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Literatura

Portuguesa

Autores
Stélio Furlan
José Carlos Siqueira

2008
© 2008 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos
direitos autorais.

F985 Furlan, Stélio; Siqueira, José Carlos. / Literatura Portuguesa.


/ Stélio Furlan; José Carlos Siqueira. — Curitiba : IESDE
Brasil S.A. , 2008.
248 p.

ISBN: 978-85-7638-872-2

1. Literatura Portuguesa. 2. História e Crítica. 3. Movimentos


Literários. 4. Poesia. 5. Prosa. I. Título.

CDD 869.09

Todos os direitos reservados.


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Sumário
Trovadorismo: 1198-1418 | 7
Contexto histórico | 8
A poesia trovadoresca | 10
A Cantiga de Amor | 12
Cantiga de Amigo | 14
Cantigas de Escárnio e Maldizer | 16
Principais trovadores | 18
A permanência do Trovadorismo | 18

O Humanismo | 25
O homem como centro do universo | 26
O Humanismo em Portugal | 27
Gil Vicente (c. 1465-c. 1537): a grande figura literária do Humanismo | 29

Classicismo: 1527-1580 | 45
A Renascença Portuguesa | 45
Os gêneros clássicos | 46
Épica: Os Lusíadas, um prodígio arquitetônico | 47
Os Lusíadas: episódios | 50
Conclusão sobre Os Lusíadas | 56
A lírica camoniana | 57
Os sonetos de Camões | 58
Amor com engenho e arte | 60

Barroco (1580-1756) | 65
Pode-se falar em Barroco? | 65
Poesia barroca portuguesa | 67
Prosa barroca portuguesa | 71
Conclusão | 76

Arcadismo (1756-1825) | 79
A reação contra o Barroco literário | 79
Principais lemas dos poetas árcades | 82
Bocage e o Arcadismo | 86
Conclusão | 87

O Romantismo: prosa | 95
Romantismo e burguesia | 95
A sensibilidade romântica e o gênero romance | 96
O estabelecimento do liberalismo em Portugal e o romance | 100
A sedimentação do romance em Portugal | 111

O Romantismo: poesia | 121


A arte como mercadoria | 121
A sensibilidade romântica e a poesia | 123
As idéias liberais, o ultra-romantismo e o nacionalismo | 127
A originalidade e a autenticidade tornadas convenção | 135

O Realismo (1865-1890) | 141


O “realismo” como arma de crítica social e política | 141
A poesia realista | 148
A prosa realista | 153

Simbolismo | 163
Portugal simbolista | 169
O simbolismo português | 170
Modelos para o Modernismo | 177

O Saudosismo | 183
A Sociedade Renascença Portuguesa e o Saudosismo | 183
Florbela Espanca (1894-1930): uma poesia em suspensão | 190
Precursores do modernismo | 193

Modernismo:geração de Orpheu | 197


A revista Orpheu | 197
Fernando Pessoa (1888-1935) | 199
Mário de Sá-Carneiro (1890-1916) | 208
Almada Negreiros (1893-1970) | 209
A epopéia portuguesa moderna: de Os Lusíadas a Mensagem | 211

Modernismo Presencista | 215


O direito à liberdade de criação | 215
A república e a ditadura de Salazar | 216
A revista Seara Nova (1919-1974) | 216
A revista Presença (1926-1940) | 218
A autonomia da literatura e sua relação mediada com a realidade | 226

