Você está na página 1de 24

Cesariny 

: grandes mitos/ heróis menores

De Fernando Pessoa, da sua obra e as suas façanhas, continua a estar tudo


dito já que todas as leituras são possíveis. Proporcionar agora mais uma bandeira-
pessoa seria “acordar tão tarde que equivalia a dormir outra vez” 1. Antes de
começar, é-nos imposta uma forma, um conteúdo. Antes de tomar a palavra,
somos obrigados a inscrever-nos numa tradição para ter o direito de a exercer.
Fernando Pessoa exerce, tanto na literatura como na crítica literária portuguesa
do século XX, uma função repressiva evidente; é o Édipo literário por
excelência: não ousarás escrever em nome próprio antes de teres lido tudo sobre
o «guardador de rebanhos»! Muitos não sobrevivem. Fala-se mais de Pessoa do
que se lê Pessoa. Fala-se de Pessoa demais, dirão. Diz o próprio Cesariny que “o
peso de um homem é demais aqui” 2. Mas falar de Fernando Pessoa, citar de
memória os seus versos é comunicar uma espécie de lei que enuncia as razões da
conduta literária “porque as razões de Fernando Pessoa são sempre antes de toda
e qualquer Razão que esta ou aquela realidade comuns tenham para decantar” 3.
Falar sem parar de Pessoa é inventar, duma certa maneira, uma nova tradição
oral. É revelar a existência de um enigma ao mesmo tempo que se dá a sua
solução: resposta sem pergunta, solução sem problema. Celebrar a sua palavra
em conversas cerimoniais como esta é a garantia última de que não perdemos a
intimidade com o mito. Repetir o mito é congelar a passagem do tempo. Repetir
o mito é assegurar o seu regresso. Sempre. E talvez por isso mesmo não seja
forçado exclamar com a voz de Cesariny, mais uma vez: “Que força, no entanto,
e que exemplaridade, neste contínuo projecto de sucessão!”4

1
Mário Cesariny, «Rimbaud» in As mãos na água a cabeça no mar, Lisboa, Assírio e
Alvim, 1985, p. 36.
2
Mário Cesariny de Vasconcelos, «Discurso sobre a reabilitação do quotidiano»,
Poesias (1944-1955), Lisboa, Delfos, 1956 (?), p. 105.
3
Mário Cesariny, «Fernando Pessoa» in As mãos na água a cabeça no mar, Lisboa,
Assírio e Alvim, 1985, p. 71; texto publicado inicialmente com o título «Fernando
Nogueira Pessoa Autoractor», jornal Diário Popular, Lisboa, 16-1-1958.
4
Ibidem, p. 72.

1
«[N]o ano da graça de 1946» 5, Cesariny apercebe-se do perigo de
“canonização” de Fernando Pessoa. Já lera uma parte importante da poesia
ortónima assim como também a poesia de Campos, Reis, Caeiro nas Edições
Ática que iam publicando as Obras Completas desde 1942. Já saíra o volume de
textos críticos editado por Jorge de Sena, em 1946, com o título Páginas e
Doutrina Estética.
“A Presença […] – tal como anuncia Fernando J. B. Martinho6 - consagra-
o, dá-lhe o estatuto de mestre, e inclui nas suas fileiras alguns dos seus primeiros
discípulos; os neo-realistas adoptam em relação a Pessoa uma atitude
ambivalente – criticam-lhe o perfil ideológico, apontam-no como «poeta de
classe» ou «poeta da hora absurda», mas não deixam de lhe aproveitar a lição,
designadamente em relação a certas áreas temáticas (de modo muito especial, as
de incidência marítima ou, mais restritamente, portuária) e, no plano da
expressão, à ampla utilização do verso livre”.
Em 1953, na nota à primeira publicação do poema «Louvor e
Simplificação de Álvaro de Campos» (edição Contraponto, Lisboa), Mário
Cesariny de Vasconcelos abre o seu «diálogo íntimo» com o mito pessoano, com
uma provocação: “«Simplificar» Fernando Pessoa, tomando de empréstimo
alguma da sua linguagem, e reduzi-lo ao voto de um barco para o Barreiro, é
coisa em que cada um só deve cair uma vez. Fique, pela parte que me toca, o
molde da queda e o valor da experiência […].” 7 O exercício de «martirológio»
pressupõe, portanto, uma simplificação, um empréstimo e a experiência da
queda.
O objectivo parece simples: reduzir Pessoa «ao voto de um barco para o
Barreiro». Mas de que maneira se dá esta simplificação? Se é que simplificar

5
Mário Cesariny, Nobilíssima visão, Lisboa, Assírio & Alvim, 1991, p. 65.
6
Fernando J.B. Martinho, "Alexandre O'Neill e Pessoa", in: Revista Colóquio/Letras.
Ensaio, n.º 97, Maio 1987, p. 48-56.
7
Mário Cesariny, « Fernando Pessoa » in As mãos na água a cabeça no mar, Lisboa,
Assírio e Alvim, 1985, p. 23.

2
implica um processo de «menorização8», como, onde e o quê corta? Se é que
toma palavras de empréstimo, como e o quê salva?
Em 1989, Cesariny reincide no seu «diálogo íntimo» com Fernando
Pessoa e publica o volume O Virgem Negra com o seguinte subtítulo:
FERNANDO PESSOA explicado às criancinhas naturais & estrangeiras por
M.C.V. who knows enough about it
Cesariny, tal como acontece nos outros surrealistas (André Breton,
António Maria Lisboa, Pedro Oom, Mário Henrique Leiria, etc.), transforma o
ego em simples lugar de passagem do heterogéneo. “O processo do «cadáver
esquisito», pelas relações que provoca nos espíritos, liberta-os dos seus limites, e
ilustra o axioma de Lautréamont: «A poesia deve ser feita por todos. Não por
um». É também o voto de Novalis, a dois séculos de distância: «Um dia, nações
inteiras poderão escrever um livro…»”9. Mas em que medida esta actualização
do poder do anónimo se poderia confundir com a própria «Arte de inventar os
personagens»10?
“Pomo-nos bem de pé com os braços muito abertos
e olhos fitos na linha do horizonte
Depois chamamo-los pelos seus nomes
e os personagens aparecem”.
Basta chamar, «ser natural com eles», chamar-lhes pelo nome, dizer,
«Senhor Fantasma vamos falar», «Senhor Fantasma em que é que trabalha?»,
«Senhor Fantasma vamos dormir»11.

8
Usamos os termos “menor”, “menorização” segundo a ampliação que Gilles Deleuze
faz do conceito de “literatura menor” no seu livro Kafka: Pour une littératue mineure
(1986).
9
Mário Cesariny, Sobre «Realismo e realidade na literatura contemporânea» (texto
apresentado no âmbito do Colóquio Internacional de Madrid organizado pelo Congresso
para a Liberdade da Cultura, presidido por Pierre Emmanuel, e publicado no Jornal de
Letras e Artes, Novembro de 1963) in As mãos na água a cabeça no mar, Lisboa,
Assírio e Alvim, 1985, p. 96.
10
cf. Mário Cesariny, «Manual de prestidigitação», Poesias (1944-1955), Lisboa,
Delfos, p. 251.
11
Ibidem, p. 252-3.

