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INTRODUÇÃO
DESENVOLVIMENTO
Para entender o que se encontra entre a consciência no cotidiano e a
inconsciência do sonho, é preciso, primeiro, compreender a visão mais profunda de
Bernardo Soares em relação a ambos os estados. Elas variam dentro do livro em longas
digressões ou breves comentários, mas que ainda juntas conseguem elucidar um todo
que se encaminha para uma mesma direção, a escrita do livro, pois, dentro da visão que
iremos seguir aqui, é essa a verdadeira forma que Bernardo Soares adquire? para se
adequar de alguma forma na existência inconciliável. A representação de si na/pela
escrita do livro é um modo de agenciar, entender-se perante a sua existência
inconciliável?
Para começar, ao tratarmos de sua insatisfação com o mundo terreno, torna-se
necessário tratar principalmente sobre o meio em que vive, a Rua dos Douradores da
cidade de Lisboa. Numa grande cidade, o fluxo contínuo de ações e o movimentoado
desenfreado compõem quase de forma totalizante a vida de seus moradores. Ainda
muito anterior em relação àa época em que vive Bernardos Soares, uma famosa citação
do filósofo Friedrich Engels em Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, ao
discorrer sobre o tema das grandes cidades, utilizando Londres de exemplo, questiona a
perda da humanidade que um aglomerado imenso de seres num mesmo lugar poderia
causar:
A multidão é vista por Engels como algo negativo, que fará com que os
humanos já não se vejam mais como pessoas semelhantes a entre si. Essa seria uma
característica que alcançaria não as apenas as ruas, mas todo o centro de uma cidade
moderna. Sendo assim, para onde quer que se olhe é possível perceber que há pessoas,
ainda que seja difícil ver com nitidez vida nelas.
Bernardo Soares, no primeiro fragmento, faz uma autoanálise de si sobre seu
lugar de visão do mundo: “Pertenço, porém, àquela espécie de homens que estão sempre
na margem daquilo a que pertencem, nem veem só a multidão de que são, senão
também os grandes espaços que há ao lado.” (PESSOA, 2019, fragmento 1, p.15).
Nisso, podemos ver um caráter semelhante ao de um grande admirador de
multidões da modernidade, o poeta francês Charles Baudelaire. Para ele, principalmente
na prosa poética As Multidões, afirma que há um prazer artístico em observar a
multidão: “Não é dado a todo o mundo tomar um banho de multidão: gozar da presença
das massas populares é uma arte” (BAUDELAIRE, 2018 [1869],p. 18). Além disso, em
meio à solidão da multidão, há a possibilidade de tornar-se outro: “O poeta goza desse
incomparável privilégio que é o de ser ele mesmo e um outro. Como essas almas
errantes que procuram um corpo, ele entra, quando quer, no personagem de qualquer
um” (BAUDELAIRE, 2018 [1869], p. 18).
A linha de Baudelaire e Bernardo Soares pode ir de encontro (contra? Ou você
quis dizer “ao encontro”?) à de Engels na medida em que percebem que as pessoas
aglomeradas não vêem mais umas às outras como seus iguais. Porém, para Baudelaire, é
exatamente nesse momento que deve entrar a figura do artista, que extrai delas (o
quê?), tornam-se elas, e por meio disso podem utilizá-losas? como matéria para sua
arte.
Bernardo Soares, no terceiro fragmento, comenta amar o bulício das ruas em sua
volta, mesmo que elas lhe encham de tristeza. Sua comparação, ao dizer sentir-se coevo,
com Cesário Verde, indica para a sua inadequação com o meio moderno: “...tenho em
mim, não outros versos que como os dele, mas a substância igual à dos versos que
foram dele”. Logo após, se coloca a si coloca no lugar das ruas (o sentido dessa
expressão não ficou claro), comentando ter uma sensação de vida parecida com a delas:
“de dia elas estão cheias de um bulício que não quer dizer nada; de noite estão cheias de
uma falta de bulício que não quer dizer nada. Eu de dia sou nulo, e de noite sou eu”.
Isso tudo irá desembocar para uma reflexão que o leva a perceber a abstração, que
carrega um sentimento plural, do interno que se alimenta do externo:
Mas há mais alguma coisa... Nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma à
mente uma tristeza de todo o ser, a amargura de tudo ser ao mesmo tempo
uma sensação minha e uma coisa externa, que não está no meu poder alterar.
