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O REVIRÃO MÍSTICO-PORNOGRÁFICO NA OBRA LITERÁRIA

DE HILDA HILST
Nelma Medeiros*

1. Para o crítico literário Harold Bloom, os grandes poetas são aqueles com “o poder de
despertar seus leitores para um implícito poder de resposta, “um antes não sentido senso
de possibilidades do eu” (Bloom, 1996, p. 20). Ora, para que esse poder de resposta ganhe
corpo e eventualmente se torne obra, é preciso travar uma luta incessante para superar
poderosos obstáculos e resistências. Assim acontece, porque formações sintomáticas de
toda ordem, ora estimulam, ora estacionam, ora fazem retroagir tais possibilidades e sua
força subversiva.
Em Presságios do milênio, de onde foi extraído o trecho acima, Bloom ajuda a
pensar sobre esse vai e vem agonístico, ao lembrar que William James chamava de
“revelação anestésica” a experiência de sacar coisas importantes a respeito de si próprio,
em algum estado de exaltação que, no entanto, acaba se revelando improdutivo. Seja
porque a música para, o gozo sexual desvanece, o efeito das drogas e do álcool passa ou
a vigília suplanta o sonho, o que resta é uma ressaca física ou psíquica, um reinstaurado
estado de hipnose inindentificável com precisão, e nenhuma prova de realidade para
registrar a suposta revelação. Para Bloom, “uma transcendência que não se pode expressar
de algum modo é uma incoerência”. Simplificaria: às vezes, é só wishful thinking. Quanto
à “verdadeira transcendência”, prossegue Bloom, esta é comunicável “pelo domínio da
linguagem, pois metáfora é uma transferência, uma passagem de um tipo de experiência
para outro” (idem, p. 23).
Minha suposição é de que a poeta e escritora brasileira Hilda Hilst tinha isso
intensamente presente. Não apenas sua obra literária é da estirpe dos poetas que abrem
ao leitor “um antes não sentido senso de possibilidades do eu”, como também é ela própria
uma afirmação soberana, solitária e ímpar de uma travessia, de uma transcendentação, no
sentido gnóstico de Bloom1. Em vários momentos de seu fazer literário, essa distância é
assumida para, em seguida, cutucar o leitor, provocá-lo, ora, como que conduzindo-o pela
mão, através de seu grande poder de abstração e refinamento; ora, de maneira irreverente,

*
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e NovaMente/Colégio Freudiano do Rio de Janeiro.
1
A tradição gnóstica preza pelo conhecimento da identidade com o divino, que não é outra coisa senão o
conhecimento da centelha de luz própria a cada um, que faz colapsar a suposta distinção entre um mundo
divino “exterior” e um mundo humano “interior”. Claudio Willer levantou a presença dessa tradição na
poesia moderna, tomando o cuidado de incluir a obra hilstiana. (Willer, 2010).
debochada ou sarcástica, destratando o famigerado leitor, considerado, no mínimo,
ignorante, sem estar à altura da obra que tem em mãos, exortando-o a que acorde, se
oriente, se informe; ora deceptivamente, em atitude desistente, como se adviesse o
silêncio definitivo e, com ele, a impossibilidade de comunicação. Em todas as situações,
perpassa uma postura que ficou evidente ao longo da vida e da obra da autora: uma
afirmação altaneira da singularidade do trabalho que consumia sua vida, seus esforços,
seu tesão. Não importava o que (não) dissessem, as monótonas demandas para que
explicasse o “hermetismo” de seus textos, a crítica ácida, a incompreensão do leitor, a
recusa dos editores promissores e a precariedade das tiragens obtidas, o ressentimento
eventual com o fato de não ser lida e reconhecida pelos brasileiros utentes da língua,
ignorantes de como essa matéria-prima se transformava em suas mãos. O gesto estava
sempre ali.
As diversas entrevistas que concedeu ao longo da vida o registraram (Diniz,
2013). Afirmou sentir, muitas vezes, que a poesia é incomunicável, repetindo os versos
de seu livro de estreia, Presságio, em 1950: “Estão terrivelmente sozinhos / os doidos, os
tristes, os poetas”. Anos depois, reconhecia que a poesia já não lhe bastava como veículo
e mensagem de comunicação – pois “vivemos num mundo em que as pessoas querem se
comunicar de uma forma urgente e terrível” –, razão pela qual procurara o teatro (idem,
p. 25). Estamos no final da década de 1960. Na sequência, instada a falar sobre sua
produção literária – e já tendo enveredado pela prosa, com a publicação de Fluxo-floema,
em 1970, e Kadosh, em 1973 –, afirmava que sua obra era um desnudamento e uma
provocação de perplexidade, incitando o leitor a fazer a pergunta (idem, p, 34).
Na dicção poética também encontramos a provocação: “Uma pergunta brusca /
Enquanto tu caminhas pela rua. Te pergunto: / E a entranha? / De ti mesma, de um poder
que te foi dado / Alguma coisa clara se fez?”, para, na sequência, lançar o chamamento:
“Por que não tentas esse poço de dentro / O incomensurável, um passeio veemente pela
vida? / Teu outro rosto. Único. Primeiro. E encantada / De ter teu rosto verdadeiro,
desejarias nada” (Hilst, 2017, p. 297).
Em outra entrevista, dessa vez concedida ao amigo e crítico Leo Gilson Ribeiro,
por ocasião do lançamento do livro Tu não te moves de ti, em 1980, Hilda Hilst declarava
que escrever é a oportunidade de dar ao leitor “uma grande abertura de intensidade”,
mostrando-lhe ser possível “desvendar seu ‘eu’ desconhecido”, com vistas a “uma
compreensão definitiva de si mesmo, com suas potencialidades, falhas e virtudes” (Diniz,
op. cit., p. 57). Isso foi praticado em sua própria obra, que se pode tomar como biografia
espiritual. À maneira de Nietzsche, afirmava: “meu trabalho é aquele instante, um
segundo antes da flecha ser lançada, a tensão do arco, a extrema tensão, o sol incidindo
no instante do corte, é a rapidez de uma navalha que com um golpe lancinante, fulminante,
corta o teu pescoço” (Diniz, op. cit., p. 62). Também Hilda Hilst forjou seu martelo2.
Mais tarde, em entrevista concedida ao amigo e escritor Caio Fernando Abreu –
estamos em 1987 –, parece haver uma mudança sutil no entendimento da autora sobre sua
obra e seu percurso até ali. O tom é desinteressado, indiferente ao leitor, quase
condescendente, se não mesmo irônico. Afirma Hilda:
Tive um certo ressentimento de não ser lida, porque quando comecei a escrever
ficção, senti que minha prosa era um passo à frente. Aí, com os outros livros,
fui entendendo melhor o que acontecia. O tipo de problemas que eu levantava,
as pessoas não queriam pensar neles. As pessoas estão lá, vivendo sua vida
bem arrumada, com filhos, compromissos – e de repente venho eu e começo a
fazer várias perguntas inquietantes. [...]. Por que ele [o leitor] deveria se abalar
com a loucura que me deu quando eu vi uma avenca negra? (Diniz, op. cit., p.
98).
Já depois de publicado seu último livro de prosa, Estar sendo, ter sido, em 1997,
Hilda recebe a equipe do Cadernos de Literatura Brasileira¸ do Instituto Moreira Salles.
Nessa longa entrevista, dá outro testemunho, no tocante a ser lida ou não, entendida ou
não: “Isso não me importa mais. Pode ser chato para os outros, mas eu não tenho mais
motivação. (...) Não me interessa mais o mundo da Terra”. E afirma o contrário do que
dissera em entrevistas anteriores: “Nunca pensei no leitor. Eu não tenho nada a ver com
o leitor. [E isso] não é uma saída amargurada. Eu não sinto nada de grave”. (Instituto
Moreira Salles, p. 40).

