “águas imóveis”, que, na
perspectiva de Bachelard, “evocam os mortos, porque as águas
mortas são águas dormentes”.
Ao terminar a música, destacamos a deprimente
conclusão do amante ao sentir que nada haverá que o console e
total inexistência de esperança em relação à amada.
Você me mandou para o caminho de nunca mais
Quando você disse que não me ama mais
Ah, ah, nunca mais, nunca mais
Semelhantemente, o final do poema traz esta angústia e
expõe “uma paralisante cena de morte-em-vida” (BESSA, 2008,
p. 48). Ademais, em Bachelard,
[...] a imagem que domina a poética de Edgar Poe é
a imagem da mãe moribunda. Todas as outras
amadas que a morte arrebatará, Helena, Francês,
Virgínia, renovarão a imagem primordial, reavivarão
a dor inicial, aquela que marcou para sempre o pobre
órfão. O humano, em Poe, é a morte. Descreve-se
uma vida pela morte (BACHELARD, 1997, p. 48).
Araújo discorre sobre as possíveis musas que inspiraram
Poe a tecer o poema; entre elas sua mãe e sua esposa, convertidas
em uma silhueta, “que é bela porque está morta” (ARAÚJO,
Arte, Cultura e Imaginário 324
2002, p. 97). Entendemos Poe em sua demonstração íntima
com a morte, que a transforma em essência de uma vida
sufocada, uma recordação tão profunda a ponto de se fixar
no âmago da consciência, apesar de nunca transpassar os
limites dos sonhos.
Quando mencionarmos sonhos, somos remetidos ao
que o conto se assemelha – um sonho, um pesadelo.
Percebemos, assim, a dualidade presente na figura do “Corvo,
na noite infinda” (negro) e no “alvo busto de Atena” (branco).
Em Chevalier (1986, p. 391), vemos que a simbologia do
pássaro carrega em si a ideia de comunicação com o mundo
dos mortos. Pela capacidade de voar, torna-se mensageiro
daqueles que já não estão mais entre os vivos.
Além disso, pelo fato de comer car nes em
decomposição provoca repulsa e, por vezes, pode ser
considerado também um pássaro de mau agouro. O autor
define que “nos sonhos, o corvo é mais do que mau presságio,
símbolo negativo ligado ao medo de desgraça”. O pássaro
pode ainda representar os sentimentos mais íntimos, a partir
dos quais “é criada então uma luta que simboliza o combate
psíquico entre pensamentos”.
Quando estudamos sobre o símbolo presente em
Atena, temos a representação da espiritualidade. Para os
gregos, é a deusa da sabedoria, de quem o nascimento surge
da necessidade emergente de luz sobre o mundo, após o
Apocalipse. Atena surge do céu como: “a que fecunda como
chuva e que ilumina como sol [...]Ela é a deusa do equilíbrio
interior, [...] a deusa atinge apenas essa perfeição no final de
uma longa evolução; e isso reflete a evolução da consciência
humana”, com isso, todos os seus elementos se integram em
harmonia. Junto com seu irmão Apolo, “simbolizam as
funções psíquicas sensatas, nascidas da visão dos últimos
ideais: a suprema verdade” e mais ainda, simboliza a própria
“combatividade espiritual” (CHEVALIER, 1986, p. 148).
103-E o Corvo, na noite infinda, está ainda, está
ainda,
104-No alvo busto de Atena que há por sobre os
meus umbrais.
105-Seu olhar tem a medonha dor de um demônio
Arte, Cultura e Imaginário 325
que sonha,
106-E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão
mais e mais.
107-E a minh’alma dessa sombra que no chão há de
mais e mais,
108-Libertar-se-á… nunca mais! (grifos nossos)
O fato de o corvo estar sobre o busto de Atena leva-
nos a interpretar que os pensamentos maus estão em nível
mais elevado que os bons, uma vez que a deusa representa a
espiritualidade, a elevação; porém, o corvo está sobre ela, com
toda sua carga negativa. Há um duelo entre a esperança de
retorno e o medo do “nunca mais”. A estrofe acima remete
ao imaginário noturno dissertado por Durand sobre as
contradições – noite (negro)/alvo (branco) – luz/sombra –
demônio(negativo) que sonha(positivo) e do pássaro noturno,
na figura do corvo.
Semelhantemente, notamos em Durand (2012, p. 67)
a ênfase desta angústia: “A noite recolhe na sua substância
maléfica todas as valorizações negativas precedentes. As trevas
são sempre caos e ranger de dentes”. Encontramos referências
sobre a influência que o poema trouxe para várias outras obras,
inclusive a nossa escolha musical.
O poema inspirou incontáveis outras obras em todos
os campos, desde música a teatrais e cinemáticos.
Mesmo Freddie Mercury se deixou infectar pelas
penas negras do corvo e, em 1974, compôs a canção
Nevermore, inspirada no poema de Poe. 6
Seguiremos com nossa interpretação, buscando ligações entre
as obras de Poe e Freddie Mercury e seus contextos de produção.

Edgar Allan Poe e seu contexto de produção

Edgar Allan Poe teve seu contexto de produção no


Romantismo norte-americano, que ocorreu no período pós-
6
2014 Copernicum. Disponível em: <http://www.copernicum.it/blog/
valutazioni-gratuite/>. Acesso em: 21 out.2018.
326 Literatura e música...
independência dos EUA, momento de forte desenvolvimento
econômico e político, no séc. XIX, por volta de 1820. Foi o momento
em que o país buscava uma identidade para se erguer como nação
independente da Grã-Bretanha. Para tanto, os escritores pretendiam
construir uma poesia que rompesse com os moldes da Inglaterra,
procurando uma voz mais autêntica, nacional.
Na América do Norte, este período foi influenciado pelo
Romantismo europeu, trazendo elementos góticos. Seus
principais atributos denotam reação ao Iluminismo, movimento
cultural que se baseava na razão, na lógica, no materialismo
científico. O Romantismo veio para combater a razão iluminista,
dando força às motivações advindas do universo dos sentimentos,
das paixões, do mundo das sombras, como mencionado em um
dos exemplos contidos no conto.
039-Entrou grave e nobre um Corvo dos bons
tempos ancestrais.
046-Ó velho Corvo emigrado lá das trevas
infernais! (grifo nosso)
Também notamos a resistência aos ideais radicais do
puritanismo. Neste mesmo contexto de ambiguidades, é possível
observar expressões que remetem a esta ideia:
091-”Profeta”, disse eu, “profeta – ou demônio
ou ave preta! –
092-Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e
mortais,
093-Dize a esta alma entristecida, se no Éden de
outra vida,
094-Verá essa hoje perdida entre hostes
celestiais,
095-Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!”
096-Disse o Corvo, “Nunca mais”.
097-”Que êsse grito nos aparte, ave ou diabo”, eu
disse. “Parte!
098-Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas
infernais! (grifo nosso)
Cabe ressaltar que o contexto histórico de vida dos
escritores americanos era marcado por situações conflituosas
Arte, Cultura e Imaginário 327

e revolucionárias. Bessa descreve que os autores traziam aos


seus romances protagonistas solitários, alienados e
assombrados. Igualmente, ela menciona Poe,
[...]muitos dos personagens isolados e obsessivos
dos contos de Poe são protagonistas solitários que
se contrapõem ao destino sombrio e
desconhecido que, de algum modo misterioso,
emerge das profundezas de seu inconsciente. Os
enredos simbólicos revelam as ações escondidas
de um espírito angustiado (BESSA, 2008, p. 43).
Edgar Allan Poe (1809-1849)7 mescla, em suas obras,
elementos metafísicos aos “subgêneros da ficção científica,
do horror e da literatura fantástica” (BESSA, 2008, p. 48).
Claramente, encontramos expressões com este perfil no conto.
Citaremos algumas:
002-Vagos curiosos tomos de ciências ancestrais
012-Essa cujo nome sabem as hostes celestiais
015-Me incutia, urdia estranhos terrores nunca
antes tais!
039-Entrou grave e nobre um Corvo dos bons
tempos ancestrais.
046-Ó velho Corvo emigrado lá das trevas infernais!
(grifo nosso)
Englobando traços do Simbolismo e do Surrealismo
na expressão de seu imaginário, Poe trabalha com uma espécie
de antirracionalismo, valorizando aspectos dos sonhos e das
alucinações, em seu processo de criação poética.

Freddie Mercury na Banda Queen 8 e seu contexto


de produção
7
Filho de pais artistas itinerantes, órfão em sua tenra infância e sem estabilidade
familiar, casou-se aos 26 anos com sua prima-irmã Virginia Clenn, de 14 anos
incompletos. Envolveu-se com bebidas, apresentava um comportamento
desequilibrado, o qual é identificado em suas obras. Teve a carreira literária
interrompida precocemente, ao falecer miserável, com 40 anos.
8
“Guia o melhor do rock – ed.01– QUEEN”, lançada em 2016.
328 Literatura e música...
Freddie Mercury9 começou a fazer parte da banda
Smile em 1966. Esta banda passou a ser Queen quando Freddie
tornou-se o vocalista do grupo. Seu álbum de estreia, Queen,
foi produzido no período de 1971 e 1972, em Londres. Já o
segundo disco, Queen II, foi gravado em estúdio em 1973, no
qual consta a música em estudo.
Era momento de crise do petróleo, com isso o governo
estabeleceu medidas econômicas e de conservação energética,
motivo pelo qual o lançamento do disco de vinil sofreu atraso
na produção, chegando às lojas somente em março de 1974.

9
Farrokh Bommi Bulsara, nome real de Freddie Mercury, nasceu em 5 de
setembro de 1946 na cidade de Zanzibar, Tanzânia. Teve formação em música
no internato e artes gráficas na escola técnica. Em sua adolescência, tocou
em outras bandas e em festas na escola, antes de entrar para o Queen. Filho
de descendentes persas, fugitivos da invasão islamita, passou a residir na
Índia, onde seu pai prestava serviços ao governo britânico. Aos sete anos, foi
matriculado em um internato de missionários anglicanos em Mumbai, com
isso, afastado dos pais e da irmã recém nascida. Quando vivenciou sua primeira
experiência de solidão e isolamento. Foi neste período que teve acesso às
músicas clássicas de Beethoven, Bach, como também Mozart, tanto que
demonstrou interesse por canto lírico e formou-se em teoria musical. Seu
apelido Freddie surgiu do diminutivo de Frederick, porque os amigos não
conseguiam pronunciar “Farrokh”. Encantou-se com as aulas de artes
dramáticas. Era a época do rock, do jazz, de Elvis Presley, Marilyn Monroe,
Clark Gable e Marlon Brando. Todos estes trouxeram influências ao jovem
Freddie. Porém, aos 15 anos apaixonou-se por Sanjay, filho do jardineiro da
escola, fato que desequilibrou sua vida, pois a notícia se espalhou pelo
internato, seus pais foram notificados e foi forçado a voltar para Zanzibar
cheio de culpa e envergonhado. Ainda segundo a revista (2016, p. 8), em
1964, devido aos problemas políticos por causa do partido árabe-muçulmano,
toda a família Bulsara migrou para a Inglaterra. Aos vinte anos, decidiu morar
sozinho para seguir o sonho de ser artista. Este início de carreira foi muito
difícil, muitas vezes ficava sem comer para pagar as contas e preocupava
seus pais por sua excessiva magreza. Já na banda Queen, com todo o sucesso,
em sua mansão de Kensington, sua intimidade era livre de regras ou limites.
Nas décadas de 70 e 80, a homofobia era declarada, talvez por isso, Freddie
nunca assumiu seu desejo para com outros homens. Foi casado com Mary
Austin por seis anos, considerada o amor de sua vida. Declarou que apesar
de toda a fama, nunca conseguiu manter um relacionamento e que tinha
medo de morrer sozinho. Manteve segredo tanto dos fãs quanto da imprensa,
sobre ter contraído o vírus do HIV em 1987. Faleceu 24 horas após tornar
pública sua condição física, em 23 de novembro de 1991, aos 45 anos.
Arte, Cultura e Imaginário 329
A década de setenta foi marcada por várias crises
econômicas pelo mundo. Era o tempo da Guerra Fria, do Vietnã,
como também das ditaduras. Com isso, na Inglaterra, há uma
“multiplicação de vozes, questões e conflitos, que desequilibraram
o que parecia ser a plácida unanimidade da grande tradição
ocidental [...]que lida com problemáticas de raça, etnia, gênero e
sexualidade” (SILVA, 2006, p. 299). Nesse sentido, é possível
ligar os sentimentos de morte que ele declara na música.
Esse período foi marcado por uma sensação generalizada
de ruptura de valores e pela melancolia do tempo que não se
recupera. Nas artes, existe a representação do amor não
correspondido, às vezes platônico, saudosismo exagerado, além
do antagonismo da solidão em meio à multidão, obstinação pela
morte e destaque para o hedonismo (busca do prazer para aliviar
a dor) (SILVA, 2006). Mesmo com todo esse contexto, ainda
vemos no texto uma tentativa de externar alguma perda amorosa.
Podemos notar esse aspecto de perda na música nos
momentos em que o poeta menciona “não há mais existência na
minha vida” (o sentimento exacerbado de morte), “não me mande
para o caminho de nunca mais” (o medo da morte), e a
constatação do amor não correspondido no instante em que
afirma: “você me mandou para o caminho de nunca mais”,
“quando você disse que não me ama mais”.
A banda ganhou destaque com a veiculação desse disco.
Houve um aspecto que chamou a atenção, ao invés de ser “lado
A” e “lado B”, foi intitulado como “lado branco”, com músicas
românticas escritas por Brian May e “lado negro”, com canções
compostas por Freddie Mercury, mais introspectivas e obscuras,
no qual se encontra na faixa 3 Nevermore, a única balada.
Ao buscarmos referência sobre a melodia que estamos
trabalhando, encontramos outras canções que denotam a
personalidade tristonha e solitária de Mercury, como My melancholy
blues – 197710.

10
Conheça dez canções do Queen que revelam questões pessoais dos
integrantes integrantes. Paulo Cavalcanti – publicado em 16/08/2014, às
14h19.Disponível em: http://rollingstone.uol.com.br/artigo/conheca-
dez-cancoesdo-queen-que-revelam-questoes-pessoais-dos-integrantes/.
Acesso em: 21 out. 2018.
330 Literatura e música...
Nevermore está inserida no contexto de melodias
características do sentimento de emoção e melancolia da
música do gênero blues, pelo abaixamento da terça maior em
menor, e trata da temática dos sentimentos resultantes do
desgosto de um abandono. É a terceira canção do lado dois
do LP original, o chamado Black Side (Lado Negro), composto
por canções com temática mais fantasiosa, em contraposição
ao White Side (Lado Branco), com canções emotivas. Esta
subdivisão de opostos entre os lados branco e negro remete-
nos aos enredos de ópera.
A inclusão de Nevermore no segundo disco, de nome
“Queen II”, aponta para uma busca eclética de sonoridades.
Ela soa como uma vinheta ou uma abertura para a música
seguinte The March of the Black Queen, quase como um recitativo
e ária de uma ópera. Enquanto Nevermore é introspectiva, com
o uso de poucos instrumentos acompanhantes, piano e
sintetizadores, The March of the Black Queen apresenta
polirritmia e polimetria e rico uso de recursos instrumentais,
em uma estrutura musical ousada.
Percebemos a ênfase do imaginário noturno na
construção melódica e harmônica desta canção, conforme
explicamos a seguir.
Esta é a primeira composição de Freddie Mercury em
forma de balada, abrindo o leque de possibilidades de estilo
da banda, que foi definida como um conjunto de rock, em
suas diversas vertentes, a saber: hard rock, heavy metal, pop rock,
glam rock ou classic rock, vaudeville, ópera, rockabilly e progressivo.
Esta música é relativamente simples para os padrões
da banda Queen. A harmonia está em Fá Maior, com poucos
cromatismos. Não há ponte contrastante entre as partes, sendo
o segundo verso uma extensão e continuidade do primeiro.
Estruturalmente se divide em introdução (2 compassos) /
verso 1 (13 compassos) / verso 2 (21 compassos) / cadência
final (2 compassos). É uma canção predominantemente
melódica, sem instrumentos de percussão e guitarra, e com a
velocidade variando conforme a intenção da letra, em ritmo
sincopado livre, propiciando liberdade ao cantor para
interpretar e dar sentimento ao texto.
O acompanhamento do piano, criado dentro da
técnica do período renascentista denominada baixo de Alberti,
Arte, Cultura e Imaginário 331
ou seja, a utilização de harpejos dentro da estrutura básica
tônica (F), subdominante (Bb) e dominante com sétima (C7),
intercalada com acordes relativos de ré menor (tr) e lá menor
(sr), ainda pontuados pela Dominante da Dominante com
sétima (G7), cria um tecido sonoro harmônico presente no
contexto do universo do imaginário pelas cadências plagais.
Esta estrutura harmônica “simples”, que sustenta uma
linha melódica de alta expressividade remete-nos a dualidades
(mundo real x mundo imaginado, realidade x sonho, imaginário
diurno x imaginário noturno, hedonismo x depressão). Este
acompanhamento nos direciona para uma possibilidade de
paisagem sonora noturna (imaginário noturno), dentro dos
parâmetros do pensamento de Murray Schafer (1991), na
utilização de tonalidades maiores (imaginário diurno) e
tonalidades menores (imaginário noturno).
A linha melódica é construída predominantemente
por intervalos de segundas e terças, fato que possibilita uma
interpretação de pensamento mais voltado para o interior,
para o imaginário atrelado ao fantástico, sendo que o intervalo
disjunto – sexta maior ascendente, no refrão, junto com a
terça menor descendente na palavra see em uma região vocal
hiperaguda, cria um sentimento de angústia, de
impossibilidade de retorno, quando menciona na letra o texto
“você me mandou para o caminho de nunca mais, quando
disse que não me ama mais”. A tonalidade de lá menor reforça
este caráter em similaridade com o pensamento de Durand.
O trecho anymore e cant’you see? direciona a composição
ao universo modal (sistema musical medieval) ao utilizar a
cadência plagal. Dentro do universo tonal, no qual a canção
está escrita, o direcionamento neste trecho ao modalismo
remete ao imaginário noturno, ao universo do “nunca mais”
como impossibilidade de retorno e também a uma forma de
fuga da realidade, pelo salto para o desconhecido, pelo
abandono e pela consequente angústia da morte, sonoramente
representados pelo salto de sexta maior ascendente, que
funciona como um grito pelo medo ante o imprevisível.
A constatação de que não há volta para o universo
modal (no texto, representado pelo relacionamento físico
emocional rompido pelo abandono do outro) é enfatizado
no final da música pela repetição em forma de eco da palavra
332 Literatura e música...
nevermore, antes cantada no sistema modal, e agora repetida
duas vezes na tonalidade principal (Fá Maior). Também, a
condução melódica na forma balada vai ser fonte de inspiração
para outras composições futuras como Bohemian Rhapsody. O
caráter descritivo musical é inspirado pela forma literária
escolhida, a balada.
Fica-nos a impressão, após ouvir a canção, de que
Freddie revela o lado emocional de sua personalidade, mais
introspectivo, desconhecido dos fãs, pois, em seus shows,
mostrava uma performance com gestos teatrais, possibilitados
por sua prática no ballet, como o microfone lembrando um
cetro, capas de rainha, no envolvimento da plateia cantando
os refrãos.
Ele traduzia seu caráter romântico e aspectos de sua
vida particular nas composições, em particular, a solidão, a
timidez, a vulnerabilidade e a desconfiança nas pessoas. É
claro que sensações emocionais resultam de um repertório
de escuta, de um domínio das diversas vertentes musicais e
do momento físico emocional de cada ouvinte, no momento
da escuta.
À guisa de conclusão, o trabalho, na perspectiva da
interdisciplinaridade, articulando literatura e música,
possibilitou uma análise acerca dos recursos estéticos que se
organizam nas diferentes linguagens, revelando marcas tanto
do estilo individual de cada artista, quanto de cada contexto
cultural e histórico. Para tanto, elegemos trabalhar o conto
“O Corvo”, do escritor romântico americano Edgar Allan
Poe e sua inter-relação com a música Nevermore escrita nos
anos 70, por Freddie Mercury, da banda britânica Queen.
A inter-relação texto-construção melódico-harmônica
está presente nas opções de estilo composicional de Mercury
ao utilizar ambiguidades entre o universo modal (emocional)
e o universo tonal (racional), entre o uso de intervalos
melódicos em graus conjuntos nas estrofes e intervalos
melódicos em saltos no refrão e na performance suave nas
estrofes e o canto em fortíssimo no refrão, soando como um
clímax. Estas dualidades sonoras enfatizam a incerteza do
retorno e a constatação de que não há mais esperança, uma
constatação do “nunca mais”.
Arte, Cultura e Imaginário 333
Pode-se dizer que, frente ao contexto de produção de
Edgar Allan Poe comparado ao contexto de produção de
Freddie Mercury, encontramos proximidade na representação
simbólica de ambos. Essa comparação nos revela fortes traços
do imaginário que se apresenta nas diversas manifestações
artísticas, em forma de sentimentos e atitudes dos seres
humanos, enquanto participantes do processo de interpretação
e consequente entendimento da leitura individual deste sujeito.
A perspectiva analítica de Ricardo Araújo e Maria
Cristina Bessa nos permitiu pontuar aspectos do conto “O
Corvo”, traduzido por Fernando Pessoa e a livre tradução da
canção Ne vermore. Como base metodológica, nos
concentramos nos fundamentos dos estudos comparados de
literatura, bem como nos estudos do imaginário em Gaston
Bachelard e Gilbert Durand.
Partindo destas teorias, encontramos, neste conto,
associações com a canção, quando imageticamente
destacamos que ambos demonstram sofrimento pela
passagem do tempo, com consequente pavor da morte e
sentimentos psíquicos dúbios em relação ao mundo exterior.
Neste caso, temos a presença do corvo no conto, às vezes
considerado, simbolicamente, um animal de mau agouro,
retrato do duelo mental. Sua voz pode ser interpretada como
a consciência do amante e a monótona resposta, transformada
num eco infinito, reverberação da voz em espaços diretamente
atrelados ao imaginário noturno. Na canção, temos a ausência
de vida, representada pela escassez de água, com isso,
nenhuma esperança de retorno ou ressurreição.
O conto apresenta, em forma de pesadelo ou transe,
a agonia do amante ao ser constatado, pela resposta monótona
de um cor vo, que sua amada “nunca mais” voltará.
Semelhantemente na canção, percebemos, em lamento, a
tristeza do protagonista pelo abandono do ser amado, a partir
do momento em que esse foi enviado para o mundo do “nunca
mais”. Os símbolos envolvidos nesse trânsito imaginário, tanto
na literatura quanto na música, apesar de serem gêneros
distintos, com linguagens singulares e diversas, traduzem
aspectos do regime noturno de que trata Durand.
334 Literatura e música...
A análise comparada favoreceu a compreensão de cada
produção artística, de seus contextos e de seus possíveis
diálogos e ao mesmo tempo ampliou conhecimento para
novas interpretações. Reiterando Umberto Eco, a obra é aberta
e pode ser lida de distintas maneiras. Além disso, podemos
ressaltar a viabilidade de utilizar textos traduzidos, ao favorecer
acesso a outros leitores. Dessa forma, difundimos a obra
clássica, proporcionando interculturalidade e favorecendo
aprendizado mais abrangente e sensível.

Referências bibliográficas

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Ateliê Editorial, 2002.
BACHELARD, G. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação
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CAMARANI, A.L.S. A literatura fantástica: caminhos teóricos.
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Arte, Cultura e Imaginário 335
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WUNENBURGER, J. J. O Imaginário. Trad. Maria Stela
Gonçalves. São Paulo: Loyola, 2007.
.
O imaginário nas narrativas dos
educadores sociais da pastoral do menor
sobre “Projeto Escola de Cidadania” na
formação do adolescente
João Clemente de Souza Neto1
Leandro Alves Lopes2
Sebastião Jacinto dos Santos3

Este capítulo visa promover a reflexão sobre a


contribuição do projeto Escola de Cidadania, a partir de
narrativas dos educadores sociais da Pastoral do Menor, pois
as suas ações no Brasil se apresentam como eficientes
ferramentas na promoção da educação cidadã e estimulam o
protagonismo ético do adolescente, com a inclusão e a
prevenção da violência, uma vez que há o compromisso na
defesa dos Direitos Humanos.
A metodologia de estudo de caso, com educadores
sociais dessa instituição, ilustra as percepções sobre a Escola
de Cidadania como forma de participação de todos os
envolvidos na educação inclusiva do adolescente.
O foco das discussões é o atendimento ao adolescente
em situação de vulnerabilidade e as bases de interpretação de
como os educadores percebem a sua atuação no cotidiano

1
Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da
Cultura e do Curso de Pedagogia da Universidade Presbiteriana Mackenzie
Membro do Instituto Catequético Secular São José; da Pastoral do Menor da
Região Episcopal Lapa.
2
Mestrando em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie. Orientador Pedagógico Pastoral do Centro Social Nossa
Senhora do Bom Parto. Coordenador da Pastoral do Menor da Região Episcopal
Belém/Arquidiocese de São Paulo e assessor da Pastoral do Menor do Estado de
São Paulo triênio 2018/2020.
3
Mestre em Ciências Humanas pela UNISA; Doutorando bolsista do Programa
Educação, Arte e História da Cultura, Universidade Presbiteriana Mackenzie;
Professor de Filosofia e Sociologia na Secretaria de Educação do Estado de São
Paulo.
338 O imaginário das narrativas dos educadores...
desses adolescentes. No intuito de promover a formação do
protagonismo do adolescente, a Escola de Cidadania
proporciona aos educadores o estudo partilhado como
promoção de garantia dos Direitos Humanos em
conformidade com a educação social.
O estudo se fundamenta no trabalho da Pastoral do
Menor (PAMEN) no estado de São Paulo. Trata-se de pesquisa
com educadores sociais que, na sua trajetória de vida,
vivenciaram, na prática, o cotidiano da Escola de Cidadania.
As informações colhidas com esses educadores, que
participaram dos encontros e entrevistas, registram lembranças
de suas trajetórias de vida e, a partir do imaginário expresso
em ações do passado e do presente, traçaram-se e
interpretaram-se dados para avaliar que, mesmo nos conflitos,
esses educadores na sua adolescência vivenciaram o que hoje
avaliam como significativo na reconstrução da identidade de
crianças e adolescentes atendidos nessa entidade.
A escolha dessa experiência, dentre muitas que se
denominam Escola de Cidadania, está de acordo com a
integração do trabalho de formação cidadã de todos os
envolvidos, aprimorando o desenvolvimento da comunicação
e da identidade cultural, e deve-se à tradição que a Pastoral
do Menor construiu ao longo de mais de 40 anos em todas as
regiões do Brasil, na defesa dos direitos de crianças e
adolescentes.
A partir de uma metodologia participativa, envolvemos
diferentes atores, como crianças, adolescentes, jovens,
familiares, educadores sociais e membros da comunidade local.
Pesquisar sobre o que fundamenta a Escola de
Cidadania leva-nos a compreender que suas bases estão
fundamentadas na garantia de Direitos Humanos em sintonia
com a formação para a integração social cidadã. Esta pesquisa
requer que coloquemos como exemplo e modelo de Escola
de Cidadania a PAMEN, que lida, principalmente, com as
práticas pedagógicas da Educação Social, acionando as
estruturas sociológicas e antropológicas para a percepção dos
fenômenos simbólicos que definem esse público atendido.
Os argumentos reconstruídos pelas lembranças dos
educadores sociais referendam as práticas de intervenção com
Arte, Cultura e Imaginário 339
crianças, adolescentes e jovens como forma de resgate da
pertença comunitária. Esses sujeitos deverão ser vistos como
cidadãos que pertencem a uma comunidade que os integra,
como seres humanos em for mação, que buscam a
reconstrução de suas vidas no resgate de justiça social.
As análises dos discursos desses educadores,
proporcionadas pelas lembranças, recriam a identidade pessoal
desses sujeitos, proporcionando, pelas percepções pessoais,
maior aderência ao projeto de uma educação para a cidadania.
No entanto, ao passo que realiza projetos de formação em
cidadania, o educador social dá visibilidade à sua tarefa de
compreender as bases simbólicas da sociedade, que afetam
diretamente de modo excludente, gerando dilemas que
infringem os direitos das crianças e adolescentes.

