Você está na página 1de 6

Mario de Andrade / modernismo / maneirismo

Quando terminei nosso encontro passado fiz alusão a certo texto, e por

isso houve quem achasse que devesse correr a ler Mário de Andrade e seu

Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Claro que se deve lê-lo, até se ler

todo Macunaíma. Há mesmo quem suponha, a partir de uma filmografia, que

isto exprima alguma realidade brasileira (está-se procurando pela realidade

brasileira), embora não sei se ela está em Macunaíma. De qualquer forma,

houve um equívoco que não deixou de ser provocado, quando se supôs que se

devia ler Macunaíma. Se o equívoco ajudou a lê-lo, tanto melhor, sobretudo

para se saber, de algum modo, aquilo que Macunaíma exprime com o seu “Ai!

Que preguiça!”, esse “não querer saber de nada” que, quando é considerado,

nos faz produzir o saber. Há uma tônica interessante em Macunaíma que é um

desejo de sono, que ele exprime com “Ai! Que preguiça!”, que é estritamente

o mesmo desejo expresso pelo sonho, quer dizer, certa realidade. Desejo que

faz Macunaíma dormir a toda hora, mesmo na hora de dormir com alguém –

ele “não quer saber” nem mesmo no meio da foda –, enfim ele dorme no meio

da dormida.

Como já escrevi em algum lugar, “a psicanálise é a ciência do phoder”.

Escrevi isto com ph, que na química tem um sentido muito interessante de

potencial hidrogeniônico de uma solução (...)

Interessante em Macunaíma, que equivocamos, é que se trata de dormir

em todos os sentidos de poder escandir esse dormir e a impossibilidade de

foder escandir o poder, suturá-lo para além dessa escansão.

(Ad Sorores, pp.29/30)

Já que nos equivocamos, tanto eu dando o título, como vocês o ouvindo

– o que é muito importante e abandonado freqüentemente na chamada “formação

analítica” –, que não se equivoque o que é dito com o barato literário de Mário
de Andrade, que, de modo algum, deixa de apontar para o objeto a... Para

terminar, citarei o próprio Mário de Andrade em Macunaíma. No período final do texto, diz o
narrador: “...e eu fiquei para vos contar a História. Por isso que

vim aqui. Me acocorei em riba destas folhas, catei meus carrapatos, ponteei na

violinha e em toque rasgado botei a boca no mundo cantando na fala impura as

frases e os casos de” Máquina-Ímã, o erói de nossa gente. Só que Mário de

Andrade termina dizendo que “tem mais não”, e a gente tem que terminar aqui

dizendo: tem mais sim!

Da próxima vez, falarei sobre certas rãs que coaxam em Pessoa. (Ad Sorores, pp48/49)

FI-MENINA

Pelo menos, temos uma indicação em nosso amigo Mário de Andrade

– uma coisa que a gente talvez não dê muita importância no texto, mas o

Macunaíma, que para muitos seria uma tentativa de levantamento desse sintoma,

começa da seguinte maneira: “No fundo do mato-virgem, nasceu Macunaíma,

herói de nossa gente”. É melhor ressaltar essa palavra herói para depois. E

aí se diz: “No momento de seu nascimento era preto retinto e filho do medo

da noite. Houve um momento que o silêncio foi tão grande escutando o

murmurejo do Uraricoera, que a índia Tapanhumas pariu uma criança

feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma”.

Quer dizer, se a mãe era índia, Macunaíma era preto. É claro que ele

vai mudando de cor, pode ficar até louro de olhos azuis, como todo crioulo

nacional aspira, quer dizer, são nesses embates das culturas pelo privilégio de

certos significantes que se monta esse barato estranho chamado Brasil.

Por que será que Mário de Andrade fez esse nascimento como preto?

Não será talvez algum indício de se trata de América-Africana? Não será

talvez alguma sacação de que o significante preto, enquanto situado no regime

das chamadas raças – estou falando de raça não no sentido físico-antropológico

ou biológico do termo, mas no sentido de coalescência discursiva (aliás, é como

Lacan define, raça como repetição discursiva) desse que no texto é chamado o

herói da nossa gente – ou seja, aquele que poderia arcar com a posição
paterna – certamente, tivesse ganho, às avessas, a batalha discursiva?

