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Unidade 3 — Fronteiras e exclusões sociais: terras secas e homens fortes

Capítulo 7 — Leitura e literatura — Prosadores do Pré-Modernismo

Astúcias do texto

Os sertões: entre o jornalismo e a ficção

Poema Tabacaria de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

Rebeca Fuks
Doutora em Estudos da Cultura

Tabacaria é um poema longo e complexo, onde o heterônimo Álvaro de Campos levanta


as questões centrais que regem a sua poesia. A obra é das criações poéticas mais famosas de
Fernando Pessoa. Escrito em 1928 (e publicado em 1933, na Revista Presença), os versos são
um registro do tempo em que viveu, da modernidade veloz e do sentimento de incerteza do
sujeito que se sentia perdido diante de tantas mudanças. A sensação de vazio, de solidão e de
incompreensão são as linhas norteadoras do poema.

Análise do poema Tabacaria

Tabacaria é um poema veloz, repleto de imagens e emoções de um sujeito que se sente


perdido, mergulhado nas suas reflexões pessoais.
Os versos apresentam um redemoinho de informações que vão sendo transmitidas para o
leitor rapidamente, numa velocidade que não deixa muito espaço para aquele que recebe a
mensagem respirar, fazendo com que ele se sinta invadido pelo excesso de questões que vão
sendo avançadas pelo poeta.
Esse ritmo frenético é muito compatível com o período histórico vivido por Fernando
Pessoa (1888-1935). Nessa ocasião, as cidades se modernizavam num ritmo ímpar, a Europa - e
Portugal numa escala menor - se transformava rapidamente, por isso está muito presente
especialmente na poética de Álvaro de Campos a imagem das cidades, da velocidade da
transformação, das idas e vindas e das angústias que esse excesso trazia. Com uma dinâmica
acelerada, vemos o emprego de muitas imagens que, como são superadas rapidamente,
parecem caóticas, mas transmitem a atmosfera de um tempo para o leitor.
Em termos de formato, Tabacaria é um poema tipicamente moderno que possui versos
livres (sem rima). Longa, a criação poética é profundamente descritiva tanto do que se passa no
mundo interior como no exterior.

Principais trechos do poema Tabacaria explicados

Não sou nada.


Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
Já na apresentação de Tabacaria ficamos conhecendo um pouco sobre quem é o sujeito
retratado no poema. Numa primeira abordagem reparamos que esse homem não nomeado
apresenta já sucessivas negações para tentar se definir. Ele é, sobretudo, aquilo que não é (e o
que nunca foi nem nunca será). Ele também não tem nenhuma ambição.
Esse tipo de oração negativa, pessimista, também aparece pontualmente ao longo dos
versos denunciando a depressão e o vazio com que o sujeito encara a vida. A descrença não
surge só em relação a si mesmo, como também com relação aquilo que está ao seu redor.
O personagem criado por Álvaro de Campos corajosamente se desnuda na frente do leitor,
mostra o seu lado frágil e cheio de dúvidas deixando evidente a sensação de ser um
fracassado.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Vemos como esse sujeito não nomeado se sente um fracassado, um vencido, sem
energias e sem ambições para lutar na vida. Se no presente ele lê a sua história pessoal como
uma derrota, é porque ele olha para o passado e vê que não alcançou nenhuma espécie de
realização amorosa ou profissional.
No princípio ele observa que falhou em tudo, o que, de certa forma, ainda pode ser
encarado com um breve olhar positivo: afinal ele tinha um plano, mas acabou não conseguindo
ser bem-sucedido. Mas logo no verso a seguir Álvaro de Campos destrói a própria ideia de que
tinha um plano: tudo, afinal, é nada, porque ele nem sequer tinha um propósito na vida.
Fica claro nesse trecho de Tabacaria o sintoma de cansaço e o tédio, como se tudo fosse
repetitivo e o sujeito fosse incapaz de viver a vida ou de ter projetos.
Ele até tenta fugir desse estado de espírito, mas rapidamente percebe que não há saída
possível, nem sequer no campo encontra um propósito.
Ao longo dos versos vamos observando que o sujeito busca uma verdade, mas uma
verdade que seja uma espécie de âncora: não temporária, mas permanente e eterna, algo que o
norteie e que encha a sua vida de sentido.
Há um excesso de consciência da sua condição pessoal e o sujeito vê a felicidade como
uma hipótese impossível.

