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ta de Poesia e Cultura ANo 4. N. 7.

2004
SIBILA
ReginaSilveira,série Armarinhos
(Colchete de Gancho), inédito,2002.
ano 4 : n. 7 : 2004

Revista de Poesia e Cultura

Ateliê Editorial
SIBILA
Revista semestral de poesia e cultura: ano 4, número 7, novembro de 2004

Copyright© dos trabalhos publicados pertence a seus autores

Editor
Régis Bonvicino (São Paulo)

Publisher
Plínio Martins Filho (São Paulo)

Editora assistente
Tatiana Longo dos Santos (São Paulo)

Editoranssocinda
Odile Cisneros (Edmonton)

ConselhoEditorial
Moacir A1nâncio (São Paulo), Carlos Ávila (Belo Horizonte), Vera Barros (São Paulo), Aurora
Fornoni Bernardini (São Paulo), Charles Bernstein (Nova York),Wilson Bueno (Curitiba),
Graça Capinha (Coi1nbra), Maria Elisa Costa (Rio de Janeiro), Eucanaã Ferraz (Rio de Janeiro),
Jerusa Pires Ferreira (São Paulo), Hugo Gola (Cidade do México), Reynaldo Jin,énez (Buenos
Aires), Manoel Ricardo de Lima (Florianópolis), Telê Ancona Lopez (São Paulo), Fabiana
Macchi (Berna), Rodolfo Mata (Cidade do México), Juan Carlos Marset (Sevilha), Darly
Menconi {São Paulo), Douglas Messerli (Los Angeles), Eduardo Milan (Cidade do México),
Alcir Pécora (Campinas). Marjorie Perloff (Pacific Palisades), Claude Royet-Journoud (Paris).
Romulo Valle Salvino (Brasília), Boris Schnaiderman (São Paulo) e Cecília Vicufla (Nova York)

Sibila está aberta a recebercolaborações,inéditassempre,que serão,


no entanto, sub1nctidasao ConselhoEditorial,podendo ou não ser publicadas.

Edição de arte,projetográficoe capn


Ricardo Assis (São Paulo)

I,nngetnda capa
Maciej Laska (istockphoto.com)

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ATELIE • EDITORIAL
Rua ManuelPereira Leite,15
06709-280 - GranjaViana- Cotia - sp
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br ate!ie_cditorial@uol.corn
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linpressono Brasil2004
Foi feitodepósito legal
~

SUMARIO

Editorial,7
Sibila• RicardoAssis,10
Umasó palavra• Claude Royet-Journoude RégisBonvicino,11
Desenhos• Claude Royet-Journoud,19
Prosas• EvandroAffonsoFerreira,2 1
exercício e s pi ritual • JoselyVianna Baptista,25
Poemas• Angela de Campos,26
Ensaio• Eder Chiodetto,29

DESTRADUÇÃO
A fervura do aire• Antonio DomínguezRey,40

PARESCONTEMPORÂNEOS
Momentocrítico(meu meio século)• Alcir Pécora,44

RESENHASE NOTAS
Roteirobásicopara uma vida sem livros• Furio Lonza,90
Os cadáveresda históriana poesiade NéstorPerlongfzer•
FlorenciaGarramuflo,94
O sexodas meninas • Néstor Perlongher,107
I Jorizontesabdutivas• DécioPignatari,122
Osexcessoscontemporâneosde Augustode Campos•
SérgioMedeiros, 136
Rudeza de argumentos em torno da pedra de Drummond •
Luís Dolhnikoff, 145
A morte de Sophia • Richard Zenith, 152
Sibilas• Sophia de Mello Breyner Andresen, 155

DOIS POETAS ALEMÃES DO SÉCULO XX


Else Lasker-Schüler • Cláudia Cavalcanti, 158
Poemas • Else Lasker-Schüler, 160
6 Ernst Jandl • Fabiana Macchi, 170
Poemas• Ernst Jandl, 172

HÉLIOTOUR
Conto • Hélio Oiticica, 182
Na trilha da Navilouca • Entrevista de Luciano Figueiredo a
Eucanaã Ferraz e Roberto Conduru, 185
Hélio Oiticica - um escritor em seu labirinto • Frederico
Oliveira Coelho, 215

Sl BILA
EDITORIAL

Sibilapromove,em seu novo número, um balanço da 7


crítica, da poesia e da prosa brasileira contemporânea,
que, ao olhar desavisado,podem parecer,e11ganosamente,
como afirmaAlcirPécora,das mais"vibrantesdo mundo".
Em seu longo ensaio (ou peça de ficção?),que não que-
remos antecipar neste espaço, Pécora demonstra como
a produção atual, mesmo a supostamente avant-garde,à
maneira concretista,é pensada como"tributo"e não como
invenção.Autoresce11trais:
Antonio Candido,Haroldo de
Cam_pos e Caetano Veloso,por exemplo,e movimentos,
como o modernismo de 1922, são postos em discussão.O
textode Pécoraé reativado,ainda,no conjuntodo número,
por abordagenscríticasdas obras de Augustode Campos
e de Carlos Drummond de Andrade e por um longo de-
poimento de LucianoFigueiredo,que traz à tona a luta da
afirmaçãodasvanguardasdos anos 1960 e 1970 e muito de
suas histórias,numa época em que o Brasilviviasob uma
ditadura militar.É de se destacar a publicaçãoinédita de
um conto de HélioOiticica,um dos maioresartistasbrasi-
leirosda segunda metade do séculoxx. Há, também,uma
reflexãoassinadapelo ensaísta FredericoOliveiraCoelho
sobre o Oiticicapoeta / escritor.
Ressalte-se, por outro lado, a entrevista do poeta
francês Claude Royet-Journoud, onde é feito também

SIBILA
um balanço, de modo inusual, de questões artísticas inter11acionais e
brasileiras. Publica-se a poeta alemã Else Lasker-Schüler, desconhecida
por aqui, o poeta espanhol Antonio Domínguez Rey, poemas de Josely
Vianna Baptista e de Angela de Campos, prosas de Evandro Affonso
Ferreira, um contundente ensaio fotográfico de Eder Chiodetto e tra-
balhos sobre Néstor Perlongher ( um dos idealizadores do movimento
neobarroco , um dos movimentos questionado por Pécora em seu tex-
to) e, ainda, o texto de Perlongher sobre o excelente poeta argenti110
8 Oliverio Girondo.
Há, ne ste número, com a entrevista de Figueiredo , uma pequena ho-
menagem de Sibila à revista Navilouca, que, nos anos 1970, correu riscos
e foi porta -voz de inovações importantes para a época, realçando-se, nela,
as presenças de Oiticica, Lígia Clark e Torquato Neto. Agradece1nos a
Eucanaã Ferraz pela organização do material de e sobre o criador dos
Parangolés.
Por fim, uma palavra sobre a reeleição de George W. Bush nos EUA.
Certamente, em "harmoniá' com sua política imperial, o presidente es-
tadunidense procurará criar novas zonas de influência na Ásia Central
e no Oriente Médio, prosseguirá em seu cerco sub-reptício e silencioso
à China, seguirá tentando limitar o poder russo e buscará produzir fo-
cos de conflitos e crises artificiais nos países da União Européia. Poderá
também invadir algum território soberano da América -Latina, seguirá
assassinando pessoas no Iraque e no Afeganistão etc. etc. As forças de -
mocráticas do mundo encontram-se numa encruzilhada. No entanto,
precisam resistir a Bush e a seus atos, que colocam a civilização em risco
permanente. Sibila passa a cobrar de artistas e poetas norte-americanos
posições claras em relação a Bush. A revista não os discri minará, toda-
via, exige que eles, como fazem, por exemplo, Michael Moore, Douglas
Messerli e Michael Hardt , comecem a se desvencilhar da "ação" fascista,
hitleriana, que dá hoje o perfil daquele país , que, no passado, foi "exemplo"
de de1nocracia. Não é po ssível não ser contra Bush! Não é possível fazer
poesia e ficar indiferente a Bush! Não é possível não agir. Sibila supõe

SIBILA
que uma das muitas formas de resistênciaque pode ser estimulada é a
do dissenso,claro e nítido, mesmo que aparentementeinútil, em relação
às políticas norte-americanas, que, sim, alteraram e alteram, também,
qualquer sentido atual de arte.

RégisBonvicinoe TatianaLongodos Santos

SIBILA
~

UMA SO PALAVRA
Claude Royet-Journoude RégisBonvicino

Claude Royet-Journoud nasceu, em 1941,na cidade 11

de Lyon, na França. Vive em Paris há décadas. Traba-


ll1ou,durante trinta anos, numa tetralogia poética que
foi sendo lançada por partes: Le Reversement (1972), La
notion d'obstacle(1978), Les objets contiennent l'infini
(1983) e Les natures indivisibles (1997), todas editados
pela Gallimard. Organizou, ju11tamente com Emma-
nuel Hocquard, duas importantes antologias de poesia
norte-americana: 21+1poétes américains d'aujourd'hui
(1996) e 49+1 noveaux poetes americains (1991). É tam-
bém artista plástico. Está traduzido para o inglês, o
grego, o espanhol, o dinamarquês, o italiano, o rome110,
o galego, o sueco e o português, de Portugal e do Brasil.
Fiz, há algum tempo, a tradução de parte de seus poe-
mas. Em Sibila n. 2 (2002), publiquei Naissance de la
Préposition,trabalho ainda não recolhido em livro, por
ele, na França, e por mim aqui. A seguir, nossa conversa,
mantida , por e-mail, em agosto e setembro deste ano.
Uma "entrevista,,com uma regra: as respostas só pode-
riam ser dadas em uma só palavra.

RégisBonvicino

SIBILA
Você acha que a poesia é hoje inútil?
Contrabanda!
Stéphane Mallarmé é um poeta vivo?
Vívido.
A poesia feita para a página do livro está superada?
Não.
Você acredita em poesia sonora?
'
As vezes.
12 Você acredita em poesia eletrônica?
As vezes.
Você ainda acredita em Marcel Duchamp?
Aos pedaços...
Existem diferenças entre prosa e poesia?
Sim.
Por que Mallarmé é um poeta vivo?
Exatidão.
Você gosta de Corbiere, Laforgue e Verlaine?
Amarelo.
Matisse e Picasso estão vivos?
Fredrikson'.
O que você entende por poeta vivo?
Vivo.
Você aprecia Dadá?
Tzara.
O que você pensa sobre o Surrealismo?
Nada.
O que pensa de James Joyce?
"S.zm.»

E do Finnegans Wake em particular?
Stein.
1. Seu prenome é Lars. Ele, desafortunadamente, morreu a poucos anos atrás. Era um grande
artista.

SIBILA
Você acredita em pós-modernidade?
Yoop!
Você gosta de Francis Ponge?
Sílaba.
E de Ionesco?
Encrenca.
Beckett?
(Danielle)Collobert.
O que acha de Sartre, Deleuze, Lacan, Derrida etc. etc.?
Encore!
Você gosta de Edmond Jabés?
Muitíssimo.
Apollinaire é um poeta vivo?
(Louis) Zukofsky.
Diga uma palavra para René Char.
"résistant".
A língua portuguesa é ininteligível?
Sensual.
Ela soa como se fosse polonês?
Não.
Existe algum movimento de vanguarda hoje em dia?
Brincadeira...
Existe1nbons críticos de poesia hoje?
Escondidos.
Você acha que há mais política literária do que crítica hoje?
Infelizmente.
Diga uma palavra para crítica acadêmica.
Desastre.
Diga duas palavras para Roland Barthes.
Luz/Amor!
O que você detesta em poesia?
Aliteração.

SIBILA
Qual é a capital mundial da poesia?
Dicionário.
O que acha do dadaí smo nova-iorquino?
1451232 •
Você já leu Fernando Pessoa?
Pouco.
Você conhece Carlos Drummond de Andrade?
Sim.
14 É possível que alguém seja hoje um novo Ezra Pound?
Por quê?
Por que você se declara vazio?
(Sem) dinheiro.
Você aprecia espaços vazios?
Respiração.
Você ama as palavras?
Entre.
Você gosta de imagens?
Onde?
E de Anne-Marie Albiach?
Ardentemente.
Você apóia Mr. Bush?
Não.
O francês é uma língua minoritária?
Óbvio.
É possível ser Rimbaud hoje?
Ação!
Como você se sente no Museu do Louvre?
Animado.
Você gosta de museus?
(Da) calçada.

2. O 145123 é referência a um trabalho de Picabia.

S 1BILA
Cite dez poetas franceses contemporâneos?
Não.
Você acredita em Tristan Tzara?
Aproximadamente3 •
Você sabia que BlaiseCendrars viveu um tempo em São Paulo?
Piratininga.
O que você pensa sobre o trabalho de Blaise?
Admiração.
Diga uma palavra sobre Brancusi?
Uma.
Matisse seria possível nos EUA?
Não.
Você imagina uma pessoa fazendo poesia com pipocas?
Alguma.
Você pensa que Baudelaire é u1n poeta vivo?
(PierreJean)]ouve.
Zidane ou Ronaldo?
Ambos.
Uma loja ou um supermercado?
Ambos.
Branco ou preto?
Ambos.
O que você pensa sobre o punk rocke sobre Sex Pistols?
Pop.
Você acredita em pop art?
Sexo.
Você acredita em Andy Wharol?
Manhã.
Você acredita em Hollywood?
Tarde.
3. Approximatif está no título de um lindo livro de Tristan Tzara chamado I.:Homme approxi-
nratif.

SIBILA
Você acredita em Jean-Luc Godard?
Sim.
Você gosta de Charles Aznavour?
r '1
1a.
Por que os poetas americanos se parecem com executivos ou
vendedores?
Mentira!
Você gosta dos iraquianos?
Humano.
Você bebe Coca-Cola?
Pepsi!
Diga uma palavra sobre Salvador Dalí.
Outra...
Por que outra para Dalí?
Despreocupado.
Diga uma palavra sobre o poeta norte-americano George Oppen?
Luz4.
E para Man Ray?
Preocupado.
E para Miró?
Gratidão.
E para García Lorca?
(Jack)Spicer.
E para Picasso?
"P.zcassc"5•

4. Luz, em minha resposta para George Oppen, significaLumiere...Luminous... eu estava pen-


sando em seu último poema:
"Apoetry of the meaning of words
And a bond with the universe
I think there is no light in the world
but the world

And I think there is light"


5. Aquieu cito uma palavrado poema de Aram Saroyan...(Eu adoro este c no final!Equase um Q).

SIBILA
Vocêacha que a LanguagePoetryé uma diluiçãode Gertrude Stein?
Incisão.
Vocêpensa que a LanguagePoetryé diluiçãoda poesia concreta?
Não.
Diga uma palavra para a poesia concreta.
CC •A•"
oxzgenzo.
Alguémaqui no Brasildisseque ToutArrivede DominiqueFourcade
é uma cópia de Galáxiasde Haroldo de Campos?É mesmo?
Errado. 17
Diga uma palavrasobre JacquesRoubaud?
Essencial.
Diga uma palavrapara JasperJohns?
Aliteração.
Uma para Tarsilado Amaral?
Léger.
E para Léger?
Amaral.
Vocêacha que os EUA estão sob uma ditatura hoje?
(Ainda) não.
Vocêacredita na democracia?
Sim.
Diga uma palavrapara Borges?
Olho.
Diga uma palavrapara Bréton?
Solidão.
Diga uma palavra para a palavra.
Talvez.
Diga quatro palavraspara Joachimdu Bellay.
'cegrand espacevide".
O que você acha do desconstrutivismo?
Fotogramas.

SIBILA
E sobre a Bauhaus?
Klee.
Qual foi a última vez que você leu Ri1nbaud?
Sexta-feira.
Quem merece duas palavras?
pauloleminski.
Quem merece três palavras?
Sintaxe.
18 Quem não merece nenhuma palavra?
Silêncio.

SI B1lA
DESENHOS
ClaudeRoyet-Journoud

- V-~~

~
••
:L~
&oJJJ._
PROSAS
EvandroAffonso Ferreira

PUNFAS! 21

Funambulesco pensa que pode me lançar à margem hã hoje sou


uma Bovary pronta pro adultério eh-eh chega ufa que rufem os
tambores do brejo: primeiro bufonídio que coaxar nos meus
ouvidos fuque-fuque-fuque puh marido funambulesco pensa que
pode fazer gato-sapato deles meus sentimentos só porque foi
príncipe u1n dia.

ARRE LÁ!

Aie agüento mais de jeito nenhum escaldo -rabo dela parentela


toda ixe extinto pai apre últimos arquejos dizia lamuriante:
urubu jr este incuravelmente caído no caminho da desonra puf1
me leva pra cova agindo assim hã dia todo comendo verduras
legumes frutas frescas fu!

ZELOTIPIA

Ave de Juno aquela dia todo desfilando revestida de pompas


nada-nada preocupada por exemplo com a doutrina panteísta de
Spinoza ou com a metafísica plotiniana do Uno bah só pensa
purutacotataco em abrir a cauda em leque mostrando sua
plumagem convenhamos belíssima.

SlBILA
BORDALENGO

Aiuê tiro saiu pela culatra eh-eh maldade humana não conhece
margens fronteiras nascentes oxe malfazejo autor de
iniqüidades ano todo anzol dele pescador tição do inferno
vupt mas hoje bem-feito! quis enganchar boquinha da piabinha
aqui pluft furou o próprio olhinho .

22 CAFRICE

Sujeitinho multiloqüente feito eu puh ira do Senhor talvez


oxe melhor seria se Ele me rachasse com açoite me levasse ao
cadafalso tudo menos isso aie adeus palanfrório parolagem
parolice quejandos pufl súbito ficar para sempre privado do
uso da palavra por defeito orgânico purutacotataco que merda.

BASBALHOSTE

Desfecho doloroso apre bisbórria aqui desalumiado rezingando


pelos cantos oxe vida toda luz viva huifa tempo todo
fosforejando preluzindo resplandecendo huumm ser ilumi11ado
literalmente pirilâmpico aie desfecho deprimente velho feito
eu terminar com todos eles órgãos luminescentes desativados
apre.

SIBILA
SACA-TRAPO

Sei que tudo zás-trás demora só um instante hã que seria


inócuo vicejar primaverasperpétuas hã que quintal arvorejado
este aqui pode se transformar logo-logonum espigãoneo-
moderno hã que arapucas estilinguescousalousame espreitam
de foz em fora hã que por essas-outrasben1-te-visorrateiro
aqui vez-e-sempreploft na cabeça deles.

ENVISCADO

Barnburristaaquela de trololó arrebitado anca empetecada


pe11saque é dona do mundo hã caminha feito quen1agita
turíbulo imaginário eh-eh encanta igualmenteformicídeos
machos e fêmeas ixe veja apre nu11cavi em toda minha longeva
vida fileiraquilométrica de baba-ovosseguindo extasiados
u1natanajura.

EMBIOCADO

Sujeitinho achamboado pensa que já desembraveceuo intrêmulo


aqui eh puxa estalido do chicote dele hã não vai 1nedeixar
1nirradode medo hum esperar pouquinho 1naisehu quando domador
brocoió ficar mais carnudo enxudioso mesmo nham circo cheinho
assim babau janto ele às escâncaras.

SIBILA
ALARIFAGEM

Criatividade deles inextinguível sobrenatural inexaurível


cousalousa ufa próxima encarnação eu histricomorfo revelhusco
prometo ficar mais atento ixe crepúsculo da vida assim mesmo
hã ficamos alheados que só vendo apre também! ratoeiras cada
vez mais modernas -dissimuladas ixe imitando queijo suíço
tinha visto ainda não puh.

FATILOQQENTE

Gênero humano inventa cafanga dizendo que patrazana feito eu


gosta de viver nelas pocilgas fu! sou suíno badalhoco mucufo
molongó por acaso exe homens desventurados determinaram nossa
porquidão mas dura lex sed lex desforra eh-eh post mortem
ulalá deixamos colesterol deles hã altíssimo.

SIBILA
ex e r e í e i o e s p i r i tu a l*
JoselyVianna Baptista

Aqui pocas letras bastan,


pues todo es como papel en blanco.
MANUEL DA NÓBREGA. Carta 8 (1549)

.
r 1s c o

no portulano

da areia

o roteiro do error
- do latim
errore:
vogar sem rumo

como o dos ascetas


-se m fim-
e dos apaixonados

fadado ao êxtase
e ao naufrágio

• Do livro inédito MoradasNômades.

SIBILA
POEMAS
Angela de Campos

PARADOROS

Ser só pedra
vértebra
na perpétua cordilheira
sem ênfase
estar estático
em movimento único
inefável e claro
coisa sem assombro
ser só onde
tudo tropeça
e permanece.

Arties,junho de 2002.

SIBILA
PARADOR06 27

gargantade rocha
tritura pedras
com a salivado Rio
correria de vento
lixa constante
regorgitao tempo
no chiar das cigarras
1nv1
• •
s1ve1s
I •

- ao lado zurram
sem perceber
o silêncioda cabra

que passa e vai
longe-,
nuvensse coagulam
no céu
da boca

EArdeche,julho de 2002.

SlBILA
PARADOR07

coisas que persistem


tempos superpostos
lugares que são estados
• •
mus1ca1s
em berço líquido
envolvem
e mesmo ê gora abrigam
o suspenso eminente
• • I
que ex1st1ra
e não se desvelará
que se sabe sendo
todo eterno
enquanto amanhã
- café água cigarro
no centro
tudo azul e preto em
volta
vermelho
entre

Bordeaux, agosto de 2 0 02 .

SIBILA
ENSAIO Eder Chiodetto
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P4 -

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A FERVURADO AIRE
Antonio Domínguez Rey

Subín ó monte cheo


de ruído s e espantallos
que arredaban as aves
sen poderen picar
os grans da mifia sombra.
Adentreime entre os pífios
e sentín lenta a luz
no corpo, xa baleiro
da teima que porfía .
Ergueito, nu, cos brazos
oferentes, as febras
do sol nos lises tenros,
cantei vellas gabanzas
á humidade das fontes,
ó arrecendo da terra,
ó rulo dos paxaros
no segredo da fraga.
Vivín, lonxano, o arrolo
do mar nas ponlas luídas
e fun herba silvestre
ou mastro na marea
sobranceira das árbores.

***

SIBI LA
Este balbor que sobe
dende o fondo da ría
a.ta o cumio do monte
, .
non e escuma n1n mera
do océano nas rochas,
nin os eixos dos carros
que voltan con queixumes
e laios ós cubertos.
Tampouco a serpe cega 41
do tempo entre eucaliptos.
A rolda da autoestrada
na estrema do remol
enche de néboa os anos
como un bosque de teas
de arafia nos oídos.
Larvas ocas o conco
Abrollado do día.

***
Voa, paxaro, ó fondo
pecho do ceo, voa.
A mifia inquedanza abre
de anseios a gaiola.

Voa, corazón, voa


ó máis lonxe da vida,
que non me cabes dentro,
e douna por perdida.

***
ó respirar resoa
a brisa nos pulmóns

SIBILA
como gorxa das augas
correntes no follame
desleirado dos vieiros.
O aire rolda no aire
coas azas da s palabra s.
O alento esvae sempre
un paxaro de lume
invisíbel e acende
a fervura bendada
da arxila no poema.

***
Hora na que a palabra,
sen ser, lucente abrolla
a vertixe do instante.
Inquedanza da so1nbra,
premura devanceira
que rexorde o tecido
do ceo con agoiros
e xemidos de cobre.

***
Morreron as palabras,
as frases, a sintaxe
do mundo. O que non morre
é a fervura do aire,
as raíces dos talos
que ruben polas gorxas
agoirando palabras.

SIBILA

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MOMENTO CRITICO (MEU MEIO SÉCULO).


Alcir Pécora

Quepena o Diabonão existir.


44
CARLOS DE. OLIVEIRA, O Aprendizde Feiticeiro

Fui convidado pelo Fábio Chiossi, da Folha de S. Paulo, para


participar de um debate sobre LiteraturaBrasileiraHoje,de Manuel
da Costa Pinto, no auditório do jornal, ao lado de Artur Nestrovski,
editor da Publifolha,e João Cézar de Castro Rocha,professorda UERJ.
O livro, para resumi-lo numa frase,selecionavatrinta poetas e trinta
prosadores que o autor consideravaos mais relevantes da produção
literária contemporânea.
Gosto de top lists,gosto de fazere discutir escolhas,e talveztivesse
gostado de ir ao debate,não fossepela coincidênciada sua data com a
do meu aniversáriode cinqüenta anos,para a qual já tinha combinado
uma comemoração com a família e os amigos.Para complicar ainda
mais a possibilidadede comparecer a ele, havia lido apressadamente
o livro e percebido que se tratava de um trabalho muito incipiente,
que não me parecia render grande coisacomo reflexãocrítica.E havia
ainda o detalhe não pequeno de que se tratava de um debate no dia
do lança1nentodo livro, ou seja, um debate que deveria promover o
livro e não discutir seriamente a seu respeito, o que, no caso, impli-
caria certamente criticá-lo. Como não me agradava especialmente

" Esta é uma obra de ficção.Nenhum dos lugares,pessoasou objetosvariados referidos têm
qualquer responsabilidadesobreo que vai inventadoaqui.Ou têm apenas na medida em que
não se sabe exatamenteque tipo de coisa é responsávelpor uma invenção.

SIBILA
a idéia de fazer ali o papel de um estraga-prazer, inevitável,caso lá
comparecesse,sendo o livro como é, e eu tal como sou, acabei recu-
sando participar. À noite, no momento em que o evento deveria estar
acontecendo, eu me encontrava celebrando minha longevidade, no
meu restaurante favorito de São Paulo,o Arábia.
Não ter aceito o convite,contudo, não me poupou de alguna con-
versa sobre o livro, pois vários dos amigos que me acompanhavam
eram do ramo da literatura - e quase acrescento"infelizmente»,uma
vez que acabou dando nisso mesmo que vou contar aqui. Pouco 45
adiantaram os meus protestos de que eu estava no Arábia a fim de
fazer o que ali havia de ser feito, isto é, comer e beber, e não debater,
uma vez que deixara voluntariamente de comparecer ao localpróprio
para isso.Pediram-me ao menos que lhes dissesse o que não gostara
no livro. Jurei-lhes que essa seria minha última palavra a respeito, e
depois disso, se quisessem continuar com aquela discussão, que o
fizessemà vontade, mas sem mim, que me comportaria então como
simples e desinteressado espectador.
Tendo todos concordado, observei rapidamente que o livro me
parecia sofrer de toda sorte de problemas,desde os teóricos e críticos,
que me interessavam mais, até os de falta de rigor e relevância no
estabelecimento de critérios coerentes da seleção de autores, já que
havia muitas ausências injustificadas,muita descrições equivocadas
de obras e ainda um corporativismo flagrante em muitas escolhas.
- Eis tudo - completei - agora, à kafta!
Mas qual! Todos estavam menos com fome de comida do que de
palavras, o que bem demonstra a insensatez daqueles meus camara-
das, ou a minha, já que escolhi passar ao lado deles a comemoração
do meu meio século de vida. E na minha família,devo registrar aqui
solenemente, datas são um negócio muito sério. Minha irmã Aline,
por exemplo, já desfez um casamento porque o marido não achou
que tinha obrigação de levá-la para uma viagem comemorativa.
Também os meus amigos, como o ex-marido, não levaram em conta

SIBILA
os meus protestos. Alguma hes itação que tivessem em me contrar iar
não resistiu à fala de Cristiane, m inh a mulher, que os liberou para
tagarelarem à vontade:
- Alto lá, meu caro: já que você não quer falar mais nada, não
fale mais nada. É seu presente de aniversário. Mas nós vamos falar a
respeito do livro, pois o assunto é relevante . O livro tem repercussão,
ao menos em São Paulo, quer por ser lançado pela Folha, quer por
se tratar de um crítico que escreve regularmente no jornal, cuja fala,
46 portanto, independentemente de seu mérito próprio, tem sempre
alguma ressonância.
- Cris, please, relevante é o sabor desta kafta!
Como se não tivesse me ouvido, Cristiane adotou para si o papel
de moderna Isabela D'Este e propôs o seguinte aos meus amigos:
- Para organizar o simpósio, vamos dividir inicialmente os problemas
em cinco ou seis diferentes ordens, tais como as que o Alcir enun1erou,
e então tentaremos enunciá -los de alguma maneira razoável. Assim
alimentamos a cabeça, e não apenas o estômago, como parece ser o
deliberado cuidado do aniversariante. Cuidado, aliás, curioso: como
se pensar à mesa fizesse doer o estômago ou estragasse a digestão.
Velhice pode significar talvez isso mesmo: uma disposição severa de
se poupar ...
- Sim, a velhice chegou para você, meu amigo - completou crua-
mente o Paulo Franchetti, dois longos meses mais jovem que eu: - não
é apenas o meu ouvido esquerdo que já não ouve os grilos, mas tam-
bém a sua boca e o seu cérebro, que já não assoviam juntos.
- Que espécie de imagem é essa? Você mal chegou e já está cheio
de arak, meu velho. Não tente ir além desse ponto de incongruência
e tome lá esses valentes quitutes de sua antiga gente - disse eu, ape-
lando para o Elias Allane que ainda havia nele. E voltando-me para os
outros, jurei: - Já lhes disse que, de minha boca, não sai uma palavra
a mais do que as que deixei de dizer no debate a que não fui.
- Perfeito - disse Cris -, não é preciso que diga mais nada. Mas se

SIBILA
você não serve para debatedor, não vamos tolerá-lo como censor.- E
para os outros: - Qual era mesmo a primeira ordem de problemas
referida pelo nosso crítico mudo?
- Teoria - disse o Paulo -, este é o ponto agora. Qual é a questão
que ela suscita no livro?Aliás,alguém aqui leu o livro? Quem não leu
não tem direito de opinar.
- Eu li - arriscou iniciar o debate um avermelhado Eric Sabi.I1son,
amigo e colega de Departamento. - E tive uma sensação estranha:
o livro fala de literatura atual co1no um jovem... do século xrx. Por 47
exemplo,o autor parece jamais ter sonhado com qualquer coisa fora
de u1naconcepção representacionalda literatura. Isto é: de uma litera-
tura tomada como reflexo,ou mesmo como transcriação da realidade,
mas sempre como uma coisa que existe apenas e1n função de uma
realidade supostamente completa fora dela.
- Pois é - acrescentou o Paulo.- A literatura mesma não é pensada
ou reconhecida como ato de realidade.Ato pleno, que realmente faz
coisas ao dizer, que interfere, e não apenas que reproduz ou informa
o já existente ou autônomo em relação à palavra. O autor é, em suma,
certamente mais velho que o aniversariante de hoje, pois há bem mais
de meio século isto caducou.
- Caducou e já foi tarde! - continuou o Eric. - Não tenho ne-
nhuma saudade dessa velha mitologia iluminístico-romântica, na
qual literatura e mundo são,primeiro, uma dicoto1nia;segundo, uma
dicotomia pensa, na qual só o mundo tem peso.
Achei o Eric um pouco retumbante de1nais para um início de
noite. Devia estar tenso por sair do brejo de Barão Geraldo e de se
ver no meio de tanta gente. Pensei comigo que ele se sairia melhor na
defesa de seu ponto de vista se lançasse contra os representacionistas
alguma alegoria cujo herói fosse seu velho cão, o Gigli. Sempre me
admirei da maneira como ele girava sobre si mesmo até encontrar a
perfeita implantação no terreno para deixar sua merda. Se o terreno
fosse o mundo e a merda a obra literária, não teríamos u1naperfeita

SIBILA
imagem do caso? Um representacionistaacharia que a merda era pura
transparência, e que apenas o chão era suficientementeconsistente ou
real. la pegar naquela merda toda e jurar que o cheiro que inundava
o lugar era apenas perfume da grama. Eu iria adiante na exploração
de minha imagem canina e merdácea, se meus pensamentos não
tivessem sido interrompidos pelo Paulo:
- O aspecto representacional da obra... - Isso mesmo, da "obra»
- pensei comigo - ... literária, pressuposto pelo livro, está ainda, no
48 caso, a serviço de uma concepção nacionalista da literatura, quer o
autor queira ou não. Pois, no livro, o princípio representacional as-
socia-se ao chamado "sistema literário»,de extração candidiana. Evi-
dentemente, a condição de legibilidade do "nosso,,sistema literário
apenas se sustenta com base na noção de nacionalidade autônoma
e num método cuja precedência analítica é sociológica, no qual a
literatura é apenas meio de entrada numa realidade mais profunda,
mais decisiva ou complexa.
Eric voltou à carga, desta vez, para minha felicidade, de mente
dada ao bravo Gigli:
- O nacionalismo ficaevidentejá no velho e constante emprego da
fórmula:"nossâ' literatura,"nossâ' poesia,"nossa"prosa, enfim,"nosso
sistema literário': O conceito supõe e produz uma comunidade na-
tural e homogênea - "nós»!Mas, como já disse o Tonto: quem somos
"nós': cara pálida? O meu cão, por exemplo,sempre que passa uma
cadela em frente de casa,vai correndo me chamar para vê-la desfilar.
Ele nunca suspeitou que eu não fosse também um dos "seus",isto é,
um de "nós,,,os cães.
O meu amigo de infância, Celso Queiroz, que fazia aniversário no
mesmo dia e viera do Rio para comemorarmos juntos, surpreenden-
temente empolgou-se com a questão:
- "Nós"é um saco ideológico;no meu, é um tremendo pé. Quando
alguém escreve"nós': eu logo penso: lá vem chumbo. E vem sempre o
enunciado de uma gente muito comum, muito igual,que em seguida

SIBILA
vira universale transforma o resto em "resto".Para cada"nós':há sem-
pre uma porrada de "não-pessoas':o residual irrelevante.
Paulotornou ao raciocínioanterior,estranhando um pouco a vee-
mência do Celso,cujo humor entre o sangüíneo e o colérico,sempre
chegavaao início em ponto de bala, e completou:
- Para mim, uma das conseqüências da articulação de represen-
tação e nacionalismo está clara: a discussão literária que há no livro
simplesmenteignora as questõespoéticas,quase nada é dito de ritmo,
métrica, figuras,disposição... 49
Régis Bonvicino,que havia se mantido calado até então, deu aí o
seu palpite:
- Ele também não diz nada a respeito do debate literário inter-
nacional e contemporâneo. Os poetas internacionais citados - dos
prosadores, nada digo - são todos do fim de século XIX, começo do
xx. Quem lesse o livro desavisado,ia achar que estamos na iminência
de uma revolução modernista!
- Sim, nada diz do debate internacional. E sabe por que não diz,
nem pode dizer? Porque isso certamente o levaria à problematização
da idéia de comunidade nacional natural, da qual o livro é inteira-
mente tributário - arrematou o Eric.
Cristiane aplaudiu a conclusão e considerou sabiamente que já
era hora de virar o disco. Claro que, ouvindo isso,não perdi a opor-
tunidade de contestar:
- Caríssima,por favor,já tagarelamosdemais sobre o pobre livro.
Desse jeito, aliás, falando tanto dele,vocês vão acabar valorizando-o
mais do que merece. E, francamente, esta mesa magnífica não está
sendo honrada como deveria. Diante dela, não é razoável nenhum
tipo de avaliaçãoque não seja gastronômica.
Como se estivessem combinados entre si, todos me mandaram
ficar quieto, já que não me dispunha a participar da discussão.Tive
de me calar, entre vaias; e embora vaiado, não tardei a recuperar a
alegria com um saboroso babaganuche.

SIBILA
- Vamos falar um pouco de questões de crítica - determinou Cris-
tiane. - Mas antes de passar a palavra a mais alguém, queria dizer que,
ao ler o livro, me espantou a razão alegada para a fixação do número
"sessenta" como limite para a escolha dos autores. Diz Manuel que
como o livro dele é o número sessenta da coleçãoFolha Explica,achou
oportuno escolher sessenta autores! Não se trata apenas de arbitra-
riedade, pois bem sei que toda escolha pode dar margem a alguma
arbitrariedade, justificada de uma maneira mais justa ou menos justa,
50 mas a questão aqui é outra. A razão da escolha,mais do que arbitrária,
é boboca; mais do que boboca, é frívola. Não lhes parece que essa
adoção pacífica da frivolidade ofende a área? Falo disso porque, na
minha, a da História da Arte, essa pecha n1eincomoda muito.
- É uma merda - concordou prontamente Luis Dolhnikoff, que
aproveitara aqueles dias já friozinhos de outono para voltar a dar o ar
de sua graça na sua cidade natal. - E um sintoma de um apequena-
mento geral. Nesse caso,para tentar escapar um pouco pela tangente,
o livro agrega poetas-penduricalhos aos poetas-verbetes. Eu mesmo,
aliás, sou um poeta-penduricalho. Como aqueles filhotes de orango-
tango, que ficam pendurados por um braço no corpo da ...
- Mas há coisas mais graves a dizer - aparteou o Celso. - Ta1n-
bém folheei o livro, e achei que tudo nele era "glosa da glosa".Li essa
expressão num livro do Eduardo Lourenço, com a qual ele designava
o que costumam fazer os críticos e admiradores de Saramago, que
muitas vezes apenas parafraseavam o que ele próprio dizia a respeito
de sua obra.
Pensei comigo que, no Brasil,o mesmo ocorria com vários críticos
do João Cabral, mas, claro, calei-me. Não queria uma nova sessão de
vaias no combalido lombo cinqüentão.Entretanto,continuava o Celso:
- Não conheço procedimento mais contrário à crítica do que esse,
que adere aos próprios pressupostos do autor ou àquilo que o autor
diz de si; aliás, ele sempre o diz, como é comum a todos, escritores ou
não, de modo a parecer melhor do que é ou acredita ser.