2. Parafraseio a pergunta exórdio de Alcir Pécora: como não ler Hilda Hilst? (Pécora,
2010). Dada a versatilidade e grau abstrativo de sua literatura, esse “como ler” tem
inúmeras possibilidades. A crítica literária já destacou a vitalidade da escrita hilstiana,
expressa em poesia, prosa, teatro e crônica, presente também em suas entrevistas,
inventando uma posição sui generis no cenário literário brasileiro. Uso aqui a ideia de sui
generis como “gênero próprio”, fusionando a discussão cultural, filosófica, literária e
pessoal dos “gêneros”, a partir de uma perspectiva unívoca, fornecida pela Nova
Psicanálise (Magno, 2017). Assim, e já adiantando a chave de leitura que utilizarei para

2
Em alusão à condição nietzschiana de filosofar com o martelo, em declaração de guerra aos ídolos
(Nietzsche, 2006).
explorar o tema proposto nesse texto, parto da analogia entre o funcionamento psíquico
da sexualidade e os arranjos sintomáticos que a cultura lhe empresta, para mostrar que há
uma descontinuidade entre o campo dos possíveis, onde se jogam todas e quaisquer
expressões sexuais – justamente porque o sexual de última instância é desejo de
impossível –, e os processos que realizam essas possibilidades, em regime de exclusão
(nem sempre ad hoc). Dito de outra maneira, o ápice da sexualidade é funcionar como
experiência de desejo de impossível. É haver desejo de gozo absoluto que, se acontecesse,
calaria de vez a repetição do tesão. Mas isso não há. Nesse sentido, aliás, situamos a
transcendência a que Bloom se refere, na dicção poética “verdadeira”: o empuxo de
ultrapassar, trans-cender, trans-itar, trans-portar (a metáfora como transporte,
transferência), em definitivo, cuja realização bate no limite absoluto da impossibilidade
de calar o desejo. Estamos condenados à condição psíquica de transeuntes, pois o desejo
de impossível transcende os possíveis de ser e ter3, deixando neles a marca da
perplexidade, da indiscernibilidade, do nada que é a nossa condição, para usar uma
proposição de João Guimarães Rosa (Rosa, 1985).
Ao mesmo tempo, é exatamente esse não estar situado, essa condição originária
de nadificação que nos disponibiliza para sacar que haver (desejo) é já estar embarcado
em algum processo de transcendentação. As trapalhadas do tesão4 já nos pegaram e, nem
por isso, deixamos de (poder) subvertê-las, ao dizer sim ao fardo e ao fado que nos foram
sorteados, em pura afirmatividade, e, com isso, acrescentar mundo à medida que nos
tornamos vetores de transcendentação. Daí que a sexualidade é genérica, antes de ser
uma questão de gênero, mas também absolutamente singular ou sui generis, se
expressando no passo a passo da existência de cada um e a partir dos engates do tesão
que ali acontecem5.
Então, retornando ao modo literário singular de Hilda Hilst, aplico à sua obra o
raciocínio que a psicanálise aplica ao entendimento da expressão sexual de uma pessoa:
“o gênero há de ser tão artístico quanto uma obra de arte. Cada um inventa sua

3
Magno propõe um distinção conceitual e de nível lógico-operativo entre Haver e Ser: a experiência
fundamental, como fato bruto, de um lado, e a ordem sintomática modalizada, de outro, que articulamos
em resposta a e causado pela experiência, sem nunca recobri-la (Magno, 2009).
4
Como Magno traduz jocosa e seriamente a ideia freudiana das “vicissitudes da pulsão”. (Magno,
5
A questão do gênero e o modo como a psicanálise a considera são tratados longamente por Magno em seu
SóPapos 2015. Por se afastar demais do tema, simplifiquei a abordagem, o que comprometeu a compleição
mais ampla e complexa do problema. Pois nossa base histórica biótica deve ser incluída, com seus
elementos etossomáticos, junto com as demais sobredeterminações culturais, das quais resultam seleções
de gostos e estéticas muito particulares para cada um. Sem falar na possibilidade de subversão psíquica por
revirão.
performance genérica” (Magno, 2017, p. 137). Extraio daí uma consideração importante:
ao tomar a versatilidade da obra literária hilstiana como análoga à versatilidade sexual
que está em aberto para uma pessoa, acrescento que essa obra é vetor transmissor de
conhecimento. E, novamente, conhecimento em sentido freudiano, já que toda e qualquer
forma de conhecimento sempre tem sentido sexual. Por duas razões: seja porque o sexual
é, em seu ápice, o desejo de atingimento do impossível e a secção imposta por não haver
esse gozo absoluto, o que faz abrir o campo para os gozos possíveis – onde os processos
de interdição emergem e se instituem, tapeando as pessoas sobre o proibido e o permitido;
seja porque o sexual é o impulso para atingir qualquer coisa, pois qualquer interesse é
ressonância do único e mesmo movimento de tesão. Então, “seja qual for a motivação do
conhecimento, a pulsão de conhecer é o tesão de investir na transa desveladora das coisas”
(Magno, 2014, p. 26). A obra de Hilda é conhecimento, incita ao conhecimento, é
insistência em desvelar mundos, nos relembra e comemora a condição solitária-desejante-
secante da pessoa.

