Você está na página 1de 25

Todos os direitos desta edição reservados a Pontes Editores Ltda.

Proibida a reprodução total ou parcial em qualquer mídia


sem a autorização escrita da Editora.
Os infratores estão sujeitos às penas da lei.
A Editora não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta publicação.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo - SP)

C268e Cardoso, Rosane Maria (org.); et al.


Espaços de Memória na Literatura Espanhola e Hispano-americana / Organizadoras:
Rosane Maria Cardoso e Luciana Ferrari Montemezzo; Prefácio de Rosani Úrsula Ketzer
Umbach.– 1. ed.– Campinas, SP : Pontes Editores, 2020.
302 p.; il.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5637-044-6

1. América Latina. 2. Crítica Literária. 3. Guerra Civil Espanhola. 4. Literatura Espanhola.


I. Título. II. Assunto. III. Cardoso, Rosane Maria. IV. Montemezzo, Luciana Ferrari.

Bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8/8846

Índices para catálogo sistemático:

1. Literatura espanhola e Hispano-americana. 860


2. Literatura espanhola e hispano-americana –Teoria, análise e crítica literária. 860.9
Copyright © 2020 - das organizadoras representantes dos colaboradores
Coordenação Editorial: Pontes Editores
Editoração e Capa: Eckel Wayne
Revisão: Cibele Ferreira

Conselho Editorial:
Angela B. Kleiman
(Unicamp – Campinas)
Clarissa Menezes Jordão
(UFPR – Curitiba)
Edleise Mendes
(UFBA – Salvador)
Eliana Merlin Deganutti de Barros
(UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná)
Eni Puccinelli Orlandi
(Unicamp – Campinas)
Glaís Sales Cordeiro
(Université de Genève - Suisse)
José Carlos Paes de Almeida Filho
(UnB – Brasília)
Maria Luisa Ortiz Alvarez
(UnB – Brasília)
Rogério Tilio
(UFRJ – Rio de Janeiro)
Suzete Silva
(UEL – Londrina)
Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva
(UFMG – Belo Horizonte)

PONTES EDITORES
Rua Francisco Otaviano, 789 - Jd. Chapadão
Campinas - SP - 13070-056
Fone 19 3252.6011
ponteseditores@ponteseditores.com.br
www.ponteseditores.com.br

2020 - Impresso no Brasil


espaços de memória na literatura
espanhola e hispano-americana

MEMÓRIA E VIOLÊNCIA: SUTIS CICATRIZES NA


NARRATIVA DE ALEJANDRO ZAMBRA

Maria Elisa Rodrigues Moreira1

O romance era o romance dos pais, pensei então, penso agora.


Crescemos acreditando nisso, que o romance era dos pais.
Maldizendo-nos e também nos refugiando, aliviados, nessa
penumbra. Enquanto os adultos matavam ou eram mortos, nós
fazíamos desenhos num canto. Enquanto o país se fazia em
pedaços, nós aprendíamos a falar, a andar, a dobrar os guar-
danapos em forma de barcos, de aviões. Enquanto o romance
acontecia, nós brincávamos de esconder, de desaparecer.
(Alejandro Zambra, Formas de voltar para casa)

Como a violência das ditaduras latino-americanas, no caso, em


especial, da ditadura chilena, impactou a vida de uma geração que, em
seu ápice, era ainda composta por crianças? Qual o espaço da ditadura
na memória desses seres que, ainda que estivessem ali, não eram os
“protagonistas” daquela história, que viviam esse “romance” apenas
secundariamente? O que é viver uma ditadura “brincando de esconder”,
enquanto se aprende a falar, a andar, a fazer dobraduras de papel? É a
refletir sobre essas questões, tomando como provocador o livro Formas
de voltar para casa, do escritor chileno Alejandro Zambra, que este
texto se propõe.

1 Doutora em Literatura Comparada e mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Fe-


deral de Minas Gerais. É professora visitante do Programa de Pós-Graduação em Estudos de
Linguagem da Universidade Federal do Mato Grosso.

277
espaços de memória na literatura
espanhola e hispano-americana

Nascido em Santiago em 1975, apenas dois anos após o início da


ditadura militar no Chile, Zambra, que é crítico e professor de literatura,
vem despontando como um dos principais autores da literatura chilena
recente, tendo sido incluído pela prestigiosa revista britânica Granta no
rol dos “22 melhores jovens escritores latino-americanos” por ela pu-
blicado em 2010. Seu primeiro livro, Bahía inútil, publicado em 1998,
consiste em uma reunião de poemas produzidos nos dois anos anteriores, e
encontra entre os títulos do escritor a companhia de outro livro de poesia:
Mudanza, de 2003. Mas são principalmente suas narrativas, que começa-
ram a ser publicadas no Brasil pela hoje extinta editora Cosac Naify, que
têm chamado a atenção da crítica literária e lhe rendido indicações para
uma série de prêmios, alguns dos quais vencidos pelo escritor. É o caso
de seu primeiro romance, Bonsai, de 2006, que foi finalista dos prêmios
Altazor (2007) e Best Translated Book of the Year (2008), além de ter
vencido o Premio de la Crítica de Chile e o Premio del Consejo Nacional
del Libro de Chile, ambos em 2007. A ele se seguiram os romances A
vida privada das árvores, de 2007, Formas de voltar para casa, de 2011
(vencedor do Premio Altazor e do Premio del Consejo Nacional del Libro
de Chile, em 2012), e Múltipla escolha, de 2014, assim como o livro de
contos Meus documentos, de 2013 (vencedor do Premio Municipal de
Literatura de Santiago, em 2014).
Com Formas de voltar para casa, Zambra insere seu nome em
um conjunto de textos em que se apresentam resquícios memoria-
lísticos da ditadura de Augusto Pinochet no Chile, que se perpetuou
entre os anos de 1973 e 1990, e é considerada uma das mais violentas
da América Latina, com alto índice de violações dos direitos huma-
nos: segundo pesquisas recentes, até 2013 se havia reconhecido que
ocorreram, ao longo dos 17 anos de ditadura militar, a morte de 3.216
pessoas em decorrência de tortura, enfrentamentos com os milita-
res ou execução sumária, das quais 1.200 ficaram desaparecidas; a
detenção e tortura de quase 40.000 pessoas; o asilo em embaixadas
de cerca de 12.000 pessoas; o exílio de aproximadamente 200.000
pessoas; a perda de emprego, por razão política, por mais de 100.000
pessoas; a expulsão de mais de 5.000 camponeses das terras por