SIBILA
- A expressão "glosa da glosa" é boa - era o Luís novamente -,
ou seja, pseudocrítica. Essa atitude é mais do que evidente no livro.
Por exemplo, nas inúmeras vezes em que incorpora versos à própria
argumentação. Olha aqui o que diz do Manoel de Barros ... - saca o
livro de algum lugar, e lê alto: - "A poesia de Manoel de Barros dá voz
a um 'indivíduo que experime11taa lascívia do ínfimo"~Assim, versos
do próprio poeta, postos fora de contexto, ganham foro de verdade e,
o que é involuntariamente engraçado, de descrição factual.
- Crítica rendida à glosa... - completou e suspendeu o Paulo, en- 51
quanto tentava discar algum número num celular azul cobalto. Mas
é possível que tenha realmente completado a frase, e simplesmente
eu não a tenha ouvido, com a ressonância aguda em meus ouvidos da
frase: "indivíduo que experimenta a lascívia do ínfimo'~Ninguém de-
veria ser obrigado a ouvir algo assim à hora da refeição, 1nuito menos
ao mastigar aquelas deliciosas folhinhas de parreira encharcadas de
azeite libanês. Uma frase dessas, por si só, deveria banir - ad nutum
- o seu autor de qualquer antologia literária, até o fim dos tempos.
Pensei em dizer alguma coisa em protesto contra aquela frase estúpi-
da, 1nas me co11tivea tempo e preferi co11tinuarmastigando aqueles
admiráveis charutinhos.
Entretanto o Luís prosseguia, não sei se tão bravo quanto parecia:
- O caso do Haroldo de Campos é ainda pior. Ouçam isso:"o'labor
sintaxista' se traduz em poemas cujas palavras compõem ideogra-
mas'". Deixa11dode lado o fato de que não imagino o que signifique
"cujas palavras co1npõem ideogramas': trata-se de uma paráfrase do
próprio Haroldo a respeito das suas pretensões. Porta11to,o livro com-
pra a pretensão de graça e a repassa como verdade, o que se agrava ao
não dar o crédito devido.
'
Régis co11cordou:
- Sim, não há créditos ...
Ia prosseguir o raciocínio, mas o Luis não afrouxava a mordida:

SIBILA
- Um minuto só, Régis.Ainda sobre o Haroldo, mais especifica-
mente no que é dito a respeito de Galáxias,o livro continua tomando
o alheio e passando -o adiante como próprio. Apesar das aspas,notem
como o livro define o poema:"É uma espécie de 'prosa do significan-
te": Ora, é o Haroldo quem diz que o livro é "prosa do significante':
Sem dizer a origem,o livro afirma tranqüilamente que Galáxiasé uma
prosa do significante.E a destaca como a melhor obra do autor numa
seção de... poesia brasileira.
- Quer dizer que a melhor obra de poesia brasileira está em prosa?
- indagou espantado o Eric,nunca suficientementeacostumado com
as inovações locais, as quais a bem dizer ele amava, mas nunca sabia
atinar porquê. E olhava a todos com um riso deliciado.
- É. Galáxiasé prosa, apenas não tem narrativa. Falo da linguagem
- confirmou Luís. - O que, não por acaso, está explícito no livro: seu
primeiro fragmento, espécie de introdução, fala de mil e uma noites,
estória,começo,fim,fábula...
- Isso não me parece tão simples - discordou o Celso, que ia
acrescentar as razões de sua dúvida, quando foi interrompido pela
Cristiane:
- Espera aí, Celso,mais tarde podemos voltar à questão do gênero
mais adequado a Galáxias,mas agora concentremo-nos na questão
da crítica que se comporta como glosa. - A tentativa de disciplinar
aquele bando me pareceu comovente.
- Certo. Tenho outro exemplo - prosseguiu um animado Luis:
- Vejam: diz o livro que a poesia de Gullar "nasce da experiência e
do espanto': Porra, a idéia de que "a poesia nasce do espanto" é uma
declaração famosa do próprio Gullar,depois transformada em verso.
E está outra vez incorporada como fato.
- Não há créditos... - insistia o Régis,sem conseguir interromper
o fluxo dolhnikoffiano:
- Régis, por favor, um minuto só. Outro exemplo: o que é dito
do Carlito Azevedo,poeta, aliás, de quem tenho vontade de escrever

SIBILA
algumas coisas. - E olhou meio enviesado para o Régis, que havia
deixado de publicar uma crítica sua para a revista Sibila. Régis notou
o olhar e não gostou:
- Um momento, Luis.Você está querendo me dizer alguma coi-
sa, diga logo. Por mim, publicava e publico ainda agora o seu texto
sobre o Carlito. Só não podia passar por cima do Conselho Editorial
daquele número. Tinha gente lá que achava o tom muito pesado, mas
não eu, de jeito nenhum. Aliás,agora é você que não quer que ele seja
publicado, pois eu já lhe pedi novamente o artigo. 53
Luis prosseguiu, sem polemizar: - Certo, Régis, depois a gente
conversa. Mas ouçam isto: Carlito Azevedo "evita cuidadosamente
cair na abstração formalista».Mas ape11asporque escreveu em Ao Rés
do Chão:"Aidéia é não ceder à tentação / de escrever o poema desse
não - // lugar..:~
- Francamente - arrematou o Abel BarrosBaptista,querido amigo
português, que chegara há instantes e estivera a ouvir com vago inte-
resse a fala do Luís -, admito que é confiança demais nos enunciados
dos próprios autores a respeito deles mesmos.Em todo caso, a crítica
é sempre o oposto da glosa.Ela trata de desapropriar o autor de seu
texto, entregá-lo a leituras sem mais dono ou controle autoral.
- Ótimo, Abel - disse o Paulo, folheando o Literatura Brasileira
Hoje.- Com isso, você liquida também o romantismo encomiástico
e kitsch que o livro dá como sendo o seu propósito crítico:"compre-
ender o alcance e a permanência da aventura da escrita':
Por mim, achei a frase até tocante, mas todos se puseram a rir
como se fosse a coisa mais engraçada do mundo. O Régisapenas não
pareceu achar graça, preocupado em retomar o ponto que mencio-
nara anteriormente:
-: Notem que o livro quase não faz menção a críticas anteriores
a ele, ou às fontes das críticas que adota como suas, embora inclua
poetas já maduros, sobre os quais muitos já escreveram.E, nas poucas
vezes em que cita alguém, é, em geral,incongruente. Por exemplo,ao

SIBILA
citar Wittgenstein em relação a Marcos Siscar,que é referido no verbe-
te dedicado ao Júlio Castaflon. Nada contra o Siscar,ao contrário, 1nas
a citação não é própria, nem faz sentido. Como disse o Alcir naquele
artigo da Folha,é o método Costa Lima: citar Baudelaire e Kant para
falar de Uchoa Leite.
- Régis! - protestei eu, que malgrado minha vontade, acabava
prestando atenção na conversa - eu não chamei isso de método, nem
o batizei com o nome do Costa Lima, crítico a quem admiro. Disse
54 ape11asque o Costa Lima,às vezes,faz crítica dessa maneira: lançando
referências demasiado distantes ou elevadaspara poetas muito menos
conhecidos, ou de bitola mais estreita,na linguage1npitoresca daquele
antigo deputado frasista do PFL. Jesus! Não se pode descuidar um
instante e vocês já lançam alguma maledicência! Sorte que o Costa
Lima não está ouvindo, senão não ia me perdoar nunca.
- Também quero palpitar nessa história de incongruência - in-
terrompeu-me o Paulo, que volta e meia se ausentava da mesa para
conversar ao bendito celular azul. - Deixe-me ver. Eis uma delas,
logo no início do texto, página 15: "Todas as manifestações [poéti-
cas] surgidas nas últimas décadas trazem entranhada uma poética,
uma teoria da poesia ..:' - Isto são termos genéricos para se referir
ao construtivismo lato senso do século xx. Na página 16, entretanto,
conclui: "A poesia brasileira apresenta um afresco variadíssimo de
tendências ..:'Não entendi: está entranhada a unicidade construtivista
ou é um afresco variadíssimo?
- As noções confusas estão pelo livro todo. Conceitos vários,
como "poesia formalista", são usados sem indicação das fontes, e,
portanto, sem especificação de seu sentido. Também está cheio de
lugar-comu1n ou truísmo. A impressão que fica é de arbitrariedade
sem explicação. - Era o Régis novamente: - Ouçam o que ele diz do
Waly Salomão: "Aoralidade demoníaca e a logopéia de Waly confun-
dem prosa e poesia".Conceitos tributários de qual crítica, de quem?
E afinal, o que vem a ser "oralidade demoníaca"? O que é "oralidade

SIBILA
logopaica"? Como diria o grande Roberto Avalone:"oralidade demo-
níaca e logopaica"? Meu Deus!
Outros queriam dar palpites, mas Régis, com razão, não permitiu
apartes, já que esperara bastante para falar: - Quero apenas dar mais
um exemplo. Ao falar do poema "Barulhos" do Gullar, na página 25,
diz que se trata de "poesia corpóreà'. Ah, pois não: "Poesia corpórea"?
Meu Deus! Também acho que o livro faz uma completa confusão
entre o que se pode entender por "vanguarda", ''concretismo" ou
((• - ))
movaçao. 55
- Espera aí, Régis,você já deu mais de um exemplo - protestava
o Eric, que como homem bom e americano, acreditava que havia um
sentido no sentido literal.
- Só mais o seguinte: a poesia brasileira, no livro dele, toma a apa-
rência de uma rede de "influências",focando assim a crítica na repeti-
ção e não na superação. Carlito é drummondiano, fulano é muriliano
etc. etc. Que literatura decente pode ser concebida assi1n?
- Boa pergunta! O resultado disso é o que mais funciona com n1ui-
tos dos poetas do Brasil:não a "angústia da influêncià', mas o "orgulho
da influência"- disse o Paulo,e acrescentou: - Já souberam desse livro
novo que está para sair sobre o Leminski? Recebi a prova final para
fazer uma resenha para a Folha.É de chorar: de trabalhos de fim de
cursos a ecolalias de curto fôlego,o que temos lá é a proclamação de
que todos ali estão muito satisfeitos de ter um mestre.
- Poetas do Brasil, não: poetinhas do Brasil - retificou o Régis.
- Não é uma pena? - E Paulo continuou: - Mas deixemos os poe-
tas alguns instantes, e voltemos às contradições do livro. Ele afirma,
por exemplo, que "crítica é risco" e, na página seguinte, escreve que
a crítica que ele faz não expressa opinião, mas tenta compreender o
"sistema literário" (o conceito é candidiano, claro, mas o Candido
não é citado, e sim incorporado e naturalizado). Ora, essa é a coisa
menos arriscada que existe no Brasil:adotar a paternidade candidiana
e falar em "nosso sistema literário"! Como se houvesse juízo histórico

SIBILA
natural a determinar uma substância desse tipo. Mas o que há é tão
somente um "cânone,:que se quer natural ou universal, mas que é
sempre uma produção, uma construção circunstancial,com base nas
posições de maior prestígio crítico ou institucional.- Tive a impres-
são de que eles estavamvoltando ao ponto de partida da discussão,e
tratei de me concentrar nos kibese esfihasque chegavamem novas e
empolgantes fornadas à mesa.
- É isso,mas até aí nenhuma novidade.- Era o Eric que voltava a
56 falar,depois de uma verdadeira blitz no prato de kafta .- Esse é o pro-
cedimento usual da crítica dominante no Brasil.Por que vocês acham
que aqui ninguém nunca, ou muito raramente,parece interessadoem
discutir a sério a questão do cânone? A nocão de "formação",como
processo histórico necessário de geração do nacional e do moderno,
sempre obliterou o debate a respeito da contingência política e esté-
tica do cânone.
Régis,entretanto, não parecia comover-secom esse ponto, e ata-
lhou a direção tomada pelo debate:
- Notem mais um problema crítico graveno livro.Há um excesso
taxonômico e generalista: o livro toma a forma de um alçapão: ei,
vocês aí, tratem de ficar em tais lugares!Tudo está reduzido a rótulos,
embora o próprio livro faça crítica abstrata a eles. Por exemplo:Ma-
noel de Barros,rotulado de «regionalista,:é supostamente«resgatado,,
pelo livro: "Como todo rótulo, essa classificaçãoé redutora e põe a
perder a riqueza de uma poética feita de paradoxos e reinvenções
lingüísticas...':Entendi. Mas o livro classifica todos os autores, logo,
reduz a todos.
- O livro também diz que busca identificarsingularidades- volta-
va à carga o Paulo:- e, no entanto, só faz generalizar.Por quê? Porque
os seus critérios analíticos estão, sobretudo, baseados na tal rede de
influênciase clichês que se repetem sobre os autores.
- É verdade. Não há nenhum esforço de leitura nova, mesmo
que fracassada como tentativa. - E Régis mostrava uma expressão

SIBILA
realmente desolada: - Pensem nisso: mais de cem poetas aparecem
referenciados aos trinta eleitos, e o mesmo número aproximado para
os trinta da prosa. Mas literatura é invenção e não tributo. Faz sentido
conceber-se uma literatura de epígonos? O cerco se fecha: vemos uma
literatura epigonal examinada por uma crítica que não distingue, nem
analisa, não discerne, nem hierarquiza.
- A julgar apenas pela quantidade de gente citada e elogiada no
livro, o Brasil é o país com a literatura mais vibrante do mundo - zom-
bou o Eric. Ou talvez não estivesse verdadeiramente zombando, pois 57
é um sujeito dotado de muita benignidade: a bondade participa, por
assim dizer, da sua perversidade. E exclamou: - Eta euforia de brasili-
dade! Mário de Andrade ia ficar orgulhoso de Mr. Costa Pinto. Aliás,
está aqui, achei: Mr. Costa Pinto fala expressamente em "opulência
da matéria-prima" da poesia contemporânea brasileira! Mas onde?
Devemos estar vivendo em países diferentes. Mais uma razão para
duvidar do "nós'~
- É condescendência sistemática. - Também o Luís voltava ao
debate após servir-se de um pouco de tudo o que havia na mesa,
democraticamente aberto ao comércio com a culinária do Islão:
- A desculpa é que não escolheriam maus poetas para integrar um
panorama. O problema é que esse panorama não tem uma gota
de originalidade. Portanto, conclui-se que todos os poetas mais
ou menos conhecidos são bons. Logo, não há maus poetas, nem
escritores ruins.
- Não é um alívio? Estou me sentindo muito melhor. Aliás, não:

estou me sentindo tão bem quanto antes - comentou alegremente o


Eric.
Régis, menos alegre, concluiu, por sua vez: - Não é à toa que o
chamam de "Manuel 4 Estrelas" - E desenhou num guardanapo:
"Manuel 4****". Mostrou-me o guardanapo e assinou embaixo,
enquanto dizia:- Aquele rodapé dele na Folha faz a alegria dos
poetinhas do Brasil.

SIBILA
- Ingrato! - acusei-o, tentando provocá-lo: - Você também
recebeu quatro estrelas pelo Remorso do Cosmos, além de ter sido
selecionado entre os trinta mais. -
E daí? - respondeu-me espantado: - Se não me pusesse lá, o livro
seria ainda pior. Ou não?
Antes que eu lhe respondesse afirmativamente, claro, Luis tornou
ao seu argumento anterior:
- O releasedisfarçado de notícia é procedimento banal no s ca-
58 dernos cult urais. O que não destoa do tom geral. Ninguém parece
muito escandalizado com esse tipo de condescendência. Ao contrá-
rio: o esquisito é se importar ... - A formulação meio catastrofista do
Luís me fez imaginar que ele talvez já estivesse com saudades de sua
distante praia do Pântano do Sul, em Florianópolis. Meu filho Mi-
guel, que também mora na ilha, costuma adotar um tom semelhante
quando vem me visitar e, depois de alguns dias, supõe ter ultrapassa-
do o tempo razoável de per1nanecer respirando fora da água. Pensei
em seguida, bem pragmaticamente, que esse tom entre melancólico
e exasperado podia acabar complicando a minha digestão. Assim,
num esforço para salvar a noite que estava por um fio, aiI1da tentei
uma vez mais acabar com a arenga literária :
- Por favor, amigos, vamos à comida. Calem a boca por uma única
boa hora! Esse maldito livro está simplesmente roubando a minha
festa! Jamais tive um livro discutido tanto assim por nenhum de
vocês. Eu protesto!
- Glutão, comporte-se - disse a Cris, sempre disposta a impedir-
me de esfriar a discussão: - Não quer falar, não fale. Quer comer como
um tarado, coma ... - E antes que pudesse lançar alguma sentença
inapelável contra mim, fui salvo por uma maldição muito mais amena
proferida pelo Eric:
- Em nova-iorquino, quando alguém come assim, se entupindo
de comida, diz-se stuffing it! Portanto, Alcir, bem feito se você ficar
com dor de barriga!

SIBILA
- Isso,Eric! Mas convém deixar claro ao aniversariante que é inútil
tentar nos impedir de falar o que bem nos apraz. Em todo caso, é bem
verdade que já está na hora de examinar outros aspectos do livro.Len-
do as introduções de prosa e de poesia, tenho uma questão a propor.
Na página 10, está escrito que o livro não pretende emitir juízos de
valor, e que lhe basta estabelecer as razões da representatividade dos
autores escolhidos. Esta é, se não me engano, a típica falácia iluminista
da objetividade, do "distanciamento crítico" regido exclusivamente
pelos critérios da razão. Mas o que são "razões da representatividade" 59
senão aquilo a que aludiu o Paulo, isto é, juízos e opiniões de prestí-
gio que se tomaram como naturais, em função da adoção deles pela
maioria do público ou dos especialistas?Assim, são sempre opiniões,
ainda que melhor aceitas ou mais partilhadas. Por outro lado, "distan-
ciamento crítico",mesmo quando exista, não é nenhuma garantia de
acerto da crítica. A verdade de u1na obra não está lá, em si, de uma
vez por todas; ela não é sempre igual a si mesma, essencial e oculta,
para ser revelada pelo tempo, como se ele fosse o 1nelhor intérprete
das obras, como tantas vezes se costuma dizer, muito catolicamente.O
tempo modifica os objetos de acordo com as leituras que vingam. E os
objetos que ficam,como as leituras que vingam, não são o resultado de
uma operação de justiça eterna. Intérprete e objeto partilham a mesma
contingência, e os que se tornam canônicos, apenas resultam assim,
calham de ser assim, sem que nenhuma garantia de qualidade eterna
ou selo de validade por tempo indeterminado se estabeleça com isso.
- Você definitivamente colocou em risco a minha absorção deste
magníficofalafel. Você não tinha suspenso o item "teoria"? Não acho
justo produzir um discurso como esse às onze horas da noite do dia
do meu aniversário! Renovo os meus protestos!
- · Nada de censura disfarçada em choro! - endureceu a Cris. O
bom Eric novamente me acudiu:
- Deixa pra lá, Cristiane. Ele deve estar assim choroso porque se
lembrou do Mick, que não pode vir de Floripa.

SIBILA
- Menos mal então. Tenho ainda uma segunda questão a propor,
aquela que você mesmo vive chamando de «Fla-flu» - disse ela, diri-
gi11do-se a mim. - No ca.so,é verdade, um "Fla-flu» paulistocêntrico.
A questão é: como explicar a longa duração dessa mitologia primária,
tipo«Fla-Flu» mesmo,criada em torno de Mário e Oswald? Segundo a
narrativa tradicional, do lado de Mário sairia a descendência moder-
nista lírica, com Bandeira e Drummond à frente; da costela de Osvald,
no campo oposto, nasceriam Cabral e os concretos. De acordo com essa
6o bagatela,encampada pelo livro, tudo na poesia brasileira contemporâ-
nea pode (e deve) ser deduzido do modernismo ou do concretismo.
- Portanto, no fundo, tudo é tributário, e nada contemporâneo, é o
que se pode concluir - disse o Régis, tornando ao seu ponto principal
de debate. - Um agravante desse tipo de narrativa requentada está
na página 26. O Manuel diz nela que os momentos culminantes do
concretismo ocorreram entre 1956 e 1958. Admitamos que seja assim.
Mas, depois, ao longo de todo o livro, metade dos poetas presentes
são dados como concretistas ou tributários deles. Como entender?
E me digam: afinal, o concretismo te1n data, como tudo o mais, ou é
alguma espécie de vanguarda eterna?
Abel, que ouvia o que o Régis dizia, talvez surpreso por não ter
sido ainda interpelado por conta da sua antiga diatribe nas páginas
da Folha,observou o seguinte:
- Para superar a narrativa do "Fla-Flu", talvez seja o caso mesmo
de se suspender a narrativa inteira do modernismo brasileiro, já muito
desgastada. Penso que a noção de modernismo é ruim atualmente
até para se ler autores de extração decididamente modernista, como
Drummond ou Cabral . Quero dizer: o modernismo esgotou as suas
capacidades descritivas, tanto na criação como na crítica. Na minha
opinião, o próprio Drummond achava isso também. Com um livro
como Claro Enigma, que ninguém entendeu na época e não sei se
muitos entendem hoje, o gesto essencial continua a ser modernista,
pela reivindicação da liberdade, mas, paradoxalmente, pela afirmação

SIBILA
de que essa reivindicaçãosó é coerentese garantir também a liberda-
de de ser...clássico.Persistea idéiamoderna, sem dúvida,mas aliadaà
própria figura do envelhecimentoe do esquecimento,tom melancó-
lico mais ou menos estranho aos outros Andrades.Um poema como
"Legado",por exemplo,é a inversão do toposclássicohoraciano do
monumento de bronze,vazada em soneto quase convencional.
Enquanto tentava limpar o chanclicheque havia caído em minha
jaqueta de couro preta, lembrei-me também de "Rapto':um poema
todo camoniano a aplicar o antigo toposdo rapto de Ganimedespor 61
Zeus.Entretanto,Abelfinalizavao seu argumento:
- Quero dizer que, neste caso,como no de muitos outros poemas,
há pouco interesseem lê-los como poemasmodernos.Se Drummond
se lê no modelo modernista, então envelheceu.- Disse,e em seguida
se despediu apressadamente,alegando que só passara mesmo para
me deixar um abraço,pois estavamuito cansado da viagem e ansioso
para chegarao hotel e repousar um pouco.Depois,confessou-meque
gostavade comida árabe ainda menos do que de sardinhas.Agradeci-
lhe a gentilezade vir me cumprimentare acompanhei-oaté a saída do
restaurante,onde troquei com ele ainda algumaspalavras.
Quando voltei à mesa, Régisainda falava:- E o resto da poesia e
da crítica mundial? Não existe?Notem que são pouquíssimos, e de-
glutidíssimos os citados: Baudelaire,Rimbaud,Mallarmé... Os mais
recentessão Ginsberg,entre os americanos;Celan,entre os de língua
alemã; o francês Déguy; Montale entre os italianos; Lezama Lima
entre os hispânicos.Falo de cabeça,mas ficamosmais ou menos por
aí. Não é tudo gente conhecida demais para quem se pretenda capaz
de falar de "hoje"?
- Eu tenho um problemaa propor à ponderaçãoda mesa - disse o
Celso,que se mantivera boa parte do tempo muito quieto,folheando
atentamente uma edição de Borgespar lui même que eu lhe havia
dado -, talvez mais visívelpara mim que não moro em São Paulo:o
Folhacentrismo.

SIBILA
- Folhacentrismo? Caramba, Celso, veja lá o que diz, senão vão
pensar que eu tenho alguma coisa a ver com isso - brincou Moacir
Amâncio, que havia chegado há pouco, aludindo ao período no qual
trabalhara para o Estado de S. Paulo.
- Não há perigo, Moacir. Ao contrário, o que pretendo dizer aqui
é totalmente favorável à Folha,tão favorável quanto é, por exemplo, o
papel decisivo do ombudsman.Aliás, a presença do Ajzenberg no livro
está me inspirando! O Folhacentrismo é que é contra a Folha!Apenas
62 anote os argumentos e veja se são consistentes - ponderou o Celso,
com a segurança e a paciência de um grande professor de matemática
que se dispõe a dar uma aula para crianças burrinhas: - Notem o se-
guinte: além do Ascher, que está selecionado entre os melhores poetas,
são citados, entre os trinta maiores prosadores brasileiros, nada me-
nos do que cinco caras que escrevem na Folha,sem contar o Marcelo
Coelho, que está no livro entre os secundários. A saber: Cony, Scliar,
os dois Bernardos e o Bonassi. Ou seja, cinco em trinta dos melhores
prosadores brasileiros; 1/6 ou quase 17% dos autores.
- Celso, caro, você se esqueceu de contar o João Ubaldo -, asso-
prei-lhe no ouvido, pois imediatamente me senti atraído por aquele
raciocínio numérico, embora não estivesse disposto a me deixar
arrastar por aquela discussão sem fim.
- Alcir, caramba, não me atrapalhe, o Ubaldo é do Estadão.
- Ah é, me desculpe. E o Veríssimo? - insisti, disposto a alargar a
sua base numérica.
- Tainbém é do Estado,nada a ver. Caramba, você não lê jornal?
Eu, hein?
O duplo palpite errado foi devidamente reprimido pelos olhares
daqueles que, sentando-se mais próximos de nós, conseguiram ouvir
nossos cochichos.
- Não precisa falar alto, Celso! - disse-lhe ainda aos ouvidos -
Você não tem motivo para estar bravo com ninguém. Se ainda fosse
o Moacir, que não apareceu no livro nem entre os secundários. Nem

SIBILA
umazinha vez. Para o Manuel,você é ágrafo! - acrescenteidiretamente
para o Moacir.
- Ágrafo? Que palavra ótima! Vou escrever um poema com ela,
pode apostar. - E realmente fez isso, alguns dias depois; naquele
momento, contudo, estava preocupado em ouvir o arrazoado do
Celso: - Nada menos que cinco dos trinta maiores prosadores são
da Folha.Mas isso não é tudo. Vamos refinar um pouquinho a conta.
Se considerarmos que a Hilda é morta, e o trio Lygia,Dalton, Rubem
Fonseca é de gente com setenta anos ou mais, então entre os que têm 63
menos do que isso, os da Folhasão cinco em 26, praticamente 20%.
Se descermos ainda 1nais as idades de corte, em direção, por tanto, à
literatura produzida efetivamente num período mais recente, a pro-
porção aumenta. Por exemplo, dos que nasceram de 59 para cá, são
três da Folhaentre os oito maiores. Isto dá quanto? Sei lá: três em oito.
Quanto dá isso? 37,38%?Ou seja: quase 40% dos novíssimos 1nelhores
são contratados da Folha!Das duas, uma: ou isto é absurdo, e essa
inflação folhaspiana no livro decorre da amizade e do corporativismo,
e, conseqüentemente, nada tem em comum com a idéia de crítica;
ou o livro está certo, e quem quiser escrever bem no Brasil deve e1n
primeiro lugar conseguir um emprego na Folha,ou ao menos ler com
muita atenção o seu Manual de Redação!
Járiam todos com a demonstração cabal do Celso,quando a Cris-
tiane tirou a sua própria co11clusãodaquelas contas:
- Nu1n caso ou noutro, Celso, fico desconsolada. Pois, por um
lado, não trabalho na Folha,e, por outro, só não conseguiu entrar na
lista justamente o escritor de que mais gosto dos que escrevem nela:
o Macaco Simão. - As risadas que se seguiram à declaração alteravam
indiscretamente o ambiente bastante calmo do restaurante naquela
terça-feira. Comecei a olhar disfarçadamente para o mattreargentino,
de quem sempre tive um indisfarçável temor. Por sorte, não parecia
estar por perto. Cristiane, embalada, propôs um novo ponto de debate
do livro: que cada um apontasse as faltas que julgasse mais graves nas

S 1BI LA
escolhas dos autores, e também as ausências que parecessem mais
injustificadas, segundo as razões que cada un1 apontasse. Eu tinha
alguma curiosidade a respeito do que iriam dizer,mas a verdade é que
tinha comido e bebido demais. Precisava ir ao banheiro. Assim, perdi
uns bons quinze minutos de conversa, e nada posso contar a respeito.
Quando voltei à mesa, a discussão ainda estava animada. Quem
estava falando era o Régis:
- Para mim, a ausência mais injustificada é a do Leminski. Tudo
64 bem, o critério de escolha referia apenas autores vivos. Mas outros
mortos foram incorporados: Uchoa, Haroldo, Waly,Hilda. É verdade
que eram mortos mais recentes, mas ainda assim fica claro que o
critério não é absoluto. E já que o livro fala também às vezes em "in-
fluência': talvez sua principal categoria descritiva, como não falar de
Leminski? Foi o poeta que mais influenciou a maior parte da gente
identificada como literaturabrasileirahoje,incluindo a mim mesmo,
a despeito de .nosso afastamento posterior, quando ele enveredou de
vez pelo pop.
- O Leminski foi o último poeta brasileiro que se tornou popular
em termos de venda, com o quase best-sellerque foi Caprichos& Re-
laxas - emendou o Luis Dolhnikoff. - Além disso, ele participou de
tudo na poesia brasileira recente: da fase heróica da revista Invenção
ao esforço tradutório militante dos irmãos Campos, passando pela
divulgação do haicai,sem dizer que fez a ponte entre a poesia "mar-
ginal': a geração "mimeógrafo': a poesia construtivista etc. etc.
- Você não vai declinar o currículo do Leminski aqui, não é, Luis?
Não tem nenhuma televisão por aqui - ironizou o Celso. Sem dar
importância à interrupção, Luís prosseguiu sua argumentação no tom
eloqüe11teque lhe era habitual:
- Sua ausência é indefensável! Considerada relativamente à pre-
sença de Caetano Veloso,que entrou em seu lugar,já que os verbetes
se organizam em ordem cronológica,e os dois tinham a mesma idade,
é ridículo.

SIBILA
Imagino que já deviam ter discutido muito sobre o assunto, uma
vez que bastou o Luis dar uma folga na respiração para a Cristiane
logo dizer:
- Sobre o Leminski, portanto, estamos todos de acordo. Alguém
notou algum outro descalabro? Por exemplo, que acham de Décio
Pignatari e Hilda Hilst estarem relegados à prosa?
- Dois ridículos - continuou o Luís, secamente. - Quanto ao
Décio, além de ser um dos criadores do concretismo, ele é autor dos
poemas concretos mais conhecidos, como "beba coca cola".Seria o 65
mesmo que tirar Oswald de Andrade de um panorama da poesia de
22, e lançá-lo na seção de prosa. Porque escreveu prosa, é verdade,
mas simplesmente não-faz-sentido - disse, escandindo o último
sintagma.
- Se o Décio foi descartado da poesia, teria simplesmente de ser
descartado do livro: a sua prosa é muito menos importante e influen-
te do que a sua poesia. - Era essa ao menos a opinião do Régis. - E
quanto à Hilda Hilst, se aceitarmos o que o Alcir vem escrevendo, é
melhor prosadora do que poeta, mas isso é uma opinião discutível
ainda, que mal começa a ser proposta. Por ora, o lugar onde ela repre-
senta um foco incontornável da literatura brasileira contemporânea é
o da poesia, não o da prosa. A sua prosa, assim como o seu teatro ou
as suas crônicas, ainda é pouco conhecida, o seu impacto ainda mal
pode ser avaliado.
Maria Eugenia Boaventura, que havia chegado tardiamente à co-
memoração, pois tinha lançado naquele mesmo dia o terceiro volume
da série que está organizando, pela Companhia das Letras, dedicada à
obra de Mário Faustino, deu logo a sua contribuição à conversa:
- Obviamente não estou de acordo com o esquecimento de Mário
Faus\ino também. Ele morreu há mais tempo, mas a sua primeira
compilação, longe de completa, é a da edição de Benedito Nunes,
de 1984. Depois disso, simplesmente não houve outras edições das

suas coisas.

SIBILA
- Pena - lamentou-se o Eric. - Quando estudava português nos
States, a classe toda se empolgava com a página do Faustino, no Jornal
do Brasil.Guardávamos aquilo como se fosse relíquia.
- Mário Faustino está recomeçando agora, não há dúvida - con-
cordou o Régis. - Este último volume, contendo o material da pági-
na "Poesia-experiênciá: do JB, é uma mostra extraordinária de seu
trabalho de tradutor e de autor, com uma abertura internacional de
rara amplitude no Brasil . Comparecem muito mais autores do que os
66 citados no livrinho, além de incluí-los todos. Experimentação gráfica,
industrial ... Já está tudo ali: categorias e autores depois assimilados
pelos concretos. Também as revistas literárias contemporâneas
repõem o tipo de militância de Faustino. A Sibila, por exemplo, é
decididamente faustiniana .
Luísa, minha filha, veio sentar-se ao meu lado, e aproveitei para lhe
perguntar de quem mais tinham falado enquanto estava no banhei-
ro. Lembrou-se de se queixarem, na prosa, da falta de autores como
Francisco Dantas, Wilson Bueno e Raduan Nassar. De fato, tinha es-
tranhado a total ausência dos dois primeiros. Raduan era citado, mas
estranhamente submetido à esfera do Milton Hatoum. Neste ponto,
entretanto, a Lui me disse que tinha dificuldade em relatar exatamente
as falas de cada um, pois começaram a travar uma verdadeira batalha
entre si, cada um deles lembrando-se de um autor que julgavam ines-
quecível, mas que fora deixado de lado pelo LiteraturaBrasileiraHoje.
Diante desse relato não pude deixar de pensar que fora ao banheiro
na hora certa. Naquele momento, ao menos, a balbúrdia parecia con-
trolada, embora o excelente maitre argentino do Arábia não parecesse
olhar para a nossa mesa com olhos demasiado amistosos. Tentei sorrir
para ele, mas, se chegou a me notar, não me retribuiu o sinal amistoso.
Claro que ele devia ter razões muito ponderáveis para essa secura.
Enfim, a Cris decidiu que aquela parte do debate estava encerrada
e que não tinham tempo para ouvir todas as cobranças a respeito de
autores faltantes do livro. Sugeriu então que passassem a falar dos

SIBILA
eventuais problemas nas descrições particulares dos autores efetiva-
mente presentes nele.
- Ah, não! Essa discussão,não: isso não vai acabar nunca! - pro-
testei mais uma vez inutilmente, pois o Celso nem me deixou com-
pletar:
- Eu começo - disse prontamente: - Que acham do Frederico
Barbosa ser tratado como o nosso Pound? Posso estar por fora, pois
francamente conheço mais o pai do que o filho,mas me contem: o que
ele traduziu de importante? També1nnão teorizou nada, ao menos 67
que eu tenha lido. E em matéria de poesia, nem entupido de ácido dá
para comparar com o Pound!
- A propósito, ouçam esta passagem do livro - emendou o Luis:
- "Apoesia de Frederico Barbosa é indissociávelde sua concepção de
literatura como um ato de recusa de valoresestabelecidose da poesia
como instauração do estranhamento e co1noconvocação do novo".
Recusade valoresestabelecidos!Instauração do estranhamento!Con-
vocação do novo! Isso parece comício de maio de 68.
- E esta - pingue-pongueou o Celso: - "A frase abrupta, o verso
denso, concentrado,sem ornamentação,e o conteúdo metalingüístico
e questionador fazem da invenção poética um gesto de resistência
que transcende o âmbito intraliterário: é a recusa 'existencial'de se
ver pacificado e enquadrado que exige a rejeição dos valores poéticos
coagulados".Está falando de quem? De Rimbaud?
- O surpreendente - continuou Luis - é que o livro ainda sinta
necessidadede assegurar que não se trata de um "mero co11tinuador':
como ele faz em seguida:"Mas ele não é mero continuador do concre-
tismo': Por que alguém imaginaria sequer algo assim,se ele é mesmo
aquilo tudo que ficou dito?
Cc;,ntraa minha vontade, eu me peguei rindo com essas críticas
ao estilo descritivo um tanto aleatório do livro.Se não me policio,ia
acabar querendo fazer alguma piada a respeito de processos de de-
negação, mas resisti a tempo. Pressenti,entretanto, que, a seguir por

SIBILA
essa via, aquilo ia tomar um tom francamente desrespeitoso. Olhei
cuidadosamente para a vasta mesa e, com algum pesar,notei que tudo
o que nela fora servido já fora devorado.Ao contrário do que pensara
ao início, os meus amigos não trocaram a comida pelas palavras: ex-
cediam-se em ambas. Na falta de mais quitutes, resolvi arriscar uma
pequena provocação:
- E do que o livro diz do Régis,o que têm a comentar? Vão fingir
que não leram? Sobre o Luís nem vamos falar nada, pois só apareceu
68 ali como epígono de um dos folhaspianos,o Nelson Ascher.
- O que é dito do Régismesmo? Ah, aqui está, a primeira frase pa-
rece ótima. Diz que ele vai "do diálogo com o concretismo ao diálogo
consigo mesmo'~- Era a Cris, que n1eajudava na provocação.- Quer
dizer, talvez, que ele foi se tornando um solipsista? Um autista?
- Injustiça! - gritei eu - Injustiça cabal!
-Absurdo! - amplificou o Moacir: - O Régis tem programatica-
mente dialogado com as referências contemporâneas, especialmente
as norte-americanas. A Sibila,aliás, é o desdobramento natural disso.
Não acha, Régis? - perguntou ele diretamente ao objeto do capítulo,
mas este não quis se pronunciar. Sobre ele mesmo estava impedido
de falar, disse, com razão, já que elogio em boca própria sempre foi
vitupério.
- E o que vocês acharam do que o livro diz do Caetano Veloso?
- propôs destemidamente a Maria Eugenia,antiga amiga do baiano.
- Ih - disse o Régis-, essa página é uma confusão só entre poesia,
letra e poesia prosaica.
- É verdade - concordou o Luis. - Depois de afirmar que a
suposição de que letra não é poesia traz uma questão de valor pre-
conceituosa, o livro pretende que ler uma letra como "Língua"torna
possível até esquecer as harmonias e a voz - o que, entretanto, diz
não ser certo, pois revela a pobreza de espírito de trocar o mais pelo
menos ... Em suma, mais uma rigorosa contradição, aqui baseada no
clichê de que a música popular brasileira é especialmente "grande'~

SIBILA
Daí a afirmação,na página 39:"a cançãopopular [brasileira]se tornou
um gênero maior". Tão maior que tem vigor de sobra,podendo então
exsudarverdadeirospoemas no que deveriamser meras letras.- Mais
uma vez estava me deixando envolverpela discussão, sem perceber.
CaetanoVeloso,poeta,era lugar-comum que usualmenteme enjoava.
Anexado ao lugar-comum da "mpb genial" criava-seum risco mortal
para a minha digestãodo memoráveljantar.Tenteipensar em alguma
coisabem longede Caetano e MPB. Miseravelmentefui me lembrar de
Johnny Ramone, em algum hospital, sofrendo com um câncer ter- 69
minal na próstata.A lembrança me entristeceu imediatamente;num
segundo pensei também no André,meu filho,ainda mais ramonema-
níaco do que eu. Joeyjá fora;Dee Dee, idem; e agora o Johnny,mori-
bundo: eram muitas mortes para chorar ainda aos 25 anos. Olhei para
o Eric, contemporâneo de escola de Johnny em ForestHills, ambos
com 55 anos. Ainda bem que ele estava em forma, graças à malhação
diária. Quando voltei a prestar atenção ao que diziam à mesa, o Luís
ainda arrazoava sobre o mesmo tema enjoativo:
- A letra da canção brasileira depois da bossa-nova,em contra-
ponto ao bolerismo anterior, se apóia na conquista coloquialista de
22:"Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça..:' O tom sintático
seria impossível,por exemplo,sem os modernistasproclamaremo di-
reito de escrevercomo os brasileirosfalam,não como os portugueses
escrevem.Ou sem um poema como "Pronominal"de Oswald.E aí é
que está:as letras bebem eventualmentena poesia,a poesia não bebe
nas letras.É, em parte, aliás,esta relaçãode dependênciadas letras em
relaçãoà poesia,somada à crença pós-moderna do suposto"fim-dos-
gêneros':que leva a concluir que as letras"também são poesia". Afinal,
beberam sua poeticidade da própria poesia... Caetano bebeu no con-
cretismo,Chico em Cabral.No entanto, o que tirou o concretismo de
Caetano? E Cabral de Chico?A dependência unilateral dessa relação
é fácilde entender: a linguagemverbal é tudo na poesia; na canção,é
apenas uma parte, e nem sequer a mais importante.

SIBILA
Mentalmente concordei com o Luís, e pensei comigo que esse
procedimento cada vez mais habitual de pretender nobilitar a letra
de música chamando-a de poesia, não podia ter efeito mais contrário:
acabava apenas produzindo autores com a triste cara de primos po-
bres, pois a comparação com os poetas era simplesmente devastadora
para eles. Num outro sentido, me senti feliz por não precisar entender
as bobagens que, em geral, estão sendo cantadas, para poder gostar
da música. Acho que isso explica parte do meu gosto em ouvir mú-
7o sica em outra língua , especialmente o rock'n'roll,que não se entende
em nenhuma. Afinal, não são apenas palavras, mas palavras e voz
e interpretação e música. Um composto de coisas muito distintas ,
como, por exemplo, o belo jantar na mesa agora vazia. E quando o
fundamental está nesse composto de palavra, voz, interpretação e
música, e não nas palavras sozinhas, contando apenas consigo pró-
prias para obter todo o efeito poético possível, e11tãoestá claro que
isso define uma diferença irredutível em relação à poesia. Esquecer
essa diferença é perder a possibilidade de que uma letra encontre o
lugar próprio de sua grandeza, no interior de sua tradição particular.
E essa tradição tem de encontrar a sua própria narrativa, não fingir
que é a mesma que se construiu para a poesia ... - Estava absorto
nessas digressões escapistas, quando Paulo, que acabara de desligar
o celular, mostrou que alguma atenção prestara no que estava sendo
discutido ali, ao dizer:
- Eu mesmo escrevi, com o Alcir, um livro, vamos dizer, "de ju -
ventude': que analisa as letras de Caetano. Mas não me venham co1n
maldades: isto não é um mea culpa!Analisamos as letras como letras,
e não como poesia. Isto é muito diferente de pôr o autor no contexto
de um panorama da literatura brasileira hoje. - A palavra "denegação"
voltou à mi11hacabeça, menos aplicada em relação ao Paulo do que a
mim mesmo. Seguia o seu raciocínio com especial interesse, quando
o seu celular tocou, e ele se afastou novamente.
Luís retomou a palavra e generosamente nos livrou a pele:

SIBILA
- No espírito dos anos 70, a falta de rigor de discernimento do
gênero ao menos tinha pertinência política senso lato. Hoje não tem
desculpa: é apenas "pós-modernismo" vulgar. Claro que a poesia lí-
rica original, a grega, era acompanhada da lira, e que os provençais
cantavam seus "poemas".Mas ao menos desde o século XIII, em que
a forma soneto se cristaliza...
- Luis,caro- interrompi-o, temeroso de que ele engatasse ali mes-
mo uma história da poesia ocidental, em dezenas de volumes - ainda
bem que você falou de um século remoto e de pessoas felizmente 71
mortas. Tenho de aproveitar a referência para me livrar do assunto
da "literatura brasileira hoje".É incrível: vocês são 1nonomaníacos!
Vamos ficar um instante apenas neste oásis que é o soneto. Que delícia
poder falar dele, especialmente em relação ao seu período heróico.
Concordo com você que seja a forma que mais evidencia uma tra-
dição autônoma da poesia, sobretudo depois de Petrarca, isto é, no
XIV, não no XIII. Isto fica especialmente nítido com as nove diferentes
versões e acréscimos do Canzoniere,que se estenderam por mais de
trinta anos: desde o início dos anos 1340 até 1374,ano de sua morte. Se
não morresse, seria surpreendente que não continuasse suas emendas
e anotações às margens dos sonetos. Notem que esse método de ano-
tação e revisão dos poemas dependia em larga medida da disposição
do verso no papel. Disposição espacial articulada à disposição lógica
fornecida pela sua estrutura de silogismo.-Ao dizer"silogismo': en-
tretanto, quase me perdi, pois me lembrei sem querer novamente do
livro, que havia encaixado o Luis como satélite do Ascher por conta
de ser também um fazedor de silogismos inteligentes! "Injustiça!"
- bradei veementemente em pensamento, mas como não dei sequer
um pio fora de minha cabeça, Luis voltou à carga:
- Acho que se pode dizer que o soneto apresenta mesmo uma
estrutura visualmente equilibrada, com os dois quartetos e os ter-
cetos...
Interrompi-o, entretanto:

SIBILA
- Apenas mais uma observação: a autonomização da poesia face
à música não impediu que as cortes mais importantes do período,
até o século XVI ou XVII permanecessem contratando músicos exce-
lentes capazes de musicar os sonetos petrarquistas. A questão é que
a poesia de Petrarca já estava resolvida nela própria, assim como a
de Marino, no XVII, com ou sem a música da Strozzi, por exemplo. A
poesia de Petrarca já não mostrava nenhuma dependência da música
para a qual eventualmente servia de letra a ser cantada, se a questão
72 era produzir plenamente os seus efeitos poéticos . Ainda que a mú-
sica fosse boa, tratava-se de outra coisa, de encontrar novas formas
de civilidade e de convívio, não de descobrir ou acrescentar poesia
aos sonetos de Petrarca. Aí é que está o ponto: nunca mais a música
precisaria trazer a poesia para o poema. A poesia repousava nele, e
dependia apenas dele.
- Never more! A prova definitiva disso é que até os Dum Dum
Boys musicaram poemas de Pessoa! Este pobre diabo nunca mereceu
o menor respeito por parte de, digamos, "músicos" - zombou o Celso,
acentuando a expressão de dúvida ao pronunciar o último termo, e
me provocando ostensivamente com a menção à minha antiga punk
band, desconhecida e horrível, comme ilfaut.
- Mas é justamente o que estou tentando dizer - insistiu o Luis:
- as palavras, na canção, têm de ser musicais, podendo ou não ser
literárias ou poéticas. Num poema, voilá,têm de ser poesia.
- Toda a poesia - sublinhou o Celso.
- Por outro lado, a poesia como escrita, com um passado mul-
tissecular autônomo, possui possibilidades infinitamente maiores de
articulação de sentido do que uma letra de canção - continuou o Luis,
que jamais se escusava de hierarquizar as artes.
- Não estou certo quanto a "possibilidades infinitamente 1naiores"
- disse o Celso, que chegara a ser um bom músico, e que certamente
se incomodara com a frase peremptória: - As possibilidades são ou-
tras, quando o gênero é outro: acho que é tudo o que se pode dizer.

