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Georges

Canguilhem

• FILOSOFIA •

Escritos
sobre a
Medicina
Tradução:
Vera Avellar Ribei ro

Revisão Técnica:
Manoel Barros da Mona

Prefácio:
Armand Zaloszyc

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FORE NSE
UNIVERSITÁRIA
l' edição- 2005

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t\s referência~ de p1·imcira puulic;1ç:,o de .:ada um do~ rcxiOS
figur;un no início do volume.

© PUF, I?89. 4" etliçilo. ~001. l'"m o texto "As doenç~s··


© ~ablcs. 19<JO. para o t~xto "A s;oúoc: conceito vulg.;.r e qu~~tão Jilusótica"
© Éditions dn s.,uil, junho. 1tJO:!. para to.Jos os outros textos c pma a
composiçao do volume

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Priutnl itt Om;.U
Sumário

Prefácio ......................................... 7

Nota sobre a procedência dos textos .... . .. . ........... . 9

A idéia de natureza no pensamento e na prática médicas . . . 11

As doenças ...................................... 23

A saúde: conceito vulgar e questão filosófica ............ 35

Épossível uma pedagogia da cura? .................... 49

O problema das regulações no organismo e na sociedade ... 71


Prefácio
Um certo disparate sempre me pareceu ser um traço da com-
posição dos livros publicados por Georgcs Canguilhem. Com
exceção de suas duas teses, uma sobre O normal e o patol6gico c a
outra sobre La formation clu concept de réflexe (ambas publicadas
pela PUF), ele, sem dúvida, procedeu essencialmente por meio
de artigos publicados aqui e ali, os quais reunia em uma seleção,
de tempos em tempos, para fazer deles um volume: assim obti-
vemos seus Études d'ltistoire et de plúlosophie des sciences, o u La
connaissance de la vic, ou ainda Idéologie et rationaliré dans
l'ltiswire eles sciences de la vie (todos atualmente editados por
Vrin). Penso, todavia, que, mais além do que aparece fulguran-
te como um método- de trabalho, de transmissão-, é uma ori-
entação que nos é dada.
Quem sabe era assim que ele pretendia nos apresentar este
novo objcco de saber inventado por ele, com novos contornos,
expansões imprevistas? Por um outro aspecto, não estaria neste
homem, neste ensinante de um rigor contínuo, a marca da inci-
dência de uma lógica que valoritava a inconsistência do grande
Todo? Encontrarei facilmente um outro sinal disso no fato de
ele ter dirigido, em 1970, de maneira bastante inesperada, um
colóquio do CNRS sobre "A matematização das doutrinas in-
formes".
8 Ocorges Canguílhem

O sabor tão particular das obras de Georges Canguilhcm


proviria, assim, do enlaçamento entre uma orientação, um ri-
gor, uma erudição, uma exatidão, no seio de uma aparente dis-
persão- contida, é verdade, na disciplina da história e da epis-
temologia das ciências da vida: ele, porém, modela seu domínio
e seus limites muito mais do que se submete a ela. Disseminação
seria, então, a palavra exata.
A presente coletânea não é exceção a essa regra que julgo
perceber no cuidado de Georges Canguilhem, no sentido de
sempre questionar a regra por meio da exceção múltipla. A coe-
rência disso é manifesta: trata-se de história e de filosofia da
medicina e ter-se-á, com os cinco textos que podem ser lidos
neste livro, junto aos três outros que figuram sob a rubrica "me-
dicina", na última edição dos Études ... , a totalidade dos escritos
de Georges Canguilhem sobre a medicina- pelo menos se con-
fiarmos na bibliografia crítica muito bem informada de Camille
Umogcs 1 -, reservando-se a fronteira sempre incerta com os es·
tudos de fisiologia e, no que conceme à reflexão sobre o sujeito
doente - que é verdadeiramente o caráter específico dos escri-
tos aqui reunidos-, excetuando-se breves observações conclu-
sivas feitas no colóquio mundial "Biologia e futuro do homem",
em Paris, em 1976, sob o título "Qualidade da vida, dignidade
da morte". Tal é a unidade deste livro, e, agora, deixamos ao lei-
tor o cuidado de ver como ele se dissemina.
Armand Zaloszyc

1Camille Límoges, "A criticai biblíography", in A vital ratianalist, selected tvri·


tíngs from GeMges CanguiUtem (François Delaporte ed.), Nova Iorque, Zone
Books, 1994. p. 385-454.
Nota sobre a procedência dos textos
Os textos deste livro são feitos de escritos entregues por
Georges Canguilhem para publicações por vezes confiden·
ciais, com freqüência desaparecidas nos dias de hoje, difícil-
mente acessíveis, e até mesmo não encontráveis. Por essa ra-
zão, pareceu-nos justificado fazê-las reaparecer. A escolha
do que figuraria neste volume foi efetuada no decorrer de
discussões amigáveis, em perfeito acordo com Bernard Can·
guilhem.
Com exceção de dois deles, é provável que Georges Canguí-
lhem não tenha relido esses textos antes da publicação: são
conferências por d e pronunciadas cujos textos ele remetia às
pessoas que lhe haviam solicitado (n~ 1, 3, 5); outros são textos
destinados diretamente à composição escrita (ni!! 2, 4). Os arti·
gos comportam nol:'as ou então uma bibliografia geral; as confe-
rências quase sempre não trazem notas, mas, ao lê-las, verifi-
ca-se que elas certamente se apresentam, em todos os seus as-
pectos, como escritos de Georges Canguilhem. Um ponto par·
tícular conceme apenas ao texto n!! 5, visivelmente publicado
sem ter sido relido por ele. É evidente que ele não o teria deixa-
do, se tivesse podido revisá-lo, com a disposição tipográfica ini·
cial, em breves parágrafos de uma ou duas frases, ele que se em-
penhava,, como confidenciou, em "expressar-se por meio de
massas discursivas bem ordenadas". A apresentação menos
10 Georges Canguilhem

"explodida" que aqui proponho vai nessa direção, mas ela me é


peculiar.
A Z.
Fontes

l. "A idéia de n<:~tureza no pensamento c na prática médicas",


Médecine de 1'/wmme, revista do Cemro Católico de Médicos
Franceses, n!!43, março de 1972, p. 6-12.
2. "As doenças", Encyclopédie philosophique universelle, l' univers
phílosopluque, sob a direção de André Jacob, Paris, PUF, 1989,
v. 1, p. 1.233-1.236.
3. "A saúde: conceito vulgar e questão filosófica", Cahiers du
sémin.aire de philosophie n2 8: La santé, edições Centre de Docu-
mentation en Histoire de la Philosophic, 1998, p. 119-133 (tra·
ta-se de uma conferência pronunciada em Estrasburgo, em
maio de 1988, a convite do Pr. Lucicn Braun). Publicado igual-
mente sob a forma de um bookler, Pin-Balma, Sables ed., 1990,
36 p.
4. "É possfvel uma pedagogia da cura?", Nouvelle Revue de
Psychanalyse (diretor J. •B. Pontalis), n!! 17, primavera de 1978,
p. 13-26.
5. "O problema das regulações no organismo e na sociedade",
Calliers de l'Alliance lsraélite Universelle, n~ 92, setembro-outubro
de 1955, p. 64-73. Não reproduzimos a discussão (p. 73-81).
A idéia de natureza no pensamento
c na prática médicas

Podemos nos perguntar se a relação entre médico c doente


conseguiu, algum dia, ser uma relação simples de ordem instru-
mental, capaz de ser descrita de tal maneira que a causa e o efei-
to, o gesto terapêut:lco c seu resultado, estivessem ligados dire-
tamente uns aos outros, em um mesmo plano e no mesmo nível,
sem intermediário estranho a esse espaço de inteligibilidade.
De todo modo, é certo que a invocação multissecular de uma
natureza curativa foi e continua sendo a referência a um tal in-
termediário, cujo papel é, talvez, o de dar conta, através da his-
tória, do fato de que o par médico-doente raras vezes foi um par
harmonioso, em que cada um dos parceiros pudesse se dizer ple-
namente satisfeito com o comportamento do outro.
A abstenção sincera e perseverante de toda prática de char·
latão - oposro, em suma, da honestidade profissional - não é
exclusiva da ambição de propiciar ao doente, mediante inter·
venções eficazes, uma melhora ou uma restituição que ele não
poderia obter por seus próprios meios. Essa ambição pode che-
gar a conter a idéia de que um organismo doente, diante do mé·
clico e para ele, é apenas um objeto passivo e dócil às manipula-
ções e solicitações externas. Um médico escocês, muito célebre
na ltáha c na Alemanha no início do século XIX, John Brown, o
12 Georges Canguilhem

inventor dos conceitos de esrenia e astenia , acreditava poder


resumir em duas palavras o imperativo da atividade médica: "É
preciso estimular ou debilitar. Inação, nunca. Não confiem na
força da natureza." Era a conseqüência necessária de uma certa
concepção do corpo vivo: "A vida é um estado forçado [... ].
N ão somos nada por nós mesmos e estamos inteiramente
subordinados às potências externas" (Élémenls de médecine,
1780). Para corpo inerte, medicina ativa.
Inversamente, a consciência dos limites do poder da medici-
n a acompanha toda concepção do corpo vivo que lhe atribui,
seja qual for a sua forma, uma capacidade espontânea de con-
servação de sua estrutura e de regulação de suas funções. Caso
o organismo tenha, por ele próprio, seus poderes de defesa, con-
fiar nele é, pelo menos provisoriamente, um imperativo hipoté-
tico de prudência e de habilidade ao mesmo tempo. Para corpo
dinâmic~, medicina expectante. O gênio médico seria uma pa-
ciência. E necessário, ainda, que o doente consinta na longani-
midade. Bordeu o viu muito bem e disse: "Este método de ex-
pecração tem algo de frio ou de austero, ao qual a vivacidade
dos doentes e dos assistentes deve se acomodar pouco. Além
disso, os expectadores sempre formaram um pequeno conjunto
en tre os médicos, sobretudo junto aos povos naturalmente vi-
vos, impacientes c receosos'' (Recllerches sur l'histoire de la mécle-
cine, 1768).
N em todos os doentes tratados se curam. Alguns doentes se
curam sem médico. Hipócrates, que relata essas observações
em seu tratado Da arte, é também aquele que tem a responsabi·
Iidade ou, em seu lugar, a glória legendária de haver introduzi-
do o conceito de natureza no pensamento médico. "As nature-
zas são os médicos das doenças" (Epidemias, VI) . Por médico
Escritos sohrc a m~dicioa 13

deve-se en tender uma atividade, imanente ao organismo, de


compensação dos deficits, de restabelecimento do equilíbrio
rompido, de retificação de postura na detecção d«:! desvio. Essa
atividade não é uma ciência infusa." A natureza encontra por si
mesma as vias e os meios, não pela inteligência: tais são o piscar
os olhos, os ofícios desempenhados pela língua e as outras ações
desse gên ero; a natureza, sem instrução e sem saber, faz o que
convém."

A analogia entre a arte do médico e a natureza curativa não


esclarece a natureza pela arte, mas a arte pela natureza. A arte
médica deve observar, escutar a natureza. Aqui, observar e ou·
vir é obedecer. Galeno, que atribuiu a Hipócrates os conceitos
dos quais podemos apenas dizer que são hipocrMicos, reto·
mou-os por sua conta e ensinou, ele também, que a natureza é a
primeira conservadora da saúde, porque ela é a primeira forma-
dora do organismo. Devemos lembrar, tod<wia, que nenhum
texto hipocrático chega a descrever a narureZ<l como infalível
ou onipotente. Se a arte médica nasceu, foi transmirida, se da
deve ser aperfeiçoada, é como medida do poder da natureza, ou
seja, avaliação de suas forças. Segundo o resultado dessa medi-
da, o médico deve laisser faire a natureza, ou então intervir para
sustentá-la e ajudá- la, ou ainda renunciar à intervenção, uma
vez que há doenças mais forte:> que a natureza. O nde a natureza
cede, a medicina deve renunciar. "Pedir à arte o que não é da
a.ne e à natureza o que não é da natureza é ser ignorante, e de
uma ignorância que resulta mais da loucura do que da falta de
instrução" (Da arte).

Quer p lamentemos, quer não, o fato é que, hoje, ninguém é


obrigado, para exercer a medicina, a ter o menor conhecimento
14 G~orges Can){uílht:m

de sua história. É fácil imaginar qual impressão uma doutrina


médica, tal como o hipocratismo, pode produzir no esp(rico de
quem só conhece o nome de Hipócrates pelo famoso juramen-
to, rito final doravantc esvaziado de seu sentido. Pior ainda se,
por acaso, projetando retroativamente no passado os princípios
teóricos e os preceit~ técnicos do ensino médico de hoje, se
pretendesse jlllgar Hipócrates, como se a vazante do curso da
história transparecesse a montante. Notemos, sem animosida~
de, que até mesmo um mestre como Édouard Rist, que não ig-
no rava a história, só soube tratar da medicina hipocrática, em
sua Histoire critique de !a médecine dans l'Antiquiré, sob a forma
de um requísitório. Aparentemcnre, essa espécie de ingratidão
não deixa de ter fu ndamento. Como François D agognet o mos-
trou em la mison et les rcmede.l, 1 a medicina contemporânea,
muito longe de vigiar ou de estimular, sistematicamente, as rea-
ções de autodefesa do organjsmo, com freqüência se esforça em
moderá~las, e talvez mesmo em reprimi-las, em deter, por
exemplo, reações humorais desproporcionaLc; em relação à
agressividade que a:; suscita . Por vezes a terapêutica colabora,
inclusive, com o próprio mal, reforça o que ela deveria enfra~
quecer, multiplica o que deveria reduzir, a fim de converter em
instrumento do bem a exaltação provocada por uma afecção
espontânea. É o caso de algumas pnüicas imunológicas que
contam com a intensidade do processo infeccioso para facilitar,
por meio da secreção de substâncias pro teolíticas, a ação das
bactérias. Não nos parece, então, que a medicina contemporâ,
nea lança por terra as prescrições hipocráticas e só reconhece a
existência de uma natureza curativa das doenças por temer e,
por conseguinte, para entravar suas iniciativas? Éque a patolo,
gia contemporânea aprendeu a reconhecer a existência de rea~

1Pmis, PUF, 1964, Col. "Galien".


Escríros sobn: a medicina 15

ções orgânicas paradoxais a um hipocratismo de estrita obe,


?iê.nci~: Há erros de réplíca ou de exposição. Ocorre que, a algo
msigmficante, a natureza responde com um paroxismo. Assim
é na alergia, na anafilaxia. Por vezes, dizer que o remédio natu-
ral é pior do que o mal é ainda pouco, ele é o próprio mal. Po-
rém, se examinarmos bem as técnicas médicas de defesa contra
essa autodefesa desmedida, não seria possível tornar a dar um
sentido ao conceito de natureza?
No que concerne às defesas orgânicas naturais, a medicina de
hoje exerce uma pn1tica de dúvida provisória. A dúvida não inci-
de sobre o fato da reação, mas sobre a pertinência inicial e sua su-
ficiência definitiva. E, no entan to, essa dúvida não suspende a
decisão de intervir; pelo comrário, da a precipita. É que essa dú-
vida é fundam entada no conhecimento do papel desempenhado
pelo sistema neurovegetativo, no que se nomeou situações pato-
gênicas, independentes da natureza dos agentes patógenos. Ora,
a ação sobre o sistema vegetativo, seja qual for seu mecanismo
i~direto •.a complexidade dos desvios, notadamente pela ini.hiç<'ío
hterarqmzada dos centros de excitação ou de frenamento, per-
manece, em t.Htima análise, uma cópia, embora invertida, do pro-
cesso orgânico natural. Mesmo tomando~a pelo avesso, a arte
imita a natureza, no sentido em que La Fontaine diz: "Minha
imitação não é uma escravidão, pego apenas a idéia, os contor~
n~s•. as l:is [.. .].': Uma terapêutica sistematicamente ru;o hipo-
cranca pode ser mventada porque, por volta de 1921, Otto Loe~
wi, confinnando observações acompanhadas d esde 1904 por
Elliot e Dale, conseguiu demonstrar que o pneumogástrico age
por meio da liberação de uma substância inibidora, de um rrans,
missor químico. Por essa razão, ao identificar a hist:1mina, Sir
Henry Dale pôde dizer 4ue ela era um produm da "autof.mnaco-
logia org1inica". Mas, ranto na farmacopéia viva quanto na far,
16 Georges Cmguilhem

macopéia erudita, seus remédios podem ser mmbém, segundo o


caso, a duração e a dose. venenos. Em suma, uma medicina não
hipocrática não é uma medicina anri-hipocrática, ranto quanto
uma geometria não euclidiana não é uma geometria antieucli-
diana. O poder curativo da narureza não é negado pelo trata,
mcnco que o g(wcrna i ntegrando~o; ele é situado em seu nível ou,
mais ex::l tamente, d e é compreendido em seus limites. O hípo-
cmrismo constatava que as forças da natureza são limitadas. o
que v;:~lt!u à medicina expectante ser qualificada por Asclepía d~s
de meditação sobre a morte. A medicina não h.ipocrácica pode
recuar suas fronteiras derivando essas forças. Awalmentc, a ig-
norância consistiria em IICÍO pedir à natun::za o que não é da natu-
reza. A arte médica é a dialética da natureza.
***
Não é sem propósito que o nome de Loewi tenha sido manti,
do no esboço histórico de uma revolução em pacologia, e prefe-
rido a tantos outros, como os de Reilly ou de Selyc. Os trabalhos
de Loewi foram retomados e prolongados, em Harvard, por
Cannon e sua escola. Foi Cannon quem ampliou o interesse pc-
las pesquisas fisiológicas sobre o sistema nervoso autônomo, de-
monstrando seu papel na regulação homeostática de funções
biolôgicas fundamentais: circulação. respiração, termogêncse.
Foi Cannon que, depois de Claude Bernard, apresentou o con-
junto ~Qs funções de regulação como "uma interpretação mo·
dema da vis medicatrix natural", interpretação geradora de oti,
misu10 quanto à cooperação entre o m.édico e a natureza, mas
em um sentido dt:: relação de modo que "a própria natureza co-
labore com os remédios que ele (o médico) prescreve".2
2La sagesse du corps (rrnd. (r. de T!.e wisdom of rl1e bod-y, 1932), P;•ris, 1946, p.
194-195.
Escritos sobre a medicina 17

Compreende-se que a partir do momento em que a ciência


fisiológica permitiu ao médico poder contar com a existência de
mecanismos protetores da estabilidade orgânica, os médicos
puderam cessar de invocar a Natureza como a providência da
Vida. Mas compreende,se também por que essa interpretação,
até aquele momento, embora freqüentemente contestada co-
mo metafísica por muitos espíritos positivos, pôde, de modo in-
cessante e junto a espíritos não menos vigorosos, aucorizar,se,
tanto em teoria quanto em prática, da observação atenta e fiel
de algumas reações e peiforrnances do organismo em estado de
doença. Se o organismo humano compreende dispositivos de
segurança contra os riscos em suas relações com seu meio, o que
haveria de surpreendente se esses dispositivos funcionassem, e
o que haveria de insensato se homens, doentes ou médicos ad,
mirassem seus efeitos manifestos?
A revisão dos temas e das reses inspirados pela confiança
prática -na falta de lucidez teórica -no poder curativo da na-
tureza exigiria a referência a uma literatura médico-filosófica
considerável, cuja melhor apresentação é oferecida pela obra
de Max Neuburger, Die Lehre tJOn der Heilkraft der Natur im
Wandel der ~iten ( 1926). Sob o título Le médecin de soi-même, a
Sra. Evelyne Aziza-Shuster estudou, recentemente, em uma
rese de doutorado de terceiro ciclo,3 a parte dessa literatura que
conccrne ao que se poderia chamar 41a prescrição de Tibério''.
Tácito, Suetônio, Plínio, o Velho, c Plutarco transmitiram à
posteridade o exemplo e a exortação do imperador Tibério:
passada a idade de 30 anos, todo homem deve poder ser seu
próprio médico. Depois dos 30 anos, quer dizer, depois que um
número suficiente de experiências em matéria de alimentação,

3A ~er publicada pela PUF, Col. ..Galienw.