Gabarito | 231

Referências | 239
Apresentação
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Carlos Drummond de Andrade
“Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: ‘Navegar é preciso,
viver não é preciso’. Quero para mim o espírito (d)esta frase, transformada a
forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário; o que é necessá-
rio é criar”: esta conhecida passagem de Fernando Pessoa serve-nos de mote
para justificarmos as travessias e os percursos pelo vasto espaço da Literatura
Portuguesa.
O objetivo principal é o de compreender elementos para o estudo crí-
tico-produtivo das manifestações canônicas da Literatura Portuguesa, entre
1189 e 1915, situando-a no contexto da literatura ocidental.
Como estratégia de leitura, vamos centrar nosso investimento discur-
sivo e investigativo no que singulariza as diferentes manifestações literárias
do medievo ao início do século XX, a saber:
– Trovadorismo (1198-1418),
– Humanismo (1418-1527),
– Classicismo (1527-1580),
– Barroco (1580-1765),
– Arcadismo (1756-1825),
– Romantismo (1825-1865),
– Realismo (1865-1890),
– Simbolismo (1890-1915),
– Saudosismo (a partir de 1912), e
– Modernismo (a partir de 1915).
Você deve se perguntar o porquê do ano 1189, o porquê do ano 1915.
Utilizaremos essas datas menos como marcos definitivos que como balizas
temporais para localizarmos, entre aproximações e distanciamentos, cada
arte poética ao longo desse recorte temporal.
Alguns estudiosos das origens da Literatura Portuguesa consideram
1189 um dos anos prováveis da escrita da “Canção da Ribeirinha”, de Paio
Soares de Taveirós, a quem se atribui o primeiro poema escrito em língua
portuguesa. Outros pesquisadores consideram a publicação da revista
Orpheu, em 1915, com a participação fundamental de Fernando Pessoa,
o marco inicial do Modernismo em Portugal. Se tais datas não passam de
convenções (não consensuais, diga-se de passagem), não é menos certo di-
zer que derivam de um esforço reflexivo e investigativo sobre as condições
de possibilidade da textualidade lusitana.
Em última instância, desejamos que estas páginas sobre Literatura
Portuguesa estimulem a reflexão sobre a importância da Literatura como
um modo privilegiado de conhecimento, como uma maneira especial de ver
e dizer o mundo. E também que possam incentivar o contato prazeroso com
o Texto, ao que chamaremos fruição textual.
Em A Lírica Trovadoresca, Segismundo Spina escreve que para se
compreender a Literatura da Idade Média é necessário amá-la. Pode-se
acrescentar que não só a compreensão da literatura medieval, mas a Litera-
tura Portuguesa de modo geral, das primeiras cantigas de amor e de amigo
às textualidades contemporâneas, solicita um envolvimento amoroso.
Nesse sentido, consideramos oportuno iniciarmos a nossa travessia
literária com uma reflexão sobre a arte de amar (ars amatoria), tema por
excelência do lirismo trovadoresco medieval.
Stélio Furlan e José Carlos Siqueira
Modernismo Presencista
José Carlos Siqueira
O poeta é a antena da raça.

Erza Pound

O direito à liberdade de criação


(LEE; CARVALHO, 2008)
Me cansei de lero-lero
Dá licença mas eu vou sair do sério
Quero mais saúde
Me cansei de escutar opiniões
De como ter um mundo melhor
Mas ninguém sai de cima
Nesse chove-não-molha
Eu sei que agora
Eu vou é cuidar mais de mim!

É de modo bastante debochado que o trecho acima – da canção “Saúde”, de Rita Lee – fala da fal-
ta de solução para os problemas sociais e apresenta uma saída individual: “Eu vou é cuidar mais de mim!”.
Essa revolta com a sistemática cobrança para procurarmos soluções para os problemas sociais imediatos
é algo que alguns escritores portugueses do início do século XX também sentiram. Eles procuraram resol-
ver a questão apostando na criação artística como forma de transformação social, sem que isso significas-
se arte socialmente engajada. Essa atitude caracterizou a segunda geração do Modernismo Português.
Em Portugal, costuma-se dividir o Modernismo em dois momentos:
::: o primeiro, de 1915 a 1927, é o da geração que se constituiu em torno da revista Orpheu
(1915), chamado de orfismo, no qual se encontravam Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro
e Almada-Negreiros;
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::: o segundo, de 1927 a 1939, é o dos presencistas, assim chamados por estarem reunidos em
torno da revista Presença (1927-1940), e entre eles temos José Régio, Vitorino Nemésio, Miguel
Torga e Branquinho da Fonseca.
O grupo em torno da revista Presença valorizava a importância da originalidade e do gênio artís-
tico, a liberdade na arte e a sinceridade, rejeitando a submissão da arte a quaisquer princípios que não
os especificamente artísticos. Todavia, esses escritrores foram acusados de “esteticismo”, “a-historicis-
mo”, “individualismo”, “psicologismo”, “formalismo”, e “torre-de-marfismo” pelo grupo em torno da revis-
ta Seara Nova (1919-1974), que fazia oposição à ditadura de Salazar.
Para entender isso, é preciso lembrar um pouco da história da República portuguesa.