SIBILA
A questão relevante não é hierarquizar gêneros, mas admitir que
existem, admitir tradições e suportes distintos.
Luis, como era de se esperar, não se deu por satisfeito: - Por
maiores, quero dizer mais complexas. Numa canção, há injunções
extraliterárias determinadas pela integração à melodia, assim como
há os limites de tamanho e de uma tradição outra, popular, aliás, em
geral,antiliterária. Caetano Velosofaz canções,logo é um cancionista.
Por que falar em literatura?
- Está legal, Caetano é cancionista. Isto difere gêneros. Quanto 73
a coroar a poesia como rainha de todas as artes, isso é programa
seu, mas não meu - insistiu o Celso. - Nem meu - disseram alguns;
enquanto outros, ao contrário, aplaudiam ruidosamente a coroação.
Nova balbúrdia ameaçava a mesa. Tratei de propor alguma coisa
para amenizar a admirável curvatura da sobrancelha do maítre ar-
gentino: - Muito bem, amici miei, agora chega de conversa! Vamos
à sobremesa.
- Você não desiste? - protestou a Cristiane: - ainda temos vários
poetas a discutir...
- É isso aí. Vamos discutir tudo! - animaram-se. Diante dessa
manifestação, não tive escolha senão pedir eu mesmo para olhar
o maravilhoso carrinho dos doces e torcer para que ele atraísse a
atenção dos demais. Nestas alturas, porém, a torcida era inútil: a
batalha dos meus cinqüenta anos só tinha um vencedor: o Literatura
BrasileiraHoje.
- Tudo bem, mas então ao menos passem para outro autor, por-
que esse papo de Caetano Veloso é um saco - reclamou a minha
filha Luísa. - A fala valeu estranhamente como uma acusação de
muita idade. O resultado foi que todos concordaram de imediato
que Caetano estava acabado, como poeta e como assunto decente
naquela noite.
- Vamos então ao Waly Salomão? - propôs o Régis,que se desli-
gara um pouco da conversa. Na hora imaginei que estivessedesinte-

SIBILA
ressado do debate a respeito da troca Leminski/Caetanono livro do
Manuel.Alguns dias depois soube que não,quando publicou na Folha
um poema intitulado "Letra':dedicado a mim. Naturalmente fiquei
muito orgulhoso,sem entender entretanto a razão da homenagem.
- Fiquei também muito impressionado com o que está escrito a
respeito do Waly- disse o Celso.
Antes que tivesse tempo de expor o porquê, Luis aparteou-o:
- Deixem-me ler um trecho para vocês:"ícone da contracultura e
74 mais filosóficodos poetas brasileiros':É estapafúrdio do começo ao
fi1n!Nem vou falar da vulgaridade do uso da palavra"ícone",mas se
Walyfoi o "mais filosófico':onde fica Murilo Mendes?E Vinicius da
fase não-MPB?
- E Drummond? - propôs Maria Eugenia.
- E Hilda Hilst? - fulminou o Celso em direção ao livro, como se
fosse mordê-lo em seguida.
- E essa história de que a linguagem do Waly Salomão compõe
uma espéciede alegoriabarroca com "um elemento dionisíacoextraí-
do do filósofo alemão F.Nietzsche"?Que coisa:basta alguém vozear
Nietzsche e lá vem com a banalidade do "elementodionisíaco"- pro-
testou ainda a Maria Eugenia.
- O Nietzsche de algibeira é apenas mais um exemplo do "falar
sem dizer" adotado pelo livro como método. Abram o livro ao léu. É
difícilachar página sem bullshit- emendou o Eric.- Quero fazer um
concurso: quem aí conhece uma boa tradução para o inglês"bullshit"
nesse tipo de emprego?Não, não é "bosta",não. Não estou xingando
ninguém!
- Acho que a melhor tradução seria "besteira"-, propôs a Maria
Eugenia.
- "Enro 1açao
~ "1
.
- "Encheção de lingüiça"!
- "Papo furado"!
Disseram vários ao mesmo tempo.

SIBILA
- Está ficando quente! É por aí - aprovou o Eric. - Funciona
como uma estratégia de preenchimento, do tipo daquela que os
alunos encontram para ocupar espaço de uma redação, sem ter nada
a dizer a respeito do assunto. Ouçam isso: "Simbioses sonambúlicas
com os cenários cambiantes"; e isso: "cios com os caos e os cosmos
invertidos': Não sei o que são "cosmos invertidos", mas talvez seja o
meu português ruim, alguém sabe? Ou isto, ouçam: "Seu elogio do
êxtase desfaz identidades estáveis, normalizadoras, em benefício de
um perpétuo devir filosóficoque atende às exigências desse seguidor 75
do pensamento antimetafísico, em busca de 'um porto onde a gaia
ciência jogue suas âncoras": Socorro! Isto faz algu1n sentido? Meus 23
anos de Brasil ainda não bastam para descobri-lo 11essaconfusão.
Antes que alguém se aventurasse a responder-lhe, o pródigo Paulo,
de volta ao convívio, mudou o foco da conversa:
- Um caso curioso é o do Antonio Cícero, há um aspecto engra-
çado a ressaltar. O livro nota o homossexualismo ... não sei se dele, se
da poesia dele, e coloca então, na mesma esfera do Cícero, o Waldo
Motta. Justamente como alguém que "problematiza a sexualidade".E
junto relaciona também o ítalo Moriconi. Caramba, mas as poesias
deles são muito diversas entre si! Qual o traço comum? Serem os au-
tores homossexuais? Mas o que temos nós a ver com isso, se as poesias
que eles produzem, operam segundo matrizes tão diversas? Se é gay,
tem de estar no mesmo saco, não importa se a poesia não tem nada a
ver uma com a outra? É como colocar o Luís junto com o Ascher só
porque ambos são judeus.
- Eu estou fora - disse o Eric, talvez temendo que ele fosse o pró-
ximo judeu a ser relacionado pelo Paulo. - Não me venham pôr nesse
sacoi não. Eu sou discípulo de Thomas Merton! Prefiro ser católico!
Aliás, quero ser santo!
- Eric, acalme-se - disse o Paulo, num to1n suficientemente inci-
sivo para controlar o ataque a tempo: - eu não o estou ameaçando

SIBILA
de nada. Nem o livro, aliás. Você não é nem mesmo poeta brasileiro,
esqueceu?
- Tem razão! Que alívio! - Enquanto o Eric dava um grande sus-
piro, a oswaldiana Maria Eugenia diagnosticou abruptamente: - isto
aqui está ficando com jeito de sub-banquete antropofágico.
Com o quê concordei imediatamente:
- Canibalistas de butique, Maria Eugenia, não se incomode, não.
- Queria então botar na mesa o caso do Glauco Mattoso - disse o
7
6 Luis:- O livro apresenta o JornalDobrabilse li1nitando, basicamente,
a referir seu título. Ora, o Dobrabilé o maior tour deforce gráfico da
história da poesia brasileira. Glauco fabrica ad hoc tipos variados,
manchas e, enfim, pagina um "jornal" inteiro valendo-se apenas dos
recursos de uma máquina de escrever... O livro diz: "A contribuição
de Glauco Mattoso [à geração 'mimeógrafo'] seria o JornalDobrabil,
panfleto que era distribuído pelo correio..:· Não acho que O Jornal
Dobrabil possa ser incluído na "geração mimeógrafo". - Algum
murmúrio deixava notar que parte da mesa não concordava com
a observação, mas o Luís sustentou enfaticamente a sua posição:
- Tem mesmo algo de antagônico entre eles: a "geração mimeógrafo"
produzia uma poesia pouco elaborada, de expressão de "estados de
alma" misturados a arrufos políticos, sendo o próprio mimeógrafo
uma técnica de reprodução rápida, barata e meio suja,que é a perfeita
tradução gráfica dessa poética. O JornalDobrabilé, ao contrário, de
elaboração quase maníaca. E enquanto a "poesia mimeógrafo"era feita
para ser distribuída de mão em mão em corredores de faculdade,
bares, praias, festas e passeatas, o JornalDobrabilera distribuído de
maneira moderna e impessoal, pelo correio.
- Tudo bem, Luís, já percebi que você quer valorizar o Glauco
Matoso, em detrimento da "geração mimeógrafo".Tudo bem. - Mas,
Alcir - interpelou-me diretamente o Régis -, aqui há uma citação
na sua área. O livro afuma que o Glauco está na tradição da cantiga
de escárnio e maldizer e na do soneto satírico. Isto faz sentido? - Os

SlBlLA
meus sentidos naquele i11stanteestavam todos estupidamente entre-
tidos com um estupendo bekleuaafogado em mel, e não conseguia
nenhum intervalo na mastigação para lhe responder o que quer que
fosse.Cristiane então ponderou que a tradição medieval do escárnio
era muito distinta da sátira, de extração greco-latina. O soneto, por
exemplo, retomava a última, mas não parecia ter nada a ver com a
• •
pr1me1ra.
- E o que acham de referir a JoselyVianna Baptista apenas como
secundária? - retomou a palavra o Régis,aparentemente desinteressa- 77
do de aprofundar a questão que ele mesmo apresentara: - Meu Deus!
Avalone que me acuda. A Josely traduziu tudo o que dizia respeito
ao neobarroco, além de ser muito mais poeta do que muitos dos que
ganharam capítulos com o seu nome. - Ao emprego da palavra "neo-
barroco': senti certo enjôo rápido. Pensei que era uma sorte dos diabos
que a Joselyconseguisse ser uma grande poeta, a despeito de traduzir
"tudo o que dizia respeito ao neobarroco'~Para dissipar a tontura,
pus-me a imaginar se a questão do diálogo latino-americano tinha ao
menos a utilidade de incrementar o negócio do turismo.
- Divertido mesmo é perceber o quanto o autor do Literatura
BrasileiraHojegosta de falar da AdéliaPrado - disse o Paulo: - Quan-
do chega a vez dela, faz crítica literária, interpreta, explica... enfim,
arrasa.
- Ué,que tem isso? - meti-me na história, ainda lambendo nos de-
dos os vestígios do bekleuadefinitivamente liquidado: - Um talento à
altura do outro. Vai implicar? Mas Paulo, caro, aproveita e dê-me-lo!
- Dê-me-lo, o quê? O prato? O garfo? Já não há nada vivo acima
ou ao redor da mesa.
- Engraçadinho. O vinho, por favor.Está bem aí, escondido atrás
de seu notebook.
- Em todo caso, isso merece um pequeno comentário - tornou
o Luís, dispondo-se logo a fazê-lo: - O livro se refere assim a "Com
Licença Poéticà': "O poema é uma inversão da primeira estrofe do

SIB ILA
'Poema de Sete Faces'de Drummond': Mas qual "inversão"?Os três
primeiros versosda Adélia são uma paráfraseda primeira estrofe
de Dtummond. "Quando nasci um anjo esbelto / desses que tocam
trombeta, anunciou: / vai carregar bandeira:•A expressão dos anos
70, "carregarbandeira•:como todos aqui sabem muito bem, a não ser
a Crise a Lui - restringiu prudentemente, ao notar o olhar recrimi-
natório da primeira-, significavasubsumir tudo a uma causa,ou seja,
estar sempre "portando um estandarte".O que o "tocar trombeta" do
78 segundo verso só enfatiza."Carregar bandeira" que é, escreveAdélia
no quarto verso,"cargomuito pesado pra mulher/ essa espécie ainda
e11vergonhada:'Envergonhada, claro, para... "carregar bandeira': No
fim,vem a explicitação:"Vaiser coxona vida é maldiçãopara homem.
/ Mulher é desdobrável".Ou seja,um homem pode se dar ao luxo de
ser gauche,hipercrítico,outsider,mas a mulher não, porque tem de se
desdobrarentre o emprego e a maternidade, etc. Em suma, trata-se de
uma paráfrase meio piegas do "Poema de Sete Faces':Que, por sinal,
não tem nada a ver com a maneira como o livro lê o terceiro verso:
« [ Adélia Prado] prefere a sina de 'carregarbandeira'- numa referência

ao Manuel Bandeira das coisasmiúdas"!Mas onde ele foi desencavar


o Bandeira?
- Está na cara: da palavra"bandeirà'! - disse o Eric.Alguns riram,
1nas eu comecei a temer pela língua comprida daquela gente, ainda
mais do que pelo comprido da conversa.Se eu tivesseimaginado que
o jantar de meu meio século seria assim,uma enorme homenagem ao
LiteraturaBrasileiraHoje,não hesitaria em comparecerpessoalmente
ao debate na Folha.Pelo menos saberia que estava a trabalho. Régis
então lançou mais uma de suas questões: - E o que acharam do que
o livro diz do Armando Freitas Filho?
Paulo foi o primeiro a responder:
- O primeiro absurdo aí é colocar o Chamie dentro do espaço re-
servado ao Armando Freitas Filho.Se fossepara ligar os dois, deveria
ser o contrário, já que a relação entre eles só pode ser feita através

SIBILA
dos tempos da Poesia-Práxis. Mas se havia ali um líder era o Chamie
e não o Armando. E depois o Armando é posto junto com o Sérgio
Alcides? ... Simplesmente não vejo relação entre eles.
- Talvez a Maria Rita Khel? - arrisquei eu, ingenuamente.
- Talvez - e prosseguiu com o seu raciocínio: - Notem que, numa
penada só, o livro também menciona aí a "grande amiga" do Arman-
do, a Ana Cristina Cesar. A amizade juntou os dois no n1esmo tipo
de poesia? Mas não há junção entre as poesias deles! E finalmente,
essa é para você, Alcir: ele diz que o Armando tem uma atitude de 79
anti -retórica ...
- Azar o dele: eu não só sou a favor da retórica, como totalmente
a favor de saber o que ela significa fora desse emprego banal com o
sentido da "bullshit"de que falava o Eric.
- Ih - disse o próprio -, agora se queimou! Resolveu, enfim, de-
bater? Agora, sinto muito, já estou cansado.
- Não, resolvi apenas parar de comer antes que seja tarde demais.
- E fiz cara de quem estava na iminência de devolver o jantar inteiro
na mesma mesa na qual o havia tomado.
- Que horror, pai! - protestou a Lui - um pouco de compostura!
Paulo propôs então que comentássemos o que estava escrito
no livro sobre Afonso Henriques Neto: - O livro acha digno de
nota que o sujeito seja neto de Alphonsus; em seguida parte logo
para fazer a projeção do avô sobre o neto. Mas o espantoso é que o
toma como cabeça de um capítulo, e depois agrupa embaixo dele o
Willer, o Piva ... - No momento em que disse "o Piva", podia-se ler
ao menos cinco exclamações em seu rosto estupefato - além do Flo-
riano Martins e tantos outros. Sob o nome de um autor totalmente
secundário, que descreve como simbolista, vai enfiando todos os de
extração surrealista.
- Aproveito a ocasião e protesto contra não haver um capítulo
dedicado ao Piva! - levantou seu copo de água mineral o Celso, com
a veemência de quem brandisse uma foice.

SIBILA
- Mas Paulo,esseé um procedimentohabitualno livro - observou
o Régis,ignorando o protesto queirosiano:- Tributáriosevidentesde
Leminski aparecem no capítulo Afonso Henriques Neto, tais como
Ademir Assumpção e Rodrigo Garcia Lopes.Por que será? E o pró-
prio Leminski,a matriz deles todos, nem aparece.Esquisitíssimo.
- Esquisito, pois é - continuou o Paulo: - e na mesma chave,
no capítulo do Manoel de Barros, ele lista como secundários Nejar,
Carpinejar e Donizete Galvão.Mas o que há em comum entre esses
80 três autores, tão distintos entre si? Só se for por causa de um critério
"regionalista':que o próprio livro dizia redutor. E o que ele diz do
AfonsoÁvila?Diz que tem"preocupaçõescívicas"!- Pauloacumulava
exclamaçõesna cara: - Eu não ouvia isso desde o tempo da graduação
nas matérias de EPB!Se bem que, nestes tempos neopatrióticos,que
não desistem de ser brasileiros,não sei, não: estou suspeitando do
retorno da EPB!
Régisentão propôs: - Acho que seria legal falar do que o livro diz
do Haroldo de Campos. - Eu ia observar que já haviam falado até
demais dele,quando o Paulo,que parecia finalmente ter-se animado,
tomou a minha frente: - Banalidades,nada mais. Passa o livro aqui,
quero ler um trechinho. Aqui.Por exemplo:"novaspossibilidadesde
representação da realidade pela palavra poéticá: Um lugar-comum
claríssimo,não é? Pois não é apenas isso.Sabeonde ele termina opa-
rágrafo?Justamenteonde ele nunca poderia terminar: no Mallarmé!
Alguém que já não pensava em representação...
- E que tal esse trecho? - adianta-se o Luís:- "O resultado foi uma
produção que valoriza a dimensão material da palavra,por meio da
decomposição fonética e da montagem visual dos signos".Isto pre-
tende descrevero projeto concreto."Valorizaa dimensão material da
palavrá' - mas que poema não faz isto? O projeto estabeleceo que
chamam de "primado do significante".Primado não é mera valori-
zação, e significante não é "dimensão material" da palavra. O mais
estranho é que as obras do Haroldo que o livro afirma que melhor

SIBILA
"expressam' esse "projeto" são Xadrez de Estrelase Signância.Só que
uma é, em grande parte, pré, e a outra, pós-concreta.
- Tem razão - disse o Régis: - o subtítulo de Xadrez, impresso
na capa, é: Percurso Textual 1949-1974.Não havia nem sombra de
concretismo em 1949. Há ali, sim, muita poesia à moda 45. Além de
um monte de poesia concreta ruim. Xadrez de Estrelastraz uns dez
poemas concretistas. Lembro, por exemplo, de "âmago do ômega':
"fala prata / cala ouro","branco","mais mais': "cristal':"nasce / morre':
"vem navios","topogramas","anamorfoses" e "servidão de passagem': 81
todos datados entre 1955e 1962. Estes poemas ocupam vinte pági11as
de um livro de 250! E mesmo nesses poemas concretos, não se perde
algum eco parnasiano. Lembro-me de cabeça de algumas passagens:
"um corpo / cristalino a corpo / fechado em seu alvor': por exemplo,
de "âmago do ómega': Para mim, Harold o era um amigo...
- Muy amigo - disse algum gaiato, que não consegui identificar
na hora, nem quis se revelar depois, quando perguntei quem fora o
engraçadinho.
- ... muito mais do que o Décio ou o Augusto, mas, como poeta,
não tinha a visão plástica do Augusto, nem a gráfica do Décio. E é ver-
dade que Signânciajá não tem nada de poesia concreta. Desse livro,
francamente, não 1ne lembro de nenhuma passagem, mas, Paulo, por
favor,veja se consegue puxar algum trechinho dele da internet, com
esse seu notebook superequipado. - Paulo evidentemente adorou o
encargo e, usando a conexão sem fio do seu formidável Toshiba, em
poucos minutos pôs na tela alguns trechos do Signantia Quase Coe-
lum. O Régis postou-se logo à sua frente e ia começar a lê-los, quando
Luis, de seu canto, entoou de repente com seriedade afetada:
- "Glande de cristal / desoculta / ramagem de signos ..:• - mar-
cando longamente e profundamente os "eles".Régis, contrariado pela
usurpaç~o, o fez calar-se com o olhar e,voltando-se novamente para a
tela, retomou o poema, aumentando a voz a cada vez que encontrava
algum verso que, como dizia, "ecoava a parnaso":

SIBILA
- Ouçam isto:"...Glande de cristal/ desoculta/ ramagem de signos
/ soa / o acorde do uni / verso/ campana estimulada / rútilo / último
/ coere/ cúplula radiosa/ sim um sino': "Glande de cristal?" - Meu
Deus! E notem bem essa passagem: o rompimento com o concretis-
mo está nítido na palavra UNiverso, cindida, apontando para uma
retomada do verso. Outro trecho: ".... HÚBRIS / folguedos de tigre /
afastam do fosso/ os sem-narinas/ sanha diamantina ...•~O que há de
concretismo nisso, a não ser um espacejamento frouxo e decorativo
82 das palavras , quase sempre? É quase anticoncretismo, dado como
exemplo de concretismo.
- Está fundado, pois, o anticoncretismo, e é também da lavra do
Haroldo! Assim você o enaltece ainda mais, Régis. Grande amigo,
indeed!- decretou o Celso, mais debochado do que prudente , como
sempre.
- Para mim - disse o Régis, sem morder a isca provocativa - Ga-
láxias também não é um livro que funde concretismo e neobarroco,
como está escrito. É mais roseano, joyciano, poundiano de Cantos.
Tem muito pouco de concretista, minimalista, a não ser na parono-
másia como recurso de narração, na linha "palavra puxa palavra':
"Neobarroco" é coisa que aparece bem mais tarde na teorização do
Haroldo, que então a projeta para trás. - De minha parte, achei que
"neobarroco" merecia um "meu deus" avaloniano, mas Régis, desta
vez, poupou-se de invocá-lo.
- Parece mesmo que "retroprojeção" é uma boa categoria para
analisar as coisas do Haroldo - disse o Eric: - cada novidade que
aparece, logo reaparece nele reaplicada ao passado da sua poesia,
que assim está sempre pré, sempre avant, always up-to-date.Aquela
enumeração do Eric, na minha cabeça, terminou com a lembrança
da voz de Dylan cantando "Foreveryoung, Foreveryoung': Senti-me
surpreendentemente enternecido: devia ser o fim do aniversário que

se aproximava.

SIBILA
- É certo que o Haroldo deve ser criticado na med ida mesma em
que merece ser levado a sério. Mas a verdade é que a sua obra tem
uma outra dimensão comparada a da maior parte dos poetas dos anos
50-60, e ainda mais se comparada aos contemporâneos. Ela é como
pontos luminosos em meio ao epigonismo generalizado de hoje,
como o fora em relação ao anterior fechamento naciona lista - decla-
rou gravemente o Paulo. - Enquanto ele o dizia, e eu concordava com
esse ajuste de perspectiva, crescia em mim a idéia cada vez mais nítida
de que a batalha da minha festa estava definitivamente perdida para 83
o Literatura BrasileiraHoje! Viver é desenganar-se. Como eu, leitor
de Vieira, poderia duvidar? Todo aquele blá-blá-blá sobre contempo-
râneos não podia deixar isso mais evidente. Foi quando percebi que
deveria ganhar o concurso de tradução:
- Eric, caro: passe-me o prêmio "bullshit":"blá-blá-blá" é a sua
tradução universal! - Olharam-me, contudo, com cara de espanto:
- Ei, tem alguém aí dentro? Esse assunto já está morto e enterrado,
meu caro - disse a Cris, batendo ao mesmo tempo com os nós dos
dedos na minha cabeça aturdida. E tratou de voltar imediatamente à
discussão que permanecia viva:
- Vocês estão r11uitopreocupados com o que é dito do Haroldo. E
sobre o que se escreve do Augusto, não têm nada a dizer?
- O livro diz que a sua poesia foi influenciada pela fragmentação
de Pound. Estranho: Galáxias foi evidentemente muito mais influen-
ciada pelo Pound do que qualquer coisa do Augusto, e, no entanto,
isso não é dito. O que será que quer dizer? - reparou o Régis, reto-
mando disfarçadamente o tópico "Haroldo".
- Há uma outra passagem muito curiosa: Manuel diz, em relação
ao Augusto, que a "despersonalização radical" levou-o à tradução e à
crítica. O que tem a ver a despersonalização com a tradução? Ainda
mais com a concepção de transcriação, altamente personalizada?
Augusto, aliás, não é crítico - já não me lembro quem disse isso. Dis-
traí-me conversando com a Luísa, que, com razão, já estava exausta

SIBILA
e me pedia para irmos embora. O Paulo,entretanto, quis comentar
ainda o que o livro diziado FerreiraGullar,que lhe pareciaimpróprio:
- Que história é essa de que Gullarcorrespondeao Herberto Helder?
Não entendo. É incrível:as relações que ele traça são quase sempre
as mais descabidas.Fico em dúvida se ele está falando dos mesmos
poetas que eu leio.
- Não se espante,Paulo.Tivea mesma sensaçãoao ler o livro.Deve
ser por conta da diferença de idade entre nós e o autor - explicou
84 benignamente o Eric.
- Qual o quê - replicou o Régis:- o cara tem quase quarenta
anos!
- Eric, caro, valeu a tentativa misericordiosa,mas seja qual for a
diferença de idade, não dá: ninguém consegueentender as relações
que o livro estabeleceentre os poetas.Elas me parecem sempre com-
pletamente arbitrárias - opinou o Paulo.
- E quanto àquelapassagem,Eric - interpelou o Luis,assumindo-
º como advogado do livro: - "Os longos intervalos de tempo entre
seus livros indicam o caráter visceral dessa poesia..." Pense bem:
poetas espontaneístas,ou "viscerais':por definição escrevemmuito.
Ora, longos intervalos de tempo são indicadores de artesanato, de
maturação...
- Sim,o laborlimaeet morahoraciano -, palpitei,sempre dispos-
to a fugir para longe do Brasil e do presente,já que não podia mais
simplesmenteentregar-me à comilança.
- ... o contrário do poeta "visceral"- concluiu afinalo Luis,como
se escrevesseq.e.d.ao final da equação.
- No fundo - concluiu por sua vez o Eric, felizcom o seu papel
de defensor - o livro é uma prótese, o equivalenteliterário de uma
dentadura ou uma perna de pau, aparelhos para pessoas banguelas
ou coxas.
- Eric, não exagere - protestou o Paulo: - Não há nada tão útil
assim no livro!

SIB ILA
- E o que acham do que é dito do Arnaldo Antunes? - disse une-
diatamente o Régis,atalhando uma eventual resposta do defensor Eric:
- "... Antunes desenvolve essa percepção da concretude da linguagem
em pelo menos três vertentes; (1) uma poesia de rigor formalista, que
explora a paronomásia e na qual as permutações fonéticas entre os
signos ditam os caminhos do significado (2) poemas tributários ao
concretismo dos anos 50 ..." Disse bem: "poemas tributários ..:' E então,
qual a novidade? E isso da paronomásia como recurso preferencial?
Mas não foi esse sempre o recurso por excelênciado concretismo,vide 85
o já citado "beba coca cola/ babe colá: Repito: qual a novidade?
- Talvez a paronomásia pop sem medo de ser feliz? - arrisquei
bestamente: - Sem a hesitação do Leminski, por exemplo? - la evo-
luir o raciocínio do Leminski resolvido para as massas até chegar
ao sloganlulista da esperança vencendo o medo, quando o Luis me
interrompeu:
- E o caso do Tolentino? O seu verbete já abre com um chavão
e um erro crasso ao dizer: "Poeta controvertido, polemista ácido e
violento, Bruno Tolentino é o mais ardoroso crítico do coloquialismo
modernista e da dissolução concretista do verso': Tolentino, ao con-
trário, é adepto evidente do coloquialismo de 22.Um exemplo que me
vem à cabeça de "Os Deuses de Hoje":"É, a vida é assim / como aqui
vai dito, / mas, queira ou não queira / quem teme o infinito, / vale a
pena sim': Parece Bilac?"Caiu, caiu / fora da história / o meu país: /
foi por um triz/ mas foi... E agora?/ Bye-byeBrazil / [...] / Vais cair
mais / e mais ainda,/ vais para a puta / que te pariu:/ pruneiro abril,/
depois o Nada:' Isto é de Felizaniversário,datado de primeiro de abril
de 65. Tolentino apenas parece não gostar da vertente do poema-pia-
da ... - O que, aliás, não impede que seja às vezes totalmente hilário,
pensei comigo. Mas era agora ou nunca:
- Bom, Luis,já que você falou em mim, quero dizer-lhes que acaba
de dar meia-noite: acabou-se o meu aniversário. Hora de partir. Antes
disso, quero apenas fazer uma declaração,já que vocês falaram como

SIBILA
matracas o tempo todo. Queria anotar ao menos um aspecto positivo
do Livro,que saiu muito engrandecido de todo esse debate. E é justo
que seja assim, pois, paradoxalmente, livros muito ruins podem ser
muito esclarecedores. No caso,ele acaba revelando o que está sempre
por trás de toda questão literária:a escolha,com mais ou menos razão,
dos autores que se considera relevantes,por um motivo ou outro. A
escolha, eu digo, e nunca simplesmente qualquer "naturezà' suposta-
mente necessária. Se quisermos ser contemporâneos deste estranho
86 "hoje': do qual não podemos nos livrar,a primeira coisa a fazer é en-
tender que estamos na contingência de uma história sem redenções
celestes,científicas,literárias ou ideológicas.Logo,o que é arbitrário
e ruim no livro é também sinal evidente de que há uma escolha a
ser debatida e eventualmente refutada, mas não uma transcendência
- católica, moderna, ou pós-pós, não importa - a ser venerada. E é
verdade que, se a escolhaé a questão,é ela que fracassamiseravelmen-
te no livro. Nele,como vimos nas várias falas,a arbitrariedade, o cor-
porativismo e a política literária aparecem mal disfarçadosde critério
crítico. Não há argumentos convincentes,nem pressupostos teóricos
claros ou coerentes a ordenar as escolhas.A frouxidão dos critérios e
a impertinência das descrições põem a nu a arbitrariedade da eleição
ou, para falar em termos de retórica antiga:a ausência de decoro.Uma
pequena precisão:a arbitrariedade é especialmenteruim, aqui,porque
sequer há um gosto idiossincráticoque mova a escolhados autores ou
que provoque a adesão afetiva aos objetos, o que seria sofrível,isto é,
ruim, mas tolerável.A sua adesão aos objetosé prévia,pré-definidaem
função de objetivosque não aparecemformulados. É isto sobretudo o
que se evidencia na falta de cuidado nas descrições,na confusão das
referências, na glosa dos conceitos que cada autor faz de si mesmo.
O móvel e a racionalidade do livro,se houver,devem ser procurados
em outro lugar.Pois este é o ponto-chave e o segredo do livro: não ser
senão um eco, como referiu o Paulo em algum momento. Comecei
falando em ressonância, não admira que terminemos em eco. Meus

SIBILA
votos finais, muito agradecidos a todos vocês que compareceram a
esta festa que não foi apenas minha, e me alegraram e instruíram
neste dia alarmante em que completo meio século, são solenemente
os seguintes: que um tal livro, que ostensivamente desiste da crítica,
seja a reiteração de um convite a ela. Cheers!

SI BILA
,
'

'

'

' -



ROTEIRO BÁSICO PARAUMA
VIDA SEM LIVROS
FurioLonza

Um país que deseja acabar com os livros não precisa


nem de prática nem de habilidade, basta seguir passo a
passo os vinte mandamentos abaixo:

1. Aumente o número de editoras até chegar à se-


guinte equação: haverá no país mais editoras que
livrarias.
2. Cada editora deve diminuir a tiragem de cada livro
e aumentar os títulos publicados periodicamente.
3. Abarrote as livrarias, diminuindo o tempo de ex-
posição de cada exemplar,pois haverá um rodízio
natural.
4. As livrarias não comprarão mais livros, passarão a
alugar suas estantes.
5. As livrarias pequenas tenderão a se extinguir ou mu-
dar de ramo, pois não possuirão espaço suficiente
para expor todas as novidades. Só sobrarão as mega
stores.
6. Em virtude do acúmulo de títulos, os jornais só da-
rão a resenha ou crítica três ou quatro meses depois
do lançamento.
7. Como o livro já estará na livraria há três meses,mas
11inguémvai saber, ele será devolvido pra editora,
pois não terá vendido o suficiente para continuar

SIBILA
sen do exposto com destaque, mesmo porque já haverá outro li-
vro mais novo no lugar, que só será resenhado pela mídia três ou
quatro meses depois e assim por diante.
8. O setor de Marketing das editoras escolherá previamente o livro
em que irá investir todos os seus recursos de divulgação na mídia.
O resto cairá na vala comum.
9. Os suplementos literários passarão a resenhar somente os livros
de editoras que anunciarem em suas páginas.
10 . Só serão vendidos nas livrarias os títulos que tiveran1 farta expo - 91

sição na mídia, ou seja, os que já nasceram best-sellers.


11. As livrarias aumentarão cada vez mais sua porcentagem, chegando
a 60%.
12. As editoras passarão a procurar uma tecnologia cada vez mais
moderna para baratear os custos, mas deixarão o preço final igual
ao de sempre.
13. As distribuidoras contratarão equipes cada vez menos especiali-
zadas, de preferência, vendedores que nunca tenham lido um livro
na vida. Alegarão que isso atrapalha.
14. O direito autoral dos escritores será di1ninuído dos atuais 10%
para 5%.
15. As editoras extinguirão os departamentos de avaliação de origi -
nais, pois só serão publicados livros de gente conhecida, celebri-
dades, não necessariamente escritores.
16. As editoras contratarão escritores que passarão a escrever somente
livros com potencial de venda, com elementos ditados previamen -
te pelos departamentos de Marketing.
17. Só serão publicados livros de ficção que sejam baseados em fatos
reais , de preferência chocantes, com a verdade nua e crua como
fio condutor da trama e que possam aflorar no leitor uma emoção
muito grande.
18. As livrarias passarão a incrementar cada vez mais seus espaços
com bares, cafés, restaurantes, pontos de encontro, vendendo

SI B l LA
games, bichinhos de pelúcia, miniaturas, cigarros importados,
bonequinhos, pósteres, baralhos e outros acepipes.
19. Aos escritoressérios,só restará a alternativade se mancomunarem
em confrarias,onde ficarãose autocitando,autoparodiando, auto-
elogiando e punhetando-se uns aos outros.
20. Só terão amplo destaque na mídia os escritores que acabaram de

morrer e que, em vida, jamais viram seus nomes impressos nos


• •
Jornais.
92

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incinerados os livros no filme de François Truffaut, por sua vez,
baseado no romance premonitório de Ray Bradbury. 93

SIBILA
OS CADÁVERESDA HISTÓRIA NA
~

POESIA DE NESTOR PERLONGHER


Florencia Garramuflo

94 A poesia de Perlongher está habitada por uma miría-


de de noções históricas díspares: personagens (Evita),
ideologias (nazismo), situações (a desvalorização do
peso), horrores (os cadáveres da ditadura). No entanto,
é difícil falar de l1istória em sua poesia, precisamente
porque sua poesia parece construir-se na obturação
da referência direta, literal. Atravessada por constantes
recursos sonoros e fonéticos que, ao dar primazia à
linguagem em sua pura materialidade significante so-
bre sua condição referencial ou comunicativa, poderia
chegar a expulsar a história de sua superfície, sua poesia
se constrói a partir dos procedimentos típicos da poesia
centrada na linguagem: rimas, aliterações, consonân-
cias e assonâncias substituem as relações semânticas e
gramaticais entre as palavras por relações fonéticas que
delatam uma certa resistência à significação.
No caso da poesia de Perlongher, no entanto, so-
bretudo no caso de Austria-Hungríae Ala,nbres,essa
resistência à significaçãose combina com a irrupção de
lascas de história. Restos de história aparecem 110 conti-
nuum do poema interrompendo sua gramática e o devir
de um significado linear, dando lugar a uma construção
do poema pautada a partir do trabalho sobre os restos
de uma história fragmentada. Ali estão esses resíduos de

SIBILA
história que pontuam os poemas: "Canción de Amor para los Nazis
en Baviera':"Era el Afio 1943/enEritreá: "lQué Tenía que Hacer en
Esa Noche/a las 20.25, hora en que ella entró': "Rivera':"India Muerta':
"Para Camila O'Gorman" e o poema que paradigmaticamente fecha,
como epílogo, toda essa série,"Cadáveres".
Penso que essa irrupção da história nos dois primeiros livros de
Perlongher, Austria-Hungríae Alambres,é uma figura da relação da
poesia de Perlongher não só com a história - e deliberadamente uso
a minúscula - mas também com o universo da experiência ou da 95
"realidade". A irrupção de cápsulas despedaçadas - resíduos - de
história no fluir da linguagem do poema pode ser pensada como
uma figura da relação, nessa poesia, entre a linguagem poética e sua
"exterioridade".Porque a forte primazia outorgada ao plano sonoro
da língua faz de certos versos de seus poemas uma construção - pa-
lavra puxa palavra, dir-se-ia em português - pautada por relações de
contigüidade fonéticae de permutações sonoras que vão desarmando
a gramática e com ela o significado referencial e sua relação com a
• A •
exper1enc1a.
No entanto, a referencialidade nunca está ausente da lógica do
poema em Perlongher. É mais exatarnente a colisão entre o plano
referencial - um código cultural - e o plano sonoro da língua o que
faz com que seus poemas possam ser pensados como uma série de
choques, uma litania de explosões produzidas pela colisão entre dois
ou mais códigos diferentes.
A colisão entre o código lingüístico e o cultural faz a beleza de "La
Murga, los Polacos" ["O Bloco,os Polacos"]:o que produz a raridade
das imagens que vão tecendo o poema é precisamente o fato de que
haja uma murga e esteja na Polônia, onde não há murgas.Os dois
1
,

primeiros versos vão se construindo a partir da aliteração combinada


e o intercâmbio fonético:

1. Conjunto de músicos que cantam pela rua. [N.da T.]

SIBI LA
Es una murga, marcha en la noche de Varsovia,hace milagros
con las máscaras,confunde
a un público polaco'

~ um bloco, marcha na noite de Varsóvia, faz nulagres


com as máscaras, confunde
o público polaco.

De murga a marcha se repetem os fonemas m e r, para retomar


96 o r em Varsóvia, que reaparece em milagres, retomando o m dos
outros dois significantes primitivos e ambos se repetem, de novo,
e1n máscaras. Se a lógica fonética explica a sucessão das palavras, o
código cultural, no entanto, choca com elas e, como ter1nina dizendo
o poema,

puesto que no hay tal murga,y aunque hubiérala


no estaría en Varsovia,y eso todos
lospolacos lo saben3

já que não existe esse bloco, e se existisse


não estaria em Varsóvia, e disso todos
os poloneses sabem.

