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Oficina de poesia

carlito azevedo

setembro – 2022
Gonzalo Rojas

Harryette Mullen
Martha Kornblith

Miyó Vestrini
Stanislavski
caderno de exercícios v. i

a enumeração caótica na poesia


moderna e contemporânea
De uma entrevista da poeta norte-americana Rae Armantrout
O leitor pode se perguntar se um verso quer dizer o que parece querer dizer, e até
que ponto. E se um verso quiser dizer mais de uma coisa? Quiser dizer ambas? É o
que eu quero? Até que ponto? Quantas vozes podem falar ao mesmo tempo em um
poema? E em qual devemos confiar, se é que devemos confiar em alguma? Talvez meus
poemas corram o risco de soarem confusos. Não os quero assim. Procuro evitar isso.
Criar mistério, como faz Emily Dickinson, é uma coisa. Criar confusão é coisa muito
diferente. Gosto de reunir discursos diferentes, aspectos diferentes do pensamento e
da experiência, colocá-los em contato. É possível que isso crie uma certa fricção, mas,
para que o poema funcione, deve existir algum tipo de coesão. Às vezes essa coesão é
intelectual, mas outras vezes pode ser tonal ou sonora.
exercício 1:
o mágico “se”
O mágico “se” é uma conhecida técnica teatral de Stanislavski.

O dramaturgo reunia alguns atores para a leitura coletiva de uma peça, e após a
execução de cada fala de um ator, os outros deveriam sugerir pelo menos um “magico
se”, mesmo que absurdo.

Por exemplo: “E SE você falasse essa frase aos berros?”, “E SE você falasse essa frase
sussurrando?”, “E SE você falasse essa frase dando uma cambalhota?”, “E SE você
falasse essa frase caindo e levantando como se cada palavra dela fosse um tiro que
você levasse?”

Há um poema de Wislawa Szymborska em que o mágico “se” age como aqueles mágicos
que fazem coisas desaparecerem. No caso do poema, desaparecem as certezas:
Wislawa Szymborska
(Polônia)

Cálculo elegíaco
Quantos dos que conheci
(se de fato os conheci)
homens, mulheres
(se esta divisão ainda é válida)
cruzaram esta soleira
(se é uma soleira)
atravessaram esta ponte
(se chamarmos isso de ponte) —

Quantos depois de uma vida curta ou longa


(se isso para eles ainda faz diferença)
boa, porque começou,
má, porque acabou
(se não prefeririam dizer o contrário)
se encontraram na outra margem
(se é que se encontraram
e se a outra margem existe) —

Não me é dada a certeza


de seu destino posterior
(se há mesmo um destino comum
e ainda é um destino) —

Tudo
(se não restrinjo com a palavra)
têm já atrás de si
(se não à sua frente) —

Quantos deles saltaram do tempo que corre


e desapareceram tristemente na distância
(se vale confiar na perspectiva) —

Quantos
(se a pergunta faz sentido,
se é possível chegar à soma final
sem incluir a si mesmo na conta)
caíram no mais profundo dos sonos
(se não há um mais profundo) —

8
Até logo.
Até amanhã.
Até o próximo encontro.
Isto já não querem
(se não querem) repetir.
Entregues a um infinito
(se não outro) silêncio.
Ocupados só com aquilo
(se é só aquilo)
a que os obriga a ausência.

A ideia do exercício é, contudo, mais presa ao exercício de Stanislavski. Peguem


um curto diálogo teatral (de Sófocles a Grace Passô, de Gertrude Stein a Nelson
Rodrigues, de Brecht a Plínio Marcos) e preencham os intervalos entre as falas de
muitos mágicos “se”.

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exercício 2:
da arte divinatória
Delia Dominguez
(Chile)

Vejo a sorte pelas éguas


Se agitam as éguas no pasto como brincando
como morrendo as éguas.

