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Literatura

Portuguesa

Autores
Stélio Furlan
José Carlos Siqueira

2008
© 2008 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos
direitos autorais.

F985 Furlan, Stélio; Siqueira, José Carlos. / Literatura Portuguesa.


/ Stélio Furlan; José Carlos Siqueira. — Curitiba : IESDE
Brasil S.A. , 2008.
248 p.

ISBN: 978-85-7638-872-2

1. Literatura Portuguesa. 2. História e Crítica. 3. Movimentos


Literários. 4. Poesia. 5. Prosa. I. Título.

CDD 869.09

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Sumário
Trovadorismo: 1198-1418 | 7
Contexto histórico | 8
A poesia trovadoresca | 10
A Cantiga de Amor | 12
Cantiga de Amigo | 14
Cantigas de Escárnio e Maldizer | 16
Principais trovadores | 18
A permanência do Trovadorismo | 18

O Humanismo | 25
O homem como centro do universo | 26
O Humanismo em Portugal | 27
Gil Vicente (c. 1465-c. 1537): a grande figura literária do Humanismo | 29

Classicismo: 1527-1580 | 45
A Renascença Portuguesa | 45
Os gêneros clássicos | 46
Épica: Os Lusíadas, um prodígio arquitetônico | 47
Os Lusíadas: episódios | 50
Conclusão sobre Os Lusíadas | 56
A lírica camoniana | 57
Os sonetos de Camões | 58
Amor com engenho e arte | 60

Barroco (1580-1756) | 65
Pode-se falar em Barroco? | 65
Poesia barroca portuguesa | 67
Prosa barroca portuguesa | 71
Conclusão | 76

Arcadismo (1756-1825) | 79
A reação contra o Barroco literário | 79
Principais lemas dos poetas árcades | 82
Bocage e o Arcadismo | 86
Conclusão | 87

O Romantismo: prosa | 95
Romantismo e burguesia | 95
A sensibilidade romântica e o gênero romance | 96
O estabelecimento do liberalismo em Portugal e o romance | 100
A sedimentação do romance em Portugal | 111

O Romantismo: poesia | 121


A arte como mercadoria | 121
A sensibilidade romântica e a poesia | 123
As idéias liberais, o ultra-romantismo e o nacionalismo | 127
A originalidade e a autenticidade tornadas convenção | 135

O Realismo (1865-1890) | 141


O “realismo” como arma de crítica social e política | 141
A poesia realista | 148
A prosa realista | 153

Simbolismo | 163
Portugal simbolista | 169
O simbolismo português | 170
Modelos para o Modernismo | 177

O Saudosismo | 183
A Sociedade Renascença Portuguesa e o Saudosismo | 183
Florbela Espanca (1894-1930): uma poesia em suspensão | 190
Precursores do modernismo | 193

Modernismo:geração de Orpheu | 197


A revista Orpheu | 197
Fernando Pessoa (1888-1935) | 199
Mário de Sá-Carneiro (1890-1916) | 208
Almada Negreiros (1893-1970) | 209
A epopéia portuguesa moderna: de Os Lusíadas a Mensagem | 211

Modernismo Presencista | 215


O direito à liberdade de criação | 215
A república e a ditadura de Salazar | 216
A revista Seara Nova (1919-1974) | 216
A revista Presença (1926-1940) | 218
A autonomia da literatura e sua relação mediada com a realidade | 226

