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2004
SIBILA
ReginaSilveira,série Armarinhos
(Colchete de Gancho), inédito,2002.
ano 4 : n. 7 : 2004
Ateliê Editorial
SIBILA
Revista semestral de poesia e cultura: ano 4, número 7, novembro de 2004
Editor
Régis Bonvicino (São Paulo)
Publisher
Plínio Martins Filho (São Paulo)
Editora assistente
Tatiana Longo dos Santos (São Paulo)
Editoranssocinda
Odile Cisneros (Edmonton)
ConselhoEditorial
Moacir A1nâncio (São Paulo), Carlos Ávila (Belo Horizonte), Vera Barros (São Paulo), Aurora
Fornoni Bernardini (São Paulo), Charles Bernstein (Nova York),Wilson Bueno (Curitiba),
Graça Capinha (Coi1nbra), Maria Elisa Costa (Rio de Janeiro), Eucanaã Ferraz (Rio de Janeiro),
Jerusa Pires Ferreira (São Paulo), Hugo Gola (Cidade do México), Reynaldo Jin,énez (Buenos
Aires), Manoel Ricardo de Lima (Florianópolis), Telê Ancona Lopez (São Paulo), Fabiana
Macchi (Berna), Rodolfo Mata (Cidade do México), Juan Carlos Marset (Sevilha), Darly
Menconi {São Paulo), Douglas Messerli (Los Angeles), Eduardo Milan (Cidade do México),
Alcir Pécora (Campinas). Marjorie Perloff (Pacific Palisades), Claude Royet-Journoud (Paris).
Romulo Valle Salvino (Brasília), Boris Schnaiderman (São Paulo) e Cecília Vicufla (Nova York)
I,nngetnda capa
Maciej Laska (istockphoto.com)
Direitosreservadosà
ATELIE • EDITORIAL
Rua ManuelPereira Leite,15
06709-280 - GranjaViana- Cotia - sp
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br ate!ie_cditorial@uol.corn
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linpressono Brasil2004
Foi feitodepósito legal
~
SUMARIO
Editorial,7
Sibila• RicardoAssis,10
Umasó palavra• Claude Royet-Journoude RégisBonvicino,11
Desenhos• Claude Royet-Journoud,19
Prosas• EvandroAffonsoFerreira,2 1
exercício e s pi ritual • JoselyVianna Baptista,25
Poemas• Angela de Campos,26
Ensaio• Eder Chiodetto,29
DESTRADUÇÃO
A fervura do aire• Antonio DomínguezRey,40
PARESCONTEMPORÂNEOS
Momentocrítico(meu meio século)• Alcir Pécora,44
RESENHASE NOTAS
Roteirobásicopara uma vida sem livros• Furio Lonza,90
Os cadáveresda históriana poesiade NéstorPerlongfzer•
FlorenciaGarramuflo,94
O sexodas meninas • Néstor Perlongher,107
I Jorizontesabdutivas• DécioPignatari,122
Osexcessoscontemporâneosde Augustode Campos•
SérgioMedeiros, 136
Rudeza de argumentos em torno da pedra de Drummond •
Luís Dolhnikoff, 145
A morte de Sophia • Richard Zenith, 152
Sibilas• Sophia de Mello Breyner Andresen, 155
HÉLIOTOUR
Conto • Hélio Oiticica, 182
Na trilha da Navilouca • Entrevista de Luciano Figueiredo a
Eucanaã Ferraz e Roberto Conduru, 185
Hélio Oiticica - um escritor em seu labirinto • Frederico
Oliveira Coelho, 215
Sl BILA
EDITORIAL
SIBILA
um balanço, de modo inusual, de questões artísticas inter11acionais e
brasileiras. Publica-se a poeta alemã Else Lasker-Schüler, desconhecida
por aqui, o poeta espanhol Antonio Domínguez Rey, poemas de Josely
Vianna Baptista e de Angela de Campos, prosas de Evandro Affonso
Ferreira, um contundente ensaio fotográfico de Eder Chiodetto e tra-
balhos sobre Néstor Perlongher ( um dos idealizadores do movimento
neobarroco , um dos movimentos questionado por Pécora em seu tex-
to) e, ainda, o texto de Perlongher sobre o excelente poeta argenti110
8 Oliverio Girondo.
Há, ne ste número, com a entrevista de Figueiredo , uma pequena ho-
menagem de Sibila à revista Navilouca, que, nos anos 1970, correu riscos
e foi porta -voz de inovações importantes para a época, realçando-se, nela,
as presenças de Oiticica, Lígia Clark e Torquato Neto. Agradece1nos a
Eucanaã Ferraz pela organização do material de e sobre o criador dos
Parangolés.
Por fim, uma palavra sobre a reeleição de George W. Bush nos EUA.
Certamente, em "harmoniá' com sua política imperial, o presidente es-
tadunidense procurará criar novas zonas de influência na Ásia Central
e no Oriente Médio, prosseguirá em seu cerco sub-reptício e silencioso
à China, seguirá tentando limitar o poder russo e buscará produzir fo-
cos de conflitos e crises artificiais nos países da União Européia. Poderá
também invadir algum território soberano da América -Latina, seguirá
assassinando pessoas no Iraque e no Afeganistão etc. etc. As forças de -
mocráticas do mundo encontram-se numa encruzilhada. No entanto,
precisam resistir a Bush e a seus atos, que colocam a civilização em risco
permanente. Sibila passa a cobrar de artistas e poetas norte-americanos
posições claras em relação a Bush. A revista não os discri minará, toda-
via, exige que eles, como fazem, por exemplo, Michael Moore, Douglas
Messerli e Michael Hardt , comecem a se desvencilhar da "ação" fascista,
hitleriana, que dá hoje o perfil daquele país , que, no passado, foi "exemplo"
de de1nocracia. Não é po ssível não ser contra Bush! Não é possível fazer
poesia e ficar indiferente a Bush! Não é possível não agir. Sibila supõe
SIBILA
que uma das muitas formas de resistênciaque pode ser estimulada é a
do dissenso,claro e nítido, mesmo que aparentementeinútil, em relação
às políticas norte-americanas, que, sim, alteraram e alteram, também,
qualquer sentido atual de arte.
SIBILA
~
UMA SO PALAVRA
Claude Royet-Journoude RégisBonvicino
RégisBonvicino
SIBILA
Você acha que a poesia é hoje inútil?
Contrabanda!
Stéphane Mallarmé é um poeta vivo?
Vívido.
A poesia feita para a página do livro está superada?
Não.
Você acredita em poesia sonora?
'
As vezes.
12 Você acredita em poesia eletrônica?
As vezes.
Você ainda acredita em Marcel Duchamp?
Aos pedaços...
Existem diferenças entre prosa e poesia?
Sim.
Por que Mallarmé é um poeta vivo?
Exatidão.
Você gosta de Corbiere, Laforgue e Verlaine?
Amarelo.
Matisse e Picasso estão vivos?
Fredrikson'.
O que você entende por poeta vivo?
Vivo.
Você aprecia Dadá?
Tzara.
O que você pensa sobre o Surrealismo?
Nada.
O que pensa de James Joyce?
"S.zm.»
•
E do Finnegans Wake em particular?
Stein.
1. Seu prenome é Lars. Ele, desafortunadamente, morreu a poucos anos atrás. Era um grande
artista.
SIBILA
Você acredita em pós-modernidade?
Yoop!
Você gosta de Francis Ponge?
Sílaba.
E de Ionesco?
Encrenca.
Beckett?
(Danielle)Collobert.
O que acha de Sartre, Deleuze, Lacan, Derrida etc. etc.?
Encore!
Você gosta de Edmond Jabés?
Muitíssimo.
Apollinaire é um poeta vivo?
(Louis) Zukofsky.
Diga uma palavra para René Char.
"résistant".
A língua portuguesa é ininteligível?
Sensual.
Ela soa como se fosse polonês?
Não.
Existe algum movimento de vanguarda hoje em dia?
Brincadeira...
Existe1nbons críticos de poesia hoje?
Escondidos.
Você acha que há mais política literária do que crítica hoje?
Infelizmente.
Diga uma palavra para crítica acadêmica.
Desastre.
Diga duas palavras para Roland Barthes.
Luz/Amor!
O que você detesta em poesia?
Aliteração.
SIBILA
Qual é a capital mundial da poesia?
Dicionário.
O que acha do dadaí smo nova-iorquino?
1451232 •
Você já leu Fernando Pessoa?
Pouco.
Você conhece Carlos Drummond de Andrade?
Sim.
14 É possível que alguém seja hoje um novo Ezra Pound?
Por quê?
Por que você se declara vazio?
(Sem) dinheiro.
Você aprecia espaços vazios?
Respiração.
Você ama as palavras?
Entre.
Você gosta de imagens?
Onde?
E de Anne-Marie Albiach?
Ardentemente.
Você apóia Mr. Bush?
Não.
O francês é uma língua minoritária?
Óbvio.
É possível ser Rimbaud hoje?
Ação!
Como você se sente no Museu do Louvre?
Animado.
Você gosta de museus?
(Da) calçada.
S 1BILA
Cite dez poetas franceses contemporâneos?
Não.
Você acredita em Tristan Tzara?
Aproximadamente3 •
Você sabia que BlaiseCendrars viveu um tempo em São Paulo?
Piratininga.
O que você pensa sobre o trabalho de Blaise?
Admiração.
Diga uma palavra sobre Brancusi?
Uma.
Matisse seria possível nos EUA?
Não.
Você imagina uma pessoa fazendo poesia com pipocas?
Alguma.
Você pensa que Baudelaire é u1n poeta vivo?
(PierreJean)]ouve.
Zidane ou Ronaldo?
Ambos.
Uma loja ou um supermercado?
Ambos.
Branco ou preto?
Ambos.
O que você pensa sobre o punk rocke sobre Sex Pistols?
Pop.
Você acredita em pop art?
Sexo.
Você acredita em Andy Wharol?
Manhã.
Você acredita em Hollywood?
Tarde.
3. Approximatif está no título de um lindo livro de Tristan Tzara chamado I.:Homme approxi-
nratif.
SIBILA
Você acredita em Jean-Luc Godard?
Sim.
Você gosta de Charles Aznavour?
r '1
1a.
Por que os poetas americanos se parecem com executivos ou
vendedores?
Mentira!
Você gosta dos iraquianos?
Humano.
Você bebe Coca-Cola?
Pepsi!
Diga uma palavra sobre Salvador Dalí.
Outra...
Por que outra para Dalí?
Despreocupado.
Diga uma palavra sobre o poeta norte-americano George Oppen?
Luz4.
E para Man Ray?
Preocupado.
E para Miró?
Gratidão.
E para García Lorca?
(Jack)Spicer.
E para Picasso?
"P.zcassc"5•
SIBILA
Vocêacha que a LanguagePoetryé uma diluiçãode Gertrude Stein?
Incisão.
Vocêpensa que a LanguagePoetryé diluiçãoda poesia concreta?
Não.
Diga uma palavra para a poesia concreta.
CC •A•"
oxzgenzo.
Alguémaqui no Brasildisseque ToutArrivede DominiqueFourcade
é uma cópia de Galáxiasde Haroldo de Campos?É mesmo?
Errado. 17
Diga uma palavrasobre JacquesRoubaud?
Essencial.
Diga uma palavrapara JasperJohns?
Aliteração.
Uma para Tarsilado Amaral?
Léger.
E para Léger?
Amaral.
Vocêacha que os EUA estão sob uma ditatura hoje?
(Ainda) não.
Vocêacredita na democracia?
Sim.
Diga uma palavrapara Borges?
Olho.
Diga uma palavrapara Bréton?
Solidão.
Diga uma palavra para a palavra.
Talvez.
Diga quatro palavraspara Joachimdu Bellay.
'cegrand espacevide".
O que você acha do desconstrutivismo?
Fotogramas.
SIBILA
E sobre a Bauhaus?
Klee.
Qual foi a última vez que você leu Ri1nbaud?
Sexta-feira.
Quem merece duas palavras?
pauloleminski.
Quem merece três palavras?
Sintaxe.
18 Quem não merece nenhuma palavra?
Silêncio.
SI B1lA
DESENHOS
ClaudeRoyet-Journoud
- V-~~
~
••
:L~
&oJJJ._
PROSAS
EvandroAffonso Ferreira
PUNFAS! 21
ARRE LÁ!
ZELOTIPIA
SlBILA
BORDALENGO
Aiuê tiro saiu pela culatra eh-eh maldade humana não conhece
margens fronteiras nascentes oxe malfazejo autor de
iniqüidades ano todo anzol dele pescador tição do inferno
vupt mas hoje bem-feito! quis enganchar boquinha da piabinha
aqui pluft furou o próprio olhinho .
22 CAFRICE
BASBALHOSTE
SIBILA
SACA-TRAPO
ENVISCADO
EMBIOCADO
SIBILA
ALARIFAGEM
FATILOQQENTE
SIBILA
ex e r e í e i o e s p i r i tu a l*
JoselyVianna Baptista
.
r 1s c o
no portulano
•
da areia
o roteiro do error
- do latim
errore:
vogar sem rumo
fadado ao êxtase
e ao naufrágio
SIBILA
POEMAS
Angela de Campos
PARADOROS
Ser só pedra
vértebra
na perpétua cordilheira
sem ênfase
estar estático
em movimento único
inefável e claro
coisa sem assombro
ser só onde
tudo tropeça
e permanece.
Arties,junho de 2002.
SIBILA
PARADOR06 27
gargantade rocha
tritura pedras
com a salivado Rio
correria de vento
lixa constante
regorgitao tempo
no chiar das cigarras
1nv1
• •
s1ve1s
I •
- ao lado zurram
sem perceber
o silêncioda cabra
•
que passa e vai
longe-,
nuvensse coagulam
no céu
da boca
EArdeche,julho de 2002.
SlBILA
PARADOR07
Bordeaux, agosto de 2 0 02 .
SIBILA
ENSAIO Eder Chiodetto
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P4 -
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A FERVURADO AIRE
Antonio Domínguez Rey
***
SIBI LA
Este balbor que sobe
dende o fondo da ría
a.ta o cumio do monte
, .
non e escuma n1n mera
do océano nas rochas,
nin os eixos dos carros
que voltan con queixumes
e laios ós cubertos.
Tampouco a serpe cega 41
do tempo entre eucaliptos.
A rolda da autoestrada
na estrema do remol
enche de néboa os anos
como un bosque de teas
de arafia nos oídos.
Larvas ocas o conco
Abrollado do día.
***
Voa, paxaro, ó fondo
pecho do ceo, voa.
A mifia inquedanza abre
de anseios a gaiola.
***
ó respirar resoa
a brisa nos pulmóns
SIBILA
como gorxa das augas
correntes no follame
desleirado dos vieiros.
O aire rolda no aire
coas azas da s palabra s.
O alento esvae sempre
un paxaro de lume
invisíbel e acende
a fervura bendada
da arxila no poema.
***
Hora na que a palabra,
sen ser, lucente abrolla
a vertixe do instante.
Inquedanza da so1nbra,
premura devanceira
que rexorde o tecido
do ceo con agoiros
e xemidos de cobre.
***
Morreron as palabras,
as frases, a sintaxe
do mundo. O que non morre
é a fervura do aire,
as raíces dos talos
que ruben polas gorxas
agoirando palabras.
SIBILA
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•
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,
" Esta é uma obra de ficção.Nenhum dos lugares,pessoasou objetosvariados referidos têm
qualquer responsabilidadesobreo que vai inventadoaqui.Ou têm apenas na medida em que
não se sabe exatamenteque tipo de coisa é responsávelpor uma invenção.
SIBILA
a idéia de fazer ali o papel de um estraga-prazer, inevitável,caso lá
comparecesse,sendo o livro como é, e eu tal como sou, acabei recu-
sando participar. À noite, no momento em que o evento deveria estar
acontecendo, eu me encontrava celebrando minha longevidade, no
meu restaurante favorito de São Paulo,o Arábia.
Não ter aceito o convite,contudo, não me poupou de alguna con-
versa sobre o livro, pois vários dos amigos que me acompanhavam
eram do ramo da literatura - e quase acrescento"infelizmente»,uma
vez que acabou dando nisso mesmo que vou contar aqui. Pouco 45
adiantaram os meus protestos de que eu estava no Arábia a fim de
fazer o que ali havia de ser feito, isto é, comer e beber, e não debater,
uma vez que deixara voluntariamente de comparecer ao localpróprio
para isso.Pediram-me ao menos que lhes dissesse o que não gostara
no livro. Jurei-lhes que essa seria minha última palavra a respeito, e
depois disso, se quisessem continuar com aquela discussão, que o
fizessemà vontade, mas sem mim, que me comportaria então como
simples e desinteressado espectador.
Tendo todos concordado, observei rapidamente que o livro me
parecia sofrer de toda sorte de problemas,desde os teóricos e críticos,
que me interessavam mais, até os de falta de rigor e relevância no
estabelecimento de critérios coerentes da seleção de autores, já que
havia muitas ausências injustificadas,muita descrições equivocadas
de obras e ainda um corporativismo flagrante em muitas escolhas.
- Eis tudo - completei - agora, à kafta!
Mas qual! Todos estavam menos com fome de comida do que de
palavras, o que bem demonstra a insensatez daqueles meus camara-
das, ou a minha, já que escolhi passar ao lado deles a comemoração
do meu meio século de vida. E na minha família,devo registrar aqui
solenemente, datas são um negócio muito sério. Minha irmã Aline,
por exemplo, já desfez um casamento porque o marido não achou
que tinha obrigação de levá-la para uma viagem comemorativa.
Também os meus amigos, como o ex-marido, não levaram em conta
SIBILA
os meus protestos. Alguma hes itação que tivessem em me contrar iar
não resistiu à fala de Cristiane, m inh a mulher, que os liberou para
tagarelarem à vontade:
- Alto lá, meu caro: já que você não quer falar mais nada, não
fale mais nada. É seu presente de aniversário. Mas nós vamos falar a
respeito do livro, pois o assunto é relevante . O livro tem repercussão,
ao menos em São Paulo, quer por ser lançado pela Folha, quer por
se tratar de um crítico que escreve regularmente no jornal, cuja fala,
46 portanto, independentemente de seu mérito próprio, tem sempre
alguma ressonância.
- Cris, please, relevante é o sabor desta kafta!
Como se não tivesse me ouvido, Cristiane adotou para si o papel
de moderna Isabela D'Este e propôs o seguinte aos meus amigos:
- Para organizar o simpósio, vamos dividir inicialmente os problemas
em cinco ou seis diferentes ordens, tais como as que o Alcir enun1erou,
e então tentaremos enunciá -los de alguma maneira razoável. Assim
alimentamos a cabeça, e não apenas o estômago, como parece ser o
deliberado cuidado do aniversariante. Cuidado, aliás, curioso: como
se pensar à mesa fizesse doer o estômago ou estragasse a digestão.
Velhice pode significar talvez isso mesmo: uma disposição severa de
se poupar ...
- Sim, a velhice chegou para você, meu amigo - completou crua-
mente o Paulo Franchetti, dois longos meses mais jovem que eu: - não
é apenas o meu ouvido esquerdo que já não ouve os grilos, mas tam-
bém a sua boca e o seu cérebro, que já não assoviam juntos.
- Que espécie de imagem é essa? Você mal chegou e já está cheio
de arak, meu velho. Não tente ir além desse ponto de incongruência
e tome lá esses valentes quitutes de sua antiga gente - disse eu, ape-
lando para o Elias Allane que ainda havia nele. E voltando-me para os
outros, jurei: - Já lhes disse que, de minha boca, não sai uma palavra
a mais do que as que deixei de dizer no debate a que não fui.
- Perfeito - disse Cris -, não é preciso que diga mais nada. Mas se
SIBILA
você não serve para debatedor, não vamos tolerá-lo como censor.- E
para os outros: - Qual era mesmo a primeira ordem de problemas
referida pelo nosso crítico mudo?
- Teoria - disse o Paulo -, este é o ponto agora. Qual é a questão
que ela suscita no livro?Aliás,alguém aqui leu o livro? Quem não leu
não tem direito de opinar.
- Eu li - arriscou iniciar o debate um avermelhado Eric Sabi.I1son,
amigo e colega de Departamento. - E tive uma sensação estranha:
o livro fala de literatura atual co1no um jovem... do século xrx. Por 47
exemplo,o autor parece jamais ter sonhado com qualquer coisa fora
de u1naconcepção representacionalda literatura. Isto é: de uma litera-
tura tomada como reflexo,ou mesmo como transcriação da realidade,
mas sempre como uma coisa que existe apenas e1n função de uma
realidade supostamente completa fora dela.
- Pois é - acrescentou o Paulo.- A literatura mesma não é pensada
ou reconhecida como ato de realidade.Ato pleno, que realmente faz
coisas ao dizer, que interfere, e não apenas que reproduz ou informa
o já existente ou autônomo em relação à palavra. O autor é, em suma,
certamente mais velho que o aniversariante de hoje, pois há bem mais
de meio século isto caducou.
- Caducou e já foi tarde! - continuou o Eric. - Não tenho ne-
nhuma saudade dessa velha mitologia iluminístico-romântica, na
qual literatura e mundo são,primeiro, uma dicoto1nia;segundo, uma
dicotomia pensa, na qual só o mundo tem peso.
Achei o Eric um pouco retumbante de1nais para um início de
noite. Devia estar tenso por sair do brejo de Barão Geraldo e de se
ver no meio de tanta gente. Pensei comigo que ele se sairia melhor na
defesa de seu ponto de vista se lançasse contra os representacionistas
alguma alegoria cujo herói fosse seu velho cão, o Gigli. Sempre me
admirei da maneira como ele girava sobre si mesmo até encontrar a
perfeita implantação no terreno para deixar sua merda. Se o terreno
fosse o mundo e a merda a obra literária, não teríamos u1naperfeita
SIBILA
imagem do caso? Um representacionistaacharia que a merda era pura
transparência, e que apenas o chão era suficientementeconsistente ou
real. la pegar naquela merda toda e jurar que o cheiro que inundava
o lugar era apenas perfume da grama. Eu iria adiante na exploração
de minha imagem canina e merdácea, se meus pensamentos não
tivessem sido interrompidos pelo Paulo:
- O aspecto representacional da obra... - Isso mesmo, da "obra»
- pensei comigo - ... literária, pressuposto pelo livro, está ainda, no
48 caso, a serviço de uma concepção nacionalista da literatura, quer o
autor queira ou não. Pois, no livro, o princípio representacional as-
socia-se ao chamado "sistema literário»,de extração candidiana. Evi-
dentemente, a condição de legibilidade do "nosso,,sistema literário
apenas se sustenta com base na noção de nacionalidade autônoma
e num método cuja precedência analítica é sociológica, no qual a
literatura é apenas meio de entrada numa realidade mais profunda,
mais decisiva ou complexa.
Eric voltou à carga, desta vez, para minha felicidade, de mente
dada ao bravo Gigli:
- O nacionalismo ficaevidentejá no velho e constante emprego da
fórmula:"nossâ' literatura,"nossâ' poesia,"nossa"prosa, enfim,"nosso
sistema literário': O conceito supõe e produz uma comunidade na-
tural e homogênea - "nós»!Mas, como já disse o Tonto: quem somos
"nós': cara pálida? O meu cão, por exemplo,sempre que passa uma
cadela em frente de casa,vai correndo me chamar para vê-la desfilar.
Ele nunca suspeitou que eu não fosse também um dos "seus",isto é,
um de "nós,,,os cães.
O meu amigo de infância, Celso Queiroz, que fazia aniversário no
mesmo dia e viera do Rio para comemorarmos juntos, surpreenden-
temente empolgou-se com a questão:
- "Nós"é um saco ideológico;no meu, é um tremendo pé. Quando
alguém escreve"nós': eu logo penso: lá vem chumbo. E vem sempre o
enunciado de uma gente muito comum, muito igual,que em seguida
SIBILA
vira universale transforma o resto em "resto".Para cada"nós':há sem-
pre uma porrada de "não-pessoas':o residual irrelevante.
Paulotornou ao raciocínioanterior,estranhando um pouco a vee-
mência do Celso,cujo humor entre o sangüíneo e o colérico,sempre
chegavaao início em ponto de bala, e completou:
- Para mim, uma das conseqüências da articulação de represen-
tação e nacionalismo está clara: a discussão literária que há no livro
simplesmenteignora as questõespoéticas,quase nada é dito de ritmo,
métrica, figuras,disposição... 49
Régis Bonvicino,que havia se mantido calado até então, deu aí o
seu palpite:
- Ele também não diz nada a respeito do debate literário inter-
nacional e contemporâneo. Os poetas internacionais citados - dos
prosadores, nada digo - são todos do fim de século XIX, começo do
xx. Quem lesse o livro desavisado,ia achar que estamos na iminência
de uma revolução modernista!
- Sim, nada diz do debate internacional. E sabe por que não diz,
nem pode dizer? Porque isso certamente o levaria à problematização
da idéia de comunidade nacional natural, da qual o livro é inteira-
mente tributário - arrematou o Eric.
Cristiane aplaudiu a conclusão e considerou sabiamente que já
era hora de virar o disco. Claro que, ouvindo isso,não perdi a opor-
tunidade de contestar:
- Caríssima,por favor,já tagarelamosdemais sobre o pobre livro.
Desse jeito, aliás, falando tanto dele,vocês vão acabar valorizando-o
mais do que merece. E, francamente, esta mesa magnífica não está
sendo honrada como deveria. Diante dela, não é razoável nenhum
tipo de avaliaçãoque não seja gastronômica.
Como se estivessem combinados entre si, todos me mandaram
ficar quieto, já que não me dispunha a participar da discussão.Tive
de me calar, entre vaias; e embora vaiado, não tardei a recuperar a
alegria com um saboroso babaganuche.
SIBILA
- Vamos falar um pouco de questões de crítica - determinou Cris-
tiane. - Mas antes de passar a palavra a mais alguém, queria dizer que,
ao ler o livro, me espantou a razão alegada para a fixação do número
"sessenta" como limite para a escolha dos autores. Diz Manuel que
como o livro dele é o número sessenta da coleçãoFolha Explica,achou
oportuno escolher sessenta autores! Não se trata apenas de arbitra-
riedade, pois bem sei que toda escolha pode dar margem a alguma
arbitrariedade, justificada de uma maneira mais justa ou menos justa,
50 mas a questão aqui é outra. A razão da escolha,mais do que arbitrária,
é boboca; mais do que boboca, é frívola. Não lhes parece que essa
adoção pacífica da frivolidade ofende a área? Falo disso porque, na
minha, a da História da Arte, essa pecha n1eincomoda muito.
- É uma merda - concordou prontamente Luis Dolhnikoff, que
aproveitara aqueles dias já friozinhos de outono para voltar a dar o ar
de sua graça na sua cidade natal. - E um sintoma de um apequena-
mento geral. Nesse caso,para tentar escapar um pouco pela tangente,
o livro agrega poetas-penduricalhos aos poetas-verbetes. Eu mesmo,
aliás, sou um poeta-penduricalho. Como aqueles filhotes de orango-
tango, que ficam pendurados por um braço no corpo da ...
- Mas há coisas mais graves a dizer - aparteou o Celso. - Ta1n-
bém folheei o livro, e achei que tudo nele era "glosa da glosa".Li essa
expressão num livro do Eduardo Lourenço, com a qual ele designava
o que costumam fazer os críticos e admiradores de Saramago, que
muitas vezes apenas parafraseavam o que ele próprio dizia a respeito
de sua obra.