Não param as éguas, eu digo é a malura,


eu digo alguém morre hoje
algo grande vai ocorrer por aqui se não param imediatamente
essas éguas mestiças
que me arrastam pelo sistema arterial
pelo osso sacro
pelo sistema cerebro-imemorial
com toda a história da casa como as Polonesas
o Danúbio e a Marcha Triunfal.

Os sinais não mentem,


se essas éguas não param se nubla toda a sorte.
Naipe revolto a tais alturas
ninguém manda nos filhos do paraíso.

Tudo é um galope de égua revoltas


sobre o óxido dos campos da América do Sul.

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Imtiaz Dharker
(Paquistão)

O que a quiromante disse depois


Estranho. Suas linhas mudaram como se
tivessem esquecido para onde iam.

Já vi pessoas como estas linhas.


Param no meio da rua. Permanecem
no caminho dos que sabem
aonde vão, os que se apressam
para alcançar o 11.05 de Kandivil a Churchgate,
os que cumprem seu caminho resolutamente até o portão 15
porque vigiaram bem o pisca-pisca dos painéis de embarque
e o seu vôo resplandeceu com “Embarque imediato Embarque imediato”.

Mas era você? Pode ter sido você a que vi


outro dia de pé no meio
da multidão como se estivesse ouvindo um rio
em vez de Última Chamada Última chamada
última e final última e final
e as pessoas caminhando ao teu redor como as linhas do destino
caindo de uma mão aberta?

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Gonzalo Rojas
(Chile)

Poietomancia
– Abra bem a mão esquerda, estire o polegar bem para fora; tudo
está escrito pelo punhal: libertinagem
e rigor, os dias imóveis
e os turbulentos nessa rede; a garota
tristíssima chorando; a identidade
de um no três, compreende?; a longa infância
com estrela quebrada; viagens, para que tanta
viagem e mais viagem; aquele acidente na noite
em Madrid; homenagens, muitas homenagens,
golpes de timão; um grande castigo
até sangrar, que modo de sangrar; mudanças outra vez
com a proteção de Júpiter, sempre Júpiter; crescimento
até longe nos dois filhos; ah aqui está o derrame,
fecha essa mão de louco, cerebral.

O exercício é, aproveitando-se das possibilidades da língua, que permite coisas como


Onomatomancia (onomatopeias), Bibliomancia, Ritmomancia, Rapsodomancia,
escrever um desses poemas em que a partir da poeira, da onomatopeia, do ritmo,
do vento, seja lá do que for, ousamos ao menos roçar a fronteira.

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exercício 3:
o léxico e o léxico invertido
Monte um léxico de 5 palavras referentes a um desses temas (ou um de sua
escolha) e escreva as definições de cada verbete a partir de um desejo maior ou
menor de fidelidade ao dicionário, de um desejo maior ou menor aos poderes da
transfiguração poética, de um desejo mais ou menor de vontade de se divertir.

Léxico da noite
Léxico da utopia
Léxico da infância
Léxico do comércio
Léxico do cosmos
Léxico do sexo
Léxico do acidente
Léxico da voz

(Exercício reserva: pegue os verbetes escolhidos para dois desses léxicos acima
(por exemplo: Léxico da utopia e Léxico da infância) e faça os poemas com léxicos
invertidos (por exemplo: um poema sobre a noite com as palavras selecionadas para
o léxico do comércio, e um poema sobre comércio com as palavras selecionadas
para o léxico da noite)

O livro Reverberações, de 1975, da poeta Henriqueta Lisboa traz dois paratextos


que podem interessar a quem se disponha a esse exercício. O primeiro é sua
dedicatória: “Aos poetas / Linguistas / Lexicógrafos / Professores / e Amantes da
Língua Portuguesa / uma interpretação ou sugestão / dos substantivos que mais
me impressionam”, o segundo é sua epígrafe, do poeta russo Khliébnikov:

“A palavra possui uma vida dupla. Ora ela cresce como uma planta e produz um
acúmulo de cristais sonoros: então o começo do som vive sua própria vida e a parte
da razão permanece na sombra. Ora a palavra se põe a serviço da razão: o som
deixa de ser onipotente e absoluto, o som torna-se “nome” e executa docilmente as
ordens da razão. É uma luta dos dois universos, das duas potências, que prossegue
sempre no seio da palavra e que dá à língua uma vida dupla: dois círculos de
estrelas cadentes.”