Fundamentação teórica

No início dos trabalhos da PAMEN, em 1977, no


estado de São Paulo, “[...] o jovem em conflito com a lei
representava um perigo para a sociedade, e [...], por apresentar
um desvio de conduta, seria necessário primeiro corrigi-lo
para depois devolvê-lo à sociedade” (IATAURO, 2010, p. 82).
Na atualidade, alguns direitos foram conquistados, mas a
sociedade, em geral, ainda vê o adolescente infrator como
uma ameaça à segurança e prevalece a simbologia da violência
que o rotula como criminoso. Nesse caso, o trabalho dos
educadores sociais torna-se necessário e traz, como
consequência, a compreensão de que preparar os adolescentes
e jovens para assumir a cidadania consiste em reestruturar a
forma como a PAMEN e seus educadores sociais concebem
a educação cidadã.
A PAMEN vence as estruturas sociais tradicionais e
se reafirma nas bases de uma ação popular, adequando-se à
realidade de milhões de crianças e adolescentes que, na
pobreza, abandonados, vivenciam a miséria no silêncio das
cidades do Norte ao Sul do país, foram esquecidos e todos os
projetos os deixavam de fora. Para os incluir, é preciso
compreender que:
340 O imaginário das narrativas dos educadores...
[...] os acontecimentos são construídos a partir
do homem, mas têm desdobramentos que vão
além de sua vontade. Neste sentido, a história deve
ser compreendida na práxis, que supera as
dicotomias entre sujeito e objeto, homem e
natureza, pensamento e existência (SOUZA
NETO, 2002, p. 74).
Alguns projetos tomam rumos inesperados e alcançam
proporções que as ações humanas inicialmente não
compreendiam. O mesmo se deu com a história da luta dos
educadores sociais da PAMEN nesses 40 anos de existência.
Assim, com a organização de alguns casais, surgiu a Instituição
Nossa Senhora do Bom Parto, para trabalhar com adolescentes
infratores. “A ideia desse grupo não era só trabalhar com o menor,
mas também com suas famílias, consideradas problemáticas.
Assim, o trabalho consistia em tratar o menor (acolher) e buscar
compreender sua família” (IATAURO, 2010, p. 82).
Na educação para a cidadania, “[...] os sujeitos sociais,
sua constituição e socialização, os processos civilizatórios, a
cultura, as identidades, a humanização da natureza, da cidade,
do ambiente, da produção, do trabalho, das novas tecnologias...
estão atualmente no foco de olhares diversos por vezes
conflitantes” (ARROYO, 1998, p. 156).
Conforme Gadotti:
O movimento atual da chamada “escola cidadã” está
inserido nesse novo contexto histórico de busca de
identidade nacional. A “escola cidadã” surge como
resposta à burocratização do sistema de ensino e à
sua ineficiência. Surge como resposta à falência do
ensino oficial que, embora seja democrático, não
consegue garantir a qualidade e em resposta também
ao ensino privado às vezes eficiente, mas sempre
elitista (GADOTTI, 2016, p. 5).
A PAMEN, ao propor o desenvolvimento de projetos
que resgatem princípios de cidadania, compreende e vê “[...]
o menor, entre os pobres, aquele ainda mais indefeso. Ele se
apresenta como o pequenino, que incomoda e que a sociedade
tenta afastar por lhe ser incômodo. Sua presença silenciosa e
Arte, Cultura e Imaginário 341
seus atos, rotulados de ‘antissociais’, são uma ‘denúncia’”
(GIUSTINA, 1987, p. 118). Essa denúncia passa a ser
referência para se admitir que o melhor caminho para a
sociedade é assumir o compromisso de acolher e propor
soluções para a causa da ressocialização dos menores.
Esses menores estão em muitos ambientes das cidades,
e, antes de serem vistos como uma mancha negativa a abalar
a segurança da população, podem representar a necessária
atitude de transformação dos adultos para o olhar social. Por
isso, “[...] ao se fazer presente no morro, na rua, na esquina e
no lixo, tal pastoral realiza um ato de ruptura com o poder
em si” (GIUSTINA, 1987, p. 170) e demonstra que não só a
criança e o adolescente são frágeis, mas também a própria
sociedade se encontra cercada pelo medo que se dissemina
com a violência. Embora com os sintomas de insegurança, a
sociedade, em geral, necessita se envolver na formação ética
e resgate da cidadania.
Pelos diferentes panoramas sociais montados pela
lógica do capitalismo e do consumo das invenções modernas,
“[...] a Pastoral do Menor parte da vida ameaçada numa
sociedade em que a situação de opressores e oprimidos
manifesta o conflito” (GIUSTINA, 1987, p. 171).
Não se pode atribuir a culpa somente às crianças e
aos adolescentes pela presença da violência na sociedade. O
fato de as pessoas se sentirem violentadas em seus direitos
não as exclui do trabalho de educar as crianças e adolescentes,
visando à garantia de seus direitos. E propor uma educação
com formatos de resgate do sentido da cidadania deve ser o
desejo não só dos educadores sociais da Pastoral do Menor,
mas de todos os envolvidos.
A educação para a cidadania, montada nas bases de
uma educação popular, demonstra que a necessidade da
população vai além das funções de consumos básicos e, nesse
caso, Scocuglia evidencia que: “[...] a educação e a cultura
seriam objetivadas do ponto de vista das necessidades, dos
valores e da capacidade de mobilização e organização do
povo” (2001, p. 51).
As verificações históricas do Documento da Pastoral
do Menor (CNBB, 2017, pp. 12-13) dão conta de que a Escola
342 O imaginário das narrativas dos educadores...
de Cidadania tem como fundamento a pedagogia libertária,
quando propõe uma estrutura autogestionária (Tratenberg) e
pedagogia liber tadora (Paulo Freire), ao buscar a
transformação da realidade na qual os adolescentes estão
inseridos. O conteúdo dessa escola é a realidade na qual o
adolescente se insere.
Moacir Gadotti indica que a ideia de uma
[...] escola de cidadania já havia aparecido nos
Estados Unidos na década de 30 com as chamas
Citizenship Schools, organizadas pelo educador
popular Myles Horton, em resposta ao pedido de
Esau Jenkin, um líder comunitário negros, que
pretendia que as escolas públicas alfabetizassem
os negros, a fim de instrumentá-los para a
conquista do voto e do poder político. Dessa
forma, eles pretendiam desenvolver uma educação
alfabetizadora que contasse com líderes negros
como professores e que ensinasse os estudantes
a ler baseados nas suas necessidades e desejos de
conquista da liberdade. Tanto Myles Horton
quanto Paulo Freire influenciaram os sistemas de
ensino com base na ideia de uma educação para e
pela cidadania (GADOTTI, 2000, p. 3).
Ao verificarmos como a PAMEN atua com o seu
público atualmente, percebemos que as fontes indicam que
suas ações estão de acordo com as propostas da pedagogia
de Paulo Freire e outros autores que fundamentam as bases
de uma Escola de Cidadania. Isso porque a PAMEN valoriza
ações cujas dinâmicas trabalham com o resgate dos Direitos
Humanos do público envolvido.

Público-alvo da Pastoral do Menor

Foi definido, ao longo de sua atuação em todas as dioceses


do Brasil, que a ação da Pastoral do Menor se propõe ao
dinamismo de promover formas de conciliar o trabalho com
crianças, adolescentes e seus familiares, ficando próximo e
343
trabalhando em parceria principalmente com a Pastoral da
Criança.
Enquanto atua para promover os Direitos Humanos,
a PAMEN apoia os meios que promovem a cidadania em um
mundo cada vez mais cheio de conflitos sociais. Nos últimos
anos, têm se intensificado os trabalhos com atendimento a
jovens nas medidas socioeducativas de Liberdade Assistida,
semiliberdade e reclusão, em parceria com o Juizado da
Infância e Adolescência, alguns municípios e com a
colaboração da comunidade em geral.
Os projetos sociais que reafirmam o compromisso
de educação dos adolescentes em vulnerabilidade social devem
se pautar pela participação do grupo que poderá decidir e
socializar as necessidades pessoais de cada um. No entanto,
são muitos os desafios, principalmente porque as experiências
negativas que destroem a vida pessoal dos jovens estão mais
presentes do que as ações e projetos de resgate e proteção de
seus direitos.
Compreender como esses adolescentes passam a
assumir um comportamento violento, que traz danos a si
próprios e à comunidade, faz parte do trabalho da PAMEN
nas comunidades no estado de São Paulo. Por isso, ao propor
trabalhos com projetos voltados para a promoção da
cidadania, os educadores sociais dessa Pastoral procuram
socializar prática com conhecimento da realidade.
A formação cidadã não se resume, nesse caso, somente
a uma formação e capacitação do público-alvo, mas a
promover formação também a todos os educadores sociais
que estão inseridos nesse processo de educação e formação
dos adolescentes. Neste sentido, a Escola de Cidadania é
detentora de ações que os levem a se posicionar de forma a
promover o seu crescimento pessoal e o crescimento do outro.
Com a colaboração de todos, são gerados meios para
que crianças, adolescentes e jovens sejam reorientados para a
formação social. Nesse sentido, os educadores sociais
compreendem, também, que é necessário fornecer subsídios para
que eles busquem a autovalorização em seu percurso de vida.
A PAMEN acaba por promover meios de avaliar,
acompanhar e estudar as muitas realidades em que os seus
assistidos estão envolvidos. São muitos os ambientes de
344 O imaginário das narrativas dos educadores...
violência que leva o adolescente a um comportamento duro,
de revolta e delinquência. O enfrentamento das injustiças
sociais que acometem a vida dos assistidos pela PAMEN leva
os educadores sociais a buscarem as causas que implicam a
diminuição da promoção social.
Compreender que a vida dos adolescentes se encontra
em risco por causa da promoção de uma cultura de morte é
transcender para que não continuem a ocorrer as afirmações
de D‘Agostini:
As causas da delinquência se explicam a partir da
própria violência da organização social brasileira,
porque é na miséria e nas condições mínimas de
desenvolvimento pessoal que se fabricam
indivíduos (adultos hoje, crianças e adolescentes
ontem), com cabeça totalmente modificada quanto
à imagem positiva de si mesmo e dos outros
(D‘AGOSTINI, 2011, p. 55).
Nesse caso, “como a violência é geradora de mais
violência, pode-se inferir que ela é fabricada e redunda em
atos delituosos de toda ordem” (D’AGOSTINI, 2011, p. 58).
Cabe, então, desenvolver projetos que colaborem com o
discurso formativo, na compreensão de como poderemos
comunitária e individualmente frear atos que levam à
continuidade de comportamentos violentos.
Se no passado “a população jovem era largamente
utilizada para mão de obra no mercado de trabalho crescente,
considerada população mais dócil, mais barata e relativamente
disciplinada” (CARVALHO, 2010, p. 74), essa população
cresceu com muitos receios, estresse e passou a refletir seu
descontentamento em forma de conduta social.
O mesmo mercado de trabalho, que no passado
considerava que os adolescentes e jovens seriam facilmente
controláveis, para se transformar em mão de obra barata, por
outro lado, agora os repudia, pois, ao crescerem e se tornarem
adultos, eles acabam por repetir o mesmo padrão de agressão
que viveram no lar e no ambiente de convivência. Neste
sentido, suprimir a violência passa a ser uma ação inconcebível,
Arte, Cultura e Imaginário 345
pois a comunidade introjeta como uma ação inconsciente,
mas de forma massiva, a ideia de que a violência é necessária.
Levar os adolescentes a dominar as ferramentas e
técnicas de comunicação torna-se caminho atraente de
educação, que os leva a compreender seus atos, principalmente
porque alguns adolescentes são diariamente colocados diante
de cenas de “violência brutal e sutil, em uma cultura da
violência, que, em seu afã de ganhar audiência, os meios de
comunicação social, especialmente os televisivos, apresentam
como espetáculo a ser desfrutado” (PÉREZ, 2006, p. 46).
Estudos apontados por Carvalho de que “[...] a violência
e a estigmatização dos adolescentes autores de ato infracional
também ocorre na escola, e esta também reflete o modelo de
convivência social” (2010, p. 162), leva-nos a ficar atentos ao
fato de que muitos dos adolescentes não conseguem permanecer
e seguir as regras da escola, e cabe ao educador social mediar
essa realidade entre o adolescente, a família e a escola.
O desenvolvimento de projetos voltados para a
formação para o mundo do trabalho e atuação nas profissões
técnicas é o necessário para promover a cidadania e levar o
adolescente a superar algumas dificuldades, compreendendo
a importância de estudos para formar uma consciência cultural
e educativa.

Metodologia

A escolha dessa experiência, dentre muitas que se


denominam Escola de Cidadania, deve-se à tradição que a
PAMEN construiu ao longo de mais de 40 anos, pelo Brasil,
na defesa dos direitos de crianças e adolescentes. A
metodologia se consolida de forma participativa, com a
integração de educadores sociais, crianças, adolescentes e
comunidade local.
Os educadores sociais descrevem, pelo resgate dos
acontecimentos do seu imaginário pessoal e as interferências
do imaginário coletivo, como as experiências ressignificam a
sua vida pessoal e, ao mesmo tempo, reestruturam pelas
concepções solidárias da PAMEN, que, atuando na sociedade
346 O imaginário das narrativas dos educadores...
brasileira, promove o trabalho de educação social. São
construídas imagens de urbanidade, que devolve ao público a
perspectiva de que “[...] a sociedade urbana só tem acesso à
ordem e à paz designando e expulsando de si o negativo que
a corrompe por dentro” (WUNENBURGER, 2007, p. 65).
O recorte da pesquisa foi dividido em três partes: a
PAMEN como proposta e concepção de projeto de Escola
de Cidadania; o processo metodológico científico da pesquisa;
e a análise das percepções imaginárias e pessoais que compõem
o discurso sobre a realidade dos adolescentes apontados pelos
educadores sociais envolvidos na pesquisa.
Levando em conta que “[...] o regresso imaginário é
sempre um ‘ingresso’ mais ou menos cenestésico e visceral”3
(DURAND, 2001, p. 201), do mesmo modo as narrativas dos
educadores sociais são inundadas da essência de sua existência.
De acordo com as considerações dos participantes do estudo,
as lembranças não são suposições, mas a junção de
experiências, em um tecido permeado pelo imaginário, que
se coadunaram para as definições do que se é hoje.
O objetivo era compreender se a Escola de Cidadania
atuava na busca por identificação e socialização, tendo em
vista a construção da identidade do adolescente, que passa
por questões que engendram o imaginário, e se pode ser
proposta a continuidade para a prática desses educadores, que
buscam projetos que eliminem as imagens da violência e façam
ressurgir imagens de solidariedade na vida dos seus assistidos,
construindo projeto de formação para a cidadania.

3
Durand (2001) cita em seguida a passagem do ‘filho pródigo” que volta a
casa do pai porque perdeu tudo, e o desespero da vida que se confronta com
as necessidades básicas agora o interpela a voltar. Nas narrativas dos
educadores, o regresso tem o sentido da volta com modificação na vida:
antes eram atendidos como adolescentes infratores e agora voltam, depois
de anos, como participantes do quadro de educadores sociais, e, assim, lidam
com seus próprios sentimentos do passado em detrimento da realidade futura
em que a realidade se confunde em imagens e símbolos do vivido no que
agora é avaliado. São confrontos pessoais que têm de ser festejados.
Arte, Cultura e Imaginário 347
A pesquisa envolveu 22 educadores, que participaram
em diferentes momentos da coleta de dados, a qual se deu
por meio de questionário, entrevista e roda de conversa, além
de análise de documentos da Pastoral do Menor e fontes
bibliográficas, dentre elas: Costa (2000) – que considera a
juventude com características cujas dimensões integram uma
fase de conflitos pessoal e social –; Freire (2005); Gadotti
(2000) e Giustina (1987), entre outros, que auxiliam nas
argumentações. Os resultados a partir das percepções dos
educadores revelaram a importância da figura do educador
mediador, que, por meio da pedagogia libertária, promove
educação para a cidadania, gerando incidência nos territórios
e espaços de participação social.
As rodas de conversas realizaram-se a partir do convite
feito a alguns dos professores envolvidos na pesquisa, o qual
foi realizado pela coordenação da Pastoral do Menor de
Sorocaba. Assim, participaram oito professores das rodas de
conversas, com idades entre 18 a 55 anos, sendo três do sexo
masculino e quatro do sexo feminino, com tempos de
experiência na pastoral diversificado, variando de 2 a 20 anos.
De acordo com a formação educacional, o grupo foi
composto por cinco educadores com ensino superior
completo e três com o ensino médio completo.
O grupo, a princípio, como forma de ir adentrando
ao processo de participação, realizou dinâmicas, resgatando
as imagens que afetaram, de forma positiva ou negativa, as
suas vidas. As narrativas de alguns educadores assemelham-
se com a realidade de seus assistidos. Por isso, enquanto a
violência se repete no comportamento dos adolescentes como
“imagens simbólicas” (FERNANDEZ, 2008, p. 223), os
educadores sociais propõem que a Escola de Cidadania possa
desenvolver a cultura da criação das imagens da solidariedade
e acreditam que isso ocorre não de forma assistencialista, mas
como meio de corresponsabilidade de todos os envolvidos
na formação de pessoas e de grupos.
Os discursos apontam que os educadores sociais
reconstroem o trabalho da PAMEN a partir dos passos dados
na construção de suas histórias pessoais, que engendram
aspectos imaginários.
348 O imaginário das narrativas dos educadores...
Narrativas dos educadores sociais

Para efeito de conservação do sigilo e preservação da


identidade dos participantes da roda de conversa, utilizaremos
neste capítulo os termos Educador(a) 1, 2, 3, 4, 5, com o
recorte entre os 22 educadores já indicados na metodologia.
Começamos com o Educador 1, que acena que a
cultura dos direitos preserva, inicialmente, o exercício da
cidadania, dada no encontro com o outro. Nesse ínterim, são
muitas as formas e muitos elementos que envolvem a
convivência humana implicados nessas relações. O sujeito não
estabelece sentido para sua existência no isolamento, mas de
forma coletiva vai aprimorando e encontrando sentido de sua
identidade de sujeito inserido na sociedade. De acordo com
esse educador, a Escola de Cidadania cumpre esse papel, pois
[...] é um espaço que acolhe o adolescente. No
nosso caso, que vem menino de vários bairros,
naquele momento, sente a força que ele pode fazer
as Políticas Públicas, ele pode se empoderar com
os amigos, ele tem aquela confiança e um
momento por sinal eu conheço, e hora de ir a
campo, colocar em prática o que estão me
ensinando aqui no CEC [Centro Educacional
Comunitário], e para ele é muito importante
porque quando está no grupo dele e no bairro
dele parece que não tem tanta força, mas quando
ele sai, vem até aqui e encontra outros colegas de
outros bairros que tiveram a mesma formação que
ele, tem condições de ir um pouquinho mais além
(Educador 1, 2018).
O Educador 5, que, na adolescência, foi participante
da Escola de Cidadania e, atualmente, é educador de uma
Rede de Ensino Municipal, afirma:
Eu fiz parte pouco tempo da Escola de Cidadania.
Eu espero que todas as pessoas que eu conheço,
meus amigos estejam onde eles queiram estar. Eu
cheguei bem diferente, era bem perdida na minha
Arte, Cultura e Imaginário 349
identidade em relação à minha homossexualidade
e sentia muita inferioridade diante das pessoas,
porque não podia fazer certas coisas. Também já
me envolvi muito com droga e muitas outras
coisas. Meu sonho era ser orientadora [educadora].
Eu sempre falava, tanto que, quando eu fiz 18
anos, chorei muito porque tinha que sair [da
Escola de Cidadania]. Então, surgiu uma
oportunidade graças ao [ela cita um educador] que
me chamou para fazer uma apresentação. E hoje
eu estou muito feliz por estar aqui, para adquirir
conhecimento e estar passando para as pessoas,
crianças e adolescentes... muito obrigada!
(Educador 5, 2018).
Esse educador fez parte, como adolescente, de
momentos de formação na Escola de Cidadania e resgata
memórias, cujas imagens, carregadas de simbolismo, modificaram
toda a sua realidade social e se transformaram em momentos
que marcaram a sua formação. Além disso, de algum modo, eles
a ajudam a decidir por novos rumos em sua existência.
Na missão da Escola de Cidadania, “[...] percebemos
que a atuação dos adolescentes procura exercitar os valores
aprendidos no projeto nas suas relações com a família e
território que eles habitam, tendo uma postura mais autônoma
e política” (Educadora 2, 2018). Nesse sentido, a Escola de
Cidadania aprimora e estabelece relações com os sujeitos e
suas ações e os faz perceber e dar sentido a partir da sua
própria prática de vida.
Para que os adolescentes se sintam envolvidos nessa
dinâmica de busca e participação, o apoio dos educadores
sociais se constituem como caminho reconhecido, ao
estabelecer conexões com os diferentes contextos que criam
pontes e fazem desaparecer as limitações que dificultam
qualquer percepção de aprendizagem. Por isso, “[...] o papel
do educador é assessoria e motivar para as ações e projetos
propostos pelos educandos. O protagonismo deve ser total
dos adolescentes” (Educador 4, 2018).
Nesse caso, recorremos a Costa (2000, p. 150) ao
propor que “[...] a palavra ‘protagonismo’ vem da junção de
350 O imaginário das narrativas dos educadores...
duas palavras gregas: protos, que significa o principal, o
primeiro, e agonistes, que significa lutador, competidor,
contendor”, sendo da própria natureza do adolescente o
desejo de competição e confronto. Se não for possível a
orientação e os encaminhamentos, o adolescente pode se sentir
coibido a assumir rotas que incomodam os adultos. O mesmo
autor indica que, “[...] quando falamos de protagonismo
juvenil, estamos falando, objetivamente, da ocupação pelos
jovens de um papel central nos esforços por mudança social”
(COSTA, 2000, p. 150).
Os estudos sobre a finalidade da Escola de Cidadania
propõem que deve ser realizado um trabalho que estimule os
adolescentes no exercício da autonomia, pois esses
adolescentes, quando deixados à deriva, transformam-se em
potenciais promotores de insatisfação por parte da sociedade,
visto que promovem as imagens de violência (FERNANDEZ,
2008), as quais afetam o contexto social.
De acordo com a Educadora 3:
Acho que todos nós temos a capacidade de ser
protagonista temos a habilidade com só que pra
nossos meninos de bairros periféricos famílias não
tão estruturadas eu acho que eles não tem o
conhecimento disto, acham que eles não são
capazes, quando eles chegam aqui eles percebem
de quanto valor eles tem, quem são eles de verdade
acho que o autoconhecimento vão aprendendo a
se valorizar, protagonismo é isto é perceber,
conhecer as habilidades e competências que tenho
e conseguir colocar isto em prática em prol da
minha própria vida, da sociedade em geral, a escola
de cidadania propicia isso (Educador 3, 2018).
Esse educador avalia que a Escola de Cidadania
corrobora, de alguma forma, para o engajamento das crianças e
adolescentes, além de integrar formas educativas de compreender
o mundo, as quais, muitas vezes, deveriam ser proporcionadas
pela família. Esse educador percebe que a dinâmica a ser
trabalhada diz respeito à valorização direta da vida e como a
ressignificação da identidade desses sujeitos envolvidos pode
trazer ganhos diretos para toda a comunidade.
Arte, Cultura e Imaginário 351
A formação da Escola de Cidadania assenta-se nos
princípios de humanização, pessoal e social. Não está
dissociada das questões políticas do momento presente,
enveredando nos enlaces de compreenção antropológica dos
sujeitos implicados. É por isso que se trata “[...] para o
adolescente, de uma oportunidade de vivência cidadã concreta,
como etapa imprescindível do processo de desenvolvimento
pessoal e social pleno” (COSTA, 2000, p. 175).
O Educador 3 define a Escola de Cidadania com
distinção com a educação convencional, principalmente por
entender que a educação formal destoa da liberdade outorgada
aos adolescentes:
Eu acredito que a Escola de Cidadania,
diferentemente da escola convencional, onde o
aluno vai e o professor ensina, é um lugar onde
ele não tem só o prazer de aprender, mas ele
também pode ensinar. A diferença entre somente
o escutar é o multiplicar a informação onde recebe
algo de um instrutor de uma pessoa com o grupo
ele pode sair daquele local como é aqui na Pastoral
do Menor e ir até os grupos e sentir um pouquinho
a visão do orientador, mas ele se sente parte
pertencente de verdade. E eu acredito que sim,
pelo menos na época que participei como atendida
na escola de cidadania, o legal era a interação de
poder conhecer pessoas novas, de poder ver que
não existe somente as suas ideias, mas talvez com
seus princípios as suas ideias, mas que você pode
aprender com os outros também e que você, às
vezes, extraindo um pouquinho de cada um, vai
formar uma opinião, uma coisa diferente pode
levar isso para os lugares que você atua e também
para as famílias. Eu acredito que, para mim, como
participante, também mais importante não foi só
vivenciar a situação, não é só viver cidadania, e
sim levar isso para a minha vida como um todo
(Educador 3, 2018).
Embora o Educador 3 traceje ideias confusas, é
possível identificar a Escola de Cidadania como um espaço
352 O imaginário das narrativas dos educadores...
de encontro, que leva o sujeito a assumir percepções criadoras
de imagens pessoais de si próprio. Nessa relação de encontro
de identidade pessoal, ocorre, também, a empatia com o outro.
Os adolescentes passam a perceber que seus
problemas podem ser somados aos problemas dos outros,
gerando a necessidade da busca de soluções conjuntas. Pela
vivência de seu protagonismo (COSTA, 1999), esses
adolescentes compreendem que podem lidar com a fase de
conflito que se instaurou em sua vida (COSTA, 2000), o que
é proporcionado pelo encontro e pela acolhida.
Os educadores sociais realizam avaliações sobre o
significado histórico da Escola de Cidadania, ao condicionar
a Pastoral do Menor como um espaço de confiança e
necessário para o acolhimento das crianças e adolescentes.
Nas visões do Educador 4:
A palavra do educador entra como facilitador, que
nós educadores mais velhos, quantos conceitos a
gente tem que mudar, estudar, buscar, então eu vejo
que é a mesma coisa do facilitador e de ajudar a
pensar, também não vamos com respostas próprias,
ajudar o adolescente. E quando vem Escola da
Cidadania isso que a gente discute muito na pastoral
de estado emocional, ela tem um nome próprio.
Existem várias Escolas da Cidadania, mas em São
Paulo Dom Luciano Mendes de Almeida articula
bem com o grupo a ideia de uma Escola de Cidadania
a partir da Pastoral do Menor. Então ela é nossa
referência como facilitar e como seguidores dos
princípios que não podemos perder eu como pessoa
e cristã. Então, é por isso que seguimos a pastoral e
vamos mostrar pra esse adolescente/jovem quais os
princípios dos valores ele tem a liberdade e escolha
de errar e voltar. Isso acontece muito, conosco
também. Não é que o adulto se camufla, mas ele já
tem maturidade de se exigir das coisas, e nós não
vamos cobrar isso do adolescente, mas que a gente
pode ensinar e ajudá-los a pensar. Não mudamos
ninguém. Nós que somos pais e mães não
mudamos nossos filhos, o jeito que a gente é na
Arte, Cultura e Imaginário 353
nossa mente. Nós somos um facilitador na vida dele
e vamos ensinando os valores. Principalmente,
quando se fala da escola o princípio é essa escola
cristã, se pregam os valores, vai existir a droga no
mundo, mas tem a liberdade de escolha. E, às vezes,
é preciso o adolescente ir ao fundo do poço, e a
gente tem que ser a pessoa a resgatá-lo, mas tem a
liberdade de escolha. Mas eu penso que somos um
facilitador (Educador 4, 2018).
A Igreja católica, no estado de São Paulo e em todo o
Brasil, tem desenvolvido projetos de resgate de direitos, ao
propor que se estampe, no cotidiano das comunidades, a
denúncia sobre o que afeta diretamente a vida dessas crianças
e adolescentes. A proposta leva-nos a compreender que a
Escola de Cidadania não está implantada em um espaço físico
necessariamente. Ela tem suas dimensões pedagógicas
assentadas no centro da comunidade e se expande com seus
tentáculos para todos os núcleos celulares discriminados por
todos os espaços e guetos.
A Escola de Cidadania, dentro da Igreja Católica,
assume dimensão missionária e profética. Os educadores
sociais dessa pastoral guardam a missão de profetizar pelos
quatro cantos do país que os Direitos Humanos devem ser
preservados e que as crianças e adolescentes têm de ser
acolhidos, cuidados e respeitados em seus direitos de cidadãos
tanto local, quanto mundialmente.
O Educador 1 demonstra que, mesmo com a ocorrência
de experiências que o faziam se distanciar como responsável pelo
grupo, ao mesmo tempo, a participação o leva a se sentir como
um dos membros envolvidos no processo:
[...] como jovem multiplicador eu me via como uma
extensão do grupo que estava ali, mas não me sentia
a responsável pelo grupo. Sabia que existia alguém
responsável pela sala caso acontecesse alguma coisa,
até porque o orientador é responsável por horário
de lanche, material usado em sala, porque tudo isso
a gente tinha que pedir para fazer atividade. Mas eu
me vivia no papel de uma pessoa que estava ali pra
ter uma atividade junto pra fazer algo, mas que tinha
354 O imaginário das narrativas dos educadores...
assim um conhecimento que me passaram, mas eu
me sentia parte do grupo. E então é engraçado eu
falar isso, mas me sentia parte do grupo de verdade.
Por exemplo, quando eu fiz escola da cidadania, eu
fui pro arquiteto e me sentia parte do arquiteto ali,
tanto que, se alguém falasse alguma coisa, a gente
protegia. Eu estava lá, era sua parte também, e tem
uma questão do cuidado (Educador 1, 2018).
Compreendemos, com o recorte desses discursos de
cinco educadores, que a Escola de Cidadania se expressa na
existência de cada um dos envolvidos, ao refletirem como as
imagens e lembranças positivas que reconstroem as bases de
formação educativa no decorrer da adolescência e juventude
os preparou para o enfrentamento dos conflitos pessoais.
As experiências vividas no passado constróem-se
simbolicamente como memória e afetam, de alguma forma, o
momento presente. A reconstrução do imaginário de cada
colaborador, a partir dos depoimentos da pesquisa, direciona-se
para dimensões pedagógicas engendradas nas propostas da
Educação Social, que promovem o reencontro entre a prática
dos educadores sociais e a pedagogia do oprimido (FREIRE,
2005), ao confrontar as leis com os direitos negados a todo o
público atendido pela PAMEN. Assim, no encontro entre Freire
e Horton sistematizado posteriormente no livro O caminho se faz
caminhando, os pensadores chegaram à conclusão de que, “[...]
quanto mais pessoas participam do processo de sua própria
educação, maior será sua participação no processo de definir
que tipo de produção produzir, e para que e por que, e maior
será também sua participação no seu próprio desenvolvimento”
(FREIRE; HORTON, 2003, p. 149).