278
espaços de memória na literatura
espanhola e hispano-americana

terem participado do processo de reforma agrária ou atuarem como


dirigentes sindicais (LIRA, 2013).2
O golpe militar de 11 de setembro de 1973 – quando o Palacio de
La Moneda, sede do governo do Chile, é bombardeado, situação que leva
o então presidente Salvador Allende à morte – foi, simultaneamente,
uma ação bélica de destruição e uma ação simbólica de destituição de
um determinado projeto social, político e cultural: Allende havia sido
o primeiro presidente marxista eleito democraticamente no mundo oci-
dental, em 1970, com 36% dos votos populares, como representante da
Unidad Popular, uma frente de coalizão constituída por Partido Socia-
lista, Partido Comunista, Partido Radical, MAPU e Izquierda Cristiana
(HARNECKER, 2003), e iniciou seu mandato propondo uma série de
mudanças estruturais que envolviam reforma agrária, expropriação de
indústrias, nacionalização de bens naturais e redistribuição de renda,
entre outras ações. No entanto, “durante este período de ofensiva de las
fuerzas revolucionarias aparecen en forma muy clara los límites del Es-
tado burgués chileno y de su legalidade” (HARNECKER, 2003), assim
como ampliam-se as ações da ultradireita conservadora no sentido de
questionar o governo eleito e minar sua legitimidade, o que leva Allende
a determinar um plebiscito em relação ao qual ele se pronunciaria no dia
em que ocorreu o golpe.
O golpe militar, portanto, conforme destaca Luis Hernán Errázuriz,
“no sólo abortó el poder político y administrativo del gobierno de la
Unidad Popular, también inició un proceso de erradicación de su poder
simbólico en el campo artísticocultural” (ERRÁZURIZ, 2009, p. 139).
Pretendia-se, dessa forma, apagar os indícios do governo Allende, de
forma a promover uma rasura da memória e da cultura associadas ao
período de seu governo, numa verdadeira “operação limpeza” que en-
volveu mudanças de nomes de ruas e equipamentos sociais, destruição
de obras de arte popular e de monumentos associados à Unidad Popular,
2 É pertinente observar que, no caso da literatura contemporânea brasileira, constantemente
acusada de ser incapaz de rememorar a recente ditadura e de refletir sobre seus impactos,
encontra-se ao menos um romance de perspectiva similar ao que aqui abordamos: trata-se
de A resistência, publicado por Julián Fuks em 2015, que pode ensejar interessante leitura
comparativa em outra oportunidade.

279
espaços de memória na literatura
espanhola e hispano-americana

pinturas brancas ou cinzas sobre paredes e muros, queima de livros e


revistas, e até mesmo ações relacionadas à estética pessoal, como cortes
de cabelo e barba.
Esse cenário de apagamento das memórias da ditadura se manteve
ao longo da transição democrática,3 e é a partir dele que se pretende
entender a narrativa de Alejandro Zambra, a qual, segundo o próprio
escritor, se constrói sob um viés que era ainda lacunar no panorama
da literatura chilena, dando voz àqueles que foram crianças durante o
processo e que, por isso, nunca tiveram espaço para expressar suas lem-
branças da época ou para refletir sobre as cicatrizes deixadas sobre eles
por esse período de violência exacerbada. Assumir esse posicionamento
representa, segundo a crítica, abrir espaços para a discussão de dois
importantes aspectos dessas produções: de um lado, a ideia de filiação
e, de outro, a da legitimidade da memória. No primeiro caso, reflexões
como a da pesquisadora Lorena Amaro Castro, em “Formas de salir de
casa, o cómo escapar del Ogro: relatos de filiación en la literatura chilena
reciente”, apontam para o fato de que essas narrativas, mais que narrar
a memória desse período histórico a partir de um olhar infantil, o fazem
a partir da posição de “filhos”, “Hijos que recuerdan que fueron niños o
que recuerdan cómo eran o cómo no eran sus padres cuando ellos eran
niños” (AMARO CASTRO, 2014, p. 110). Nessa perspectiva, essas
narrativas não estariam remetendo apenas a uma questão autobiográfica
de cunho pessoal, mas antes estariam relacionadas à ideia de “herança”
originária da filiação, construindo-se por meio de uma “interpretación de
3 É bastante emblemático, nesse sentido, o processo de produção do filme La memoria obstinada,
de Patricio Guzmán, tal qual abordado por Jaume Peris Blanes (2009). Conforme explica Peris
Blanes em seu artigo, Guzmán havia dirigido La batalla de Chile, um documentário produzido
nos meses que antecederam o golpe de Estado no Chile e no qual se apresentava o processo
de organização popular do período e as respostas violentas que a ele se constituíam, e que
conseguira grande reconhecimento internacional, ainda que só pudesse ser exibido no Chile
em 1997. Foi nesse momento que Guzmán se propôs a exibir o filme em diferentes colégios
de Santiago, quando filmaria as reações dos jovens estudantes diante desse passado ao mesmo
tempo tão recente e tão desconhecido, dando origem a um segundo documentário, La memoria
obstinada. As reações no Chile foram significativas: dos cerca de quarenta colégios aos quais
propôs a exibição, Guzmán teve resposta positiva de apenas quatro, sendo que os demais afir-
mavam que o passado deveria ser esquecido e que as crianças poderiam ficar traumatizadas
diante do conhecimento da história recente de seu país. Vale destacar que em seu romance,
Zambra cita La batalla de Chile no diário do personagem-escritor.

280
espaços de memória na literatura
espanhola e hispano-americana

los hechos [que] proviene del escudriñamiento de los silencios familiares


y una profunda soledad cotidiana” (AMARO CASTRO, 2014, p. 113). No
que toca ao segundo aspecto, algumas pistas nos são dadas pelo próprio
Alejandro Zambra, que teria afirmado a Teodelina Basavilbaso (2014) que
“Formas de volver a casa es la novela que no quería o no podia escribir
ante los ojos de la sociedad chilena y, sin embargo, escribió”. E o escritor
teria feito isso, ainda em suas próprias palavras, “para llenar un vacío,
porque a veces recordar se convierte en el proceso de entender algo”.
Basavilbaso afirma ainda que, durante uma palestra feita por Zambra
na livraria McNally Jackson, em Nova Iorque, ele teria pontuado que a
escrita de Formas de voltar para casa levantou uma série de questões, a
principal delas sobre sua “legitimidade” (e a de sua geração) para narrar
a experiência dolorosa do período da ditadura.
O que o escritor propõe, portanto, com sua narrativa, pode ser
entendido como um retorno àquela casa da qual participou apenas par-
cialmente, a qual é tão bem apontada por Alan Pauls na orelha da edição
brasileira do livro: “o passado, esse país estrangeiro onde as coisas são
feitas de outro jeito” (PAULS apud ZAMBRA, 2014, grifos do autor).