Nesse poema, como em muitos outros, e eu diria que em todos os


de Austria-Hungría e Alambres, o poema não se apresenta em primei-
ra instância e desde o começo e para sempre como uma anulação da
referência, mas sim essa anulação ou deslocamento do plano da refe-
rência é produzido pelo próprio poema, no sentido de que é o poema
em sua seqüência que atinge e co11cluicom esse deslocamento.
Em primeiro lugar, em "La Murga, los Polacos': a palavra poética
cria uma discordância com o plano semântico: a conexão entre "mur-
ga"e "polacos': a conexão entre o carnaval e Varsóvia.No e11ta11to,
é ne-

2. Néstor Perlongher,Poe,nasCon1pletos,Buenos Aires,Seix Barrai, 1997,p. 23.


3. Idem, ibidem.

SIBILA
cessária uma referência cultural, e não pura ou exclusivamentelingüís-
tica, para reconhecer essa discordância que, no nível da linguagem
enquanto dualidade significado/significante, e no plano da gran1ática
em uso, não apresenta nenhum tipo de «erro"ou discordância.
Mas há um ponto no poema - marcado ainda pela espacializa-
ção - no qual o poema se inverte, e a sentença assertiva que inicia o
poema ("Es una murga / marcha en la noche de Varsovia") e as que
a sucedem em sua primeira metade cedem lugar a orações negativas
e condicionais. Há então uma pulsão cultural, uma pressão do con- 97
texto cultural que impulsiona o plano lingüístico para construir esse
poema.
Em outros poemas, trata-se de colisões de outro tipo: colisões
entre diferentes línguas - e ali entra seu portunholismo, mas também
a inclusão de palavras em francês ou em inglês, e ainda, em italia-
110 -, ou choques entre distintos registros do espanhol - culto, popu -
lar, a língua da gauchesca-, ou o uso de provérbios ou frases feitas
fora de lugar.
A atenção à linguagem, à palavra em si mesma - o que Khleb-
nikov e Kruchenykh chamaram em seu manifesto de 1913"a palavra
enquanto tal" - conduz a um.a atenção especial dada ao som, aos
jogos com os fonemas, à recorrência rítmica: aliteração, consonância,
repetição e assonância são procedimentos centrais na poesia de Per-
longher . No entanto, o que é característico de sua poesia é a presença,
nessa paisagem contraditór ia, de cápsulas efervescentes de história
ou de experiência. Despojadas também de um contexto que lhe dê
um significado claro, literal, essas cápsulas, no entanto, insistem em
seus poemas produ .zindo precisamente esse outro plano de choque .
Quando é a estrutura sonora que gera o poema, ela nunca é predo-
mina.µte, mas sim se contrapõe a essa outra estrutura semântica com
a qual a primeira choca.
É comum na poesia de Perlongher encontrar essas raras deses-
tabilizações, mas, sobretudo, a construção de um sentido que se vá

SIB ILA
pautando em um devir do poema pelo qual este acaba por inverter-se
como uma luva, e termina asseverando o oposto daquilo sobre o qual
se iniciava. O primeiro poema de Austria-Hungría,qual um prólogo,
anuncia uma operação poética que se repetirá nesse e em outros livros
de Perlongher.
Interessa-me pensar essas colisões entre códigos diferentes como
uma figura que permite estudar em termos históricos a posição da
poesia de Perlongher em relação à linguagem e o hermetismo. Por-
9s que a poesia centrada na linguagem também é histórica enquanto
delata, pela série de redes que tece e entre as quais se inscreve, um
uso especial da linguagem e do fazer poético que pode dizer muito
precisamente ali onde cala: em seu hermetismo, nas formas de cons-
trução desse hermetismo, pode-se freqüentemente ler uma forma de
significaçãona qual sua pulsão anticomunicativapode dizer-nos algo,
também, das condições históricas que rodeiam essa poesia.
O poema como negação ou inversão da referencialidade mostra
uma operação que em termos semânticos equivale ao que o proce-
dimento aliterante - segundo é utilizado na poesia de Perlongher
- é para o plano sonoro: mais um impulso à construção do sentido
pela obliteração de um sentido dado - o sentido comum, o sentido
da gramática - que uma mera repetição redundante. Na poesia de
Perlongher, as aliterações costumam funcionar como incitação e
transformação fonética, nunca como eco ou repetição fechada. Es-
ses procedimentos aliterantes impulsionam o poema para adiante
- e não o fechan1. A operação de inversão reverte o poema a um
plano diferente, ocupando uma posição de fechan1entoimpossível,
apesar de sua dobra e prega. Vemo-lo, por exemplo, nestes versos:
"su estoque, su estocada, su descotado aliento"4 , em que a aliteração
e transmutação dos fonemas, a substituição de uns por outros, todos
em um mesmo verso, já não funcionam como eco, mas sim como

4. Idem, p. 29.

SlBILA
- para usar um conceito teorizado a partir de Deleuze e Guattari
pelo próprio Perlongher - devir. Outro exemplo:"esa irritada furia
de los dedos feroces».
A poesia de Néstor Perlongher é um caso interessante nessa dialé-
tica poética de informação/hermetismo. Porque, se por um lado sua
poesia trabalha com o puro significante, há também em sua poesia
uma forte inscrição - freqüentemente hermética ou incompreensível,
mas afinal inscrição - de questões históricas, sociais - e até pessoais
- muito devastadoras: o nazismo, os desaparecidos da ditadura, ou 9
9
o homossexualismo. Na poesia de Perlongher, o significante é amo
e senhor, mas esse significante vai se entrelaçando com um jogo de
significaçõesque fazem irromper em sua poesia - estrepitosamente:
freqüentemente como um grito - a história e seus significados,ou a
vida pessoal e seus sentidos.Sua poesia é hóspede tanto para a história
. .
como para a exper1enc1a.
~

"Cadáveres"pode ser lido como uma poética que explicita esses


procedimentos de obturação da referencialidade.Escrito em 1981,"em
uma longa viagem de ônibus de Buenos Aires a São Paulo': é publi-
cado na Revista de (Poesía)em 1984, uma vez terminada a ditadura.
Nesse poema, pode-se ler uma clara recusa à poesia informativa, ou à
função informacional da poesia e da linguagem, e sua relação, entre-
tanto, com a história. Por um lado, a referencialidadese vê interrom-
pida por uma série de procedimentos poéticos que têm a ver com a
primazia do plano poético, ou da função poética da palavra frente à
função comunicativa. Esses procedimentos operam com uma certa
pregagem e superabundância de significação (repetições, hipérbo-
les) no plano semântico (o que faz a proliferação neobarroca), e por
outro lado, com uma interrupção do fluir gramatical, sugerida pelos
anacolutos, a suspensão do sentido, os neologismos e a interferência
de línguas diferentes.
O que é interessante nesse poema - e penso que em certo sentido
permite fazer uma leitura do mesmo como explicaçãodo hermetismo

SIBILA
de seus dois primeiros livros - é como o poema vai desarmando e
desconstruindo a função comunicativa da língua a partir de diferentes
níveis à medida qtie avança em sua construção.
Nas primeiras estrofes, é possível pautar uma progressão a partir
de uma correta estruturação sintática, gramatical e semântica:

Bajolas matas
En lospajonales
Sobrelospuentes
100 En loscanales
Hay cadáveres

En la triliade un tren que nuncase detiene


En la estelade un barcoque naufraga
En una olilla,que se desvanece
En losmuelleslosapeaderoslos trampolineslosmalecones
Hay cadáveres

Sob as matas
Pelos pastos
Sob as pontes
Nos canais
Há cadáveres

No trilho de um trem que nunca se detém


Na esteira de um barco que naufraga
Num marulho, que se apaga
nos molhes estações nos trampolins e cais
Há cadáveres.

Aí os advérbios de lugar precedem lugares em que semanticamen-


te é lógico que se podem encontrar cadáveres.Mas à medida que se
avança, a exasperação e a repetição do estribilho "Há cadáveres"não
só assinala o exagero quanto à quantidade de cadáveres, mas tam-
bém certa ilogicidade ou ruptura da lógica do sentido. Já na segunda
estrofe, muda o ritmo breve da primeira em um quarto verso longo
que acumula três complementos de lugar para um só advérbio, o que

SIBILA
faz com que o verso não somente seja mais longo em termos visuais,
mas também semânticos.
A partir daí, começa a se desarmar a lógica do sentido. Começam
a aparecer, como complementos de lugar, coisas e lugares que não
podem ser pensados logicamente como lugares em que poderia haver
cadáveres:

En las mangas acaloradasde la mujer del pasaporte que se arroja


por la ventana del barquíllo con un bebito a cuestas
IOI

Nas mangas calorentas da mulher do passaporte que se atira


pela janela do barquinho com um bebê nas costas.

A própria linguagem se quebra: começam a aparecer versos apa-


rentemente sem sentido, e a construção do verso se apóia na alitera-
ção e em seu plano sonoro, fonético, abandonando a lógica do nível
semântico:

En e/ garrapiflero que se empana,


En la pana, en la paja, ah{
Hay cadáveres

No sorveteiro que se empasta


Na pasta, na palha, aí
Há cadáveres.

Aqui há uma ilogicidade semântica: o garrapinero ["sorveteiro"]


que se empana ["empasta"] não é um complemento de lugar lógico,
em primeira instância, em que possa haver cadáveres. Na próxima
estrofe, a primazia da lógica fonética é óbvia:

P,:ecisamenteahí, y en esa richa


de la que se deshilacha,y
en ese soslayo de la que no conviene que se diga,
y en el desdén de la que no se diga que no piensa, acaso
en la que no se dice que se sepa

SIBILA
Exatamente aí, e nessa lissa
daquela que esfiapa,e
no soslaio da que não convém que se diga,
no pouco caso da que não se diga que não pensa, quem sabe
na que não se diz que se saiba...

Até chegar à decomposiçãoda gramáticae da sintaxe em que a lin-


guagem pareceria reger-se simples e exclusivamentepela fonética:

102 En el tepadode la que se despelmaza,febrilmente,


en la
menea de la que se lagartaen esayedra,inermeen el
despanzurrarde la que no se abriga,apenas,sino con un
saquito,y en potichede saquitos,...

No tecido da que se desabrocha, febrilmente,na


meneia da que se lagarta nessa hera, inerme no
desventrar da que não se abriga, mas, porém, com um
casaquinho, e em potiche de casaquinhos, ...

Há uma estrofe que parece retomar a tradição dagauchescacomo


uma forma de reforçar e conectar com um passado em que também
"Há cadáveres":

Pareceremanido:en la manea
de esosgauchos,en elpelaje
de esa tropaalzada,en loscafíaverlaes(pajabrava),en el botija
de eseguacho,el olora matorrade esejuiz
Hay cadáveres

Parece isolado: desde o laço


desses gaúchos,ao pelame da
tropa rebelada, nos canaviais(canatinga) e na moringa
desse agreste,no cheiro de brejo dessejuiz
Há cadáveres.

Não só é retomada ali a linguagem dagauchescae a voz do gaúcho,


mas também certos fragmentos de possíveissituações da gauchesca.

SIBILA
Remanido ["isolado"] funciona ali então dupla1nente como conexão
com o registro lingüístico da gauchescae por sua vez como ligação
com um passado> como algo que não é novo>algo que vem do passa-
do e tem continuidade> tanto na língua (o uso da língua gauchesca)
como na ação . Confluem assim dois níveis>o nível lingüístico e lite-
rário e o nível da história: a histó ria de violência da gauchescae sua
linguagem.
O poema vai avançando em uma progressiva desconstrução da
linguagem em sua função informacional até chegar a construir versos 103

com interjeições, ou introduzir outras línguas como mais um gesto


de universalização dos cadáveres:

"Yes,en el estuchede alcanfordei prechode esa


jbonita profesora!
Beco,en los tizones que esa jbonitaprofesora!traza el rescaldo
de ese incienso;[... ]"

"Yes, no estojo de cânfora do preito dessa


bonita professora!
Ecco, nos gizes com que essa bonita professora! traça o rescaldo
desse incenso; [...]"

E há uma estrofe em que a preposição en ["em"] não conduz a um


complemento de lugar, mas sim a ações:

En eso que empuja


lo que se atraganta
En eso que traga,
lo que emputarra,
En so que amputa,
lo que empala,
En eso que jputa!
Hay cadáveres

Nisso que empurra


o que se engasga ,

SIBILA
Nisso que traga
o que emputarra,
Nisso que amputa
o que empala,
Nisso que, puta!
Há cadáveres.

Para chegar a

Ya no se puede sostener:el mango [...]


Ya no se puede enumerar

Não dá mais pra segurar: o cabo [...]


Já não se pode enumerar.

Quando a impossibilidade de enumerar os cadáveres, os lugares


- todos - em que são encontrados cadáveres, e de sustentar um
discurso lógico passa a substituir os complementos de lugar pelos
complemen tos de tempo:

Cuando el caballopisa
Los embonchadosp6lderes...

Quando o cavalo pisa


os racemosos pôlderes ...

Para terminar em fragmentos de conversas inconclusas que po-


deriam remeter a conversas da época:

- Todo eso no viene así nomás


-Porqué no?
- No me digas que los vasa contar

- Nada disso acontece à toa


- Por que não?
- Não me diga que vai contá-los.

Talvez o verso simbolista com o qual começa uma das últimas estro-

SIBILA
fes ("Yosoy aquél que ayer nomás ...:')* sirva também para pensar nessa
impossibilidade de comunicar. O verso acaba em reticências, como se
já não se pudesse escrever,devido à experiência dos cadáveres, nesses
versos simbolistas nos quais as reticências (o silêncio) substituem a
palavra que no verso de Dario era, justamente, decía["dizia"].É lógico
então que o verso termine com seu contundente: "No hay cadáveres'~
Assim o poema reconstrói essa lógica de deslocamento da referên-
cia, com a inversão de tudo o que o poema vinha dizendo , repondo
a ausência de cadáveres em uma clara referência aos desaparecidos 105

da ditadura argentina. Se não há cadáveres, em todo caso, é porque a


incomensurável quantidade de cadáveres que, sim, há no poema faz
com que a linguagem já não possa comunicá-lo.
Parece-me que nesse poema se explicita esta lógica poética do
deslocamento da referência em uma escritura que se escreve a partir
de si mesma, a partir da pregagem da matéria, como uma operação
de forte impugnação a uma ordem lógico-comunicacional da qual
descrê. E que de fato oculta e mente.
É possível construir toda uma tradição dessa impugnação da or-
dem lógico-comunicacional e referencial na literatura argentina dos
anos 1970. Em primeiro lugar, a opacidade do texto perlongheriano
pode ser entendida como função do neobarroquismo de sua escritura,
movimento no qual em geral foi incluído e sobre o qual ele mesmo
teorizou. Essa opacidade neste caso tem a ver com uma série de recur-
sos que dificultam a leitura e o fluir do sentido: a aliteração, a cacofo-
nia, o uso de estrangeirismos, arcaísmos e gírias, mas também o uso
de orações condicionais e de pergunta s, que não afirmam, mas sim
geram dúvidas e desestabilizações. Mas se o conceito de neobarroco
ajuda a entender a relação crítica com a modernidade que proporia
essa pregagem da matéria e o ornato indecodificável, o certo é que,
além disso, no contexto argentino, a poesia de Perlongher se insere em

• Esteverso,assim como o citado a seguir,no finaldeste parágrafo,foram mantidos em espanhol


por JoselyVianna Baptista na tradução citada. [N.da T.I

SIBILA
um movimento mais amplo de recusa simultânea da vanguarda e de
seu hermetismo formal, por um lado, e de oposição à retórica realista
engajada e ao valor infor1nacionaldo texto literário, por outro. Não só
é possívelencontrar essascaracterísticasnesta tradição do neobarroso
que o próprio Perlongher organiza (veja-seseu CaribeTransplatino ),
com os dois Lamborghini ou Arturo Carrera entre suas origens, mas,
além disso, é possível também encontrá-las, sobretudo, em Literal,
a revista que esses mesmos escritores publicaram junto com outros
106 como Gusmán, Zelarrayán ou Libertella,de 1973 a 1976.
Penso que se pode reconhecer em Literala presença de uma série
de problemáticas que Perlongher, em sua poesia, continua e desloca.
Sobretudo, uma clara recusa ao realismo que não se identifica com a
vanguarda nem reivindicapara si esse título (segundo destaca Héctor
Libertella em sua introdução a uma antologia de textos da revista
publicada em 2002) 5•
Literaltraçou uma tripla oposição ao poder, à fu11çãocomw1icati-
va da palavra e ao realismo, que em Perlongher pode ser lida também
em sua poética antimimética claramente política.
A leitura detalhada dos poemas de Perlongher enquanto impug-
nação à lógica referencial e ao caráter informacional ou comunicativo
do texto pode revelar de que maneira magistral sua poesia de lingua-
gem é também uma poesia expressivamenteatravessadapela história,
ajudando além disso a situar essa poesia na sombria paisagemcultural
argentina de sua época.
Tradução:GêneseAndrade

BIBLIOGRAFIA

PERLONGHER , Néstor. ProsasPlebeya.Sei.e prol. de Christian Ferrer & Osvaldo


Baigorria.Buenos Aires,Colilhue,1997.

5. Héctor Libertella,Literal1973-1977,
BuenosAires,SantiagoArcos,2002, p. 7.

SIBILA
O SEXO DAS MENINAS*
Néstor Perlongher

A sensualidade da poesia de Girondo foi reiterada- 107

mente aludida pelos críticos . Aldo Pellegrini nota que "em


Girondo há uma verdadeira sensualidade da palavra como
som" Enrique Molina, após reconhecer"seu conteúdo de
1

voracidade sensual", vai mais longe quando escreve:

poesia fosfato destinada à formação de um sentimento intra-


orgânico, plena de crateras genitais de plexos e constelações, núcleos
delicados e terríveis ... 2

Sensualidade, hum, se11sualidade. Diz Girondo:

Yo dudo que aún en esta ciudad de sensualismo, existan falos más


llamativos, y de una erección más precipitada, que la de los badajos
dei 'campanille' de San Marcos (vP, p. 66).

,. Publicado na revista Xul, n. 6, Buenos Aires, maio 1984, pp. 25-28. Esse número
da revista é dedicado inteiramente a Oliverio Girondo, com o título geral
"Apunte sobre Girondo''. A tradução dos poemas citados de Veinte Poemas
para ser Leídos en el Tranvía e Espantapájaros pertence a Jorge Schwartz,
Vanguarda e Cosmopolitismo, São Paulo, Perspectiva, 1983. A tradução de
En la Masmédula pertence a Régis Bonvicino e integra o livro de Oliverio
Girondo,A Pupila do Zero/ En la Masmédula, São Paulo, Iluminuras, 1995.
1. Citado por Enrique Molina em ''Hacia el Fuego Central o la Poesía de Oliverio
Girondo", Prólogo de Obras Completas de Oliverio Girando, Buenos Aires,
Losa<la, 1968. As citações de Oliverio Girondo pertencem a essa edição - a
inicial indica o livro - VP: Veinte Poemas para Ser Leídos en el Tranvía; cc:
Calcomanías; E: Espantapájaros; EM: En la Ma.smédula;seguido do número
de página.
2. Enrique Molina, op. cit.

SIBILA
Eu duvido que ainda nesta cidade de sensualismo existam falos mais cha-
mativos e de uma ereção mais precipitada que a dos badalos do "campanile" de
San Marcos.

Um documento de origem duvidosa - uma carta anônima en-


contrada por Jorge Schwartz no arquivo de Girondo - informa que
essa sensualidade não precisa ser necessariamentepercebida no nível
do som, nem fisgada pelas forquilhas - sem dúvida belas - da me-
táfora. Ela também pode ser pescada a partir do que popularmente
108
se conceberia como sexual, ou obsceno,e que costuma ser expresso
mediante formas, digamos, menores: a literatura das paredes dos
banheiros públicos, por exemplo.Em uma palavra, a partir do mais
porco. Tal anônimo é de um teor tão baixo3 que não conheceu até
agora as prerrogativasda publicação- seu destino,como o dos grafi.tti

3. A carta encontra-se no arquivo do sr. Washington Pereyra (Buenos Aires). Está datada de
2.12.1925;o timbre com o nome do remetenteestá arrancado.Assinatura:"Un porongo,vulgo
príapo~Reproduzimosalguns parágrafos,respeitando a ortografia:
~ .. imagéneseseftor Girondio,Santo Oliverio,las diablurasque no hubierayo hecho cone/
sexso de una bel/anifta deflores en e/ bolsillo;pero ahora viene a mi memoria, que cierta vez,
caminandopor una callede Flores,vijunto ai cordónde la vereda, una cosasanguinolenta,de
forma sugestiva,a la que di mayor importancia;ahorase me ocurreque era un sexso caído a
quizá que Santa nifta de Flores(... ) Siemprele oí decir a papá, que no le gustaban las casas
con balcones,y ahora me ecplicoel parqué;seguramentepara mis hermanitas no cuelguen
los cenosen é/;y tú Oliverio,a ti que te es dado ver/o todo,jamás viste un jovensuelo chupar
como un terneromamon, el cena colgadodesde un balcón,que tiernamente le ofrecíaalguna
pres,osa nina .
• • - J)

"... imagene senhor Girondio,Santo Oliverio,as diabruras que eu não teria feitocom o sexso
de uma bela menina de flores no bolso; mas agora vem a minha memória, que certa vez,
caminhando por uma rua de Flores,vi junto à beira da calçada,uma coisa sanguinolenta,de
forma sugestiva,a que dei maior importância;agora me ocorre que era um sexsocaído a quiçá
que Santa menina de Flores [... ] Sempre ouvi meu pai dizer que não gostavadas casas com
balcões,e agora me ecplicoo porquê;seguramentepara minhas irmãzinhas não pendurarem
os ceios nele;e vocêOliverio,a quem é dado ver tudo,jamais viu um jovençuelochupar como
um bezerro mamão, o ceio pendurado em um balcão,que ternamente lhe ofereciaalguma
• • n
pres1osamenina.
E conclui:
"Yaque me jodiste en veinteguita,gasto otroscincoen estampilla,y te hagosentir el pijaso de
mi admiracióncomo un 'egrete'en tu ojete".
"Já que você me ferrouem vinte guita, gasto outros cinco em selo,e façovocêsentir a ninharia
de minha admiração como um 'egrete'em seu olhete~

SIBILA
pornográficos, é circular obscuramente . Mas talvez, por uma espécie
de velado pudor ("a arte eleva':diz Fogwill),negar a reverberação, em
nossos putos ouvidos, do obsceno? Por trás dessa sensualidade, nela
imbricado, há um "sexualismo":

entre las creacionesque inventa el sexualismo(E,p. 198).

entre as criações que inventa o sexualismo.

Como aparecem as alusões sexuais na poesia de Girondo? A que


aludem?
Comecemos com as Meninas de Flores.
"Meninas de Flores, que - diz Molina4 - são também meninas de
flores, cujas nádegas remontam a uma mitologia de famílias': Recor-
demos que elas

... aprietan laspiernas, de míedo de que el sexo se les caígaen la vereda...

... apertam as pernas, de medo de que o sexo lhes caía na calçada ...

e que

AI atardecer,todas ellascuelgansus pechossin madurar dei ramaje de hierro


de los balcones...

Ao entardecer, todas elas penduram seus peitos não amadurecidos na rama -


gem de ferro dos balcões ...

e que

... de noche,a remolquede sus mamás [...] van a pasearsepor laplaza,para que
loshombresles eyaculenpalabrasai oído,y suspezonesfosforescentesse enciendan
y apaguen como luciérnagas...

....de noite, a reboque de suas mães [...] passeiam pela praça, para que os
homens lhes ejaculem palavras ao ouvido, e seus mamilos fosforescentes se
acendam e se apaguem como pirilampos ...

4. Enrique Molina, op.cit.

SI BI lA
Depois, sabemos que:

Las chicasde Flores,viven en la angustiade que las nalgasselespudran, corno


manzanas que se han dejadopasar,y el deseode loshombresIassofocatanto,que
a vecesquisierandesembarazarsede él comode un corsé,ya que no tienenel coraje
de cortarseel cuerpoa pedacitosy arrojárselo,a todos losque lespasan la vereda.
(VP, p.66)

Asmeninasde Floresvivemna angústiade que suasnádegasapodreçam,como


maçãs que deixaram ficar passadas,e o desejodos homens as sufoca tanto, que às
110
vezesqueriam desvencilhar-sedele como de um espartilho,já que não têm cora-
gem de cortar o corpo em pedacinhos e atirá-lo a todos os que passam pela rua.

Há, por um lado, um sexo reprimido; por outro, um sexo despe-


daçado. A imagem do desejo aparecendo atrás da casta aparência de
normalidade - do desejo transtornando a paisagem, tropeçando no
social - é habitual em Girondo. Em «Riode Janeiro":

Hay viejos árbolespederastas,florecidosen rosas té;y viejos árbolesque se


tragana los chicosquejuegan ai arcoen lospaseos

Há velhas árvores pederastas, floridas em rosas-chá; e velhas árvores que


engolem os meninos que brincam de arco nos passeios.

E:

El sol ablanda el asfaltoy las nalgasde las mujeres[...], sufre un crepúsculo


en los botonesde ópaloque los hombresusan hastapara abrocharsela bragueta
( VP, p. 61).

O sol amolece o asfalto e as nádegas das mulheres [...], sofre um crepúsculo


nos botões de opala que os homens usam até para abotoar a braguilha.

Em «PaisajeBreton" ["PaisagemBretã"]:

un pedazo de mar,
con un olora sexo que desmaya( VP, p. 53)

um pedaço de mar
com um cheiro de sexo que desmaia.

SIBILA
Os seios das mulheres saltam também de desejo em "Corso":

,nientras las chicas


se sacan los senos de las batas
para arrojárselosa las comparsas(vP, p. 74)

enquanto as moças
tiram os seios das batas
e os lançam para os blocos.

Em "Cas.sino
. "* :
III

Unastetasque saltaránde un momento a otrode[**escote,y lo arrollarántodo,


como dos enormes bolasde billar

Un1as tetas que saltarão de um momento para outro de um decote, e que


atropelarão tudo como duas enormes bolas de bilhar.

,
e, a1mesmo:

Hay efebosbarbilampifiosque usan una braguetaen e/ trasero... (vP, p. 75)

Há efebos lampinhos que usam uma braguilha no traseiro ...

A sexualidade se revela frente aos mesmos estandartes da proibi-


ção de "Sevilhano" (que bem poderia se chamar "Sevilhana"):

Y mientras,frenteai altarmayor,a lasmujeresseles licúael sexocontemplando


un cruci.fijoque sangrapor sus sesentay seis costillas... (vP, p. 87)

Enquanto isso, diante do altar-mor, liquefaz-se o sexo das mulheres contem-


plando um crucifixo que sangra por suas sessenta e seis costelas ...

Em "'\verona
T »
:

jSe celebrael adulteriode María con la Paloma Santa***!

l: celebrado o adultério de Maria com a Po1nba Sagrada!

" O título do poema de Girondo é"Bíarritz''. [N.da T.]


"" No poema de Girondo: "de un''. [N.da T.]
""" No poema de Girondo: "Sacra".[N.da T.]

SIB ILA
E está:

...La Virgen,sentadaen unafuente, comosobreun "bidé".

... A Virgem,sentada numa fonte como num "bidê".

entre

... capitelesdonde unos monosse entretienendesdehace nuevesiglosen hacer


el amor.( VP, p. 88).
112
... capitéis onde macacos se distraem há nove séculos em fazer amor.

O mesmo sexo que as meninas de Flores lançam às calçadas é


servido em "Café-Concerto":

La camarerame trae,en una bandejalunar,sus senossemidesnudos( VP, p.55).

A garçonete me traz, numa bandeja lunar, seus seios seminus.

A fragmentação dos corpos explicita-seem "Croquis na Areia":

Brazos.
Piernasamputadas.
Cabezas*que se reintegran
... losojosde las chicasque se inyectannovelasy horizontes

Braços.
Pernas amputadas.
Corpos que se reintegram
... os olhos das meninas que se injetam novelas e horizontes

Rocasconpechosalgososde marineroy corazonespintadosde esgrimista(vP,


p. 56)

Rochas com peitos algosos de marinheiro e corações pintados de esgrimista.

• No poema de Girondo:"Cuerpos''.[N.da T.]

SI BI LA
O olhar libidinal mancha também as famílias em «Apunte Calle-
jero" ["Nota de Ruà']:

En la terrazadei*caféhay unafamilia gris.Pasan unossenosbizcosbuscando


una sonrisasobrelas mesas.

No terraço de um café há uma familia cinzenta. Passam uns seios vesgos


procurando um sorriso sobre as mesas.

Recapitulando: há uma libidinização do social. O aparentemente


regido por normas civilizadas, "assexuadas", encobre uma intensa 113

circulação pulsional, tal que:

De repente:el vigilantede la esquina detiene de un golpede batuta todos los


estremecimientosde la ciudad,para que se oiga en un solo susurro,el susurro de
todos lossenos ai rozarse.

De repente: o guarda da esquina detém num golpe de batuta todos os estre-


mecimentos da cidade, para que se ouça num só sussurro o sussurro de todos
.
os seios ao se roçarem.

Esse desvelar do sexual não respeita os símbolos religiosos; mas


sim, parece encarniçar-se com eles: na Espanha de Calcomanías, o
universo mascu lino e misógino do Clube de Homens de "La Casa de
las Sierpes"** ['J\ Casa das Cobras"]:

Cada doscientoscuarentay sietehombres,


trescientosdoce curas
y doscientosnoventay tressoldados,
pasa una mujer.(cc, p.98)

A cada duzentos e quarenta e sete homens,


trezentos e doze padres
e duzentos e noventa e três soldados
passa uma mulher.

,. No poema de Girondo: "de un~ [N.da T.]


"" O título do poema de Girondo é"CaUe de las Sierpes" ["Rua das Serpentes"]. [N.da T.]

SI BILA
A homo ssexualidade mela o poder:

... los hombresrecuéstanseen los muros


dondependen alfanjesde zarzuela
y el Kaiserabrazaen las litografíasai Sultán (cc, p. 106)

... os homens recostam-se nos muros


em que pendem alfanjes de zarzuela
e o Kaiser abraça nas litografias o Sultão.

114
Mas o Sexo é Pecado:

Seguidode cuatrocientasprostitutas arrepentidasdeipecado menos original,


el Cristodei Gran Podercamina sobreun oleajede cabezas,que lo alza hasta el
nivel de los balcones,en cuyos barroteslas mujeresaferranlasganas de tirarsea
lamerlelospies. (cc, p. 134)

Seguido de quatrocentas prostitutas arrependidas do pecado menos original,


o Cristo do Grande Poder caminha sobre uma onda de cabeças,que o ergue até
o nível dos balcões, em cujas grades as mulheres aferram a vontade de atirar-se
a lamber-lhe os pés.

E a consumação está como um tabu:

... los cachetazoscon que Ias ninas


persuaden a los machos
de que no hay nada que hacer
sino dejarlasen su casa,
y sepultarseen la abstinencia
de las camasheladas(cc, p.112).

... as bofetadas com que as meninas


persuadem os machos
de que não há nada a fazer
senão deixá-las e1nsua casa,
e sepultar-se na abstinência
das camas geladas.

Então a Religião,lugar de emissão da lei, é, no entanto, erotizada:

SIBILA
... los nazarenos... llegan,acompaiíadosde un amigo,a presentarle la virgen,
como sifuera su querida. (cc, p. 121)

... os nazarenos ... chegam, acompanhados de um amigo, para apresentar-lhe


a virgem, como se fosse sua querida.

,
e, a1 mesmo:

... las mujeresensayan su mirada "Smith Wesson";pues, como las vírgenes,s6lo


salen de casa esta semana, y si no cazan nada, seguiránsiéndolo...

115
... as mulheres ensaiam seu olhar "Smith Wesson"; pois, como as virgens, só
saem de casa nesta semana, e se não caçam nada, continuarão sendo ...

Tantas dificuldades induzem a outros métodos:

... lospresidiariasesperan... que las vírgenespasen por la cárcelantes de irse a


dormir,para sollozar una ''saeta"de arrepentimiento...

... os presidiários esperam ... que as virgens passem pelo cárcere antes de ir
dormir, para soluçar uma "saetà' de arrependimento ...

que se perpetram sob os rituais mais inesperados:

Delatemosun onanismomás:el de izar la banderacadacincominutos(cc, p.140)

Delatemos mais um onanismo: o de içar a bandeira a cada cinco minutos.

O despedaçamento da sexualidade opera-se em vários sentidos:


por um lado - como vimos em "Ex-voto" - os corpos se despedaçam.
Por outro, a sexualidade mesma aparece despedaçada em todos os
cantos do corpo social. Mas, além disso, o assento mesmo do desejo
"personológico" - o eu - se fragmenta:

Yo no tengo una personalidad;yo soy un cocktail,un conglomerado,una ma-


nifestaciónde personalidades... [...]
JQué clasede contactopueden tener conmigo,me pregunto, todas estasperso-
nalidades inconfesables,que harían ruborizar a un carnicero?JHabréde permitir
que se me identifique,por ejemplo,con este pederasta marchito que no tuvo ni e/
corajede realizarse...? (E,p. 171)

SIBILA
Eu não tenho uma personalidade: eu sou um coquetel, um conglomerado,
uma manifestação de personalidades... [...]
Que tipo de contato podem ter comigo,me pergunto, todas estas personali-
dades inconfessáveis,que fariam ruborizar-se um açougueiro? Hei de permitir
que me identifiquem,por exemplo,com este pederasta murcho que não teve nem
a coragem de realizar-se...?

E se lamenta:

jPensarque durantetodasu existência,la mayor(ade loshombresno han sido


zr6 ni siquieramujer!(E,p. 188)

Pensar que durante toda a sua existênciaa maioria dos homens não foi nem
sequer mulher!

E o grande poema sexual de Girondo:

Se miran,sepresienten,se desean

Se olhain, se pressentem, se desejam.

está quase integralmente escrito em "se': O que pode dar para supor
um "eles»,sim; mas pensemos também no ritmo de "se"impessoal:

seperforan,se injertan*,se acribillan,[...]


se remachan,se injertan,se atornillan,(E,p.179)

se perfuram, se encrustam, se crivam,[ ...]


se fincam, se enxertam, se enroscam,

Não há objeto amoroso individualizado; há "tipos" de mulheres:


mulheres vampiro, mulheres com um sexo preênsil, mulheres elétri-
cas. O desejo se roça - bataillanamente - com a morte:

Hasta que el día menospensado,la mujer que nos electrizaintensificatanto


sus descargassexuales,que terminapor electrocutarnosen un espasmo,lleno de
interrupcionesy cortocircuitos(E,p. 198).

• No poema de Girondo: "incrustan~ [N.da T.)

SlBILA
Até que no dia menos pensado, a mulher que nos eletriza intensifica tanto
suas descargas sexuais, que termina por nos eletrocutar em um espasmo, cheio
de interrupções e curtos-circuitos.

e:

... su sexo -lleno de espinasy tentáculos-se incrustabaen mi sexo,precipitán-


dome en una seriede espasmosexasperantes(E,p. 189) .

... seu sexo - cheio de espinhos e tentáculos - incrustava-se em meu sexo,


precipitando-me em uma série de espasmos exasperantes. 117

Ser todos os sexos:

Poseeruna virgen es muy distinto a experimentarlas sensacionesde la virgen


mientras la estamosposeyendo (E,p. 187).

Possuir uma virgem é muito diferente de experimentar as sensações de uma


virgem enquanto a estamos possuindo.

Esse pansexo será, no final da obra (En la Masmédula), um panyo


["paneu"]:

posyo dei mico ancestrosemirefluidoen vilaya lívido de líbido


yo tantan yo
panyo
[...]
pulpo yo en mudo nudo de sacay pon gozón en don más don tras don
yo vamp
yo maramante (EM,p. 450)

póseu de mico atávico semirrefluído no ar já lívido de libido


eu tanto eu
paneu
[...]
polvo eu en1 mudo nó de saca eu sou mais eu mais eu eu
eu vamp
eu maramante.

SIBILA
Jáa esta altura, a desestruturação da escritura opera também uma
redistribuição - não menos intensa -

de la enllagadalíbidoposesa (EM,p. 404)


da enchagada libido possessa

que sofistica até o indizível a retenção passional:

en lo erectopor los excesoslesosdei erofroteetcétera


o en el bisueno exhausto dei "dame toma date hasta el mismo testuz
118 de tu tan gana" (EM,p. 405)
no ereto pelos excessos tortos de erotoques etc
ou o bissonho exausto do "dá cá toma lá até a mesma testa
de tua tamanha gana':

Aparecem novos objetos, conjugam-se novos verbos.

ascuacanesninfómanos [...]
que malciernen inhímenesposuenos de podrelenguaamante (EM,p. 407)
áscuacães ninf ômanos [...]
que entrefecharn inhímenes de póssonhos de podrelíngua amante

con su eromiel(EM,p. 443)


com seu eromel

cátame su evapulpo (EM,p. 446)


cata-me tu evapolvo

gozondo (EM,p. 455)


gozo fundo

venusafrodea
eropsiquisedas(EM,p. 421)
vênusafrodea
eropsiquissedas

O "Maspleonasmo" ["Maispleonasmo"] da "Masmédula" ["Pupila


do Zero"] inicia-se com:

SIBILA
Masturbio
más sacra carne carmen de hipermelosaspúberes vibrátiles de
sexotumba góndola
en lasfauces dei caucefuera de fértil madre dei diosemen

Mastúrbio
Mais sagrada carne carmen de hipermelosas ninfetas vibráteis de
sexoturnba gôndola
nas faces do leito fora de fértil madre do deussêmen.

(Pense em "sexotumba" e "deussêmen": sexo -morte-religião; soa


119
a Bataille, não?)
E depois:

más jaguares deseo [...]


ya que hasta el unto enllaga las mamas secas másculas
y e/ mismo pis vertido es un preversofeto si se cogita en fuga

mais desejo jaguares [...]


já que até o ungüento enchaga as mamas secas másculas
e o mesmo pis vertido é um preverso feto se se cogita em fuga

acabando em:

... sorbentes ventosas de bostezos (EM,p. 423)

... sorventes ventosas de bocejos

Tal a sexualidade que transpira em "Trazumos" ["Transudar"]:

su corola los muslos los tejidos los vasos el deseo los z umos que fermenta la
espera (EM, p. 426)

sua corola as coxas os tecidos os vasos o desejo os sumos que fermentam a


espera

que o poeta, em "Vocação de Dado': duvida em

... ·revertir mi arena en clepsidrassexuales*


y sincopar la cópula

" No poema de Girondo: "sexuadas~ [N. da T.]

SIBILA
[...]
prostitutivamente(EM,p. 419)

... reverter minha areia em clépsidras sexuadas


e sincopar a cópula
[...]
prostitutivamente

Dir-se-ia que a explosão da escritura faz explodir também a se-


mântica da sexualidade, que se dispersa e acopla em todas as direções,
120 em um generalizado "erofrote»["erotoque»].Nesse erofrote[erotoque],
friccionam-se as palavras. Ao sincopar a cópula, a escritura toma, ela
mesma, o ritmo sincopado da cópula:

una oruga lúdica desnuda sólo nutrida de frotes


un chupochuposúcubomolusco
que gota a gota agotabocaa boca
la mucho muchogozo (EM, p. 457).

eruga lúbrica desnuda só nutrida de toques


chupochupo súcubo molusco
que gota a gota esgota boca a boca
a muito muito gozo.

Antes de acabar, não nos furtamos à tentação de indicar algu-


mas sugestões. O "sexualismo» de Girondo parece proceder de uma
desterritorialização eminentemente paisagística - ao estilo talvez de
Blaise Cendrars -, mas em que os cortes do desejo estão marcados
- os lugares em que o desejo rasga a mascarada social. Essa libidini-
zação volta-se depois contra o próprio eu - a identidade - e dissolve
o objeto: "mulheres que voam». Finalmente, o que era dissipação
perversa, com algo de deleite (sobretudo em VeintePoemas)volta-se
contra o verbo, acomete o próprio modo de articulação das palavras,
de produção de sentido. Seria talvez audaz sugerir que En la Masmé-
dula é um lugar de fuga - libidinizada - de sentido, onde a pulsão
carrega os significantes e os descabela. Conformamo-nos, pois, em
apontar os lugares onde essa semantização da sexualidade "erofrota':

SIBILA
"venusafrodea"["erotocà',vênusafrodea"].E ver o que é que ela diz
"de"sexualidade,como a diz.
Até que, ao final de En la Masmédula,sobrevémo "Cansaço"

... de la revirgísimainocencia
y de losinstintosperversitos
y de las ideítasreputitas
y de las ideonasreputonas(EM,p.459).

...da revirgíssimainocência
121
e dos instintos pcrversinhos
e das ideiazinhasreputinhas
e das ideiazonasreputonas.

Cansaçoao qual cedemospara encerrar esta puta nota.

Tradução:GêneseAndrade

SIBILA
HORIZONTES ABDUTIVOS
(RASCUNHOS NOTACIONAIS)
DécioPignatari

122 Mal conhecido e bem esbulhado, em vida e depois


dela, tal tem sido o destino de Charles Sanders Peirce
(1839-1914),o criador do pragmatismo e da semiótica.
Embora descendente de familia aristocrática da Nova
Inglaterra (pronuncia-se "Pêrce"),nem o pai, Benjamin
Peirce, grande nome de Harvard e fundador da Socie-
dade Americana para o Progresso da Ciência;nem a es-
posa, filha do governador de Nova York,e nem William
James, que lhe deu certo apoio, conseguiram inseri-lo
no sistema. Sua incapacidade,senão desinteresse,em ge-
renciar a chamada vida prática, incluindo a conjugal; a
esquivança em explicitar sua fé religiosa e sua aceitação
da lógica dialética hegeliana ajudam a contextualizar os
seus problemas.
Apesar da longevidade, considerada a época, não
deixou livro publicado; sua obra, relativamente extensa,
ficou dispersa em numerosas publicações periódicas e
ainda hoje aguarda a edição definitiva (os oito volu-
mes dos CollectedPapers,da Harvard University Press,
edição encerrada nos anos 1950, representam cerca de
metade do total). Entre vida e obra, um tumulto contí-
nuo. Divorciado, encontrou estabilidade conjugal com
uma jovem francesa, Juliette Annette Froissy, 27 anos
mais nova, figura enigmática que lhe sobreviveu até a

SIBILA
década de 1930 do século seguinte, quando, supostamente à beira da
penúria, vendeu a propriedade do casal a porteiras fechadas: os no-
vos proprietários fizeram uma fogueira no quintal, com a biblioteca
do filósofo.
Anota o Oxford Companion to Philosophy(edição de 1995) que,
de resto lhe dá grande destaque: ''Peirce was a difficult man, widely
perceived as an immoral libertine, prone to paranoia and wild mood
swings [...]».
Os esbulhos. William James ap ropriou -se do pragmatismo, 12 3

"transcriando-o» para os domínios da psicologia e da conduta moral:


ficou famoso. Vexado, Peirce passou a utilizar a expressão ''pragma-
ticismo»:os efeitos produzidos por um objeto, entre balizamentos
práticos, constituem o conceito que deles possamos ter. Este é o
conceito esquemático do pragmatismo peirceano, naquele aspecto
que mais atraiu James, vinculando-o ao empirismo inglês. Peirce, po-
rém, embora formado em química, era um lógico - matemático que
deitou raízes em Kant (a quem não considerava "forte» em lógica) e,
principalmente, em Hegel, sem falar no poderoso entorno industrial,
técnico e científico (Darwin, em especial) do século XIX. Dessa situa-
ção, considerando-se o vasto desconhecimento de sua obra, nasceu
e proliferou, qual vírus, o uso abusivo mundial das expressões prag-
mático e pragmatismo,de um século a esta parte. Mais alguns equí-
vocos adiante, a sua semiótica passou a sofrer um estranho processo
de sinonim ização em relação à semiologia européia, com a qual só
pode aproximar-se muito indiretam ente, dada a sua raiz saussuriana
e claramente logocêntrica. Mais recentemente, o vírus dos esbulhos
peirceanos voltou a atacar. Depois de um surto originário america-
no, contaminou o jornalismo brasileiro. Trata-se do vocábulo ícone,
hoje empregado na mesma acepção do símbolo antigo. Obviamente,
o termo não é criação de Peirce, mas o significado inovadoramente
basilar que assume em sua semiótica é um foco irradiador de desco-
bertas e esclarecimentos no universo da signagem, enquanto núcleo

SIBILA
do sistema solar do pensamento não-verbal.E a última pilhagem em
data é tipicamente ignobrasílica,em função de nossos barbarismos
tradutórios: trata-se da expressão"abdução»e correlatos (no cinema,
na televisão,nos quadrinhos e nas narrativas de ficçãocientífica,ex-
traterrestres estariam "abduzindo"terráqueos...).
A Lógicae o Pragma.A dialética é a lógica das mudanças e meta-
morfosese o seu ponto-instante crítico-criativoé a mutação,presidida
pelo terceiro vértice da lógica metodológico-científica- criação de
124 Peirce - que é a abdução (os outros vértices são a indução e a de-
dução). Na faneroscopia (fenomenologiapeirceana), as coisas deste
mundo são classificadas em três reinos ou categorias: Primeiro,
Segundo, Terceiro (Firstness,Secondness,Thirdness).A Primeiridade
se caracteriza pela possibilidade, a espontaneidade, o sentimento
(feelíng)de qualidade e pelo bate-pronto monádico (uma certa cor
vermelha,por exemplo);o reino da Secundidadeimplica um conflito
da diático, tipo ação/reação;o da Terceiridade,seletivo e judicante, é
o mundo da generalização,da norma, da lei. Nesse sistema-processo
lógico de Peirce,desaparece a ruptura tradicional entre razão e emo-
ção ou sentimento, não sendo o sentimento senão um momento do
continuumlógico, justamente o locustempórico onde/quando opera a
abdução,que ficano lugar do que costumamoschamar de intuição,re-
velação,insight,adivinhação,inspiração,epifania,inconsciente,visão,
etc.Rebatendo-sesobre o sistemasobre a sua notávelcriação,que foi a
semiótica,temos uma relação diática conflituosaentre signo e objeto,
tal como se fosseprimeiridade versussecundidade,ou, hegelianamen-
te, tese versusantítese,que se resolvesempre em provisoriedadedinâ-
mica,pela interver1çãode um Interpretante (síntese),que reprocessaa
relaçãosegundo aportes repertoriaismúltiplos,para gerar significados
sob a forma de signosmais e mais elaborados,diagramaque se tornou
divulgado sob a forma estática triangular.
O significadode um signo é sempre um outro signo,de onde se in-
fere que se trata de uma relação de remetências, não de uma "coisa".

