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Portuguesa
Autores
Stélio Furlan
José Carlos Siqueira
2008
© 2008 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos
direitos autorais.
ISBN: 978-85-7638-872-2
CDD 869.09
O Humanismo | 25
O homem como centro do universo | 26
O Humanismo em Portugal | 27
Gil Vicente (c. 1465-c. 1537): a grande figura literária do Humanismo | 29
Classicismo: 1527-1580 | 45
A Renascença Portuguesa | 45
Os gêneros clássicos | 46
Épica: Os Lusíadas, um prodígio arquitetônico | 47
Os Lusíadas: episódios | 50
Conclusão sobre Os Lusíadas | 56
A lírica camoniana | 57
Os sonetos de Camões | 58
Amor com engenho e arte | 60
Barroco (1580-1756) | 65
Pode-se falar em Barroco? | 65
Poesia barroca portuguesa | 67
Prosa barroca portuguesa | 71
Conclusão | 76
Arcadismo (1756-1825) | 79
A reação contra o Barroco literário | 79
Principais lemas dos poetas árcades | 82
Bocage e o Arcadismo | 86
Conclusão | 87
O Romantismo: prosa | 95
Romantismo e burguesia | 95
A sensibilidade romântica e o gênero romance | 96
O estabelecimento do liberalismo em Portugal e o romance | 100
A sedimentação do romance em Portugal | 111
Simbolismo | 163
Portugal simbolista | 169
O simbolismo português | 170
Modelos para o Modernismo | 177
O Saudosismo | 183
A Sociedade Renascença Portuguesa e o Saudosismo | 183
Florbela Espanca (1894-1930): uma poesia em suspensão | 190
Precursores do modernismo | 193
Gabarito | 231
Referências | 239
Apresentação
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Carlos Drummond de Andrade
“Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: ‘Navegar é preciso,
viver não é preciso’. Quero para mim o espírito (d)esta frase, transformada a
forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário; o que é necessá-
rio é criar”: esta conhecida passagem de Fernando Pessoa serve-nos de mote
para justificarmos as travessias e os percursos pelo vasto espaço da Literatura
Portuguesa.
O objetivo principal é o de compreender elementos para o estudo crí-
tico-produtivo das manifestações canônicas da Literatura Portuguesa, entre
1189 e 1915, situando-a no contexto da literatura ocidental.
Como estratégia de leitura, vamos centrar nosso investimento discur-
sivo e investigativo no que singulariza as diferentes manifestações literárias
do medievo ao início do século XX, a saber:
– Trovadorismo (1198-1418),
– Humanismo (1418-1527),
– Classicismo (1527-1580),
– Barroco (1580-1765),
– Arcadismo (1756-1825),
– Romantismo (1825-1865),
– Realismo (1865-1890),
– Simbolismo (1890-1915),
– Saudosismo (a partir de 1912), e
– Modernismo (a partir de 1915).
Você deve se perguntar o porquê do ano 1189, o porquê do ano 1915.
Utilizaremos essas datas menos como marcos definitivos que como balizas
temporais para localizarmos, entre aproximações e distanciamentos, cada
arte poética ao longo desse recorte temporal.
Alguns estudiosos das origens da Literatura Portuguesa consideram
1189 um dos anos prováveis da escrita da “Canção da Ribeirinha”, de Paio
Soares de Taveirós, a quem se atribui o primeiro poema escrito em língua
portuguesa. Outros pesquisadores consideram a publicação da revista
Orpheu, em 1915, com a participação fundamental de Fernando Pessoa,
o marco inicial do Modernismo em Portugal. Se tais datas não passam de
convenções (não consensuais, diga-se de passagem), não é menos certo di-
zer que derivam de um esforço reflexivo e investigativo sobre as condições
de possibilidade da textualidade lusitana.
Em última instância, desejamos que estas páginas sobre Literatura
Portuguesa estimulem a reflexão sobre a importância da Literatura como
um modo privilegiado de conhecimento, como uma maneira especial de ver
e dizer o mundo. E também que possam incentivar o contato prazeroso com
o Texto, ao que chamaremos fruição textual.
Em A Lírica Trovadoresca, Segismundo Spina escreve que para se
compreender a Literatura da Idade Média é necessário amá-la. Pode-se
acrescentar que não só a compreensão da literatura medieval, mas a Litera-
tura Portuguesa de modo geral, das primeiras cantigas de amor e de amigo
às textualidades contemporâneas, solicita um envolvimento amoroso.