Pensei comigo que, no Brasil,o mesmo ocorria com vários críticos
do João Cabral, mas, claro, calei-me. Não queria uma nova sessão de
vaias no combalido lombo cinqüentão.Entretanto,continuava o Celso:
- Não conheço procedimento mais contrário à crítica do que esse,
que adere aos próprios pressupostos do autor ou àquilo que o autor
diz de si; aliás, ele sempre o diz, como é comum a todos, escritores ou
não, de modo a parecer melhor do que é ou acredita ser.
SIBILA
- A expressão "glosa da glosa" é boa - era o Luís novamente -,
ou seja, pseudocrítica. Essa atitude é mais do que evidente no livro.
Por exemplo, nas inúmeras vezes em que incorpora versos à própria
argumentação. Olha aqui o que diz do Manoel de Barros ... - saca o
livro de algum lugar, e lê alto: - "A poesia de Manoel de Barros dá voz
a um 'indivíduo que experime11taa lascívia do ínfimo"~Assim, versos
do próprio poeta, postos fora de contexto, ganham foro de verdade e,
o que é involuntariamente engraçado, de descrição factual.
- Crítica rendida à glosa... - completou e suspendeu o Paulo, en- 51
quanto tentava discar algum número num celular azul cobalto. Mas
é possível que tenha realmente completado a frase, e simplesmente
eu não a tenha ouvido, com a ressonância aguda em meus ouvidos da
frase: "indivíduo que experimenta a lascívia do ínfimo'~Ninguém de-
veria ser obrigado a ouvir algo assim à hora da refeição, 1nuito menos
ao mastigar aquelas deliciosas folhinhas de parreira encharcadas de
azeite libanês. Uma frase dessas, por si só, deveria banir - ad nutum
- o seu autor de qualquer antologia literária, até o fim dos tempos.
Pensei em dizer alguma coisa em protesto contra aquela frase estúpi-
da, 1nas me co11tivea tempo e preferi co11tinuarmastigando aqueles
admiráveis charutinhos.
Entretanto o Luís prosseguia, não sei se tão bravo quanto parecia:
- O caso do Haroldo de Campos é ainda pior. Ouçam isso:"o'labor
sintaxista' se traduz em poemas cujas palavras compõem ideogra-
mas'". Deixa11dode lado o fato de que não imagino o que signifique
"cujas palavras co1npõem ideogramas': trata-se de uma paráfrase do
próprio Haroldo a respeito das suas pretensões. Porta11to,o livro com-
pra a pretensão de graça e a repassa como verdade, o que se agrava ao
não dar o crédito devido.
'
Régis co11cordou:
- Sim, não há créditos ...
Ia prosseguir o raciocínio, mas o Luis não afrouxava a mordida:
SIBILA
- Um minuto só, Régis.Ainda sobre o Haroldo, mais especifica-
mente no que é dito a respeito de Galáxias,o livro continua tomando
o alheio e passando -o adiante como próprio. Apesar das aspas,notem
como o livro define o poema:"É uma espécie de 'prosa do significan-
te": Ora, é o Haroldo quem diz que o livro é "prosa do significante':
Sem dizer a origem,o livro afirma tranqüilamente que Galáxiasé uma
prosa do significante.E a destaca como a melhor obra do autor numa
seção de... poesia brasileira.
- Quer dizer que a melhor obra de poesia brasileira está em prosa?
- indagou espantado o Eric,nunca suficientementeacostumado com
as inovações locais, as quais a bem dizer ele amava, mas nunca sabia
atinar porquê. E olhava a todos com um riso deliciado.
- É. Galáxiasé prosa, apenas não tem narrativa. Falo da linguagem
- confirmou Luís. - O que, não por acaso, está explícito no livro: seu
primeiro fragmento, espécie de introdução, fala de mil e uma noites,
estória,começo,fim,fábula...
- Isso não me parece tão simples - discordou o Celso, que ia
acrescentar as razões de sua dúvida, quando foi interrompido pela
Cristiane:
- Espera aí, Celso,mais tarde podemos voltar à questão do gênero
mais adequado a Galáxias,mas agora concentremo-nos na questão
da crítica que se comporta como glosa. - A tentativa de disciplinar
aquele bando me pareceu comovente.
- Certo. Tenho outro exemplo - prosseguiu um animado Luis:
- Vejam: diz o livro que a poesia de Gullar "nasce da experiência e
do espanto': Porra, a idéia de que "a poesia nasce do espanto" é uma
declaração famosa do próprio Gullar,depois transformada em verso.
E está outra vez incorporada como fato.
- Não há créditos... - insistia o Régis,sem conseguir interromper
o fluxo dolhnikoffiano:
- Régis, por favor, um minuto só. Outro exemplo: o que é dito
do Carlito Azevedo,poeta, aliás, de quem tenho vontade de escrever
SIBILA
algumas coisas. - E olhou meio enviesado para o Régis, que havia
deixado de publicar uma crítica sua para a revista Sibila. Régis notou
o olhar e não gostou:
- Um momento, Luis.Você está querendo me dizer alguma coi-
sa, diga logo. Por mim, publicava e publico ainda agora o seu texto
sobre o Carlito. Só não podia passar por cima do Conselho Editorial
daquele número. Tinha gente lá que achava o tom muito pesado, mas
não eu, de jeito nenhum. Aliás,agora é você que não quer que ele seja
publicado, pois eu já lhe pedi novamente o artigo. 53
Luis prosseguiu, sem polemizar: - Certo, Régis, depois a gente
conversa. Mas ouçam isto: Carlito Azevedo "evita cuidadosamente
cair na abstração formalista».Mas ape11asporque escreveu em Ao Rés
do Chão:"Aidéia é não ceder à tentação / de escrever o poema desse
não - // lugar..:~
- Francamente - arrematou o Abel BarrosBaptista,querido amigo
português, que chegara há instantes e estivera a ouvir com vago inte-
resse a fala do Luís -, admito que é confiança demais nos enunciados
dos próprios autores a respeito deles mesmos.Em todo caso, a crítica
é sempre o oposto da glosa.Ela trata de desapropriar o autor de seu
texto, entregá-lo a leituras sem mais dono ou controle autoral.
- Ótimo, Abel - disse o Paulo, folheando o Literatura Brasileira
Hoje.- Com isso, você liquida também o romantismo encomiástico
e kitsch que o livro dá como sendo o seu propósito crítico:"compre-
ender o alcance e a permanência da aventura da escrita':
Por mim, achei a frase até tocante, mas todos se puseram a rir
como se fosse a coisa mais engraçada do mundo. O Régisapenas não
pareceu achar graça, preocupado em retomar o ponto que mencio-
nara anteriormente:
-: Notem que o livro quase não faz menção a críticas anteriores
a ele, ou às fontes das críticas que adota como suas, embora inclua
poetas já maduros, sobre os quais muitos já escreveram.E, nas poucas
vezes em que cita alguém, é, em geral,incongruente. Por exemplo,ao
SIBILA
citar Wittgenstein em relação a Marcos Siscar,que é referido no verbe-
te dedicado ao Júlio Castaflon. Nada contra o Siscar,ao contrário, 1nas
a citação não é própria, nem faz sentido. Como disse o Alcir naquele
artigo da Folha,é o método Costa Lima: citar Baudelaire e Kant para
falar de Uchoa Leite.
- Régis! - protestei eu, que malgrado minha vontade, acabava
prestando atenção na conversa - eu não chamei isso de método, nem
o batizei com o nome do Costa Lima, crítico a quem admiro. Disse
54 ape11asque o Costa Lima,às vezes,faz crítica dessa maneira: lançando
referências demasiado distantes ou elevadaspara poetas muito menos
conhecidos, ou de bitola mais estreita,na linguage1npitoresca daquele
antigo deputado frasista do PFL. Jesus! Não se pode descuidar um
instante e vocês já lançam alguma maledicência! Sorte que o Costa
Lima não está ouvindo, senão não ia me perdoar nunca.
- Também quero palpitar nessa história de incongruência - in-
terrompeu-me o Paulo, que volta e meia se ausentava da mesa para
conversar ao bendito celular azul. - Deixe-me ver. Eis uma delas,
logo no início do texto, página 15: "Todas as manifestações [poéti-
cas] surgidas nas últimas décadas trazem entranhada uma poética,
uma teoria da poesia ..:' - Isto são termos genéricos para se referir
ao construtivismo lato senso do século xx. Na página 16, entretanto,
conclui: "A poesia brasileira apresenta um afresco variadíssimo de
tendências ..:'Não entendi: está entranhada a unicidade construtivista
ou é um afresco variadíssimo?
- As noções confusas estão pelo livro todo. Conceitos vários,
como "poesia formalista", são usados sem indicação das fontes, e,
portanto, sem especificação de seu sentido. Também está cheio de
lugar-comu1n ou truísmo. A impressão que fica é de arbitrariedade
sem explicação. - Era o Régis novamente: - Ouçam o que ele diz do
Waly Salomão: "Aoralidade demoníaca e a logopéia de Waly confun-
dem prosa e poesia".Conceitos tributários de qual crítica, de quem?
E afinal, o que vem a ser "oralidade demoníaca"? O que é "oralidade
SIBILA
logopaica"? Como diria o grande Roberto Avalone:"oralidade demo-
níaca e logopaica"? Meu Deus!
Outros queriam dar palpites, mas Régis, com razão, não permitiu
apartes, já que esperara bastante para falar: - Quero apenas dar mais
um exemplo. Ao falar do poema "Barulhos" do Gullar, na página 25,
diz que se trata de "poesia corpóreà'. Ah, pois não: "Poesia corpórea"?
Meu Deus! Também acho que o livro faz uma completa confusão
entre o que se pode entender por "vanguarda", ''concretismo" ou
((• - ))
movaçao. 55
- Espera aí, Régis,você já deu mais de um exemplo - protestava
o Eric, que como homem bom e americano, acreditava que havia um
sentido no sentido literal.
- Só mais o seguinte: a poesia brasileira, no livro dele, toma a apa-
rência de uma rede de "influências",focando assim a crítica na repeti-
ção e não na superação. Carlito é drummondiano, fulano é muriliano
etc. etc. Que literatura decente pode ser concebida assi1n?
- Boa pergunta! O resultado disso é o que mais funciona com n1ui-
tos dos poetas do Brasil:não a "angústia da influêncià', mas o "orgulho
da influência"- disse o Paulo,e acrescentou: - Já souberam desse livro
novo que está para sair sobre o Leminski? Recebi a prova final para
fazer uma resenha para a Folha.É de chorar: de trabalhos de fim de
cursos a ecolalias de curto fôlego,o que temos lá é a proclamação de
que todos ali estão muito satisfeitos de ter um mestre.
- Poetas do Brasil, não: poetinhas do Brasil - retificou o Régis.
- Não é uma pena? - E Paulo continuou: - Mas deixemos os poe-
tas alguns instantes, e voltemos às contradições do livro. Ele afirma,
por exemplo, que "crítica é risco" e, na página seguinte, escreve que
a crítica que ele faz não expressa opinião, mas tenta compreender o
"sistema literário" (o conceito é candidiano, claro, mas o Candido
não é citado, e sim incorporado e naturalizado). Ora, essa é a coisa
menos arriscada que existe no Brasil:adotar a paternidade candidiana
e falar em "nosso sistema literário"! Como se houvesse juízo histórico
SIBILA
natural a determinar uma substância desse tipo. Mas o que há é tão
somente um "cânone,:que se quer natural ou universal, mas que é
sempre uma produção, uma construção circunstancial,com base nas
posições de maior prestígio crítico ou institucional.- Tive a impres-
são de que eles estavamvoltando ao ponto de partida da discussão,e
tratei de me concentrar nos kibese esfihasque chegavamem novas e
empolgantes fornadas à mesa.
- É isso,mas até aí nenhuma novidade.- Era o Eric que voltava a
56 falar,depois de uma verdadeira blitz no prato de kafta .- Esse é o pro-
cedimento usual da crítica dominante no Brasil.Por que vocês acham
que aqui ninguém nunca, ou muito raramente,parece interessadoem
discutir a sério a questão do cânone? A nocão de "formação",como
processo histórico necessário de geração do nacional e do moderno,
sempre obliterou o debate a respeito da contingência política e esté-
tica do cânone.
Régis,entretanto, não parecia comover-secom esse ponto, e ata-
lhou a direção tomada pelo debate:
- Notem mais um problema crítico graveno livro.Há um excesso
taxonômico e generalista: o livro toma a forma de um alçapão: ei,
vocês aí, tratem de ficar em tais lugares!Tudo está reduzido a rótulos,
embora o próprio livro faça crítica abstrata a eles. Por exemplo:Ma-
noel de Barros,rotulado de «regionalista,:é supostamente«resgatado,,
pelo livro: "Como todo rótulo, essa classificaçãoé redutora e põe a
perder a riqueza de uma poética feita de paradoxos e reinvenções
lingüísticas...':Entendi. Mas o livro classifica todos os autores, logo,
reduz a todos.
- O livro também diz que busca identificarsingularidades- volta-
va à carga o Paulo:- e, no entanto, só faz generalizar.Por quê? Porque
os seus critérios analíticos estão, sobretudo, baseados na tal rede de
influênciase clichês que se repetem sobre os autores.
- É verdade. Não há nenhum esforço de leitura nova, mesmo
que fracassada como tentativa. - E Régis mostrava uma expressão
SIBILA
realmente desolada: - Pensem nisso: mais de cem poetas aparecem
referenciados aos trinta eleitos, e o mesmo número aproximado para
os trinta da prosa. Mas literatura é invenção e não tributo. Faz sentido
conceber-se uma literatura de epígonos? O cerco se fecha: vemos uma
literatura epigonal examinada por uma crítica que não distingue, nem
analisa, não discerne, nem hierarquiza.
- A julgar apenas pela quantidade de gente citada e elogiada no
livro, o Brasil é o país com a literatura mais vibrante do mundo - zom-
bou o Eric. Ou talvez não estivesse verdadeiramente zombando, pois 57
é um sujeito dotado de muita benignidade: a bondade participa, por
assim dizer, da sua perversidade. E exclamou: - Eta euforia de brasili-
dade! Mário de Andrade ia ficar orgulhoso de Mr. Costa Pinto. Aliás,
está aqui, achei: Mr. Costa Pinto fala expressamente em "opulência
da matéria-prima" da poesia contemporânea brasileira! Mas onde?
Devemos estar vivendo em países diferentes. Mais uma razão para
duvidar do "nós'~
- É condescendência sistemática. - Também o Luís voltava ao
debate após servir-se de um pouco de tudo o que havia na mesa,
democraticamente aberto ao comércio com a culinária do Islão:
- A desculpa é que não escolheriam maus poetas para integrar um
panorama. O problema é que esse panorama não tem uma gota
de originalidade. Portanto, conclui-se que todos os poetas mais
ou menos conhecidos são bons. Logo, não há maus poetas, nem
escritores ruins.
- Não é um alívio? Estou me sentindo muito melhor. Aliás, não:
•
SIBILA
- Ingrato! - acusei-o, tentando provocá-lo: - Você também
recebeu quatro estrelas pelo Remorso do Cosmos, além de ter sido
selecionado entre os trinta mais. -
E daí? - respondeu-me espantado: - Se não me pusesse lá, o livro
seria ainda pior. Ou não?
Antes que eu lhe respondesse afirmativamente, claro, Luis tornou
ao seu argumento anterior:
- O releasedisfarçado de notícia é procedimento banal no s ca-
58 dernos cult urais. O que não destoa do tom geral. Ninguém parece
muito escandalizado com esse tipo de condescendência. Ao contrá-
rio: o esquisito é se importar ... - A formulação meio catastrofista do
Luís me fez imaginar que ele talvez já estivesse com saudades de sua
distante praia do Pântano do Sul, em Florianópolis. Meu filho Mi-
guel, que também mora na ilha, costuma adotar um tom semelhante
quando vem me visitar e, depois de alguns dias, supõe ter ultrapassa-
do o tempo razoável de per1nanecer respirando fora da água. Pensei
em seguida, bem pragmaticamente, que esse tom entre melancólico
e exasperado podia acabar complicando a minha digestão. Assim,
num esforço para salvar a noite que estava por um fio, aiI1da tentei
uma vez mais acabar com a arenga literária :
- Por favor, amigos, vamos à comida. Calem a boca por uma única
boa hora! Esse maldito livro está simplesmente roubando a minha
festa! Jamais tive um livro discutido tanto assim por nenhum de
vocês. Eu protesto!
- Glutão, comporte-se - disse a Cris, sempre disposta a impedir-
me de esfriar a discussão: - Não quer falar, não fale. Quer comer como
um tarado, coma ... - E antes que pudesse lançar alguma sentença
inapelável contra mim, fui salvo por uma maldição muito mais amena
proferida pelo Eric:
- Em nova-iorquino, quando alguém come assim, se entupindo
de comida, diz-se stuffing it! Portanto, Alcir, bem feito se você ficar
com dor de barriga!
SIBILA
- Isso,Eric! Mas convém deixar claro ao aniversariante que é inútil
tentar nos impedir de falar o que bem nos apraz. Em todo caso, é bem
verdade que já está na hora de examinar outros aspectos do livro.Len-
do as introduções de prosa e de poesia, tenho uma questão a propor.
Na página 10, está escrito que o livro não pretende emitir juízos de
valor, e que lhe basta estabelecer as razões da representatividade dos
autores escolhidos. Esta é, se não me engano, a típica falácia iluminista
da objetividade, do "distanciamento crítico" regido exclusivamente
pelos critérios da razão. Mas o que são "razões da representatividade" 59
senão aquilo a que aludiu o Paulo, isto é, juízos e opiniões de prestí-
gio que se tomaram como naturais, em função da adoção deles pela
maioria do público ou dos especialistas?Assim, são sempre opiniões,
ainda que melhor aceitas ou mais partilhadas. Por outro lado, "distan-
ciamento crítico",mesmo quando exista, não é nenhuma garantia de
acerto da crítica. A verdade de u1na obra não está lá, em si, de uma
vez por todas; ela não é sempre igual a si mesma, essencial e oculta,
para ser revelada pelo tempo, como se ele fosse o 1nelhor intérprete
das obras, como tantas vezes se costuma dizer, muito catolicamente.O
tempo modifica os objetos de acordo com as leituras que vingam. E os
objetos que ficam,como as leituras que vingam, não são o resultado de
uma operação de justiça eterna. Intérprete e objeto partilham a mesma
contingência, e os que se tornam canônicos, apenas resultam assim,
calham de ser assim, sem que nenhuma garantia de qualidade eterna
ou selo de validade por tempo indeterminado se estabeleça com isso.
- Você definitivamente colocou em risco a minha absorção deste
magníficofalafel. Você não tinha suspenso o item "teoria"? Não acho
justo produzir um discurso como esse às onze horas da noite do dia
do meu aniversário! Renovo os meus protestos!
- · Nada de censura disfarçada em choro! - endureceu a Cris. O
bom Eric novamente me acudiu:
- Deixa pra lá, Cristiane. Ele deve estar assim choroso porque se
lembrou do Mick, que não pode vir de Floripa.
SIBILA
- Menos mal então. Tenho ainda uma segunda questão a propor,
aquela que você mesmo vive chamando de «Fla-flu» - disse ela, diri-
gi11do-se a mim. - No ca.so,é verdade, um "Fla-flu» paulistocêntrico.
A questão é: como explicar a longa duração dessa mitologia primária,
tipo«Fla-Flu» mesmo,criada em torno de Mário e Oswald? Segundo a
narrativa tradicional, do lado de Mário sairia a descendência moder-
nista lírica, com Bandeira e Drummond à frente; da costela de Osvald,
no campo oposto, nasceriam Cabral e os concretos. De acordo com essa
6o bagatela,encampada pelo livro, tudo na poesia brasileira contemporâ-
nea pode (e deve) ser deduzido do modernismo ou do concretismo.
- Portanto, no fundo, tudo é tributário, e nada contemporâneo, é o
que se pode concluir - disse o Régis, tornando ao seu ponto principal
de debate. - Um agravante desse tipo de narrativa requentada está
na página 26. O Manuel diz nela que os momentos culminantes do
concretismo ocorreram entre 1956 e 1958. Admitamos que seja assim.
Mas, depois, ao longo de todo o livro, metade dos poetas presentes
são dados como concretistas ou tributários deles. Como entender?
E me digam: afinal, o concretismo te1n data, como tudo o mais, ou é
alguma espécie de vanguarda eterna?
Abel, que ouvia o que o Régis dizia, talvez surpreso por não ter
sido ainda interpelado por conta da sua antiga diatribe nas páginas
da Folha,observou o seguinte:
- Para superar a narrativa do "Fla-Flu", talvez seja o caso mesmo
de se suspender a narrativa inteira do modernismo brasileiro, já muito
desgastada. Penso que a noção de modernismo é ruim atualmente
até para se ler autores de extração decididamente modernista, como
Drummond ou Cabral . Quero dizer: o modernismo esgotou as suas
capacidades descritivas, tanto na criação como na crítica. Na minha
opinião, o próprio Drummond achava isso também. Com um livro
como Claro Enigma, que ninguém entendeu na época e não sei se
muitos entendem hoje, o gesto essencial continua a ser modernista,
pela reivindicação da liberdade, mas, paradoxalmente, pela afirmação
SIBILA
de que essa reivindicaçãosó é coerentese garantir também a liberda-
de de ser...clássico.Persistea idéiamoderna, sem dúvida,mas aliadaà
própria figura do envelhecimentoe do esquecimento,tom melancó-
lico mais ou menos estranho aos outros Andrades.Um poema como
"Legado",por exemplo,é a inversão do toposclássicohoraciano do
monumento de bronze,vazada em soneto quase convencional.
Enquanto tentava limpar o chanclicheque havia caído em minha
jaqueta de couro preta, lembrei-me também de "Rapto':um poema
todo camoniano a aplicar o antigo toposdo rapto de Ganimedespor 61
Zeus.Entretanto,Abelfinalizavao seu argumento:
- Quero dizer que, neste caso,como no de muitos outros poemas,
há pouco interesseem lê-los como poemasmodernos.Se Drummond
se lê no modelo modernista, então envelheceu.- Disse,e em seguida
se despediu apressadamente,alegando que só passara mesmo para
me deixar um abraço,pois estavamuito cansado da viagem e ansioso
para chegarao hotel e repousar um pouco.Depois,confessou-meque
gostavade comida árabe ainda menos do que de sardinhas.Agradeci-
lhe a gentilezade vir me cumprimentare acompanhei-oaté a saída do
restaurante,onde troquei com ele ainda algumaspalavras.
Quando voltei à mesa, Régisainda falava:- E o resto da poesia e
da crítica mundial? Não existe?Notem que são pouquíssimos, e de-
glutidíssimos os citados: Baudelaire,Rimbaud,Mallarmé... Os mais
recentessão Ginsberg,entre os americanos;Celan,entre os de língua
alemã; o francês Déguy; Montale entre os italianos; Lezama Lima
entre os hispânicos.Falo de cabeça,mas ficamosmais ou menos por
aí. Não é tudo gente conhecida demais para quem se pretenda capaz
de falar de "hoje"?
- Eu tenho um problemaa propor à ponderaçãoda mesa - disse o
Celso,que se mantivera boa parte do tempo muito quieto,folheando
atentamente uma edição de Borgespar lui même que eu lhe havia
dado -, talvez mais visívelpara mim que não moro em São Paulo:o
Folhacentrismo.
SIBILA
- Folhacentrismo? Caramba, Celso, veja lá o que diz, senão vão
pensar que eu tenho alguma coisa a ver com isso - brincou Moacir
Amâncio, que havia chegado há pouco, aludindo ao período no qual
trabalhara para o Estado de S. Paulo.
- Não há perigo, Moacir. Ao contrário, o que pretendo dizer aqui
é totalmente favorável à Folha,tão favorável quanto é, por exemplo, o
papel decisivo do ombudsman.Aliás, a presença do Ajzenberg no livro
está me inspirando! O Folhacentrismo é que é contra a Folha!Apenas
62 anote os argumentos e veja se são consistentes - ponderou o Celso,
com a segurança e a paciência de um grande professor de matemática
que se dispõe a dar uma aula para crianças burrinhas: - Notem o se-
guinte: além do Ascher, que está selecionado entre os melhores poetas,
são citados, entre os trinta maiores prosadores brasileiros, nada me-
nos do que cinco caras que escrevem na Folha,sem contar o Marcelo
Coelho, que está no livro entre os secundários. A saber: Cony, Scliar,
os dois Bernardos e o Bonassi. Ou seja, cinco em trinta dos melhores
prosadores brasileiros; 1/6 ou quase 17% dos autores.
- Celso, caro, você se esqueceu de contar o João Ubaldo -, asso-
prei-lhe no ouvido, pois imediatamente me senti atraído por aquele
raciocínio numérico, embora não estivesse disposto a me deixar
arrastar por aquela discussão sem fim.
- Alcir, caramba, não me atrapalhe, o Ubaldo é do Estadão.
- Ah é, me desculpe. E o Veríssimo? - insisti, disposto a alargar a
sua base numérica.
- Tainbém é do Estado,nada a ver. Caramba, você não lê jornal?
Eu, hein?
O duplo palpite errado foi devidamente reprimido pelos olhares
daqueles que, sentando-se mais próximos de nós, conseguiram ouvir
nossos cochichos.
- Não precisa falar alto, Celso! - disse-lhe ainda aos ouvidos -
Você não tem motivo para estar bravo com ninguém. Se ainda fosse
o Moacir, que não apareceu no livro nem entre os secundários. Nem
SIBILA
umazinha vez. Para o Manuel,você é ágrafo! - acrescenteidiretamente
para o Moacir.
- Ágrafo? Que palavra ótima! Vou escrever um poema com ela,
pode apostar. - E realmente fez isso, alguns dias depois; naquele
momento, contudo, estava preocupado em ouvir o arrazoado do
Celso: - Nada menos que cinco dos trinta maiores prosadores são
da Folha.Mas isso não é tudo. Vamos refinar um pouquinho a conta.
Se considerarmos que a Hilda é morta, e o trio Lygia,Dalton, Rubem
Fonseca é de gente com setenta anos ou mais, então entre os que têm 63
menos do que isso, os da Folhasão cinco em 26, praticamente 20%.
Se descermos ainda 1nais as idades de corte, em direção, por tanto, à
literatura produzida efetivamente num período mais recente, a pro-
porção aumenta. Por exemplo, dos que nasceram de 59 para cá, são
três da Folhaentre os oito maiores. Isto dá quanto? Sei lá: três em oito.
Quanto dá isso? 37,38%?Ou seja: quase 40% dos novíssimos 1nelhores
são contratados da Folha!Das duas, uma: ou isto é absurdo, e essa
inflação folhaspiana no livro decorre da amizade e do corporativismo,
e, conseqüentemente, nada tem em comum com a idéia de crítica;
ou o livro está certo, e quem quiser escrever bem no Brasil deve e1n
primeiro lugar conseguir um emprego na Folha,ou ao menos ler com
muita atenção o seu Manual de Redação!
