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Mensagem, Fernando Pessoa Síntese

Poema a poema S í n t es e
1.ª Parte – Brasão – Bellum sine Bello (Guerra sem guerra)

I. Os Campos

O dos Castelos
O primeiro poema de Mensagem apresenta Portugal como o «rosto» da Europa. O velho conti-

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nente é descrito como uma figura feminina [...].
A simbologia do poema é bem clara. Numa Europa decadente – «A Europa jaz» –, que vive das
glórias do passado (as origens gregas, a expansão romana e o império colonial inglês), apenas
Portugal, porque desempenha um papel messiânico, poderá fazer renascer o velho continente.
Atente-se na expressividade do emprego do verbo jazer, que tanto pode significar estar morto ou
apenas estar deitado, o que potencia a interpretação de que Portugal deverá recuperar o seu esta-
tuto de potência civilizadora e fazer regressar a Europa à glória do passado. Esta é uma espécie de
princesa adormecida à espera do beijo de um príncipe que a venha acordar, o próprio Portugal.1

O das Quinas
Os Deuses não dão nada de graça e, para se alcançar a glória, são exigidos muitos sacrifícios.
São felizes aqueles que «passam», aqueles que vivem sem ambições, que são desconhecidos e que
vivem na simplicidade. Devemos conformar-nos com o que temos porque a vida é breve. Assim
Deus, ao sagrar Cristo, opondo-O à Natureza, definiu a sua morte.
O título «O das Quinas» remete-nos para as quinas presentes no brasão da bandeira de Portugal.2

II. Os Castelos

Ulisses
Com o poema «Ulisses» a oferecer-se como abertura das seguintes quinze figuras, Pessoa
regressa à mais longínqua e mítica origem de Portugal, a fundação de Lisboa pelo herói grego
Ulisses, que, ainda que nunca tivesse aportado no Tejo e, mesmo, ainda que só tivesse existido
como mito («Foi por não ser existindo. / Sem existir nos bastou. / Por não ter vindo foi vindo / E
nos criou.»), se tornou ontologicamente mais real do que a própria reali-
dade sensível e concreta com que se saciam os homens «felizes» do
poema anterior.
Assim, Portugal teria sido fecundado pelo mito da errância mari-
nheira de Ulisses antes mesmo de ter sido historicamente fundado
por D. Afonso Henriques, transmitindo deste modo à sua futura
população a índole do nomadismo, da ousadia no que respeita a
desbravar mares incógnitos, do ímpeto de busca do desconhecido
– a capacidade de superar os mais temíveis obstáculos, que séculos
mais tarde se ativarão aquando da empresa dos Descobrimentos.
Ulisses representa, portanto, na economia desta primeira parte, a
imagem arquetípica de Portugal, o Portugal permanente, que sobre-
vive para além das múltiplas conjunturas da história.3

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Síntese Mensagem, Fernando Pessoa

Viriato
O poeta evoca a figura histórica de Viriato, pastor dos Montes Hermínios e feroz resistente
durante a invasão romana à Península Ibérica. Assumindo-se como chefe militar dos lusitanos,
travou uma luta heroica contra a ocupação dos romanos.
Enquanto Ulisses é mítico, Viriato é real, histórico, sendo, por isso, igualmente essencial na
fundação de Portugal, da nossa nacionalidade. «Assim se Portugal formou», a partir de uma
nação que ainda o não era, mas cujas raízes lusitanas já alicerçavam o Portugal futuro.
Nesse tempo marcado por um «confuso nada», essa terra lusitana antecede o que virá a ser
Portugal, tal como «aquela fria / Luz que precede a madrugada».4

O Conde D. Henrique
O que ressalta do poema «O Conde D. Henrique», mito fundador, é a ideia recorrente na
Mensagem de que o herói age impulsionado pela mão divina, por instinto patriótico, sem ter
consciência do verdadeiro alcance do seu gesto criador [...].
Aqui, como noutros casos, o dado histórico concreto apaga-se para dar lugar a uma figuração
predominantemente mítica, epicamente celebrada. O ato histórico de criação da Nação, que lhe é
imputado, fruto da força inconsciente que o anima, cabe por inteiro no erguer da espada que o
simboliza: «Ergueste-a, e fez-se.».5

D. Tareja
É uma das duas figuras femininas presentes em Mensagem. Filha de
D. Afonso VI de Leão e Castela, D. Teresa recebe como esposo o Conde
D. Henrique e, com ele, governa o Condado Portucalense, sendo, por isso,
«mãe de reis e avó de impérios».
Pessoa dirige-se-lhe, pedindo a sua proteção, para nós, portugueses,
– «Vela por nós!» – porque ela é uma espécie de mito. Simbolica-
mente, ela é mãe de Portugal, porque mãe do primeiro rei portu-
guês, e avó do grande império português de quinhentos, o império
das descobertas marítimas.
Portugal, originariamente fadado por Deus, terá um destino
igualmente por ela fadado – «A quem fadou o instinto teu!». É
que Portugal, aqui representado por o «homem que foi o teu
menino», «envelheceu» e precisa de ser rejuvenescido pelo «an-
tigo seio, vigilante» de D. Teresa e, de novo, ser criado.
D. Teresa é, assim, outro dos instrumentos da vontade divina,
um elemento medianeiro entre Deus e o homem, ambos responsá-
veis pela criação de um novo império que se aguarda.4

D. Afonso Henriques
D. Afonso Henriques é caracterizado como pai, com tudo o que isso implica em termos de
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valores simbólicos ligados à figura paterna: origem da força, progenitor de uma geração, que é
também a possibilidade de uma regeneração, dada a energia mítica que o seu «exemplo» pode
gerar. Um exemplo que o seu desempenho como cavaleiro legitimou.