É muito importante notar (não é ainda o momento, mas eu gostaria de

fazer, futuramente, um Seminário inteiro só da leitura de Macunaíma) que, como

todo mundo conhece a história, Macunaíma, depois de todas as peripécias, e

depois de atravessar o feminino – vocês se lembram da Uiara? A Uiara é

aquela que tinha um buraco na nuca, quer dizer, o que caracterizava a Uiara é

o buraco na nuca.

E, ao transar de algum modo com essa do buraco, Macunaíma é mutilado

em várias coisas, sobretudo nos culhões, os “cocos da baía” como diz Mário,

perde também um perna (um membro) e no fim da peripécia toda, sobe aos céus,

e se constitui numa constelação chamada Ursa Maior. Quer dizer, é uma espécie

de castração (se não emasculação), de atravessamento para o outro lado,

constituindo-se em referência constelar. O que não é outra coisa, senão, talvez a

função paterna, marcação de Nome do Pai.

Mas, interessante, marcação essa que vem travestida de feminino (já

que estávamos falando da sexualidade feminina...). A Ursa Maior, diz Mário de

Andrade, é Macunaíma, “é mesmo o herói capenga que de tanto penar na

terra, sem saúde e com muita saúva, se aborreceu de tudo, foi-se embora e

banza solitário no campo vasto do céu”. Campo vasto do céu, certamente, é

o campo de todas as inscrições, onde o Real comparece, mas que é lido como

campo de inscrição - o chamado campo do Outro. E aí estamos de volta a algumas

questões que vão ficar suspensas, já que o Seminário sobre esse feminino, deste

semestre, se encerra hoje.

E o que terá a ver a construção do Nome do Pai com essa postura de

feminino? Como a gente se lembra, nas fórmulas quânticas, é exatamente o

significante paterno que está em cheque, na chamada sexualidade feminina. E

como podemos acoplar isto com essa possibilidade de pensar o que quis chamar,

a partir do que disse Betty, de América-Africana, e colocar esse elemento negro

como um significante, digamos, de certo modo, vencedor nesse embate?


ORDEM E PROGRESSO POR DOM E REGRESSO

A determinação é simbólica. Não posso recortar uma teta sem esse

signifi cante. O bebê, ele lida com pedaços, é suposição minha, ou é da Melanie

Klein. Ele fi ca chupando uma coisa, naquele movimento que é uma máquina,

como diz Deleuze. Mas este pode se deslocar, nomeado, como letra da minha

transação específi ca. Então, constituo meu corpo. Se pudéssemos desenhar o

corpo, tal como o concebemos, não pareceria de modo algum com nenhuma

imagem fotográfi ca. Daí, a luta do academicismo com o modernismo na pintura.

Há um corpo a ser desenhado, uma geografi a que o pintor às vezes consegue

mapear, que é o seu percurso pulsional e que não está adstrito, de modo algum,

aos objetos de carne, disso que chamamos corpo humano no sentido anatômico

da medicina. Posso ter, por exemplo, um corpo com um seio que liga direto

numa tomada de ventos que é fomentada por um livro que é órgão de uma biblioteca

que tem por baixo um rio que corre e o sol não se pôs ainda. Um corpo

complicado, muito estranho. Um corpo com-plexo... e com nexo (p.145)

A NATUREZA DO VÍNCULO

Erói dilacerado entre as diferenças, capaz de se mostrar como pura constelação,

no final de Macunaíma. Se está aprisionado por uma neurose muito específica

nossa – que, tomado de Anísio Teixeira, chamo de mazombo –, é justamente

pelo fato de ser essa dilaceração entre as diferenças. Então, às vezes, por

certo horror, terror, começa a supor que seu referencial deve ser externo. Aí,

passa a ser um imitador neurótico do caráter nacional dos outros.

