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Canguilhem
• FILOSOFIA •
Escritos
sobre a
Medicina
Tradução:
Vera Avellar Ribei ro
Revisão Técnica:
Manoel Barros da Mona
Prefácio:
Armand Zaloszyc
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FORE NSE
UNIVERSITÁRIA
l' edição- 2005
I!) ltiJI\'Ti~/,j
t\s referência~ de p1·imcira puulic;1ç:,o de .:ada um do~ rcxiOS
figur;un no início do volume.
Prefácio ......................................... 7
As doenças ...................................... 23
Referências
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GRM EK, M. O. us maladies à l'aube de la civilisatian occidentale. Paris:
Payot, 1983.
34 Georges Canguilhem
Será que podemos, será que devemos dizer que as funç ões do
organismo são objetos de ciência, mas não o que Claude Ber-
nard nomeava como "as relações harmônicas das funções da
economia" (Leçons sur le diabete, p. 72)? Aliás, o próprio Claude
Bernard o disse expressamente: "Em fisiologia, não há senão
condições próprias a cada fenômeno que é preciso exatamente
determinar, sem se perder em divagações sobre a vida, a morte,
a saúde, a doença e outras entidades de mesma espécie" (ibid.,
p. 354) . Isso não proibiu Cbude Bernard de utilizar, mais
adiante, a expres~ão "organismo em estado de saúde" (ibid.., p.
421).
Todavia, o Tratado de Starling contém, na Introdução geral,
uma observação que pode passar por menor, e que creio dever
revelar. Indica-se ali, em consideração aos estudames, que o
termo mecanismo, com freqüência utilizado para expor o modo
de exercício de uma função orgânica, não deve ser levado de-
masiadamente a sério (This rarher ovenvorked word need not to
be taken too seriously ... ).
Vemo-nos, aqui, fortalecidos na recusa de assimilar a saúde a
um efeito necessário de relações de tipo mecânico. A saúde,
verdade do corpo, não está referida a uma explicação por teore-
mas. Não há saúde de um mecanismo. Aliás, o próprio Descar-
tes no-lo ensina, em sua Sexta meditação, ao negar que haja uma
diferença entre um relógio regulado e um relógio desregulado,
ao passo que há uma diferença de ser entre um relógio desregu-
lado e um homem hidrópico, ou seja, um organismo que a sede
leva a beber a contra-senso. Éum erro da natureza ter sede, diz
Descartes, quando beber é nocivo. Por saúde, Descartes enten-
de "aliquid [... ] qtwd Teilefa in rebu.s reperitur, ac proinde nonnihil
haber vericatis ". Pata a máquina, o estado de marcha não é a saú-
Escritos sobre a medicina
aplicada. Ora, nunca foi tão difícil alegar uma tal demonstração
como nos dias de hoje, devido ao uso do método do placebo, 1 das
observações da medicina psicossomática, do interesse concedi-
do à relação intersubjetiva médico-doente e da assimilação, por
alguns médicos, de seu poder de presença ao próprio poder de
um medicamento. Doravante, em se tratando de remédios, a
maneira de os dar vale mais, por vezes, do que o que é dado.
Em suma, pode-se dizer que, para o doente, a cura é o que a
medicina lhe deve, ao passo que, para a maioria dos médicos,
ainda hoje, a medicina deve ao doente o lratamc::nto mais be m
estudado, experimentado e testado até o momento. Disso de-
corre a diferença entre o médico e o curandeiro. Um médico
que não curaria ninguém não deixaria de ser um médico de di-
reito, habilitado como ele o é por um diploma que sanciona
um saber convencionalmente reconhecido para tratar dos
doentes cujas doenças são expostas em tratados quanto à sin-
tomatologia, à c~iologia, à patogenia e à terapêutica. Um cu-
randeiro só pode sê-lo de fa to, pois ele não é avaliado sobre
seus "conhecimentos", mas sobre seus sucessos . Para o médico
C para O curandeiro, a relação COm a C'Jra é invertida. 0 médi-
CO está habilitado publicamente a pretender curar, ao passo
que é a cura, experimentada c declarada pelo doente, mesmo
quando clandestina, que atesta o "dom" do curandeiro em um
homem cujo poder infundido, com muita freqüência, foi reve-
lado pela experiência dos outros. Para se instruir sobre esse as~
sunto ninguém precisa ir até os ''selvagens". Mesmo na Fran-
1Cf. F. Dagognet, La raíson et lts ranecks, P:~r is, PUF, 1964, cap. l, notada·
mente; P. KiS5el e D. Barrucand, Pku:ebos et eff~t placebo en méckcine, Paris,
Masson, 1964; D. Schwartz, R. Flamant,J. Lellouch, L'essai thérapewiqut cite~
l' homme, Paris, Flammarion, 1970.