A literatura dos filhos4

A pesquisadora Paulina Daza afirma, em “‘Buscamos una voz que


nos reciba’. Narrativa chilena reciente: lecturas cómplices” (2014), que
a temática da violência e da ditadura pinochetiana é uma característica
de parte da literatura chilena produzida a partir de fins dos anos 1990
por jovens escritores que cresceram em um contexto político e histórico
conturbado, marcado pela violência, pelo exílio, pela instabilidade, tais
como Álvaro Bisama, Alejandra Costamagna, María José Viera-Gallo

4 “A literatura dos filhos”, expressão usada por Alejandro Zambra para nomear um dos capítulos
de seu Formas de voltar para casa, não significa de modo algum uma rasura ou um apaga-
mento da “literatura dos pais”, senão a inscrição de uma nova voz nessa literatura: “Nada de
esto significa que se den por sepultados los relatos de los padres, de los protagonistas. Ser la
voz o escuchar las voces de los personajes secundarios no significa de ningún modo negarlos,
sino entenderlos, apoyarlos, perdonarlos, continuarlos, respetarlos, de­fenderlos y también
cuestionarlos, criticarlos, acusar­los y por qué no, a algunos, odiarlos” (DAZA, 2014, p. 8).

281
espaços de memória na literatura
espanhola e hispano-americana

e o próprio Zambra.5 Esses escritores retomam o contexto histórico por


meio das relações pessoais, do ambiente urbano e da vivência política
apresentados, muitas vezes, de forma apenas tangencial, ou sob a perspec-
tiva de um narrador infantil que não tinha um papel ativo nessa história.
Além disso, eles adotam um posicionamento distinto daquele de escritores
cujas obras, publicadas ainda nos anos 1990, assumiam nostalgicamente
a impossibilidade do retorno ao lar, à pátria: as narrativas mais recen-
tes, ainda que retomem a temática da “volta para casa” (como se vê em
Zambra e também em Nona Fernández e Diego Zúñiga, por exemplo), o
fazem apresentando-se como tentativas de encontrar caminhos para que
esse retorno seja possível, como bem explicita o título do livro de Zambra
– mesmo que nem sempre sejam bem-sucedidos nessa busca, conforme
demonstra Bieke Willem em “Desarraigo y nostalgia. El motivo de la
vuelta a casa en tres novelas chilenas recientes”: “en estas narraciones
el viaje a casa, y los posibles obstáculos que éste lleva consigo, ocupan
un lugar mucho más central en la narración que la efectiva llegada (si es
que llega a producirse)” (WILLEM, 2013, p. 144).
Esses escritores escrevem, assim, “de soslaio”, de uma posição peri-
férica com relação à vivência ditatorial chilena, de modo que suas narra-
tivas não podem ser tomadas como “uma literatura puramente política”,
mas antes como um tecido de memórias diversas que lhes possibilitam (e
aos seus leitores) uma apropriação e uma ressignificação desse passado
que tangenciam e que é muitas vezes tido como não pertencente a eles:

Aclaro que no se trata de una literatura puramente política,


pues las visiones de los narradores son las de quienes vivie-
ron los procesos políticos nacionales desde la postura del que
“observa”, “entiende a medias”, y “no opina”; son la voz de
una generación de “personajes secundarios”, como los llama
Alejandro Zambra, retomando la idea del documental “Actores
secundarios” dirigido por Jorge Leiva y Pachi Bustos, en el que

5 Uma “cartografia” do romance chileno contemporâneo pode ser encontrada em Areco Morales
(2011), que aponta a existência de quatro grandes linhas de força na produção literária do país:
a realista, a experimentalista, a “subgenérica” (narrativas de caráter mais popular, folhetinescas,
como o policial e a ficção científica) e a híbrida (com forte teor metaficcional). O romance de
Zambra parece-nos poder ser pensado, em especial, vinculado a esta última perspectiva.

282
espaços de memória na literatura
espanhola e hispano-americana

se relatan las actividades del movimiento estudiantil chileno


desde el año 85 hasta finales de la dictadura. En la narrativa
reciente estos “secundarios” tienen la posibilidad, al fin, de
preguntar (se), criticar y relatar la historia del que sufría o no
sufría consecuencias sin la facultad de intervenir ni a través de
la acción ni a través de la palabra. (DAZA, 2014, p. 2)

“Personagens secundários” é, aliás, o título da primeira parte do


livro de Zambra, à qual se seguem outras três partes, “A literatura dos
pais”, “A literatura dos filhos” e “Estamos bem”, nas quais um narrador
em primeira pessoa – ou melhor, como bem pontua Willem (2013, p.
152), “cuatro versiones de un mismo narrador en primera persona, por-
que las cuatro partes que conforman la novela son narradas por cuatro
modulaciones de la misma voz, cada versión siendo el reverso ficcional
y/o adulto de la otra” – compõe um texto de forte caráter memorialístico,
autobiográfico e metaficcional, propondo assim uma releitura da história
recente do Chile que se assume como parcial, fragmentária e pessoal,
aspectos que são reforçados pela posição não privilegiada que ele ocupa
em relação aos eventos de então.6
Esse posicionamento faz com que o entendimento político dos
personagens, inclusive, muitas vezes se explicite na narrativa como uma
construção a posteriori, possível apenas pela via da reconstrução memo-
rialística. É o que se percebe, por exemplo, no momento da apresentação
de Pinochet ao leitor ainda na primeira parte de Formas de voltar para
casa. Nesta, acompanhamos um narrador que se recorda de um momen-
to da infância, por volta de 1985, entremeado pelo violento terremoto
daquele ano, a descoberta do primeiro amor e a intuição de questões
políticas ainda incompreensíveis. No quarto capítulo desta parte, ocorre
a primeira menção ao nome de Augusto Pinochet, que não era mais que
um nome em uma frase no “muro [da escola] rabiscado pelos meninos
6 Conforme destaca Amaro Castro (2014, p. 112), a opção por um foco narrativo infantil acaba
também por desestabilizar a própria possibilidade do relato, que se assume como parcial e
precário e rompe com a pretensão de realismo do texto de caráter memorialístico. Ressalte-se,
entretanto, que essa precariedade é constitutiva de qualquer narrativa, como bem o demonstram
uma série de estudos acerca das relações entre ficção, história e verdade (GINZBURG, 2007;
LE GOFF, 2013; LIMA, 2006; RICOEUR, 2007; RIEDL, 1988; ROSSI, 2010; SELIGMANN-
SILVA, 2003).