3
É urgente fazer descer o mito, o Fantasma, da altura da sua essência ao
acontecimento natural das coisas simples, ao poder de intervenção do anonimato,
à experimentação do banal, ao riso, só.
É urgente começar um diálogo íntimo com o Fantasma, deixá-lo entrar
dentro de si, falar em si/por si, preparar a despedida na medida em que o próprio
livro, Louvor E Simplificação de Álvaro de Campos, é a «despedida duma zona,
duma escrita. Foi uma espécie de exercício na linguagem de Álvaro de
Campos.»12
O exercício actua usando a repetição e, tal como o rasto inevitável duma
tradição oral, a “linguagem de Álvaro de Campos” é invadida pelo esquecimento.
Torna-se impossível repetir com/ as mesmas palavras. Há variações:
Álvaro de Campos
“Vem, Noite, antiquíssima e idêntica
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito. 13

Mário Cesariny
“Vem, Vulva antiquíssima e idêntica
Vulva Rainha nascida destronada morta
Vulva igual por dentro ao silêncio, Vulva
Com teus pentelhos lantejoulas rápidas
No teu Olho franjado de Infinito.14”

A «desratização» de Campos contamina também o poema “Tabacaria”


cujos primeiros versos surgem também sob o signo da amnésia do rapsodo:

Álvaro de Campos

12
Na entrevista com Francisco Vale, in Jornal de Letras, nº 38, 3 a 16 de Agosto 1982.
13
Fernando Pessoa, Obra poética, Rio de Janeiro, Aguilar Editora, 1965, p. 311.
14
Mário Cesariny, O Virgem Negra, p. 81.

4
“Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”15

Mário Cesariny
“Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer nada… Lembram-se?
Então estendam-se ao sol, abdigam e entendam-se”16

Num outro poema do ortónimo, «O Menino da sua Mãe» a variação


contradiz o original:
Fernando Pessoa
“Lá longe, em casa, há a prece:
«Que volte cedo e bem!»
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino de sua mãe.”17

Mário de Cesariny

“Lá longe – na Casa do Conto – há a prece:


«Que morra cedo e bem!»
Malhas que o Império tece!
Ainda vive e parece
O menino de sua mãe.”18

15
Ibidem, p. 362.
16
VN, p. 34.
17
Ibidem, p. 362.
18
VN, p. 47-8.

5
Mas Cesariny não produz apenas variações, muda o significado. Se em
Álvaro de Campos a transcendência passa por uma existência (“tenho em mim
todos os sonhos do mundo”), Cesariny duvida que a existência ainda precise
duma transcendência (“então estendam-se ao sol, abdigam e entendam-se”). Se
«O Menino da sua Mãe” “Jaz morto, e apodrece” em Álvaro de Campos, com

Será, certamente, uma experiência de sentido único porque, fomos


avisados, “é coisa em que cada um só deve cair uma vez”. Um ensaio portanto,
uma queda que não deixa, no entanto, de ter uma estrutura paradoxal. Porque o
ensaio pressupõe uma lógica da repetição, como vimos, uma experiência que
sofre variações. Os paradoxos, infelizmente, não têm explicação possível. O que
podemos fazer é organizar o nosso mal-estar do pensamento, que a tensão do
paradoxo alimenta continuamente, em torno a três palavras: interferência,
desconcerto, ensaio.

Interferência
Numa conferência em Lisboa, Pierre Bourdieu proferia: «cada povo gere o
seu estrangeiro». Deslocando o gesto, talvez não seja menos provável que cada
autor seja capaz de gerir o seu próprio estrangeiro, assim como cada um de nós
inventa o seu El Dorado e o seu terceiro mundo. Estrangeiro porque vem de fora,
porque mesmo se “íntimo” guarda o rasto de um corpo estranho, a memória
doutro lugar, a necessidade doutros sonhos, o delírio doutra loucura. O que
diferencia o mundo heterónimo da dispersão surrealista é o que separa a
«paranóia-crítica» da «paranóia-clínica»19: “[…] a «loucura» de Pessoa não sai
nunca da «linha da razão». É metodológica. A raiva-fúria com que se aplica a
seguir vigorosamente um raciocínio para, no momento seguinte, demonstrar por
a+b a vigorosa vitalidade do raciocínio contrário contém matéria sobeja para a

cf. Mário Cesariny, «Fernando Pessoa» in As mãos na água a cabeça no mar, Lisboa,
19

Assírio e Alvim, 1985, p. 71.

6
descoberta de um exercício de exaustão do aparelho inquiridor, que na mão de
Pessoa toma o cândido nome de «devaneio lógico».”20

Kierkegaard dizia que não adianta nada ter a Abraão como pai. Não é
necessário ter dezassete antepassados. Se se quer dar à luz mais do que vento, é
preciso estar disposto engendrar o próprio pai.21.
Pensar o encontro ente Cesariny e Pessoa num registo segundo uma
concepção não historicista da história, isto é, atrever-se a pensar na possibilidade
de uma história que não seja para o pensamento uma espécie de conclusão e
conta da existência, mas que esteja disposta a ficar ao serviço duma nova
corrente de vida, implica, como uma prova de fogo, o desafio de chegar a
inventar a cena deste parto difícil.
Jorge Luís Borges, num breve texto de 1951, Kafka y sus precursores,
aborda directamente a questão dos precursores, enquanto problema fundamental
da história da literatura e da crítica literária.
De uma maneira geral, o conceito de precursor é entendido no sentido de
alguém que vem antes do outro, para anunciar a sua chegada; o precursor precede
e anuncia, é antecessor, mas também é mensageiro, ou um signo: o precursor do
Cristo é São João Batista, as nuvens no horizonte são precursores da tormenta.

No entanto, a crítica literária impõe um uso que sobre-determina o


conceito de precursor, e segundo o qual o precursor parece regido por uma lógica
causal mais ou menos apurada, sobre o horizonte de uma temporalidade
estritamente linhal: o precursor é fundamento (enquanto antecessor) e
manifestação (enquanto signo).
O precursor é um conceito da história, o seu ascendente opera desde o
passado para o futuro, e a categoria crítica que responde a todos os aspectos é a
categoria clássica de influência.
O artigo de Borges opõe-se estritamente a esta concepção clássica do
precursor. A história – neste caso a história da literatura – não aparece já dada,
20
Ibidem, p. 72.
21
Kierkegaard; citado en Harold Bloom, A angústia da Influência, p. 85.