3. Afinal, que obra é essa? De Presságio, primeiro livro de poesias, a Estar sendo, ter
sido, prosa publicada em 1997, foram praticamente cinco décadas de trabalho literário.
Depois disso, Hilda Hilst declarou que terminara de escrever, tendo falado “tudo o que
tinha para falar” (Instituto Moreira Salles, 1999, p. 32), embora haja produção inédita em
seu acervo, disponível ao público no Centro de Documentação Alexandre Eulálio da
UNICAMP, além do que vem sendo divulgado pelo trabalho de curadoria desenvolvido
pelo Instituto Hilda Hilst. Da poesia, que inaugurou seu trabalho e ocupou as décadas de
1950 e 1960, a autora voltou-se para o teatro, com oito peças escritas entre 1967 e 1969,
iniciando, concomitantemente, a produção em prosa, que, daí em diante, alternou-se com
a produção poética, acrescida de crônicas escritas e publicadas no jornal campineiro
Correio da Manhã, entre 1992 e 1995.
O trabalho inestimável de Alcir Pécora trouxe ao público, nos anos 2000, as obras
reunidas da poeta, cada um dos vinte livros do projeto editorial sendo precedido de uma
“Nota do organizador”, com pistas básicas sobre estilo, tema, fontes e modo de
articulação do livro em questão, situando-o no escopo da obra. Essa iniciativa, de
envergadura, pode contar com a supervisão da própria autora e facilitou ao público o
acesso a uma produção que, até então, estava mais ou menos dispersa em edições
variadas, algumas de pequena tiragem e de difícil acesso. Mais tarde, outra iniciativa
editorial publicou a obra poética e de prosa em dois volumes. À essa altura, no final da
década de 2010, Hilda Hilst, que morrera em 2004, antes de completar 74 anos, já era um
pouco menos desconhecida dos brasileiros e, como é de costume entre nós, rapidamente
virou produto de consumo, buchicho em jornais, apelo publicitário, grife e badalação
literárias, como foi o caso da Feira Literária de Paraty, cuja edição de 2018 lhe foi
dedicada. Sua obra, contudo, permanece um manancial a explorar.
Vimos que o caminho começou com a poesia. Por volta de 1970, quando publicou
seu primeiro livro de prosa (Fluxo-floema), algo em sua criação literária começou a
evidenciar mais nitidamente a viga mestra que sustentaria seu trabalho, mostrando-se em
toda as suas consequências na obra dos anos 1990, notadamente no que se convencionou
chamar de tetralogia obscena (O caderno rosa de Lori Lamby; Contos d’escárnio. Textos
grotescos; Cartas de um sedutor; Bufólicas). A dinâmica da produção literária foi se
fazendo em metamorfose, o teatro influenciando a prosa (Fluxo-floema ou Kadosh), que,
por sua vez, incide na poesia (a partir de Júbilo, memória, noviciado da paixão),
deslocando sua dicção para uma lírica amorosa singular, cujo erotismo carrega, em seu
âmago, algo de terrível, descabido, inesgotável, deceptivo, derrisório, último nas
aparências. Em uma palavra, o incansável desejo de impossível.
Ainda outro caminho que chama a atenção é a locução da prosa poética, que se
faz às custas da ideia tradicional de enredo e narrativa, e sua espessura personalógica: eis
o que não há em Hilda Hilst. Ao contrário, o que se vê são vozes fragmentárias, esteadas
em nomes próprios, cuja estranheza é solidária das ficções nas quais atuam: Kadek,
Hamat, Hiram, Riolo, Lu, Lih, Lucas, Naim, Koyo, KleinKu, Jozú, Guzuel, Jesuelda,
Stamatius, Karl, Cordélia, Crasso, Clódia, Hillé, Agda, Osmo, Ruiska, Ruisis. Agem em
cenários quase oníricos, ruiniformes, como caixa de ressonância do nada a que se chega
na busca da transcendência. Hilda brinca, à beira do abismo, invocando o Absoluto que
não há, e prolifera nomes para o sagrado: o Divino Sem-Nome ou Coisa sem Nome, que
Nunca Existiu, o Grande Obscuro, o Mudo Sempre, o Tríplice Acrobata, o Sorvete
Almiscarado, a Haste Antenada Vibrando em Teu Ouvido, o Cão de Pedra, o Lúteo-
Rajado... Também a literatura hilstiana se insere no escopo gnoseológico da “vertigem
das listas” (Eco, 2009).
Na construção literária da transcendentação, na busca do divino, que “cospe pra
lá e pra cá, sem consultar a direção do vento”, segundo a prosa de Kadosh, o leitor vai
sendo surpreendido por jogos de avessamento entre a sublimidade e o rebaixamento, o
erudito e o baixo calão, a abstração conceitual e a galhofa. Nas faces alternadas com que
se mostra esse empuxo, encontramos tanto a via mística – vamos chamá-la de erotismo
do espírito –, à maneira da mística ibérica seiscentista, quanto a via erótica ou
pornográfica – vamos chamá-la de mística do sexo corporal –, à maneira das novelas
libertinas do seiscentos e setecentos (Magno, 2000). O fascinante, contudo, é que essa
alternância, construída no interior da escrita, fustiga seus limites, como se pudesse dizer
o terceiro lugar de onde uma e outra via descendem. A oposição entre mundo e não-
mundo parece colocada com clareza, mas eis que o riso espreita o Infundado e o aparente
peso da questa do Impossível desmorona na gargalhada do irrisório ridículo do cu, das
ancas, da boceta, do pau amarelusco, do desdém das coisas do “alto” – que deus que nada.
São faces complementares, lados que decaem opostos, mas que se inscrevem em razão
terceira ante-opositiva: as coisas do alto conduzem ao abjeto, que mostra o superior do
indizível, tornado bandalheira, desde onde se invoca o absoluto, em continuidade, como
na razão topológica de uma faixa de Moebius (Magno, 2004; Pickover, 2009), na qual a
cultura passa a tesoura, tomando como estanques o místico e o pornográfico.6
Dado esse ponto de partida, a obra de Hilda Hilst permanece um convite à
pesquisa e convoca as diversas tradições do escárnio, do erotismo, do riso, do exercício
espiritual, da mística, da pornografia, do sagrado e do profano, restaurando o contínuo,
ao remontar a hemiplegia à sua condição unilátera, sob o fundo inconsútil do
inconsciente: “és extensão do todo goza com ele porque jamais romperás a grande teia”
(Hilst, 2018, p. 272).