18 Georges Canguilhem

lúgiene e modos de vida permitiu ao juízo individual fazer a se·


paração entre, por um lado, os efeitos das escolhas instintivas, c
portanto naturais, de satisfações ótimas e, por outro, as conse·
qüêndas da submissão dócil às regras de uma arte mal funda-
mentada ou interessada em enganar. Quem se surpreenderia
com o fato de Montaigne se referir a Tibério para autorizar-se a
seguir apenas seus apetites, na saúde e na doença, e para fazer
ceder "amplamente toda conclusão médica" a seu prazer? Mas
quando Descartes, depois de se haver vangloriado por fundar
uma medicina infalível sobre uma ciência do corpo vivo, e tão
solidamente demonstrada quanto a mecânica, propõe a Bur·
man, como regra da saúde, o discernimento instintivo do útil e
do nocivo próprio aos animais, a confiança no poder reconheci·
do à Natureza de se restabelecer a partir de um estado que ela
"conhece bem melhor do que um médico que só vê o lado de
fora", que sustentação dada à tese do Médico de si mesmo! De
nosso conhecimento, a primeira obra que levou esse título foi a
do cirurgião Jean Devaux (1649- 1729), Le médecin de soi-même
ou !'are de conserver la sancé par l'instinct (Leyde, 1682). Diatribe
de cirurgião contra os médicos, a obra é também justificativa
anticarcesiana do naturismo cartesiano, manifestamente igno-
rado por Devaux. Ele quer demonstrar que o homem tem ins·
tinto como todo animal e que o instinto no animal não é um
mecanismo, mas um conhecimento por imagens. Se a obra do
inglês John Archer (morto em 1684), Every man, his own docror
(1673) precedeu à de Devaux, ela, contudo, não pertence ao
gênero demonstrativo, foi o escrito publicitário de um charla-
tão renomado. Na realidade, a literatura médica de inspiração
na turista permaneceu, permanece e permanecerá, sem dúvida
por muito tempo ainda, dividida entre duas intenções ou duas
motivações: reação sincera de compensação quando das crises
Escritos sobre a medicina 19

da terapêutica, utilização astuciosa do desarvoramcnto dos


doentes para a venda de qualquer electuário de Orvieto, mes·
mo que sob a forma de impresso.
No século XVIII, foi sob o título De medicina sine medico
(1707), ou sob De autocratia naturae · (1696), que Georges
Ernesr Srahl parabenizou-se pelo feliz contraste enrre a propen·
são à doença e a raridade das doenças em um organismo conde-
nado a uma corrupção rápida por sua composição química, sob
o efeito de uma natureza pronta a restabelecer a economia ani·
mal, graças à espontaneidade do movimento tônico vital. Mas
foi sob o título De medico sui ipsius que o rival de Stahl em Hallc,
Frédéric Hoffman, esmerou-se em apresentar sua teoria meca·
nicista do corpo vivo como o suporte racional de uma prática
fiel aos princípios hipocráticos. Foi ainda sob o título Medicus
sui ipsius ( 1768) que Uneu expôs, mais explicitamente que mui·
tos outros depois de Galeno, os princípios de uma conduta da
vida regulada pelo uso das seis coisas não naturais, instrumen-
tos da saúde, bases da higiene. Vê-se, então, que os maiores no-
mes da medicina e da história natural no século XVIII não hesi-
taram em sustentar, com sua autoridade, uma tese progressiva-
mente condenada, pelo recuo do ceticismo ou do niilismo tera·
pêutico, a sobreviver nas publicações de contestação, de char-
latanice ou de vulgarização retrógrada.
No século XIX, as obras que portam o mesmo título são obras
de medicina doméstica, de medicina popular, de intenção fi-
lantrópica: Manuais de saúde, Amigos da saúde, Conservado·
res da saúde, Reguladores da saúde, Medicinas sem médico,
Médicos sem medicina etc. A tese anteriormente citada da Sra.
Aziza·Shuster estabeleceu um quadro sistemático dessas obras,
na falta de seu recenseamento exaustivo.
20 Georgcs Canguilhem

O que obrigou o tema da natureza curativa a se refugiar na


literatura popular foi, na conjunção da anatomopatologia e
das novas técnicas de exploração clínica (percussão e auscul~
ração), a descoberra dos fenômenos de silêncio espontâneo da
natureza pelos médicos austríacos e franceses do século XIX
nascente. A nova clínica em Viena e em Paris, nos primeiros
anos de 1800, constata que a natureza só fala se for bem inter~
rogada.
A partir do momento que a medicina fundamenta seu diag~
nóstíco não mais na observação de sintomas espontâneos, mas
no exame de sinais provocados, as relações do médico e do do~
ente com a natureza se vêem perturbadas. Por não poder fazer
ele próprio a diferença entre os sinais e os sintomas, o doente é
levado a achar natural qualquer conduta que se regule exclusi~
vamente pelos sintomas. Mas porque doravante ele sabe que
não deve aceitar da natureza tudo o que ela diz e da maneira
como o diz, sem sua arrede obrigá~la a se expressar, o médico é
levado a desconfiar não somente do que ela diz, mas também do
que ela faz. Se em sua tese deagrégé, em 1857, De l'expectarionen
médecine, Charcot sutiliza - a fim de conservar algum crédito ao
na turismo e ao humorismo- Émilc Littré, fiel ao ensino positi~
vis ~a que fundamenta a ação na ciência, ele retoma a palavra de
Tibério apenas para refutá-la, e lembra ao doente a obrigação
de recorrer, sem se fiar em seu próprio sentido, ao homem capaz
de saber o que ele mesmo ignora, ou seja, ao médico. Não se tra~
ta mais de suplantar a medicina pela higiene. Nada de higiene
sem médico ("De l'hygiêne", in Médecine et médecins, 1872).
•••
Escritos sobre a medicina 21

A fisiologia justificou algumas intuições da antiga medicina


na turista mediante a descoberta progressiva de mecanismos de
auro~regulação e de estabilização orgânicos, cuja explicação é
hoje buscada em modelos de reação ativa, em outras palavras,
de feedback.

Simultaneameme, a terapêutica das doenças infecciosas, na


época de Pasceur, de Koch e de seus alunos, legitimou a atribui~
ção - até então sem provas, e talvez mesmo sem argumentos -
de um poder de defesa antitóxico inato ao organismo. Ora,
compreender é ultrapassar. A recuperação dirigida da imuniza·
ção espontânea pelas técnicas imunológicas tem como efeito
excitar a réplica curativa não por meio de um logro, mas de um
mal menor, um mal benevolente, que leva o organismo a reagir
de modo mais rápido do que ele costuma fazê-lo, visando a pas·
sar à frente de um mal mais grave, iminente. Cada vez mais, e de
modo melhor, é possível transformar um organismo animal em
produtor permanente de remédios naturais cessíveis.
Roux, von Behring, Ehrlich, três grandes artesãos da domes·
ticação de uma natureza curativa "selvagem". Pela engenhosi~
da de de Ehrlich, a quimioterapia contemporânea nasceu do es·
tudo sistemático dos modos de reação celulares, desconccrtan~
tes por sua parcialidade, no sentido de que a produção espontâ·
nea de anticorpos, recuperada nas técnicas da vacinação e da
seroterapia, não era mais observável no caso dos protozoários.
A medicina contemporânea não pode melhor reverenciar
Hipócrates senão cessando de se prevalecer dele; ela não pode
melhor celebrar a precisão aproximada de sua concepção do or~
ganismo senão recusando sua prática de observação e de expec,
tação. Não é prudente esperar que a natureza se declare quan·
do verificamos que, para conhecer suas fomes, é preciso mobili·
22 Georges C;~ngu ilhem

zá,las por meio do alerta. Agir é ativar, tanto para revelarquan~


to para remediar.
Então, é possível, mesmo na era da farmacodinâmica indus,
trial, do imperialismo do laboratório de biologia, do tratamento
eletrônico da informação diagnóstica, contin uar a falar da na-
tureza para designar o fato inicial da existência de sistemas au,
to,reguladorcs vivos, cuja diPâmica está inscrita em um código
genético. Deve-se, a rigor, tolerar que, para os doentes, a con,
fiança no poder da natureza possa afetar a forma do pcnsamen·
to mítico. Mito de origem, mito da anterioridade da vida sobre a
cultura. Pode,sc fazer psicanálise e reencontrar o rosto da Mãe
na figura daNa tu reza. Pouco importa, c pelo contrário. Até no,
va ordem, a ordem biológica é primordial em relação à ordem
tecnológica. Inclusive, foi um psicanalista heterodoxo, Georg
Groddeck, quem elaborou os primeiros conceitos do que se
deveria chamar medicina psicossomática, ao desenvolver o en,
sino naturista de Schweninger, médico pessoal de Bismarck.
Groddeck in titulou Nruamecu o livro que lhe dedicou em 1913:
NAcu.ra SAnat, MEdicus CUrat.
As doenças
No começo dos Essaís sur la pcínture, Didcrot escreve: "A na-
tureza não faz nada de incorreto. Toda forma bela ou feia tem
sua causa; e, de todos os seres que existem, não há um que não
seja como deve ser." Podemos imaginar "Ensaios sobre a m~di­
cina", cujo começo seria assim: "A natureza não faz nada de ar,
bitrário. T amo a doença quanto a saúde têm suas causas, e de
todos os seres vivos não há um cujo estado não seja o que deve
ser." Esse gênero de prólogo não poderia concernir a todas as
populações em todos os tempos. D urante séculos e em muitos
lugares, a doença foi considerada como uma possessão por um
ser "maligno", sobre ü qual apenas um taumarurgo poderia
triunfar, ou como uma punição infligida por um poder sobrena-
tural a um desviante ou impuro. Sem precisar buscar exemplos
no Extremo Oriente, podemos lembrar que no Antigo Testa-
mento (Levfrico, capítulos 13 e 14) a lepra era considerada e re-
jeitada como uma impureza e os leprosos, expulsos das comuni-
dades. Na Grécia, as primeiras formas de tratamenro e de tera-
pêutica são de ord~ m religiosa. Asclépio, fílho de Apolo, é o
deus curador do qual os sacerdotes são os executantes. Nos
templos de Asdépio, os pacientes eram recebidos, examinados
e tratados segundo ricos dos quais a serpente e o galo permane-
ceram p~ricipantes simbólic<)S.
24 Georges Canguilhem

A justo título, só se pode falar de medicina grega a partir do


período hipocrático, isto é, a partir do momento em que se tra-
tam tanto doenças quanto desordens corporais, a respeito das
q uais se pode sustentar um discurso comunicável concernindo
aos sintomas, suas causas supostas, se~• futuro provável, assim
como a conduta a ser observada para corrigir a desordem indi-
cada por eles. Sempre se notou que essa medicina, c ujos Aforis-
mos de Hipócrates são, de algum modo, um breviário, é con-
temporânea das primeiras pesquisas merecedoras do nome
ciência e do progresso do pensamento filosófico. Um diálogo de
Platão. Fedro, contém um elogio a Hipócrates cujo método é
declarado conforme à "justa rozão".
Nem po r 1sso admitir-se-<) que uma tal prática médica, em-
bora leiga e ponderada, possa ser qualificada de científica no
sentido moderno do termo. A medicina de hoje fundamen-
tou-se, com a eficácia que cabe reconhecer, na dissociação pro-
gressiva entre a doença e o doence, ensinando a caracterizar o
doente pela doença, mais do que a identificar uma doença se-
gundo o feixe de sintomas esponraneamente apresenrados pelo
doente. Doença remete mais a medicina do que a mal. Quando
um médico fala da doença de Basedow, isto é, de bócio exoftál-
mico, ele designa um estado de disfunção endócrina cujo enun-
ciado dos sintomas, o diagnóstico etiológico, o prognóstico e a
decisão terapêutica são sustentados por uma sucessão de pes-
quisas clínicas e experimentais, de exames de laboratório, no
decorrer dos quais os doemes foram tratados não como os sujei-
tos de sua doença, mas como objetos.
A peste, o câncer, o zona, a leucemia, o asma, o diabetes são
tipos de desordem orgânica sentida pelo ser vivo como um mal.
A doença é o risco do ser vivo como tal, é risco tanto para o ani-
Escritos sobre a medicina zs
mal ou para o vegetal quamo para o homem. Para este último, à
diferença do risco que nasce da resolução de agir, o risco que
nasce pelo fato de se nascer é, com muita freqüência, inevitá,
vel. O sofrimento, a redução da atividade habitual escolhida ou
obrigad a, o enfraquecimento orgânico, a degradação mental
são constitutivos de um estado de mal, mas não são por si mes-
mos os a tributos específicos do que o médico de hoje identifica
como doença no exato momcn.:o em que ele se esforça para
fazer cessar o mal o u somente atenuá-lo. Todavia, a relação
doente,doença não pode ser de co mpleta discordância. Nas so-
ciedades contemporâneas em que a medicina se empenhou
para se tomar uma ciência das doenças, a vulgarização dosa-
ber, por um lado, e as instituições de saúde pública, por outro,
fazem com que, na maioria dos casos, o viver a doença para o
doente seja também falar dela ou ouvir falar dela segundo cli-
chês ou estereótipos, isto é, valorizar implicitamente as recaí-
das de um saber cujos progressos são, em parte, devidos ao fato
de o doente ter sido posto entre parênteses enquanto eleito da
diligência médica.

O conhecimento atual das doenças somáticas é o resultado,


sem dúvida provisório, de uma sucessão de crises e de inven-
ções dosa ber médico, de progressos concernentes às prá ricas de
exames e à análise de seus resultados, surtindo o cfeíco de obri-
gar os médicos a deslocar o foco e a revisar a estrutura do agente
patogêrúco e, por conseguinte, a mudar o alvo da intervenção
reparadora. Correlativamenre, foram deslocados os locais de
observação e de análise das estruturas orgânicas suspeitas, em
função de aparelhos e de técnicas próprias ou emprestadas.
Assim, as doenças foram sucessivamente localizadas no orga-
nismo, no órgão, no tecido, na célula, no gene, na enzima. E, de
modo sucessivo, trabalhou~se para identiflcá~las na sala de au-
26 Georges Canguilhem

tópsia, no laboratório de exames físicos (ótico, elétrico, radioló-


gico, ultra-sonográfico, ccográfico) e químicos ou bioquímicas.
A relação cada vez mais estreita entre a medicina e a biologia
permitiu distinguir entre 'lS doenças, graças a um conhecimen-
to mais exato das leis de hereditariedade, as que são hereditá·
rias, dependendo da constituição do genoma; as que são congê-
nitas, dependendo das circunstâncias da vida intra-uterina; as
que são, propriamente falando, ocasionais, tanto por meio das
relaçóes do indivíduo com o meio ecológico quanto com o gru-
po social de vida. Pode ser o caso de acidentes individuais, co·
mo a pneumonia, ou coletivos, como a gripe ou o tifo, doenças
consideradas infecciosas cujo nascimento, vida e morte foram
estudados por Charles Nicolle. Sem dúvida, essas doenças de-
vem ser consideradas, na história das sociedades e das civiliza-
ções, como fenômenos naturais caracterizados pela época, lo-
cais de aparecimento, de difusão e de extinção. Mas, se, a partir
do final do século XIX, conhecemos, por um lado, s,uas causas
determinantes; micróbios, bacilos, vírus, e, por outro, seus agen-
tes vetores: a pulga do rato para a peste, o mosquito Aedes aegy-
pti para a febre amarela, o historiador dessas doenças não pode
deixar de se interessar pelas razões de sua distribuição geográfi-
ca, pela forma das relações sociais próprias às populações afeta·
das. Em suma, no período contemporâneo, a luta coletiva, por
medida de higiene pública, é um dos determinantes do quadro
dessas doenças, da maneira como elas evoluem, quanto a seus
sintomas e seus cursos, sob o efeito dos meios da luta provocada
por elas. Muito longe de ser excluído está o fato de que a práfica
generalizada de vacinações tem como conseqüência o apareci·
mento de variedades de micróbios mais resistences às vacinas.
Esse é apenas um dos aspectos de uma intervenção de fim
determinado, que faz da multiplicação e da eficácia crescente
Escritos sobre a medicina 27

dos atos médicos e cirúrgicos, nas sociedades industriais de alta


tecnologia de proteção sanitár;a, um risco de multiplicação
das fraquezas do sistema biológico interno de resistência às
doenças.
Não há nada no meio ambiente do homew que seja inicial-
mente natural, tomando-se cada vez mais factício e artificial,
que não possa ser considerado como fonte de perigos para tais
ou tais homens, uma vez que o conceito de homem recobre com
uma falsa aparência de identidade específica organismos indi-
viduais, providos de diferentes poderes de resistência às agrcs,
sões por sua ascendência. O que se nomeou erros inatos de me-
tabolismo ou anomalias biológicas hereditárias torna alguns in-
divíduos ou algumas populações sensíveis e receptivos a situa,
ções ou a objetos de nocividade paradoxal. Para o indivíduo
mediterrâneo, privado de uma certa diástase por seu patrimô·
nio genético, o fato de comer favas equivale a se envenenar. O
mesmo deficit enzimático, pelo contrário, equivaleu a algumas
populações africanas um aumento de resistência ao impaludis-
mo. Doravante, há muitos casos nos quais, para se poder identi·
ficar uma doença, deve-se aprender a não buscar o acesso a ela
passando pelo doente. Do ponto de vista de enzimologista, é pos-
sível perceber estados de doença real, embora latente c proviso-
riamente tolerada, que são desconhecidos pelo clínico observa,
dor de sinais espontâneos ou provocados que aparecem na cs,
cala do organismo ou do órgão.
A eliminação progressiva da referência às situações vividas
pelos doentes, no conhecimento das doenças, não é apenas o
efeito da colonização da medicina pelas ciências fundamentais
e aplicadas, a partir dos primeiros anos do século XIX; ela é
também um efeito da atenção interessada, em todos os sentidos
do termo: que a partir da mesma época as sociedades de tipo in-
28 Georges Canguilhem

dustrial concederam à saúde das populações operárias, ou, para


usar as palavras de alguns, ao componente humano das forças
produtivas. A vigilância e a melhoria das condições de vida fo·
ram o objeto de medidas e de regulamencos decididos pelo po·
der político solicitado c esclarecido pelos higienistas. Medicina
e política, então, se encontraram em uma nova abordagem das
doenças, da qual temos uma ilustração convincente na organi·
zação e nas práticas da hospitalização. No decorrer do século
XVlll, particularmente na França, na época da Revolução,
houve um empenho em se substituir o hospício, asilo de acolhi-
mento e de conforto de doentes quase sempre abandonados,
pelo hospital, espaço de análise e de vigilância de doentes cata·
Jogados, construído e governado para funcionar como "máqui-
na de curar", segundo a expressão de T cnon. O tratamento
hospitalar das doenças, em uma estrutura social regulamenta·
da, contribuiu para desindividualizá-las, ao mesmo tempo que a
análise cada vez mais artificial de suas condições de apareci·
mento extraiu sua realidade da representação clínica inicial.