Ah, quantas vezes os meus próprios sonhos se me erguem em coisas, não
para me substituírem a realidade, mas para se me confessarem seus pares em
eu os não querer, em me surgirem de fora, como o elétrico que dá a volta na
curva extrema da rua, ou a voz do apregoador noturno, de não sei que coisa,
que se destaca, toada árabe, como um repuxo súbito, da monotonia do
entardecer! (PESSOA, 2019, fragmento 3, p. 17)
Para então se ver numa percepção dos passantes da multidão (poderia rever a
formulação para deixar sua ideia mais clara), seus vários personagens singulares e, ao
mesmo tempo, tão comuns que fazem parte de aglomerado de seres. Tal observação
vale tanto para o que ocorre no momento em que Bernardo Soares narra quanto para ...
sendo um panorama geral do movimento nas ruas:
Passam casais futuros, passam os pares das costureiras, passam rapazes com
pressa de prazer, fumam no seu passeio de sempre os reformados de tudo, a
uma ou outra porta reparam em pouco os vadios parados que são donos das
lojas. Lentos, fortes e fracos, os recrutas sonambulizam em molhos ora muito
ruidosos ora mais que ruidosos. Gente normal surge de vez em quando. Os
automóveis ali a esta hora não são muito frequentes; esses são musicais. No
meu coração há uma paz de angústia, e o meu sossego é feito de resignação.
(PESSOA, 2019, fragmento 3, p. 17)
Passa tudo isso, e nada de tudo isso me diz nada, tudo é alheio ao meu
destino, alheio, até, ao destino próprio — inconsciência, carambas ao
despropósito quando o acaso deita pedras, ecos de vozes incógnitas — salada
coletiva da vida. (PESSOA, 2019, fragmento 3, p. 17)
Isso ocorre pois há uma percepção de que o artista que analisa a multidão, em
meio à qual transcorre onde ocorre o cotidiano, a banalidade, não é parte dela enquanto
ocupa seu local. O poeta que antes tinha esse local de privilégio em relação ao
movimento mundano, já perdeu esse posto como exclusividade, pois ele mesmo agora
invariavelmente vai fazer parte da vida da multidão. Esse distanciamento gera uma
repugnância, semelhante àquela de Engels, em relação à multidão, como observa Leyla
Perrone-Moisés:
O poeta perdeu sua grinalda, não pode casar-se com a multidão, não por uma
convicção romântica de suas prerrogativas de inspirado ou de Gênio [..], mas
pelo sentimento intenso de sua falta de função, da ausência de qualquer
finalidade útil em seu ofício. Só lhe resta então permanecer na “mansarda” e
ficar olhando, cético quanto à multidão e cético quanto a si mesmo
(PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 47-48). ok
Nessa visão, o observador não é parte da vida, ele apenas faz o que sua função
pretende, ou seja, observar. Sendo assim, todos esses passantes, na verdade,
representam para ele o que é a vida verdadeira, não aquela que ele tem, ou seja, a vida
de ação (qual será mesmo a vida verdadeira para BS?). O escritório da Rua dos
Douradores, de onde observa tudo isso, percebe ele, no nono fragmento, que lá é onde
se pode ver a “verdadeira” face da vida, representada na figura do patrão Vasques:
Hoje, num dos devaneios sem propósito nem dignidade que constituem
grande parte da substância espiritual da minha vida, imaginei-me liberto para
sempre da Rua dos Douradores, do patrão Vasques, do guarda-livros
Moreira, dos empregados todos, do moço, do garoto e do gato. Senti em
sonho a minha libertação, como se mares do Sul me houvessem oferecido
ilhas maravilhosas por descobrir. Seria então o repouso, a arte conseguida, o
cumprimento intelectual do meu ser (PESSOA, 2019, p. 19).
Porém, logo após, lamenta tal acontecimento, pois seria perder aqueles que já
fazem parte de sua vida:
Mas de repente, e no próprio imaginar, que fazia num café no feriado
modesto do meio-dia, uma impressão de desagrado me assaltou o sonho:
senti que teria pena. Sim, digo-o como se o dissesse circunstanciadamente:
teria pena. O patrão Vasques, o guarda-livros Moreira, o caixa Borges, os
bons rapazes todos, o garoto alegre que leva as cartas ao correio, o moço de
todos os fretes, o gato meigo — tudo isso se tornou parte da minha vida; não
poderia deixar tudo isso sem chorar, sem compreender que, por mau que me
parecesse, era parte de mim que ficava com eles todos, que o separar-me
deles era uma metade e semelhança da morte (PESSOA, 2019, p. 19).
...Os sonhos também serão talvez ou ainda outra dimensão em que vivemos,
ou um cruzamento de duas dimensões; como um corpo vive na altura, na
largura e no comprimento, os nossos sonhos, quem sabe, viverão no ideal, no
eu e no espaço. No espaço pela sua representação visível; no ideal pela sua
apresentação de outro género que a da matéria; no eu pela sua íntima
dimensão de nossos. (PESSOA, 2019, fragmento 76, p. 58)
O sonho então se torna uma evasão da vida não somente por ser algo diferente
dela, mas também por encontrar no inconsciente algo íntimo e próprio, diferente de todo
que é a vida, compartilhada com outros, mesmo que não se queira. É por isso que
declara que “Só o que sonhamos é o que verdadeiramente somos, porque o mais, por
estar realizado, pertence ao mundo e a toda a gente” (Fragmento 348, p. 206). Mesmo
assim, sua insatisfação com o sonho surge exatamente por não ser ele um inibidor total
da realidade, mas sim uma outra forma dela, ou seja, a realidade pessoal, o que também
lhe causa tédio, como declara no fragmento 414, após argumentar longamente sobre o
sonho no fragmento anterior: “Mas as paisagens sonhadas são apenas fumos de
paisagens conhecidas e o tédio de as sonhar também é quase tão grande como o tédio de
olharmos para o mundo” (Fragmento 414, p. 241).