Járiam todos com a demonstração cabal do Celso,quando a Cris-
tiane tirou a sua própria co11clusãodaquelas contas:
- Nu1n caso ou noutro, Celso, fico desconsolada. Pois, por um
lado, não trabalho na Folha,e, por outro, só não conseguiu entrar na
lista justamente o escritor de que mais gosto dos que escrevem nela:
o Macaco Simão. - As risadas que se seguiram à declaração alteravam
indiscretamente o ambiente bastante calmo do restaurante naquela
terça-feira. Comecei a olhar disfarçadamente para o mattreargentino,
de quem sempre tive um indisfarçável temor. Por sorte, não parecia
estar por perto. Cristiane, embalada, propôs um novo ponto de debate
do livro: que cada um apontasse as faltas que julgasse mais graves nas
S 1BI LA
escolhas dos autores, e também as ausências que parecessem mais
injustificadas, segundo as razões que cada un1 apontasse. Eu tinha
alguma curiosidade a respeito do que iriam dizer,mas a verdade é que
tinha comido e bebido demais. Precisava ir ao banheiro. Assim, perdi
uns bons quinze minutos de conversa, e nada posso contar a respeito.
Quando voltei à mesa, a discussão ainda estava animada. Quem
estava falando era o Régis:
- Para mim, a ausência mais injustificada é a do Leminski. Tudo
64 bem, o critério de escolha referia apenas autores vivos. Mas outros
mortos foram incorporados: Uchoa, Haroldo, Waly,Hilda. É verdade
que eram mortos mais recentes, mas ainda assim fica claro que o
critério não é absoluto. E já que o livro fala também às vezes em "in-
fluência': talvez sua principal categoria descritiva, como não falar de
Leminski? Foi o poeta que mais influenciou a maior parte da gente
identificada como literaturabrasileirahoje,incluindo a mim mesmo,
a despeito de .nosso afastamento posterior, quando ele enveredou de
vez pelo pop.
- O Leminski foi o último poeta brasileiro que se tornou popular
em termos de venda, com o quase best-sellerque foi Caprichos& Re-
laxas - emendou o Luis Dolhnikoff. - Além disso, ele participou de
tudo na poesia brasileira recente: da fase heróica da revista Invenção
ao esforço tradutório militante dos irmãos Campos, passando pela
divulgação do haicai,sem dizer que fez a ponte entre a poesia "mar-
ginal': a geração "mimeógrafo': a poesia construtivista etc. etc.
- Você não vai declinar o currículo do Leminski aqui, não é, Luis?
Não tem nenhuma televisão por aqui - ironizou o Celso. Sem dar
importância à interrupção, Luís prosseguiu sua argumentação no tom
eloqüe11teque lhe era habitual:
- Sua ausência é indefensável! Considerada relativamente à pre-
sença de Caetano Veloso,que entrou em seu lugar,já que os verbetes
se organizam em ordem cronológica,e os dois tinham a mesma idade,
é ridículo.
SIBILA
Imagino que já deviam ter discutido muito sobre o assunto, uma
vez que bastou o Luis dar uma folga na respiração para a Cristiane
logo dizer:
- Sobre o Leminski, portanto, estamos todos de acordo. Alguém
notou algum outro descalabro? Por exemplo, que acham de Décio
Pignatari e Hilda Hilst estarem relegados à prosa?
- Dois ridículos - continuou o Luís, secamente. - Quanto ao
Décio, além de ser um dos criadores do concretismo, ele é autor dos
poemas concretos mais conhecidos, como "beba coca cola".Seria o 65
mesmo que tirar Oswald de Andrade de um panorama da poesia de
22, e lançá-lo na seção de prosa. Porque escreveu prosa, é verdade,
mas simplesmente não-faz-sentido - disse, escandindo o último
sintagma.
- Se o Décio foi descartado da poesia, teria simplesmente de ser
descartado do livro: a sua prosa é muito menos importante e influen-
te do que a sua poesia. - Era essa ao menos a opinião do Régis. - E
quanto à Hilda Hilst, se aceitarmos o que o Alcir vem escrevendo, é
melhor prosadora do que poeta, mas isso é uma opinião discutível
ainda, que mal começa a ser proposta. Por ora, o lugar onde ela repre-
senta um foco incontornável da literatura brasileira contemporânea é
o da poesia, não o da prosa. A sua prosa, assim como o seu teatro ou
as suas crônicas, ainda é pouco conhecida, o seu impacto ainda mal
pode ser avaliado.
Maria Eugenia Boaventura, que havia chegado tardiamente à co-
memoração, pois tinha lançado naquele mesmo dia o terceiro volume
da série que está organizando, pela Companhia das Letras, dedicada à
obra de Mário Faustino, deu logo a sua contribuição à conversa:
- Obviamente não estou de acordo com o esquecimento de Mário
Faus\ino também. Ele morreu há mais tempo, mas a sua primeira
compilação, longe de completa, é a da edição de Benedito Nunes,
de 1984. Depois disso, simplesmente não houve outras edições das
•
suas coisas.
SIBILA
- Pena - lamentou-se o Eric. - Quando estudava português nos
States, a classe toda se empolgava com a página do Faustino, no Jornal
do Brasil.Guardávamos aquilo como se fosse relíquia.
- Mário Faustino está recomeçando agora, não há dúvida - con-
cordou o Régis. - Este último volume, contendo o material da pági-
na "Poesia-experiênciá: do JB, é uma mostra extraordinária de seu
trabalho de tradutor e de autor, com uma abertura internacional de
rara amplitude no Brasil . Comparecem muito mais autores do que os
66 citados no livrinho, além de incluí-los todos. Experimentação gráfica,
industrial ... Já está tudo ali: categorias e autores depois assimilados
pelos concretos. Também as revistas literárias contemporâneas
repõem o tipo de militância de Faustino. A Sibila, por exemplo, é
decididamente faustiniana .
Luísa, minha filha, veio sentar-se ao meu lado, e aproveitei para lhe
perguntar de quem mais tinham falado enquanto estava no banhei-
ro. Lembrou-se de se queixarem, na prosa, da falta de autores como
Francisco Dantas, Wilson Bueno e Raduan Nassar. De fato, tinha es-
tranhado a total ausência dos dois primeiros. Raduan era citado, mas
estranhamente submetido à esfera do Milton Hatoum. Neste ponto,
entretanto, a Lui me disse que tinha dificuldade em relatar exatamente
as falas de cada um, pois começaram a travar uma verdadeira batalha
entre si, cada um deles lembrando-se de um autor que julgavam ines-
quecível, mas que fora deixado de lado pelo LiteraturaBrasileiraHoje.
Diante desse relato não pude deixar de pensar que fora ao banheiro
na hora certa. Naquele momento, ao menos, a balbúrdia parecia con-
trolada, embora o excelente maitre argentino do Arábia não parecesse
olhar para a nossa mesa com olhos demasiado amistosos. Tentei sorrir
para ele, mas, se chegou a me notar, não me retribuiu o sinal amistoso.
Claro que ele devia ter razões muito ponderáveis para essa secura.
Enfim, a Cris decidiu que aquela parte do debate estava encerrada
e que não tinham tempo para ouvir todas as cobranças a respeito de
autores faltantes do livro. Sugeriu então que passassem a falar dos
SIBILA
eventuais problemas nas descrições particulares dos autores efetiva-
mente presentes nele.
- Ah, não! Essa discussão,não: isso não vai acabar nunca! - pro-
testei mais uma vez inutilmente, pois o Celso nem me deixou com-
pletar:
- Eu começo - disse prontamente: - Que acham do Frederico
Barbosa ser tratado como o nosso Pound? Posso estar por fora, pois
francamente conheço mais o pai do que o filho,mas me contem: o que
ele traduziu de importante? També1nnão teorizou nada, ao menos 67
que eu tenha lido. E em matéria de poesia, nem entupido de ácido dá
para comparar com o Pound!
- A propósito, ouçam esta passagem do livro - emendou o Luis:
- "Apoesia de Frederico Barbosa é indissociávelde sua concepção de
literatura como um ato de recusa de valoresestabelecidose da poesia
como instauração do estranhamento e co1noconvocação do novo".
Recusade valoresestabelecidos!Instauração do estranhamento!Con-
vocação do novo! Isso parece comício de maio de 68.
- E esta - pingue-pongueou o Celso: - "A frase abrupta, o verso
denso, concentrado,sem ornamentação,e o conteúdo metalingüístico
e questionador fazem da invenção poética um gesto de resistência
que transcende o âmbito intraliterário: é a recusa 'existencial'de se
ver pacificado e enquadrado que exige a rejeição dos valores poéticos
coagulados".Está falando de quem? De Rimbaud?
- O surpreendente - continuou Luis - é que o livro ainda sinta
necessidadede assegurar que não se trata de um "mero co11tinuador':
como ele faz em seguida:"Mas ele não é mero continuador do concre-
tismo': Por que alguém imaginaria sequer algo assim,se ele é mesmo
aquilo tudo que ficou dito?
Cc;,ntraa minha vontade, eu me peguei rindo com essas críticas
ao estilo descritivo um tanto aleatório do livro.Se não me policio,ia
acabar querendo fazer alguma piada a respeito de processos de de-
negação, mas resisti a tempo. Pressenti,entretanto, que, a seguir por
SIBILA
essa via, aquilo ia tomar um tom francamente desrespeitoso. Olhei
cuidadosamente para a vasta mesa e, com algum pesar,notei que tudo
o que nela fora servido já fora devorado.Ao contrário do que pensara
ao início, os meus amigos não trocaram a comida pelas palavras: ex-
cediam-se em ambas. Na falta de mais quitutes, resolvi arriscar uma
pequena provocação:
- E do que o livro diz do Régis,o que têm a comentar? Vão fingir
que não leram? Sobre o Luís nem vamos falar nada, pois só apareceu
68 ali como epígono de um dos folhaspianos,o Nelson Ascher.
- O que é dito do Régismesmo? Ah, aqui está, a primeira frase pa-
rece ótima. Diz que ele vai "do diálogo com o concretismo ao diálogo
consigo mesmo'~- Era a Cris, que n1eajudava na provocação.- Quer
dizer, talvez, que ele foi se tornando um solipsista? Um autista?
- Injustiça! - gritei eu - Injustiça cabal!
-Absurdo! - amplificou o Moacir: - O Régis tem programatica-
mente dialogado com as referências contemporâneas, especialmente
as norte-americanas. A Sibila,aliás, é o desdobramento natural disso.
Não acha, Régis? - perguntou ele diretamente ao objeto do capítulo,
mas este não quis se pronunciar. Sobre ele mesmo estava impedido
de falar, disse, com razão, já que elogio em boca própria sempre foi
vitupério.
- E o que vocês acharam do que o livro diz do Caetano Veloso?
- propôs destemidamente a Maria Eugenia,antiga amiga do baiano.
- Ih - disse o Régis-, essa página é uma confusão só entre poesia,
letra e poesia prosaica.
- É verdade - concordou o Luis. - Depois de afirmar que a
suposição de que letra não é poesia traz uma questão de valor pre-
conceituosa, o livro pretende que ler uma letra como "Língua"torna
possível até esquecer as harmonias e a voz - o que, entretanto, diz
não ser certo, pois revela a pobreza de espírito de trocar o mais pelo
menos ... Em suma, mais uma rigorosa contradição, aqui baseada no
clichê de que a música popular brasileira é especialmente "grande'~
SIBILA
Daí a afirmação,na página 39:"a cançãopopular [brasileira]se tornou
um gênero maior". Tão maior que tem vigor de sobra,podendo então
exsudarverdadeirospoemas no que deveriamser meras letras.- Mais
uma vez estava me deixando envolverpela discussão, sem perceber.
CaetanoVeloso,poeta,era lugar-comum que usualmenteme enjoava.
Anexado ao lugar-comum da "mpb genial" criava-seum risco mortal
para a minha digestãodo memoráveljantar.Tenteipensar em alguma
coisabem longede Caetano e MPB. Miseravelmentefui me lembrar de
Johnny Ramone, em algum hospital, sofrendo com um câncer ter- 69
minal na próstata.A lembrança me entristeceu imediatamente;num
segundo pensei também no André,meu filho,ainda mais ramonema-
níaco do que eu. Joeyjá fora;Dee Dee, idem; e agora o Johnny,mori-
bundo: eram muitas mortes para chorar ainda aos 25 anos. Olhei para
o Eric, contemporâneo de escola de Johnny em ForestHills, ambos
com 55 anos. Ainda bem que ele estava em forma, graças à malhação
diária. Quando voltei a prestar atenção ao que diziam à mesa, o Luís
ainda arrazoava sobre o mesmo tema enjoativo:
- A letra da canção brasileira depois da bossa-nova,em contra-
ponto ao bolerismo anterior, se apóia na conquista coloquialista de
22:"Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça..:' O tom sintático
seria impossível,por exemplo,sem os modernistasproclamaremo di-
reito de escrevercomo os brasileirosfalam,não como os portugueses
escrevem.Ou sem um poema como "Pronominal"de Oswald.E aí é
que está:as letras bebem eventualmentena poesia,a poesia não bebe
nas letras.É, em parte, aliás,esta relaçãode dependênciadas letras em
relaçãoà poesia,somada à crença pós-moderna do suposto"fim-dos-
gêneros':que leva a concluir que as letras"também são poesia". Afinal,
beberam sua poeticidade da própria poesia... Caetano bebeu no con-
cretismo,Chico em Cabral.No entanto, o que tirou o concretismo de
Caetano? E Cabral de Chico?A dependência unilateral dessa relação
é fácilde entender: a linguagemverbal é tudo na poesia; na canção,é
apenas uma parte, e nem sequer a mais importante.
SIBILA
Mentalmente concordei com o Luís, e pensei comigo que esse
procedimento cada vez mais habitual de pretender nobilitar a letra
de música chamando-a de poesia, não podia ter efeito mais contrário:
acabava apenas produzindo autores com a triste cara de primos po-
bres, pois a comparação com os poetas era simplesmente devastadora
para eles. Num outro sentido, me senti feliz por não precisar entender
as bobagens que, em geral, estão sendo cantadas, para poder gostar
da música. Acho que isso explica parte do meu gosto em ouvir mú-
7o sica em outra língua , especialmente o rock'n'roll,que não se entende
em nenhuma. Afinal, não são apenas palavras, mas palavras e voz
e interpretação e música. Um composto de coisas muito distintas ,
como, por exemplo, o belo jantar na mesa agora vazia. E quando o
fundamental está nesse composto de palavra, voz, interpretação e
música, e não nas palavras sozinhas, contando apenas consigo pró-
prias para obter todo o efeito poético possível, e11tãoestá claro que
isso define uma diferença irredutível em relação à poesia. Esquecer
essa diferença é perder a possibilidade de que uma letra encontre o
lugar próprio de sua grandeza, no interior de sua tradição particular.
E essa tradição tem de encontrar a sua própria narrativa, não fingir
que é a mesma que se construiu para a poesia ... - Estava absorto
nessas digressões escapistas, quando Paulo, que acabara de desligar
o celular, mostrou que alguma atenção prestara no que estava sendo
discutido ali, ao dizer:
- Eu mesmo escrevi, com o Alcir, um livro, vamos dizer, "de ju -
ventude': que analisa as letras de Caetano. Mas não me venham co1n
maldades: isto não é um mea culpa!Analisamos as letras como letras,
e não como poesia. Isto é muito diferente de pôr o autor no contexto
de um panorama da literatura brasileira hoje. - A palavra "denegação"
voltou à mi11hacabeça, menos aplicada em relação ao Paulo do que a
mim mesmo. Seguia o seu raciocínio com especial interesse, quando
o seu celular tocou, e ele se afastou novamente.
Luís retomou a palavra e generosamente nos livrou a pele:
SIBILA
- No espírito dos anos 70, a falta de rigor de discernimento do
gênero ao menos tinha pertinência política senso lato. Hoje não tem
desculpa: é apenas "pós-modernismo" vulgar. Claro que a poesia lí-
rica original, a grega, era acompanhada da lira, e que os provençais
cantavam seus "poemas".Mas ao menos desde o século XIII, em que
a forma soneto se cristaliza...
- Luis,caro- interrompi-o, temeroso de que ele engatasse ali mes-
mo uma história da poesia ocidental, em dezenas de volumes - ainda
bem que você falou de um século remoto e de pessoas felizmente 71
mortas. Tenho de aproveitar a referência para me livrar do assunto
da "literatura brasileira hoje".É incrível: vocês são 1nonomaníacos!
Vamos ficar um instante apenas neste oásis que é o soneto. Que delícia
poder falar dele, especialmente em relação ao seu período heróico.
Concordo com você que seja a forma que mais evidencia uma tra-
dição autônoma da poesia, sobretudo depois de Petrarca, isto é, no
XIV, não no XIII. Isto fica especialmente nítido com as nove diferentes
versões e acréscimos do Canzoniere,que se estenderam por mais de
trinta anos: desde o início dos anos 1340 até 1374,ano de sua morte. Se
não morresse, seria surpreendente que não continuasse suas emendas
e anotações às margens dos sonetos. Notem que esse método de ano-
tação e revisão dos poemas dependia em larga medida da disposição
do verso no papel. Disposição espacial articulada à disposição lógica
fornecida pela sua estrutura de silogismo.-Ao dizer"silogismo': en-
tretanto, quase me perdi, pois me lembrei sem querer novamente do
livro, que havia encaixado o Luis como satélite do Ascher por conta
de ser também um fazedor de silogismos inteligentes! "Injustiça!"
- bradei veementemente em pensamento, mas como não dei sequer
um pio fora de minha cabeça, Luis voltou à carga:
- Acho que se pode dizer que o soneto apresenta mesmo uma
estrutura visualmente equilibrada, com os dois quartetos e os ter-
cetos...
Interrompi-o, entretanto:
SIBILA
- Apenas mais uma observação: a autonomização da poesia face
à música não impediu que as cortes mais importantes do período,
até o século XVI ou XVII permanecessem contratando músicos exce-
lentes capazes de musicar os sonetos petrarquistas. A questão é que
a poesia de Petrarca já estava resolvida nela própria, assim como a
de Marino, no XVII, com ou sem a música da Strozzi, por exemplo. A
poesia de Petrarca já não mostrava nenhuma dependência da música
para a qual eventualmente servia de letra a ser cantada, se a questão
72 era produzir plenamente os seus efeitos poéticos . Ainda que a mú-
sica fosse boa, tratava-se de outra coisa, de encontrar novas formas
de civilidade e de convívio, não de descobrir ou acrescentar poesia
aos sonetos de Petrarca. Aí é que está o ponto: nunca mais a música
precisaria trazer a poesia para o poema. A poesia repousava nele, e
dependia apenas dele.
- Never more! A prova definitiva disso é que até os Dum Dum
Boys musicaram poemas de Pessoa! Este pobre diabo nunca mereceu
o menor respeito por parte de, digamos, "músicos" - zombou o Celso,
acentuando a expressão de dúvida ao pronunciar o último termo, e
me provocando ostensivamente com a menção à minha antiga punk
band, desconhecida e horrível, comme ilfaut.
- Mas é justamente o que estou tentando dizer - insistiu o Luis:
- as palavras, na canção, têm de ser musicais, podendo ou não ser
literárias ou poéticas. Num poema, voilá,têm de ser poesia.
- Toda a poesia - sublinhou o Celso.
- Por outro lado, a poesia como escrita, com um passado mul-
tissecular autônomo, possui possibilidades infinitamente maiores de
articulação de sentido do que uma letra de canção - continuou o Luis,
que jamais se escusava de hierarquizar as artes.
- Não estou certo quanto a "possibilidades infinitamente 1naiores"
- disse o Celso, que chegara a ser um bom músico, e que certamente
se incomodara com a frase peremptória: - As possibilidades são ou-
tras, quando o gênero é outro: acho que é tudo o que se pode dizer.
SIBILA
A questão relevante não é hierarquizar gêneros, mas admitir que
existem, admitir tradições e suportes distintos.
Luis, como era de se esperar, não se deu por satisfeito: - Por
maiores, quero dizer mais complexas. Numa canção, há injunções
extraliterárias determinadas pela integração à melodia, assim como
há os limites de tamanho e de uma tradição outra, popular, aliás, em
geral,antiliterária. Caetano Velosofaz canções,logo é um cancionista.
Por que falar em literatura?
- Está legal, Caetano é cancionista. Isto difere gêneros. Quanto 73
a coroar a poesia como rainha de todas as artes, isso é programa
seu, mas não meu - insistiu o Celso. - Nem meu - disseram alguns;
enquanto outros, ao contrário, aplaudiam ruidosamente a coroação.
Nova balbúrdia ameaçava a mesa. Tratei de propor alguma coisa
para amenizar a admirável curvatura da sobrancelha do maítre ar-
gentino: - Muito bem, amici miei, agora chega de conversa! Vamos
à sobremesa.
- Você não desiste? - protestou a Cristiane: - ainda temos vários
poetas a discutir...
- É isso aí. Vamos discutir tudo! - animaram-se. Diante dessa
manifestação, não tive escolha senão pedir eu mesmo para olhar
o maravilhoso carrinho dos doces e torcer para que ele atraísse a
atenção dos demais. Nestas alturas, porém, a torcida era inútil: a
batalha dos meus cinqüenta anos só tinha um vencedor: o Literatura
BrasileiraHoje.
- Tudo bem, mas então ao menos passem para outro autor, por-
que esse papo de Caetano Veloso é um saco - reclamou a minha
filha Luísa. - A fala valeu estranhamente como uma acusação de
muita idade. O resultado foi que todos concordaram de imediato
que Caetano estava acabado, como poeta e como assunto decente
naquela noite.
- Vamos então ao Waly Salomão? - propôs o Régis,que se desli-
gara um pouco da conversa. Na hora imaginei que estivessedesinte-
SIBILA
ressado do debate a respeito da troca Leminski/Caetanono livro do
Manuel.Alguns dias depois soube que não,quando publicou na Folha
um poema intitulado "Letra':dedicado a mim. Naturalmente fiquei
muito orgulhoso,sem entender entretanto a razão da homenagem.
- Fiquei também muito impressionado com o que está escrito a
respeito do Waly- disse o Celso.
Antes que tivesse tempo de expor o porquê, Luis aparteou-o:
- Deixem-me ler um trecho para vocês:"ícone da contracultura e
74 mais filosóficodos poetas brasileiros':É estapafúrdio do começo ao
fi1n!Nem vou falar da vulgaridade do uso da palavra"ícone",mas se
Walyfoi o "mais filosófico':onde fica Murilo Mendes?E Vinicius da
fase não-MPB?
- E Drummond? - propôs Maria Eugenia.
- E Hilda Hilst? - fulminou o Celso em direção ao livro, como se
fosse mordê-lo em seguida.
- E essa história de que a linguagem do Waly Salomão compõe
uma espéciede alegoriabarroca com "um elemento dionisíacoextraí-
do do filósofo alemão F.Nietzsche"?Que coisa:basta alguém vozear
Nietzsche e lá vem com a banalidade do "elementodionisíaco"- pro-
testou ainda a Maria Eugenia.
- O Nietzsche de algibeira é apenas mais um exemplo do "falar
sem dizer" adotado pelo livro como método. Abram o livro ao léu. É
difícilachar página sem bullshit- emendou o Eric.- Quero fazer um
concurso: quem aí conhece uma boa tradução para o inglês"bullshit"
nesse tipo de emprego?Não, não é "bosta",não. Não estou xingando
ninguém!
- Acho que a melhor tradução seria "besteira"-, propôs a Maria
Eugenia.
- "Enro 1açao
~ "1
.
- "Encheção de lingüiça"!
- "Papo furado"!
Disseram vários ao mesmo tempo.
SIBILA
- Está ficando quente! É por aí - aprovou o Eric. - Funciona
como uma estratégia de preenchimento, do tipo daquela que os
alunos encontram para ocupar espaço de uma redação, sem ter nada
a dizer a respeito do assunto. Ouçam isso: "Simbioses sonambúlicas
com os cenários cambiantes"; e isso: "cios com os caos e os cosmos
invertidos': Não sei o que são "cosmos invertidos", mas talvez seja o
meu português ruim, alguém sabe? Ou isto, ouçam: "Seu elogio do
êxtase desfaz identidades estáveis, normalizadoras, em benefício de
um perpétuo devir filosóficoque atende às exigências desse seguidor 75
do pensamento antimetafísico, em busca de 'um porto onde a gaia
ciência jogue suas âncoras": Socorro! Isto faz algu1n sentido? Meus 23
anos de Brasil ainda não bastam para descobri-lo 11essaconfusão.
Antes que alguém se aventurasse a responder-lhe, o pródigo Paulo,
de volta ao convívio, mudou o foco da conversa:
- Um caso curioso é o do Antonio Cícero, há um aspecto engra-
çado a ressaltar. O livro nota o homossexualismo ... não sei se dele, se
da poesia dele, e coloca então, na mesma esfera do Cícero, o Waldo
Motta. Justamente como alguém que "problematiza a sexualidade".E
junto relaciona também o ítalo Moriconi. Caramba, mas as poesias
deles são muito diversas entre si! Qual o traço comum? Serem os au-
tores homossexuais? Mas o que temos nós a ver com isso, se as poesias
que eles produzem, operam segundo matrizes tão diversas? Se é gay,
tem de estar no mesmo saco, não importa se a poesia não tem nada a
ver uma com a outra? É como colocar o Luís junto com o Ascher só
porque ambos são judeus.
- Eu estou fora - disse o Eric, talvez temendo que ele fosse o pró-
ximo judeu a ser relacionado pelo Paulo. - Não me venham pôr nesse
sacoi não. Eu sou discípulo de Thomas Merton! Prefiro ser católico!
Aliás, quero ser santo!
- Eric, acalme-se - disse o Paulo, num to1n suficientemente inci-
sivo para controlar o ataque a tempo: - eu não o estou ameaçando
SIBILA
de nada. Nem o livro, aliás. Você não é nem mesmo poeta brasileiro,
esqueceu?
- Tem razão! Que alívio! - Enquanto o Eric dava um grande sus-
piro, a oswaldiana Maria Eugenia diagnosticou abruptamente: - isto
aqui está ficando com jeito de sub-banquete antropofágico.
Com o quê concordei imediatamente:
- Canibalistas de butique, Maria Eugenia, não se incomode, não.
- Queria então botar na mesa o caso do Glauco Mattoso - disse o
7
6 Luis:- O livro apresenta o JornalDobrabilse li1nitando, basicamente,
a referir seu título. Ora, o Dobrabilé o maior tour deforce gráfico da
história da poesia brasileira. Glauco fabrica ad hoc tipos variados,
manchas e, enfim, pagina um "jornal" inteiro valendo-se apenas dos
recursos de uma máquina de escrever... O livro diz: "A contribuição
de Glauco Mattoso [à geração 'mimeógrafo'] seria o JornalDobrabil,
panfleto que era distribuído pelo correio..:· Não acho que O Jornal
Dobrabil possa ser incluído na "geração mimeógrafo". - Algum
murmúrio deixava notar que parte da mesa não concordava com
a observação, mas o Luís sustentou enfaticamente a sua posição:
- Tem mesmo algo de antagônico entre eles: a "geração mimeógrafo"
produzia uma poesia pouco elaborada, de expressão de "estados de
alma" misturados a arrufos políticos, sendo o próprio mimeógrafo
uma técnica de reprodução rápida, barata e meio suja,que é a perfeita
tradução gráfica dessa poética. O JornalDobrabilé, ao contrário, de
elaboração quase maníaca. E enquanto a "poesia mimeógrafo"era feita
para ser distribuída de mão em mão em corredores de faculdade,
bares, praias, festas e passeatas, o JornalDobrabilera distribuído de
maneira moderna e impessoal, pelo correio.