Gabarito | 231

Referências | 239
Apresentação
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Carlos Drummond de Andrade
“Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: ‘Navegar é preciso,
viver não é preciso’. Quero para mim o espírito (d)esta frase, transformada a
forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário; o que é necessá-
rio é criar”: esta conhecida passagem de Fernando Pessoa serve-nos de mote
para justificarmos as travessias e os percursos pelo vasto espaço da Literatura
Portuguesa.
O objetivo principal é o de compreender elementos para o estudo crí-
tico-produtivo das manifestações canônicas da Literatura Portuguesa, entre
1189 e 1915, situando-a no contexto da literatura ocidental.
Como estratégia de leitura, vamos centrar nosso investimento discur-
sivo e investigativo no que singulariza as diferentes manifestações literárias
do medievo ao início do século XX, a saber:
– Trovadorismo (1198-1418),
– Humanismo (1418-1527),
– Classicismo (1527-1580),
– Barroco (1580-1765),
– Arcadismo (1756-1825),
– Romantismo (1825-1865),
– Realismo (1865-1890),
– Simbolismo (1890-1915),
– Saudosismo (a partir de 1912), e
– Modernismo (a partir de 1915).
Você deve se perguntar o porquê do ano 1189, o porquê do ano 1915.
Utilizaremos essas datas menos como marcos definitivos que como balizas
temporais para localizarmos, entre aproximações e distanciamentos, cada
arte poética ao longo desse recorte temporal.
Alguns estudiosos das origens da Literatura Portuguesa consideram
1189 um dos anos prováveis da escrita da “Canção da Ribeirinha”, de Paio
Soares de Taveirós, a quem se atribui o primeiro poema escrito em língua
portuguesa. Outros pesquisadores consideram a publicação da revista
Orpheu, em 1915, com a participação fundamental de Fernando Pessoa,
o marco inicial do Modernismo em Portugal. Se tais datas não passam de
convenções (não consensuais, diga-se de passagem), não é menos certo di-
zer que derivam de um esforço reflexivo e investigativo sobre as condições
de possibilidade da textualidade lusitana.
Em última instância, desejamos que estas páginas sobre Literatura
Portuguesa estimulem a reflexão sobre a importância da Literatura como
um modo privilegiado de conhecimento, como uma maneira especial de ver
e dizer o mundo. E também que possam incentivar o contato prazeroso com
o Texto, ao que chamaremos fruição textual.
Em A Lírica Trovadoresca, Segismundo Spina escreve que para se
compreender a Literatura da Idade Média é necessário amá-la. Pode-se
acrescentar que não só a compreensão da literatura medieval, mas a Litera-
tura Portuguesa de modo geral, das primeiras cantigas de amor e de amigo
às textualidades contemporâneas, solicita um envolvimento amoroso.
Nesse sentido, consideramos oportuno iniciarmos a nossa travessia
literária com uma reflexão sobre a arte de amar (ars amatoria), tema por
excelência do lirismo trovadoresco medieval.
Stélio Furlan e José Carlos Siqueira
Arcadismo (1756-1825)
Stélio Furlan
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Ricardo Reis

Istock Photo

Templo grego dedicado à deusa Athena Partenon, erigido em


meados do século VI.

A reação contra o Barroco literário


Há uma passagem de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, lançado em 1881,
que nos interessa. No capítulo VI, no cume de uma montanha, ao narrador do romance Brás Cubas é
concedida a oportunidade de ver a descontínua história da humanidade passar diante de seus olhos:
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E fixei os olhos, e continuei a ver as idades, que vinham chegando e passando, já então tranqüilo e resoluto, não sei se
até alegre. Talvez alegre. Cada século trazia a sua porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, de verdade e de
erro, e o seu cortejo de sistemas, de idéias novas, de novas ilusões; em cada um deles rebentavam as verduras de uma
primavera, e amareleciam depois, para remoçar mais tarde. (MACHADO DE ASSIS, 2008)

A descrição desse delírio, no qual as gerações “se superpunham às gerações”, nos serve de mote
para o estudo das “idéias novas” da literatura portuguesa ao longo do século XVIII. Num viés panorâ-
mico, esse “cortejo de sistemas” evoca a possibilidade de se pensar a Literatura por meio de séculos
ou épocas. É o que ocorre na monumental História da Literatura Portuguesa, de António José Saraiva
e Óscar Lopes. Para tornar o estudo acessível e a difusão mais didática, a literatura portuguesa é divi-
da em época medieval, renascentista, barroca, do século das luzes (arcadismo), do romantismo e con-
temporânea. É mais uma tentativa de mapear e registrar a complexa textualidade lusitana, toda uma
constelação de obras e de autores e os diferentes contextos históricos e gostos de época. No Brasil, vale
mencionar A Literatura Portuguesa Através dos Textos, de Massaud Moisés, que a divide em fases históri-
cas, do Trovadorismo ao Modernismo. É um bom livro introdutório para o estudo da literatura lusitana,
com comentários sobre as características principais de cada fase, aspectos biográficos de seus autores e
análises dos textos selecionados.
Mas há que se evitar qualquer idéia de progresso ou de evolução no campo literário. A poesia lí-
rica trovadoresca medieval, que inaugura a literatura portuguesa, não possui menos fulgor poético ou
consciência artesanal do que o lirismo clássico. Se o barroco foi considerado uma arte complicada, de
mau gosto, no aspecto formal ela possui o mesmo rigor que as composições árcades. E vale lembrar que
houve uma retomada do trovadorismo medieval ao longo do século XIX e do século XX.
A palavra “inflexão” é o melhor termo que nos ocorre para definirmos os percursos da literatu-
ra portuguesa. Conforme o sentido dicionarizado do termo, inflexão significa: “mudança da direção”;
“ponto de uma curva no qual a concavidade se inverte”, “modulação”, enfim, “ação de dobrar; sinuosida-
de, desvio, volta”. Observe a ambigüidade do termo, pois a guinada para outra direção também pode
significar retorno. Observe um fragmento da Dissertação Terceira, recitada na conferência da Arcádia
Lusitana, em 1757:
Devemos imitar e seguir os Antigos: assim no-lo ensina Horácio, no-lo dita a razão, e o confessa todo o mundo literário.
Mas esta doutrina, este bom conselho, devemos abraçá-lo e segui-lo de modo que mais pareça que o rejeitamos, isto
é, imitando e não traduzindo. Os poetas devem ser imitados nas fábulas, nas imagens, nos pensamentos, no estilo; mas
quem imita deve fazer seu o que imita.
[...]
Se imito o estilo, não devo servir-me das palavras dos Antigos, mas achar na linguagem portuguesa termos equivalen-
tes, enérgicos e majestosos, sem torcer as frases, sem adoptar barbarismos. (FERREIRA, s.d., p. 61b).