A República e a ditadura de Salazar


A República portuguesa surgiu em 1910, após a revolução de 5 de outubro, quando os republica-
nos tomaram o poder, sendo o escritor Teófilo Braga eleito como presidente interino. Os republicanos
proclamaram uma nova Constituição em 1911 e começaram a legislar em prol da população. Acabaram
com a censura, instituiram o direito à greve e procuraram garantir uma séria de direitos para os traba-
lhadores. Por razões de ordem externa (a emergência da Primeira Guerra Mundial – 1914-1918) e de or-
dem interna (o acirramento das diferenças intra-partidárias), eles não conseguiram estabilidade política
para concretizar as várias ações sociais propostas e em 28 de maio de 1926 aconteceu um golpe militar
que instituiu uma ditadura. Na maior parte do tempo tendo à sua frente a figura de António de Oliveira
Salazar, essa ditadura só teve fim com a Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974.

A revista Seara Nova (1919-1974)


A Seara Nova surgiu da preocupação de alguns intelectuais com os descaminhos que a República
vinha tomando depois de quase uma década de sua existência. Em 1919, esses intelectuais fundaram
essa publicação com o intuito de refletir sobre a nação, congregando nomes como os de Jaime Cortesão,
Raul Proença, Raul Brandão, Aquilino Ribeiro, António Sérgio, entre muitos outros.

O n.111 da Seara Nova.


Modernismo Presencista | 217

Esse grupo era internacionalista, uma vez que a Primeira Guerra Mundial havia demonstrado o pe-
rigo do enaltecimento exacerbado das identidades nacionais, e também lutava por diversas causas so-
ciais, em especial a democratização do ensino em todos os seus níveis, da alfabetização à Universidade.
Alguns dos seus integrantes acabaram entrando para os quadros do governo, como António Sérgio,
que se tornou Ministro da Instrução.
Buscando uma postura suprapartidária, eles avaliavam que os portugueses não tinham consciên-
cia do papel que deveriam cumprir em um governo republicano e democrático e se empenhavam em
fazer com que as elites intelectuais e políticas do país se conscientizem disso.
Além disso, combatiam a individualismo político, a corrupção, a militarização crescente, o reacio-
narismo monárquico. Combatiam sobretudo o Integralismo Lusitano, de base fascista, assim como toda
e qualquer forma de governo totalitário. Durante a ditadura de Salazar, a revista foi um reduto oposicio-
nista, tendo sofrido sistemáticos ataques da censura. Sintomaticamente, encerrou sua publicação logo
após o advento da Revolução dos Cravos e o fim desse período trágico da história portuguesa.

Raul Brandão (1867-1930)


Entre os colaborados da Seara Nova, vale destacar Raul Brandão, que surgiu no cenário literário
português ainda no período do Simbolismo. Apesar de ter se formado em Letras, acabou se dirigindo
para a carreira militar, na qual permaneceu. Foi do grupo fundador da Seara Nova, mas saiu da direção
da revista em 1923, quando a literatura começou a perder espaço na publicação, que se voltava quase
que inteiramente para a política.
Entre suas obras, podemos destacar
::: Impressões e PAISAGENS (1890).
::: História de um Palhaço (1896).
::: Os Pobres (1906).
::: Húmus (1917).
::: Memórias (1919, 1925 e 1933).
::: Teatro (1923).
::: Os Pescadores (1923).
::: A Morte do Palhaço e o mistério das árvores (1926).
::: Jesus Cristo em Lisboa (em co-autoria com Teixeira de Pascoaes, 1927).
::: O Avejão (1929).
::: Portugal Pequenino (em co-autoria com Maria Angelina Brandão, 1930).
::: O Pobre de Pedir (1931).
Além desses títulos, também escreveu o inacabado romance Os Operários (1984), publicado pos-
tumamente por Túlio Ramires Ferro.
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O escritor Raul Brandão.