- Tudo bem, Luís, já percebi que você quer valorizar o Glauco
Matoso, em detrimento da "geração mimeógrafo".Tudo bem. - Mas,
Alcir - interpelou-me diretamente o Régis -, aqui há uma citação
na sua área. O livro afuma que o Glauco está na tradição da cantiga
de escárnio e maldizer e na do soneto satírico. Isto faz sentido? - Os
SlBlLA
meus sentidos naquele i11stanteestavam todos estupidamente entre-
tidos com um estupendo bekleuaafogado em mel, e não conseguia
nenhum intervalo na mastigação para lhe responder o que quer que
fosse.Cristiane então ponderou que a tradição medieval do escárnio
era muito distinta da sátira, de extração greco-latina. O soneto, por
exemplo, retomava a última, mas não parecia ter nada a ver com a
• •
pr1me1ra.
- E o que acham de referir a JoselyVianna Baptista apenas como
secundária? - retomou a palavra o Régis,aparentemente desinteressa- 77
do de aprofundar a questão que ele mesmo apresentara: - Meu Deus!
Avalone que me acuda. A Josely traduziu tudo o que dizia respeito
ao neobarroco, além de ser muito mais poeta do que muitos dos que
ganharam capítulos com o seu nome. - Ao emprego da palavra "neo-
barroco': senti certo enjôo rápido. Pensei que era uma sorte dos diabos
que a Joselyconseguisse ser uma grande poeta, a despeito de traduzir
"tudo o que dizia respeito ao neobarroco'~Para dissipar a tontura,
pus-me a imaginar se a questão do diálogo latino-americano tinha ao
menos a utilidade de incrementar o negócio do turismo.
- Divertido mesmo é perceber o quanto o autor do Literatura
BrasileiraHojegosta de falar da AdéliaPrado - disse o Paulo: - Quan-
do chega a vez dela, faz crítica literária, interpreta, explica... enfim,
arrasa.
- Ué,que tem isso? - meti-me na história, ainda lambendo nos de-
dos os vestígios do bekleuadefinitivamente liquidado: - Um talento à
altura do outro. Vai implicar? Mas Paulo, caro, aproveita e dê-me-lo!
- Dê-me-lo, o quê? O prato? O garfo? Já não há nada vivo acima
ou ao redor da mesa.
- Engraçadinho. O vinho, por favor.Está bem aí, escondido atrás
de seu notebook.
- Em todo caso, isso merece um pequeno comentário - tornou
o Luís, dispondo-se logo a fazê-lo: - O livro se refere assim a "Com
Licença Poéticà': "O poema é uma inversão da primeira estrofe do
SIB ILA
'Poema de Sete Faces'de Drummond': Mas qual "inversão"?Os três
primeiros versosda Adélia são uma paráfraseda primeira estrofe
de Dtummond. "Quando nasci um anjo esbelto / desses que tocam
trombeta, anunciou: / vai carregar bandeira:•A expressão dos anos
70, "carregarbandeira•:como todos aqui sabem muito bem, a não ser
a Crise a Lui - restringiu prudentemente, ao notar o olhar recrimi-
natório da primeira-, significavasubsumir tudo a uma causa,ou seja,
estar sempre "portando um estandarte".O que o "tocar trombeta" do
78 segundo verso só enfatiza."Carregar bandeira" que é, escreveAdélia
no quarto verso,"cargomuito pesado pra mulher/ essa espécie ainda
e11vergonhada:'Envergonhada, claro, para... "carregar bandeira': No
fim,vem a explicitação:"Vaiser coxona vida é maldiçãopara homem.
/ Mulher é desdobrável".Ou seja,um homem pode se dar ao luxo de
ser gauche,hipercrítico,outsider,mas a mulher não, porque tem de se
desdobrarentre o emprego e a maternidade, etc. Em suma, trata-se de
uma paráfrase meio piegas do "Poema de Sete Faces':Que, por sinal,
não tem nada a ver com a maneira como o livro lê o terceiro verso:
« [ Adélia Prado] prefere a sina de 'carregarbandeira'- numa referência
SIBILA
dos tempos da Poesia-Práxis. Mas se havia ali um líder era o Chamie
e não o Armando. E depois o Armando é posto junto com o Sérgio
Alcides? ... Simplesmente não vejo relação entre eles.
- Talvez a Maria Rita Khel? - arrisquei eu, ingenuamente.
- Talvez - e prosseguiu com o seu raciocínio: - Notem que, numa
penada só, o livro também menciona aí a "grande amiga" do Arman-
do, a Ana Cristina Cesar. A amizade juntou os dois no n1esmo tipo
de poesia? Mas não há junção entre as poesias deles! E finalmente,
essa é para você, Alcir: ele diz que o Armando tem uma atitude de 79
anti -retórica ...
- Azar o dele: eu não só sou a favor da retórica, como totalmente
a favor de saber o que ela significa fora desse emprego banal com o
sentido da "bullshit"de que falava o Eric.
- Ih - disse o próprio -, agora se queimou! Resolveu, enfim, de-
bater? Agora, sinto muito, já estou cansado.
- Não, resolvi apenas parar de comer antes que seja tarde demais.
- E fiz cara de quem estava na iminência de devolver o jantar inteiro
na mesma mesa na qual o havia tomado.
- Que horror, pai! - protestou a Lui - um pouco de compostura!
Paulo propôs então que comentássemos o que estava escrito
no livro sobre Afonso Henriques Neto: - O livro acha digno de
nota que o sujeito seja neto de Alphonsus; em seguida parte logo
para fazer a projeção do avô sobre o neto. Mas o espantoso é que o
toma como cabeça de um capítulo, e depois agrupa embaixo dele o
Willer, o Piva ... - No momento em que disse "o Piva", podia-se ler
ao menos cinco exclamações em seu rosto estupefato - além do Flo-
riano Martins e tantos outros. Sob o nome de um autor totalmente
secundário, que descreve como simbolista, vai enfiando todos os de
extração surrealista.
- Aproveito a ocasião e protesto contra não haver um capítulo
dedicado ao Piva! - levantou seu copo de água mineral o Celso, com
a veemência de quem brandisse uma foice.
SIBILA
- Mas Paulo,esseé um procedimentohabitualno livro - observou
o Régis,ignorando o protesto queirosiano:- Tributáriosevidentesde
Leminski aparecem no capítulo Afonso Henriques Neto, tais como
Ademir Assumpção e Rodrigo Garcia Lopes.Por que será? E o pró-
prio Leminski,a matriz deles todos, nem aparece.Esquisitíssimo.
- Esquisito, pois é - continuou o Paulo: - e na mesma chave,
no capítulo do Manoel de Barros, ele lista como secundários Nejar,
Carpinejar e Donizete Galvão.Mas o que há em comum entre esses
80 três autores, tão distintos entre si? Só se for por causa de um critério
"regionalista':que o próprio livro dizia redutor. E o que ele diz do
AfonsoÁvila?Diz que tem"preocupaçõescívicas"!- Pauloacumulava
exclamaçõesna cara: - Eu não ouvia isso desde o tempo da graduação
nas matérias de EPB!Se bem que, nestes tempos neopatrióticos,que
não desistem de ser brasileiros,não sei, não: estou suspeitando do
retorno da EPB!
Régisentão propôs: - Acho que seria legal falar do que o livro diz
do Haroldo de Campos. - Eu ia observar que já haviam falado até
demais dele,quando o Paulo,que parecia finalmente ter-se animado,
tomou a minha frente: - Banalidades,nada mais. Passa o livro aqui,
quero ler um trechinho. Aqui.Por exemplo:"novaspossibilidadesde
representação da realidade pela palavra poéticá: Um lugar-comum
claríssimo,não é? Pois não é apenas isso.Sabeonde ele termina opa-
rágrafo?Justamenteonde ele nunca poderia terminar: no Mallarmé!
Alguém que já não pensava em representação...
- E que tal esse trecho? - adianta-se o Luís:- "O resultado foi uma
produção que valoriza a dimensão material da palavra,por meio da
decomposição fonética e da montagem visual dos signos".Isto pre-
tende descrevero projeto concreto."Valorizaa dimensão material da
palavrá' - mas que poema não faz isto? O projeto estabeleceo que
chamam de "primado do significante".Primado não é mera valori-
zação, e significante não é "dimensão material" da palavra. O mais
estranho é que as obras do Haroldo que o livro afirma que melhor
SIBILA
"expressam' esse "projeto" são Xadrez de Estrelase Signância.Só que
uma é, em grande parte, pré, e a outra, pós-concreta.
- Tem razão - disse o Régis: - o subtítulo de Xadrez, impresso
na capa, é: Percurso Textual 1949-1974.Não havia nem sombra de
concretismo em 1949. Há ali, sim, muita poesia à moda 45. Além de
um monte de poesia concreta ruim. Xadrez de Estrelastraz uns dez
poemas concretistas. Lembro, por exemplo, de "âmago do ômega':
"fala prata / cala ouro","branco","mais mais': "cristal':"nasce / morre':
"vem navios","topogramas","anamorfoses" e "servidão de passagem': 81
todos datados entre 1955e 1962. Estes poemas ocupam vinte pági11as
de um livro de 250! E mesmo nesses poemas concretos, não se perde
algum eco parnasiano. Lembro-me de cabeça de algumas passagens:
"um corpo / cristalino a corpo / fechado em seu alvor': por exemplo,
de "âmago do ómega': Para mim, Harold o era um amigo...
- Muy amigo - disse algum gaiato, que não consegui identificar
na hora, nem quis se revelar depois, quando perguntei quem fora o
engraçadinho.
- ... muito mais do que o Décio ou o Augusto, mas, como poeta,
não tinha a visão plástica do Augusto, nem a gráfica do Décio. E é ver-
dade que Signânciajá não tem nada de poesia concreta. Desse livro,
francamente, não 1ne lembro de nenhuma passagem, mas, Paulo, por
favor,veja se consegue puxar algum trechinho dele da internet, com
esse seu notebook superequipado. - Paulo evidentemente adorou o
encargo e, usando a conexão sem fio do seu formidável Toshiba, em
poucos minutos pôs na tela alguns trechos do Signantia Quase Coe-
lum. O Régis postou-se logo à sua frente e ia começar a lê-los, quando
Luis, de seu canto, entoou de repente com seriedade afetada:
- "Glande de cristal / desoculta / ramagem de signos ..:• - mar-
cando longamente e profundamente os "eles".Régis, contrariado pela
usurpaç~o, o fez calar-se com o olhar e,voltando-se novamente para a
tela, retomou o poema, aumentando a voz a cada vez que encontrava
algum verso que, como dizia, "ecoava a parnaso":
SIBILA
- Ouçam isto:"...Glande de cristal/ desoculta/ ramagem de signos
/ soa / o acorde do uni / verso/ campana estimulada / rútilo / último
/ coere/ cúplula radiosa/ sim um sino': "Glande de cristal?" - Meu
Deus! E notem bem essa passagem: o rompimento com o concretis-
mo está nítido na palavra UNiverso, cindida, apontando para uma
retomada do verso. Outro trecho: ".... HÚBRIS / folguedos de tigre /
afastam do fosso/ os sem-narinas/ sanha diamantina ...•~O que há de
concretismo nisso, a não ser um espacejamento frouxo e decorativo
82 das palavras , quase sempre? É quase anticoncretismo, dado como
exemplo de concretismo.
- Está fundado, pois, o anticoncretismo, e é também da lavra do
Haroldo! Assim você o enaltece ainda mais, Régis. Grande amigo,
indeed!- decretou o Celso, mais debochado do que prudente , como
sempre.
- Para mim - disse o Régis, sem morder a isca provocativa - Ga-
láxias também não é um livro que funde concretismo e neobarroco,
como está escrito. É mais roseano, joyciano, poundiano de Cantos.
Tem muito pouco de concretista, minimalista, a não ser na parono-
másia como recurso de narração, na linha "palavra puxa palavra':
"Neobarroco" é coisa que aparece bem mais tarde na teorização do
Haroldo, que então a projeta para trás. - De minha parte, achei que
"neobarroco" merecia um "meu deus" avaloniano, mas Régis, desta
vez, poupou-se de invocá-lo.
- Parece mesmo que "retroprojeção" é uma boa categoria para
analisar as coisas do Haroldo - disse o Eric: - cada novidade que
aparece, logo reaparece nele reaplicada ao passado da sua poesia,
que assim está sempre pré, sempre avant, always up-to-date.Aquela
enumeração do Eric, na minha cabeça, terminou com a lembrança
da voz de Dylan cantando "Foreveryoung, Foreveryoung': Senti-me
surpreendentemente enternecido: devia ser o fim do aniversário que
•
se aproximava.
SIBILA
- É certo que o Haroldo deve ser criticado na med ida mesma em
que merece ser levado a sério. Mas a verdade é que a sua obra tem
uma outra dimensão comparada a da maior parte dos poetas dos anos
50-60, e ainda mais se comparada aos contemporâneos. Ela é como
pontos luminosos em meio ao epigonismo generalizado de hoje,
como o fora em relação ao anterior fechamento naciona lista - decla-
rou gravemente o Paulo. - Enquanto ele o dizia, e eu concordava com
esse ajuste de perspectiva, crescia em mim a idéia cada vez mais nítida
de que a batalha da minha festa estava definitivamente perdida para 83
o Literatura BrasileiraHoje! Viver é desenganar-se. Como eu, leitor
de Vieira, poderia duvidar? Todo aquele blá-blá-blá sobre contempo-
râneos não podia deixar isso mais evidente. Foi quando percebi que
deveria ganhar o concurso de tradução:
- Eric, caro: passe-me o prêmio "bullshit":"blá-blá-blá" é a sua
tradução universal! - Olharam-me, contudo, com cara de espanto:
- Ei, tem alguém aí dentro? Esse assunto já está morto e enterrado,
meu caro - disse a Cris, batendo ao mesmo tempo com os nós dos
dedos na minha cabeça aturdida. E tratou de voltar imediatamente à
discussão que permanecia viva:
- Vocês estão r11uitopreocupados com o que é dito do Haroldo. E
sobre o que se escreve do Augusto, não têm nada a dizer?
- O livro diz que a sua poesia foi influenciada pela fragmentação
de Pound. Estranho: Galáxias foi evidentemente muito mais influen-
ciada pelo Pound do que qualquer coisa do Augusto, e, no entanto,
isso não é dito. O que será que quer dizer? - reparou o Régis, reto-
mando disfarçadamente o tópico "Haroldo".
- Há uma outra passagem muito curiosa: Manuel diz, em relação
ao Augusto, que a "despersonalização radical" levou-o à tradução e à
crítica. O que tem a ver a despersonalização com a tradução? Ainda
mais com a concepção de transcriação, altamente personalizada?
Augusto, aliás, não é crítico - já não me lembro quem disse isso. Dis-
traí-me conversando com a Luísa, que, com razão, já estava exausta
SIBILA
e me pedia para irmos embora. O Paulo,entretanto, quis comentar
ainda o que o livro diziado FerreiraGullar,que lhe pareciaimpróprio:
- Que história é essa de que Gullarcorrespondeao Herberto Helder?
Não entendo. É incrível:as relações que ele traça são quase sempre
as mais descabidas.Fico em dúvida se ele está falando dos mesmos
poetas que eu leio.
- Não se espante,Paulo.Tivea mesma sensaçãoao ler o livro.Deve
ser por conta da diferença de idade entre nós e o autor - explicou
84 benignamente o Eric.
- Qual o quê - replicou o Régis:- o cara tem quase quarenta
anos!
- Eric, caro, valeu a tentativa misericordiosa,mas seja qual for a
diferença de idade, não dá: ninguém consegueentender as relações
que o livro estabeleceentre os poetas.Elas me parecem sempre com-
pletamente arbitrárias - opinou o Paulo.
- E quanto àquelapassagem,Eric - interpelou o Luis,assumindo-
º como advogado do livro: - "Os longos intervalos de tempo entre
seus livros indicam o caráter visceral dessa poesia..." Pense bem:
poetas espontaneístas,ou "viscerais':por definição escrevemmuito.
Ora, longos intervalos de tempo são indicadores de artesanato, de
maturação...
- Sim,o laborlimaeet morahoraciano -, palpitei,sempre dispos-
to a fugir para longe do Brasil e do presente,já que não podia mais
simplesmenteentregar-me à comilança.
- ... o contrário do poeta "visceral"- concluiu afinalo Luis,como
se escrevesseq.e.d.ao final da equação.
- No fundo - concluiu por sua vez o Eric, felizcom o seu papel
de defensor - o livro é uma prótese, o equivalenteliterário de uma
dentadura ou uma perna de pau, aparelhos para pessoas banguelas
ou coxas.
- Eric, não exagere - protestou o Paulo: - Não há nada tão útil
assim no livro!
SIB ILA
- E o que acham do que é dito do Arnaldo Antunes? - disse une-
diatamente o Régis,atalhando uma eventual resposta do defensor Eric:
- "... Antunes desenvolve essa percepção da concretude da linguagem
em pelo menos três vertentes; (1) uma poesia de rigor formalista, que
explora a paronomásia e na qual as permutações fonéticas entre os
signos ditam os caminhos do significado (2) poemas tributários ao
concretismo dos anos 50 ..." Disse bem: "poemas tributários ..:' E então,
qual a novidade? E isso da paronomásia como recurso preferencial?
Mas não foi esse sempre o recurso por excelênciado concretismo,vide 85
o já citado "beba coca cola/ babe colá: Repito: qual a novidade?
- Talvez a paronomásia pop sem medo de ser feliz? - arrisquei
bestamente: - Sem a hesitação do Leminski, por exemplo? - la evo-
luir o raciocínio do Leminski resolvido para as massas até chegar
ao sloganlulista da esperança vencendo o medo, quando o Luis me
interrompeu:
- E o caso do Tolentino? O seu verbete já abre com um chavão
e um erro crasso ao dizer: "Poeta controvertido, polemista ácido e
violento, Bruno Tolentino é o mais ardoroso crítico do coloquialismo
modernista e da dissolução concretista do verso': Tolentino, ao con-
trário, é adepto evidente do coloquialismo de 22.Um exemplo que me
vem à cabeça de "Os Deuses de Hoje":"É, a vida é assim / como aqui
vai dito, / mas, queira ou não queira / quem teme o infinito, / vale a
pena sim': Parece Bilac?"Caiu, caiu / fora da história / o meu país: /
foi por um triz/ mas foi... E agora?/ Bye-byeBrazil / [...] / Vais cair
mais / e mais ainda,/ vais para a puta / que te pariu:/ pruneiro abril,/
depois o Nada:' Isto é de Felizaniversário,datado de primeiro de abril
de 65. Tolentino apenas parece não gostar da vertente do poema-pia-
da ... - O que, aliás, não impede que seja às vezes totalmente hilário,
pensei comigo. Mas era agora ou nunca:
- Bom, Luis,já que você falou em mim, quero dizer-lhes que acaba
de dar meia-noite: acabou-se o meu aniversário. Hora de partir. Antes
disso, quero apenas fazer uma declaração,já que vocês falaram como
SIBILA
matracas o tempo todo. Queria anotar ao menos um aspecto positivo
do Livro,que saiu muito engrandecido de todo esse debate. E é justo
que seja assim, pois, paradoxalmente, livros muito ruins podem ser
muito esclarecedores. No caso,ele acaba revelando o que está sempre
por trás de toda questão literária:a escolha,com mais ou menos razão,
dos autores que se considera relevantes,por um motivo ou outro. A
escolha, eu digo, e nunca simplesmente qualquer "naturezà' suposta-
mente necessária. Se quisermos ser contemporâneos deste estranho
86 "hoje': do qual não podemos nos livrar,a primeira coisa a fazer é en-
tender que estamos na contingência de uma história sem redenções
celestes,científicas,literárias ou ideológicas.Logo,o que é arbitrário
e ruim no livro é também sinal evidente de que há uma escolha a
ser debatida e eventualmente refutada, mas não uma transcendência
- católica, moderna, ou pós-pós, não importa - a ser venerada. E é
verdade que, se a escolhaé a questão,é ela que fracassamiseravelmen-
te no livro. Nele,como vimos nas várias falas,a arbitrariedade, o cor-
porativismo e a política literária aparecem mal disfarçadosde critério
crítico. Não há argumentos convincentes,nem pressupostos teóricos
claros ou coerentes a ordenar as escolhas.A frouxidão dos critérios e
a impertinência das descrições põem a nu a arbitrariedade da eleição
ou, para falar em termos de retórica antiga:a ausência de decoro.Uma
pequena precisão:a arbitrariedade é especialmenteruim, aqui,porque
sequer há um gosto idiossincráticoque mova a escolhados autores ou
que provoque a adesão afetiva aos objetos, o que seria sofrível,isto é,
ruim, mas tolerável.A sua adesão aos objetosé prévia,pré-definidaem
função de objetivosque não aparecemformulados. É isto sobretudo o
que se evidencia na falta de cuidado nas descrições,na confusão das
referências, na glosa dos conceitos que cada autor faz de si mesmo.
O móvel e a racionalidade do livro,se houver,devem ser procurados
em outro lugar.Pois este é o ponto-chave e o segredo do livro: não ser
senão um eco, como referiu o Paulo em algum momento. Comecei
falando em ressonância, não admira que terminemos em eco. Meus
SIBILA
votos finais, muito agradecidos a todos vocês que compareceram a
esta festa que não foi apenas minha, e me alegraram e instruíram
neste dia alarmante em que completo meio século, são solenemente
os seguintes: que um tal livro, que ostensivamente desiste da crítica,
seja a reiteração de um convite a ela. Cheers!
SI BILA
,
'
'
'
' -
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ROTEIRO BÁSICO PARAUMA
VIDA SEM LIVROS
FurioLonza
SIBILA
sen do exposto com destaque, mesmo porque já haverá outro li-
vro mais novo no lugar, que só será resenhado pela mídia três ou
quatro meses depois e assim por diante.
8. O setor de Marketing das editoras escolherá previamente o livro
em que irá investir todos os seus recursos de divulgação na mídia.
O resto cairá na vala comum.
9. Os suplementos literários passarão a resenhar somente os livros
de editoras que anunciarem em suas páginas.
10 . Só serão vendidos nas livrarias os títulos que tiveran1 farta expo - 91
SI B l LA
games, bichinhos de pelúcia, miniaturas, cigarros importados,
bonequinhos, pósteres, baralhos e outros acepipes.
19. Aos escritoressérios,só restará a alternativade se mancomunarem
em confrarias,onde ficarãose autocitando,autoparodiando, auto-
elogiando e punhetando-se uns aos outros.
20. Só terão amplo destaque na mídia os escritores que acabaram de
ROTEIRO DASMELHORESLIVRARIAS
FNAC(Rio e São Paulo) - Local ideal para você comprar o seu apare-
lho de DVD,Tvs com tela plana de 89 polegadas e micros digitais
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você poderá escolher charutos cubanos, incrementar sua coleção
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de salsicha,espetinhos de queijo de coalho, amendoins, empadas
da fazenda,caféde coador,tudo muito caseiro,muito simples,você
vai se sentir em casa.
LIVRARIA DATRAVESSA (Rio) - Lugar ideal para você degustar a
maravilhosa salada básica da casa, com generosas porções de rú-
cula, tomate seco e mussarela de búfala. Tem as atendentes mais
gostosas do Rio de Janeiro.
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o maior acervo de cos da praça. O melhor café expresso que você
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SIBILA
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e sanduíches variados. Imperdível a panqueca de espinafre com
requeijão.
SICILIANO (Rio e São Paulo) - Infelizmente, esta livraria não acom-
SIBILA
OS CADÁVERESDA HISTÓRIA NA
~
SIBILA
história que pontuam os poemas: "Canción de Amor para los Nazis
en Baviera':"Era el Afio 1943/enEritreá: "lQué Tenía que Hacer en
Esa Noche/a las 20.25, hora en que ella entró': "Rivera':"India Muerta':
"Para Camila O'Gorman" e o poema que paradigmaticamente fecha,
como epílogo, toda essa série,"Cadáveres".
Penso que essa irrupção da história nos dois primeiros livros de
Perlongher, Austria-Hungríae Alambres,é uma figura da relação da
poesia de Perlongher não só com a história - e deliberadamente uso
a minúscula - mas também com o universo da experiência ou da 95
"realidade". A irrupção de cápsulas despedaçadas - resíduos - de
história no fluir da linguagem do poema pode ser pensada como
uma figura da relação, nessa poesia, entre a linguagem poética e sua
"exterioridade".Porque a forte primazia outorgada ao plano sonoro
da língua faz de certos versos de seus poemas uma construção - pa-
lavra puxa palavra, dir-se-ia em português - pautada por relações de
contigüidade fonéticae de permutações sonoras que vão desarmando
a gramática e com ela o significado referencial e sua relação com a
• A •
exper1enc1a.
No entanto, a referencialidade nunca está ausente da lógica do
poema em Perlongher. É mais exatarnente a colisão entre o plano
referencial - um código cultural - e o plano sonoro da língua o que
faz com que seus poemas possam ser pensados como uma série de
choques, uma litania de explosões produzidas pela colisão entre dois
ou mais códigos diferentes.
A colisão entre o código lingüístico e o cultural faz a beleza de "La
Murga, los Polacos" ["O Bloco,os Polacos"]:o que produz a raridade
das imagens que vão tecendo o poema é precisamente o fato de que
haja uma murga e esteja na Polônia, onde não há murgas.Os dois
1
,
SIBI LA
Es una murga, marcha en la noche de Varsovia,hace milagros
con las máscaras,confunde
a un público polaco'
SIBILA
cessária uma referência cultural, e não pura ou exclusivamentelingüís-
tica, para reconhecer essa discordância que, no nível da linguagem
enquanto dualidade significado/significante, e no plano da gran1ática
em uso, não apresenta nenhum tipo de «erro"ou discordância.
Mas há um ponto no poema - marcado ainda pela espacializa-
ção - no qual o poema se inverte, e a sentença assertiva que inicia o
poema ("Es una murga / marcha en la noche de Varsovia") e as que
a sucedem em sua primeira metade cedem lugar a orações negativas
e condicionais. Há então uma pulsão cultural, uma pressão do con- 97
texto cultural que impulsiona o plano lingüístico para construir esse
poema.
Em outros poemas, trata-se de colisões de outro tipo: colisões
entre diferentes línguas - e ali entra seu portunholismo, mas também
a inclusão de palavras em francês ou em inglês, e ainda, em italia-
110 -, ou choques entre distintos registros do espanhol - culto, popu -
lar, a língua da gauchesca-, ou o uso de provérbios ou frases feitas
fora de lugar.
A atenção à linguagem, à palavra em si mesma - o que Khleb-
nikov e Kruchenykh chamaram em seu manifesto de 1913"a palavra
enquanto tal" - conduz a um.a atenção especial dada ao som, aos
jogos com os fonemas, à recorrência rítmica: aliteração, consonância,
repetição e assonância são procedimentos centrais na poesia de Per-
longher . No entanto, o que é característico de sua poesia é a presença,
nessa paisagem contraditór ia, de cápsulas efervescentes de história
ou de experiência. Despojadas também de um contexto que lhe dê
um significado claro, literal, essas cápsulas, no entanto, insistem em
seus poemas produ .zindo precisamente esse outro plano de choque .