A Dissertação Terceira, de Pedro António Correia Garção (1724-1772), é um dos vários textos
teóricos que definem o ideal neoclássico do Arcadismo. Em Portugal, convencionou-se situar o movi-
mento literário entre 1756 (ano da fundação da Arcádia Lusitana ou Ulissiponense e da publicação do
Verdadeiro Método de Estudar) e 1825 (ano da publicação do poema “Camões”, de Almeida Garrett, um
dos principais escritores do Romantismo). O principal teorizador da estética neoclássica em Portugal foi
Candido Lusitano, pseudônimo poético de Francisco José Freire (1719-1773), sobretudo pela elabora-
ção de uma Arte Poética ou Regras da Verdadeira Poesia (1748). Os dois fragmentos de Garção que trans-
crevemos revelam os aspectos centrais desse “novo” movimento literário. Em primeiro lugar se propõe a
retomada dos preceitos da arte clássica – esse gosto pela Antiguidade também foi renovado pelas des-
cobertas arqueológicas de Pompéia e Herculano, na Itália, e pelas numerosas traduções da Arte Poética,
Arcadismo (1756-1825) | 81

de Horácio (68 a.C. – 8 d.C.), um dos principais estudos sobre os preceitos da arte na Antiguidade). Em
segundo lugar, a crítica ao estilo dificultoso e pomposo do Barroco literário.
A origem do termo Arcadismo deriva de uma região da Grécia antiga habitada por pastores que,
segundo consta, viviam de modo simples e espontâneo, se divertiam cantando, fazendo jogos poéti-
cos para celebrar o amor e vida.

Mapa da Grécia Antiga

Em 1690, inspirados na lenda antiga, poetas italianos criaram uma academia literária denomina-
da Arcádia, cujo programa era justamente retomar os ideais da poética clássica como forma de comba-
ter o que consideravam “mau gosto” na arte. Para evidenciar os princípios da simplicidade e igualdade,
os literatos árcades adotaram pseudônimos de pastores gregos e realizaram reuniões em parques e jar-
dins cuja proposta era cultuar a vida junto à natureza. Em Portugal a Arcádia Lusitana, ou Ulissiponense
fundada em 1756, tomou por base a Arcádia Romana. Dentre os principais escritores do período desta-
cam-se Correia Garção e Bocage.

O pintor francês Joseph Pater testemunha em seus quadros


essa aproximação com o natural bem ao gosto da “festa
campestre” típica do Arcadismo. Jean-Baptiste Joseph Pater
(1695–1736) Fête Champêtre (1730)
82 | Literatura Portuguesa

Principais lemas dos poetas árcades


Se a poética barroca possui uma constelação de definições, o mesmo não se pode dizer do
Arcadismo, compreendido a partir de algumas regras da arte bem definidas. Os principais lugares-co-
muns que definem o Arcadismo foram extraídos da arte poética de Horácio (68 a.C.– 8 d.C.). Recortamos
quatro aspectos que condicionaram o pensamento e as atitudes dos poetas árcades, a saber:

Inutilia truncat
Esse lema, que significa “cortar as inutilidades”, foi o privilegiado pelos árcades lusitanos. O mote
aparecia subscrito na insígnia da Arcádia Lusitana, representada por uma mão segurando um podão ou
foice. O lema fazia jus ao primado da “imitação dos antigos”. Lembrar que, em Portugal, os princípios te-
óricos de Horácio já haviam sido sistematizados por António Ferreira, na Carta XII a Diogo Bernardes, em
meados do século XVI. Na Carta XII, Ferreira recomendava eliminar o “sobejo” (remover os excessos), re-
tocar constantemente os versos a fim de se alcançar a perfeição formal. Leia-se:
Corta o sobejo, vai acrescentando
O que falta, o baixo ergue, o alto modera
Tudo a ûa igual regra conformando. (FERREIRA, 2008)

O lema Inutilia truncat expressava também a “magnífica idéia de banir da poesia portuguesa o inú-
til adorno de palavras empoladas, conceitos estudados, freqüentes antíteses, metáforas exorbitantes”
com a finalidade de introduzir “em nossos versos o delicioso e apetecido ar de nobre simplicidade”.1
Nesse sentido, os árcades buscavam uma arte sem antíteses, desequilíbrios ou dilacerações.
Contra o retorcimento da sintaxe barroca, “sem torcer as frases”, os poetas árcades cultuavam a sere-
nidade, o equilíbrio, a clareza e a simplicidade das idéias. Noutras palavras, cultivavam um vocabulário
simples, com frases na ordem direta e com uso muito comedido de figuras de linguagem.

Aurea mediocritas
A leitura do poema de Ricardo Reis (um heterônimo de Fernando Pessoa) que é a epígrafe desta
aula é bastante sugestiva para a compreensão do ideário clássico da Aurea mediocritas. O verso “nada
teu exagera, ou exclui”, traduz o anseio da justa medida, do equilíbrio, da busca do meio termo. No sé-
culo XVIII, tal ideário era personificado na exaltação do ideal de herói humilde e honrado. Vejamos como
isso é cultivado por Corydon Erymantheo, pseudônimo poético de Correia Garção (1724-1772):
Não cobre vastos campos o meu gado,
O maioral não sou da nossa aldeia,
Do meu trabalho como, mas, Dirceia,
Ainda que sou pobre, vivo honrado.

1 A passagem foi extraída da Oração quarta em que se declama contra a falta de aplicação dos Árcades aos estudos, notando-os esquecidos já das
leis da sua empresa e obrigações dos seus estatutos, de Correia Garção, recitada na conferência da Arcádia Lusitana, no dia 30 de Junho de 1759.
Arcadismo (1756-1825) | 83

No jogo da carreira e do cajado


Até o destro Algano me receia,
Qual loura espiga de grãozinhos cheia
Me alegra ver teu rosto delicado.

O poema revela a imitação dos princípios horacianos, no caso, a poetização do dia-a-dia, da sim-
plicidade do ritual familiar, o elogio da virtude, da vida rústica, a indiferença pela vida citadina, enfim, a
recorrência às entidades inspiradoras em geral abstratas (Lídia, no caso de Horácio; Marília, no caso de
Correia Garção).

Fugere urbem
A opção pela vida campestre em oposição à vida urbana era sugerida pelas expressões Fugere ur-
bem, “fugir da cidade” e Sequi naturam, “seguir a natureza”. Lembrar que o Arcadismo foi um movimen-
to patrocinado pelos filhos da burguesia e não oriundos da corte. Assim, no ideal do Fugere urbem lê-se
uma posição político-ideológica que remete à luta do burguês culto contra a nobreza. Noutras pala-
vras, a exaltação do pastor humilde e honrado remete ao ideal pequeno burguês de vida sustentada
pelo trabalho contra os valores aristocráticos. Vale notar que afora a idealização da vida natural, a poe-
sia árcade surge impregnada pelas idéias dos Século das Luzes ou Iluminismo. Segundo o Dicionário de
Literatura Portuguesa, o iluminismo constitui um amplo e matizado movimento cultural europeu, que
teve impacto considerável em Portugal no século XVIII. Dentre marcas comuns do movimento vale ci-
tar a crença sem limites na Razão, o racionalismo contra todas as manifestações de barbárie, o desprezo
pelo fanatismo religioso e pelo espírito da Contra-Reforma e a mentalidade crítica em favor da liberda-
de de pensamento. Em Portugal, o espírito das Luzes pode ser constatado no combate ao Barroco lite-
rário; na poesia Bocage, cujo verso “Liberdade, onde estás? Quem te demora” é influenciado pelas idéias
revolucionárias da época; enfim, esse “espírito renovador estendeu-se ao urbanismo bem visível na ou-
sada reconstrução pombalina da cidade de Lisboa” (MACHADO, 1996, p. 524).