SIBILA
Assim como o sistema solar se move em direção a Veja,na cons-
telação de Lira, as constelações sígnicas peirceanas rumam para o
Begiff(conceito) hegeliano, que ele redenomina de Argumento, no
pólo do Interpretante. Interpretantes Finais são possíveis,metonimi-
camente, mas não o Interpretante Final, excetuada a hipótese divina
que, mesmo assim, para Peirce parece apontar para a concepção
hegeliana de um deus eternamente incompleto, sempre a formar-se,
chamado de Idéia ou Absoluto. Mas a relação básica Signo/Objeto
também se trifurca em Primeiro (ícone),Segundo (índice) e Terceiro 125

(símbolo), flutuando entre os dois eixos associativos propostos por


David Hume, no século XVIII, o da similaridade e o da contigüidade.
No reino da similaridade reina o ícone que, por sua vez, se trifurca
em Imagem, Diagrama e Metáfora, de forma que esta última, por
exemplo, é o Terceiro de um Primeiro; no eixo da contigüidade, a
hegemonia é do Símbolo,cujo signo mais representativo é a palavra,
por sua abstração, especialmente na sua versão escrita ocidental,
vazada segundo o código alfabético.
Pragma é o que aí está, o que se apresenta,mas não de forma inerte
ou congelada,e sim como que movida por uma dinâmica direcionada,
direção ou finalidadeessa que podemos chamar de significado,objeto
da semiótica.
Embora o progresso e o processo do pragma científico só possam
dar-se por partes e etapas, metonimicamente - pois a pretensão de
conhecer-se antes o todo não passaria de vã metafísica e vaníssima
ontologia - o Símbolo Homo, gerador de signos, não pode deixar
de perquirir-se, não só enquanto Pragma do Pragma, mas também
enquanto Tempo dos Tempos, onde-quando a metonímia vira me-
táfora e a metáfora paramórfica visa à metamorfose e à mutação, sob
inumeráveis e infinitos disfarces vitais, ainda que cibernéticos, para
'
ludibriar o espelho opaco da vida, o formidável buraco negro da
entropia vital chamado Morte. Esta, a minha visão-concepção tem-
pórica do Pragma e da Semiótica, que me permite conversacionar

SIBILA
com o methodos,com o caminho, com o SerTao e com o SeinZeit-
Zeichen heideggeriano.
O Pragma em registro tempórico mostra, exibe e expõe o tempo
presente, ou os tempos presentes, como metonímia preferencial do
Tempo,ilhotas-píncaros de um arquipéLogo(s)aqui-e-agora,imerso
num continente passado e apontando para um cosmo futuro. Quanto
mais fugaz,o quase inexistentetempo presentemais habitado se torna
por gentes e coisas e signos e tempos. Locupleta-se de informação,
126 Buraco Branco da ordem a contrarrestar o entrópico Buraco Negro
ainda supostamente não humano, como se humano não fosse dizer-
se:''.Aliestá um Buraco Negro'~
E aqui a acupuntura existencialpode detectar, nas linhas indivi-
sórias das xifópagasVidaMorte,as vibrações abdutivasde um Nada-
Desespero e de um Nada-Liberdade,que nos raptam e seqüestra.m,
apanhando-nos no ar, como se fôssemos Idéias, que nos fazem, de
Transformados e Transformandos, Transformadores. Rumo a Veja,
que é, afinal o próprio rumo.
Tao e Heidegger.Esse SerTao não se confunde com a Morte. Só
pode ser em função dela, mas jamais sem Estar-em-Vida,ou nela ter
habitado. É um Ser-Não-Morte, embora se projete num Não-Ser-
Vida. Dizem que Lao-Tsénunca se apresentavaou aparecia,como se
não existisse- ou, se existisse,nunca estava.Radicaldes-aparecimento
do seu Da-Sein pa.ra os outros, forçoso aparecimento do seu Sein a
confundir com o seu Da-Sein-único-Sem-o-Outro.
Confrontado com o Sein-und-Zeitheideggeriano,o Tao responde,
corresponde, terminal: Sein ist Zeit. Tao é o vazio do vaso, o oco do
pote, a ação sem atos, a feitura sem feitos.Colocando radicalmente
a possibilidade de não-estar-se-aí, a absoluta possibilidade de não-
estar-se-aí, só resta o ser, o puro ser, um tudo-ou-nada ontológico,
que se abre para a liberdade abdutivado Ho1no-Cosmo-Natura, onde
um-é-o-outro, em infinitos rebatimentos do Ser... Humano.
Mudança, transformação, metamorfose, mutação: gradações da

SIBILA
luminosidade do horizonte abdutivo, sendo a mutação o momento
radical revolucionário da luz surpreendente - informação nova!
- para um povo ir1teiroou um só ser humano.
Para o Ocidente - e para o mundo, na paisagem de hoje - o fenô-
meno grego (incluindo o seu sortilégio sustentado, via Roma, pelos
latinos, pelo cristianismo e também pelos árabes) é o mais extraordi-
nário dos tempos históricos: os helenos foram mutantes.
Aleatoriamente, alguns grandes momentos de mutação civili-
zatória, cultural e/ou artística: Renascimento. Música austro-alemã 127

dos séculos XVII ao xx. Dante. Camões. Shakespeare.Cervantes. Go-


ethe. Simbolismo. Impressionismo. A grande arte do século xx, do
cubismo à arquitetura. O cinema de entre guerras e um tanto além.
Neo-realismo italiano. NouvelleVague.A grandeza da múltipla e vária
literatura de língua inglesa, no século xx. Machado de Assis,a partir
de seus quarenta anos, mutação pura. A Semana de Arte Moderna
e a sustentada criatividade literária e artística brasileira durante os
cinqüenta anos do miolo do século passado. O boom da Literatura
hispano-americana no período 60-80. A ionizada criatividade visual
feminina brasileira, de Anita Malfattia RochelleCosti, única no mun-
do. Volpi.Poesia concreta. O primeiro movimento literário brasileiro
de rayonnementir1ternacional.
Mas, a desabdução. O lastimável burocratismo cultural, crítico
e criativo, dos setores de letras das universidades brasileiras, em
completa desconsideração para com o grande evento que foi a usp e
está sendo espantosa a expansão da universidade brasileira.Acompa-
nham-nos, como a invejá-los,os setores da filosofiae da arquitetura.
Na área da comunicação, temos um caldo desabdutivo brasileiro a ca-
pricho, no qual se misturaram a ignorância sociologóide dos gestores
do MEÇ e os mastigáveis nódulos bibliográficosgauleses (os mesmos,
em centenas de cursos!), com seu rol de autores fungíveis que nunca
souberam o que é comunicação de massa, ou o que são os sistemas
de signos diferenciados de cada meio. Mas o naco mais amargo ficou

SIBILA
a música de alto repertório, também dita clássica, ou erudita, que não
teve altos momentos, como os teve a música popular (década de 1930,
bossa nova, tropicalismo). Logo, os bons nacionalistas: E Villa-Lobos?
Resposta: Bem audível.Mas grandes orquestras estão surgindo. E al-
guns bons cursos. Ainda seremos modernos.
Não são difíceis de discernir os parâmetros causais de natureza
histórica que rasgam os horizontes abdutivos, embora, na maioria
dos casos, a enumeração indiferençada não passa de insensível série
128 de rubricas destinada a obnubilar a verdade ideológica de uma apre-
ciação final qualitativa, mesmo quando se leva em conta o empuxo
quantitativo . De outra parte, não há, necessariamente, paralelismo de
ocorrências nos diversos campos afetados pelos surtos-invenção.

Whether machinery, organization and a great development of methods and


of the "methodus methodorum•: with their fruit of incessant new discoveries,
inventions, irnprovements of all kinds, ought a priori to be unfavorable to the
productionof great personalities is a problem of a more sagacious man than I
can pretend to be, to compute with any confidence. One might incline to think
not for, on the one hand, just as we know that plants transferred to new soil are
the more apt to sport, so it might be expected that W1der novel social conditions
the proportion of births of extraordinary minds would be increased, while on the
other hand, once born, one would suppose they would find in the novel situations
just the opportunities that were needed to bring their superiority into exercise.
History, too, seems to confirm this, always showing us a wealth of great men at
every reat social transforination (Peirce, 7- 264) 1•

1. "Se a maquinaria, a organização e um grande desenvolvimentode métodos e do "methodus


methodorum': com seus frutos de incessantesnovasdescobertas,invençõese aprimoramentos
de toda espécie,devem a priori ser considerados como desfavoráveisà produção de grandes
personalidades, só alguém mais atilado do que penso ser pode avaliar com algum grau de
confiabilidade. Mas a tendência é a de optar pela negativa, pois, de um lado, assim como
sabemos que as plantas transferidas para um novo solo são mais aptas a prosperar, assim
pode imaginar-se que, sob novas condições sociais,a proporção de nascimentos de mentes
extraordinárias tende a crescer, enquanto que, de outra parte, pode-se supor que os assim
nascidos teriam nas novas situaçõesexatamenteas oportunidades necessáriasao exercíciode
sua superioridade. A História parece confirmar isto, pois nos apresenta uma abundância de
grandes homens em todas as grandes transformações sociais~(Peirce,7.264, edição Harvard:
o primeiro algarismo indica o volume; o segundo, o parágrafo).

SIBILA
Mas há os grandes surtos ambíguos,como o Romantismo, o Sur-
realismo e o dos orientalismos ocidentalizados.
Na área da comunicação, muitos meios não atingiram o status
de arte: imprensa, telefone, telegrama rádio, televisão,publicidade,
quadrinhos, NET. São equipamentos midiáticospré e proto-artísticos,
como a função de caminhar em relação à dança. Fotografia,Cinema
e Design foram as artes nascidas da tecnologiaindustrial.
Os prodígios da escultura e da pintura renascentistas não en-
contraram correspondência na literatura, que já havia chegado ao 129

cume com Dante, surgido com as arquiteturas românica e gótica,


porventura mais fascinantes do que a renascentista, pelas graças de
sua contida escala e incontido fervor.Os Petrarcas, Tassose Ariostos
não chegam aos pés de Alighieri,que contribuiu para a explicaçãode
seu próprio aparecimento (afirmação da fala popular descolada do
latim, que propiciou o surgimento da poesia provençal e do dolcestil
nuovo,que vieram para atender aos anseios líricos das mulheres,que
já não sabiam latim).
As convergências abdutivas passaram a ocorrer em chuveiros
durante o século aproximado que vai de meados do século XIX a
meados do século seguinte. Assim, as aberturas para a percepção
da imbricação da noção de tempo com os processos mentais (fluxo
da consciência, de William James; ''durée",de Bergson, relatividade
einsteiniana) impregnaram e impulsionaram boa parte da prosa
literária do século passado (Gertrude Stein, Joyce,Proust, Virgínia
Woolf). Mas a irrupção de tempo no campo visual, produzindo a
simultaneidade cubista foi o evento nuclear do processo de mutação
nas artes, que se elevaram/ mantiveram à altura das mais complexas
postulaçõescientíficas.Daí, a impossibilidade,seja de se confundirem
com a .r;nídia,seja de se tornarem populares ou massificadas.Talprosa
literária buscou flagrar o "tempo indiciai':de Peirce,ou seja,o tempo
presente, mesmo em retrospecto, como é o tempo proustiano. Nela
e na poesia que lhe correu paralela - de Mallarmé à poesia concreta

SIBILA
- vimos o verbal literário tensionado entre a extrema parataxe e a
extrema hipotaxe, fenômeno único na história da literatura ocidental.
Tornou-se claro para as minhas lucubrações, através dessa hiperme-
talinguagem criativa, que há um pensamento literário autônomo,
situado entre o verbal e o filosófico, o verbal técnico-científico e o
verbal midiático .
Conturbado e contraditório o vasto horizonte conhecido como
Romantismo, descortinado pela ascensão da burguesia, pela idéia
130 republicana e o declínio da aristocracia, com a indepe11dência ame-
ricana (que não derrubou a monarquia britânica) e a Revolução
Francesa (que assinalou o início do fim da monarquia francesa) e,
last but not least,a revolução industrial. Nas artes, foram fluidos os
seus limites e níveis de excelência . As origens e as primeiras correntes
estão na Alemanha e na Inglaterra, justamente os países que estavam
saindo na dianteira da revolução industrial - e que produziram os
primeiros grandes nomes da literatura romântica, de Goethe a Byron.
No entanto, embora influenciados pelas idéias de Rousseau, e logo
após, pelos ideais da Revolução Francesa, os românticos surgiram em
oposição ao racionalismo do iluminismo francês - mas, dois deles, os
maiores, Goethe e Puchkin, viriam a tornar-se os clássicos supremos
da literatura e da cultura de seus países, ao mesmo tempo em que,
nesse tempestuoso Aleph de paradoxos, a deusa republicana da Ra-
zão, elevada aos altares de Nossa Senhora de Paris, era posta abaixo
pelo cesarismo napoleônico! Waterloo abriu os portais do império
britânico e do surgimento dos novos países da América Latina, todos
republicanos, menos o Brasil, et pour cause:Portugal virara unha-e-
carne com a Inglaterra. O tardio romantismo francês não se ombreou
com o anglo-saxônico, na qualidade, mas, principalmente pela voz
de Victor Hugo, continuou a fazer visível e audível no horizonte o
fogo, o estrondo e a fúria da revolução, das guerras e - logo mais das
barricadas da esplendorosa república pós-romântica que iria nascer.
E o vagido épico do novo indivíduo que já havia nascido.

SIBILA
O Romantismoé a aura ideológicaque envolveo surgimentode
um novo indivíduona História:o indivíduodo individualismobur-
guês.O percurso trilhado pela democraciade origemburguesaestá
ligadoa uma mudançana escalademográficaesclarecida.A educação
é o antídoto ou freio da explosãomassificante.O indivíduoda clas-
se aristocráticaera a classe.Era um "bidivíduo»,um indivíduo com
consciênciade classe,cujos confrontos com a chamada sociedade
eram de natureza não-antagônica.A burguesiacomeçapor caracte-
rizar-se antes como indivíduo do que como classe,que se afirma à 131

medida que produz as normas do estamentoe do poder.Em largos


passos, torna-se mercado de consumo de sua própria capacidade
de produção,tremendamente aumentadocom a industrialização,o
aperfeiçoamentodinâmicoda circulaçãodo dinheiroe dos institutos
superioresde ensino e pesquisa.
A felicidadee a nova mulher individualsurgemjuntas.c'Afelici-
dade é uma idéia nova na Europa!,,,diz Saint-Justàs vésperasde ser
guilhotinado.Dez anos depois, Madamede StaelpublicaCorinneou
l'Italie,que deu o tom do romantismo mundial:o poeta romântico
Machadode Assisera apaixonadopor Corina,e Oswaldde Andrade
assim se chamou,provavelmente,graçasao nome do tíbio herói do
romance,onde a heroína se mostra tambémcomo precursorado tu-
rismo cultural,Lord OswaldNelvil... A sugestãopode ter sido dada
pelo tio escritor,Inglezde Souza.
Masde onde vem essa"melancolia,,,esse«1naldo século",que afeta
tanto OswaldNelvilquando Kierkegaard,que o transformana angst
existencial,que Heideggervai buscarnum Sein,que se (des)cobrenas
dobras de um Da-Sein, assim co1nosem saber se ele ~ ou está sendo
criadojustamentenessejogo de esconde-esconde.Jogopoeticamente
chama_do Seinund Zeit,que eu redenomino,poéticae semioticamen-
te, Sein und Zeit und Zeichein...
A insuportabilidadeda possibilidadeda inexistênciade Deus- eis
aí Kierkegaard.E a possibilidadecresciacom os avançosda ciência...

SIBILA
e da república. Na fenomenologia do espírito, de Hegel, buscou a sua
escada de Jacó, melhormente nomeada escada de Abraão. Contudo,
no último degrau, percebeu que o seu sentido era para baixo, levava
a um absoluto que não era Deus, uma idéia desdeificada, um Deus-
não- Deus. Subiu correndo, apavorado, para a sua casa na praça
Nytorv, para defrontar-se com Regine Olsen, fraca em religião, mas
uma fúria em sua rebeldia contra o rompimento do noivado: era a
nova in-divídua que estava surgindo, enquanto ele se refugiava atrás
132 da melancolia romântica. Inverteu a fenomenologia hegeliana, como
outros grandes espíritos fariam depois dele (Marx, Peirce, Heideg-
ger) - fenômeno estranho! - e subiu os degraus que o levavam para
cima-dentro de si mesmo, pois o Deus único só podia implicar um
eu único, sendo, pois, não um Deus de todos, mas um «Deus de eus"
(tomo emprestada essa expressão a uma poeta paulista dos anos 1950,
hoje esquecida, Ilka Brunilde Laurito). Nascia aqui a ontologia de um
novo indivíduo da burguesia romântica, que iria atravessar muitas
fases e metafases (realista, simbolista, expressionista, cubista, abstrata,
estruturalista, concreta, marxista, existencialista, freudlacanista, glo-
balista, neolulista, etc., etc.). Nesse quixotismo humano/divino radical
e total, Kierkegaard obrigou Deus a encarnar-se no Eu e vice-versa,
ontologizando-o, ao mesmo tempo que o e SE levava a desencarnar-se
do estamento religioso oficial, cujo Deus não era e não é o Deus-Sein,
mas o Deus Da-sein.
O existencialismo francês, tranqüilamente sólido em seu ateísmo
de tradição e percorrendo a trilha de milho de seus grandes céticos e
dubitativos (Descartes, Pascal, Sade, a deusa Razão) trocou o tempo
pelo nada, a Angst pelo absurdo, o ser pelo Id. A psicanálise e o sur-
realismo causaram grandes danos ao pensamento, à arte e à poesia
francesas. Para cobrir a enorme lacuna, Lacan transformou a análise
em ontologia.
No seu ensaio~ "A Inteligência e o Cadafalso", Albert Camus tece
considerações sobre o que seria a repetição profunda, ou profundi-

SIBILA
dade da repetição,como característicado romance clássicofrancês,
e admira Madame de Lafayette,com a Princesade Cleves,pelo que
ele chama de ordem,embora,segundo ele,para ela importe menos a
ordem da sociedade do que a do pensamento e da alma, pois "quer
preserveo seu ser profundo"contra o grande inimigo,que é o amor.
Preliminarmente,devo postular que as construçõesfrásicasque ten-
dem à parataxe podem ser muito instigantes(caso dos manifestos
de Oswald de Andrade), mas também uma tática quase lógica para
suspender contextos, como que dando-os por consabidos,em seu 1
33
enfileiramentomeramente temático,que querem passar por asser-
tivas resultantes de uma argumentação(é o caso de Camus), o que
tambémpode ser tomado comodefiniçãodo aforismo.Assim,o amor
mencionadopor Camusnão é o amor,mas um certo amor,claramen-
te demarcado por balizamentosmorais,sociaise de classe,tanto do
período histórico em que se passa a narrativa, como do período e
da sociedade em que viviaa própria autora.E mais:esse amor tinha
nome genérico: chamava-segalanterie,rubrica elegante para uma
dança-de-cadeiraserótica entre esposose amantes.Recusando-se a
jogar o jogo e pela força de mal-entendidosque estão além de seu
controle - tema apreciadopor Camus - a Princesade Clevesespalha
desgraçasà sua volta,como aias da desgraçamaior,que é ela própria.
Amarga ironia da virtude ou indiciamento de uma corrupção de
costumesque um dia será rampanteo bastantepara derrubar cabeças
e coroas?A princesa entra em conflito com o ambiente social,mas
não com sua classe.Jamaispassa pela cabeçade seu "ser profundo»
a possibilidadede ser feliz fora dela. Ela é um indivíduo de classe,
precisamente.Um século após a morte de Madamede Lafayette,co-
meça a morrer sua classe,com sua concepçãode indivíduo,para dar
lugar a outro, também debuxado pela pena de uma outra senhora,
Madame de Stael.Temosentão Corinne,que se apresenta como um
eu em fase de afirmaçãopessoal,antes de um eu burguês, de classe
em ascensão.Diferentementedo anterior,esse eu muita vez entrará

SIBl LA
em conflito com sua própria classe - e esse conflito será antagônico.
Estria aí o homem revoltado, de Camus?
Leiamos esses dois eus,cotejando pequenos fragmentos de ambas:

Madame de Lafayette:Entre fuxicos e intrigas, rompante de uma


personagem da mais alta nobreza:"Mas como isso? O Sr.de Nemours
não quer que sua amante vá ao baile? Eu achava que os maridos po-
diam desejar que elas não fossem, mas quanto aos amantes, nunca
134 pensei que pudessem nutrir tal sentimento".
Madame de Stael:Do relato de Corina sobre os sentimentos e
sofrimentos de sua juventude, nos tempos que passou na mansão
rural escocesa de sue pai, Lord Edgermond, sob o comando de sua
madrasta: "Durante sua ausência, eu permanecia no meu quarto, na
maior parte do dia, para aprimorar meus talentos,e a minha madrasta
amarrava a cara: - Para que tudo isso? Você acha que vai ser mais
feliz? E isso me dava um desespero... Que é então a felicidade,eu me
dizia, senão o desenvolvimento de nossas faculdades? Não valeria
mais a pena matar-se física do que moralmente? [...] porque a emu-
lação e o entusiasmo, esses motores da alma e do gênio, têm absoluta
necessidade de ser incentivados e murcham como as flores sob um
céu triste e gelado".As expressões que indiciam a era industrial con-
tinuam a comparecer: "Nas menores cidades da Itália, sempre há um
teatro, música, repentistas, muito entusiasmo pela poesia e as artes, e
um belo sol. Enfim, a gente sente que vive.Mas, na província em que
eu vivia, logo esquecia tudo isso, e imaginava que poderia enviar em
meu lugar uma boneca um tantinho aperfeiçoada pela mecânica,que
ela me substituiria muito bem na sociedade': Aí está a fala do novo
eu (in) surgente.

Há um perturbador sentimento de descaminho pensamental


empurrando o texto Temore Tremor.Não se sabe aonde quer ir ou
aonde vai Kierkegaard na escolha wn tanto obtusa do tema do sacri-

SIBILA
fício de Isaac por Abraão,a comando de Jeová.Jó se rebela,sentado
num montouro de esterco (mesmo sem o lixo, a obra magníficade
Georgesde la Tour é uma meditaçãotrágica), mas tem de submeter-
se ante a apavorantehistória do Leviatã.Abraãocumpre, dentro do
seu labirinto de questões irrespondíveis.Nasce,porém, de e nesse
sinistro aranzel,uma frase que é o nódulo de onde brota o autêntico
existencialismo- não apenasa sedutora e capciosapostulaçãode que
a existênciaprecede a existência:"Sua dor era sua única segurança':
Ou:"Suador era sua única certeza".Pedi,e amigospesquisadoresme 13
5
deram, a frase em dinamarquês:"Smertener ham Forvisningen". Vou
gravá-lanum espelho.
Faz falta, muita falta, um grande estudo, com célula-tronco e
ramificações,da ideologiado Romantismo,que pode acoplar-seao
chamado idealismoalemão,mas que dele não deriva,não só por que
o antecede,mas porque ele próprio,o Romantismo,e a ideologiafun-
dante da burguesiavitoriosa...que continua vitoriosa!

Pensar um sentimento é senti-lo (Peirce).

O que em mim sente está pensando (Pessoa)

SIBILA
OS EXCESSOSCONTEMPORÂNEOS
DE AUGUSTO DE CAMPOS
SérgioMedeiros

A minha meta é a poesia.


AUGUSTO DE CAMPOS (O Anticrítico)

O poeta Augusto de Campos, hoje septuagenário


(nasceu em 1931), é autor de uma obra vasta e impor-
tante, que inclui poemas, traduções e ensaios.Seu último
livro de poesia, Não (123 páginas), saiu em 2003, pela
Editora Perspectiva, com uma capa programaticamente
kitsch, escolhida pelo próprio autor, na qual roubam a
cena grandes letras prateadas, dessas que os best-sellers
baratos, sobretudo os norte-americanos, costumam os-
tentar impunemente na tentativa (acredito) de atrair a
atenção do leitor pouco exigente ou sonolento que per-
corre estantes de livros em farmácias e supermercados.
Parece-me que o poeta brasileiro incorpora essa estética
sensacionalista para, num gesto irônico e desabusado,
negá-la mais eficazmente, revendo-a com outros olhos
e minando-a criticamente, visto que seu livro nada
compartilha com os best-sellers,exceto a feiúra da capa.
E a capa talvez seja seu melhor momento em termos
de radicalidade poética, dentro da proposta do autor de
excursionar, segundo entendo, pela junk art, arte feita
de sucata, de cacarecos da indústria cultural, aderindo a
uma estética francamente neobarroca (termo não muito
preciso que significa aqui um certo exagero material).

SIBILA
Recentemente,intrigado com esse"não"prateado (a quarta capa
exibe uma cortina rasgada de letras, ou um impertinente móbile
colorido, e poderia ser classificadade psicodélicae anacrônica, o
que confereum estranho sabor à leitura desselivro de 2003), decidi
reler as duas outras coletâneaspoéticasde Augustode Campos,Viva
Vaia(1979)e Despoesia(1994),e constateique haviaconstruído;sem
me dar conta disso, uma imagem falsa do poeta paulistano,vendo-
o sob a máscara de um antigo"mártir da escrita':à maneira de um
torturado Flaubert (que precisavade muitas horas de trabalho para 137
compor uma frase),por conseguintecomo um autor que,movidopor
escrupulosovagar,compõee publicapouquíssimo.Ao mesmotempo,
verifiqueique essa é a imagem oficialde Augustode Campos,auto-
rizada por ele próprio, a julgar por certas declaraçõessuas incluídas
em seus livros, conformediscutirei.
A sua obra, então,me pareciapequenacomo a de um K.P.Kaváfis,
digamos,mas agora constatoque ela é ilusoriamentepequena (além
de livros, o poeta lançacds,fazshowsetc.), como a de um Borges,cuja
produçãocabiainicialmentenum só volume,o qual,com o passardos
anos,após o falecimentodo autor,foicrescendoe se desdobrando em
vários outros, de modo que hoje sua Obra Completa abarca vários
volumes alentados.Embora o próprio Augustode Camposjá tenha
afirmadoque produzir três a quatro textospor ano é excessivopara os
seus critérios,visto que"não há razãopara pressa,:não me pareceque
sua obra poética sejarealmentebreve,conformeele gostade propalar
quando fala de si mesmo(apresenta-secomo"alguémque é tão breve
e produz tão pouco"),insinuando que adota a subtração,o silêncio,
em detrimento da adição,do excessoneobarroco e contemporâneo.
Creio ser possívelpôr em dúvida essa apreciação,citando um único
fato: todas as coletâneasque Augustopublicou contêm,ao lado dos
textos poéticos da sua própria lavra, várias páginas de tradução,de
modo que, conforme comentarei mais à frente, versão e criação se
confundem na sua obra. Diria que seusváriosvolumesde traduções

SIBILA
(Ezra Pound, Joyce,Dante, Maiakóvski,Mallarmé, Blake,John Don-
ne, Valéry,Hopkins, Rilke... ) também fazem parte da sua produção
poética, não há porque separar a tradução de poemas da criação
poética propriamente dita. Se reunirmos tudo isso, constataremos
que o número de poemas que ele assina como autor e/ou tradutor
é considerável,até impressionante. Não é esse, porém, o maior dos
equívocos que cercam a recepção da sua obra no Brasil.
O maior equívoco consiste em avaliar sua poesia considerando
138 apenas as páginas impressas que compõem as três coletâneas citadas.
Sua poesia há muito vem sendo divulgada por outros meios, além
do livro. Um exemplo é o cd Poesiaé Risco,de 1995, uma antologia
poético-musical tão importante para entender seu percurso poético
quanto os seus livros. Não por acaso, aliás, um cd-rom acompanha
Não, prova de que, neste último lançamento duplo, a sua "poesia
migrou para o universo digital animado - a poesia em cor e mo-
vimento, que sempre me fascinou e que agora está ao alcance dos
meus dedos" Gostaria de sublinhar, nessa breve citação,o emprego
1

do verbo "migrar': que aponta para o caráter inconcluso ou protéico


de muitos poemas do autor, aos quais ele costuma voltar com insis-
tência, fazendo-os migrar de uma linguagem para outra ao preço de
transformações orais, visuais etc., conforme novas tecnologiasvão se
tornando acessíveise ele pode delas servir-se (da arcaica"letraset,,ao
cd e aos novos programas de computador). Os poemas de Augusto
de Campos, tanto os antigos quanto os novos, não repousam em paz
nas páginas dos livros,mas, recauchutadosou reformulados,circulam
irrequietos pelas mais diversas mídias: poster, site da internet, além
daquelas já citadas, como o co, o palco...
A pioneira antologia Viva Vaia,por exemplo,trazia um compacto
(disco) encartado, no qual Caetano Velosointerpretava dois poemas
do autor,"dias dias dias" e "O pulsar': além de uma canção de Lupicí-

1. "NÃofácio"do autor, publicado em Não.

SIB ILA
nio Rodrigues, Volta. (Não pude, porém, reouvir esse disco enquanto
escrevia este artigo, o que lamento.) A última reedição de Viva Vaia,
publ icada em 2001, modernizou-se e, ao invés de um vinil, trouxe
um cd com 15 faixas, algumas inéditas, outras saídas do cd Poesia é
Risco, que contém oralizações do próprio Augusto de Campos - ele
assumiu, como se percebe, a voz de seus textos, não relegando a ta-
refa só a terceiros. A coletânea de 1994, Despoesia,não contém disco
ou cd encartados, mas dá ensejo a outro tipo de migração poética,
de que cito dois exemplos: reproduz, em cores, um curioso perfil de 139
Maiakóvski (assemelha-se a um membro da Família Buscapé) que já
havia aparecido na coletânea anterior e propõe uma tradução para um
texto de Khliébnikov que reaparecerá, com o colorido espalhafatoso
de um grafite urbano, na sua coletânea posterior, Não.
Os parágrafos anteriores deixam entrever um complexo diálogo
entre o poema de Augusto de Campos e as mídias contemporâneas à
disposição do poeta, por onde circulam a palavra, o verso e a imagem
da sua obra que se quer verbivocovisual. Um conhecido poema de
Viva Vaia, "O pulsar" (musicado, como sabemos, por Caetano Veloso),
impõe-se imediatamente ao olhar por seu visual engenhoso: numa
folha dupla, escura, representando o cosmo, percebemos palavras
brancas que encerram estrelas e esferas, as quais decrescem (as pri-
meiras) e aumentam (as últimas) à medida que os versos se sucedem
na página. Trata-se, é óbvio (não discutirei aqui sua oralização) de
uma poesia verbovisual ambiciosa, mas, se nos concentrarmos no seu
aspecto verbal apenas, o co11teúdo da estrofe de sete linhas parecerá, à
primeira vista, um momento neo-romântico de Augusto de Campos,
vazado numa forma despretensiosa (essa forma me tocou na adoles-
cência, mas hoje me deixa insensível): "011de quer que você esteja/
Em Marte ou Eldorado / Abra a janela e veja / O pulsar quase mudo
/ Abraço de anos luz etc:' Quando releio esse poema me dou conta
de que Augusto nunca temeu ir "do luxo ao lixo': para usar uma locu-
ção que lhe é cara (ela aparece, por exemplo, na orelha de Despoesia,

SIBILA
assinada pelo próprio poeta, como um programa estético). Sabemos
que o concretista de São Paulo decretou o fim do verso e sobreviveua
esse decreto como, digamos, tropicalista.Agora ele parece se dedicar
a escrever o verso depois do fim do verso, um verso paródico, um
arremedo de verso, um "caldo ralo» poético. Se essa interpretação
estiver correta, creio que poderemos louvar a coerência e o alcance
do projeto estético de Augusto de Campos1 • Os versos simples são
contudo pretensiosos e buscam abrigo numa refinada forma visual,
140 como se eles se ressentissem de sua íntima pobreza. Ou seja, temos
aqui uma espécie de poesia-valise,que empacota numa mesma pági-
na duas linguagens (a estrofe verbal original e a sua tradução visual
posterior), a fim de alcançar por esse meio (um luxo feito de lixo) uma
expressão mais complexa,quiçá mais eficaz(dentro da perspectiva de
unir o experimentalcom o neo-romantismo popular), que,entretanto,
não logra ocultar uma fissura entre forma e fundo, uma dualidade,
um descompasso entre a natureza do original e o neobarroquismo da
tradução almejada,que é sempre,neste caso,enriquecimento externo,
excessomaterial. (Talvezisso ocorra porque já não é possívelescrever
um verso depois do fim do verso sem essedistanciamento entre forma
e fundo. Mas se o "defeito»do poema não puder ser justificado assim,
talvez se possa aplicar a Augusto de Campos a sua própria recrimina-
ção contra Apollir1aire,um poeta que, segundo afirmou,"acabou por
deixar-searrastar, na prática,para uma concepção no fundo simplista
e superficial,ao querer limitar as conseqüênciasdo ideograma poético
à figuração do tema através de um artificioso arranjo tipográfico''l.)
Falei atrás de "luxo feito de lixo»,a descrição exata de um dos
poemas mais importantes de Augusto de Campos, da fase áurea do

2. Em alguns de seus ensaiosAugustode Campos adota a "prosa ventilada"(falsosversos, como


o próprio autor alerta: "muitos pensaram que se tratasse de poesia"), cf. O Anticrítico. São
versos escritos depois do fim do verso,ou seja,não-versos.
3. "e.e. cummings: olho & fôlego':em cummings,40 Poem(A)s,São Paulo,Editora Brasiliense,
1986.

SIBILA
fim do verso, "Luxo,,,de 1965, no qual o diálogo entre o poema (neste
caso, reduzido a duas palavras apenas: lixo e luxo) e a sua tradução
visual ( o lixo é escrito em letras graúdas, as quais são enchidas com
outras letras bem menores, ostensivamente kitsch, que formam a pa-
lavra "luxo,: repetida numerosas vezes), parece perfeito, o fundo e a
forma são indissociáveis e as duas palavras, o lixo e o luxo, reversíveis
ou especulares, o luxo é um lixo e o lixo é um luxo. O momento cul-
minante do poema é a e11ormeletra "x,, de lixo, com braços erguidos
nos quais está tatuada uma sucessão de "luxos" que se aproximam e 141

se unem formando, no exato ponto de encontro, a inconcebível pa -


lavra "luxoxo».É uma palavra inegavelmente feia que, entretanto, se
harmoniza com o poema e lhe confere maior poder de denúncia, mas,
apesar disso, continua sendo um termo que dificilmente algum outro
poeta ousaria, parece-me, utilizar. Na reedição de Viva Vaia,de 2001, o
poema tornou -se ainda mais impactante, na minha opinião,graças ao
tom caramelado e enjoativo que banha as letras, as quais, na edição de
1979, eram mais sóbrias, vestidas tão-somente de preto e branco.
Falei de um poema bem-sucedido de Augusto de Campos, consti-
tuído apenas de duas palavras que se imbricam com felicidade, lixo e
luxo. Diria que os melhores poemas do autor (aqueles em que nossa
nostalgia modernista de uma harmonia entre forma e fundo é ple-
namente satisfeita) são os estruturados sobre uma ou duas palavras,
que se repetem especularmente ou se (con)fundem, prescindindo
totalmente do verso. Estou convencido de que os grandes poemas
do autor não necessitam do verso 4 , sobretudo os grandes poemas

4, Lendo os primeiros poemas do autor, quando o verso era o seu único meio de expressão,cha-
mou-me a atenção frases"góticas"que anunciam talvezum discípulo de Augusto dos Anjos e o
futuro mestre da poesia kitsch, o Augusto de Campos neobarroco, excessivoe sensacionalista,
que estou con1entando neste artigo: "Estas bocas sem lábios que ainda vomitam sangue / E
devoram devoram outros crânios escuros";"Que esmaga a cabeça grave contra um muro de
carne/ E com o sangue que jorra e as duas mãos/ A recompõe direita entre as espáduas";"As
unhas saem dos dedos./ Os dedos saem das mãos./ Cavem a terra cavem:'; "Tu és o suicida
dos teus braços,/ O morto sem epitáfio,/ Eu túmulo e te abrigo:'; "Morto/ enterrei-me no
meu corpo."

SIBILA
do livro Viva Vaia., como o elegante e sóbrio "pluvial/fluvial" (o lado
apolíneo de Augusto de Campos), feito do diálogo e cruzamento es-
pecular entre essas duas únicas palavras, que caem verticalmente (a
primeira, várias vezes repetida, sugerindo a chuva) e depois escorrem
horizontalmente (a segunda, também várias vezes repetida, o fluir do
rio que as chuvas alimentam); ou, ainda, o belo "código': um dos meus
favoritos, composto dessa única palavra, escrita como um poderoso
labirinto, uma casa-marca, uma casa-logotipo construída para nela
142 nos perdermos cheios de admiração5• Também me parece notável o
poema sem palavras "Pentahexagrama para John Cage",onde as seis
linhas do I Chingfuncionam como uma pauta musical.
Mas Não, a nova coletânea de Augusto de Campos, é basicamente
um livro de versos (tenho a nítida sensaçãode que são na verdade não-
versos, alguns muito fracos, como os do poema i11fantil"arco-riso"),
co1n uma ou outra exceção:veja-se o poema "desespelho': composto
dessa palavra duplicada especularmente, o poema que mais apreciei
no novo livro (considero-o um belo emblema da dialética da melhor
arte do autor, aquela que, como um espelho,confronta duas palavras,
as quais se deformam, imbricando-se), ou o "não" prateado da capa,
já comentado6 • Viva Vaia me parece muitíssimo superior, inclusive
supera Despoesia,quase todo composto de não-versos e glorificando
a arte feita de cacarecos ("brilhar pra sempre / brilhar como um farol
/ brilhar com brilho eterno / gente é pra brilhar / que tudo mais /
vá pro inferno / este / é o meu slogan / e o do sol" - aqui, conforme
me foi sugerido por um leitor do poema, o comunista Maiakóvski é
inesperadamente soterrado nas letras de Roberto e Erasmo Carlos e
de Caetano Veloso),mas almejando ostentar um "luxoxo"verbovisual

5. Julio Plaza parece ter conferido a esselivro uma qualidade gráficaque o computador,tal como
usado por Augusto em Não,ainda não conseguiu fazer.
6. Não sei se concordaria com Augusto de Campos que, no prefácio a Não,afirma:"O fato é que
estes poemas caberiam melhor talveznuma exposição,propostos como quadros, do que num
livro''.