7
não é um resultado, uma conta, dá-se em cada instante, em cada acontecimento.
Um acontecimento capaz de re-determinar por completo as suas relações
essenciais. Ou, melhor, a obra não encontra uma especificidade própria na
história sem determinar a história nas suas relações constitutivas. Porque o
Quixote já não é exactamente o Quixote que Cervantes concebeu ao princípio do
século XVII22 assim como Pessoa já não é o Pessoa do princípio do século XX.
“O que faz com que um acontecimento repita outro apesar de toda a sua
diferença […] não são as relações de causa e efeito, mas um conjunto de
correspondências não causais, que formam um sistema de ecos, de respostas e
ressonâncias, um sistema de signos, brevemente, uma quase-causalidade
expressiva, e não uma causalidade necessitante.”23.
Efeito retroactivo da actualidade sobre o pasado (inactualidade), a obra
põe em acção um conjunto de transformações incorporais (modificações das
relações, reevaluação das singularidades, transvaloração – enfim – de todos os
valores) que têm lugar na história da literatura e que se atribuem às obras e aos
autores desta história como os seus atributos essenciais. Num certo sentido, as
obras e os autores da história da literatura, enquanto singularidades, não se
modificam, mas passam a formar parte de novas séries, de um novo plano, de
uma nova perspectiva e isto faz com que se tornem notáveis, menores, ou
simplesmente irrelevantes.
Para Borges, não se trata de retomar uma tradição, mesmo se o autor,
assim como acontece com Cesariny, esteja a retomar figuras da «história», mas
antes, e sempre, de inventar os seus precursores, os seus «intercessores», para
usar uma linguagem que é própria ao Deleuze: “O essencial é os intercessores.
Sem eles não há obra. […] É necessário fabricar os seus intercessores. É uma
série. Se não se forma uma série, inclusive completamente estamos perdidos. Eu
preciso dos meus intercessores para expressar-me, e eles não se expressam nunca
sem mim: trabalha-se sempre entre vários, inclusive quando não se vê.”24.
22
Borges, «El libro» (1978), IV, p. 171
23
LS 199.
24
PP 171. Existe una versión diferente de la idea deleuziana de los precursores en Qu’est-ce que la philosophie?, que
retoma una idea más tradicional del concepto, pero que no pareciera tener un desarrollo ni antes ni después del libro
escrito en colaboración con Guattari: “Cuando se pregunta: ¿existen precursores del cogito?, se pretende decir:
¿existen conceptos rubricados por filósofos anteriores que tengan componentes similares o casi idénticos, pero que

8
Cesariny precisa dos seus intercessores para expressar-se e eles não se
expressam nunca sem ele.
Cesariny precisa de Mário de Sá Carneiro:
“Com certa espécie de solidariedade
lembro-me de ti, Mário de Sá-Carneiro,
poeta-gato-branco à janela de muito prédios altos
Lembro-me de ti, ora pois, para saudar-te,
para dizer bravo e bravo, isso mesmo, tal qual!
Fizeste bem, viva Mário!, antes a morte que isto,
viva Mário a lançar um golpe de asa e a estatelar-se todo
cá em baixo
(viva, principalmente, o que não chegaste a saber, mas isso
é já outra história…)”25
Cesariny precisa de Raul Leal, “o único e verdadeiro doido de
«Orpheu»”26, precisa “De Shakespeare e de Marlowe/ Mas também (ainda não
disse) de Donne/ De Milton, de Mepherson, de Coleridge,/ De Chatterton, de
Carlyle, de Wordsworth, de Browning, /De Byron, De Schelley, de Yeats, de
Keats, de Tennyson, de Pöe,/ dos três Rossettis e de Swedenborg […]” 27
Cesariny precisa sobretudo de Pessoa, porque “O Antinoo o Epithalamium
os Sonetos Ingleses e a Mensagem/ Foram os únicos livros/ Que me interessou
publicar.”28 Precisa do Álvaro, do Alberto, do Ricardo, do Fernando, precisa da
“Nini”, da “Ofèli”, do “Ibi”, do “Bèbèzinho”, do próprio “engenheiro naval”
Álvaro de Campos.
Cesariny precisa desta série de vozes para fazer ressoar a própria palavra
de ordem da escrita: a criação. Precisa partilhar a obra29

carezcan de alguno de ellos, o bien que añadan otros, de tal modo que un cogito no llegará a cristalizar, ya que los
componentes no coincidirán todavía en un yo? Todo parecía estar a punto, y sin embargo faltaba algo. El concepto
anterior tal vez remitiera a otro problema que no fuera el cogito (es necesaria una mutación de problema para que el
cogito cartesiano pueda aparecer), o incluso que se desarrollara en otro plano” (QPh 31). Por otra parte, esta
exposición de la idea de precursor podría ser fácilmente subordinada a la idea borgeana, tal como mostraremos a
propósito de las formulaciones aparentemente historicistas de Différence et répétition.
25
Mário de Cesariny, Poesias (1944-1955), p. 82.
26
Mário Cesariny, O Virgem Negra…, Lisboa, Assírio e Alvim, 1989, pp. 77.
27
Mário Cesariny, O Virgem Negra…, Lisboa, Assírio e Alvim, 1989, pp. 21.
28
Mário Cesariny, O Virgem Negra…, Lisboa, Assírio e Alvim, 1989, pp. 20.

9
Então, quando Cesariny retoma e lança a palavra de Álvaro de Campos
num processo de variação, temos que pensar neste gesto, não segundo a
perspectiva duma história no sentido genealógico, mas enquanto uma história no
sentido ficcional que traçaria um plano a partir de uma série de pontos singulares
que careceriam em sentido próprio de uma história comum30.
No fundo, se vamos apurar a significação do conceito de tradição, temos
que admitir a possibilidade de usar a expressão: “tradição menor”. O menor pode
ter um corpo próprio mas nunca uma organização intrínseca. Não é reconhecido
na história; é pensado como divergência fundamental. E nesta “história
alternativa” não podemos pensar sequencialmente, id est, não assistimos a uma
sequência de interferências. Há um devir comum, uma

As palavras de Fernando Pessoa misturadas com as de Cesariny produzem


um efeito de estranheza antes que de familiaridade, mas esta estranheza não é o
efeito de uma interpretação extravagante que se situaria no lugar do fim da
história. Pai excessivo e claudicante, Cesariny distorce, força os textos
introduzindo a deslocação mínima necessária para os pôr em movimento.
De alguma maneira, esta distorção que reúne autores e palavras que a
própria história da literatura manteria a distância tem por objecto sacudir as
familiaridades que temos do texto pessoano; constrói uma heterotopia que
conecta certas singularidades aos problemas que