Quando é a estrutura sonora que gera o poema, ela nunca é predo-
mina.µte, mas sim se contrapõe a essa outra estrutura semântica com
a qual a primeira choca.
É comum na poesia de Perlongher encontrar essas raras deses-
tabilizações, mas, sobretudo, a construção de um sentido que se vá
SIB ILA
pautando em um devir do poema pelo qual este acaba por inverter-se
como uma luva, e termina asseverando o oposto daquilo sobre o qual
se iniciava. O primeiro poema de Austria-Hungría,qual um prólogo,
anuncia uma operação poética que se repetirá nesse e em outros livros
de Perlongher.
Interessa-me pensar essas colisões entre códigos diferentes como
uma figura que permite estudar em termos históricos a posição da
poesia de Perlongher em relação à linguagem e o hermetismo. Por-
9s que a poesia centrada na linguagem também é histórica enquanto
delata, pela série de redes que tece e entre as quais se inscreve, um
uso especial da linguagem e do fazer poético que pode dizer muito
precisamente ali onde cala: em seu hermetismo, nas formas de cons-
trução desse hermetismo, pode-se freqüentemente ler uma forma de
significaçãona qual sua pulsão anticomunicativapode dizer-nos algo,
também, das condições históricas que rodeiam essa poesia.
O poema como negação ou inversão da referencialidade mostra
uma operação que em termos semânticos equivale ao que o proce-
dimento aliterante - segundo é utilizado na poesia de Perlongher
- é para o plano sonoro: mais um impulso à construção do sentido
pela obliteração de um sentido dado - o sentido comum, o sentido
da gramática - que uma mera repetição redundante. Na poesia de
Perlongher, as aliterações costumam funcionar como incitação e
transformação fonética, nunca como eco ou repetição fechada. Es-
ses procedimentos aliterantes impulsionam o poema para adiante
- e não o fechan1. A operação de inversão reverte o poema a um
plano diferente, ocupando uma posição de fechan1entoimpossível,
apesar de sua dobra e prega. Vemo-lo, por exemplo, nestes versos:
"su estoque, su estocada, su descotado aliento"4 , em que a aliteração
e transmutação dos fonemas, a substituição de uns por outros, todos
em um mesmo verso, já não funcionam como eco, mas sim como
4. Idem, p. 29.
SlBILA
- para usar um conceito teorizado a partir de Deleuze e Guattari
pelo próprio Perlongher - devir. Outro exemplo:"esa irritada furia
de los dedos feroces».
A poesia de Néstor Perlongher é um caso interessante nessa dialé-
tica poética de informação/hermetismo. Porque, se por um lado sua
poesia trabalha com o puro significante, há também em sua poesia
uma forte inscrição - freqüentemente hermética ou incompreensível,
mas afinal inscrição - de questões históricas, sociais - e até pessoais
- muito devastadoras: o nazismo, os desaparecidos da ditadura, ou 9
9
o homossexualismo. Na poesia de Perlongher, o significante é amo
e senhor, mas esse significante vai se entrelaçando com um jogo de
significaçõesque fazem irromper em sua poesia - estrepitosamente:
freqüentemente como um grito - a história e seus significados,ou a
vida pessoal e seus sentidos.Sua poesia é hóspede tanto para a história
. .
como para a exper1enc1a.
~
SIBILA
de seus dois primeiros livros - é como o poema vai desarmando e
desconstruindo a função comunicativa da língua a partir de diferentes
níveis à medida qtie avança em sua construção.
Nas primeiras estrofes, é possível pautar uma progressão a partir
de uma correta estruturação sintática, gramatical e semântica:
Bajolas matas
En lospajonales
Sobrelospuentes
100 En loscanales
Hay cadáveres
Sob as matas
Pelos pastos
Sob as pontes
Nos canais
Há cadáveres
SIBILA
faz com que o verso não somente seja mais longo em termos visuais,
mas também semânticos.
A partir daí, começa a se desarmar a lógica do sentido. Começam
a aparecer, como complementos de lugar, coisas e lugares que não
podem ser pensados logicamente como lugares em que poderia haver
cadáveres:
SIBILA
Exatamente aí, e nessa lissa
daquela que esfiapa,e
no soslaio da que não convém que se diga,
no pouco caso da que não se diga que não pensa, quem sabe
na que não se diz que se saiba...
Pareceremanido:en la manea
de esosgauchos,en elpelaje
de esa tropaalzada,en loscafíaverlaes(pajabrava),en el botija
de eseguacho,el olora matorrade esejuiz
Hay cadáveres
SIBILA
Remanido ["isolado"] funciona ali então dupla1nente como conexão
com o registro lingüístico da gauchescae por sua vez como ligação
com um passado> como algo que não é novo>algo que vem do passa-
do e tem continuidade> tanto na língua (o uso da língua gauchesca)
como na ação . Confluem assim dois níveis>o nível lingüístico e lite-
rário e o nível da história: a histó ria de violência da gauchescae sua
linguagem.
O poema vai avançando em uma progressiva desconstrução da
linguagem em sua função informacional até chegar a construir versos 103
SIBILA
Nisso que traga
o que emputarra,
Nisso que amputa
o que empala,
Nisso que, puta!
Há cadáveres.
Para chegar a
Cuando el caballopisa
Los embonchadosp6lderes...
Talvez o verso simbolista com o qual começa uma das últimas estro-
SIBILA
fes ("Yosoy aquél que ayer nomás ...:')* sirva também para pensar nessa
impossibilidade de comunicar. O verso acaba em reticências, como se
já não se pudesse escrever,devido à experiência dos cadáveres, nesses
versos simbolistas nos quais as reticências (o silêncio) substituem a
palavra que no verso de Dario era, justamente, decía["dizia"].É lógico
então que o verso termine com seu contundente: "No hay cadáveres'~
Assim o poema reconstrói essa lógica de deslocamento da referên-
cia, com a inversão de tudo o que o poema vinha dizendo , repondo
a ausência de cadáveres em uma clara referência aos desaparecidos 105
SIBILA
um movimento mais amplo de recusa simultânea da vanguarda e de
seu hermetismo formal, por um lado, e de oposição à retórica realista
engajada e ao valor infor1nacionaldo texto literário, por outro. Não só
é possívelencontrar essascaracterísticasnesta tradição do neobarroso
que o próprio Perlongher organiza (veja-seseu CaribeTransplatino ),
com os dois Lamborghini ou Arturo Carrera entre suas origens, mas,
além disso, é possível também encontrá-las, sobretudo, em Literal,
a revista que esses mesmos escritores publicaram junto com outros
106 como Gusmán, Zelarrayán ou Libertella,de 1973 a 1976.
Penso que se pode reconhecer em Literala presença de uma série
de problemáticas que Perlongher, em sua poesia, continua e desloca.
Sobretudo, uma clara recusa ao realismo que não se identifica com a
vanguarda nem reivindicapara si esse título (segundo destaca Héctor
Libertella em sua introdução a uma antologia de textos da revista
publicada em 2002) 5•
Literaltraçou uma tripla oposição ao poder, à fu11çãocomw1icati-
va da palavra e ao realismo, que em Perlongher pode ser lida também
em sua poética antimimética claramente política.
A leitura detalhada dos poemas de Perlongher enquanto impug-
nação à lógica referencial e ao caráter informacional ou comunicativo
do texto pode revelar de que maneira magistral sua poesia de lingua-
gem é também uma poesia expressivamenteatravessadapela história,
ajudando além disso a situar essa poesia na sombria paisagemcultural
argentina de sua época.
Tradução:GêneseAndrade
BIBLIOGRAFIA
5. Héctor Libertella,Literal1973-1977,
BuenosAires,SantiagoArcos,2002, p. 7.
SIBILA
O SEXO DAS MENINAS*
Néstor Perlongher
,. Publicado na revista Xul, n. 6, Buenos Aires, maio 1984, pp. 25-28. Esse número
da revista é dedicado inteiramente a Oliverio Girondo, com o título geral
"Apunte sobre Girondo''. A tradução dos poemas citados de Veinte Poemas
para ser Leídos en el Tranvía e Espantapájaros pertence a Jorge Schwartz,
Vanguarda e Cosmopolitismo, São Paulo, Perspectiva, 1983. A tradução de
En la Masmédula pertence a Régis Bonvicino e integra o livro de Oliverio
Girondo,A Pupila do Zero/ En la Masmédula, São Paulo, Iluminuras, 1995.
1. Citado por Enrique Molina em ''Hacia el Fuego Central o la Poesía de Oliverio
Girondo", Prólogo de Obras Completas de Oliverio Girando, Buenos Aires,
Losa<la, 1968. As citações de Oliverio Girondo pertencem a essa edição - a
inicial indica o livro - VP: Veinte Poemas para Ser Leídos en el Tranvía; cc:
Calcomanías; E: Espantapájaros; EM: En la Ma.smédula;seguido do número
de página.
2. Enrique Molina, op. cit.
SIBILA
Eu duvido que ainda nesta cidade de sensualismo existam falos mais cha-
mativos e de uma ereção mais precipitada que a dos badalos do "campanile" de
San Marcos.
3. A carta encontra-se no arquivo do sr. Washington Pereyra (Buenos Aires). Está datada de
2.12.1925;o timbre com o nome do remetenteestá arrancado.Assinatura:"Un porongo,vulgo
príapo~Reproduzimosalguns parágrafos,respeitando a ortografia:
~ .. imagéneseseftor Girondio,Santo Oliverio,las diablurasque no hubierayo hecho cone/
sexso de una bel/anifta deflores en e/ bolsillo;pero ahora viene a mi memoria, que cierta vez,
caminandopor una callede Flores,vijunto ai cordónde la vereda, una cosasanguinolenta,de
forma sugestiva,a la que di mayor importancia;ahorase me ocurreque era un sexso caído a
quizá que Santa nifta de Flores(... ) Siemprele oí decir a papá, que no le gustaban las casas
con balcones,y ahora me ecplicoel parqué;seguramentepara mis hermanitas no cuelguen
los cenosen é/;y tú Oliverio,a ti que te es dado ver/o todo,jamás viste un jovensuelo chupar
como un terneromamon, el cena colgadodesde un balcón,que tiernamente le ofrecíaalguna
pres,osa nina .
• • - J)
"... imagene senhor Girondio,Santo Oliverio,as diabruras que eu não teria feitocom o sexso
de uma bela menina de flores no bolso; mas agora vem a minha memória, que certa vez,
caminhando por uma rua de Flores,vi junto à beira da calçada,uma coisa sanguinolenta,de
forma sugestiva,a que dei maior importância;agora me ocorre que era um sexsocaído a quiçá
que Santa menina de Flores [... ] Sempre ouvi meu pai dizer que não gostavadas casas com
balcões,e agora me ecplicoo porquê;seguramentepara minhas irmãzinhas não pendurarem
os ceios nele;e vocêOliverio,a quem é dado ver tudo,jamais viu um jovençuelochupar como
um bezerro mamão, o ceio pendurado em um balcão,que ternamente lhe ofereciaalguma
• • n
pres1osamenina.
E conclui:
"Yaque me jodiste en veinteguita,gasto otroscincoen estampilla,y te hagosentir el pijaso de
mi admiracióncomo un 'egrete'en tu ojete".
"Já que você me ferrouem vinte guita, gasto outros cinco em selo,e façovocêsentir a ninharia
de minha admiração como um 'egrete'em seu olhete~
SIBILA
pornográficos, é circular obscuramente . Mas talvez, por uma espécie
de velado pudor ("a arte eleva':diz Fogwill),negar a reverberação, em
nossos putos ouvidos, do obsceno? Por trás dessa sensualidade, nela
imbricado, há um "sexualismo":
... apertam as pernas, de medo de que o sexo lhes caía na calçada ...
e que
e que
... de noche,a remolquede sus mamás [...] van a pasearsepor laplaza,para que
loshombresles eyaculenpalabrasai oído,y suspezonesfosforescentesse enciendan
y apaguen como luciérnagas...
....de noite, a reboque de suas mães [...] passeiam pela praça, para que os
homens lhes ejaculem palavras ao ouvido, e seus mamilos fosforescentes se
acendam e se apaguem como pirilampos ...
SI BI lA
Depois, sabemos que:
E:
Em «PaisajeBreton" ["PaisagemBretã"]:
un pedazo de mar,
con un olora sexo que desmaya( VP, p. 53)
um pedaço de mar
com um cheiro de sexo que desmaia.
SIBILA
Os seios das mulheres saltam também de desejo em "Corso":
enquanto as moças
tiram os seios das batas
e os lançam para os blocos.
Em "Cas.sino
. "* :
III
,
e, a1mesmo:
Em "'\verona
T »
:
SIB ILA
E está:
entre
Brazos.
Piernasamputadas.
Cabezas*que se reintegran
... losojosde las chicasque se inyectannovelasy horizontes
Braços.
Pernas amputadas.
Corpos que se reintegram
... os olhos das meninas que se injetam novelas e horizontes
SI BI LA
O olhar libidinal mancha também as famílias em «Apunte Calle-
jero" ["Nota de Ruà']:
SI BILA
A homo ssexualidade mela o poder:
114
Mas o Sexo é Pecado:
SIBILA
... los nazarenos... llegan,acompaiíadosde un amigo,a presentarle la virgen,
como sifuera su querida. (cc, p. 121)
,
e, a1 mesmo:
115
... as mulheres ensaiam seu olhar "Smith Wesson"; pois, como as virgens, só
saem de casa nesta semana, e se não caçam nada, continuarão sendo ...
... os presidiários esperam ... que as virgens passem pelo cárcere antes de ir
dormir, para soluçar uma "saetà' de arrependimento ...
SIBILA
Eu não tenho uma personalidade: eu sou um coquetel, um conglomerado,
uma manifestação de personalidades... [...]
Que tipo de contato podem ter comigo,me pergunto, todas estas personali-
dades inconfessáveis,que fariam ruborizar-se um açougueiro? Hei de permitir
que me identifiquem,por exemplo,com este pederasta murcho que não teve nem
a coragem de realizar-se...?
E se lamenta:
Pensar que durante toda a sua existênciaa maioria dos homens não foi nem
sequer mulher!
Se miran,sepresienten,se desean
está quase integralmente escrito em "se': O que pode dar para supor
um "eles»,sim; mas pensemos também no ritmo de "se"impessoal:
SlBILA
Até que no dia menos pensado, a mulher que nos eletriza intensifica tanto
suas descargas sexuais, que termina por nos eletrocutar em um espasmo, cheio
de interrupções e curtos-circuitos.
e:
SIBILA
Jáa esta altura, a desestruturação da escritura opera também uma
redistribuição - não menos intensa -
ascuacanesninfómanos [...]
que malciernen inhímenesposuenos de podrelenguaamante (EM,p. 407)
áscuacães ninf ômanos [...]
que entrefecharn inhímenes de póssonhos de podrelíngua amante
venusafrodea
eropsiquisedas(EM,p. 421)
vênusafrodea
eropsiquissedas
SIBILA
Masturbio
más sacra carne carmen de hipermelosaspúberes vibrátiles de
sexotumba góndola
en lasfauces dei caucefuera de fértil madre dei diosemen
Mastúrbio
Mais sagrada carne carmen de hipermelosas ninfetas vibráteis de
sexoturnba gôndola
nas faces do leito fora de fértil madre do deussêmen.
acabando em:
su corola los muslos los tejidos los vasos el deseo los z umos que fermenta la
espera (EM, p. 426)
SIBILA
[...]
prostitutivamente(EM,p. 419)
SIBILA
"venusafrodea"["erotocà',vênusafrodea"].E ver o que é que ela diz
"de"sexualidade,como a diz.
Até que, ao final de En la Masmédula,sobrevémo "Cansaço"
... de la revirgísimainocencia
y de losinstintosperversitos
y de las ideítasreputitas
y de las ideonasreputonas(EM,p.459).
...da revirgíssimainocência
121
e dos instintos pcrversinhos
e das ideiazinhasreputinhas
e das ideiazonasreputonas.
Tradução:GêneseAndrade
SIBILA
HORIZONTES ABDUTIVOS
(RASCUNHOS NOTACIONAIS)
DécioPignatari
SIBILA
década de 1930 do século seguinte, quando, supostamente à beira da
penúria, vendeu a propriedade do casal a porteiras fechadas: os no-
vos proprietários fizeram uma fogueira no quintal, com a biblioteca
do filósofo.
Anota o Oxford Companion to Philosophy(edição de 1995) que,
de resto lhe dá grande destaque: ''Peirce was a difficult man, widely
perceived as an immoral libertine, prone to paranoia and wild mood
swings [...]».
Os esbulhos. William James ap ropriou -se do pragmatismo, 12 3
SIBILA
do sistema solar do pensamento não-verbal.E a última pilhagem em
data é tipicamente ignobrasílica,em função de nossos barbarismos
tradutórios: trata-se da expressão"abdução»e correlatos (no cinema,
na televisão,nos quadrinhos e nas narrativas de ficçãocientífica,ex-
traterrestres estariam "abduzindo"terráqueos...).
A Lógicae o Pragma.A dialética é a lógica das mudanças e meta-
morfosese o seu ponto-instante crítico-criativoé a mutação,presidida
pelo terceiro vértice da lógica metodológico-científica- criação de
124 Peirce - que é a abdução (os outros vértices são a indução e a de-
dução). Na faneroscopia (fenomenologiapeirceana), as coisas deste
mundo são classificadas em três reinos ou categorias: Primeiro,
Segundo, Terceiro (Firstness,Secondness,Thirdness).A Primeiridade
se caracteriza pela possibilidade, a espontaneidade, o sentimento
(feelíng)de qualidade e pelo bate-pronto monádico (uma certa cor
vermelha,por exemplo);o reino da Secundidadeimplica um conflito
da diático, tipo ação/reação;o da Terceiridade,seletivo e judicante, é
o mundo da generalização,da norma, da lei. Nesse sistema-processo
lógico de Peirce,desaparece a ruptura tradicional entre razão e emo-
ção ou sentimento, não sendo o sentimento senão um momento do
continuumlógico, justamente o locustempórico onde/quando opera a
abdução,que ficano lugar do que costumamoschamar de intuição,re-
velação,insight,adivinhação,inspiração,epifania,inconsciente,visão,
etc.Rebatendo-sesobre o sistemasobre a sua notávelcriação,que foi a
semiótica,temos uma relação diática conflituosaentre signo e objeto,
tal como se fosseprimeiridade versussecundidade,ou, hegelianamen-
te, tese versusantítese,que se resolvesempre em provisoriedadedinâ-
mica,pela interver1çãode um Interpretante (síntese),que reprocessaa
relaçãosegundo aportes repertoriaismúltiplos,para gerar significados
sob a forma de signosmais e mais elaborados,diagramaque se tornou
divulgado sob a forma estática triangular.
O significadode um signo é sempre um outro signo,de onde se in-
fere que se trata de uma relação de remetências, não de uma "coisa".
SIBILA
Assim como o sistema solar se move em direção a Veja,na cons-
telação de Lira, as constelações sígnicas peirceanas rumam para o
Begiff(conceito) hegeliano, que ele redenomina de Argumento, no
pólo do Interpretante. Interpretantes Finais são possíveis,metonimi-
camente, mas não o Interpretante Final, excetuada a hipótese divina
que, mesmo assim, para Peirce parece apontar para a concepção
hegeliana de um deus eternamente incompleto, sempre a formar-se,
chamado de Idéia ou Absoluto. Mas a relação básica Signo/Objeto
também se trifurca em Primeiro (ícone),Segundo (índice) e Terceiro 125
SIBILA
com o methodos,com o caminho, com o SerTao e com o SeinZeit-
Zeichen heideggeriano.
O Pragma em registro tempórico mostra, exibe e expõe o tempo
presente, ou os tempos presentes, como metonímia preferencial do
Tempo,ilhotas-píncaros de um arquipéLogo(s)aqui-e-agora,imerso
num continente passado e apontando para um cosmo futuro. Quanto
mais fugaz,o quase inexistentetempo presentemais habitado se torna
por gentes e coisas e signos e tempos. Locupleta-se de informação,
126 Buraco Branco da ordem a contrarrestar o entrópico Buraco Negro
ainda supostamente não humano, como se humano não fosse dizer-
se:''.Aliestá um Buraco Negro'~
E aqui a acupuntura existencialpode detectar, nas linhas indivi-
sórias das xifópagasVidaMorte,as vibrações abdutivasde um Nada-
Desespero e de um Nada-Liberdade,que nos raptam e seqüestra.m,
apanhando-nos no ar, como se fôssemos Idéias, que nos fazem, de
Transformados e Transformandos, Transformadores. Rumo a Veja,
que é, afinal o próprio rumo.
Tao e Heidegger.Esse SerTao não se confunde com a Morte. Só
pode ser em função dela, mas jamais sem Estar-em-Vida,ou nela ter
habitado. É um Ser-Não-Morte, embora se projete num Não-Ser-
Vida. Dizem que Lao-Tsénunca se apresentavaou aparecia,como se
não existisse- ou, se existisse,nunca estava.Radicaldes-aparecimento
do seu Da-Sein pa.ra os outros, forçoso aparecimento do seu Sein a
confundir com o seu Da-Sein-único-Sem-o-Outro.
Confrontado com o Sein-und-Zeitheideggeriano,o Tao responde,
corresponde, terminal: Sein ist Zeit. Tao é o vazio do vaso, o oco do
pote, a ação sem atos, a feitura sem feitos.Colocando radicalmente
a possibilidade de não-estar-se-aí, a absoluta possibilidade de não-
estar-se-aí, só resta o ser, o puro ser, um tudo-ou-nada ontológico,
que se abre para a liberdade abdutivado Ho1no-Cosmo-Natura, onde
um-é-o-outro, em infinitos rebatimentos do Ser... Humano.
Mudança, transformação, metamorfose, mutação: gradações da
SIBILA
luminosidade do horizonte abdutivo, sendo a mutação o momento
radical revolucionário da luz surpreendente - informação nova!
- para um povo ir1teiroou um só ser humano.
Para o Ocidente - e para o mundo, na paisagem de hoje - o fenô-
meno grego (incluindo o seu sortilégio sustentado, via Roma, pelos
latinos, pelo cristianismo e também pelos árabes) é o mais extraordi-
nário dos tempos históricos: os helenos foram mutantes.
Aleatoriamente, alguns grandes momentos de mutação civili-
zatória, cultural e/ou artística: Renascimento. Música austro-alemã 127
SIBILA
a música de alto repertório, também dita clássica, ou erudita, que não
teve altos momentos, como os teve a música popular (década de 1930,
bossa nova, tropicalismo). Logo, os bons nacionalistas: E Villa-Lobos?
Resposta: Bem audível.Mas grandes orquestras estão surgindo. E al-
guns bons cursos. Ainda seremos modernos.
Não são difíceis de discernir os parâmetros causais de natureza
histórica que rasgam os horizontes abdutivos, embora, na maioria
dos casos, a enumeração indiferençada não passa de insensível série
128 de rubricas destinada a obnubilar a verdade ideológica de uma apre-
ciação final qualitativa, mesmo quando se leva em conta o empuxo
quantitativo . De outra parte, não há, necessariamente, paralelismo de
ocorrências nos diversos campos afetados pelos surtos-invenção.
SIBILA
Mas há os grandes surtos ambíguos,como o Romantismo, o Sur-
realismo e o dos orientalismos ocidentalizados.
Na área da comunicação, muitos meios não atingiram o status
de arte: imprensa, telefone, telegrama rádio, televisão,publicidade,
quadrinhos, NET. São equipamentos midiáticospré e proto-artísticos,
como a função de caminhar em relação à dança. Fotografia,Cinema
e Design foram as artes nascidas da tecnologiaindustrial.
Os prodígios da escultura e da pintura renascentistas não en-
contraram correspondência na literatura, que já havia chegado ao 129
SIBILA
- vimos o verbal literário tensionado entre a extrema parataxe e a
extrema hipotaxe, fenômeno único na história da literatura ocidental.
Tornou-se claro para as minhas lucubrações, através dessa hiperme-
talinguagem criativa, que há um pensamento literário autônomo,
situado entre o verbal e o filosófico, o verbal técnico-científico e o
verbal midiático .
Conturbado e contraditório o vasto horizonte conhecido como
Romantismo, descortinado pela ascensão da burguesia, pela idéia
130 republicana e o declínio da aristocracia, com a indepe11dência ame-
ricana (que não derrubou a monarquia britânica) e a Revolução
Francesa (que assinalou o início do fim da monarquia francesa) e,
last but not least,a revolução industrial. Nas artes, foram fluidos os
seus limites e níveis de excelência . As origens e as primeiras correntes
estão na Alemanha e na Inglaterra, justamente os países que estavam
saindo na dianteira da revolução industrial - e que produziram os
primeiros grandes nomes da literatura romântica, de Goethe a Byron.
No entanto, embora influenciados pelas idéias de Rousseau, e logo
após, pelos ideais da Revolução Francesa, os românticos surgiram em
oposição ao racionalismo do iluminismo francês - mas, dois deles, os
maiores, Goethe e Puchkin, viriam a tornar-se os clássicos supremos
da literatura e da cultura de seus países, ao mesmo tempo em que,
nesse tempestuoso Aleph de paradoxos, a deusa republicana da Ra-
zão, elevada aos altares de Nossa Senhora de Paris, era posta abaixo
pelo cesarismo napoleônico! Waterloo abriu os portais do império
britânico e do surgimento dos novos países da América Latina, todos
republicanos, menos o Brasil, et pour cause:Portugal virara unha-e-
carne com a Inglaterra. O tardio romantismo francês não se ombreou
com o anglo-saxônico, na qualidade, mas, principalmente pela voz
de Victor Hugo, continuou a fazer visível e audível no horizonte o
fogo, o estrondo e a fúria da revolução, das guerras e - logo mais das
barricadas da esplendorosa república pós-romântica que iria nascer.
E o vagido épico do novo indivíduo que já havia nascido.
SIBILA
O Romantismoé a aura ideológicaque envolveo surgimentode
um novo indivíduona História:o indivíduodo individualismobur-
guês.O percurso trilhado pela democraciade origemburguesaestá
ligadoa uma mudançana escalademográficaesclarecida.A educação
é o antídoto ou freio da explosãomassificante.O indivíduoda clas-
se aristocráticaera a classe.Era um "bidivíduo»,um indivíduo com
consciênciade classe,cujos confrontos com a chamada sociedade
eram de natureza não-antagônica.A burguesiacomeçapor caracte-
rizar-se antes como indivíduo do que como classe,que se afirma à 131
SIBILA
e da república. Na fenomenologia do espírito, de Hegel, buscou a sua
escada de Jacó, melhormente nomeada escada de Abraão. Contudo,
no último degrau, percebeu que o seu sentido era para baixo, levava
a um absoluto que não era Deus, uma idéia desdeificada, um Deus-
não- Deus. Subiu correndo, apavorado, para a sua casa na praça
Nytorv, para defrontar-se com Regine Olsen, fraca em religião, mas
uma fúria em sua rebeldia contra o rompimento do noivado: era a
nova in-divídua que estava surgindo, enquanto ele se refugiava atrás
132 da melancolia romântica. Inverteu a fenomenologia hegeliana, como
outros grandes espíritos fariam depois dele (Marx, Peirce, Heideg-
ger) - fenômeno estranho! - e subiu os degraus que o levavam para
cima-dentro de si mesmo, pois o Deus único só podia implicar um
eu único, sendo, pois, não um Deus de todos, mas um «Deus de eus"
(tomo emprestada essa expressão a uma poeta paulista dos anos 1950,
hoje esquecida, Ilka Brunilde Laurito). Nascia aqui a ontologia de um
novo indivíduo da burguesia romântica, que iria atravessar muitas
fases e metafases (realista, simbolista, expressionista, cubista, abstrata,
estruturalista, concreta, marxista, existencialista, freudlacanista, glo-
balista, neolulista, etc., etc.). Nesse quixotismo humano/divino radical
e total, Kierkegaard obrigou Deus a encarnar-se no Eu e vice-versa,
ontologizando-o, ao mesmo tempo que o e SE levava a desencarnar-se
do estamento religioso oficial, cujo Deus não era e não é o Deus-Sein,
mas o Deus Da-sein.
