Você está na página 1de 13

MIGUEL TORGA

Adolfo Correia da Rocha, que será conhecido por Miguel Torga, nasce
em 12 de Agosto de 1907, em S. Martinho da Anta, concelho de Sabrosa, Trás-
os-Montes.
Filho de gente do campo, não mais se desliga das origens, da família, do meio
rural e da natureza que o circunda.
Entra no Seminário, donde sai pouco depois.
Emigra para o Brasil em 1920.
Trabalha na fazenda do tio, é a dureza da "capinagem" do café.
Estuda no liceu de Leopoldina, por orientação do tio.
Regressa a Portugal em 1925.
Entra da Faculdade de Medicina de Coimbra.
Ainda estudante publica os seus primeiros livros.
A família é um dos pontos fulcrais da sua vida. O pai, com quem a
comunicação se faz quase sem necessidade de palavras, é um dos fortes esteios
da sua ternura, amor e respeito. “Cortei o cabelo ao meu pai e fiz-lhe a barba.
(...) Foi sempre bonito, o velhote...” O mesmo amor em poemas dedicados à
mãe.
Morre em 17 de Janeiro de 1995. Enterrado em S. Martinho da Anta, junto
dos pais e irmã.
Pintura de Jorge Marinho
MIGUEL TORGA

Identidade

Matei a lua e o luar difuso.


Quero os versos de ferro e de cimento.
E em vez de rimas, uso
As consonâncias que há no sofrimento.

Universal e aberto, o meu instinto acode


A todo o coração que se debate aflito.
E luta como sabe e como pode:
Dá beleza e sentido a cada grito.

Mas como as inscrições nas penedias


Têm maior duração,
Gasto as horas e os dias
https://1.bp.blogspot.com/-4BpvAyK-4cc/UyzG7KKFjnI/AAAAAAAASN0/UZ7RaLTf3hs/s1600/lua-3d_3014_1600x1200.jpg
A endurecer a forma da emoção.
Miguel Torga
MIGUEL TORGA

SÃO LEONARDO DA GALAFURA Envelhecida;


Rasos, todos os montes
À proa dum navio de penedos,
Deixarão prolongar os horizontes
A navegar num doce mar de mosto,
Até onde se extinga a cor da vida.
Capitão no seu posto
De comando,
Por isso, é devagar que se aproxima
S. Leonardo vai sulcando
Da bem-aventurança.
As ondas
É lentamente que o rabelo avança
Da eternidade,
Debaixo dos seus pés de marinheiro.
Sem pressa de chegar ao seu destino.
E cada hora a mais que gasta no caminho
Ancorado e feliz no cais humano,
É um sorvo a mais de cheiro
É num antecipado desengano
A terra e a rosmaninho!
Que ruma em direcção ao cais divino.
Miguel Torga

Lá não terá socalcos


Nem vinhedos
Na menina dos olhos deslumbrados;
Doiros desaguados
Serão charcos de luz
https://nit.pt/wp-content/uploads/2017/08/8f14e45fceea167a5a36dedd4bea2543-3-
754x394.jpg
MIGUEL TORGA

LIVRO DE HORAS andanças


Aqui diante de mim, do mesmo todo.
eu, pecador, me confesso Me confesso de ser charco
de ser assim como sou. e luar de charco, à mistura.
Me confesso o bom e o mau De ser a corda do arco
que vão ao leme da nau que atira setas acima
nesta deriva em que vou. e abaixo da minha altura.
Me confesso Me confesso de ser tudo
possesso que possa nascer em mim.
das virtudes teologais, De ter raízes no chão
que são três, desta minha condição.
e dos pecados mortais, Me confesso de Abel e de Caim.
que são sete, Me confesso de ser Homem.
quando a terra não repete De ser um anjo caído
que são mais. do tal céu que Deus governa;
Me confesso de ser um monstro saído
o dono das minhas horas do buraco mais fundo da caverna.
O dos facadas cegas e raivosas, Me confesso de ser eu.
e o das ternuras lúcidas e mansas. Eu, tal e qual como vim
E de ser de qualquer modo para dizer que sou eu
aqui, diante de mim!
MIGUEL TORGA