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Mensagem, Fernando Pessoa Síntese

É a essa «inteira força» que o eu da Mensagem apela para a vigília contra a «hora errada» (em

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«D. Sebastião», designada como «hora adversa») em que «Novos infiéis vençam» a luta contra a
decadência do presente. Infiéis que, na Mensagem, tanto podem ser os Outros como o Outro de
nós mesmos, que adormeceu na resignação feliz. Ora isto equivale a pedir «A bênção como
espada / A espada como bênção» ou o sagrado direito de a bramir em nome dessa luta, como ener-
gia criativa, como força redentora da Pátria.5

D. Dinis
D. Dinis, o sexto rei de Portugal, é também a primeira grande figura literária do novo reino.
No entanto, é aqui evocado, essencialmente, como «plantador de naus a haver». No seu ato de
criação de pinhais, mesmo que pensados para proteger a agricultura do litoral, está já inscrita
(por predestinação) a posterior grandeza da Pátria. Os pinheiros são, por isso, um «trigo / De
Império» e a sua voz «o som presente desse mar futuro». [...]
As duas estrofes que compõem o poema estão organizadas de acordo com uma rigorosa sime-
tria. É bem pessoana a associação – interseção – da literatura com a aventura marítima. Nos dois
primeiros versos da segunda estrofe, o Cantar de Amigo, metamorfoseado em arroio, «busca o
oceano por achar».6

D. João o Primeiro
A ideia contida na primeira estrofe é que Deus interfere na
História do Homem no momento certo e que tudo o mais é maté-
ria que, com a morte, se transformará em cinzas, em pó.
Na segunda estrofe, particularizando, o poeta dirige-se a
D. João I, como Mestre, aludindo ao facto de ter sido o Mestre de
Avis, mas, possivelmente, também reconhecendo-o como guia
espiritual, eleito por Deus, para ter a glória de defender o Templo
sagrado que é Portugal. Note-se o herói involuntário («sem o
saber») e, mais uma vez, o sentido de Mestre naquele que dá o
bom exemplo, defender a Pátria.
A terceira parte do poema (3.ª estrofe) diz-nos que o rei se per-
petua na sua fama e, como uma chama que não se apaga nunca
(«eterna chama»), não será esquecido («repele [...] a sombra
eterna»).2

D. Filipa de Lencastre
Pessoa dirige-se à segunda figura feminina de Mensagem por meio de duas interrogações que
a identificam, inequivocamente, como mãe.
Princesa inglesa, casou com D. João I, monarca fundador da segunda dinastia de Portugal, e
dessa união nasceram oito filhos, designados pelo poeta Camões como Ínclita Geração, dada a sua
notabilidade, aliás referida no poema – «Que enigma havia em teu seio / Que só génios concebia?».
O poeta invoca D. Filipa, apelidando-a, em primeiro lugar, de «Princesa do Santo Graal», numa
clara alusão à demanda espiritual por ela protagonizada; em segundo lugar, de «Humano ventre
do Império», numa referência aos filhos que iniciaram a aventura marítima das descobertas,

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Síntese Mensagem, Fernando Pessoa

conducente ao Império marítimo; e, em terceiro lugar, de «Madrinha de Portugal», porque, ado-


rada pelo povo, terá continuado, segundo a crença popular, a velar pelos portugueses, mesmo
depois de morta.
Pede-lhe, por tudo isto, que continue a interceder por nós, povo português – «Volve a nós teu
rosto sério» –, como se de uma entidade de natureza divina se tratasse.4

III. As Quinas

D. Duarte, Rei de Portugal


O poema, um discurso na primeira pessoa, inicia-se com a expressão «Meu dever fez-me, como
Deus ao mundo», o que revela a ideia de que o homem se transformou em rei pela ação do dever,
assim como Deus fez o mundo. O verso «A regra de ser Rei almou meu ser» explicita que o que
deu alma ao seu ser foi o cumprimento do dever, apesar do destino – «Cumpri contra o Destino o
meu dever».
D. Duarte é então apresentado como «mártir» do dever.1

D. Fernando, Infante de Portugal Caderno de Atividades · p. 12

Verdadeiro mártir do Império, D. Fernando (1402-1443), mestre da Ordem de Avis, filho de


D. João I e de D. Filipa de Lencastre, morreu, aparentemente sem queixume nem recriminação, na
cidade de Fez, no Norte de África, após longo e sofrido cativeiro. [...] Neste sentido, D. Fernando é
evocado no poema:
– Como um Herói («Deu-me Deus o seu gládio [espada], por que eu faça / A sua santa guerra.»);
– Como um Mártir («[Deus] Sagrou-me seu em honra e em desgraça»);
– Como um Santo («Pôs-me [Deus] as mãos sobre os ombros e doirou-me / A fronte com o
olhar / [...]»).
Portanto, a figura do infante D. Fernando representa, na economia de Mensagem, todos os
portugueses partidos para as terras descobertas, encontrando anonimamente a prisão, o estro-
piamento ou a morte.3

D. Pedro, Regente de Portugal


D. Pedro, Regente do Reino durante a menoridade de D. Afonso V, aspeto a que o título do
poema alude, teve uma existência governativa atribulada. Acusado pela nobreza de se mover por
ambições pessoais, acabará por ser derrotado e morto pelas tropas do príncipe herdeiro, em
Alfarrobeira.
Não é, porém, essa a ideia que o poema com o seu nome faz passar. Contra essas secretas e
ilegítimas ambições, atribui-lhe Pessoa, reabilitando-o como herói, um elevado e incompreen-
dido estatuto moral [...].
Note a insistência no adjetivo «claro», simultaneamente conotador do homem eloquente, do
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patriota e do governante esclarecido, a que se junta o desinteresse pela posse material dos bens
terrenos (cf. 3.º verso), em detrimento do ideal da procura, do «seja só obter».
Partilha, assim, D. Pedro com os outros heróis que integram as «Quinas» o ter sido sagrado em
desgraça, o de ter vivido «sob mudos céus».5

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D. João, Infante de Portugal


O poema inicia-se com uma negação. É a voz do infante D. João, o elemento menos notável da

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Ínclita Geração, que se faz ouvir e que afirma «Não fui alguém». No conjunto dos seus «pares»
que ele considera serem «tão grandes», os seus irmãos, a Ínclita Geração, ele não foi ninguém.
Dotado de uma alma «Virgemmente parada», sem atividade ou audácia, D. João considera ter
sido um inútil eleito de Deus. Porém, como reconhece ser próprio da natureza do povo português
ter ou ser o tudo ou o nada – «O todo, ou o seu nada» –, ele terá sido o nada.4