O existencialismo francês, tranqüilamente sólido em seu ateísmo
de tradição e percorrendo a trilha de milho de seus grandes céticos e
dubitativos (Descartes, Pascal, Sade, a deusa Razão) trocou o tempo
pelo nada, a Angst pelo absurdo, o ser pelo Id. A psicanálise e o sur-
realismo causaram grandes danos ao pensamento, à arte e à poesia
francesas. Para cobrir a enorme lacuna, Lacan transformou a análise
em ontologia.
No seu ensaio~ "A Inteligência e o Cadafalso", Albert Camus tece
considerações sobre o que seria a repetição profunda, ou profundi-
SIBILA
dade da repetição,como característicado romance clássicofrancês,
e admira Madame de Lafayette,com a Princesade Cleves,pelo que
ele chama de ordem,embora,segundo ele,para ela importe menos a
ordem da sociedade do que a do pensamento e da alma, pois "quer
preserveo seu ser profundo"contra o grande inimigo,que é o amor.
Preliminarmente,devo postular que as construçõesfrásicasque ten-
dem à parataxe podem ser muito instigantes(caso dos manifestos
de Oswald de Andrade), mas também uma tática quase lógica para
suspender contextos, como que dando-os por consabidos,em seu 1
33
enfileiramentomeramente temático,que querem passar por asser-
tivas resultantes de uma argumentação(é o caso de Camus), o que
tambémpode ser tomado comodefiniçãodo aforismo.Assim,o amor
mencionadopor Camusnão é o amor,mas um certo amor,claramen-
te demarcado por balizamentosmorais,sociaise de classe,tanto do
período histórico em que se passa a narrativa, como do período e
da sociedade em que viviaa própria autora.E mais:esse amor tinha
nome genérico: chamava-segalanterie,rubrica elegante para uma
dança-de-cadeiraserótica entre esposose amantes.Recusando-se a
jogar o jogo e pela força de mal-entendidosque estão além de seu
controle - tema apreciadopor Camus - a Princesade Clevesespalha
desgraçasà sua volta,como aias da desgraçamaior,que é ela própria.
Amarga ironia da virtude ou indiciamento de uma corrupção de
costumesque um dia será rampanteo bastantepara derrubar cabeças
e coroas?A princesa entra em conflito com o ambiente social,mas
não com sua classe.Jamaispassa pela cabeçade seu "ser profundo»
a possibilidadede ser feliz fora dela. Ela é um indivíduo de classe,
precisamente.Um século após a morte de Madamede Lafayette,co-
meça a morrer sua classe,com sua concepçãode indivíduo,para dar
lugar a outro, também debuxado pela pena de uma outra senhora,
Madame de Stael.Temosentão Corinne,que se apresenta como um
eu em fase de afirmaçãopessoal,antes de um eu burguês, de classe
em ascensão.Diferentementedo anterior,esse eu muita vez entrará
SIBl LA
em conflito com sua própria classe - e esse conflito será antagônico.
Estria aí o homem revoltado, de Camus?
Leiamos esses dois eus,cotejando pequenos fragmentos de ambas:
SIBILA
fício de Isaac por Abraão,a comando de Jeová.Jó se rebela,sentado
num montouro de esterco (mesmo sem o lixo, a obra magníficade
Georgesde la Tour é uma meditaçãotrágica), mas tem de submeter-
se ante a apavorantehistória do Leviatã.Abraãocumpre, dentro do
seu labirinto de questões irrespondíveis.Nasce,porém, de e nesse
sinistro aranzel,uma frase que é o nódulo de onde brota o autêntico
existencialismo- não apenasa sedutora e capciosapostulaçãode que
a existênciaprecede a existência:"Sua dor era sua única segurança':
Ou:"Suador era sua única certeza".Pedi,e amigospesquisadoresme 13
5
deram, a frase em dinamarquês:"Smertener ham Forvisningen". Vou
gravá-lanum espelho.
Faz falta, muita falta, um grande estudo, com célula-tronco e
ramificações,da ideologiado Romantismo,que pode acoplar-seao
chamado idealismoalemão,mas que dele não deriva,não só por que
o antecede,mas porque ele próprio,o Romantismo,e a ideologiafun-
dante da burguesiavitoriosa...que continua vitoriosa!
SIBILA
OS EXCESSOSCONTEMPORÂNEOS
DE AUGUSTO DE CAMPOS
SérgioMedeiros
SIBILA
Recentemente,intrigado com esse"não"prateado (a quarta capa
exibe uma cortina rasgada de letras, ou um impertinente móbile
colorido, e poderia ser classificadade psicodélicae anacrônica, o
que confereum estranho sabor à leitura desselivro de 2003), decidi
reler as duas outras coletâneaspoéticasde Augustode Campos,Viva
Vaia(1979)e Despoesia(1994),e constateique haviaconstruído;sem
me dar conta disso, uma imagem falsa do poeta paulistano,vendo-
o sob a máscara de um antigo"mártir da escrita':à maneira de um
torturado Flaubert (que precisavade muitas horas de trabalho para 137
compor uma frase),por conseguintecomo um autor que,movidopor
escrupulosovagar,compõee publicapouquíssimo.Ao mesmotempo,
verifiqueique essa é a imagem oficialde Augustode Campos,auto-
rizada por ele próprio, a julgar por certas declaraçõessuas incluídas
em seus livros, conformediscutirei.
A sua obra, então,me pareciapequenacomo a de um K.P.Kaváfis,
digamos,mas agora constatoque ela é ilusoriamentepequena (além
de livros, o poeta lançacds,fazshowsetc.), como a de um Borges,cuja
produçãocabiainicialmentenum só volume,o qual,com o passardos
anos,após o falecimentodo autor,foicrescendoe se desdobrando em
vários outros, de modo que hoje sua Obra Completa abarca vários
volumes alentados.Embora o próprio Augustode Camposjá tenha
afirmadoque produzir três a quatro textospor ano é excessivopara os
seus critérios,visto que"não há razãopara pressa,:não me pareceque
sua obra poética sejarealmentebreve,conformeele gostade propalar
quando fala de si mesmo(apresenta-secomo"alguémque é tão breve
e produz tão pouco"),insinuando que adota a subtração,o silêncio,
em detrimento da adição,do excessoneobarroco e contemporâneo.
Creio ser possívelpôr em dúvida essa apreciação,citando um único
fato: todas as coletâneasque Augustopublicou contêm,ao lado dos
textos poéticos da sua própria lavra, várias páginas de tradução,de
modo que, conforme comentarei mais à frente, versão e criação se
confundem na sua obra. Diria que seusváriosvolumesde traduções
SIBILA
(Ezra Pound, Joyce,Dante, Maiakóvski,Mallarmé, Blake,John Don-
ne, Valéry,Hopkins, Rilke... ) também fazem parte da sua produção
poética, não há porque separar a tradução de poemas da criação
poética propriamente dita. Se reunirmos tudo isso, constataremos
que o número de poemas que ele assina como autor e/ou tradutor
é considerável,até impressionante. Não é esse, porém, o maior dos
equívocos que cercam a recepção da sua obra no Brasil.
O maior equívoco consiste em avaliar sua poesia considerando
138 apenas as páginas impressas que compõem as três coletâneas citadas.
Sua poesia há muito vem sendo divulgada por outros meios, além
do livro. Um exemplo é o cd Poesiaé Risco,de 1995, uma antologia
poético-musical tão importante para entender seu percurso poético
quanto os seus livros. Não por acaso, aliás, um cd-rom acompanha
Não, prova de que, neste último lançamento duplo, a sua "poesia
migrou para o universo digital animado - a poesia em cor e mo-
vimento, que sempre me fascinou e que agora está ao alcance dos
meus dedos" Gostaria de sublinhar, nessa breve citação,o emprego
1
•
SIB ILA
nio Rodrigues, Volta. (Não pude, porém, reouvir esse disco enquanto
escrevia este artigo, o que lamento.) A última reedição de Viva Vaia,
publ icada em 2001, modernizou-se e, ao invés de um vinil, trouxe
um cd com 15 faixas, algumas inéditas, outras saídas do cd Poesia é
Risco, que contém oralizações do próprio Augusto de Campos - ele
assumiu, como se percebe, a voz de seus textos, não relegando a ta-
refa só a terceiros. A coletânea de 1994, Despoesia,não contém disco
ou cd encartados, mas dá ensejo a outro tipo de migração poética,
de que cito dois exemplos: reproduz, em cores, um curioso perfil de 139
Maiakóvski (assemelha-se a um membro da Família Buscapé) que já
havia aparecido na coletânea anterior e propõe uma tradução para um
texto de Khliébnikov que reaparecerá, com o colorido espalhafatoso
de um grafite urbano, na sua coletânea posterior, Não.
Os parágrafos anteriores deixam entrever um complexo diálogo
entre o poema de Augusto de Campos e as mídias contemporâneas à
disposição do poeta, por onde circulam a palavra, o verso e a imagem
da sua obra que se quer verbivocovisual. Um conhecido poema de
Viva Vaia, "O pulsar" (musicado, como sabemos, por Caetano Veloso),
impõe-se imediatamente ao olhar por seu visual engenhoso: numa
folha dupla, escura, representando o cosmo, percebemos palavras
brancas que encerram estrelas e esferas, as quais decrescem (as pri-
meiras) e aumentam (as últimas) à medida que os versos se sucedem
na página. Trata-se, é óbvio (não discutirei aqui sua oralização) de
uma poesia verbovisual ambiciosa, mas, se nos concentrarmos no seu
aspecto verbal apenas, o co11teúdo da estrofe de sete linhas parecerá, à
primeira vista, um momento neo-romântico de Augusto de Campos,
vazado numa forma despretensiosa (essa forma me tocou na adoles-
cência, mas hoje me deixa insensível): "011de quer que você esteja/
Em Marte ou Eldorado / Abra a janela e veja / O pulsar quase mudo
/ Abraço de anos luz etc:' Quando releio esse poema me dou conta
de que Augusto nunca temeu ir "do luxo ao lixo': para usar uma locu-
ção que lhe é cara (ela aparece, por exemplo, na orelha de Despoesia,
SIBILA
assinada pelo próprio poeta, como um programa estético). Sabemos
que o concretista de São Paulo decretou o fim do verso e sobreviveua
esse decreto como, digamos, tropicalista.Agora ele parece se dedicar
a escrever o verso depois do fim do verso, um verso paródico, um
arremedo de verso, um "caldo ralo» poético. Se essa interpretação
estiver correta, creio que poderemos louvar a coerência e o alcance
do projeto estético de Augusto de Campos1 • Os versos simples são
contudo pretensiosos e buscam abrigo numa refinada forma visual,
140 como se eles se ressentissem de sua íntima pobreza. Ou seja, temos
aqui uma espécie de poesia-valise,que empacota numa mesma pági-
na duas linguagens (a estrofe verbal original e a sua tradução visual
posterior), a fim de alcançar por esse meio (um luxo feito de lixo) uma
expressão mais complexa,quiçá mais eficaz(dentro da perspectiva de
unir o experimentalcom o neo-romantismo popular), que,entretanto,
não logra ocultar uma fissura entre forma e fundo, uma dualidade,
um descompasso entre a natureza do original e o neobarroquismo da
tradução almejada,que é sempre,neste caso,enriquecimento externo,
excessomaterial. (Talvezisso ocorra porque já não é possívelescrever
um verso depois do fim do verso sem essedistanciamento entre forma
e fundo. Mas se o "defeito»do poema não puder ser justificado assim,
talvez se possa aplicar a Augusto de Campos a sua própria recrimina-
ção contra Apollir1aire,um poeta que, segundo afirmou,"acabou por
deixar-searrastar, na prática,para uma concepção no fundo simplista
e superficial,ao querer limitar as conseqüênciasdo ideograma poético
à figuração do tema através de um artificioso arranjo tipográfico''l.)
Falei atrás de "luxo feito de lixo»,a descrição exata de um dos
poemas mais importantes de Augusto de Campos, da fase áurea do
SIBILA
fim do verso, "Luxo,,,de 1965, no qual o diálogo entre o poema (neste
caso, reduzido a duas palavras apenas: lixo e luxo) e a sua tradução
visual ( o lixo é escrito em letras graúdas, as quais são enchidas com
outras letras bem menores, ostensivamente kitsch, que formam a pa-
lavra "luxo,: repetida numerosas vezes), parece perfeito, o fundo e a
forma são indissociáveis e as duas palavras, o lixo e o luxo, reversíveis
ou especulares, o luxo é um lixo e o lixo é um luxo. O momento cul-
minante do poema é a e11ormeletra "x,, de lixo, com braços erguidos
nos quais está tatuada uma sucessão de "luxos" que se aproximam e 141
4, Lendo os primeiros poemas do autor, quando o verso era o seu único meio de expressão,cha-
mou-me a atenção frases"góticas"que anunciam talvezum discípulo de Augusto dos Anjos e o
futuro mestre da poesia kitsch, o Augusto de Campos neobarroco, excessivoe sensacionalista,
que estou con1entando neste artigo: "Estas bocas sem lábios que ainda vomitam sangue / E
devoram devoram outros crânios escuros";"Que esmaga a cabeça grave contra um muro de
carne/ E com o sangue que jorra e as duas mãos/ A recompõe direita entre as espáduas";"As
unhas saem dos dedos./ Os dedos saem das mãos./ Cavem a terra cavem:'; "Tu és o suicida
dos teus braços,/ O morto sem epitáfio,/ Eu túmulo e te abrigo:'; "Morto/ enterrei-me no
meu corpo."
SIBILA
do livro Viva Vaia., como o elegante e sóbrio "pluvial/fluvial" (o lado
apolíneo de Augusto de Campos), feito do diálogo e cruzamento es-
pecular entre essas duas únicas palavras, que caem verticalmente (a
primeira, várias vezes repetida, sugerindo a chuva) e depois escorrem
horizontalmente (a segunda, também várias vezes repetida, o fluir do
rio que as chuvas alimentam); ou, ainda, o belo "código': um dos meus
favoritos, composto dessa única palavra, escrita como um poderoso
labirinto, uma casa-marca, uma casa-logotipo construída para nela
142 nos perdermos cheios de admiração5• Também me parece notável o
poema sem palavras "Pentahexagrama para John Cage",onde as seis
linhas do I Chingfuncionam como uma pauta musical.
Mas Não, a nova coletânea de Augusto de Campos, é basicamente
um livro de versos (tenho a nítida sensaçãode que são na verdade não-
versos, alguns muito fracos, como os do poema i11fantil"arco-riso"),
co1n uma ou outra exceção:veja-se o poema "desespelho': composto
dessa palavra duplicada especularmente, o poema que mais apreciei
no novo livro (considero-o um belo emblema da dialética da melhor
arte do autor, aquela que, como um espelho,confronta duas palavras,
as quais se deformam, imbricando-se), ou o "não" prateado da capa,
já comentado6 • Viva Vaia me parece muitíssimo superior, inclusive
supera Despoesia,quase todo composto de não-versos e glorificando
a arte feita de cacarecos ("brilhar pra sempre / brilhar como um farol
/ brilhar com brilho eterno / gente é pra brilhar / que tudo mais /
vá pro inferno / este / é o meu slogan / e o do sol" - aqui, conforme
me foi sugerido por um leitor do poema, o comunista Maiakóvski é
inesperadamente soterrado nas letras de Roberto e Erasmo Carlos e
de Caetano Veloso),mas almejando ostentar um "luxoxo"verbovisual
5. Julio Plaza parece ter conferido a esselivro uma qualidade gráficaque o computador,tal como
usado por Augusto em Não,ainda não conseguiu fazer.
6. Não sei se concordaria com Augusto de Campos que, no prefácio a Não,afirma:"O fato é que
estes poemas caberiam melhor talveznuma exposição,propostos como quadros, do que num
livro''.
SIBILA
nem sempre convincente ... Uma exceção é a versão computadorizada
do "poema bomba': uma explosão de letras que anunciam um princí-
pio-fim da arte sob um fundo cósmico que arde.
Despoesia e Não também homenageiam o poeta norte-ameri-
cano e.e. cummings, um dos "precursores" de Augusto de Campos.
Confrontar essas duas homenagens poderá esclarecer eventuais
pontos obscuros da discussão precedente e resumir numa espécie de
síntese tudo o que foi dito a respeito do método poético de Augusto.
No primeiro livro, o poema "so l(a (cummings)" contém um poema 143
do mestre norte-americano acompanhado da sua tradução para o
português, ambos impressos lado a lado, segundo aquela estrutura
especular tão cara ao poeta e tradutor brasileiro, já comentada atrás:
o texto em inglês (constituído de poucas palavras escritas imbricadas
umas nas outras: loneliness/aleaffalis) mira a versão brasileira, igual
e diferente, reflexo num espelho infiel (solitude/1 folha cai). O poema
de cummings não é reproduzido tal como este foi publicado, com
comovedora economia de meios, na abertura da coletânea 95 Poems,
de 1950,mas se apresenta extravagantemente kitschcom suas grandes
letras retorcidas que receberam uma aplicação de dois tons de verde
- sem dúvida, o novo designdo poema é também uma tradução visual
dele, mas incomoda, pois o termo kitsch,ou trash,se é apropriado para
o resultado neobarroco alcançado por Augusto de Campos nas suas
composições pós-concretas, como esta, não parece adequado à esté-
tica cummingsiana, muito mais sutil, sóbria e econômica, e, portanto,
alheia aos excessos contemporâneros do poeta brasileiro. Confesso
não entender muito bem a intenção dessa tradução dupla, ao mesmo
tempo verbal e visual, que cria um novo produto, mais típico da junk
art de Augusto do que da visualpoetry de cummings.
O cummings de Não, homenageado no poema "pérolas para
cummings': recebe na página azulada em que vem impresso - "que
m(o)tiv(o) (o) lev(o)u a viver j(o)gando pér(o)las para p(oo)c(o)s)"
(sic)- pequenos desenhos de pérolas no lugar de certas letras, proce-
SIBILA
dimento que já aparecia,como sabemos,em "O pulsar': onde esferas
e estrelassubstituíam vogais.O kitsché tão serenamente utilizado em
"pérolaspara cummings,,que quase me convençode que devoler essa
homenagem como uma declaração contra cummings e uma afirma-
ção da tendência atual da poesia impressa de Augusto de Campos
(entendo que a radicalidade do cd-rom deverá ser discutida à parte,
em outro artigo): o apolíneo da fase pós-modernista e concreta, que
gerou textos e imagens sóbrios e elegantes,cedeu de vez lugar à fase
144 do "luxoxo':carnavalescae dionisíaca, excessivae, por isso mesmo,
contemporânea e neobarroca. É assim que entendo o "não,,prateado
de Augusto de Campos. Um não a e.e.cummings.
SlBILA
RUDEZADE ARGUMENTOSEM
TORNO DA PEDRADE DRUMMOND
Luís Dolhnikoff
SIBILA
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra
46
1 O poema começa pela repetição do seu 12 verso, sem quaisquer
variações além daquelas determinadas pela própria repetição - o que
seria paradoxal se não se tratasse de poesia, e, mais ainda, de um poe-
ma magistral,no sentido denotativo,ou seja,de um mestre da sua arte.
O aparente paradoxo se aclara qua11dose atenta para o 2 2 verso, que
começa pela repetição da metadefinal do 12 , ou seja, do que se acaba
de ler, e não, portanto, de todo 12 verso conforme aparece original-
mente. Isto determina que a metade inicial do 12 verso seja repetida
na metade final do 2 2 (gerando um efeito mimético ao da expressão
"andar sem sair do lugar").
O mesmo não ocorre entre o 2 2 e o 32 versos. E por um bom mo-
tivo: a metade final do 22 verso sendo a metade inicial do 12, o 32 é a
metade final desse 12 verso, que acaba repetido por inteiro, em sua
ordem original, através do enjambementassim criado (e que se torna
uma "queda"no mesmo lugar...). O que, por fim, prepara a repetição
não repetitiva, se se pode dizê-lo, do 12 verso em si mesmo como 42
verso e fecho da estrofe.
O resultado, para muito além da mera repetição automática e
invariável de um verso, é uma parada sintática: avança-se na leitura
(pela não repetição automática, invariável, da frase ao longo dos
versos), mas não se sai do lugar frasal (pois afinal a frase é em si a
mesma). Ao mesmo tempo, há uma parada semântica, porque o po-
ema diz justamente que era impossívelprosseguir, pois "no meio do
caminho tinha uma pedra".Portanto, a estrutura do poema realiza o
SIBILA
que o poema diz. Isto é muito mais do que uma descrição (daí não
ser por acaso o poema não explicitarser impossívelprosseguir,mas
fazê-loafirmando a presençairredutívelda pedra),muito mais do que
uma evocação e muito mais do que qualquer metaforização"aberta':
como tantos pretendem. Isso é a reprodução, na matéria do poema,
daquilo que o poema refere.De certa forma,o que Drummond realiza
aqui, disfarçado sob a levezado coloquialismoda frase central,é um
dos objetivosmaiores da poesia em todos os tempos.
Pois o que diferencia fundamentalmente a poesia de outras lin- 1
47
guagensverbais é o uso,pela poesia, de incontáveisrecursos formais
e semânticos que, quando bem articulados, produzem uma aproxi-
maçãodo texto à realidadedas coisasconforme pode ser percebida
por nossa experiência,o que outras linguagensverbais,co1noa prosa,
não podem lograr (mas apenas descrever e referir). Sejam as coisas
da emoção ou do próprio mundo. No famoso poe1na de Verlaine,
"Chanson d'automne': enquanto certa tristeza difusa que a estação
evoca impregna todo seu campo semântico (soluços longos,coração
ferido, langor,monotonia), o próprio ritmo oscilante das folhas que
caem é reconstruído pelo ritmo rápido dos versos associado ao seu
campo fonético,feito de consoantesnasais e vogaisfechadas:ou seja,
sons longos,"lentos,,,e tom grave, baixo.Não é por acaso,portanto,
que tudo caminhe (ou caia...) rumo à confluênciado último verso,em
que o poeta, depois de um verso que se resume a - e o poema sintetiza
em - "aqui,além" ("deçà,delà"),diz-se explicitamente"semelhanteà
folha mortá:
Lessanglotslongs
des violons
de /'automne
blessentmon coeur
d'unelangueur
monotone.
[...]
SlBlLA
Et je men vais
au vent mauvais
quz. memporte
'
deçà,de/à,
parei/ à la
feuille morte.
l(a
le
af
fa
ll
s)
one
l
.
1ness
SIBILA
•
SIBILA
metáforas da condição do homem moderno (bastaria citar o livro
capital de Camus intitulado O Mito de Sísifo,e que não se refere a este
personagem em si, mas, justamente, à condição moderna), então fica
evidente do que aqui se trata.
A grandeza do poema de Drummond nada tem a ver, portanto,
com o modernismo enquanto tal, no sentido de que, se a liberd ade
formal modernista o permitiu, seu resultado, suas características
maiores, como linguagem poética, têm um significado que transcen-
150 de o movimento.
Em termos estritamente gramaticais, os primeiros versos são
claramente modernistas, pela presença do coloquialismo, bem como,
em outros termos, pela repetição não-repetitiva e a conseqüente não -
metrificação. Ora, num segundo momento, o poema retoma a dicção
e a visão da lírica tradicional. E desses impessoais, antilíricos versos
centrados no objeto do início, passa a versos centrados no eu-lírico:
"Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas re-
tinas tão fatigadas".Há um óbvio retorno ao passado da poesia, pela
primeira pessoa, pelo vocabulário, pela métrica (dois versos alexan-
drinos), para em seguida haver um retorno à poesia modernista, a
poesia que então se criava. Por um lado, há aqui um espelhamento (e
um espalhamento), ao nível das diferenças estilísticas entre os versos
modernistas e passadistas, da tensão entre o passado do tempo verbal
de "tinha uma pedra" e o presente de sua repetição. Por outro lado, ao
retornar abruptamente, no final, ao modo modernista, Drummond o
põe em compasso de espera.
Pois ao rematerializar o que diz, com esses últimos versos, após
revisitar versos líricos standard,que nada materializam, mas tudo re-
ferem, o poema aponta para a grande diferença entre a lírica antiga e a
nova: aquela mais descrevia, mais 1netaforizava,mais lamentava, logo,
era menos poética, a despeito de todas as formas fixas (e apesar de
exceções como a Chansonde Verlaine), enquanto a nova poesia mate -
rializa, o que ao mesmo tempo a conforma à modernidade e procura
SIBILA
levar a termo a arte da poesia, que é fazer, poíesis,isto é, materializar.
Porém, nos mesmos versos finais em que demonstra assim tal poder
e superioridade da poesia moderna, antilírica, em relação à lírica an-
tiga, Drummond .Parece antever que as novas liberdades formais da
poesia logo a levariam a impasses. Não se trata de premonição, mas
de intuição. Uma intuição que não foi apenas de Drummond, porque
afinal inteiramente pertinente, mas que ele transfor1nou em poesia de
um modo superior aos seus pares. Ao se abrir para outros caminhos ,
a poesia também teria de se deparar com outras pedras. A situação 15 1
SIBILA
A MORTEDE SOPHIA
RichardZenith
SIBILA
foi ela que orientou a minha escolha. Ou melhor, chumbou a minha
escolha e "mandou-me» traduzir, em primeiro lugar,"Escrita 11":
153
Eu já tinha reparado na quase ausência de livros em sua casa.
Claro que haveria uma ou duas salas cheias de livros ao fundo do
longo corredor, mas não era de livros que a sua poesia se alimentava.
E a "sala grande" onde escrevia, tanto podia ser uma verdadeira sala
como uma praia, uma praça ou uma esquina da rua. Nem precisava
de caneta, pois "escrever': para ela, equivalia a "dizer","testemunhar':
(( '
pro1essar , crer .
))(( ))
SIB 1LA
que cada um tece:' O reino está dividido e nós "procuramos reuni-lo,
procuramos a sua unidade, vamos de coisa em coisa':Estas frases são
retiradas de "ArtePoética - 1': em que Sophia conta a sua visita a uma
loja de cerâmica em Lagos,em agosto,loja essa que ela diz ser "como
uma loja de Creta': Ali compra uma ânfora de barro, "igual a todas as
outras ânforas...mas que nenhuma repetição pode aviltarporque nela
existe um princípio incorruptível':Põe a ânfora de barro sobre o muro
em frente ao mar. Observa:"Elaé ali a nova imagem da minha aliança
154 com as coisas. Aliança ameaçada. Reino que com paixão encontro,
reúno, edifico.Reino vulnerável.Companheiro mortal da eternidade':
Traduzi "Arte Poética - 1': E "ArtePoética - 11':Acabei por traduzir
toda uma antologia de poemas de Sophia, que colaborou comigo.