4. A partir das ferramentas conceituais de que me sirvo nesse texto, urge explicitar
algumas articulações, de que já fiz uso, aqui e ali, de modo a torná-las mais claras e
operativas.
Freud não inventou a roda: reconceituou o Inconsciente (Ellenberger, 1994;
Ffytche, 2014; Bogéa, 2018), sob a égide da pulsão de morte. Deu-lhe uma lógica, ao
abordar a complexidade fundamental dos eventos psíquicos pela dinâmica de reversão
em opostos (Coelho, 2020). Podemos, hoje, ressituar essa dinâmica a partir de uma
concepção vetorial da pulsão – com direção, sentido e força (Magno, 2004).
Consideremos, então, que há tesão7 que nos co-move, esse tesão deseja seu esgotamento
e silêncio, e qualquer tesão, levado muito longe, se depara com isso e sua realização
impossível. Devemos ao psicanalista brasileiro MD Magno, herdeiro antropófago de
Jacques Lacan, a formulação simples e axiomática da pulsão como Haver desejo de não-

6
O texto considera erotismo e pornografia sem maiores distinções conceituais (Medeiros, 2012).
7
Tradução brasileira que Magno propõe para Trieb.
Haver, que se estenografa A ® Ã, onde o vetor (®) denota a força constante da pulsão
(a konstante Kraft freudiana), cujo sentido e direção é não-Haver, termo, por sua vez, que
subsume as ideias freudianas de morte e destruição, além de dissolver o mal entendido da
suposta dualidade entre pulsão de vida e pulsão de morte, eros x thanatos, uma vez que
a pulsão é uma só e deseja sua extinção impossível (Magno, 2019, p. 48).
Acionando uma linguagem e raciocínio mais desconteudizados, Magno concebe
a força constante de desejar não-Haver como desejo de simetria, inscrito na própria
formulação Haver desejo de não-Haver, no sentido de simetria como enantiomorfismo,
à maneira da imagem de algo na frente do espelho: o objeto e sua imagem refletida não
se sobrepõem, pois estão em relação de simetria por enantiomorfia. Um lado é o avesso
do outro, como também acontece quando viramos ao contrário uma luva. Então, tomemos
essa analogia para pensar o movimento do tesão: há desejo e esse desejo é de simetria, é
desejo de encontrar seu enantiomórfico, até à reversão definitiva: “morrer” de vez e estar
presente ao gozo absoluto ou usufruto da paz que adviria se o desejo cessasse. Mas isso
não-Há. A simetria quebra, antes ainda.
De modo consentâneo com a precisão conceitual da teoria da Nova Psicanálise,
vamos situar esse raciocínio topologicamente, mesmo que em suas linhas gerais.
Desde o final do século XIX e, mais intensivamente, ao longo do século XX, uma
contribuição matemática facilitou o entendimento da reversão em opostos em regime de
unilateralidade. Essa contribuição foi a topologia, especialmente na figura do objeto
topológico denominado banda, facha ou cinta de Moebius (Pickover, 2009).

Considere essa linha pontilhada como um percurso mais ou menos mediano sobre
a faixa de Moebius, que, quando projetada sobre uma superfície bidimensional, resulta
no objeto matemático denominado oito interior:

ou
Agora, vamos acompanhar a apropriação dos raciocínios topológicos pela Nova
Psicanálise. O vetor que atravessa a figura topológica marca a direção, sentido e força
constante da pulsão em seu movimento de não-Haver (Ã), na imanência de Haver (A).
Cada uma das “curvas” do desenho representa, na verdade, as duas voltas na superfície
unilátera, construindo a ideia de simetria por enantiomorfismo – um lado e seu contrário
sobre uma única e mesma superfície –, sem o prejuízo do dualismo euclidiano. Ora, posso
tomar um ponto qualquer sobre essa superfície una e situá-lo como bífido. Isto é, trata-se
do ponto que inscreve logicamente uma bipartição ou sobreposição X qualquer, em
regime de terceiro lugar, que antecede e é condição de possibilidade dos “dois” lados, em
avessamento, na banda. Vamos marcá-los, já situando a lógica de revirão, em geral, mas
com a particularidade que estamos explorando (que pode ser substituída por qualquer
outra articulação que proponha uma polaridade ou oposição em reversibilidade e sua
condição terceira):