O corolário desse desligamento teórico foi a mutação sobre-


vinda à profissão médica e ao modo de abordagem das doenças.
O médico terapeuta que exercia nas diversas partes da mediei·
na, atualmente chamado "clínico geral", viu declinar seu pres·
tígio e sua autoridade em benefício dos médicos especialistas,
engenheiros de um organismo decomposto tal como uma ma-
quinaria. Médicos ainda pela função, porém, doravante, não
mais por corresponderem a uma imagem secular, uma vez que a
consulta consiste na interrogação de bancos de dados de ordem
semiológica e etiológica, por meio do computador, e que a for·
mulação de um diagnóstico probabilista é sustentada pela ava·
liação de informações estatísticas. A esse respeito, deve-se ob-
servar que o estudo das doenças do ponto de vista estatístico,
Escritos sobre a medicina 29

quanto a seu aparecimento, seu contexto social e sua evolução,


é precisamente contemporâneo da revolução anatomoclínica
nos hospitais austríacos, ingleses e franceses no começo do sé-
culo XIX. Em suma, não se pode recusar admitir a existência de
um componente de natureza social, portanto político, na in·
venção de práticas teóricas atualmente eficazes para o conheci-
mento das doenças.

Deve a introdução de um ponto de vista sociopolítico na his-


tória da medicina ser acantonada na pesquisa das causas de
uma conversão do saber e da conduta? Não se deve igualmente
reconhecer causalidades de ordem sociológica no aparecimen-
to e no curso das próprias doenças? Viram-se, recentemente,
sindicalistas partidários da autogestão denunciarem as doenças
do capitalismo, o que significa ver na doença o indício orgânico
das relações de classe nas sociedades capitalistas. Houve um
tempo em que se falava de doenças da miséria, ou seja, de ca-
rências nascidas de uma subnutrição responsável pela avitami-
nose, ocorridas em algumas camadas da população. Com efeito,
a primeira disciplina médica que se ocupou desse tipo de ques-
tão foi a higiene. Na introdução a seus Éléments d'hygiene
(1797), Tourtelle insiste sobre a incidência patogênica da den-
sidade de população nas aglomerações modernas. Na Inglater·
ra, assim como na França, na primeira terça parte do século
XIX, procedeu-se a enquétes sobre a saúde dos operários nos di·
versos ramos da indústria. Villermé publicou, em 1840, um cé-
lebre T ableau de l'état physique etmoral des ouvriers employés dans
les fabriques de coton, de laine et de soie. Na França, durante o sé-
culo XIX, os Tratados de higiene industrial eram numerosos.
Todavia, seja qual for a importância que se deve reconhecer ao
modo de vjdaligado às condições de trabalho na multiplicação
das situações patológicas, por exemplo no fato do esgotamento
30 Georges Canguilhem

muscular ou da desrcgulação dos ritmos funcionais, é abusivo


confundir a gênese social das doenças com as próprias doenças.
A úlcera do estômago, a tuberculose pulmonar são doenças
cujo quadro clínico ignora q ue elas possam ser o efeito de situa-
ções de dcsarvoramento individuais ou coletivas. Ainda que os
trabalhos do relojoeiro ou os deveres do estudante sejam mais
reveladores de defeitos da visão do que o trabalho do pastor,
não se chegará a dizer que as doenças da vista são fatos sociais.
No entanto, há casos nos quais o recenseamento e a avaliação
dos fa rores da doença podem levar em consideração o status so-
cial dos doentes e a representação que eles têm dela. Para utili-
zar um vocabulário posto em voga pelos trabalhos de Hans
Selye, digamos que se pode inscrever entre as formas patógenas
de stress, isto é, de agressão não específica, a percepção do indi-
víduo quanto a seu nível de inserção em uma hierarquia de or-
dem profissional ou cultural. O fato de viver a doença como
uma degradação, como uma desvalorização, e não apenas como
sofrimento ou redução de comportamento, deve ser considera-
do como um dos componentes da própria doença. Encontra-
mo-nos, aqui, na fronteira nebulosa entre a medicina somática
e a medicina psicossomática, ela própria assediada pela psica~
nálise. Aqui o inconsciente está em questão, tal como as técni-
cas próprias para fazê-lo falar a fim de saber lhe responder.
Em uma perspectiva de psicologia médica, bastante admira-
da hoje em dia, podemos chegar a considerar a doença como a
complacência do doente, obscuramente pesquisada, em uma
situação-refúgio de vítima o u de condenado. Sem chegar a con-
siderar essas reminiscências de mitos como uma revanche da
etnologia sobre a biologia nas explicações das doenças, pode-se
ver nisso o efeito longínquo de uma resistência ao extremismo
de teorias médicas enfeudadas no pasteurismo, ou exaltadas,
Escritos sobre a medicina
JI

mais recentemente, pelos sucessos da bioquímica molecular. É


preciso, contudo, reconhecer que os métodos atuais de identifi-
cação das doenças e da terapêutica se devem mais aos sucessos
d~ im~nolo~a do q ue às taumaturgias de inspiração psicosso-
ctológ~ca. A Imunologia é uma disciplina bioquímica à base de
experiência médica. Sua característica mais notável é a de ter
fundado, no próprio nível da escrutura molecular das células do
organismo, a singularidade do doente, que o personalismo mé-
dico ou as propagandas de "franco-atiradores da medicina" ce-
lebram por contraste com a essência anônima da doença. Essa
con~epção d~ ~oen?a conservava alguns vestígios da antiga
teona das espec1es rrwrbidas, elaborada no século XVII por Tho-
mas Sydenham. A revolução conceitual concernindo às doen-
ças foi o reconhecimento do que se pode nomear como sistema
imunizador, ou seja, uma estrutura totalizadora das respostas às
agressões de antígenos pela produção de anticorpos específicos.
A colaboração, talvez ainda frágil, entre a clínica e 0 laborató-
rio para a pesquisa imunológica introduziu a referência à indivi-
dualidade biológica na representação da doença. À oposição,
por vezes viva no século XIX, entre a concepção médica e a
concepção cientffica da doença sucedeu uma esperança co-
mum de encontrar, um dia, por meio da biologia molecular
uma réplica eficaz a doenças atualmente carregadas de fanta:
si as de aflição: câncer ou AIDS. Com efeiro, não se poderia dis-
sociar ~ existência e o movimento das doenças, das mutações,
sobrevmdos no status epistemológico da medicina. O melhor
exemplo disso é a recente extinção da varíola, sob o efeito das
medidas de vacinação preventiva deduzidas da bacterologia
pasteuriana . Não se pode tratar de doenças como se trata de
f~nômenos meteorológicos, ainda que, neste último caso, a ati-
vtdade do Homo faber na superfície da terra repercuta sobre os
climas. ·
32 Oeorges Canguilhem

Seja qual for o interesse de um estudo das doenças quanto a


suas variedades, sua história e sua saída, ele não poderia eclip·
saro interesse de tentativas de compreensão do papel e do sen-
tido da doença na experiência humana. As doenças são crises
do crescimento em direção à forma c à estrutura adultas do ór·
gão, crises da maturação das funções de autoconservação inter-
na e de adaptação às solicitações externas. Elas são também cri·
ses no esforço empreendido para nivelar um modelo na ordem
das atividades escolhidas ou impostas e, no melhor dos casos,
para defender valores ou razões de viver. As doenças são um
preço a ser pago, eventualmente, por homens, feitos, vivos, sem
tê-lo pedido, e que devem aprender que tendem necessaria·
mente, desde seu primeiro dia, para um final a um só tempo im-
previsível c inelutável. Esse final pode ser precipitado por doen-
ças brutais, ou então apenas responsáveis por uma diminuição
da capacidade de resistência a outras doenças. Inversamente,
algumas doenças podem, depois de curadas, conferir ao orga-
nismo um poder de oposição a outras. Assim, envelhecer, du-
rar, quando não indene, pelo menos resistente, pode ser tam-
bém o benefício de ter estado doente.
A existência da doença como fato biológico universal, e sin·
gularmente no homem como prova existencial, suscita uma in·
terrogação até hoje sem resposta convincente relativa à preca-
riedade das estruturas orgânicas. Para falar com propriedade, na-
da do que é vivo é acabado. Quer se chame ou não evolução, ou
alguma explicação que se dê a esse respeito, a sucessão histórica
de organismos é, a partir do que se nomeia hoje evolução quími-
ca pré-biótica, uma sucessão de pretendentes impotentes a se
tornarem seres vivos diferentes de viáveis, isto é, aptos a viver,
mas sem garantia de consegui-lo por completo. A morte está na
vida, a doença é o signo disso. Com freqüência, a meditação so-
Escriros sobre a medicina 33

bre a experiência da doença, propriamente dita mortifica me, foi


expressa em poemas mais pungentes do que sermões. Mas coube
a um médico particularmente sensível ao sofrimento de viver do
outro, ele próprio acometido pelo câncer, alcançar, na simplici-
dade, a profundeza do patético. Em cartas endereçadas a Lou
Andréas-Salomé, Frcud escreveu: "Eu bem suportei todas as rea-
lidades repugnantes, mas aceito mal as possibilidades, não admi·
to esta existência sob ameaça de feriado." E, em outra ocasião:
"Uma carapaça de insensibilidade me envolve lentamente. Cons-
tato isso sem me queixar. É também uma saída natural, um modo
de começar a me tomar inorgânico." Entre a revolta excitada
pela idéia de dar feriado à vida e a aceitação resignada do retomo
ao inorgânico, a doença fez seu trabalho. Trabalho, de acordo
com a etimologia, é tormento e tortura. Tortura é sofrimento in·
tligido para obter revelação. As doenças são os instrumentos da
vida por meio dos quais o ser vivo, quando se trata do homem, se
vê obrigado a se reconhecer mortal.

Referências
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seases. Nova Iorque: Hafuer, 1965.
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rense Universitária, 2004.
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Payot, 1983.
34 Georges Canguilhem

NICOLLE, Ch. Naissance, vie et mort des maladies ínfectieuses. Paris: F.


Alcan, 1930.
SEYLE, H. u srress de la vie. Le problime de l'adaptacion. 2. ed. Paris:
GallimarJ, 1975.
A saúde: conceito vulgar e questão filosófica

"Quem de nós não falava do que é saudável e do que é noci-


vo antes da chegada de Hipócrates?" É assim que Epíteto, em
suas Conversações (11, 17), fundamenta uma reivindicação de
pertinência popular sobre a existência de uma noção, a priori,
do saudável e da saúde, cuja aplicação aos objetos e aos com,
portamentos é considerada, por outro lado, incerta. Se admitis,
semos, por nossa vez, que uma definição da saúde é possível,
sem referência a qualquer saber explícito, onde buscaríamos
seu fundamento?
Seria inconveniente, em Estrasburgo, submeter ao exame
dos senhores algumas reflexões sobre a saúde sem lembrar a de-
finição proposta, há meio século, por um célebre cirurgião, pro-
fessor na Faculdade de Medicina, de 1925 a 1940: "A saúde é a
vida no silêncio dos órgãos." Talvez tenha sido logo após as
conversações mantidas entre colegas, no College de France,
que Paul Valéry respondeu a René Leriche escrevendo:"A saú-
de é o estado no qual as funções necessárias se realizam insensi,
velmente ou com prazer" (Mauvaises pensées et autres, 1942).
Algum tempo antes, Charles Daremberg, em uma coletânea de
artigos, La médecine, histoire et doctrínes ( 1865), escrevera: "No
estado de saúde, não sentimos os movimentos da vida, todas as
funções S!! realizam em silêncio." Posterionnente a Leriche e a
Valéry, a assimilação da saúde ao silêncio foi feita por Henri
36 Georges Canguilhem

Michaux, mas estimada negativamente: "Como o corpo (seus


órgãos e suas funções) foi conhecido e desvelado sobretudo não
pelas proezas dos fortes, mas pelos distúrbios dos fracos, doen-
tes, enfermos, feridos (a saúde sendo silenciosa e fonte desta
impressão imensamente errônea de que tudo é evidente), são as
perturbações do espírito, seus disfuncionamentos que serão
meus cnsinantes" (Les grandes épreuves de l'esprit etles innombra-
bles petites, 1966). Muito antes de todos eles, e talvez mais sutil-
mente do que qualquer um deles, Diderot escrevera, em sua
Lettre sur les sourds et muets à l'usage de ceux qui entendt.'1U et qui
parlem (1751): "Quando estamos bem, nenhuma parte do cor-
po nos informa de sua existência; se alguma delas nos adverte
por meio da dor é, com certeza, porque estamos mal; se for por
meio do prazer, nem sempre é certo que estejamos melhor."

A saúde é um tema filosófico freqüente na época clássica e


no século das Luzes, abordado quase sempre do mesmo modo,
com referência à doença, cuja isenção é quase sempre conside-
rada como o equivalente da saúde. Foi assim, por exemplo, que
na Teodicéia ( 171 O), Lcibniz, discutindo teses de Pierre Bayle
sobre o bem e o mal, escrevera: "Consiste o bem físico unica-
mente no prazer? O Sr. Bayle parece concordar com isso; mas
sou de opinião que ele consiste em um estado mediano, tal
como o da saúde. Estamos muito bem quando não temos ne·
nhum mal; é um grau de ponderação nada rer da loucura''(§
251). E, mais adiante, Leibniz acrescenta: "O Sr. Bayle gostaria
de afastar a consideração da saúde. Ele a compara aos corpos ra-
refeitos que não se fazem sentir, como o ar, por e:>çemplo; mas
ele compara a dor aos corpos que têm muita densidade e que
pesam muito com pouco volume. A própria dor, todavia, faz
conhecer a importância da saúde quando somos privados
dela" (§ 259).
Escritos sobre a medicina 37

Entre os filósofos que concederam maior atenção à questão


da saúde, deve-se citar Kant. Fortalecendo-se com os sucessos
e fracassos de sua arte de viver pessoal, dos quais Wasianski
fez um longo relato na obra Emmanuel Kant dans ses demiêres
années (1804), Kant tratou da questão na terceira seção do
Conflito das faculdades (1798). Quanto à saúde, diz ele, encon~
tramo~ nos em condições embaraçadoras: "Podemos nos sentir
bem de saúde, isto é, julgar a partir do sentimento de bem·
estar vital, mas nunca se pode saber se estamos bem de saúde
[... ].A ausência do sentimento (de estar doente) não permite
ao homem expressar que está bem, a não ser dizendo que vai
bem em aparência." Essas observações de Kant são importan-
tes, apesar de sua aparente simplicidade, pelo fato de elas faze~
rem da saúde um objero fora do campo do saber. Enrijeçamos
o enunciado kantiano: não há ciência da saúde. Admitamo~lo
por ora. Saúde não é um conceito científico, é um conceito
vulgar. O que não quer dizer trivial, mas simplesmente co~
muro, ao alcance de todos.
Encabeçando essa série de filósofos, Leibrúz, Diderot, Kant,
parece~ me que se deve inscrever Descartes. Sua concepção de
saúde importa mais ainda por ele ser o inventor de uma concep~
ção mecanicista das funções orgânicas. Esse filósofo, médico de
si mesmo, associando saúde e verdade em um elogio dos valores
silenciosos, parece-me ter formulado uma questão até o mo~
mento mal percebida. Em uma carta a Chanut (31 de março de
1649), ele escreve: "Ainda que a saúde seja o maior de todos os
nossos bens concernentes ao corpo, ele é, contudo, aquele so-
bre o qual fazemos o mínimo de reflexão e apreciamos menos. O
conhecimento da verdade é como a saúde da alma: quando a
possuímos, não pensamos mais nela."
38 Georges Canguilhem