Janelas do meu quarto,


Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Tabacaria é, ao mesmo tempo, um retrato pessoal e individual de Álvaro de Campos, mas
simultaneamente coletivo, como observamos no trecho acima.
Em diversas passagens do poema o sujeito fala de si, mas também fala do outro,
reconhecendo haver um sentimento de partilha, comum, que reúne os seres humanos, imersos
nas suas dúvidas existenciais e nos seus problemas que, afinal, são sempre os mesmos. As suas
janelas são como as janelas de todos os outros quartos e o mistério também permeia todos os
seres que, assim como ele, se veem perdidos.
Ele, afinal, é um sujeito “comum”, como todos os outros, com quais conseguimos nos
identificar e com quem partilhamos as mesmas inquietações filosóficas.

Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,


Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Mansarda quer dizer sótão, nesse trecho Álvaro de Campos fala da sua sensação de ser
um permanente deslocado, um desajeitado, alguém que não vive na parte principal de uma
casa, que não está à altura dos outros. Esse trecho é importante porque fala do estado de espírito
do sujeito, da sua autoimagem, da sua autoestima e de como se conhecia tão bem a ponto de
evidenciar com tanta precisão as suas falhas de caráter e de personalidade. Ele sabe que não é
nada, que nunca fez nada, que nunca obteve sucesso e que deixará o mundo como a maioria de
nós: anônimos sem qualquer grande feito.
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Diante da imensidão de possibilidades proporcionada pela vida moderna, o sujeito parece
perdido num manancial de hipóteses. Esse trecho fala da sensação de estarmos diante de
muitos caminhos e do sentimento de nos percebermos paralisados com tantas escolhas.
Apesar de nos dias de hoje nos relacionarmos tão bem com esses versos, a verdade é que
esse sentimento de existirem múltiplas possibilidades está intimamente relacionado ao tempo
histórico vivido por Fernando Pessoa, quando Portugal se industrializava fortemente e a vida
passou a apresentar uma série de escolhas que antes não eram possíveis de se ter.
A sociedade se transformou muito depressa e Álvaro de Campos sentiu na pele - e
registrou - essas mudanças sociais e pessoais. Sente-se nos versos presente, portanto, a
sensação de desamparo, de instabilidade emocional, como se o poeta estivesse atônito diante
dos caminhos que lhe foram apresentados. Sem planos e sem um futuro possível, ele desabafa
com o leitor a sua inaptidão para a vida.

(Come chocolates, pequena;


Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Um dos poucos momentos otimistas do poema, onde o sujeito esboça alguma alegria,
acontece quando ele vê da sua janela uma menininha comendo chocolates alheia aos problemas
existenciais dos adultos.
A inocência da criança fascina e deixa o Álvaro de Campos em estado de inveja. A
felicidade simples, encontrada pela garotinha numa mera barra de chocolate, parece ser
impossível de ser alcançada por ele.
O sujeito ainda tenta embarcar no caminho da felicidade inaugurado pela pequena, mas
rapidamente volta ao seu estado inicial de tristeza logo ao tirar o papel de prata, que constata ser
de estanho.

Quando quis tirar a máscara


Estava pegada à cara
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.