283
espaços de memória na literatura
espanhola e hispano-americana

do ensino médio” (ZAMBRA, 2014, p. 18), no qual se misturavam “re-


cados jocosos, frases a favor ou contra o Colo-Colo, a favor ou contra
Pinochet” (ZAMBRA, 2014, p. 18), de quem o narrador assim se lembra:

[...] Quanto a Pinochet, para mim era um personagem da


televisão que conduzia um programa sem horário fixo, e eu o
odiava por isso, pelos aborrecidos pronunciamentos em cadeia
nacional que interrompiam a programação nas melhores partes.
Tempos depois o odiei por ser filho da puta, por ser assassino,
mas na época o odiava somente por aqueles intempestivos
shows que meu pai olhava sem dizer palavra, sem conceder
mais gestos que uma tragada mais intensa no cigarro que levava
sempre grudado na boca. (ZAMBRA, 2014, p. 18, grifos meus)

Ou quando, já na terceira parte do livro, se menciona o Estádio


Nacional e a (in)diferença com que eles, as crianças, enxergavam aquele
lugar que, em 1973, durante cerca de três meses, servira de campo de
concentração e extermínio, pelo qual passaram cerca de 20.000 prisio-
neiros, muitos dos quais tendo sido ali torturados e mortos (COZZI,
2000; MONTEALEGRE ITURRA, 2003; GUZMÁN MUÑOZ, 2004):

[...] Chegamos ao Estádio Nacional. O maior centro de deten-


ção em 1973 sempre foi, para mim, nada mais que um campo
de futebol. Minhas primeiras lembranças são meramente
esportivas e alegres. Sem dúvida foi ali, nas arquibancadas
desse estádio, que tomei meus primeiros sorvetes.

A primeira lembrança de Claudia também é alegre. Em 1977 anun-


ciou-se que Chespirito, o comediante mexicano, viria com todo o elenco
de seu programa para dar um espetáculo no Estádio Nacional. Claudia
tinha então quatro anos, via o programa e gostava muito.

Seus pais se negaram, em princípio, a levá-la, mas no final


cederam. Foram os quatro e Claudia e Ximena se divertiram
bastante. Muitos anos mais tarde Claudia soube que aquele
dia tinha sido, para seus pais, um suplício. Que a cada minuto
pensaram no absurdo que era ver o estádio cheio de gente rindo.

284
espaços de memória na literatura
espanhola e hispano-americana

Que durante todo o espetáculo eles tinham pensado apenas,


obsessivamente, nos mortos. (ZAMBRA, 2014, p. 114)

O posicionamento político, assim, se marca no momento em que


aquele garoto, “tempos depois”, passa a perceber de outra forma o mundo
em que vivia, num processo de amadurecimento que passa a ser, também
ele, apresentado pela narrativa, e que funciona como uma espécie de
denúncia a respeito dos impactos que a ditadura teve mesmo nas vidas
daqueles que a viveram de fora, dessas posições “secundárias”: “Nós,
crianças, entendíamos subitamente que não éramos tão importantes. Que
havia coisas insondáveis que não podíamos saber nem compreender”
(ZAMBRA, 2014, p. 54).
Esses impactos se evidenciam, por exemplo, quando o narrador
do romance de Zambra passa a levantar, ao longo do texto, uma série
de questionamentos acerca do comportamento e das opções de seus
pais, que não se posicionaram frente ao governo de Pinochet. A falta de
comprometimento dos pais teve forte impacto sobre o narrador, sendo a
responsável por mantê-lo na posição periférica que ocupou nessa história,
na “penumbra”: afinal, ele não viveu a violência ou o exílio na pele, o
que pode soar como um alívio ou como uma maldição, tal qual se pontua
na epígrafe deste artigo, questionamento que se mostra comum também
a outros escritores dessa geração, tal como aponta Daza:

[...] los niños crecen en familias aparentemente sin opinión


política, deliberadamente alejados de los movimientos polí-
ticos o sin un discurso real sobre el país en el que viven, de
manera que los niños-adolescentes descubren poco a poco la
realidad desde la aventura propia sin mediar las apreciaciones
familiares adultas. Así, los recuerdos y las opiniones infantiles
y adolescentes se construyen desde el contacto con la calle
(los vecinos, los amigos, los profesores, las familias de los
otros) y las experiencias propias, de modo que con los años
se mezclan para dar lugar a los recuerdos que al fin tienen voz
propia. (DAZA, 2014, p. 4)

285
espaços de memória na literatura
espanhola e hispano-americana

No romance de Zambra, além do contato com a rua e das experi-


ências próprias, podemos perceber que é na própria representação da
escrita que o narrador explicita essa mudança de posição, essa busca
pela ocupação de um lugar que, se não foi central no momento histórico
recordado, pode ser reencenado de forma crítica pelo olhar distanciado
do adulto de modo a indicar uma tomada de posição:

Agora não entendo bem a liberdade de que gozávamos na épo-


ca. Vivíamos numa ditadura, falava-se de crimes e atentados,
de estado de sítio e toque de recolher, e mesmo assim nada
me impedia de passar o dia vagando longe de casa. As ruas
de Maipú não eram, então, perigosas? De noite sim, e de dia
também, mas, com arrogância ou com inocência, ou com uma
mescla de arrogância e inocência, os adultos brincavam de
ignorar o perigo: brincavam de pensar que o descontentamento
era coisa de pobres e o poder, assunto dos ricos, e ninguém era
pobre nem rico, pelo menos não ainda, naquelas ruas, naquela
época. (ZAMBRA, 2014, p. 19-20, grifos meus)

Os adultos brincavam de ignorar o perigo, afirma o narrador, cons-


truindo assim uma ponte bastante delicada entre a infância e a vida adulta,
a qual funciona como uma responsabilização aplicada, pelos filhos, aos
posicionamentos dos pais, cujos atos determinam o modo pelos quais
aquelas crianças e adolescentes viveram a ditadura mas, ao mesmo tempo,
demonstra uma tentativa de entendimento por parte do filho da atitude dos
pais. Narra-se, assim, uma história particular que é, ao mesmo tempo, a
história de uma geração que encontra na literatura um dos caminhos para
se apropriar de suas vivências, uma geração que descende daquelas que
Zambra chama “as famílias sem história”, uma nova classe média que nos
anos 1970 se refugiara nos subúrbios de Santiago, as “famílias novas”
que se mostraram “dispostas ou talvez resignadas a habitar aquele mundo
de fantasia” (ZAMBRA, 2014, p. 25), caracterizado por ruas de casas
limpas e uniformes que “correspondían perfectamente con la imagen que
sus habitantes querían mostrar al mundo exterior” (WILLEM, 2013, p.
153), famílias que, entre a “ignorância” e a “inocência”, construíam suas
vidas como se estas pudessem estar alheias ao cenário político do país.