Como se explica o fato de nunca se ter pensado em inverter


essa assimilação, nunca se ter perguntado se a saúde não seria a
verdade do corpo? A verdade não é apenas um valor lógico, es·
pecífico do exercício do juízo. Há um outro sentido de verdade
que não se tem necessidade de tomar emprestado de Heidcg·
ger. No Dictioonaire de la langue française de Émile Uttré, o arti·
go "Verdade" começa assim: "Qualidade pela qual as coisas
aparecem tais como são." VeTUS, verdadeiro, é utilizado em la·
rim no sentido de real e de regular ou correto. Quanto a sanus,
são, descende do grego, crácx;, e também é provido de dois sen·
tidos: intacto ou bem conservado, c infalível ou seguro. Disso
decorre a expressão são e salvo. Em sua Hisroire des expressions
populaire~ relatives à I'anarorrúe, à la physiologie et à la médecine
( 1892), Edouard Brissaud cita um provérbio que se pode consi·
derar como um tipo de reconhecimento popular da aliança sa ú·
de-verdade: "Tão parvo quanto um atleta doente.» Parvo, aqui,
quer dizer a um só tempo estúpido e enganado. A compleição
atlética significa uma posse máxima dos meios físicos, a conve-
niência das ambições às capacidades. Um atleta doente é uma
confissão de falsificação de seu corpo.
Mas há um autor de língua alemã, mais sutil na escolha de
suas referências do que um colecionador de provérbios, que
traz un: apoio inesperado ao que nomeio: uma tese à espera de
autor. E Friedrich Nierzsche. Não é fácil, depois de tantos co,
mentadores, em especial Andler, Bertram, Jaspers, Lõwith,
determinar o sentido e o alcance dos inúmeros textos de
Nietzsche relativos à doença e à saúde. Em A vontade,de poder,
Nietzsche, tal como Claude Bernard, ora acredíta na homoge-
neidade da saúde e da doença (1, 364), ora celebra a "grande
saúde", poder de absorver e de vencer as tendências mórbidas.
Em A gaia ciência, essa grande saúde é o poder de pôr à prova
Escritos sobre a medicina 39

todos os valores e todos os desejos. Em O anticristo, a religião


cristã é denunciada por ter incorporado o rancor instintivo
dos doentes para com os saudáveis, por sua repugnância em
relação a ''tudo o que é reto, altivo e soberbo". Conservemos:
reto. Encontramos em Assim falava Zaratu$cra a re tidão do cor-
po oposta aos doentios pregadores do outro mundo. "O corpo
são fala com melhor boa-fé e mais pureza; o corpo completo, o
corpo cujos ângulos são recos (rcchcwinklig = feito com esqua-
dro) fala do sentido da terra." Será supérfluo lembrar, aqui,
que o esquadro é, na mitologia chinesa, o símbolo da cerra,
cuja fo rma é quadrada, cujas divisões são qu adradas? Para
Nietzsche, saúde resume, en t~o. fiabilidade, retidão, comple-
tude. E, mais adiante: "O corpo é uma grande razão, uma mul-
tidão de um só sentimento, uma guerra e uma paz, um reba-
nho e um pastor." Por fim: "Há mais razão em teu corpo do que
em tua melhor sabedoria."
Quando Nietzsche escreveu isso, em 1884, a existência de
aparelhos e de funções de regulações orgânicas havia sido esta,
belecida experimentalmente pelos fisiologistas. Mas é pouco
provável que o grande fisiologista inglês Starling tenha pensado
em Nietzsche, quando deu ao seu Discurso de 1923, sobre as re-
gulações e a homeostase, o título de The wisdom ofthe body, títu·
lo retomado porCannonem 1932. Starling, inventor, em 1905,
do termo hormônio, publicou, em 19 12, um tratado, Principies
of human physiology, revisto mais tarde por Lowatt Evans, cujo
índice final não contém a palavra health. Do mesmo modo, saú-
de não figura no índice da Physiologie de Kayser, ao passo que,
tanto em um quanto no outro desses tratados, o índice contém:
homeostase, regulação, stress. Será que se deve ver nisso um novo
argumento para recusar ao conceito de saúde a qualidade de
científico?
Georges Canguilhem

Será que podemos, será que devemos dizer que as funç ões do
organismo são objetos de ciência, mas não o que Claude Ber-
nard nomeava como "as relações harmônicas das funções da
economia" (Leçons sur le diabete, p. 72)? Aliás, o próprio Claude
Bernard o disse expressamente: "Em fisiologia, não há senão
condições próprias a cada fenômeno que é preciso exatamente
determinar, sem se perder em divagações sobre a vida, a morte,
a saúde, a doença e outras entidades de mesma espécie" (ibid.,
p. 354) . Isso não proibiu Cbude Bernard de utilizar, mais
adiante, a expres~ão "organismo em estado de saúde" (ibid.., p.
421).
Todavia, o Tratado de Starling contém, na Introdução geral,
uma observação que pode passar por menor, e que creio dever
revelar. Indica-se ali, em consideração aos estudames, que o
termo mecanismo, com freqüência utilizado para expor o modo
de exercício de uma função orgânica, não deve ser levado de-
masiadamente a sério (This rarher ovenvorked word need not to
be taken too seriously ... ).
Vemo-nos, aqui, fortalecidos na recusa de assimilar a saúde a
um efeito necessário de relações de tipo mecânico. A saúde,
verdade do corpo, não está referida a uma explicação por teore-
mas. Não há saúde de um mecanismo. Aliás, o próprio Descar-
tes no-lo ensina, em sua Sexta meditação, ao negar que haja uma
diferença entre um relógio regulado e um relógio desregulado,
ao passo que há uma diferença de ser entre um relógio desregu-
lado e um homem hidrópico, ou seja, um organismo que a sede
leva a beber a contra-senso. Éum erro da natureza ter sede, diz
Descartes, quando beber é nocivo. Por saúde, Descartes enten-
de "aliquid [... ] qtwd Teilefa in rebu.s reperitur, ac proinde nonnihil
haber vericatis ". Pata a máquina, o estado de marcha não é a saú-
Escritos sobre a medicina

de, a desregulação não é uma doença . Ninguém o disse cão pro-


fundamente quanto Raymond Ruyer em Paradoxes de la cons-
cience. Entre muitas passagens, basta citar, aqui, a que concerne
ao círculo vicioso cibernético (p. 198). É absurdo conceber o
organismo vivo como uma máquina à regulação, visto que, de-
finitivamente, e sejam quais forem os intermediários, "a máqui-
na à regulação é sempre vicariantc de uma regulação ou de uma
seleção orgânica consciente [... ] uma regulação natural só pode
ser, por definição, [... ] uma auto-regulação sem máquina".
Não haver doença da máquina coaduna-se perfeitamente
com o fato de que não há morte da máquina. Villiers de
L'Isle-Adam, este simbolista discutido, ao qual, todavia, sere,
conhece o mérito de ter estimulado Mallarmé, imaginou, em
L'Eve future, um Edison inventor de meios eletromagnéticos
para simular as funções do ser vivo humano, aí compreendida a
fala. Sua Andréi'dc 15 a mulher- máquina que pode dizer Eu, mas
que se sabe não,viva, uma vez que não lhe dizem Tu, e que de,
clara no final: "Eu que me apago, ninguém me resgatará do
Nada [... ]. Sou o ser obscuro cujo desaparecimento não vale
uma lembrança de luto. Meu seio infortunado nem mesmo é
digno de ser chamado estéril. Se pudesse viver, se possuísse a
vida [... ).Poder somente morrer."
O corpo vivo é, então, este existente.singular cuja saúde ex-
prime a qualidade dos poderes que o constituem, visto que ele
deve viver sob a imposição de tarefas, portanto em relação de
exposição com um meio ambiente do qual, em primeiro lugar,
ele não tem escolha. O corpo humano vivo é o conjunto dos po-
deres de um existente tendo capacidade de avaliar e de se re-
presentar a si mesmo esses poderes, seu exercício e seus limites.
42 Georges Canguilhem

Esse corpo é, ao mesmo tempo, um dado e um produto. Sua


saúde é, ao mesmo tempo, um estado e uma ordem.
O corpo é um dado, uma vez que é um genótipo, efeito a um
só tempo necessário c singular dos componentes de um patri,
mônio genético. Desse ponto de vista, a verdade de sua presen,
ça no mundo não é incondicionaL Por vezes, ocorrem erros de
codificação genética que, segundo os meios de vida, podem de,
terminar ou não efeicos patológicos. A não,verdade do corpo
pode ser manifesta ou latente.

O corpo é um produto, visto que sua atividade de inserção


em um meio característico, seu modo de vida escolhido ou im,
posto, esporte ou trabalho, contribui para dar forma a seu fenó,
tipo, ou seja, para modificar sua estrutura morfológica e, por
conseguinte, para singularizar suas capacidades. É neste ponto
que um certo discurso encontra ocasião e justificativa. Esse dis-
curso é o da Higiene, disciplina médica tradicional, doravante
recuperada e travestida de uma ambição sociopolítico-médica
de regulamentar a vida dos indivíduos.
A partir do momento em que a palavra saúde foi dita ares-
peito do homem como participante de uma comunidade so·
cial ou profissional, seu sentido existencial foi ocultado pelas
exigências de uma contabilidade. Tissot ainda não havia che·
gado a isso quando publicou, em 1761, seu A vis au peuple sur la
santé c, em 1768, De la samé des gens de lettres. Mas saúde co-
meçava a perder sua significação de verdade para receber uma
significação de facticidadc. Ela se tomava objeto de ~.Jm cálcu·
lo. Desde então, conhecemos o clteckup. Convém lembrar, em
Estrasburgo, que foi aqui que Éticnne Tourtelle, professor da
Escola Especial de Medicina, publicou por Levra ui t, em 1797,
seus Élémems d'ilygiene. A ampliação histórica do espaço no
Escritos sobre a ntedicina 43

qual se exerce o controle administrativo da saúde dos indiví-


duos desembocou, nos dias de hoje, em uma Organização
Mundial da Saúde, que não podia delimitar seu domínio de in·
rervenção sem que ela mesma publicasse sua própria definição
da saúde. Ei-la: "A saúde é um estado de completo bem-estar
físico, moral e social, não consistindo somente na ausência de
enfermidade ou de doençn."
A saúde, como estado do corpo dado, é a prova de que ele
não é congenitalmenre alterado, pelo fato de que esse corpo
vivo é possível, já que ele é. Sua verdade é uma segurança. Mas,
então, não é surpreendente que, às vezes, e muito naturalmen-
te, se fale de saúde frágil ou precária e até mesmo de má saúde?
A má saúde é a restrição das margens de segurança orgânica, a
limitação do poder de tolerância e de compensação das agres·
sões do meio ambiente. Em uma célebre entrevista em Amster·
dam, em 1648, o jovem Burman faz objeção ao que diz Descar-
tes sobre as doenças, ao confiar na retidão da constituição do
corpo para a conduta e o prolongamento da vida humana. A
resposta de Descartes pode surpreender. Ele diz que a natureza
pennanece a mesma, que ela parece lançar o homem nas doen-
ças apenas para que ele possa, ao superá-las, tomar-se mais vá li·
do. Evidentemente, Descartes não podia anunciar Pasteur.
Não será a vacinação o artifício de uma infecção justamente
calculada para permitir que o organismo se oponha, doravante,
à infecção selvagem?
A saúde, como expressão do corpo produzido, é uma garantia
vivida em duplo sentido: garantia contra o risco e audácia para
corrê-lo. É o sentimento de uma capacidade de ultrapassar ca,
pacidades iniciais, capacidade de fazer com que o corpo faça o
que ele parecia não prometer inicialmente. E reencontramos o
Georges Canguílhem

atleta. Embora a seguinte citação de Antonin Artaud possa


concernir, tanto quanto possível. à existência humana sob o
nome vida, mais do que à própria vida, podemos evocar este
texto no momento de uma definição da saúde: wSó se pode acei~
tar a vida sob a condição de ser grande, de se sentir na origem
dos fenômenos, pelo menos de um certo número deles. Sem po·
tência de expansão, sem uma certa dominação sobre as coisas, a
vida é indefensável" ("Lettre à la voyante", in La révolutionsur,
réalíste, l.!! de dezembro de 1926).
Estamos longe da saúde medida por meio de aparelhos. Cha,
maremos essa saúde: livre, não condicionada, não contabiliza·
da. Essa saúde livre não é um objeto para aquele que se diz ou se
crê o especialista da saúde. O higienista se esmera em gerir uma
população. Ele não rem de se haver com indivíduos. Saúde pú~
blica é uma denominação contestável. Salubridade conviria
melhor. O que é público, publicado, é, com freqüência, a doen~
ça. O doente pede ajuda, chama a atenção; ele é dependente. O
homem sadio que se adapta silenciosamente às suas tarefas, que
vive sua verdade de existência na liberdade relativa de suas es,
colhas, está presente na sociedade que o ignora. A saúde não é
somente a vida no silêncio dos órgãos, é também a vida na dís,
crição das relações sociais. Se digo que vou bem, bloqueio, an·
tes que as profiram, interrogações estereotipadas. Se digo que
vou mal. as pessoas querem saber como e por que, elas se
perguntam ou me perguntam se estou inscrito na Seguridade
Social. O interesse por uma fraqueza orgânica individual se
transforma, eventualmente, em interesse pelo deficit orçamcn~
tário de uma instituição. '
Mas, abandonando agora a descrição da situação vivida de
saúde ou de doença, é preciso tentar justificar a proposição de
Escritos sobre a medícína 45

considerar a saúde como verdade do corpo em situação de exe r~


cfcio, expressão originária de sua posição como unidade de
vida, fundamenco da multiplicidade de seus órgãos próprios. A
recente técnica de extração e transplante de órgãos não retira
nada da capacidade do corpo dado de integrar, apropriando,se
dela, de algum modo, urna parte retirada de um todo cuja cstru,
rura histológica é compatíveL
A verdade de meu corpo, sua própria constituição ou sua au,
tenticidade de existência, não é uma idéia suscetível de repre,
sentação, do mesmo modo que, segundo Malebranche, não há
idéia da alma. Há, contudo, uma idéia do corpo em geral, com
certeza não visível e legível em Deus, como o pensava Malebran~
che, mas exposta nos conhecimentos biológicos e médicos pro·
gressivamcnre verificados. Essa saúde sem idéia, ao mesmo tem·
po presente e opaca é, no entanto, o que suporta e valida, de fato
e em última instância, para mim mesmo e também para o médico
enquanto meu médico, o que a idéia do corpo, isto ~. o saber mé·
clico, pode sugerir como artifícios para sustentá, la. Meu médico é
aquele que aceita, de um modo geral, que eu o instrua sobre aqui~
lo que só cu estou fundamentado para lhe dizer, ou seja, o que
meu corpo me anuncia por meio dos sintomas e cujo sentido não
me é claro. Meu médico é aquele que aceita que eu veja nele um
exegeta, ames de vê,Io como reparador. A definição de saúde
que inclui a referência da vida orgânica ao prazer e à dor experi·
meneados como tais introduz sub,repticiamentc o conceito de
corpo subjetivo na definição de um estado que o discurso médico
acredita poder descrever na terceira pessoa.
Ao reconhecer na saúde do corpo humano vivo sua verdade,
será que não aceitamos seguir Descartes em uma via na qual ai·
guns de nossos contemporâneos acreditaram descobrir a arma·
dilha da ambigüidade? Foi o caso de Michel Henry em sua obra
46 Oeorges Canguilhem

Philosopllie et phénoménologie du corps (1935). Merleau-Ponty,


pelo contrário, valorizou o que reprovam em Descartes como
uma ambigüidade. Sobre esse ponto, cabe que nos reportemos
ao texto póstumo O visível e o invisível, mas a questão fora ante-
riormente abordada nas lições sobre L'union de l'âme et du ccrrps
chez Malebranche, Biran et Bergson (194 7-1948), e no último
curso no College de France, em 1960- Nature et logos: le corps
/w.main. Em uma nota de O visível e o invisível, pod.e#se ler: "A
idéia cartesiana do corpo humano, enquanto humano não fe-
chado, abcrto, enquanto governado pelo pensamento, é talvez a
mais profunda idéia da união da alma e do corpo." Decidida-
mente, apesar de sua virtuosidade e de sua ambição, o melhor
que Merleau;Ponty pôde fazer foi comentar o intransponível.
Comentador por comentador, a superioridade pertence a quem
simplesmente se considera como tal, reconhecendo, por um
lado, a existência do corpo humano vivo "inacessível aos ou-
tros, acessível unicamente a seu titular" (M.-P. Résumé ck cours,
Cotlege de France, 1952, 1960). Aqui vamos ao encontro de
Raymond Ruyer, para quem os paradoxos da consciência só são
paradoxos em relação a "nossos usos do~ fenômenos mecânicos
em nossa escala" (p. 285) .1
Nossa tentatíva de elucidação de um conceito não corre ri a o
risco de ser considerada uma elucubração? Quando pedimos à
filosofia para fortalecer nossa proposição de considerar a saúde
como um conceito ao qual a experiência comum confere o sen-

1Não posso me abster de evocar, aqui e neste momento, a mem'ória do saudo-


so Roger Chambon. Em sua tese de 1974, L.e monderommeperc-eptionet réolité,
ele apresentou e discutiu, de modo brilhante, os trabalhos de Michel Henry e
de Maurice Mcrleau-Ponty, porém, de maneira mais cuidadosa ainda, os de
Raymond Ruyer.
Escritos sobre a medicina 47

tido de uma permissão de viver e de agir pela vontade do corpo,


parecemos desprezar a disciplina que, mesmo do ponto de vista
popular, parece ser a mais apropriada para tratar de nossa ques#
tão: a medicina. Podem nos objetar que o corpo, desde sempre,
muito simplesmente sentido c percebido como um poder -e
por vezes também como um entrave -, teve alguma relação
com o corpo cal como apresentado e tratado pelo saber médico.
Essa relação pôde se tomar manifesta, na França, no século
XIX, por meio de uma instituição, bastante esquecida nos dias
de hoje, a de um corpo de oficiais ck saúde. Esses vigias e conse#
lheiros em matéria de saúde eram, de fato, submédicos, dos
quais se exigia um nível de conhecimentos menos elevado do
que o dos doucores. Eles estavam a serviço do povo, notada-
mente nos campos, onde a vida era, então, considerada menos
sofisticada do que nas cidades. O corpo, segundo o povo, nunca
deixou de ter alguma dívida para com o corpo, segundo a Facul-
dade. Ainda hoje, o corpo é, segundo o povo e com freqüência,
um corpo dividido. A difusão de uma ideologia médica de espe#
cialistas faz com que o corpo seja quase sempre vivido como se
fosse uma bateria de órgãos. Inversamente, por trás do debate
de ordem profissional e de fundo político entre especialistas e
clínicos gerais, o corpo médico põe novamente em questão, de
modo tímido e confuso, sua relação com a saúde. Esse esboço de
revisão de ordem profissional dá uma espécie de resposta a uma
multiplicidade de protestos naturistas, ligados aos movimenros
ecológicos, a uma idéia da saúde retomada às suas fontes. O
mesmo homem que militou pela sociedade sem escolas conv~
cou à insurreição contra o que ele nomeou "a expropriação da
saúde". Essa defesa c ilustração da saúde selvagem privada, por
desconsideração da saúde cientificamente condicionada, to;
mou todas as formas possíveis, inclusive as m2is ridículas.
48 Georges Canguilhem