Mística do sexo corporal

A Erotismo do espírito

Ponto bífido

A bifididade é a conjetura lógica e psíquica que rege o Inconsciente. A ação


de uma formação recalcante, aí operando – e não escapamos disso –, implica recalcar um
dos lados da expressão, mas fundamentalmente recalcar a bifididade. Em termos de
operação concreta sobre uma banda de Moebius, isso significa passar uma tesoura sobre
a linha mais ou menos mediana, representada na primeira figura, o que destruirá a
unilateralidade, fazendo surgir uma banda bilátera, com as oposições em exclusão
recíproca típicas das superfícies euclidianas.
Dito de outro modo, a analogia é: de um corte operado sobre uma banda de
Moebius resulta uma faixa bilátera, onde “mão” e “contramão” são opostas e separadas
uma da outra. Esse corte, por sua operação, produz / é o correlato da função recalque.
Recalque do que? Em primeiro lugar, da possibilidade de reviramento. Na sequência,
recalque das séries quaisquer enantiomórficas àquela que foi afirmada. Resta um lado e
são excluídos seu enantiomórfico potencial e a bifididade.
Portanto, novamente: o que rege os processos de oposição com os quais nos
deparamos é o terceiro incluído, por ser simplesmente afirmativo, por oposição a não-
Haver. É pura havência, não há escapatória possível. “Esse terceiro é o distribuidor das
séries positivas e negativas, é o criador das significações, sem tê-las: ele remete ao puro
e simples sentido de Haver e de não haver não-Haver” (Magno, 1992, p. 88). Nesse
sentido, a bifididade é pré-opositiva e expressa, nessa analogia topológica, a competência
de avessamento do psiquismo. Cortada a banda de Moebius e destruída sua
unilateralidade, temos uma banda bilátera, que expressa a função de recalque, que barra
o movimento em avessamento ou revirão, com o que se exclui não apenas o oposto da
face vigorante, como, sobretudo, o recurso à própria bifididade constitutiva da mente.
Assim, a bifididade é a condição terceira fundamental, não só dos loucos,
solitários e poetas do verso juvenil de Hilda, mas do ato poético, por excelência, da
criação, em qualquer nível, da perplexidade e da ignorância desse nosso mal-estar
constitutivo. Aí colapsam nossas (vãs) tentativas de distinguir, no definitivo, realidade e
fantasia. Daí, advém o caráter alucinatório, estranho, inquietante que entropiza nossas
vidas, comendo pelas beiradas nossas certezas e, de repente!, o mundo virou outra coisa
e as respostas tidas já não valem mais nada. Aí reside nossa ignorância radical, onde
incide o pathos sexual e suas ressonâncias: o desnorteamento do sexo e a solidão em que
o gozo nos lança, com gosto de fracasso; a busca incessante e para sempre não tida do
encontro; a perplexidade diante desse impossível, em direção ao qual somos arrastados
pela via espessa do tesão; a vontade de gozo, que troça inclemente de nossa condição de
cadáver adiado; a multiversão que o tesão assume, sua capacidade plástica de aplicação e
seus efeitos de cataplasma; a gratuidade evidente desse comichão, que deixa o corpo
lasso, mas não saciado, afetação sexual que é a mesma presente em nossas invocações de
“Deus”, ainda que pareça estar a mística na mão “contrária” da libertinagem. É a mesma
coisa, no sentido de o denominador comum ser o único e mesmo tesão de desaparição,
onde se trançam erotismo, santidade e morte (Magno, 2000, p. 73).
É assim que entendemos o fio vermelho do obsceno, da derrelição, do abandono,
da solidão, do impossível cantado em Hilda Hilst. A anotação axiomática de Magno
expressa bem a pedra de toque dessa obra: um canto inspirado por e dedicado ao
impossível absoluto que não-há, seja por desabstrair o gozo, esgotando a carne, seja ao
sucumbir ao pathos teo-invocado, pela ascese do espírito, em empuxo de transcendência
(Bataille, 2016). Esse é o vetor da literatura hilstiana, mostrado no caleidoscópio dos
cacos de personagens de sua prosa e no cantar lírico do amor eroticamente gozoso,
deliquescente, deserto, deceptivamente não correspondido ou não compreendido,
obscenamente expresso, apofaticamente teo-invocado, no deparar-se, enfim, com o
impossível, sem nome, atrator e causador dos cantares da poeta.
E, por isso mesmo, a obra hilstiana é uma produção de sim, que, por efeito de sua
força, chega ao leitor, forçando-o a se rever (se ele vai produzir sim daí em diante, é
problema dele).
Te foi dado caminhar a razão, então caminha. Que sim. O reluzente da vida, o
casco da tua barca, matéria arcoirizada, é que empresta qualidade às águas.
Que sim. Até onde o horizonte, até onde a linha acizentada, longe, onde vês os
pássaros, estica a tua linguagem, fala, Tadeu, batizando a palavra, lambuza de
sal a pátina colada às consoantes, justifica as vogais, ajoelha-te, os joelhos
colados na madeira lavada. Que sim. Que não te assemelhas. Aos que te
rodeiam. (...). Que és novo como o começo inverso de um novelo. Que a morte
não existe, seria o sem forma, o escuro indizível, e tudo é geometria e palavra,
navega, cola-te ao corpo da Vida. (Hilst, 2018, v. 1, p. 354. Grifo nosso).

Sim também é a lição que transuda da obra de Magno, que vai no ponto nevrálgico
da literatura hilstiana, ganhando, de retorno, transmissão poética tão singular e eloquente.
Pois o desejo, em estrutura de revirão, reverbera eternamente e, nem por encontrar o
limite do Impossível, deixa de insistir, “exigindo todos os avessos, sendo função de todos
os possíveis”. Há um senso de possibilidade, reconhecível através desse conhecimento do
essencial. (Magno, 2008, p. 60-1).