Nesse sentido, consideramos oportuno iniciarmos a nossa travessia
literária com uma reflexão sobre a arte de amar (ars amatoria), tema por
excelência do lirismo trovadoresco medieval.
Stélio Furlan e José Carlos Siqueira
Modernismo Presencista
José Carlos Siqueira
O poeta é a antena da raça.
Erza Pound
É de modo bastante debochado que o trecho acima – da canção “Saúde”, de Rita Lee – fala da fal-
ta de solução para os problemas sociais e apresenta uma saída individual: “Eu vou é cuidar mais de mim!”.
Essa revolta com a sistemática cobrança para procurarmos soluções para os problemas sociais imediatos
é algo que alguns escritores portugueses do início do século XX também sentiram. Eles procuraram resol-
ver a questão apostando na criação artística como forma de transformação social, sem que isso significas-
se arte socialmente engajada. Essa atitude caracterizou a segunda geração do Modernismo Português.
Em Portugal, costuma-se dividir o Modernismo em dois momentos:
::: o primeiro, de 1915 a 1927, é o da geração que se constituiu em torno da revista Orpheu
(1915), chamado de orfismo, no qual se encontravam Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro
e Almada-Negreiros;
216 | Nome do livro para curso ULBRA
::: o segundo, de 1927 a 1939, é o dos presencistas, assim chamados por estarem reunidos em
torno da revista Presença (1927-1940), e entre eles temos José Régio, Vitorino Nemésio, Miguel
Torga e Branquinho da Fonseca.
O grupo em torno da revista Presença valorizava a importância da originalidade e do gênio artís-
tico, a liberdade na arte e a sinceridade, rejeitando a submissão da arte a quaisquer princípios que não
os especificamente artísticos. Todavia, esses escritrores foram acusados de “esteticismo”, “a-historicis-
mo”, “individualismo”, “psicologismo”, “formalismo”, e “torre-de-marfismo” pelo grupo em torno da revis-
ta Seara Nova (1919-1974), que fazia oposição à ditadura de Salazar.
Para entender isso, é preciso lembrar um pouco da história da República portuguesa.
Esse grupo era internacionalista, uma vez que a Primeira Guerra Mundial havia demonstrado o pe-
rigo do enaltecimento exacerbado das identidades nacionais, e também lutava por diversas causas so-
ciais, em especial a democratização do ensino em todos os seus níveis, da alfabetização à Universidade.
Alguns dos seus integrantes acabaram entrando para os quadros do governo, como António Sérgio,
que se tornou Ministro da Instrução.
Buscando uma postura suprapartidária, eles avaliavam que os portugueses não tinham consciên-
cia do papel que deveriam cumprir em um governo republicano e democrático e se empenhavam em
fazer com que as elites intelectuais e políticas do país se conscientizem disso.
Além disso, combatiam a individualismo político, a corrupção, a militarização crescente, o reacio-
narismo monárquico. Combatiam sobretudo o Integralismo Lusitano, de base fascista, assim como toda
e qualquer forma de governo totalitário. Durante a ditadura de Salazar, a revista foi um reduto oposicio-
nista, tendo sofrido sistemáticos ataques da censura. Sintomaticamente, encerrou sua publicação logo
após o advento da Revolução dos Cravos e o fim desse período trágico da história portuguesa.
Já pelos títulos de seus trabalhos, é possível constatar sua preocupação com as causas sociais.
Vejamos como exemplo de seu estilo o início do capítulo “As mulheres”, do romance Os Pobres:
Ao vir a noite põem-se as prostitutas a cantar; entre as pedras ressequidas e o ruído humano põem-se as prostitutas a
cantar. São pobres seres de descalabro e piedade, lama que o homem gera de propósito para o gozo. A treva leva e dis-
persa essa toada em farrapos, os flocos de tristeza, que são como a alma, a aflição da noite, a soluçar. Noite... Remorsos,
sonhos, soou a vossa hora! De blocos negros se constrói outra cidade... Há ainda claridades esparsas, que a Sombra ca-
lada, a tactear, de súbito afoga sem rumor. E de entre as meias portas surgem fisionomias como só o remorso as cria: di-
ríeis, de tristes e cansadas, que se vão diluir como as das mortas. (BRANDÃO, 2008)
É de se notar, como, ao descrever a realidade da prostituição, Raul Brandão possui um estilo que
guarda um vínculo com os procedimentos estéticos simbolistas, carregando o ambiente da prostitui-
ção de um gosto inspirado no decadentismo literário francês, na escolha de seu vocabulário (lama, tre-
va, farrapos, aflição, remorsos, cansadas, mortas) e de uma certa magia e encantamento (as prostitutas
cantam, seu canto são flocos de tristeza, de sonhos, em meio a claridades esparsas). Sua prosa de viés
realista é mediada, portanto, por um lirismo muito peculiar e original, ao modo simbolista, o que o dis-
tingue entre os prosadores portugueses do período.