Mas será que se inspirar na filosofia cartesiana para tentar


definir a saúde como a verdade do corpo significa também que,
na a urages tão de sua saúde, não se pode ir mais longe do que se~
guir o preceito cartesiano de usar da vida e das conversaç.:>es
comuns? (Letrre à Elisabech, 28 de junho de 1643). Esse crédito
concedido a uma espécie de na turismo, que se pode dizer teoló~
gico, será que ele pode ser invocado pelos adeptos de um naw~
ralismo anti~racionalista ? Preconizar a saúde selvagem, o retor~
no à saúde fundadora, pela rejeição das escleroses que dizem
ser consecutivas a comportamentos sabidamente controlados,
será esse o meio de chegar à verdade do corpo? Uma coisa é en~
carregaNe do corpo subjetivo, outra coisa é acreditar~se abri~
gado a liberar essa educação da tutela da medicina, considerada
repressiva, c, além disso, das ciências das quais ela é a aplicação.
O reconhecimento da saúde como verdade do corpo, no senti~
do ontológico, não somente pode mas deve admitir a presença,
em termos precisos, como controle c muro protetor da verdade
no sentido lógico, ou seja, da ciência. Certamente, o corpo vivi~
do não é um objeto, mas, para o homem, viver é também co~
nhcccr. Eu me porto bem à medida que me sinto capaz de porcar
a tt:!sponsabilidadc de meus atos, de portar coisas à existência e
criar entre as coisas relações que não lhes aconteceriam sem
mim, mas que não seriam o que são sem elas. Então, preciso
aprender a conhecer o que elas são para poder mudá~l as.
Ao concluir, devo, sem dúvida, justificar,me por ter feito da
saúde uma questão filosófica. Essa justificação será breve: eu a
encontro em Maurice Merleau-Ponry. Ele escreveu em O vis(~
vele o invisível (p. 47): "A filosofia é o conjunto das questões no
qual aquele que questiona é, ele próprio, posto em causa pela
- "
qucsrao.
É possível uma pedagogia da cura?
Considerada como um acontecimento na relação entre o
doeme e o médico, <l cura é, à primeira vista, o que o doente es~
pera do médico, mas nem sempre o que o doente obtém dele.
Há, ent*io, uma decalagem entre a esperança fundamentada,
no primeiro, sobre a presunção de poder, fruto do saber, que ele
empresta no outro, e a consciência dos limitt:!s 4ue o segundo
deve reconhecer em sua eficácia. Sem dttvida, essa é a prindpal
razão para o fato de que, de todos os objetos especfficos do pen~
sarnento médico, a cura seja o menos tratado por ele. Mas é
também devido ao fato de o médico perceber na cura um ele-
mento de subjetividade, a referência à avaliação do benefic iá~
rio, 4uando, de seu ponto de vista objetivo, a cura é visada no
eixo de um tratamento validado pela enquêcc estatística de seus
resu ltados. E, sem alusão descortês aos médicos de coméd ia,
que fazem a responsabilidade dos fra cassos terapêuticos ser ar~
cada pelos doentes, conviremos que a ausência de cura de tal
ou tal doente não basta para induzir no espírito do médico a sus~
peita concernindo à virtude dispensada por ele, de um modo
geral, a esta ou àquela de suas prescrições. Inversamente, quem
tiver êl pretensão de falar de modo pertinente sobre a ema de
um indivíduo deveria poder demonstrar que, entendida como
satisfação dada à expectativa do doente, a cura é, na realidade,
o efeito próprio da terapêutica prescrita, escrupulosamente
50 Georges Canguilhem

aplicada. Ora, nunca foi tão difícil alegar uma tal demonstração
como nos dias de hoje, devido ao uso do método do placebo, 1 das
observações da medicina psicossomática, do interesse concedi-
do à relação intersubjetiva médico-doente e da assimilação, por
alguns médicos, de seu poder de presença ao próprio poder de
um medicamento. Doravante, em se tratando de remédios, a
maneira de os dar vale mais, por vezes, do que o que é dado.
Em suma, pode-se dizer que, para o doente, a cura é o que a
medicina lhe deve, ao passo que, para a maioria dos médicos,
ainda hoje, a medicina deve ao doente o lratamc::nto mais be m
estudado, experimentado e testado até o momento. Disso de-
corre a diferença entre o médico e o curandeiro. Um médico
que não curaria ninguém não deixaria de ser um médico de di-
reito, habilitado como ele o é por um diploma que sanciona
um saber convencionalmente reconhecido para tratar dos
doentes cujas doenças são expostas em tratados quanto à sin-
tomatologia, à c~iologia, à patogenia e à terapêutica. Um cu-
randeiro só pode sê-lo de fa to, pois ele não é avaliado sobre
seus "conhecimentos", mas sobre seus sucessos . Para o médico
C para O curandeiro, a relação COm a C'Jra é invertida. 0 médi-
CO está habilitado publicamente a pretender curar, ao passo
que é a cura, experimentada c declarada pelo doente, mesmo
quando clandestina, que atesta o "dom" do curandeiro em um
homem cujo poder infundido, com muita freqüência, foi reve-
lado pela experiência dos outros. Para se instruir sobre esse as~
sunto ninguém precisa ir até os ''selvagens". Mesmo na Fran-

1Cf. F. Dagognet, La raíson et lts ranecks, P:~r is, PUF, 1964, cap. l, notada·
mente; P. KiS5el e D. Barrucand, Pku:ebos et eff~t placebo en méckcine, Paris,
Masson, 1964; D. Schwartz, R. Flamant,J. Lellouch, L'essai thérapewiqut cite~
l' homme, Paris, Flammarion, 1970.
Escritos sobre a medicina 51

ça, a medicina selvagem sempre prosperou nas portas das fa-


culdades de medicina.
Portanto, não há razão em nos surpreendermos ao constatar
que os médicos, os primeiros a considerar a cura como proble-
ma c assunto de interesse, são, em sua maioria, psicanalistas ou
homens para quem a psicanálise existe como instância de ques-
tionamento sobre sua prática e seus pressupostos, como por
exemplo Georg Groddeck, que não temeu igualar em Das Buch
vom Es, em 1923, medicina e charlatanismo, 2 ou René Allendy,
na França.' En4uamo, segundo a ótica médica tradicional, a
cura era considerada como o efeito de um tratamento causal,
cujo interesse era sancionar a validade do diagnóstico e da pres~
crição, portanto, o valor do médico, na ótica da psicanálise a
cura se tomava o signo de uma capacidade encontrada pelo pa-
ciente de acabar, ele próprio, com suas díflculdades. 4 A cura
não era mais comandada do exterior, ela se tornava uma inicia-
tiva reconquistada, já que a doença não era mais considerada

2"Expcrimentei e utilizei todo ripo de tratamentos médicos, quer de um


modo, quer de outro, e descobri que todos os caminhos levam a Roma, tanto os
da ciência quonto os d~ charlatanice..." (Lt livre du Ça [rrad. Li\y Jumd], Pa-
ris, Gallimard, 1973, p. 3:>2). Em seu prefácio a essa obra, Lawrence Durrell
escreve que "Groddeclc era mais um curandeiro e um erudito do que um mé·
dico".
3Essai sur lagtdrison, Paris, Denõel e Stede, 1934. Já, anteriormente, Orienta·
tion ru:tueUe dcs idées médicales, 1927. Podemos citar também, em razão de sua
colaboraç:io com Allendy, Rcné Laforgue, Clinique psycl~aT~alytique, 1936, lí·
ção VII: "A cura e o final do tratamento," que não conceme exclusivamente
ao tratamento psicanalítico.
4"Não é o médico que acaba com a doença, mas o doente. O doente se cum
por suas próprias forças, assim como é por suas próprias forças que ele anda,
come, pensa, respira, dorme~ (Groddeck, op. cit., p. 304).
52 Geurgcs Cang~•ilhem

como' um acidente, mas como um fracasso de conduta, se nflo


t1ma conduta de fraca~so. 5
t bastante conhecido, por meio d<~ etimologia, que curar é
proteger, defender, muni r, quase militarmente, contra uma
agressão ou uma sediçúo. A imagem do orga ni~m o aqui pre-
sente é a de uma cidade ameaçada por um inimigo exterior o u
interior. Curar é conservar, <\brigar. Isso foi pensado muito an-
tes que alguns conceitos da fisiologia contemporânea, como
os de agressão, stress, defesa, entrassem no domínio da medici-
na e de suas ideologi<1S. E a assimilação da cura a uma resposta
ofensiva-defensiva é tão profunda e originchia que ela pene-
trou no próprio conceito de doença, considerada como reação
de opo~ição a uma e fração ou a uma desordem. Essa foi a razão
pela qual, em alguns casos, a intenção terapêutica pôde res-
peitar provisoriamente o mal do qual o doente esperava que o
tomassem de imediato como alvo. A justificativa dessa apa-
rente con ivência ocasionou alguns escritos, dos quais o mais
conhecido tem como título Traité dcs maladies qu'il est dangcreux
de guérir, 6 expressão que ). -M. Charcot assumiu, em 1857, nas
conclusões de sua tese de doutorado De l'expectacion cn méde-
cíne. Essa tese da doença médico, malgrado ela própria, com-
punha a representação do organismo animal como uma "eco-
nomia", com tJma tradição hipocrática extenuada, latente,
sob muitos d isfarces mecânicos ou químicos, desde o século
XVII até a metade do século XlX. A economia animal é o con-
junto das regras que presidem às relações das panes em um
todo, à imagem da associação dos membros de uma, comtmi-

5Cf. Yvun Bd<Jval, Lcs coru:!uiccs J'édu~c. Pnris, Gallimurd, 1953.


(•De Duminique Raymond, ll! etl., Avignon, 175 7. Nova edição ampliada de
nutns por M. Giruudy, Pari$, 1808.
Escritos sobre a medicina 53

dade governada para seu bem pela autoridade de um chefe do-


méstico ou político. A integridade orgânica foi uma metáfora
da integração social antes de se tomar matéria para metáfora
inversa.? Disso decorre a tendência geral e constante de con-
ceber a cura como final de uma perturbação e rewmo à ordem
anterior, tal como o testemunham todos os t:ermos de prefixo
re que servem para descrever seu processo: restaurar, restituir,
restabelecer, reconstituir, recuperar, recobrir etc. Nesse sen -
tido, cura implica reversibilidade dos fenômenos cuja suces·
são constituía a doença; é uma variante dos princípios de con·
servação ou de invariância sobre os quais são fundamentadas
a mecânica e a cosmologia da época clássíca.8 Assim entendi-
d2f concebe-se que a possibilidade de uma cura pudesse ser
contestada, exceto em alguns casos de benignidade patente,
como a coriza ou a oxiurose, pois, freqüentemente, a restitui-
ção ou o restabelecimento ao estado orgânico anterior pode
revelar-se ilusória caso peçamos a sua confirmação por testes
funcionais em vez de nos reportarmos simplesmente à satisfa-
ção do homem que cessou de se dizer doente.
7Cf. Ch. Lichtemhaeler, La médeci11t hippocratique, Neuchâtel, La Baconnie-
re, 1957: "Da origem social de a!guru conceitos científicos e filosóficos gre·
~:~·:S. Balan, "Primeiras pesquisas sobre a origem e a formação do conceito
de economia animal", in Revue d'Hi.ltoire des Scittrce.s, XXVIII, 1975, p.
289-326.
8
Leibniz, teórico da conservação da força, inscreve como argumento em seu
sistema o teorema hipocrátíco de conservação das "forças" orgânicas, sobre o
qual concordam os dois médic~ rivais, Halle, Stahl, animista, e Hoffmann.
mecanicista: "Não me surpreendo que os homens, por ve:tes, adoeçam, mas
me surpreendo que eles adoeçam tão pouco, e que não estejam sempre doen-
tes; e é isso também que nos deve fazer estimar o artifício divino do mecanis·
mo dos animais, cujo autor fez máquinas tão frágeis e tão sujeitas li corrupçiio
c, no entanto, rão capazes de se mamer; pois é a nawreza quem nos c:ura, mais
do que a medicin-'l" (Essai de Théoclicée, 1.2 parte, § 14).
Georges Canguilhem

A partir do úlltimo quarto do século XIX, a fisiologia come-


çou a substituir a concepção do organismo como mecanismo
compensndor ou como economia fec hada por uma concepção
do organismo cujas fun ções de auto-regulação estão intima-
mente atreladas às funções de adaptação ao meio ambiente. Se
a bomeostase pode parecer, à primeira vista, comparável com a
conservação espontânea, celebrada pela medicina da idade
clássica, ela, contudo, não pode ser considerada como isomor-
fa, uma vez que a abertura sobre o exterior é, doravante, consi-
derada como constitutiva dos fenô menos propriamente bioló-
gicos. Sem dúvida, a medicina pré-fisiológica não ignorava a en-
tourage do organismo, o clima, as estações. Disso resultou a teo-
ria d as constituições. Mas havia doenças populares, ou seja,
epidemias, como das campan has militares. Elas levavam em
consideração o tempo, como diz Sydenham, para quem as do-
enças seguiam os "tempos particulares do ano, a exemplo de al-
guns pássaros e de algumas plantas". O conhecimento das cir-
cunstâncias não en1 pesquisado para se saber em que consistia
a doença, mas par(l saber com ql1al essência de doença se teria
de lidar e em qual tipo de terapêu tica era preciso se deter. Por-
tanto, cometer-se-ia um engano ao buscar na velha teoria das
constituições epidêmicas uma espécie de ancccipação da teoria
dos meios, esboçada por Auguste Comte9 e desenvolvida pelos
m~di cos positivist<ls da Sociedade de Biologia, contemporânea
da constituição d a fisiologia como ciência. 10

9 Coars de plrilosoJ,/uc positive, 40~ lição (1836).


10Cf. Émile G\ey, "L~ Sociét~ de Biologie de 1849 i\ 1900 et l'évQiution des
scienccs hiolugiqut:S'', in Essais d'J,iswirc t!l de philosoplu~ de la biologie, Paris,
Maswn, 1900, p. 187. Cf. igualmente o verbete ~ mésologicM no Dicriorutaire
tL:s scirnces médicnlcs de Littrt e Robi n.
Escritos sobre a medicina 55

A abertura do organismo sobre o meio, ainda que nunca te;


nha podido ser concebida como uma simples relação de sujei-
ção passiva, foi progressivamente compreendida como subordi-
nada à manutenção de constantes próprias, expressando-se por
meio de relações nas quais o gasto e o ganho de energia são con-
trolados por circuitos de regulação. Mas o equilíbrio aparente
ou o estado estacionário de um tal sistema aberto não é de
modo algum privativo de sua submissão ao segundo prindpio
da termodinâmica, à lei geral de irreversibilidade e de não-
retorno a um estado anterior. Doravantc, todas as vicissitudes
de um organismo, sadio, doente ou considerado curado, são
afetadas pelo estigma da degradação. Apesar da persistência de
uma imagem confusa do Apolo taumaturgo na simbólica da te-
rapia, o médico não pode ignorar que nenhuma cura é um re,
tomo. E quando Freud, na parte mais discutida de sua obra, ri-
tualizou o conceito de retomo, foi como reto rno à morte, ao es-
cada inorgânico que teria precedido à vida. ll
Se a termodinâmica é, quanto ao seu objeto de origem, a
ciência da máquina a vapor, ela é também, quanto ao tipo de
sociedade nas instituições científicas das quais foi elaborada,
uma ciência característica das primeiras sociedades industriais,
sociedades de população urbana predomina nte, nas quais a
concentração demográfica e as condições de trabalho dos ope-
rários contribuíram amplamente para o desenvolvimento das
doenças infecciosas, onde o hospital se impôs como lugar de
tratamento generalizado no anonimato. A descoberta por
Koch, Pasteur c seus alunos dos fenômenos de contágio micro·

11Cf.J. Laplanche, Vie et mort en psychanalyse, Paris, Flammarion, 1970: "Por


que a pulsão de morte?". O a-.~tor mostra em que e como Freud se referiu, nllo
sem confusões, aos trabalhos de Hem1ann von Hclmholtz sobre a energética.
56 Georges Canguilhem

biano ou virótico e da imunidade, a invenção das técnicas de


anti-sepsía, de seroterapia e de vacinação forneceram às exi-
gências da higiene pública, até então desarmadas, meios de efi~
cácia maciça. Paradoxalmente, foi o sucesso dos primeiros mé~
todos curativos fundamentados na microbiologia que provocou
a substituição progressiva no pensamento médico de um ideal
pessoal de cura das doenças por um ideal social de prevenção
das doenças. No limite, não era absurdo esperar, para uma po-
pulação dócil às medidas de prevenção, um estado de saúde co~
letiva de modo que nenhum indivíduo se encontrasse na situa-
ção de ser tratado e curado por tal doença declarada. E, de fato,
atualmente admite-se não haver, nas sociedades ocidentais,
quase nenhum caso de varíola a ser tratado, uma vez que a vaci-
nação antivariólica, sistematicamente praticada, obteve ore~
sultado de se tornar, doravante, inútil. A imagem do médico
hábil e atento de quem os doentes individuais esperam a cura
está sendo, pouco a pouco, ocultada por aquela de um agente
executando as instruções de um aparelho de Estado, encarrega-
do de velar pelo respeito do direito à saúde reivindicado por
cada cidadão, em réplica aos deveres que a coletividade declara
assumir para o bem de todos.

O progresso da higiene pública e o desenvolvimento da me-


dicina preventiva foram sustentados pelos sucessos espetacula·
res da quimioterapia fundada, nos primeiros anos do século XX,
pelas pesquisas de Paul Ehrlich pautadas na imitação artificial
do processo natural de imunidade. Essa talvez seja a invenção
mais revolucionária na história da terapêutica. Q antibiótico
não apenas forneceu um meio de cura, como também transfor~
mou o conceito de cura ao transformar a esperança de vida. A
avaliação estatística das performances terapêuticas introduziu
n.t apreciação da cura uma medida objetiva de sua realidade.
~ritO$ sobre a medicina 57

Mas essa medida da cura, mediante uma duração de sobrevida


calculada estatisticamente, se inscreve em um quadro no qual
figuram também o aparecimento das doenças novas (cardiopa·
tias) e o aumento da freqüência de amigas doenças (câncere.s),
afecções cujo aumemo da duração média da vida permitiu a
manifestação de seus prazos. Assim, a realização de duas ambi~
ções da velha medicina - curar as doenças c prolongar a vida
humana- surtiu como efeito direto colocar o médico diante
de doentes sujeitos a uma nova ansiedade de cura possível ou
impossível. O câncer substituiu a tuberculose. Se o aumento da
duração da vida vem confirmar a fragilidade do organismo e a
irreversibilidade de sua degradação, se a história da medicina
tem como efeito abrir a história dos homens a novas doenças,
então o que é a cura ? Um mito?

