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► Manuel da Fonseca, “Sempre é uma companhia”

Introdução

Manuel da Fonseca (1911-1993) foi um dos pioneiros da poesia neorrealista, embora


tenha sido no género conto que encontrou a expressão mais adequada para veicular
os conflitos sociais provincianos na dura vivência alentejana.

Publicado em 1953, O Fogo e as Cinzas, considerado o livro que espelha a


maturidade literária do autor, apresenta onze contos ancorados no ambiente rural
alentejano, sendo o décimo – “Sempre é uma companhia” – uma comovente narrativa
em que o tema da questão social, tão querido aos neorrealistas, marca presença
importante.

Resumo do conto

Batola, apelido de António Barrasquinho, é o ocioso proprietário de uma venda (café)


no Alentejo, entregue a uma vida de monotonia e de solidão, e que tem na sua
mulher o pilar que sustenta o casamento e os negócios. Como tantos outros
casamentos, também aqui não há ternura nem carinho, sendo a esposa vítima de
violência física nos dias em que Batola não consegue encarar a humilhação que
sente perante aquela mulher tão determinada. Naquela modorra de sempre, Batola
vai relembrando o velho Rata, mendigo que percorria outras terras e que voltava à
venda rico em novidades que faziam o Batola viajar pelo mundo. No entanto, após o
suicídio do Rata, já só resta ao dono da venda relembrar as tardes inteiras perdidas
(ganhas?) a ouvir o mendigo e evitar enfrentar aquela vida de “sonolência pegada”.

Porém, tudo muda quando um carro para em frente à venda e traz a novidade da
telefonia, a caixa que vai alterar a vida não só do casal como de toda a aldeia.
Apesar da oposição inicial da mulher do Batola, numa postura firme que surpreende
pela situação de violência vivida, que não permite a compra a crédito (“assinar
letras”), Batola, habituado a receber ordens, impõe-se e a telefonia fica um mês “à
experiência”.

Os habitantes, que habitualmente voltavam para as suas casas após o extenuante


dia de trabalho, encontram-se agora na venda e ouvem as notícias da guerra,
comentam assuntos, ouvem música, as mulheres dançam. Num mês, a aldeia
conhece uma dinâmica social nunca antes vista. Da clausura, do isolamento físico,
mas principalmente social, passou-se para um convívio salutar e as transformações
individuais também ocorreram.

Naquele mês, a aldeia de Alcaria mudou. Mas também Batola, que passou a acordar
cedo, a atender os clientes na venda, a vaticinar sobre os assuntos da guerra. Ao fim
de um mês, a aldeia tinha “um sopro de vida” nunca antes sentido e Batola tinha
conquistado a admiração da mulher. Assim, a telefonia fica, porque “sempre é uma
companhia” naquele deserto.

Caracterização das personagens e relação entre elas

Com um núcleo reduzido de personagens, este conto apresenta ao leitor velhos


ceifeiros, condenados à exclusão social quer pela pobreza quer pelo esquecimento, e
cuja existência sofre uma reviravolta com a chegada da telefonia.

O aparecimento daquele vendedor com aquele aparelho vai ser a força motora que
desencadeia a mudança de toda uma aldeia.

António Barrasquinho, o Batola

Apresentado desde logo como preguiçoso, este homem “atarracado”, de “pernas


arqueadas” e com “a cara redonda amarfanhada num bocejo” é o arquétipo da ociosidade,
de olhos “semicerrados” para não enxergar a monotonia da sua existência.

Bebendo muito (exceto às refeições), Batola arrasta-se na venda, numa existência


entediante e que foi suavizada até à morte do Rata.

Incapaz de tomar uma posição face à atitude controladora da mulher, António afoga a sua
impotência e a sua humilhação no vinho, acabando por agredir a mulher, situação bem
conhecida por todos na aldeia e que dura há já 30 anos.

Pela primeira vez, assume uma atitude assertiva quando resolve ficar com a telefonia, ainda
que contra a vontade da mulher, e altera o seu comportamento a partir daí – torna-se ativo e
enérgico.

Ao fim de um mês, consegue a admiração da mulher que, “com uma quase expressão de
ternura”, lhe dá a possibilidade de escolher se ficam com o aparelho ou não.

Mulher do Batola

Responsável pela organização de toda a logística da venda, contrasta física e


psicologicamente com o marido, visto que não só é “muito alta, grave [com] um rosto
ossudo”, como possui “um sossego de maneiras que se vê logo que é ela quem ali põe e
dispõe”. Enérgica, por oposição ao laxismo do Batola, dedica-se à lida doméstica depois
de “avia[r] aquela meia dúzia de fregueses de todas as manhãzinhas”.

Indiferente à argumentação do vendedor, esta mulher ameaça Batola, afirmando, num tom
vagaroso e confiante, que o marido terá de escolher entre ela e a telefonia.
Ao aceitar a proposta do vendedor – ficar com a telefonia durante um mês, à experiência –,
a figura feminina está, sem o saber, a permitir a transformação do seu marido, o que a leva,
no final, a abandonar o seu tom superior e a pedir ao Batola que tome a decisão de
conservar ou não a telefonia.

Velho Rata

Companhia habitual de Batola, esta figura marginal permitia a comunicação do dono da


venda com o mundo, visto que trazia novidades que evitavam o seu alheamento.

Incapaz de enfrentar o imobilismo que o reumatismo lhe impôs, suicida-se, atirando-se para
a ribeira da aldeia.

Vendedor e Calcinhas

Persuasivo como todos os vendedores, instala o conflito no casal, já que a mulher do Batola
é avessa à compra da telefonia.