Já pelos títulos de seus trabalhos, é possível constatar sua preocupação com as causas sociais.
Vejamos como exemplo de seu estilo o início do capítulo “As mulheres”, do romance Os Pobres:
Ao vir a noite põem-se as prostitutas a cantar; entre as pedras ressequidas e o ruído humano põem-se as prostitutas a
cantar. São pobres seres de descalabro e piedade, lama que o homem gera de propósito para o gozo. A treva leva e dis-
persa essa toada em farrapos, os flocos de tristeza, que são como a alma, a aflição da noite, a soluçar. Noite... Remorsos,
sonhos, soou a vossa hora! De blocos negros se constrói outra cidade... Há ainda claridades esparsas, que a Sombra ca-
lada, a tactear, de súbito afoga sem rumor. E de entre as meias portas surgem fisionomias como só o remorso as cria: di-
ríeis, de tristes e cansadas, que se vão diluir como as das mortas. (BRANDÃO, 2008)

É de se notar, como, ao descrever a realidade da prostituição, Raul Brandão possui um estilo que
guarda um vínculo com os procedimentos estéticos simbolistas, carregando o ambiente da prostitui-
ção de um gosto inspirado no decadentismo literário francês, na escolha de seu vocabulário (lama, tre-
va, farrapos, aflição, remorsos, cansadas, mortas) e de uma certa magia e encantamento (as prostitutas
cantam, seu canto são flocos de tristeza, de sonhos, em meio a claridades esparsas). Sua prosa de viés
realista é mediada, portanto, por um lirismo muito peculiar e original, ao modo simbolista, o que o dis-
tingue entre os prosadores portugueses do período.
Apesar de suas peculiaridades, Raul Brandão não se configura como um caso isolado no que con-
cerne ao seu realismo: a crescente preocupação com o retrato crítico da realidade foi uma marca do gru-
po que se reuniu em torno da Seara Nova, de onde irá surgir o Neo-Realismo português.

A revista Presença (1926-1940)


Já a Presença tomará um caminho completamente distinto do da Seara Nova. Sob a direção de
três grandes personalidades literárias do modernismo português – José Régio, Branquinho da Fonseca
e João Gaspar Simões –, a revista Presença surgiu em Coimbra, contando com a colaboração de Miguel
Torga, Adolfo Casais Monteiro, Vitorino Nemésio, Jorge de Sena, António Botto e Fernando Namora,
entre outros.
Acolheu ainda textos de autores do primeiro modernismo, como Fernando Pessoa e Mário de
Sá-Carneiro. E primava pelo cuidado gráfico, com trabalhos de Almada Negreiros, Sarah Afonso, Dórdio
Gomes, Mário Eloy e outros artistas plásticos.
Modernismo Presencista | 219

O primeiro número da Presença.

Preocupados com a liberdade de criação artística, que viam ameaçada pelo engajamento político
presente nos membros da Seara Nova, os colaboradores de Presença defendiam a supremacia do indi-
vidual em relação ao coletivo, a liberdade da arte e do artista em relação a qualquer forma do coerção,
o direito à pesquisa estética sem vínculo imediato com as questões políticas e sociais, buscando o uni-
versalismo e não o historicismo. Desse modo, puderam, em certo sentido, dar continuidade ao trabalho
estético iniciado pela geração de Orpheu.

José Régio (1901-1969)


Uma da mais importantes personalidades de Presença foi José Régio, que era formado em Letras
pela Universidade de Coimbra e professor do ensino secundário. Como vimos, foi um dos fundadores
da revista Presença, e foi autor de uma vasta produção que inclui poesia, peças teatrais, prosa ficcional
e ensaios críticos.

Retrato de José Régio.

De sua obra poética, podemos destacar.


::: Poemas de Deus e do Diabo (1925).
::: Biografia (1929).
::: As Encruzilhadas de Deus (1935-1936).
::: Mas Deus é Grande (1945).
::: Filho do Homem (1961).
::: Cântico Suspenso (1968).
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::: Música Ligeira (1970) e Colheita da Tarde (1971).