Desafios a serem enfrentados pelos educadores sociais

Na sociedade, a conquista dos direitos apresenta-se,


para esses sujeitos excluídos, como imagens borradas,
comprometidas pela cultura da negação. O difícil acesso às
políticas de educação, saúde e assistência social impede muitas
Arte, Cultura e Imaginário 355
famílias de terem uma vida digna e tranquila, sendo cada vez
mais propostos os enfrentamentos da lógica social que nega
a garantia dos Direitos Humanos e impõe à população pobre
o universo simbólico do desejo de ter acesso à justiça social.
A PAMEN se alegra quando, mesmo com a estrutura
econômico-social precária, as famílias dos adolescentes se
pronunciam na percepção de um trabalho de cidadania
realizado por essa pastoral, que não comunga com as injustiças
sociais, que retardam a mudança de vida deles, aumentando a
necessidade de suporte maior de assistência.
Por isso, a Escola de Cidadania funciona como meio
de suprir a necessidade de uma formação continuada para
equipe de educadores sociais, diante da diversidade e
complexidade das ações de atendimento integral ao
adolescente. Todos os meios e recursos materiais, físicos e
humanos, mesmo que insuficientes para um atendimento de
melhor qualidade, devem ser utilizados para promover a justiça
social para o público atendido pela PAMEN.
Consideramos que as práticas da Escola de Cidadania
continuam a prevalecer no cotidiano do educador social da
pastoral do menor, aprimorando, principalmente, a cultura
do trabalho de resgate dos direitos garantidos na Constituição.
Nesse caso, o Estatuto da Criança e do Adolescente é um
instrumento de lei a ser trabalhado e preservado pelo educador
social, levando à comunidade em geral a proposta de que todos
têm de se envolver na garantia expressiva dos direitos da
criança e do adolescente.
A Igreja Católica, a partir das Pastorais Sociais,
continua dando visibilidade aos problemas sociais que afetam
os seres humanos nas diversas localidades brasileiras,
compreendendo que é papel de todos os cristãos envolvidos
assumir essa dinâmica de profetizar o anúncio e a preservação
da garantia de vida. Cabe aos educadores sociais não desviarem
o olhar daquilo que é a essência: garantir que a vida ocorra
com plenitude e que os indivíduos sejam capazes de se sentir
bem como cidadãos de uma comunidade local.
Os educadores sociais que contribuíram com esta
pesquisa apontam, com lucidez, as significativas mudanças
3563 O imaginário das narrativas dos educadores...
que ocorreram em suas vidas. Embora as ocorrências de
mudanças transportem as responsabilidades para outros
núcleos políticos do Estado, no que diz respeito aos direitos
da criança e do adolescente, com a municipalização das
medidas socioeducativas, ainda continuam se constituindo
como preocupação para os educadores da Pastoral do Menor.
Ao trazer esse tema para investigação na academia,
percebemos, no histórico dos estudos de educação social, que
os métodos e a pedagogia da Escola de Cidadania, de forma
popular e social, são vistos como propostas para aproximar a
educação informal das motivações educacionais formais.
Ainda existem muitos caminhos a serem trilhados, mesmo
que as ações indiquem que a PAMEN esteja no percurso
adequado para a luta pelos direitos e garantia de justiça social.
A pedagogia da solidariedade utilizada pelos
educadores sociais da PAMEN faz-se necessária para transpor
a lógica social que muitas vezes se constrói com imagens de
violência associadas ao peso da exclusão dos adolescentes
infratores. Sugere-se que a Escola de Cidadania possa propor
a construção de imagens positivas que promovam a elaboração
de sentidos àqueles afetados pela lógica do consumo e
desprovidos dos direitos básicos para sobrevivência pessoal.
A Escola de Cidadania encontra novos desafios que
devem ser levados em conta, com a necessidade de uma
compreensão da educação para a diversidade, que necessita
de ações promotoras da inclusão. Do mesmo modo, a escola
formal tem enfrentado muitos desafios para realizar uma
educação inclusiva nos seus espaços de sala de aula,
principalmente porque envolve diferentes questões na área
familiar, religiosa, social e que não são de sua competência. A
PAMEN verifica essa variedade de mudanças nos meios
sociais, o que demanda novos rumos de formação e
antecipação por sua atuação nas demandas contemporâneas.
Temos de definir, também, os meios para colaborar
educativamente com os adolescentes ou outros indivíduos
que fazem parte do público-alvo enquadrado nesses limites
de modificações sociais dos novos contextos urbanos, pois
envolve questões éticas e políticas públicas de Direitos
Humanos. Nesse sentido, nos últimos anos, as normas
Arte, Cultura e Imaginário 357
diretivas da PAMEN buscam se adaptar às normatizações que
garantem os projetos de justiça social.
Assim, o trabalho de promoção social deve ser realizado
pouco a pouco, levando todo o grupo a compreender que
precisamos valorizar a pessoa em sua humanidade e a perceber
que todos nós temos nossas diferenças e que precisamos lidar
com nossos problemas de condições sociais juntos.
Se trabalharmos os nossos preconceitos, falta de
atenção e desrespeito para com o outro, resolveremos boa
parte da exclusão que ocorre na sociedade e iremos colaborar
com uma sociedade justa e solidária.
A maior parte do público-alvo atendido pela PAMEN
necessitaria de apoio de promoção social e acompanhamento
psicológico por enfrentar muitos problemas de afeto e violência.
As famílias também precisam de apoio psicológico para lidar
com mais segurança com seus filhos e lidar com os conflitos
advindos das dificuldades financeiras promovidas pela lógica do
capitalismo associadas às regras de exclusão social.
Acreditamos em um trabalho ampliado dos
educadores sociais, inclusive com a participação cotidiana nas
ações que corroboram para a antecipação das muitas ações
que garantem justiça e Direitos Humanos a todos os
adolescentes em vulnerabilidade.

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.
O conto “Seminário dos Ratos”: uma
construção estética dos elementos
contemporâneos do fantástico de Lygia
Fagundes Telles
Lorraine Martins dos Anjos1

A escritora brasileira Lygia Fagundes Telles, indicada


ao Nobel de Literatura em 2016, tem contribuído, de forma
significativa, para a literatura brasileira e mundial, tanto com
seus romances, como com seus contos.
De acordo com o teórico Bosi (2003), as obras da
autora situam-se em um contexto histórico pós-guerra,
geração de 45, e possuem as características pós-modernas,
com enredos que apresentam questões sociais, pessoais e
intrapessoais, levando o leitor a refletir sobre suas experiências
mais íntimas e também as mais exteriores.
A referida autora possui obras que entrelaçam o
sobrenatural na construção estética, especialmente os contos
presentes no livro Mistérios (1998). Publicado originalmente em
alemão, este livro apresenta dezenove textos que encantam pelo
mistério, estando este organizado esteticamente a partir de
elementos estruturais recorrentes na literatura fantástica mundial.
Os contos apresentados no livro Mistérios (1998)
abordam temas que procuram criar reflexões sobre questões
da realidade, da cultura e da condição humana. Em muitos
dos seus contos, é possível identificar uma tensão interiorizada,
de contornos íntimos, demonstrando uma visão introspectiva,
comum aos textos contemporâneos. Nos contos da coletânea

1
Mestre em Ciências Humanas pela UNISA –Universidade de Santo Amaro,
graduada em Letras pela UNISA – Universidade de Santo Amaro, Pedagogia
pela UNINOVE – Universidade Nove de Julho e História pela UNIMES –
Universidade de Santos, com especialização em Literatura e Estudos
Linguísticos e MBA em Gestão escolar pela FMU – Faculdade das Nações
Unidas, participante do grupo de pesquisa Arte Cultura e Imaginário.
362 O conto “Seminário dos Ratos”...
de Telles (1998), observa-se a valorização do “eu”, por meio
de uma sondagem psicológica, provocando indagações no
leitor.

A literatura fantástica de Lygia Fagundes Telles

Estudiosos como David Roas (2014) assinalam que


o início da Literatura Fantástica foi em torno do século XVII,
que, para ele, foi o período ideal para o surgimento dessa
categoria, pois havia “condições adequadas para sugerir esse
choque ameaçador entre o natural e o sobrenatural sobre o
qual se sustenta o efeito do fantástico” (ROAS, 2014, p.47).
O que surgiu, inicialmente, para explicar o inexplicável como
gênero (Todorov2) e adquiriu o teor teórico de modalidade
(Ceserani3), com as mudanças do mundo moderno e as novas
formas de expressão, passou a receber outras definições. Além
de trabalhar com o incompreensível, o fantástico, a partir do
século XXI, pode ser analisado como categoria estética ou
como forma imaginativa, na medida em que cria o efeito de
suspense e de mistério, sendo, portanto, passível de ser
utilizado em qualquer arte.
Irene Bessière (2001) estudou o fantástico como uma
forma da imaginação, prevalecendo a arbitrariedade da
veracidade apresentada. A narrativa é o principal componente
da literatura fantástica; ela é a responsável por transmitir o
suspense.

2
Todorov (2010) compreendeu o Fantástico como um gênero que fica entre
outros dois gêneros – o maravilhoso e o estranho. Para esse autor, a presença
desse recurso ocorre quando o sobrenatural não podia ser explicado e essa
decisão era definida pelo próprio leitor. Além disso, o fantástico vinha sempre
relacionado com o medo. As definições apresentadas pelo autor conseguiam
contemplar as obras publicadas até o século XIX, porém os contos que
surgiram no século XX apresentavam uma estrutura diferenciada das
tradicionais; nesses, o sobrenatural manifesta-se de outra forma.
3
Remo Ceserani (2006) analisou o fantástico como um modo literário, sendo
ele o responsável por desestabilizar a realidade da obra, que se baseia em um
ambiente normal do cotidiano.
Arte, Cultura e Imaginário 363
David Roas, no livro Ameaças do Fantástico (2014),
analisou o fantástico como categoria estética, de forma que o
texto – não necessariamente elaborado em linguagem literária,
mas podendo ser musical, pictórica, entre outras –
minuciosamente criado com aspectos da realidade em tensão
com elementos sobrenaturais, coloca o leitor em hesitação,
por meio do uso de elementos estéticos.
O fantástico, nos contos de Lygia Fagundes Telles,
caracteriza-se pela utilização de elementos trabalhados
esteticamente nos veios do texto, com os quais cria efeitos de
um mundo real assombrado por sensações contraditórias,
objetivando provocar o medo. Por meio do “jogo de palavras”
e de metáforas, o fantástico é construído esteticamente em
suas obras como forma de avivar suas críticas sociais.
Os contos do livro Mistérios (1998), de Lygia
Fagundes Telles, abordam o fantástico como categoria estética,
tal for mulado por David Roas (2014). O fantástico
contemporâneo, como o criado pela escritora, é construído
no decorrer do enredo, é desenvolvido pelos elementos
estéticos e linguísticos utilizados como recursos nos contos,
fazendo uso das metáforas e da escrita repleta de simbologias
que remetem a características presentes na literatura e no
imaginário da autora e de sua época.
Segundo Wunenburger (2007, p. 11), o imaginário
é “um conjunto de produções mentais ou materializadas em
obras, com base em imagens visuais (quadros, desenhos,
fotografias) e linguísticas (metáfora, símbolo e relato).” Tem-
se, portanto, um conjunto coerente e dinâmico relacionado a
uma função simbólica.
No livro analisado, Mistérios (1998), tem-se uma
narrativa com elementos imagéticos, utilizando da categoria
estética do fantástico como um meio de representar os
elementos sobrenaturais e imaginários, apresentando um texto
esteticamente construído em sua forma imaginativa.
Iser, em seus estudos sobre a recepção, relaciona o
fantástico com o imaginário, como se nota:
Na Literatura fantástica, todavia, o imaginário se
objetiva por ser tematizado. Por isso, assume um
caráter de objeto que – a despeito das variações
364 O conto “Seminário dos Ratos”...
monótonas comuns a diversos desses textos –
consiste na existência factual do não-real [...] Mas,
como a fantasia é objetivada por sua tematização
e constitui a realidade do impossível, ela provoca
no leitor uma divisão da consciência (ISER, 2013,
p. 321).
De acordo com o referido autor, a duplicidade criada
pela Literatura Fantástica deve permanecer durante a leitura
realizada pelo leitor.
Ao analisar os contos da escritora Lygia Fagundes
Telles (1998), observa-se que as narrativas geralmente operam
com temas complexos, como: indagações pessoais e sociais,
o ambiente familiar, a busca pela identidade, o amor
verdadeiro, possíveis crimes e questões políticas, morte,
abandono, suicídios. Em razão do uso estético de recursos de
linguagem, a autora consegue suavizar questões angustiantes,
produzindo uma literatura envolvente que aproxima o leitor
da aura do mistério. O emprego de metáforas, do duplo4, da
metamorfose5 são estratégias recorrentes para encantar o
leitor.
Trindade e Laplantine (1997, p. 79) mostram que o
imaginário tem comprometimento com o real, e não com a
realidade apresentada, pois, o segundo constitui-se, na
natureza, já o primeiro está relacionado à interpretação
atribuída à própria natureza por meio das representações
realizadas subjetiva ou objetivamente. Nessa concepção, o
imaginário passa a recriar e reorganiza a realidade, ou seja, a

4
Para Lamas (2004), as narrativas de Lygia Fagundes Telles trabalham com
o dualismo humano, o duplo que “emerge como personificação deste
antagonismo humano, trazendo a dualidade como uma impressão de
estranheza entre os limites” (LAMAS, 2004, p. 46). O duplo mostra a
inquietação interior da personagem, podendo ser do tempo ou do espaço.
5
De acordo com o livro Dicionários de Símbolo,s o processo de metamorfose é
realizado por “expressões do desejo, da censura, do ideal, da sanção, saídas
das profundezas do inconsciente e tomando a forma na imaginação criadora.”
(CHEVALIER, 2017, p. 608) Metamorfose é o processo de mudança, de
transformação de uma pessoa ou coisa em outro sujeito ou objeto.
Arte, Cultura e Imaginário 365
partir do momento em que se relaciona com as dimensões da
interpretação e da representação, ele está condicionado ao
real.
Os contos presentes na obra Mistérios (1998) apresentam
enredos repletos de temas conflituosos, abordam os “mistérios”
como elemento fundamental de sua estrutura. Os enredos
apresentam situações e acontecimentos que distorcem a realidade
apresentada, desestabilizando, provocando hesitação, que são
fatores relevantes para a construção estética do fantástico de
acordo com David Roas (2014).
Para ele, resgatando Todorov, o elemento que
sustenta a Literatura Fantástica é o sobrenatural, ou seja, sua
base está ambientada em torno da presença do sobrenatural,
sendo ele inexplicável pelas leis naturais. Para considerarmos
uma história como fantástica, precisamos observar o seu
cenário, pois ele deve ser similar ao real. Esse espaço precisará
sofrer a influência de um fenômeno sobrenatural que
conseguirá desestabilizar a realidade lida. O fantástico tem
como prioridade desestabilizar o leitor.
O estudo apresentado por Roas (2014) foi difundido
pelo teórico Jaime Alazraki (2001), que se dedicou aos textos
fantásticos do século XX. Segundo este autor, essas obras
apresentam características próprias e singulares, pertencentes
a uma nova modalidade de fantástico, que ele denominou
como Neofantástico.
No son intentos que busquem devastar la realidade
conjurando lo sobrenatural – como se propuso el género
fantastico em el más allá de esa fachada racionalmente
construída. Para distinguirlos <<neofantásticos>> para
esse tipo de relatos. Neofantásticos porque a pesar de pivotear
alrededor de sus abuelos del siglo XIX por su visíon,
intencción y su modus operandi (ALAZRAKI, 2001, p.
276).
De acordo com Alazraki, temos, com o
neofantástico, uma nova estrutura de textos fantásticos,
baseadas no uso de metáforas, o que refutam as teorias
literárias formuladas pelos autores clássicos como Todorov,
que necessitavam de conceitos como o medo na sua
366 O conto “Seminário dos Ratos”...
construção para revalidar o texto como sendo ou não
fantástico.
Pode-se compreender com Alazrak que “el relato
fantastico dirigido a provocar um miedo en el lector, un terror
dirante el cual trastabillan sus supuestos lógicos, no se da en
el cuento neofantástico.” (ALAZRAK, 2001, p. 276). Os textos
fantásticos tradicionais apresentados por Todorov utilizam
do medo como um artifício para justificar a presença do
fantástico no enredo. Todavia, o neofantástico não precisa
do medo para gerar o conflito.
A utilização de metáforas nessas obras são as
responsáveis por transmitirem o teor de mistério nesses textos
neofantásticos. O suspense é fundamental para provocar a
desestabilidade, o autor utiliza sua narrativa para construir o
fantástico, cada detalhe apresentado por ele é fundamental. Além
disso, com o uso das metáforas, os relatos fantásticos operam
com elementos da imaginação, o autor constrói narrativas
instigantes, que são as responsáveis por apresentarem uma dupla
realidade, repleta de elementos fantásticos.
O medo nas obras fantásticas surge com o intuito de
provocar arrepios, de desestabilizar o leitor que se vê diante de
acontecimentos que quebram a veracidade do seu cotidiano. O
pânico provocado no leitor não é algo exclusivamente do modo
fantástico, mas ele exerce uma função semelhante aos outros
modos literários de provocar o terror, o horror e o pavor.
Para Ceserani,
O fantástico operou, como todo o verdadeiro e
grande modo literário, uma forte reconversão do
imaginário, ensinou aos escritores caminhos novos
para capturar significados e explorar experiências,
forneceu novas estratégias representativas.
Justamente porque se trata de um modo, e não
simplesmente de um gênero literário, ele se
caracteriza por um leque bastante amplo de
procedimentos utilizados e por um bom número
de temas tratados em outros modos e gêneros da
literatura (CESARANI, 2006, p. 103).
Os escritores do modo fantástico obtiveram, com
esse estilo literário, a oportunidade de experimentar um novo
Arte, Cultura e Imaginário 367
procedimento nas suas concepções narrativas. Por meio das
obras fantásticas, temos o uso de elementos linguísticos e
literários de outras narrativas concentrados em apenas um
texto, contemplando seus princípios, sem perder a
originalidade e as características que apresentam os enredos
do modo fantástico.
Esse efeito assinalado por Ceserani (2006) é
conceituado por Roas (2014) como uma espécie de “hiper-
realismo”, visto que ele reproduz as mesmas técnicas dos
textos realistas.
[...] poderíamos pensar no fantástico como uma
espécie de “hiper-realismo”, uma vez que, além de
reproduzir as técnicas dos textos realistas, ele obriga
o leitor a confrontar continuamente sua experiência
da realidade com a dos personagens: sabemos que
um texto é fantástico por sua relação (conflituosa)
com a realidade empírica. Porque o objetivo
fundamental de toda narrativa fantástica é questionar
a possibilidade de um rompimento da realidade
empírica. É por isso que ela vai além do tipo de
uma leitura gerado por uma narração realista ou por
um conto maravilhoso, em que, ao não se propor
transgressão alguma (o mundo e os acontecimentos
narrados no texto realista são “normais”, cotidianos,
e o texto maravilhoso se desenvolve em um mundo
autônomo, sem contato com o real), automatiza
nossa recepção, por assim dizer, sem exigir o
contínuo entrar e sair do texto para compreender o
que está acontecendo e, sobretudo, o que o texto
prende. Em última instância, diante das histórias
narradas nos contos fantásticos, não podemos
manter nossa recepção limitada à realidade textual
(ROAS, 2014, pp. 53-54).
Os textos fantásticos trazem o “hiper-realismo”,
responsável por tornar a leitura a mais realista possível, de
modo que o leitor se encontra em um contexto real, com
acontecimentos semelhantes ao seu dia a dia e, por meio desses
acontecimentos, precisa identificar uma situação conflituosa.
368 O conto “Seminário dos Ratos”...
Por isso, o fantástico instaura a ambiguidade, ao se
construir com elementos do real, porém, ao mesmo tempo,
irreal, provocando questionamento da realidade, ou seja, “a
narrativa fantástica está ambientada, então, em uma realidade
cotidiana que se constrói com técnicas realistas e ao mesmo
tempo destrói, inserindo nela outra realidade, incompreensível
para a primeira.” (ROAS, 2014, p. 54). Para o teórico
contemporâneo, a estrutura narrativa que o fantástico entrama
é basicamente formada por características realistas, que são
integradas ao universo fantástico, a fim de provocar
questionamentos no leitor.
Na Literatura Fantástica, reconhece-se como uma
construção realizada por intermédio dos princípios realistas,
que trazem, em seu núcleo narrativo, elementos inexplicáveis,
os quais participam da narração, dando, assim, o teor de
ambiguidade da história, textualizando o fantástico, cujo
objetivo é provocar a dúvida entre o real e o irreal.
Essas características são mantidas nas narrativas
neofantásticas, conforme Alazraki. Para o autor, “[...] La
metáfora corresponde a la visión y descripción de esos
aguajeros em nuestra percepción casual de la realidade.”
(ALAZRAKI, 2001, p. 278). O uso da linguagem metafórica
nos enredos neofantásticos é responsável por instalar o insólito
nas narrativas, o mundo real vê-se diante do mundo fictício.
Encontramos, ainda, nas obras neofantásticas, as metáforas
epistemológicas “[...] Lhamo metáforas epistemológicas a esas
imagenes del relato neofantastico que no son modos de
nombrar lo innombrale por el lenguage cientifico, una óptica
que ve donde nuestra visíon al uso fala.” (ALAZRAK, 2001,
p. 278). As metáforas epistemológicas são as responsáveis por
exemplificar as imagens produzidas pelo imaginário, que não
se podem renomear.
O neofantástico apresenta uma estrutura que assume
a solidez do mundo real como se fosse uma máscara, o mundo
verdadeiro tem vestígio do mundo irreal, o sobrenatural
permeia o natural.
O fantástico clássico utiliza o “medo” na sua
concepção, esse elemento é fundamental para a veracidade
da história. Nessas obras, o leitor é apresentado a uma
realidade sobrenatural, que tem como objetivo provocar o
Arte, Cultura e Imaginário 369
medo por meio de uma narrativa que intensifica sensações
conflituosas. Por outro lado, as obras ditas neofantásticas,
possuem um enredo baseado em elementos fantásticos, cujo
intuito, na construção dos textos do século XX, é construir
uma atmosfera fantástica, ou seja, ambígua.
As narrativas fantásticas da escritora Lygia Fagundes
Telles estão ambientadas em um contexto do século XX, em
que poderíamos utilizar os conceitos que nos aproximam do
fantástico contemporâneo ou neofantástico.
Dentre os dezenove contos que se apresentam na obra
Mistérios (1998), o texto intitulado “Seminário dos Ratos” traz
uma narrativa instigante, em que a crítica política fica nas
entrelinhas. Nesse conto, pode-se observar, claramente, o seu
posicionamento sobre as relações internas, de poder, o
dinheiro e a pouca importância dada aos problemas da
população. A autora utilizou de elementos fantásticos como
meios estéticos para trabalhar com essas questões.

O Conto “Seminário dos Ratos” e seus elementos


fantásticos

O referido conto começa com uma citação do escritor


Carlos Drummond de Andrade “Que século, meu Deus! -
exclamaram os Ratos e começaram a roer o edifício”. Somente
com esse fragmento, o leitor pode observar que, no conto, irá
acontecer algo que rompe com os parâmetros do real, afinal
ratos não podem roer um edifício.
A história narra um episódio que ocorreu durante o
VII Seminário dos Roedores, um congresso sobre a expansão
dos ratos. Um jovem, que era o responsável pelas relações
públicas, estava engajado na organização desse evento e
prestava contas para o seu chefe, o Secretário do Bem-Estar
Público e Privado.
Nesse congresso, além deles, havia o Assessor da
Presidência da RACESP, o Diretor das Classes Conservadoras
Armadas e Desarmadas, além da Delegação americana, esta
última incomodava o Secretário.
370 O conto “Seminário dos Ratos”...
[...] Os ratos são nossos, as soluções têm que ser
nossas. Por que botar todo mundo a par das nossas
mazelas? Das nossas deficiências? Devíamos só
mostrar o lado positivo não apenas da sociedade,
mas da nossa família. De nós mesmos -
acrescentou apontando para o pé em cima da
almofada. - Por que não apareci ainda, por quê?
Porque simplesmente não quero que me vejam
indisposto, de pé inchado, mancando. Amanhã
calço o sapato para a instalação, de bom grado
faço esse sacrifício. O senhor, que é um candidato
em potencial, desde cedo precisa ir aprendendo
essas coisas, moço. Mostrar só o lado positivo, só
o que pode nos enaltecer. Esconder nossos
chinelos (TELLES, 1998, p. 81).
Porém, os americanos representavam um grupo de
especialistas que se pautavam no aumento dos ratos, uma vez
que eles já tinham lidado com uma situação semelhante em
seu país. A preocupação do Secretário era sobre como a
imprensa estava relatando o congresso, visto que eles não
concordaram com a escolha da casa de campo para sediar o
seminário, eles tinham gastado milhões na restauração de uma
casa que estava em ruínas. Mas, para a Excelência, esse dinheiro
estava bem investido.
– Gastando milhões? Bilhões estão consumindo
esses demônios, por acaso ele ignora as estatísticas?
Estou apostando como é da esquerda, estou
apostando. Ou, então, amigo dos ratos. Enfim, não
tem importância, prossiga, por favor (TELLES,
1998, p. 82).
Uma das questões apontadas pela imprensa é o fato
de os seminários não surtirem efeito no aumento dos animais.
Enquanto eles discutem sobre o que poderia ser feito, o
secretário escuta um barulho estranho, que só é ouvido por
ele.
– Que barulho é esse? - Barulho?
– Um barulho esquisito, não está ouvindo?
Arte, Cultura e Imaginário 371
O Chefe das Relações Públicas voltou a cabeça,
concentrado.
– Não estou ouvindo nada...
– Já está diminuindo – disse o Secretário, baixando
o dedo almofadado. – Agora parou. Mas o senhor
não ouviu? Um barulho tão esquisito, como se
viesse do fundo da terra, subiu depois para o teto...
Não ouviu mesmo? (TELLES, 1998, p. 82).
A questão do aumento dos ratos afetou toda a
sociedade.
– O povo, o povo-disse o Secretário do Bem-Estar
Público, entrelaçando as mãos. A voz ficou um
brando queixume. – Só se fala em povo e no
entanto o povo não passa de uma abstração.
– Abstração, Excelência?
– Que se transforma em realidade quando os ratos
começam a expulsar os favelados de suas casas.
Ou a roer os pés das crianças da periferia, então,
sim, o povo passa a existir nas manchetes da
imprensa de esquerda. Da imprensa marrom.
Enfim, pura demagogia [...] Não sei por que aqui
não se exige mais da iniciativa privada, se cada
família tivesse em casa um ou dois gatos
esfaimados.
– Mas, Excelência, não sobrou nenhum gato na
cidade (TELLES, 1998, p. 86).
Os governantes, apesar de estarem com um propósito
de exterminar os ratos, estão mais preocupados com o seu
próprio conforto na casa reformada e com o seu jantar. Mas
algo inusitado está ocorrendo no local, além do barulho. Eles
começam a sentir um cheiro diferente e o telefone não
funciona mais.
Para a surpresa dos personagens, o cozinheiro avisa
que os ratos invadiram o lugar e comeram todos os
mantimentos, a cozinha está completamente arruinada. Os
ratos começaram a invadir a cozinha espantando todos os
funcionários. O secretário queria que o cozinheiro
permanecesse com os planos do jantar, porém não restara
372 O conto “Seminário dos Ratos”...
mais nenhum alimento e nem empregado para realizar os seus
desejos. Além disso, eles descobriram que nenhum dos carros
estava mais funcionando.
A jovem estranha todos os fatos, até em que começa
a sentir a casa estremecer. O conto termina relatando que
houve um inquérito para saber o que aconteceu no velho
casarão. O jovem ficou preso em uma geladeira e só saiu do
lugar quando o barulho cessou, e para a sua surpresa, a casa
estava arruinada.
[...] Foi andando pela casa completamente oca, nem
móveis, nem cortinas, nem tapetes. Só as paredes.
E a escuridão. Começou então um murmurejo
secreto, rascante, que parecia vir da Sala de Debates
e teve a intuição de que estavam todos reunidos
ali, de portas fechadas. Não se lembrava sequer de
como conseguiu chegar até o campo, não poderia
jamais reconstituir a corrida, correu quilômetros.
Quando olhou para trás, o casarão estava todo
iluminado (TELLES, 1998, p. 92).
Esse conto pode trazer reflexões sobre assuntos
políticos e sociais. Com a frase “Quando olhou para trás, o
casarão estava todo iluminado” (TELLES, 1998, p. 92), pode-
se imaginar que o seminário ainda não acabou, poderiam os
ratos estarem fazendo o seu próprio congresso? O leitor
depara-se com uma situação inusitada, diante de um ambiente
administrativo em que governantes discutem sobre a
proliferação dos ratos, mesmo sem adquirirem nenhuma
solução para o problema.
Segundo Lamas (2004), o conto analisado apresenta
uma temática social, é trabalhado o duplo da realidade, ou
seja, ele representa a duplicidade de uma situação real. Os
ratos são os responsáveis por desestabilizarem a realidade do
leitor, a sua presença é construída no decorrer da história.
Primeiro, temos a citação de Drummond de que os roedores
acabaram com o prédio, temos a presença do barulho que só
é ouvido pelo Secretário, o telefone que parou de funcionar,
depois o cheiro estranho até o momento em que o cozinheiro
anuncia que a casa foi invadida pelos animais.
Arte, Cultura e Imaginário 373
Esse conto, por se tratar de uma temática social
[...] uma praga sobrenatural de ratos; eis a fantasia
de Lygia Fagundes Telles para dizer de sua
indagação com a situação do país e com a censura
instalada. Os ratos aqui aparecem como elementos
que subvertem a ordem estabelecida. A ironia, o
humor negro e o sentido crítico perpassam as
linhas dessa história satírica, sem abandonar o
sentido de uma invasão sobrenatural dos animais.
A inversão de papeis realizada entre os animais e
os homens apresenta-se como a principal
característica do fantástico e do duplo (LAMAS ,
2004, p. 232).
No livro Mistérios, o conto “Seminário dos Ratos” é a
narrativa que mais aborda as questões políticas, lembrando
que Lygia Fagundes Telles participou da geração de 45,
período em que a política brasileira passava por
transformações e movimentos que aparecem claramente
como referência na obra. “- Pois eu escuto demais, devo ter
um ouvido suplementar. Tão fino. Quando fiz a Revolução
de 32 e, depois no Golpe de 64, era sempre o primeiro do
grupo a pressentir qualquer anormalidade.” (TELLES, 1998,
p. 85). Essa justificativa é dada pelo Secretário no momento
em que tenta justificar o fato de somente ele ouvir os barulhos
da casa.
No conto, aparece uma crítica à imprensa, para o
Secretário eles não passam a informação da forma que
deveriam, pois julgam o seu trabalho e apontam os seus erros.
Temos dois pontos de vista diferentes sobre a mesma
perspectiva, o que, para o Secretário, era uma armação contra
o seu governo, aos olhos dos jornalistas era uma forma de
mostrar a realidade.
Ao analisarmos os contos metaforicamente, podemos
observar que os ratos, na verdade, podem ser a própria
população que acaba se metamorfoseando nos roedores
tomando o local.
Lygia Fagundes Telles crítica, também, nesse conto, o
modo como é gasto o dinheiro arrecadado dos impostos.
Afinal, eles gastaram milhões para reformarem uma casa que
374 O conto “Seminário dos Ratos”...
estava em ruínas para realizarem o seminário. Mesmo estando
na sua VI edição, com os maiores especialistas no assunto,
eles nem ao menos têm uma perspectiva de como solucionar
o problema.
Todo o dinheiro e tempo investidos na casa não são o
bastante para conter os roedores. Os envolvidos no congresso
estavam reunidos para exterminarem os animais, o leitor
depara-se com o inverso à caça, tornando-se o caçador. Os
ratos deixam de ser os animais que seriam extintos e tornam-
se os responsáveis por destruírem o ambiente dos humanos.
Os personagens primeiro ouvem o barulho dos ratos
e depois começam a sentir um cheiro estranho. Esses sinais
desestabilizam a realidade apresentada na narrativa,
provocando, no leitor e nas personagens, subjetivamente, um
cenário angustiante e de suspense, comum das narrativas
fantásticas, segundo teóricos contemporâneos, como Roas
(2014).
– Está ouvindo? Está ouvindo? O barulho. Ficou
mais forte agora!
[...] – E esse cheiro? O barulho diminuiu, mas não
está sentindo um cheiro? Franziu a cara. – Uma
maçada! Cheiros, barulhos e o telefone não
funciona (TELLES, 2006, pp. 84 e 88).
Lamas (2004, p. 263) discorre a respeito do imaginário
de Lygia Fagundes Telles como um auxiliador na compreensão
de questões cotidianas que afligem a sociedade, como “a
avaliação de questões como intimidade e mundo público, a
dialética entre o mundo interior e exterior e a tensão na mente
humana”. A narrativa é intencionalmente utilizada como um
recurso para ocultar/refratar aspectos da realidade social, ou
seja, os contos produzidos por ela trabalham, nas entrelinhas,
com as aflições humanas, mas ela faz isso de uma forma bem
discreta, pois utiliza vários recursos linguísticos e estéticos
como uma camuflagem para abordar essas questões, ora
pessoais, ora sociais. Dessa maneira, a autora estudada
consegue difundir suas percepções sobre as questões sociais,
pelo uso dos recursos que proporcionam a elaboração das
narrativas com mensagens não explícitas.
Arte, Cultura e Imaginário 375
A metáfora apresentada por Lygia Fagundes Telles é
utilizada de maneira singular na escrita da autora. Para Paul
Ricoeur (1976, p. 64), uma metáfora tem um valor emotivo,
porque oferece uma nova informação, uma metáfora “diz-
nos algo de novo acerca da realidade”. A metáfora não é um
ornamento do discurso, elas são a superfície linguística dos
símbolos.
Uma das características dos textos fantásticos
contemporâneos é o uso das metáforas, que são essenciais
nos textos neofantásticos, assim denominados pelo teórico
Jaime Alazraki (2001). O leitor consegue contemplar a
dualidade do real x irreal. O fantástico apresentado por Lygia
Fagundes Telles trabalha com a ambiguidade, o conflituoso e
com a intromissão do sobrenatural no real, segundo Régis
(2002). Essas indagações aparecem por meio de elementos
sobrenaturais, as imagens construídas no enredo pelo uso das
metáforas provocam indagações e questionamentos presentes
no imaginário coletivo.
O mistério é o tema central do conto estudado, por
abordar uma situação conflituosa, que coloca o leitor a refletir
sobre as experiências humanas. A ambiguidade é presente
nessa narrativa que aborda os conflitos mais íntimos do ser
humano e da construção da sociedade.
O conto “Seminário dos Ratos” faz parte da coletânea
de textos de Lygia Fagundes Telles que abordam o mistério
na sua estrutura. Essas obras buscam apresentar os problemas
humanos, com a intenção de inserir o leitor nesses
questionamentos e colocá-lo no lugar do personagem, ou
apenas levá-lo a pensar como este. A partir dessas reflexões,
deparamos com questões que provocam questionamentos no
leitor, a partir de efeitos provocados pela presença de
elementos desconcertantes que desestabilizarão a narrativa,
corroborando com as características do fantástico como
recurso estético (ROAS, 2014).
Lygia Fagundes Telles (1998) produziu contos que
abordam elementos fantásticos pelas tramas do imaginário e
provocam a sensação de mistério e de suspense com
recorrente uso do fantástico como categoria estética proposta
por Roas (2014), ora para responder a questões de ordem
social, ora para investigar questões da vida íntima. O que torna
376 O conto “Seminário dos Ratos”...
sua escrita especial é a sua sensibilidade, ou sutileza, tal como
apresenta Regis (2002), pois consegue trabalhar com essas
duas tendências concomitantemente, trazendo uma escrita
literária com símbolos e significados do imaginário
contemporâneo.
Na ficção de Lygia Fagundes Telles, pode-se observar o
efeito estético utilizado como meio de proporcionar
desautomatização. Com sua delicadeza, a escritora leva-nos a
repensar questões íntimas e sociais, de acordo com Lamas (2004).
O conto “Seminário dos Ratos” ocupa-se de temas e
questões profundas, que são “suavizadas” pelos elementos
fantásticos. As obras da autora conseguem englobar o
sobrenatural em sua estrutura narrativa, misturando o real e
o surreal em um só plano, mesclando o insólito com o real
em um só enredo.
Suas narrativas são extremamente ricas em detalhes.
O leitor é levado, mesmo que inconscientemente, a indagar
sobre questões que o afligem, sobre conceitos que o inquietam,
por meio de um tensionamento entre o real e o irreal, o que o
incita a duvidar, efeito da desestabilização provocado pelo
uso do fantástico como categoria estética na narrativa.