* *.
Embora os médicos, de um modo geral, sejam críticos a res~
pci to da noção popular de cura, não é proibido tentar sua legi ci-
mação. Nossa língua conhece curar, verbo ativo, c curar, verbo
inrra nsitívo, como florir ou triunfar. Popularmente, curar é
ree ncontrar um bem comprometido ou perdido, a saúde. Ape~
sardas implicações sociais e políticas desse conceito, devido ao
fa to recente de que a saúde é, por vezes, percebida como um de~
ver a ser observado do ponto de vista dos poderes sociomédicos,
a saúde continuou sendo, na realidade, o estado orgânico do
qual um indivíduo se considera juiz. Mesmo que os médicos es-
tejam fundamentados para achar ilusória a saúde definida
como vida no silêncio dos órgãos (René Leriche), lembrando
que o silêncio pode mascarar uma lesão que já tenha alcançado
um estágio irremediável, ocorre que se portar bem, quer dizer,
comportar-se bem nas sicuações as quais se deve enfrentar, é
58 Georges Canguilhem

um critério a ser conservado. 12 A saúde é a condição a priori la-


tente, vivida em um sentido propulsivo, de toda atividade esco-
lhida ou imposta. Esse a priori pode ser decomposto, a posceriori,
pela ciência do fisiologista em uma pluralidade de constantes,
das quais as doenças representam uma distância superior a uma
norma deternúnada por uma mediana. Mas, ao :substituir a aná·
lise objetiva de suas condições de possibilidade, de seu poder de
1
'fazer face a", pelo todo, vivido pelo sujeito vivo, substitui-se
um modo de expressão ao qual se recusa a dignidade de língua
por urna língua. O médico não está longe de pensar que sua
ciência é uma língua bem-feita, ao passo que o paciente se ex-
pressa com jargões. Mas como no início o médico foi homem,
na idade em que era incerto saber se ele se tornaria Deus, mesa
ou bacia, ele conserva algumas lembranças do bloco original no
qual ele foi esculpido e reteve, a princípio, alguns elementos do
jargão desvalorizado por sua língua de cientista. Ocorre-lhe,
por vezes, consemir em compreender que a demanda de seus
clientes possa restringir-se a conservar uma certa qualidade da
disposição para viver, ou a encontrar seu equivalente, sem se
preocupar em saber se os testes objetivos de cura são positivos e
con~ordantes. Inversamente, pode acontecer que o médico
não compreenda que tal paciente, ao final do que foi prescrito,
executado e obtido, no que conceme ao desaparecimento de ·
•Jma infecção ou de uma disfunção, não se considere livre da
doença, recuse dizer-se curado e não se comporte como tal. Em
suma, do ponto de vista da prática médica, fortalecida por sua
cientificidade c por sua tecnologia, muitos doentes se satisfa-
zem menos do que se considera como seu dever, e alguns outros

12
Para as diferentes concepções e avaliações da cura, cf. J. Sarano, La f!dri·
son, PUF, Col. "Que sais-je!".
Escritos sobre a medicina 59

recusam reconhecer que se fez por eles tudo o que lhes era devi-
do. Éque a saúde e a cura resultam de um gênero de discurso di-
ferente daquele por meio do qual se aprende o vocabulário e a
sintaxe nos tratados de medicina e nas conferências de clínica.
Quando, em 1865, Villemin expôs as provas, que acreditava
sólidas, da contagiosidadc da tuberculose, estava longe de con-
seguir a adesão de seus contemporâneos, dos quais muitos pen·
savam, como Bricheteau, fazendo alusão às Prescrições draco-
nianas em vigor desde o século XVIII, na Espanha e no reino
das Duas Sicílias, que a idéia de cot.tágio só pôde nascer na ima-
ginação dos habitantes do sul. 13 De algum modo, os médicos in-
tegraram à sua concepção da doença uma reação popular de pa~
vor e de rejeição exatamente quando lutavam contra ela. Éque
entre a tuberculose humana c a tuberculose bovina ou aviária,
sobre cuja identidade ou diferença se discutia ainda. a medicina
constatava a presença ativa de um detenninante que é preciso
nomear, na falta de outro melhor, como psicológico. 14 A tuber-
culose era objeto de terror, como a lepra o fora na Idade Média.
Nomear a doença agravava os sinromas. 15 Pois a doença acarre-

13
Sobre a história da tuberculose, c f. M. Piery c J. Roshcm, Histoíre de Ta tuber.
culost, Paris, Doin, 1931; Ch. Coury, La tuberculose au cours des âges, Sures-
nes, Lepetit, 1972.
14
J.-B. Pontalis reconhece a ambigüidade do termo psicologia, designando ao
mesmo tempo a disciplina e seu objeto, como se a representação de si jíi fosse
constitutiva do sujeito representante (Entre k rê11e etia douleur, Paris, Galli-
mard, 1977. p. 135).
15
Cf.]Olcrnal dt Marie Ba.shkirtseff. "Potain nunca quis dizer que os pulmóes
eram atingidos; em semelhantes casos, ele empregava as f6rmula5 r'Omuns os
brônquios, a bronquite etc. É melhor ~aber em termos exatos... então eu ~u
mico! Háapenas dois ou três anos. Em suma, não está tão avançado para que
eu mon a disso, só que é bastante incômodo" (quinta-feira, 28 de dezembro de
1882). Noce-se que foi em 1882 que Koch identificou o bacilo tuberculoso.
60 Georges Canguilhem

rava tanto a exclusão social quanto a consumpção orgânica.


Durante muito tempo, estava-se doente por se ter sido curado
de uma tal doença, uma vez que se percebia em tomo de si uma
suspeita de nocividade remanente. Embora controlada por
meio de testes de laboratório, a cura não se realizava na reinre-
graçáo à existência, devido mais à angústia da segregação do
que à redução das capacidades vitais. Essa forma de cura que se
poderia dizer patológica, mais rara nos dias de hoje no caso da
tuberculose, tomou-se freqüente no caso do câncer, em razão
de uma semelhante reação de angústia diante d a idéia que a en-
tourage da pessoa doente costuma fazer a respeito dessa doença
que não perdoa. Mas, ao lado dos doentes que não conseguem
assumir sua cura, comportar-se como curados e decidir-se a en-
fre ntar uma vez mais, embora de modo diferente de outrora, o
questionamento da existência, há doentes que encontram em
sua doença um bem ao seu alcance c que recusam a cura. Nessa
resistência passiva à intervenção médica, o doente busca uma
espécie de compensação à sua condição diminuída, dominada.
No que conceme à relação terapêutica, ele garante para si a ini-
ciativa.16
Essa revocação, sem originalidade, de configurações patoló-
gicas nas quais não é possível cogitar a cura no sentido tradicio-
nal de final e recomeço, proíbe que se conceba a relação do mé-
dico para com o doente como a de um técnico competente com
um mecanismo perturbado. E, no entanto, a formação dos mé-
dicos nas faculdades os prepara muito mal para que admitam
que a cura não se determina por intervenções de ordem exclusi-
'
i6A w não se trata do caso em que a complacência na situação de doença
tem~r finalidade retardar o retomO obrigatório do doente a uma atividade
profissional ao final de uma licença médica.
Escritos sobre a medicina 61

vamente física ou fisiológica. Não há pior ilusão de subjetivida-


de profissional, por parte dos médicos, do que sua confiança nos
fundamentos estritamente objetivos de seus conselhos e gestos
terapêuticos, desprezando ou esquecendo autojustificadamen-
te a relação ativa, positiva ou negativa, que não pode deixar de
se estabelecer entre médico e doente. Essa relação era conside-
rada, na idade positivista da medicina, como um resíduo arcai-
co de magia ou de fetichismo. A reatualização dessa relação
deve ser creditada à psicanálise, e muitos estudos foram feitos
de modo a ser útil retornar a isso. 17 Mas pode parecer urgente
interrogarmo-nos sobre o lugar que a atenção concedida por
um médico particular a um doente particular pode ainda pre-
tender ter, em um espaço médico cada vez mais ocupado, na es-
cala das nações ditas desenvolvidas, pelos equipamentos e re-
gulamentos sanitários e pela mulciplicação programada das
"máquinas de curar". 18

"As coisas chegaram ao ponto em que meu cérebro não po-


dia mais suportar as preocupações e os tormentos que lhe esta-
vam sendo infligidos. Ele dizia: 'Renuncio; mas se aqui hã al-
guém que insista na minha conservação, que ele me alívie de
um pedacinho do meu fardo, e continuaremos ainda por um
tempo.' Foi nesse momento que o pulmão se apresentou; apa-
rentemente, ele não tinha grande coisa a perder. Esses debates
entre o cérebro e o pulmão, que se desenrolavam sem que eu o

11Cf. J.·P. Valabrega, La relation rhir~·· malade et 1nidecin, Paris, Fiam·


marion, 1962.
IBw mochin(.s àguirir (aux origin~s de
l'h6pital mokme), por M. Foucault, B.
Fortier, B. Barret·Kriegel, A. Thalamy, F. Beguin, Paris, lrutitur de l'Envi-
ronnement, 1976.
62 Gcorges Canguilhem

soubesse, devem ter sido algo medonho.''!! ainda: "Tenho hoje


com a tuberculose a mesma relação que uma criança com as
saias de sua mãe às quais se agarra (...]. Busco assiduamente ex*
plicar a doença, pois, afinal, não fui eu que corri atrás dela. Por
vezes, tenho a impressão de que meu cérebro e meus pulmões
teriam concluído um pacto à minha ·revelia." 19 Nem todos os
doentes, nem todos os tuberculosos, em particular, são Kafka.
Contudo, quem não reconhece nas confidências do autor do
Processo a verdade dessas situações de abandono, de origem psi*
cossocial, geradoras do esgotamento orgânico propício à edo*
são de uma doença infecciosa? Mais certamente ainda, quando
se trata de afecçõcs relacionadas com o sistema neuroendócri*
no, desde a fadiga crônica até a úlcera gastroduodenal, e, de um
modo geral, das doenças consideradas de adaptação.
Pelo fato de essas situações de aflição serem, com freqüên*
cía, manifestações de bloqueios no nível das estruturas sociais
de comunicação, o estudo de seus reméd ios eventuais não de*
correria apenas de disciplinas de ordem sociológica? E qual é,
encão, o tipo de sociedade provido de uma organização sanitá*
ria que explore a informação mais sofisticada sobre a distribui*
ção e as correlações dos fatores de doenças que, algum dia, dis*
pensará o médico da tarefa, talvez desesperada, de ter de sus*
tentar indivíduos em situação de aflição, em sua luta ansiosa
por uma cura aleatória?
E por que , enfim, empenhar-se em d issimular para as pessoas
q ue é normal ftcar doen te, uma vez que se está vivo, que é nor ·
mal c urar-se da doença, com ou sem o recurso da medicina,

19Essa.s. duas
citações foram tomadas emprestado de K. Wagenbach, l<afl<a
par lui-même, Paris, Seuil, 1968, p. 137-138.
Escritos sobre a medicina 63

que doença e cura estão inscritas nos limites e nos poderes das
regulações biológicas? Mas as normalidades biológicas só têm
como garantia seu aco ntecimento, a não ser que se lhes dê um
fundamento metafísico no q ual não é proibido ver-se apenas a
consagração do próprio acontecimento. É preciso que a vida
seja um dado para que se possa acreditar sua possibilidade ne-
cessária.

Os organismos dos seres vivos são capazes de alterações de


estrutura ou de perturbações de funções que, mesmo que não
cheguem a destruí-los. podem comprometer a execução de ta*
refas impostas pela hereditariedade específica. Mas a tarefa es·
pedfica do homem revelou*se como a invenção e a renovação
de tarefas, cujo exercício requer ao mesmo tempo aprendiza-
gem e iniciativa em um meio modificado pelos próprios resulta·
dos desse exercício. As doenças do homem não são somente li-
mitações de seu poder físico, são dramas de sua história. A vida
humana é uma existência, um scr-af para um devir não preor-
denado, na obsessão de seu fim. Portanto, o homem é aberto à
doença não por uma condenação ou por uma sina, mas por sua
simples presença no mundo. Sob esse aspecto, a saúde não é de
modo algum uma exigência de ordem econômica a ser valoriza·
da no enquadramento de uma legislação, ela é a unidade espon·
tãnea das condições de exercício da vida. Esse exercício, no
qual se fundamentam todos os outros exercícios, funda como
eles e contém como eles o risco de insucesso, risco do qual ne-
nhum status de vida socialmente normalizada pode preservar o
indivíduo. O seguro-doença, inventado e institucionalizado
pelas sociedades industriais, encontra sua justificativa no pro-
jeto de propiciar ao homem, certo da compensação de deficits
econômicos eventuais, confiança e audácia na aceitação de ta·
refas que comportam sempre, em algum grau, um risco para a
Oeorges Canguilhem

vida. Convém, então, trabalhar hoje para curar os homens, de,


vido ao medo de, eventualmente, ter de se esmerar em curar,
sem garantia de sucesso, doenças cujo risco é inerente ao goz.o
da saúde. 20
A esse respeito, podemos achar surpreendente que a tese de
Kurt Goldstein, desenvolvida em Aufbau des Organismus, 21 te,
nha tido tão pouca repercussão fora dos círculos filosóficos in,
fluenciados pelos trabalhos de Maurice Merleau,Ponty. Talvez
porque o próprio Goldstein tenha apresentado sua tese como
epistemologia da biologia, mais do que como filosofia da cera,
pêutica. E, no entanto, nas últimas páginas da obra, a arividade
do médico é aproximada à do pcdagogoY Goldstein formou os

2°Cf. :u reflexões do professor P. Cornil!ot, "Quacre vérirés .sur la santé", in


Francs-tireusdela médedne (Autremell!, n!!9,1977). O autor moma que a no·
ção de saúde absoluta está em contradição com a dinâmica própria a todos os
~istemas biológicos e que, por conseguinte, a saúde relativa é um estado de
equilíbrio dinâmico instável." A saúde relativa permanece um estado aparen,
f e, não trazendo nenhunta garantia quanto à evolução muda eventual de pro·
cessos patológicos que esc~pam à vigilância dos mecanismos naturais de luta
contra a agressão, a infecção ou a despersonalização, no sentido biológico ou
psicológico do tenno" (p. 234).
Em Hisrmre eles expressicns populaires relatives à I'anacomie, à la physiologie et à la
médecine (Paris, Masson, 1892), E. Brissaud escreve: "A saúde mais florescei\·
te nlio pressagia a mais longa vida. É inútil evitar a~ falras de higiene, preser·
var-se das imprudências e sobrerudo dos vícios que aceleram a velhice, pois,
apesar de tudo, a doença sobrevém. Um de nossos mestres- hipocondríi~eo, é
verdade- não definiu a saúde como ~um estado precário, transitório, que não
pressagia nada de bom?"(p. 93-94). Disso podemos concluir que o Dr. Knock
era mais velho que Jule~ Romains. '
21Publicada em 1934, essa obra foi rraduzida em francês sob o tírulolAstn«:,
ture de l'organisme (Paris, Oallimard, 1951). Devemos lamentar a ausência de
uma reimpressão nos dias átuais.
22p . 429 da tradução francesa.
Escritos sobre a medicina 65

conceitos de comportamento ordenado e de comportamento


catastrófico a partir de observações relativas às condutas do ho,
mem acometido de lesões cerebrais. Um organismo saudável
compóe com o mundo circunvizinho, de maneira a poder rea!i,
zar todas as suas capacidades. O estado patológico é a redução
da latitude inicial de intervenção no meio. O empenho ansioso
para evitar as siruações geradoras de comportamento catastró,
fico, a tendência à simples conservação de um resíduo de poder
é a expressão de uma vida em perda de "responsividade". Se en,
tendermos por cura o conjunto dos processos pelos quais o or,
ganismo tende a superar a limitação de capacidades à qual a
doença o obrigou, será preciso admitir que curar é pagar com
esforços o preço de um atraso da degradação. "Com freqüência,
segundo as modificações provocadas pela doença, o doente se
encontra diante de uma alternativa; ele pode escolher um es,
treitamento do meio, c assim sofrer uma perda de liberdade, ou
então escolher um estreitamento menor, mas, em contra parti·
da, assumir um sofrimento maior. Se o doente é capaz de supor,
ta r um sofrimento maior, suas possibilidades de agir aumentam;
seu sofrimento diminuiria graças à terapêutica médica, mas
suas possibilidades de agir diminuiriam ao mesmo tempo. "23
Nessas condições, qual pode ser a atitude do médico, conse,
lheiro ou guia? Goldsrein anuncia, aqui, as questões às quais os
trabalhos de Balint deram uma notoriedade talvez menos fun,
damenrada. O médico que se decide a guiar o doente sobre o
caminho difícil da cura "só estará em condições de fazê, lo se ti,
ver a profunda convicção de que não se trata, na relação médi,
co,paciente, de uma situação baseada unicamente em um co,
nhecimemo do tipo da causalidade, mas sim de um debate en,

2J lbid .• p. 360.
66 Georges Canguilhem

tre duas pessoas das quais uma quer ajudar a outra a adquirir
~ma estruturação tão conforme quanto possível à sua essência.
E por realçar a relação existente entre médico e paciente que o
ponto de vista médico moderno se opõe, de modo mais nítido,
àquele dos médicos do final do último século, cujos hábitos de
pensamento eram próprios às ciências físicas". 2+
Porém, mais do que se surpreender, é preciso buscar com,
preender. A indiferença ou a hostilidade da grande maioria dos
médicos para com as questões que lhes são formuladas, por
meio de a)guns movimentos de contestação interiores à sua
profissão, quanto ao abandono de sua vocação para curar em
benefício de tarefas regulamentadas de descoberta das pistas,
de tratamento c de controle, pode ser explicada pelas razões a
seguir. Nada é mais difundido e mais rentável, nos dias de hoje,
do que uma proclamação anti-x. Foi a antipsiquiatria quem deu
a partida, e a antimedicalízação a seguiu. Muito antes das exor,
tações de Ivan Illich à recuperação pelos indivíduos da regulari-
zação de sua saúde, à autogesrão de sua cura e à reivindicação
de sua morte, as repercussões da psicanálise e da psicossomáti·
ca, no nível de vulgarização próprio à mídia, popularizaram a
idéia de uma conversão do doente, almejável e possível, em. seu
próprio médico. Acreditou-se inventar quando, na realidade,
se retomava o tema milenar do médico de si mesmo. 25 Como os
tempos estão diflceis e os mercados, raros, uma quantidade cres,
cente de praticantes de terapêuticas não científicas- a ciência,
eis aí o inimigo - se vangloria de obter o que ela recrimina como
negligência e falta por parte dos médicos. Disso decorre o apelo
aos doentes decepcionados: venham nos dizer qué vocês que·

24Ibid., p. 361.
25
C(. Le médecin de soi-même, por E. Aziza-Schuster, Paris, PUF, 1971.
Escritos sobre et medicina 67

rem se curar, com vocês, fa remos o resto. Os argumentos evo·


cados são por vezes tão ocos, tão vaidosamente peremptórios,
que quase se chegaria a lamentar o apagamento progressivo
dessa espécie de médicos, sobre os quais Goldstein disse que ti·
nham hábitos de pensamento próprios às ciências físicas. E
vê,se por que a trivialidade conceitual dos propagandistas da
autocura desvia muitos médicos, no entanto desconfortados
em seu personagem de terapeuta frequentemente impotente,
de dar sua adesão a uma ideologia tão bem-intencionada, mas
muito pouco preocupada com a autocrítica.