29
Jacques Rancière, em La Haine de la démocratie – Chroniques des temps consensuels
insiste neste poder no anónimo na criação: “A própria noção de estética implica uma
forma de experiência compartida por não importa quem, uma espécie de poder do
anónimo no mundo da arte, que corresponde em última instância ao poder do anónimo
que é o fundamento do político. Por outro lado, é no mesmo movimento que aparece,
no final do século XVIII, uma articulação contraditória entre a igualdade como
fundamento da política e esta forma específica de igualdade, de suspensão de
hierarquias na arte, que faz apelo a uma comunidade partilhada por qualquer um”.
30
Cf. QPh 23: “Pero por otra parte un concepto tiene un devenir que atañe en este caso a unos conceptos que se
sitúan en el mismo plano. Aquí, los conceptos se concatenan unos a otros, se solapan mutuamente, coordinan sus
perímetros, componen sus problemas respectivos, pertenecen a la misma filosofía, incluso cuando tienen historias
diferentes. En efecto, todo concepto, puesto que tiene un número finito de componentes, se bifurcará sobre otros
conceptos, compuestos de modo diferente, pero que constituyen otras regiones del mismo plano, que responden a
problemas que se pueden relacionar, que son partícipes de una co-creación. Un concepto no sólo exige un problema
bajo el cual modifica o sustituye conceptos anteriores, sino una encrucijada de problemas donde se junta con otros
conceptos coexistentes”.

10
De algún modo, esta distorsión, que reúne autores o conceptos que la
historiografía filosófica mantiene o mantenía a distancia, y cuya vecindad nada
hacía prever, tiene por objeto sacudir todas las familiaridades de la imagen que
tenemos del pensamiento, no menos que construir una heterotopía propiamente
filosófica, conectando ciertas singularidades de la historia de la filosofía a los
problemas que son los nuestros, en la espera de que esas nuevas ligaciones basten
para destrabar una situación o desplazar una cuestión.
En lugar de hacer de la heterotopía, como Foucault, un concepto que nos
permite comprender que históricamente se ha pensado de otras maneras (historia
de la alteridad y de la discontinuidad), Deleuze se vale de la misma para dar
consistencia a sus propios conceptos (en la espera, siempre, de un otro
pensamiento por venir). El primer método –la genealogía, en un sentido amplio–
quiere servirse de las filosofías del pasado, de sus autores y de sus conceptos,
para poner en cuestión el carácter normativo del pensamiento presente; el
segundo, con un objeto próximo, pero no asimilable, ejerce una suerte de
resistencia dentro del propio pensamiento presente, a partir de una suerte de
consideración intempestiva, que, con suerte, puede llegar a abrirlo al porvenir.
Más allá de la comprensión del pasado y el trabajo dialéctico entre lo
nuestro y lo otro, Deleuze nos propone la experimentación de una repetición
bruta de los textos y de los conceptos (de «ciertas singularidades» como aclaraba
Borges al referirse a la obra de Kafka), sobre el horizonte de problemas
(nuestros) que propiamente están más allá de las relaciones que históricamente
habrían legitimado su creación.
Ni idolatría de los hechos, por lo tanto, ni comprensión de la historia a
partir de unos presupuestos cuya explicitación resultaría perpetuamente diferida.
La repetición no resuelve estas cuestiones, no deshace esta tensión, pero desplaza
el problema de la historia de la filosofía sobre un plano eventual (evenementiel)
sobre el que ven transformado su sentido31.
31
Me parece que este modo de marcar la diferencia, que se distancia de las empresas descontruccionistas o
arqueológicas, escapa entonces también a la corrección hermenéutica que le es correlativa. Edgardo Castro me
concedía de buena gana que la historia de los conceptos no es la historia de lo mismo, que nuestros conceptos no
están presentes desde el origen, que no hay en definitiva origen absoluto. La historia de las ideas, me decía, es, más
bien, la historia de lo otro, de las diferencias. Pero, perteneciente a una tradición que no deja de serme extraña, me
invitaba a considerar una corrección de tipo hermenéutico. Quisiera ser fiel a sus argumentos, por lo que me permito

11
Así, en Qu’est-ce que la philosophie?, podemos leer: “decimos que todo
concepto tiene una historia, aunque esta historia zigzaguee, o incluso llegue a
discurrir por otros problemas o por planos diversos. En un concepto hay, las más
de las veces, trozos o componentes de otros conceptos, que correspondían a otros
problemas y suponían otros planos. No puede ser de otro modo ya que cada
concepto lleva a cabo una nueva repartición, adquiere un perímetro nuevo, tiene
que ser reactivado o recortado”32.
***

Es en este sentido, y sólo en este sentido, que puede pensarse una cierta
contemporaneidad de los autores más alejados cronológicamente en la historia de
la filosofía que nos propone Deleuze33: afirmación de la realidad de lo virtual
(inactualidad) antes que rebatimiento generalizado sobre el presente (actualidad).
En cada acto de creación, como “en cada acontecimiento hay muchos
componentes heterogéneos, siempre simultáneos, puesto que cada uno es un

una larga cita: “La advertencia de Foucault es ciertamente capital (...) pero, como hemos tenido la oportunidad de
mostrarlo en otro lugar y como lo ha puesto de manifiesto la misma evolución intelectual de Foucault, ni siquiera su
propia mirada, tan atenta a evitar ver reflejado lo mismo en lo otro, está totalmente inmune de elementos
retrospectivos que, puesto que la discontinuidad absoluta es de hecho impensable, terminan volviéndose inevitables.
Porque, por un lado, no podemos prescindir de nuestro lenguaje; nuestra comprensión se da y se expresa en él. (...)
Porque, por otro lado (...) aunque no la pensemos y expresemos con términos idénticos, es a la misma humanidad a la
que nos referimos. (...) El pensamiento, en su forma filosófica, literaria o plástica, no se reduce a la época o la
sociedad que lo vio nacer, ni al temperamento de su autor, ni a los términos con que fue expresado por primera vez.
Leer Homero solamente para descubrir la mentalidad de la Grecia arcaica sería negar que pueda decirnos algo acerca
del hombre mismo. (...) En la Segunda inactual, Sobre utilidad y perjuicio de la historia para la vida, Nietzsche
analiza, precisamente, las consecuencias dañosas del historicismo del siglo XIX sobre la cultura. Ve en el exceso de
conocimientos históricos (sería mejor decir, de datos históricos) y en la desvinculación entre este conocimiento y la
vida, como si nuestra relación con el pasado fuese simplemente turística, la ruina misma de la auténtica cultura. (...)
La categoría de discontinuidad aplicada a la historia de los conceptos ha tenido ciertamente el mérito de liberarnos de
un prejuicio subyacente en las concepciones historiográficas de la modernidad: la idea de evolución (y de ese otro
perjuicio que también denunciaba Nietzsche, la consideración epigonal acerca de nosotros mismos). (...) Pero, a la
vez, tiene la desventaja de acentuar el otro prejuicio característico de la historiografía moderna, es decir, la categoría
de novedad; hasta el extremo de socavar el concepto mismo de razón en nombre de la cual la propia modernidad se
había erigido; reduciéndola a ser sólo la hija de su tiempo. (...) La relación con nuestro pasado, precisamente porque
es nuestro, no puede ser pensada sólo en términos de discontinuidad” (Castro, Edgardo, «La contemporaneidad de
Homero», Buenos Aires, 1999; pp. 4-6). A esta idea de la historia de la filosofía, y la lectura de la Segunda Inactual
sobre la que busca sustente, a medio camino entre la hermenéutica y el archivo, me parece que es necesario escaparle
de todas maneras. Pero para plantear una alternativa no basta con contestar a estos argumentos, que paren, por otra
parte, muy bien plantados en su lugar. Es necesario, como señalamos, desplazar el problema. En este sentido, el
montaje de la historia de la filosofía (montaje en el sentido plástico y cinematográfico) que opera Deleuze en torno a
la cuestión de la univocidad, me parece una alternativa mucho más productiva.
32
QPh 23. Cf. LS 7. Cf. Antonioli, Deleuze et l'histoire de la philosophie, p. 7: “De esta indecibilidad del sujeto de
enunciación nacen las críticas opuestas y convergentes que se dirige habitualmente a este método: se acusa a Deleuze
o bien de reducir la actividad filosófica al comentario, o bien reconducir los autores comentados a su propia filosofía.
Pero el efecto principal de esta estrategia de lectura debería ser justamente poner en causa toda «propiedad» del
pensamiento y la identidad de toda signatura, de afirmar la dimensión colectiva e impersonal de un pensamiento
hecho de agenciamientos múltiples”.
33
Cf. Rajchman, As ligações de Deleuze, pp. 47-48.