286
espaços de memória na literatura
espanhola e hispano-americana

Ao brincar de ignorar o perigo, os adultos assumiam pela omissão


uma posição favorável ao governo de Pinochet, como explicitam as co-
locações do personagem-escritor ao pensar em sua família:

Não posso evitar perguntar a meu pai se naqueles anos ele era
ou não pinochetista. Eu perguntei isso centenas de vezes, desde
a adolescência, é quase uma pergunta retórica, mas ele nunca
admitiu – por que não admitir, penso, por que negar durante
tantos anos, por que continuar negando? [...]. (ZAMBRA,
2014, p. 124)

Todos estavam metidos em política, mamãe. Você também.


Vocês. Ao não participar, apoiavam a ditadura [...]. (ZAM-
BRA, 2014, p. 127)

Com isso, acabou-se imputando sobre los hijos de la ditadura, como


essa geração é conhecida no Chile, a sombra de uma culpa persistente
que decorre do fato de que, enquanto pessoas eram torturadas, morriam,
desapareciam, eles continuavam lá, fazendo desenhos num canto, “a salvo
da história” (ZAMBRA, 2014, p. 155). Afinal, como afirma o narrador de
Zambra, “é como se tivéssemos presenciado um crime. Não o cometemos,
somente passávamos pelo lugar, mas arrancamos dali porque sabemos
que se nos encontrassem nos culpariam. Nos julgamos inocentes, nos
julgamos culpados: não sabemos” (ZAMBRA, 2014, p. 131).
Para retornar à casa, é preciso enfrentar esse fantasma, é preciso
reclamar para si próprio esse passado, reconhecer essa história, revolvê-la
e ressignificá-la, mesmo que se continue sem saber.

Recuperar as cenas dos personagens secundários7

A estratégia narrativa de Alejandro Zambra para “recuperar as


cenas” desses personagens secundários é bastante complexa, a começar
pela organização de seu livro. A parte inicial, “Personagens secundários”,
7 “[...] Mas não é amor o que nos une. Ou é amor, mas amor à lembrança. / O que nos une é o
desejo de recuperar as cenas dos personagens secundários. Cenas razoavelmente descartadas,
desnecessárias, que no entanto colecionamos sem cessar” (ZAMBRA, 2014, p. 115).

287
espaços de memória na literatura
espanhola e hispano-americana

é apresentada por um narrador que recorda sua infância a partir de um


fato bastante significativo, qual seja, o dia em que se perdeu na cidade
mas conseguiu retornar sozinho para sua casa:

Uma vez me perdi. Tinha seis ou sete anos. Vinha distraído e


de repente não vi mais meus pais. Me assustei, mas logo reto-
mei o caminho e cheguei em casa antes deles – continuavam
me procurando, desesperados, mas naquela tarde achei que
tinham se perdido. Que eu sabia voltar para casa e eles não.
(ZAMBRA, 2014, p. 11)

Acompanhamos as memórias desse garoto, narradas já por um


adulto que as recupera, e que afirma na última frase do primeiro capí-
tulo: “Às vezes penso que escrevo este livro só para recordar aquelas
conversas”. Estão dadas aí duas importantes pistas sobre a narrativa: o
papel que nela terá Claudia, a personagem com a qual ele entabulava
“aquelas conversas”, e o fato de que a narrativa que lemos se trata de um
“livro” em processo de escritura, o que implica no teor metaficcional da
narrativa.
Na segunda parte do livro, “A literatura dos pais”, esse movimen-
to se explicita quando o narrador deixa claro ao leitor que o texto lido
anteriormente é o início do romance que ele escreve, o livro dentro do
livro: “Pouco a pouco avanço no romance. Passo o tempo pensando em
Claudia como se ela existisse, como se ela tivesse existido” (ZAMBRA,
2014, p. 51). Num trabalho de forte carga metaficcional, sabemos que
o personagem narrador, um escritor recém-separado, está tentando ela-
borar um romance que remonte à época de sua infância, os anos 1980,
no Chile. Nesta parte, nomeada pelo narrador como um “diário”8, são
8 Os diários, um dos muitos gêneros textuais que podem ser vinculados às “escritas de si”
(FOUCAULT, 1992), compondo o chamado “espaço biográfico” (ARFUCH, 2010), são textos
de caráter prioritariamente privado, íntimo, que possibilitariam a seus autores aprofundar-se
sobre si mesmos com um alto grau de liberdade, o que justificaria o fato de serem chamados
por Maurice Blanchot, em “O diário íntimo e a narrativa”, de “empresas de salvação” (BLAN-
CHOT, 2005, p. 274). É o próprio Blanchot, no entanto, que aponta o principal limite que se
impõe sobre os diários: o calendário. Essa vinculação ao calendário, segundo o pesquisador
francês, funciona como uma espécie de forma de fiscalização do diário, que vincula o que ali
se escreve a uma dada rotina e a uma determinada data: “O que se escreve se enraíza então,
quer se queira, quer não, no cotidiano e na perspectiva que o cotidiano delimita” (BLANCHOT,

288
espaços de memória na literatura
espanhola e hispano-americana

apresentados fragmentos memorialísticos da infância e juventude do


personagem-escritor, além de eventos narrados no presente – o momento
da escrita do livro, os encontros e a reaproximação com a ex-esposa,
Eme, que descobrimos ter sido a inspiração para o romance em processo.
É também muito marcante nessa parte a proximidade que se percebe
entre o personagem-escritor e o próprio Alejandro Zambra, o que possi-
bilita ao texto uma série de articulações autobiográficas e metaficcionais,
com destaque para as frequentes reflexões acerca do processo de escrita
de um romance com forte carga memorialística:

Tentei depois continuar escrevendo. Não sei muito bem por


onde avançar. Não quero falar de inocência nem de culpa: não
quero mais do que iluminar alguns recantos, os recantos onde
estávamos. Mas não estou seguro de fazer isso bem. Sinto-
me próximo demais daquilo que conto. Abusei de algumas
lembranças, saqueei a memória, e também, de certo modo,
inventei demais. Estou de novo em branco, como uma carica-
tura do escritor que contempla impotente a tela do computador.
(ZAMBRA, 2014, p. 61)

Destaco três estratégias que reforçam a leitura autobiográfica: a


inserção esporádica, como amigos do escritor, de nomes de pessoas re-
ais que compõem o circuito artístico chileno contemporâneo, tais como
Rodrigo Olavarría e Alejandra Costamagna; a inclusão de elementos
relacionados aos personagens que coincidem com aspectos da vida do
escritor, tais como a infância vivida em Maipú (Zambra mudou-se para
a comuna aos cinco anos de idade, morando na Villa Las Terrazas), a
residência de Claudia em La Reina (região onde vive hoje o escritor), a
formação e atuação profissional do personagem-escritor, como escritor e
professor universitário (coincidente com a de Zambra), conforme infor-
mações de Teodelina Basavilbaso (2014); as declarações para a imprensa
em que se reforça o quanto o livro tem de pessoal, como na entrevista
a Roberto Careaga publicada no jornal La Tercera, em que o escritor
2005, p. 270). No caso do diário do personagem-escritor de Formas de voltar para casa, não
há qualquer indicação de data nem o indício de uma sistematização da periodicidade da escrita:
os fragmentos parecem ser escritos à revelia do calendário.