D. Sebastião, Rei de Portugal Manual · p. 119

O poema apresenta o dramatismo do discurso na 1.ª pessoa, num


ato de afirmação e, ao mesmo tempo, de autointerpretação.
Tomando a sua própria voz, D. Sebastião interpreta-se, «narra» a sua
história, projeta-se no futuro e expõe-se à reflexão filosófica. É um eu
que se distancia, que se desdobra, que se torna em sentido de si mesmo,
objeto/sujeito. O tópico é o da loucura positiva, o da loucura como sin-
gularidade na ousadia, no espírito de aventura, na coragem, no tentar
ultrapassar os limites da mediania, de que D. Sebastião é tomado como
símbolo. O sinal positivo na figura contrapõe-se ao sinal negativo na
sua tentativa de realização. Loucura que se outorga, como herança,
àqueles que estarão, talvez, na hora certa, em que a sorte será favorável
à grandeza. O desdobramento do significado da figura: «o ser que
houve» – temporal, circunscrito a um momento histórico em que se es-
gotou; «não o que há» – intemporal, que permanece no homem habi-
tado pela loucura do desejo de grandeza. A sugestão factual é muito
leve, esboçada, estilizada, evocada em pequenos traços: o «areal» e a
sua correlação com o título, recria evocativamente a cena desastrosa
da Batalha de Alcácer Quibir. [...]
Voz de um rei dando testemunho de uma experiência que falhou de
facto, mas permanece em essência e aqui é anunciada como catalisa-
dora da vontade, da loucura de um povo, que parece ter-se esquecido
de si mesmo e ter-se deixado amortecer.7

IV. A Coroa

Nun’ Álvares Pereira


O destaque, na figura de Nuno Álvares Pereira, é dado à espada, que concede uma auréola à
personagem, atribuindo-lhe grandeza. Foi com a espada que ele se notabilizou, de tal forma que é
comparada à Excalibur do rei Artur. Foi com a espada que ele nos indicou o caminho a seguir, mas
Portugal precisa da luz e do brilho dessa espada para ver a estrada e assim poder segui-la.
O poema é um louvor ao guerreiro santo que viveu no reinado de D. João I e se distinguiu na
célebre batalha de Aljubarrota [...].
O poema termina com uma prece, pedindo a sua intervenção para ajudar Portugal a ver o
caminho e poder seguir em frente.2

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V. O Timbre

A Cabeça do Grifo: O Infante D. Henrique


Em Mensagem, há dois poemas dedicados ao Infante D. Henrique, este e o que abre a segunda
parte do poema, Mar Português.
Henrique, o navegador, o mais famoso membro da Ínclita Geração, iniciador da aventura
marítima portuguesa com a expedição a Ceuta em 1415, é apresentado como um ser solitário –
«Com seu manto de noite e solidão» –, inteiramente dedicado à sua missão: a de descobrir
um mundo novo. Este mundo do «mar novo» e das «mortas eras» faz dele o único im-
perador do mundo, porque só ele possui a chave do verdadeiro poder, o conheci-
mento: «O único imperador que tem, deveras, / O globo mundo em sua mão.».
O antetítulo do poema é claramente simbólico. O grifo é uma criatura
lendária com asas de águia e corpo de leão. A sua inserção em muitos
brasões deve-se ao facto de o grifo ser apresentado como uma enti-
dade repleta de virtudes e sem nenhum vício. Assim, ao escolher iden-
tificar o Infante D. Henrique com a cabeça do grifo, o poeta atribui-
-lhe o papel inspirador dos descobrimentos portugueses.2

Uma Asa do Grifo: D. João o Segundo


O Rei perscruta «o mar que possa haver além da terra». A abertura dos mares e as sucessivas
descobertas de praias e terras estranhas assustou não só o mundo ocidental, conjugado de longa
data para encontrar o caminho marítimo para as Índias, como também o Oriente, receoso da
perda das suas influências comerciais: «E parece temer o mundo vário / Que ele abra os braços e
lhe rasgue o véu».8

A Outra Asa do Grifo: Afonso de Albuquerque


Aponta para Afonso de Albuquerque, [...] Vice-Rei da Índia, grande conquistador e funda-
mento da estabilidade dessas paragens, sujeitas ao Império Português. [...]
O Império Colonial Português, criado e alargado fácil e rapidamente («como quem desdenha»)
por Albuquerque, estará seguro. Portugal será então o centro do mundo comercial e cultural.
Hiperbolicamente retratado – «Tão poderoso que não quer o quanto / Pode [...]», «Calcara mais
que o submisso mundo» – Afonso de Albuquerque foi, no seu tempo e nas paragens remotas,
motivo de admiração pela sua capacidade não só conquistadora como também civilizadora, con-
seguindo abarcar o domínio daqueles que formaram os «três impérios» mais conhecidos da
História: o Babilónio, o Oriental Medo-Persa e o Clássico, fundindo-os numa civilização única,
feita de várias e diversificadas gentes, usos e costumes.8

2.ª Parte – Mar Português – Possessio Maris (Posse do mar)

I. O Infante

Um dos mais singulares poemas de Mensagem, evidencia a nova representação da Terra após
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a «Posse do Mar» pelos Portugueses:


– Uma nova visão geográfica: a Terra não já retangular, como outrora fora pensada, mas
«redonda»;

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– Um novo estatuto para o «Mar»: «Que o mar unisse», como o Mediterrâneo sempre unira os

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povos das suas «orlas», e «já não separasse». Por outras palavras, o mar estatui-se como um novo
caminho entre os povos e continentes.
O poema reflete, assim, uma profunda revolução histórica, geográfica, cognitiva e antropoló-
gica, que diferencia radicalmente a visão antiga e medieval do mundo, fechado sobre a Europa, de
uma visão moderna, aberta e conhecedora dos restantes continentes, de oriente a ocidente.
Como habitual na sua interpretação, Pessoa considera poeticamente que o povo autor de tão
imensíssima obra histórica não a poderia ter realizado sem o auxílio da vontade de Deus, impul-
sionador da ação do Infante D. Henrique («Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. / Deus quis
que a terra fosse toda uma»). Assim, como sempre em Mensagem, o plano divino, providencialista
e messiânico, impõe-se ao plano historiográfico, elevando a ação dos Descobrimentos a um pata-
mar sagrado. Por isso, reza «Do mar e nós em ti nos deu sinal.», isto é, Deus, por via do Infante
D. Henrique, anunciou veladamente o estatuto de Portugal como país de um povo eleito ou ins-
trumento divino de unificação do mundo.
Porém, na última estrofe, o orgulho máximo («Quem te sagrou criou-te português.»), levando
à realização de um império material («Cumpriu-se o mar»), anuncia igualmente que este, blo-
queado, se desfez, foi suspenso, só se realizando efetivamente quando, mais tarde, se instaurar o
Quinto Império, ou, dito de outro modo, «Senhor, falta cumprir-se Portugal!».3