Locus amoenus
A expressão latina Locus amoenus designa um lugar ideal, favorável para a celebração do amor. Na li-
teratura portuguesa, o mais antológico desses lugares foi desenhado n´Os Lusíadas, de Camões, no episódio
da Ilha dos Amores. No desenho da fermosa Ilha, alegre e deleitosa, Camões descreve um vale ameno, com
claras fontes e pedras alvas e um vasto arvoredo com seus frutos odoríferos e belos e por aí afora. Observe
como Bocage retoma essa tópica com a elegância da forma que caracteriza a sua produção poética:
Olha, Marília, as flautas dos pastores
Que bem que soam, como estão cadentes! (cadentes: com cadência)
Olha o Tejo a sorrir-se! Olha, não sentes
Os Zéfiros brincar por entre as flores? (Zéfiro: deus mitológico dos ventos suaves)

Vê como ali beijando-se os Amores


Incitam nossos ósculos ardentes! (Ósculos: beijos)
84 | Literatura Portuguesa

Ei-las de planta em planta as inocentes,


As vagas borboletas de mil cores!
Naquele arbusto o rouxinol suspira,
Ora nas folhas a abelhinha pára,
Ora nos ares sussurrando gira.

Que alegre campo! Que manhã tão clara!


Mas ah! Tudo o que vês, se eu não te vira,
Mais tristeza que a noite me causara. (BOCAGE, 2008)

No final desse soneto, quando o sujeito poético exclama “Que alegre campo! Que manhã tão cla-
ra!”, sugere a retomada da poesia camoniana, em especial aquele verso “Alegres campos, verdes arvore-
dos”, de Camões. Dita paisagem ideal para os encontros amorosos era prevista pela tradição clássica da
lírica greco-latina. Assim, esta
natureza mágica é conducente ao amor, ao encantamento sensorial e espiritual do Homem, que se integra na perfei-
ção em tal plenitude, marcada pela harmonia e homogeneidade. Enfim, estamos perante um paraíso terrestre, onde se
enquadra o ser humano que busca a satisfação pela simplicidade. (LOCUS AMOENUS, 2008)

Carpe diem
Por certo, um dos temas horacianos que mais recebeu variações ao longo da literatura portugue-
sa é o tema do Carpe diem. Em um de seus poemas líricos Horácio aconselhava Leucônoe a aproveitar o
dia de hoje por ser incerto o vindouro.
corta a longa esperança,
que é breve o nosso prazo de existência.
Enquanto conversamos,
foge o tempo invejoso.
Desfruta o dia de hoje, acreditando
o mínimo possível no dia de amanhã (apud ACHCAR, 1994, p. 119)

Conforme Francisco Achcar, o verbo carpere já mereceu muitos comentários, que geralmente le-
vam à conclusão de que seu sentido é, finalmente, “fruir”, “gozar” (ACHCAR, 1994, p. 93). Em geral se as-
socia à tópica da efemeridade da vida. Noutras palavras, à certeza da fugacidade do tempo donde o
apelo à fruição imediata dos prazeres, o convite amoroso.
Percebemos a presença desse lema na Lira XIV, de Marília de Dirceu, do poeta Tomás Antônio
Gonzaga2:

Minha bela Marília, tudo passa;


A sorte deste mundo é mal segura;
Se vem depois dos males a ventura,
Vem depois dos prazeres a desgraça.

[...]

2 Tomás Antônio Gonzaga (Porto, 1744-Moçambique,1810?), filho de um magistrado brasileiro, passou a sua infância na Bahia e formou-se em
Cânones, em Coimbra. Foi um dos líderes mais importantes da Inconfidência Mineira, em Minas Gerais, no Brasil.
Arcadismo (1756-1825) | 85

Que havemos de esperar, Marília bela?


Que vão passando os florescentes dias?
As glórias, que vêm tarde, já vêm frias;
E pode enfim mudar-se a nossa estrela.

Ah! Não, minha Marília,

Aproveite-se o tempo, antes que faça


O estrago de roubar ao corpo as forças

E ao semblante a graça.

(GONZAGA, 2008)

Resta dizer que a poesia de feições clássicas não ficou reduzida ao século XVII. Quer como crítica
quer como apologia, dentre os vários exemplos possíveis, esse lugar-comum foi revisitado por Fernando
Pessoa, para a construção do seu heterônimo Ricardo Reis, e mais recentemente, por Sophia de Mello
Breyner Andresen3. Vale lembrar aqueles versos do poema I, publicado em Dual (1972), nos quais acon-
selha Lídia a aproveitar o momento presente:

Não creias, Lídia, que nenhum estio


Por nós perdido possa regressar
Oferecendo a flor
Que adiámos colher.