289
espaços de memória na literatura
espanhola e hispano-americana

afirma: “Tenía la necesidad de hablar sobre la infancia, sobre los 80.


Quería recuperar ese paisaje y aceptarlo como mío. Tal vez necesitaba
hablar de mí. Quizás sí hay mucha autorreferencia” (ZAMBRA apud
CAREAGA, 2011).
A terceira parte, “A literatura dos filhos”, nos apresenta à vida adulta
do personagem, quando ele reencontra Claudia e tem com ela um envol-
vimento amoroso, retomando-se, assim, o texto do romance que está a ser
produzido pelo personagem-escritor, mas que, agora, já não narra mais
sob a perspectiva da criança. Nessa parte, as reflexões metaficcionais
são ainda mais presentes, como discutiremos na próxima seção deste
artigo. Na quarta e última parte, “Estamos bem”, retoma-se o aspecto
fragmentário do texto, o diário do escritor, no qual acompanhamos o
retorno (e o encerramento) de seu relacionamento com a ex-esposa. É
também nessa parte que Eme aceita, após vários pedidos do escritor, ler
o manuscrito do romance em que ele trabalha. O livro se encerra com
um terremoto, e a constatação de que “A casa resistiu, de todo modo.”
Temos, nesse conjunto, dois personagens secundários que, ao mes-
mo tempo em que se opõem, se complementam.9 De um lado encontra-
se o narrador do romance, aquela criança sem nome, um dos “meninos
abençoados pela penumbra” (ZAMBRA, 2014, p. 59), cujos “pais tinham
se mantido à margem” (ZAMBRA, 2014, p. 65) das questões políticas
no período ditatorial, o filho de uma “família [em que] não havia mortos
nem havia livros” (ZAMBRA, 2014, p. 98). De outro, temos Claudia,
o amor de infância desse menino, que viveu “uma história dolorosa”
(ZAMBRA, 2014, p. 125) em sua vida e que, mesmo criança e sem
entender ao certo o que acontecia, vivenciou muito mais de “perto” e de
“dentro” os acontecimentos do governo de Pinochet: o pai dela, Roberto
(a quem o menino conhecia como sendo seu tio Raúl e que tinha sido o
motivo da aproximação dos dois), era um “militante disciplinado”, que
nos primeiros anos da ditadura esteve encerrado em casa, mas que, em
1981, “voltou a circular por alguns lugares que até então havia evitado
9 Poderíamos inserir aqui, ainda, a irmã mais velha de Claudia, Ximena, e a própria Eme, que
reconhece como sua a narrativa do romance do personagem-escritor, mas opto por me concentrar
nas duas personagens que recordam a infância e se apropriam de sua história pelo esforço de
contá-la.

290
espaços de memória na literatura
espanhola e hispano-americana

e rapidamente assumiu responsabilidades, de início muito menores,


como informante” (ZAMBRA, 2014, p. 91). Foi nessa época que a mãe
de Claudia se mudou, com ela e a irmã mais velha, Ximena, para uma
casa em Maipú:

Era a melhor maneira de protegê-las, longe de tudo, longe do


mundo. Roberto, enquanto isso, corria riscos, mas mudava
de aparência constantemente. No início de 1984 convenceu
seu cunhado Raúl para que partisse e deixasse para ele sua
identidade. Raúl saiu do Chile pela cordilheira, para Mendoza,
sem um plano definido, mas com algum dinheiro para começar
uma vida nova.
Foi então que Roberto conseguiu aquela casa na travessa Ala-
dino. De novo Maipú aparecia como um lugar seguro, onde
era possível não despertar suspeitas. Morava muito perto de
sua mulher e de suas filhas e a nova identidade lhe permitia
vê-las mais amiúde, mas era preciso cautela. As meninas
quase não viam o pai e Claudia sequer sabia que ele morava
perto. Soube naquela noite, a noite do terremoto.10 (ZAMBRA,
2014, p. 91-92)

Cabe, aqui, uma breve digressão. Na primeira parte do livro, há uma


passagem que já acena para a diferença da vida das duas crianças por
meio de uma leitura simbólica da região de Maipú em que vivia Claudia.
Nessa passagem, Claudia pede ao amigo que a acompanhe até em casa,
e ele assim relembra da ocasião:

Chegamos, por fim, a uma vila de só duas ruas, a travessa


Neftalí Reyes Basoalto e a travessa Lucila Godoy Alcayaga.
Parece piada, mas é verdade. Boa parte das ruas de Maipú tinha,
ainda tem, esses nomes absurdos: meus primos, por exemplo,
moravam na travessa Primeira Sinfonia, contígua à Segunda
e à Terceira Sinfonia, perpendiculares à Calle El Concierto, e

10 É bastante significativo que, ao apresentar a história de Claudia, o texto retome o terremoto


de 1985, aquela noite que assustou o narrador, que o fez “perder a confiança no solo”, “saber
que de um momento para outro tudo pode vir abaixo” (ZAMBRA, 2014, p. 17). A narrativa
de Claudia aparece como um avesso da sua, indicando um mundo no qual a casa já havia se
perdido há muito tempo.

291
espaços de memória na literatura
espanhola e hispano-americana

próximas às travessas Opus Uno, Opus Dos, Opus Tres etcéte-


ra. Ou a própria travessa onde eu vivia, Aladino, que cruzava
com a Odín e a Ramayana e era paralela à Lemuria [...].
Moro na vila dos homens reais, disse Claudia naquela tarde do
reencontro, fitando-me nos olhos com seriedade. Moro na vila
dos homens reais, disse de novo, como se precisasse recomeçar
a frase para continuá-la: Lucila Godoy Alcayaga é o verdadeiro
nome de Gabriela Mistral, explicou, e Neftalí Reyes Basoalto,
o nome real de Pablo Neruda. Sobreveio um longo silêncio
que rompi dizendo a primeira coisa que me ocorreu: morar
aqui deve ser muito melhor que viver na travessa Aladino.
(ZAMBRA, 2014, p. 25-26)