II. Horizonte

O título sugere distância, o que a nossa vista pode alcançar olhando


para longe e, relacionando-o com o «Mar Português», imaginamos
a linha do horizonte, aquela linha de contacto aparente entre o
céu e a terra.
A primeira estrofe começa por uma apóstrofe, o poeta
dirige-se diretamente ao mar, personificando-o ao
falar para o mar antigo, o mar desconhecido que
metia medo, mas onde existiam já «coral e praias e
arvoredos». Com o início das descobertas maríti-
mas, depois que se venceu o medo e que foram ultra-
passados os obstáculos e também o que era desconhe-
cido e misterioso como a noite, o nevoeiro, o Longe,
metaforizado numa flor que se abre, revela às primeiras
naus o que era oculto, assinalando esse momento feliz.
A primeira estrofe constitui a primeira parte do poema, ou seja, a viagem, o percurso de iniciação.
A segunda estrofe, ao referir-se à linha abstrata do horizonte que vai desaparecendo, traduz
em sintonia um movimento de aproximação progressiva à costa: primeiro, «árvores» ao longe,
depois «sons e cores» e finalmente, quando desembarcam, já veem «aves, flores».
Esta visão de um mundo novo constitui a segunda parte do poema.
A terceira parte, constituída pela última estrofe, fala-nos do sonho que, com esperança e von-
tade, foi concretizado. Fala também do impulso necessário para avançar e descobrir, «na linha
fria do horizonte» onde nada se via, a recompensa («Os beijos merecidos da Verdade.») traduzida
na enumeração «A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte».2

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III. Padrão

Diogo Cão é o emissor da mensagem poética. No século XV, este navegador português desco-
briu o estuário do rio Zaire (1482 ou 1484) e atingiu, numa outra viagem, o limite meridional de
Angola (talvez em 1486). No poema, Diogo Cão afirma que conquistou a distância, ultrapassou
todos os obstáculos e conseguiu superar-se a si mesmo. Consciente da sua pequenez enquanto
homem – «o homem é pequeno» –, o navegador reconhece, no entanto, ser protagonista de uma
grande obra, a conquista do mar – «obra ousada».
Diogo Cão afirma-se, pois, como herói que, ao saber interpretar a vontade divina, ousou ir
sempre além. Para diante navegou, mas, em cada «areal moreno», deixou um padrão. A conquista
de novas terras era assinalada por um padrão, cujas quinas relembram que o mar sem fim é por-
tuguês e cuja cruz, símbolo da fé cristã, anima a febre da descoberta permanente – «O porto sem-
pre por achar».
Como acontece ao longo de Mensagem, Deus toca o homem, projeta-lhe um determinado
destino e o homem cumpre, invariavelmente, esse destino para que foi designado. Por isso, Diogo
Cão reconhece a sua intervenção neste projeto de raiz divina e que se caracteriza por uma
demanda constante do desconhecido – «é minha a parte feita».4

IV. O Mostrengo

O texto abre com uma referência ao mostrengo (v. 1) e fecha aludindo a «El-Rei D. João
Segundo!» (v. 27). São exatamente eles os representantes das duas forças que se contrapõem no
texto: o poder e os perigos do mar (forças da natureza), representados pelo primeiro, e a determi-
nação dos portugueses, representada pelo segundo. [...]
Mas a contraposição de ambos, mostrengo e rei, não é feita diretamente. O mostrengo habita
o mar, [...] tem poder sobre o mar («o que só eu posso», v. 14), identifica-se com o mar tenebroso e
desconhecido [...].
Ao encontro desse poderio oculto, parte D. João Segundo, mas não diretamente, através de um
intermediário que enviou em seu nome – o homem do leme. O confronto é pois estabelecido entre
o mostrengo e este último, que representa o rei e, na pessoa do rei, todo o povo português.
D. João II é a vontade, o homem do leme é o seu agente. [...]
Voltando ao mostrengo, pelos círculos que tece em roda da nau (vv. 3, 4, 12, 13, 25), ele parece
querer asfixiar os portugueses com a sua presença. Os argumentos de autoridade que evoca mais
não pretendem que provocar neles o medo e levá-los a voltar para trás, a desistir do empreendi-
mento começado. Mas, diante da garbosidade do mostrengo, o homem do leme revela a humil-
dade de quem tem consciência do lugar que ocupa e do que está ali a fazer. Ele sabe que está
a enfrentar um ambiente hostil, um território alheio e desconhecido. E mostra-se medroso, a
princípio.
Contudo, a pouco e pouco a determinação de que se encontra possuído vai vindo ao de cima, e
ele assume a convicção de que ali não se representa a si mesmo («Aqui ao leme sou mais do que
eu», v. 22), mas uma causa transcendente: a vontade do seu rei e a determinação do seu povo. Daí a
resposta, plena de emoção patriótica, que o homem do leme dá à arrogância do mostrengo (vv. 9,
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18, 22 a 27).
É bem claro no texto que a tomada de consciência do homem do leme, acerca do lugar que
ocupa, é gradual. [...] Revela-se inversamente proporcional em relação à posição ocupada pelo
mostrengo. [...]