Tanto a antimedicina quanto a antipsiquiatria exploram a


vantagem inicial de todas as petições de princípio. Suponha-
mos o problema resolvido, façamos Brutus Césal.'. Pode aconte-
cer a Brutus sofrer dores tardias, violentas, quotidianas, sobre-
vindo periodicamente na região do estômago.26 A contra-in-
formação médica o instruiu quanto aos sintomas da úlcera, ao
efeito das emoções sobre as secreções hormonais. Ele ouviu fa-
lar da epidemia de úlceras gástricas na população londrina du-
rante os bombardeios da última guerra. Brmus irá primeiro con-
sultar um psicotcrapeuta sobre suas dificuldades conjugais com
Portia, ou correrá para consultar um radiologista? Enquanto es,
pera decidir-se, será que ele adotará um regime alimentar res-
trito e tomará sais de bismuto? Évisível, Brutus se tomou, à sua
revelia, o espelho no qual se refl etem e se confundem rostos de
diferentes médicos. Aquele que queria liberaNe da tecnocra-
cia dos médicos encontra-se entravado nas redes de uma medi,

26
Um grande canccrologista de Toulousc, conhecido justamente por sua de-
dicação generosa, por sua preocupação incansável quanto aos problemas pes-
soais de seus doente.s, ensinava que, no que conceme à úlcer. de estômago, 0
diagnóstico podia ser feito por telefone.
68 Georges Canguilh~m

cina ainda em busca de sua melhor textura. Brutus pode sair de-
las indo ver um curandeiro.
Em suma, porque os médicos negligenciam indagar pacien·
temente a eventual aflição afetiva de seus clientes, preocupa·
dos, por outro lado, com a atualidade de sua competência, será
que se deve concluir por sua inferioridade em relação ao pri·
meiro terapeuta que chegou prevalecendo-se da psicossomáti~
ca? Este último seria mais qualificado para obter a cura <te uma
obesidade, a princípio consecutiva a comportamentos alimen-
tares de compensação afetiva, mas doravame comandada por
uma desregulação tireoidiana ou supra-renal? Em matéria de
reducionismo em terapêutica, o psicologismo valeria mais do
que o fi siologismo?
Suponhamos, então, resolvido o problema do tempo neces-
sário a longas consultas terapêuticas, que equivale ao problema
da multiplicação inevitável e da remuneração de médicos for-
mados para escutar a queixa embaraçada de seus clientes. Será
preciso introduzir na formação hospitalar-universitária dos fu-
turos médicos um ensino da participação "conviva)" e, con.se·
qüentemente, dos testes e dos exames de aptidão para o conta·
to humano? Será preciso resolver a dificuldade diferentemente,
po r meio da criação de equipes de saúde, nas quais alguns médi-
cos e um pessoal paramédico fortemente motivados se empe·
nhem em recriar as relações dos indivíduos com o corpo, com o
trabalho, com a coletividade? Es~: soluções que, de bom gra·
do, se dizem de esquerda, estão isentas de todo conluio com
uma ideologia de direita? O contato humano não se ~nsina nem
se aprende como a fisiologia do sistema neurovcgetativo. Afas·
ta r da profissão médica quem não fosse dotado para a participa-
ção "conviva!" equivaleria a instituir um novo CTité~o de sele·
Escritos sobre a medicina 69

ção não igualitária. Em uma equipe de trabalhadores da sa úde,


cncontrar~sc-ão pessoas que têm uma responsabilidade de en-
genheiros, outras se contentando em ser contramestres. E, fi.
nalmenre. é garantido que uma campanha sistemática de des-
medicalização da saúde não venha a obter o resultado inverso
ao seu objetivo? A o prometer um melhor uso individual de me-
lhores condições coletivas de saúde, à imagem de uma reparti·
ção mais eqüitativa das riquezas, será que se está seguro de não
suscitar uma doença obsessiva da saúde? É uma forma de doen·
ça achar-se frustrado da saúde que se merece, pelo modo de
exercício atual da medicina.

***
Uma coisa é obter a saúde que se acredita merecer, outra coi-
sa é merecer a saúde que nos propiciamos. Neste último senti·
do, a parte que o médico pode ter na cura consistiria, uma vez
prescrito o tratamento exigido pelo estado orgânico, em ins-
truir o doente sobre sua responsabilidade, que não pode ser de-
legada, na conquista de um novo estado de equilíbrio com as
solicitações do meio ambiente. O objetivo do médico, assim
como o do educador, é o de tornar sua função inútil.
Não parece indispensável celebrar sem discernimento as vir·
tudes de uma medicina selvagem para confirmar críticas evoca-
das por algumas práticas do corpo médico civilizado. Mas pare-
ce tet chegado o tempo de uma Crítica da razão médica prática
que reconheceria explicitamente, na prova da cura, a necessá-
•.-.a colaboração do saber experimental com o não-saber propul-
sivo c :::sse a p;iori de oposição à lei da degradação, do qual a saú-
de exprime um sucesso sempre reposto em questão. Por essa ra-
zão, se uma pedagogia da cura fosse possível, ela deveria com-
portar um equivalente ao que Freud chamou "prova de realida-
70 Georges Cl'lnguilhem

de". Essa pedagogia deveria tender a obter o reconhecimento,


pelo sujeito, do fato de que n en huma técnica, nenhuma insti-
tuição, atuais ou por advir, lhe assegurarão a in tegridade garan-
tida de seus poderes de relação com os homens e com as coisas.
A vida do ind ivíduo é, desde a origem, redução dos poderes da
vida. Porque a saúde n ão é uma constante de satis(ação, mas o a
priori do poder de dominar situações perigosas, esse poder é usa-
do para dominar pe rigos sucessivos. A saúde, depois da cura,
n ão é a saúde anterior. A consciência lúcida do fato de que cu-
rar não é retomar ajuda o doente em sua busca de um estado de
menor renúncia possível, liberando-o da fixação ao estado an-
terior.
Um dos últimos textos de F. Scott Fitzgerald, La Fêlure, co-
meça com as seguintes palavras: "Toda vida é, bem enten dido,
um processo de demolição... " Algumas linhas adiante, o autor
acrescema: "A marca de uma inteligência de primeiro plano é
que ela é capaz de se fixar em duas idéias contraditórias, sem
por isso perder a possibilidade de fun cionar. Dever-se-ia, por
exemplo, poder compreen der que as coisas são sem esperança
e, todavia, estar decidido a mudá-las." 27
Aprender a curar é aprender a conh ecer a contradição en tre
a esperança de um dia e o fracasso, no final, sem dizer não à es-
perança de um dia. Inteligência ou simplicidade?

27Paris, Ül'llliml'lrd, 1963, p. 341.


O problema das regulações no
organismo e na sociedade

Quando meu amigo Pierre-Maxime Sch uhl -ne pediu para


fazer uma conferência nestas reuniões da Aliança hraelira, ace:-
rei de muito bom grado e com iuuitu prazer. É uma honra para
mim. Lamento simplesmente ter posto esta condição, da qual
peço que me desculpem, que faz com que n os r-.. mamas em
uma hora inteiramente insólita.

Escolhi tratar de um problema pelo qual, eu lhes asseguro,


senhores , n ão esgotei meu interesse, já que ele constimi uma
questão para mim mesmo. Escolhi, con tudo, falar-lhes de um
assunto que não é preocupante pelo fato de ele me preocupar ,
mas que me preocupa porque o considero fundamentalmente
preocupante. Sob o título um ramo demasiado técnico "O
problema das regulações no organ ismo e n a sociedade", tra-
ta-se, n o fundo, d e nada menos do que um problema muito
antigo, sempre aberto, o das relações entre a vida do organis-
mo e a vida de uma sociedade. A assimilação usual, ora cientí-
fica, ora vulgar, da sociedade a um organismo é mais do que
uma metáfora ? Será que essa assimilação recobre algum pa-
ren tesco substancial?
N aturalmen te, esse problema só interessa à medida que a so-
lução que lhe é dada se torna, caso seja positiva, o ponto de par-
72 Georges Canguilhem

tida de uma teoria política e de uma teoria sociológica que rcn·


de a subo rdinar o social ao biológico e que se toma, de fato -
não direi um risco -, um argumento para a prática política. Por
conseguinte, sendo esse um assunto de preocupação maior, pa ~
rcce-me não ser preciso declará-lo e demonstrá-lo mais ampla-
mente.

Essa assimilação permanente da sociedade ao organismo


provém de uma tentação que é, em geral, duplicada com a ten-
tação inversa, a de assimilar o organismo a uma sociedade.

Um dos pensadores gregos pelos quais P.-M. Schuhl se in te·


ressou, em suas primeiras etapas da filosofia biológica, Alcmeão
de C rotona, interpretava o desequilíbrio causado pela doença,
o distúrbio patológico, como uma sedição, ou seja, para explicar
a natureza da doença, ele transportava para o organismo um
conceito de origem sociológica e política.

Quando os economistas liberais e os socialistas dos séculos


XVIII e XIX chamaram a atenção para o fenômeno social da di~
visão do trabalho e seus efeitos, efeitos felizes para alguns, de-
testáveis para outros, os fisiologistas acharam muito natura,l fa-
lar de divisão do trabalho no que conceme às células, aos ór-
gãos ou aos aparelhos que compõem um corpo vivo.

Na segunda metade do século XIX, no momento da difusão


da teoria celular, Claude Bernard fala va da "vida social" das cé-
lulas. Ele se perguntava se as células, em sociedade, têm a mcs·
ma vida que elas teriam em liberdade, o que equiyalia a formu-
lar, por antecipação, o problema dos resultados de uma cultura
de células. Será que, quando líberada de todas as relações que
mantém com as outras em um organismo, a célula se comporta·
rá da mesma maneira que em sociedade?
Escritos sobre a medicina 73

Ernst Haeckel, um dos que mais fizeram para elevar a teoria


celular ao nível de dogma, falava de "Estado celular" ou de "Re·
pública das células" para designar o corpo do vivo pluricelular.
Em suma, da sociologia à biologia, a multiplicação dos exem-
plos não traria nenhum reforço à idéia.
Aqui, cabe observar que sempre houve troca de bons e maus
procedimentos entre a sociologia e a biologia. Só a história, em
alguns casos, nos permite esclarecer a origem de alguns c oncei·
tos aos quais uma certa equivocidade em biologia e em sociolo-
gia dá uma aparência de terem urna validade equivalente, em
um c no outro domínios, de significações c de usos.
Por exemplo, há um conceito fundamental em política e em
economia, o conceito de crise. Ora, esse é um conceito de ori·
gem médica, é o co nceito de uma mudança advinda no curso de
uma doença, anunciada por certos sintomas, e na qual se deci·
dirá efetivamente a vida do paciente.
Eu lhes lembrarei que o termo constituição, que também faz
parte desses tennos perfeitamente equívocos, é válido tanto no
terreno bíológko quanto no terreno social. Se buscarmos a pas·
sagcm de um terreno ao outro, do terreno biológico ao terreno
social, não a encontraremos, por mais longe que nos remonte·
mos. Esse termo sempre teve uma ambigüidade, uma equivoci·
dade, ele vale tanto para um domínio de explicação quanto
para o outro.
Por conseguinte, lembro todos esses fa tos apenas para mos~
trar que, quando se assimila a sociedade a um organismo, não
é somente em fu nção de uma teoria sociológica bastante cur·
ta, cujos dias foram rapidamente contados, no final do século
XIX. Essa teoria é chamada organicismo. O fato de essa teoria
74 Gcorgcs Canguilhem

ter aparecido explicitamente naquele momento não impediu


alguns sociólogos, como Auguste Comte, de ir buscar em uma
noção de origem biológica a noção de "consenso" ou de simpa·
tias das partes do organismo entre si, uma noção importada
por ele para o terreno sociológico, mesmo reconhecendo que,
através da história humana, pelo fato da tradição, a vida social
e a vida orgânica compõem dois domínios radicalmente hete·
rogêneos.
Dito isso, abordamos o problema pelo que eu poderia cha-
mar seu aspecto mais popular, ou seja, a dupla tentação de assi·
milação. E gostaria de mostrar, imediatamente, que, se nos co-
locarmos também do ponto de vista da representação popular,
a correção dessa assimilação se impõe de imcdiaco. Quero dizer
com isso que, no que conceme ao problema social e aos proble-
mas apresentados pela vida orgânica e suas desordens, há, na
opinião comum, uma atitude que já deveria convidar o filósofo
a sondar suas razões profundas.
Éclaro que o problema da assimilação da sociedade a um or-
ganismo só ímeressa à medida que se espera dele alguma visão
:-obre
..., a estrutura de uma sociedade, sobre seu funcionamento,
porém mais ainda sobre as reformas a serem operadas quando a
sociedade em questão é afetada por distúrbios graves. Em ou-
tros termos, o que domina a assimilação do organismo a uma so-
ciedade é a idéia da medicação social, a idéia da terapêutica so-
cial, a idéia de remédios para os males sociais.
Ora, cabe observar que, sob a relação entre a sa"9de e a doen-
ça, portanto sob a relação da reparação dos distúrbios orgânicos
ou sociais, as relações entre o mal e o remédio são radicalmente
diferentes no que concerne a um organismo e no que conceme
a uma sodedade.
Escritos sobre a medicina 75

Aquilo a que farei alusão nada tem de misterioso. Todo


mundo já o experimentou, se assim posso dizer; isso alimenta as
conversações habituais. Um organismo é um modo de ser abso-
lutamente excepcional, visto que entre sua existência e sua rc;
gra ou sua norma não há diferença, para falar com propriedade.
A partir do momento em que um organismo é, que ele vive, é
que ele é possível, ou seja, ele responde a um ideal de organis;
mo. A norma ou a regra de sua existência é dada em sua tJrÓpria
existência, de tal modo que, quando se trata de um organismo
vivo, e para coma r o exemplo mais banal, quando se trata do or-
ganismo humano, a norma que é preciso restaurar, quando esse
organismo está lesado ou doente, não se presta em nada à ::nn-
bigüidade . Sabe-se muito bem qual ~ o ideal de um organismo
doente: é um organismo são da mesma espécie. Quer dizer que,
mesmo quando não s~ sabe exatamente em que consiste a de-
sordem orgânica, quando o médico discute sobre a natureza do
mal, quando se discute sobre à composição c a administração
dos remédios·, ninguém discute sobre o efeito esperado desse..::.
remédios. O efeito esperado desses remédios é a restauração do
organismo em seu estado de organismo são. Em suma, aqui, fica
claro para todo mundo qual é o ideal do organismo: é o próprio
organismo. Pode-se hesitar sobre o diagnóstico e a terapêutica
de uma afecção do fígado ou de uma doença dos olhos, mas nin-
guém hesita sobre o que se deve esperar da terapêutica. De-
ve~sc esperar do fígado que e!e secrete a bíle, e dos olhos que
eles tenham uma acuidade visual satisfatória. Em suma, na or~
dem do organismo é comum ver todo mundo discutir, se assim
posso dizer, sobre a natureza do mal, mas ninguém discute sobre
o ideal do bem.
Mas a existência das sociedades, .de suas desordens, de seus
distúrbios faz aparecer uma relação completamente diferente
76 Geor~es Canguilhcm

entre os males e as reformas, porque, para a sociedade, o que se


discute é saber qual é seu estado ideal ou sua norma.

É precisamente aqui que o problema se apresenta: a finali-


dade do organismo é interior ao organismo e, por conseguime,
esse ideal que é preciso restaurar é o próprio organüsmo. Quan-
to à finalidade da sociedade, é exutamente um dos problemas
capitais da existência humana e um dos problemas fundamen-
tais que se colocou a razão. Desde que o homem vive em socie-
dade, todo mundo discute, precisamente, sobre o ideal da so-
ciedade. Em contrapartida, os homens concordam mais facil-
mente sobre a natureza dos males sociais do que sobre o alcan-
ce dos remédios a lhes serem aplicados. Na existência de uma
socied ade, a norma da sociabilidade humana não é fechada.
Mais adiante, ten tarei dizer por quê. Disso decorre a multipli-
cidade das soluçôes possíveis que são calculad as ou sonhadas
pelos homens para pôr um termo às injustiças. Poder-se-ia dlr
zer que, na ordem do orgânico, o uso do órgão, do apare lho, do
organ ismo é patente. O que por vezes é obscuro, o que é com
freqüência obscuro é a n atureza Ja desordem. Do ponto de
vista social parece, pelo contrário, que o abuso, a desordem, o
mal são mais claros do que o uso n ormal. O assentimento cole-
tivo se faz mais facilmente sobre a d esorde m. O rrabalho das
crianças, a inércia da burocracia, o alcoolismo, a prostituição,
a arbitrariedade da polícia são males sociais sobre os quais a
atenção coletiva incide (é claro, para os homens de boa-fé e de
boa vontade), e sobre os quais o sentimento coletivo é fácil.
Em contrapartida, os mesmos homens que concordam sobre o
mal se dividem quanto ao tema das reformas. O q~e parecere-
médio para uns, para outros aparece como um estado pior que
o mal, devido ao fato de que, precisamente, a vida de uma so-
ciedade não é inerente a ela própria.
Escritos sobre a medicina 77

Poder-se-ia dizer que, na ordem social, a loucura é mais bem


discernida do que a razão, ao passo que, na ordem orgânica, a
saúde é mais bem discernida, mais bem determinada do que a
natureza da doença. Essa idéia foi o objeto de desenvolvimen-
tos brilhantes, um pouco demasiado brilhantes, da parte de um
autor inglês, Chesterton, em uma obra pouco conhecida que foi
traduzida para o francês: Ce qui cloche dans le monde. Ele se con-
tentou, como é seu hábito, em formular sobre o assunto parado-
xos muito excitantes, muito estimulantes. Mas descrever não
basta. Não digo que os explicarei, não tenho essa pretensão,
mas gostaria de tentar mostrar como, a partir dessa constatação
acessível a todo homem de boa vontade, é possível fundamen-
tar alguns princípios de explicação.