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WUNENBURGER, Jean-Jacques. O Imaginário. São Paulo:
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Categorias de análise da educação
inclusiva: imaginário pedagógico sob o véu
da questão social
Vanderlei Fernandes Barreto1

A educação, há muito, não é mais um palco para


questões exclusivamente curriculares. [...] a escola
revela-se um espaço dinâmico e dialético, em que
processos de inclusão e exclusão, construção,
negação e recriação, dentro do universo da cidadania,
são experimentados” (Sarita Amaro, 2017, p .7).

Vivemos em um país com profundas desigualdades


sociais e, nesse cenário, a educação, em seus diversos níveis,
realiza, a princípio, um projeto de desenvolvimento social,
pois o ato de educar transfigura imagens, culturas, além das
relações intrapessoais que envolvem e desenvolvem o
educando e, certamente, a prática do educador.
A compreensão do imaginário, do simbólico, na
educação, possibilita o entendimento de questões que abarcam
as desigualdades sociais, como a dificuldade de acesso ao
ensino público, bem como sua desestruturação por meio de
políticas públicas ineficazes.
Se a escola pública é um direito do cidadão, a escola
privada, pela supervalorização do capital, dificulta o acesso
dos menos privilegiados, uma vez que separa e confunde a
educação como moeda de troca, construindo um mecanismo
pouco democrático.
Ao estudarmos a Escola no século XXI, este, exige
que aquela tenha comprometimento com sua missão de devir,
pois ela está em processo de transformação mediante a sociedade
do conhecimento, e não só em relação às expectativas
pedagógicas, mas também em relação à formação de seres
humanizados e cônscios de seu papel na sociedade em que
estão inseridos como cidadãos.
1
Mestre em Ciências Humanas pela Universidade Santo Amaro – UNISA.
Professor de Graduação e Pós-graduação do Centro Universitário Ítalo Brasileiro.
380 Categorias de análise da educação inclusiva...
A Escola2 está preocupada com a realidade concreta
e cria novos paradigmas interdisciplinares, unindo ensino e
pesquisa em um novo contexto. Nesse cenário, a produção e
a divulgação do conhecimento propiciam uma ponte entre
professor e aluno, e o papel do professor é o de orientador
das atividades que permitirão ao aluno compreender seu papel
ativo no processo de ensino-aprendizagem.
Em contrapartida, o docente também poderá ser o
motivador e incentivador do desenvolvimento de seus alunos
perante o corpo social, este entendido como uma rede de
relacionamentos sociais, como afirma Penteado (2001, p.17):
“Fundamental é considerar que o perfil do professor não se
constrói no vácuo, mas na relação professor/aluno”.
Notadamente, a Escola é o campo de pesquisa para
experiências democráticas e pluralistas na sociedade em que
se insere, transformando os objetivos e as metas em ações
mais apropriadas para a aprendizagem. Portanto, a escola tem
que consolidar o projeto pedagógico e, ao mesmo tempo,
promover autonomia dentro do processo de socialização com
satisfação; com isso, a autonomia torna-se um vínculo para
estimular o discente por meio de novas práticas educativas.
Contudo, ao conceber a Educação como direito do
cidadão brasileiro, o acesso a ela demonstra a marca da
desigualdade brasileira. Nesse aspecto, o ser humano, para
ter uma vida digna, deve, a priori, ter acesso à educação,
trabalho, lazer, alimentação, moradia, transporte público,
saúde, segurança, entre outros direitos.
A realidade histórica brasileira e contemporânea
demonstra fatos reais e distintos desse cenário, caracterizado
pela falácia apregoada pelos políticos acerca dos direitos do
cidadão, como a Educação de nível superior.
Assim, não há como negar que a educação nas
instituições de Ensino Superior – públicas ou privadas - no
Brasil apresenta diversos problemas, seja na perspectiva da
acessibilidade ao ensino gratuito, seja até mesmo no aspecto
da degradação da infraestrutura, em especial as públicas, sejam

2
Nesse trabalho, o termo Escola compreende escolas públicas ou privadas.
Arte, Cultura e Imaginário 381
estaduais ou federais, como demonstrado no artigo “O Futuro
das Universidades Públicas”, publicado pelo Jornal da USP
(2018). Conforme Charles Mady:
As universidades públicas brasileiras, estaduais
e federais, estão em constante declínio nestas
últimas décadas. As razões são sobejamente
conhecidas, mas pouco abordadas de forma
construtiva por motivos vários, muitas vezes
relacionados a corporativismos poderosos, que
deveriam ser enfrentados de forma corajosa.
Agudamente, a falta de recursos financeiros é,
sem dúvida, causa de enormes dificuldades, além
da dificuldade de se aplicar critérios para um
melhor empreg o do pouco que há. Para
comprovar, basta consultar os órgãos da
imprensa sobre problemas de gestão nas mais
variadas áreas, levando a população a concluir
que o dinheiro público está sendo mal
administrado (MADY, 2018).
Depreende-se desse artigo a falta de interesse daqueles
que poderiam fazer a diferença, em especial, o Ministério da
Educação. Nesse aspecto, não há qualquer interesse de que a
educação torne pessoas cônscias de seus direitos e
prerrogativas que protejam o cidadão, como assevera Barreto:
Não é surpresa que a educação brasileira vive
sérios problemas: as mazelas governamentais –
atributo que não é exclusivo dos atuais
governantes –, nas esferas municipais, estaduais
e intensamente na federal, aliadas a um descaso
decorrente de muitos anos de inépcia e falta de
vontade política ampliam a desigualdade social
e agravam, sobremaneira, a crise da leitura nas
salas de aula (BARRETO, 2016, p. 117)
Ao criarmos diálogo entre as prerrogativas da questão
social na perspectiva da Educação inclusiva, que, na verdade,
é excludente para muitos, há um abismo intransponível entre
o que de fato “é” e o que “deveria ser” a educação no Brasil.
382 Categorias de análise da educação inclusiva...
Dessa forma, denota-se que há problemas recorrentes
com a Educação de nível superior, pois o acesso do aluno a
este tipo de ensino mostra-se excludente, ao considerarmos a
mensalidade configurada e a permanência dos alunos em
universidades particulares de ponta.
De outro lado, o contexto social, a região geográfica
constituída como periferia, em que os alunos estão inseridos,
é, seguramente, considerada como aspectos relevantes no
processo de uma Educação excludente.
A educação no ensino superior nas instituições
particulares e, em especial, nas regiões periféricas da cidade
de São Paulo, passa por profundas alterações, seja pela questão
governamental, reduzindo o financiamento estudantil, ou pela
falta de recursos oriundos do próprio estudante, que deixa a
universidade devido ao alto custo das mensalidades,
considerando que a educação pública não atende a todos e,
em especial, ao público de baixa renda.
Diante deste cenário, é razoável conceber que a
questão econômica é prerrogativa fundamental nessa relação
e, portanto, as diferenças sociais denotam o grau das
desigualdades dos alunos de periferia, bem como seu acesso
ao nível superior.
A educação inclusiva, nessa abordagem econômica,
redunda no direito à educação, porém, esta, nas IES
particulares, é mercadoria que se estabelece com preço e este
valor mensura a capacidade do aluno de inserção na academia.
Portanto, o direito é relativo a quem pode pagar e não de
quem necessita, pois conforme Marx (1996, pp. 165-166), “os
valores-de-uso só se realizam pelo uso ou pelo consumo.
Constitui o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a
forma social dessa riqueza”.
Depreende-se que somos todos mercadorias balizadas
pelo poder de consumo, de compra, de acumulação de riqueza.
Isto é inclusão ou exclusão no espaço acadêmico? Diante de
um Estado burguês, que detêm o capital, está-se acima dessas
nuances, conforme Netto (1986, p. 17) retrata “[...] como a
sociedade burguesa se funda na exploração e na opressão da
maioria pela minoria [...]”.
Arte, Cultura e Imaginário 383
Entrementes, esse cenário apresenta o porquê de as
IES particulares manterem uma educação bancária, que tem
o aspecto de “encher os educandos de conteúdos” (FREIRE,
1987, p. 57), pois é mais fácil criar indivíduos robóticos, que
apenas memorizem o conteúdo, do que seres pensantes e
cônscios de seus direitos.
É razoável conceber dessa assertiva que, de fato, é
mais fácil gerenciar pessoas que não tenham interesse em
reivindicar melhor qualidade no ensino, até porque os
discentes não sabem, ou têm dificuldade na avaliação da
qualidade das Instituições de Ensino Superior.
De outro lado, no processo de avaliação, alguns
docentes não estão preparados para atender alunos excluídos
pela sociedade, à margem de um sistema que não propicia
políticas sociais de inclusão, como se observa nas regiões mais
afastadas do centro da cidade de São Paulo.
Estes alunos devem, a princípio, receber acolhimento
necessário, pois o poder sobre eles, no olhar de subserviência
ou incapacidade intelectual, é progressivo, quando são
estigmatizados diante de suas realidades socioeconômicas e
epistemológicas.
Ao realizar avaliações, provas ou quaisquer
instrumentos de controle, sem, contudo, desqualificar o aluno,
conforme percebemos “As mudanças em relação à avaliação
talvez sejam as mais difíceis de serem realizadas pelos atores
educacionais, porque envolvem relações de poder e de
controle e por se realizar de maneira formal e informal”
(JACOMINI, 2010, p. 64). Neste texto, a professora e
pesquisadora Márcia Aparecida Jacomini instiga a pensarmos
de forma diferenciada o processo de avaliação, pois essa
relação de poder pode, em certo aspecto, provocar no aluno
sentimento de desmotivação a ponto de abandonar seus
estudos.
Nota-se que a avaliação pode circunscrever um
processo desigual, como assevera Philippe Perrenoud (1999,
p. 14): “A escola conformou-se com as desigualdades de êxito
por tanto tempo quanto elas pareciam na ordem das coisas”.
Depreende-se que a formação dos alunos dependia, nesse
olhar, do interesse individual do discente; não havia, portanto,
preocupação com o desnível social ou cognitivo.
384 Categorias de análise da educação inclusiva...
Adorno (1995), por sua vez, esclarece que, também,
quando o papel dos docentes no contato com provas de
competência em concursos, estes professores sentem
apreensão sobre o processo de avaliação e, até mesmo,
“incompreensão de seu sentido”, percebemos que o debate
acerca do processo de avaliação ocorre em várias dimensões
– professor e aluno.
De outro lado, o Estado segue inoperante e
desinteressado frente às necessidades de comunidades
periféricas, sem qualquer acesso às políticas sociais, ou
enfrentamento das desigualdades sociais, como se percebe
na assertiva de Maria Carmelita Yazbek (2006, p. 35):
“Sabemos que a política social no Brasil tem funcionado
ambiguamente na perspectiva de acomodação das relações
entre Estado e a sociedade civil [...] a intervenção do Estado
vem se revelando inoperante e incapaz [...]”.
Outro olhar, nesse cenário, é consubstanciado por José
Paulo Netto (2011), demonstrando como o Estado, de forma
a preservar aspectos continuístas da Ditadura, mostra-se, ainda
nos tempos atuais, impactando fortemente as universidades,
estas, segundo o autor, apresentam aspectos burocráticos,
disfuncionais, em cuja base não há como perceber sua própria
identidade.
A Educação inclusiva faz-se entre ambas as partes
envolvidas no processo de formação, seja no olhar do
professor ou do aluno quando há um crescimento das pessoas,
abertura para o diálogo franco, em que existam portas abertas
para quem educa e para quem é educado.
A interação entre a realidade de inclusão de alunos à
margem da sociedade e como são tratadas as prerrogativas
de avaliação reafirma as perspectivas apontadas, tanto em
Paulo Freire, quanto em Adorno.
Não existe educação sem que ela seja uma
comunicação transversal, passando por diversos aspectos do
próprio conhecimento, como a história de vida.
Sara Paín (1999, p. 89) elucida-nos “quando
consideramos os dois processos como provenientes de uma
mesma estrutura”. De outro lado, temos olhares diversos sobre
o mesmo contexto e, sob outra perspectiva, Milton Santos
Arte, Cultura e Imaginário 385
(2002, p. 24) ressalta acerca das questões demográficas em
que vivem aqueles sob condições de vulnerabilidade: “Não
há pacto social sem pacto territorial concomitante, mesmo
que este não venha explicitado”, ou seja, aspectos relacionados
aos espaços geográficos e periféricos contribuem para a devida
compreensão dos sujeitos que vivem sob condições precárias
e tentam acesso ao ensino superior.
Compreende-se que a educação tem por finalidade a
formação do indivíduo e também o reforço dos laços sociais
e a promoção da integração de todos no corpo social, pode-
se entender que ela assume a autonomia na medida em que
interage nesse corpo social, considerando que pode ser
transformadora em nossa sociedade, como preconiza Freire:
“Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela
tampouco a sociedade muda” (FREIRE, 2015, p. 77), ou seja,
sem educação, não há como identificar uma sociedade justa,
que atinja todo o tecido social.
Ao considerarmos essa análise de ressignificação, ou
seja, da necessidade de formar alunos críticos e socialmente
responsáveis, sendo a escola um espaço dialógico para tal
formação, no que concerne o papel do docente, este deverá
possuir formação diferenciada em diversos aspectos da
função-educador e humanizados, como assevera o Prof.
Alexandre Filordi de Carvalho (2014).
O desafio é possibilitar que cada indivíduo possa
construir sua própria identidade, incluindo-o vários setores,
tais como: político, religioso, artístico, econômico, familiar
etc., pertencendo a uma pluralidade e não apenas a um eixo
que exclui e domina. A escola deve funcionar como
instrumento mediador da sociedade, conduzindo não só a
aprendizagem do saber, mas também do saber comportar-se
como cidadão.
Dessa forma, a educação não será mecanicamente
reprodutivista e tecnicista, mas se ocupará, cada vez mais, das
questões referentes às carências da sociedade e ampliará suas
responsabilidades para além do ensino acadêmico.
Neste aspecto, evidencia-se que o processo de ensino-
aprendizagem não pode ser estanque, ao contrário, trata-se
de um olhar diferenciado e constante, como afirma Freire
386 Categorias de análise da educação inclusiva...
(1979, p. 35): “a educação tem caráter permanente, não há
seres educados e não educados, estamos todos nos educando.”
Nessa perspectiva, cabe ressaltar que a questão social
é oriunda das mazelas, do desrespeito aos direitos do cidadão,
bem como da corrupção avassaladora que aflige o Brasil há
muitos anos e, notadamente, em todos os tipos de poder, seja
de direita, ou de esquerda.
Se no século XIX, Karl Marx (1818 – 1883) já alertava
para o fato de o homem ser balizado como mercadoria pelo
capital, a questão social está intrinsecamente relacionada com
políticas sociais e na relação decorrente desta acerca da
produção e riqueza frente às recorrentes situações de
pauperização da classe social desfavorecida e não incluída na
elite capitalista, apesar de a primeira manter a segunda, como
se percebe na afirmativa de Lara e Maranhão:
Podemos perceber que a chamada questão social
situa-se visceralmente no interior das relações
sociais de produção capitalista [...] A questão social,
aloja-se, portanto, na lei geral da acumulação
capitalista, pois, quanto maior a riqueza social e o
capital tornado potência social e produtiva
dominante, maior é a pobreza que atinge o
conjunto da população trabalhadora (LARA;
MARANHÃO, 2019, p. 44)
Diante do exposto, é compreensível notar que a
questão social não é um tema apreciado por aqueles que
acreditam que o Brasil, em 2020, está em grande expansão
econômica, social e política. Essas pessoas, ao contrário do
que possa parecer, têm plena consciência de que a desigualdade
social é abismal.
Não há como negar que vivemos sob a égide de um
capitalismo fundamentado sob princípios que privilegiam
elites políticas, religiosas, esta, inclusive, pode, em certo
aspecto, configurar o olhar do capitalismo, como assevera
Walter Benjamin:
O capitalismo deve ser visto como uma religião,
isto é, o capitalismo está essencialmente a serviço
das mesmas preocupações, aflições inquietações
Arte, Cultura e Imaginário 387
a que outrora as assim chamadas religiões
quiseram oferecer resposta. A demonstração da
estrutura religiosa do capitalismo, que não é só
uma formação condicionada pela religião, como
pensou Weber, mas um fenômeno essencialmente
religioso nos levaria ainda hoje a desviar para uma
polêmica generalizada e desmedida. Não temos
como puxar a rede dentro da qual nos
encontramos (BENJAMIN, 2013, p. 21).
Nota-se que, segundo esse autor, o capitalismo tem
uma fundamentação muito mais arraigada em nossa sociedade
do que meramente possa transparecer para o incauto. Não se
trata apenas do poder de compra, de possuir bens. O
capitalismo, como religião, engendra construções simbólicas,
representações instituídas no imaginário, como aponta
Castoriadis (1995). Envolve vários aspectos, de ordem cultural,
social e até mesmo psicológica, pois indivíduos de baixa renda
que não tiveram acesso às necessidades básicas para sua
sobrevivência, certamente, não estão inseridos no rol de
profissionais cujas carreiras e salários proporcionam bem-estar
para suas famílias, tampouco são pertencentes à elite de
universidades, enfim, não são vistos como vencedores segundo
o olhar do capitalismo.
Indivíduos fora desses grupos de privilégios vivem à
margem da sociedade e assim podem construir suas próprias
representações. Nesse cenário, Laplantine e Trindade (1997,
p. 27) afirmam: “O processo do imaginário constitui-se da
relação entre o sujeito e o objeto que percorre desde o real,
que aparece ao sujeito figurado em imagens, até representação
possível do real.”
Ao analisarmos essas categorias acerca do acesso à
educação, é possível depreender aspectos do imaginário em
sua relação não somente com um indivíduo, mas também em
relação à sociedade em que está inserido, expresso no conjunto
de suas realizações e crenças. (WUNENBURGER, 2007).
Evidencia-se, portanto, que o imaginário atua em linha tênue
entre o real e o simbólico. Nessa perspectiva, é possível
compreender a educação inclusiva e os atores que dela fazem
parte.
388 Categorias de análise da educação inclusiva...
O que deveria ocorrer no espaço escolar, em outra
perspectiva, embasa o olhar de Moacir Gadotti:
Na sociedade da informação, o papel social da
escola foi consideravelmente ampliado. É uma
escola presente na cidade, no município, criando
novos conhecimentos, relações sociais e humanas,
sem abrir mão do conhecimento historicamente
produzido pela humanidade, uma escola científica
e transformadora (GADOTTI, 2010, p. 15).
Sob outro aspecto acerca do papel social da escola, a
professora Dra. Lílian do Valle, da Universidade Estadual do
Rio de Janeiro, apresenta a escola pública e as crises recorrentes
da educação pública, bem como acerca da construção que a
sociedade realiza sobre o futuro do ensino público que afeta
o acesso à educação, da seguinte maneira: “A escola pública
vai mal, estudando a história dessa instituição, verificamos
que, onde foi implantada, este diagnóstico é tão recorrente
que deve mesmo ser tomado como conatural à sua existência”
(VALLE, 1997, p. 7).
Depreende-se da fala da professora que, apesar do
roteiro expresso, a escola, no escopo do imaginário, apresenta
nuances de aspectos políticos, estruturais, bem como
epistemológicos. “A educação é como um espelho fiel que
nos reproduz com clareza o que uma sociedade é, o que ela
deseja de si e o que ela afirma desejar” (VALLE, 1997, p. 8).
A sociedade, na perspectiva histórica, delineia como
foi e como será a educação pública e até mesmo a privada,
pois quaisquer projetos devem ter significados sociais e
respectivos investimentos que a sociedade imagina ter como
poder de ação.
Este cenário é dialético e histórico, como se observa nas
ponderações da pesquisa elaborada pela professora Lílian do Vale:
Para instalar o tempo escolar em suas raízes
históricas e evidenciar sua dependência em relação
a uma matriz de significações sociais definidas, é
necessário aceitar que a noção de Escola Pública
pode ser situada e datada, não se apresentando
nem como uma espécie de produção espontânea
Arte, Cultura e Imaginário 389
da vida social, nem como um universal das
sociedades ou, ao menos, das sociedades
modernas. Tal como a Escola pública se inscreve
em um determinado projeto político de sociedade
e traz a marca do tipo de investimentos sociais
que permitiram seu nascimento e constituição e
que, continuamente renovados, explica sua
permanência, a noção de tempo escolar é tecida
por um conjunto de significações sociais da qual
depende: para desvendar sua crise, é preciso
entender sua emergência (VALE, 1997, p. 23).
Não há como dissociar a educação de Políticas
Públicas e, nesse caso, em se tratando de Brasil, o tema
Educação toma um rumo que embasa diversas teorias,
postulados ideológicos que demandam extensos debates e
pesquisas. Contudo, perceber a educação também como
política social é atribuir o papel do Estado e respectiva
construção ideológica do governo brasileiro em 2020, como
podemos depreender da afirmação:
As políticas sociais têm sua gênese e dinâmica
determinadas pelas mudanças qualitativas
ocorridas na organização da produção e nas
relações de poder que impulsionaram a redefinição
das estratégias econômicas e político-sociais do
Estado nas sociedades capitalistas [...] Situar a
educação como política social do Estado capitalista
significa, antes de tudo, admitir a refuncionalização
social dos sistemas educacionais em face das
mudanças qualitativas ocorridas na fase
monopolista do capitalismo, tanto em relação à
organização da produção quanto em relação às
estruturas jurídico-políticas e às relações globais
(NEVES, 1999, pp. 11-16).
Nota-se, na perspectiva de Lúcia Neves, que tratar
acerca da educação no imaginário político é criar categorias
de análises políticas sobre a produção do Estado capitalista e
respectivos interesses que estes mantêm nos sistemas
educacionais.
390 Categorias de análise da educação inclusiva...
A educação é fruidora de emoções, sensações,
conceitos, representações que se projetam no cotidiano dos
atores que dela fazem parte. Nessa perspectiva, não é propício
o rótulo de quem manda e de quem obedece em sala de aula,
mas, no olhar de Paulo Freire (1996, p.25), “Não há docência
sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das
diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de
objeto um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem
aprende ensina ao aprender”.
Dessa forma, não há como imaginar o espaço escolar
sem a construção de intercâmbios entre educadores e
educandos, além da constatação de que a educação, no
imaginário social, é plural em suas manifestações culturais,
artísticas, científicas, como afirmam Baseio e Cunha (2018, p.
11), se pudermos ampliar para outros âmbitos: “Sabe-se que
as manifestações artísticas estão presentes em todas as
sociedades humanas em maior ou menor grau e apresentam-
se de tantas maneiras diferentes quanto são seus autores e
culturas”.

A interdisciplinaridade como ferramenta de


múltiplos espaços

A interdisciplinaridade, segundo Fazenda (2001, p.