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Quanto mais a presença do mostrengo se apaga, mais se revela a do homem do leme, de El-Rei,

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do povo português. É a face oculta do mar que se desvenda, o mundo até aí desconhecido que se
vai revelar.9

V. Epitáfio de Bartolomeu Dias

Poema mais curto de Mensagem, recorda Bartolomeu Dias (cerca de 1450-1500), o capitão que
dobrou o Cabo das Tormentas (ponta final de África), desde então designado Cabo da Boa Espe-
rança.
Dobrado o Cabo, «O mar é o mesmo», isto é, a natureza mostrara-se homogénea, não distinta,
e o medo do diferente sucumbira por si próprio. Tinham sido unidos os dois mares: o africano
(o Atlântico) e o indiano e arábico (o Índico). Ao mar, «já ninguém o tema!». [...]
A expressão «Dobrado o Assombro» refere-se historicamente ao Cabo das Tormentas, mas
também poeticamente à figura do mostrengo. Agora, unidas as duas partes do mundo, o Oriente
e o Ocidente, Atlas, titã que por castigo carrega o mundo às costas, «mostra alto o mundo no seu
ombro».3

VI. Os Colombos

Este título plural é intencionalmente irónico, evocando o contencioso entre Portugal e


Espanha em volta da figura do navegador Cristóvão Colombo.
O sujeito poético alude à falta de «Magia» do navegador, capaz de conferir grandeza às desco-
bertas – «o que a eles não toca / É a Magia que evoca / O Longe e faz dele história» […] e sublinha a
ideia de que os navegadores portugueses são os pioneiros na conquista dos mares e os inspirado-
res de outros navegadores estrangeiros, de que Colombo é exemplo.1

VII. Ocidente

O poeta, uma vez mais, associa as descobertas marítimas à


conjugação da vontade de Deus com a ação do homem – «Com
duas mãos – o Ato e o Destino – / Desvendámos.». Deus foi a
«alma» e o homem teve a ousadia e tornou-se a «mão que des-
vendou».
Por obra do «Acaso, ou Vontade, ou Temporal», o certo é que
a mão do homem rasgou o «Ocidente», ou seja, as naus de Pedro
Álvares Cabral descobriram o Brasil, em 22 de abril de 1500.
O poema alude, assim, à descoberta do Brasil, que, segundo
alguns historiadores, aconteceu em virtude de uma forte tem-
pestade que terá desviado as naus de Pedro Álvares Cabral que
rumavam ao oriente e não ao ocidente, não tendo chegado ao
Brasil por objetivo definido.4

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VIII. Fernão de Magalhães

Fernão de Magalhães quis ser dos «dos homens, o primeiro» a realizar a viagem à volta da
Terra – «cingir o materno vulto [...] cercar / A terra inteira com seu abraço». Não conseguiu, por ter
sido ferido e morto numa emboscada pelos habitantes da Patagónia, «sombras disformes e des-
compostas»; por isso, os donos mitológicos do Mundo, «os Titãs» da Terra dançam de satisfação
«da morte do marinheiro». Dançam também os indígenas que o assassinaram, «dançam na soli-
dão», outra vez, «sombras disformes e descompostas». Todavia os seus nautas continuaram a via-
gem, seguindo o rumo traçado, porque «a alma ousada / Do morto ainda comanda a armada, /
Pulso sem corpo ao leme a guiar». Animados com o sacrifício da vida do seu capitão e em sua
homenagem, sofreram os maiores revezes do mar para levar a cabo essa viagem de circum-nave-
gação, a primeira.8

IX. Ascensão de Vasco da Gama

Os senhores da tempestade («Deuses da tormenta») e os Titãs (referidos como «gigantes da


terra», que tentaram atingir o céu pondo serras sobre serras e entre os quais se inclui o Adamas-
tor) param as suas guerras e ficam espantados («pasmam») vendo o herói (Vasco da Gama) que
sobe aos céus. A ascensão decorre num cenário de assombro («silêncio», «névoa ondeando os
véus», «o rastro ruge em nuvens e clarões», «luz de mil trovões», «o céu abrir o abismo»). Completa
o cenário o pequeno pastor que, no chão, levanta o olhar e fica de tal modo extasiado com o que
vê que deixa cair a flauta.
Vasco da Gama surge como um herói, comparado aos Argonautas (heróis gregos que, sob o
comando de Jasão, se dirigiram para a Cólquida no navio Argos, com o fim de se apoderarem do
Velo de Ouro). É assim que, por mérito, ele sobe aos céus, tendo a recompensa da sua coragem e
saber na descoberta do caminho marítimo para a Índia. Note-se que este herói aparece ladeado
«ombro a ombro» com os medos, numa alusão clara à sua condição de homem que naturalmente
tem receios ao ter de ultrapassar tantos e variados obstáculos na sua viagem.2

X. Mar Português Manual · p. 127

O poeta dirige-se ao mar, um mar responsável pelo sofrimento das


mães, dos filhos, das noivas de todos aqueles que ousaram cruzar as
suas águas com o intuito de o dominarem – «Para que fosses nosso, ó
mar!».
Terá valido a pena tanto sofrimento? «Tudo vale a pena / Se a alma
não é pequena.». É mais uma nova maneira de o poeta afirmar a im-
portância da vontade da alma humana, vontade sempre insaciável.
Se, na primeira estrofe, o mar é sinónimo de dor, já na segunda
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estrofe, o mar aparece associado à conquista do absoluto. O mar en-


cerra o «perigo» e o «abismo», mas também espelha o «céu», ou seja,
oferece recompensas, ao permitir o acesso a um prémio superior,
seja ele a Verdade, a heroicidade, a imortalidade, a glória...4

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Mensagem, Fernando Pessoa Síntese

XI. A Última Nau Manual · p. 138

Como o rei Artur das lendas bretãs medievais, D. Sebastião aguarda – miticamente, não histo-

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ricamente – na «ilha indescoberta», ou seja, num espaço mítico, imaginal, projetando sobre a
consciência coletiva dos Portugueses o desejo de realização futura («Deus guarda o corpo e a
forma do futuro, / Mas Sua luz projeta-o, sonho escuro / E breve.»).
Neste sentido, quanto mais a história material desvanece («Ah, quanto mais ao povo a alma
falta»), mais o sonho do Império («a minha alma atlântica») se torna obsessivo na consciência dos
Portugueses, auspiciando a realização de um novo Império, ora espiritual.
Quando tal sucederá? Quando se realizará de novo a união entre História e Mito, ambição e
sonho, desejo e realização? Pessoa não o sabe dizer, mas sabe que «há a hora», «num mar que não
tem tempo ou ‘spaço» (numa história espiritual, mítica), momento ontológico envolvido em «mis-
tério», momento operativo e iniciático, realizador do regresso de D. Sebastião, trazendo ainda «o
pendão» do Império. Do mesmo modo que existirá uma segunda vinda de Cristo à Terra para
instaurar um reino de amor e justiça, assim regressará D. Sebastião (não o corpo, mas o espírito, a
mentalidade), para concretizar o Quinto Império.3