Assim passamos inúmeras tardes e noites em sua casa, ou no jardim,
a trabalhar. Ou a conviver? Não havia uma clara distinção entre as
duas atividades. Como também não havia, para ela, muita distinção
entre a Grécia e Portugal, Creta e o Algarve,os deuses e Deus, a poesia
e a vida. Ia "de coisa em coisa': unindo, ou reunindo, tudo que podia
com o seu vasto olhar.
Depois da tal antologia ter sido publicada, continuei a visitá-la
em sua casa, que eu sentia como um espaço vagamente sagrado,
pois todos os objetos que a habitavam - os desenhos do Almada, as
pinturas de Viera da Silva,os azulejos do Xavier,as peças da faiança
indo-portuguesas, os móveis,as fotografias,as plantas - me pareciam
ter alma, graças à relação mítica que a Sophia cultivava com elas e
com a vida.
Numa dessas visitas,deu-me - num gesto espontâneo - um jarro
de barro preto, "igual a todos os outros': uma cópia de um certo jarro
que se fazia em Portugal no século x1v.Levei-o para casa e coloquei-
º sobre o piano, em frente da janela. A minha imagem da Sophia. A
minha aliança com a sua memória e com a sua fé. A fé que não sei
se tenho, mas não será culpa sua se não tiver.A Sophia ensinou bem
a sua lição.
SIBILA
SIBILAS
Sophia de MelloBreynerAndresen
Do livro "Coral(1950)
SIBILA
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ELSELASKER-SCHULER
Cláudia Cavalcanti
SIB ILA
jogo")e Gottfried Benn, a quem chamou de Giselheernos poemas a
ele dedicados.Ao contrário deste último, cujos versos àquela época
eram povoadospelaexperiênciacomomédicode doençassexualmen-
te transmissíveis,além de aliados ao programa do expressionismo,a
poesiade Lasker-Schüler,autobiográfica,tem basicamentecomo tema
o amor e é marcadapela melancolia.Aspalavrasinventadas,as rimas
criativas e a melodia de seus versos,além de desafiaro trabalho do
tradutor, conferemsuavidadee levezaà língua alemã.Externamente,
sua poesia difere da produzida por seus contemporâneosexpressio- 159
nistas, mas têm em comum a necessidadede romper com modelos
antigos e a conseqüenteliberdade de criação.
Sua vasta obra inclui prosa, teatro e prolífera correspondência,
além de ilustrações. Em 1933Else Lasker-Schülermuda-se para a
Suíça,e, em 1939,para a Palestina,onde morre seis anos depois.
SIBILA
POEMAS
ElseLasker-Schüler
160 VOLLMOND
SIBILA
LUACHElA 161
SIBILA
UND SUCHE GOTT
SlB lLA
E BUSCO DEUS
Cansa-me a letargia,
Sei somente do semblanteda noite.
Temo o amanhecer,
Que tem um rosto
De pessoas que perguntam.
SIBILA
DER LETZTE STERN
SIB ILA
A ÚLTIMAESTRELA
SIBILA
MEINE MUTTER
SIBILA
M INHA MÃE
SIBILA
EIN ALTERTIBETTEPPICH
Strahl in Strahl,verliebteFarben,
Sterne,die sich himmellang umwarben.
SIBILA
UM VELHOTAPETETIBETANO
Tradução:Claudia Cavalcanti
SIBILA
ERNST JANDL
Fabiana Macchi
SIBILA
peças de teatro, "ópera falada",traduções, crítica e ensaios sobre lite-
ratura, estética e poética.
Vários de seus poemas utilizam recursos visuais,sem os quais a
percepção do conteúdo é apenas parcial (1944-1945).Não apenas o
espaçamento da página é usado como recurso poético, às vezes Jandl
utiliza a seqüência das letras do alfabeto como referência temporal,
como processo de transformação.
A sonoridade é um elemento fundamental em vários poemas
de Jandl. Ele foi o poeta das leituras, das performances, várias ve- 17 1
SIBILA
POEMAS
ErnstJandl
CAMPlNG
ein zelt
•
em messer
drei leichen
den papa
diemama
und seinen bruder rudi
er erbt
alies
ein zelt
•
em messer
drei leichen
SIBILA
~AMPING 173
uma barraca
uma faca
três corpos
um menininho
procura
o papai•
a mamae-
e o seu mano caco
ele herda
tudo
uma barraca
uma faca
três corpos
SIBILA
CALYPSO
werdewimen
174 arr so ander
so quait ander
denn anderwo
wenn de senden
mi across de n1eer
wai mi not senden wer
ich wulld laik du go
SIBILA
CALIPSO
uér de uímem
ar so diferent 175
so quait diferent
de onde estou
se eu anderstend
meni lengüedgis
quero anderstend
também lengüedgiin riô
se dei send
mi across de mar
uai mi not send uér
eu ud laik tu go
SIBILA
yes yes de senden
mi across de meer
wer ich was not yet
ich laik du go sehr
SIBILA
yes yes dei send
mi acrossde mar
uér eu was not yet
eu laik tu go já
ao brasil
ud eu laik tu go
SIBILA
178 1944 1945
krieg krieg
krieg krieg
krieg krieg
krieg krieg
krieg mai
krieg
krieg
krieg
krieg
krieg
krieg
krieg
SI 8 1LA
1944 1945 179
guerra guerra
guerra guerra
guerra guerra
guerra guerra
guerra maio
guerra
guerra
guerra
guerra
guerra
guerra
guerra
SIBILA
•
•
•
•
CONTO*
Hélio Oiticica
brn 22/nov./69
* Este texto (classificado/intitulado por Hélio Oiti cica. de "conto") foi escrito em Brighton ,
Inglaterra, no período em que se encontrava como artista residente na Sussex University.
Seus temas e referências , no entanto, estão diretamente ligados ao período vivido por ele na
Mangueira e suas imediações, entre 1964 e 1968: o Maracanã, o lendário estádio de futebol
que fica próximo àquele morro e à linha ferroviária da Central do Brasil, que atravessa o
subúrbio do Rio; as imediações da Mangueira e seus "bairros" aparecem na referência à sua
rua de chegada - a Visconde de Niterói - e em alguns locais do interior da própria favela,
como a fábrica Cerâmica Brasileira (onde a escola de samba passou a ensaiar nos anos 1960),
a ponte da Mangueira e a Candelária; vizinha à Mangueira, havia a favela do Esqueleto, no
mesmo local em que hoje se encontra a Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, e o
texto se remete ao período exato em que a favela estava sendo ren1ovida pelo governo Carlos
Lacerda, restando no local apenas "o esqueleto do esqueleto do esqueleto"; por fim, destaca-se
o bairro vizinho, Vila Isabe l, com referências a Noel Rosa, à garage1n de ônibus no Boulevard
28 de Setembro e à praça Barão de Drumond. Oiticica faz alusão também ao seu trabalho
Barracão,cuja teoria foi apresentada em texto homônimo, ao lado de outros dois, publicados
na Revista de Cultura Vozesum ano depois (1970 ): As Possibilidadesdo Crer Lazer e LDN. No
início do texto, há também uma referência a um famoso bandido da favela do Esqueleto, o
Cara de Cavalo. Seu assassinato inspirou Hélio a fazer um de seus bólides mais conhecidos
(Caixa 18, "Homenagem a Cara de Cavalo': 1965-66). (Nota de Fred erico Oliveira Coelho).
SIBILA
esqueleto-esqueleto do esqueleto do esqueleto do
esqueleto5atacumba caveira Caveirinha Cara de
Cavalo e--seo ensaio na Cerâmica terminou o pulo
Pela linha do trem para o esqueleto esqueleto
Esqueletonão sei se a paisagem e a ponte escura
Sobre o rio que nunca vi de tão sombra que se
Míngua nas sombras tumbas das casas barracões
(seria a origem do Barracãoo esqueleto do
esqueleto do Esqueleto) onde paixões dormem ou
comem os restos dos mortos pois o ensaio acabou
na Cerâmica e os mortos estão dormindo mas eu
ando e vejo escuto o porque da tanta avidez de
tanto silêncio se o ensaio acabou e porque dormem
e porque a ponte sobre o rio a rua vazia à
sombra do estádio e seria o mesmo que sentiam em
Roma quando o Coliseu coliseavasombra umbra
Catacumba ou samba (que ritmos correm não me
lembro agora mas não corro apesar da sombra pois
ninguém vem todos dormem e medo nunca tive então
ou não o descobrira porque sambeavam cálulas
mentais) ou era a hora de vir o ônibus ou estariam
buseando nas garagens ou à espera não sei de que
mas não não na praça Barão de Drumond eles não
dormem só os oitis de Noel ou os pequenos burgueses
em paz mas ônibus omnibus para todos dizem mas se
chego à rua algo deve vir se não de lá ou dos altos
montes mas que descem e trazem os que não dor1nem
pra baixo onde o samba acabou e eu pulei o muro
para linha de trem para ponto para o labirinto
esqueleto que dorme e chupa os ossos de mortos ou
vivos e já é silêncio na Candelária não a de baixo
mas a Candelária morro ensaio cerâmica sambâmica
SIBILA
gosto de leite de onça e chinfra legal Visconde de
Niterói mas dói saber que ou era ingenuidade ou
Têmpera do tímpano estar lá e não ver mas verouvir
Ouvir não sei que ritmos corriam ou que horas
Seriam seriados ou não ou se era o silêncio do
Estádio da quadra do trem do ônibus da gente que
Dorme e chupa os ossos mortos ou o mato que cresce
Entra e desce e permeia o vulcão do esqueleto
Esqueleto maloca toca Noca com cara diabólica
(onde está ela agora ou só na memória ou folia)
não sei se era morro Noel ou esqueleto esqueleto
que me afligiam ou se o gozo ritmo do que permeava
células corporais ou mais ou o sal saliva suor
pular a linha do trem correr ventar da praça Barão
de Drumond oitivar noelses (um vento areia me
enguliu um dia) mas corro ouço motor ou vento de
onde vem não sei e não me lembro que ritmos
pensavam quando atravessei a ponte tábua sobre o
vão rio umbroso onde todos dormiam taba tabu
floresta da imaginação maloca dos índios dos
puros pruridos dos gritos manhas choros nas manhães
sem sol ou brasardente cadente sol sol sol
esquelético no esqueleto na ceramicação ou no trem
ou no dia a dia dia dia mas o barulho de motor vem
de longe na noite da praça Barão de Drumond ou sete
ou dos altos distanciamentos sobre o asfalto cimento
"suave é a noite" o corte giletinoso andar-correr
ventar brisar sobre a ponte rio ossos esqueleto
esqueleto esqueleto "esquece-me, não voltes mais ..:'
lanço lampejo imagem-foto-cartão-cor color calor
sabor aromaesqueleto do
esqueletoesqueletoesqueletoesqueletoes
SIBILA
NA TRILHADA NAVILOUCA
Entrevistade LucianoFigueiredoa EucanaãFerraz
e RobertoConduru
SIBILA
EF/Rc: Fale um pouco sobre a revista Navilouca.
LF: Navilouca, que tinha o subtítulo Almanaque dos Aqualoucos,
primeira edição única, foi um projeto editorial que agregou artistas de
várias áreas: poetas cineastas, artistas plásticos, músicos, de maneira
diferente das publicações independentes da época, pelo menos no
modo como Torquato Neto e Waly Salomão pensaram e organizaram
todo o projeto. A imprensa alternativa se intensificava em resposta
à falta total de liberdade de expressão que se vivia sob a ditadura
186 militar e Navilouca foi feita durante o período mais negro do regime.
A estratégia editorial de Torquato e Waly era reunir um conjunto de
trabalhos especialmente feitos para a revista, que pudesse configurar o
espírito de uma produção que emergia e se diferenciava do repertório
e clima intelectual do Brasil daqueles anos. Era, então, uma antologia
artística que reuniu nomes como Duda Machado, Ivan Cardoso, Luiz
Otávio Pimentel, Jorge Salomão, Hélio Oiticica, Rogério Duarte, Cha-
cal, Luciano Figueiredo, Óscar Ramos, Caetano Veloso, Lygia Clark,
Stephen Berg,Haroldo de Campos,Augusto de Campos,Décio Pigna-
tari, mais os próprios Torquato Neto e Waly Salomão. Evidentemente
não se tratava de uma publicação de artistas emergentes. Tratava-se de
articular uma produção de idéias muito novas com a colaboração de
nomes veteranos importantes, e que, na nossa opinião, configuravam
uma visão artística que tentava superar os problemas ideológicos e
provincianos da vida cultural brasileira daqueles últimos doze anos.
Ou seja, uma combinação de expressões que continha o melhor do
movimento Neoconcreto, a Poesia Concreta, o Tropicalismo e as
novíssimas poéticas e visualidades que surgiam. Era um caldo muito
consistente, muito radical. Todos os participantes convidados por
Torquato e Waly publicaram seus trabalhos com total liberdade e
sem qualquer restrição. O Óscar Ramos e eu, que fizemos també1n
o projeto gráfico da revista, diagramávamos exatamente o que cada
autor queria fazer. O projeto gráfico foi todo feito na prancheta na
casa do Óscar, que para cada secção e cada página criava tipologias
SIBILA
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SIBlLA
especiais,desenhadas à mão, sem letra sete ou fotocomposição.Uma
aventura editorial artesanal e impensável hoje em dia.
EF/Rc: Mas ela foi pensada desde o início para sair como um
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numero un1co.
LF: Sim, como um grande manifesto.A idéia de edição única foi
SIBILA
Brasil.Ela tinha uma feiçãocompletamentediferenteporque reunia
representantesde várià~vanguardas capitaneadospor dois editores
poetas. Então, a posição e pensamento daquele grupo que tentava
se articular enfrentavaproblemas de aceitaçãosemelhantesaos que
enfrentaram,em 1967 e 1968, os artistasdo movimentomusicaltropi-
calista.Eles,como se sabe,quando surgiram não foram aceitospelas
elitesintelectuais.Estou falandoda esquerdaortodoxa,que foi como
que apanhada de surpresapela explosãomusicalque surgiacarregada
de pensamentosnovossobre a cultura do Brasil.Atéali,a experiência 189
da esquerdaortodoxa é que dava as cartas ideológicaspara o Brasil,e
o Tropicalismofalavada cultura brasileirade maneira muito própria,
de maneiramuito contundente,renovadae moderna.A sonoridade,a
poesia daquelasletras,as idéias,falavamde um Brasilque se encon-
trava oculto aos olhos de uma elite que se achava"responsável"pela
cultura do país.Maso momentohistóricoexigiauma outra visão,e foi
a expressãodessesartistas,que não eram do eixoRio-São Paulo, e sim
da Bahiae do Piauí,que se impôscomo força modernizadoranaquele
momento.A vida cultural brasileiraera completamentecentrada no
Rio de Janeiro e em São Paulo,os pólos irradiadoresda cultura. Para
a esquerda,as idéiasdos tropicalistasrepresentavamuma decadência
intelectual,e para a direita,para a repressão,aquilocheiravaa um tipo
de anarquiacomunista que deviaser reprimida.Nada daquilo foi ini-
cialmenteaceitono ambienteartístico.Pelaesquerda,principalmente,
porque os tropicalistaschegavamcom novidadesmusicaise com um
discurso extremamente crítico.Vale lembrar que duas grandes ex-
pressõesacabavamde mudar o panorama da músicae do cinema no
Brasil:João Gilberto e Glauber Rocha.A reação da esquerda,então,
acentuava a sua posição cultural hegemónicae recusava aceitar os
sinais de uma inevitáveldescentralizaçãocultural.Daí,acho que para
se entender uma articulaçãode grupo como foi Navilouca,é preciso
entender isso que imediatamenteprecedesua articulação:quase tudo
que se produz em arte e cultura no Brasilnos anos 1960/70 é parte do
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conflito ideológico, muito rico e muito esquizofrênico, que marcou e
marca até hoje a produção artística do país.
SIBILA
TORQUATO NETO NO PENETRÁVEL PN2 "A PUREZA É UM MITO"/ TROPICÁLlA,
LONDRES, 1969
SIBILA
uma tentativa de sinalizar para diferentes campos, configurando uma
interdisciplinaridade muito selvagem. Querer estabelecer diferenças
naquela época ainda era agir de maneira análoga à tradição das van-
guardas do século xx: negar o outro para conseguir diferenciar-se.
Durante décadas as vanguardas políticas e artísticas do mundo fi-
zeram assim. Toda a história das vanguardas políticas e artísticas do
Brasil está marcada por esta síndrome destrutiva. Hoje,podemos pen-
sar melhor sobre esse comportamento das vanguardas, e questionar
1 2
9 esse mecanismo baseado na diferenciação e na afirmação. No Brasil,
certamente algumas discórdias sérias poderiam ter sido evitadas,
porque, afinal de contas, muitos artistas ou movimentos estiveram
uns contra os outros de maneira feroz e aos olhos de hoje quase não
se vêem diferenças entre a qualidade artística de um e outro artista,
ou obra. O cinema é um caso típico dessa síndrome, quando você tem
num momento um cinema muito bom e original como o Cinema
Novo e logo em seguida surge uma outra produção que precisa negar
a ideologia e a estética anterior para se afirmar! Hoje, assistimos aos
filmes e nos perguntamos: onde estão aquelas diferenças tão radicais?
Eu não consigo ver. Talvez algumas diferenças poéticas, mas nada
tão diferente. O Bandidoda Luz Vermelhaé melhor ideologicamente,
formalmente, conceitualmente, que Deus e o Diabo na Terrado Sol?
O caso da Navilouca é um bom exemplo disso também, porque os
artistas que formavam aquele grupo sofreram muita hostilidade no
ambiente cultural do Rio de Janeiro. De fato, ali estava uma diferença
que queria se afirmar, mas penso, hoje, que talvez ela não tivesse que
se opor tanto aos outros projetos criativos, individuais ou de grupos.
De qualquer modo, Torquato e o Waly foram absolutamente radicais
na seleção dos participantes. Não era uma publicação que estava con-
vidando abertamente, ela estava centrada em uma idéia, num ideal de
condensação poética e artística.
SIBILA
JEANNE RIMBAUD'ARC
- ''Prêtres,professeurs,ma'ftres,vous
voustrompezen me livrantà la justice.
Je n'ai jamais été de ce peuple-ci;je 193
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LF: É, essa maquete nem existe mais, porém, é verdade que o Hélio
a fez.
EF/Rc: Estou entendendo que havia lapsos, distinções ... Quais se-
riam os pontos de aproximação e de distanciamento de Hélio Oiticica
em relação às outras artes e outros artistas?
LF: De fato, no caso do Hélio, as aproximações eram muitas e se
SIBILA
davam pela via experimental, pelo espírito de experimentação que
estavano ar,e que se podia ver nas outras artes.Issoexplica,por exem-
plo, por que o nome Tropicália,um penetrável de 1967 apresentado
no MAM, acabou sendo usado por Caetano como título de uma de
suas canções e logo depois virar Tropicalismo,que, como movimento
1nusica1,cresceu muito, teve uma maneira muito própria de difusão,
completamente diferente do que seria possível no campo das artes
plásticas,sempre mais restrito. E o Hélio mostrou desde o início sua
admiração por Caetano, Gil, Torquato e todos os outros músicos 95
1
SIBILA
LF: Essas manifestações de São Paulo, que tinham mais a ver
com os happenings, vieram um pouco depois desta proposição
sobre participação do espectador na obra de arte, que acontecera
muito antes no movimento neoconcreto, e que depois se estendeu
ao longo da década de 1960. O Neoconcretismo já havia trabalhado
com a participação do espectador, com a quebra de categorias ar-
tísticas como pintura, desenho e escultura . Eram propostas muito
libertárias e alguns artistas levaram isso a conseqüências muito
96
1 especiais, como o Hélio. Estou tentando estabelecer a diferença de
cada área. Uma, com o potencial de cultura de massa, como é o caso
da música e do cinema, e a outra, restrita aos limites das paredes
de galerias e museus. Volto sempre para o Neoconcretismo e o seu
encaminhamento para a participação do espectador, que mudou
enormemente os caminhos da arte. O Hélio passou a desenvolver,
depois do movimento neoconcreto, depois dos Bólides,em 1963, e
dos Parangolés,em 1965, uma grande autoconfiança no processo de
inclusão, ou melhor, de participação do outro. Que, em última ins-
tância, era uma atração pela alteridade, urn desejo que passou a ser
estrutural na criação dele. Com isso quero dizer que a receptividade
que o Hélio demonstrava em relação às outras linguagens, como no
caso do Tropicalismo, é parte disso.
SIBILA
FOTO OE RUA/ GÊNESE DO PARANGOLÉ, 1964
HÉLIO ÜITICICA COM B52 BÓLIDE SACO 4, 1966-67 "TEU AMOR EU GUARDO AQUI"
SIBILA
concretos de São Paulo foi uma coisa terrível,e creio que hostilidades
e doenças provincianas existem até hoje por conta disso. É um dos
capítulos mais complexos na vida cultural dos dois contextos e con-
seqüentemente pouco saudável para o Brasil.Mas o Hélio soube bem
se desvencilhar disso. Saiu na frente, por assim dizer, quando escre-
veu um texto chamado "O Sentido de Vanguarda do Grupo Baiano",
publicado em 1968, no Correioda Manhã. Um texto longo, no qual
declarou seu apoio e sua adesão.Acho que o Hélio via no grupo mais
98
1 uma manifestação do "território experimental da liberdade", como
dizia Mário Pedrosa. O Hélio tinha esta disponibilidade para o outro
já muito bem azeitada. Eu quero entender que foi isso que aconteceu.
O Hélio fez um parangolé em homenagem ao Caetano chamado
"Caetelesvelásià',outro em homenagem ao Gil, chamado "Gileasà' e
fez também um penetrável, a "Tenda Caetano-Gil': Tudo isso no ano
de 1968. Maior ad1niraçãoque isso, impossível.
EF/Rc: Então não foi só um apoio, a afinidade foi algo que estimu-
lou a sua própria produção.
LF: Lógico,ele viu ali uma fonte de talento, um frescor, uma origi-
SIBILA
LF: Sim,e as tentativasde superaçãode uma em relaçãoà outra
aconteciamnum espaçode tempo cadavez maiscurto.Isso foi num
crescendoaté chegara uma espéciede crepijStWo. Então,já não havia
muito mais a que se opor.E porquenão haviamuito maiscom o que
romper, a ruptura se converteuem algo mecanizado,para afirmar
algosupostamentenovo. Issoé muitosimplese fácil,bastaque eu não
reconheçaaquiloque vocêacaboude fazercomo uma coisaoriginal
e, através da negação,afirme a mim mesmo.Resumidamente,esse
conflitomarcoua históriadas vanguardasdo séculoxx, desdeo iní- 199
cio dos anos 20 até os anos 60. OctavioPaz falamuito bem disso,do
ocasodas vanguardas.Hoje,ninguémpensamaisdaquelamaneira,o
quenão quer dizerquenão existamcoisasnovas.E comodizAntonio
Cícero,"asvanguardascumpriramo seu papelna arte do séculoxx,
fizeramco1notinham que fazer,enfim,deram certo':
SIBILA
já estava baixando mesmo. Mas eu acho que a questão experimental
se manteve muito viva para definir a condição de uma arte que esta-
belecia confrontos com o mundo institucional.
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201
SlBILA
na mesma época da Navilouca. A cenografia do espetáculo eram duas
sílabas em tamanho gigante da palavra FA-TAL, assim fragmentada, e
também outra palavra que ele inventara: VIOLETO.
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CONTATO DO VTVO/MORTO, BÓLIDE SACO 4, 1966-67
SIBILA
outras coisas.É evidente que isso teve um apoio enorme do Hélio.Ele
foi,inclusive,muito responsávelpor esseresgate,porque depois que o
movimento neoconcreto rompeu com a poesiaconcreta,ele se desfez
e cada artista seguiu seu caminho. O Hélio encontrou com Haroldo
de Campos,em 1967,em Belémdo Pará, ambos convidadospara um
simpósio,e tiveramum encontro muito bom. Esseencontro produziu
uma comunicaçãopoética e artística que nunca se desfezentre eles.
sim, mas o bom senso hoje faz com que a gente tenha que pensar
por outras vias para tentar encontrar a resposta para uma coisa tão
interessantecomo essa da relação de um artista com a poesia no seu
processo, na sua visualidade. Mas, de fato, o Hélio, a partir de um
determinado momento, depois do movimento neoconcreto, passa
a escrever e a formular de uma maneira cada vez mais rigorosa o
seu trabalho, a teorizar e produzir reflexãocrítica sobre seu próprio
trabalho... Eu tenho a impressão que ele não deixou muito para a
crítica escrever.Inclusive,o panorama crítico da época, dos anos 60 ...
A crítica atuante na imprensa,vamos dizer,era muito maior que hoje.
Existiammais jornais, era um número muito grande...
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EF/Rc: Como você vê a crítica posterior?
LF: A crít ica posterior também não escreveu muito. Mas agora, no
circuito acadêmico, tem havido um grande interesse,) são feitas cada
vez mais teses sobre o Hélio Oiticica em cursos de /líistória da arte.
Afinal, a sua obra é estudada nos grandes museus do mundo.
SIBILA
de Ferreira Gullar, e o «Teatro Integral",do Reinaldo Jardim. Come-
çou, então, uma hístória com a palavra e com a poesia, uma relação
com a poesia que passou a ser estrutural, eu diria. Há um processo
que tem a ver com a questão da cor e outras explorações e verten-
tes dentro do trabalho do Hélio, mas a poesia está sempre lá, nos
conceitos que ele inventou e desenvolveu. A palavra Tropicáliafoi
inventada por ele! A PurezaÉ um Mito é o nome de outra cabine. É
um poema. Vários bólides estão apoiados e integrados com palavras,
206 com poemas. Eu nunca me refiro àquilo como texto, porque acho
fundamental chamar a atenção para a participação da poesia. É mais
importante falar da "qualidade poema" no trabalho do Hélio do que
no "elemento formal texto".
EF/Rc: Você faria uma distinção entre o que seria um texto como
"Esquema Geral da Nova Objetividade" e um poema?
LF: Sim, sim. "Da AdversidadeVivemos"é um poema, está dentro
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"Incorporo a Revolta" também é outro poema. "Guevaluta Baby,, é
outro poema, entende? "Seja Marginal, Seja Herói" é um poema. Eu
não chamaria de textos. Formalmente são poemas.
SIBILA
EF/Rc: Eu diria que há uma apropriação do mundo popular...
LF: Pode até ser. Mas o certo é que não há nenhuma preocupação
com espaço entre urna letra e outra, ou com o tamanho, ou com o uso
de caixa alta e caixa baixa, enfim, as leis gráficas,embora ele també1n
tenha feito isso,como eu disse,coisasgraficamentemuito bem elabo-
radas, com tipologiascriadas por ele.Em algunspoemas visuais,como
"BangúMangue':a tipologiaque está ali não tem em catálogo,foi feita
por ele, como é o caso também de "Escrerbuto"e "Agripinaé Roma-
208 Manhattan': que são poemas visuaisjá apoiadosem tipologiasrequin-
tadas graficamente.Ou seja,a forma da escrita,a letra como desenho,
foi explorada no trabalho de Hélio de maneira diversificada.
