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Tabacaria, Álvaro de Campos

Não sou nada.


Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,


Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
(…)
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
(…)
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Tabacaria pertence terceira fase, mais precisamente, a fase “abúlica” ou "intimista", da obra
poética de Álvaro de Campos, caracterizada por uma profunda frustração, tédio existencial, e
pelo seu tom pessimista.

Tabacaria é um poema longo, veloz e complexo repleto emoções de um sujeito que se sente
perdido diante de tantas mudanças mergulhando nas suas reflexões pessoais. O facto de ser
um poema tão veloz faz com que seja quase impossível transmitir todas as questões que o
autor coloca ao longo de todo o poema.

Em termos de formato este, é um poema tipicamente moderno que possui versos livres, ou
seja, sem rima, quase em prosa e é uma criação poética profundamente descritiva e rica,
estilisticamente falando, dando-nos a sensação de que o poeta não pretende trabalhar a forma
mas sim, transmitir o seu estado de alma. Este nível de descrição, juntamente com recursos
expressivos como a antítese, a metáfora

faz com que sejamos então capazes de perceber tanto o que se passa no mundo interior (seu
próprio pensamento) e o que passa no mundo exterior (tudo o que o autor é capaz de
observar da janela).

Na primeira e na terceira estrofe apresentada, somos capazes de perceber que o personagem


criado por Álvaro de Campos apresenta uma visão pessimista e muito angustiante do seu ser,
não sabendo quem é nem o que quer e não demonstrando ambição nenhuma para o seu
futuro… um ser que abre a sua alma perante todos os leitores fazendo-nos questionar o que
realmente somos, será que somos a pessoa que mostramos pro mundo, ou somos aquela
pessoa cá dentro que nem sempre temos coragem de mostrar

O sujeito poético deixa, então transparecer um ser humano cheio de dúvidas e com uma
sensação de descrença e fracasso que é dirigida tanto a ele próprio como aos que o rodeiam,
no entanto, mesmo apresentando-se como um niilista, ou seja, uma pessoa que problematiza
a falta de sentido da existência humana e que exprime uma inquietação e sofrimento
autodestrutivo, ainda é capaz de deter “todos os sonhos do mundo”.

Na segunda estrofe o "eu" reflete sobre o excesso de realidade do mundo exterior (Do meu
quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é/ Dais para o mistério de
uma rua cruzada constantemente por gente) e a irrealidade de tudo (- uma rua
inacessível/Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, /Com o mistério
das coisas). Existindo uma oposição entre o quarto – dentro – realidade subjetiva e a rua – fora
– realidade objetiva.

Álvaro de Campos, apesar de considerar Alberto Caeiro como o seu mestre é muito diferente
deste, pois a sua angústia não lhe permite ser natural tornando a natureza, para ele, uma
utopia inútil pois não encontra um sentido - Falhei em tudo. /Como não fiz propósito
nenhum, talvez tudo fosse nada. O mesmo tenta então recorrer ao sonho e á capacidade de
sonhar, mas rapidamente percebe que este se desvanece, não passando apenas de imaginação
e deixa para traz, apenas um sentimento de tristeza e incapacidade de alcançar qualquer coisa
que não seja o fracasso… como ele refere nos versos “O mundo é para quem nasce para o
conquistar / E não para quem sonha que pode conquistá-lo”, onde somos capazes de
observar a antítese nada/tudo

O poema como um todo faz-nos questionar entre muitas coisas, quem realmente somos,
nomeadamente a primeira estrofe, mas também a quarta estrofe aqui apresentada que é
também a minha favorita de todo o poema (Fiz de mim o que não soube/E o que podia fazer
de mim não o fiz. /O dominó que vesti era errado. /Conheceram-me logo por quem não era e
não desmenti, e perdi-me…) Este início de estrofe levanta a questão da procura da identidade
(tema este que já foi abordado no Fernando Pessoa ortónimo) e que nos faz pensar na
necessidade humana de querermos ser aquilo que não somos para nos podermos integrar
socialmente.
É possível refletirmos até que ponto as nossas certezas, mesmo as mais pessoais são reais ou
apenas projeções… nós definimo-nos pro mundo, ou deixamo-nos definir.

Ele acaba esta estrofe com um verso que mostra o resquício de esperança de que a sua escrita
o salvará e de que ele pode provar a si mesmo que consegue ser grande (“e vou escrever esta
história para mostrar que sou sublime”), no entanto, o poema termina com o sujeito poético
desiludido e sem esperança enquanto o dono da tabacaria acena e lhe sorri alheiamente aos
seus pensamentos, fazendo-o refletir sobre a simplicidade da vida e na felicidade que almeja,
mas nunca alcança.

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