XII. Prece Manual · p. 128

«Prece» é o título do poema com que a segunda parte da obra termina. O tom de súplica, que o
atravessa, em consonância, aliás, com o próprio título, exprime a dor da incerteza em relação ao
futuro de Portugal. Um Portugal caracterizado como «alma vil», «silêncio hostil», em suma, como
o país decadente que o último poema da obra – «Nevoeiro» – há de pincelar com tintas ainda mais
negras. Um Portugal indolente que contrasta com a «tormenta e a vontade» que foi o Portugal
das Descobertas.
A quem dirige o sujeito poético (indiferenciado num nós) a sua prece? Ao vocativo «Senhor»
que abre o poema e permanece ambíguo. Refere-se a Deus? ao Encoberto?, que «o frio morto em
cinzas a ocultou»? Mais claro é em nome de quem o sujeito poético solicita ajuda, já que o texto se
refere explicitamente a um «nós». Certo é que do esforço coletivo depende a repetição dessa
aventura passada, que é, hoje, em nós, apenas lembrança inconsequente do «mar universal» e
«saudade». Pelo menos não está, de todo, morta a esperança, que a «mão do vento pode erguê-la
ainda».
O empenhamento coletivo precisa, porém, do estímulo que a «desgraça» ou a «ânsia» da alma
insatisfeita representam [...].
Não resulta, por isso, indiferente que este poema de 12 versos seja o 12.º e último da segunda
parte. Ao apelo à mobilização coletiva que o percorre não é alheio o ciclo completo (simbologia do
número doze) que se cumpriu com o mar e que se apresenta como «a lição de ter sido». Falta-nos
cumprir o poder vir a ser que essa lição do passado profeticamente anuncia [...].
Os versos que terminam o poema «Prece», numa esotérica circularidade do tempo e do espaço,
reenviam-nos precisamente para a necessidade de cumprir esse futuro adivinhado do passado,
que foi a posse dos mares: «E outra vez conquistemos a Distância – / Do mar ou outra, mas que
seja nossa!».5

120
Síntese Mensagem, Fernando Pessoa

3.ª Parte – O Encoberto – Pax in Excelsis (Paz nas alturas)

I. Os Símbolos

D. Sebastião Manual · p. 128

O poema, utilizando um discurso de primeira pessoa, inicia-se com um apelo do rei aos portu-
gueses, a quem o monarca transmite a esperança de um futuro promissor. Para o rei, a «hora
adversa» do presente não é mais do que o «intervalo» necessário para o início da realização de um
grande sonho universal e eterno – «É O que eu me sonhei que eterno dura» – que ultrapassará a
precariedade do momento em que o D. Sebastião histórico, aquele que desapareceu em Alcácer
Quibir, caiu no areal.
A derrota em Alcácer Quibir é, assim, apresentada como um «mal necessário» para se ultra-
passar a dimensão material e efémera do império português – «o areal e a morte e a desventura»
– e se começar a construir uma outra grandeza possuidora de uma dimensão espiritual e eterna,
o Quinto Império, inspirado na figura do rei – «É Esse que regressarei.». O rei assume-se como
uma espécie de Messias, um enviado de Deus – «Que Deus concede aos seus»; «Se com Deus me
guardei?» –, um salvador que conduzirá o seu povo à glória eterna.4

O Quinto Império Manual · p. 129

Nas duas primeiras estrofes, faz-se a apologia do sonho. O conformismo e a acomodação


tornam a vida triste. Quem vive sem sonhos, sem objetivos, sem metas a alcançar, tem uma vida
oca, de desânimo («Nada na alma lhe diz»), esperando apenas e naturalmente pela morte. É o
sonho que favorece a grandeza da alma e proporciona grandes feitos.
Nas duas estrofes seguintes, releva-se a passagem inexorável do Tempo («Eras sobre eras se
somem / No tempo que em eras vem.»). O verso «Ser descontente é ser homem.» vem na continui-
dade do pensamento inicial ao dizer-nos que a insatisfação constante do homem é que o leva a
tentar concretizar os seus ideais, sendo como um impulso para o progresso da humanidade.
Passados os quatro impérios, a «noite» em que o homem vive transformar-se-á no «dia claro»
da redenção com o regresso de D. Sebastião e surgirá das cinzas o Quinto Império, um Império
Universal que terá como centro a pátria lusitana.
A interrogação retórica com que termina o poema é claramente para reflexão: face ao que foi
dito, quem acredita que «morreu D. Sebastião»?2

O Desejado
Na economia de Mensagem, «O Desejado» representa a figura enigmática por quem os Portu-
gueses permanentemente anseiam para se sentirem redimidos do fracasso histórico de, após a
criação de um descomunal império material, o terem perdido para mãos alheias, tanto para os
castelhanos quanto, posteriormente, para os franceses, ingleses e holandeses.
Constitui, como o nome indica, uma figura do desejo, aquele que, possuindo apenas existência
ideal ou espiritual («sente-te sonhado, / E ergue-te do fundo de não-seres»), um dia virá e se tor-
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nará instrumento de salvação de Portugal. Surge logo na primeira estrofe (ainda) sem existência
real; tornar-se-á uma síntese das qualidades de todas as figuras retratadas na primeira parte de
Mensagem e sobretudo das qualidades míticas de D. Sebastião. Neste sentido, Pessoa, na segunda
estrofe, identifica-o com «Galaaz», o mais puro cavaleiro da Távola Redonda, o único a quem foi

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Mensagem, Fernando Pessoa Síntese

dada a honra suprema de contemplar o «Santo Graal». Assim, «O Desejado», «com pátria» (Portugal),

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figura rediviva de D. Sebastião, promoverá a «Eucaristia Nova», a união entre o plano mítico-reli-
gioso (Deus, a Providência) e o histórico, a instauração do Quinto Império, que dissolverá
Estados, nações, países, substituídos por um reino de pureza ética, concretização do permanente
e universal anseio humano de justiça e paz.3