Isso nos faz voltar para a questão inicial, a de entender como Bernardo Soares
consegue então encarar a vida, que nem mesmo o sonho consegue suprir
completamente, para então chegarmos a uma conclusão. Se o ajudante de guarda-livros
faz questão de observar o movimento da modernidade, comentando que não o diga
nada,? então supomos que o mesmo faz com os sonhos. Sua atividade é, na verdade,
unicamente a de comentador em prosa (poética ou não) de seus acontecimentos
cotidianos ou oníricos, sua principal característica e seu modo de encarar ambos. O que
isso quer dizer é que, o que nós lemos, o tal Livro do Desassossego, é o seu modo de
conseguir conviver com esses ambientes que lhe causam desagrado.
Em vários trechos, encontrará na sua escrita a sua verdadeira singularidade e sua
principal razão de mundo, como no 18: “Em sonhos sou igual ao moço de fretes e à
costureira. Só me distingue deles o saber escrever. Sim, é um acto, uma realidade
minha que me diferencia deles. Na alma sou seu igual” (Fragmento 18, p.24). Ou,
inclusive, naquele em que coloca o patrão Vasques como símbolo da vida banal, pouco
depois do trecho citado:
A arte, ou seja, a escrita não serve de evasão nem para a vida cotidiana, nem
para o sonho, mas como o próprio narrador argumenta, ela é que “alivia a vida sem
aliviar de viver”. Adota tanto o escritório como a rua como o sentido de tudo, pois é
sobre os acontecimentos e no seu escritório, que fica na mesma rua, porém em
outro lugar, pois é sobre eles ou neles que escreve. (aqui ficou confuso seu
argumento)
Sendo assim, a tal “figura de livro” citada no fragmento, se torna aquele sendo o
próprio livro, já que é através dele que consegue achar alguma função, dizendo que:
“Sou, em grande parte, a prosa que escrevo”, e após divagar sobre isso, encontramos
dois parágrafos depois, sua declaração de que: “O que sinto é (sem que eu queira)
sentido para escrever o que se sentiu”. Bernardo Soares aceita que sua existência é para
a escrita, suas experiências mesmo do real mundano ou do sonho são para que sirvam
para a sua escrita, que vira então inteiramente ele, numa simbiose para que consiga
continuar vivendo e que o livro também continue sendo escrito. Perfeitamente!
CONCLUSÃO
Como foi analisado, Bernardo Soares está em um estado de insatisfação
constante com a realidade cotidiana pela banalidade das atividades de um ambiente
moderno, da Rua dos Douradores, do Patrão Vasques e da multidão, o que lhe faz
recorrer para algum tipo de evasão, que poderia ser encontrada no sonho, como fizeram
alguns artistas anteriores. Porém, para o ajudante de guarda-livros da cidade de Lisboa,
o sonho também não pode ocasionar uma fuga total da realidade, mas sim criar um
ambiente totalmente particular, de desejo, da intimidade do inconsciente, que serve mais
como uma outra dimensão para sua vida.
Desse desassossego perante com ambosesses inevitáveis ambientes, o mundano
e o onírico, encontra na escrita o modo de extrair os sentimentos deles para então
transformá-los em matéria para sua escrita, fazendo com que ele mesmo se torne
uma “figura de livro”, que tanto vive para escrever como se mantém vivo pela escrita.
Seu ato de escrever une tanto o mundo cotidiano, por estar nele e tratar dele em seus
escritos, como do mundo dos sonhos, pois encontra também na escrita um modo de
transmitir os sentimentos do sonhado e dar aà eles uma nova forma, adquirindo
juntamente aquela característica de particularidade exaltada dos sonhos.
Para concluir, o Livro do Desassossego é a abstração total de Bernardo Soares,
de todas as suas reflexões do reino do real e dos sonhos em seu único modo de encarar
essas duas dimensões, aliviar a vida nelas sem aliviar de viver. Muito bom esse
arremate.
REFERÊNCIAS
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. São Paulo: Livraria Duas Cidades,
1978 p 49.
Uma boa revisão do seu texto evitaria pequenas incorreções ou falta de clareza em
algumas partes. Só por isso, acabei relativizando um pouquinho a sua nota final.
Nota: 4,7