PRECE Senhor, acaba comigo


Senhor, Antes do dia marcado;
deito-me na cama Um golpe bem acertado,
Coberto de sofrimento; O tiro de um inimigo…
E a todo o comprimento Qualquer pretexto tirado
Sou sete palmos de lama: Dos sarcasmos que te digo.
Sete palmos de excremento
Da terra-mãe que me chama.
Senhor, ergo-me do fim
Desta minha condição
Onde era sim, digo não
Onde era não digo sim;
Mas não calo a voz do chão
Que grita dentro de mim.
MIGUEL TORGA

Vento que passas, leva-me contigo.

Sou poeira também, folha de outono.

Rês tresmalhada que não quer abrigo

No calor do redil de nenhum dono.

Leva-me, e livre deixa-me cair

No deserto de todas as lembranças,

Onde eu possa dormir

Como no limbo dormem as crianças.

https://c1.quickcachr.fotos.sapo.pt/i/ob1043fbb/18980385_pehVD.jpeg
MIGUEL TORGA

Livre não sou, que nem a própria vida

Mo consente.

Mas a minha aguerrida

Teimosia

É quebrar dia a dia

Um grilhão da corrente.

Livre não sou, mas quero a liberdade.

Trago-a dentro de mim como um destino.

E vão lá desdizer o sonho do menino

Que se afogou e flutua

Entre nenúfares de serenidade


https://i.pinimg.com/564x/46/7d/d5/467dd58080155ef503cb8ba1fad2262c.jpg

Depois de ter a lua!


MIGUEL TORGA

Parque infantil

Joga a bola, menino!


Dá pontapés certeiros
Na empanturrada imagem
Deste mundo.
Traça no firmamento
Órbitas arbitrárias
Onde os astros fingidos
Percam a majestade.
Brinca, na eterna idade
Que eu já tive
E perdi,
Quando, por imprudência,
Saltei o risco branco da inocência
E cresci.
MIGUEL TORGA

Saboreio este dia,

Fruto roubado no pomar do tempo.

Sabe-me a novidade,

Deixa-me os lábios doces.

Tem a polpa de sol, e dentro dele

Calmas sementes de outro sol futuro.

Cheira a terra lavrada e a maresia.

E tão livre e maduro,

Que quando o apanhei já ele caía.


MIGUEL TORGA

SEI UM NINHO

Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um passarinho
Novo.

Mas escusam de me atentar:


Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
https://1.bp.blogspot.com/-JGdWMLLFprM/UozBlO2FsAI/AAAAAAAAhrM/3PXHgO43kh0/s640/HH003125.jpg

Que faça o pino


A voar...
MIGUEL TORGA

CONFIANÇA

O que é bonito neste mundo, e anima,

É ver que na vindima

De cada sonho

Fica a cepa a sonhar outra aventura...

E que a doçura

Que se não prova

Se transfigura

Numa doçura

Muito mais pura

E muito mais nova...

João Marinho
MIGUEL TORGA

Poema Melancólico a não sei que Mulher

Dei-te os dias, as horas e os minutos


Destes anos de vida que passaram;
Nos meus versos ficaram
Imagens que são máscaras anónimas
Do teu rosto proibido;
A fome insatisfeita que senti
Era de ti,
Fome do instinto que não foi ouvido.

Agora retrocedo, leio os versos,


Conto as desilusões no rol do coração,
Recordo o pesadelo dos desejos,
Olho o deserto humano desolado,
E pergunto porquê, por que razão
Nas dunas do teu peito o vento passa
https://poetrysfeelings.files.wordpress.com/2011/03/mascara.jpg
Sem tropeçar na graça
Do mais leve sinal da minha mão...
MIGUEL TORGA

Liberdade

Liberdade, que estais no céu...


Rezava o padre-nosso que sabia,
A pedir-te, humildemente,
O pio de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.
— Liberdade, que estais na terra...
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.
Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
https://imgs-akamai.mnstatic.com/0d/07/0d077ee241fe8da8a76d745b01e387ac.jpg?quality=75&format=pjpg&fit=bounds&width=980&height=880
O pão da minha fome.
— Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.

Você também pode gostar