Para o teatro, escreveu:
::: Jacob e o Anjo (1940),
::: Benilde ou a Virgem-Mãe (1947),
::: El-rei Sebastião (1949),
::: A Salvação do Mundo (1954),
::: Três Peças em um Ato (1957).
Só pelos títulos de seus livros de poesia e de sua produção dramática faz-se evidente a referência
ao imaginário cristão.
De sua prosa, temos?
::: Jogo da Cabra-Cega (1934);
::: Davam Grandes Passeios aos Domingos (1941);
::: A Velha Casa (1945-1966, 5 v.;
::: Histórias de Mulheres (1946);
::: Há mais Mundos (1962);
Como ensaísta, podemos mencionar:
::: Críticas e Criticados (1936);
::: Em Torno da Expressão Artística (1940);
::: As Correntes e as Individualidades na Moderna Poesia Portuguesa (1952);
::: Ensaios de Interpretação Crítica (1964);
::: Três Ensaios sobre Arte (1967).
Sua poesia é marcada pelo personalismo, pela busca de forjar uma identidade que não se molde
pelos padrões estabelecidos, tal como diz o início do poema “Cântico Negro”:
“Vem por aqui” — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
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Com que rasguei o ventre à minha mãe


Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
(RÉGIO, 1978, p. 32)

Branquinho da Fonseca (1905-1974)


Outro fundador da Presença foi Branquinho da Fonseca, que se formou-se em Direito pela
Universidade de Coimbra e trabalhou no Registro Civil de Marvão e no de Nazaré, tendo sido ainda di-
retor do Museu-Biblioteca Conde de Castro-Guimarães, em Cascais. Ainda na universidade, conheceu
João Gaspar Simões e José Régio, com quem fundou a revista, que dirigiu até 1930. Todavia, desligou-
se da publicação por desentendimento ideológico, por considerar que começava a haver cerceamento
do direito de livre criação.
De sua obra poética, temos:
::: Poemas (1926) e
::: Mar coalhado (1932).
Para o teatro, escreveu:
::: Posição de guerra (1928) e
::: Teatro (1939).
Entre seus textos ficcionais, contam:
::: Zonas (1931);
::: Caminhos magnéticos (1938);
::: O barão (1942);
::: Rio turvo (1945);
::: Porta de Minerva (1947);
::: Mar santo (1952); e
::: Bandeira preta (1956).
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O livro mais famoso de


Branquinho da Fonseca.

O seu texto mais conhecido é o conto “O Barão”, que foi transformado em peça teatral em 1964
e no qual um inspetor de escolas narra a noite que foi obrigado a passar no solar de um barão senti-
mental e excêntrico, constituindo-se uma narrativa que envolve suspense, luxúria, mistério e densida-
de psicológica.

Vitorino Nemésio (1901-1978)


Vitorino Nemésio não esteve na origem da revista, mas foi um de seus importantes colaboradores
e nela despontou para a vida literária. Foi professor da Faculdade de Letras em Lisboa, chegando a dar
aulas no Brasil, na França, na Bélgica, na Espanha e na Holanda. Além de professor de Literatura, apre-
sentou por muitos anos um programa de cultura na TV portuguesa, assim como colaborou sistematica-
mente em periódicos e chegou a dirigir o jornal O Dia.
Entre suas obras poéticas podemos destacar:
::: La voyelle promise (1935);
::: Nem toda a noite a vida (1952);
::: O verbo e a morte (1959);
::: O cavalo encantado (1963);
::: Poemas brasileiros (1972);
::: Sapateia açoriana (1976).
De sua prosa ficcional, lembremos:
::: Paço do Milhafre (1924);
::: Varanda de Pilatos (1926);
::: Mau tempo no canal (1944);
::: Quatro prisões debaixo de armas (1971).
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Entre ensaios e crônicas temos:


::: Relações francesas do romantismo português (1936);
::: Isabel de Aragão (1936);
::: Vida e obra do infante D. Henrique (1959);
::: Corsário das ilhas (1956);
::: O retrato do semeador (1958);
::: Quase que os vi viver (1985).
Seu texto mais conhecido é o romance Mau Tempo no Canal, que trata da sociedade açoriana
e mais especificamente da cidade da Horta, onde acontece a relação amorosa entre Margarida Clark
Dulmo e João Garcia, em meio a conflitos familiares que vêm caracterizar aquela sociedade. Lembremos
que Nemésio era açoriano e, portanto, conhecia bem a realidade de que retratava.