Ao invés de acreditar nos delírios nacionais, só acredita em delírios

estrangeiros. Delírio estrangeiro não é delírio. Delírio nacional é loucura. Podese

tomar o delirante do Lacan e achá-lo genial, mas o Magno, este não, pois é

delirante. Se conseguirmos ficar livres dessa doença e supusermos que temos

o direito de dizer no nosso sintoma acaracterológico com toda clareza, aí

estaremos dizendo quem é eu, para nós e para qualquer parte do mundo.
A certeza desse sujeito – se é que precisamos deste nome –, ou melhor,

a certeza de nós dizermos eu está assentada sobretudo na dupla face angustiante

e angustiosa entre Haver e não-Haver. Entre Haver, como formações primárias

e secundárias, e essa coisa que, retirada a neurose nacional, tenho a impressão

de que o que há de típico do brasileiro, por sua história, pela concorrência na

própria vizinhança – aquela diferença espantosa o dia inteiro varrendo as nossas

formações –, é o reconhecimento de uma identidade, e não de uma

identificação, no regime do sujeito que chamo de com’Um, do sujeito largado

aí na dilaceração da diferença.

Para que serve isso? Que destino – se não o temos, segundo a neurose

de alguns – podemos, pelo menos, produzir, construir para nós? O destino da

Utopia, como já pedia a genialidade de Oswald. Utopia, quer dizer: um

lugar onde caiba de tudo.

Se conseguirmos limpar a “neura” que acompanha isso, talvez o destino

que possamos emprestar à nossa existência de brasileiros seja o de construir o

que pode ser a razão do século XX1, que o tal do pós-moderno apenas sugere,

mas não consegue realizar. Apenas sugere o quê? O lugar onde caiba de tudo,

de todas as cores, de todos os cheiros, de todas as raças, de todas as dores, de

todas as maneiras, de todos os discursos... E que se consiga inventar a

convivência disso para além do racismo terminal do século XX. Acho, enfim,

que eu é isso: um cara com’Um. Não preciso, pois, falar de sujeito.

PSICANÁLISE NOVAMENTE

Se estou conjeturando a respeito do chamado universo, parece que

nosso psiquismo funciona de modo que tudo que se coloca diante dele, se ele

não faz imediatamente o exercício de virar pelo avesso, pelo menos pode muito

bem fazê-lo. Ao que quer que compareça para nossa mente, pode ser posto

o contrário. Em última instância, ao que quer que compareça, posso dizer não

– o que é já dizer o avesso do sim que a mim se apresentou. Aí é que quero

pensar que a estrutura do psiquismo é em espelho. Que nossa última instância

mental é a competência de revirar pelo avesso o que quer que se nos apresente.
Por isso, chamo de Revirão a cambalhota que desenhei da vez anterior, que

é a condição de exercício supremo de última instância de nossa maneira específica

de ser, diferente de todos os outros seres que conhecemos. O enantiomorfismo,

a catoptria, de nossa mente, podemos supor que também seja do Haver.

Digo, então, que aposto declarada e fortemente naquilo que, no campo da ciência,

chamam de princípio antrópico, forte ou fraco, dependendo do grau de

insistência e da pressão que se faz sobre o reconhecimento do movimento

antrópico, i.e., da reflexão recíproca entre o Haver e nossa existência. O princípio

antrópico, falando barato, diz que, se existimos refletindo a respeito do universo,

é porque o universo está informado de maneira a vir nos produzir para fazermos

justamente isto. Se estamos pensando a respeito do que há, refletindo, criando

ciência, seríamos aparelhos de auto-observação do universo que nos

fabricou, se é que foi assim, ou se isso se fabrica sozinho dentro dele, de

maneira a lhe permitir refletir-se a si mesmo. Ou seja, há um princípio de

espelho no universo, o que é aceito por tantos cientistas. Stephen Hawking,

por exemplo, que é o Aleijadinho lá de Londres: só que ao invés de esculpir

profetas como o nosso escultor barroco-mineiro (ou melhor, maneiro) ele

profetiza ex-culturas.

Você também pode gostar