SIBILA
nem sempre convincente ... Uma exceção é a versão computadorizada
do "poema bomba': uma explosão de letras que anunciam um princí-
pio-fim da arte sob um fundo cósmico que arde.
Despoesia e Não também homenageiam o poeta norte-ameri-
cano e.e. cummings, um dos "precursores" de Augusto de Campos.
Confrontar essas duas homenagens poderá esclarecer eventuais
pontos obscuros da discussão precedente e resumir numa espécie de
síntese tudo o que foi dito a respeito do método poético de Augusto.
No primeiro livro, o poema "so l(a (cummings)" contém um poema 143
do mestre norte-americano acompanhado da sua tradução para o
português, ambos impressos lado a lado, segundo aquela estrutura
especular tão cara ao poeta e tradutor brasileiro, já comentada atrás:
o texto em inglês (constituído de poucas palavras escritas imbricadas
umas nas outras: loneliness/aleaffalis) mira a versão brasileira, igual
e diferente, reflexo num espelho infiel (solitude/1 folha cai). O poema
de cummings não é reproduzido tal como este foi publicado, com
comovedora economia de meios, na abertura da coletânea 95 Poems,
de 1950,mas se apresenta extravagantemente kitschcom suas grandes
letras retorcidas que receberam uma aplicação de dois tons de verde
- sem dúvida, o novo designdo poema é também uma tradução visual
dele, mas incomoda, pois o termo kitsch,ou trash,se é apropriado para
o resultado neobarroco alcançado por Augusto de Campos nas suas
composições pós-concretas, como esta, não parece adequado à esté-
tica cummingsiana, muito mais sutil, sóbria e econômica, e, portanto,
alheia aos excessos contemporâneros do poeta brasileiro. Confesso
não entender muito bem a intenção dessa tradução dupla, ao mesmo
tempo verbal e visual, que cria um novo produto, mais típico da junk
art de Augusto do que da visualpoetry de cummings.
O cummings de Não, homenageado no poema "pérolas para
cummings': recebe na página azulada em que vem impresso - "que
m(o)tiv(o) (o) lev(o)u a viver j(o)gando pér(o)las para p(oo)c(o)s)"
(sic)- pequenos desenhos de pérolas no lugar de certas letras, proce-

SIBILA
dimento que já aparecia,como sabemos,em "O pulsar': onde esferas
e estrelassubstituíam vogais.O kitsché tão serenamente utilizado em
"pérolaspara cummings,,que quase me convençode que devoler essa
homenagem como uma declaração contra cummings e uma afirma-
ção da tendência atual da poesia impressa de Augusto de Campos
(entendo que a radicalidade do cd-rom deverá ser discutida à parte,
em outro artigo): o apolíneo da fase pós-modernista e concreta, que
gerou textos e imagens sóbrios e elegantes,cedeu de vez lugar à fase
144 do "luxoxo':carnavalescae dionisíaca, excessivae, por isso mesmo,
contemporânea e neobarroca. É assim que entendo o "não,,prateado
de Augusto de Campos. Um não a e.e.cummings.

SlBILA
RUDEZADE ARGUMENTOSEM
TORNO DA PEDRADE DRUMMOND
Luís Dolhnikoff

O conhecimento pode ser uma forma de encobri- 145


mento. E pode sê-lo, entre outras maneiras, na medida
em que se torna um hábito. A primeira acepção de há-
bito no velho Aurélio é "disposição duradoura adquiri-
da pela repetição freqüente de um ato, uso, costume".
Saindo-se então do hábito como prática ("um ato») para
o hábito como "disposição duradoura': entende-se um
dos sentidos em que o conhecimento pode se tornar
encobrimento: a predisposição de re-conhecer (sic) um
aspecto de algo, o que por sua vez significa ignorar ou
esquecer outro aspecto.Isto é bastante exato para obras
de arte, precisamente, muito conhecidas, que podem
então tornar -se, na razão direta desse conhecimento,
muito encobertas.
O mais conhecido poema do modernismo brasilei-
ro senso lato, vale dizer, da poesia moderna brasileira,
é "No Meio do Caminho" de Carlos Drummond de
Andrade. Sem desconsiderar a imensa fortuna crítica
da obra do poeta, o que justifica retomar a análise do
texto deste poema em particular é o próprio fato de ser
tão conhecido.

No meio do caminho tinha uma pedra


tinha uma pedra no meio do caminho

SIBILA
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra

Nunca me esquecerei desse acontecimento


Na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do camiriho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

46
1 O poema começa pela repetição do seu 12 verso, sem quaisquer
variações além daquelas determinadas pela própria repetição - o que
seria paradoxal se não se tratasse de poesia, e, mais ainda, de um poe-
ma magistral,no sentido denotativo,ou seja,de um mestre da sua arte.
O aparente paradoxo se aclara qua11dose atenta para o 2 2 verso, que
começa pela repetição da metadefinal do 12 , ou seja, do que se acaba
de ler, e não, portanto, de todo 12 verso conforme aparece original-
mente. Isto determina que a metade inicial do 12 verso seja repetida
na metade final do 2 2 (gerando um efeito mimético ao da expressão
"andar sem sair do lugar").
O mesmo não ocorre entre o 2 2 e o 32 versos. E por um bom mo-
tivo: a metade final do 22 verso sendo a metade inicial do 12, o 32 é a
metade final desse 12 verso, que acaba repetido por inteiro, em sua
ordem original, através do enjambementassim criado (e que se torna
uma "queda"no mesmo lugar...). O que, por fim, prepara a repetição
não repetitiva, se se pode dizê-lo, do 12 verso em si mesmo como 42
verso e fecho da estrofe.
O resultado, para muito além da mera repetição automática e
invariável de um verso, é uma parada sintática: avança-se na leitura
(pela não repetição automática, invariável, da frase ao longo dos
versos), mas não se sai do lugar frasal (pois afinal a frase é em si a
mesma). Ao mesmo tempo, há uma parada semântica, porque o po-
ema diz justamente que era impossívelprosseguir, pois "no meio do
caminho tinha uma pedra".Portanto, a estrutura do poema realiza o

SIBILA
que o poema diz. Isto é muito mais do que uma descrição (daí não
ser por acaso o poema não explicitarser impossívelprosseguir,mas
fazê-loafirmando a presençairredutívelda pedra),muito mais do que
uma evocação e muito mais do que qualquer metaforização"aberta':
como tantos pretendem. Isso é a reprodução, na matéria do poema,
daquilo que o poema refere.De certa forma,o que Drummond realiza
aqui, disfarçado sob a levezado coloquialismoda frase central,é um
dos objetivosmaiores da poesia em todos os tempos.
Pois o que diferencia fundamentalmente a poesia de outras lin- 1
47
guagensverbais é o uso,pela poesia, de incontáveisrecursos formais
e semânticos que, quando bem articulados, produzem uma aproxi-
maçãodo texto à realidadedas coisasconforme pode ser percebida
por nossa experiência,o que outras linguagensverbais,co1noa prosa,
não podem lograr (mas apenas descrever e referir). Sejam as coisas
da emoção ou do próprio mundo. No famoso poe1na de Verlaine,
"Chanson d'automne': enquanto certa tristeza difusa que a estação
evoca impregna todo seu campo semântico (soluços longos,coração
ferido, langor,monotonia), o próprio ritmo oscilante das folhas que
caem é reconstruído pelo ritmo rápido dos versos associado ao seu
campo fonético,feito de consoantesnasais e vogaisfechadas:ou seja,
sons longos,"lentos,,,e tom grave, baixo.Não é por acaso,portanto,
que tudo caminhe (ou caia...) rumo à confluênciado último verso,em
que o poeta, depois de um verso que se resume a - e o poema sintetiza
em - "aqui,além" ("deçà,delà"),diz-se explicitamente"semelhanteà
folha mortá:

Lessanglotslongs
des violons
de /'automne
blessentmon coeur
d'unelangueur
monotone.
[...]

SlBlLA
Et je men vais
au vent mauvais
quz. memporte
'

deçà,de/à,
parei/ à la
feuille morte.

e. e. cummings, modernista, quase refazendo tal poema, retoma a


tópica que Verlaine,simbolista,aborda com predomínio de elementos
148 musicais, de um modo agora tão visual quanto sintético: "uma folha
cai" e "solidão"são assim todo seu texto. Ou seriam, se 11ãohouvesse
a imbricaçãofísica entre tal "folha" outonal (que aliás se desfaz em
fragmentos enquanto literalmente cai na página) e a "solidão" no pró-
prio corpo do poema - como, não por acaso, na realidade empírica
do outono. Como se não bastasse, tais procedimentos permitem o
aparecimento, en passant,naturalmente, de outros semantemas cor-
relatos e reforçantes,como o número 1 em que se transforma a letra
ele,ícone da solidão, que por sua vez se explicitana palavra one (uma
folha, uma queda, um homem, uma solidão - daí o espelhamento
frontal do fragmento central, "11"):

l(a

le
af
fa

ll

s)
one
l

.
1ness

SIBILA

De modo equivalente, o poema de Drummond recria o impas-


se: quem o lê fica imerso no impasse, para muito além de qualquer
possível descrição verbal dele. A lista de interpretações metafóricas
possíveis da pedra do poema é infinita, pois o texto nada faz para
indicar um dado âmbito. Mas se todas interpretações metafóricas
são possíveis,nenhuma é pertinente. Ou seja, a pedra não metaforiza
nada. A pedra do poema, ao contrário, denota uma pedra qualquer,
que havia num caminho qualquer. Enquanto a repetição dos versos,
ao materializar o impasse no avanço, como um cavalo que refuga, 149
transporta o leitor, não para o caminho impedido em si, mas, então,
para o próprio impasse.
Uma das principais marcas do poema é uma contradição, logo,
uma tensão, entre o tempo verbal e o presente de sua leitura. Pois
esse presente, em função da repetição dos versos, atualiza o impasse,
atualiza a parada, presentifica, portanto, a "pedra».E se ela está pre-
sente na estrutura do poema, mas ausente do tempo do poema (pelo
tempo verbal "tinha"), o resultado é que tal pedra, se foi em alguma
circunstância uma pedra real, torna-se, no presente do poema, uma
pura metáfora desse impasse (que se revela, portanto, a verdadeira
metáfora central). Cabe perguntar quantos poetas, e não apenas na
literatura brasileira, puderam assim ao mesmo tempo descrever (nos
versos), presentificar (na repetição) e por fim metaforizar (na sua
confluência) uma situação genérica. Pois não se trata de um impasse
específico,mas então, digamos, da essência do impasse.
Porém, ao fazer do poema a essência do impasse, aponta-se para
uma inversão que está quase explicitada em "na vida de minhas
retinas tão fatigadas•:pela qual o impasse é por sua vez a essência
de nossas vidas. Se nos lembrarmos que o verso principal remete
diretamente ao da abertura da Commedia, quando o narrador, "nel
mezzo del cammin di nostravita':"no meio do caminho de nossa vidà:
vê-se extraviado da "verdadeiravia':e se lembrarmos ainda que o mito
de Sísifo,evocado pelo poema, transformou-se numa das principais

SIBILA
metáforas da condição do homem moderno (bastaria citar o livro
capital de Camus intitulado O Mito de Sísifo,e que não se refere a este
personagem em si, mas, justamente, à condição moderna), então fica
evidente do que aqui se trata.
A grandeza do poema de Drummond nada tem a ver, portanto,
com o modernismo enquanto tal, no sentido de que, se a liberd ade
formal modernista o permitiu, seu resultado, suas características
maiores, como linguagem poética, têm um significado que transcen-
150 de o movimento.
Em termos estritamente gramaticais, os primeiros versos são
claramente modernistas, pela presença do coloquialismo, bem como,
em outros termos, pela repetição não-repetitiva e a conseqüente não -
metrificação. Ora, num segundo momento, o poema retoma a dicção
e a visão da lírica tradicional. E desses impessoais, antilíricos versos
centrados no objeto do início, passa a versos centrados no eu-lírico:
"Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas re-
tinas tão fatigadas".Há um óbvio retorno ao passado da poesia, pela
primeira pessoa, pelo vocabulário, pela métrica (dois versos alexan-
drinos), para em seguida haver um retorno à poesia modernista, a
poesia que então se criava. Por um lado, há aqui um espelhamento (e
um espalhamento), ao nível das diferenças estilísticas entre os versos
modernistas e passadistas, da tensão entre o passado do tempo verbal
de "tinha uma pedra" e o presente de sua repetição. Por outro lado, ao
retornar abruptamente, no final, ao modo modernista, Drummond o
põe em compasso de espera.
Pois ao rematerializar o que diz, com esses últimos versos, após
revisitar versos líricos standard,que nada materializam, mas tudo re-
ferem, o poema aponta para a grande diferença entre a lírica antiga e a
nova: aquela mais descrevia, mais 1netaforizava,mais lamentava, logo,
era menos poética, a despeito de todas as formas fixas (e apesar de
exceções como a Chansonde Verlaine), enquanto a nova poesia mate -
rializa, o que ao mesmo tempo a conforma à modernidade e procura

SIBILA
levar a termo a arte da poesia, que é fazer, poíesis,isto é, materializar.
Porém, nos mesmos versos finais em que demonstra assim tal poder
e superioridade da poesia moderna, antilírica, em relação à lírica an-
tiga, Drummond .Parece antever que as novas liberdades formais da
poesia logo a levariam a impasses. Não se trata de premonição, mas
de intuição. Uma intuição que não foi apenas de Drummond, porque
afinal inteiramente pertinente, mas que ele transfor1nou em poesia de
um modo superior aos seus pares. Ao se abrir para outros caminhos ,
a poesia também teria de se deparar com outras pedras. A situação 15 1

atual da poesia brasileira, na qual, depois de todo amplo leque de


experimentações e realizações do século xx (de que este poema é um
excelente exemplo), muito é possível, mas muito pouco obtido, não
poderia ser um prêmio maior, apesar de tão amargo, à grandeza da
intuição de Drummond.

SIBILA
A MORTEDE SOPHIA
RichardZenith

Conheci-a num congresso literário, em 1988, poucos


meses depois de fixar residência em Lisboa. Mas antes de a
conhecer, antes mesmo de a ler, conheci o seu nome, atra-
vés de um poema de João Cabral de Melo Neto: "Elogio da
Usina e de Sofia de Melo Breiner Andresen,, (sic).Eu tinha
vivido no Brasil e João Cabral foi o primeiro poeta que tra -
duzi com empenho. Sophia disse-me que o admirava muito,
mas não revelou que escrevera dois poemas em homenagem
a ele ("APalavra Faca,,e "Dedicatória da Segunda Edição do
Cristo Ciganoa João Cabral de Melo Neto").
Reencontramo-nos não me lembro bem onde, nem
quando, falamos novamente de João Cabral e convidou-me
para tomar chá em sua casa. Fui. Sophia era amigável sem
ser efusiva. Luminosa e ao mesmo tempo grave. Mudei-me
para o seu bairro, a Graça, em finais de 1989, e passamos a
encontrar-nos na rua. Entrevistei-a para uma revista literá -
ria americana em 1991."A poesia", disse então, "é uma coisa
inesgotável, uma coisa vital. Começa com a nossa relação
com os objectos, com a vida quotidiana, e essa relação é
mítica . Sem o pensamento mítico, o homem não consegue
habitar o mundo': Curiosa definição essa, que começa com
"A poesia é" e termina com "habitar o mundo':
Foi a Sophia que, na altura da entrevista, me sugeriu que
traduzisse alguns poemas do seu livro mais recente, Ilhas,e

SIBILA
foi ela que orientou a minha escolha. Ou melhor, chumbou a minha
escolha e "mandou-me» traduzir, em primeiro lugar,"Escrita 11":

Escreve numa sala grande e quase


Vazia
Não precisa de livro nem de arquivos
A sua arte é filha da memória
Diz o que viu
E o sol do que olhou para sempre o aclara.

153
Eu já tinha reparado na quase ausência de livros em sua casa.
Claro que haveria uma ou duas salas cheias de livros ao fundo do
longo corredor, mas não era de livros que a sua poesia se alimentava.
E a "sala grande" onde escrevia, tanto podia ser uma verdadeira sala
como uma praia, uma praça ou uma esquina da rua. Nem precisava
de caneta, pois "escrever': para ela, equivalia a "dizer","testemunhar':
(( '
pro1essar , crer .
))(( ))

Por vezes,tive a sensação de que a Sophia estava sutilmente a dou-


trinar-me - na sua poesia e na sua fé religiosa,perfeitamente católica
e perfeitamente pagã. Sugeriu-me que traduzisse "Ressurgiremos",
que termina assim:

Ressurgiremos ali onde pedra estrela e tempo


São o reino do homem
Ressurgiremos para olhar para a terra de frente
Na luz Limpade Creta

Pois convém tornar claro o coração do homem


E erguer a negra exactidão da cruz
Na luz branca de Creta.

Mas então onde (perguntei-me) estava o reino? Não acreditava


ela no Céu? E que fazia a cruz em Creta? A fé da Sophia, como a sua
própria poesia, era simples como a luz. Não era fácil."O reino agora é
só aquele que cada um por si mesmo encontra e conquista, a aliança

SIB 1LA
que cada um tece:' O reino está dividido e nós "procuramos reuni-lo,
procuramos a sua unidade, vamos de coisa em coisa':Estas frases são
retiradas de "ArtePoética - 1': em que Sophia conta a sua visita a uma
loja de cerâmica em Lagos,em agosto,loja essa que ela diz ser "como
uma loja de Creta': Ali compra uma ânfora de barro, "igual a todas as
outras ânforas...mas que nenhuma repetição pode aviltarporque nela
existe um princípio incorruptível':Põe a ânfora de barro sobre o muro
em frente ao mar. Observa:"Elaé ali a nova imagem da minha aliança
154 com as coisas. Aliança ameaçada. Reino que com paixão encontro,
reúno, edifico.Reino vulnerável.Companheiro mortal da eternidade':
Traduzi "Arte Poética - 1': E "ArtePoética - 11':Acabei por traduzir
toda uma antologia de poemas de Sophia, que colaborou comigo.
Assim passamos inúmeras tardes e noites em sua casa, ou no jardim,
a trabalhar. Ou a conviver? Não havia uma clara distinção entre as
duas atividades. Como também não havia, para ela, muita distinção
entre a Grécia e Portugal, Creta e o Algarve,os deuses e Deus, a poesia
e a vida. Ia "de coisa em coisa': unindo, ou reunindo, tudo que podia
com o seu vasto olhar.
Depois da tal antologia ter sido publicada, continuei a visitá-la
em sua casa, que eu sentia como um espaço vagamente sagrado,
pois todos os objetos que a habitavam - os desenhos do Almada, as
pinturas de Viera da Silva,os azulejos do Xavier,as peças da faiança
indo-portuguesas, os móveis,as fotografias,as plantas - me pareciam
ter alma, graças à relação mítica que a Sophia cultivava com elas e
com a vida.
Numa dessas visitas,deu-me - num gesto espontâneo - um jarro
de barro preto, "igual a todos os outros': uma cópia de um certo jarro
que se fazia em Portugal no século x1v.Levei-o para casa e coloquei-
º sobre o piano, em frente da janela. A minha imagem da Sophia. A
minha aliança com a sua memória e com a sua fé. A fé que não sei
se tenho, mas não será culpa sua se não tiver.A Sophia ensinou bem
a sua lição.

SIBILA
SIBILAS
Sophia de MelloBreynerAndresen

Sibilasno interior dos antros hirtos 55


1

Totalmente sem amor e cegas.


Alimentando o vazio como um fogo
Enquanto a sombra dissolve a noite e o dia
Na mesma luz de horror desencarnada.

Trazer para fora o monstruoso orvalho


Das noites interiores, o suor
Das forças amarradas a si mesmas
Quando as palavras batem contra os muros
Em grandes vôos cegos de aves presas
E agudamente o horror de ter as asas
Soa como um relógio no vazio.

Do livro "Coral(1950)

SIBILA


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ELSELASKER-SCHULER
Cláudia Cavalcanti

Pouco conhecida no Brasil, mas na Alemanha con-


siderada uma das maiores poetas de língua alemã, Else
Lasker-Schüler (Wuppertal, 1869 - Palestina, 1945) é
também uma das figuras mais representativas do movi-
mento expressionista alemão,seja por ter-se imposto um
modo de vida à margem da sociedade (apesar do berço
burguês e judeu), sobrevivendo com parcos recursos fi-
nanceiros, seja por ter sido a musa dos jovens e rebeldes
poetas daquela época (apesar de mais velha), vestindo-
se sempre de maneira excêntrica, por vezes encarnando
personagens (como a princesa Tino de Bagdá), de modo
a ressaltar sua beleza ma!cante e a chamar a atenção da
Berlim efervescente. No fim de seu primeiro casamen-
to, com o médico Berthold Lasker, nasce seu filho Paul
(1899), de paternidade desconhecida, cuja morte em 1927
a levará a uma vida ainda mais 1narginal e agora reclu-
sa. De 1903 a 1912 esteve casada com Herwarth Walden,
fundador da revista Der Sturm, ícone expressionista,
onde alguns dos seus poemas aqui traduzidos foram
publicados pela primeira vez.
Mas é a obra poética de Lasker-Schüler que a coloca
ao lado dos maiores nomes do expressionismo alemão,
como Jakob van Hoddis, Georg Heym , Georg Trakl
("Discutíamos religião / Mas sempre como parceiros de

SIB ILA
jogo")e Gottfried Benn, a quem chamou de Giselheernos poemas a
ele dedicados.Ao contrário deste último, cujos versos àquela época
eram povoadospelaexperiênciacomomédicode doençassexualmen-
te transmissíveis,além de aliados ao programa do expressionismo,a
poesiade Lasker-Schüler,autobiográfica,tem basicamentecomo tema
o amor e é marcadapela melancolia.Aspalavrasinventadas,as rimas
criativas e a melodia de seus versos,além de desafiaro trabalho do
tradutor, conferemsuavidadee levezaà língua alemã.Externamente,
sua poesia difere da produzida por seus contemporâneosexpressio- 159
nistas, mas têm em comum a necessidadede romper com modelos
antigos e a conseqüenteliberdade de criação.
Sua vasta obra inclui prosa, teatro e prolífera correspondência,
além de ilustrações. Em 1933Else Lasker-Schülermuda-se para a
Suíça,e, em 1939,para a Palestina,onde morre seis anos depois.

SIBILA
POEMAS
ElseLasker-Schüler

160 VOLLMOND

Leiseschwimmt der Mond durch mein Blut...


Schlummernde Tone sind die Augen des Tages
Wandelhin- taumelher -

!eh kann deine Lippen nichtfinden ...


Wo bist du ferne Stadt
Mit den segnendenDüften?

Immer senken sich mein Líder


Überdie Welt - aliess_chlii.ft.

(Primeira publicação: Der Kampf,1905)

SIBILA
LUACHElA 161

Quieta a lua flutua pelo meu sangue...


Sons sonolentos são os olhos do dia
Lá-indo - vem-vindo-

Não consigoencontrar teus lábios...


Onde estás,distante cidade,
Com os bendizentesaromas?

Semprependem minhas pálpebras


Sobreo mundo - tudo dorme.

SIBILA
UND SUCHE GOTT

Ich habe immer vor dem Rauschenmeines Herzensgelegen


Und nie den Morgengesehen
Nie Gott gesucht.
Nun aber wandle ich um meines Kindes
GoldgediehteteGlieder
Und suehe Gott.

Ich bin müde vom Schlummer,


Weissnur vom Antlitz der Naeht.
!ehfürehte mich vor der Frühe,
Sie hat ein Gesieht
Wie die Menschen,diefragen.

!eh habe immer vor dem Rauschenmeines Herzensgelegen


Nun aber taste ich um meines Kindes
GottgelichteteGlieder.

(Primeira publicação: Die Fackel,1909)

SlB lLA
E BUSCO DEUS

Sempre me deitei ante o murmúrio de meu coração


E nunca vi a manhã
Nunca busquei Deus.
Mas agora vagueio pelos membros
De meu filho,cobertos de ouro
E busco Deus.

Cansa-me a letargia,
Sei somente do semblanteda noite.
Temo o amanhecer,
Que tem um rosto
De pessoas que perguntam.

Sempre me deitei ante o murmúrio de meu coração


Mas agora toco os membros
De meu filho,iluminados por D~us.

SIBILA
DER LETZTE STERN

Mein silbernesBlicken rieseltdurch die Leere,


Nie ahnte ich, dass das Leben hohl sei.
Auf meinem leichtestenStrahl
Gleiteich wie über Gewebevon Luft
Die Zeit rundauf, kugelab,
Unermüdlichertanzte nie der Tanz.
Schlangenkühlsteigt der Atem der Winde,
Wie Sêiulenaus blassenRingen
Undf allen wieder.
Was soll das klangloseLuftgelüste-
DiesesSchwanken unter mir,
Wenn ich über die Lende der Zeit mich drehe,
- Wie eine sanfte Farbeist mein Bewegen-
- Und doch küsste nie dasfrische Auftagen,
Nicht das jubelnde Blühen einesMorgensmich.
Es naht der siebenteTag-
Und noch ist das Ende nicht erschaffen.
Tropfenan Tropfenerloschen
Und reibensich wieder,
ln den Tiefen taumeln die Wasser
Und drêingenhin und stürzen erdenab.
Wilde,schimmernde Rauscharme
Schêiumenauf und verlierensich,
Und wie allesdrêingtund sich engt
Ins letzte Bewegen.
Kürzer atmet die Zeit im Schossder Zeitlosen -
Hohle Lüfte schleichen
Und erreichendas Ende nicht,
Und ein Punkt wird mein Tanz
ln der Blindnis...
(Primeira publicação: Der siebenteTag,1905)

SIB ILA
A ÚLTIMAESTRELA

Meu olhar prateado percorre o vazio,


Jamais pressenti que a vida era oca.
Sobre meu mais leve raio
Deslizo como num tecido de ar
O tempo rodando, redondo
Tão incansáveljamais dançou a dança.
O frio serpenteia o sopro dos ventos,
Como colunas de pálidos anéis,
E caem de novo.
Para que o surdo gozo do ar?
Esse balanço sob mim,
Quando giro sobre as ancas do tempo
- Movo-me como uma cor suave -
Mas nunca me beijou o nascer do dia
O florescerradiante de uma manhã, nunca.
Aproxima-seo sétimo dia -
E o fim não foi criado ainda.
Gota a gota apagam-se
E voltam a roçar-se,
Nas profundezas as águas cambaleiam,
Impelem-se e precipitam-se terrabaixo~
'
Selvagens,cintilantes braços do êxtase
Borbulham e perdem-se...
E como tudo impele e se espreme
Para o mover-se último.
O tempo respira mais rápido no colo dos atemporais -
Ares ocos se achegam
E não alcançam o fim,
E minha dança torna-se um ponto
Na escuridão...

SIBILA
MEINE MUTTER

War sie der grosseEngel,


Der neben mir ging?

Oder liegt meine Mutter begraben


Unter dem Himmel von Rauch -
Nie blüht es blau über ihrem Tode.
166
Wenn meine Augen doch hell schienen
Und ihr Licht briichten.

Wiiremein Liichelnnicht versunken im Antlitz,


Ich würde es über ihr Grab hiingen.

Aber ich weiss einen Stern,


Auf dem immer Tag ist;
Den will ich über ihre Erde tragen.

Ich werdejetzt immer ganz allein sein


Wie der grosseEngel,
Der neben mir ging.

(Prin1eirapublicação: Der Sturrn,1910)

SIBILA
M INHA MÃE

Era ela o grande anjo


Sempre ao meu lado?

Ou está enterrada minha mãe


Sob o céu de fumaça?
Nunca floresceazul sobre sua morte.

Se meus olhos brilhassemclaros


E lhe trouxessemluz.

Não estivessemeu sorriso afundado no rosto,


Eu o fixariasobre seu túmulo.

Mas sei de uma estrela,


Sobre a qual é sempre dia;
Quero carregá-lasobre a sua terra.

Agora estarei sempre e toda só,


Como o grande anjo
Sempre ao meu lado.

SIBILA
EIN ALTERTIBETTEPPICH

Deine Seele,die die meine liebet,


Ist verwirkt mit ihr im Teppichtibet.

Strahl in Strahl,verliebteFarben,
Sterne,die sich himmellang umwarben.

168 UnsereFüfie ruhen auf der Kostbarkeit


Maschentausendabertausendweit.

SüfierLamasohn auf Moschuspflanzenthron


Wie lange küfit dein Mund den meinen wohl
Und Wang die WangebuntgeknüpfteZeiten schon?

(Primeira publicação: Der Sturm, 1910)

SIBILA
UM VELHOTAPETETIBETANO

Tua alma que tanto amo


Enreda-se em meu tapete tibetano.

Raio em raio, apaixonadas cores,


Estrelas que no céu namoram em calores .

Nossos pés jazem sobre a preciosidade


De um mundo-teia que nos invade.

Doce filho do Lama em trono de folhas de almíscar


Quanto tempo tua boca beijará a minha
E a face outra face em tempos coloridos a piscar?

Tradução:Claudia Cavalcanti

Fonte: Else Lasker-Schüler,Jch suche allerlanden eine Stadt, Leipzig, Reclam


Verlag,1988.

SIBILA
ERNST JANDL
Fabiana Macchi

170 Ernst Jandl (morto em 2000) foi, sem sombra de dú-


vida, dos poetas de língua alemã do período pós-guerra,
o mais popular. Seus jogos de linguagem estão presentes
em quase todos os livros escolares nos três países de
língua alemã (Alemanha, Áustria e Suíça) - inclusive
nos livros de alemão para estrangeiros-, e todo literato
ou leitor mais atento destes países sabe recitar alguns
de seus poemas de cor. É inimaginável, hoje, o fato de
que o editor de seu segundo - e até hoje emblemático
- livro de poemas, Laut und Luise (1966), tenha perdido
o emprego pela ousadia da empreitada.
Jandl nasceu na sedutora Viena' de 1925, recebendo
influência de Brecht, Gottfried Benn, Erich Fried e Jac-
ques Prévert, bebeu em fontes expressionistas (Trak.l,
Stramm, Becher), impregnou -se de pintura abstrata,
da música dodecafônica de Schoenberg e Webern, da
música aleatória de John Cage, dos americanos Robert
Creeley, W H. Auden e Gertrude Stein - cujos poemas
traduziu para o alemão-, do jazz e, finalmente, das van-
guardas literárias do pós-guerra. Sua vasta e inovadora
obra abrange mais de mil poemas, peças radiofônicas,

1. Da qual nos fala Marjorie Perlotf em seu artigo "Viena Sedutora•~publi-


cado na Sibila n°. 5.

SIBILA
peças de teatro, "ópera falada",traduções, crítica e ensaios sobre lite-
ratura, estética e poética.
Vários de seus poemas utilizam recursos visuais,sem os quais a
percepção do conteúdo é apenas parcial (1944-1945).Não apenas o
espaçamento da página é usado como recurso poético, às vezes Jandl
utiliza a seqüência das letras do alfabeto como referência temporal,
como processo de transformação.
A sonoridade é um elemento fundamental em vários poemas
de Jandl. Ele foi o poeta das leituras, das performances, várias ve- 17 1

zes acoml"an'hadopor músicos de jazz. Em alguns de seus poemas


sonoros, o sentido só se revela a partir da leitura em voz alta, que
cria, através da linguagem,o universo sonoro do conteúdo, ou, sim-
plesmente, uma massa sonora, com ritmo e melodia, como se fosse
música (calipso).

SIBILA
POEMAS
ErnstJandl

CAMPlNG

ein zelt

em messer
drei leichen

ein kleiner junge


sucht

den papa
diemama
und seinen bruder rudi

er erbt
alies

ein zelt

em messer
drei leichen

SIBILA
~AMPING 173

uma barraca
uma faca
três corpos

um menininho
procura

o papai•
a mamae-
e o seu mano caco

ele herda
tudo

uma barraca
uma faca
três corpos

SIBILA
CALYPSO

ich was not yet


in brasilien
nach brasilien
wulld ich laik du go

werdewimen
174 arr so ander
so quait ander
denn anderwo

ich was not yet


in brasilien
nach brasilien
wulld ich laik du go

als ich anderschdehn


mange lanquidsch
will ich anderschdehn
auch lanquidsch in rioo

ich was not yet


in brasilien
nach brasilien
wulld ich laik du go

wenn de senden
mi across de n1eer
wai mi not senden wer
ich wulld laik du go

SIBILA
CALIPSO

eu was not yet


in brasil
ao brasil
ud eu laik tu go

uér de uímem
ar so diferent 175
so quait diferent
de onde estou

eu was not yet


in brasil
ao brasil
ud eu laik tu go

se eu anderstend
meni lengüedgis
quero anderstend
também lengüedgiin riô

eu was not yet


in brasil
ao brasil
ud eu laik tu go

se dei send
mi across de mar
uai mi not send uér
eu ud laik tu go

SIBILA
yes yes de senden
mi across de meer
wer ich was not yet
ich laik du go sehr

ich was not yet


in brasilien
nach brasilien
wulld ich laik du go

SIBILA
yes yes dei send
mi acrossde mar
uér eu was not yet
eu laik tu go já

eu was not yet


in brasil 177

ao brasil
ud eu laik tu go

SIBILA
178 1944 1945

krieg krieg
krieg krieg
krieg krieg
krieg krieg
krieg mai
krieg
krieg
krieg
krieg
krieg
krieg
krieg

(markierung einer wende)

SI 8 1LA
1944 1945 179

guerra guerra
guerra guerra
guerra guerra
guerra guerra
guerra maio
guerra
guerra
guerra
guerra
guerra
guerra
guerra

(marcasde uma mudança)

SIBILA



CONTO*
Hélio Oiticica

brn 22/nov./69

olho a foto fora de foco o cartão cor cordão


rosário e peça e começo a decifrar o que já
vi e sei: Maracanã e mais além não o que
concentra no estádio-luz mas o que aureola
coroa formigando a paisagem de cinza calor e
luz suor: oh, a luz que à noite se vê do morro
é o clamor clarão maracanão pão dos olhos e
barulho de ter mas o que está aqui é a vida
diante dos olhos ruas ruas noite dia e se olho
agora o esqueleto que faço vejo aqui o Esqueleto

* Este texto (classificado/intitulado por Hélio Oiti cica. de "conto") foi escrito em Brighton ,
Inglaterra, no período em que se encontrava como artista residente na Sussex University.
Seus temas e referências , no entanto, estão diretamente ligados ao período vivido por ele na
Mangueira e suas imediações, entre 1964 e 1968: o Maracanã, o lendário estádio de futebol
que fica próximo àquele morro e à linha ferroviária da Central do Brasil, que atravessa o
subúrbio do Rio; as imediações da Mangueira e seus "bairros" aparecem na referência à sua
rua de chegada - a Visconde de Niterói - e em alguns locais do interior da própria favela,
como a fábrica Cerâmica Brasileira (onde a escola de samba passou a ensaiar nos anos 1960),
a ponte da Mangueira e a Candelária; vizinha à Mangueira, havia a favela do Esqueleto, no
mesmo local em que hoje se encontra a Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, e o
texto se remete ao período exato em que a favela estava sendo ren1ovida pelo governo Carlos
Lacerda, restando no local apenas "o esqueleto do esqueleto do esqueleto"; por fim, destaca-se
o bairro vizinho, Vila Isabe l, com referências a Noel Rosa, à garage1n de ônibus no Boulevard
28 de Setembro e à praça Barão de Drumond. Oiticica faz alusão também ao seu trabalho
Barracão,cuja teoria foi apresentada em texto homônimo, ao lado de outros dois, publicados
na Revista de Cultura Vozesum ano depois (1970 ): As Possibilidadesdo Crer Lazer e LDN. No
início do texto, há também uma referência a um famoso bandido da favela do Esqueleto, o
Cara de Cavalo. Seu assassinato inspirou Hélio a fazer um de seus bólides mais conhecidos
(Caixa 18, "Homenagem a Cara de Cavalo': 1965-66). (Nota de Fred erico Oliveira Coelho).

SIBILA
esqueleto-esqueleto do esqueleto do esqueleto do
esqueleto5atacumba caveira Caveirinha Cara de
Cavalo e--seo ensaio na Cerâmica terminou o pulo
Pela linha do trem para o esqueleto esqueleto
Esqueletonão sei se a paisagem e a ponte escura
Sobre o rio que nunca vi de tão sombra que se
Míngua nas sombras tumbas das casas barracões
(seria a origem do Barracãoo esqueleto do
esqueleto do Esqueleto) onde paixões dormem ou
comem os restos dos mortos pois o ensaio acabou
na Cerâmica e os mortos estão dormindo mas eu
ando e vejo escuto o porque da tanta avidez de
tanto silêncio se o ensaio acabou e porque dormem
e porque a ponte sobre o rio a rua vazia à
sombra do estádio e seria o mesmo que sentiam em
Roma quando o Coliseu coliseavasombra umbra
Catacumba ou samba (que ritmos correm não me
lembro agora mas não corro apesar da sombra pois
ninguém vem todos dormem e medo nunca tive então
ou não o descobrira porque sambeavam cálulas
mentais) ou era a hora de vir o ônibus ou estariam
buseando nas garagens ou à espera não sei de que
mas não não na praça Barão de Drumond eles não
dormem só os oitis de Noel ou os pequenos burgueses
em paz mas ônibus omnibus para todos dizem mas se
chego à rua algo deve vir se não de lá ou dos altos
montes mas que descem e trazem os que não dor1nem
pra baixo onde o samba acabou e eu pulei o muro
para linha de trem para ponto para o labirinto
esqueleto que dorme e chupa os ossos de mortos ou
vivos e já é silêncio na Candelária não a de baixo
mas a Candelária morro ensaio cerâmica sambâmica

SIBILA
gosto de leite de onça e chinfra legal Visconde de
Niterói mas dói saber que ou era ingenuidade ou
Têmpera do tímpano estar lá e não ver mas verouvir
Ouvir não sei que ritmos corriam ou que horas
Seriam seriados ou não ou se era o silêncio do
Estádio da quadra do trem do ônibus da gente que
Dorme e chupa os ossos mortos ou o mato que cresce
Entra e desce e permeia o vulcão do esqueleto
Esqueleto maloca toca Noca com cara diabólica
(onde está ela agora ou só na memória ou folia)
não sei se era morro Noel ou esqueleto esqueleto
que me afligiam ou se o gozo ritmo do que permeava
células corporais ou mais ou o sal saliva suor
pular a linha do trem correr ventar da praça Barão
de Drumond oitivar noelses (um vento areia me
enguliu um dia) mas corro ouço motor ou vento de
onde vem não sei e não me lembro que ritmos
pensavam quando atravessei a ponte tábua sobre o
vão rio umbroso onde todos dormiam taba tabu
floresta da imaginação maloca dos índios dos
puros pruridos dos gritos manhas choros nas manhães
sem sol ou brasardente cadente sol sol sol
esquelético no esqueleto na ceramicação ou no trem
ou no dia a dia dia dia mas o barulho de motor vem
de longe na noite da praça Barão de Drumond ou sete
ou dos altos distanciamentos sobre o asfalto cimento
"suave é a noite" o corte giletinoso andar-correr
ventar brisar sobre a ponte rio ossos esqueleto
esqueleto esqueleto "esquece-me, não voltes mais ..:'
lanço lampejo imagem-foto-cartão-cor color calor
sabor aromaesqueleto do
esqueletoesqueletoesqueletoesqueletoes

SIBILA
NA TRILHADA NAVILOUCA
Entrevistade LucianoFigueiredoa EucanaãFerraz
e RobertoConduru

A entrevistaque se segueaconteceuem 19 de fevereirode 18s


2004, às vésperasdo carnaval.LucianoFigueiredo,diretor do
Centro de Arte Hélio Oiticica,recebeu-nosem sua sede, um
imponentecasarãodo século XIX, que originalmenteabrigarao
ConservatórioImperialde Música.Avizinhançacom a lendária
Praça Tiradentesobrigou-nosa atravessara cidadeem meio à
inquietaçãocarnavalesca,aos camelôs afoitosem venderfanta-
sias,máscarase outrasbugigangas,tudo ao som estrondosodos
sambas-enredostocados nas lojas de discos.A conversafluiu
relaxadamente,com o bom humor,a elegânciae a simplicida-
de que sobressaemno caráterdo nosso entrevistado.Maisque
diretor do Centro- criadoem 1996,e parceirodo ProjetoHélio
Oiticica-, e além de profundo conhecedor da obra de Hélio,
LucianoFigueiredoé um artista.Expoenteda chamada"con-
traculturà: que sacudiuas artesplásticasno Brasilda décadade
1970, ele nos deu o que procurávamos:o olhar de um criador
sobre outro, uma inteligênciacúmplice,um entendimentode
certos dilemas,vistospor dentro,e tambéma fala de um cola-
borador e amigo.Conversaconcluída,ou melhor,fitascassetes
terminadas,deixamosLucianoe seguimospara a concentração
40 bloco"Escravosda Mauá':ao pé do Largoda Prainha e da
Pedrado Sal.Lugaresmíticos,nomesfantásticos.Hélios,paran-
golés,naviloucas,sibilas- o Carnavaltinha começado.
EF eRC

SIBILA
EF/Rc: Fale um pouco sobre a revista Navilouca.
LF: Navilouca, que tinha o subtítulo Almanaque dos Aqualoucos,
primeira edição única, foi um projeto editorial que agregou artistas de
várias áreas: poetas cineastas, artistas plásticos, músicos, de maneira
diferente das publicações independentes da época, pelo menos no
modo como Torquato Neto e Waly Salomão pensaram e organizaram
todo o projeto. A imprensa alternativa se intensificava em resposta
à falta total de liberdade de expressão que se vivia sob a ditadura
186 militar e Navilouca foi feita durante o período mais negro do regime.
A estratégia editorial de Torquato e Waly era reunir um conjunto de
trabalhos especialmente feitos para a revista, que pudesse configurar o
espírito de uma produção que emergia e se diferenciava do repertório
e clima intelectual do Brasil daqueles anos. Era, então, uma antologia
artística que reuniu nomes como Duda Machado, Ivan Cardoso, Luiz
Otávio Pimentel, Jorge Salomão, Hélio Oiticica, Rogério Duarte, Cha-
cal, Luciano Figueiredo, Óscar Ramos, Caetano Veloso, Lygia Clark,
Stephen Berg,Haroldo de Campos,Augusto de Campos,Décio Pigna-
tari, mais os próprios Torquato Neto e Waly Salomão. Evidentemente
não se tratava de uma publicação de artistas emergentes. Tratava-se de
articular uma produção de idéias muito novas com a colaboração de
nomes veteranos importantes, e que, na nossa opinião, configuravam
uma visão artística que tentava superar os problemas ideológicos e
provincianos da vida cultural brasileira daqueles últimos doze anos.
Ou seja, uma combinação de expressões que continha o melhor do
movimento Neoconcreto, a Poesia Concreta, o Tropicalismo e as
novíssimas poéticas e visualidades que surgiam. Era um caldo muito
consistente, muito radical. Todos os participantes convidados por
Torquato e Waly publicaram seus trabalhos com total liberdade e
sem qualquer restrição. O Óscar Ramos e eu, que fizemos també1n
o projeto gráfico da revista, diagramávamos exatamente o que cada
autor queria fazer. O projeto gráfico foi todo feito na prancheta na
casa do Óscar, que para cada secção e cada página criava tipologias

SIBILA
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pri m eira ed1çao

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NAVILOUCA, MANIFES TO DA CONTRACULTURA, RIO DE fANEIRO, 1972

SIBlLA
especiais,desenhadas à mão, sem letra sete ou fotocomposição.Uma
aventura editorial artesanal e impensável hoje em dia.