112), envolve o processo de conscientização da abordagem
interdisciplinar, manifesta no empenho do professor com seu
trabalho e embasada pelas experiências e vivências de suas
próprias práticas pedagógicas onde ele se constrói e reconstrói.
Ela afirma ainda que, no espaço escolar, na sala de aula
interdisciplinar, a obrigação e a satisfação se alternam, a
humildade supera a arrogância, a cooperação a solidão, a
generalidade a especialização, a homogeneidade a diversidade
do grupo heterogêneo, a reprodução a produção do
conhecimento (FAZENDA, 2002, p. 114).
A prática da interdisciplinaridade é força que
movimenta os saberes, seja na sala de aula, ou outros espaços
de conhecimento. A interdisciplinaridade se fez presente no
Arte, Cultura e Imaginário 391
movimento e transformação de cada indivíduo, pois todos
juntos, professores, alunos, comunidade em geral, podem
transformar os espaços, democratizando a educação.
Assim como entende Fazenda, é possível depreender
que somente com atitudes significativas e práticas relevantes
na interdisciplinaridade redunda-se em transformações e
mudanças no processo de ensino-aprendizagem.
Para concluir, este trabalho procura contribuir com
docentes, discentes e todos os interessados na educação, no
imaginário e na Interdisciplinaridade, esta, naturalmente
entendida como uma categoria de ação, de prática pedagógica.
A compreensão de vivermos num Brasil atrasado na
reforma do sistema educacional é clara e evidente. Trata-se
de uma confirmação trágica, mas a constatação desta
afirmativa embasa a realidade atual e pode ser reconhecida
nas redes de ensino superior, seja particular ou pública.
Segundo Fazenda (2013), os docentes, muitas vezes
perdidos na sua função de professar, impedidos de revelar
seus talentos ocultos, anulados do desejo da pergunta, com a
criatividade embotada, prisioneiros de um tempo de tarefas,
recheados de melancolia, induzidos a cumprir o necessário e
cegos diante da suposta beleza do supérfluo, não entendem
que a teoria interdisciplinar só se legitima na sua ação.
Podemos considerar a contribuição da interdisciplinaridade
uma categoria de ação exercida na prática de sala de aula, ou outros
espaços de conhecimento e sua metodologia é facilitadora
para o exercício de inferência e reflexão sem os quais nada se
pode esperar da escola.
Utilizar ferramentas interdisciplinares facilitará os
movimentos de ação, transformação e mudanças nas pessoas,
nos alunos, nos professores, pois o processo interdisciplinar
busca resgatar a sensibilidade perdida com atividades de
percepção de si mesmo e do outro. A interdisciplinaridade
permite-nos olhar o que não se mostra e intuir o que ainda
não se consegue, mas esse olhar exige uma disciplina própria,
capaz de ler nas entrelinhas. (FAZENDA, 1999).
Assim, a atitude de responsabilidade com as pessoas,
com o conhecimento, com as inovações e consigo mesmo,
devem ser o ponto chave do docente à procura de uma prática
interdisciplinar na sala de aula e em diversos espaços.
392 Categorias de análise da educação inclusiva...
Nessa perspectiva, não há como retroceder, a escola
contemporânea é fundamentalmente um espaço de
comunicação e, de forma dialética, a ação educadora se faz
num processo de ação comunicativa. Dessa forma, como
estabelece Penteado (1991, p. 112), “Ensino é comunicação
[...]. Não qualquer tipo de comunicação. Mas comunicação
dialógica. Não meramente reprodutora, mas elaboradora do
conhecimento”.
Evidencia-se que o processo de ensino-aprendizagem
não pode ser estanque, ao contrário, trata-se de um olhar
diferenciado e constante, como afirma Freire (1979, p. 35):
“A educação tem caráter permanente. Não há seres educados
e não educados. Estamos todos nos educando.”
Nesse sentido, há que se reconhecer o potencial de
imaginários instituintes, capazes de impulsionar verdadeiras
transformações, conforme reitera Castoriadis (2002, p. 327): “[...]
a autocriação da sociedade só é possível quando os indivíduos
sociais existem; ou: a autotransformação da sociedade só é
possível quando existem indivíduos que almejam essa
transformação da sociedade e podem realizá-la.”
Para compreender o imaginário educacional, é razoável
denotar que o mesmo transpassa barreiras culturais, históricas
e sociais. Permite múltiplas compreensões, visões utópicas e
ideológicas, pois:
O imaginário educacional é uma modalidade, ou uma
especificação, daquilo que nós denominamos de
imaginário bidimensional: imaginário sociocultural
(ideologia, utopia, metáforas) e imaginário de
símbolos e arquétipos (WUNENBURGER, 2006,
p. 26).
Assim, numa perspectiva de futuro, o ser humano, no
século XXI, deve compreender a essência da educação como
questão social, pois, conforme alerta Edgar Morin (2000, p.
33): “Para que haja um progresso de base no Século XXI, os
homens e as mulheres não podem mais ser brinquedos
inconscientes não só de suas ideias, mas das próprias
mentiras”.
Arte, Cultura e Imaginário 393
O Estado que respeita a Educação, que respeita o
aluno, sua realidade e condição em sala de aula e que atua no
sentido da eliminação ou mitigação das desigualdades sociais,
certamente propiciará transformação e desenvolvimento
integral do ser humano. Para isso, é preciso contar com a
força do imaginário.

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.
Tristão e Isolda: o amor-paixão em
tradução intersemiótica
Jéssica Avelino Irmão1

A narrativa Tristão e Isolda, proveniente da Irlanda,


cantada por trovadores do século XII e XIII, mostra-nos
quando dois apaixonados se amam loucamente e morrem de
amar, contra tudo e todos, contra o mundo. A história advém
de um conjunto de narrativas muito antigas, por isso fica claro
que, antes do período medieval, Tristão e Isolda são
personagens que fazem parte do imaginário celta. Os textos
arcaicos que se consagraram, capazes de decifrar essa mitologia
foram: Tristan, de Béroul; Tristan, de Thomas; Folie Tristan, de
Oxford; Lai du Chèvrefuille, de Marie de France; Lai du Tristan,
de Eilhart von Oberg; Tristan, de Gottfried von Strasbourg e
The saga of Tristram and Isönd, de Frère Robert.
A autora Maria Nazareth Alvim de Barros, com sua
obra Tristão e Isolda - o Mito da Paixão, afirma: “Um mito que
não admite diversas leituras não é um mito. É a partir dessa
premissa que encontramos uma quantidade gigantesca de
magníficas interpretações da lenda...” (BARROS, 1996, p. 17).
Este capítulo analisa como Alessandra Cimatoribus
(2008) traduziu criativamente a narrativa de Tristão e Isolda
para a literatura infanto-juvenil, com sua obra Tristão e Isolda e
o filtro de amor que os uniu. Busca-se compreender de que forma
foi realizada a tradução intersemiótica, para o público infantil
e juvenil, dessa antiga narrativa cheia de mistérios,
conspirações, violência e traições.
Por intermédio dos estudos bibliográficos de Maria
Nazareth Alvim de Barros (1996) e Denis de Rougemont
(2003), pautaremos diferentes leituras da narrativa de Tristão

1
Graduada em Letras pela Universidade Santo Amaro em 2020, orientada
pela Prof. Dra. Maria Auxiliadora Fontana Baseio. O texto apresentado é
de pesquisa resultante de TCC, com adaptações.
398 Tristão e Isolda...
e Isolda, tanto no âmbito da cultura celta, quanto da cultura
ocidental, buscando entender uma leitura da união atrelada
ao amor-paixão e outra leitura associada à morte e ao adultério,
não deixando de observar os diálogos da narrativa com o
amor cortês medieval.
No movimento de circulação e de deslocamento dessa
narrativa tradicional, observaremos, metodologicamente, a
partir dos estudos comparados de literatura e dos estudos de
tradução propostos por Julio Plaza, de que modo foi realizada
a tradução intersemiótica e a maneira pela qual as imagens se
aclimataram na literatura infanto-juvenil.

Síntese da narrativa

A história inicia-se na Cornualha, com o rei Marc e


sua irmã, a princesa Blancaflor, quando chega ao reino um
príncipe chamado Rivallin, que logo constrói uma grande
amizade com rei Marc, e apaixona-se pela princesa. Quando
Rivallin sai da Cor nualha leva consigo Blancaflor,
abandonando o rei Marc. No trajeto pelo mar até Loonois,
uma criança é concebida pelo amor dos dois.
No dia do nascimento, ao dar à luz, Blancaflor morre
e, devido a toda dor, Rivallin decide dar o nome de Tristão a
seu primogênito. Com o passar dos anos e com a morte de
seu pai, o jovem pretende ir até a Cornualha. Chegando com
todos seus encantos, logo ganha a confiança do rei Marc,
porém vive em sua companhia por três anos sem dizer-lhe
que é seu sobrinho.
Em um determinado momento, Marc é confrontado
pelo rei da Irlanda a pagar tributos, que seriam a entrega de
moças e rapazes para serviços degradantes, que o rei se
recusava a pagar há quinze anos. O rei da Irlanda manda seu
cunhado, o gigante Morholt, para cobrar a dívida, porém
chegam a um acordo. Para se livrar do tributo, Marc necessita
de um campeão que possa enfrentar o gigante. Tristão resolve
combatê-lo, mas sua linhagem real é exigida pelos nobres do
país, então ele revela sua verdadeira identidade como sobrinho
Arte, Cultura e Imaginário 399
de Marc, o rei sofre por pensar em perder o filho de sua irmã,
porém em nome do reino permite a ida de Tristão para batalha.
Tristão e Morholt começam a luta, o herói é
gravemente ferido com a espada envenenada do gigante, mas
com suas artimanhas consegue cravar sua espada no crânio
do adversário, quebrando, assim, a ponta de sua lança e vencer
o duelo.
Tristão torna-se o campeão de Marc e o herói do povo;
contudo, mortalmente ferido, lança-se ao mar em busca da
morte. Após muitos dias à deriva, o destino o leva à Irlanda, a
terra de Morholt, apresenta-se como Tantris, o trovador, e é
salvo pela bela e jovem Isolda, a Loura, por meio de seus
unguentos mágicos.
Voltando à Cornualha recuperado, é motivo de
felicidade para todos. Porém, o interesse de Marc por Tristão
aborrece os barões, que, despeitados, impõem a Marc o
casamento. Ele reluta, mas não há escapatória, o rei pede um
sinal divino e, assim, duas andorinhas trazem um fio de cabelo
cor de ouro. Com isso, Marc diz que somente se casará com a
dona do fio de cabelo. Tristão já sabe onde encontrar a dona
dos cabelos dourados, assim volta para a Irlanda. Chegando,
descobre que há um dragão que está ameaçando o país, e o
rei havia oferecido a mão de sua única filha em casamento ao
homem que conseguisse derrotá-lo. Tristão o encontra e mata,
mas é ferido. Ele é recolhido por Isolda novamente e salvo
por sua magia. Em um determinado momento, ela reconhece
a espada que matou seu tio Morholt e fica enfurecida, contudo,
ao descobrir sobre as andorinhas, decide aceitar seu destino.
Assim, Tristão recebe Isolda em casamento, mas anuncia que
a conquistou para seu tio, o rei Marc da Cornualha.
Quando a rainha da Irlanda soube que sua filha vai se
tornar a esposa de Marc, decide, por meio de seus dons
mágicos, preparar um vinho de raízes, cujas virtudes mágicas
seriam capazes de proporcionar a felicidade conjugal a Marc
e Isolda, tendo validade de três anos. A rainha Isolda confia a
Brangien, a dama fiel e amiga de sua filha, a função de dar-lhe
o “vin herbé” na noite de núpcias.
O caminho até a Cornualha é longo, o calor é
insuportável, por isso Brangien entrega a seus senhores o
400 Tristão e Isolda...
“philtre” para saciarem sua sede. No momento em que o
líquido toca em seus lábios, ambos não são mais donos de si
e, com a ajuda de Brangien e Governal, companheiro de
Tristão, entregam-se ao amor, transformando-se em apenas
um ser.
O rei Marc apaixona-se por Isolda à primeira vista.
Chegado o casamento, na noite de núpcias, Brangien entrega
sua virgindade ao rei a pedido de Isolda, enquanto a rainha
deita-se com Tristão.
Com o passar do tempo, os amantes encontram-se
todos os dias, até que começa a desconfiança dos barões, que
tentam fazer Marc enxergar o que está acontecendo, mas o
rei não acredita na história. Mesmo relutando, Marc é obrigado
a aceitar a proposta dos nobres. Chama Tristão e diz que ele
precisa fazer uma viagem, em seu nome. Tristão aceita, porém
precisa se despedir de Isolda antes de partir. Ele havia se ferido
em uma caçada a um javali, e a ferida ainda estava aberta.
Chegando ao aposento de Isolda, percebe que há flor de
farinha pelo chão, mas, muito astuto, salta e cai em cima do
leito da rainha. Quando o rei chega e vê o sangue ainda fresco
da ferida em cima do leito de sua esposa e os respingos pelo
chão, não há mais dúvidas, os amantes são descobertos e
condenados à morte.
Marc manda acender a fogueira e levar primeiramente
Tristão. Os guardas o levam, no caminho há uma capela e o
herói foge por ela. Isolda é levada para a fogueira. Tristão, ao
ouvir os gritos de sua amada, corre e a salva. Eles fogem pela
floresta, vivem da caça e mudam de acampamento todos os dias.
Três anos se passam, chegando ao fim o efeito do
“philtre”. O casal logo começa a se arrepender. Assim,
decidem procurar o ermitão Ogrin, para interceder por eles
perante Marc, o ermitão aceita ajudá-los, escreve para o rei
propondo a volta de Isolda e o exílio de Tristão. O rei aceita.
Tristão segue para Bretanha Francesa, ali conhece
Isolda das Brancas Mãos, que é muito bela, porém, não se
apega a seus atributos femininos, mas pelo seu nome. Já a
jovem apaixona-se por ele, e assim o casamento é marcado.
No leito de núpcias, a lembrança da amada o desatina. O
apaixonado resolve mentir para Isolda das Brancas Mãos e
Arte, Cultura e Imaginário 401
decide que não poderão consumar o matrimônio e viverão
em um casamento branco.
Em uma de suas batalhas, Tristão é mortalmente
ferido. O herói chama Kaherdin, seu amigo, e implora para
que ele busque sua amada, pois somente ela poderia salvá-lo.
Pede-lhe que use o barco e leve consigo duas velas, uma branca
e outra preta; caso Isolda viesse, a vela branca deveria ser
içada, caso contrário, ele içaria a preta.
Quando o navio chega bem próximo à Bretanha,
Tristão, muito fraco, pergunta à esposa se o barco já apareceu.
Como forma de vingança, por descobrir sobre a amante do
marido, ela mente e lhe diz que sim, e que a vela é preta.
Tristão é invadido por uma dor inimaginável, a pior que já
sentira na vida, não podia acreditar que sua doce amada o
havia abandonado, mas ela o havia feito. “Por três vezes, ele
murmura: “Isolda, minha bem-amada”; e, antes de repetir
novamente, entrega sua alma”. (THOMAS, 1960, p. 241)
Ao desembarcar, Isolda quer saber o que aconteceu,
e um ancião conta-lhe o ocorrido. Entrando no aposento onde
reside o corpo sem vida de Tristão, sente que não existe mais
razão de permanecer viva.
Ela o abraça, deita-se a seu lado, beija-lhe os lábios
e o rosto, aperta-o fortemente, corpo contra
corpo, lábios contra lábios, e é assim que entrega
sua alma. Ela se deita a seu lado vítima de seu
luto mortal. Tristão morreu por causa de sua
ausência; Isolda, agora, morre por ter chegado
muito tarde. Tristão morreu pelo amor de Isolda;
Isolda morreu por sua paixão por Tristão
(THOMAS, 1960, p. 244).
Quando Marc descobre, perdoa-os e manda colocá-
los no mesmo túmulo e plantar uma roseira sobre o corpo de
Isolda e, para Tristão, oferece uma cepa de vinha do mesmo
tamanho. Conforme as flores crescem, seus galhos juntam-se
de tal maneira, que jamais foi possível separá-los.
402 Tristão e Isolda...
A narrativa de Tristão e Isolda na perspectiva
celta

A narrativa de Tristão e Isolda é incontestavelmente


celta, conforme assinala Maria Nazareth Alvim de Barros
(1996). Passou para o registro escrito em uma época em que
predominava o cristianismo, em meados do século XII,
deslocamento temporal que lhe custou muitas transformações.
Compreender a narrativa sob a cosmovisão celta
significa reviver o mito, em fusão harmoniosa e impactante
entre o sonho, a aventura, a fantasia, o maravilhoso.
O casamento celta não era um sacramento, não durava
para sempre, nem implicava a fidelidade do casal, era uma
união livre. As mulheres ocupavam um lugar de prestígio,
representando o lado mágico do ser. Nessa cultura, havia
equilíbrio de poder entre homens e mulheres, valorizando a
igualdade. Os comportamentos revelavam que havia extrema
liberdade sexual, demonstrando, principalmente, a importância
da mulher na sociedade celta, sendo considerada igual e livre
perante os homens.
O amor louco, a dádiva total de si mesmo, os reinos
do sonho, a sacralização do ser amado, tudo aí se
encontra com riqueza de situações, temas, figuras,
personagens. Aí se encontra a mulher amada, mágica,
enigmática ou exemplar, comparada sempre a uma
divindade. Na tradição celta o amor está desvinculado
da procriação e projeta os amantes, por meio da
paixão, para um domínio além do humano
(BARROS, 1996, p. 26).
A união dos amantes estava vinculada ao Amor-Paixão,
aquele amor em que se morre por amar, não estava atrelada à
infidelidade, como na Idade Média se configurou. Na cultura
celta, não havia essa concepção da traição, devido a um
indivíduo não pertencer ao outro. Aqueles que encaravam a
paixão como destino entregavam-se ao amor sem nenhum
sentimento de culpa.
Arte, Cultura e Imaginário 403
A narrativa de Tristão e Isolda na perspectiva
medieval

A história de Tristão e Isolda foi recriada sob o


imaginário do amor cortês na França do século XII. Essa
forma da cortesia amorosa medieval idealizava a pessoa amada
como algo divino, elevando-a para um plano etéreo. O amante
satisfazia-se apenas por obser var sua amada, por ter
autorização de escrever poemas sobre ela ou ter a
oportunidade de tocá-la – tudo isso era motivo de orgulho
para ele. O amor cortês glorificava a figura feminina,
considerando-a o bem supremo. O cavalheiro transformava-
se em seu vassalo, um servo obediente entregue aos caprichos
de sua amada.
O século XII contou com o O Tratado do amor cortês,
que fixava os princípios da metafísica amorosa. Barros (1996)
deixa claro que se sabe pouco sobre o criador do tratado, mas
tudo indica que foi André o Capelão, e o documento foi
redigido entre 1185 e 1189. A obra tinha como objetivo
normalizar essa nova forma de amar, oferecendo uma doutrina
amorosa. André criou 31 regras para iniciação amorosa. Barros
relata algumas delas em sua obra:
REGRAS
N°2: Quem não é ciumento não pode amar.
N°7: Quando da mor te do parceiro, o
sobrevivente deve esperar dois anos.
N°13: Quando o amor é divulgado, raramente ele
dura.
N°14: Uma conquista fácil torna o amor sem
valor; uma conquista difícil o torna valoroso.
N°15: Todo amante deve empalidecer na presença
da amada.
N°16: Quando o amante percebe, de repente,
aquela que ele ama, seu coração deve disparar.
N°18: Só a virtude torna alguém digno de ser
amado (BARROS, 1996, p. 234).
Denis de Rougemont, com sua obra O Amor e o
Ocidente, revela-nos a tensão entre a paixão e o casamento na
404 Tristão e Isolda...
cultura ocidental, associando o ato de amor-paixão à ideia de
adultério. Para o autor, as mulheres apareciam como um meio
de transações feudais, para acordos financeiros e políticos.
Para Rougemont, esse amor nada mais era do que a satisfação
da carne, o que se configurava pecaminoso.
O autor critica a união de Tristão e Isolda, pois, para
ele, um cavalheiro que já havia jurado vassalagem a um senhor
era inadmissível jurar também à dama escolhida, não se podia
servir a dois senhores. Justamente foi o que aconteceu com
Tristão, ele servia ao rei Marc e, ao tomar o filtro da paixão,
passou a obedecer a lei do segredo amoroso, levando em conta
o amor, não as leis do casamento.
A paixão dos amantes é contraditória, pois, mesmo
com término do efeito do “philtre”, eles continuam se amando
e encontrando-se às escondidas. Essa relação, para
Rougemont, não podia ser chamada de amor, mas de
narcisismo pessoal, devido o casal não procurar se curar, nem
ao menos se confessar para buscar perdão.
O Romance de Tristão é sagrado aos nossos olhos
na medida exata em que se considere que cometo
um “sacrilégio” ao tentar analisá-lo. Sem dúvida, este
ato sacrílego se reveste de um sentido anódino, se
pensarmos que nas sociedades tal censura se traduzia
não por essa aversão que conjecturo, mas pela
condenação à morte do culpado. O sagrado aqui
em questão é apenas uma reminiscência obscura e
enfraquecida (ROUGEMONT, 1988, p. 22).
Denis de Rougemont coloca a lenda como geradora
de toda uma estrutura de pensamento do amor-paixão, ligado
à morte e ao adultério. Para ele, os amantes buscavam a morte,
que era o obstáculo supremo, o verdadeiro desejo desde o
início, que era representado por suas falas e ações. Ele não
admite que Tristão seja apresentado como um modelo de
cavaleiro, pois, para ele, o herói enganou seu rei com
artimanhas cínicas; Isolda não poderia ser considerada uma
dama, por ser uma mulher adúltera que diz inúmeras mentiras.
O catolicismo medieval acreditava no casamento
como um sacramento e a relação fora dele seria uma forma
de deturpação de suas crenças, uma heresia.
Arte, Cultura e Imaginário 405
A narrativa de Tristão e Isolda em tradução
intersemiótica por Alessandra Cimatoribus

Pode-se dizer que, quando um texto é transcriado para


um outro campo semiótico, ou de um sistema de signos para
outro, ocorre uma tradução intersemiótica. Julio Plaza (2003)
define esse tipo de tradução como
[...] trânsito criativo de linguagens nada tem a ver
com a fidelidade, pois ela cria sua própria verdade
e uma relação fortemente tramada entre seus
diversos momentos, ou seja, entre passado-
presente-futuro, lugar-tempo onde se processa o
movimento de transformação de estruturas e
eventos (PLAZA, 2003, p. 1).

Trata-se de uma relação criativa entre dois textos que


passaram por uma transformação, em outras palavras é uma
metamorfose, podendo ser entre signos de diversas ordens.

[...] o tradutor se situa diante de uma história de


preferências e diferenças de variados tipos de
eleição entre determinadas alternativas de suportes,
de códigos, de formas e convenções. O processo
tradutor intersemiótico sofre a influência não
somente dos procedimentos de linguagem, mas
também dos suportes e meios empregados, pois
que neles estão embutidos tanto a história quanto
seus procedimentos (PLAZA, 2003, p. 10).
A história de Tristão e Isolda passou diversas vezes
pelo processo intersemiótico, desde sua matriz oral até as
novas versões da cultura digital, sendo traduzida em diversos
lugares e tempos, em vários códigos e linguagens, como o
cinema, a pintura, a música, o teatro entre outros. Também
se deslocou para a literatura infantil e juvenil. A obra Tristão e
Isolda e o Filtro de Amor que os Uniu, da autora Alessandra
Cimatoribus, é uma recriação que articula palavra e imagem
em gestos altamente estéticos. Cimatoribus carrega seu texto
406 Tristão e Isolda...
de magia, amor e heroísmo, buscando aproximá-lo de seu
público leitor, no caso, a criança e o adolescente e faz isso
com doçura e cuidado. A ilustradora traz uma riqueza de cores
e imagens, enriquecendo a interpretação do leitor, com
aspectos lúdicos, imaginativos e simbólicos.
Cimatoribus, respeitando os estágios psicológicos da
criança e sua faixa etária, conseguiu traduzir intersemioticamente
a narrativa para o público infanto-juvenil. Em uma das
passagens narradas na versão de Joseph Bédier (2012),
percebemos a dor e a angústia de Brangien, quando nota o
efeito que o “philtre” causou em Tristão e Isolda.
– Infelizes! Parai e voltai, se é que ainda podeis! Mas,
não, o caminho é sem retorno, a força do amor já
vos impele, e nunca mais tereis alegria sem dor. É o
vinho com ervas que vos domina, a bebida de amor
que vossa mãe, Isolda, me havia confiado. Só o rei
Marc devia bebê-lo convosco; mas o inimigo
zombou de nós três e fostes vós quem esvaziastes o
canjirão. Amigo Tristão, amiga Isolda, em castigo
pela má guarda que fiz, entrego-vos meu corpo,
minha vida; pois, pelo meu crime, na taça maldita,
bebestes o amor e a morte!
Os amantes abraçaram-se. Em seus belos corpos
fremiam o desejo e a vida. Tristão disse:
– Que venha pois a morte!
E, quando caiu a noite, dentro da nau que saltava
mais rápido rumo à terra do rei Marc, ligados para
sempre, abandonaram-se ao amor
(JOSEPH, 2012, p. 38).
Já com a tradução intersemiótica de Alessandra
Cimatoribus (2008), nota-se como a autora recriou toda dor
e sexualidade ali presente para algo leve e de fácil compreensão
para a criança.
O navio partiu e a meio do caminho aportou a uma
baía, para reabastecer. Tristão ficou sozinho a bordo
do navio com Isolda e uma jovem aia,
– Traz-nos vinho, temos sede – disse Tristão.
A jovem não encontrou nada ser a não o filtro e
levou-lho.
Arte, Cultura e Imaginário 407
Tristão bebeu. Isolda bebeu. Beberam juntos, até
que a última gota. Não era vinho, era amor o que
eles bebiam. Isolda olhou para Tristão e corou.
Tristão tentou dizer alguma coisa, mas da sua boca
saiu apenas o seu coração (CIMATORIBUS, 2008).
A autora selecionou com excelência as palavras para
direcionar a seu público, sem perder a essência da história.
Colhendo a atmosfera dos contos de fadas, sua obra já começa
de uma maneira bem criativa.
Esta história inicia-se num tempo longínquo, em
terras muito distantes, cobertas de bosques e
lambidas pelo mar, onde viviam, combatiam e muitas
vezes morriam bravos cavaleiros, ferozes gigantes e
terríveis dragões (CIMATORIBUS, 2008).
Há que se observar as transformações da narrativa
não apenas pelo discurso verbal, mas também pelas imagens.
De toda maneira, essa operação tradutora engendra
transformações no âmbito do imaginário. Com Jean-Jacques
Wunenburger (2007) e Nelly Novaes Coelho (2000),
observaremos como foi o processo de tradução intersemiótica
do texto, por meio de uma releitura da narrativa antiga para a
literatura infanto-juvenil.
A obra O Imaginário, do filósofo Jean-Jacques
Wunenburger, mostra que este termo comporta um vasto
leque de expressões, como fantasia, devaneio, sonho, mito,
romance, ficção, etc.; abarcando conteúdos simbólicos tanto
de um homem, como de uma cultura.
Denomina-se imaginário a um conjunto de produções
mentais ou materializadas nas obras, por meio de imagens
visuais, verbais, sonoras, gestuais. Wunenburger ressalta que
só há imaginário quando:
[...] um conjunto de imagens e de narrativas forma
uma totalidade mais ou menos coerente, que produz
um sentido diverso do local ou momentâneo. O
imaginário faz parte do que se denominará holístico
(totalidade) e não do atomístico (elemento)
(WUNENBURGER, 2003, pp. 11-12)
408 Tristão e Isolda...
Seu estudo deve ser compreendido como um conjunto
de representações complexas, levando em conta sua dinâmica
criadora, a carga semântica, sua eficácia prática e a participação
na vida individual e coletiva.
Há dois principais conceitos no imaginário, um mais
restrito, que é entendido como um tecido de imagens cujas
propriedades criadoras referem-se à imaginação; e o outro mais
amplo, que organiza os agrupamentos sistêmicos de imagens,
que permite inovações, transformações e recriações. O imaginário
tem um poder figurativo que ultrapassa os limites do mundo
sensível, produzindo ilusões ou erros, mas pode ser uma fonte
reveladora para a compreensão de fenômenos humanos; já a
imaginação é uma forma de expressão da liberdade humana, por
meio de suas representações mentais ou materializadas.
A obra de Alessandra Cimatoribus (2008) não perde a
essência da narrativa, aliás, agrega-se a esta versão a força do
lúdico, tão cara para despertar o imaginário infantil e para atrair a
atenção do receptor, como se observa na imagem a seguir.

Fonte: Cimatoriburs, 2008.