O livro é todo formado por verbetes tais como:

ASSOMBRO
Súbito assomo
da ciranda
do nunca visto
vindo aos trancos

15
CALENDÁRIO
Calada floração
fictícia
caindo da árvore
dos dias

DISCÓRDIA
Ao coração
dizendo sim
o não da mente
por acinte

DISLATE (dito ou afirmação tola; asneira, bobagem, despautério)


Soma de irracional
e ingênuo
alto dizendo
e mal dizendo

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exercício 4:
“o que cassandra viu?”
Anne Carson

Fala curta sobre Sylvia Plath


Você viu a mãe dela na televisão? Ela disse coisas triviais, calcinadas. Disse: achei
o poema excelente mas ele me magoou. Ela não disse medo da selva. Ela não
disse ódio à selva, selva primitiva chorando derrubem cortem tudo. Ela disse
autocontrole ela disse fim do caminho. Não disse zumbindo suspensa no ar o que
você veio fazer derrube.
(Do livro Falas curtas, editora Relicário,
Tradução de Laura Erber e Sergio Flaksman)

18
James Tate
(EUA)

Querúbica
Levei minha filha Kelsey à estação
de trem. Quando o trem partiu, nos despedimos
acenando as mãos um longo tempo. Não tornei a vê-la.
Foi a primeira mulher a chegar na lua.
Como chegou lá, ninguém sabe. E nunca
voltou, pelo que sei. Tampouco me escreveu
nenhuma carta, nunca me ligou. Espero
que sejas feliz, meu pequeno raio de lua. Passo as noites olhando
pelo telescópio. Vi dinossauros, leopardos das neves,
flamingos. Vi um cão caolho que abanava o rabo. Vi um caminhão
do correio. Vi um veleiro mas, como se sabe,
lá não tem água. Vi um letreiro que anunciava água com uma grande seta
apontando para a Terra. Vi um letreiro que anunciava hambúrgueres
com uma grande seta apontando para a Terra. E vi uma garota
cair de seu velocípede. Uma explosão de poeira
atômica cor de laranja, e nada mais. Nunca a tornei a ver.
As rodas do velocípede virado seguem girando.
Dorme, eu disse, dorme, minha filhinha.

A partir da atenta observação e posterior precisa seleção, criar um poema em que


você, a partir do artifício que quiser, inclua uma razoável quantidade de coisas
dentro desses quesitos:

a) O que eu vi
b) O que eu não vi
c) O que eu falei
d) O que eu não falei
e) O que eu pensei
f) O que eu não pensei
g) O que eu ouvi
h) o que eu não ouvi
i) o “eu” pode ser trocado por qualquer personagem, por exemplo “Cassandra”,
daí o nome do exercício “O que Cassandra viu?”

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Um trecho de um poema-livro da americana Juliana Spahr:

1º de dezembro de 2002

Amados, suas peles são uma fronteira que os separa do resto de vocês.

Quando falei de pele, falei do maior órgão.

Falei das separações que definem este mundo e das separações que nos definem,
amados, mesmo quando gostamos de pressionar nossas peles umas contra as
outras durante a noite.

Quando falei de pele, falei de acender velas para lembrar a AIDS e a história dos
ataques no Quênia.

Falei da fumaça tóxica emitida pelo piso de plástico de uma boate em chamas em
Caracas.

Falei dos quarenta e sete mortos em Caracas.

E falei dos quatro mortos na Palestina.

E dos três mortos em Israel.