É neste ponto que a palavra "regulação", que aparece n o tí-


tulo de minha conferência, vai intervir. Éuma palavaa erudita -
mas não muito, no sentido de que todo mundo sabe o que é um
regulador em uma antiga locomotiva, todo mundo sabe o que é
uma estação reguladora. N ão diria que o conceito de regulação
é um conceito, mas, sim, não rebarbativo.
O organismo vivo é um tipo a ser caracterizado pela presença
constante c pela influência pcnnaneme de todas as suas panes
em cada uma delas. O próprio de um organismo é viv"": ·amo
um todo, e ele só poder viver como um todo. Isso se tornou pos-
sível pela existência no organismo de um conjunto de dispo~iti­
vos ou de mecanismos de regulação, cujo efeito consiste preci-
samente na manutenção dessa integridade, na persistência do
organismo como todo. Essa idéia de regulação orgânica é um
conceito bastante recente. Mais adiante darei alguns exemplos
dos tipos principais de regulação orgânica.
78 Gcorges Canguilhem

Essa idéia, que começa com a fisiologia de Claude Bernard,


apenas confirma uma velha ínt:ttição da medicina hipocrática,
ou seja, existe, pelo próprio fato da vida do organismo, urna es-
pécie de medicação natural ou de compensação natural das le-
sões ou dos distúrbios aos quais o organismo pode estar exposto.
Essa velha idéia hipocrática da força curativa da natureza não
recebeu senão confirmações por parte da fisiologia mod~rna.
Um organismo comporta, pelo simples fato de ser um organis-
mo, um sistema de mecanismos de correção e de compensação
dos desvios ou dos danos sofridos, em relação ao mundo no qual
ele vive, em relação ao seu meio, meio a respeito do qual a exis-
tência desses mecanismos de regulação lhe permite levar uma
exist~ncia relativamente independente. Para tomar um exem-
plo muito simples, citarei o que se chamava outrora os animais
de sangue frio e os animais de sangue quente, hoje chamados,
de modo mais científico, poiquilotermos e homeotermos. Nos
animais de sangue frio, não há sistema de regulação de tempe-
nuura, eles são escravos da temperatura do meio i quanto ao ho-
meotcrmo, ele tem um sistema de regu lação que lhe permite
compensar os desvios, manter uma temperatura constante, in~
dependentemente das solicitações do meio.

O próprio organismo, pelo simples fato de sua existência,


resolve uma espécie de contradição entre a estabilidade e a
modificação. A expressão desse. fa ro original requer termos
cuja significação é ao mesmo tempo fisiológica e moral. Há,
em todo organismo, uma moderação congênita, um controle
congênito, um equilíhrio congênito. É a existêncià dessa mo-
deração, desse controle, desse equilíbrio que chamamos, em
termos científicos, a partir do fisiologista americano Cannon,
a "I1omeostase" .
Escritos sobre a medicina 79

Os estados estáveis do organismo são obtidos em todas as


partes do organismo conservando uniformes, quer dizer, pre-
servadas de desvios muito importantes, aquém ou além das
condições naturais de vida dessas partes, o que chamamos, a
partir de Claude Bernard, o meio interior. Tal como a noção
de meio serve aos biólogos do final do século XVIII e do início
do século XIX para explicar as modificações e as adaptações
do organismo e das espécies, assim também essa noção de
meio interior serve a Claude Bernard para explicar como, no
interior do organismo, cada parte se encontra em relação com
todas as o utras, pela intermediação desse tipo de matriz líqui~
da, composta de sais, água, produtos de secreção interna, cuja
estabilidade se encontra sob a dependência de dois aparelhos
que, nos animais superiores, são a pedra angular de todas essas
operações: o sistema nervoso e o sistema das glândulas de se~
ereção incema ou glândulas endócrinas. Claude Bernard teve
a originalidade de mostrar a existência de um meio interior,
mas teve, além disso, a originalidade de mostrar que é o pró-
prio organismo quem produz esse meio interior. Insisto, aqui,
sobre o fato de que a regulação do organismo é garantida por
aparelhos especiais que são o sistema nervoso e o sistema en~
dócrino. As regulações pelas C!Uais Claude Bernard se interes~
sara são regulações físíológicàs. Por exemplo, a regulação dos
movimentos respiratórios sob o efeito da taxa de ácido carbô-
nico que está contida no meio interior, ou então a regulação
da eliminação da água e dos sais que anula a variação de pres-
são osmótica nos líquidos internos; a termorregulação, ou
seja, a regulação do calor :mimai, ou ainda a regulação dos
desvios da alimentação azotada pela manutenção da lei do
equilíbrio azotado.
80 Georges Canguilhem

A essas pesquisas de Claude Bemard juntaram-se pesquisas


dt! dois outros tipos: as que concemem ao desenvolvimento
embrionário e as que concernem à regeneração.

Os embriologistas descobriram que, no ovo fecundado, a par-


tir desse ovo fecundado, no decorrer da vida embrionária, exis-
te uma espécie de controle de uma totalidade sobre as partes
que faz com que, sejam quais forem as variações, se assim posso
dizer, de substância ovular, o ser vivo conserva ou mantém a in-
tegridade de uma forma específica c que se pode, por ext!mplo,
com a metade de um ovo ou, pelo contrário, com dois ovos liga-
dos, obter um só indivíduo do qual todos os caracteres específi-
cos são idênticos àqueles que se obteria pelo desenvolvimento
de um ovo normal, salvo algumas diferenças quantitativas.

Aqui, a regulação do que chamamos os organizadores espe-


cíficos se exerce de modo tal que, em relação a esses danos que
o ovo pode sofrer da parte dos elementos exteriores, a forma es·
pecífica a ser obtida encontra-se constantemente preservada e
mantida.

Do mesmo modo, e isto é apenas uma conseqüência, a rege-


neração que acontece em alguns animais e que faz com que es-
ses animais reencontrem, depois de uma mutilação, e salvo al-
gumas diferenças quantitativas, sua própria forma, mostra bem
que há uma espécie de dominação da forma sobre a matéria,
uma espécie de comando do todo sobre as partes.

Tudo isso para dizer que não foi sem profundidqde que um
biólogo do qual falei há pouco, Cannon, pôde intitular a obra
na qual ele expõe sumariamente esses mecanismos de regula-
ção: A sabedoria do corpo. Éum título do qual se pode rir, mas, to·
da via, sobre o qual merece que se reflita.
Escritos sobre a medicina 81

De fato, qual era a idéia antiga e pagã de sabedoria?

Passarei rapidamente sobre essa questão, para não cair sob o


golpe das críticas de meu amigo Schuhl. Direi que a idéia da sa·
bedoria era essencialmente a idéia da medida, do controle c do
domínio na condução da vida. Era o que preservava o homem
do domínio da desmedida, tentação permanente de desvio, de
aberração e de desdém pelo limite.

É certo que, para muitos pensadores gregos, os mais impor·


tantes, a idéia do universo, a idéia do Todo, era a idéia de un .
organismo são, ou seja, um organismo no qual todas as partes
concordam umas com as outras, estão presentes umas nas ou-
tras e no qual as rcla-;ões funcionais entre essas panes permane·
cem invariáveis. No interior desse Todo, no interior dessa o r·
dem, que é ao mesmo tempo vida, cada ser, inclusive o homem,
tem um lugar. Nesse lugar, ele deve trabalhar em cooperação
com o conjunto dos outros seres; deve respeitar as relações fun·
cionais de sujeição às exigências do Todo.

Essa idéia da sabedoria antiga talvez seja uma idéia enxer,


rada em uma imagem emprestada da intuição da vida. Eviden.·
temente, não é o corpo que é sábio, é a razão. Mas, quando se
fala da sabedoria do corpo, restitui-se ao corpo a imagem do
equilíbrio, na qual eu digo que talvez tenha sido enxertada,
em todos os casos foi certamente desenvolvida, a idéia de sa;
bedoria.

Ora, a obra de Cannon comporta um epjogo !ntitulado "Re·


lações entre a homeostase biológica e a homeostase social".
Aqui, Cannon cede à tendência própria a todo especialista: ele
cede a esta tentação partilhada entre o científico e o vulgar de
importar para a sociologia esse conceito magnífico de regulação
82 Georges Canguilhem

e de homeostase, do qual ele mostrou o mecanismo no decorrer


das páginas precedentes.
Esse livro de Cannon, digo isto imediatamente, pois esta
aproximação não é sem interesse, é a reprodução de conferên-
cias daoas por ele, em 1930, na Sorbonne. Ele era, então, pro-
fessor na Universidade de Harvard. Ora, 1930 foi o ano em que
Bergson dava o último retoque (talvez a correção das provas)
em Deux sources de la morale et de la religion. Portanto, temos
mais ou menos cerreza de que não houve influência. Mas ostra-
balhos de Cannon são muito anteriores, c Bergson, que lia tudo
e sabia tudo, podia conhecê-los. O que é interessante é ver que,
nos anos 1930-1932, Cannon e Bcrgson encontram o mésmo
problema: um o encontra a partir de sua biologi::l, o outro, a par-
rir de sua filosofia.
Éimportante dizer que o epílogo de Cannon sobre a homeos-
tase social é a parte mais fraca de seu livro. Em primeiro lugar, é
a mais curta; poder-se-ia dizer que ele foi modesto, que estava
fora de seu domínio, que avançou com prudência. Mas, além de
ser a mais curta, é também a mais fraca, porque, nela, a maioria
das assimilações é fundamentada nos lugares-comuns de pol:ri-
ca ou de sociologia, sem que se busquem os fundamentos.
Cannon se pergunta se não se encontrariam, na sociedad-:!,
exemplos de mecanismos de regulação amortecendo os desvios
e tendendo a compensar as desordens.

Eis aqui um exemplo que me permitirei ler: "~mprimeiro lu-


gar, é preciso notar que o próprio corpo político oferece rastros
de dispositivo grosseiro de estabilização. No capítulo preceden-
te, fonnuleí a idéia de que uma certa constância em um sistema
complexo é, em si mesma, a prova de que há mecanismos agin-
Escritos sobre a medicina 83

do ou prontos para agir a fim de defender essa constância. Do


mesmo modo, quando um sistema se mantém estável, ele conse-
gue fazê-lo porque a menor tendência a uma mudança é ime-
diatamente entravada pelo aumento da eficácia do ou dos fato-
res que se opõem a essa mudança. Uma tendência ao conser·
vantismo excita uma revolta dos elementos de esquerda que,
por sua vez, é seguida de um retomo ao conservantismo. Um go-
verno pouco severo, com as conseqüências que essa falta de se-
veridade acarreta, provoca a chegada ao poder de reformadores
cujo rigorismo trará agitação e o desejo de mais liberdade. Os no-
bres entusiasmos e os sacrifícios da guerra são seguidos de uma
apatia moral c de um excesso de indulgência para consigo mes-
mo." Eis agora a passagem na qual eu lhes peço para prestar aten-
ção: "Em uma nação, é raro que uma tendência tome uma força
tal que possa chegar ao desastre. Antes que esse extremo seja
alcançado, forças corretivas se elevam c detêm essa tendência;
de um modo geral, elas chegam a dominar de maneira absoluta,
de fom1a que elas prôprias provocam uma nova reação."
Não posso me impedir de aproximar essa observação de
Cannon das observações muito mais profundas feitas por Berg-
son, no final de seu livro Les deux sources ele la mor ale et ele la reU-
gion , sobre o que ele chama a lei da dicotomia e do duplo frenesi
das tendências.
Também para Bergson, a sociedade -vocês sabem que ela é
ao mesmo tempo fechada e aberta, quer dizer, conservadora,
tendendo à sua conservação como um organismo, mas buscan·
do ultrapassaNe, finalmente, em direção à Humanidade, tal
como oélan que, por meio da matéria, leva a existência univer-
sal em uma corrente infinita de criação -, a cada momento de
sua história, é orientada por uma certa tendência; uma tendên-
84 Georges Canguilhem

cia ganha da outra, mas quando uma delas chegou a uma espé-
cie de paroxismo, é a tendência contrária que, por sua vez, irá se
desdobrar.
Bergson, porém, não raciocina como Cannon, que parece
apegar~se, em sua erudição do corpo social, a uma espécie de
extensão da lei deLe Charelier: quando em um sistema em mo-
vimento algumas perturbações tendem a se exercer, a resistên-
cia a essas perturbações se produz em conseqüência das liga~
ções no interior do sistema. Bergson, pelo contrário, diz que se,
em um certo sentido, uma oscilação em tomo de uma posição
mediana, uma espécie de movimento pendular existe, o pêndu-
lo, no que conceme à sociedade, é dotado de memória e o fenô-
meno, na volta, não é mais o mesmo que na ida. De resto, a al-
ternância conservadora e reformadora, nesse exemplo evocado
por Cannon, é preciso dizê~ lo, não tem sentido para roda socie-
dade. Ela tem um sentido em um regime parlamentar, ou seja,
para um dispositivo político que é uma invenção histórica fei-
ta para canalizar o descontentamento. É um tipo de dispositi-
vo que não é inerente à vida social como taL É uma aquisição
da história, é uma ferramenta que uma certa sociedade se pro-
piciou.
Tendo pronunciado essa palavra-ferramenta, temarei agora
delimitar rapidamente as razões pelas quais nós não podemos
considerar uma sociedade como um organismo.
No que conceme à sociedade, devemos desfarer uma confu-
são que consiste em confundir organização e organ~mo. O faro
de uma sociedade ser organizada - e não há sociedade sem um
mínimo de organização - não quer dizer que ela seja orgânica.
Diria, de bom grado, que a organização, no nível da sociedade, é
mais da ordem do agenciamento do que da ordem da organiza·
Escriros sobre a medicina 85

ção orgânica, pois o que faz o organismo é precisamente o fato de


que sua finalid ade, sob forma de totalidade, esteja presente e es-
teja presente em todas as partes. Peço desculpas, pois talvez eu vá
escandalizá-los: uma sociedade não tem finalidade própria; uma
sociedade é um meio; uma sociedade é mais da ordem da máqui-
na ou da ferramenta do que da ordem do organismo.
Certamente, uma sociedade tem alguma semelhança com o
orgânico, já que ela é uma coletividade de vivos. Não podemos,
para falar com propriedade, decompor uma sociedade, mas, se a
analisamos, o que é bem diferente, descobrimos que uma socie-
dade é uma coletividade de vivos; essa coletividade, porém,
não é nem um indivíduo nem uma espécie. Ela não é um indiví-
duo porque não é um organismo provido de sua finalidade e de
sua totalidade obtida mediante um sistema especializado de
aparelhos de reglllação. Ela não é uma espécie porque é, como
diz Bergson, fechada. As sociedades humanas não são a espécie
humana. Bcrgson mostra que a espécie humana está em busca
de sua sociabilidade específica. Portanto, não sendo nem um
indivíduo nem uma espécie, a sociedade, ser de um gênero am-
bíguo, é máquina tanto quando vida, e, não estando seu fim
nela própria, ela representa simplesmente um meio, ela é uma
ferramenta. Por conseguinte, não sendo um organismo, a socie-
dade supõe e mesmo apela para regulações. Não há sociedade
sem regulação, não há sociedade sem regra, mas não há, na so-
ciedade, auto-regulação. Nela, a regulação é sempre acrescen-
tada, se assim posso dizer, e sempre precária.
De modo que se poderia perguntar, sem paradoxo, se o esta-
do normal de uma sociedade não seria mais a desordem e a crise
do que a ordem e a harmonia. Ao dizer "o estado normal da so-
ciedade". quero dizer o estado da sociedade considerada como
86 Oeorgcs Canguilhem

máquina, o estado da sociedade considerada como ferramenta.


É uma ferramenta sempre desregulada, porque desprovida de
seu aparelho específico de auto-regulação. Ao dizer "o estado
normal", não quis dizer o ideal da vida humana. O ideal da vida
humana não é nem a desordem nem a crise. Mas é precisamen-
te por isso que a regulação suprema na vida social, que é a justi-
ça, mesmo que haja na sociedade instituições de justiça, não fi-
gura sob a forma de um aparelho que seria produzido pela pró-
pria sociedade.

Na sociedade, é preciso que a justiça venha de outro lugar,


foi o que Bcrgson mostrou. A idéia bergsoniana é muito mais
profunda do que parece, não diria a uma leitura rápida- pois,
então, não se compreenderia - , mas mesmo a uma leitura séria
e atenta. Eu me pergunto, precisamente, se a disttinção e a opo-
sição que ele faz entre a sabedoria e o heroísmo não vão ao en-
C.:lntro dessa idéia de que a justiça não pode ser uma instituição
social, de que a justiça não é uma regulação inerente à socieda-
de, a justiça é outra coisa completamente diferente. Já em Pia-
rão, a justiça não era inerente a uma parte do corpo social, era a
forma do rodo. Se a justiça, que é a forma suprema da regulação
da sociedade humana, não é congênita à própria sociedade, ela
não é exercida por uma instituição situada no mesmo nível que
as outras instituições. Talvez isso nos ajude a compreender um
fato: não há sabedoria social tal como há sabedoria orgânica.
Não é necessário tomar-se clarividente pelo fato de se ter nas-
cido em uma certa espécie que rem olhos, que só pode mo-
ver-se, só pode viver sob a condição de se mover n_a luz (à dife-
rença de uma planta que vive crescendo na luz). Uma vez que
temos olhos, vemos, mas não somos sábios do mesmo modo
como vemos com seus olhos. Não há uma sabedoria social tal
como há uma sabedoria do corpo. Sábio, é preciso tomar-se, c
Escritos sobre a medicina 87

justo, é preciso tornar-se. O sinal objetivo de que não há justiça


social espontânea, quer dizer, não há auto-regulação social, de
que a sodedade não é um organismo e que, por conseguinte,
seu estado normal é talvez a desordem e a crise, é a necessidade
periódica do herói experimentada pelas sociedades.
Entre a sabedoria e o heroísmo há a impenetrabilidade.
Onde há sabedoria, não se precisa do heroísmo, e quando o he-
roísmo aparece, é porque não houve sabedoria. Em outros ter-
mos, é pela ausência de sabedoria social, pela ausência de ho-
meosrase social, pela ausência dessas regulações que fazem com
que um organismo seja um organismo, é precisamente pela au·
sência disso que se explica para o homem a crise social chegada
a tal ponto que a própria existência da sociedade aparece amea-
çada. Neste momento, há o que Bcrgson chama "o apelo ao he-
rói", c o herói é aquele que, uma vez que os sábios não resolve-
ram o problema, não evitaram que o problema se apresentasse,
vai encontrar, vai inventar uma solução. Naturalmente, ele só
pode inventar a solução em situações extremas, só pode inven-
tá-la no perigo.
Essa é a razão pela qual acrediro haver uma ligação essencial
entre a idéia de que a justiça não é um aparelho social e a ídéía
de que, até o momento, nenhuma sociedade pôde sobreviver
senão por meio das crises e graças a esses seres excepcionais que
se chamam heróis.
Nessas condições, caso eu não tenha lhes provado, caso não
tenha sido bem-sucedido - e estou bem longe disso- nesse es-
forço ao qual muito generosamente fazia alusão o presidente
dos senhores, se não consegui lhes provar (e, além do mais, nes-
sas matérias não há provas) que a sociedade não é um organis·
mo, que não se deve deixar dizer que ela pode assemelhar-se a
88 Georges Canguilhem

um organismo, e que, portanto, é preciso estar mui co vigilante a


respeito de todas as assimilações cujas conseqüências são as que
os senhores bem podem imaginar - , se não consegui demons·
trá-lo~ eu ficaria feliz simplesmente por ter, pelo menos, sabido
apresentar-lhes alguns problemas, os mesmos que coloco para
mim, de uma forma tal que lhes tenham parecido dignos de sua
reflexão.

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