5. Na prosa de ficção de Hilda Hilst, os cacos de personagens peidam, choram, vomitam,


trepam, discorrem eruditamente sobre Deus, xingam seus eventuais editores, enxovalham
o divino, tecem considerações pragmáticas sobre a existência, gozam como quem reza,
frequentam bordeis, pintam vaginas em ensolarados ateliês como profissão, estão
informados dos grandes temas filosóficos, discutem literatura, mostram-se lascivos,
assassinos, cruéis, doces, apatetados, irônicos, inteligentes. São, em cada caco, fractais
da mesma matéria gozante. Muitas vezes, apresentam-se em cenários quase topológicos,
pois moram e não moram em ocos, em poços ou à beira do rio, percorrendo ruas oníricas,
inconsistindo por meio de diálogos de forte carga cênica. Nefelibata, contudo, pois as
razões, argumentos, interjeições, situações, poderiam acontecer em qualquer lugar, o que
lhes confere um certo caráter atectônico, graças à arte da escrita, com um quê de Alice
através do espelho, sem se dirigir de vez à melancolia de Bartleby, o escrivão, ao mesmo
tempo alegre e bandalho, como a tradição fescenina, o Aretino renascentista, as peripécias
das novelas libertinas, chegando às raias da crueza e lucidez obscena de Sade.
“Sei muito dessa palha que se chama aparência, sei nada dessa esquiva coisa
entranhada no meu ser de dentro”, afirma Hiram, no discurso “O Projeto”, de Pequenos
discursos e um grande, e prossegue: “há mais volúpia em pensar na esquiva coisa do meu
ser de dentro, que me estender a teu lado, Hamat, e te amar”. Mais adiante, no discurso
“O grande-pequeno Jozú”, o escárnio irreverente: “minha avó, Jozú, foi caso de um
coronel, e você não imagina o que ela contava pra quem quisesse ouvir. O que? Que o
coronel esporrava com tanta galhardia que ela tinha vontade de bater continência pra ele
naquela hora” e que ele ficava com “um olhar assim como se o coronel estivesse passando
em revista a tropa”. “Ora, Kadosh, nada é como pensas, nasceste porque um homem
meteu o comprido e duro dele no mais fundo e mole dela, e daí pra frente danação ou
salvação isso depende se estás mais na beirada ou menos do buraco de merda ou de
jasmim”, lemos no texto homônimo do livro Kadosh. Mas também: “Vem do meio das
pernas ou vem da cabeça essa coisa de fogo que te atravessa o corpo?”. “Agora que estou
sem Deus posso me coçar com mais tranquilidade”, lemos no início de “O oco”, outro
texto de Kadosh. “Não, o lugar dele está vazio, penso somente na cadeira vazia, não o
vejo. O trono dourado de estrelinhas azuis está vazio (...). Nem sombra de nádegas”. E
eis a língua, como matéria expressiva da gravidade ou ridículo de ser acossada por Isso:
“Já faz tanto tempo que o trono está vazio? Se não está aqui, onde está? Algures? Bonito
algures outra vez. É uma palavra que serve pra tudo. Tudo que quiser dizer algures.
Algures pode ser aqui, lá, do Caiapó ao Chuí”. Nem por isso, deixa-se de tentar aquela
coisa de “como vim parar aqui”: “vai ver a mancha vermelha de novo, não adianta, para
com isso”. Mais um pouco e a invocação se aproxima da Ética de Espinosa:
Uma vez consegui explicar a existência daquele do trono vazio pela geometria.
Eu fazia o círculo, bem, já está feito, dentro do círculo um triângulo equilátero.
Aí eu olhava para cima, nesse tempo ainda olhava para cima quando pensava
nele e orava: meu Deus, fazei com que meu olhar se faça a um só tempo sol e
compasso. Esperava um pouco e cheio de humildade dizia em voz alta: és
assim, meu Deus, és uma esfera (e eu contornava o círculo) és uma asa (e eu
contornava os lados laterais do triângulo) és uno (e eu contornava novamente
a esfera) és tríplice (e eu contornava os três lados do triângulo) és infinito (e
eu abria os braços). Eu era sábio e comovido. Digo que pensava que era sábio.
Comovido não sei mais se ainda sou. (Hilst, 2018, p. 258).
Poderia prolongar as citações, na tentativa de mostrar textualmente a cintilância
da escrita hilstiana. Mas apenas posso sugerir, sem que nada prepare o leitor para a
experiência disso. Como aperitivo, deixo indicada uma “antologia Hilda Hilst”, com
seleção, organização e apresentação de Luisa Destri, que orientou essa difícil tarefa pela
intuição acertada de haver, na poesia, na prosa de ficção, no teatro e nas crônicas, um
núcleo que parte do “desejo transcendente de conhecimento”. Para ela, essa característica
confere a cada um dos livros “forte tendência à argumentação”, que recombinam os
mesmos temas fundamentais em torno da “central questão da raridade” (Destri, 2012, p.
11).
A prosa de ficção, cujos livros iniciais foram mencionados nos trechos acima, se
sofistica ainda mais a partir do já célebre A obscena senhora D, dando a volta completa
na única-duas-faces do revirão místico-pornográfico com o não menos célebre O caderno
rosa de Lori Lamby, talvez o mais sério e grave livro de Hilda (além de ser uma lição de
clínica psicanalítica), disfarçado de brincar de pornografia para se divertir, como afirma
a autora na entrevista do Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Salles.
Ou o mais leve e grácil livro de Hilda (além de ser uma obra prima literária), disfarçado
de exposição artística de uma fantasia sexual. Tanto faz.
A obscena senhora Deus: eis o axioma hilstiano nesse livro que sugere ao leitor,
de saída, que a Derrelição seria a chave para o “D” mudo do título, disfarçando-
entregando o golpe: trata-se da “teófaga” obscena senhora Deus.8 Ao narrar,
alternadamente, a perplexidade, a ira com o mundano, a transitoriedade do gozo, a morte
do marido amado, a decisão de morar no vão da escada, metáfora do LUGAR deus-
derrelição, a licenciosidade que transpira do ritmo cursivo da escrita – “te deita, te abre,
finge que não quer mas quer, me dá tua mão, te toca, vê? está toda molhada” –, dá carne
à lógica mística mais abstrata, de timbre eckhartiano: a identidade de fundo entre “Deus”
e “eu” (Magno, 2000, pp. 181ss; Eckhart, 1995, p. 348-355; McGinn, 2017). Com efeito,
a senhora Deus denota, literariamente, o lugar mental de exasperação, artificioso, por
excelência, da sacação experiencial de que “deus” é o nome da hipótese que o psiquismo
não pode não fazer, decorrente da fantasia de transcendência, o que mostra, pelo avesso,
que “a sexualidade é mesmo sacral em última instância” (Magno, op. cit., p. 183, p. 197).
A título ilustrativo dessa afinidade eckhartiano-hilstiana, lembremos que todo um
tema em torno do “fundo” (Grunt) ou “fundo sem fundo” de Deus e do homem é