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exercício 5:
coralidades, coros
Jean-Pierre Sarrazac assim define seu exercício, teatral, “Um coro na cidade”:
“Este exercício visa a coralidade. Por esse termo, eu entendo a irrupção, a
disseminação, a diáspora do coro. Se o coro antigo procedia da ideia de uníssono,
a coralidade moderna procede pela dispersão dos indivíduos – podemos dizer
átomos humanos. O teatro moderno e contemporâneo se esforça para dar voz à
multidão dos anônimos. O exercício aqui seria imaginar uma espécie de travelling
sonoro – captanto vozes, embriões de discussões, micro-confitos sobre fundo de
conversa ambiente – por sobre as ruas da cidade, uma praça. Podemos variar o
exercício acrescentando às vozes bem sonoras e identificáveis os pensamentos - os
monólogos interiores - que com elas passam a se envolver.”

O exercício aqui seria a construção de um poema com essa estrutura. Para dar um
exemplo das possibilidades imensas que esse exercício, aparentemente simples,
abre, cito aqui dois poemas do armênio Ara Shirinyam, tornados conhecidos pelo
livro de Kenneth Goldsmith:
Ara Shirinyam
(Armênia) – Dois poemas do livro “Teu país é incrível”

Armênia é incrível
armênia é um país incrível
famoso por seu cristianismo!

armênia é incrível, e Yerevan é uma cidade


onde as pessoas vivem suas vidas intensamente
I love Yerevan
amo suas ruas
amo suas calçadas

armênia é incrível
todos deveriam visitá-la
ao menos uma vez

uma coisa incrível sobre a armênia


– e tem muita novidade muito boa –
não se deve nunca dar
2 flores a ninguém!

também não falo o idioma deles


mas tudo bem. armênia é incrível.
estive lá
e fiz muitos amigos
embora não pudesse trocar
nenhuma palavra com eles

tour pela armênia foi um sucesso!


entender nosso passado
é entender a nós
mesmos

calçadas renovadas, ruas e


arranha-céus sem precedentes
erguendo-se
o futuro da armênia é incrível

com verões tão quentes


e invernos tão frios
aprenderás bastante
sobre a história de Yerevan

22
armênia é incrível
amo a armênia, mas acho
que não é para mim

Aruba é incrível
aruba é incrível
suas praia são lindas
e a gente de lá é incrível

aruba é incrível para mergulhar


e ver a vida submarina
até 30 metros de profundidade
dá para ver esponjas
e arraias flutuando, tartarugas marinhas, lagostas

o serviço de táxis em aruba é incrível


mas nós somos dos que preferem juntar nossas coisas
e ir para onde nos dá na telha
de modo que alugar um carro pra gente foi incrível

aruba é incrível para passear, fazer compras


tem uma enorme variedade de esportes aquáticos
recomendo que se alugue um carro
e se explore a ilha

aruba é incrível
nem uma gota de chuva
apenas uma nuvenzinha de vez em quando e mesmo assim
nunca faz muito calor

aruba é incrível
foi lá a minha lua de mel ano passado
amo aruba

há tantos lugares onde ficar


o Marriot é bom o Wyndham é bom
aruba é incrível para solteiros
casais e famílias talvez os
melhores minicampos de golfe
do mundo estejam em aruba

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aruba é incrível para lua de mel
pelas seguintes razões
1. não há furacões
2. clima previsível
3. um monte de coisas para se fazer

aruba é incrível
se você é do tipo madrugados
não deixe de fazer snorkel
tem muitos ônibus-festa
que te levam de bar em bar

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exercício 6:
“avançar por elipses e interrupções”
Harryette Mullen
(Alabama)