Escritos sobre a medicina 51
* *.
Embora os médicos, de um modo geral, sejam críticos a res~
pci to da noção popular de cura, não é proibido tentar sua legi ci-
mação. Nossa língua conhece curar, verbo ativo, c curar, verbo
inrra nsitívo, como florir ou triunfar. Popularmente, curar é
ree ncontrar um bem comprometido ou perdido, a saúde. Ape~
sardas implicações sociais e políticas desse conceito, devido ao
fa to recente de que a saúde é, por vezes, percebida como um de~
ver a ser observado do ponto de vista dos poderes sociomédicos,
a saúde continuou sendo, na realidade, o estado orgânico do
qual um indivíduo se considera juiz. Mesmo que os médicos es-
tejam fundamentados para achar ilusória a saúde definida
como vida no silêncio dos órgãos (René Leriche), lembrando
que o silêncio pode mascarar uma lesão que já tenha alcançado
um estágio irremediável, ocorre que se portar bem, quer dizer,
comportar-se bem nas sicuações as quais se deve enfrentar, é
58 Georges Canguilhem
12
Para as diferentes concepções e avaliações da cura, cf. J. Sarano, La f!dri·
son, PUF, Col. "Que sais-je!".
Escritos sobre a medicina 59
recusam reconhecer que se fez por eles tudo o que lhes era devi-
do. Éque a saúde e a cura resultam de um gênero de discurso di-
ferente daquele por meio do qual se aprende o vocabulário e a
sintaxe nos tratados de medicina e nas conferências de clínica.
Quando, em 1865, Villemin expôs as provas, que acreditava
sólidas, da contagiosidadc da tuberculose, estava longe de con-
seguir a adesão de seus contemporâneos, dos quais muitos pen·
savam, como Bricheteau, fazendo alusão às Prescrições draco-
nianas em vigor desde o século XVIII, na Espanha e no reino
das Duas Sicílias, que a idéia de cot.tágio só pôde nascer na ima-
ginação dos habitantes do sul. 13 De algum modo, os médicos in-
tegraram à sua concepção da doença uma reação popular de pa~
vor e de rejeição exatamente quando lutavam contra ela. Éque
entre a tuberculose humana c a tuberculose bovina ou aviária,
sobre cuja identidade ou diferença se discutia ainda. a medicina
constatava a presença ativa de um detenninante que é preciso
nomear, na falta de outro melhor, como psicológico. 14 A tuber-
culose era objeto de terror, como a lepra o fora na Idade Média.
Nomear a doença agravava os sinromas. 15 Pois a doença acarre-
13
Sobre a história da tuberculose, c f. M. Piery c J. Roshcm, Histoíre de Ta tuber.
culost, Paris, Doin, 1931; Ch. Coury, La tuberculose au cours des âges, Sures-
nes, Lepetit, 1972.
14
J.-B. Pontalis reconhece a ambigüidade do termo psicologia, designando ao
mesmo tempo a disciplina e seu objeto, como se a representação de si jíi fosse
constitutiva do sujeito representante (Entre k rê11e etia douleur, Paris, Galli-
mard, 1977. p. 135).
15
Cf.]Olcrnal dt Marie Ba.shkirtseff. "Potain nunca quis dizer que os pulmóes
eram atingidos; em semelhantes casos, ele empregava as f6rmula5 r'Omuns os
brônquios, a bronquite etc. É melhor ~aber em termos exatos... então eu ~u
mico! Háapenas dois ou três anos. Em suma, não está tão avançado para que
eu mon a disso, só que é bastante incômodo" (quinta-feira, 28 de dezembro de
1882). Noce-se que foi em 1882 que Koch identificou o bacilo tuberculoso.