Apesar de suas peculiaridades, Raul Brandão não se configura como um caso isolado no que con-
cerne ao seu realismo: a crescente preocupação com o retrato crítico da realidade foi uma marca do gru-
po que se reuniu em torno da Seara Nova, de onde irá surgir o Neo-Realismo português.
Preocupados com a liberdade de criação artística, que viam ameaçada pelo engajamento político
presente nos membros da Seara Nova, os colaboradores de Presença defendiam a supremacia do indi-
vidual em relação ao coletivo, a liberdade da arte e do artista em relação a qualquer forma do coerção,
o direito à pesquisa estética sem vínculo imediato com as questões políticas e sociais, buscando o uni-
versalismo e não o historicismo. Desse modo, puderam, em certo sentido, dar continuidade ao trabalho
estético iniciado pela geração de Orpheu.
O seu texto mais conhecido é o conto “O Barão”, que foi transformado em peça teatral em 1964
e no qual um inspetor de escolas narra a noite que foi obrigado a passar no solar de um barão senti-
mental e excêntrico, constituindo-se uma narrativa que envolve suspense, luxúria, mistério e densida-
de psicológica.
Vale lembrar um dos seus Poemas brasileiros, “Nova bárbara escrava”, demonstrando como o poe-
ta açoriano procurou dialogar com o português do Brasil. Assim diz o início do poema:
Barborinha uma crioula:
Faz de bahiana evocada
Num hotel de vidro e avenca;
Usa torço cor-de-rosa,
Pano-da-costa fingido,
Chambre crivado no seio:
Seu balangandã preserva-a
Bem menos que seu enleio.
224 | Nome do livro para curso ULBRA
As palavras balangandã, cuia e vatapá procuram integrar em sua poesia alguma brasilidade, mas
o título do poema não deixa margem para a crítica que faz à condição da mulher negra baiana, “Nova
bárbara escrava”. Se a figura de Barborinha o fascina por sua sensualidade, também se dá conta de sua
condição miserável (“[...] sei quantas pancadas, / Vindo assim, seu peito dá”).
Dessa maneira, tanto a poesia quanto a prosa de Vitorino Nemésio têm, ao lado de um forte liris-
mo, uma também forte consciência dos problemas sociais.
O sol da consciência
Às íntimas funduras do teu ser,
Onde moram
Esses monstros que temes enfrentar.
Os leões da caverna só devoram
Quem os ouve rugir e se recusa a entrar...
(TORGA, 1978, p. 83)
A idéia de que não devemos ter medo do desconhecido, a necessidade de enfrentarmos os temo-
res existentes nas profundezas de nossa alma (os leões de caverna) é parte de um ideário humanista e
materialista. Torga é, portanto, um homem que sempre lutou por uma ética que, calcada na própria hu-
manidade, não dependesse de qualquer transcendência.
A autonomia da literatura
e sua relação mediada com a realidade
Podemos concluir que, apesar de lutarem por uma prática literária não engajada, que não atrelas-
se sua produção ao imediatismo do momento político, os presencistas também não deixaram de atuar
politicamente. Se Raul Brandão e o grupo da Seara Nova tomavam como matéria-prima a questão social
daquele momento histórico, o presencismo veio estabelecer uma relação mediada com essa realidade
imediata, pois, apesar de tomarem por matéria de seus textos barões sentimentais, egos transgressivos,
dramas familiares e a própria natureza humana, todos esses temas e o modo como eram tratados este-
ticamente guardavam fortes vínculos com o mundo que os cercava, servindo também no sentido de se
caminhar para uma sociedade mais justa e igualitária.
Texto complementar
O pai de Venâncio delira e a revolução fracassa
(NEMÉSIO, 1986, p. 163-165)
Os papéis de música esparziram-se por cima da cama e no chão.