Elíptico
Parece que não há meio de eles… É que deviam esforçar-se mais por... Deviam
ser mais… Quem nos dera que não fossem tão… É que eles nunca... É que eles
constantemente... É que às vezes eles… É que de vez em quando eles… No entanto,
é óbvio que eles... No geral, têm a tendência para... E as consequências disso é
que... Parece que não compreendem que... Se ao menos fizessem um esforço por…
Mas é sabido que têm dificuldades com... Há muitos que continuam sem perceber
que… Alguns são mais esclarecidos mas pura e simplesmente... É evidente que a
perspetiva deles tem sido limitada por… Por outro lado, é claro que se acham no
direito de... Naturalmente, não nos podemos esquecer que eles... Nem se pode
negar que eles... Sabemos que isto teve um impacto extraordinário na sua... Porém,
parece-nos que o modo como se comportam... Infelizmente, até agora a maneira
como temos interagido...
(Tradução: Margarida Vale de Gato)

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e.e.cumings
(EUA)

eu
estou
te pedindo
querida é pra
que mais poderia um
não mas não é o que
claro mas você não parece
entender que eu não posso ser
mais claro a guerra não é o que
imaginamos mas por favor pelo amor de Oh
que diabo sim é verdade que fui
eu mas esse eu não sou eu
você não vê que agora não nem
sequer cristo mas você
precisa compreender
como porque
eu estou
morto

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exercício 7:
"do grotesco, sem exagerar"
Miyó Vestrini
(Venezuela)

Cenoura ralada
O primeiro suicídio é único.
Sempre te perguntam se foi um acidente
ou um firme propósito de morrer.
Te enfiam um tubo pelo nariz,
com força,
para que doa
e aprendas a não perturbar o próximo.
Quando começas a explicar que
a-morte-em-realidade-te-parecia-a-única-saída
ou que fazes isso
para-foder-tua-família-e-teu-marido,
já te deram as costas
e estão observando o tubo transparente
por onde desfila tua última ceia.
Apostam se é noodle ou arroz chinês.
O médico de plantão se revela intransigente:
é cenoura ralada.
Que nojo, diz a enfermeira da lábios grossos.
Me dispensaram furiosos,
porque ninguém ganhou a aposta.
O soro baixou depressa
e em dez minutos
já estava de volta em casa.
Não houve espaço para chorar,
nem tempo para sentir frio ou medo.
As pessoas não se ocupam da morte por excesso de amor.
Coisa de criança,
dizem,
como se as crianças vivessem se suicidando.
Busquei Hammet na página precisa:
nunca direi uma única palavra sobre tua vida
em livro algum,
se puder evitar.

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Martha Kornblith
(Venezuela)

Poema pela falta de minha mãe


Mãe
agora que teu espírito
já não percorre esta casa
que além do mais já não é tua
porque agora o ressentimento
se mede em metros quadrados
e brincamos de herança
como bodes expiatórios
esperando ansiosamente
a hora do monopólio.
Mãe
agora que já não suporto
a desordem das manhãs
a rigidez dos cafés da manhã sozinha,
e quando, sozinha, não encontro os pares
das meias
e minhas camisas estão amarrotadas,
quando, sozinha descubro que só tem água fria
no aquecedor,
e quando, sozinha, vejo que os sábados à tarde
em que nos fazíamos companhia
parecem tão distantes.
Mãe
preciso confessar que além de
ter enterrado a boneca
não cumpri tuas expectativas
de boa dona de casa, rainha do lar,
filhos, netos, etc.
que me converti em poeta
o que é o mesmo que dizer
em poeta suicida
e que por isso
jogo e seduzo a morte
todas as noites.
Mãe
preciso confessar
que

30
sozinha
agora, apenas
persigo baratas
persigo baratas
persigo baratas
persigo baratas

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Abdellatif Laâbi
(Marrocos)

Não é a mais incrível das histórias


Nem se vê de resto
a quem se poderia contá-la
A pessoa em questão
acorda num dia como outro qualquer
e não sabe mais onde está nem
quem é:
nem lugar
nem época
nem nada ao redor
gênero sexual
língua
Não entra em pânico
se abstém de se mexer
e no mais frágil clarão de consciência que restou
só deseja
que esse estado se prolongue
e se possível se torne definitivo
O desenlace intervém
na forma... de uma necessidade urgente
Maldita bexiga
inimiga da metafísica!