60 Georges Canguilhem
19Essa.s. duas
citações foram tomadas emprestado de K. Wagenbach, l<afl<a
par lui-même, Paris, Seuil, 1968, p. 137-138.
Escritos sobre a medicina 63
que doença e cura estão inscritas nos limites e nos poderes das
regulações biológicas? Mas as normalidades biológicas só têm
como garantia seu aco ntecimento, a não ser que se lhes dê um
fundamento metafísico no q ual não é proibido ver-se apenas a
consagração do próprio acontecimento. É preciso que a vida
seja um dado para que se possa acreditar sua possibilidade ne-
cessária.
2J lbid .• p. 360.
66 Georges Canguilhem
tre duas pessoas das quais uma quer ajudar a outra a adquirir
~ma estruturação tão conforme quanto possível à sua essência.
E por realçar a relação existente entre médico e paciente que o
ponto de vista médico moderno se opõe, de modo mais nítido,
àquele dos médicos do final do último século, cujos hábitos de
pensamento eram próprios às ciências físicas". 2+
Porém, mais do que se surpreender, é preciso buscar com,
preender. A indiferença ou a hostilidade da grande maioria dos
médicos para com as questões que lhes são formuladas, por
meio de a)guns movimentos de contestação interiores à sua
profissão, quanto ao abandono de sua vocação para curar em
benefício de tarefas regulamentadas de descoberta das pistas,
de tratamento c de controle, pode ser explicada pelas razões a
seguir. Nada é mais difundido e mais rentável, nos dias de hoje,
do que uma proclamação anti-x. Foi a antipsiquiatria quem deu
a partida, e a antimedicalízação a seguiu. Muito antes das exor,
tações de Ivan Illich à recuperação pelos indivíduos da regulari-
zação de sua saúde, à autogesrão de sua cura e à reivindicação
de sua morte, as repercussões da psicanálise e da psicossomáti·
ca, no nível de vulgarização próprio à mídia, popularizaram a
idéia de uma conversão do doente, almejável e possível, em. seu
próprio médico. Acreditou-se inventar quando, na realidade,
se retomava o tema milenar do médico de si mesmo. 25 Como os
tempos estão diflceis e os mercados, raros, uma quantidade cres,
cente de praticantes de terapêuticas não científicas- a ciência,
eis aí o inimigo - se vangloria de obter o que ela recrimina como
negligência e falta por parte dos médicos. Disso decorre o apelo
aos doentes decepcionados: venham nos dizer qué vocês que·
24Ibid., p. 361.
25
C(. Le médecin de soi-même, por E. Aziza-Schuster, Paris, PUF, 1971.
Escritos sobre et medicina 67
26
Um grande canccrologista de Toulousc, conhecido justamente por sua de-
dicação generosa, por sua preocupação incansável quanto aos problemas pes-
soais de seus doente.s, ensinava que, no que conceme à úlcer. de estômago, 0
diagnóstico podia ser feito por telefone.
68 Georges Canguilh~m
cina ainda em busca de sua melhor textura. Brutus pode sair de-
las indo ver um curandeiro.
Em suma, porque os médicos negligenciam indagar pacien·
temente a eventual aflição afetiva de seus clientes, preocupa·
dos, por outro lado, com a atualidade de sua competência, será
que se deve concluir por sua inferioridade em relação ao pri·
meiro terapeuta que chegou prevalecendo-se da psicossomáti~
ca? Este último seria mais qualificado para obter a cura <te uma
obesidade, a princípio consecutiva a comportamentos alimen-
tares de compensação afetiva, mas doravame comandada por
uma desregulação tireoidiana ou supra-renal? Em matéria de
reducionismo em terapêutica, o psicologismo valeria mais do
que o fi siologismo?