Capa do livro Mau Tempo no Canal


com a rosto de Vitorino Nemésio.

Vale lembrar um dos seus Poemas brasileiros, “Nova bárbara escrava”, demonstrando como o poe-
ta açoriano procurou dialogar com o português do Brasil. Assim diz o início do poema:
Barborinha uma crioula:
Faz de bahiana evocada
Num hotel de vidro e avenca;
Usa torço cor-de-rosa,
Pano-da-costa fingido,
Chambre crivado no seio:
Seu balangandã preserva-a
Bem menos que seu enleio.
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Para não ver os meus olhos


– Figa branca, figa preta –
Atira-as pra trás nas costas,
Tão bem, que só vê diante
A cuia do vatapá:
Mas eu sei quantas pancadas,
Vindo assim, seu peito dá.
Peixinho moreno, pula
No aquário do hotel de luxo
Como gota de água ao céu:
Tem vergonha de ser mate,
O seu passo é como um véu.
(NEMÉSIO, 1989, p. 480)

As palavras balangandã, cuia e vatapá procuram integrar em sua poesia alguma brasilidade, mas
o título do poema não deixa margem para a crítica que faz à condição da mulher negra baiana, “Nova
bárbara escrava”. Se a figura de Barborinha o fascina por sua sensualidade, também se dá conta de sua
condição miserável (“[...] sei quantas pancadas, / Vindo assim, seu peito dá”).
Dessa maneira, tanto a poesia quanto a prosa de Vitorino Nemésio têm, ao lado de um forte liris-
mo, uma também forte consciência dos problemas sociais.

Miguel Torga (1907-1995)


Miguel Torga, outro colaborador da Presença, é o pseudônimo de Adolfo Correia da Rocha. Nascido
em Portugal, viveu parte de sua infância e juventude no Brasil, retornando a Portugal para fazer o curso
de medicina na Universidade de Coimbra. Ali se aproximou do grupo da revista, afastando-se dele para
criar junto com Branquinho da Fonseca a revista Sinal (1930). Foi várias vezes indicado para o Prêmio
Nobel da Literatura, sem, no entanto, jamais tê-lo recebido.
Autor desconhecido.

O escritor Miguel Torga.


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Entre seus livros de poemas podemos citar.


::: Ansiedade (1928).
::: Abismo (1932).
::: O outro ivro de Job (1936).
::: Lamentações (1943).
::: Libertação (1944).
::: Alguns Poemas Ibéricos (1952).
::: Penas do Purgatório (1954).
::: Orfeu Rebelde (1958).
::: Câmara Ardente (1962).
De sua prosa, lembremos:
::: Pão Ázimo (1931);
::: A Criação do Mundo (1937-1980, em cinco volumes);
::: Os Bichos (1940);
::: Contos da Montanha (1941);
::: Rua (1942);
::: O Senhor Ventura (1943);
::: Pedras Lavradas (1951).
Além disso, há o Diário (1941-1995, em 16 volumes).
Um dos principais dilemas de Torga diz respeito à relação entre os homens e Deus. Sua obra está
repleta de referências bíblicas, mas o seu investimento todo é no louvor ao ser humano e não a Deus.
Em “Exortação”, o poeta demonstra o quanto acredita no homem:
Em nome do teu nome,
Que é viril,
E leal,
E limpo, na concisa brevidade
– Homem, lembra-te bem –!
Sê viril,
E leal,
E limpo, na concisa condição.
Traz à compreensão
Todos os sentimentos recalcados
De que te sentes dono envergonhado;
Leva, doirado,
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O sol da consciência
Às íntimas funduras do teu ser,
Onde moram
Esses monstros que temes enfrentar.
Os leões da caverna só devoram
Quem os ouve rugir e se recusa a entrar...
(TORGA, 1978, p. 83)

A idéia de que não devemos ter medo do desconhecido, a necessidade de enfrentarmos os temo-
res existentes nas profundezas de nossa alma (os leões de caverna) é parte de um ideário humanista e
materialista. Torga é, portanto, um homem que sempre lutou por uma ética que, calcada na própria hu-
manidade, não dependesse de qualquer transcendência.