32
exercício 8:
Como vimos no módulo da oficina de poesia que se debruçou sobre a presença dos
cinco sentidos na produção poética, desde que acordamos até a hora de tornar a
dormir, atravessamos inúmeras camadas táteis, olfativas, visuais, auditivas, gustativas.
Ao acordar já o lençol ou um corpo alheio é uma camada tátil que será seguida pela
água do chuveiro, pelo sabonete, pela toalha, pela pão e pelo café, que por sua vez já
atuam sobre o paladar e sobre o olfato, que também sentiu o cheiro do sabonete, do
shampoo, e isso sem nem falar nas camadas sonoras da água na pia, do barulho da
rua, das vozes, do rádio, das aves, das explosões. Antes mesmo de colocarmos os pés
na rua, onde está o que Drummond chamou de "o contato furioso da existência", o
corpo já atravessou várias camadas de texturas, cheiros, sabores, sons, formas.
Francis Ponge
(França)

Os prazeres da porta
Os reis não tocam as portas.
Desconhecem essa felicidade: empurrar diante de si, com graça ou violência, um
desses grandes painéis familiares, voltar-se para ele para tornar a colocá-lo no
lugar, – ter em seus braços uma porta.
... A felicidade de agarrar pelo punho o nó de porcelana de um desses altos
obstáculos de um cômodo; o corpo a corpo rápido pelo qual, por um instante, os
passos detidos, o olho se abre e o corpo inteiro se acomoda em seu novo aposento.
Com mão amiga, ele a retém ainda, antes de a empurrar decididamente e se fechar
– o que o clique da mola robusta, mas bem azeitada, agradavelmente assegura.

A ideia é descer quase ao micromundo das vibrações sonoras, como a atenção de


Ponge para esse clique de porta. Ao micromundo do roçar. Um poema com as
mais sutis, nada gritantes, mas fundamentais e cotidianas, sensações. Aquele som
que passaria despercebido. Aquela forma que passaria despercebida. Aquele roçar
que quase não foi um roçar. Jogar a lente do poema sobre essa forma de existência.

34
oficina

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Halina Grynberg

À borda da memória e da loucura


entre o eco e o oco
as palavras
murmuram: existir incomoda.
Retornam do Outro que me habita.
– quero dominá-lo
– quero que se cale
– quero emparedá-lo
Mas ressurgem em pesadelo
versões do desamparo
aos tropeços de
língua e onomatopeia.
O Coisa alguma
fala em mim e por mim
balburdia
ímpetos ocos
burburinha
intensidades e ecos,
e se insana
acato o que dele escoa,
torno-me boato.

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Clarisse Lyra
Praia da Gamboa
Ao reconhecer um poder em mim, me pergunto: é este um poder que devo exercer?
Minha sensibilidade é meu maior dom.
Meus textos são feitos para serem lidos, não para serem falados.
Falar, eu já falo. Minhas falas são outro tipo de poema.
Às vezes meus textos são feitos para serem cantados.
Marguerite Duras: "Escrever também é não falar. É calar-se. É uivar sem ruído".
A tarefa da poesia: falar por amor à fala; não falar por amor ao poder.

