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48 Alexandre O'NEILL e PESSOA por Fernando J. B. Martinho E— sabido que os surtealistas portugueses, de cujo primeiro grupo cons- tituido —o Grupo Surrealista de Lisboa — Alexandre O'Neill fez parte, agiram, em larga medida, sob o influxo dos seus camaradas franceses, que, no pés-guerra, alias, intentam reanimar as propostas que desde os anos 20 vinham avangando. Mas nio é também menos conhecido © estimulo que para eles representou, no contexto nacional, o Primeiro Meodetnisme, cujo estilo de intervengao — sessdes piblicas, manifestos, pol¢- micas, exposigSes — nfo podia deixar de os fascinar, para além dos exem- plos ébvios de ruptura, de libertagio, ou de recusa do «pétrio mijo» que os mais vanguardistas dos poctas do Orpheu, nomeadamente Pessoa, SéCarneiro e José de Almada Negreiros tinham para Ihes oferecer. Do pri- meiro, Pessoa, tinham eles, no ano em que se verifica a sua emergéncia organizada na vida literdtia portuguesa, 1947, possibilidade de ter lido no apenas uma parte relevante da producao po¢tica orténima como também a poesia de Campos, Caciro e Reis, através dos volumes entretanto langados pelas Edigdes Atica, dentro do plano de publicago das Obras Completas iniciado em 1942, para além de alguns textos erfticos ou de intervencio mais significativos, recolhidos, em 1946, sob o titulo de Paginas de Dowtrina Estética, por Jorge de Sena. Como leram Pessoa os surrealistas portugueses? Em que medida a sua leitura do criador do «drama em gente» diverge da efectuada por geragées anteriores? A Presenga, como tem sido salientado, consagra-o, dé-lhe o esta- tuto de mestte, ¢ inclui nas suas fileiras alguns dos seus primeiros discipulos; os neo-realistas adoptam em relacio a Pessoa uma atitude ambivalente — eri- ticam-lhe 9 perfil ideolégico, apontam-no como «poeta de classe» ou «poeta da hora absurda», mas nao deixam de Ihe aproveitar a lio, designada- mente em relagio a certas éreas tematicas (de modo muito especial, as de incidéncia maritima ou, mais restritamente, portudria) ¢, no plano da expressao, 4 ampla utilizagdo do verso livre, tendo 4s vezes como media- dores alguns dos presencistas; os poctas ligados aos Cadernos de Poesia, par- ticularmente José Blanc de Portugal, Ruy Cinatti e Jorge de Sena, retomam, cada um a seu modo € com maior ou menor empenhamento, ao procurarem desviar © curso da poesia nacional da polémica estéril em que neo-realistas € presencistas ameagavam encerrd-la, a linha de ruptura instaurada por Pessoa ¢ por alguns dos seus companheiros do Orphew relativamente, por exemplo, ao «lirismo de raiz emocional» ou 3 expressio de «uma sentimen- talidade imediata», como, a propésito de Jorge de Sena, refere Fernando Guimaraes *. De quem, a este respeito, mais se aproximam os surrealistas nacionais é dos neo-realistas, embora as suas motivagGes nao se apresentem, como seria de esperar, coincidentes. Seja como for, verifica-se também neles uma ambi- valéncia. Por um lado, nfo poderia deixar de lhes desagradar a faceta hiper- -tacionalista de Pessoa ¢ aquilo que, na fragmentagao heteronimica, impli- catia o afastamento irreversivel de um dos principios fundamentais do sutrealismo, nas palavras de Cesariny: o da busca incessante da «unidade do ser e de uma mais profunda ligagao do ser aos que lhe sao exteriores» *. Ora o que os poderia atrair em Pessoa e nos outros seus precursores do Primeiro Modernismo, um Mario de S4-Carneiro, um Raul Leal, era a adestruigio da personalidades e nao a sua «divisio» ou «dispersio» *, ou, ainda menos, em Pessoa, por exemplo, a sua costela de «literato», que, na perspectiva de Anténio Maria Lisboa, o faz claramente perder no confronto com S4-Carneiro *, Por outro lado, e apesar das proporcées alarmantes que o culto fernan- dino comeca a tomar mais ou menos na altura em que surgem os surrea- listas e a que estes irfo tentando opor uma barreira, propondo modelos alternatives — pata alm do proprio $é-Carneiro, celebrado pelo que nele haveria de desregramento, «excesso» ¢ maldigio ou de abjeccionista rejei- cio do sistema (é 0 $éCarneiro de Cesariny, «Sem jeito para o Negécio»), Pascoaes, insistentemente lembrado em tempos mais recentes como vitima da «ocultagio» para que a «forca de escindalo cosmopolita do Orphen» © teria relegado* —, dificilmente poderiam os discfpulos portugueses de Breton permanecer insenstveis a essa «forca de escindalo» do Primeiro Modernismo ¢ ao papel que o Pessoa mais decididamente vanguardista, pela intervengao pottica e crftica, af desempenhara. Pessoa era, assim, um exemplo que nio podia recusar-se, um precursor inevitdvel. Perante a «chateza» do NeoRealismo, o Surrealismo surgia aos olhos de alguns dos que se iniciavam nas letras na segunda metade dos anos 40 coma algo de «exaltante ¢ libertadore. Quem fala em «chateza» do Neo- -Realismo e na cexaltagéo» e na «libertagio» que o Surrealismo tinha para oferecer é Alexandre O'Neill, em entrevista dada ao Expresso, em Setem- 49 50 bro de 1985 °. Que o Surrealismo aparecia a O'Neill como qualquer coisa de «exaltante ¢ libertador» nao custa aceitar, se tivermos em conta o seu percurso literdrio. Com efeito, é ele que inaugura, em 1948, os Cadernos Surrealistas, com o «poema grifico» A Ampola Miraculosa, participando ainda em exercicios de «criacio colectivas como o «caddver esquisito extre- mamente ortodoxo» intitulado ‘Comunicacao’, a que da o seu contributo, em 1950, j4 depois de se ter consumado a dissidéncia de Cesariny relati- vamente ao Grupo Surrealista de Lisboa — dissidéncia em que 0 nao acom- panha—, ao mesmo tempo que, ao longo de toda a sua obta, apesar de em 1951 ter rompido oficialmente com o Surrealismo, se mantém, no essencial, fiel a um certo ntimero de «técnicas» e de «efeitos literdrios», de inequivoca proveniéncia surrealista, conforme salienta Clara Rocha no preficio que escreveu para as Poesias Completas, 1951-1983 *. Nao obstante a permanéncia dessas «técnicas» e desses «efeitos», © Surrealismo, como movimento literdrio, 36 por si nao é suficiente para explicar a poesia de O'Neill, que hi que inscrever igualmente noutras tra- digées, como, aliés, aponta Clara Rocha, e como o préprio poeta nao deixa de reconhecer em testemunho inclufdo no niimero dedicado pelos Quaderni Portoghesi, em 1978, a0 Surrealismo portugués. No final desse texto, que intitulou ‘Il marchio del surrealismo’, O'Neill assevera que o Surrealismo «funcionou para [ele] mais como detonador de uma libertagio e criagio colectiva do que como projecto individual de escrita», interrogando-se, depois, sobre o que desse movimento teré permanecido na sua poesia, para vir a concluir que, afinal, sempre preferiu «o falar ao imaginar» *. O: que, entre outras coisas, significaré que a poesia de O'Neill nfo procuraria tanto ele- var-se as alturas do surreal onde as contradigdes seriam anuladas, como situar-se criticamente perante o real, «istoe aqui em baixo, mais adequado, decerto, a0 «falar» que a0 77, Janeiro de 1984, pp. 5-18. ¢ julgamento de valor’, Coldquio/

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