A vila dos homens reais alude à relação política da família de


Claudia, que vivencia de dentro os perigos e as violências da ditadura,
e se opõe “àquelas ruas de fantasia” das vilas de Maipú ocupadas pela
nova classe média, mencionadas anteriormente. O desejo intuído do
menino, de que seria melhor viver ali do que onde ele vivia, remete-nos
às demais críticas tecidas ao longo do livro àqueles que procuraram viver
à margem da situação.
Mas voltemos à verdadeira história de Claudia, que o leitor vai
conhecer na terceira parte do livro, quando o narrador e a amiga se
reencontram, já adultos, e retomam as lembranças da infância que os
havia aproximado. É o momento em que Claudia afirma ter precisado
“aprender a contar sua história como se não doesse” (ZAMBRA, 2014,
p. 93) e esclarece, por meio de suas lembranças, alguns dos acontecimen-
tos enigmáticos que permearam a vida infantil do narrador e que foram
narrados na primeira parte do livro: Claudia, que conhecera o menino na
noite do terremoto, algum tempo depois passa a segui-lo para pedir que
ele “cuide” de seu tio, ou seja, que vigiasse Raúl, que era seu vizinho,
ficando atento às suas atividades e anotando num caderninho qualquer
informação suspeita para passar a ela.
A estratégia de Zambra é fundamental à narrativa que se delineia
no livro dentro do livro e, também, à sua própria narrativa. Afinal, como
bem pontua Willem,

292
espaços de memória na literatura
espanhola e hispano-americana

El escritor necesita la historia de Claudia para que su novela


se convierta realmente en una novela ‘representativa’ de la
generación de los niños que crecieron durante la dictadura:
abarca tanto las vidas de los que sintieron directamente sus
consecuencias, como las vidas de las personas para quienes
la dictadura era una historia ajena. (WILLEM, 2013, p. 155)

Estamos, assim, diante de duas crianças que vivem a ditadura de


lugares diferentes, mas que, ainda assim, são personagens secundárias
dessa história e que, de alguma maneira, no livro de Zambra, exercitam
suas formas de voltar para casa, experimentando recuperar esse passado
por meio da narrativa.

Ninguém fala pelos outros11

É por meio da narrativa da memória que esses personagens infantis


tentam recuperar sua história e encontrar nela seu lugar, se apropriar de
um passado que lhes é constantemente negado, mas que não deixou de
interferir em suas vidas. A escrita aparece, assim, para Zambra e seu
personagem-escritor, como um ofício necessário e complexo, como
pontua Daza:

La voz de esos niños surge en la novela para aclarar y reclamar


de algún modo que también son parte de la historia, que de
alguna forma siempre es posible enterarse del dolor ajeno y
que crecer per­mite cuestionar las decisiones de los adultos,
dudar y reencontrase con la historia para hacerse parte de ella
desde el presente. (DAZA, 2014, p. 9)

No entanto, o retorno à casa, o “reencontro com a história” que


a narrativa possibilita, não se faz sem que se enfrente uma série de
dificuldades no processo de associação entre a memória, a história e
o texto. A maior parte dessas dificuldades reside na interpolação entre

11 “Sabia pouco, mas pelo menos sabia isto: que ninguém fala pelos outros. Que, mesmo que
queiramos contar histórias alheias, terminamos sempre contando nossa própria história”
(ZAMBRA, 2014, p. 99).

293
espaços de memória na literatura
espanhola e hispano-americana

história e ficção, de forma que as narrativas memorialísticas acabam por


se fundar em um entrelugar no qual se mesclam a memória individual
e a memória coletiva, tal como pontua Maurice Hallbwachs (2006), às
quais se associam ainda a imaginação e o esquecimento, de acordo com
Paul Ricoeur (2007).
É interessante, desse modo, observarmos a série de afirmações do
narrador do livro dentro do livro, ainda na primeira parte do romance,
acerca das falhas desse processo de rememoração que está na base de
sua narração, e que pode ser sintetizada na seguinte expressão: “Não
consigo lembrar direito [...]” (ZAMBRA, 2014, p. 25). Afinal, se a
memória é, num primeiro momento, a “propriedade de conservar certas
informações” (LE GOFF, 2013, p. 387), ela deriva tanto de uma série de
condições psíquicas e fisiológicas quanto de instrumentos que possibi-
litem a ampliação desse processo de rememoração, tais como a produ-
ção de documentos dos mais diversos tipos. Nesse sentido, a escrita se
apresenta como elemento primordial à constituição da memória de uma
determinada sociedade, memória esta que pode passar por processos de
manipulação ao longo da história.12 Assim, as falhas da memória que o
narrador assume como suas – e que, como vimos anteriormente, derivam
de um projeto de apagamento que se constituiu amplamente, em nível
político, social e estético – abrem espaço para a imaginação, como no
momento em que o narrador afirma a lembrança de um evento que nunca
chegou a se concretizar: “Meu pai dava bronca mas não batia. Nunca me
bateu, não era seu estilo [...]. Eu alimentava, mesmo assim, a ilusão de que
alguma vez me espancaria até quase me matar. Uma lembrança habitual
de infância é a iminência dessa surra que nunca chegou” (ZAMBRA,
2014, p. 22, grifos meus).
A lembrança da surra que nunca chegou reforça a relação entre
memória e imaginação, conforme apontada por Paul Ricoeur, as quais,
ainda que não se superponham ou sejam equivalentes, necessitam uma
da outra para o processo de reconstrução narrativa. Nessa perspectiva,
12 Como destaca o historiador Paolo Rossi, “O ‘apagar’ não tem a ver só com a possiblidade de
rever, a transitoriedade, o crescimento, a inserção de verdades parciais em teorias mais arti-
culadas e mais amplas. Apagar também tem a ver com esconder, ocultar, despistar, confundir
os vestígios, afastar da verdade, destruir a verdade” (ROSSI, 2010, p. 32).

294
espaços de memória na literatura
espanhola e hispano-americana

em que a relação entre memória e imaginação se mostra como inquestio-


nável, recorrer à primeira seria a única forma pela qual podemos acessar
o passado, o que conferiria autenticidade àquilo que se toma como lem-
brança – ou seja, mesmo que alcançar um relato absoluto e verdadeiro
seja uma impossibilidade, a tentativa de produzi-lo é fundamental aos
processos de revisão da história. Ou, nas palavras do personagem-escritor
de Zambra, “É estranho, é tolo pretender um relato genuíno sobre algo,
sobre alguém, sobre qualquer um, até mesmo sobre si próprio. Mas é
necessário também” (ZAMBRA, 2014, p. 141).
A escrita, assim, se impõe como um dever, o dever de recordar
aqueles que não podem mais falar; o dever de se inserir numa história
rasurada e de nela assumir um posicionamento, ainda que tardio; o dever
da resistência e da busca obstinada por uma memória. Por mais que esta
falhe, e seja portanto parcial, fragmentária, incompleta, ela precisa se
construir como condição de sobreviver ao passado, como meio de apontar
que cicatrizes ficaram, e persistem, por mais sutis que possam parecer:

Eu gostaria de me lembrar agora, com absoluta precisão, de


cada uma de suas palavras e anotá-las neste caderno, sem maio-
res comentários. Gostaria de imitar sua voz, aproximar uma
câmera dos gestos que fazia quando penetrava, sem medo, no
passado. Gostaria que outra pessoa escrevesse este livro. Que
ela, por exemplo, o escrevesse. Que estivesse agora mesmo, na
minha casa, escrevendo. Mas eu é que devo escrevê-lo e aqui
estou. E aqui vou ficar. (ZAMBRA, 2014, p. 87)

Referências

AMARO CASTRO, Lorena. Formas de salir de casa, o cómo escapar del Ogro:
relatos de filiación en la literatura chilena reciente. Literatura y lingüística,
Santiago, n. 29, p. 109-129, 2014. Disponível em: https://scielo.conicyt.cl/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0716-58112014000100007&lng=es&nrm=iso&tlng
=es. Acesso em: 06 mar. 2018.
ARECO MORALES, Macarena. Cartografía de la novela chilena reciente. Anales de
Literatura Chilena, Santiago, ano 12, n. 15, p. 179-186, jun. 2011. Disponível em:
http://analesliteraturachilena.letras.uc.cl/index.php/n15. Acesso em: 06 mar. 2018.

295
espaços de memória na literatura
espanhola e hispano-americana

ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas de subjetividade contemporânea.


Tradução Paloma Vidal. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2010.
BASAVILBASO, Teodelina. El chileno Alejandro Zambra escribe la novela que
creía que no escribiría. Frontera D Revista Digital, 19 jun. 2014. Disponível em:
http://www.fronterad.com/?q=chileno-alejandro-zambra-escribe-novela-que-creia-
que-no-escribiria. Acesso em: 06 mar. 2018.
BLANCHOT, Maurice. O diário íntimo e a narrativa. In: BLANCHOT, Maurice.
O livro por vir. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
p. 270-278.
CAREAGA, Roberto. Alejandro Zambra: “Tenía la necesidad de recuperar el
paisaje de la infancia y los 80”. La Tercera, Santiago, 22 abr. 2011. Disponível em:
http://diario.latercera.com/edicionimpresa/alejandro-zambra-tenia-la-necesidad-de-
recuperar-el-paisaje-de-la-infancia-y-los-80/. Acesso em: 05 mar. 2018.
COZZI, Adolfo. Estadio Nacional. Santiago de Chile: Editorial Sudamericana, 2000.
DAZA, Paulina. “Buscamos una voz que nos reciba”. Narrativas chilenas recientes:
lecturas cómplices. ARBOR Ciencia, Pensamiento y Cultura, Madrid, v. 190-769,
p. 1-13, sep./oct. 2014, a162. Disponível em: http://arbor.revistas.csic.es/index.php/
arbor/article/viewArticle/1964/2309. Acesso em: 06 mar. 2018.
ERRÁZURIZ, Luis Hernán. Dictadura militar en chile: antecedentes del golpe
estético-cultural. Latin American Research Review, v. 44, n. 2, p. 136-157,
2009. Disponível em: lasa.international.pitt.edu/LARR/prot/fulltext/vol44no2/
Errazuriz_44-2.pdf. Acesso em: 13 mar. 2018.
FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: FOUCAULT, Michel. O que é um autor?
3. ed. Tradução Antonio F. Cascais e Eduardo Cordeiro. Lisboa: Passagens, 1992.
p. 129-160.
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. Tradução Rosa
Freire d’Aguiar e Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
GUZMÁN MUÑOZ, Fernando. Estadio Nacional. La sangre o la speranza. 2004.
Monografia (Graduação em História) – Pontifícia Universidad Católica de Chile,
Santiago, 2004.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução Beatriz Sidou. São Paulo:
Centauro, 2006.
HARNECKER, Marta. Reflexiones sobre el gobierno de Allende: estudiar el pasado
para construir el futuro. Historical Materialism: Research in Critical Marxist
Theory, Londres, v.11, n. 3, outono 2003. Disponível em: http://bibliotecavirtual.
clacso.org.ar/clacso/otros/20111026114216/allende.pdf. Acesso em: 13 mar. 2018.

296
espaços de memória na literatura
espanhola e hispano-americana

LE GOFF, Jaques. História e Memória. Tradução Bernardo Leitão, Irene Ferreira


e Suzana Ferreira Borges. Campinas: Editora Unicamp, 2013.
LIMA, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras,
2006.
LIRA, Elizabeth. Algunas reflexiones a propósito de los 40 años del Golpe Militar
en Chile y las condiciones de la reconciliación política. Psykhe, Santiago, v. 22, n.
2, p. 5-18, 2013. Disponível em: https://scielo.conicyt.cl/scielo.php?script=sci_artt
ext&pid=S0718-22282013000200002. Acesso em: 13 mar. 2018.
MONTEALEGRE ITURRA, Jorge. Frazadas del Estadio Nacional. Santiago:
LOM Ediciones, 2003.
PERIS BLANES, Jaume. Los tiempos de la violencia en Chile: La memoria
obstinada de Patricio Guzmán. Alpha, Osorno, n. 28, p. 153-168, jul. 2009.
Disponível em: https://scielo.conicyt.cl/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0718-
22012009000100010&lng=es&nrm=iso. Acesso em: 13 mar. 2018.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução Alain François.
Campinas: Editora Unicamp, 2007.
RIEDL, Dirce Côrtes (Org.). Narrativa: ficção e história. Rio de Janeiro: Imago,
1988.
ROSSI, Paolo. O passado, a memória, o esquecimento: seis ensaios da história das
ideias. Tradução Nilson Moulin. São Paulo: UNESP, 2010.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. História, memória, literatura: o testemunho na
Era das Catástrofes. Campinas: Ed. UNICAMP, 2003.
WILLEM, Bieke. Desarraigo y nostalgia. El motivo de la vuelta a casa en tres
novelas chilenas recientes. Iberoamericana, Berlim, v. XIII, n. 51, p. 139-157,
2013. Disponível em: https://journals.iai.spk-berlin.de/index.php/iberoamericana/
article/view/386. Acesso em: 06 mar. 2018.
ZAMBRA, Alejandro. Bonsai. Tradução Josely Vianna Baptista. São Paulo: Cosac
Naify, 2012.
ZAMBRA, Alejandro. A vida privada das árvores. Tradução Josely Vianna Baptista.
São Paulo: Cosac Naify, 2013.
ZAMBRA, Alejandro. Formas de voltar para casa. Tradução José Geraldo Couto.
São Paulo: Cosac Naify, 2014.
ZAMBRA, Alejandro. Meus documentos. Tradução Miguel Del Castillo. São Paulo:
Cosac Naify, 2015.

297

Você também pode gostar