Com malabarismos linguísticos, consegue agradar ao casal e acaba por instaurar a


mudança. O ajudante, Calcinhas, é uma figura que assiste passiva à encenação do
vendedor.

Ceifeiros e habitantes da aldeia

Habituados a uma vida dura e estéril, os inicialmente tristes e sorumbáticos ceifeiros


passam a juntar-se ao final do dia, na venda, para ouvir a telefonia e afastar a solidão
permanente das suas vidas.

Ao olhar para as personagens, facilmente se parte para o estudo das relações que
entre elas se estabelecem. Pela análise do casal, aborda-se o tema da repressão
sexual a que as mulheres nas décadas de 40/50, sobretudo num ambiente
provinciano, estavam sujeitas.

Apesar de ditar as leis quanto à organização da casa e da venda, a mulher de Batola


era vítima de violência física e estava submetida ao poder varonil de quem
descarrega as frustrações da sua solidão permanente na pessoa com quem partilha
essa mesma existência solitária. O equilíbrio é atingido quando a mulher observa as
transformações que se operaram em Batola durante o período de experiência da
telefonia, dirigindo-se de forma conciliadora ao seu marido.

Entre este casal e os habitantes da aldeia há uma relação distante, devido à árdua
vida dos ceifeiros no campo, que lhes tira a vontade de conviver no fim de mais um
dia de jornada. No entanto, a partir do dia em que a telefonia se instala na venda,
tudo se altera e o convívio é evidente.

Solidão e convivialidade

Num espaço rural mitificado no imaginário neorrealista de Manuel da Fonseca


enquanto lugar de frustração, movimentam-se personagens pobres, personagens
marginais (o relembrado Rata), mas, acima de tudo, movimentam-se personagens
solitárias, inadaptadas à triste realidade em que vivem.

A apresentação inicial do Batola pinta logo essa preguiça existencial que domina o
dono da venda, cansado do tédio, derrotado por viver em solidão
permanente. “Espreguiça-se, boceja e arrasta-se até à caixa de lata
enferrujada” para medir o café “a olho, um olho cheio de tédio, caído sobre o
canudinho de papel.” Esta “sonolência pegada” é ainda pior no verão, quando os dias
são longos e a solidão maior. Ao Batola resta relembrar as histórias que o velho Rata
lhe contava, enquanto se arrasta para o exterior da casa, depois de dormir a sesta,
para olhar para a mesma paisagem carregada de silêncio profundo.

Os ceifeiros regressam a casa já bem de noite, “cansados da faina”, e nem passam


pela venda. Contudo, na tarde em que a telefonia passa a reinar, todos acodem à
venda, com um “olhar admirado”, para ouvir “notícias da guerra”. Tudo muda então:
nessa noite, jantam à pressa e voltam à venda e assim farão nos dias seguintes,
deslumbrados por essa súbita ligação ao mundo, por saberem “o que acontece fora
dali”, sentindo que “não estão já tão distantes as suas pobres casas”. A animação
reina na pequena povoação e os dias passam tão velozmente que nem percebem
que o período de experiência está a terminar. O desânimo regressa – como enfrentar
novamente a realidade do abandono e da solidão depois de dias tão intensamente
partilhados? “Iam todos, de novo, recuar para muito longe, lá para o fim do mundo,
onde sempre tinham vivido”?

Caracterização do espaço: físico, psicológico e sociopolítico

Ancorado no Alentejo rústico, simples e em decomposição dos anos 40 e 50, com


gente pobre e que assistia distante aos passos lentos do progresso, é inevitável
recuar no tempo e enquadrar este conto no contexto histórico-social.
Aldeia de Alcaria, com “quinze casinhas desgarradas e nuas”, rodeada
Espaço físico
pela “solidão dos campos”.
Alteração do comportamento das personagens após a instalação da
telefonia:

› autoritária e oponente à compra da telefonia, a mulher do Batola revela


possuir densidade psicológica, já que, ao fim de um mês, faz um pedido
submisso ao marido. A mulher respeita agora o “novo” Batola;
Espaço
psicológico
› ocioso e letárgico, Batola torna-se ativo após a chegada da telefonia que o
arranca da sua solidão;

› os ceifeiros, outrora solitários e condenados a uma existência árida,


encontram naquele pequeno aparelho a esperança de comunicação com o
mundo.

Espaço rural pobre, duras condições de vida dos ceifeiros, alheamento


Espaço social
social e falta de informação.

Importância das peripécias inicial e final

Este conto apresenta dois momentos estruturantes para o universo diegético: o


aparecimento da telefonia e a manutenção (inesperada) deste aparelho.

Num primeiro momento, é descrito o espaço físico em que as personagens se


movem, caracterizado pela pobreza, mas essencialmente pela clausura face ao
mundo. Também a caracterização das personagens é crucial, sobretudo a
psicológica, para que se possa entender a evolução tanto de Batola como da sua
mulher face à situação desencadeadora do conflito, porém também da mudança,
anunciada pela voz omnisciente do narrador não participante – “E, sem pressentir
que aquela noite é a véspera de um extraordinário acontecimento, lá se vai deitar
Batola, derrotado por mais um dia”.

Neste sentido, antes da presença da telefonia, a existência daqueles homens e


daquelas mulheres era marcada pela aridez, por uma vida de trabalho e de
alheamento da realidade. No entanto, tudo muda num mês e a aldeia transfigura-se,
resultado da alegria que marca o convívio entre aquelas pessoas de sempre, embora
sempre desconhecidas. O café acaba por ser o epicentro de um universo onde se
encontram histórias mais ou menos picarescas, mais ou menos dramáticas, mas
onde há, acima de tudo, o abrir-se ao outro, numa espécie de neorrealismo universal
que coloca o ser individual num plano que aponta para a realização do ser coletivo.

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