A autonomia da literatura
e sua relação mediada com a realidade
Podemos concluir que, apesar de lutarem por uma prática literária não engajada, que não atrelas-
se sua produção ao imediatismo do momento político, os presencistas também não deixaram de atuar
politicamente. Se Raul Brandão e o grupo da Seara Nova tomavam como matéria-prima a questão social
daquele momento histórico, o presencismo veio estabelecer uma relação mediada com essa realidade
imediata, pois, apesar de tomarem por matéria de seus textos barões sentimentais, egos transgressivos,
dramas familiares e a própria natureza humana, todos esses temas e o modo como eram tratados este-
ticamente guardavam fortes vínculos com o mundo que os cercava, servindo também no sentido de se
caminhar para uma sociedade mais justa e igualitária.

Texto complementar
O pai de Venâncio delira e a revolução fracassa
(NEMÉSIO, 1986, p. 163-165)
Os papéis de música esparziram-se por cima da cama e no chão.
- É demais! É demais! Querem-me fazer doido á força! Vão para o diabo! Não quero!... Estou far-
to disto até aos olhos! Se me entretenho a cantar, que esteja calado e que durma; é por meu bem! Se
compro uma cabra, se me divirto com uma tartaruga viva, fica-me feio, tenho o juízo perdido, devo
acalmar os nervos que não regulam direito! É uma vida do inferno!... Ai! Ai!
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Minha mãe acudiu aos gritos, afastando-me:


- Tibério... Tibério...
- A menina deixe-me em paz!
- É que podem ouvir na rua...
- Não quero saber!
Acalmara, entretanto, porque meu tio Pedro o abandonara por fim; e declarou secamente:
- Quero sair. Vai buscar o fato cinzento, Maria da Graça. E traze as botas pretas...
Minha mãe acedeu, cheia de medo e de lágrimas. Então a Luisinha costureira lembrou às mais
pessoas que era melhor saírem:
- Para ele se não exaltar... E até o passeio talvez lhe faça bem. É nervoso...
A Barraca, ao sair, também declarou:
- É nervoso...
E foi então que acharam chegado o momento de eu aparecer a meu pai.
- Tu por aqui! – exclamou, já com as botas calçadas e cobrindo-me a face de beijos. – Que acon-
teceu por lá? Feriado?
Tatarmudeei que, em verdade, durante três dias tinham fechado as aulas; e a tia perpétua, que
se recomendava muito, aconselhara-me a vir até Velório, espairecer.
- Pois fizeste bem, meu velhinho – disse meu pai, recebendo de boa fé tais palavras. – Eu vou
sair. Vens comigo.
Beijei minha mãe e a madrinha, a quem meu pai disse:
- Adeus! A tia não se incomode. Mete-se a esta mulher cada minhoca na cabeça... Que eu sinto-
me bem; não é nada. Algumas noites de pouco sono, apenas.
Vestira o sobretudo e levantou a gola quando saímos a porta. Ao passar pelo tio Pedro, que do-
brava a esquina da rua Alta, encolhido, mudou de humor e saudou-o:
- Homem de Cristo, adeus! Fale à gente!
E metemos a passo descansado para as Devesas de Baixo.
Aí mandara construir meu pai uma barraca de madeira com toldo de zinco ondulado. Era um
pequeno mundo de animalejos divertidíssimos, desde a tartaruga ronceira, que vivera apenas dois
dias, até canários audazes que passarinhavam nas gaiolas. Estava dividida em dois pisos. No inferior,
terreiro, um jerico de orelha afidalgada roia de manso na sua baia. Seguia-se-lhe uma minúscula di-
visão para a cabra, outra que estava vaga; e, sobre o frontal direito, seis casinholos de pinho paten-
teavam coelhos mansos.
- Vê, que lindos! – exclamou meu pai quando chegamos em frente da repartição dos roedores.
– Aquela do canto comprei-a há quinze dias; custou seis mil-réis. Mas não diga nada à mãe... É duma
raça escolhida.
228 | Nome do livro para curso ULBRA