12
entre-tiempo, todos en el entre-tiempo que los hace comunicar por zonas de
indiscernibilidad, de indecidibilidad: son variaciones, modulaciones, intermezzi,
singularidades de un nuevo orden infinito. Cada componente de acontecimiento
se actualiza o se efectúa en un instante, y el acontecimiento en el tiempo que
transcurre entre estos instantes; pero nada ocurre en la virtualidad que sólo tiene
entre-tiempos como componentes y un acontecimiento como devenir compuesto.
Nada sucede allí, pero todo deviene, de tal modo que el acontecimiento tiene el
privilegio de volver a empezar cuando el tiempo ha transcurrido”34.
La creación, en este sentido, constituye algo así como una anti-historia, una
anti-genealogía, una anti-memoria: “El sistema-línea (o bloque) del devenir se
opone al sistema-punto de la memoria. El devenir es el movimiento gracias al
cual la línea se libera del punto, y hace indiscernibles los puntos: rizoma, lo
opuesto de la arborescencia, liberarse de la arborescencia” 35.

Y la creación se encuentra ligada, en la misma medida, a una temporalidad


alternativa, o, más exactamente, a una temporalidad pluralista, a
configuraciones temporales siempre diferentes, cuyo esquema tendría por
forma general el rizoma36 y por trazo común una cierta trans-historicidad.
Deleuze escribe: “La frontera no pasa entre la historia y la memoria, sino entre
los sistemas puntuales («historia-memoria») y los agenciamientos
multilineales o diagonales, que no son en modo alguno lo eterno, sino devenir,
un poco de devenir en estado puro, transhistórico. No hay acto de creación que
no sea transhistórico, y que no corra a contrapelo, o no pase por una línea
liberada. Nietzsche opone la historia, no a lo eterno, sino a lo subhistórico o a
lo suprahistórico: lo Intempestivo, otro nombre para la haecceidad, el devenir,
la inocencia del devenir (es decir, el olvido frente a la memoria, la geografía
frente a la historia, el mapa frente al calco, el rizoma frente a la
arborescencia)”37.

34
QPh 149.
35
MP 360.
36
De este rizoma específico que es el ritornelo, deberíamos decir. Cf. MP 431: “El tiempo como forma a priori no
existe, el ritornelo es la forma a priori del tiempo, que cada vez fabrica tiempos diferentes”.
37
MP 363.

13
Desde el punto de vista de la historia/memoria, la superposición de los
acontecimientos y los estados de cosas, de las expresiones y los cuerpos, está
necesariamente atravesada por una flecha, que va de arriba abajo y se va
hundiendo (historiografía), o que sube de abajo hacia arriba, y va elevándose,
progresando (Historia)38.

Contrariamente, desde la perspectiva de la creación, todo se superpone de tal


modo que cada concepto, acontecimiento o devenir encuentra un retoque en el
siguiente, más allá de un origen cualquiera.

Historiográficamente, por lo tanto, ya no se trata de buscar de un


concepto a otro, de una obra a otra, la remisión a un origen común o a un
sistema contextual de referencias, sino de una evaluar los
desplazamientos, las resonancias y los efectos de sentido39.

***

Como los estratos en la tierra, los conceptos, las obras y los autores
coexisten en los planos sobre los que se sitúa sucesivamente el pensamiento
deleuziano: medio vital sobre el que se comunican y yuxtaponen según una
temporalidad que sólo responde a las alternativas de la creación en su tensión
irreductible con las resistencias opuestas por las diferentes historias agenciadas.
Ni sucesión de sistemas, ni fin de la historia, sino frecuentación de un
medio (“No se trataba ya ni de partir ni de llegar. La cuestión era, antes, ¿qué
pasa entre?”40), donde se adopta o se impone ritmos, donde se repite o se es
repetido, se gana un impulso o se engendra un movimiento, en la espera, siempre,
de que el movimiento forzado de los sistemas afectados a este régimen acaben
por resultar en la creación de un nuevo concepto (“no se comienza jamás, no se
hace jamás tabla rasa, se desliza entre, se entra en el medio, se esposa o se
impone ritmos”41). Como decía Deleuze, hablando de Bene, lo interesante es el
38
Cf. MP 361: “La Memoria tiene una organización puntual, puesto que cualquier presente remite a la vez a la línea
horizontal del curso del tiempo (cinemática), que va de un antiguo presente al actual, y a una línea vertical de orden
del tiempo (estratigráfica), que va del presente al pasado o a la representación del antiguo presente”.
39
Cf. CC 83.
40
PP 165.
41
S 165-166. Cf. PP 16: “Ahora, hoy se ve que el movimiento se define cada vez menos a partir de la inserción de un
punto de apoyo. Todos los nuevos deportes –surf, windsurf, ala delta...– son del tipo: inserción sobre una onda

14
medio, que no es una mitad ni un promedio, sino siempre un exceso, el lugar
donde se alcanza la velocidad más grande, por el que las cosas avanzan, donde
tiene lugar todo devenir y todo movimiento42.

estatuto do desmallarmento

minha senhora, tem um mallarmé em casa ?


você sabe quantas pessoas morrem por ano
em acidentes com o mallarmé?

estamos organizando uma consulta popular


para banir de vez o mallarmé dos nossos lares
as seleções do reader’s digest fornecerão

contêineres onde embarcaremos os exemplares,


no porto de santos, de volta pra frança.
seja patriota, entregue seu mallarmé. olê.