EF/Rc: De que a.no foi a revista?


LF: Foi feita de 1971 para 1972, entre a concepção e feitura gráfica
até chegar nos fotolitos. Aí levou mais dois anos para ser impressa.
Só saiu em 1975. O Lúcio Abreu, dono das Edições Gernasa foi quem
convidou Torquato Neto e lhe deu carta branca para que apresentasse
188 um projeto editorial que representasseo que fossemais expressivona
produção cultural daquele momento. Mas depois de quase dois anos
de trabalho e articulações,o LúcioAbreu não tinha dinheiro para ro-
dar a tiragem e aí a revista encalhou até que, em 1975,Walyconseguiu
junto a Caetano que a Phonogram bancasse a impressão e fizesseo
lançamento. Curiosamente, outros projetos editoriais,filhotes de Na-
vilouca,conseguiram sair antes dela,como foi o caso da revistaPólem,
que tem repertório e elenco de participantes semelhantes.

EF/Rc: Mas ela foi pensada desde o início para sair como um
, , .
numero un1co.
LF: Sim, como um grande manifesto.A idéia de edição única foi

uma estratégia do Torquato e Walypara tentar superar a experiência


terrível de outras revistasque não conseguiamter periodicidade,fosse
por problemas com a censura ou por falta de dinheiro. O fato é que as
publicações alternativas abortavam no primeiro ou segundo número
e as pessoasviviam uma frustração crônicapor conta disso.Então,eles
pensaram uma publicaçãomuito ambiciosae que cumprisse seu obje-
tivo através de um número único. Depois se partiria para outra coisa.

EF/Rc: Como a revista se definia politicamente?


LF:Naviloucatinha um caráter ideológicomuito especial,pois não
tinha um objetivo político da mesma maneira que as outras publica-
ções que buscavam intervir no conflito social daquele momento no

SIBILA
Brasil.Ela tinha uma feiçãocompletamentediferenteporque reunia
representantesde várià~vanguardas capitaneadospor dois editores
poetas. Então, a posição e pensamento daquele grupo que tentava
se articular enfrentavaproblemas de aceitaçãosemelhantesaos que
enfrentaram,em 1967 e 1968, os artistasdo movimentomusicaltropi-
calista.Eles,como se sabe,quando surgiram não foram aceitospelas
elitesintelectuais.Estou falandoda esquerdaortodoxa,que foi como
que apanhada de surpresapela explosãomusicalque surgiacarregada
de pensamentosnovossobre a cultura do Brasil.Atéali,a experiência 189
da esquerdaortodoxa é que dava as cartas ideológicaspara o Brasil,e
o Tropicalismofalavada cultura brasileirade maneira muito própria,
de maneiramuito contundente,renovadae moderna.A sonoridade,a
poesia daquelasletras,as idéias,falavamde um Brasilque se encon-
trava oculto aos olhos de uma elite que se achava"responsável"pela
cultura do país.Maso momentohistóricoexigiauma outra visão,e foi
a expressãodessesartistas,que não eram do eixoRio-São Paulo, e sim
da Bahiae do Piauí,que se impôscomo força modernizadoranaquele
momento.A vida cultural brasileiraera completamentecentrada no
Rio de Janeiro e em São Paulo,os pólos irradiadoresda cultura. Para
a esquerda,as idéiasdos tropicalistasrepresentavamuma decadência
intelectual,e para a direita,para a repressão,aquilocheiravaa um tipo
de anarquiacomunista que deviaser reprimida.Nada daquilo foi ini-
cialmenteaceitono ambienteartístico.Pelaesquerda,principalmente,
porque os tropicalistaschegavamcom novidadesmusicaise com um
discurso extremamente crítico.Vale lembrar que duas grandes ex-
pressõesacabavamde mudar o panorama da músicae do cinema no
Brasil:João Gilberto e Glauber Rocha.A reação da esquerda,então,
acentuava a sua posição cultural hegemónicae recusava aceitar os
sinais de uma inevitáveldescentralizaçãocultural.Daí,acho que para
se entender uma articulaçãode grupo como foi Navilouca,é preciso
entender isso que imediatamenteprecedesua articulação:quase tudo
que se produz em arte e cultura no Brasilnos anos 1960/70 é parte do

SIBILA
conflito ideológico, muito rico e muito esquizofrênico, que marcou e
marca até hoje a produção artística do país.

EF/Rc: A visão da produção artística e cultural era bastante prag-


mática e de esquerda, tipo CPC.
LF: Sim, restos e ranços do cepecismo da velha esquerda, da arte

engajada, da arte simplificada para ser entendida pelas massas, pelo


proletariado. Então, a maior parte da esquerda brasileira, quando
1 0
9 pensava sobre arte e cultura tinha o modelo CPC como exemplar que
ainda pairava como modelo. Todo o quadro político, social e cultural
estava dilacerado. Buscavam-se alternativas. E Navilouca não era um
projeto editorial engajado no ativismo político, até porque, nesse pe-
ríodo, as esquerdas eram várias: uns eram comunistas conservadores,
outros representavam a esquerda que defendia a idéia da luta armada,
e havia ainda toda uma série de variantes ideológicas que fizeram
a história da esquerda e dos movimentos de resistência à ditadura.
Navilouca não tinha preocupação em atuar em campos de difusão
para massas nem buscava qualquer tipo de popularização. Não fazia
oposição ao tropicalismo musical e nem era a sua continuidade. E o
momento político era outro, ainda mais .difícil. Era o Torquato Neto,
que, em sua coluna diária no jornal Última Hora, atuava como prin-
cipal difusor de tudo que nós fazíamos: espetáculos de música, filmes,
poesia e visualidades . A revista foi preparada como uma estratégia
secreta. Foi um projeto que imaginava uma forma condensada de
processos expressivos que pudesse produzir "terremotos clandesti-
nos", como dizia Haroldo de Campos, superando esse conflito cultural
da esquerda e propondo um repertório de idéias mais receptivas a
tudo que estava acontecendo no resto do mundo, como o movimento
jovem, underground, que renovava os ambientes culturais de maneira
muito forte. Navilouca queria ter uma posição diferenciada. Ou seja,
era uma posição que queria afirmar as individualidades dos proces-
sos criativos . Se você olhar para o leque de participantes, verá que há

SIBILA
TORQUATO NETO NO PENETRÁVEL PN2 "A PUREZA É UM MITO"/ TROPICÁLlA,
LONDRES, 1969

SIBILA
uma tentativa de sinalizar para diferentes campos, configurando uma
interdisciplinaridade muito selvagem. Querer estabelecer diferenças
naquela época ainda era agir de maneira análoga à tradição das van-
guardas do século xx: negar o outro para conseguir diferenciar-se.
Durante décadas as vanguardas políticas e artísticas do mundo fi-
zeram assim. Toda a história das vanguardas políticas e artísticas do
Brasil está marcada por esta síndrome destrutiva. Hoje,podemos pen-
sar melhor sobre esse comportamento das vanguardas, e questionar
1 2
9 esse mecanismo baseado na diferenciação e na afirmação. No Brasil,
certamente algumas discórdias sérias poderiam ter sido evitadas,
porque, afinal de contas, muitos artistas ou movimentos estiveram
uns contra os outros de maneira feroz e aos olhos de hoje quase não
se vêem diferenças entre a qualidade artística de um e outro artista,
ou obra. O cinema é um caso típico dessa síndrome, quando você tem
num momento um cinema muito bom e original como o Cinema
Novo e logo em seguida surge uma outra produção que precisa negar
a ideologia e a estética anterior para se afirmar! Hoje, assistimos aos
filmes e nos perguntamos: onde estão aquelas diferenças tão radicais?
Eu não consigo ver. Talvez algumas diferenças poéticas, mas nada
tão diferente. O Bandidoda Luz Vermelhaé melhor ideologicamente,
formalmente, conceitualmente, que Deus e o Diabo na Terrado Sol?
O caso da Navilouca é um bom exemplo disso também, porque os
artistas que formavam aquele grupo sofreram muita hostilidade no
ambiente cultural do Rio de Janeiro. De fato, ali estava uma diferença
que queria se afirmar, mas penso, hoje, que talvez ela não tivesse que
se opor tanto aos outros projetos criativos, individuais ou de grupos.
De qualquer modo, Torquato e o Waly foram absolutamente radicais
na seleção dos participantes. Não era uma publicação que estava con-
vidando abertamente, ela estava centrada em uma idéia, num ideal de
condensação poética e artística.

EF/Rc: Qual a participação de Hélio Oiticica na revista?

SIBILA
JEANNE RIMBAUD'ARC
- ''Prêtres,professeurs,ma'ftres,vous
voustrompezen me livrantà la justice.
Je n'ai jamais été de ce peuple-ci;je 193

n'ai jamais.été chrétien;je suis de


la race que chantaitdans le supplice;
je ne comprendspas les lois;je n'ai
pas le sens moral,je suis une brute:
vousvoustrompez''.
APROPRIAÇÃO, NOVA YORK, MARÇO 1971.

LF: Foi uma participação grande e muito importante. Ele preparou


páginas e páginas especiais com seus textos, imagens e fotografias.
Há poemas visuais, a publicação das maquetes do Central Park e um
texto escrito especialmente para a revista, chamado "Experimentar o
Experimental".É mais um projeto que mostra a articulação do Hélio
em trabalhos coletivos, nas colaborações. Ele acreditava muito em
parcerias e isso dava ótimos resultados. O Waly dizia que o Hélio foi
o primeiro a ler o Me Seguraqu'euVouDar um Troço,e ele ficou tão
fascinado pelo texto que imediatamente começou a fazer o projeto
gráfico do livro.

EF./Rc:O Waly me disse que o Hélio chegou a fazer a diagramação


do livro praticamente todo. E que o trabalho acabou se perdendo,
parece que levado pela polícia da ditadura numa daquelas batidas
violentas.

SIBILA
LF: É, essa maquete nem existe mais, porém, é verdade que o Hélio
a fez.

EF/Rc: Navilouca foi um marco da contracultura .


LF: Foi uma articulação editorial, poética e artística de um período
da arte brasileira ainda pouco estudado e discutido. A corrente que
se convencionou chamar de contracultural tem qualidades, motivos
e origens consideradas sempre como decorrência do movimento
194 tropicalista, mas isso não a explica completamente, não elucida a
questão. Na minha opinião, o próprio período chamado Tropicalismo
també1n tem sido mal estudado, mal explicado. Até hoje, historiadores
co1netem o erro de pensar que o Tropicalismo foi um movimento
coeso, homogêneo, das artes brasileiras. Isso é completamente falso e
inaceitável! O que aconteceu é que algumas abordagens jornalísticas
da época trataram toda a produção artística como um único conjun -
to. E essa idéia foi ficando, a lenda se sobrepondo ao fato verdadeiro,
mas não foi assim . A contracultura deve, sim, um tributo a tudo o
que aconteceu antes, mas não se limitou a ser uma continuidade . A
imprensa, na época, precisava dar um nome para toda aquela riqueza
artística e cultural que estava explodindo no Brasil, na música, no
teatro, no cinema, nas artes plásticas, espontanea1nente, áreas que
estava1n elaborando coisas muito novas e diversificadas dentro da
cultura brasileira, mas sem haver uma orientação hegemônica. As
coisas estavam, litera lmente, explodindo, o que por si só impedia uma
articulação ideológica entre uma arte e outra. Mas pareceu muito
mais fácil criar um arquivo chamado Tropicalismo, que englobasse
todas as artes.

EF/Rc: Estou entendendo que havia lapsos, distinções ... Quais se-
riam os pontos de aproximação e de distanciamento de Hélio Oiticica
em relação às outras artes e outros artistas?
LF: De fato, no caso do Hélio, as aproximações eram muitas e se

SIBILA
davam pela via experimental, pelo espírito de experimentação que
estavano ar,e que se podia ver nas outras artes.Issoexplica,por exem-
plo, por que o nome Tropicália,um penetrável de 1967 apresentado
no MAM, acabou sendo usado por Caetano como título de uma de
suas canções e logo depois virar Tropicalismo,que, como movimento
1nusica1,cresceu muito, teve uma maneira muito própria de difusão,
completamente diferente do que seria possível no campo das artes
plásticas,sempre mais restrito. E o Hélio mostrou desde o início sua
admiração por Caetano, Gil, Torquato e todos os outros músicos 95
1

tropicalistas.Ele também gostava muito do Zé Celso,do cinema do


Glauber,e até trabalhou como protagonista do filme O Câncer.

EF/Rc: A veia experimentalde Hélio existiadesde o início,desde os


anos 50. Nesteperíodo tropicalista,a diferençaestariana abertura para
o popular, para um outro modo de interpretar a cultura brasileira?
LF: Si1n,a inclinação para o experimentalismo era uma conse-

qüência do movimento neoconcreto. Mas embora tenha havido nos


anos 60 essa abertura do Hélio para a cultura popular, penso que
é importante diferenciar as maneiras de fazer, de encaminhar e de
explorar questões e tomar posições na área das artes plásticas e no
campo da música popular.Esta tinha um universopróprio, bem sedi-
mentado, tinha a tradição do samba, que se expandiu e adquiriu uma
identidade muito forte no país. Era uma expressãoe um fenômeno
de massa.No caso das artes plásticas,era diferente,porque o circuito
sempre foi muito menor. Naquela época,sobretudo,a diferençaentre
os níveis de popularidade da música popular e das artes plásticas era
tão grande que seria impossívelfazer coincidir,senão de modo muito
superficial, as ideologias sobre as quais se assentavam.

EF/Rc: Aquele era, inclusive,um momento de muitas críticas ao


sistema de arte. Em São Paulo, por exemplo,havia a "Galeria Novas
Tendências':a "Galeria Rex"...

SIBILA
LF: Essas manifestações de São Paulo, que tinham mais a ver
com os happenings, vieram um pouco depois desta proposição
sobre participação do espectador na obra de arte, que acontecera
muito antes no movimento neoconcreto, e que depois se estendeu
ao longo da década de 1960. O Neoconcretismo já havia trabalhado
com a participação do espectador, com a quebra de categorias ar-
tísticas como pintura, desenho e escultura . Eram propostas muito
libertárias e alguns artistas levaram isso a conseqüências muito
96
1 especiais, como o Hélio. Estou tentando estabelecer a diferença de
cada área. Uma, com o potencial de cultura de massa, como é o caso
da música e do cinema, e a outra, restrita aos limites das paredes
de galerias e museus. Volto sempre para o Neoconcretismo e o seu
encaminhamento para a participação do espectador, que mudou
enormemente os caminhos da arte. O Hélio passou a desenvolver,
depois do movimento neoconcreto, depois dos Bólides,em 1963, e
dos Parangolés,em 1965, uma grande autoconfiança no processo de
inclusão, ou melhor, de participação do outro. Que, em última ins-
tância, era uma atração pela alteridade, urn desejo que passou a ser
estrutural na criação dele. Com isso quero dizer que a receptividade
que o Hélio demonstrava em relação às outras linguagens, como no
caso do Tropicalismo, é parte disso.

EF/Rc: Rompendo com certa tendência ao isolamento, o Hélio se


abriu ao diálogo e à colabora ção.
LF: Exato. O Hélio foi um dos primeiros a apoiar o Tropicalismo.
O primeiro a escrever sobre Caetano Veloso foi Augusto de Campos,
com o texto "Boa Palavra na Música Popular Brasileira': no livro O
Balançoda Bossa.Houve, portanto, esse apoio de São Paulo, da van-
guarda poética concretista. O Rio de Janeiro não gostava porque tem
um coágulo conceitua! anterior ... É complexo. São histórias traun1á-
ticas da história da cultura brasileira, da arte brasileira desse período.
A ruptura entre o grupo neoconcreto do Rio com os artistas e poetas

SIBILA
FOTO OE RUA/ GÊNESE DO PARANGOLÉ, 1964

HÉLIO ÜITICICA COM B52 BÓLIDE SACO 4, 1966-67 "TEU AMOR EU GUARDO AQUI"

SIBILA
concretos de São Paulo foi uma coisa terrível,e creio que hostilidades
e doenças provincianas existem até hoje por conta disso. É um dos
capítulos mais complexos na vida cultural dos dois contextos e con-
seqüentemente pouco saudável para o Brasil.Mas o Hélio soube bem
se desvencilhar disso. Saiu na frente, por assim dizer, quando escre-
veu um texto chamado "O Sentido de Vanguarda do Grupo Baiano",
publicado em 1968, no Correioda Manhã. Um texto longo, no qual
declarou seu apoio e sua adesão.Acho que o Hélio via no grupo mais
98
1 uma manifestação do "território experimental da liberdade", como
dizia Mário Pedrosa. O Hélio tinha esta disponibilidade para o outro
já muito bem azeitada. Eu quero entender que foi isso que aconteceu.
O Hélio fez um parangolé em homenagem ao Caetano chamado
"Caetelesvelásià',outro em homenagem ao Gil, chamado "Gileasà' e
fez também um penetrável, a "Tenda Caetano-Gil': Tudo isso no ano
de 1968. Maior ad1niraçãoque isso, impossível.

EF/Rc: Então não foi só um apoio, a afinidade foi algo que estimu-
lou a sua própria produção.
LF: Lógico,ele viu ali uma fonte de talento, um frescor, uma origi-

nalidade muito grande! E,no mesmo período, fez também parangolés


em homenagem a Zé Celso Martinez Correia, "Guevaluta",a Mário
Pedrosa e à Mangueira. Fez também parangolés em parceria com
Antonio Manuel, Antonio Dias e Rubens Gerchman.

EF/Rc:Linguagens com as quais ele dialogava produtivamente ...


LF: Exatamente, e isso vem do Neoconcretismo, que foi um movi-

mento típico das vanguardas do século xx, com um manifesto, uma


ideologia de ruptura, com muita rigidez naquilo que acreditava, sem
nenhum vacilo.Uma coisa con1muito fervor.Nada do Neoconcretis-
mo resultou em academização.

EF/Rc: E todas as vanguardas tiveram vida breve...

SIBILA
LF: Sim,e as tentativasde superaçãode uma em relaçãoà outra
aconteciamnum espaçode tempo cadavez maiscurto.Isso foi num
crescendoaté chegara uma espéciede crepijStWo. Então,já não havia
muito mais a que se opor.E porquenão haviamuito maiscom o que
romper, a ruptura se converteuem algo mecanizado,para afirmar
algosupostamentenovo. Issoé muitosimplese fácil,bastaque eu não
reconheçaaquiloque vocêacaboude fazercomo uma coisaoriginal
e, através da negação,afirme a mim mesmo.Resumidamente,esse
conflitomarcoua históriadas vanguardasdo séculoxx, desdeo iní- 199
cio dos anos 20 até os anos 60. OctavioPaz falamuito bem disso,do
ocasodas vanguardas.Hoje,ninguémpensamaisdaquelamaneira,o
quenão quer dizerquenão existamcoisasnovas.E comodizAntonio
Cícero,"asvanguardascumpriramo seu papelna arte do séculoxx,
fizeramco1notinham que fazer,enfim,deram certo':

EF/Rc: Mas, depois da experiêncianeoconcreta,o Hélio ainda


via o seu próprio trabalho como movimento de vanguarda?Você
afirmaque a sucessãode vanguardasfoitornando obsoletaa própria
idéia dessa contínua ruptura,e que,de certo modo, aquelaabertura
experimentalera também uma certa imaturidade,ou melhor,que
pelo menos não faziamais sentidoexistircon10antes,de11trode um
movimentode vanguardaclássico.
LF: Perfeitamente.Mas o ideário das vanguardas históricas do

século xx criou uma tradição,e na década de 50 veio dar aqui no


Brasil,na Argentinae em outros lugares.E no mo1nentoem que se
cria un1atradição,os mecanismosnão podem n1aisser os mesmos.
Só que, até os anos 60, quando FerreiraGullarescreveuVanguarda
Postaem Questão,a reflexãosobreas vanguardasnão estavacomple-
tamente.feita.Então,o Héliose mantevecomo artista de vanguarda,
aceitoua palavra,e o conceitocontinuousig11ificando algumacoisa
para ele até o final de 1960. Depois,não mais,porque as condições
eram outras.Nos anos 70, issojá não queria dizer muito mais.O sol

SIBILA
já estava baixando mesmo. Mas eu acho que a questão experimental
se manteve muito viva para definir a condição de uma arte que esta-
belecia confrontos com o mundo institucional.

EF/Rc: Você lembrou muito bem, no início, que Tropicalismo foi


uma expressão cunhada pela imprensa, mas que os tropicalistas, na
área da música, absorveram e usaram esse termo. Eles diziam "nós,
os tropicalistas ,: como dizem até hoje. O Hélio chegou a se autode-
200 nominar tropicalista?
LF: Jamais, porque na verdade o Hélio não simpatizava com a idéia

de se ver confundido com aquele movimento ou com qualquer outro.


Ele fazia questão de deixar clara a diferença entre a sua linguagem e
a visualidade tropicalista, que muitas vezes era uma figuração muito
estereotipada de araras, bananas, palmeiras ... Ou seja , o contrário da
imagética que ele propunha na sua Tropicália, onde havia plantas de
verdade, araras de verdade, e não representaçõe s de pássaros ou de
qualquer outra coisa, o que constituiria uma volta ao figura tivismo, à
representação. O único movimento de arte a que o Hélio foi inteira-
mente filiado foi o movimento Neoconcreto, de 1959 a 1960.

EF/Rc: Voltando às colaborações, você lembrou do s penetrávei s


e dos parangolés em que ele homenageou Caetano e Gil, mas houve
também contribuições no próprio trabalho deles. Eu me lembrou do
cenár io da Gal. Fale um pouco disso.
LF: No final de 1968, Caetano usou uma bandeira feita por Hélio
onde vinha escrito a frase "Seja marginal seja herói" num espetáculo
na boate Sucata, que acabou sendo proibido. Logo depoi s, veio o Al-5 ,

e a prisão de Caetano e Gil. O Hélio seguiu para Londres exatamente


aí, para realizar sua exposição na Whitechapel Gallery, e ficou todo o
ano de 1969, voltando só em 1970. O Hélio voltou muito mais impor-
tante, porque afinal tinha feito uma grande exposição em Londres,
com muita repercussão, e que foi mesmo um mar co na carreira dele.

SIBILA
201

HÉLIO ÜITIC!CA , PARANGOLÉ 17, 1967

Então,na voltaao Brasilrealizoumais projetose começoua trabalhar


com uma idéia de cenografiaque ele chamavade "ambientação». Foi
o que ele fez no show da Gal na boate Sucata,na Lagoa,uma am-
bientação:você entrava por uma área que tinha uma massa muito
densa de fios plásticoscoloridos,era como um cipoal sensorial que
introduzia o espetáculo.

EF/Rc: Era um penetrável.


LF: Isso,e lá dentro ele fez umas áreas com uns filós, uns tecidos

transparentes,atravessandoa platéia, que não gostounem um pouco


e arrancou tudo antesde começaro espetáculo!E a Gal cantavanesse
ambientefeitopara ela.Em seguida,ele faz a capa do disco Legal,um
dos primeiros discos dela.Neste mesmo ano, 1970, ele foi para Nova
York,e me entregou a maquete do show GalDeixa Sangrar,para o
Teatro Opinião,a fim de que eu a executasse.Foi um dos meus pri-
meiros trabalhos profissionaisno Rio.A partir daí comeceitambém
a fazercenografias,ou ambientações,inclusivedo Fa-tal,com o Waly,

SlBILA
na mesma época da Navilouca. A cenografia do espetáculo eram duas
sílabas em tamanho gigante da palavra FA-TAL, assim fragmentada, e
também outra palavra que ele inventara: VIOLETO.

EF/Rc: Essa relação com a nova produção, os novos artistas, ele


manteve até ao fim?
LF: O Hélio manteve até o fim. Os processos de inclusão do outro,
de colaboração, de parcerias, aconteceram ao longo da sua obra , até ao
202 fim. E com o tempo, intensificou, sofisticou e organizou mais e mais
as possibilidades de colaborações com outros artistas, principalmente
com os poetas. Este é um tópico pouco explorado, mas, na minha
opinião, injustamente, ou de uma maneira negligente, pois acho que
o papel da poesia foi enorme, muito importante para o processo de
criação do Hélio.

EF/Rc: E a relação da Navilouca com a poesia concreta?


LF: Décio Pignatari, Augusto de Campos e Haroldo de Campos
foram convidados especialíssimos e fizeram trabalhos exclusivos para
a revista. Foi Torquato quem pediu poemas para os três. Eles sabiam
exatamente que tipo de publicação era, que tipo de grupo estava se
articulando. O Haroldo, por exemplo, falou sobre o cinema de Ivan
Cardoso, um cineasta de super-oito, iniciante, exatamente o oposto de
um cineasta como Glauber Rocha que já era um ícone, um diretor lau -
reado fora do Brasil, e afirmou que "pelo açougue também se chega a
Mondrian ". Era uma idéia ousada dita de um modo ousado. A adesão
dos concretistas foi muito forte e representou, quero crer, uma inter-
locução que eles não tinham mais no Rio de Janeiro. Com a ruptura
do grupo neoconcreto e com a rejeição que despertaram no mundo
acadêmico -literár io brasileiro, eles ficaram .muito isolados em São
Paulo , resistindo e produzindo. E, de fato, quem fez uma declaração
de amor à poesia concreta foi a Navilouca.Ela fez essa operação muito
interessante no ambiente cultural e artístico brasileiro porque aque le

SIBILA
CONTATO DO VTVO/MORTO, BÓLIDE SACO 4, 1966-67

grupo reunido ali estava, de certa forma, resolvendo um problema,


um coágulo cultural muito forte,que tinha acontecidoquase duas dé-
cadas atrás e fora uma ruptura muito séria, llfil problema que perdura
até hoje. O mundo intelectual brasileiro não se recuperou disso, não
superou. Isso ainda é grave Nessa época, os poetas concretos eram
execrados no Rio de Janeiro e em São Paulo. E o repertório deles,o
mundo que elessinalizavam,era muito importante para nós do grupo
da Navilouca.Para nós, a idéia do ideograma chinês,via Pound, e in-
troduzido em língua portuguesa pelastraduções dos poetas concretos
era uma coisa notável.Os concretistas com seus poemas e traduções
realizaram operações intelectuaisde grande qualidade. E a Navilouca,
como grupo e como projeto editorial, soube querer estar perto deles,
quando outros os ignoravam.

EF/Rc: Então foi primeiramente o Rio de Janeiro qt1eabraçou a


poesia concreta?
LF:Exatamente. Não é que estivesse resolvido o problema. Nós
gostávamosde poesia e ponto final.Juntávamoscom outro repertório,

SIBILA
outras coisas.É evidente que isso teve um apoio enorme do Hélio.Ele
foi,inclusive,muito responsávelpor esseresgate,porque depois que o
movimento neoconcreto rompeu com a poesiaconcreta,ele se desfez
e cada artista seguiu seu caminho. O Hélio encontrou com Haroldo
de Campos,em 1967,em Belémdo Pará, ambos convidadospara um
simpósio,e tiveramum encontro muito bom. Esseencontro produziu
uma comunicaçãopoética e artística que nunca se desfezentre eles.

204 EF/Rc: Para além de uma inclinação do próprio Hélio,o diálogo


intenso entre ele, os poetas e outros artistas poderia ser pensado
também como conseqüênciade uma falha da crítica no Brasilcomo
pólo de interlocução?
LF: Talvez.É um pouco difícil afirmar isso, porque... Eu diria que

sim, mas o bom senso hoje faz com que a gente tenha que pensar
por outras vias para tentar encontrar a resposta para uma coisa tão
interessantecomo essa da relação de um artista com a poesia no seu
processo, na sua visualidade. Mas, de fato, o Hélio, a partir de um
determinado momento, depois do movimento neoconcreto, passa
a escrever e a formular de uma maneira cada vez mais rigorosa o
seu trabalho, a teorizar e produzir reflexãocrítica sobre seu próprio
trabalho... Eu tenho a impressão que ele não deixou muito para a
crítica escrever.Inclusive,o panorama crítico da época, dos anos 60 ...
A crítica atuante na imprensa,vamos dizer,era muito maior que hoje.
Existiammais jornais, era um número muito grande...

EF/Rc: Havia espaço maior para as artes plásticasnos jornais, e a


crítica de jornal era encarada de outro modo.
LF: Hoje há resenhas sobre exposiçõese não realmente reflexões

críticas.Estou querendo dizer que talvezisso se expliquepelo fato de


o Hélio ter sido tão refinadoprodutor de reflexãosobre seu próprio
trabalho.Talvezele tenha inibido a crítica da época a escreversobre
o seu trabalho.

SIBILA
EF/Rc: Como você vê a crítica posterior?
LF: A crít ica posterior também não escreveu muito. Mas agora, no
circuito acadêmico, tem havido um grande interesse,) são feitas cada
vez mais teses sobre o Hélio Oiticica em cursos de /líistória da arte.
Afinal, a sua obra é estudada nos grandes museus do mundo.

EF/Rc: Mas vamos pensar no que o Waly fez em relação a estes


trabalhos acadêmicos ...
LF: Aí, o descompasso entre uma situação e outra é enorme. No 205

caso do Waly, havia uma adesão total, não se questionava ou anali-


sava nada. Ele estava vivenciando, se impregnando daquilo e sendo
estimulado por uma obra como a do Oiticica. A crítica, a crítica con-
vencional, ao contrário, tenta não ser passional, não ser inflamada, é
toda reticente ...

EF/Rc: Mas, pegando alguns textos do Hélio, o próprio Estatutodo


TextoSobrea Arte, será que eles não criariam um precedente para um
outro tipo de crítica, menos científica, como a tradição da História
da Arte tenta ser? E, aí, eu diria que seria melhor dissecar menos e
tentar vivenciar mais.
LF: Eu, pessoalmente, acho, concordo com você.

EF/Rc: E a incorporação da palavra nos objetos construídos pelo


Hélio?
LF: Eu acho muito interessante a relação do Hélio com a poesia.
Cabe lembrar que o Hélio teve uma formação muito sofisticada,
atípica mesmo, desde criança, e eu acho que ele tinha desde muito
tempo uma apreciação poética bem consolidada. Mas o fato é que
depois. do momento neoconcreto, ele fez aquela grande maquete,
Projeto Cães de Caça,de 1961, que seria um imenso labirinto, uma
coisa praticamente utópica, que permaneceu em maquete por ser
muito difícil de construir. Lá, ele incorporou o "Poema Enterrado»,

SIBILA
de Ferreira Gullar, e o «Teatro Integral",do Reinaldo Jardim. Come-
çou, então, uma hístória com a palavra e com a poesia, uma relação
com a poesia que passou a ser estrutural, eu diria. Há um processo
que tem a ver com a questão da cor e outras explorações e verten-
tes dentro do trabalho do Hélio, mas a poesia está sempre lá, nos
conceitos que ele inventou e desenvolveu. A palavra Tropicáliafoi
inventada por ele! A PurezaÉ um Mito é o nome de outra cabine. É
um poema. Vários bólides estão apoiados e integrados com palavras,
206 com poemas. Eu nunca me refiro àquilo como texto, porque acho
fundamental chamar a atenção para a participação da poesia. É mais
importante falar da "qualidade poema" no trabalho do Hélio do que
no "elemento formal texto".

EF/Rc: Você faria uma distinção entre o que seria um texto como
"Esquema Geral da Nova Objetividade" e um poema?
LF: Sim, sim. "Da AdversidadeVivemos"é um poema, está dentro

de um parangolé, você vai vestir o parangolé e vai ler aquele poema.

HÉLIO ÜITICICA, PARANGOLÉ 21, 1968

SIBILA
"Incorporo a Revolta" também é outro poema. "Guevaluta Baby,, é
outro poema, entende? "Seja Marginal, Seja Herói" é um poema. Eu
não chamaria de textos. Formalmente são poemas.

EF/Rc: Então na obra do Hélio há uma escrita crítica e uma escrita


poética?
LF: Sim, você disse muito bem.

EF/Rc: O caminho do Hélio foi em direção à materialidade e à cor- 20 7


poreidade. No entanto, a palavra parece contrariar, à primeira vista,
essa dimensão da matéria . Eu penso então num bólide em que se lê:
"Do meu sangue / do meu suor / este amor viverá".A escrita, ali insta-
laria uma sugestão poética, portanto, uma dimensão abstrata, subjeti-
va. Isso contraria o desejo de instaurar experiências sensoriais?
LF: De forma alguma. Acho que, ao contrário, acrescenta, impul-

siona, energiza o sensorial. São descobertas, invenções que acontecem,


como no exemplo desse bólide que você citou. Há um papel da poesia
aí muito evidente, e que vai muito além do que passou a ser chamado
interdisciplinaridade de áreas de conhecimento, que é outra coisa. A
questão do Hélio era o multissigno.

EF/Rc: A forma da escrita, a letra como desenho, parece não ter


sido explorada no trabalho do Hélio. Embora haja uma variação de
um tipo de letra para outro, parece não ter havido uma pesquisa na
direção de uma tipografia mais original ou mais pessoal.
LF: Não diria que acontece completamente assim. A escrita, em

muitos parangolés e bólides, não faz uso de tipologias existentes ne1n


de um grafismo elegante da ordem do desenho industrial. Mas ele, que
era um fino desenhista, inventou tipologias em outros poemas. Há al-
guns deles escritos com uma tipologia muito elegante, até muito clás-
sica, requintada. Na maioria dos parangolés tudo está escrito à mão.
"Da Adversidade Vivemos" é uma coisa de caligrafia gestual, bruta ...

SIBILA
EF/Rc: Eu diria que há uma apropriação do mundo popular...
LF: Pode até ser. Mas o certo é que não há nenhuma preocupação

com espaço entre urna letra e outra, ou com o tamanho, ou com o uso
de caixa alta e caixa baixa, enfim, as leis gráficas,embora ele també1n
tenha feito isso,como eu disse,coisasgraficamentemuito bem elabo-
radas, com tipologiascriadas por ele.Em algunspoemas visuais,como
"BangúMangue':a tipologiaque está ali não tem em catálogo,foi feita
por ele, como é o caso também de "Escrerbuto"e "Agripinaé Roma-
208 Manhattan': que são poemas visuaisjá apoiadosem tipologiasrequin-
tadas graficamente.Ou seja,a forma da escrita,a letra como desenho,
foi explorada no trabalho de Hélio de maneira diversificada.

EF/Rc: Jáouvi você fazer uma análisemuito interessanteda relação


do Hélio com a cor...
LF: Eu acho que o Hélio, mesmo com todas as variantes de con-
ceitos e explorações, nunca deixou de ser um pintor. Pode parecer
paradoxal o que eu estou dizendo, porque pode soar como uma
formulação descabida diante dos caminhos da arte contemporânea.
Mas eu quero chamar a atenção para o fato de que a questão da cor é
uma questão dos pintores. E, mesmo com todas as variações e todos
os c~minhos que a pintura tomou, e com as formulações que o Hélio
fez acerca da ruptura com a pintura, da destruição do quadro, enfim,
de tudo isso,eu acho que, se você olha toda a trajetória dele, até as úl-
timas proposições,elas são proposições apoiadas fundamentalmente
na cor. É um trabalho de pintor.

EF/Rc: Nas obras de muitos artistas, parece haver um caminho


em direção ao silêncio.E o Hélio,ao contrário, foi sempre em direção
à fala. Ele tinha necessidade de intervir, exteriorizar,por isso tantas
palavras, grafismos,poemas...
LF: Sim, havia uma necessidade muito grande de falar,fazer e for-

mular um discurso, uma reflexão,um proposição. Ele próprio estava

SIBILA
sempre falando, sempre refletindo, não parava de formular coisas.
Era uma característica dele, uma marca. Talvezisso explique o fato
de o Hélio escrever tão bem. Ele sabia pensar e exteriorizar o seu
pensamento através de texto ou da fala.A visualidade e a verbalida-
de estavam sempre juntas, eram modos expressivoscomplementares.
Um exemplo disso é quando ele se apropria de trechos de Gertrude
Stein em uma de suas obras, o penetrável "Filtro",incluindo a voz
dela gravada dizendo: "Não consigo me imaginar sem estar falando
e pensando ao mesmo tempo".Ele se identificava muito com esta 209

formulação, com esta fala sobre a simultaneidade.

EF/Rc: Nos parangolés, o Hélio chega à dança numa espécie de


ponto alto de um processo de desintelectt1alização.Como conjugar
essa vertente com o desejopermanente que há no Hélio de conceitua-
ção e racionalização do trabalho?
LF: Eu acho que só há uma explicação para isso: talvez seja a sín-

tese poética mesmo. No período neoconcreto, o Hélio estava apoiado


em uma tradição, na vertente construtivista, nas passagens da cor, na
questão da pintura, na relação com o quadro. Mas depois ele enve-
redou por um caminho completamente singular. Quando ele criou
o bólide e o parangolé, estava formulando a partir de um universo
individual. Ele foi absolutamente dono de uma coisa nova, pois o
bólide não é uma decorrência das demarchesda escultura moderna.
Ele fundou uma ordem dentro do universo da arte. O mesmo se deu
com o parangolé. Decorria, daí, eu acho, un1certo descompasso com
as coisasem volta e uma solidão.Isso explica,talvez,a necessidadetão
grande que ele tinha de formular e escrever o tempo todo.

Ef /Rc:A impressão, acho, que muita gente tem quando vê um


penetrável, um parangolé, é a de estar dia11tede um artista intuitivo.
E quando essa mesma pessoa vê os projetos daquilo tudo, constata
que havia ali um artista que trabalhava de modo tenso e muito bem

SIBILA
equilibrado entre o impulso,a inspiraçãoe mesmo uma certa loucura,
e uma força extremamenteracional,rigorosa,construtiva.Vocêusou a
imagem da síntese poética, que me parece interessa11teaprofundar.
LF: Quando você lê os textos do Hélio,desde os primeiros textos,

percebe logo o seu tom intelectual,sério e disciplinado.Quando você


diz isso, tem razão, porque o Hélio Oiticica era muito convencional
em termos de texto quando ele projetava. As suas idéias não eram
nada convencionais,mas a forma do discurso é exatamente igual a de
210 outros escritores.Não é um texto poético. É um texto técnico.

EF/Rc: Éimportante diferenciar esse tipo de texto daquele que


você chama de poema.
LF: Exatamente.Se atentarmos para uma das suas obras mais céle-

bres,o bólide em homenagema Cara de Cavalo,vemos que as palavras


do Hélio ali - "Contemplai o seu silêncio heróico / aqui está e aqui
ficará/ Contemplai o seu silêncioheróico»- são de fato um poema. E
ele mesmo dizia ter encontrado inspiração,e, provavelmentecoragem,
para preparar aquela homenagem, num poema de Milton,"Lycidas",
que é uma homenagem a um amigo marinheiro que morreu no mar.
Penso que na obra de Hélio é flagrantea inclinaçãopara a poesia.Não
estou querendo elevá-lo à categoria de grande poeta. Quero apontar
para a questão fenomenológica,para a presença de uma linguagem
em outra, e como ele soube articular isso muito bem.