Suponhamos, então, resolvido o problema do tempo neces-
sário a longas consultas terapêuticas, que equivale ao problema
da multiplicação inevitável e da remuneração de médicos for-
mados para escutar a queixa embaraçada de seus clientes. Será
preciso introduzir na formação hospitalar-universitária dos fu-
turos médicos um ensino da participação "conviva)" e, con.se·
qüentemente, dos testes e dos exames de aptidão para o conta·
to humano? Será preciso resolver a dificuldade diferentemente,
po r meio da criação de equipes de saúde, nas quais alguns médi-
cos e um pessoal paramédico fortemente motivados se empe·
nhem em recriar as relações dos indivíduos com o corpo, com o
trabalho, com a coletividade? Es~: soluções que, de bom gra·
do, se dizem de esquerda, estão isentas de todo conluio com
uma ideologia de direita? O contato humano não se ~nsina nem
se aprende como a fisiologia do sistema neurovcgetativo. Afas·
ta r da profissão médica quem não fosse dotado para a participa-
ção "conviva!" equivaleria a instituir um novo CTité~o de sele·
Escritos sobre a medicina 69
***
Uma coisa é obter a saúde que se acredita merecer, outra coi-
sa é merecer a saúde que nos propiciamos. Neste último senti·
do, a parte que o médico pode ter na cura consistiria, uma vez
prescrito o tratamento exigido pelo estado orgânico, em ins-
truir o doente sobre sua responsabilidade, que não pode ser de-
legada, na conquista de um novo estado de equilíbrio com as
solicitações do meio ambiente. O objetivo do médico, assim
como o do educador, é o de tornar sua função inútil.
Não parece indispensável celebrar sem discernimento as vir·
tudes de uma medicina selvagem para confirmar críticas evoca-
das por algumas práticas do corpo médico civilizado. Mas pare-
ce tet chegado o tempo de uma Crítica da razão médica prática
que reconheceria explicitamente, na prova da cura, a necessá-
•.-.a colaboração do saber experimental com o não-saber propul-
sivo c :::sse a p;iori de oposição à lei da degradação, do qual a saú-
de exprime um sucesso sempre reposto em questão. Por essa ra-
zão, se uma pedagogia da cura fosse possível, ela deveria com-
portar um equivalente ao que Freud chamou "prova de realida-
70 Georges Cl'lnguilhem
Tudo isso para dizer que não foi sem profundidqde que um
biólogo do qual falei há pouco, Cannon, pôde intitular a obra
na qual ele expõe sumariamente esses mecanismos de regula-
ção: A sabedoria do corpo. Éum título do qual se pode rir, mas, to·
da via, sobre o qual merece que se reflita.
Escritos sobre a medicina 81
cia ganha da outra, mas quando uma delas chegou a uma espé-
cie de paroxismo, é a tendência contrária que, por sua vez, irá se
desdobrar.
Bergson, porém, não raciocina como Cannon, que parece
apegar~se, em sua erudição do corpo social, a uma espécie de
extensão da lei deLe Charelier: quando em um sistema em mo-
vimento algumas perturbações tendem a se exercer, a resistên-
cia a essas perturbações se produz em conseqüência das liga~
ções no interior do sistema. Bergson, pelo contrário, diz que se,
em um certo sentido, uma oscilação em tomo de uma posição
mediana, uma espécie de movimento pendular existe, o pêndu-
lo, no que conceme à sociedade, é dotado de memória e o fenô-
meno, na volta, não é mais o mesmo que na ida. De resto, a al-
ternância conservadora e reformadora, nesse exemplo evocado
por Cannon, é preciso dizê~ lo, não tem sentido para roda socie-
dade. Ela tem um sentido em um regime parlamentar, ou seja,
para um dispositivo político que é uma invenção histórica fei-
ta para canalizar o descontentamento. É um tipo de dispositi-
vo que não é inerente à vida social como taL É uma aquisição
da história, é uma ferramenta que uma certa sociedade se pro-
piciou.
Tendo pronunciado essa palavra-ferramenta, temarei agora
delimitar rapidamente as razões pelas quais nós não podemos
considerar uma sociedade como um organismo.
No que conceme à sociedade, devemos desfarer uma confu-
são que consiste em confundir organização e organ~mo. O faro
de uma sociedade ser organizada - e não há sociedade sem um
mínimo de organização - não quer dizer que ela seja orgânica.
Diria, de bom grado, que a organização, no nível da sociedade, é
mais da ordem do agenciamento do que da ordem da organiza·
Escriros sobre a medicina 85