As Ilhas Afortunadas
O poema gira à volta da palavra «voz»: voz indefinida («Que voz vem no
som das ondas»), voz desconhecida («de alguém»); voz que não admite res-
posta («se escutamos, cala»), voz que cala também, se acordamos («vamos
despertando, / Cala a voz»), pela simples razão de se cair na realidade.
Primeiramente, as ilhas «são terras sem ter lugar»: tudo se passa no interior
das consciências, onde reside a «esperança» e o sorriso dormente de quem não vê
claramente a realidade, apenas a perscruta, a deseja; onde se vislumbra a felici-
dade possível, mas nublosa, que se esvai com o próprio ato de a querer saber, pois
é assumir a impossibilidade de conhecer a hora, o dia, o quando, o se... Como a
criança que sorri de felicidade, desconhecendo a razão e o porquê, mas sorri.
Estas ilhas da nossa imaginação serão «afortunadas» para nós, que esperamos
confiantes e esperançosos («ela nos diz a esperança»), e para o «Rei» desejado, que
também lá «mora esperando». Uma aura sebastianista invade o poema.8

O Encoberto
Coincidindo o seu nome com o título geral da terceira parte do livro, o poema «O Encoberto»
ocupa, sem dúvida, um papel central na arquitetura simbólica e esotérica da Mensagem. Com-
põe-se de três quadras, com versos de seis sílabas e rima cruzada. Não obstante a sua aparente
modéstia formal, ele constitui o coração hermético do volume pessoano.
As três quadras têm uma estrutura muito semelhante, tanto numa perspetiva semântica
como morfossintática, constituindo os dois primeiros versos uma pergunta e os dois seguintes a
resposta a essa pergunta. Em cada uma delas se reproduz também, verbalmente, o ritual iniciá-
tico da morte e ressurreição do adepto [...].
O poema é dominado pela simbologia iconográfica rosacruciana [...].
Na segunda estrofe, o lugar da rosa (da vida) é efetivamente ocupado pela figura de Cristo,
que aquela flor simboliza, e na terceira encontramos no mesmo espaço o Encoberto, um novo
nome e uma nova identidade de Cristo, prenunciando uma nova religiosidade, a Eucaristia Nova,
prevista em poemas como «O Desejado» ou «O Terceiro» dos «Avisos».11

II. Os Avisos

O Bandarra
O poema inicia-se com a forma verbal «Sonhava», que sugere os sonhos que integravam as
profecias do Bandarra. O sujeito poético descreve este profeta popular, recorrendo à construção
negativa – «Não foi nem santo nem herói». No entanto, uma vez mais, esta figura histórica e lendá-
ria é objeto de sagração divina – «Mas Deus sagrou com Seu sinal». Bandarra surge, então, como:

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Síntese Mensagem, Fernando Pessoa

– um ser anónimo e confuso na sua missão;


– um plebeu «como Jesus Cristo» – ele era um simples sapateiro;
– marcado, assinalado por Deus – «Deus sagrou com Seu sinal»;
– alguém dotado de um coração que é o próprio Portugal – enquanto profeta de Deus, Ban-
darra é o próprio Portugal.1

António Vieira
Da obra de Vieira nada se refere na Mensagem, para além daquilo que importa a Pessoa. Ao
padre jesuíta defensor dos escravos, ao grande pregador, ao embaixador de Portugal não dedica o
autor de Mensagem um só verso. Interessou-o, pelo contrário, o Mestre da língua portuguesa e o
profeta do Quinto Império que Vieira foi [...].
É verdade que a «grandeza», a «fama» ou a «glória» são atributos do herói, mas estes distin-
guem sobretudo o herói-alma, sacralizado, que vive como arquétipo na memória coletiva [...].
Note, finalmente, como o Quinto Império nos é dado em mistério: pertence à esfera do «etéreo», do
divino, e o seu começo é «madrugada irreal». Se não ficamos a saber em que consiste precisamente,
fica, contudo, clara a sua ligação a D. Sebastião (o que é uma recriação pessoana do mito, já que este
não é, como se sabe, o Rei-salvador do Mundo na teorização de Vieira) e a ideia de que ele resulta do
«imenso […] meditar» e do sentido visionário do herói, que, «no céu amplo de desejo», o sonhou portu-
guês em português. Da universalidade que ao Quinto Império se atribui fica, para além da sua inspi-
ração divina, a alusão vaga de que «Doira as margens do Tejo», ponto de partida das naus.5

«Terceiro – ’Screvo meu livro à beira-mágoa»


Este é o único poema de Mensagem que não apresenta título, sendo, por esse facto, conside-
rado como aquele em que o discurso se identifica com o próprio Pessoa.
O poema estrutura-se em torno do desencanto e da mágoa do poeta, que sente os seus «dias
vácuos», o vazio que subjaz à ruína do império de quinhentos, e que anseia pela chegada de um
Messias, de um salvador, que possa restituir a grandeza perdida – «Quando virás, ó Encoberto, /
Sonho das eras português».
O predomínio das interrogações revela essa dor do presente e a ânsia da chegada da «Nova
Terra» e dos «Novos Céus». Atente-se, ainda, na identificação realizada pelo sujeito poético entre
o sonho e a entidade divina inspiradora – «Quando, meu sonho e meu Senhor?» – que o torna
uma das forças impulsionadoras da vontade humana.4

III. Os Tempos

Noite
Dois dos três filhos do nobre João Vaz Corte-Real tinham-se tornado capitães de armada.
Gaspar e Miguel navegaram para ocidente, terão atingido os bancos da Terra Nova, na América
do Norte, mas nenhum deles regressou. Gaspar foi o primeiro a desaparecer. Miguel partiu em
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busca do irmão e também desapareceu. Restou Vasco, o primogénito. Este pediu autorização para
partir em busca dos irmãos, mas D. Manuel I não o autorizou.
Poema narrativo, eleva o triste episódio histórico do desaparecimento dos dois irmãos Corte-
-Real a prenúncio do desfecho definitivo do império material português. As duas primeiras

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Mensagem, Fernando Pessoa Síntese

estrofes narram a partida e o desaparecimento dos irmãos «no mar sem fim». O seu desapareci-

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mento constitui simbolicamente o termo de duas qualidades dos heróis portugueses dos
Descobrimentos: «O Poder [a vontade e a força] e o Renome [a fama, a glória]». Com este duplo
desaparecimento, perdeu-se igualmente a potência animadora e a fama internacional granjea-
das pelos Portugueses com os Descobrimentos. Chegara ao fim a segunda parte do plano provi-
dencial de Deus para os Portugueses. Ora espreitaria a decadência, em breve tornada real.
O terceiro irmão ambicionava «ir buscá-los», isto é, superar a «vil» tristeza da decadência.
Fazendo-o, buscava-se a si próprio e a «quem somos, na distância / De nós». A Deus rogava, mas
«Deus [já] não dá licença que partamos». Quebrara-se o ânimo sagrado que tinha impelido os
Portugueses a desvendar o mar desconhecido; o tempo histórico entrara em agonia, substituído
pelo mítico, o tempo suspenso da espera, simbolizado pela morte de D. Sebastião. Faltou transpor
o Império material em espiritual. Resta agora unir o tempo histórico e o mítico, provocando a
«Hora», o advento do Quinto Império.3