8
Devo a MD Magno o me ter chamado atenção para isso.
desenvolvido na mística ekhartiana, para apontar essa univocidade. Segundo Eckhart, “se
alguém deseja entrar no fundo de Deus e em seu mais íntimo, é preciso antes entrar em
seu próprio fundo e seu mais íntimo, pois ninguém pode conhecer Deus sem antes
conhecer a si mesmo” (Apud McGinn, op. cit., p. 103). É uma mística do fundo, e não
uma mística do fundo da alma, pois a ideia central eckhartiana é a identidade do fundo,
para Deus e para o homem: “Aqui o fundo de Deus é meu fundo e meu fundo, o fundo de
Deus. Aqui vivo do que me é, assim como Deus vive do que lhe é”. (idem, p. 104). Em
termos estilísticos, essa mística explora os verbos “deixar” [lassen], “sair”
(frequentemente em paralelo com “entrar”) e o substantivo “vazio” ou “livre”, no sentido
de lugar desocupado, para proliferar a ideia de aniquilação da alma que, no mesmo ato,
precisa se livrar de Deus para chegar à nobreza, que é simultaneamente sua pobreza mais
extrema. Do lassen aparecerá o tema do Gelassenheit, o abandono, que comporta as ações
de deixar ir, deixar partir, deixar ser. Daí, a relação com o vazio, a prática do lassen ligada
à obediência, à humildade, à nobreza, ao afastamento. É uma atitude apofática de
conhecimento, de um conhecimento “incognoscente”, que extrai tudo o que a alma é do
fundo mesmo de Deus, sem saber absolutamente nada de nada (Libera, 1994, pp. 231-
95). Na mística ibérica do Seiscentos (Teresa D’Ávila e João da Cruz), a analogia é o
centro da alma, talvez transmitida pelas traduções latinas de Eckhart (McGinn, op. cit.,
p. 39).
É claro que o bestiário metafórico usado por Hilda nesse livro, como, por exemplo,
porca-mulher, Porco-Menino, e presente em diversos outros, é uma estratégia para manter
oscilante a imanência-transcendência de seu questionamento, assim como permite
movimentar o viravesso sagrado-profano, o alto e o baixo, o gozo carnal como subproduto
insuficiente da ascese mística, por causa e apesar de Deus ser seu desencadeador
orgásmico, à maneira de Teresa D’Ávila. Mas é inconteste a excelência poética dessa
mostração, dando-lhe, sim, lugar cativo no rol dos textos místicos. Vejamos Hilda:
Olha Hillé a face de Deus onde onde? Olha o abismo e vê eu vejo nada
debruça-se mais agora só névoa e fundura é isso. adora-O. Condensa névoa e
fundura e constrói uma cara. Res facta, aquieta-te. (...) eu Nada, eu nome de
Ninguém, eu à procura da luz numa cegueira silenciosa. (...) e o teu? e o teu
olhar? o olho obsceno do meu Deus. (Hilst, 2018, v. 2, p. 34; p. 50; p. 54).
Obscenamente senhora Deus.

6. Mais um pequeno exercício, para concluir. Paremos a meio caminho, antes de chegar
à “bandalheira” que tomará conta d’O caderno rosa de Lori Lamby, ainda com a corda
esticada nas questões do divino obsceno. Quatro anos depois d’A obscena senhora D,
Hilda publica Com meus olhos de cão.
Esse livro se inicia com um verso conhecido: “Deus? Uma superfície de gelo
ancorada no riso”. A palavra passa a Amós Kéres9, matemático aturdido por uma
iluminação, que emerge misturada às agonias da vida banal de todos os dias. Professor
incompreendido, marido indiferente, pai alheado, estudioso solitário, frequentador de
bordéis na juventude, não sabe mais seu lugar no mundo, por excesso de sentido.
A narrativa esgarça o choque bruto da real realidade e a concomitante equalização
dos valores ligados às lembranças de infância, aos diálogos recentes, às ilusões
reconhecidas. No topo de uma colina, chega a compreensão, em um átimo, de estar
lançado num “túnel de funduras”. A descrição é crua, como que nos dando, por analogia,
o incontornável da havência, marcado em “teias finíssimas” de uma linguagem
impossível de se exprimir em palavras, que não se consegue arrancar perfeita inteiriça da
massa de terra dura e informe, onde jaz a palavra-halo, que diria inteiriça, se pudesse
falar, eloquente-oca, sem se cindir. “Estavam ali inteiriças [as teias finíssimas], sabia,
mas como arrancá-las? Tudo se desmancharia”. “Criança, nunca soube explicar-se”. No
topo da colina, viu “um nítido inesperado”, sem formas, nem linhas, ou contornos, ou
luzes, mas “um fulgor sem clarão”, “um sol-origem sem ser fogo”, invadido de “um
significado incomensurável”, que, por isso mesmo, desprovia de significância tudo
outrora tido. E isso do nada, esse inesperado nítido em meio à banalidade da vida, a
conversa com o diretor da universidade, dispensando-o pras férias, porque os alunos não
estavam entendendo mais nada; sua mulher Amanda, de camisola verde pálido, as cores
combinando com o quarto e com seu pijama verde-clarinho; o filho, lhe pedindo pra
resolver problema de matemática da escola; a lembrança de levar os livros de matemática
pro bordel, quando jovem, aproveitando a calmaria da manhã, sossegado como no campo,
e Libitina dizendo “põe no meio das minhas coxas teus livrinho (...) não quer gozar
pertinho do que você mais gosta, desses teus livros, hein, não quer benzinho?” O nítido
inesperado, ali no topo da colina, contemplando a ponta dos sapatos, bicos e solas
esfolados, vendo o caminhar das formigas no chão e pensando sobre os sons que elas

9
As Queres ou Kéres, do grego “sorte” ou “fatalidade”, representavam, na mitologia grega, os espíritos
(daimones) da fatalidade e da morte violenta. A Teogonia, de Hesíodo, apresenta-as como filhas de Nix
(Noite), que as teve sem se unir a outra divindade: “Noite pariu hediondo Lote, Sorte negra e Morte, pariu
Sono e pariu a grei de Sonho. A seguir Escárnio e Miséria cheia de dor. Com nenhum conúbio divina pariu-
os Noite trevosa”. (Hesíodo, 2006, p. 113).
faziam. E a compreensão: o universo unívoco, “um perfeito esplêndido Absoluto”,
sentindo “o não sentível”, compreendendo “o não equacionável”.
O nítido inesperado no topo da colina não foi a única vez. O acontecimento dá
testemunha e dele se acercou em outras situações. A estupidez da universidade de dia e,
à noite, retomando os estudos, “buscando principalmente a ordem”, em meio a fórmulas,
algarismo e expressões.
“Como me sinto? Como se colocassem dois olhos sobre a mesa e dissessem a
mim, a mim que sou cego: isto é aquilo que vê. Esta é a matéria que vê. Toco
os dois olhos em cima da mesa (...). Mas não vejo o ver. Assim é o que sinto
tentando materializar na narrativa a convulsão do meu espírito. E desbocado e
cruel, manchado de tintas, essas pardas-escuras do não saber dizer, tento
amputado conhecer o passo, cego conhecer a luz, ausente de braços tento te
abraçar, Conhecimento (...). Estou imundo e sozinho. Escuro, sinistro, mudo e
sozinho (...). Eu e meus alguéns, esses dos quais dizem que nada têm a ver com
a realidade. E é somente isso que tenho: eu e mais eu. Entendo nada. Meus
nadas, meus vômitos, existir e nada compreender. Ter existido e ter suspeitado
de uma iridescência, um sol além de todos os eus. Além de todos os tu. (...).
Mas dizem que o Alto é o nada e é preciso olhar os pés. E o cu também. Com
um espelho. Estou olhando. Impossível esquecer grotesco e condição. (Hilst,
2018, v. 2, p. 87-9).
Quando o nítido inesperado vem, a realidade não desaparece. Aumenta,
hipertrofia, fica real, hipersensibilizante, assume todos os valores sem valorar nenhum.