37
Cleo Vaz
zoom
uma ponte metálica de 300 m
pode aumentar até 20 cm
o fator de expansão do quartzolit é 0,00001 m/grau C
ando sobre o piso da ala L
de 4 em 4 m há placas de dilatação
que impedem o cimento de trincar
e me causam espécie
já estou na altura da sala 552
não dá para voltar atrás
va pensieiro, arranhe o sexto sentido
pousado numa gaiola sem uma das portinholas

há uma incessante onda de calor


o quartzo pisca alerta
a costura sé dá às avessas
não consigo correr
estou enraizada neste prédio
o instante é envolto da teia
a argamassa monta os lábios como a mentiras consoladoras
nos intervalos entre as placas mora o perigo
diviso o poeta na altura da 580
calça marfim, camisa cereja bordada com vidrilhos
patinando através do corredor lúbrico e intermitente
empurra os limites do que é humanamente impossível
sinto seus olhos negros me comendo pelas costas
posso antegozar sua poesia, e candor dum monstro
ele salta perfeito driblando a velocidade vertical
fricção e tempo sensível.

a imagem do cristo em todas as paredes


traz um alento ao meu ateísmo
rezo para o homem moreno não roer dentro de mim
a segunda pele de cimento impede que eu me parta
queria não amá-lo, queria amá-lo muito melhor
os dois, que nos guardávamos em cinzas entre tijolos
a paixão é muito mais complexa que a termodinâmica
o meu cérebro não tem molde
range quando fico com muito ódio
uma flor de lótus vermelha

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abre suas pétalas de sangue
e quase engelhada
transporta a manhã com suas asas douradas, para o concreto.

é loucura dizer que a culpa foi minha


prefiro ver o mundo descascado
as paredes em contidas ruínas cubanas
não vou farejar o meu medo, meu medo, meu medo.

um aluno resolve teoremas sentado sobre a placa


não sente o chão se abrir
tampouco os poetas.
placas, que placas?

39
Tamya Moreira

tinha uma figueira um chafariz


terra e pedras minúsculas
em meus sapatos
eu andava
não era um filme mas um pássaro
não calava
um erro de continuidade
se num filme
o fim seria o mar e eu o alcançaria correndo
viro o rosto encaro a objetiva
plano fechado pizzicato
três letras antecedem o último corte
ou
plano aberto desde cima
muito alto eu
minúscula
menor que as letras
o espectador já vê a espuma
eu ainda não
eu corro
Villa Lobos grita

o fim do jardim é a grade


depois o canal
não é um filme
é o canal eu caminho faz calor
a cidade está nítida tenho
que apertar os olhos tenho
suor escorrendo pelas costas
o canal é água contida pela borda
de concreto
eu caminho pessoas dançam
uma chacona
eletrônica que não cessa
um erro de continuidade
sentadas na borda
garrafas cigarros
estão em uma festa mas
só vejo a cidade

40
não invejo seus óculos escuros e
sei da ingenuidade de suas mãos
em um muro pintaram
um par de asas a palavra liberdade
em língua estrangeira
procuro uma sombra
encontro o reflexo de meu rosto
em uma vitrine
há um cabide
meu cabelo grudado em minha nuca
um vestido vazio
se num barco deslizasse
não seria uma solução
não saberia conduzi-lo e o ar
não se move e a água
está turva

o fim do canal é a rua de deus o antigo


subúrbio do templo
na praça
pessoas marcham
cartazes pedem
desço as escadas e na plataforma
ainda há terra nos pés úmidos
alguém escreveu que a ideia de calma está
em um gato sentado
no vagão
não há espaço me equilibro
nos trilhos
os ratos me pergunto
não morrem eletrocutados?
set. 2022

41
Sabrina Carvalho

Se eu tir
Sempre questionei a existência de um buraco que me habitasse. Não sei bem onde
se instalara essa massa negra e oca. Pensara certa vez em parti-me ao meio, na
longitudinal, a fim de encontrar o todo maciço: era preciso ser temerário. Era preciso
convocar o desconhecido. Era preciso tirar o eu de mim, esvaziar-me de mim. Para
efetuar este ato, necessitava de algo que me fosse inesperado. Não sei.

Esforcei-me para espremer a massa e deixar que outras substâncias pudessem se


apossar de meu corpo magro e esguio. Apesar dessa condição corpórea, tenho largos
quadris e ossos em alto relevo que disfarçam minha condição esburacada. Não sei.