Cada dia te é dado uma só vez


E no redondo círculo da noite
Não existe piedade
Para aquele que hesita.

Mais tarde será tarde e já é tarde.


O tempo apaga tudo menos esse
Longo indelével rasto
Que o não-vivido deixa.

Não creias na demora em que te medes.


Jamais se detém Kronos cujo passo (Kronos: divindade que personifica o Tempo)

Vai sempre mais à frente


Do que o teu próprio passo.

(apud TAVARES, 2008)

3 Sophia de Mello Breyner Andresen, autora de intenso entusiasmo poético, recebeu vários prêmios dentre os quais vale destacar: Grande
Prémio Calouste Gulbenkian de Literatura para Crianças, 1992; Prémio Vida Literária, da Associação Portuguesa de Escritores, 1994; e o Prémio
Rainha Sofia de Poesia Iberoamericana, em 2003. Poesia (1944), O Dia do Mar (1947), Coral (1950), No Tempo Dividido (1954), Mar Novo (1958), O
Cristo Cigano (1961), Livro Sexto (1962), Geografia (1967), Dual (1972), O Nome das Coisas (1977), Navegações (1983), Ilhas (1989), Musa (1994)
O Búzio de Cós (1998) são alguns dos seus principais livros de poesias.
86 | Literatura Portuguesa

Bocage e o Arcadismo
Manuel Maria L´Hedoux Barbosa du Bocage (1765-1805) é considerado o melhor poeta do sécu-
lo XVIII e um dos melhores sonetistas da literatura portuguesa ao lado de Camões, Antero de Quental e
Florbela Espanca. Embora considerado “o máximo cinzelador da métrica”, inigualável na construção de ver-
sos tecnicamente perfeitos, também foi desqualificado como “vadio e inútil”. Escritor polêmico, por certo.

Bocage e as Ninfas (óleo de Fernando


Santos – Museu de Setúbal).

Em 1790, Bocage integra-se à Nova Arcádia, agremiação literária que pretendia dar continuidade
às idéias da Arcádia Lusitana ou Ulissiponense. E, como era usual entre escritores dessa estirpe, adotou
o pseudônimo de Elmano Sadino. O nome Elmano surgiu de uma inversão de Manoel, e Sadino deriva
de Sado em homenagem ao rio que banha Setúbal, cidade em que o poeta nasceu.
No início de sua atividade literária, Bocage reflete nitidamente a influência das convenções do
Arcadismo: cultiva a poesia satírica e a lírica (idílios, odes, canções, elegias, sonetos...). Seus poemas ce-
dem ao convencionalismo arcádico, seja na sugestão pastoril, seja no uso de figuras da mitologia da
clássica. Nesse caso, vale dizer que são permeados por certo ar de artificialismo. E Bocage tem consciên-
cia disso, uma vez que finda um dos seus sonetos afirmando que certos versos são
Escritos pela mão do Fingimento
Cantados pela voz da Dependência.
(BOCAGE, 2008)

Bocage sugere que o credo arcádico descamba na inautenticidade por conta da adoção mecâ-
nica de processos de exprimir, pela dependência ou subserviência aos modismos dados de antemão.
Observe estes tercetos dedicados à Marília:
Reside em teus costumes a candura, (Candura: doçura, brandura)
Mora a firmeza no teu peito amante,
A razão com teus risos se mistura;
És dos céus o composto mais brilhante:
Deram-se as mãos virtude e formosura,
Para criar tua alma e teu semblante.
(BOCAGE, 2008)
Arcadismo (1756-1825) | 87

Os tercetos de Bocage se resumem na exaltação da mulher como um verdadeiro prodígio de beleza,