Tormenta
A primeira estrofe é constituída por duas perguntas paras as quais existem respostas. A pri-
meira «Que jaz no abismo sob o mar que se ergue?» alude a um mar violento e alterado que parece
esconder alguma coisa lá no fundo do abismo e o sujeito poético pergunta expressivamente que
coisa será essa, uma vez que é lá que residem os medos. No segundo verso, somos esclarecidos
sobre o que jaz no fundo do mar: é Portugal, somos nós, uma nação que pode um dia emergir do
abismo, sair da decadência em que se encontra, e «ser», existindo realmente como nação gloriosa.
A segunda pergunta («Que inquietação do fundo nos soergue?») tem alguma subjetividade: o
sujeito poético fala em inquietação perguntando que inquietação é essa, que ânsia é essa que nos
faz levantar e superar as dificuldades. Em resposta, o quarto verso patenteia o sentido da citada
«inquietação»: após o desejo, avaliam-se as forças e finalmente é só ter vontade para a concretização.
Na segunda estrofe, alude-se ao mistério que envolve o mar, principalmente de noite, em que
a tormenta é ainda mais aterradora. A conjunção adversativa marca uma mudança no sentido do
discurso, podendo entender-se que, no auge da tempestade, entre a fúria dos elementos («o vento
ruge», «o mar ‘scuro ‘struge») surge um relâmpago a iluminar o escuro da noite e que, tal como um
«farol de Deus») (metáfora), com a sua luz e brilho, indica o caminho e orienta os marinheiros
para o rumo certo e verdadeiro.
É um poema que representa o lado negativo das Descobertas, pois que, nas viagens maríti-
mas, uma tormenta pode significar o fim, o naufrágio, a morte, e simboliza também o momento
de crise e de decadência que Portugal atravessava.2

Calma Manual · p. 130

O poema, pela sua posição, confirma o aforismo «a


seguir à tempestade vem a bonança» e constrói-se a
partir de uma série de questões:
– que costa é essa que o sujeito poético desconhece
e que as ondas encontram?
– que caminho conduz a essa «Ilha próxima e remota»?
– que outras possibilidades haverá de comunicação com o
«outro lado»?

124
Síntese Mensagem, Fernando Pessoa

– uma vez atingida essa «ilha velada», estará aí o «Rei desterrado», o futuro Messias de Portugal?
O poema aponta, assim, para a figura do rei D. Sebastião como libertador capaz de reconduzir
Portugal ao «paraíso perdido”».1

Antemanhã
A Antemanhã – o quarto dos Tempos – consagra definitivamente a ideia de potencialidade
para a qual os quatro tempos nos reenviam. A antemanhã é tradicionalmente símbolo de todas
as possibilidades e de todas as promessas, isto é, do renascer da esperança.
A antemanhã é, ainda, o tempo dos favores divinos e o sinal do poder de Deus (o terceiro sinal,
recorde-se), agora explicitamente interpretado pelo regresso do Mostrengo já domado e que vem
reclamar do seu senhor – «Aquele que está dormindo / E foi outrora Senhor do Mar», ou seja, de
Portugal – que cumpra o seu destino rumo ao futuro glorioso que é o seu.
Tem, pois, Portugal, de reconhecer a chamada que os três sinais de Deus veiculam (três
tinham sido já os «avisos»).5

Nevoeiro Manual · p. 133

O poema final de Mensagem apresenta uma caracterização negativa de Portugal, país mar-
cado pela falta de identidade – «Nem rei nem lei, nem paz nem guerra» –, pela falta de entusiasmo
– «fulgor baço», «Brilho sem luz e sem arder» –, pela falta de objetivos – «Ninguém sabe que coisa
quer» –, pela falta de valores morais – «Nem o que é mal nem o que é bem».
Portugal é um país fragmentado, mergulhado na incerteza, vivendo à sombra de um passado
glorioso que morreu – «Como o que o fogo-fátuo encerra». No entanto, o nevoeiro que envolve
Portugal traz em si o gérmen da mudança, indicia um outro tempo anunciado pela exclamação
final – «É a Hora!» – e pela saudação latina – «Valete, Fratres» (Saúde, irmãos). É o tempo do Quinto
Império, que dará à língua e à cultura portuguesas uma dimensão eterna e universal.4

Bibliografia:
1. RAMOS, Auxília, e BRAGA, Zaida, 2022. Mensagem. Fernando Pessoa. Porto: Elementos
2. FALCÃO, Alzira, 2012. Como abordar... A intertextualidade Os Lusíadas e Mensagem. Porto: Areal
3. REAL, Miguel, 2013. Mensagem de Fernando Pessoa comentada por Miguel Real. Lisboa: Parsifal
4. RAMOS, Auxília, e BRAGA, Zaida, 2010. Mensagem (Edição especial comemorativa do 75.º aniversário da morte de Fernando Pessoa,
comentada por Auxília Ramos e Zaida Braga). Vila Nova de Famalicão: Centro Atlântico
5. VERÍSSIMO, Artur, 2002. Dicionário da Mensagem. Porto: Areal
6. LOURENÇO, António Apolinário (Ed.), 2008. Fernando Pessoa. Mensagem. Coimbra: Angelus Novus
LDIA12KEX © Porto Editora

7. SOARES, Maria Almira, 2004. Para uma leitura de «Mensagem» de Fernando Pessoa. 2.ª ed. Lisboa: Presença
8. MACÊDO, J. Oliveira, 2002. Sob o signo do Império. Porto: ASA
9. SILVA, Lino Moreira da, 1989. Do Texto à Leitura (Metodologia da Abordagem Textual). Com aplicação à obra de Fernando Pessoa.
Porto: Porto Editora
10. LOURENÇO, António Apolinário, 2011. Guia de Leitura – Mensagem de Fernando Pessoa. Coimbra: Almedina

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