Arte, Cultura e Imaginário 409
Wunenburger esclarece que o imaginário permite-nos
pensar também com o lúdico. Ele age em função da libertação
do agora “[...] permite-nos em primeiro lugar afastar-nos do
imediato, do real presente e percebido, sem encerrar-nos nas
abstrações do pensamento”. (WUNENBURGER, 2003, p. 53)
O autor destaca três orientações: objeto estético-
lúdico, que representa o imaginário artístico, por intermédio
do jogo, divertimento e a arte; objeto cognitivo, que é o da
compreensão do leitor por meio da atividade intelectual e
linguística; e objeto instituinte prático, que representa o
conhecimento de vida, ou seja, a visão de mundo do leitor,
para assim este conseguir fazer uma interpretação do
conteúdo.
Ademais, em outra passagem da obra, o diálogo da
palavra com a imagem potencializa o encanto. Isolda é
retratada com incríveis cabelos longos e, em cima dos fios
dourados, encontra-se Tristão ferido, e a princesa, com sua
ervas e unguentos, curando-o.
Foi uma princesa quem o salvou. Isolda de seu
nome. Tinha longos cabelos dourados e, tal como
a sua mãe, a rainha da Irlanda, conhecia os
segredos das ervas. Assim foi capaz de trazer à
vida o forasteiro, que ela acreditava ter sido ferido
por piratas (CIMATORIBUS, 2008).
Esta versão traz uma leveza ao tratar da temática do
amor e da morte, acenando para um sentimento de que seria
possível viver um amor como o dos amantes.
[...] Não há ser humano que não se tenha deixado
levar, mesmo que por instantes, pela fantasia de
ser Isolda ou ser Tristão, pela fantasia de viver
um grande amor, uma paixão sem limites, porque
a paixão na lenda é vida, é luz e calor, é o sonho
que se transforma em realidade para além do
princípio da morte, que se eterniza na roseira e
na vinha que se entrelaçam definitivamente,
indefinidamente em direção ao paraíso [...]
(BARROS, 1996, p. 149).
410 Tristão e Isolda...
Em Literatura Infantil – teoria, análise, didática, Nelly
Novaes Coelho ressalta, de maneira ampla, a importância da
literatura infantil e juvenil, mostrando suas possíveis
abordagens, leituras e análises.
A literatura infantil é, antes de tudo, literatura; ou
melhor, é arte: fenômeno de criatividade que
representa o mundo, o homem, a vida, através da
palavra, o imaginário e o real, os ideais e sua
possível/impossível realização[...] (COELHO,
2000, p. 27).
A natureza da literatura, desde sua origem, sempre
foi atuar sobre as mentes humanas, dando a oportunidade de
ampliar e enriquecer a experiência de vida do leitor. Com a
literatura infantil, não é diferente, o que a singulariza são as
diferenças determinadas pela natureza do seu leitor/receptor:
a criança.
Para Coelho, existe uma adequação que se mostra
importante para a faixa etária do leitor e de acordo com seu
estágio psicológico de desenvolvimento. A autora cita a
primeira infância (dos 15/17 meses aos 3 anos) – fase em que
a criança começa a ter o reconhecimento da realidade; a
segunda infância (a partir dos 2/3 anos) – quando a criança
começa a desenvolver a percepção do próprio ser por meio
dos valores vitais e sensoriais; o leitor iniciante (a partir dos
6/7 anos – momento em que começa a ser alfabetizada, com
evolução da aprendizagem e da leitura; o leitor em processo
(a partir dos 8/9 anos) – fase em que ela já domina a leitura,
momento em que esta aflora sua curiosidade; o leitor fluente
(a partir dos 10/11 anos) – etapa em que consegue fazer uma
reflexão sobre a leitura, sua capacidade de concentração
aumenta, estimulando, assim, sua percepção de mundo, sua
inteligência, pensamento formal e reflexivo começam a se
potencializar; o leitor crítico (a partir dos 12/13 anos) – fase
em que já tem domínio da leitura e da escrita, mostrando
capacidade de reflexão, atingindo o pensamento crítico e
reflexivo.
A tradução intersemiótica, de Alessandra Cimatoribus
(2008) consegue encantar leitores em todas as idades, por meio
Arte, Cultura e Imaginário 411

das cores e imagens, até mesmo pelo material do livro com


capa dura e folhas de um material mais resistente. A conjunção
das imagens com a palavra dá força para a imaginação, levando
os pequenos e grandes leitores a espelharem-se, de alguma
maneira, em seus heróis, sendo Tristão o bravo cavaleiro, que
já travou diversas batalhas, e Isolda, a princesa com dons
mágicos, que ganhou o coração de seu amado.
Existem características estilísticas e estruturais que
sustentam a recriação da narrativa primordial em tradução
para o público infanto-juvenil. Conseguimos notar, no livro
de Alessandra Cimatoribus, a leveza necessária para a lenda
de Tristão e Isolda, para direcionar-se ao público destinado,
que no caso é a criança. São características interessantes dessa
tradução criativa:
• a efabulação inicia-se no motivo central da história, os
acontecimentos decorrem de maneira concisa, como se vê
na narração da luta de Tristão com Morholt.
Seguiu-se um duelo feroz. Os escudos foram
despedaçado-dos a golpes de espada. Da espada
de Tristão soltou-se uma lasca, de forma tão
violenta que penetrou no crânio de Morolt. O
gigante tombou, já morto. Os jovens da Cornualha
estavam salvos! Houve festa em todo o reino
(CIMATORIBUS, 2008).
• o motivo da efabulação, geralmente, resulta nas necessidades
básicas, sendo retratado por situações de trabalho que visam
à sobrevivência do personagem; o sexo, que são as provações
a que o herói se submete para poder casar com a princesa; e a
vontade de poder, que, em determinados momentos, vem da
exploração do homem, o personagem escapa ou vence quem
o quis explorar. Essa ideia fica bem óbvia na passagem em
que os amantes fogem da fogueira e encontram refúgio na
floresta, “Durante dois anos sobreviveram alimentando-se de
bagas e animais selvagens que Tristão caçava, mas o seu
principal sustento era o amor que sentiam um pelo outro.”
(CIMATORIBUS, 2008).
412 Tristão e Isolda...
• o tempo é indeterminado, em um mundo voltado para a
magia, não se tem uma noção de evolução temporal, por isso,
na maioria das vezes, a narrativa é expressa pelo pretérito
imperfeito, como: “era uma vez”, “havia outrora”, “um
homem ia de viagem”, “certo dia”... Por este motivo, a obra
de Cimatoribus tem como princípio estruturador da narrativa
o gênero conto de fadas, “Esta história inicia-se num tempo
longínquo, em terras muito distantes.” (CIMATORIBUS,
2008), de uma maneira suave e sucinta, para não perder a
essência narrativa.
• o ato de contar, a efabulação vem pela voz do contador de
histórias, que serve como mediador da narrativa. O uso da
terceira pessoa traz uma riqueza de detalhes.
• a forma literária é a do conto, pois o narrador tem como
objetivo apresentar os fragmentos e situações de vida,
pertencentes à história. A cada diálogo apresentado, o narrador
evoca os pensamentos e desejos do personagem, inclusive o
de Marc, quando Isolda chega em sua corte, “Ao ver Isolda, o
rei Marco pensou que o próprio sol tinha entrado dentro do
castelo. Poucos dias depois, estavam casados. “
(CIMATORIBUS, 2008)
• a narrativa faz-se por meio de representação simbólica ou
metafórica, trazendo a essência do real que está sendo exposto,
o que torna claro na última citação, que Marc compara Isolda
ao próprio sol, por sua beleza e seus longos cabelos loiros.
• as personagens são consideradas tipos, pois são seres que
desempenham um papel no contexto social em que estão
inseridos, como: reis, filósofos, princesas, guerreiros, etc; ou
até mesmo por suas qualidades: generoso, mentiroso, traidor,
caridoso, etc.. No caso da narrativa estudada, encontramos
reis, rainhas, cavaleiros, anões e todos eles com suas respectivas
qualidades.
• existe uma convivência muito natural entre o real e o
imaginário, sendo a narrativa marcada pela presença do
maravilhoso. Isolda é conhecida por seus dons mágicos com
as ervas, que salva Tristão da morte em duas ocasiões; o anão
Froncin também é reconhecido pelo seu dom da vidência; e
Arte, Cultura e Imaginário 413
Tristão, como um grande guerreiro, consegue matar um
dragão.
• o espaço conta muito na narrativa, como por exemplo o
clima, o contexto, o meio em que o personagem está inserido;
tudo influencia no desenrolar-se da narrativa. O enredo da
história se passa na Cornualha medieval, em que grandes
acontecimentos aconteciam no mar, com o contexto social
em que os Reis tinham todo o poder, inclusive de escolher
quem continuava vivo ou não.
• nas narrativas primordiais, destaca-se a intenção de
exemplaridade, pelo comportamento individual, social, ético,
político, etc. Observamos a questão da exemplaridade na
maioria dos personagens, por exemplo Tristão era um grande
cavaleiro, dedicado à vassalagem ao seu rei e muito
reconhecido por lutar por seu povo em nome de Marc; o Rei
era famoso por sua generosidade; e Isolda como a rainha mais
amada e benevolente, tanto que, quando Marc condenou os
amantes à morte na fogueira, o povo implorou misericórdia
ao casal: “A multidão gemia, pedia perdão para a amada rainha,
pedia perdão para o valente cavaleiro que derrotará Morolt e
salvara os jovens da Cornualha.” (CIMATORIBUS, 2008).
Como podemos observar, Alessandra Cimatoribus
utiliza o gênero maravilhoso de uma maneira criativa,
conseguindo traduzir o mito do amor-paixão com sutileza
para criança, utilizando de um rico imaginário para aguçar a
leitura deste público.
Como resultado da discussão, foi analisado o
fenômeno de deslocamento de narrativas que nascem na
tradição oral e migram para outros códigos e linguagens. A
narrativa, por meio do amor-paixão, foi uma das células
dramáticas de grande reverberação estética. Maria Nazareth
Alvim de Barros aborda a linha celta da lenda, mostrando,
por meio desta cultura, de onde migrou a narrativa, que jamais
se atrelaria paixão à morte, porque, para os celtas, paixão
significa vida (BARROS, 1996, p. 159). Em contrapartida,
Denis de Rougemont fixa sua opinião na cultura do casamento
ocidental, associando a relação dos amantes apenas com a
414 Tristão e Isolda...
tensão entre a paixão e o casamento, associando ao ato de
amor-paixão a ideia de adultério.
Entre inúmeros deslocamentos desta narrativa antiga,
analisou-se o processo intersemiótico utilizado por Alessandra
Cimatoribus para o público infanto-juvenil, revelando sua
capacidade artística em reinventar a narrativa preocupando-se
com os aspectos estéticos e com a recepção da criança, conforme
pontua Nelly Novaes Coelho.
Cimatoribus desenvolveu, com maestria, todo
processo de diálogo palavra-imagem em cada uma de suas
ilustrações. Por meio da tradução intersemiótica de grande
qualidade estética, conseguiu transportar a narrativa de Tristão
e Isolda para a literatura infanto-juvenil, recriando uma história
com traições, violência e conspirações para uma leitura leve,
muito bem trabalhada pelo elemento lúdico e sem perder o
espírito da obra. Considera-se que, entre as narrativas que
engendram essa imagem do amor eterno e infinito, Tristão e
Isolda desponta como a mais revisitada. O contato da criança
e do jovem com esse tipo de material imaginário em uma
versão intersemioticamente traduzida é capaz de providenciar
enriquecimento cultural e artístico. Avessa à noção de
fidelidade, essa nova tradução, encarnada em nova linguagem,
cria também novas percepções e novas realidades.

Referências bibliográficas

BARROS, Maria Nazareth Alvim de. Tristão e Isolda: o mito


da paixão. São Paulo: Mercúrio, 1996.
BÉDIER, Joseph. O Romance de Tristão e Isolda. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2012.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: teoria, análise,
didática. Universidade de Indiana: Moderna, 2000.
CIMATORIBUS, Alessandra. Tristão e Isolda e o filtro de amor
que os uniu. Lisboa: Livros Horizonte, 2008.
Arte, Cultura e Imaginário 415

PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Editora


Perspectiva, 2003.
ROUGEMONT, Denis de. História do Amor do Ocidente.
2.ed. São Paulo: Ediouro, 2003.
WUNEMBURGER, J. O Imaginário. São Paulo: Edições
Loyola, 2007.
.
O imaginário na obra de Sophia de Mello
Breyner Andresen e a formação do leitor
Gorete Marcolino Pereira1

Este capítulo discute questões relacionadas à obra


produzida por Sophia de Mello Breyner Andresen,
pretendendo analisar o modo como os textos da autora podem
ser compreendidos do ponto de vista do imaginário, bem
como seu potencial de contribuição para a formação do leitor.
Um relevante estudo sobre educação do mundo, o
Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa),
em 2018, apontou que o Brasil tem baixa proficiência em
leitura, situando-se, no ranking sul-americano, com 413
pontos, ao lado da Colômbia (412). Em último lugar, estão
Argentina (402) e Peru (401). Esse cenário abrange, por
exemplo, situações de estudantes incapazes de compreender
textos. Se comparado à média dos países da Organização para
a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o
Brasil apresenta resultados sofríveis: OCDE (487), Brasil (413).
A faixa do Brasil no ranking é 55º e 59º. Realizado a cada três
anos, o Pisa tem o objetivo de mensurar até que ponto os
jovens de 15 anos adquiriram conhecimentos e habilidades
essenciais para a vida social e econômica. Cerca de 50% dos
brasileiros não atingiram o mínimo de proficiência que todos
os jovens devem adquirir até o final do ensino médio. Nesse
sentido, o Pisa (2018) revela que os estudantes brasileiros estão
dois anos e meio abaixo dos países da OCDE em relação ao
nível de proficiência em leitura. As escolas particulares e as
federais estão acima da média da OCDE, sendo a pontuação
de 510 e 503, respectivamente, contra 487 pontos. Já as escolas
públicas estaduais (404) e municipais (330) estão aquém da
média nacional (413). O desempenho médio das regiões Sul

1
Graduada em Letras pela Universidade Santo Amaro em 2020, orientada
pela Prof. Dra. Maria Auxiliadora Fontana Baseio. O texto apresentado é
de pesquisa resultante de TCC, com adaptações.
418 O imaginário na obra de Sophia de M. B. Andresen...

(432) e Sudeste (424) é maior do que o índice nacional. A


região Centro-Oeste (425), embora tenha um ponto a mais
que a Sudeste, tem média equivalente à nacional devido à
estimativa de erro. As regiões Norte (392) e Nordeste (389)
são piores que a média Brasil.
Quando nos preocupamos com o insucesso dos
nossos alunos, nos questionamos sobre as práticas e
metodologias aplicadas, sobre os materiais didáticos, e fazemos
uma reflexão com o intuito de melhorar. Sabemos que muitos
são os fatores que interferem para que se tenha os resultados
relacionados acima. O principal deles é que o contato das
crianças com a literatura, na maioria das vezes, é somente na
escola e, infelizmente, os livros de literatura direcionados a
elas, quando usados pelos professores, em geral, não são bem
trabalhados, tornando a percepção da leitura como algo
enfadonho.
Há ainda um outro agravante: com os avanços
tecnológicos, muitos estudantes preferem passar a maior parte
do tempo no mundo virtual, em redes sociais, sobretudo,
deixando os livros um pouco esquecidos. É fundamental
oferecermos, como educadores, possibilidades de mudança
cultural para que nossos alunos redescubram a leitura. Este é
um trabalho que tanto cabe aos pais, educadores e professores,
como a toda a sociedade.
A Leitura que está morrendo é a da grande
literatura, o produto dos mais ricos momentos
de imaginação e criatividade humana. Uma certa
melancolia é inevitável diante deste quadro,
sobretudo quando se considera o poder da
literatura de tomar a vida mais significativa e
possibilitar o acesso a uma dimensão mais
profunda da existência na qual podemos partilhar,
através do Sublime e do Belo, da unidade da
natureza humana (BLOOM, 2001, p. 65)
A grande literatura pode ser compreendida como um
bem cultural e simbólico, tal como assinala Antonio Candido
(2011), uma organização estética da palavra que concilia forma
Arte, Cultura e Imaginário 419
e conteúdo, sendo constituída como um direito humano, pois
assim como bens materiais suprem necessidades físicas, bens
simbólicos suprem necessidades emocionais e espirituais.
Assim, torna-se relevante discutir a força da arte
literária e do imaginário - sem o qual ela não se tece -, para
potencializar o encantamento e a formação interior da criança
e do jovem. Nesse sentido, cabe a literatura de qualidade
produzida em qualquer tempo ou lugar. É necessário estimular
o desejo e também o compromisso individual do querer ler, o
interesse, a expectativa e prazer, associando estratégias que
possam motivar diretamente o desenvolvimento das
competências cognitivas e afetivas em ambientes de
verdadeiras aprendizagens de leitura.
Diante das dificuldades apresentadas, podemos
confirmar que a aquisição de hábitos e competências de leitura
é cada vez mais importante para estimular a comunicação, a
criatividade, a imaginação, além de favorecer a obtenção de
conhecimentos sobre diversas culturas e reconhecimento de
valores. A literatura possibilita a formação de cidadãos capazes
de entender a realidade social, atuar sobre ela e transformá-
la. Conforme Nelly Novaes:
Desde as origens, a literatura aparece ligada a essa
função essencial: atuar sobre as mentes, nas quais se
decidem as vontades ou as ações; e sobre os espíritos,
nos quais se expandem as emoções, paixões, desejos,
sentimentos de toda ordem […]. No encontro com
a literatura (ou com a arte em geral) os homens têm
a oportunidade de ampliar, transformar ou
enriquecer sua própria experiência de vida, em um
grau de intensidade não igualada por nenhuma outra
atividade (COELHO, 2000, p. 29)
A literatura opera em todos os âmbitos: no pensar,
no sentir e no agir. Segundo Paulo Freire (1989), a leitura
vincula linguagem e realidade. É na infância que a criança
desenvolve a imaginação, emoções e sentimentos de forma
prazerosa e significativa, é quando inicia sua trajetória leitora.
Conforme Bachelard (1994, p. 134), é na infância que os
nossos ritmos são criadores e formadores’’.
420 O imaginário na obra de Sophia de M. B. Andresen...
Abramovich (1997) afirma que, quando as crianças
ouvem ou leem histórias, passam a visualizar, de forma mais
clara, sentimentos que têm em relação ao mundo. As histórias
trabalham problemas existenciais típicos da infância, como
medos, sentimentos de inveja e de carinho, curiosidade, dor,
perda, abrindo caminhos interiores para compreensão de si,
do outro e do mundo. O imaginário que a alimenta atrela-se à
cultura, à história e à sociedade em que se insere. A arte da
palavra, nesse sentido, engendra um imaginário capaz de trazer
profundo conhecimento para seus leitores.
Vigotsky reitera a importância do diálogo da criança
com o trabalho criador.
A importância do trabalho criador (imaginativo)
se verifica no desenvolvimento da criatividade
infantil, na evolução e no amadurecimento da
criança, pois no plano imaginário podem ser
observados os desenvolvimentos cognitivos, pelo
raciocínio estimulado, assim como a memória
além de uma amplitude nas noções de valores
morais (VIGOTSKY, 1996, p. 18).
O universo infantil é repleto de magia e o importante
é que as crianças conheçam variados tipos de literatura, pois
é, por meio desse conhecimento, que elas aprenderão a
adquirir gosto e poderão escolher a leitura que mais lhes
agrada. Assim, quanto mais intensa a apropriação, maiores as
condições de desenvolvimento pleno da imaginação. Segundo
Vigotsky (1996), a imaginação é a base para toda atividade
criativa, manifestando-se, assim, em todos os aspectos da vida
cultural.
As atividades criativas ajudam a criança a ressignificar
os acontecimentos, fazendo com que ela amadureça e consiga
encontrar o seu papel social nas relações com o mundo real.
É justamente na infância, que se constitui a etapa inicial de
compreensão do mundo e isso se faz por meio das atividades
criativas. A atividade imaginativa faz parte do desenvolvimento
da inteligência e a imaginação serve como função psicológica,
estabelecendo relações de ordem conceitual e comportamental
entre conteúdos representativos e as formas de organização
Arte, Cultura e Imaginário 421
do mundo. A infância, como uma fase disposta ao lúdico, é
um momento em que as funções cerebrais estão em constante
desenvolvimento, é comum a capacidade imaginativa ser
amplamente explorada e ser utilizada pelas crianças como um
auxílio para a compreensão do mundo.
A fase da infância é a época na qual as vivências e as
percepções do mundo, a partir do olhar, do tocar, do saborear,
do sentir e do agir, propiciam as descobertas e a formação de
várias capacidades, desde físicas até cognitivas e emocionais.
Gaston Bachelard (1996) relaciona o imaginário e a
construção do saber nos períodos iniciais da vida, possibilitando
momentos de constantes descobertas, construindo um
caminho a ser guiado pela imaginação. O autor propõe, em
suas obras, que a criança viva experiências que possibilitem
uma relação do real com o imaginário, em um diálogo
transformador na busca do conhecer, do aprender, do criar,
experimentar, do brincar e o imaginar como fontes de
aprendizagem e não somente como um processo de formação,
que se preocupa apenas com o desenvolvimento cognitivo,
mas utiliza-se desse desenvolvimento para expressão de si e
para construção do mundo.
Em seu livro A poética do devaneio, chama atenção para
as imagens da infância, que são levadas para o resto da vida e
ativam os próprios sonhos capazes de movimentar o
imaginário, iluminar as lembranças em sua existência poética
e revitalizar o ser criança. O dom de sonhar, que surge desde
o início da vida, orienta a criança para a invenção, a arte, o
desenho, a pintura, entre outras formas artísticas, e conduz a
um plano da sensibilidade, o que faz da imaginação um exercício de
importância vital na formação, sendo indispensável à produção do
conhecimento.
É nesse período da vida que a criança pode ser
estimulada em busca de novas descobertas e desenvolve
aspectos primordiais da imaginação e é também pela
imaginação que ela constitui autonomia e provoca um fluxo
de imagens novas.
Para além da infância, há também caminhos para
a imaginação que liberta e impulsiona o homem para uma
busca de si mesmo. Como assinala o autor:
422 O imaginário na obra de Sophia de M. B. Andresen...
Uma infância potencial habita em nós. Quando
vamos reencontrá-la nos nossos devaneios, mais
ainda que na sua realidade, nós a revivemos em
suas possibilidades. Sonhamos tudo o que ela
poderia ter sido, sonhamos no limite da história e
da lenda, [...]. Essa infância, que aliás, permanece
como uma simpatia de abertura para a vida,
permite-nos compreender e amar as crianças
como se fôssemos os seus iguais numa vida
primeira (BACHELARD, 1996, p. 85).
Para Bachelard (2001, p. 3), “a função do irracional é
psiquicamente tão útil quanto a função do real’’. O imaginário
é a capacidade elementar de evocar uma imagem, de
representar algo. O filósofo que se dedicou ao estudo da
simbologia dos elementos primordiais do imaginário, aborda
os quatro elementos: a água, o ar, a terra e fogo. O imaginário,
para ele, constitui-se por sermos arrebatados na experiência
da vida por matérias fundamentais, por elementos imaginários,
que têm leis ideais tão seguras como as leis experimentais, em
que a imagem vai ao real e não parte dele e a imaginação
poética nos faz criar aquilo que vemos. Afirma o filósofo: “A
imaginação é capaz de fazer engendrar aquilo que se pode
ver, porque faz crer no que vê e inventa uma visão, uma
previsão’’ (BACHELARD, 1996, p. 14).
Considerando a importância dos estudos do
imaginário para a tessitura dos textos literários e o impacto
que essa rede de imagens provoca no leitor, seja criança, seja
jovem ou adulto, recortamos nosso estudo na abordagem de
um dos elementos trabalhados por Bachelard – a água –, uma
vez que se faz recorrente nos textos da escritora portuguesa
em análise. Evidentemente há muitos outros elementos a
serem explorados em sua obra, entretanto em busca de alguma
qualidade de aprofundamento e verticalização interpretativa,
elegemos este arquétipo.
Gaston Bachelard (1998) evoca imagens relevantes do
elemento água, sobretudo na obra A água e os Sonhos,
dedicando-se a uma abordagem filosófica que busca a raiz
das forças imaginantes e propõe a conciliação entre real e
imaginário. Seu aporte teórico torna-se frutífero para a leitura
Arte, Cultura e Imaginário 423
analítica das obras de Sophia, uma vez que nos dá uma
consciência investigativa e reflexiva das imagens propostas e
nos permite compreender sua complexidade e também a
relação dos leitores com esses elementos que habitam o
imaginário.
A literatura é sempre um tema atual na educação,
pois é considerada a base para a formação humana. São dois
fatores principais que permeiam esta ideia: primeiro, o
favorecimento no desenvolvimento da linguagem,
especialmente na sua forma simbólica, permitindo o cultivo
da imaginação e da criatividade; segundo, a ampliação do
universo de conhecimento da criança e do jovem. A literatura
proporciona desenvolvimento emocional, social e cognitivo
indiscutíveis.

O imaginário em Sophia de Mello Breyner


Andresen: a presença da água como elemento
simbólico

Sophia de Mello Breyner Andresen é uma autora


portuguesa que tem um histórico de mais de 60 anos de
contribuição em grandes produções literárias. Nasceu no Porto
no dia 06 de novembro de 1919 e faleceu em 2 de julho de
2004. Logo cedo, foi introduzida no mundo literário por
influência de sua mãe e foi amplamente reconhecida por sua
competência literária.
A maior parte dos estudos científicos sobre suas obras
está concentrada em sua terra natal, Portugal. Em terras
brasileiras, notamos que não há muito material disponível
sobre a autora, mesmo que tenhamos observado um
crescimento expressivo em apresentação de trabalhos
acadêmicos com suas produções literárias.
São muitos os motivos para conhecer mais sobre as
obras de Sophia. Em 2019, houve a celebração do centenário
de nascimento dessa que é uma das mais importantes poetisas
portuguesas do século XX e foi também a primeira mulher a
receber o Prêmio Camões em 1999. Esse é o principal prêmio
424 O imaginário na obra de Sophia de M. B. Andresen...
literário dos países de Língua portuguesa. Recebeu o “Prêmio
Rainha Sofia de Poesia Ibero-americana”, no ano de 2003, e
o “Prêmio da Crítica” pelo Conjunto da Obra, oferecido à
autora na década de oitenta pelo Centro Português da
Associação Internacional de Críticos Literários, entre outras
premiações de grande relevância, tornando-se a mais destacada
poeta portuguesa contemporânea.
Sophia é dona de uma vasta obra, que inclui poesia,
contos, peças de teatro e histórias infantis. Ela possui uma
característica interessante, com frases simples que se afiguram
previsíveis quando o público-alvo são as crianças, mas
altamente arrojadas quando o público-alvo são os adultos.
A autora iniciou seu percurso no universo da Literatura
Infantil inventando histórias para seus filhos quando, certa
vez, tiveram sarampo. Lê-se num depoimento publicado em
1986, em Entrevista com Eduardo Prado Coelho e Lúcia
Garcia Marques para a Revista ICALP, publicada no site da
Biblioteca Nacional de Portugal:
Os meus contos infantis surgiram quando os meus
filhos tiveram sarampo e tinham que estar quietos.
Eu tinha que lhes contar histórias e comecei a
ficar muito irritada com as histórias que lia.
Primeiro com a linguagem sentimental, com a
linguagem « ta-te-bi-ta-te», etc. Então comecei a
contar histórias a partir de factos e lugares da
minha infância (sobretudo lugares). Por isso a
primeira que apareceu se chama A Menina do Mar.
Era uma história que a minha mãe me tinha
contado quando eu era pequena mas que era uma
história incompleta – ela tinha-me dito só que
havia uma menina muito pequenina que vivia nas
rochas e como a coisa que eu mais adorava na
vida era tomar banho de mar, essa menina tornou-
se para mim o símbolo da felicidade máxima,
porque vivia no mar, com as algas, com os peixes...
Então eu comecei a contar a história a partir disso.
Depois os meus filhos ajudavam; primeiro porque
não me deixavam parar e segundo porque
perguntavam: «E o peixe o que é que fazia? E o
caranguejo? Essa história foi contada oralmente
Arte, Cultura e Imaginário 425
numa tarde. Quando a escrevi, tentei escrevê-la
como a tinha contado sem cair em nenhuma
espécie de literatura nem de «peso»... As outras
histórias, algumas foram meias contadas, meias
escritas... Eles influenciavam a lógica da própria
história. E depois, como eu estava com crianças,
eu própria era influenciada, por exemplo nisto:
nunca usar palavras abstratas nem construções
complicadas. A atenção dos outros guia-nos
sempre. [...] Gosto de começar os livros para
crianças todos da mesma maneira: Era uma vez...
e de regressar a um certo número de marcos, de
sítios. [...] as palavras têm que ser exatamente as
palavras que conquistámos, quer dizer, não são
só as palavras que sabemos: são as palavras que
viveram e viverão conosco. [...] eu sou muito
repetitiva por natureza (ANDRESEN, 1986)
A Menina do Mar é uma obra que motiva leitura e traz
uma reflexão muito importante: a saudade. Os sentimentos
transbordam no leitor, dimensionando a amizade entre um
menino que vive numa casa na praia e A Menina do Mar, uma
criança capaz de respirar na água e no ar, cujos amigos são um
polvo, um peixe e um caranguejo. Os diálogos entre os dois são
inocentes e cheios de poesia. É uma entre as várias produções
literárias da autora que tematizam o imaginário da água.
A simbologia da água é traduzida por Sophia tendo o
mar como um dos mais belos motivos. Os portugueses têm
uma relação muito singular com o mar e a autora busca sempre
uma poesia imanente, pelo real vivido, presenteando-nos com
narrativas e poemas que se revelam em grandes descobertas.
O eu-lírico dos poemas ou o narrador da prosa, de fato, dispõe-
se a olhar com amplitude o significado do mar e transfere às
palavras poéticas à sua também imensidão.
A paixão da autora pelo mar trouxe-lhe grande
inspiração para desenvolver o imaginário com o elemento
água. Sophia teve uma infância passada entre o Porto e a praia
da Granja e relata suas vivências em ambientes naturais, como
o mar, a praia, a casa, o jardim e a floresta, ambientes que
contam suas memórias, tornando-se um caminho de grande
426 O imaginário na obra de Sophia de M. B. Andresen...
inspiração e valor simbólico para a autora, autoafirmando suas
lembranças de uma infância mergulhada em grandes emoções.
A escritora costuma contar a sua relação com a água,
contemplando o mar em toda a sua imensidão, denotando a
profundidade da alma. Esse valor atribuído ao elemento
aquático, marítimo, por vezes, é explorado por meio do tato,
mas principalmente pela visão - a visão do mar, pincelado
pela luz do sol, movimentado pelo vento e acompanhando
pela areia.
Mesmo quando a autora quer relatar, em suas obras,
os espaços fechados, normalmente relaciona a casa que se
localiza precisamente em frente ao mar enorme, determinando
um ponto de observação do oceano, além de possuir, em si
mesma, elementos do mar (um jardim de areia e flores
marinhas). A casa onírica de Sophia precisa estar ligada ao
mar, pois é pelo contato (visual, auditivo ou tátil) que o eu-
lírico se encontra e se constitui como sujeito.
É notória a representatividade dos “mares”, oceanos”
e seres viventes do mar nas obras da autora. A Menina do Mar
(1958) é um dos livros de Sophia de Mello Breyner Andresen
para crianças mais conhecidos e também foi a primeira obra
que a celebrizou, sendo extremamente relevante no mundo
da Literatura infantil e juvenil. A obra relacionada caracteriza-
se pela simplicidade e pelo tom lírico, poético, com uma
linguagem clara e límpida, como a água que cativa as crianças.
Nas obras infantis, Sophia utiliza-se, em geral, de
enumerações, estruturas repetitivas e fáceis para memorização.
As ilustrações que encantam a recepção infantil, muitas vezes,
são compostas a lápis de cor e feitas a traços finos, técnica
usada por se afigurar muito próxima da que o leitor
habitualmente utiliza e dá simultaneamente conta dos seus
espaços ou cenários centrais.
A Menina do Mar desempenha importante papel ao
nível da captação ou da atração da atenção do leitor que, por
via do contato com esse tipo de composição visual, vai
cimentando a sua cultura estética. Lê-se um trecho do livro
A Menina do Mar:
Trago-te aqui uma flor da terra – disse; chama-se
uma rosa. É linda, é linda – disse a Menina do
Arte, Cultura e Imaginário 427
Mar, dando palmas de alegria e correndo e
saltando em roda da rosa. Respira o seu cheiro
para veres como é perfumada. – A Menina pôs a
sua cabeça dentro do cálice da rosa e respirou
longamente depois levantou a cabeça e disse
suspirando: É um perfume maravilhoso
(ANDRESEN, 1958, p. 34)
A escritora projeta sobre as crianças o desejo de fazer
um mergulho no azul do mar que fascina, ensina o amor e a
saudade, como grandes afetos dos seres que veem no mar
uma pátria sonhada.
Além de Menina do mar, muitas de suas obras
apresentam títulos que remetem ao universo marítimo, como
o Dia do Mar, Mar Novo, Navegações, Ilhas, Mar, Histórias da terra
e do mar. O motivo do mar reitera-se, também, em poemas
inseridos nos seus vários livros, como “Mar”, em Poesia (1944);
“Praia”, em Coral (1950); “Praia” em No Tempo dividido (1954);
“Inicial”, em Dual (1972); “Açores”, em O Nome das Coisas
(1977), entre outros.
Escreve poeticamente a autora no texto “Atlântico”,
mais um em que figura o mar:
Mar
Metade da minha alma é feita de maresia.
(ANDRESEN, 2015, p. 64)
Nota-se uma relação muito íntima com esse elemento
simbólico que ocupa lugar de relevância em seu imaginário
pessoal. Essa obsessão pelas águas do mar, com suas belezas
e perigos, traduz, em âmbito mais amplo, o próprio
movimento da vida, como se lê no poema a seguir:
No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.
Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
428 O imaginário na obra de Sophia de M. B. Andresen...
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.
Sobre a areia o tempo pois a
Leve como um lenço.
Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um mostro em si suspenso [...]
(ANDRESEN, 2015, p. 96)
Segundo Bachelard (1998), há uma semelhança entre
seres humanos e a água, pois ambos são seres de vertigem,
que morrem a cada minuto e que estão em constante mudança.
Na maioria das vezes, a água é associada aos movimentos
vitais, entre os quais o nascimento, a maternidade, sendo
considerada o ponto de partida para o surgimento da vida.
Acrescenta o autor que a água representa o ideal
alquímico, a imaginação do concreto sublimado e a
materialização do imaginário. Trata-se de um elemento da
natureza e de uma das substâncias de maior atração para a
maioria das crianças, exercendo fascínio sobre elas. Sendo vista
como um elemento primário, proporciona sensações de
acolhimento, sensibilidade, afeto, tornando-se capaz de
produzir relaxamento e purificação. Desde as culturas antigas
às mais recentes, fala-se sobre o simbolismo da água, que,
para muitos povos, constitui uma forma substancial de
manifestação da origem da vida com valores e significados
simbólicos.
A água é vista como uma força da natureza e é
detentora de impulsos reais e imaginários, por isso acreditamos
que pode levar os leitores a uma relação íntima com as
representações literárias.
Para Gaston Bachelard (1998), a água é um dos
maiores e mais constantes símbolos maternos, mediador de
sonhos e imaginação. Trata-se de um elemento que aproxima
a criança, uma vez que, recriado, pela arte da palavra, remete
ao que pode ser prazeroso para as crianças, no contato com a
natureza. A grande maioria delas gosta da praia, de brincar na
água, de observar o movimento dos rios, os desenhos que a
água faz na areia, tomar banho nas poças de água.
Arte, Cultura e Imaginário 429
O referido autor faz, ainda, uma reflexão sobre a
necessidade da emoção imaginativa, para que a criança possa
viver, com as histórias, em contato com a arte, com alguma
aproximação com a natureza e desenvolva um olhar que
expresse as experiências por meio desse rio imaginário. Lê-se
um trecho do livro A água e os Sonhos:
As águas dos riachos são risonhas e encontram-
se nas mais variadas paisagens literárias. Para ele,
se o olhar das coisas envolver suavidade, essência
e profundidade, é o olhar da água. É preciso que
o olho seja belo para compreender o belo […]
Nossos olhos é a água que sonha (BACHELARD,
1998, p. 31).
Neste livro, Bachelard sugere o olhar que cultive o
belo artístico, que faculte o imaginar, uma capacidade de nos
libertar das imagens primeiras, ou seja, de “mudar de imagens”
– nesse sentido, imaginar tem valor libertador. E afirma que
as imagens são vividas, experimentadas e re-imaginadas.
Deve-se, então, reconhecer que a imagem não tem seu
princípio nem sua força no elemento visual [...] deve-se
integrar à imagem componentes que não se veem,
componentes cuja natureza não é visual. São
precisamente os componentes pelos quais se manifestará
a imaginação (BACHELARD, 1998, p. 125).
Tratando-se das obras de Sophia de Mello Breyner
Andresen, a linguagem poética abre portais para sonhar, uma
vez que, em seus vãos de silêncio, movimenta a emoção, fazendo
com que o processo imaginativo do leitor seja alcançado.
Nota-se que esse imaginário da água, que situa o mar
como seu principal motivo, expressa-se, também, nos textos
voltados para adultos. Lê-se um dos poemas da autora em
que pulsa o imaginário da água e sua paixão pelo mar:

POEMA

A minha vida é o mar o abril a rua


O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
430 O imaginário na obra de Sophia de M. B. Andresen...
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita

Não trago Deus em mim mas no mundo o


procuro
Sabendo que o real o mostrará

Não tenho explicações


Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento

A terra o sol o vento o mar


São a minha biografia e são meu rosto

Por isso não me peçam cartão de identidade


Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento

E a hora da minha morte aflora lentamente


Cada dia preparada
(ANDRESEN, 2015, p. 575)
O imaginário remete à potência da arte de inventar
mundos, o que contribui para a construção de novas paisagens
existenciais, de novas sensibilidades e modos de perceber a
realidade. Em Sophia, a figuração do mar entranha-se em sua
biografia. A autora carrega de sua infância essas imagens da
água, tendo esse elemento grande impacto em suas obras.
Para concluir, podemos afirmar que as obras de Sophia
evocam a natureza imaginária do leitor, abrindo caminho para
sonhos e possibilidades de vida e apresentam uma linguagem
estética aberta à vida dos sentimentos, à representação do
que há de mais profundo no humano, como lembranças,
temores, afetos, desejos e saudades. Esse despertar dos
sentimentos no leitor estimula o desenvolvimento do
pensamento e a formação dos valores estéticos.
O imaginário de Sophia apresenta um mundo de
sonhos e encantamentos, com imagens e símbolos, fazendo
Arte, Cultura e Imaginário 431
uma junção entre passado e presente. Suas obras possibilitam
exercitar a imaginação criadora, deixando fluir o simbolismo
que contribui para a construção de um sujeito leitor, tornando-
o mais sensível sobre as questões que o cercam. O leitor
compreende a vida pelo viés da fantasia, a partir da transfiguração
da realidade pela imaginação e produz significações entre ele e o
mundo em busca de liberdade.
O mar – figura recorrente em suas obras – aguça os
mais profundos sentimentos no leitor e aparece de muitas
maneiras. Pode ser uma paisagem plácida, sinônimo de pureza,
ou uma imagem tumultuada e perigosa. O imaginário dessas
águas cria um ambiente que encanta seu público, porque há
uma exaltação do que é belo, pelo simples sentido da beleza e
da fantasia. Ela projeta sobre as crianças, os jovens e os adultos
o desejo de mergulhar em suas obras à medida que cria um
ambiente de fluidez, envolvendo imagens que transitam entre
situações comuns do mundo externo e condições interiores
propiciadas pelo mundo poético.
Neste contexto, percebe-se que, pelo imaginário,
descortinam-se significações entre o eu e o mundo. Essa
construção interna cheia de significações equilibra o ser na
busca de suas emoções, aprendendo a lidar com elas ao
adentrar mundos imaginários, onde os pés não podem ir,
somente o pensamento galopando a fantasia.
Essa fantasia é extremamente necessária para a criança.
Segundo Vigotsky(1998), a imaginação, considerada função
superior, é fundamental e está associada com a experiência
da criança relacionada ao meio, sendo sua atividade criadora
vinculada com a riqueza dessa experiência e é com ela que o
homem constrói seus princípios e transforma o real.
Podemos concluir que a literatura de Sophia Breyner
é um desafiar-se no campo da linguagem e da imaginação e,
por consequência, da educação. Observamos a construção
de redes simbólicas de imagens imbricadas no tecido estético
de sua obra, o que favorece a formação do leitor.
O imaginário realiza-se pela capacidade elementar de
evocar imagens, de representar algo, como evocar
características profundas da alma. No que se refere ao universo
infantil, Sophia recria com as palavras o mundo imaginário
432 O imaginário na obra de Sophia de M. B. Andresen...
infantil, referindo-se ao que pode ser prazeroso para as
crianças, como os animais, que são humanizados; os alimentos;
as brincadeiras e, notadamente, as águas.
Como o imaginário infantil tem a capacidade de
configurar um mundo com imensas possibilidades, as crianças
sonham e se imaginam vivendo no fundo do mar e se
descobrem na relação com o outro, elaborando o seu ideal de
‘’ eu’’.
O leitor aproxima-se do texto acompanhando-o e
criando elos de significação em suas trajetórias de leitura,
identificando-se com sua história de vida em simultâneo com
a história da obra. O texto tem um universo próprio, uma
escrita que nos faz viajar em uma atmosfera mágica, fascinante,
sem cair na infantilização. É uma escrita inteira e pura, no
sentido de apresentar às crianças e jovens aquilo que são os
valores fundamentais da vida, fascinando-as sem as infantilizar.
Com muito vigor, esse elemento imaginário leva-nos
a conhecer uma misteriosa ligação com nosso ser mais íntimo,
provocando uma espécie de contemplação que desvela a
profundidade da alma.
A água é um elemento da natureza, muito recorrente
nos textos da autora e, nessa vertente, representa a imaginação
que liberta e impulsiona para uma busca de si mesmo,
permitindo com que o leitor sinta a vida em sua fluidez e
toda essa tessitura imaginária pode ajudá-la a fruir o texto. A
água como um elemento arquetípico opera em estruturas
profundas e complexas, evocando fluidez para transitar pelos
caminhos da vida e atingir a liberdade, trazendo sensações de
acolhimento, sensibilidade e afeto. A água, esse elemento da
natureza, é um mediador dos sonhos e da imaginação, e sua
presença pode levar os leitores a uma relação íntima com a
arte literária.
É muito importante o seu papel ao nível da captação
ou da atração da atenção do leitor que, por via do contato
com esse tipo de composição visual, vai cimentando a sua
cultura estética. Sophia proporciona, em suas obras, reflexões
sobre a necessidade da emoção imaginativa, para que a criança
possa conviver com as histórias e se manter em contato com
a arte e seus elementos imaginários, nascidos da transformação
Arte, Cultura e Imaginário 433
da natureza como representação, e possivelmente
desenvolvam um novo olhar que expresse as experiências por
meio do imaginário.
Sua linguagem poética proporciona sonhos por meio
da leitura e aguça a imaginação do leitor, uma vez que
movimenta a emoção, fazendo com que o processo
imaginativo do leitor seja alcançado.
O imaginário remete à potência da arte de inventar
mundos, o que contribui para a construção de novas paisagens
existenciais, de novas sensibilidades e modos de perceber a
realidade. As obras de Sophia evocam a natureza imaginária
do leitor, abrindo caminho para sonhos e possibilidades de
vida e apresentam uma linguagem humanista, relacionada à
vida dos sentimentos, à representação do que há de mais
profundo no humano, como lembranças, temores, afetos,
desejos e saudades.
O leitor compreende a vida pelo viés da fantasia, a
partir da transfiguração da realidade pela imaginação e
significações entre ele e o mundo em busca de liberdade.
O imaginário de Sophia estimula a criar, recriar,
inventar e reinventar, mesmo em situações do cotidiano, o
que faz com que o leitor se transporte para o mundo
imaginário e também traga esse mundo para os seus dias,
aproximando ficção e realidade. Esses recursos contribuem
para a formação do sujeito sensível e reflexivo com relação às
questões do mundo e do ambiente onde está inserido. Sophia
apresenta um caminho que leva o leitor a desenvolver
significativamente emoções e sentimentos, de forma a
valorizar a fruição da vida a partir da fruição estética.

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.
Entrevista com Dur val Muniz de
Albuquerque Junior1

O conceito de Nordeste assume a característica de


um repositório de imagens diversas que se manifestam por
meio das tradições, produções culturais e identidades. Aquilo
a que é atribuída a qualidade de nordestino assume aspecto
duplo. Para alguns, torna-se algo a ser lembrado, sempre
presente, para outros, algo a ser esquecido, evitado. De toda
forma, essas imagens nos inundam, sem que, muitas vezes,
sequer, nos dar mos conta, assim são perpetuadas e
desencadeiam consequências na esfera social, seja garantindo
continuidades e favorecimentos, seja rupturas.
É sobre nesse repositório de imagens que age o Prof.
Durval Muniz de Albuquerque Júnior, Mestre e Doutor em
História pela Universidade Estadual de Campinas, Pós-
doutorado em Educação pela Universidade de Barcelona e
em Teoria e Filosofia da História pela Universidade de
Coimbra, que, como artífice da ciência, acessa esse conjunto
de complexas construções, analisa ora uma, ora outra dessas
imagens, admirando-as, questionando-as, justapondo-as na
busca de suas relações, dos vestígios que contêm, desvelando
os discursos nelas entranhados. Foi isso o que presenciamos

1
Durval Muniz Albuquerque Júnior nasceu em 1961, na cidade de
Campina Grande, Paraíba. Sua construção identitária passa pela origem
sulista da mãe e o berço paraibano do pai, essa constituição é evidenciada
em suas obras. Possui graduação em Licenciatura Plena em História pela
Universidade Estadual da Paraíba. Mestre e Doutor em História pela
Universidade Estadual de Campinas. Pós-Doutorado em Educação pela
Universidade de Barcelona e em Teoria e Filosofia da História pela
Universidade de Coimbra. Professor titular aposentado pela Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Atualmente é professor visitante da
Universidade Estadual da Paraíba. Professor permanente dos Programas
de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco
e Universidade Federal do Rio Grande do Norte. O historiador Durval
Muniz de Albuquerque Júnior dedica à pesquisa sobre as relações entre
a narrativa da história e a produção de subjetividades.
438 Entrevista com Durval Muniz de A. Junior...
no dia 21 de outubro de 2020, quando o recebemos em uma
palestra virtual no Grupo de Pesquisa Arte, Cultura e Imaginário.
Na ocasião, construindo um diálogo a respeito de sua obra A
invenção do nordeste e outras artes, ele desnudou esse conceito que
transpassa identidades, gêneros e subjetividades e que, por meio
do imaginário, tem a capacidade de apagar a multiplicidade de
uma região tão expressiva do território brasileiro.
A entrevista que se segue nasce de um convite feito e
amavelmente aceito, após esse primeiro encontro, visando à
publicação no presente livro. Realizada por meio de vídeo
chamada, no dia 19 de novembro de 2020, a conversa foi
direcionada por uma série de perguntas pulsantes fomentadas
pela palestra anterior, sendo, subsequentemente, transcrita nas
páginas que se seguem. As respostas que nos foram ofertadas
perpassam os impactos da arte, o peso da cultura em relação
ao imaginário e a retroalimentação que se estabelece entre
esses três elementos. Simultaneamente, ao nos depararmos
com o processo de decomposição dos sentidos, percebemos
a Interdisciplinaridade manifesta por meio dos diversos
autores dedicados às mais diferentes áreas do conhecimento
que fazem coro às falas do Prof. Durval, abarcando temas
variados, como a escrita da História, a ordem do discurso, as
influências das imagens nas visões de mundo, a materialidade
do imaginário, a importância da imaginação na produção
historiográfica e a problemática das identidades, entre outros
possíveis temas que cabem ao leitor suscitar.

(Angela) Notamos que seus textos demonstram uma capacidade de


observação, que é própria do trabalho de historiador, e que também
transmite muita emoção. Fale um pouco sobre a concepção de sua escrita.
Durval: Venho discutindo isso, inclusive, com os meus colegas
ultimamente, a necessidade de a historiografia retomar aquela
consciência que ela tinha no século XIX da dimensão artística
de sua escrita, que foi, em grande medida, abandonada no
século XX. É muito interessante que os historiadores do século
XIX, aqueles que metodizaram e disciplinaram a historiografia
e que propuseram transformá-la em uma ciência, retirando-a
do campo das belas letras, tinham, no entanto, uma enorme
consciência da dimensão artística da escrita da História. Eles
Arte, Cultura e Imaginário 439
costumavam dividir a operação historiográfica em dois
momentos: o momento da pesquisa -, que era o momento
metódico, o momento do arquivo, o momento da análise
crítica das fontes – e o momento artístico do trabalho do
historiador – que era a redação do texto, a escrita do texto.
Eles tinham muita consciência de que o efeito da
historiografia, o efeito social, sua capacidade de afetar as
pessoas, de mobilizar as pessoas, de comovê-las, tinha a ver
com a capacidade de escrita narrativa do historiador. Isso se
perdeu ao longo do século XX, tanto com o materialismo
histórico, quanto com a Escola dos Annales, que são as duas
correntes majoritárias da historiografia no século XX. Elas
abandonaram as discussões em torno da escrita da História e
concentraram as discussões em torno do método, em torno
da questão teórica e pouco trataram da dimensão da narrativa.
Os historiadores voltaram a se preocupar com a escrita da
História a partir dos anos 70 do século XX, com a chamada
virada linguística, quando as discussões no campo da
linguística, da teoria literária, da filosofia da linguagem, do
estruturalismo, da hermenêutica, impactaram os historiadores.
Antes, foi preciso que profissionais de outras áreas, como
filósofos, críticos literários, até Lévi-Strauss, como antropólogo,
discutissem a escrita da História, para que os historiadores
pudessem analisá-la, então hoje eu tenho muita consciência
da importância do texto, da qualidade e capacidade do texto
em mobilizar e afetar várias pessoas. Sou um historiador que
se preocupa com a forma do texto, que se preocupa com a
narrativa. Eu não acho que a metáfora, que a figura de
linguagem, os tropos linguísticos, a imagem, sejam uma sujeira
no discurso científico, eles são indispensáveis para que o
discurso científico seja atraente, que ele saia dos muros da
universidade, que não fale só para os pares, que não fique só
no interior da própria academia, com a gente falando para os
próprios colegas, porque a grande preocupação nossa é com
os colegas. Ainda hoje, por exemplo, eu lia um texto de Freud
- e o que me impressiona em Freud é a absoluta clareza e
limpeza da sua escrita, a capacidade de transformar conceitos
dificílimos em coisas absolutamente palatáveis – quer dizer,
Freud construiu um verdadeiro monumento conceitual, uma
440 Entrevista com Durval Muniz de A. Junior...
verdadeira árvore de conceitos complexos, mas conseguiu
transformá-los todos em explicações e narrativas das mais
agradáveis, apelando, inclusive, para o uso dos mitos, para o
uso das obras de arte e, claro, para o uso constante dos casos
clínicos do seu consultório, para tornar claros esses conceitos.
Os textos de Freud são sempre agradabilíssimos, porque ele
tem sempre uma historinha para contar e é sempre a partir
dela que discute os conceitos, e consegue explicar os conceitos
de uma forma muito clara, ele é de uma limpeza e clareza na
escrita que a gente não vê, muitas vezes, na academia. Então,
eu tenho uma preocupação com isso, eu me lembro que, para
isso, foi muito importante uma crítica que recebi do meu
orientador de mestrado. Eu fiz uma graduação lendo muita
economia, lendo muitos sociólogos, porque essa graduação
foi muito influenciada pelo materialismo histórico e, quando
eu entreguei o primeiro capítulo da minha dissertação para o
meu orientador, que era um historiador, mas que também
tinha se formado em literatura latino-americana, ele leu e disse:
“você não escreve como historiador, você escreve como
sociólogo e economista, o seu texto é muito pesado, muito
conceitual”. Esse toque foi fundamental, e claro que há em
mim a presença de dois grandes narradores: Michel Foucault,
que é um dos maiores estilistas da língua francesa do século
XX, seus textos são de uma beleza, de uma escrita
extremamente sofisticada. A outra presença, efetivamente, é
a influência de toda a literatura nordestina, de toda a literatura
dos romancistas de 30 e, principalmente, as escritas de Gilberto
Freyre e Ariano Suassuna, que também são dois grandes
narradores, dois grandes construtores de imagens. De tanto
lê-los e de trabalhar com eles, acho que há uma influência,
uma marca, desses narradores na minha narrativa.

(Angela) A próxima pergunta que iríamos fazer é realmente ligada a


Michel Foucault, pois percebemos que, em sua obra, ele é um grande
influenciador. E a pergunta é: por que o pensamento foucaultiano é
importante para os seus estudos?
Durval: Foucault foi uma grande descoberta que fiz na pós-
graduação. O primeiro livro que eu li de Foucault foi A História
da Loucura, e me arrebatou completamente, primeiro pelo
Arte, Cultura e Imaginário 441
inusitado do tema, eu jamais supunha que a loucura tinha
história, mas principalmente pela beleza do texto. Como eu
vinha dessa graduação, dessa formação, lendo a Escola de
Sociologia Paulista, que não escreve propriamente para
ninguém ler, lendo os economistas, eu não pensei que pudesse
se escrever tão bonito, o texto dele me causou um enorme
impacto e, claro, Foucault significa outra maneira de pensar a
História, uma outra maneira de pensar a própria relação entre
o sujeito e o conhecimento, a verdade. Foucault foi muito
importante, porque, justamente, chamou a atenção para o fato
de que, muitas vezes, os historiadores naturalizam os conceitos,
os nomes como as coisas são chamadas. Foucault leva a gente
a perceber a centralidade da linguagem na construção do
mundo, a centralidade da linguagem na construção das
relações sociais mais básicas, que o conceito não é uma palavra
difícil e estranha que está “no filosofês”, mas o conceito está
no nosso dia a dia, o conceito organiza a nossa cultura,
organiza nossas relações, está ligado diretamente a relações
de poder, ele hierarquiza, gera diferenciações, exclusões, apoia
explorações, quer dizer, o conceito é fundamental. Foucault
me deu essa consciência do papel da linguagem e da
importância de prestar atenção nos conceitos e em como as
coisas são chamadas. Os historiadores, muitas vezes, vão para
os documentos e não prestam atenção no nome que as coisas
recebem em um dado momento. Foi Foucault que me fez ver
justamente que o Nordeste não existia no século XIX. Eu fui
ver a documentação do século XIX e me dei conta de que
toda a documentação só falava em Norte. Nordeste não
existia. Eu só comecei a encontrar Nordeste na documentação
do final da década de 10, começo da década de 20 do século
XX, e veio a pergunta que gerou a minha tese: Por que só aí
o Nordeste emergiu? Por que o conceito de Nordeste só surgiu
aí? Da mesma forma que Foucault é fundamental para
perceber quando algo emerge como um problema, quando é
que uma questão se coloca, quando alguma coisa não era uma
questão, mas passa a ser – que foi a pergunta da minha
Dissertação de Mestrado: Por que a seca, um fenômeno
natural, que acontece nessa área do país, desde o período
colonial, só se tornou um problema no final século XIX? Por
que a seca não era um problema até o século XIX? Porque a
442 Entrevista com Durval Muniz de A. Junior...
seca que gerava a migração dos índios para o litoral, que matava
escravos, que matava homens pobres, por que não era uma
questão até que ela afetasse as elites desse espaço no final do
século XIX? Aí ela se torna um problema, se torna uma
questão, mostrando, claramente, como a emergência de um
problema tem a ver com relações políticas, com relações de
poder e com um contexto histórico preciso. Por isso, Foucault
foi muito importante, por que o que é a teoria da história? É
a formação de uma maneira de olhar, e Foucault nos ensina a
olhar de uma maneira diferente, olhar para o arquivo, para a
construção de problemas, para a própria escrita da história.
Claro que ele é uma presença marcante, mas, na verdade, a
minha obra é marcada por uma constelação de autores que
circulam em torno dele, um conjunto de autores conhecidos
como filósofos da diferença, ou também conhecidos como
pós-estruturalistas, além de historiadores que receberam
influência do próprio Foucault e desses filósofos, como:
Michel de Certeau, Paul Veyne, Roger Chartier, François
Hartog, Arlette Farge, que trabalhou com Foucault muitas
vezes, Michelle Perrot, um conjunto de historiadores que
foram também impactados Foucault e por outros autores
como: Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Giorgio Agamben,
uma série de filósofos que tem como matriz a filosofia
nietzschiana, uma tradição da filosofia ocidental que vem
desde Heidegger. Todos esses herdeiros de Nietzsche, que
tem uma importância muito grande, pois foi o primeiro a
problematizar a noção de verdade, a colocar em questão a
ideia de ciência positivista, um autor importante para pensar,
inclusive, a escrita. Nietzsche tem como característica escrever
a filosofia de uma forma diferente, como também Walter
Benjamin, que é um autor curiosíssimo porque articula
Nietzsche, Marx, a cabala judaica. Ele é um autor
interessantíssimo dos anos 20, que faz parte do conjunto de
autores da primeira geração impactada por Nietzsche, além
de Heidegger, como Carl Einstein, Aby Warburg, Georges
Bataille, uma série de autores que também fui descobrindo,
mais tarde. Foucault, na verdade, me fez ir para trás e ler vários
outros autores que estavam na base do pensamento dele.
Arte, Cultura e Imaginário 443
(Maria Auxiliadora) Puxando o fio de Ariano Suassuna, como é sua
relação com ele? Ele te inspirou nessa escrita, na questão da narração,
como foi falado; por outro lado, ele também fabricou esse Nordeste
medievalizado, sustentando o mito do sertão nordestino. Então, gostaria
que nos falasse um pouco sobre a relação de simpatia e antipatia, de
amor e ódio por esse autor-narrador. Como essa complexa relação se dá?
Durval: Eu sempre digo que um dos grandes problemas do
Brasil é que a nossa direita escreve muito melhor do que a
nossa esquerda, é que a direita se faz comunicar, e a esquerda
pouco comunica. Basta comparar a escrita de Florestan
Fernandes com a de Gilberto Freyre. Gilberto Freyre, um
autor reacionário, é capaz de nos convencer das coisas mais
reacionárias, por sua capacidade de escrita, de criar imagens.
Ele escreveu um texto que, para mim, é inesquecível, um texto
em que ele explica por que a chegada da luz elétrica foi fatal
para a família patriarcal, quer dizer, a luz elétrica destruiu a
família patriarcal, porque nenhuma família vive sem sombras,
ou seja, nenhuma família se sustenta às claras, quer dizer, se
tudo for colocado às claras, evidentemente a família fracassa,
então toda família tem que ter suas sombras e segredos. Veja
que coisa genial, ele pode nos convencer, inclusive, de que a
família patriarcal era melhor que a família moderna, a partir
de uma imagem sensacional como essa. A mesma coisa é
Ariano, que, no final da vida, se passava por socialista, que
era um grande admirador e fanático por Lula, mas Ariano era
um intelectual que foi membro do Conselho Federal de
Cultura da Ditadura, que ocupou a vaga de Paulo Freire, que
caiu em desgraça e foi para o exílio, ele assumiu a Pró-reitoria
de Extensão da Universidade Federal de Pernambuco e usou
a universidade como apoio institucional para lançar seu
Movimento Armorial, um movimento lançado em 1970, em
pleno auge da ditadura, lançado no interior da Igreja de São
Pedro dos Clérigos no Recife. Ele é um autor que diz que as
duas instituições que representam o povo brasileiro são a Igreja
e o Exército. Mas Ariano escreve lindamente – e isso a gente
não pode desconhecer – ele extrai, ele retira da cultura popular
todo um imaginário e trabalha esse imaginário, ou seja, ele
tem uma enorme capacidade de imaginação. Se você ler A
Pedra do Reino, que é um livro fantástico em termos de criação
444 Entrevista com Durval Muniz de A. Junior...
de imagens, mas, ao mesmo tempo, é, na verdade, toda uma
memória, saudosa, nostálgica, do domínio senhorial, do
domínio dos grandes coronéis, do domínio do seu pai no
sertão, quer dizer, toda obra de Ariano se inscreve no campo
do luto, ele faz o luto do assassinato do pai. A vida toda Ariano
trabalhou esse assassinato. O pai, João Suassuna, foi
assassinado em 1932, como desdobramento da morte de João
Pessoa, em 1930. João Suassuna era muito amigo de João
Dantas, o assassino de João Pessoa, eles eram aliados políticos
e inimigos políticos de João Pessoa e, quando João Pessoa foi
assassinado, João Suassuna teve que abandonar a Paraíba, teve
que abandonar a família, foi embora para o Rio de Janeiro e,
mesmo assim, foi executado a mando da família Pessoa, então
a família de Ariano teve que migrar da Paraíba, não conseguiu
viver mais lá, e teve que ir para Pernambuco. Toda vida e
obra de Ariano é uma obra de luto desse pai - o que é
característica de vários narradores nordestinos, que fazem o
luto do pai ou da família patriarcal, do pai ou avô patriarca.
Até mesmo na obra de Graciliano Ramos você poderá
encontrar a admiração pelo seu avô morto, ele olhando para
o tendão de Aquiles grosso do seu avô morto e comparando
com seu corpo raquítico, amarelo e decadente. Graciliano tem
uma autoimagem corporal péssima, ele compara-se com esse
avô morto e, claramente, a imagem que prevalece é a do avô,
a fortaleza desse avô que aparece até na grossura do seu tendão
de Aquiles. Para lidar com esses autores, é preciso ter cuidado.
Ao mesmo tempo em que reconhecemos a beleza e a estética,
que fazem efeito, são extremamente perigosos, muito mais
que Florestan Fernandes, que, mesmo sendo de esquerda,
pouco comunica. Eles conseguem nos convencer das coisas
mais conservadoras, constroem toda uma mitologia, um
imaginário, que ultrapassa em muito a academia e a vida
meramente intelectual, e é um imaginário que se espraia pela
sociedade. A visão de Brasil de Gilberto Freyre é uma visão
que você vai encontrar na escola de samba, no carnaval e que
vai encontrar no boi de Parintins. A leitura que Gilberto Freyre
faz da história do Brasil, o mito das três raças, da democracia
racial, da mestiçagem, tudo isso se encontra na narrativa, em
grande medida, popularizada sobre o país, pois eles tiveram a
Arte, Cultura e Imaginário 445
capacidade de escrever obras que circulam por outros canais
de comunicação, são obras que alguém lê e resenha no jornal,
e do jornal vai para o folheto de cordel, e do folheto vai para
a conversa cotidiana – o que, infelizmente, não acontece com
muitos de nossos intelectuais de esquerda, que escrevem uma
prosa super carregada, extremamente difícil, ou seja, escrevem
mais por conceito e menos por imagem. Esses autores
trabalham com a imagem, fundamentalmente, mesmo
Gilberto Freyre, a marca é o trabalho com a imagem, não um
trabalho apenas conceitual, mesmo os conceitos são
claramente transformados em imagem, e a imagem, como
diz Georges Didi-Huberman, é epidêmica, ou seja, a imagem
tem capacidade de contaminação, nos penetra como o
COVID, sem que a gente se dê conta. Nós estamos vivendo
no auge da sociedade da imagem e vejam o perigo da imagem,
o que são os “memes”, e todo esse imaginário via rede, como
ele impregna nas pessoas, como ele passa a mensagem – às
vezes, as mais reacionárias –, sem que as pessoas se deem
conta de que estão se alimentando desse imaginário. Voltando
à nossa primeira pergunta, acho que nós da academia devemos
refletir e pensar mais sobre imagem e sobre imaginário, e o
que significa a imagem, a sua capacidade de viralizar, como
normalmente chamamos, e de infectar a subjetividade das
pessoas; há imagens que não precisam de uma palavra, pois
são muito mais significativas que uma palavra, por exemplo,
aquela imagem da empregada toda vestida de branco
empurrando o carrinho do bebê na Avenida Paulista, enquanto
seus patrões todos de amarelo iam para a marcha a favor do
impeachment, é uma imagem que diz o país, é uma imagem que
diz sobre a nossa história, muito mais do que vários textos
que se venha a escrever. A imagem tem um enorme poder. O
Nordeste justamente é fr uto de um regionalismo
poderosíssimo, a ideia do Nordeste é extremamente poderosa,
porque o Nordeste sempre contou com grandes narradores e
grandes construtores de imagens, daí a fortaleza que é o
imaginário em torno do Nordeste, porque é uma região que
tem narradores extraordinários, construtores extraordinários,
o Nordeste contou, simplesmente, com Gilberto Freyre,
Ariano Suassuna, Glauber Rocha, Jorge Amado, Graciliano
446 Entrevista com Durval Muniz de A. Junior...
Ramos, José Lins do Rego, Raquel de Queiroz, uma
quantidade enorme de grandes construtores de imagens,
inclusive pintores como Lula Cardoso Aires, Cícero Dias,
Aldemir Martins, e ilustradores, como Manoel Bandeira, Santa
Rosa, Di Cavalcanti – que é carioca, mas é de família tradicional
pernambucana, os Cavalcanti. A força do regionalismo
nordestino se deve a essa riqueza, a esse imaginário
extremamente poderoso, e Ariano é um grande construtor
de imagens e do imaginário, mas tem uma mensagem
extremamente conservadora. O Auto da Compadecida, por
exemplo, desde sua primeira versão teatral faz sucesso, quando
se transforma em filme é um sucesso, quando se transforma
em um especial de televisão é um sucesso. O Auto da
Compadecida é a fusão de alguns folhetos de cordel. Ariano leu
alguns folhetos e fundiu as histórias de cordel e construiu
aquele enredo, que é católico, para glorificar Nossa Senhora,
a Compadecida e Jesus. Apesar do riso e da aparente anarquia
do personagem principal, na verdade, tem uma imagem
conservadora lastreando toda a história, porque o riso também
pode ser conser vador, o riso não é necessariamente
problematizador, crítico, há um riso também conservador
como todos os programas de humor da Tv Globo, por
exemplo mostram, como o humor, inclusive, pode ser
reacionário. A Escolinha do Professor Raimundo, por
exemplo, era uma escola de preconceitos, cada personagem
ensinava um preconceito, você aprendia a rir dos pobres, dos
minoritários, dos feios, dos gordos, das loiras, do negro, do
judeu, do homossexual, era um programa que era uma escola
de reacionarismo, embora fosse um programa de humor. O
riso que atravessa a obra de Ariano é um riso moralista, é um
riso conservador.