A sensação de desamparo é ainda maior porque o sujeito não sabe aquilo que deseja e
também não sabe propriamente aquilo que é. Nessa passagem importante de Tabacaria,
Álvaro de Campos fala da presença de uma máscara levantando a questão da procura da
identidade, um tema frequente na poética de Fernando Pessoa.
Aqui fica evidenciada a necessidade humana de querermos parecer aquilo que não somos
para nos enquadrarmos socialmente, para agradarmos os outros.
Depois de tanto tempo usando a sua máscara - o personagem que escolheu representar
na vida coletiva - Álvaro de Campos enfrenta a dificuldade ao ter que retirá-la. Quando consegue,
percebe como o tempo passou e como envelheceu enquanto aparentava ser outra coisa.

O mundo é para quem nasce para o conquistar


E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.

O sonho é apresentado por Álvaro de Campos em alguns trechos de Tabacaria como uma
possibilidade de fugir da realidade concreta e dura - que ao longo do poema é representada por
elementos físicos: as janelas, as pedras, as ruas, as casas.
O poeta reveza momentos de extrema lucidez, fazendo menção a esse mundo concreto,
exterior, com imagens do seu inconsciente, fantasias e sonhos. Há uma mistura intencional no
poema, portanto, desses elementos reais, com passagens reflexivas, interiores (versos onde
vemos filosofias, pensamentos, devaneios, sonhos).
Álvaro de Campos analisa as profundezas do seu ser, as emoções que o movem, a apatia
que se aloja dentro dele e aponta o sonho como um espaço de descanso, uma espécie de
abrigo em meio a um temporal.

Sobre o título do poema

Tabacaria é um tipo de estabelecimento comercial (que vende tradicionalmente produtos


ligados ao tabaco), que o sujeito do poema frequenta, e é também a loja que ele vê da janela da
sua casa. É na tabacaria que ele encontra vida, assiste as visitas habituais, corriqueiras, dos
compradores, dos conhecidos e do proprietário.
Apesar de não mencionar nenhuma data específica - nem sequer o ano - reconhecemos,
pelos versos, haver a presença de traços dos tempos modernos. As tabacarias são também
estabelecimentos bastante característicos desse tempo histórico.

Contexto histórico

Escrito no dia 15 de janeiro 1928 e publicado pela primeira vez em julho de 1933, na
Revista Presença (edição 39), Tabacaria é um dos mais importantes exemplares poéticos do
Modernismo em Portugal.
O poema, que faz parte da terceira fase da produção poética do heterônimo Álvaro de
Campos, faz um retrato do seu tempo e traz à tona sentimentos característicos da sua geração
como a fragmentação e a efemeridade.
O poeta nessa terceira fase da sua poesia, que durou entre 1923 e 1930, investiu numa
abordagem mais intimista e pessimista. Eduardo Lourenço, um grande estudioso português
contemporâneo da obra de Álvaro de Campos, destaca que Tabacaria é das criações mais
importantes do heterônimo porque, segundo ele, “Todo o Álvaro de Campos nele se concentra”,
ou seja, em Tabacaria encontramos um resumo, uma síntese, de todas as principais
questões levantadas pelo heterônimo.
Álvaro de Campos testemunhou um Portugal que vivia profundas transformações sociais e
econômicas e deu vida, através dos seus versos, à poemas nervosos, que transmitiam a
incerteza e o sentimento de estar perdido num período em que a sociedade mudava de modo tão
rápido.
O heterônimo Álvaro de Campos, criado por Fernando Pessoa, teria nascido no dia 15 de
outubro de 1890, na região de Tavira (Algarve) e se formou em engenharia mecânica e naval. Ele
foi testemunha e assistiu ruir uma ordem política e social, convém lembrar a Primeira Guerra
Mundial (1914) e a Revolução Russa (1919).

In: https://www.culturagenial.com/poema-tabacaria-alvaro-de-campos-fernando-pessoa-analisado/
Tem outro:
https://comofazerumpoema.com/tabacaria-fernando-pessoa-todos-sonhos-mundo/
https://www.google.com/search?q=analise+do+poema+tabacaria+de+
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