de equilíbrio emocional e racional, bem ao gosto das idéias iluminista ou do chamado Século das Luzes.
Não se pode deixar de mencionar o convencionalismo amoroso que atravessa o poema, expresso
não só no desenho dos traços femininos que o recato então permitia, como também no nome da mu-
lher. É como se os poemas tratassem de um mesmo sujeito amoroso, de uma mesma mulher inspirado-
ra e de um mesmo tipo de amor.
Na oficina do poema árcade se empregava a ferramenta clássica para talhar uma composição po-
ética: se reproduzia os modelos consagrados pela tradição, tanto na estrutura métrica, estrófica, quan-
to na atmosfera do poema. É que o leitor se reconhecia no poema sintonizando a sua sensibilidade na
longa cadeia da tradição.
Tomás Antônio Gonzaga, “o mais árcade de nossos árcades”, também sintoniza a sua sensibilida-
de nesse repertório de elementos básicos da poética clássica:
Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
Que viva de guardar alheio gado;
De tosco trato, d’expressões grosseiro,
Dos frios gelos, e dos sóis queimado.
Tenho próprio casal, e nele assisto; (Casal: pequena propriedade)
Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
Das brancas ovelhinhas tiro o leite,
E mais as finas lãs, de que me visto.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela! (GONZAGA, 2008)

Afora Marília, Lídia, Neera e Cloe eram as figuras femininas abstratas a quem os poetas árcades
endereçavam seus poemas. Assim, as imagens, os motivos poéticos são elaborados a partir de traços de
uma experiência herdada e acabavam por cercear a liberdade da imaginação.

Conclusão
Para concluir, resta dizer que se há uma retomada das arte poéticas renascentista e da antigui-
dade clássica há também o desvio que conduz à renovação. As transgressões de Bocage são bastante
ilustrativas. Trata-se de um poeta criador, inventivo e não de mero reprodutor dos preceitos clássicos.
Observe como ultrapassa os limites e convenções árcades em favor de uma expressão mais pura e livre
de seu mundo pessoal:
A frouxidão no amor é uma ofensa,
Ofensa que se eleva a grau supremo;
Paixão requer paixão, fervor e extremo;
Com extremo e fervor se recompensa.
88 | Literatura Portuguesa

Vê qual sou, vê qual és, vê que diferença!


Eu descoro, eu praguejo, eu ardo, eu gemo;
Eu choro, eu desespero, eu clamo, eu tremo;
Em sombras a razão se me condensa.

Tu só tens gratidão, só tens brandura, (Brandura: ternura, doçura)


E antes que um coração pouco amoroso
Quisera ver-te uma alma ingrata e dura.

Talvez me enfadaria aspecto iroso,


Mas de teu peito a lânguida ternura (Lânguida; sensual ou fraca)
Tem-me cativo e não me faz ditoso. (Ditoso: feliz)
(BOCAGE, 2008)

No que diz respeito à estrutura interna do poema, podemos identificar quatro momentos distin-
tos. Como se lê no primeiro verso da primeira estrofe, diante da “brandura” da amada na relação amoro-
sa, o sujeito poético afirma a única forma como entende o amor: deve ser vivido de modo intenso.
No segundo quarteto, o sujeito poético compara a maneira como ele ama e os sentimentos com
os quais é retribuído.
No primeiro terceto, ele confessa qual o tipo de comportamento que gostaria ver na amada, no
lugar da gratidão e da ternura.
Por fim, arremata o poema explicando que a falta de paixão da amada é capaz de o fazer sofrer
ou o enfadar muito mais que o “aspecto iroso”, logo se considera infeliz por estar preso a um amor ape-
nas terno e sem fervor.
Ao confessar as palpitações do seu mundo emocional, Bocage passa do convencional ao confes-
sional, da pose arcádica à liberação dos sentimentos reprimidos. Noutras palavras, brinda o leitor com
um poema que apresenta elementos da poética árcade (a forma fixa do soneto; o verso decassílabo, a
alusão à razão), bem como apresenta elementos românticos (o tom confessional do poema e a superva-
lorização das emoções pessoais).
Nesse sentido, pode-se dizer que Bocage é um poeta que se torna arrebatador quando defende a
libertação do sentimento da camisa de força do convencionalismo e artificialismo dos árcades. Em suma,
por conta da veemência passional, do ardor dos sentimentos, Bocage faz estalar a casca das convenções
e indicia uma nova maneira de compreender o fazer literário prenunciando a aurora romântica.
Arcadismo (1756-1825) | 89