(Angela )Aproveitando que você traz essa questão do poder da imagem


e em se tratando da sua obra A invenção do Nordeste e outras artes,
você diz que a finalidade desse estudo é questionar essas verdades que
você acabou de trazer, que são repetidas pelas produções culturais na
mídia, na academia, porque trazem esse conjunto de imagens e enunciados.
Como é que fica a valorização coletiva sobre o que é imaterial, sobre o
imaginário?
Arte, Cultura e Imaginário 447
Durval: Na verdade, o imaginário tem muito pouco de
imaterial, o imaginário se materializa, a imagem não é imaterial,
a imagem é, na verdade, a figuração da materialidade do
mundo, porque nós não lidamos com o mundo apenas
empiricamente, nós humanos lidamos sempre com a figura, a
imagem, a nossa relação com o mundo é uma relação mediada
pela linguagem, que é figurativa. Como dizia Castoriadis, o
imaginário é instituinte da sociedade, mas a sociedade humana
não existe sem o imaginário, porque não existe sem a produção
de imagem. O que caracteriza os humanos, como dizia
Nietzsche, é a nossa capacidade de imagem, nossa capacidade
de metaforizar, o que define o humano é a nossa dimensão
poética, somos seres poéticos, o que não significa que todos
nós sabemos fazer poesia, mas somos seres poéticos porque
somos seres da imagem, não lidamos com a empiria bruta do
mundo, antes de mais nada, nomeamos as coisas, e o nome já
é um figura, o nome já é uma imagem, o nome é uma
atribuição de sentido, nós lidamos sempre com as coisas
através do sentido e do significado, nós não lidamos com o
significante bruto, sempre lidamos com o significante
acompanhado do seu significado. O imaginário, na verdade,
é muito concreto. Vivenciamos o imaginário, encarnamos o
imaginário, o nosso corpo, como dizia Lacan, é imaginário, o
nosso corpo localiza-se no imaginário, no simbólico, o nosso
corpo não se localiza no real, o que se localiza no real são as
nossas carnes, mas o nosso corpo não são as carnes, a carne é
apenas um material com o qual construímos corpos, o nosso
corpo é simbólico, tanto é que um podólatra não se relaciona
com um pé de carne, ele se relaciona com o pé simbólico,
com o pé imaginário, a nossa relação erótica, libidinal, sexual,
desejante é com o corpo imaginário, é com o corpo simbólico,
e não com a carne nua. Uma relação sexual carne com carne
é uma coisa absolutamente triste, porque tem que haver
imaginário, tem que haver investimento imaginário, sem ele
não há desejo, que é imaginário, a erótica é o imaginário do
corpo. Como se constrói o corpo? Com carne, mas com
outros artefatos, com óculos, com o batom que você está
usando, com o corte do cabelo, com a sua roupa, com o sapato
que você está usando, e tudo isso tem dimensões imaginárias
448 Entrevista com Durval Muniz de A. Junior...
e simbólicas. Por que as mulheres têm que acentuar o vermelho
dos seus lábios? Porque tem uma dimensão erótica,
provocante, a boca lembra o nosso primeiro órgão erógeno,
já dizia Freud, nós começamos pela fase oral, o primeiro
momento da nossa vida erótica e libidinal está na boca, no
ato de mamar, que é um gesto necessário para a sobrevivência,
mas é coberto de prazer, não só físico de sentir o leite quente
entrando e descendo pela garganta, mas o prazer de sentir o
calor do outro corpo, aí se inicia o complexo de Édipo, o
nosso primeiro investimento afetivo é o corpo da mãe, porque
o corpo está no campo do simbólico e do imaginário, o corpo
não é do plano da carne nua. Giorgio Agamben discute o que
significa o retorno à carne nua. Quando retornamos à
condição de carne nua, passamos a ser um ser “matável”, um
ser torturável, porque perdemos a condição jurídica e política
do corpo, o nosso corpo é jurídico e político. Os gregos sabiam
muito bem disso, eles diferenciavam zoé e biós: zoé era vida
natural e biós era vida política, de onde vem as palavras
biologia, biografia, enquanto vida política, vida cidadã, vida
pública, o escravo era zoé e, por isso, o escravo podia ser
matado e torturado, sem sofrer nenhuma consequência
política ou jurídica, porque, como discutia Aristóteles, o
escravo era objeto de uso e eles se inscreviam no capítulo dos
animais falantes.

(Alzira) Nas Ordenações do Reino de Portugal, os escravos eram


colocados como semoventes e não como seres humanos. A sua palestra é
tão rica em conteúdo, que é algo para se falar para o resto na vida. Em
1961, quando você nasceu, eu entrei para fazer o curso de História na
USP. Era mais ou menos uma refugiada, uma retirante de Botucatu e
vim para essa metrópole, como uma caipira do centro da Jaculândia. É
claro que me encantei com tudo, e tive um professor Jean Glénisson,
grande metodólogo e teórico da História, mocinho ainda. As suas aulas
eram dadas em francês, e nenhum de nós poderia contestar o fato de o
professor usar o inglês, o francês ou outro idioma. A primeira aula de
Glénisson obedeceu ao tema: “A História é uma ciência ou uma arte?”
Até hoje, eu me lembro que, para responder a tal questão, nós discutíamos
as posições que se apresentavam nesse já remoto ano de 1961. Portanto,
desde que você nasceu e eu iniciei meus estudos de História, até o momento,
Arte, Cultura e Imaginário 449
essa discussão continua, o que é impressionante, uma vez que já estava
decidido nesse momento que a História era ciência e arte ao mesmo
tempo. Como ciência, por seus protocolos específicos quanto a objetos,
abordagens, objetivos; como arte, quanto à habilidade em contar histórias,
de envolver os circunstantes ao falar de circunstâncias vividas por
personagens diversos, em biografias que configuram o encontro conosco
mesmo. Uma linguagem que deve fugir ao hermetismo, que não precise
de uma “hermenêutica” para ser compreendida. Posição, diga-se de
passagem, que esteve presente em muitos de nossos colegas do passado.
Como exemplo, posso citar Taunay, que fez a história do café e das
bandeiras paulistas, entre muitas outras obras que produziu, fazendo
com que alguns detratores dissessem que etimologicamente “tonelada”
provinha de Taunay... Taunay foi tio de uma tia minha, Maria Carolina,
mãe de Eduardo Coutinho, meu primo, portanto. Essa tia era mulher
de Aristides Lobo, meu tio paterno, primeiro secretário geral da Liga
Comunista Internacionalista. Vê-se que sou uma testemunha ocular da
História. A gente lê Taunay porque precisa, uma vez que, embora
corretíssimo no uso do idioma, o seu texto é de uma chatice extrema,
embora ele, nas cartas e nas conversas, fosse admirável pela ironia e o
prazer estilístico que lhes eram próprios. Logo, a aspereza de sua
linguagem refletia o bolor acadêmico considerado um elemento necessário
do posar acadêmico em voga no passado, mas ainda atual em alguns
setores da universidade. É claro que Taunay era um “reacionário”, mas
era um pesquisador consciente e cuidadoso. Marx, por sua vez, é lido
porque precisamos dele para entender o mundo em que vivemos. Mas
falar que lemos Marx com prazer, salvo em algumas exceções – como o
maravilhoso 18 Brumário – é de se duvidar. Lemos, com imenso proveito,
mas não com o prazer que temos ao ler, por exemplo, Freud. Eu tive as
obras completas de Freud, na versão espanhola. Na carta introdutória
dessa versão, Freud parabeniza o tradutor pela qualidade de seu trabalho,
informando que ele havia aprendido espanhol para ler Cervantes no
original, o que se entende uma vez que Dom Quixote é uma bela história
da loucura. Nessa mesma carta, cuja lembrança me ocorre pelo conteúdo
de sua narrativa, Freud faz uma distinção simples entre o que é ficção e
realidade, ou invenção e imaginário. Na invenção do Nordeste, fica nítida
a diferença entre o trabalho de historiador, como o seu, e o trabalho de
um ficcionista. Nós, historiadores, temos que comprovar aquilo que
falamos, ao contrário do ficcionista. Voltando a Freud, diz ele que, se
alguém lhe falasse que o centro da Terra é formado por metais em fusão
450 Entrevista com Durval Muniz de A. Junior...
ou gases incandescentes, ele levaria em conta essa teoria, ao contrário do
que aconteceria sobre uma crença em que o centro da Terra seria formado
por marmelada. A sua citação sobre o Movimento Armorial, de Ariano
Suassuna, leva a alguma interpretação semelhante. É uma delícia ler
Ariano Suassuna, não há quem deixe de gostar de sua obra, mas ele
cria ficção e não história, medievalizando o Nordeste, enquanto nem o
Brasil ou Portugal tiveram Idade Média. Outros autores que você citou,
com exceção de alguns linguistas e filósofos, são todos do meu inteiro
agrado, mas Foucault atinge a perfeição estilística em Eu, Pierre Rivière,
que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão, dando a voz, mas com
aquele cuidado necessário, aos atores sociais, prendendo-nos do começo
ao fim do livro. No momento em que a história e a sua escritura se
modificam, infelizmente, está faltando muita erudição aos autores e seus
leitores. As pessoas estão lendo cada vez menos. Devo notar a respeito
da imagem e da palavra uma discordância, uma estranheza talvez, com
a sua fala, pois entendo que mesmo as imagens estão descritas por palavras.
Claro, as palavras são figurativas, mas a respeito devo notar um
pensamento célebre de Millôr Fernandes: “Uma imagem vale por mil
palavras, mas eu quero ver isso transmitido sem palavras”. Concordo
que a linguagem é alegórica, metafórica, arbitrária, mas eu creio que nós
acabamos por nos convencer de que é preciso que os trabalhos acadêmicos
tenham uma forma idiomática aprazível, uma vez que nosso cérebro
está montado para nos satisfazer, voltado para o prazer, e não para o
desprazer. Logo, um texto impenetrável, hermético, terá como consequência
o afastamento de leitores, ou ocasionará pedantismos fora de moda. Ainda
uma coisinha final, quanto à história da sexualidade referida em sua
fala: muitos autores dizem que o beijo de língua, o profundo, só surgiu a
partir do século XVI, o que é difícil de acreditar quando imaginamos a
multidão de nossos ancestrais dedicados ao “fruto proibido”. Não obstante,
a sexualidade foi incorporada recentemente nas Ciências Humanas, e
muito há ainda a descobrir. Enfim, há muito ainda a dizer sobre a sua
entrevista, e quero finalizar declarando, ainda uma vez, que é um prazer
estético ouvir a sua fala, emitida com a mais alta erudição e trazendo
muito bem essa diferença entre imaginário, imaginação e ficção. Seria
mais ou menos como a boneca russa, que abriga outras bonecas, cada vez
menores. A diferença é que, em sua entrevista, é impossível esgotar esse
processo, pois a “menor boneca” continua indevassável, despertando sempre
a nossa curiosidade e a perspectiva de ouvir mais.
Arte, Cultura e Imaginário 451
Durval: A diferença da historiografia para Literatura é que a
historiografia tem que citar o arquivo, a imaginação do
historiador é possibilitada e limitada pelo arquivo, a nossa
imaginação está atrelada às possibilidades que o arquivo nos
oferece de imaginar. É claro que, sem imaginação, não há
escrita da História, porque, se alguém ler um documento e
não for capaz de imaginar nada a partir dele, ele vai apenas
copiar o documento, não vai fazer história. O pior orientando
para um historiador é um ser sem imaginação, que lê um
documento e não consegue pensar nada além. O passado é
lacunar. Se a gente não usar a imaginação, não conseguimos
preencher as lacunas, não conseguimos estabelecer as ligações
entre os eventos. A compreensão, que é aquilo que o
historiador faz, nasce do estabelecimento de relações, do
estabelecimento de conexões de coisas que aparecem
apartadas, e essas conexões são imaginativas, o que não
significa que o raciocínio e a imaginação não estejam juntos,
porque o raciocínio é formado pela imaginação e vice-versa,
inclusive o conceito, ajuda a pensar, ajuda também a imaginar,
ou seja, o material que me ajuda a pensar me ajuda a imaginar.
Não existe essa separação entre as faculdades e essa hierarquia
entre elas, a gente pensa, imagina, usa a memória ao mesmo
tempo, não há hierarquia entre nossas faculdades, a capacidade
de imaginação é que permite que a gente figure aquilo que
estamos pensando. A Matemática, que é uma das mais
sofisticadas formas de pensamento, tem que se transformar
em figura. A Matemática é uma linguagem, tem que
transformar a coisa em número, em gráfico, em fórmula para
ser figurada. O matemático e o físico procuram a forma mais
elegante, mais esteticamente adequada para figurar o seu
raciocínio, não há essa separação entre cognição e imaginação,
uma alimenta a outra, aquilo que a gente sabe nos ajuda a
imaginar, e a imaginação nos ajuda a saber.

(Alzira) Porém, tudo acontece no eixo da História, quer se trate de


imaginação ou das ideias imaginárias.
Durval: Sem o arquivo que já é narrativa, imagens de objetos,
de ruínas, de restos, sejam imagens empíricas ou narrativas, o
historiador lida com imagens e, a partir delas, pensa e imagina
452 Entrevista com Durval Muniz de A. Junior...
o passado, elabora cenas do passado, “cenifica” o passado,
estabelecendo relações e ligações que não estão dadas. A
novidade de cada obra de história é que podemos partir do
mesmo arquivo e estabelecer relações entre os elementos do
arquivo que ainda não haviam sido estabelecidas. Você parte
do mesmo arquivo, como os historiadores que estudam a
Revolução Francesa, vários já escreveram sobre a Revolução
Francesa, podem partir dos mesmos documentos, mas
estabelecerem relações que nunca foram estabelecidas, porque
se pode reconfigurar o passado sempre, o passado é
configurado, ou seja, transformado em figura e ele é
reconfigurado e transformado em novas figuras.

(Alzira) E cada época tem o seu renascimento, como diz Braudel.


Durval: Exato

(Marília) Minha pergunta é sobre a visão do imaginário formando


contrastes na vida do ser humano. Refletindo nessa questão do imaginário
nas formas humanas de vida, me direciono no momento para o Nordeste,
é claro, com sua excelente companhia. Eu tive o prazer de apreciar seu
artigo “Fragmentos do discurso sobre a cultura no Brasil”, já há algum
tempo, que, para mim, foi como um despertar. Você afirma nele que a
identidade é sempre excludente, uma identidade, de alguma forma, rejeita
a outra. Através dessa colocação e dessa ideia do imaginário despertado,
vejo que o Nordeste não é brinquedo mesmo. Como mencionava Benedito
Prezia, meu grande amigo, “o Nordeste é indígena, suas raízes são
indígenas”. Claro que não é indígena como pensamos no índio, então
desconfio que esteja relacionado a uma riqueza imaginária. Onde
trabalhamos, os alunos, em grande parte, são nordestinos, sabemos porque
eles compartilham hábitos, como o de comer cuscuz pela manhã, é só
falar em cuscuz que já sabemos que é nordestino, e essa ideia de continuar
nordestino, é algo contagiante. Pergunto-lhe, como é que se situa um
imaginário real, fértil que possa ser conduzido em termos de um ideal de
identidade como forma emancipatória desse povo? Será que vão deixar o
fluxo nordestino? Como conter esse fluxo, o imaginário como expressão
de uma política de atuação?
Durval: Os laços humanos são linguísticos, todos os nossos
laços são atravessados pelo conceito, pela imagem, aquilo que
constitui a sociedade são os próprios laços sociais, que são
Arte, Cultura e Imaginário 453
conceituais, imaginários, figurativos, pois são laços culturais,
a vida social é composta de rituais, e esses rituais materializam
e encarnam o imaginário. O que eu vinha dizendo sobre o
corpo é que o corpo encarna o imaginário, o imaginário não
é apenas uma coisa que flutua sobre as carnes, nós
incorporamos, encarnamos o imaginário, os nordestinos
incorporam, subjetivam o imaginário, de uma forma muito
forte, não é só comer cuscuz, eles se vestem, andam e falam
como nordestinos, ou seja, eles encarnam essa identidade. O
problema do pensamento identitário é justamente que a
identidade se faz sempre na exclusão do outro, na diferença
externa em relação ao outro, a identidade recusa a inclusão
das diferenças. Toda minha obra, na verdade, é uma crítica ao
regionalismo nordestino, porque ele faz mal aos próprios
nordestinos, pois coloca os nordestinos no lugar de
subalternidade nacionalmente. A gente incorpora esse lugar
de menos, de menor, de subalterno, de não sermos aptos para
o trabalho intelectual, só sermos aptos para o trabalho manual,
de não sabermos votar, de votar com o buxo, a ideia de que
somos a única área do Brasil que ainda tem coronel, a única
área do país que teve banditismo, a única área do país que
tem fanatismo religioso, enquanto isso aconteceu no Brasil
inteiro,o domínio familiar na vida política, basta olhar para
Santa Catarina e Paraná, que vocês não me deixarão mentir, o
domínio completo de famílias até hoje, No entanto, há esse
imaginário e, ao mesmo tempo, todo imaginário
compensatório, que é da visão folclórica da cultura. A cultura
nordestina é vista como folclórica, não moderna, não urbana,
não industrial, então nós somos ainda uma cultura rural,
artesanal e manual, tudo isso se acha uma gracinha, e um
monte de gente defende isso, os defensores das manifestações
culturais tradicionais, enquanto essas manifestações estão
ligadas às relações culturais e de poder tradicionais, essas
manifestações culturais reproduzem relações culturais,
inclusive de subordinação no campo cultural. A maioria dos
artistas populares do Nordeste vivem do mecenato dos grupos
políticos locais, são subordinados ao poder e colocam sua
arte a serviço desses grupos políticos locais, pois, caso
contrário, correm o risco de não sobreviverem como artistas.
454 Entrevista com Durval Muniz de A. Junior...
A outra alternativa que se coloca para eles é migrar. Os
nordestinos deixarão de migrar quando tiverem condições
de viver na própria região de origem, quando ocorrer uma
modificação profunda na estrutura agrária e de poder, da
distribuição de renda, quando tiver efetivamente emprego,
como, por exemplo, em alguns momentos no governo de Lula
e da Dilma, o Nordeste recebeu mais gente do que expulsou,
quando se criou a refinaria de petróleo em Suape/
Pernambuco, momento em que faltou mão de obra
qualificada, voltaram diversos nordestinos que se encontravam
no Japão para trabalhar. Porém, enquanto existir a pobreza, a
miséria, a exclusão social, as relações de poder extremamente
discricionárias, os nordestinos irão migrar para outros países,
percorrendo o mundo e visando sua sobrevivência. Afirmar
que o Nordeste é fundamentalmente de cultura indígena é
cair no discurso da identidade, eu fujo desse discurso, cultura
é mistura de correntes culturais diversas, pois a cultura não
tem fronteira, nós repetimos gestos dos romanos antigos. Na
Roma antiga, você encontrava elementos culturais vindos da
China. Podemos observar que os elementos culturais circulam,
atravessam tempo, têm sobrevivências. O campo da cultura é
cheio de sobrevivências, de gestos, de rituais, como podemos
exemplificar com Ariano Suassuna, porque o seu sertão é
francês, porque a origem do cordel é a literatura provençal,
literatura dos trovadores da Provença que foram para Portugal.
O trovadorismo espanhol e português vem da Provença, uma
região que foi anexada à França. O provençal é uma das línguas
matrizes do português, língua que é oficializada por um rei
trovador, o qual publicou um livro de cantigas, oficializando
o português como uma língua para poetas, que se distingue
da língua francesa, que é inteiramente burocrática. Essas
afirmações de que o Nordeste é indígena... O Nordeste é
indígena, africano, português, judeu, espanhol, francês, é tudo
que podemos imaginar que passou pelo Nordeste, deixando
suas marcas culturais, e os nordestinos são muito norte-
americanos, ingleses, chineses, o nordestino é do mundo.
Atualmente, as feiras nordestinas estão com muitos produtos
chineses e coreanos. Na feira de Caruaru, temos vendedores
coreanos. A ideia de que o sertão é uma área fechada para o
Arte, Cultura e Imaginário 455
mundo não faz o menor sentido, pois o sertão é uma área
tradicionalmente de fluxo, de passagem de populações de
todos os quadrantes. Antigamente, o sertanejo migrava para
o sul, trabalhava seis meses e voltava para o sertão, trazendo
as notícias da cidade grande, trazendo, inclusive, inicialmente,
o rádio de pilha e, logo após, o aparelho de televisão. Eu
mesmo tenho a experiência de viajar 28 vezes de ônibus para
São Paulo e trazia muitas coisas; os passageiros desciam no
meio da estrada, no meio do nada, com o som nas costas, e já
ligavam o aparelho e entravam mata afora, sabendo que iriam
fazer muito sucesso com as meninas. Antes de desembarcar,
se arrumavam da melhor maneira. Onde são pessoas que eram
exiladas do mundo, que não tinham informações do mundo?
O cangaceiro Lampião tomava whisky escocês, gostava da
brilhantina, gostava de ir ao cinema; ele, muitas vezes, se
escondia na cidade para ir ao cinema, o Lampião era fascinado
pela imagem, e se perdeu devido a isso, porque se deixou
fotografar e filmar, virou capa da principal revista da época, e
Getúlio Vargas não admitiu o atrevimento de Lampião, e
decretou eliminá-lo, pagando uma fortuna por sua traição. O
governo Vargas comprou o coronel que o delatou, tudo
porque ele se deixou levar pela imagem, se deixou fotografar,
tiraram foto como de família, juntamente com os outros
cangaceiros, e o fotógrafo era um libanês, que andava pelo
meio da caatinga. Todas as abordagens do sertão, como algo
atrasado, desligado da modernidade, é um imaginário em torno
do sertão, que não corresponde, de forma nenhuma.
Atualmente, no sertão, temos cidades como Petrolina, com
quase um milhão de habitantes, onde existem prédios
sofisticados beirando o Rio São Francisco. Barbalha, Juazeiro
do Norte e Crato juntas têm mais de um milhão de habitantes;
no Cariri cearense, a terra do Padre Cícero, atualmente vende
estátuas do Padre Cícero fabricadas na China. Temos que
romper a visão cronológica e linear do tempo, não existe um
tempo único, em todos os lugares existem uma sobreposição
de camadas temporais, não é só em São Paulo que podemos
encontrar um Guarani dentro da cidade, podemos sair de uma
temporalidade para outra, porque você encontra um casario
do século XIX, logo adiante um do século XX, e casas de
caboclos conservadas como patrimônio histórico ou mesmo
456 Entrevista com Durval Muniz de A. Junior...
casas da época do café. Temos que pensar que qualquer espaço,
qualquer época, é uma sobreposição de temporalidades, temos
que romper com essa visão de tempo único, linear e
cronológico. Cada época é composta de várias épocas no seu
interior, é claro que, no sertão, você encontrará um jumento,
porém também encontrará uma moto de maior cilindrada
possível, e ambos fazendo o mesmo serviço: tangendo gado.
Tem fotos maravilhosas demonstrando um car ro
moderníssimo atrapalhado por uma vaca que está deitada no
meio do asfalto. Esse é o sertão, esse é o Brasil. Assim como
no Rio de Janeiro tem uma floresta, tem índio morando ao
lado do Maracanã, e você tem muitas temporalidades dentro
de uma única cidade. O Brasil tem essas rugosidades espaciais
e temporais que são enormes, o mundo todo está presente
no Brasil. Assim como o bairro de Santo Amaro em São Paulo,
onde os nordestinos criaram seus espaços, configuram o
espaço a partir de fragmentos de imagens de sua região de
origem, onde os viajantes do Nordeste passavam por lá para
entregar correspondências aos nordestinos que lá habitavam,
e, inclusive, liam essas correspondências para aqueles que não
eram capazes; assim como no bairro do Brás, que os
nordestinos ocuparam a partir de fragmentos de sua memória,
que levam, inclusive, no seu paladar. Já dizia Gilberto Freyre
que o paladar é o mais conservador de nossos sentidos. Os
nordestinos traficam cuscuzeira para a Europa, tudo tem um
jeito, onde chegamos nos habituamos, assim como os
portugueses que traziam bacalhau, azeite e assim por diante,
são informações culturais que circulam.

(Maria Auxiliadora) Finalizamos a entrevista com o aprendizado da


relevância que tem o imaginário para a compreensão dos fenômenos da
cultura, da História, das identidades. Desejaria que o Sr., professor
Durval, deixasse algumas palavras para alunos e pesquisadores que se
debruçam sobre essa temática.
Durval: O imaginário, como dizia Castoriadis, em grande
medida, institui a vida social, nós vivemos em uma sociedade
da imagem, temos que aprender a fazer crítica da imagem, é
um papel fundamental da universidade ter uma relação crítica
com a imagem, não tomá-la como uma verdade, como algo
Arte, Cultura e Imaginário 457
óbvio que se assimila imediatamente, temos que formar um
olhar crítico, olhares que não se deixem seduzir pelas imagens,
pois a imagem é erótica, gera prazer, satisfação, comove,
mobiliza sentimentos, afeta, então devemos ter cuidado com
a imagem, pois ela sabota a nossa capacidade de
distanciamento, é muito mais fácil se distanciar de um texto
do que de uma imagem, pois ela é invasiva, ela ocupa todo o
plano da nossa visibilidade. Temos que aprender a pensar a
imagem como um cristal histórico, de historicidade, de
temporalidade, que tem um processo de formação, e temos
que ter o senso crítico de como a imagem é formada. Como
dizia Foucault, temos o papel de fazer uma arqueologia da
imagem, escavar as camadas que constituem uma determinada
imagem e que a naturaliza. A Universidade tem uma enorme
importância no questionamento das imagens, do imaginário,
não existe arte sem imagem, não existe cultura sem imagem,
a ciência em si também é imagem, e, cada vez mais, devemos
constituir uma ciência da imagem, capaz de sair dos muros
da Universidade e se comunicar com as pessoas, pois as
imagens facilmente cegam, pelo seu caráter misterioso,
sombrio, mas imagens cegam também pela sua velocidade e
diversidade. A profusão da imagem também cega, os
historiadores lutam conforme recuam no tempo com a falta
de imagem, um historiador da antiguidade tem muito menos
imagem do que um historiador contemporâneo, mas ambos
correm o mesmo perigo, um por falta de imagem e outro por
excesso dela, pois o excesso é alienador. Por exemplo, a
quantidade de imagens que recebemos diariamente pelo
whatsapp, e temos pouco tempo de exercer uma função crítica
sobre elas, muitas imagens as pessoas repassam sem exercer
o menor trabalho crítico, é assim que as imagens viralizam,
assim como candidaturas fakes, que se espalham atualmente,
pois a política está sendo levada na piada, algo que é
gravíssimo, pois torna a política como algo engraçado. A
palavra final é a enorme importância de uma linha de pesquisa
da Universidade atentar para uma produção crítica do olhar,
para, quando estivermos diante da imagem, não ficarmos
afetados por elas, sem ter nenhum distanciamento.
[Fim da Entrevista]
458 Entrevista com Durval Muniz de A. Junior...

Ficha Técnica

Projeto: Livro: Arte, Cultura, Imaginário: reflexões interdisciplinares


Entrevistado: Durval Muniz de Albuquerque Júnior
Data e local da entrevista: via chamada de vídeo, 19 de
novembro de 2020.
Entrevistadores: Ângela Divina de Oliveira, Maria
Auxiliadora Fontana Baseio, Alzira Lobo de Arruda Campos
e Marília Gomes Ghizzi Godoy.
Transcrição: Sabrina Faustino
Revisão: Maria Auxiliadora Fontana Baseio e Lucciano
Franco de Lira Siqueira
Formato da gravação: mp4
Tempo de Gravação: 1h, 26 min. e 38 seg.

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