Fui convencida pela força natural do corpo, por um excitação passageira que brotou
de uma curiosidade, desse desejo do inesperado e desconhecido, desse desejo de ser
desejada e dei-me uma primeira e última chance, inseri a mim mesma em um longo
ritual: dividir-me em dois.

É possível que nesse momento tenha rememorado uma fala de Fedro, algo sobre (
o amor) tornar-me corajosa, como fonte de heroísmo e inspiração da moral. Talvez
fosse isso, eu precisasse de coragem.

Existimos por um tempo. Resistimos ao meu insólito desejo de investigar-me por


dentro, era perigoso e amoral, portanto seguimos com a pouca coragem que seguem
as pessoas comuns. Sentia-me cada vez mais pesada, como se a massa se expandisse
em partículas em minhas células.

Ocorreu-me: a anomalia do mundo tem em sua gênese o escuso furor do nada, tenho
em mim a galáxia, esse todo maciço e denso. Precisava experimentar o contrário, a
leveza das estrelas, a mim já não suportava, pesava-me muito, sentia o apocalipse
tomando forma em meu corpo, já não era a mesma. Necessito experimentar-me o
avesso, disse-lhe. Não fora capaz, ao rasgar-me, foi-se embora, não suportava ver a
antítese que em mim rebentava.

42
Marcia Alvaredo

naquele corpo que esta deitado


volto pro buraco
aqui é macio quente e fofo
o todo me acomoda
não tenho motivos de saída
daqui ouço o sábia que me canta

poupo o eu distanciado
das discussões enfadonhas
desde 1850
espero que eles se entendam

e vamos

ao verão europeu
pelas viagens digitais
flutuar contigo à beira do Rio Pó
antes que se comam uns aos outros

e volto rápido
aqui nem me desfilo
e já me assobiam
faço meu céu branco de lençol
a esperança de ter um sonho
uma bochecha é barca no travesseiro
por um sono de dez horas sem interrupção
e ainda por dentro dele poder me alongar
ou mesmo só
acordar toda lisa

mas,
a desorientação anda de tal ordem
que não se sabe
se o banho começa

43
no pé esquerdo ou direito
a resposta se dá pela fruta madura
natural que se caia do pé
como pai alimenta a filha
tão pequena e cheia de caroço

subo as escadas
para poder descê-las

e na casa se passa
– sim, ao mesmo tempo –
não existe bem e o mal
os miquinhos não me culpem
eu avisei da ordem natural
dos riscos da algazarra nos galhos
no chão
a realidade
só não sabia e sabia
que é de certo
que a mais viralata de todas
o fizesse

dizem que é o começo.

(Rio, agosto de 2022)

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Inês Campos

Dos modos
guillotin, ao contrário do que se imaginava,
não inventou a guilhotina
inventou a função da lâmina como forma de pena a velocidade era a condição
necessária
para uma morte mais humana – pensava ele
o aparelho decapitou 2.794
inimigos da revolução
guillotin se inspirou em uma gravura de durer do século XVI, que trazia o ditador
tito manilo decapitando o próprio filho
mas foi o doutor louis, um cirurgião
que recomendou em 7 de março de 1792
que fosse dado ao aparelho uma lâmina
oblíqua – provou o doutor que assim, de banda a resistência dos ossos não
retardaria tanto
o tempo da lâmina
manobra que os pilotos de avião fizeram depois os pássaros desde antes
para perfurar a resistência do ar
calcularam 40 mil vítimas da guilhotina
entre 1792 a 1799
já o homem pós-moderno no mundo terra plana conseguiu a proeza de 6 milhões
de mortos
em um ano, mas foi louise bourgeois
ao colocar a guilhotina no batente da sua porta em frente à sua mesa de trabalho
ao seu corpo
sem precisar soltar a corda
que demonstrou toda a gravidade de um dia decapitado

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