- É demais! É demais! Querem-me fazer doido á força! Vão para o diabo! Não quero!... Estou far-
to disto até aos olhos! Se me entretenho a cantar, que esteja calado e que durma; é por meu bem! Se
compro uma cabra, se me divirto com uma tartaruga viva, fica-me feio, tenho o juízo perdido, devo
acalmar os nervos que não regulam direito! É uma vida do inferno!... Ai! Ai!
Modernismo Presencista | 227
Despira o sobretudo, arregaçara as mangas do casaco e começou a tirar farelo duma caixa para
a gamela de pau:
- Vamos fazer a fareladazinha para os leitões de refugo. Estão lá trás, no curral.
E, variando, disse:
- O nome do burro é Fardeta. Não tem uma cabeça bem feita? Hein? Repara nas orelhas. Olha,
olha...
O burro mudara de aprumo escarvando no chão duas vezes.
- Que engraçado! Quando me vê cá dentro não sabe o que há-de fazer. Coitado o Fardeta... Alça!
Mostrou-me um casco roído do animal:
- É de andar desferrado há dias. Coitadinho o Fardeta... Sai, burro...
Perguntei então se me poderia servir de montada, e, perante aquela animação pecuária, os
meus receios desvaneceram-se.
O pai realmente não corria perigo. Atravessara decerto um daqueles períodos difíceis em que a
meus olhos surgia transfigurado, mas humano. Eram sinuosidades na sua linha vulgar de vivente, isso
eram. Aqueles desperdícios, o entusiasmo imoderado da música, que o levava a tentar orquestras
impossíveis com um violonista da força de meu tio Pedro e quejandos, destoavam redondamente
da pacatez de Vilório ascendendo por vezes a proporções vesânicas. Mas razão, depois, pareceu-me
simples. Meu pai era um forçado entre simplórios e medíocres. Nascera sob um signo que não tinha
ali cumprimento, ou, se o tinha, precisas de meios necessariamente insensatos. Daí, os nervos dele.
A família, os conhecimentos e os amigos desadoravam-no por isso; e, como meu pai tivesse um tem-
peramento irritável, fazia gala nas birras. Chegava a dormir, além disso, só quatro horas por noite.
Lavou as mãos, sujas da farelada, e, sentando-se na divisória da baia em que o Fardeta comia,
revelou-me um plano que, parecendo-me falho de senso, não me deixou de atrair.
- Pois, Venâncio, declarou com acento irrevogável e estranho; - estou decidido a ambarcar para
Lisboa hoje mesmo. O Garajau sai cedo... Virás comigo.
- Mas a mãe não me falou em nada...
- Shut! Nem quero que ela saiba. É uma viagem resolvida perfeitamente em segredo e que hei-
de fazer por força. Ainda ficarás esta noite em casa da tia Perpétua. Eu como no hotel do Biqueiro. E,
à boquinha da noite, ala! que se faz tarde.
Fiz uma cara de espanto.
- Isto é tão certo como estarmos aqui a esta hora – rematou meu pai, com dureza.
- Se não é segredo – arrisquei, - que vai o pai fazer para Lisboa?
- Sei lá... Descansar. Preciso de forças novas para aturar tua mãe, e, além disso, há negócios... Es-
cusas, por ora, de saber... Trago uma coisa em vista.
- Mas , pai – observei então, com ar martirizado, passando-lhe as mãos ao pescoço; - ir-se assim
sem mais nada, sem se despedir de ninguém... A pobre mãe vai apanhar um susto!
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- Não seja tolo, menino! Vou porque vou, já disse! E bico calado! Arranje a roupa, se a trouxe,
e espere por mim ao Telhal, que vamos a pé um bocado pelo caminho de cima. O carro do Trigueiro
está à nossa espera ao pé do Pico Redondo.
Dicas de estudo
::: Para se aprofundar no conflito entre as revistas Seara Nova e Presença, leia o que dizem Óscar
Lopes e António José Saraiva em História da Literatura Portuguesa, obra que tem várias edições,
sempre pela Porto Editora, de Portugal.
::: Tanto Vitorino Nemésio como Miguel Torga viveram no Brasil. Faça uma pesquisa para saber
mais sobre a relação desses escritores como o nosso país, começando pela própria obra deles,
nas quais o Brasil aparece diversas vezes.
Atividades
1. Qual é o aspecto central que opunha as publicações Seara Nova e Presença?