7. Uma última palavra: sempre é importante lembrar que o Brasil é um país de extremos.
Capaz de cultivar seus cidadãos na mais abjeta ignorância e solo fértil da mais sofisticada
literatura e do mais sofisticado pensamento. Terra de obscurantismo e ventríloca
incômoda da mais aguda lucidez. Celeiro de burocratas da língua, ao largo dos quais
passam, serenos e altivos, os que a arte conduz, com estilo e irreverência. Esse é o país
de Hilda Hilst, poeta eloquente do caminho para o abismo, em estrada unilátera, por onde
a mística revira em pornografia, e no mesmo caminho de ida e volta, a libertinagem
conduz ao afastamento radical do mundo. Poeta que canta, na era das próteses e da
tecnologia, o que, talvez, nos aguarda, quando e se tivermos atravessado a turbulência: o
entender que a sexualidade é mesmo o paradigma do conhecimento e que essa estrada do
excesso é puro dispêndio, reiterado à revelia de a desistência não chegar. Trata-se apenas
de um primata afetado de uma loucura que seu corpo carbono e água não tem condições
de acolher, que goza de um pathos que seu orgasmo rastreia sem conseguir definir, menos
ainda exaurir; que aplica a libido em esgotamentos da carne os mais febris, a mesma
libido aplicando-se indiferentemente à castidade, onde o gozo advém desabstraído.
A literatura de Hilda Hilst é um convide a virar a lata do inconsciente10, passando
a mão em toda e qualquer formação (literária) que sirva à disponibilidade e à abertura
psíquicas. Uma literatura praticada como ascese, que deu testemunho de que uma vida
pode se elevar à condição de obra de arte in progress (Magno, 2007, p. 191), no mesmo
ato, convidando o leitor a descobrir para si seu próprio caminho.
Essa é a maneira vindoura de estar no mundo: artistificar a vida. Comentando, em
entrevista, sua leitura do livro Misticismo e lógica, de Bertrand Russell, Hilda faz uso da
noção de “pontos de ficções lógicas”, postulada pelo filósofo inglês, para explicar sua
postura artificializante:
A partir dessas ficções, você passa a ter experiências concretas, pragmáticas.
Então, nada justifica a dissimulação dessa palavra ficções, tomada
abusivamente apenas no seu sentido de dicionário literário e não rigorosamente
científico. Para mim, desde que li esse livro, as ficções deixaram de ser o
imaginário apenas, para fazerem parte do real tangível, de um comportamento
que pode ser medido. (...). O amavissi [forma latina para ‘ter amado, ter sido
amado’] pode ser superado, você pode ir além da nostalgia tristíssima de um
dia ter sido, ter amado. Seja qual for teu passado, se tua infância foi feliz ou
infeliz, essa nostalgia nos persegue, exceto no caso de lucidez passional (Diniz,
op. cit., p. 64).
Essa lucidez, em outro diapasão, está presente no entendimento renovado da
pulsão freudiana, proposto por Magno11, que acolhe, ao mesmo tempo que faz eco, à
situação geral de ignorância a que fomos (re)lançados com a virada tecnológica
contemporânea, e que é fundamental para toda operação clínica, seja como conhecimento,
estética, política, ética, direito, prática social, etc. Estou me referindo ao retorno à cena
do Impossível como Absoluto (banido pelos secularismos e relativismos de cepa
“ilustrada”), positivando e caucionando os acontecimentos e emergências, em qualquer
escala, como campo dos possíveis. O ter situado topologicamente, em revirão, as faces

10
Uso essa expressão apoiada na leitura contrária e positivante que Magno faz do “complexo de vira-lata”,
trocando-o por “vira-lata complexo”: “ser vira-lata é um sintoma bacana do Brasil. É nosso pedigree. Vira-
lata não tem fronteira, fuça todas. (...). É preciso se livrar do complexo de vira-lata, aquele de ficar olhando
o pedigree dos outros e achar que eles é que são importantes. (...) Depois que aprendemos a virar todas as
latas, ficamos inteiramente singulares – enquanto vira-lata.” (Magno, 2018, p. 154).
11
Remeto o leitor ao breve panorama histórico, presente no livro Razão de um percurso (Magno e
Medeiros, 2015), que apresenta as linhas gerais do percurso intelectual de MD Magno, acompanhando a
montagem teórica de sua obra em psicanálise e a interlocução fundamental que teve com certa linhagem da
literatura, arte e pensamento brasileiros.
mística e erótica do tesão, facilitou o entendimento dessa experiência pessoal, que toca
obscena e mortalmente cada um de nós.
Nenhum juízo estético, nenhuma procedência social, nenhuma posição de gênero,
nenhuma herança de raça, nenhuma ideologia, nenhuma impostação intelectual-
universitária, nenhuma discursividade, nada, absolutamente nada, define em definitivo.
Estar sendo, ter sido, para usar o título do último livro de Hilda, é o que se pode dizer,
narrar, dar testemunho. Do que? Da única coisa que importa: assumir sua havência, no
“oco da existência”, e se virar, nos rastros de ser e ter.
Vale para Hilda a afirmação de Bataille, em seu Método de Meditação: “Penso
como uma puta que tira seu vestido. Na extremidade de seu movimento, o pensamento é
o impudor, a obscenidade encarnada” (Bataille, 2016, p. 222).

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