Desconcerto

preexistente. No es ya un origen como punto de partida, es una manera de puesta en órbita. Cómo hacerse aceptar en
el movimiento de una gran ola, de una columna de aire ascendente, «arribar entre» en lugar de ser origen de un
esfuerzo es fundamental”.
42
Cf. S 95-96: “CB dice por una parte que es idiota interesarse en el principio o en el fin de algo, en los puntos de
origen y término. Lo que es interesante no es nunca la manera en que algo comienza o acaba. Lo interesante es el
medio, lo que pasa en el medio. No es por azar que la más grande velocidad esté en el medio. Las personas sueñan
comenzar o recomenzar de cero (...) Piensan en términos de porvenir o de pasado, pero el pasado e incluso el porvenir
es la historia. Lo que cuenta, al contrario, es el devenir: devenir-revolucionario, y no el porvenir o el pasado de la
revolución. «Yo no llegaría a ninguna parte, yo no quiero llegar a ninguna parte. No hay llegadas. No me interesa
donde alguien llega. Un hombre puede también llegar a la locura. ¿Qué quiere decir?» Es en el medio que está el
devenir, el movimiento, la velocidad, el torbellino. El medio no es un medio, sino al contrario un exceso. Es por el
medio que las cosas avanzan”. Cf. QPh 106: “Pensar es experimentar, pero la experimentación es siempre lo que se
está haciendo: lo nuevo, lo destacable, lo interesante, que sustituyen a la apariencia de verdad y que son más
exigentes que ella. Lo que se está haciendo no es lo que acaba, aunque tampoco es lo que empieza”. Cf. D 69: “Las
cosas no comienzan a vivir más que por el medio”. Cf. ABC, «H comme Histoire de la philosophie» y «R comme
Résistance». De un modo original, Raúl García, lee precisamente uno de los conceptos políticos más importantes de
Deleuze –el de «línea de fuga»–, en el sentido de estas «tesis de filosofía de la historia»; García escribe: “El punto de
fuga consiste en no determinar un origen absoluto: siempre estamos en medio, prolongamos determinadas líneas de
fuerza, deformamos ciertas figuras, intensificamos unas velocidades, torcemos recorridos, creamos máquinas”
(García, La anarquía coronada, p. 38).

15
Para além de todos os clichés que uma primeira leitura nos pode sugerir
(um maniefesto de menos, um Fernando Pessoa explicado às crianças nacionais e
estrangeiras, simplificado e portanto minorado) ao ler o texto-pastiche de
Cesariny, nos reconhecemos na vertigem dum filme rebobinado. Vertigem
porque a um certo movimento da escrita que anda para trás. Há um desequilíbrio
do sentido. Não se trata apenas do peso do passado, não é o poder da história,
mas um certo ritmo distraído por referências lexicais e sintácticas que retomam o
filme para trás, num outro sentido.
Tal como um filme visto para trás, rebobinado à velocidade contrária,
artificial, da seta do tempo Cronos, compreendemos tudo porque na verdade,
reconstruímos a história, inconscientemente, dirigimos o mito, para a frente,
remontamos as peças.
Quando dizemos que percebemos tudo, exageramos, claro, porque se
relaxamos a leitura, se abrandamos a velocidade, há sempre pequenos detalhes
que nos faltam. Mas talvez esse breve vazio seja a quantidade necessária de
sentido de que precisamos em todas as histórias, até porque a própria vida em
geral não tem tanto sentido.
A referência a uma realidade exterior é portanto o pormenor do real que
nos permite situar os textos «antes» e «depois». Neste contexto, a «referência (da
ficção) a qualquer coisa de exterior» é uma referência à acção, porque é
necessário transformar, é urgente transtornar:
“Só a imaginação transforma. Só a imaginação transtorna. É imaginação o
livre exercício do espírito que servindo-se de um ou mais aspectos do «real»
passa lenta ou rapidamente ao extremo deste para alcançar, pouco importa em
que margens, o objecto real de um irreal conquistado no espírito. Acelerar este
processo levando-o a um ponto em que se torne impossível falar de real e irreal
(negação da negação anterior), produzir um objecto onde tudo, simultaneamente,
tem as propriedades da verdade e do erro, da razão e da loucura, do que foi
encontrado e do que foi perdido, é transformar a realidade depois de a haver

16
transtornado – é fixar, violentando a realidade «presente», um novo real poético
(uno).”43
A acção escreve um texto, faz história. A imitação o lê, volta sempre de
maneira idêntica porque já está escrito e se nada não acontece verdadeiramente
(excepto na ficção), a imitação tem já escrito o seu próprio tempo e o seu próprio
espaço. Assim, quem lê o texto pode sempre rebobinar, o que mostra que na
ficção os acontecimentos não se encontram realmente uns depois dos outros. Os
acontecimentos coexistem. Temos apenas a ilusão da sucessão. Antes que sob o
signo da acção, a escrita de Cesariny se produz, é uma performance.
“Para nós, que estamos longe de requerer o exclusivo da constatação, toda
a imaginação é actuação do mundo, todo o acto está por si próprio encontrado e
perdido, intensamente desejado e intensamente temido. A acção surrealista tende
constantemente, como no acto amoroso, a fundir num só total delirante,
«explosivo-fixo», «solene-circunstancial», todas as presenças, ligando
estreitamente a coisa a possuir e os meios de possuí-la numa viagem que só se
termina quando ardeu por completo não apenas o carvão que movia a locomotiva
mas a locomotiva, a estação de chegada, os raills e os passageiros.” 44

II
« Quand les images de la culture populaire se confrontent avec les
constructions problématiques de l’haute culture ou des Beaux Arts il ne s’agit pas
seulement de confronter le vulgaire avec l’élevé mais aussi le mensonge avec la
vérité. Selon on a l’habitude de l’admettre, celle-là a été aussi la cause qui a
déterminé Platon a expulser les poètes de la République, et qui a fait aussi retirer
de la caverne les condamnés qui étaient hypnotisés par les images projetées dans
les murs. Images-farces (parce que leur contemplateur les confondaient avec la
vérité) ; images-sédatives (parce que avec elles, et sans le savoir, ils calmaient

43
Mário Cesariny, A Intervenção Surrealista, Lisboa, Assírio & Alvim, 1997, p. 89.
44
Mário Cesariny, A Intervenção Surrealista, Lisboa, Assírio & Alvim, 1997, p. 89.

17
leur impossibilité d’accéder à la réalité ou cachaient leur propre ignorance). (José
Luís Pardo, Esto no es música, p. 44)
On a souvent l’habitude de comparer cette prolifération d’images avec
ce qu’aujourd’hui offre la culture populaire : « rilke shake »
En 1989, quatre ans après la publication du livre de Nietzsche, Ainsi
parlait Zarathustra, se registre une invention qui multiplie les possibilités de
retouche des photos, l’aérographe, l’artifice de la superficie, la potence du
pervertit.