EF/Rc: Dos metaesquemas até os projetos dos Penetráveis,o fazer


artesanal foi desaparecendo.E hoje fala-semuito do fim do ateliê,com
as novas mídias. Então surge a pergunta: como era o ateliê do Hélio?
Para ele, como era o fazer e o ateliê?
LF: É interessante você falar da dissolução do ateliê. Se o Hélio
ouvisseuma coisa do tipo "Amanhãvou no seu ateliê':iria ficar insul-
tado com a associaçãodo espaço onde ele morava com algotão ligado
à idéia do mundo acadêmico da pintura. Seria a mesma coisa que

SIBILA
perguntar a ele se estavapintando muitas telas ultimamente,se o ca-
valete estavaneste ou naquele lugar,por aí assim.Havia uma aversão
à palavra,à idéia,sim, mas, no fundo, o lugar de trabalho não deixava
de ser ateliê,embora com o encaminhamentopara o ambiental,para
os penetráveis,os ninhos. Sem dúvida,o sentidP-P--úblico das obras foi
avançando e a noção clássicade ateliêjá não faziasentido.Ao mesmo
tempo, o espaço em que ele morava era um penetrável,era um ninho.
Ou seja,ele transformavao lugar em que vivianum espaço análogoàs
suas proposiçõespara obras ambientais.Não havia, por exemplo,qua- 211

se nada utilitário,praticamentesó a cadeira dele.A visita ficavaem pé


mesmo.E o Hélio lá, com sua prancheta cheia de maquetes,esboços,
estudos pregados na parede, pilhas de livros,objetos em construção,
cheios de anotações de "não toque':"não chegue perto':.. Vocêsentia
que ali tudo estava em andamento.

EF/RC: O Hélio catalogou minuciosamente cada uma das suas


realizações,e também classificoua produção de outros artistas em
textos como o "EsquemaGeral da NovaObjetividade': Fale um pouco
sobre esse aspecto.
LF: Isso aí o Hélio herdou do meio familiar em que foi criado. Do

seu avô,José Oiticica,o anarquista e filólogo,mas, principalmente do


seu pai, JoséOiticica Filho,fotógrafo,pintor e cientista,que era muito
metódico e ensinou ao Hélio e aos seus irmãos um sentido de orga-
nização,de planificaçãode idéias e atividades.O Hélio desenvolveu
isto a níveisextremados.A existênciado seu arquivoé prova evidente
do quão obsessivo ele era com classificações,datas, lugares, etc. Já
falei outras vezes sobre isto, da maneira como ele soube organizar
e colecionar a sua obra, já que praticamente nada vendeu ou doou.
O seu arquivo contém toda a intimidade de seu processo criativo e
esse seu interesse muito organizado pela obra dos outros artistas é
parte de seu pensamento.As colaboraçõese a importância que deu à
interlocução e ao diálogo são praticamente um valor à parte em sua

SIBILA
obra, e podemos dizer que a interlocução foi estrutural na sua obra
como um todo.

EF/Rc: Diante das polaridades existentes no próprio Hélio e em


sua produção, como é cuidar da preservação dessa obra? Quais são
os riscos e os limites de institucionalização dessa obra?
LF: Preservar a obra de um artista como o Hélio é seguir os concei-

tos próprios que ela possui, ou seja, seguir o espírito da própria obra,
212 sem acrescentar interpretações. Feito isto,você tem a obra que ele pro-
duziu e deixou. E que deve ser mostrada tal como ele criou. Mostrar
o que a obra é. Cada peça possui sua ordem conceitua! própria e isto
tem sempre que estar claro em exposições e também na difusão da
obra através de publicações de textos e imagens.As ordens conceituais
da obra de Oiticica possuem uma nomenclatura própria. Basta citar
o caso dos bólides e parangolés, por exemplo,onde se tem uma gama
de variantes dentro do mesmo conceito que deve ser cuidadosamente
observada, senão as sutilezas e variantes de um mesmo conceito não
serão percebidas. Quando se apresenta a obra de Oiticica numa ex-
posição, o que menos conta durante a montagem é o olhar formalista.
Deve-se primeiro entender sua ordem conceituai e é esta que guia, na
maioria das vezes,a questão formal. Quanto à segunda pergunta, sobre
a institucionalização da obra de Hélio Oiticica,eu acho uma das coisas
mais tolas que andaram levantando contra sua obra ultimamente. E,
é preciso dizer, acusação feita apenas no Brasil.É um argumento que
não tem razão de ser, pois institucionalizar o acervo de um artista é
querê-lo e trabalhar para preservá-lo como patrimônio de uma cul-
tura. Quando um artista ocupa um lugar especial em uma cultura,
o que de fato se quer é preservá-lo. Como preservar sem instituir?
Que contra-senso seria pensar que a institucionalização de uma obra
poderia reduzir ou alterar os seus significados.É um erro gravíssimo
não perceber que, como quer que tenha sido a maneira que o Hélio
administrou e organizou a sua obra, isso ele o fez pessoalmente, em

SIBILA
vida. E como qualquer artista, qualquer obra, terá que enfrentar sua
situação póstuma. A perspectiva póstuma não altera a substância da
obra e, uma vez que sejam conhecidos,estudados e_;:espeitados os seus
fundamentos, não vejo razão para se falar em co11tradiçãoconceituai
ou formal. Não se pode trabalhar uma obra como a do Hélio se1nessa
clareza. O contrário seria ocultar sua produção, seu pensamento, sua
arte, tornando -a inacessívelao mundo, deteriorando-a fisicamente e
cobrindo-a de mistificações.Se ele foi contra museus e instituições,
isto era uma posição ideológica necessária para ele enquanto fazia a 213

defesa do seu próprio processo criativo em contraponto com o mundo


oficial das artes. É claro que existem algumas situações institucionais
hoje que poderíamos dizer que são completamente contrárias a uma
arte como a do Hélio, e as pessoas têm todo o direito de se perguntar
se Hélio Oiticica participaria dessa ou daquela exposição, evento ou
publicação. Mas isto é outra questão.

EF/Rc: Como se dá a produção - da decisão de fazer à execução


propriamente dita - de uma obra da qual existe apenas um projeto
elaborado pelo Hélio?
LF: Isso se aplica principalmente às obras ambientais, aos pene-

tráveis que o Hélio criou. Construir uma dessas obras que o Hélio
deixou em maquete, em planta-baixa,com instruções,é uma operação
que depende sempre da fidelidade co1n que se seguem as informa-
ções que ele estabeleceu. Há ainda vários penetráveis que não foram
construídos, porque são complexos, caros e exigem disponibilidade
de espaços públicos. Mas, existindo recursos e condições para cons-
trução de qualquer um deles,não vejo dificuldade em se levar adiante,
qualquer construção.

EF/Rc: Como é a produção de réplicas de obras existentes, sobre-


tudo as manuseáveis e penetráveis, e sua incorporação em mostras
no Brasil e no exterior?

SIBILA
LF: Todas as réplicas de obras do Hélio foram realizadas pelo
Projeto Hélio Oiticica. Eu mesmo já realizei várias delas. Não é uma
questão simples e já houve muita controvérsia sobre o assunto. Quero
esclarecer que todas as vezes que executamos réplicas estamos aten-
dendo a uma questão conceitua! muito importante na obra do Hélio,
que é a da participação do espectador na obra de arte. Os parangolés
são o exemplo mais crítico desse problema. Se você quer fazer uma
apresentação de parangolés, não pode utilizar as peças originais, pois
214 haveria o risco de destruí-las por completo. E o que é o objeto pa-
rangolé senão tecidos, plásticos e materiais diversos? A peça original,
gasta pelo tempo, não corresponde mais ao momento em que foi feita.
Mas a idéia, o princípio e o conceito estão inteiros na confecção da
réplica,que segue fielmenteo original e que pode demonstrar o que a
obra é, tal como foi elaborada pelo Hélio,para ser vestida livremente
pelo espectador.É assim que vejo a sobrevidade obras como os paran-
golés:através da réplica,lembrando que mesmo o chamado "original"
já não possuía a aura do insubstituível que vigorava na antiga idéia
sobre o objeto de arte. De qualquer modo, este é um aspecto, às vezes,
muito complicado de se lidar, principalmente com instituições que
não estão atentas às exigênciasconceituais de obras de artistas como
o Hélio. Mas também não se pode pensar em replicar todo o acervo
de suas obras simplesmente porque originalmente ele as construiu
para serem manipuladas. É u.m dilema póstumo que muitas vezes a
sua obra enfrenta.

SIBILA
;

HELIO OITICICA - UM ESCRITOR


EM SEU LABIRINTO
FredericoOliveiraCoelho

Não há linha reta, nem nas coisasnem na linguagem. 215


GILLES DELEUZE, A Literaturae a Vida, 1997.

Prefiromeus textospoéticos,que nascem na rua,


em toda a parte.
HÉLIO 01T1c1cA,Londocumento,27 de agosto de 1969

1. Trabalhar com a obra de Hélio Oiticica é entrar em


um labirinto. Esse já gasto lugar-co mum para tratar seu
trabalho e sua trajetória ainda se impõe como a princi-
pal forma de compreender os incontáveis meandros e
quebradasde sua vasta produção. Foi a forma escolhida
por ele próprio para construir e definir sua obra e sua
vida, anunciando a busca pelo grande labirinto desde o
começo de sua trajetória. Em pouco mais de trinta anos
de produção, pintura, escultura, instalações, performan -
ces, cinema, música popular, cenografia, jornalismo e
literatura fizeram parte de seu universo criativo, trazen -
do em suas propostas e expres sões o dado do labi rinto
como mote e mito. Labirintos povoaram sua linguagem,
seus interesses e sua biografia, deixando para qualquer
interessado diversas portas de entrada e saída. Nesse
breve artigo, nossa entrada e recorte será o escritor
Hélio Oiticica.

SIBILA
HÉLIO ÜITICICA FOTOGRAFADO POR SEU PAI JosÉÜITICICA, RIO DE JANEIRO, 1954
2. Oiticica foi um incansável produtor de textos. Textos dos mais
diversos tipos, relativos aos mais diversos temas, com ou sem interlo-
cutores explícitos.Eles foram escritos ao longo de praticamente toda
a sua carreira, marcando um dos principais traços do seu trabalho:
a relação intrínseca entre obra, vida e memória. Além de sua obra
plástica, Oiticica construiu uma trajetória em que suas vivências e
experiências pessoais transbordavam para o cerne de suas preocu-
pações artísticas e intelectuais. Em julho de 1964, ano em que sua
carreira tomou o atalho das ladeiras da Mangueira,ele afirma no texto 21
7
PoéticaSecretaque seus escritos se localizavamno pólo oposto da seu
trabalho plástico. Enquanto naquela época a busca de seus primeiros
Bólides,Núcleose Penetráveisera justamente se descolar do dia-a-dia,
ficando "acimà' do efêmero e dos eventos passageiros ancorados no
cotidiano, na "poética secreta" de seus cadernos era justamente essa
vivência"mesquinha" que deveria ser eternizada. Nesse mesmo texto,
completava suas afirmaçõessobre a escrita reconhecendo não ser po-
eta, mas destacando: "uma imperiosa necessidade me leva à expressão
verbal" (Oiticica, 1964).
A experiênciana arte e, principalmente, no mundo era um tema
de ação e reflexão constante para Oiticica, definindo seus princípios
éticos e suas preferências estéticas. Sua filiação aos postulados
1
cons-
trutivistas e a participação no movimento neoconcreto no fim dos
anos de 1950, sua subida transformadora à Mangueira em 1964, seu
contato com as drogas, sua opção pelo homossexualismo,sua perma-
nência de quase dez anos em Nova York durante a década de 1970,
sua relação conflituosa com o mercado e a crítica das artes plásticas e
outros elementos ligados às suas escolhas pessoais, eram trabalhados
visceralmente em sua obra. A incorporação sistemática dessas expe-
riências nos trabalhos realizados nos mostra um artista que viveu no
limite da tensa relação entre arte e vida.
Os textos de Oiticica são resultado de uma prática corrente em
sua trajetória artística, em que cada obra era acompanhada de uma

SIB I LA
inten sa produç ão textu al auto -reflexiva desde os seus mais tenros
anos. Os trab alho s realizados (ou não-rea lizados, porém proje tados)
eram produzido s simultaneamente à sua reflexão teórica escrita. Um
dos principais conhecedores e estudiosos de sua própria obr a (talvez
o maior) , Oiticica constituiu de forma metódica e solitária o maior
acervo documental sobre seu trabalh o. Ele, como outro s da sua ge-
ração, manteve a crença na auto-explicação e através da pr ática do
arquivo pessoal investiu na fabricação de sua própria po sterid ade.
218 Com esta estr atégia, reproduzia um pensamento de Glauber Rocha,
um dos seus interlocutores mai s instigantes ao longo da vida que,
segund o Rogério Duart e (parceiro de ambos), afirma: "inventaria-te
antes qu e os outros te tr ansformem num mal-entendido" (Duarte,
2003: 13). A perspectiva do arquivo enquanto uma forma de depo-
sitário da "verdade" sobre a vida e a trajetór ia intelectua l de alguém
foi levada a cabo por Oiticica de forma rigorosa. :É o arquivo não só
como lugar de memória, mas tamb ém como local de autoridade sobre
os usos dessa memória.
Sobre os escritos relacionados aos seus trabalhos artísticos e de
seus pares, já bastante difundido s, percebe-se em sua maioria que, a
partir de um a variedade de textos explicativo s, verdadeiros guias com
"instruç ões de uso",o interlocutor em evidência é alguém claramente
intere ssado em seu pro cesso criativo. Ao lado dos textos técnicos, que
trat am especificament e das trajetórias de conce pção e realização da s
obras , encontram -se reflexões teóricas sobre os aspectos formais e
estéticos de seu trabalh o e de terceiros. Para ficarm os em algun s dos
mais conhecidos escritos desse tipo, podemos citar os textos "Meta-
esquemas", de 1957/58, "Cor, Tempo e Estrutu ra" de 1960,''Anotações
sobre o Parangolé ", de 1964,"Esquema Geral da Nova Objetividade"
de 1966 e "O Aparecimento do Suprasensorial'' , de 1968'.

1. Sobre esses textos voltados para o universo das artes plásticas.já existem grandes trabalhos
de an:Uise publicados, como os de Celso Favaretto, Luciano Figueiredo e Guy Breu. Uma
boa iniciação nos textos de arte de Hélio Oiticica é a coletânea Aspiro ao Grande IAbirinfo,

S1B1LA
Masalémdosartigose ensaiosem quese dedicavaao seu processo
de criaçãoe às conseqüênciasde suasobras,Oiticicatambémescre-
veu outros textos que se inseriam em outro(s) tipo(s) de registro(s).
Essestextos não versamsobrecríticasde artee nem são manifestos
ou propostasde trabalho. Na própria classificaçãodo autor,são textos
práticosem que o processode escritasai da esferado teórico da arte e
aporta no espaço arriscado do ficcional.Contos,poemas,memórias,
crônicase outrasformashíbridassão algunsdos escritosqueOiticica
produzincessantementeao ladode seusestudose reflexõesacercado 2 19

campo da arte e da cultura mundial de seu tempo.Aqui,novamente,a


metáforado labirintose apresentaem sua obra.Eleescreviaem cader-
nos e mais cadernosde notastextosfragmentários, batiaà máquina
relatos urgentes e desordenados,criava neologismosem diferentes
línguase registravaidéiasembrionáriasem todas as direções.gerando
um mosaicode estilose referências,de temase influências.Viveuper-
manentementefazendocópiasdatilografadas na máquinade escrever,
criandopastas, formatandoe revisandoesses textos,documentando,
selecionandoe guardandooriginais,em um processoautodevorador
no qual"... tudo que ele escreveé, portanto,integrantedo corpusde
sua obra. Seu arquivoé inseparáveldela"(Figueiredo,2002).
Em um levantamentoinicial desses textos práticos,destacam-
se alguns fundamentais como o já citado "Poética Secreta" (1964),
"Autor"(1969),sua série de "Contos"(1969),"Londocumento"(1969),
"Futesambol(ão)"(1970),"Barnibilõnia" (1971),"Homage to my Father"
(1971),poemascomo"Acqua " (1968),"Margintropicália"
(1968),"Abbey
Road"(1970),"0relinha"(1970)e"úbber Cocá' (1972),hipertextos jor-
nalístico-poéticoscomo"Lambera Gilete"(1972), "Leork"(1972),"Clou-
ds in my Coffe"(1973),"Bodywise" (1973),além de muitossem titulo e
de diversascartas e artigospara TorquatoNeto,DanielMás,WalySa-
lomão, Haroldode Campos,CarlosVergarae LygiaClarkentre outros.

em 1986pelaRoccoe atualmente
publicada forade catálogo.
Sobreos trabalhospublicados
queme refiro,conferirbibliografia.

SIBILA
Essa relação de Oiticica com o universo da literatura e da poesia
- da leitura e da escrita em geral- sempre foi intensa. Neto de um gra-
mático e precursor do anarquismo no Brasil - José Oiticica - e filho
de um cientista entomólogo e fotógrafo de vanguarda - José Oiticica
Filho -, sua formação intelectual foi rigorosa (inclusive tendo sido
praticamente educado de forma privada, por sua família, com uma
breve passagem por colégios norte-americanos quando o pai recebe
uma bolsa da Fundação Gugenheim na década de 1950). Mantendo-se
220 até o fim da vida como um leitor diferenciado, era fluente em francês
e inglês e cruzava gêneros e autores, indo da filosofiaà poesia, acumu-
lando referências e desenvolvendo apropriações estilísticas e teóricas
para suas próprias incursões no exercício da escrita. Não é à toa que
alguns dos maiores interlocutores de Oiticica ao longo da sua carreira
foram em sua maioria ligados às letras e ao universo da literatura e
da crítica, como Rogério Duarte (na época poeta e filósofo),Torqua-
to Neto (poeta, jornalista e letrista), Waly Salomão (poeta, ensaísta
e letrista), Haroldo de Campos (poeta, tradutor, crítico e ensaísta)
ou Silviano Santiago (poeta, crítico, romancista, tradutor e ensaísta).
Essas amizades criativas, essas interlocuções intelectuais balizadas no
campo da escrita e do discurso literário faziam com que Oiticica am-
pliasse constantemente seu arcabouço intelectual ~ suas influências,
além de permanecer envolvido com as questões relativas a esse uni-
verso. O Paideuma concreto (Pound, Mallarmé, Joyce,Sousândrade,
Maiakóvski), Gertrude Stein, Nietzsche, Freud, Lévi-Strauss, Henri
Bergson, Octavio Paz, Husserl, Guy Debord, Merleau Po11tye Marcel
Duchamp são alguns dos autores e leituras que o artista plástico ad-
quiriu ou aprofundou a partir desses contatos.

3. Entrando pela porta da escrita no labirinto criativo de Oiticica,


não devemos perder de vista a intensa relação do seu trabalho de
artista plástico com a palavra. Ao lado de Rubens Gerchman, ele foi
um dos principais precursores dessa abordagem no país. Suas obras

SIBILA
já incorporavam, desde os anos de 1960, a palavra como elemento
constituinte dos usos e significadosque ela pode gerar no campo das
artes plásticas. Sem dúvida, os mais famosos trabalhos de Oiticica
com as palavras são seus Parangolés,cujas frases-poemas trazem,
como demonstrou Luciano Figueiredo em trabalho recente, o papel
da poéticacomo um aspecto estrutural de sua obra. "Do meu sangue
do meu suor esse amor viverá»(1965),«Da tua pele brota a umidade da
terra do teu gosto/o calor'' (1967),"TeuAmor eu Guardo Aqui"(1967)
e '1ncorporo a revolta'' (1968) são alguns dos "poemas" que Oiticica 221

giravanas suas famosascapas ao lado de passistas da Mangueira.Ou-


tros exemplosde obras de Hélio Oiticica que se utilizavamda palavra
como elemento constituinte foram o "BólideCaixa22 "Mergulho do
Corpo" e o Bólide-Caixa (ou Poema-Caixa)18 como o feito em ho-
menagem a Cara de Cavalo.
Aliás,é notório que foi a partir da sua subida à Mangueira em 1964
que Hélio Oiticica deu uma guinada em sua carreira, impregnando
sua arte e sua vida com as experiências de fazer parte da comunida-
de da favela,de sua escola de samba e do cotidiano dos bandidos e
malandros locais.Oiticica chegou à Mangueira através de um convite
do artista plástico Jackso11Ribeiro, assistente de Amílcar de Castro
na feitura dos adereços e carros alegóricos da Escola de Samba Os 2

Parangolés,o penetrável Tropicáliae diversos trabalhos de Oiticica


feitos após esse momento de descoberta da Mangueira são direta-
mente influenciados pelo seu universo de samba e marginalidade,
precariedade material e potência desestabilizadora da ordem. Du-
rante quatro anos seguidos (1964-1968),participou da ala de passistas
"Vêse entende»em desfilesde carnavale apresentaçõesda Mangueira,
conheceu diversos morros cariocas,visitou amigos em prisões e não
parou .de criar obras em um dos seus períodos mais profícuos como
artista plástico.A permanênciada Mangueira na trajetória de Oiticica

2. Sobre a relação de Hélio Oiticicacom a favelada Mangueira,existembons trabalhos como


o de Paola JacquesBernstein (2001) e WalySalomão(1996).

SIBILA
é decisiva em diversos momentos posteriores de sua vida. Diversos
escritos, mesmo feitos em Londres e Nova York durante os anos de
1970, tratam de forma visceral e delirante os seus tempos de Man-
gueira, de convívio com o morro e sua população, com as drogas e a
bandidage1n, e, principalmente, com a Escola de Samba.
Em dezembro de 1968, poucos dias antes do AI-5, Hélio Oiticica
embarca em um navio para Londres com Torquato Neto. O intuito
era a realização de sua famosa exposição na White Chapel Gallery,
222 ocorrida em 1969. Em Londres, Oiticica produz uma série de escritos
e contos, ampliando sua produção. Em uma carta para Lygia Clark,
escrita dois meses antes dele partir para Londres, pode-se constatar
seu crescente interesse pela escrita:

Estou escrevendo n1uito, com certas influências: de Rogério [Duarte], no


inicio, do Ginsberg, etc., mas creio que há coisas no que escrevo: são textos poé-
ticos mesmo quando tratando de arte: não gosto mais de teses ou descrições
filosóficas: construo o que quero con1 a in1agem poética na máxima intensidade
segundo o caso.

Após um ano de exílio na Europa, volta ao Rio de Janeiro em


1970. No final do ano, obtém uma bolsa da Fundação Gugenheim e
parte para Nova York no ano seguinte. A partir de sua ida, Oiticica
passa a deslocar sua criação plástica para a produção incessante de
projetos e sugestões de trabalhos para terceiros, colocando a escrita
no centro do seu processo criativo. Com poucas exposições e muitos
trabalhos elaborados e não-realizados, sua estadia em Manhattan
trouxe à tona uma série de obras que se realizavam nos próprios
textos de elaboração. Cadernos, gavetas, fichários, arquivos, tudo isso
se transformava em parte ativa da sua obra. Surgem os Héliotapes,as
Proposições,os Poemas Visuais,trabalhos onde a palavra é o cerne da
questão, seja reificando sua importância ao atribuir valor de obra a
entrevistas realizadas (caso dos Heliotapescom Harold o de Campos
e Julio Bressane), seja situando a escrita de uma proposta de trabalho

SIBILA
como própria parte da obra (caso das proposiçõesde Oiticica para
nomes como CarlosVergara,SilvianoSantiago,Nevillede Almeida e
Waly Salomão), seja assumindo a linguagem do poema como parte
integrante de sua obra visual (caso do trabalho MangueBangue).

4. De acordo com uma perspectiva teórica da crítica literária con-


temporânea, a literatura é, antes de tudo, uma experiência,um estar
no mundo. O ato de escrever é uma ação fronteiriça,localizada no
tênue espaço do entre,do devir,enfim, dofora.A experiênciado fora, 2 23

se vista como uma prática, vai ser encontrada nos textos de Oiticica
em que ficam claras suas intenções "literárias"e suas interlocuções
com o campo da escrita. Textos em que a idéia de uma fabulaçãoe
da existência dessefora se fazem mais presentes, como é o caso dos
seus "contos"e alguns de seus "poemas",e textos cuja escrita dá conta
de seus diálogos e influências intelectuaise literárias, espécie de hi-
pertextosem que se podem traçar alguns percursos do pensamento
e estilo de Oiticica.
Na série de textos de Oiticica, se destacam aqueles cujo intuito
claro era o ato da escrita enquanto fabulação,e não apenas como
prolongamento do trabalho plástico que ele desenvolvia paralela-
mente em outros planos de criação. Surge assim para o campo da
crítica literária uma nova seara de trabalhos e reflexõesacerca desse
novo "autor",estrangeiro às hostes das letras, mas participante ativo
de um destacado setor do campo da literatura brasileira dos anos
de 1970. Isso é demonstrado, por exemplo, através da sua intensa
interlocução com dois autores de destaque desse período (cada um
com suas especificidades),Haroldo de Campos e Waly Salomão.Em
um trecho de uma das cartas de Hélio Oiticica para Lygia Clark,
escrita no efervescente ano de 1972, ele relata seus últimos contatos
em Nova Yorkcom a literatura e com os irmãos Campos, afirmando
estar" ... lendo à beça as coisas que eles enviam" (Figueiredo, 1998:
219). Foi em Nova York com Haroldo de Campos - freqüentador

SIBILA
assíduo da academia e das universidades norte-americanas no iní-
cio dos anos de 1970 - que Oiticica gravou um dos seus Héliotapes,
ampliou suas leituras de Ezra Pound e Souzândrade ( o Inferno de
Wall Street foi um dos textos que mais desdobramentos tiveram
na obra de Hélio em Nova York, sendo inclusive o mote para seu
filme experimental Agripino é Roma-Manhattan) e se aproximou
de intelectuais d? porte de Marshall McLuhan e Quentin Piore ( de
quem tornou-se amigo pessoal). Já com Waly Salomão, o poeta
224 baiano sempre deixou claro em suas entrevistas e depoimentos que
foi Hélio, ainda em 1970, o responsável pela sua "profissionalização"
ao ler seus primeiros escritos e incentivá-lo a investir na poesia,
propondo inclusive a publicação de um livro (que sairia, em 1972,
com o título Me Segura que Eu Vou Dar um Troçopela José Álvaro
Editores). Waly foi um dos que acompanharam de forma estreita os
trabalhos e reflexões de Oiticica através de uma constante troca de
cartas poéticas durante os anos de 1970.
A relação intensa com a leitura e seu interesse permanente pelas
ações dos intelectuais ligados ao campo literário deu a Oiticica a
possibilidade dessas interlocuções romperem o limite da mera influ-
ência para se transformarem em ações concretas no campo da escrita.
Apesar da maioria de seus textos serem crivados dessas influências
- formando esse hipertexto do pensamento intelectual de sua época
e de todas as outras que lhe interessasse - alguns escritos assumem
muitas vezes caráter autônomo, afastando-se dos comentários e refle-
xões cotidianas para demonstrarem luz própria. Esses textos se des-
tacam do resto de seus outros escritos por assumirem uma proposta
abertamente poética ou ficcional.

5. Por que Hélio Oiticica escrevia textos poéticos? Como forma


de nos guiarmos neste labirinto de letras, podemos partir dessa per-
gunta generalizante para mergulhar no impulso criativo de Hélio
Oiticica em relação à escrita. Mas como debater qual o estatuto de

SIBILA
seus textos se Oiticica não se insere no campo da literatura? E, se
admitindo que esses textos tinham um caráter "fabulador':qual o
papel que a escrita e suas interlocuçõescom o campo literário detém
no seu processo criativo?
O primeiro passo, o do por quê?,pode ser pensado a partir das
reflexõesacercada escritaliteráriacomo uma experiênciafundada no
âmbito do Foraenquanto prática criativa e questionamentoradical
desse fazer literário (Levy,2003: 18).A discussãoincide justamente
nesse aspectode uma escritalabiríntica,que se manifestadesordena- 2 25
damente,aceitando a presençado delírio.Uma escrita que permite o
surgimento da fabulaçãoe da formaçãode novaslínguas e espaciali-
dades,apontandopara uma experiêncialiteráriaespecífica- e radical.
Oiticicaparte dos textosmedidose ponderadosda críticade arte para
a aventurasem controledo texto fabulador,enraizadonas suas vivên-
cias cotidianasem diferentestemporalidadesde sua trajetória.
Partindo de um tema de Gilles Deleuze,a literatura e o ato de
escreverpode ser visto aqui como uma saúde.A idéia de saúdede-
corre da relação entre a experiênciado homem no mundo e o seu
esgotamentofrente essa experiênciaradical,sanada apenas na vazão
da prática fabuladora, na descoberta da prática criadora do fora
(Deleuze,1997).Como exercíciode reflexão,apresentouma hipótese
relativa a essa problematizaçãoda prática da escrita,proposta pelo
filósofo.Houve para Hélio Oiticica um momento em sua trajetória
de vida em que "estarno mundo"torna-se uma descobertaviolentae
visceral,divisorade águase desencadeadorade heróis e fantasmas.É
a experiência de subir e viverintensamentepor quasecincoanos inin-
terruptos (1964-1968)o morro da Mangueira que defino como um
(ou o) momento em que ele "viu e ouviu coisasdemasiadograndes
pra ele,fortesdemais,irrespiráveis,cujapassagemo esgota"(Deleuze,
1997:14). Valeregistrar que no mesmo ano em que Oiticicasubiu à
Mangueira,seu pai, figura ativa em sua formação,falece.Segu11do
LygiaPape, amiga íntima do escritor nesse período e em outros de

SIBILA
sua vida, esse momento foi uma virada em todos os sentidos para
o artista plástico, corroborando essa hipótese. Em depoimento para
·Paola Bernstein Jacques,ela afirma que

Hélio era um jovem apolineo, até um pouco pedante, que trabalhava com seu
pai na documentação do Museu Nacional, onde aprendeu uma metodologia: era
muito organ~ado e disciplinado. Em 1964, seu pai morreu. Um amigo nosso, o
Jackson, então, levou o Hélio para a Mangueira[ ...]. Foi aí que ele descobriu um
espaço dionisíaco, que não conhecia, não tinha a menor experiência. [...] Aí ele
começou a incorporar essa experiência do morro, aquilo começa a fazer parte dos
226
conceitos dele, da vivência dele. As barreiras da cultura burguesa se rompem lá, é
como se ele vestisse um outro Hélio, um Hélio do "1norro",que passou a invadir
tudo: sua casa, sua vida e sua obra. (Jacques, 2001, 27)

Uma das hipóteses do por que Hélio Oiticica investia na escrita


de textos com um caráter fabulador, se relaciona a esse esgotamento
em relação a sua vivência na Mangueira descrita brevemente por
Lygia Pape. Ela é revivida por ele constantemente através da escrita
sobre o tema, sobre suas experiênciasrelativas ao uso das drogas, à
descoberta do sexo e, principalmente, ao mergulho no universo do
samba e da marginalidade. Vale ressaltar que essas transformações se
registraram, sobretudo, no âmbito do corpo·de Oiticica,influenciando
definitivamente seu processo criativo nas artes plásticas e sua visão de
mundo. Não é à toa que esses dois "conceitos,:Experiênciae Corpose
tornariam vitais para a sua obra dali em diante - vide o texto chave
para esse período de vida do artista plástico intitulado A Dança na
Minha Experiência(1964).
Assim através da escrita, do ato de escrever sobre suas memórias
e vivências físicas na Mangueira quando se encontrava distante desse
universo, Hélio Oiticica revive uma experiência que se remete conti-
nuamente àquela que o esgotou, que o deixou doente.Ela desencadeia
na literatura um processo de recriação de um espaço mítico, uma
espécie de reterritorializaçãodessa experiência vivida na favela ca-
rioca através dos tempos. Se no primeiro momento foi seu corpo que

SIBILA
absorveu sua intensidade,no momento do exílio,em que a Mangueira
nada mais é do que uma ausência,foi a capacidade de fabulação de
Oiticica que a manteve viva. No momento em que o mito fundador
da experiência perde sua potência explicativa,é através da linguagem
que se reconstrói essa potência em um novo espaço e em um novo
tempo. Não mais através da dança ou do corpo, mas, sim, através da
escrita fabuladora. A Mangueira não é apenas uma memória nostál-
gica, e sim a experiência ainda em processo na vida de Hélio. Uma
experiência vivida dessa vez na prática da literatura. 22
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A literatura, porém, é não só o processo de criação de uma saúde,
como também a tentativa de invençãode um povo.A literatura como
saúde, como possibilidade de vida, consiste assim na invençãode um
povo quefalta (Deleuze, 1997). Em seus escritos explicitamente fic-
cionais, Oiticica constrói incessantemente a Mangueira, seus cheiros,
suas cores,seus heróis, seus ritos, seus espaços de lazer e bandidagem,
seus personagens, enfim, seu povo. Um povo que falta a Oiticica em
Londres,que falta a Oiticica em NovaYork.Um povo cuja experiência
de reconhecê-lo e desejá-lo só pode ser satisfeitana escrita,na fabula-
ção. Em Auto 1, texto aparentemente de cunho autobiográfico escrito
em Londres, em novembro de 1969, ele descreve essas experiências
como se estivessevivenciando no presente e pratica a sua reinvenção
de um povo.Citando seu trecho inicial:

A ponte desce como do cosmos sob o som-folia nas sombras subjetivas ou


no odor que emana ou do morro ou do som -metal dos trens que correm das
inatas pelo mar da Central: porque as son1bras embaixo são sombrasou o que
sinto não sei. É cedo no ano para que o samba esteja quente mas as luzes e os
sons tamborins-surdos me atingem.

Já em Futesambol(ão),escrito no Rio de Janeiro em 1970, mais de


cinco anos depois de sua primeira incursão a Mangueira, esse pro-
cesso torna-se mais intenso. Nele, Oiticica descreve detalhadamente
as sensações e impressões sobre "estar na Mangueira" em um outro

SIBILA
tempo. A invençãode um povo quefalta é um processo permanente,
visceral, delirante:

Antigamente o samba da manga era na cerâmica, logo do outro lado da linha


do trem, da favela do esqueleto: de vez em quando parecia1n-se ouvir os gritos
da torcida no maracanão , logo abafados pela bateria de valdemiro: "não vem não
coração - já cansei de ilusão ..:•e a romaria do buraco quente à cerâmica começa-
va, pela curva: dona pequitita, red indian, vila do hélio turco, café paulista , doido
pra chegar na entrada da candelária (que é o morro atrás da cerâmica): leite de
onça melhor do rio: cerâmica de roberto paulino, haig's; do outro lado o trem da
central: posto de gazolina em frente à entrada da casa de miro e mais abaixo a
ponte da estação de mangueira.

Seus textos de caráter biográfico não devem ser confundidos com


uma busca da literatura enquanto "expressão de um eu interior': Os
escritos de Hélio Oiticica sobre a Mangueira - e outros temas como
sua infância e sua ligação com o pai - não são uma expressão da sua
alma ou simples relatos autobiográficos. Ao contrário da maioria de
seus trabalhos e declarações, são textos em que ele se anula como
persona artística e figura pública. Sempre autoral e cioso de suas
idéias e ações, "mentor supremo e pouco democrático da palavra "
como aponta Silviano Santiago (2000: 136), suas narrativas literárias
ou poéticas o colocam como mais um personagem dentre as ações
que se desenrolam - um personagem no campo do entre.São as his-
tórias e as sensações que ele viveu que fornecem as ferramentas para
sua narrativa. "Hélio Oiticica" nesses textos é mais um personagem
da Mangueira, e não o artista plástico vivendo uma realidade exótica
digna de relato para os não iniciados. Assim como em 1964 as expe-
riências viscerais da vida no morro e das suas histórias apagam sua
formação burguesa e intelectualizada, a prática da escrita fabuladora
torna-se um espaço onde o artista plástico e intelectual Hélio Oiticica
desaparece, dando lugar ao surgimento do necessário e inesperado
ele fabulador.
Seguindo os diversos caminhos possíveis desse labirinto, só pode-

SIBILA
mos perguntar"oque"Oiticicaescreviana medidaem que reconhece-
mos que ele como autor e seus textos como obra não pertencem aos
cânones definidos na área da literatura.Ou seja,ele não só não é um
autor,como seus textosnão são vistoscomo uma obra.Daí a pergunta
o que como chave na compreensãode seus caminhos no interior da
linguagem.ParafraseandoMichel Foucaultem seu já incontornável
ensaio "O Que É um Autor"(1969), proponho questionar,assim como
ele questiona o que eram os ((papéisque Sadeproduzia na prisão en-
quanto ainda não era visto como um autor" (Foucault, 2001:269 ), 229
o que eram então esses papéis escritos incessantementepor Hélio
Oiticica,já que eleaté hoje não é um autor.Assimcomo Foucault,per-
guntar o que era essa"obra':o que eram essescadernose papéissobre
os quais,sem parar,durante seus dias de exílio,Oiticicadesencadeava
seus fantasmas e suas memórias.O ponto aqui não é reivindicarum
estatuto de autor literário para Oiticica,mas sim uma nova aborda-
gem sobre seus textos, inserindo-os num debate mais amplo, mais
livre do que o debate sobre sua obra no campo das artes plásticas.
É justamente essa inserção de Hélio Oiticicaem outros campos
que permite uma análise mais apurada das suas relaçõescom a pro-
dução literária de sua época.Ele transitou intensamentenesse campo
durante os anos de 1960 e 1970 no Brasile no mundo, apropriandode
forma voraz seus elementos e conflitos. Em diferentesintervenções
nesse período ele deixa claro - apesar de ter declarado"o que faço é
música"- que era a literatura e a poesia suas principais ferramentas
de criação e reflexãoestética.Alguns de seus textos,principalmente
suas cartas e artigos,traziam o aspectojá referidode hipertexto,onde
diacroniae sincroniacoexistemen1um mesmoplano de açãointelec-
tual.Suasinfluências- Gertrude Stein (uma das principaisleiuras de
Hélio),Mondrian,Nietzsche,Oswaldde Andrade,JacksonPollcok,Ja-
mes Joyce,Paul Klee- eram trabalhadasa partir de suas interlocuções
contemporâneascom parceiros e referênciasde seu tempo - Andy
Wahrol,TorquatoNeto,Haroldode Campos,LygiaClark,JackSmith,

SIBILA
WalySalomão, Glauber Rocha. Este trecho de carta-reportagem para
o colunista e amigo Daniel Más, escrita em Nova York em maio de
1972, exemplifica bem esse tipo de escrita:

NEWS DO MÊS LOFT 4: a estadia de HAROLDO DE CAMPOS em New York


Chelsea hotel foi fantástica: seguiu pra Cambridge dia 30: trabalho-estadia com
ROMAM JAKOBSON, célebre lingüista q foi amigo de MALEVITCH e MAIAKÓVSKY
- dia 21, HAROLDO foi recebido en1 PRINCETON numa festa especial a ele dedi-
cada por QUENTIN FIORE famoso designer gráfico e co-autor de THE MEDIUM
IS THE MESSAGE com MCLUHAN - HAROLDO fora isso transou muito por aqui e
apresentou-me ao poeta OCTAVIO PAZ q dirige a publicação mexicana PLURAL
para qual vou colaborar.

Oiticica mostra neste breve trecho seu fascínio com o universo


da literatura, seus nomes, celebrações e revistas. Haroldo de Campos
- e Silviano Santiago, que lecionava em Buffalo nesse mesmo perío-
do - foram importantes para o aprofundamento da sua experiência
literária em Nova York.A experimentação poética de seus textos, ini-
ciada ainda no Brasil mas de forma esparsa - ganha corpo na cidade
norte-americana ao mesmo tempo em que ele se alimenta do convívio
e da influência de intelectuais ligados a esse universo. S01ne-se a isso
seu interesse permanente pela palavra e seu entusiasmo cada vez me-
nor em relação ao meio acadêmico e comercial das artes plásticas,
e encontramos nesse período um terreno fértil para um mergulho
definitivo de Oiticica na escrita e na fabulação.

6. Projeto cães de caça,Núcleos,Penetráveis,Quase-cinema.Esses


são alguns dos trabalhos de Oiticica em que o labirinto, a possibilida-
de múltipla de caminhos, de se achar e de se perder, são elementos es-
truturais. Nesse artigo, o intuito foi dar um primeiro passo na inserção
de sua produção escrita nesse percurso, como mais uma das entradas
para esse grande labirinto que é sua obra e sua vida. O labirinto, nos
textos, encontra-se nas suas linhas quebradas, na sua falta de pontua-
ção, na sua descontinuidade de idéias em permanente construção, na

SIB ILA
sua fluidez entre um tema e outro, na linguagem cifrada dos códigos
e referências de quem viveu o cotid iano fora-da-lei do mundo. Ler os
textos poéticos de Oiticica é entrar nesse labirinto dentro do labirinto ,
é caminhar partindo do princípio de que o intuito não é se encontrar,
mas, justamente, se perder. Assim como Oiticica teve que se perder
nas quebradas da Mangueira e na barra pesada de Manhattan durante
os anos de 1970 para criar sua obra revolucionária, ele nos propõe
uma escr ita em que o leitor não é tratado como um mero receptor
de mensagens, mas sim como um convidado para vagar por suas 231

histórias e experiências, dividindo com o autor a sensação de que é


preciso se perder para se encontrar, não saber para onde se vai para
criar saídas. O mito do labirinto, recorrente na literatura mundial, é
incorporado por Oiticica na sua prática criativa de forma visceral e
decisiva. Os que quiserem se aventurar em seus textos poéticos e na
sua produção literária, que tenham sempre isso em mente: quanto
mais se entra, mas difícil de sair. Produzindo durante décadas em
silêncio um mar de escritos, um emaranhado de referências, um tor-
tuoso percurso de aprendizado e leituras, e guardando todos em seus
arquivos, Oiticica deixou para a posteridade talvez esse seu último
labirinto: a descoberta por parte do mundo de sua poética secreta.

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