Texto complementar

Estilo simples e estilo medíocre


(VERNEY, 2008)
Ao estilo sublime contrapomos o estilo simples ou humilde. Assim como as coisas grandes
devem explicar-se magnificamente, assim o que é humilde deve-se dizer com estilo mui simples e
modo de exprimir mui natural. As expressões do estilo simples são tiradas dos modos mais comuns
de falar a língua; e isto não se pode fazer sem perfeito conhecimento da dita língua. Esta é, segun-
do os mestres da arte, a grande dificuldade do estilo simples. Fácil coisa é a um homem de alguma
literatura ornar o discurso com figuras; antes todos propendemos para isso, não só porque o discur-
so se encurta, mas porque talvez nos explicamos melhor com uma figura do que com muitas pala-
vras. Pelo contrário, para nos explicarmos naturalmente e sem figura, é necessário buscar o termo
próprio, que exprima o que se quer, o qual nem sempre se acha, ou, ao menos, não sem dificuldade,
e sempre se quer perfeita inteligência da língua para o executar. Além disto, as figuras encantam o
leitor e impedem-lhe penetrar e descobrir os vícios que se cobrem com tão ricos vestidos. Não as-
sim no estilo simples, o qual, como não faz pompa de ornamentos, deixa considerar miudamente os
pensamentos do escritor...
Isto que digo das expressões comuns e naturais deve-se entender com proporção. Não quero
dizer que um homem civil fale como a plebe, mas que fale naturalmente. A matéria do estilo humil-
de não pede elevação de figuras etc., mas nem por isso se deve exprimir com aquelas toscas pala-
vras de que usa o povo ignorante. Não é o mesmo estilo baixo que estilo simples. O estilo baixo são
modos de falar dos ignorantes e pouco cultos: o estilo simples é modo de falar natural e sem orna-
mentos, mas com palavras próprias e puras. Pode um pensamento ter estilo sublime, e não ser pen-
samento sublime; e pode achar-se um pensamento sublime, com estilo simples. Explico-me. Para
ser sublime o estilo, basta que eu vista um pensamento e o orne com figuras próprias, ainda que o
pensamento nada tenha de sublime. Pelo contrário, chamamos simplesmente sublime (com os retó-
ricos) àquela beleza e galantaria de um pensamento que agrada e eleva o leitor, ainda que seja pro-
ferida com as mais simples palavras. De sorte que o sublime pode-se achar em um só pensamento,
90 | Literatura Portuguesa

numa figura etc. Importa muito entender e distinguir isto, para não ser enfadonho nas conversações
e nas obras que pedem estilo humilde.
Do que tenho dito fica claro qual é o estilo medíocre: aquele, digo, que participa de um e ou-
tro estilo. Também este estilo não é pouco dificultoso, porque é necessário conservar uma mediania
que não degenere em viciosos extremos. E são poucos aqueles que conhecem as coisas na sua justa
proporção e formam aquela ideía que merecem. Já disse que a matéria é a que determina qual há de
ser o estilo; e assim uma matéria medíocre pede um estilo proporcionado. A maior parte das coisas
de que falamos são medíocres; e daqui vem que neste estilo de falar deve-se empregar um homem
que quer falar bem e conseguir fama de homem eloqüente. Um homem de juízo, que conhece as
coisas como são, forma delas ideías justas e verdadeiras, e as explica com as palavras que são mais
próprias. Donde vem que o estilo medíocre compete propriamente às Ciências todas, à História e
outras coisas deste gênero, nas quais se representam coisas não vis, mas medíocres; porém repre-
sentam-se da mesma sorte que são, e com palavras próprias. Também as cartas de negócios graves,
ou eruditas, e aquelas de cerimónia a pessoas grandes etc., costumam ser neste estilo. É, porém, de
advertir que o estilo medíocre admite todos os ornamentos da arte: beleza de figuras, metáforas,
pensamentos finos, belas descrições, harmonia do número e da cadência. Contudo, não tem a viva-
cidade e grandeza do sublime. Participa de um e outro, sem se assemelhar a nenhum. Tem mais for-
ça e abundância que o simples, menos elevação que o sublime, e prossegue com passo igual e mui
brandamente.

Lá, quando em mim perder a humanidade


(BOCAGE, 2008)
Lá, quando em mim perder a humanidade
Mais um daqueles que não fazem falta,
Verbi-gratia o teólogo, o peralta, (Verbi-gratia: por exemplo)
Algum duque, ou marquês, ou conde, ou frade:
Não quero funeral comunidade,
Que engrole sub-venites em voz alta; (Engrole sub-venites: embola a pronúncia
de preces em latim)
Pingados gatarrões, gente de malta, (Gatarrões, gente de malta: gatunos, marginais)
Eu também vos dispenso a caridade:
Mas quando ferrugenta enxada idosa
Sepulcro me cavar em ermo outeiro, (Ermo outeiro: colina solitária)
Lavre-me este epitáfio mão piedosa:
“Aqui dorme Bocage, o putanheiro;
Passou vida folgada e milagrosa;
Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro”.

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