Dans Différence et Répétition ainsi que dans Logique du Sens apparait


aussi, pour la première fois dans la philosophie de Deleuze, une approximation
au concept d’image indépendamment d’une théorie de l’imagination.
Ce n’est pas seulement l’interprétation, en 1967, des romans de Sade et
de Sacher-Masoch qui dépend d’une thèse sur le rapport entre fiction littéraire et
phantasme pervers. Le chapitre sur la nature de la fabulation dans le système
littéraire dans Différence et Répétition est une nouvelle formulation de la théorie
du phantasme en tant que simulacre45. Et les lectures de Klossowski, Tournier et
Zola sont publiées, en 1969, comme appendices à Logique du Sens sous le titre
général de « Phantasme et Littérature moderne ». On peut dire, donc, qu’avec
Kafka (1975) au moment où Deleuze élabore l’exposé le plus systématique du
concept d’agencement, il refuse tout le programme d’une théorie de
l’imagination et du phantasme qui fondait sa pensée de la littérature aux 46 années
soixante.
Il s’agit, dans ces textes de défendre un concept d’image comme
simulacre, essentiel dans la construction anti-platonique. Pour Deleuze, la
distinction que Platon établit entre l’original et la métaphore, ou entre le modèle
et la copie, cache une distinction plus fondamentale qui distingue judicieusement
entre les bonnes et les mauvaises copies, les bonnes et les mauvaises images, de

45
Cf. DR, dans le chapitre II, La répétition pour elle-même, les paragraphes « Le
système littéraire» et « Le phantasme ou simulacre, et les trois figures de l’identique
par rapport à la différence » (DR, pp. 159-165).
46

18
manière a assurer le triomphe des copies qui possèdent une ressemblance
intérieure avec le modèle, sur les simulacres, compris comme des images
démoniaques ou faux prétendants.
“Le problème ne concerne plus la distinction entre Essence – Apparence ou
Modèle – Copie. Cette distinction opère entièrement dans le monde de la
représentation ; il s’agit d’introduire la subversion dans ce monde, «crépuscule
des idoles». Le simulacre n’est pas une copie dégradée ; le simulacre occulte une
potence positive qui nie l’original et la copie, le modèle et la représentation…
aucun modèle ne résiste au vertige du simulacre… Il n’y pas une hiérarchie
possible… Il n’y a plus une sélection possible. L’œuvre non-hiérarchisée est un
condensé de coexistences… En montant à la superficie, le simulacre fait tomber
sous la potence du faux (la fantaisie le modèle ou la copie. Il rend possible
l’ordre des participants, la fermeté de la distribution et la détermination de la
hiérarchie.”47
Les simulacres sont des images qui s’appuient sur une ressemblance
extérieure, une différence, une extériorité, et Deleuze, va défendre les droits du
simulacre pour montrer comment celui-ci est beaucoup plus qu’une copie
dégradée et que c’est lui qui permet subvertir un monde platonique qui distingue
l’original et la copie, le modèle et la reproduction 48. Le simulacre serait ainsi la
«potence du faux» qui affirme le chaos en détriment de la représentation, en se
débarrassant des hiérarchies et des distributions sédentaires qui opèrent par limite
et par opposition : «Loin d´être un nouveau fondement, il engloutit tout
fondement, il assure un universel effondrement, mais comme événement positif et
joyeux, comme effondrement» (LS, p. 303).
Admettons que dans la division qui distingue les images de l’haute
culture et celle de la culture populaire on retrouve l’expression culturelle des
luttes de classes. Mais, en dehors de ça, on se retrouve devant un clivage plus
antique et plus profond qui sépare les «copies-icones» des «simulacres-
fantasmes»49, c'est-à-dire, sélectionne les bonnes copies des mauvaises copies.

47
G. Deleuze, Logique du sens, 263-264 (?).
48
Cf. LS, p. 302 e ss.
49
G. Deleuze, Logique du sense, pp. 258-260 (?).

19
D’un côté, le canon cherche assurer le triomphe des copies sur les
simulacres.
D’autre côté, il semble relativement facile à percevoir dans quel sens ces
produits de la culture de masse représentent-ils « quelque chose de moins » en
comparaison avec une ouvre d’art mais il n’est pas assez claire leur contribution.
Serait-il à peine une question d’exhibition des simulacres ? Affirmer leurs droits
contre les icones et les copies ?
« On définie la modernité par la potence du simulacre… Ce n’est pas
dans les grandes forets ni dans les sentiers que la philosophie se fait, mais dans
les villes et dans les rues, même dans ce qu’il y ait de plus artificiel…» 50
Maintenant, quand les simulacres sortent des cavernes ont toujours quelque chose
de ridicule, un déphasage, une marque d’inadaptation, un clopant léger.

Cesariny expérimente les variations d’un poète-comique (stand-up comedy/stand


up poetry) dans la mesure où on ose dire, dans le miroir, que Deleuze et Guattari
sont les Laurel & Hardy de la philosophie : « Ainsi comme la tragédie est
l’élément de l’histoire […] la comédie est l’élément de l’éternel retour, une vraie
subversion contre l’histoire au nom de la poésie, mais contre une histoire écrite
poétiquement et au nom d’une poésie qui n’est plus épique mais lyrique (c’est à
dire, qui ne prétend communiquer aucun contenu sémantique, qui ne cherche des
récepteurs, mas des utilisateurs.» p. 309.
QuandoQuand, en 1990, Henri Bergson publiait Le rire, il disait que la
comique apparaît quand on voit un être inférieur réaliser des activités propre d’un
être supérieur ou vice-versa, quand le travail de l’esprit faille dans la matière et
celle-ci devient ridicule et mécanique, ainsi comme les mouvements-mêmes des
ouvriers sont mécaniques dans une ligne de montage.
Si le fatalisme historique-narratif se laisse décrire dans des termes de
subordination (du caractère au destin, des chapitres aux sens total, du principe à
la fin, du avant au après, etc.) le régime du comique pourrait se présenter

50
G. Deleuze, Logique du sens, p. 266.

20
tactiquement comme une insubordination contre l’autorité du destin qui se
manifeste de différentes manières.
Insubordination contre le personnage principal: métissage,
métamorphose, hallucination agglutinante, le Vierge Noir incorpore, aime, fait et
défait le visage de Fernando Pessoa, vête le costume de superman, séduit comme
Cassanova. Le Vierge Noir déforme le personnage principal et usurpe son lieu –
ainsi comme il peut arriver, par exemple, à un dramaturge quand il crée un
personnage secondaire très bon, tellement bon que, toutes les fois qu’il apparait,
il éclipse les interventions du personnage principal. Dans ces cas, l’intention
principal de l’ouvre se perd et le public semble rester toutes les fois plus
enthousiasmé avec ses interventions, ainsi comme il arrive avec cette note qui se
joue off-beat et commence à en résulter toutes les fois plus belle et plus attractive
que la mélodie elle-même.