SIBILA
sempre falando, sempre refletindo, não parava de formular coisas.
Era uma característica dele, uma marca. Talvezisso explique o fato
de o Hélio escrever tão bem. Ele sabia pensar e exteriorizar o seu
pensamento através de texto ou da fala.A visualidade e a verbalida-
de estavam sempre juntas, eram modos expressivoscomplementares.
Um exemplo disso é quando ele se apropria de trechos de Gertrude
Stein em uma de suas obras, o penetrável "Filtro",incluindo a voz
dela gravada dizendo: "Não consigo me imaginar sem estar falando
e pensando ao mesmo tempo".Ele se identificava muito com esta 209
SIBILA
equilibrado entre o impulso,a inspiraçãoe mesmo uma certa loucura,
e uma força extremamenteracional,rigorosa,construtiva.Vocêusou a
imagem da síntese poética, que me parece interessa11teaprofundar.
LF: Quando você lê os textos do Hélio,desde os primeiros textos,
SIBILA
perguntar a ele se estavapintando muitas telas ultimamente,se o ca-
valete estavaneste ou naquele lugar,por aí assim.Havia uma aversão
à palavra,à idéia,sim, mas, no fundo, o lugar de trabalho não deixava
de ser ateliê,embora com o encaminhamentopara o ambiental,para
os penetráveis,os ninhos. Sem dúvida,o sentidP-P--úblico das obras foi
avançando e a noção clássicade ateliêjá não faziasentido.Ao mesmo
tempo, o espaço em que ele morava era um penetrável,era um ninho.
Ou seja,ele transformavao lugar em que vivianum espaço análogoàs
suas proposiçõespara obras ambientais.Não havia, por exemplo,qua- 211
SIBILA
obra, e podemos dizer que a interlocução foi estrutural na sua obra
como um todo.
tos próprios que ela possui, ou seja, seguir o espírito da própria obra,
212 sem acrescentar interpretações. Feito isto,você tem a obra que ele pro-
duziu e deixou. E que deve ser mostrada tal como ele criou. Mostrar
o que a obra é. Cada peça possui sua ordem conceitua! própria e isto
tem sempre que estar claro em exposições e também na difusão da
obra através de publicações de textos e imagens.As ordens conceituais
da obra de Oiticica possuem uma nomenclatura própria. Basta citar
o caso dos bólides e parangolés, por exemplo,onde se tem uma gama
de variantes dentro do mesmo conceito que deve ser cuidadosamente
observada, senão as sutilezas e variantes de um mesmo conceito não
serão percebidas. Quando se apresenta a obra de Oiticica numa ex-
posição, o que menos conta durante a montagem é o olhar formalista.
Deve-se primeiro entender sua ordem conceituai e é esta que guia, na
maioria das vezes,a questão formal. Quanto à segunda pergunta, sobre
a institucionalização da obra de Hélio Oiticica,eu acho uma das coisas
mais tolas que andaram levantando contra sua obra ultimamente. E,
é preciso dizer, acusação feita apenas no Brasil.É um argumento que
não tem razão de ser, pois institucionalizar o acervo de um artista é
querê-lo e trabalhar para preservá-lo como patrimônio de uma cul-
tura. Quando um artista ocupa um lugar especial em uma cultura,
o que de fato se quer é preservá-lo. Como preservar sem instituir?
Que contra-senso seria pensar que a institucionalização de uma obra
poderia reduzir ou alterar os seus significados.É um erro gravíssimo
não perceber que, como quer que tenha sido a maneira que o Hélio
administrou e organizou a sua obra, isso ele o fez pessoalmente, em
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vida. E como qualquer artista, qualquer obra, terá que enfrentar sua
situação póstuma. A perspectiva póstuma não altera a substância da
obra e, uma vez que sejam conhecidos,estudados e_;:espeitados os seus
fundamentos, não vejo razão para se falar em co11tradiçãoconceituai
ou formal. Não se pode trabalhar uma obra como a do Hélio se1nessa
clareza. O contrário seria ocultar sua produção, seu pensamento, sua
arte, tornando -a inacessívelao mundo, deteriorando-a fisicamente e
cobrindo-a de mistificações.Se ele foi contra museus e instituições,
isto era uma posição ideológica necessária para ele enquanto fazia a 213
tráveis que o Hélio criou. Construir uma dessas obras que o Hélio
deixou em maquete, em planta-baixa,com instruções,é uma operação
que depende sempre da fidelidade co1n que se seguem as informa-
ções que ele estabeleceu. Há ainda vários penetráveis que não foram
construídos, porque são complexos, caros e exigem disponibilidade
de espaços públicos. Mas, existindo recursos e condições para cons-
trução de qualquer um deles,não vejo dificuldade em se levar adiante,
qualquer construção.
SIBILA
LF: Todas as réplicas de obras do Hélio foram realizadas pelo
Projeto Hélio Oiticica. Eu mesmo já realizei várias delas. Não é uma
questão simples e já houve muita controvérsia sobre o assunto. Quero
esclarecer que todas as vezes que executamos réplicas estamos aten-
dendo a uma questão conceitua! muito importante na obra do Hélio,
que é a da participação do espectador na obra de arte. Os parangolés
são o exemplo mais crítico desse problema. Se você quer fazer uma
apresentação de parangolés, não pode utilizar as peças originais, pois
214 haveria o risco de destruí-las por completo. E o que é o objeto pa-
rangolé senão tecidos, plásticos e materiais diversos? A peça original,
gasta pelo tempo, não corresponde mais ao momento em que foi feita.
Mas a idéia, o princípio e o conceito estão inteiros na confecção da
réplica,que segue fielmenteo original e que pode demonstrar o que a
obra é, tal como foi elaborada pelo Hélio,para ser vestida livremente
pelo espectador.É assim que vejo a sobrevidade obras como os paran-
golés:através da réplica,lembrando que mesmo o chamado "original"
já não possuía a aura do insubstituível que vigorava na antiga idéia
sobre o objeto de arte. De qualquer modo, este é um aspecto, às vezes,
muito complicado de se lidar, principalmente com instituições que
não estão atentas às exigênciasconceituais de obras de artistas como
o Hélio. Mas também não se pode pensar em replicar todo o acervo
de suas obras simplesmente porque originalmente ele as construiu
para serem manipuladas. É u.m dilema póstumo que muitas vezes a
sua obra enfrenta.
SIBILA
;
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HÉLIO ÜITICICA FOTOGRAFADO POR SEU PAI JosÉÜITICICA, RIO DE JANEIRO, 1954
2. Oiticica foi um incansável produtor de textos. Textos dos mais
diversos tipos, relativos aos mais diversos temas, com ou sem interlo-
cutores explícitos.Eles foram escritos ao longo de praticamente toda
a sua carreira, marcando um dos principais traços do seu trabalho:
a relação intrínseca entre obra, vida e memória. Além de sua obra
plástica, Oiticica construiu uma trajetória em que suas vivências e
experiências pessoais transbordavam para o cerne de suas preocu-
pações artísticas e intelectuais. Em julho de 1964, ano em que sua
carreira tomou o atalho das ladeiras da Mangueira,ele afirma no texto 21
7
PoéticaSecretaque seus escritos se localizavamno pólo oposto da seu
trabalho plástico. Enquanto naquela época a busca de seus primeiros
Bólides,Núcleose Penetráveisera justamente se descolar do dia-a-dia,
ficando "acimà' do efêmero e dos eventos passageiros ancorados no
cotidiano, na "poética secreta" de seus cadernos era justamente essa
vivência"mesquinha" que deveria ser eternizada. Nesse mesmo texto,
completava suas afirmaçõessobre a escrita reconhecendo não ser po-
eta, mas destacando: "uma imperiosa necessidade me leva à expressão
verbal" (Oiticica, 1964).
A experiênciana arte e, principalmente, no mundo era um tema
de ação e reflexão constante para Oiticica, definindo seus princípios
éticos e suas preferências estéticas. Sua filiação aos postulados
1
cons-
trutivistas e a participação no movimento neoconcreto no fim dos
anos de 1950, sua subida transformadora à Mangueira em 1964, seu
contato com as drogas, sua opção pelo homossexualismo,sua perma-
nência de quase dez anos em Nova York durante a década de 1970,
sua relação conflituosa com o mercado e a crítica das artes plásticas e
outros elementos ligados às suas escolhas pessoais, eram trabalhados
visceralmente em sua obra. A incorporação sistemática dessas expe-
riências nos trabalhos realizados nos mostra um artista que viveu no
limite da tensa relação entre arte e vida.
Os textos de Oiticica são resultado de uma prática corrente em
sua trajetória artística, em que cada obra era acompanhada de uma
SIB I LA
inten sa produç ão textu al auto -reflexiva desde os seus mais tenros
anos. Os trab alho s realizados (ou não-rea lizados, porém proje tados)
eram produzido s simultaneamente à sua reflexão teórica escrita. Um
dos principais conhecedores e estudiosos de sua própria obr a (talvez
o maior) , Oiticica constituiu de forma metódica e solitária o maior
acervo documental sobre seu trabalh o. Ele, como outro s da sua ge-
ração, manteve a crença na auto-explicação e através da pr ática do
arquivo pessoal investiu na fabricação de sua própria po sterid ade.
218 Com esta estr atégia, reproduzia um pensamento de Glauber Rocha,
um dos seus interlocutores mai s instigantes ao longo da vida que,
segund o Rogério Duart e (parceiro de ambos), afirma: "inventaria-te
antes qu e os outros te tr ansformem num mal-entendido" (Duarte,
2003: 13). A perspectiva do arquivo enquanto uma forma de depo-
sitário da "verdade" sobre a vida e a trajetór ia intelectua l de alguém
foi levada a cabo por Oiticica de forma rigorosa. :É o arquivo não só
como lugar de memória, mas tamb ém como local de autoridade sobre
os usos dessa memória.
Sobre os escritos relacionados aos seus trabalhos artísticos e de
seus pares, já bastante difundido s, percebe-se em sua maioria que, a
partir de um a variedade de textos explicativo s, verdadeiros guias com
"instruç ões de uso",o interlocutor em evidência é alguém claramente
intere ssado em seu pro cesso criativo. Ao lado dos textos técnicos, que
trat am especificament e das trajetórias de conce pção e realização da s
obras , encontram -se reflexões teóricas sobre os aspectos formais e
estéticos de seu trabalh o e de terceiros. Para ficarm os em algun s dos
mais conhecidos escritos desse tipo, podemos citar os textos "Meta-
esquemas", de 1957/58, "Cor, Tempo e Estrutu ra" de 1960,''Anotações
sobre o Parangolé ", de 1964,"Esquema Geral da Nova Objetividade"
de 1966 e "O Aparecimento do Suprasensorial'' , de 1968'.
1. Sobre esses textos voltados para o universo das artes plásticas.já existem grandes trabalhos
de an:Uise publicados, como os de Celso Favaretto, Luciano Figueiredo e Guy Breu. Uma
boa iniciação nos textos de arte de Hélio Oiticica é a coletânea Aspiro ao Grande IAbirinfo,
S1B1LA
Masalémdosartigose ensaiosem quese dedicavaao seu processo
de criaçãoe às conseqüênciasde suasobras,Oiticicatambémescre-
veu outros textos que se inseriam em outro(s) tipo(s) de registro(s).
Essestextos não versamsobrecríticasde artee nem são manifestos
ou propostasde trabalho. Na própria classificaçãodo autor,são textos
práticosem que o processode escritasai da esferado teórico da arte e
aporta no espaço arriscado do ficcional.Contos,poemas,memórias,
crônicase outrasformashíbridassão algunsdos escritosqueOiticica
produzincessantementeao ladode seusestudose reflexõesacercado 2 19
em 1986pelaRoccoe atualmente
publicada forade catálogo.
Sobreos trabalhospublicados
queme refiro,conferirbibliografia.
SIBILA
Essa relação de Oiticica com o universo da literatura e da poesia
- da leitura e da escrita em geral- sempre foi intensa. Neto de um gra-
mático e precursor do anarquismo no Brasil - José Oiticica - e filho
de um cientista entomólogo e fotógrafo de vanguarda - José Oiticica
Filho -, sua formação intelectual foi rigorosa (inclusive tendo sido
praticamente educado de forma privada, por sua família, com uma
breve passagem por colégios norte-americanos quando o pai recebe
uma bolsa da Fundação Gugenheim na década de 1950). Mantendo-se
220 até o fim da vida como um leitor diferenciado, era fluente em francês
e inglês e cruzava gêneros e autores, indo da filosofiaà poesia, acumu-
lando referências e desenvolvendo apropriações estilísticas e teóricas
para suas próprias incursões no exercício da escrita. Não é à toa que
alguns dos maiores interlocutores de Oiticica ao longo da sua carreira
foram em sua maioria ligados às letras e ao universo da literatura e
da crítica, como Rogério Duarte (na época poeta e filósofo),Torqua-
to Neto (poeta, jornalista e letrista), Waly Salomão (poeta, ensaísta
e letrista), Haroldo de Campos (poeta, tradutor, crítico e ensaísta)
ou Silviano Santiago (poeta, crítico, romancista, tradutor e ensaísta).
Essas amizades criativas, essas interlocuções intelectuais balizadas no
campo da escrita e do discurso literário faziam com que Oiticica am-
pliasse constantemente seu arcabouço intelectual ~ suas influências,
além de permanecer envolvido com as questões relativas a esse uni-
verso. O Paideuma concreto (Pound, Mallarmé, Joyce,Sousândrade,
Maiakóvski), Gertrude Stein, Nietzsche, Freud, Lévi-Strauss, Henri
Bergson, Octavio Paz, Husserl, Guy Debord, Merleau Po11tye Marcel
Duchamp são alguns dos autores e leituras que o artista plástico ad-
quiriu ou aprofundou a partir desses contatos.
SIBILA
já incorporavam, desde os anos de 1960, a palavra como elemento
constituinte dos usos e significadosque ela pode gerar no campo das
artes plásticas. Sem dúvida, os mais famosos trabalhos de Oiticica
com as palavras são seus Parangolés,cujas frases-poemas trazem,
como demonstrou Luciano Figueiredo em trabalho recente, o papel
da poéticacomo um aspecto estrutural de sua obra. "Do meu sangue
do meu suor esse amor viverá»(1965),«Da tua pele brota a umidade da
terra do teu gosto/o calor'' (1967),"TeuAmor eu Guardo Aqui"(1967)
e '1ncorporo a revolta'' (1968) são alguns dos "poemas" que Oiticica 221
SIBILA
é decisiva em diversos momentos posteriores de sua vida. Diversos
escritos, mesmo feitos em Londres e Nova York durante os anos de
1970, tratam de forma visceral e delirante os seus tempos de Man-
gueira, de convívio com o morro e sua população, com as drogas e a
bandidage1n, e, principalmente, com a Escola de Samba.
Em dezembro de 1968, poucos dias antes do AI-5, Hélio Oiticica
embarca em um navio para Londres com Torquato Neto. O intuito
era a realização de sua famosa exposição na White Chapel Gallery,
222 ocorrida em 1969. Em Londres, Oiticica produz uma série de escritos
e contos, ampliando sua produção. Em uma carta para Lygia Clark,
escrita dois meses antes dele partir para Londres, pode-se constatar
seu crescente interesse pela escrita:
SIBILA
como própria parte da obra (caso das proposiçõesde Oiticica para
nomes como CarlosVergara,SilvianoSantiago,Nevillede Almeida e
Waly Salomão), seja assumindo a linguagem do poema como parte
integrante de sua obra visual (caso do trabalho MangueBangue).
se vista como uma prática, vai ser encontrada nos textos de Oiticica
em que ficam claras suas intenções "literárias"e suas interlocuções
com o campo da escrita. Textos em que a idéia de uma fabulaçãoe
da existência dessefora se fazem mais presentes, como é o caso dos
seus "contos"e alguns de seus "poemas",e textos cuja escrita dá conta
de seus diálogos e influências intelectuaise literárias, espécie de hi-
pertextosem que se podem traçar alguns percursos do pensamento
e estilo de Oiticica.
Na série de textos de Oiticica, se destacam aqueles cujo intuito
claro era o ato da escrita enquanto fabulação,e não apenas como
prolongamento do trabalho plástico que ele desenvolvia paralela-
mente em outros planos de criação. Surge assim para o campo da
crítica literária uma nova seara de trabalhos e reflexõesacerca desse
novo "autor",estrangeiro às hostes das letras, mas participante ativo
de um destacado setor do campo da literatura brasileira dos anos
de 1970. Isso é demonstrado, por exemplo, através da sua intensa
interlocução com dois autores de destaque desse período (cada um
com suas especificidades),Haroldo de Campos e Waly Salomão.Em
um trecho de uma das cartas de Hélio Oiticica para Lygia Clark,
escrita no efervescente ano de 1972, ele relata seus últimos contatos
em Nova Yorkcom a literatura e com os irmãos Campos, afirmando
estar" ... lendo à beça as coisas que eles enviam" (Figueiredo, 1998:
219). Foi em Nova York com Haroldo de Campos - freqüentador
SIBILA
assíduo da academia e das universidades norte-americanas no iní-
cio dos anos de 1970 - que Oiticica gravou um dos seus Héliotapes,
ampliou suas leituras de Ezra Pound e Souzândrade ( o Inferno de
Wall Street foi um dos textos que mais desdobramentos tiveram
na obra de Hélio em Nova York, sendo inclusive o mote para seu
filme experimental Agripino é Roma-Manhattan) e se aproximou
de intelectuais d? porte de Marshall McLuhan e Quentin Piore ( de
quem tornou-se amigo pessoal). Já com Waly Salomão, o poeta
224 baiano sempre deixou claro em suas entrevistas e depoimentos que
foi Hélio, ainda em 1970, o responsável pela sua "profissionalização"
ao ler seus primeiros escritos e incentivá-lo a investir na poesia,
propondo inclusive a publicação de um livro (que sairia, em 1972,
com o título Me Segura que Eu Vou Dar um Troçopela José Álvaro
Editores). Waly foi um dos que acompanharam de forma estreita os
trabalhos e reflexões de Oiticica através de uma constante troca de
cartas poéticas durante os anos de 1970.
A relação intensa com a leitura e seu interesse permanente pelas
ações dos intelectuais ligados ao campo literário deu a Oiticica a
possibilidade dessas interlocuções romperem o limite da mera influ-
ência para se transformarem em ações concretas no campo da escrita.
Apesar da maioria de seus textos serem crivados dessas influências
- formando esse hipertexto do pensamento intelectual de sua época
e de todas as outras que lhe interessasse - alguns escritos assumem
muitas vezes caráter autônomo, afastando-se dos comentários e refle-
xões cotidianas para demonstrarem luz própria. Esses textos se des-
tacam do resto de seus outros escritos por assumirem uma proposta
abertamente poética ou ficcional.
SIBILA
seus textos se Oiticica não se insere no campo da literatura? E, se
admitindo que esses textos tinham um caráter "fabulador':qual o
papel que a escrita e suas interlocuçõescom o campo literário detém
no seu processo criativo?
O primeiro passo, o do por quê?,pode ser pensado a partir das
reflexõesacercada escritaliteráriacomo uma experiênciafundada no
âmbito do Foraenquanto prática criativa e questionamentoradical
desse fazer literário (Levy,2003: 18).A discussãoincide justamente
nesse aspectode uma escritalabiríntica,que se manifestadesordena- 2 25
damente,aceitando a presençado delírio.Uma escrita que permite o
surgimento da fabulaçãoe da formaçãode novaslínguas e espaciali-
dades,apontandopara uma experiêncialiteráriaespecífica- e radical.
Oiticicaparte dos textosmedidose ponderadosda críticade arte para
a aventurasem controledo texto fabulador,enraizadonas suas vivên-
cias cotidianasem diferentestemporalidadesde sua trajetória.
Partindo de um tema de Gilles Deleuze,a literatura e o ato de
escreverpode ser visto aqui como uma saúde.A idéia de saúdede-
corre da relação entre a experiênciado homem no mundo e o seu
esgotamentofrente essa experiênciaradical,sanada apenas na vazão
da prática fabuladora, na descoberta da prática criadora do fora
(Deleuze,1997).Como exercíciode reflexão,apresentouma hipótese
relativa a essa problematizaçãoda prática da escrita,proposta pelo
filósofo.Houve para Hélio Oiticica um momento em sua trajetória
de vida em que "estarno mundo"torna-se uma descobertaviolentae
visceral,divisorade águase desencadeadorade heróis e fantasmas.É
a experiência de subir e viverintensamentepor quasecincoanos inin-
terruptos (1964-1968)o morro da Mangueira que defino como um
(ou o) momento em que ele "viu e ouviu coisasdemasiadograndes
pra ele,fortesdemais,irrespiráveis,cujapassagemo esgota"(Deleuze,
1997:14). Valeregistrar que no mesmo ano em que Oiticicasubiu à
Mangueira,seu pai, figura ativa em sua formação,falece.Segu11do
LygiaPape, amiga íntima do escritor nesse período e em outros de
SIBILA
sua vida, esse momento foi uma virada em todos os sentidos para
o artista plástico, corroborando essa hipótese. Em depoimento para
·Paola Bernstein Jacques,ela afirma que
Hélio era um jovem apolineo, até um pouco pedante, que trabalhava com seu
pai na documentação do Museu Nacional, onde aprendeu uma metodologia: era
muito organ~ado e disciplinado. Em 1964, seu pai morreu. Um amigo nosso, o
Jackson, então, levou o Hélio para a Mangueira[ ...]. Foi aí que ele descobriu um
espaço dionisíaco, que não conhecia, não tinha a menor experiência. [...] Aí ele
começou a incorporar essa experiência do morro, aquilo começa a fazer parte dos
226
conceitos dele, da vivência dele. As barreiras da cultura burguesa se rompem lá, é
como se ele vestisse um outro Hélio, um Hélio do "1norro",que passou a invadir
tudo: sua casa, sua vida e sua obra. (Jacques, 2001, 27)
SIBILA
absorveu sua intensidade,no momento do exílio,em que a Mangueira
nada mais é do que uma ausência,foi a capacidade de fabulação de
Oiticica que a manteve viva. No momento em que o mito fundador
da experiência perde sua potência explicativa,é através da linguagem
que se reconstrói essa potência em um novo espaço e em um novo
tempo. Não mais através da dança ou do corpo, mas, sim, através da
escrita fabuladora. A Mangueira não é apenas uma memória nostál-
gica, e sim a experiência ainda em processo na vida de Hélio. Uma
experiência vivida dessa vez na prática da literatura. 22
7
A literatura, porém, é não só o processo de criação de uma saúde,
como também a tentativa de invençãode um povo.A literatura como
saúde, como possibilidade de vida, consiste assim na invençãode um
povo quefalta (Deleuze, 1997). Em seus escritos explicitamente fic-
cionais, Oiticica constrói incessantemente a Mangueira, seus cheiros,
suas cores,seus heróis, seus ritos, seus espaços de lazer e bandidagem,
seus personagens, enfim, seu povo. Um povo que falta a Oiticica em
Londres,que falta a Oiticica em NovaYork.Um povo cuja experiência
de reconhecê-lo e desejá-lo só pode ser satisfeitana escrita,na fabula-
ção. Em Auto 1, texto aparentemente de cunho autobiográfico escrito
em Londres, em novembro de 1969, ele descreve essas experiências
como se estivessevivenciando no presente e pratica a sua reinvenção
de um povo.Citando seu trecho inicial:
SIBILA
tempo. A invençãode um povo quefalta é um processo permanente,
visceral, delirante:
SIBILA
mos perguntar"oque"Oiticicaescreviana medidaem que reconhece-
mos que ele como autor e seus textos como obra não pertencem aos
cânones definidos na área da literatura.Ou seja,ele não só não é um
autor,como seus textosnão são vistoscomo uma obra.Daí a pergunta
o que como chave na compreensãode seus caminhos no interior da
linguagem.ParafraseandoMichel Foucaultem seu já incontornável
ensaio "O Que É um Autor"(1969), proponho questionar,assim como
ele questiona o que eram os ((papéisque Sadeproduzia na prisão en-
quanto ainda não era visto como um autor" (Foucault, 2001:269 ), 229
o que eram então esses papéis escritos incessantementepor Hélio
Oiticica,já que eleaté hoje não é um autor.Assimcomo Foucault,per-
guntar o que era essa"obra':o que eram essescadernose papéissobre
os quais,sem parar,durante seus dias de exílio,Oiticicadesencadeava
seus fantasmas e suas memórias.O ponto aqui não é reivindicarum
estatuto de autor literário para Oiticica,mas sim uma nova aborda-
gem sobre seus textos, inserindo-os num debate mais amplo, mais
livre do que o debate sobre sua obra no campo das artes plásticas.
É justamente essa inserção de Hélio Oiticicaem outros campos
que permite uma análise mais apurada das suas relaçõescom a pro-
dução literária de sua época.Ele transitou intensamentenesse campo
durante os anos de 1960 e 1970 no Brasile no mundo, apropriandode
forma voraz seus elementos e conflitos. Em diferentesintervenções
nesse período ele deixa claro - apesar de ter declarado"o que faço é
música"- que era a literatura e a poesia suas principais ferramentas
de criação e reflexãoestética.Alguns de seus textos,principalmente
suas cartas e artigos,traziam o aspectojá referidode hipertexto,onde
diacroniae sincroniacoexistemen1um mesmoplano de açãointelec-
tual.Suasinfluências- Gertrude Stein (uma das principaisleiuras de
Hélio),Mondrian,Nietzsche,Oswaldde Andrade,JacksonPollcok,Ja-
mes Joyce,Paul Klee- eram trabalhadasa partir de suas interlocuções
contemporâneascom parceiros e referênciasde seu tempo - Andy
Wahrol,TorquatoNeto,Haroldode Campos,LygiaClark,JackSmith,
SIBILA
WalySalomão, Glauber Rocha. Este trecho de carta-reportagem para
o colunista e amigo Daniel Más, escrita em Nova York em maio de
1972, exemplifica bem esse tipo de escrita:
SIB ILA
sua fluidez entre um tema e outro, na linguagem cifrada dos códigos
e referências de quem viveu o cotid iano fora-da-lei do mundo. Ler os
textos poéticos de Oiticica é entrar nesse labirinto dentro do labirinto ,
é caminhar partindo do princípio de que o intuito não é se encontrar,
mas, justamente, se perder. Assim como Oiticica teve que se perder
nas quebradas da Mangueira e na barra pesada de Manhattan durante
os anos de 1970 para criar sua obra revolucionária, ele nos propõe
uma escr ita em que o leitor não é tratado como um mero receptor
de mensagens, mas sim como um convidado para vagar por suas 231
BIBLIOGRAFIA
SIBILA
JACQUES, Paola Bernstein. Esteticada Ginga-A Arquitetura das FavelasTravesda
Obra de Helio Oiticica.Rio de Janeiro, Casa da Palavra/RIOARTE, 2001.
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mará/RIOARTE, 1996.
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SANTIAGO, Silviano. Uma Literatura nos Trópicos - Ensaios sobre Dependência
Cultural. Rio de Janeiro, Rocco, 2000.
SIBI LA
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