Despira o sobretudo, arregaçara as mangas do casaco e começou a tirar farelo duma caixa para
a gamela de pau:
- Vamos fazer a fareladazinha para os leitões de refugo. Estão lá trás, no curral.
E, variando, disse:
- O nome do burro é Fardeta. Não tem uma cabeça bem feita? Hein? Repara nas orelhas. Olha,
olha...
O burro mudara de aprumo escarvando no chão duas vezes.
- Que engraçado! Quando me vê cá dentro não sabe o que há-de fazer. Coitado o Fardeta... Alça!
Mostrou-me um casco roído do animal:
- É de andar desferrado há dias. Coitadinho o Fardeta... Sai, burro...
Perguntei então se me poderia servir de montada, e, perante aquela animação pecuária, os
meus receios desvaneceram-se.
O pai realmente não corria perigo. Atravessara decerto um daqueles períodos difíceis em que a
meus olhos surgia transfigurado, mas humano. Eram sinuosidades na sua linha vulgar de vivente, isso
eram. Aqueles desperdícios, o entusiasmo imoderado da música, que o levava a tentar orquestras
impossíveis com um violonista da força de meu tio Pedro e quejandos, destoavam redondamente
da pacatez de Vilório ascendendo por vezes a proporções vesânicas. Mas razão, depois, pareceu-me
simples. Meu pai era um forçado entre simplórios e medíocres. Nascera sob um signo que não tinha
ali cumprimento, ou, se o tinha, precisas de meios necessariamente insensatos. Daí, os nervos dele.
A família, os conhecimentos e os amigos desadoravam-no por isso; e, como meu pai tivesse um tem-
peramento irritável, fazia gala nas birras. Chegava a dormir, além disso, só quatro horas por noite.
Lavou as mãos, sujas da farelada, e, sentando-se na divisória da baia em que o Fardeta comia,
revelou-me um plano que, parecendo-me falho de senso, não me deixou de atrair.
- Pois, Venâncio, declarou com acento irrevogável e estranho; - estou decidido a ambarcar para
Lisboa hoje mesmo. O Garajau sai cedo... Virás comigo.
- Mas a mãe não me falou em nada...
- Shut! Nem quero que ela saiba. É uma viagem resolvida perfeitamente em segredo e que hei-
de fazer por força. Ainda ficarás esta noite em casa da tia Perpétua. Eu como no hotel do Biqueiro. E,
à boquinha da noite, ala! que se faz tarde.
Fiz uma cara de espanto.
- Isto é tão certo como estarmos aqui a esta hora – rematou meu pai, com dureza.
- Se não é segredo – arrisquei, - que vai o pai fazer para Lisboa?
- Sei lá... Descansar. Preciso de forças novas para aturar tua mãe, e, além disso, há negócios... Es-
cusas, por ora, de saber... Trago uma coisa em vista.
- Mas , pai – observei então, com ar martirizado, passando-lhe as mãos ao pescoço; - ir-se assim
sem mais nada, sem se despedir de ninguém... A pobre mãe vai apanhar um susto!
Modernismo Presencista | 229

- Não seja tolo, menino! Vou porque vou, já disse! E bico calado! Arranje a roupa, se a trouxe,
e espere por mim ao Telhal, que vamos a pé um bocado pelo caminho de cima. O carro do Trigueiro
está à nossa espera ao pé do Pico Redondo.

Dicas de estudo
::: Para se aprofundar no conflito entre as revistas Seara Nova e Presença, leia o que dizem Óscar
Lopes e António José Saraiva em História da Literatura Portuguesa, obra que tem várias edições,
sempre pela Porto Editora, de Portugal.
::: Tanto Vitorino Nemésio como Miguel Torga viveram no Brasil. Faça uma pesquisa para saber
mais sobre a relação desses escritores como o nosso país, começando pela própria obra deles,
nas quais o Brasil aparece diversas vezes.

Atividades
1. Qual é o aspecto central que opunha as publicações Seara Nova e Presença?

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