Une autre transgression de la poétique de Cesariny se concentre vers le


sens corolaire de la trame fictionnelle. Ou bien, de son subversion. L’épisode
ou le segment de sens fonctionne comme une force contre le sens final. À
première vue, on dirait, par exemple, que la nature essentiellement répétitive du
personnage pourrait susciter l’équivoque de juger son comportement comme
« un destin» : le Vierge Noir est condamné à un destin fatal d’un perpétuel conflit
intérieur entre être et paraitre, comme une espèce de parodie de Sisyphe, une
opéra de l’échec.
Mais être subjugué à un «destin constant» c’est ce que Walter Benjamin définie
comme manque de destin51, absence d’intrigue. Tout devient plus évident dans la
mesure où on assiste au développement d’un monde sans mort et où la mort n’est
pas résolutoire, où il n’y a pas la satisfaction de la coulpe conformément punie.
J’exagère, certainement, mais vous vous rappeler tous de Charlie Chaplin et du
moment où il est accidenté par un camion. Quelques minutes après le héro, même
si avait été presque réduit à la structure plane de l’asphalte, il récupère son
tridimensionnalité immédiatement comme si rien ne s’était passé. Ça arrive
W. Benjamin, El origen del drama barroco alemán, J. Muñoz Millanes (trad.),
51

Madrid, Taurus, 1990, p.120.

21
beaucoup de fois dans les bandes dessinées. De Warner Brothers. C’est
l’obstination du caractère.
Il y a encore une troisième irrévérence manifestée par le verbe de
Cesariny qui va contre deux principes qui, selon Aristote, devraient gouverner la
séquence narrative du tragique : la nécessité et la vérosimilité. Dans les aventures
du Vierge Noir, solitaire, le pas avant et après n’est jamais nécessaire. En fait, il
est toujours le fruit du hasard qui prend en dérision les lois de la physique. Le
couple « intrigue-denoument» est substitué par le couple «innocence-accident».
L’action se moque du destin. Mais quand ce changement de place entre le
principal et le secondaire arrive, quand le geste accidentel prend la place du geste
substantif, quand l’avant et l’après n’importent plus il ne s’agit pas tellement
d’une inversion de lieux parce qu’il y a en fait, un certain ordre qui se maintien,
mais une abolition de lieux, «un miracle» si vous voulez, où le lien qui tien
l’histoire transite rapidement du début à la fin, où l’histoire semble recommencer
sans cesse. Il n’y a pas un vrai destin des personnages. Ils sont faux et arbitraires
mais non pas moins efficaces.

III
Il est peut-être bizarre se forcer tellement de gérer son étranger pour le
détenir après dans la frontière du rire. Il est, certainement, indécent condamner
son étranger à essayer perpetuellement de frayer les limites. C’est, au moins,
déshonorant inviter quelqu’un comme Mallarmé ou Pessoa pour le faire
disparaître, retourner, de cette manière, dans les containers du Reader Digest’s.
Et devant ce cri, devant la nécessité de «penser la pensée» du poème,
Mallarmé est « emblematique –dit Badiou (L’age des poètes, p. 23)- puisqu’on
sait qu’il déclare (comme en bilan de sa grande crise intellectuelle des années
1860) que sa pensée s’est pensée.»
Il s’agit d’installer une «pensée localisable», «sans prétention au tout mais
apte à être fidèle à sa propre inauguration », apte de produire des vérités.
««Il y a une lumière que le vent a éteinte.» Le « il y a», si fréquent chez
Trakl, n’est jamais que le «il y a» d’un manque, au seul profit du souffle.» (p.

22
32).
«Qu’il puisse y avoir une lumière sans lumière […] : tels sont les actes par
quoi le poème, nommant une disparition, suspend le jeu du sens et fait diagonale
de l’être et de sa résiliation. […] Elle (la diagonale) sectionne les fils, pour une
autre circulation du courant de la pensée. Ce sectionnement n’est cependant pas
une négation, un travail du négatif. Au contraire, la diagonale est toujours
affirmative, elle dit «je» ou «il y a». »
Malgré la rupture inhérente, que toute pensée inaugurale suppose, il y a un
principe de continuité qui guide la parole. Et c’est peut-être dans ce sens que
Rancière lance son concept «phrase-image», dans un petit chapitre du livre Le
destin des images : «Par phrase-image j’entends l’union de deux fonctions à
définir esthétiquement, c’est-à-dire para la manière dont elles défont le rapport
représentatif, la par du texte à l’image. […] L’image, elle, este devenue la
puissance active, disruptive, du saut, celle du changement de régime entre deux
ordre sensoriels. »
«Cependant, penser la pensée du poème ne saurait être une
réflexion, puisque le poème ne se donne que dans son acte. Penser la pensée du
poème suppose que poème lui-même prenne position au regard de la question
«qu’est-ce que penser ?». Et qu’est-ce que penser dans les conditions où le
poème doit établir cette question par ses propres ressources ?
Le poème se tiens alors involontairement dans une sorte d’ébrèchement,
qui est aussi un recouvrement, avec la philosophie, dont la vocation originaire est
justement de penser le temps de la pensée, ou de penser l’époque comme site de
compossibilité des différentes procédures génériques (le poème, le mathème, la
politique et l’amour).»
L’«Age des poètes»/la politique des poètes se signale donc par « la mise
en œuvre intrapoétique de maximes de pensée, points nodaux du poème où la
pensée qu’il est s’indique elle-même comme relation ou incise de la pensée «en
général».

23
Ortega y Gasset, dans son « Introduction a Velázquez »52 souligne que les
classes supérieures utilisaient [au xviii] la parole famille dans son sens original
qui vient de famulus, « criado» (créé), et signifiait, donc, plus que l’unité avec les
parents et les fils, une unité amplifiée dans laquelle il y a de l’espace pour les
servants. (v. Criados porque servidores, porque tinham sido criados na casa.)
Expliquer Fernando Pessoa aux enfants naturels et étrangers est vouloir
prendre une photo avec toute la famille dans ce sens archaïque : apparaitre dans
la même photo avec les propriétaires, les servants, les chiens et les chats.
Si Mallarmé conclut son œuvre testamentaire par la maxime « toute
pensée émet un coup de dés», nous, moins inclinés vers les conclusions, au lieu
d’une réponse, on propose «une diagonale», un écho… «madame, avez-vous un
mallarmé chez vous ? soyez patriote : retournez votre mallarmé. olé »

Ortega y Gasset, « Introducción a Velázquez” [1954], em Obras Completas, vol. VIII,


52

Madrid, Alianza, 1983, p. 651.

24

Você também pode gostar